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ZÉLIA LOPES DA SILVA

KARINA ANHEZINI
(Organizadoras)

A ESCRITA HISTÓRICA
E SUAS MÚLTIPLAS FACES

FCL - Assis - UNESP - Publicações


ESCRITA HISTÓRICA
E SUAS MÚLTIPLAS FACES
Vice-reitor no exercício da Reitoria
Julio Cezar Durigan

Diretor da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis


Dr. Ivan Esperança Rocha

Vice-Diretora da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis


Drª. Ana Maria Rodrigues de Carvalho

Chefe do Departamento de História


Drª. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi

Coordenador da Pós- Graduação em História


Drº. Áureo Busetto

COMISSÃO CIENTÍFICA
Drª. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi
Drº. Áureo Busetto
Drª. Karina Anhezini de Araújo
Profª. Drª. Tania Regina de Luca
Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva

Revisão Português
Olga Liane Zanotto Manfio Jaschke

Diagramação e normas técnicas


Aline Michelini Menoncello
ZÉLIA LOPES DA SILVA

KARINA ANHEZINI
(Organizadoras)

A ESCRITA HISTÓRICA
E SUAS MÚLTIPLAS FACES

Assis
FCL – Assis – UNESP – Publicações

2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

E74 A escrita histórica e suas múltiplas faces / Zélia Lopes


da Silva,
Karina Anhezini (organizadoras).- Assis: FCL-Assis-
UNESP-
Publicações, 2011
989 p. : il.

ISBN: 978-85-88463-66-0

1. Ciência política. 2. Religião. 3. Cultura. 4.


Sociedades. I.
Silva, Zélia Lopes da. II. Anhezini, Karina.

CDD 200
301.2
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

I – PRÁTICAS RELIGIOSAS E PODER POLÍTICO

1.1. As experiências religiosas e práticas de poder na Antiguidade


Clássica e no medievo

Algumas manifestações religiosas orientais em Roma no Principado: Petrônio


e Marcial
Amanda Giacon Parra 21

O III Concílio de Toledo (589) e a conversão da Hispânia visigoda


Pâmela Torres Michelette 43

O “valor” das práticas religiosas como objeto de disputa política:


considerações sobre as reformas religiosas de Licurgo e Demétrio de Falero
em Atenas no último terço do século IV A.C.
Rafael Virgílio de Carvalho 63

As diferentes interpretações do texto hagiográfico: Uma análise sobre a Vita


Desiderii de Sisebuto de Toledo (612-621)
Germano Miguel Favaro Esteves 103

Da Quanta Cura (1864) de Pio IX a Rerum Novarum (1891) de Leão XIII: os


discursos entre afastamentos e aproximações com a modernidade
Carolina de Almeida Batista 123

Horácio, O Poeta da Festa


Cláudia Valéria Penavel Binato & Mirtes Rocha Rodrigues 141
1.2. Questões religiosas na América Portuguesa e no Brasil.

Impressões e apontamentos dos missionários jesuítas quanto aos costumes e à


etiqueta japonesa
Mariana Amabile Boscariol 161

A prática do judaísmo no lar neocristão: heranças da tradição sefaradi na


América Portuguesa
Helena Ragusa 191

Conservadores x Progressistas: uma representação histórica da Igreja católica


brasileira em anos ditatoriais (1968-1974).
Glauco Costa de Souza 193

O Reino de Deus na terra: mudanças teológicas e participação política no


pentecostalismo brasileiro
Vitor Aparecido Santos de Paula 213

II - CULTURA E SEUS SUPORTES: IDENTIDADES E


REPRESENTAÇÕES

2.1. Os intelectuais, a imprensa e outros meios de comunicação

Construindo um problema: o entusiasmo intelectual nas cartas do Centro


Cultural Euclides da Cunha
Itamar Cardozo Lopes 245
Construindo uma autoimagem: as memórias de Joel Silveira
Danilo Wenseslau FERRARI 281

Joaquim e o Jornal Meio-Dia (1939-1942)


João Arthur Ciciliato Franzolin 303

Os dilemas do movimento operário brasileiro: a Revolução Russa na imprensa


dos anarquistas (1917-1922).
Leandro Ribeiro Gomes 323

Solução americana: Argentina e Estados Unidos por meio do jornal A


Província de São Paulo (1875-1889)
Paula da Silva Ramos 347
As escolas de engenharia e a produção do saber
Fernanda Ap. Henrique da Silva 371

Portugal livra-se do passado: cobertura jornalística da revista Veja à Revolução


dos Cravos (maio de 1974)
Rafael Henrique Antunes 389

Mídia comunitária, democratização da comunicação e as interferências


políticas
Vanessa Zandonade 403

A TV Cultura: uma nova Emissora Associada voltada para São Paulo, 1960-
1967.
Eduardo Amando de Barros Filho 417

Os debates e as ações de teleducação durante o regime militar (1964 – 1985)


Wellington Amarante Oliveira 433

Possíveis relações entre agências de propaganda e a ditadura militar brasileira.


David A. Castro Netto 449

A instituição em foco: a criação da ANCINE e o desenvolvimento do cinema


nacional
William Geraldo Cavalari Barbosa 485

2.2. As festas, práticas educativas e de sociabilidades

A experiência pelo relato de quem a fez: uma história do projeto banda


Lokonaboa
Guilherme Gonzaga Duarte Providello 503

Carnavais Cariocas: entre a teoria e a prática


Danilo Alves Bezerra 521

Festa: um dia de exceção


Priscila Miraz de Freitas Grecco 549

Mulheres Organizadas
Jamilly da Cunha Nicacio 563
2.3. Os locais de memória e as políticas culturais do patrimônio

Instituições de proteção ao patrimônio cultural: um olhar sobre as práticas


políticas do Condephaat no oeste paulista (1969 – 1999)
Rodrigo Modesto Nascimento 587

Arquivos pessoais e acervos literários: o caso do arquivo pessoal do escritor


João Antônio (1937-1996)
Thais Jeronimo Svicero 605

Resistência e memória: Santo Dias, história de uma vida militante, 1962-1988.


Carlos Alberto Nogueira Diniz 629

Memórias e gênero no espaço urbano: reflexões.


Bruno Sanches Mariante da Silva 647

III - DIMENSÕES DA POLÍTICA

Ideias em movimento. Por uma história conectada do movimento operário


mexicano e brasileiro no período de expansão Comunista.
Fábio da Silva Sousa 663

Instituição do policiamento ambiental paulista: condições sociopolíticas e


econômicas (1930 – 1949)
Adilson Luís Franco Nassaro 681

Os veteranos da FEB: O Conflito ideológico na Associação de Ex-


Combatentes do Brasil (1945-1950)
Carlos Henrique Lopes Pimentel 705

Oposição armada aos governos militares brasileiros (1964-1985): a trajetória


do Movimento Comunista Revolucionário (MCR)
Fabricio Trevisan Florentino da Silva 727

Debate: Atenuando a aridez do exílio


Rodrigo Pezzonia 761
Industrialização, urbanização e pensamento jurídico no Brasil entre os anos de
1945 e 1964
Patrícia Graziela Gonçalves 791

Ideias e debates na defesa da industrialização de São Paulo na Primeira


República (1889-1930)
Tomás Rafael Cruz Cáceres 827

Terrorismo e a agenda/pressão política dos Estados Unidos: o caso da tríplice


fronteira
Sérgio Luiz Cruz Aguilar 853

Aumento da governabilidade, política de mercês e concessão de sesmarias:


fundamentos práticos da ação metropolitana no processo de ocupação das
minas de Cuiabá (1721 – 1728)
Luis Henrique Menezes Fernandes 878

IV - HISTÓRIA, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS: DEBATES NA


ESCRITA DA HISTÓRIA

Genealogia e hermenêutica: novas perspectivas nas relações entre história e


filosofia
Lucas de Almeida Pereira 913

Aproximações entre Thompson e Foucault na historiografia brasileira dos


anos 80: alguns apontamentos.
Igor Guedes Ramos 931

A semelhança e a mediação do conhecimento na concepção de Walter


Benjamin.
Victor Martins de Souza 957

“Da guerrilha ao socialismo”: Florestan Fernandes e a revolução cubana.


Barthon Favatto Suzano Júnior 971
APRESENTAÇÃO

O livro Escrita histórica e suas múltiplas faces agrega textos de discentes da


Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, vinculados ao Programa de Pós-
Graduação em História/Assis, que versam sobre as temáticas articuladas às
linhas de pesquisa desse Programa que tratam de aspectos multifários da
cultura, política e religião. Essa produção é resultante da participação na
XXVII Semana de História, ocorrida em novembro de 2010, que incorpora,
também, contribuições de pesquisadores, professores e alunos, de outras
instituições. Portanto, os escritos aqui reunidos foram sistematizados nos
tópicos “Práticas religiosas e poder político”; “Cultura e seus suportes:
identidades e representações”; “Dimensões da política” e “História, Filosofia e
Ciências Sociais: debates na escrita da História”.
O primeiro bloco temático “Práticas religiosas e poder político” reúne
textos que objetivam detectar as articulações do campo religioso com o
político, em temporalidades e dimensões distintas da Antiguidade greco-
romana, do medievo e do século XIX, na Europa, na Ásia e América
portuguesa (século XVI) e do Brasil do século XX, discutidos com base em
assuntos diversos.
Na primeira parte do tópico inicial, as inquirições dos autores visam
detectar as mudanças de práticas religiosas na cidade de Atenas sob o domínio
de Licurgo e sua comparação com as formulações de Demetrio, que usam as
reformas religiosas como estratégias de controle político e de fortalecimento
de certos grupos em detrimento de outros; identificar as religiões praticadas na
cidade de Roma no decorrer do primeiro século e início do segundo, período
do Principado, apoiadas nas fontes Satyricon, de Petrônio e os Epigramas, de
Marcial; aspectos da religião católica no período medieval e no século XIX,
12 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

notadamente as relações entre o império romano e a igreja oficial; o “gênero


hagiográfico”, valendo-se da produção de obras voltadas para a propaganda
de centros de peregrinação e dos santos, gênero que se consolidou na Idade
Média, com a expansão do cristianismo e a difusão do culto aos santos.
Outros aspectos dessas relações entre política e religião podem ser detectados
voltando-se o olhar às diretrizes políticas papais, no século XIX e as relações
dos visigodos e a maioria dos reinos germânicos em suas conexões com o
império romano e a igreja oficial.
No século XIX, verificam-se mudanças e direcionamentos, assumidos
pelos discursos dos Pontífices Pio IX (1846-1878) e Leão XIII (1878-1903),
analisando suas especificidades no período de 1864, com a publicação da
encíclica Quanta Cura, que condenava os erros da época (modernidade), a 1891,
data da publicação da encíclica Rerum Novarum, cuja perspectiva era colocar em
evidência a questão social.
Já os textos que tratam da experiência religiosa na Ásia e América
portuguesas, no século XVI, abordam as questões da cristianização do Japão
pela Companhia de Jesus e a vinda dos judeus Sefarditas para a colônia
brasileira, fugindo das perseguiçöes ibéricas e do estigma de cristãos novos.
Esse subitem apresenta, ainda, textos que discutem o conflito interno que
ocorreu entre os grupos católicos (conservadores e progressistas), nas décadas
de 60 e 70 do século XX, e a ampliaçäo, na década 1980, das Igrejas
pentecostais no Brasil que embora presentes no país, há quase um século,
somente ganham visibilidade social nesse período. Essas alterações decorrem
de mudanças de perspectiva na interpretação doutrinal que se manifestam,
entre outros aspectos, na ampliação de seu espaço de atuação para fora do
campo propriamente religioso.
Sob o título “Cultura e seus suportes: identidades e representações”,
embora variados, os autores trazem um amplo leque de temas enfeixados em
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 13

três subdivisões que versam sobre os intelectuais, os meios de comunicação e


imprensa, as festas, a educação e as diferentes práticas de sociabilidades, e os
bens culturais em modalidades distintas que marcam as especificidades do
próprio objeto. Isso significa dizer que o eixo das reflexões busca certas
dimensões do campo cultural cuja ênfase, em alguns desses escritos é
demarcar os procedimentos teóricos e metodológicos para enfocar as
temáticas aludidas.
As reflexões que abordam os intelectuais indicam que eles são flagrados
em situações e atividades diversas: militando na imprensa, intervindo na
política como os engenheiros na escola de Minas, no movimento operário
divulgando as ideias comunistas e libertárias valendo-se da imprensa operária
no Brasil e no México. Outro conjunto de textos aborda os meios de
comunicação em seus diferentes suportes como a instalação dos canais de TV
no Brasil, entre tantos outros assuntos cuja preocupação é refletir sobre os
mecanismos que propiciam o forjamento de certos temas no âmbito desse
suporte.
O tópico “As festas, práticas educativas e de sociabilidades” agrega
textos que têm em comum, a discussão das festas profana e religiosa cujos
escritos versam sobre as manifestações carnavalescas, vistas a partir de suas
inflexões teóricas e a festa religiosa, com base no ensaio “Todos os santos, dia
de finados”, de Octavio Paz, que trata de questões culturais do México. E,
ainda, dois textos que abordam as experiências de sujeitos que, por muito
tempo, foram excluídos das reflexões historiográficas como as mulheres (no
caso as presbiterianas) e os “loucos”.
O último subitem desse bloco aborda a problemática da memória e dos
bens culturais, com foco no arquivo pessoal do escritor João Antônio (1937-
1996) que se encontra depositado na Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP e nas
14 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

diretrizes políticas para a preservação e tombamento dos bens culturais no


Estado de São Paulo, com base na análise da atuação do Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo). E, também, na experiência de sujeitos que
têm sua memória rastreada a partir de lugares específicos de memória como as
ruas, praças e monumentos e, de suas militâncias políticas, associadas às lutas
sindicais que são ponto de partida para delinear a memória de seus
protagonistas.
“Dimensões da política” surpreende o leitor com um rol variado de
temáticas que dão conta dos imbricados espaços da política nacional e
internacional. Com uma abordagem promissora, a história conectada, a
compreensão da circulação das ideias do movimento operário mexicano e
brasileiro na primeira metade do século XX ganha destaque. No âmbito da
História Ambiental, outra face da política ocupa a primeira cena no artigo
dedicado à instituição do policiamento ambiental, em São Paulo. A História
Militar vem ganhando uma ampliação de suas abordagens e questões e se
lança ao desafio das análises dos conflitos e de algumas personagens relegadas
ao esquecimento: tema do texto dedicado à Associação de Ex-combatentes da
Força Expedicionária Brasileira. Com base na história do cotidiano da
militância política, o jogo existente entre as concepções políticas dos governos
militares e as ações e identidades dos integrantes do Movimento Comunista
Revolucionário é mapeado por meio da análise de processos-crime. A
militância durante o regime militar é tema, também, de outro capítulo
dedicado ao estudo do grupo DEBATE, e de seu meio de divulgação, a
revista Debate: Problemas da Revolução Brasileira. Importante veículo de
informação e troca de ideias, a revista representou um local de confluência
para parte dos exilados brasileiros que se encontravam na França na primeira
metade da década de 1970.
O contexto de industrialização e urbanização do Brasil de meados do
século XX é chave interpretativa do texto dedicado a compreender a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 15

formação do pensamento jurídico no Brasil nesse período. Valendo-se da


análise dos discursos dos juristas, a autora busca mapear as transformações
sociais e políticas que afetaram a conformação do poder judiciário. Destaque é
dado à industrialização, tema de outro capítulo que, por meio de diversas
fontes (Anais do Parlamento Brasileiro, Relatórios da Associação Industrial e
periódicos), trata da industrialização como um movimento de intricados
debates durante a Primeira República, em São Paulo.
A fronteira foi tematizada nos capítulos que encerram essa subdivisão
dedicada às dimensões da política. Emblemáticos para demonstrar a
diversidade de abordagens, campos e assuntos que a História Política
renovada comporta, esses capítulos levam o leitor do estudo do papel da
metrópole no processo de dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo e
ocupação das minas da Cuiabá setecentista à análise das notícias veiculadas na
imprensa brasileira logo após os atentados de 11 de setembro e a pressão
política dos Estados Unidos no caso da tríplice fronteira.
Fecha o livro as reflexões agrupadas em “História, Filosofia, e Ciências
Sociais: debates na escrita da História”. Preocupados com questões teóricas
que cercam o ofício do historiador, os autores se debruçam sobre algumas das
problemáticas e frutíferas relações entre História e Filosofia: a perspectiva
genealógica derivada das pesquisas de Michel Foucault e a leitura
hermenêutica de Paul Ricoeur são colocadas em diálogo na tentativa de
mapear as possíveis contribuições desses sistemas para os historiadores; na
seara da História da Historiografia, a produção dos anos 80 é posta em mira
para averiguar as aproximações e apropriações de E. P. Thompson e Michel
Foucault realizadas pela historiografia brasileira. Com base na reflexão
provocada pelo ensaio As doutrinas da Semelhança (1933) de Walter Benjamin
são discutidas as formas de tramitação/mediação do saber. A aproximação da
História com as Ciências Sociais é tematizada por meio do estudo da obra Da
Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana, de autoria do sociólogo Florestan
16 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Fernandes, um marco dos estudos a respeito de Cuba, que contribui para a


compreensão do cenário teórico e político da sua época de produção.
Com esses quatro grandes eixos temáticos, o leitor dispõe de uma obra
com resultados de pesquisas e ensaios que abarcam uma diversidade de temas,
períodos e abordagens capazes de evidenciar o vigor da historiografia
contemporânea em formação.

Zélia Lopes da Silva


Karina Anhezini
I

PRÁTICAS RELIGIOSAS E PODER POLÍTICO


1.1

As experiências religiosas e práticas de poder na Antiguidade


Clássica e no medievo
Algumas manifestações religiosas orientais em Roma
no Principado: Petrônio e Marcial

Amanda Giacon PARRA*

Introdução

I
nicialmente, destaca-se que este artigo é parte de uma pesquisa
desenvolvida, que abrange as fontes Satyricon de Petrônio e Epigramas de
Marcial, e que busca entender as religiões praticadas na cidade de Roma
no decorrer do primeiro século e início do segundo, período do Principado.
O artigo trará comentários acerca da religião romana no período, em
seguida um breve resumo sobre cada uma das fontes, a análise delas e algumas
considerações a respeito do tema.

As religiões em Roma no primeiro e início do segundo séculos

As religiões vividas pelo povo romano tinham características diferentes


das religiões mais praticadas nos dias de hoje, por isso, é importante elencar
alguns conceitos ou princípios, com base nos quais se pode ter uma ideia de
como se organizavam as crenças, ou seja, como se dava a experiência religiosa
do povo romano no âmbito público.
A maneira de “crer” dos romanos é diferente de qualquer ideal cristão
de crença. Para os romanos antigos, explicam Linder e Scheid, “crer era

*
Doutoranda em História/UNESP/Assis. Orientadora: Drª. Andrea Lúcia Dorini de
Oliveira Carvalho Rossi.
22 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

fazer”. “Crer na Roma antiga equivalia a ter uma confiança cega no rito [...]”
(1993, p.58, minha tradução)1. Ou seja, crer significava acreditar no poder do
ritual e buscar sua perfeita execução.
Scheid enumera alguns dos maiores princípios. O primeiro deles é que a
religião romana “é uma religião sem revelação, sem livros revelados, sem
dogma e sem ortodoxia. O que existe é a chamada ‘orthopraxis’, a
performance correta que descreviam os rituais” (SCHEID, 2003, p.18, minha
tradução)2.
Como destaque entre os conceitos que envolvem a religião dos
romanos, poderia-se citar a supervalorização do rito. Enquanto o povo grego
valorizava o mito, os romanos valorizavam o rito (SCARPI, 2004, p.154).
Estes acreditavam que quando o ritual era perfeitamente executado, os deuses
permitiriam a manutenção do equilíbrio da cidade, ou seja, a observância ao
ritual trazia o equilíbrio das relações entre homens e deuses, o que eles
chamavam de pax deorum.
Um ponto importante a respeito da religião pública praticada no
Império é que se trata de uma religião social, ligada à comunidade. Há tantas
religiões romanas quanto grupos sociais: os cidadãos, as legiões, as várias
unidades das legiões, colégios dos servidores públicos, artesãos, famílias, entre
outros (SCHEID, 2003, p.19).
Destaca-se, ainda, que se tratava de um modelo cívico de religião: “[...]
respeitava-se a liberdade do cidadão e ajudava-o no estabelecimento de
relações com os deuses fundadas especialmente na razão mais do que no
medo” (SCHEID, 2003, p.21).

1
“'Croire', dans la Rome ancienne, équivalait à faire une confiance aveugle au rite [...]”
2
“This was a religion without revelation, without revealed books, without dogma and without orthodoxy.
The central requirement was, instead, what has been called ‘orthopraxis’, the correct performance of
prescribed rituals”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 23

Um conceito importante na religião tradicional romana é a ideia de


religio. Trata-se da própria reverência prestada aos deuses, da prática religiosa,
da crença religiosa; era a cerimônia, o rito, o respeito aos princípios religiosos.
A observância dos atos rituais dos romanos é percebida, por exemplo,
por meio de um calendário religioso festivo bastante rigoroso. Havia diversas
festas anuais em honra a vários deuses e a quantidade de deuses cultuada pelos
romanos era bastante significativa. A estrutura do calendário religioso
compreendia muitas comemorações como, por exemplo, a Ceralia, a Vestalia, a
Liberalia, entre outras.
As divindades cultuadas na religião pública eram inúmeras. Segundo
Scarpi (2004, 144-147), a tríade arcaica de deuses romanos era baseada nos
modelos indo-europeus e constituía-se de três divindades: Júpiter, Quirino e
Marte. Posteriormente, substituiu-se pela tríade: Júpiter, Juno e Minerva.
Em determinados períodos, Roma contou também com o culto
imperial. Foi o caso do período tratado neste estudo, o Principado. Um dos
elementos mais característicos da religião romana nos primeiro e segundo
séculos foi o fato de se divinizarem alguns imperadores mortos e lhes render
culto.
Este culto, que ocorria em toda a extensão territorial romana, era feito
justamente para garantir o poder de Roma sobre todas essas terras. Era uma
forma de legitimação devido à grande influência territorial da cidade. Nele, o
princeps de Roma tornava-se divus, divino, e Roma a dea Roma, deusa Roma
(SCARPI, 2004, p.175).
Para o entendimento da religião romana o conceito de mos maiorum é
imprescindível. De forma simplificada, o conceito diz respeito à tradição
romana, à conservação dos costumes dos antepassados (SCARPI, 2004,
p.142). Ou seja, os romanos apreciavam a preservação dos costumes também
no campo religioso.
24 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A religião era uma marca da identidade romana e ser cidadão romano


era condição para praticar a religião (SCARPI, 2004, p.140). E essa religião
que constitui parte da identidade romana que chamamos de religião pública
estava intrinsecamente relacionada às estruturas do Estado.

Os cultos orientais em Roma

A ideia de sincretismo aberto, proposta por Chevitarese e Cornelli para


tratar as interações culturais ocorridas no mediterrâneo Antigo, se mostra
válida e atual também no estudo que aqui se apresenta. Isso ocorre porque, no
período tratado, Roma se apresentava como uma cidade bastante heterogênea.
Como afirma Guarinello,

[...] o Império foi resultado de um lento processo de conquista


militar e centralização política, primeiro da cidade de Roma sobre a
Itália, depois da própria península sobre as demais regiões que
margeiam o Mediterrâneo. [...] Visto em seus próprios termos, o
Império Romano não circunscrevia uma organização social
homogênea e singular, mas agrupava ‘sociedades’ completamente
distintas. (GUARINELLO, 2006, p.14).

Estas várias ‘sociedades’ se refletiam, sobretudo, na metrópole Roma.


Sabe-se, portanto, que a cidade de Roma sofreu influências de muitas culturas,
absorveu e modificou, segundo os seus parâmetros, diversos cultos, entre eles
os cultos que compõem o objeto desse estudo.
Já no fim do século III a.C., quando a civilização romana entrou em
contato com diversas culturas, tanto a cultura grega quanto as orientais, foi o
momento no qual os romanos adotaram e, aos poucos, modificaram várias
experiências religiosas.
Os cultos elencados para o estudo nesta pesquisa são, justamente, os
cultos advindos de outras localidades, ou seja, que não se constituíram, mas
foram reinventados, na cidade de Roma. O culto de Priapo e do casal Cibele e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 25

Átis fazem parte de um fenômeno ocorrido no mundo helenístico-romano,


trata-se da entrada dos “cultos orientais”.
A definição dada por Sanzi, de tal fenômeno, é a seguinte:

[...] refere-se a algumas manifestações religiosas voltadas para


divindades específicas originárias do Egito e do Oriente Próximo
Antigo disseminadas em momentos diversos e com êxito desigual
nas diversas regiões do Império de Roma, de modo especial
durante o segundo helenismo; em seu conjunto estas constituem
um fenômeno específico (SANZI, 2006, p.37).

Algumas especificidades desses cultos, segundo Sanzi, podem ser


destacadas. Em primeiro lugar, esses cultos não requeriam uma adesão
exclusiva da parte dos fiéis (BIANCHI apud SANZI, 2006, p.37), além disso,
em contato com a cultura greco-romana adquiriram uma evolução de seu
complexo mitológico e ritual, tornando-se cultos de mistérios (SANZI, 2006,
p.38).
Priapo veio da Ásia Menor, mais exatamente da cidade de Lâmpsaco,
seu culto surgiu por volta do século IV a.C. O deus chegou a ser representado
em inúmeros espaços diferentes: portos, encostas, praias, espaço rural, jardins
e atuava também no poder procriador da Natureza (OLIVA NETO, 2006,
p.18-19).
Era representado normalmente sob a forma de um membro viril. Às
vezes, é encontrado na iconografia como um homem com um grande falo ou
ainda como um hermafrodita.
Como afirma Funari, o membro masculino em ereção era, na
Antiguidade Clássica, associado à vida, à fecundidade, à sorte e afastava
malefícios, tinha poder de amuleto (FUNARI, 2003, p. 319) e já era cultuado
em Roma muito antes da chegada de Priapo. Pois, na Antiguidade, as esferas
religiosa e sexual estavam interligadas, não se pode, portanto, pensá-las
separadamente (FUNARI, 2004, p.319).
26 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Oliva Neto aponta que Priapo tornou-se popular em Roma. O autor


relata:

O culto sacro e profano de que Priapo foi objeto em Roma


abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente
privado. Entretanto, divindade humilde que era, foi religiosamente
muito cultuado entre as ordens sociais mais baixas (pequenos
agricultores e comerciantes) como patrono da fecundidade de
hortas, pomares e, no âmbito da casa, patrono até do matrimônio
[...]. Nos estratos elevados, Priapo, relacionado que era ao poder
catártico e regenerador do riso, foi apropriado como personagem
ridículo da poesia [...]. Mas não se exclui a possibilidade de ter
recebido culto religioso ou ter feito parte dele entre as ordens
menos baixas ou mesmo elevadas [...] (OLIVA NETO, 2006, p. 24-
25).

No outro caso, tem-se um casal de deuses oriundos da Frígia, cultuados


em Roma no período aqui tratado: Cibele e Átis. Os cultos em honra a esse
casal chegaram a Roma em 204 a.C. Inicialmente, Cibele não teve um templo
próprio, ficou hospedada no templo de Vitória. Só terá seu próprio templo em
191 a.C. no Palatino.
A chegada da deusa em Roma foi contada por alguns autores latinos,
tais como Tito Lívio e Ovídio. Na consulta aos livros sibilinos, em 204 a.C.,
durante as Guerras Púnicas, indicou-se que seria necessário trazer a deusa
Cibele para Roma, a fim de que Aníbal abandonasse a Itália.
Alvar esclarece que a introdução de Cibele está relacionada à
aristocracia romana (1994, p.161):

Cibele, introduzida por decisão aristocrática, apresenta um perfil


popular que expressa a concordia ordinum, o consenso dos grupos
sociais ante o sacro procedimento para repelir o invasor cartaginês.
A história de Cibele em Roma reproduzirá a tensão do conflito de
classes e a contradição da conduta do grupo dominante entre a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 27

marginalidade e a integração do culto.3 (ALVAR, 1994, p.163,


minha tradução).

Os sacerdotes do culto de Cibele eram chamados galli e o sumo


sacerdote era o archigallus. Todos esses sacerdotes deveriam ser eunucos,
castravam-se nos rituais.
Sanzi (2006, p.43-44) explica a festa em honra ao casal. De 15 a 27 de
março havia as festividades em honra à deusa Cibele. No dia 15 havia a
procissão das canéforas. Do dia 16 ao 22 fazia-se abstinência; o chamado
castus matris deus, requeria restrições alimentares e de práticas sexuais; enfim,
ritualmente, todos estavam participando da dor de Cibele pelo fato de ter
perdido seu parceiro Átis. No dia 22 era realizada a cerimônia do arbor intrat,
na qual os participantes portavam ao santuário uma árvore e os instrumentos
rituais (siringe, verga, címbalos, os tímpanos e flauta dupla presa com ramos);
dia 24, o dies sanguinis era o dia em que se emasculavam os galli e em que,
seguindo o exemplo de Átis, os fiéis se flagelavam ao som dos instrumentos
rituais. A alegria voltava a reinar nas festividades somente no dia 25, quando
Átis, ritualmente, voltava a viver. O dia 26 era um dia de repouso chamado
requietio. E dia 27 acontecia a cerimônia da lavatio.
O culto de Cibele foi incluído no calendário oficial das festividades
romanas a partir da criação do templo em honra à deusa. A esse respeito Alvar
assevera: “Cibele triunfou em Roma. Seu culto acabou integrado ao calendário
oficial e, sem dúvida, as características de seus ritos impediram,

3
“Cibeles, introducida por decisión aristocrática, presenta así un perfil popular que expresa la concordia
ordinum, el consenso de los grupos sociales ante el sacro procedimiento para repeler al invasor cartaginés.
La historia de Cibeles en Roma reproducirá la tensión del conflicto de clases y la contradicción conductual
del grupo dominante entre la marginalidad e integración del culto”.
28 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

aparentemente, sua plena incorporação na vida cívica” (1994, p.169, minha


tradução)4.
Scheid acrescenta algumas explicações para a incorporação dessa deusa
no calendário romano. Sobre a entrada da deusa no calendário afirma que o
culto foi introduzido:

[...] sem que [...] fossem moralizados por tantos elementos


chocantes para a sensibilidade romana, tais como a autocastração
dos galos de Cibele. Eles foram simplesmente enquadrados pelas
práticas, tornados tradicionais, como se as autoridades estivessem
precisamente buscado um efeito escandaloso, a fim de que, em
certos dias do ano, a exibição das condutas contrárias à norma
permitissem aos romanos refletir sobre a complexidade de suas
relações com os deuses, com seus deuses, porque Cibele era, de
fato, aos olhos romanos, um parente distante5 (SCHEID, 1993,
p.56, minha tradução).

O Satyricon de Petrônio e os rituais priápicos

As discussões a respeito da datação, autoria e gênero – como em várias


fontes da Antiguidade – se apresentam, também, no Satyricon. A datação foi
discutida principalmente no século XVII (GONÇALVES, 1997, p.50).
Levando-se em conta várias referências encontradas no romance, de
maneira geral, constatou-se que haveria um intervalo de três séculos nos quais
a obra poderia ser inserida, a partir dos mais diversos argumentos. No
entanto, hoje, a maioria dos estudiosos concorda que a obra foi escrita no
século I, mais precisamente sob o governo de Nero.

4
“Cibeles había triunfado en Roma. Su culto había quedado integrado en el calendario oficial y, sin
embargo, las características de sus ritos impidieron, aparentemente, su plena incorporación en la vida
cívica.”
5
“[...] sans que leurs cultes fussent épures pous autant des éléments choquants pour la sensibilité romaine,
telle l´autocastration des Galles de Cybèle. Il furent simplement encadrés par des pratiques tout à fait
traditionnelles, comme si les autorités avaient précisement cherché l’effet scandaleux, afin que, certains jours
del’année, léxhibition de ces conduites contraires aux normes permette aux Romains de réfléchir sur la
complexité de leurs rapports avec les dieux, avec leurs dieux puisque Cybèle était, en fait, à leurs yeux une
lointaine parente des Romains.”
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 29

Sobre o autor, a polêmica foi também muito grande. No entanto, é


praticamente consenso que seja Petrônio, Arbiter Elegantiae, o mesmo citado
por Tácito, que fez parte do círculo de Nero.
A esse respeito Ernout (1950, p.VII), um dos maiores estudiosos do
romance, afirma o seguinte: “A hipótese mais verossímil e frequentemente
adotada é aquela que o assimila ao personagem cônsul, contemporâneo e
familiar de Nero” (minha tradução) 6.
Um dos pontos que se deve destacar a respeito desse livro é o fato de
que, como relata Ernout, “[...] nós estamos longe de possuir a obra inteira de
Petrônio” (1950, p.XIII). A que se teve acesso foi apenas uma pequena parte
de um livro que, provavelmente, deve ter sido bem maior.
O romance traz como personagens principais três jovens: Encolpio, o
narrador; Ascilto e Gitão. Os três aparecem em cenas em variados lugares:
albergue, pórtico, em um banquete, entre outros.
No romance de Petrônio, há dois episódios nos quais aparecem rituais
e honras ao deus Priapo. No entanto, não é apenas uma citação isolada a esse
deus, sabe-se que o deus fálico, advindo de Lâmpsaco, na Ásia Menor, foi
descrito em várias outras fontes e que há inclusive coleções de poemas
chamados Priapéia – Grega e Latina – que trazem como assunto central o
deus.
Priapo foi descrito não apenas na literatura, muitas imagens do deus
foram produzidas no Império Romano, derivadas não apenas na crença do
deus do Helesponto, mas também, de todas aquelas divindades antigas de
Roma (Tutunus Mutunus, fascinus, etc).
O deus não fazia parte, porém, das divindades mais tradicionais de
Roma, não estava incluído no calendário proposto pelos dirigentes da religião
e política da cidade. O deus, antes de chegar a Roma, foi incorporado em
6
“L'hypothèse la plus vraisemblable et la plus généralement adoptée est celle qui l'assimile au personnage
consulaire, contemporain et familier de Néron [...]”.
30 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

outras localidades, passando inclusive pela Grécia, onde seu culto pode ter
adquirido características mistéricas.
Petrônio, por sua vez, descreve em duas cenas do romance os rituais ao
deus Priapo. Neste momento, trata-se mais especificamente do episódio de
Quartila. Seguindo a divisão de capítulos da tradução de Ernout (1950), no
capítulo XVI, iniciam-se as aventuras do trio com a sacerdotisa do culto
priápico, chamada Quartila.
O episódio conta com vários personagens além da sacerdotisa e dos
garotos. Quartila afirma que os jovens cometeram um crime terrível, por
terem possivelmente violado um ritual que estava sendo feito em honra a
Priapo. Por isso, teriam que participar de um tipo de iniciação na qual foram
torturados e sofreram vários tipos de violência.
Ao contrário das práticas mais tradicionais da religião romana, no
capítulo XX parece iniciar-se um diferente “ritual”. A escrava Psique e uma
moça começaram a excitar os jovens. Havia uma espécie de “poção” –
medicamentum (doses de “segurelha” ou “satírio”) que foi dada a Encolpio.
Participam da cena também várias “bichas” que molestam os personagens.
Alguns atletas entraram e massagearam os jovens com um óleo. Depois
os protagonistas foram conduzidos a um quarto próximo, onde havia camas e
foram servidos com vários pratos e beberam muito vinho, numa espécie de
banquete. Em seguida, todos dormiram, mas foram interrompidos por
Quartila a qual advertiu que o culto em honra a Priapo deveria ser feito.
No fim do episódio, Quartila resolve que aquela era uma bela ocasião
para Paniques, uma menina de sete anos, perder sua virgindade, numa espécie
de casamento. Encólpio fica assustado em razão da idade da menina. Quartila
discorda e o leito nupcial é preparado. A menina vai o para o quarto com
Gitão. Quartila beija Encólpio e eles passam juntos o restante da noite.
O outro episódio traz a sacerdotisa priápica chamada Enotéia. Um
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 31

pouco antes do início desse episódio, o narrador tem um longo diálogo com o
seu membro, pois sua virilidade o tinha abandonado quando ele pretendia
relacionar-se com Circe.
No momento em que Encólpio suplica ao deus Priapo, a velha
Proselenos chega e conduz o rapaz ao encontro de outra sacerdotisa de Priapo
chamada Enotéia.
Os capítulos a seguir se desenrolam num ambiente – o templo da
sacerdotisa – descrito por Encólpio como sujo, nojento e velho. Nesse lugar, a
sacerdotisa utiliza muitos produtos para a prometida cura de Encólpio que ela
iria efetuar. Depois de beijar Encólpio, Enotéia parece começar uma espécie
de “ritual”.
Enotéia inicia um sacrifício que é interrompido e a velha sacerdotisa sai
em busca de fogo pela vizinhança. Enquanto a sacerdotisa procura o fogo,
Encólpio comete um “crime terrível”: mata um ganso que estava na porta
desse templo. Ao descobrir tal ato, a sacerdotisa fica furiosa com Encólpio,
pois aqueles, segundo ela, eram gansos de Priapo.
Mas, uma das partes mais surpreendentes do episódio é quando
Encólpio oferece moedas de ouro pela perda dos gansos e a velha mostra-se
bastante satisfeita.
A seguir, tem-se um poema no qual há a ideia de que o dinheiro pode
inúmeras coisas ou quase tudo. E o ritual continua: a sacerdotisa faz uma
previsão do futuro de Encólpio. Enotéia e Proselenos bebem muito vinho
puro e as torturas sexuais são iniciadas.
A interpretação dos rituais do romance de Petrônio é bastante
complexa, o distanciamento temporal e de costumes cria, a princípio, a
sensação de incapacidade de conhecimento. Como pondera Burkert:

O fosso entre a pura observação e a experiência dos envolvidos


nos trabalhos efetivos permanece intransponível. Quem poderá
32 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dizer em que consiste essa experiência, sem ter passado por dias e
dias de jejuns, purificações, esgotamento, apreensão, e agitação?
(BURKERT, 1991, p. 100).

Os pesquisadores estão como bisbilhoteiros, ou ainda, estranhos no portão


(BURKERT, 1991).
Porém, o que se conclui do estudo das práticas religiosas no romance
de Petrônio e dos conhecimentos que se tem a respeito da religião
tradicionalmente praticada em Roma no período é que os rituais e as
sacerdotisas descritas pelo autor diferem da tradição do mos maiorum.
O culto de Priapo representado por Petrônio é diverso dos outros
cultos do Império e se assemelha a outros cultos mistéricos, também advindos
de outras partes do Império, principalmente do Oriente, tais como Cibele e
Átis e Ísis e Osíris, com suas iniciações e suas formas de “crer” diferentes da
romana tradicional.
A representação exagerada de Petrônio pode ser vista num quadro no
qual a sociedade romana, e sobretudo as altas ordens, viam-se rodeadas de
expressões religiosas diferentes, frutos de diversas culturas trazidas a Roma de
várias partes do império, ou mesmo de fora dele, que se instalavam e se
modificavam na Urbs, naquele momento.

Os Epigramas de Marcial

Os mais de um mil e quinhentos epigramas de Marcial foram


organizados em 15 livros. Os temas são variados e tratam do cotidiano da vida
em Roma. Pouco explorado pela historiografia brasileira, Marcial é uma fonte
que pode ser utilizada em estudos diversos, desde estudos como este, a
respeito da religião, passando pela sociedade e os vários tipos humanos que a
compõem.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 33

Marcial é um “caleidoscópio vivo da Roma de seu tempo”, como


destaca Paratore (1983, p.708). Pela ótica de um cliens da Roma antiga tem-se
uma representação bastante viva e colorida do primeiro século e início do
segundo, em Roma.
Marco Valério Marcial nasceu em 39 ou 40 d.C., na região da Espanha,
em Bilbilis, e chegou em Roma por volta do ano 60, pois nesse período a
cidade atraía muitas pessoas em busca de melhores expectativas de vida.
Marcial escrevia sobre inúmeros temas. Registrava várias categorias,
tipos humanos e seus comportamentos: beberrões, gulosos, avarentos,
hipócritas, homossexuais, delatores, mulheres de todos os tipos, adúlteros,
entre outros. Falava de tudo e de todos (BIAZZOTO, 1993, p. 117).
As citações que o autor faz, por meio das quais pode-se estudar a
religião em Roma, são inúmeras. A seguir, destaca-se a citação de alguns
epigramas, nos quais Marcial cita Priapo ou utiliza-se dos atributos do deus
para atingir o objetivo jocoso de seus epigramas.
O epigrama seguinte pertence ao livro VI, 73:

Não me fez a tosca foice de inculto camponês,


mas é do intendente a obra ilustre que aqui vês.
Do campo de Cere o mais rico agricultor
possui estas colinas, Hílaro, e, alegres, as encostas.
Vê que nem de pau pareço, com o meu rosto bem traçado;
nem é votada ao fogo a arma genital que empunho,
mas de cipreste eterno que morrerás jamais,
tenho um caralho duro, da mão de Fídias digno.
Vizinhos, vos aviso, venerai a São Priapo
e tratai de respeitar as duas vezes sete jeiras.
(MARCIAL, 2000, p.127).

Esse epigrama traz alguns dados importantes. O eu poético é o próprio


deus que fala sobre seu feitio, afirma ter sido produzido não por um inculto
camponês mas por um dispensatoris nobile, ou seja, um superintendente ou
administrador ilustre, esse seria Hílaro, que segundo Oliva Neto, é o
34 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

proprietário cujo nome significa “alegre”, “feliz”. O nome, nesse caso, seria
justificado pela riqueza do personagem (2006, p.308).
Por meio desse epigrama, Marcial mostra, portanto, que o deus estaria
presente nas propriedades de terra dos mais abastados de Roma.
O epigrama que se segue é o 40, do livro VIII:

Priapo, guardião – não de um jardim


nem de videira fecunda, mas de um bosque ralo,
do qual nasceste e podes voltar a nascer –
afasta, eu te aconselho, as mãos rapaces
e a madeira para a lareira do senhor reserva:
se ela faltar... até tu próprio és lenha.
(MARCIAL, 2000, p.74).

Nesse caso, há uma ameaça ao deus para que mantenha as plantações


protegidas. Se isso não ocorresse, o próprio deus serviria de lenha quando esta
faltasse. Segundo Oliva Neto, a fala é provavelmente do capataz que transmite
a ameaça do patrão (2006, p.309).
Sobre as menções que Marcial faz ao deus Priapo, não apenas nos
epigramas transcritos acima, mas levando-se em consideração os vários
epigramas ao longo da obra, pode-se destacar alguns pontos. Um dos
significados da citação do deus está relacionado com a proteção dada por
Priapo aos jardins e plantações, à ameaça que o deus representa nesses
espaços.
A representação do deus nos espaços como jardins e plantações parece
ser bastante comum, tanto nas grandes e ricas propriedades como nas
pequenas.
Quando seu culto à dimensão mistérica do deus aparece no epigrama,
logo surge a figura feminina, a mulher como aquela que venera o deus.
Pode-se afirmar, também, que Marcial utiliza o sentido mais corrente
do deus na poesia: o caráter “ridículo” está presente nos epigramas, o deus e
sua deformidade são vistos como “ridículos”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 35

Há epigramas, ainda, que podem esclarecer o estatuto da crença na


deusa Cibele e seu parceiro Átis, em Roma, no período tratado.
O epigrama 81, do livro III, trata dos celebrantes dos rituais à deusa.
Marcial zomba dos possíveis participantes desse culto, homens eunucos.

Que tens que ver, ó galo Bético, com sorveidoiros de mulher?


Esta língua deve lamber, a meio, os homens.
Por que razão te foi cortado, como um caco de Samos, o membro,
Se tão agradável te era, Bético, a rata?
O que se te deve castrar é a cabeça: embora, pelo membro, sejas
galo,
frustras, no entanto, os ritos de Cíbele: és homem pela boca.
(MARCIAL, 2000, p. 159).

Cita-se, ainda, o epigrama 2, do livro IX:

Pobre embora para os amigos, Lupo, não o és para a amante,


e só o teu vergalho de ti se não queixa.
Engorda essa pega com pães pachachóides,
negra farinha come o teu convidado;
para a dama se filtram sécias de inflamar a neve,
bebemos nós turvos copos de corso veneno;
compraste uma noite, e não toda, com a fazenda paterna,
um camarada desvalido ara um campo que não é seu;
refulge a rameira, reluzentes de eritreias gemas,
é preso por dívidas, enquanto fodes, um cliente;
uma liteira, levada por oito sírios, à cachopa é dada,
um amigo numa padiola será um peso nu.
Anda agora, Cíbele, e mutila os maricas desgraçados,
este sim, este vergalho é que merecia as tuas facas7
(MARCIAL, 2001, p.100-101).

Nesse epigrama, o epigramatista reclama da porção de terra dada por


Lupo a ele. Marcial coloca Lupo na seguinte situação: um desregrado nos

7
“Pauper amicitiae cum sis, Lupe, non es amicae / et querittur de te mentula sola nihil. / Illa siligineis
pinguescit adultera cunnis, / couuiuam pascit nigra farina tuum; / incensura niues dominae Setina
liquantur, / nos bibimus Corsi pulla uenena cadi; / empta tibi nox est fundis non tota paternis, / non sua
desertus rura sodalis arat; / splendet Erythraeis perlucida moecha lapillis, / ducitur addictus, te futuente,
cliens; / octo Syris suffulta datur lectica puellae, / nudum sandapilae pondus amicus erit. / I nunc et
miseros, Cybele, praecide cinaedos: / haec erat, haec cultris mentula digna tuis” (MARCIAL, 1973, p.
35).
36 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

assuntos referentes ao amor, ou seja, para sua amante, Lupo proporcionava


uma vida muito abastada. No entanto, no que se refere às suas obrigações na
vida pública, Lupo teria deixado a desejar em vários aspectos: nas comidas e
bebidas que servia a seus convidados e nas suas obrigações em relação aos
seus cliens.
Marcial deseja, no fim do epigrama, que Cibele castrasse em seus ritos
esse homem. Seria viável, por exemplo, imaginar então que Marcial define aí
os emasculados dos ritos de Cibele como pessoas que não tivessem tanto
prestígio na vida pública, pessoas desregradas, que não soubessem cumprir
suas obrigações no âmbito público e agissem com muitos sentimentos em
relação ao amor.
A deusa estaria condenada por Marcial, então, a atender pessoas que
não se encaixassem nos parâmetros da sociedade romana.
O livro escrito durante as Saturnais (XIV) traz o epigrama 204:

Címbalos
“Estes bronzes que choram o jovem de Celenas amado da Grande
Mãe,
Muitas vezes costuma vendê-los o Galo esfomeado” (MARCIAL,
2004, p.208).

No epigrama acima descrito, mais uma vez Marcial desmerece os


sacerdotes do culto de Cibele, lembrando novamente que aqui ele chama Átis
de ‘jovem de Celenas’, retomando sua origem frigia, oriental.
O poeta acusa os sacerdotes do culto de vender os instrumentos
musicais, os címbalos, do culto. Atribui aos galli, algo como um ‘falta de
caráter’.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 37

Algumas considerações

As fontes escolhidas, pensadas em conjunto, trarão aos estudos um


panorama que se inicia em meados do primeiro século, mais especificamente
sob o governo de Nero, época em que Petrônio provavelmente escreveu. Em
seguida, Marcial e seus epigramas oferecem uma visão da cidade nas décadas
posteriores, pois, morando desde a década de 60 na cidade de Roma, o poeta
começa a escrever na década de 80 e termina sua produção nos primeiros anos
do segundo século.
Diante disso, o estudo aqui proposto concluirá qual o estatuto desses
cultos orientais da metade do primeiro século até início do segundo, a partir
das fontes escolhidas. Em seguida, a proposta é trazer à tona quais grupos
sociais estavam envolvidos com essas novas formas de religiosidade presentes
em Roma.
As duas fontes utilizadas permitem imaginar como os cultos orientais
estavam sendo relidos pelos romanos ao longo do primeiro século. Petrônio
em meados do primeiro século cria a imagem de um culto priápico com
dimensões mistéricas, cheio de exageros.
Entende-se, a partir da fonte, que esse foi um período no qual a
sociedade romana estava deixando de lado, de forma mais sistemática, a ideia
surgida no I século a.C., ou pelo menos que foi difundida pelos escritores do
período, de conservar a ‘antiga religião romana’.
Durante o período em que Petrônio escreve, governo de Nero, a
sociedade romana já conhecia o culto priápico, mas pode ser que pelo menos
a classe de Petrônio não havia aceito o deus em sua dimensão mistérica.
A popularidade do deus aumenta em grande medida ao longo do século
e seus atributos, também, na cidade de Roma. Nas décadas em que Marcial
escreve, o deus já se mostra mais popular, estava arraigado em toda a cidade.
38 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Além dos atributos mistéricos que o deus trouxe, como resultado das
suas passagens inclusive pela Grécia, ao longo do primeiro século, ficou
conhecido na Urbs também como amuleto, representado em inúmeros
espaços, principalmente em jardins e plantações.
Mesmo que não participante oficial daquela religião pública relacionada
ao Estado, Priapo se apresenta como um deus bastante conhecido em seus
atributos e, provavelmente, objeto de culto na cidade da metade do primeiro
século em diante. Nas décadas de 80, 90 e início do segundo século, a
utilização do deus, por parte de Marcial para criar jocosidade em seus poemas,
atesta a popularidade de Priapo.
Acredita-se, dessa forma, que a religião romana no período tratado
corresponde a várias outras expressões religiosas e não apenas à religião
pública oficial, como alguns historiadores costumam associar, ao culto ao
imperador e às festas oficiais.
No caso do casal frígio, Cibele e Átis, entende-se que a representação
de Marcial a respeito mostra que os ritos de Cibele ocorriam com frequência
na Urbs, mas mesmo incorporada ao calendário oficial do Império, a deusa
tinha ritos que chocavam alguns grupos sociais romanos. Mesmo assim, os
atributos dela foram incorporados, tendo em vista as diversas citações dos
celebrantes do culto por Marcial. O culto de Cibele é entendido, aqui, também
como parte da religião romana no período tratado.
A partir das fontes apresentadas, a religião romana de meados do
primeiro século ao início do segundo mostra-se bastante híbrida. Não há
como afirmar, diante da popularidade de cultos como esses aqui estudados,
que a religião romana é o mesmo que a religião oficial e o culto ao imperador,
ela engloba os vários cultos, advindos de outras partes, mas que depois de
adaptados são aceitos, em maior ou menor grau, e vividos pela população.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 39

Em relação aos grupos sociais que participavam desses cultos, a


princípio orientais, pouco se pode especificar. Entendida essa hibridização
citada acima, não se pode concluir que apenas um ou outro grupo estava para
este ou aquele culto, pois as próprias fontes trazem várias ordens diferentes
relacionadas aos deuses Priapo, e Cibele, desde escravos, como se viu em
Petrônio, até pessoas abastadas como relaciona Marcial: vários grupos estão
ligados a essas novas formas de religiosidade, ou seja, elas já eram romanas
por excelência.
É possível, portanto, entender os cultos aqui estudados como
populares, não no sentido elite versus popular, mas de conhecidos e
vivenciados por muitos durante o primeiro século. Não constituíam mais um
bloco diferente, mas apenas uma opção religiosa, já que não eram
exclusivistas, e traziam aos fiéis outras perspectivas religiosas e outras formas
rituais.

Referências

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O III Concílio de Toledo (589) e a conversão da
Hispânia visigoda

Pâmela Torres MICHELETTE*

O
s visigodos, como a maioria dos reinos germânicos, tiveram sua
história política vinculada à sua história religiosa bem como às
suas relações com o Império Romano. Visto que, uma vez
estabelecidos no interior das fronteiras romanas, conseguiram manter certa
independência política e social, muito em virtude de terem se convertido ao
arianismo (AGUILERA, 1992, p.15). Este fato possibilitou-lhes a manutenção
de certa autonomia, subtraindo mais facilmente a ação unificadora e
centralizadora dos imperadores romanos e da Igreja oficial1. Neste sentido,
dialogamos com o medievalista E. A. Thompson, que expressa a opinião de
que:

Los arrianos españoles hablaban normalmente del catolicismo


como “la religión romana”, mientras que el arrianismo era
considerado como “la fe católica”. Convertirse a la fe de Nicea
significaba, por así decirlo, convertirse en romano, dejar de ser
godo. Pero no es posible que considerasen en serio el arrianismo
como “católico”: ello hubiera estado en contradicción con el uso
del godo como lengua litúrgica y con la existencia de un nuevo
bautismo para los católicos convertidos. Resulta difícil imaginar el

* Mestranda em História/UNESP/Assis/Bolsista: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Ruy de


Oliveira Andrade Filho.
1
Desta forma, para J. Orlandis, fica claro, inicialmente, que os visigodos não fomentaram a
conversão ao arianismo da população hispano-romana, com algumas exceções, mais em:
ORLANDIS, J. Historia del Reino Visigodo Español. Madrid: Rialp, S. A., 1988. p. 297-299.
44 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que algún rey godo considerase al arrianismo como fé realmente


católica, una posible religión nacional en la que algún día pudieran
unirse todos pueblos de España. Se trataba de la religión de los
godos y solo de los godos, y eso es lo que pretendía ser
(THOMPSON, 1971, p.53-54).

Embora o presente trabalho faça referência direta ao III Concílio de


Toledo, é necessário fazermos menção ao rei visigodo Leovigildo (568-586),
pai de Recaredo e último monarca visigodo ariano. Leovigildo empreendeu no
reino uma política centralizadora, tanto na questão da unificação territorial
como religiosa; indo na contramão de seus antecessores, que priorizaram a
separação da religião como norma de governo. Entretanto, sua política de
conversão de todo o reino ao arianismo não foi bem sucedida em sua gestão.
Outro fator determinante do reinado de Leovigildo consiste nas
características imperiais que ele deu ao trono visigodo, empreendendo uma
política de imitação de Bizâncio (KING, 1981, p.31). Assim, foi o primeiro rei
visigodo a aparecer ao público em um trono, usando roupas de tradição
imperial, fundando cidades, convocando concílios e cunhando moedas com
sua imagem.
Estes elementos do reinado deste monarca demonstram, não apenas o
lado anedótico, mas também parte de um processo histórico, no caso, o de
incorporação de características do Império, que produziram uma
transformação no conceito de realeza visigoda. Assim, a renovação formal da
Monarquia, que se deu no reinado de Leovigildo, se tornou uma consequência
direta da forte transformação sofrida pelo trono visigodo em contato
permanente com a ideologia e as práticas de governo imperiais precedentes, as
quais, segundo Valverde Castro, foram:

La evolución política que se operó en el período tolosano y que,


sintetizando, podemos decir que supuso, por un lado, la ruptura
definitiva de los lazos de dependencia que ligaban a los reyes
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 45

visigodos con el Império Romano y, por outro, la progresiva


acaparación por parte de esos mismos reyes de las supremas
responsabilidades de gobierno, possibilitaron que, tras su
asentamiento definitivo en la Península Ibérica, los reyes visigodos
pudieran hacer surgir en los nuevos territorios una entidad de
poder absolutamente independiente y soberana. Puede afirmarse
que toda la obra de Leovigildo se encaminó precisamente a
consolidar esa estructura de poder autónoma que a monarquía
visigoda ya rige y representa. (VALVERDE CASTRO, 2000,
p.195).

Entre 579 e 584, Hermenegildo, o primogênito de Leovigildo, rebela-se


contra o pai, sua revolta foi legitimada pela conversão de Hermenegildo ao
catolicismo niceísta. Este processo recebeu o apoio de bispos católicos, como
foi o caso de Leandro de Sevilha2. Entretanto, essa ajuda não tornou sua
sublevação vitoriosa, nem os francos e nem o Império bizantino enviaram
guarnições suficientes, conforme o previsto. Desta maneira, Leovigildo
conseguiu suplantar a rebelião de seu filho, que foi preso e morto um ano
depois de sua prisão.
Muito em decorrência do episódio de rebelião de Hermenegildo, o rei
visigodo Leovigildo convocou, em 580, um sínodo ariano (JUAN DE
BICLARO, 1960, p.89), cujo principal propósito era estimular os católicos a
abandonarem suas crenças e se converterem ao arianismo. Alguns
historiadores acreditam que esta foi uma medida de aproximação entre os
grupos populacionais do reino, como também o fato de ter extinguido a lei de
proibição de casamentos entre visigodos e romanos. Porém, E. A. Thompson
defende a posição de que Leovigildo nunca colocou em prática uma política

2
Pertenceu a uma família católica de origem bizantina ou hispano-romana. Como bispo de
Sevilha, Leandro foi o instrumento decisivo para conseguir a renúncia oficial ao arianismo
dentro do reino visigodo, proclamada no III Concílio de Toledo. Leandro foi sucedido por
seu irmão Isidoro por volta de 600 e, durante o seu bispado e de seu irmão Isidoro, Sevilha
desfrutou de preeminência como centro intelectual do reino visigodo. LOYN, H. R.
Dicionário da Idade Média.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 212-213.
46 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de acercamento entre os distintos grupos existentes no território peninsular


(THOMPSON, 1971, p.75).
Já a imagem de Leovigildo como perseguidor de católicos deve-se,
fundamentalmente, aos bispos Gregório de Tours e Isidoro de Sevilha.
Ambos tinham motivos para degradar a imagem deste rei. O primeiro deles,
em sua História dos Francos, cuja estrutura mostrava uma clara contraposição
entre reis “bons” e “maus” em função dos interesses que o próprio autor
queria destacar. Já Isidoro destacou o arianismo militante de Leovigildo, pois
o mencionou como contraponto a política de conversão ao catolicismo,
realizada por seu filho Recaredo. O bispo sevilhano se utilizou de certos fatos
que caracterizassem a ideia de perseguição para rebaixar a imagem do rei,
como foi o caso do exílio do Masona ou do sofrido por João de Bíclaro, em
Barcelona, que em sua crônica não fez referência.
Para Díaz y Díaz, a política de unificação do território empreendida
pelo rei, tinha em seu interior um foco de dificuldades que foram as tensões
contínuas entre visigodos e hispano-romanos, reforçadas pelas tensões
religiosas entre arianos e católicos. Desta maneira, para o autor:

Justo es decir que, durante mucho tiempo, los monarcas visigodos,


salvo pequeñas acciones intrascendentes, en parte reflejos
condicionados por situaciones exteriores, como la conversión de
los suevos, se habían mostrado indulgentes con los católicos e
indiferentes al problema religioso. Los grupos católicos se sentían
vejados, en razón de su poder económico y social, y por constituir
mayoría; sin embargo, durante un tiempo, toleraron de mejor o
peor grado la dominación visigoda arriana (DÍAZ Y DÍAZ, 1982,
p.14).

Com a morte de Leovigildo, em 586, seu filho Recaredo, no mesmo


ano, subiu ao trono e exerceu uma política de negociações com alguns de seus
inimigos, em vez de dar continuidade aos enfrentamentos abertos, desde que
se iniciou a guerra civil. A unidade confessional almejada pelo rei Leovigildo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 47

realizou-se em torno do catolicismo pelo seu sucessor Recaredo. Este último


desejava os mesmos objetivos do fortalecimento do poder régio de seu pai e
preferiu, ao contrário de Leovigildo, o caminho do acordo com boa parte da
aristocracia eclesiástica e o apoio legitimador do episcopado (GARCIA
MORENO, 1989, p.111).
Cabe ressaltar que, para analisarmos algumas das perspectivas que
abrangeram o III Concílio de Toledo (589) e a participação e consagração do
rei Recaredo, utilizaremos três fontes: as Atas do III Concílio de Toledo
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.107-
145), a Chronicon (JUAN DE BICLARO, 1960, p.94-100) do bispo João de
Bíclaro e a Historia Gothorum (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.261-267) do
bispo Isidoro de Sevilha.
Após dez meses de regência, já em 587, Recaredo anunciou sua
conversão pessoal ao catolicismo (JUAN DE BICLARO, 1960, p.95). Esta
mudança iria acabar com a divisão religiosa existente dentro do reino
(COLLINS, 2005, p.64). Inicialmente, foi uma decisão individual, contudo
ficaram evidentes com a convocação de um concílio, apenas para bispos
arianos, no mesmo ano, que suas intenções abrangeram todo o reino
toledano. Esta conversão da realeza afetou os setores mais próximos do
arianismo, seu clero e bispos, e o controle sobre o patrimônio das igrejas.
Essa mudança de religião implicava um risco político: a nobreza
visigoda apoiava a hierarquia ariana e, em questões numéricas, o número de
católicos era maior em comparação com o de arianos e, por fim, tanto os
bispos arianos quanto os católicos procediam de famílias importantes e
dispunham de uma rede de relações sociais e políticas, e tinham seus receios
de perder influência e prestígio local, principalmente os arianos que
acreditavam ocorrer a transferência desse poder para os católicos.
48 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O informe da conversão do monarca, em 587, deu início a um período


de negociações e mudanças políticas, para S. Castellanos foi provável que
Recaredo estava consciente das reações contrárias que sua decisão poderia
acarretar e, mesmo assim, mostrou-se disposto a enfrentar os custos desse
posicionamento (CASTELLANOS, 2007, p.151). O rei empreendeu uma
política de pactos, contudo, os resultados não foram totalmente bem
sucedidos. Estes fatores, entre outros, geraram certas oposições e apreensões
a uma conversão. Foi neste momento que a política de pactos de Recaredo
atingiu o auge, como foi o caso de sua colaboração com relação ao bispo
Masona, relatado nas Vidas dos Santos Padres Emeritenses (1956, p.231).
As conjurações contra Recaredo ocorreram entre os anos de 587 a 590,
precisamente entre o anúncio de sua conversão pessoal e a proclamação do
catolicismo como religião oficial do reino3. Houve reações contrárias, com o
intuito de recuperar a perda iminente de posição e poder.
A celebração de um concílio com os bispos arianos deixou claras as
futuras intenções do monarca visigodo, pois, segundo João de Bíclaro, o
resultado desta assembleia foi que “[...] habiéndose dirigido a los sacerdotes de
la secta en una sabia conversación, más por la razón que por la fuerza, hace
que se conviertan a la fé católica [...]” (JUAN DE BÍCLARO, 1960, p.95).
Apesar da colocação do biclarense, esta conversão não foi tão unânime, como
já mencionamos anteriormente4.
No dia 8 de maio de 589 foi realizado o III Concílio de Toledo. A
iniciativa da celebração desta assembleia e a proposta dos principais temas a
serem debatidos, contidos no tomus regio, foram decisões do monarca
Recaredo. Este sínodo contou com a participação de vários bispos,

3
Sobre o desfecho dessas conjurações e a resposta de Recaredo a elas, veja mais em:
CASTELLANOS, S. Op. cit., 2007, p. 153-165.
4
Mais informações sobre estas revoltas contra a conversão do rei Recaredo, ver em:
CASTELLANOS 2007, p. 153-165.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 49

eclesiásticos de outras categorias inferiores, e diversos magnatas e nobres do


reino.
O concílio foi apresentado como o cenário em que se convertia todo o
reino visigodo, o qual, como foi revelado nos textos conciliares, compreendia
literalmente Spania, Gallaecia (o noroeste, a zona do reino suevo5 conquistado
quatro anos antes) e a Gallia (fazendo referência à província Narbonense).
Desta forma é que foi projetada, pelo poder régio, a conversão de toda a gens
Gothorum (CASTELLANOS, 2007, p.215).
Cabe destacar que, para melhor compreensão das características dos
Concílios toledanos, faremos referência a algumas contribuições do trabalho
de G. Martinez Díez (1971, p.119-138) que traçou algumas das formulações
ideológicas que deram origem aos Concílios de Toledo, para tanto, seu
enfoque voltou-se para as características político-religiosas que infundiram
caráter próprio a essas assembleias.
O primeiro a ser destacado é a natureza convocatória desses concílios,
cuja iniciativa era do rei. É importante evidenciarmos que esse elemento não
foi uma particularidade do reino visigodo, mas uma prática imperial e
perdurou nos recém-formados reinos germânicos. Os concílios bizantinos
também eram convocados pelo imperador, assim como os sínodos de outros
reinos romano-germânicos, como foi o caso dos francos e suevos.
Os concílios toledanos não inovaram em relação aos Concílios
Ecumênicos de Nicéia, Constantinopla e Calcedônia e os imperadores
Constantino, Teodósio e Marciano, respectivamente, realizaram o discurso
inaugural e orientaram em certa medida as deliberações dessas assembleias. A

5
Cabe destacar que não foram apenas os visigodos que no III Concílio de Toledo passaram
a professar o catolicismo, pois o tomus régio também fazia referência à conversão dos
suevos. Mais informações a respeito do reino suevo: SILVA, L. R. Monarquia e Igreja na
Galiza na segunda metade do século VI – O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga
dedicadas ao rei suevo. Niterói/RJ: UFF, 2008.
50 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

conduta de Recaredo perante o III Concílio de Toledo seguiu os precedentes


desses imperadores. Segundo G. Martinez Díez:

los pasos de los emperadores bizantinos que no se limitaban a


convocar los Concilios ecuménicos o no ecuménicos, sino
que les indicaban también el tema o temas en orden a los
cuales tenia lugar la convocatoria (MARTINEZ DÍEZ, 1971,
p.133).

A participação régia nos concílios girava em torno de outros elementos,


como: o discurso inaugural; a participação da Aula Régia nas deliberações; a
determinação do calendário conciliar; e a lei que confirmava os concílios.
Além de convocar os concílios, Martinez Díez chama-nos a atenção para o
aspecto de que os monarcas indicavam o que deveria ser discutido nos
mesmos e em diversas ocasiões propunham resoluções que deveriam ser
tomadas.
Em muitos casos, o rei recorria aos concílios para reforçar algumas de
suas decisões, ou seja, a realeza buscava legitimidade fundamentando-se
nessas reuniões eclesiásticas. Martinez Díez explica que esse comportamento
por parte da Monarquia dependia da fragilidade do governante, isto é, quanto
mais ele buscava recorrer às assembleias religiosas mais refletia sua fraqueza.
O discurso inaugural era entregue ao Concílio pelo rei, o qual continha
uma espécie de “agenda” ou recomendações que o monarca apresentava para
serem acolhidas pelos membros presentes no sínodo. Este escrito, nas fontes,
recebeu o nome de “tomus” (MARTINEZ DÍEZ, 1971, p.128). Este
documento não representava somente a lista de temas a serem abordados pela
convenção, mas também chegava a propor as decisões concretas que
deveriam ser adotadas. A prática do tomus foi inaugurada no III Concílio de
Toledo (589) e continuou até o fim do reino visigodo. Nesse discurso
inaugural, o rei Recaredo limitou-se a assuntos dogmáticos e colocou-se como
o intermediador da vontade divina:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 51

[...] hace muchos años que la amenazadora herejía no permítia


celebrar concilios en la Iglesia católica, Dios, a quien plugo la citada
herejía por nuestro medio, nos amonestó a restaurar las
instituciones eclesiásticas conforme a las antiguas costumbres.
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS...,
1963, p.107).

Este novo contexto católico inaugurado por Recaredo estava


referendado pela Igreja, de maneira que a divindade aparecia como
legitimadora do monarca. O tomus régio, entregado ao III Concílio de Toledo
por Recaredo atestava que “Dios omnipotente nos ha encomendado asumir
los poderes régios para garantizar el beneficio de todos los pueblos del reino”
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108).
Esta postura do rei demonstra, perante a alta aristocracia do reino, que o
concílio tinha sido uma vontade de Deus e que a ele era outorgado o poder
régio. Desta forma, o poder do rei estaria acima de qualquer outro, já que
possuía o respaldo da origem divina. A conversão do reino, também serviu
para criar algumas pontes entre o rei e o papa de Roma6.
Após essa fala inicial da realeza, o rei se retirava da cerimônia7. A única
exceção foi o III Concílio de Toledo, em que a participação de Recaredo foi
constante ao longo da solenidade do evento, esta atitude se justifica pelas
circunstâncias especiais que esta assembleia estava promovendo a abjuração
da heresia ariana.
Terminado o seu discurso, o rei entregou escritos nos quais continham
os problemas trinitários, ao mesmo tempo em que se fazia afirmações
antiarianas, e confirmava que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e

6
Recaredo enviou uma carta para o papa Gregório Magno, para informar a conversão de
seu reino. O conteúdo desta carta foi editado por José Vives em conjunto com as Atas do
III Concílio de Toledo. IDEM, ibidem, p. 144-145.
7
Mais informações sobre o discurso régio nos concílios de Toledo, ver em: MARTINEZ
DIEZ, G. Op. cit., 1971, p. 119-138, p. 128.
52 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que o Pai e o Filho são da mesma substância (CONCILIOS VISIGÓTICOS


E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.109).
Foi agregado nas Atas que os bispos tinham a obrigação de
conservarem unidos os povos dentro da nova fé:

No sólo la conversión de los godos se cuenta entre la serie de


favores que hemos recibido; más aún, la muchedumbre infinita del
pueblo de los suevos, que con la ayuda del cielo hemos sometido a
nuestro reino [...]. (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.110).

A abjuração do arianismo foi sancionada pelos bispos, o restante do


clero e os principais magnatas visigodos, condenando seus dogmas, regras e
ofícios de sua comunhão e de seus livros, sendo pronunciadas 23 anátemas,
contra a heresia do bispo Ario (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.118-120). Na sequência, os visigodos conversos
pronunciaram a fé dos Concílios de Nicéia, de Constantinopla e da Calcedônia
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.121-
122).
O rei dirigiu-se, pela segunda vez, à convenção, propondo introduzir
em todo o reino a prática oriental de rezar coletivamente o credo de
Constantinopla, em voz alta, antes do Pai Nosso, em cada ocasião em que se
celebrasse a comunhão (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.125). Esta segunda parte das Atas conciliares conteve
os 23 cânones disciplinares (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.124-133). Os bispos católicos contribuíram na maior
parte da elaboração da legislação secular, ou seja, regulamentaram sobre
matérias que não eram qualificadas apenas como eclesiásticas. Suas decisões
não tinham, por si mesmas, força de lei, apenas se convertiam em leis quando
o rei sancionava essas resoluções.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 53

Os Concílios toledanos tiveram força de lei em suas decisões que na


maior parte dos casos estavam em comum acordo com a Monarquia e a
Igreja. Recaredo sancionou uma lex in confirmatione concilii, para outorgar força
legal, no âmbito civil, às disposições acordadas:

Determinamos que todas estas constituciones eclesiásticas que


hemos resumido breve y sumariamente, gocen de estabilidad,
conforme a la relación más extensa, contenida en los cânones. Si
algún clérigo o laico no quisiere obedecer estas determinaciones, si
se trata de un obispo, de un presbítero, de un diácono o de un
clérigo, sea excomulgado por todo el concilio. Si se tratare de un
seglar y fuere persona de elevada posición, pierda la mitad de su
fortuna en favor del Fisco. Y si fuera un hombre del publo perderá
sus bienes y será enviado al exílio. Flavio Recaredo, rey, firme en
confirmación estos acuerdos que establecimos, junto con el santo
concilio (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.135-136).

Esta intervenção do poder civil no âmbito religioso, não desvirtuou o


caráter eclesiástico que estes sínodos tiveram, mesmo porque os bispos
também exerceram forte participação nos assuntos seculares. Nos cânones
sancionados, encontramos a participação dos bispos em questões referentes à
administração civil; como exemplo, o cânone XVIII que ordenava que, uma
vez por ano, os Concílios provinciais tinham que reunir-se e que estivessem
presentes neles os juízes e sacerdotes do fisco (CONCILIOS VISIGÓTICOS
E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.131) e o XVII que autorizava os bispos,
em conjunto com os juízes, a investigarem crimes e que sofressem castigos
com severidade (CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS...,
1963, p.130).
O cânone XVIII do concílio teve uma importância significativa,
extraindo uma das primeiras consequências político-administrativas da recém-
conquistada unidade religiosa; regulamentando, em nível, territorial a
colaboração entre a Igreja e o poder civil, por meio de concílios provinciais
54 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que aconteceriam todos os anos. A partir deste momento, eles seriam o órgão
principal dessa ação conjunta.
Cabe ressaltarmos que E. A Thompson apontam que, nos primeiros
anos do reinado de Leovigildo, foram conhecidos apenas dois nomes de
bispos visigodos católicos, o cronista João de Bíclaro e Masona de Mérida.
Entretanto, assinaram nas atas do III Concílio de Toledo alguns bispos
arianos conversos com nomes germânicos, mas boa parte dos bispos
presentes não tinha sido ariana e alguns deles possuíam nomes visigodos8.
O reinado de Recaredo proporcionou para a Igreja não só um período
de consolidação e fortalecimento como organização eclesiástica, mas também
como proprietária de um patrimônio avultante em terras, gado, servos, etc.
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.127).
Entretanto, a incorporação oficial dos prelados à vida pública da Monarquia
visigoda deu-se, de modo definitivo, a partir do IV Concílio de Toledo (633),
visto que o episcopado permaneceu praticamente integrado ao estamento
dirigente do reino. Desta forma, segundo J. Orlandis, este foi o momento em
que o episcopado se germanizou consideravelmente, em decorrência do
crescente número de prelados de nome e geração germânica, muitos de
descendência nobre (ORLANDIS, 1988, p.233).
Recaredo apareceu perante este sínodo como o autor da conversão do
reino e, também, como o monarca católico de todos os seus súditos, defensor
dos interesses da única Igreja do reino:

Aunque el Dios omnipotente nos haya dado el llevar la carga del


reino en favor y provecho de los pueblos, y haya encomendado el
gobierno de no pocas gentes a nuestro regio cuidado, sin embargo
nos acordamos de nuestra condición de mortales y de de que no
poemos merecer de outro modo la felicidad de la futura
bienaventuranza sino dedicándonos al culto de la verdadera fe y
8
Mais informações, ver em: THOMPSON, E. A. Op. cit., 1971, p. 51-53.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 55

agradando a nuestro Criador al menos con la confesion de que es


digno. Por lo cual, cuanto más elevados estamos mediante la gloria
real sobre los súditos, tanto más debemos cuidar de aquellas cosas
que pertenecen al Señor, y aumentar nuestra esperanza, y mirar por
las gentes que el Señor nos ha confiado (CONCILIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108-109).

A presença da nobreza laica nesta convenção, que foi a participação na


Aula Régia, não representou nenhuma questão controversa singular, suas
assinaturas nas atas se restringiram à condenação da heresia ariana. Além desta
atuação, outra função dos leigos dentro destas assembleias era a de
“aprenderem”. Apesar desta assistência secular nas assembleias, os Concílios
toledanos não perderam seu caráter predominantemente religioso e
eclesiástico e os bispos sempre foram o principal elemento dessas
conferências.
Segundo o relato do bispo João de Bíclaro, Recaredo aparece como um
novo Constantino e um novo Marciano, os imperadores que haviam reunido
os concílios ecumênicos de Nicéia e Calcedônia. Características da influência
bizantina, em decorrência de sua estadia nesta região. O cronista visigodo fez
um balanço do ciclo histórico da heresia, que vai se encerrar no III Concílio
de Toledo. Esse ciclo foi aberto com o Concílio de Nicéia, em 3259, no
vigésimo ano de Constantino, e se extinguiu no oitavo ano do imperador
Maurício, que correspondeu ao quarto ano do reinado de Recaredo (JUAN
DE BICLARO, 1960, p.97-99).
O bispo biclarense reforça o paralelismo aplicando a Recaredo o título
de princeps, reservado apenas aos imperadores romanos, e qualificando
christianissimus a Marciano e Recaredo, indicações que assimilam o rei visigodo
aos imperadores, tanto no âmbito político como no religioso (JUAN DE
BICLARO, 1960, p.97-99).
56 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Recaredo, nas atas conciliares, utilizou o nome Flavio, que era


empregado desde o século I por vários imperadores e, em particular, pela casa
de Constantino no século IV. Não foi casualidade, Constantino10 havia sido o
primeiro imperador romano convertido ao cristianismo, e Recaredo era o
primeiro rei visigodo convertido ao catolicismo. A Igreja visualizava o
Recaredo como um novo Constantino.
Em sua condição de imperador, Constantino era o pontifex maximus, que
significava a mais alta instância institucional em assuntos religiosos, um dos
cargos mais antigos do mundo romano, que desde o começo do sistema
imperial assumiam os imperadores, costume que permaneceu até a segunda
metade do século IV (SILVA, 2006, p.241-266).
Constantino converteu-se ao cristianismo, porém não se batizou.
Oficialmente, o Império não era ainda cristão, o que ocorreria mais tarde, mas
é indiscutível que a partir desse imperador, produzindo-se desde então a
conversão do mundo romano, uma transformação ocorreu paulatinamente e
adquiriu força no século IV. Na qualidade de chefe religioso, Constantino
tentou resolver os problemas mediante a convocação de concílios, e essa
prática foi fortemente utilizada por seus sucessores para resolverem os
assuntos político-religiosos (CASTELLANOS, 2007, p.38).
Desta forma, Recaredo comporta-se como um autêntico imperador
romano-cristão. A convocatória do concílio, a entrega do tomus e a lex in
confirmatione concilii foram competências que os imperadores exerceram no
âmbito eclesiástico e foram as mesmas funções desempenhadas pelo monarca
visigodo (VALVERDE CASTRO, 2000, p.199). Outro método por meio do
qual os monarcas visigodos exerceram sua função legislativa consistiu em

9
Mais informações sobre o Concílio de Nicéia (325): CASTELLANOS, S. Op,cit., 2007, p.
38-39.
10
Mais informações sobre a vida do imperador Constantino: PALANQUE, J.-R.
Constantino. Rio de Janeiro: Atlântica, 1945.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 57

converter as decisões conciliares em normas legais aplicáveis em tribunais de


justiça do reino (VALVERDE CASTRO, 2000, p.228).
Ao longo de toda a solenidade do sínodo toledano não foi mencionado
o nome do príncipe rebelde Hermenegildo, não sendo feita nenhuma
referência à sua conversão e nem à sua morte “heróica” pela fé.
O concílio foi encerrado pela Homilia do bispo Leandro de Sevilha que
juntamente com o Eutrópio de Valência foram os principais bispos da
assembleia. O discurso de Leandro tratou de assuntos espirituais, não fazendo
menção ao rei, talvez tenha sido em decorrência de seu direto envolvimento
com relação à conversão e à sublevação de Hermenegildo (CONCILIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p. 139-144.).
Recaredo realizou uma autêntica exibição do poder político que imitava
a tradição imperial, na qual a legislação religiosa e a política eram conceitos
difíceis de discernir, tanto no período do Império pagão como no cristão,
posteriormente. Após o III Concílio de Toledo, Recaredo tornou-se a cabeça
do “novo” reino católico dos visigodos, com carga teórica sagrada, em função
da sanção política divina que foi revestida a autoridade real. A aliança
estabelecida entre a Monarquia e a Igreja proporcionou um amplo elenco de
disposições em torno desta perspectiva central da realeza cristã, embasada na
ratificação de Deus. Este ideário foi atribuído ao rei Recaredo, mas foram seus
sucessores que desenvolveram a fórmula que unia a figura do rei e a
intervenção da Igreja, tendo os concílios e as leis como importante referencial.
A monarquia visigoda transformou-se em católica e a Igreja lhe
proporcionou uma sólida base conceitual em que se fundamentou sua
autoridade. Os prelados foram quem monopolizaram a cultura e elaboraram a
teoria político-religiosa que serviu de base e legitimou a autoridade real,
adquirindo os reis, desta forma, um substrato teocrático e ideológico. A partir
de então, o monarca visigodo que já era responsável pelo poder temporal
58 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

assume o compromisso dos assuntos espirituais, em virtude dele ter como


dever supremo a direção da sociedade cristã.
Desta forma, a figura de Recaredo tornou-se o paradigma do bom
príncipe que serviu de exemplo de conduta para a criação de um modelo ideal
de monarca cristão para a posteridade. Presumia-se, com base no abandono
do arianismo, a formação de uma societas fidelium Christi (KING, 1981), com
Recaredo sendo chamado de sanctissimus (CONCILIOS VISIGÓTICOS E
HISPANO-ROMANOS..., 1963), mencionado como “o seguidor de Cristo
Senhor” (VITAS SANCTORUM PATRUM EMERETENSIUM..., 1956), ou
ainda, como um “novo Constantino” (JUAN DE BICLARO, 1960).
Procurava-se ler a conversão como uma “atitude primordial”, tentando
atribuir-lhe um papel “heróico” (ANDRADE FILHO, 2002).
Na obra História dos Godos (624), Isidoro de Sevilha fez menção à
participação do rei Recaredo no III Concílio de Toledo:

[...] A este concilio asistió el próprio religiosísimo príncipe, y con su


presencia y su suscripción confirmó sus actas. Con todos los suyos
abdico de la perfídia que, hasta entonces, había aprendido el pueblo
de los godos de lãs enseñanzas de Arrio, profesando que en Dios
hay unidad de três personas [...]. (ISIDORO DE SEVILHA, 1975,
p.263).

O bispo sevilhano também fez uma descrição direta das qualidades do


monarca:

[...] Fue apacible, delicado, de notable bondad, y reflejó en su rosto


tanta benevolencia y tuvo en su alma tanta benignidad, que influía
en el espíritu de todos e, incluso, se ganaba el afecto y el cariño de
los malos; [...] restituyó a sus legítimos dueños los bienes de los
particulares y las propiedades de las iglesias, [...]. Fue tan clemente,
que muchas veces exonero al pueblo de los tributos [...]. Enriqueció
a muchos con bienes [...], guardando sus riquezas en los míseros y
sus tesoros en los necesitados, sabedor de que el reino le había sido
encomendado para disfrutar de él con miras a la salvación,
alcanzando con buenos princípios un buen fin; y así, la fe de la
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 59

verdadera gloria, que recibió al principio de su reino, la acrecentó,


hace muy poço tiempo con la profesión pública de
arrependimiento. (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.267).

O precedente de Recaredo tinha valor exemplar, mas a imagem do rei


católico foi se perfilando e enriquecendo ao longo do século VII, por
influência, sobretudo, de Isidoro de Sevilha e dos demais padres da Igreja
isidoriana. Toda uma teoria acerca da realeza e do poder real, com um denso
conteúdo moral, foi elaborando-se no decorrer dos acontecimentos históricos
por obra dos concílios e das doutrinas político-cristãs (ORLANDIS, 1993,
p.57) O preceito do bom monarca e do bom governo encontram-se,
especialmente, nas obras Etimologias (ISIDORO DE SERVILHA, 1982) (612-
625?) e Sentenças (ISIDORO DE SERVILHA, 1971, p.226-227) (633?), do
bispo sevilhano.
Outro ponto importante sobre a realeza visigoda foi o caráter de
elegido de Deus que se atribuiu ao monarca (ORLANDIS, 1993, p.57). Como
ministro de Deus, o rei visigodo tinha uma intervenção primordial nas
questões relacionadas à vida interna da Igreja. No reino visigodo a decisão
sobre a reunião do concílio geral era competência do rei católico, em virtude
de ser a única autoridade que estendia seu poder sobre todas as províncias do
reino (ORLANDIS; LISSON, 1986, p.182-184).
A renúncia do arianismo gerou consequências em todas as ordens. A
unidade religiosa colaborou para a consolidação da unificação política dos
territórios submetidos pela soberania visigoda. O abandono oficial do
arianismo favoreceu a integração populacional das comunidades visigoda e
hispano-romana, como foi no campo militar. Com a categoria geral de súditos,
sancionada no que o III Concílio de Toledo sancionou, os hispano-romanos
puderam, desta forma, fazer parte do exército. Tal fato repercutiu tanto em
benefícios do domínio do território como em aspectos de segurança do reino.
Assim, todos os habitantes submetidos à autoridade do rei visigodo passaram
60 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

a formar parte de uma mesma ordem político-religiosa (VALVERDE


CASTRO, 2000, p.170-171).

Conclusão

No caso do III Concílio de Toledo (589), temos que ter em mente que
foi um acontecimento previsto e programado com a finalidade de anunciar a
conversão dos visigodos ao catolicismo. A noção cristã de realeza no reino
visigodo alcançou sua plena maturidade no século VII, tanto em virtude das
definições da doutrina política isidoriana como da obra legislativa levada a
término pelos grandes concílios gerais de Toledo (CONCILIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963). Como apontamos
anteriormente, todo esse processo se iniciou com o III Concílio de Toledo
(589) – uma iniciativa do rei Recaredo (568-601) e da Igreja –, episódio de
fundamental importância, pois esse sínodo marcou a oficialização do
catolicismo niceísta como religião do reino visigodo. Além disso, percebemos
que essa conversão conferiu um novo caráter à Monarquia, contudo, esta
ainda não alcançou uma consolidação e estabilidade total no reino.
Com a conversão, a monarquia passou a ter forte atuação nos Concílios
gerais toledanos, pois a frequência desses sínodos construiu a imagem do que
fora o catolicismo visigodo na Hispânia: uma prática religiosa fortemente
amparada em uma tradição jurídico-canônica. Realizadas com o objetivo de
discutir questões pertinentes ao âmbito da fé e do político, as atividades
conciliares acabaram apresentando-se como o espaço de produção ideológica
decorrente da interação entre interesses monárquicos e eclesiásticos. Para P.
D. King, a homogeneidade em uma única religião entre visigodos e hispano-
romanos se converteu em uma poderosa força, que atuou em favor da
unidade do direito. O que mais contribuiu para fomentar a ideia de um direito
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 61

territorial teve início com o III de Toledo, em que a Igreja conseguiu sua
expressão institucional (KING, 1981, p.35).

Referências:

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veintiuno de España, 1992.
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de Biclaro: obispo de Gerona, su vida y su obra. Madrid: Consejo superior de
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LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
KING, P. Derecho y sociedad en el reino visigodo. Madrid, Alianza, 1981, p. 31.
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138.
62 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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Medievo – Siglos IV-VIII. III Congreso de Estudios Medievales. sl.: Fundacion
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ORLANDIS, J.; LISSON, D. R. Historia de los Concilios de la España Romana e
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Garvin. Washington, D. C.: The Catholic of América Press, 1956.
O “valor” das práticas religiosas como objeto de
disputa política: considerações sobre as reformas
religiosas de Licurgo e Demétrio de Falero em
Atenas no último terço do século IV a.C.

Rafael Virgílio de CARVALHO*

O
memorável orador Licurgo (390-324 a.C.), homem que esteve à
frente das finanças públicas da democrática Atenas durante doze
anos (336-324), e um dos líderes do partido antimacedônico,
efetuou reformas importantes nas práticas religiosas da cidade, e suas
preocupações iam mais além do mero dispêndio público. De maneira
diferente, mas na mesma direção, Demétrio de Falero (350-280 a.C.),
discípulo do escolarca peripatético Teofrasto, após ser nomeado pelo general
macedônio Cassandro, reinou tiranicamente (317-307) sob uma Atenas
oligárquica e, primando pela noção da justa medida aristotélica, promoveu
reformas religiosas cujos sentidos também ultrapassavam qualquer finalidade
filosófica imediata. A proposta deste trabalho, no entanto, é refletir sobre
ambas as administrações de Licurgo e Demétrio, de modo a iluminar como os
seus governos controlaram os “valores” de algumas práticas religiosas por
meio de reformas que possibilitaram a constituição de certas estratégias

*
Mestrando de História/UNESP/Assis. Orientadora: Drª. Andrea Lúcia Dorini de
Oliveira Carvalho Rossi.
64 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

políticas de publicidade ou de restrição da mesma, as quais possibilitavam o


fortalecimento de certos grupos em detrimento de outros no cenário político
ateniense de finais do século IV a.C.
A política (politikós), para os gregos da Antiguidade, dizia respeito a tudo
aquilo que era apropriado à pólis. Sua expressão era politeía, cuja denotação se
conformava a “corpo dos cidadãos” e, mais propriamente, ao seu “conjunto
de leis”. Mais amplamente, este termo indicava esses dois significados de uma
só vez. Ao analisar a pólis clássica, Christian Meier afirma que, para
compreender sua quintessência é preciso utilizar a ideia de “identidade
política”, isto é, pensar sobre os elementos que permitem a adesão de seus
indivíduos em um grupo mais amplo que a realidade familiar, a pólis.
O presente trabalho busca refletir sobre as identidades políticas
atenienses constituídas nos governos de Licurgo e Demétrio. Valendo-se do
conceito meierniano de política e o bourdieuniano de crença, pretende-se
discorrer sobre como os valores socialmente partilhados em ambos os
períodos puderam ser controlados de modo que a identidade política pudesse
ser refeita conforme os interesses que ora estavam em questão. No entanto,
antes, discutir-se-á sobre o programa de revitalização do kósmos levado a cabo
por Licurgo e, em seguida, sobre a reforma legislativa de Demétrio de Falero.
A conclusão, por conseguinte, virá de uma breve reflexão da teoria discutida
com base nos contextos apresentados.

A administração política de Licurgo: de 336 a 324 a.C.

Já sob a hegemonia macedônica na Hélade, após a batalha de


Queronéia (338 a.C.), onde o rei macedônio Felipe II derrotou a coalizão
entre as cidades de Tebas e Atenas, esta última continuou ainda por um
período de mais de quinze anos com sua autonomia política, se não nos
assuntos externos, ao menos naqueles que eram particulares aos atenienses.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 65

Nesse período, célebres oradores dominaram o cenário político da


democrática Atenas, cujo regime conseguiria ser sustentado até o início da
penúltima década do século IV a.C. Dentre alguns, notavelmente Demóstenes
e Fócion, avultou-se a figura do orador Licurgo, cujos feitos são equiparados
pela historiografia atual com os de Péricles do período clássico ateniense.
Licurgo nasceu em 390 a.C., em um família aristocrática, dos
Eteobutadai, do demos ático Boutadai, possuidora, até mesmo, de um privilégio
sacerdotal do santuário de Poseidon-Erecteu, cujos ancestrais remontavam ao
herói-fundador Erecteu. Em sua juventude, estudou na Academia com Platão
e aprendeu oratória com Isócrates, além de ter mantido relações com a escola
de Aristóteles. Sua grandiloquência decorria de sua formação pessoal, mas sua
postura política fora herdada de sua pró-democrática e patriótica família.
Menção esta que seria ratificada pelo decorrer de sua história política e
conhecida por meio de alguns decretos e honrarias prestadas a ele pela pólis,
além de suas obras retóricas de cunho processual, as quais mormente tratavam
de traições à pólis, e que encontram-se, hoje, razoavelmente conservadas1.
Filho de um influente cidadão de nome Licofron, Licurgo esteve à
frente da política ateniense por doze anos cuidando da administração das
finanças públicas, sendo eleito por quatro anos para esta importante
magistratura, cuja duração normalmente durava apenas um ano, e reeleito
seguidamente por mais duas oportunidades. Foram inúmeras as suas
realizações como homem público, fundamentalmente, é lógico, reequilibrando
as finanças da pólis e também restaurando o corpo militar e as defesas do
Piraeus e da cidade. Contudo, as modificações mais importantes levadas a
cabo por ele, ao menos quando a problemática de estudo leva em conta
questões relativas à identidade política, encontravam-se situadas no campo da
religiosidade grega, mais particularmente a ateniense.
1
As obras que chegaram aos nossos tempos são, a saber: Contra Licofon, Contra Euxenipo,
Contra Aristogiton, Contra Cefisodoto, Contra Lisicles, Contra Autolico e Contra Léocrates.
66 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Como Plutarco fez questão de frisar em vários momentos de sua


extensa obra Vidas Paralelas, a vida religiosa de Atenas era muito intensa e,
como em toda a Grécia, o campo religioso era fundamental para a sociedade
helênica como um todo. A piedade para o grego não era apenas uma ideia,
mas um valor fundamental para o seu comportamento e, consequentemente,
para a organização social. A expressão que comumente lhe aplicavam era
eusebeia, o que largamente fazia referência à obediência às tradições, aos
ancestrais e aos deuses da comunidade. Portanto, qualquer homem que tivesse
alguma envergadura política teria que estar enquadrado nesta necessidade
moral da pólis para que conseguisse mobilizar qualquer contingente de forças
para a efetivação de ações governamentais.
Com Licurgo, isso não foi diferente. Como partidário de convicções
antimacedônias, o que o levou até a arquitetar, junto a Demóstenes e outros,
uma breve resistência ao jugo macedônio quando, em 336 a.C., Alexandre
subiu ao trono após a morte de seu pai, Felipe II. Sendo um cidadão virtuoso,
ele também era piedoso por excelência, ponto que o fortalecia em seus
embates diante do tribunal. Na mesma direção, Licurgo, que acusara vários
adversários de traição, apontava a impiedade em comportamentos arguidos
publicamente, como é atestado em seu discurso processual Contra Leocrates e
que expressa em diversos momentos as crenças que o qualificavam como
homem piedoso.
Justiça em direção a vocês, atenienses, e reverência aos deuses,
devo fazer a abertura de minha fala contra Leocrates, agora aqui
neste julgamento; então pode Atena e outros deuses e heróis, dos
quais estátuas são erigidas em sua cidade e país e que recebem seus
rogos. Se venho justamente processar Leocrates, se ele que eu trago
à julgamento como um traidor de seus templos, santuários e
recintos, traidor das honras as quais suas leis ordenam e dos
sacrifícios rituais que são entregues aos seus ancestrais, pode eles
fazer-me neste dia, sob o interesse da cidade e destas pessoas, um
merecedor de acusar estes crimes; e possam vocês, que por meio de
suas deliberações agora defendem seus pais, esposas e crianças, seu
país e seus templos, os quais estão à mercê de seus votos à quem
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 67

traiu todas essas coisas, sejam juízes inexoráveis, agora e no futuro,


em direção a todos que quebrarem as leis em uma escala como esta
(LICURGO, Contra Leocrates, 1-2).

No excerto acima, datado de 330 a.C., Licurgo apresenta sua acusação,


o autor e o objeto de crime. Na verdade, ele processa Leocrates por traição,
dissolução do demos, deserção, por destratar os ancestrais e, com mais
veemência, por impiedade. Analisando todas essas acusações, o historiador e
professor de estudos clássicos Jon D. Mikalson informa que este texto indica
muito das práticas religiosas do último quarto do século IV a.C., levando em
consideração, em primeiro lugar, aquilo em que Licurgo acreditava mais
particularmente e, posteriormente, sua idiossincrasia como uma visão reflexiva
das práticas religiosas contemporâneas a ele.
Licurgo acreditava – literalmente como um credo (egéomai2) – que:

a orientação dos deuses presidem a todos os assuntos


humanos e mais especialmente, como é de se esperar, a todos
os nossos deveres [eusébeian] para com nossos pais, nossos
mortos e para com os deuses mesmos” (LICURGO, Contra
Leocrates, 94).

Crença comumente aceita pelos gregos, o providencialismo


possibilitava a adesão à natureza essencial da pólis enquanto governo: garantir a
segurança da comunidade ante o comprimento da justiça. Neste caso, este
elemento dava à justiça sua sanção religiosa, uma garantia divina. Como
afirmava propriamente o orador, “seria terrível se a mesma revelação fosse
desferida ao homem piedoso [eusebési] e ao criminoso” (LICURGO, Contra
Leocrates, 93). O providencialismo, contudo, não deve ser entendido à sombra
das teorias que certamente aprendera na Academia, e sim como uma exigência
que dava coerência àquilo que Licurgo dedicara quase toda sua vida e que

2
Tal termo significa “aquilo que o conduz” e, na mesma acepção, “crer nos deuses ou em
seu poder” (BAILLY, 2000, p.399).
68 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

preenchia de sentidos as instâncias da pólis. Era assim que o eixo mais vertical
da pólis, aquele que hierarquizava os cidadãos pela distribuição dos papéis
políticos, era atado ao transcendente de modo a dotar o governo com
potências onisciente e onipresente. Destarte, esta congruência entre o
transcendente e a pólis era garantida pelo juramento, o qual assegurava o
comum acordo da democracia. É o que afirma Licurgo ao desenrolar sobre o
governo da pólis:

O poder que guarda o acordo comum de nossa democracia é o


juramento. O governo consiste em três coisas: o arconte, o jurado e
o cidadão privado; cada um desses dá uma garantia sob juramento,
e por boa razão. Muitos homens, após enganarem outros, escapam
da detenção e não recebem punição, ambas as coisas e talvez por
toda a vida. Mas os deuses conhecem quem cometeu perjúrio e eles
o punirão. Se, por acaso, o indivíduo escape, sua família cai em
grande infortúnio. […] Aqueles que permanecem verdadeiros em
seus juramentos são afortunados pelos deuses com os seus auxílios
(LICURGO, Contra Leocrates, 79 e 82).

A tríade que caracterizava o governo amarrava os três níveis essenciais


da polis, os quais perfaziam o corpus da politeía ateniense, respectivamente à
citação acima: as práticas religiosas legais que forjavam o comportamento
piedoso3; as práticas do direito; e a observância da conduta individual. O
juramento, por sua vez, garantia sob a sanção providencialista a reta execução
das funções de cada um desses papéis e permitia relações harmoniosas entre
os seus níveis. Assim, qualquer crime contra a pólis seria encarado também
como perjúrio contra os deuses.
As crenças expressas na acusação contra Leocrates demonstram muito
da postura religiosa de Licurgo. Para ele, o comportamento político estava
largamente submetido ao comportamento religioso e, por isso, ele dava muita
importância às festividades e aos cultos públicos, como era de se esperar de

3
Relativo ao cumprimento dos nomoi, leis de cunho tradicional de forte conotação religiosa.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 69

todo bom cidadão ateniense. Contudo, como homem público fez o que
poucos fizeram, o que lhe valeu, sete anos após sua morte, em 306 a.C., a mais
alta honra concedida pela pólis a um ateniense – uma estátua na Ágora e um
privilegiado banquete aos seus descendentes4. Porém, o que interessa aqui, da
sua vasta realização política, como já dito, são as suas propostas de leis
aprovadas pela Bulé (boulé) e o seu trabalho frente à administração das
finanças públicas naquilo que concerne à esfera religiosa.
O decreto político de 306 a.C., levado a cabo por Stratocles de
Diomeia, levava um elogio a Licurgo que dizia: “fez muitas boas leis para sua
terra natal” (MIKALSON, 1998 p.23). Entre essas leis, as que faziam
referências às matérias religiosas e que chegaram até o nosso conhecimento
eram: restabelecimento da colapsada competição de atores cômicos no festival
de Kitroi5 (Khýtros) e para inscrever seus vitoriosos na Cidade Dionisia; propôs
o estabelecimento de uma competição de corais ditirâmbicos para Poseidon
no Pireus, cujos ganhadores receberiam 1000 dracmas e 800 e 600 dracmas,
respectivamente, aos segundo e terceiro colocados; elevou estátuas de bronze
dos principais poetas trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes e mandou copiar
e resguardar nos arquivos públicos os textos desses mestres, além de
especificar que o secretário da cidade (grammateús6) teria que lê-los de modo
que os atores que fariam suas performances teriam que seguir à risca suas
instruções; estabeleceu novas previsões para a manipulação dos fundos
sagrados e das dedicações para os deuses; e, proibiu que mulheres andassem
em carros nas procissões para Eleusis durante os Mistérios (MIKALSON,
1998 p.23).

4
Tais honrarias tiveram origem em um decreto proposto pelo pró-democrático e
antimacedônio Stratocles, filho de Eutidemos do dēmos de Diomeia.
5
Terceiro dia de comemoração de um dos quatro festivais atenienses em honra a Dionísio,
Antestérias ou Dionisia.
6
Um dos dez arcontes da pólis, o qual preenchia as funções de escrivão e oficial de
diligências.
70 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Esta última lei, de acordo com Plutarco em Vida de Licurgo, era para que
as mulheres ordinárias não fossem diferenciadas das mais abastadas (842). A
própria mulher de Licurgo, entretanto, teria violado tal lei, levando-o a pagar
6000 dracmas como penalidade. Os Mistérios de Eleusis eram comemorações
de caráter iniciático que celebravam, principalmente, a fertilidade, já que sua
data coincidia com a chegada do verão, período em que as plantas ficam
seriamente ameaçadas pela seca devido ao rigoroso clima do Mediterrâneo.
Nessa festividade a participação das mulheres atenienses não só era permitida
como necessária, era o momento em que elas participavam da vida pública,
oportunidade para que sobrepujassem os laços sociais que as colocavam em
condições inferiores às do homem. Possivelmente, era esta a intenção da lei
licurguiana, isto é, manter a pureza do festival de Eleusis, que primava, entre
outras coisas, pela necessidade de afrouxar momentaneamente alguns laços
que pressionavam certos grupos da pólis, não permitindo que houvesse marcas
distintivas nestas ocasiões.
Paralelamente, as três primeiras leis elencadas mais acima, todas elas,
devem ser compreendidas em um contexto mais amplo, o de reativação das
principais e o de criação de novas festividades para pólis. Todas as leis e
realizações de Licurgo que diziam respeito à religiosidade, como afirma
Mikalson, objetivavam a criação de um kósmos que possibilitasse o
fortalecimento da identidade política ateniense, a qual, na então conjuntura,
indicava consistentemente sentimentos antimacedônios. Assim, não é exagero
considerar que a administração de Licurgo rivalizou com a de Péricles quanto
ao seu programa de construção (MIKALSON, 1998, p.29). Boa parte do
dinheiro da pólis havia sido usada com a defesa para a reconstrução dos muros
e da frota da cidade, principalmente após o episódio de Queronéia, no
entanto, os santuários foram igualmente beneficiados, particularmente com a
construção de novos locais e a reparação dos antigos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 71

Em 333 a.C., um condutor fora pago por um trabalho que fizera em


Eleusis sob a disposição de um decreto proposto pessoalmente por Licurgo e,
em 329 a.C., ele custeou pessoalmente o trabalho de um arquiteto para que
fizesse obras neste mesmo santuário. Outras obras direcionadas por ele foram,
também em Eleusis, a edificação do Pórtico de Filon no Grande Templo dos
Mistérios e do templo de Plouton no santuário de Deméter, ao lado da estrada
sagrada. Ademais, em concordância com as orientações do oráculo eleusinio
de Apolo, Neoptolemos de Melite torneou com ouro um altar de Apolo na
Ágora e, diante disto, Licurgo propôs que o benfeitor fosse homenageado
com uma coroa, mostrando, assim, sua provável influência no ato.
Ainda na Ágora, Licurgo teve responsabilidade por outras construções
em santuários, como o templo de Apolo Patroos a oeste da estrada
Panatenaia, localizado ao lado do Pórtico de Zeus, um pequeno templo ao
norte desta localidade e o monumento aos heróis epônimos das dez tribos, na
estrada que leva ao Pireus e ao lado do altar central da Ágora. Aos arredores
da praça, fez reparos no templo de Eleusinion, conhecido também como
Cidade Eleusinion, ao sul da estrada Panatenaia já próximo da Acrópole. No
Pireus, Licurgo estabeleceu um novo festival a Poseidon e aí, como atesta a lei
há pouco citada, organizou competições de corais ditirâmbicos. Com este
último feito é possível entender o maior sentido das reformas religiosas do
orador já que Poseidon, assim como Atena, era um dos deuses fundadores e
protetores da pólis ateniense.
O Pireus, desde o século V a.C., tinha sido a região que naturalmente
abrigava novos cultos de tendências normalmente estrangeiras. Licurgo,
todavia, demonstrou que estava aberto a esses cultos ao construir uma fonte
para casa de Ammon e ao propor a construção do santuário para a deusa
cipriota Afrodite Ourania. A região do porto pirenáico era tradicionalmente a
localidade onde residiam diversos comerciantes estrangeiros e quando, por
72 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

algum motivo, determinada nacionalidade ganhava vulto – como foi o caso


dos trácios, egípcios e cipriotas – a instalação de um culto com o qual
pudessem se identificar era de estrema importância, pois, isso permitia a
adesão de grupos sem status político ou dos metecos7 à ordem da pólis.
Em 335 a.C., logo depois da frustrada rebelião liderada por Atenas e
Tebas, Alexandre rechaçou duramente Tebas e acabou concedendo a região
vizinha de Oropos, ao norte da península Ática, à Atenas que passou, então, a
controlar o importante santuário oracular de Amfiaraos. Licurgo, em conjunto
com uma delegação sagrada (Pythais), rumou para Delfos para que recebessem
orientações do oráculo de Apolo sobre dois novos projetos religiosos
destinados à Oropos. Assim, em 333 a.C., Piteas de Alopeke foi honrado por
remodelar a fonte sagrada da casa de Amfiaraos na oportunidade em que
havia sido epimeletes8 dos serviços hidráulicos e, em 331 a.C., o antiquário e
escrivão ático Fanodemos de Thymaitadai também foi honrado pela lei que
talhou concernente aos sacrifícios e ao novo festival quadrienal em Amfiaraos.
Todas estas realizações ocorreram no período em que Licurgo administrou as
finanças públicas e vieram ao encontro de seu projeto de adorno (ou
reestruturação do kósmos) da Ática. A preocupação talvez fosse de remodelar o
santuário de Oropos para que fosse incorporado à estrutura da pólis, como um
projeto de maior aculturação da região às tradições atenienses. Em 329 a.C.,
junto com mais oito cidadãos, Licurgo seria homenageado publicamente com
uma coroa por, sendo eleito epimeletai, ter supervisionado a primeira celebração
ateniense deste já mencionado festival.
Entretanto, as maiores realizações de Licurgo estão ligadas aos dois
festivais mais importantes de Atenas – a Cidade Dionisia e a Panatenaia. Por

7
Estrangeiros residentes em Atenas e que tinham alguma participação política, mesmo esta
sendo muito restrita.
8
Os epimeletai eram encarregados pela Bulé para administrar trabalhos referentes às
festividades religiosas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 73

volta de 325 a.C., o Teatro de Dionísio foi completado graças a ele, elevando
sua capacidade para cerca de 17.000 espectadores. Um pouco antes,
provavelmente em 329 a.C., Licurgo já havia reformado o Estádio
Panatenaico, reconstruindo, entre outras coisas, os seus assentos em mármore.
Percebe-se que, em ambas as reconstruções, há em comum a preocupação
com o público que comparecia às competições, respectivamente, dramáticas e
atléticas. Sabe-se que, ao final do quarto século, houve problemas relativos à
demografia em Atenas, principalmente no período logo depois dos governos
licurguianos e que levou a pólis a reduzir os direitos políticos e a instigar a
migração (PODDIGHE, 1993). Mas, mesmo assim, Licurgo aumenta a
capacidade do teatro e melhora as instalações do estádio. Em diversos textos
dos séculos V e IV a.C., há testemunhos de preocupações com os altos
números relativos à demografia e à possibilidade de stásis9 da população
ateniense, contudo, Licurgo parecia não se preocupar com isso e, na verdade,
suas intenções parecem indicar que queria mobilizar o maior número de
cidadãos em torno dos negócios da pólis. Atenas tinha, aproximadamente,
21.000 cidadãos no início da penúltima década do século IV a.C.
(PODDIGHE, 1993, p. 272-273), portanto, caberiam, praticamente, todos os
cidadãos no estádio, nos dias dos jogos. Tal festividade permitiria, desta
forma, a real confraternização de quase todo o demos e os laços entre seus
indivíduos poderiam ser fortalecidos com a emotividade das comemorações
patrióticas.
O objetivo de conseguir mobilizar o maior contingente possível de
cidadãos para os interesses da pólis fica patente quando se observa a atenção
que Licurgo dedicou à deusa patrona da cidade – Atena Polias. No decreto de
306 a.C. em homenagem a Licurgo, Stratocles falava que ele tinha adornado a
deusa com a confecção de estátuas douradas para Niké (epíteto da Atena
9
Termo que fazia referência às situações de agitação interna da pólis e denotava
“sublevação” ou “revolta”.
74 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Vitoriosa). Parece que foram ao menos sete as estátuas que tiveram o seu
kósmos remodelado com vasos de ouro e prata e joias de ouro para uma
centena de cestas, todas carregadas durante a procissão do Panatenaia. Parte
da soma gasta com os adornos teria saído das contas pessoais de Licurgo e
outra parte, cerca de 650 talentos, foi angariada de outros setores privados,
como indica uma fonte de 334 a.C. que menciona a coleta do ouro e dos
vasos para a procissão e a nomeação dos oficiais responsáveis por fiscalizar tal
projeto (MIKALSON, 1998, p.28).
Quase todas as estátuas de Nikai, exceto uma, haviam sido derretidas
para cunhagem de moedas entre os anos de 407 e 406 a.C., devido às despesas
com a Guerra do Peloponeso. Licurgo tratava, assim, em ato de piedade à
deusa, de restaurar sua honra que poderia estar manchada desde então. Sabe-
se que o templo de Atena Niké foi o símbolo da ambição da liderança de
Atenas antes da guerra e a restauração das Nikai (vitórias) claramente
significava uma tentativa de instaurar novamente um kósmos semelhante à
época de Péricles. No entanto, já em 335 a.C., um ano após o início de sua
administração, Licurgo propôs à Bulé que adornos fossem adicionados ao
templo de Agathe Tyche (Boa Fortuna), localizada provavelmente em algum
ponto dos Muros Longos que acompanhavam a estrada que ligava a cidade ao
Pireus. Esta deusa era cultuada em Atenas desde o início do século IV a.C.,
porém, foi apenas na segunda metade deste mesmo século que ela passou a ter
um templo próprio (SMITH, 2003, p. 25). Não se sabe como era exatamente
o culto de Agathe Tyche e, certamente, não apresentava relações diretas com
as celebrações que envolviam a imagem de Atena, fosse em seu epíteto Polias
ou Niké. Todavia, observando as frentes que Licurgo escolheu para
reconstruir o kósmos religioso ateniense e levando em consideração estas
últimas realizações expostas, percebe-se, claramente, que a mobilização
política licurguiana direcionava-se a um novo fortalecimento da pólis por meio
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 75

da solidificação do conjunto dos demoi e a deusa da Boa Fortuna, com toda


certeza, ocuparia importantíssimo papel nas pretensões atenienses ante o
poderio externo que advinha dos macedônios.
Todas essas realizações citadas e brevemente comentadas até aqui
fazem parte da administração de Licurgo frente às finanças da cidade. Boa
parte das despesas geradas pelas reformas religiosas foram financiadas pelo
dinheiro de indivíduos privados, em algumas situações até por estrangeiros, e
que cooperavam em sinal de piedade e em função das liturgias. As liturgias
eram encargos que advinham da esfera privada da pólis e aquelas que diziam
respeito mais propriamente à religiosidade eram a gimnasiarquia, organização
dos jogos, a hestiasis, organização de banquetes públicos, e principalmente a
corégia, organização dos festivais de teatro. Somente os mais ricos tinham essa
atribuição e isto acabava lhes valendo muita publicidade pela ostentação que
esta prática proporcionava. Era por isso que Licurgo mostrava-se céptico com
os benefícios públicos das liturgias religiosas, pois:

Ao próprio liturgista era dada uma coroa pelo seu serviço, mas de
modo algum seus atos beneficiavam aos outros. A gratidão pública
deveria ir para aqueles que custeavam o trirremo ou ajudado a
construir os muros da cidade, ou provisionado outros modos a
segurança pública com seus fundos privados. Assim, poder-se-ia
vislumbrar a virtude [aretén] dos doadores, mas nas liturgias é visto
apenas prosperidade para aqueles que têm custeado suas despesas
(LICURGO, Contra Leocrates, p.139-140).

Licurgo já havia tentado diminuir as ações destes liturgistas quando


elaborou o dermatikon, fundos provenientes da venda das peles (dérmata) dos
animais sacrificados nos maiores festivais e sacrifícios da pólis, o que ajudava a
recuperar parte das expensas gastas com as festividades. No entanto, as
contribuições privadas eram muito bem vindas e vistas com bons olhos, até
mesmo pelo orador quando o seu fim estava relacionado, além da defesa da
cidade, com as construções sagradas e com o kósmos público. Sendo um dos
76 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

maiores partidários dos ideais democráticos de seu tempo, Licurgo não


poderia aprovar ações que dessem destaque ao aspecto privado dos cidadãos
atenienses, pois a força da união do demos dependia das solidariedades que
diluíssem o caráter privado dos sujeitos nos interesses coletivos que faziam
identificar o cidadão com a própria pólis. Era isso que, como já comentado, ele
visava quando propôs a lei que proibia as mulheres de percorrerem em carros
a procissão à Eleusis. Dessa forma, todas as ações de publicidade política
deveriam estar destinadas a propagandear apenas as representações
diretamente vinculadas à identidade da cidade como as imagens de suas
divindades protetoras.
As contribuições de Licurgo foram extremamente grandes, mas neste
projeto religioso ele foi ajudado por muitos outros cidadãos proeminentes de
Atenas e tinha suporte da maioria dos votos do corpo político. A participação
privada nos esforços religiosos foi amplamente acessada por Licurgo e muitas
dessas ajudas adivinham dos partidários que com ele comungavam posturas
pró-democráticas e patrióticas contrárias à força externa dos macedônios,
como já havia feito Demóstenes antes mesmo do episódio de Queronéia. Nos
quatorze anos entre esta batalha e a morte de Alexandre, os atenienses, sob a
liderança de Licurgo, passaram por uma revivificação cívica, militar,
educacional e econômica, devotando considerável atenção e dinheiro para o
restabelecimento do kósmos dos cultos mais tradicionais, por meio da
reconstrução de seus santuários e da reestruturação de seus festivais.
No geral, constata-se o fortalecimento da pólis não só por meio de seu
efetivo militar, mas pela remodelagem do espaço sagrado políade, espaço de
união entre os indivíduos que estavam a sua sombra, com ou sem status
político. A reativação de um kósmos cujo caráter recorria ao passado clássico,
de grandiosidade da pólis, em que os cidadãos se identificavam com as
divindades protetoras da cidade, possibilitou, novamente, como afirma
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 77

Christian Meier, a identificação íntima dos cidadãos com a esfera pública,


transcendendo o indivíduo privado, por meio das solidariedades festivas,
construindo, dessa forma, interesses comuns (MEIER, 1990, p.21). A
democracia ateniense fazia confundir, de fato, a pólis com os seus cidadãos –
era isso que denotava o termo politeía – é por isso que Licurgo enxergava, e
com razão, a precisão da reconstrução do kósmos ateniense, o qual havia
perdido muito de seu potencial de mobilização dos cidadãos em torno das
necessidades comunitárias e tradicionais.
Antes mesmo de Felipe avançar sobre toda a Hélade, Demóstenes já
tentara “pegar na mão do povo” (como nos conta Jaeger), mas ele mesmo
apontava o erro: “Sóis vós os culpados de os macedônios vos terem
desalojado pouco a pouco e serem hoje uma potência a qual muitos de vós
julgais fazer frente” (JAERGER, 1995, p.1397). Desse modo, Licurgo já havia
aprendido o que era preciso para que, assim que fosse possível, reaver a
liberdade da política internacional e tentar afastar o jugo macedônico em
Atenas, e, diferentemente do passado, mobilizar o apoio dos demoi10.
Com certeza, era um sentimento antimacedônio que corria mormente
por trás das reformas religiosas licurguianas. Poseidon, divindade patrona de
Atenas, não por acaso teria seu principal culto no maior porto da Ática, seu
local de proteção por excelência, e sua exaltação reconstituída a partir de um
trabalho que tivera origem no rearranjo da frota e dos muros que ligavam a
região à cidade, apontava, possivelmente, ao passado, quando Atenas vivera
um império marítimo e com tal cuidado que outros cultos eram instalados no

10
Provavelmente fora por isso, também, que logo depois saber da morte de Alexandre os
partidários de Licurgo conseguiram apoio no dēmos para levar adiante sua participação na
Guerra Lamíaca em 323-322 a.C., que colocou a liga chefiada por Atenas – em coalizão
com os etólios, locrianos e fócios – contra as tropas macedônias de Antipatro. É o que
afirma Claude Mossé em Alexandre, o Grande: “Ele [um certo decreto] atesta que, mesmo
antes da morte de Alexandre, a maioria do demos (conjunto dos cidadãos) ateniense estava
pronta para seguir os oradores do ‘partido’ antimacedônio e iniciar hostilidades” (69).
78 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Pireus para que os grupos que lá residiam fossem absorvidos pelo


ordenamento da pólis.
O remanejamento das práticas religiosas em Oropos, ao redor do
santuário de Amfiaraos, procurando, inclusive, subordiná-lo ao santuário de
Apolo em Eleusis, por ambos possuírem funções oraculares e pela
importância do segundo para a hierarquia das práticas religiosas atenienses,
também demonstra inquietações referentes à unidade da polis. Após sua
anexação, de acordo com a vontade de Alexandre, houve preocupações
relativas à incorporação dessa região não somente ao território ático, mas às
tradições atenienses. Para tanto, foi feito um grande trabalho de adornamento
de seu principal santuário, de acordo com os moldes adequados e sob
orientação délfica, o que permitiu sua adesão às crenças e às práticas religiosas
provenientes de Atenas, efetivando um processo de aculturação do kósmos de
Oropos de modo que o santuário de Amfiaraos fincasse raízes nas tradições
áticas.
A transformação de outro kósmos, desta vez o da Panateneia, em torno
da imagem de Atena Niké e a efetivação do culto de Agathe Tyche, a deusa da
Boa Fortuna, foi o maior indicativo da construção de um novo sentido para a
identidade política ateniense. Enquanto, nas décadas anteriores, os cidadãos
de Atenas enxergavam com grande temor pela inconstante potência da tyche,
culpando-a pelos males do governo e pelos deuses não protegerem mais a
pólis, Licurgo ajudou a transfigurá-la de modo a aproveitar o seu lado
agradável, como a boa fortuna, e em consonância com a potência da vitoriosa
Niké. Dessa maneira, pretendia mobilizar o demos em prol de um interesse
comum, cujo sentido se encontrava de certo modo implícito na identidade
política criada pelo novo kósmos de Atenas – avançar sobre o poder que vinha
do norte.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 79

O governo de Demétrio de Falero: de 317 a 307 a.C.

Em 325 a.C., um macedônio aristocrata amigo de Alexandre conhecido


como Hárpalos se refugiou em Atenas com 700 talentos e acabou envolvendo
Demóstenes em um escândalo que o acusava de ter desviado 350 talentos
desse montante, o qual a Ekklesía (Assembleia) lhe havia confiado.
Demóstenes acabou condenado e se refugiou fora de Atenas. Entrementes,
junto aos detratores de Demóstenes, aliados de Fócion e de tendências
oligárquicas, um jovem de nome Demétrio se destacara. Do demos de Falero,
este filósofo de ainda tenra idade havia sido aluno, primeiro, de Aristóteles e,
posteriormente, de Teofrastos quando este se tornou o primeiro escolarca do
Liceu. Filho de Phanostratus, um rico homem e eminente no cenário da pólis,
Demétrio de Falero adquiriu grande reputação pelo seu talento oratório na
arena pública, cujas características primavam pela leveza e elegância. Seu
futuro, porém, tornar-se-ia incomparável ao de seu pai, pois este jamais se
imaginaria como chefe da democrática Atenas.
Após a morte de Alexandre em 323 a.C. e o mal sucedido levante
ateniense na Guerra Lamíaca, o general alexandrino vitorioso, Antipater,
impôs uma paz aos atenienses em 322 a.C., a qual previa a redução dos
direitos políticos (politeuma) a apenas os cidadãos que tivessem um mínimo em
propriedades cujo valor alcançasse 2000 dracmas, além de estabelecer
guarnições em Munique e controlar o porto do Pireus. Antipater, entretanto,
morreu em 319 a.C. e designou como seu sucessor Polipercon, general que
havia servido a Felipe II e a seu filho Alexandre. Surpreendentemente,
Polipercon logo reverteu todo o ordenamento que Antiparter havia imposto e
tentou obter o apoio popular retornando ao status quo ante de Atenas,
restaurando, assim, a democracia e executando a maioria dos líderes oligarcas.
Contudo, em 317 a.C., Cassandro, filho de Antipater, retomou aquilo
que considerava ser seu por herança e, novamente, subjugou os atenienses.
80 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Demétrio, que fazia parte da ala perseguida por Polipercon, e que escapara à
morte por não estar em Atenas quando houve a execução de Fócion e de seus
partidários, em seu retorno, acabou participando da delegação que o então
governo democrático ateniense enviou a Cassandro para que fossem
negociadas as determinações da nova paz. Os termos diziam que Atenas
voltaria a controlar o porto do Pireus mediante a instalação de uma guarnição
macedônica no morro de Munique e a qualificação para o politeuma foi fixada
em 1000 dracmas, além da nomeação de um epimeletès (administrador)
escolhido pessoalmente pelo novo hegemon11 de Atenas. Demétrio, com quem
negociara Cassandro, acabou sendo o escolhido e passou a controlar
diretamente o governo da pólis.
A função de epimeletès em Atenas não estava vinculada à ação de legislar.
O próprio sentido da palavra apenas nomeava aqueles cidadãos incumbidos
de realizar algum serviço público de administração ou organização de
construções civis e eventos como festividades e sacrifícios. Todavia, em
diversos momentos Demétrio acabou utilizando seu cargo, uma magistratura
nova à realidade de Atenas e instituída por um macedônio, para instaurar
novas leis que provavelmente não passaram pela aprovação da Assembleia.
Isto, explicitamente, deu tons de tirania ao seu governo. Contudo, quando
analisado mais atentamente, o programa de Demétrio mostra reformas cujo
sentido apresenta certa conotação democrática, ou ao menos democratizante,
se for levada em questão a conjuntura política de sua efetivação.
As ações de Demétrio enquanto legislador, segundo Hans B.
Gottschalk (2000, p.370-371), recaíram em três setores, a saber, constitucional,
social e fiscal ou administrativo. Entre as modificações constitucionais, além

11
O significado da palavra queria dizer aquele que conduz ou aquele que comanda, mas sua
conotação vem propriamente de hegemónios, isto é, aquele que conduz as almas. Tal
referência estava ligada ao fato de a presença macedônica ter levado os gregos a não se
sentirem mais livres.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 81

da já mencionada restrição do politeuma, as eleições para magistraturas e


conselhos foram substituídas pelo sorteio e outras magistraturas foram
criadas, o nomofýlakes, no intuito de assegurar a estrita observância da
constituição. Este, provavelmente em número de sete e com autoridade sob
insígnia sacerdotal, que aumentava sua dignidade, era responsável por
controlar os atos do Conselho e da Assembleia. Nessa mesma direção, o
número de jurados que passaram a vistoriar o procedimento da eisangelía12 foi
fixado em 1500 e a jurisdição do Areópago, que em 322 a.C. havia sido
alargada para abrigar todos os casos criminais, foi restringida. Por tudo isso, as
regras que garantiam a igualdade de representação entre as tribos ficaram mais
relaxadas.
As reformas sociais demetrianas se circunscreveram mais propriamente
ao campo da moral, a não ser a regulação dos preços dos produtos que
circulavam no mercado, o qual visava prevenir flutuações violentas, e que
aparentemente não apresentava significados que possuíssem um forte sentido
moral. Entretanto, se analisado perante o restante das ordenações pode-se
perceber que tais reformas apresentavam uma certa e mesma característica,
eram regulamentações restritivas. Sendo elas direcionadas às expensas com
banquetes, aos vestidos das mulheres, aos funerais e aos monumentos
fúnebres, todas tinham por objetivo coibir os excessos individuais. Assim,
ainda nessa direção, outro conjunto de magistrados, os gynaikónomoi, foi
incumbido de supervisionar a observância destas leis.
Em relação ao âmbito fiscal e administrativo, Demétrio aboliu as
liturgias, tanto as khoregiai13 como as trierarkhiai14. Substituiu os khoregoi15 pelos

12
Acusação pronunciada contra qualquer oficial público feita durante ou após a duração de
seu mandato. O caso poderia ser levado diretamente para a Ekklesia ou então para a Boule,
sua audição final poderia ser tomada na primeira ou no dikasterion.
13
Organização dos festivais dos teatros.
14
Manutenção da frota ateniense.
15
Responsável pelos custos e administração da organização dos festivais.
82 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

agonothetai16, ou seja, os gastos com as festividades deixaram de ser privados,


custeados pelo choregos, e passaram a receber fundos públicos cuja
administração caberia ao agonothetes. Pagamentos provenientes do fundo
theoricá17 foram abolidos e a ephebeia18 foi confiada a alguns cidadãos
privilegiados. Mesmo procurando evitar as extravagâncias com as despesas
públicas, recursos foram avaliados e direcionados a algumas construções da
pólis e os seus principais festivais religiosos continuaram sendo celebrados com
satisfatória magnificência.
A historiografia atual, em tendência contrária a um passado recente, que
via nas ações de Demétrio uma tentativa de por em prática convicções
filosóficas peripatéticas, concebe estas reformas como motivadas por
considerações políticas de ordem prática (GOTTSCHALK, 2000, p.368-369).
Em uma visão mais ampla, Lara O’Sullivan (2009 p.101) enquadra as reformas
de Demétrio dentro do problema do “vigamento de onde emergem os
assuntos políticos” – o comportamento e a moralidade privada. Desta forma,
poder-se-ia entender melhor a temática em questão reunificando as
convicções do sujeito com suas ações em um campo cuja prática ia além de
seu universo subjetivo. Portanto, o pensamento de Demétrio e suas ações
dentro de certo contexto não devem ser dissociados e, vindo ao encontro isso,
a moralidade mostra ser o vértice no qual a convergência das pretensões de
Cassandro e as atitudes do filósofo e statesman se tornam inteligíveis,
adquirindo um mesmo sentido.
Para esta historiadora, a compreensão do sentido das reformas
demetrianas parte não tanto das leis instauradas por elas, mas da criação de

16
Responsável pela administração dos festivais que diferentemente dos khoregoi eram eleitos
pelo demos.
17
Fundo monetário público gasto com a organização dos festivais, sacrifícios, com
hospitalidade e com alguns cargos no governo da pólis.
18
Serviço militar prestado pelo jovem ateniense quando ingressava no corpo cívico (demos)
de Atenas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 83

novos magistrados cuja função é “forçar à observância das mesmas”. É aqui


que se verifica o esclarecimento sobre por que Demétrio fora escolhido por
Cassandro para o cargo de epimeletès de Atenas. A moral era uma questão
muito importante, não apenas para o campo filosófico, mas principalmente
para o Liceu. Aristóteles escrevera quatro grandes obras sobre a moral ou
intimamente ligadas a ela – Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco, Grande Moral e
Política – e Teofrasto – em seu Caracteres – categorizou alguns dos
comportamentos da época de Demétrio. Para o campo peripatético, a ética era
a ciência das condutas e a política o desdobramento natural da ética, e uma se
preocupa com a felicidade individual do homem e a outra com a felicidade
coletiva da pólis, ambas sempre atentas à medida justa do comportamento
humano de modo a sustentá-lo pela razão. Dessa forma, o programa
demetriano estaria de acordo com a proposta peripatética que via na política
aquilo que Aristóteles chamou de “filosofia prática”, cujo campo se estendia
completamente sobre a moral, e seu foco estaria apontado para o
[auto]controle dos comportamentos ajustados à razão.
No entanto, pôde-se notar o quão o kósmos criado no período de
Licurgo, sua identidade política, conseguiu mobilizar os atenienses cujo
resultado levou à Guerra Lamíaca. Cassandro precisava controlar aquela ala
responsável por tal mobilização e que Polipercon algum tempo antes tentara
restabelecer no governo ateniense. Tal grupo era formado por inúmeras
famílias abastadas que apoiaram Licurgo, Demóstenes entre outros, em um
passado próximo. Mesmo com a morte de seus principais líderes, a atmosfera
criada por esses oradores ilustres permaneceria ainda por algum tempo,
exemplo disso foram as já citadas honrarias prestadas a Licurgo em 306 a.C.,
logo depois que Demétrio de Falero fora expulso de Atenas pelo seu
homônimo Poliorcetes. Ambos, Cassandro e Demétrio, tinham os mesmos
inimigos e, além disso, o hegemon macedônio de Atenas conhecia bem os ideais
84 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

do filósofo. Um reequilíbrio das forças sociais atenienses viria a calhar aos


planos macedônicos já que, para isso, teria que haver a desmobilização da ala
oposicionista também conhecida como democrática e antimacedônica.
Aristóteles, em sua obra Política, concebe a pólis como sendo formada por dois
grupos básicos – os ricos e os pobres (VII, 1, 13). Segundo ele, o equilíbrio
entre estes grupos seria essencial para a saúde de um regime democrático.

Para estabelecer certa espécie de democracia e transferir todo o


poder ao povo, aqueles que a isso são devotados, em segredo
procuram inscrever na lista civil o maior número possível de
pessoas; […] São esses os meios que estão ao alcance dos
demagogos. Os quais, contudo, tem o cuidado de não fazerem uso
destes meios até conseguirem com que a população pobre supere
em número os grupos mais abastados e aqueles medianos; que haja
salvação se isso ocorrer, pois ultrapassando tal limite se cria uma
multidão indisciplinada e exasperam-se os grupos mais abastados,
que acabam sofrendo enormemente o império da democracia
(ARISTÓTELES, Política, VII, 2, p.9-10).

Eis o acordo comum entre Cassandro e Demétrio, firmado de antemão


pela filosofia aristotélica. A demagogia perigosa, o maior vício da democracia
como dizia Aristóteles, era identificada nas atitudes dos oradores do período
licurguiano, inimigos em comum de ambos. Demétrio, já no início de seu
governo, restringiu os direitos civis para aqueles que possuíssem propriedade
cujo valor fosse menor que 1000 dracmas. Isto fora orientado por seu mestre
na Política, o qual entendia que em uma democracia não deveria haver limites
impostos pela riqueza, mas se houvesse necessidade isto deveria ser bastante
moderado (Política, VII, 1, 8). Todavia, principiando pela restrição do politeuma
imposto por Antipater em 322 a.C., o estabelecido por Demétrio em 317 a.C.
se mostra bem mais moderado que à primeira vista. Contudo, o que poderia
parecer um estímulo aos mais ricos, fora na verdade um reequilíbrio de forças
na política ateniense já que boa parte da população que apoiava os oradores
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 85

oposicionistas perderia, então, os seus direitos políticos. Ao mesmo tempo,


Demétrio elaboraria, progressivamente, um programa de reformas no qual
esta ala teria seu poder de mobilização restringido e, literalmente, controlado.
A eunomía (boa ordem) e a isonomía (igualdade perante as leis) seriam
alcançadas, respectivamente, pelo equilíbrio de forças e pela possibilidade de
participação de todos os cidadãos nas instituições da pólis19. Nesta mesma
direção, porém com objetivos paralelos, a nova orientação política ateniense
acalmaria as rixas entre os partidos que há muito se digladiavam e tornaria
Atenas um domínio apaziguado dentro do reino de Cassandro.
Michael Gagarin afirma que, durante o período de Demétrio de Falero,
os ricos atenienses já não viam mais motivos para litígios e competições
públicas partidárias. Somente algumas vezes se lançavam na organização de
festividades e as exibições públicas não os atraiam mais (GAGARIN, 2000,
p.361-362). Gagarin entende que as reformas demetrianas instauraram um
período de paz e prosperidade em Atenas, asseverando que sua legislação
religiosa influenciou no apaziguamento nos litígios entre as famílias ricas de
Atenas, mas de modo mais amplo enxerga que a desmotivação dos cidadãos
com a arena pública era devida ao golpe macedônico na liberdade política
ateniense, de modo geral, atribuindo boa parte disto a uma espécie de
“autoestima ferida”. Contudo, esse mesmo estudioso continua falando que os
ricos cidadãos se voltaram aos assuntos privados – o que passaria a ser uma
tendência desta e das épocas seguintes. Assim, mais do que “autoestima
ferida”, percebe-se que a presença do rei macedônio que pairava sobre o
governo de Atenas inibia os célebres cidadãos a ações políticas mais explícitas,

19
Aristóteles dizia que a melhor maneira de a população ter acesso aos cargos públicos era
pela sorte (Política, VII, 4, 6). Em uma de suas modificações constitucionais, Demétrio
instaurou a nomeação por sorte para os cargos das magistraturas e assembleias em uma
clara tentativa de possibilitar o acesso dos grupos mais pobres à política da época, já que no
período licurguiano a arena pública de Atenas fora dominada por oradores “profissionais”
advindos de famílias ricas.
86 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

mas não impedia a publicidade indireta que a religiosidade privada, praticada


com magnificência, proporcionava. Contudo, não foi a simples presença de
Cassandro que desmobilizou algumas forças políticas atenienses, Demétrio
teve um papel fundamental nessa questão, e sua reforma religiosa lançou mãos
sobre essa última arma das grandes famílias de Atenas.
Não se pode, porém, negar a inibição que o rei causava. A presença das
guarnições macedônicas em Munique, próximo ao porto do Pireus, causou
um grande rompimento no corpo político ático. Mikalson (1998, p.52)
menciona que esta ocupação maculou as estradas usadas pelas procissões
entre esta região e a cidade. O isolamento do Pireus trouxe diversas
consequências e entre elas estão que alguns dos cultos que, como na maioria
dos cultos dos demoi, serviam aos interesses locais, acabaram adquirindo
progressivamente características de cultos nacionais. Isto apenas para os
moradores do Pireus, local que cada vez mais aparentava ser uma pólis
independente e seus cultos se tornavam, então, paralelos aos da Acrópole, os
quais desde 322 a.C. passaram a ser menos acessíveis aos atenienses desta
região portuária20.
A maior vítima desta ruptura foi Artemis. Esta era uma deusa essencial
para a identidade ática, pois estava relacionada diretamente com o espaço
familiar (oîkos). Artemis presidia um importante ritual de passagem da infância
à puberdade feminina no festival quadrienal conhecido como Arktei, na região
portuária de Brauron. A Artemis Brauronia estava estreitamente vinculada ao
templo de Artemis Mounichia, no Pireus, e isso não apenas por seu culto, mas

20
Foi este o caso de Zeus Sóter, que estava em ampla ascensão antes desta data e tal
ruptura fez esta divindade ganhar status nacional para o demos pirenáico. No mesmo
caminho, mas em sentido contrário, os cultos estrangeiros ali instalados, como o de Isis e o
de Afrodite Ourania, estavam penetrando lentamente na cidade e, possivelmente, seriam
tomados pelos atenienses como cultos da pólis. No entanto, o seu isolamento levou estas
divindades a crescerem em importância no Pireus e, consequentemente, a perderem sua
força no restante do território ático.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 87

mais propriamente pelo mito que os fundavam21. Havia uma procissão que
saía do santuário de Artemis Brauronia erigido na Acrópole da cidade em
direção a oeste, ao seu outro santuário em Brauron, onde as jovens atenienses
realizariam os seus rituais. Contudo, este ritual também tinha por função
fortalecer o demos ático, ligando não somente a cidade à região de Brauron,
mas unificando a identidade entre dois dos principais portos de Atenas. Desta
forma, com o isolamento do Pireus, o culto de Artemis Mounichia entrou em
declínio e, não só o santuário de Brauron acabou sendo afetado, como
também parte da força de mobilização ligada à identidade ateniense foi
desfeita.
Não era apenas por meio de suas guarnições que os atenienses sentiam
a presença do rei macedônio, a própria figura de Demétrio como epimeletès de
Atenas levava a essa sensação. Mesmo que as ações demetrianas possam ter,
provavelmente, representado para boa parte dos atenienses a vontade de
Cassandro, não se pode eclipsar o já citado programa de reforma de
Demétrio. Como frisa Mikalson (1998, p.54), Demétrio fez três importantes
mudanças referentes à religiosidade ateniense e que tiveram profundo impacto
na identidade dos cidadãos de Atenas: eliminou o serviço khoregiai dos festivais
da pólis; elaborou leis que limitavam os gastos com funerais e com
monumentos fúnebres; e, instituiu oficiais – gynaikónomoi – que fiscalizavam
algumas restrições impostas às atividades ritualísticas privadas. Ora, se a
preocupação política de Demétrio estava essencialmente vinculada à
moralidade e se o objetivo comum entre o filósofo e Cassandro era refrear as
influências dos demagogos, nada melhor do que introduzir leis que
controlassem a religiosidade pública e privada dos atenienses.

21
O herói epônimo Mounichos, do Pireus, foi o fundador do culto a Artemis na Ática.
88 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Em Atenas o coro era uma instituição muito importante para o


andamento dos principais “festivais religiosos”22 da pólis, tanto nas tragédias
quanto nas comédias ou nos ditirambos. Os indivíduos que custeavam o coro
eram chamados de khoregoi, os quais prestavam uma liturgia (khoregiai) que lhes
rendia honrarias e até um monumento poderia ser erigido em seus nomes
quando fosse celebrada a vitória nas competições23. Estes indivíduos proviam
de ricas e renomadas famílias e suas liturgias prestadas, no final do quarto
século, passaram a ser sinônimos de vaidade familiar insólita. Quanto maior
era o dispêndio, maiores eram as honrarias. Porém, em algum momento do
governo de Demétrio, todo o tipo de khoregiai estabelecido por escolhas
individuais, dos arcontes, foi eliminado e os khoregoi deram lugar ao agonothetes
(produtor de competições). Este indivíduo, ao contrário do que ocorria
anteriormente, seria nomeado por eleição popular e ele teria status de chefe
oficial do suporte financeiro, cujas expensas caberia agora às finanças da pólis.
Demétrio, portanto, levou os festivais a se tornarem mais democráticos
e, ao mesmo tempo, combateu o excesso e a promoção privada de indivíduos
e das famílias mais abastadas de Atenas. Todavia, alguns historiadores
questionam se este feito não favoreceria os ricos atenienses que não
precisariam mais dispor de enormes quantias para financiarem festividades
públicas. Mikalson (1998, p.55) reporta propriamente a Demétrio uma
indagação sobre o valor dos monumentos corálicos: “Para os vencedores o
tripé não está na dedicação à vitória, mas na ‘última libação’ sob os exauridos

22
A noção é utilizada para frisar o caráter extremamente religioso dos festivais, mas, de
modo geral, por todo festival ser religioso na Grécia Antiga, tal expressão acaba sendo um
pleonasmo.
23
Os khoregoi para as tragédias e para as comédias da Cidade Dionysia eram escolhidos pelo
arconte eponymous e aqueles para a Lenaia eram escolhidos pelo arconte basileus. Nos
ditirambos, que eram competições realizadas entre as dez tribos, todas elas escolhiam os
seus khoregoi.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 89

recursos e num ‘cenotáfio’ a famílias falidas”24. Mas, como coloca Gehrke,


desde então seria o Demos que se tornaria o khoregos e isto seria coerente com a
extensão dos direitos civis feito por Demétrio, cujo censo de 2000, na época
de Antipater, diminuiu para 1000 dracmas, pois, dessa forma, passaria a
equilibrar mais as forças em ação no interior da pólis e nem ricos nem pobres
se beneficiariam nas situações cuja atenção deveria estar voltada apenas para o
conjunto do demos.
Em termos políticos, na Grécia Antiga, Demétrio não tentou salvar o
dinheiro de seus ricos rivais, mas limitou suas oportunidades de exibição e
publicidade (GEHRKE, 1978, p.173). Na verdade, se for considerada a
perspectiva aristotélica que via possibilidades de desordem e até de convulsão
política nos excessivos gastos públicos a expensas dos ricos cidadãos e na
própria riqueza de algumas famílias, na medida em que, dentro de um cenário
político de conflito, tal situação ficaria à mercê das habilidades de demagogos
que poderiam usurpar tais riquezas na tentativa de cair nas graças da multidão
(ARISTÓTELES, Política, VIII, 4, p.3-7), a medida legislativa de Demétrio
estava, também, de acordo com a proposta de apaziguamento ou controle das
forças políticas atenienses.
A segunda lei demetriana mencionada, referente à legislação religiosa,
em geral harmonizou as práticas da religiosidade privada dos atenienses,
diminuindo as disparidades entre as cerimônias dos cidadãos mais ricos e
aquelas dos mais pobres. O estadista romano Cícero (106-43 a.C.) expõe que
tal restrição ordenava que não apenas os gastos fossem reduzidos, mas
também o tempo dos funerais, os quais teriam que durar no máximo até ao
amanhecer. Comenta, também, que os sepulcros deveriam possuir somente
uma coluna não muito alta de apenas três cúbitos, isto é, cuja altura não
excedesse os nove palmos (Das Leis, II, 26 apud MIKALSON, 1998, p.59).
24
Reprodução da fonte 228 F 25 retirada de JACOB, F. Die Fragmente der griechischen
Historiker. Berlin/Leiden, 1923-58.
90 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Novamente, isso não significava apenas mais economia, nas práticas ou nos
monumentos, mas indicava limitações à aristocracia ou aos ricos. Mikalson
aponta, ainda, que nesse aspecto as leis de Demétrio podiam ser análogas às
de Licurgo que impedia as ricas mulheres de caminharem em carros durante a
procissão à Eleusis (MIKALSON, 1998, p.59). Isto indica que, semelhante a
Licurgo, Demétrio mirava a unidade do demos para que o corpo político
pudesse alcançar a igualdade democrática que pregara Aristóteles25.
Lara O’Sullivan enxerga uma continuidade entre as legislações religiosas
de Licurgo e Demétrio naquilo que tange às restrições dos comportamentos
dispendiosos dos ricos atenienses. Na verdade, a historiadora mostra que as
reformas de Demétrio não estavam necessariamente em tensão com a
ideologia e as práticas democráticas, pois poderiam promover uma maior
harmonia dentro do regime democrático limitando o escopo da exibição
aristocrática (O’SULLIVAN, 2009, p.102-103). Entretanto, a grande
divergência entre os dois governos era que Demétrio estava sob a tutela
macedônica e duas de suas ordenações interferiam diretamente nos assuntos
privados da pólis, esfera que estava intimamente ligada à ideia de liberdade na
Grécia.
A moralidade privada era assunto para o chefe da família (oîkos) e a
criação de magistrados para fiscalizar tal esfera exacerbou os limites da própria
moralidade privada, os quais mormente delimitavam as fronteiras entre o
público e o privado. Nessa direção, muito mais do que coibir os gastos
excessivos com os funerais, Demétrio também interferiu no comportamento

25
“Tais são as instituições comuns a todas as democracias. Elas surgem diretamente do
princípio que se considera democrático, ou seja, a igualdade perfeita entre todos os
cidadãos, não existindo diferença entre eles que não seja apenas de número, condição que
parece ser essencial à democracia e querida pela multidão. A igualdade quer que os pobres
não tenham mais poderes que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, se não, que
sejam todos na mesma proporção de seu número, não encontrando outro meio mais eficaz
de a pólis garantir a igualdade e a liberdade” (ARISTÓTELES, Política, VII, 1, 10).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 91

que usualmente as mulheres apresentavam nestas ocasiões26 cujo policiamento


passou a ser responsabilidade dos novos magistrados instaurados por ele – os
gynaikónomoi (“reguladores de mulheres”). Claramente, as suas autoridades iam
além da fiscalização das mulheres e tal jurisdição foi estendida a todos os
rituais privados da pólis. O número de convidados, por exemplo, nos
casamentos ou em qualquer sacrifício privado ficou limitado a trinta pessoas.
Aristóteles mesmo já dissera na Política que tal magistratura, e mais o
paidonómos (“reguladores das crianças”), era uma instituição aristocrática, uma
vez que não tinha nada de popular, pois poderia coibir as mulheres pobres de
se comportarem como bem entendessem e as ricas de evitarem o luxo (IV, 12,
9). Para este filósofo, a palavra aristocrático (áristokratikôs) – cuja raiz vem de
aristos, que significa “excelência” – era o adjetivo que conotava restrição ou
seleção de indivíduos mediante crivo da virtuosidade fundada na razão. Ora,
se para os peripatéticos o fim último da pólis era a virtude, ou seja, a formação
moral de seus cidadãos, e se era na comunidade das famílias que essa mesma
pólis tinha a sua origem, logo, Demétrio poderia ter justificado a instituição
dos gynaikónomoi como o vértice no qual a teoria aristotélica teria sua
aplicabilidade. Essa magistratura, portanto, teria o papel de supervisionar a
base da pólis ateniense, a família (oîkos), e as questões morais seriam essenciais
para a boa saúde (eunomía) da comunidade.
Funerais, casamentos e sacrifícios eram as maiores ocasiões para
reuniões daqueles mais abastados que buscavam, por meio da ostentação,
sustentar na arena política as reputações de suas tradicionais famílias. Isto era
uma necessidade social não apenas em Atenas, mas em todos os cantos do
mundo alexandrino, onde os costumes helênicos acabaram ecoando. Na
privacidade doméstica, o homem, chefe da casa, dispunha de pessoas e de

26
Isso, porém, não era coisa extraordinária, pois no VI século a.C. Sólon já havia
estabelecido lei semelhante no que tangia aos comportamentos das mulheres durante as
procissões dos funerais.
92 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

coisas que lhe eram particulares, suas, e que ele dispunha como bem lhe
entendesse. Neyde Teml (1988, p.77) explica que a “família e o oîkos foram, no
tempo da pólis, considerados como um espaço absolutamente fechado,
particular, submetido à autoridade do pai e de certa forma da mãe, cujo
domínio era inviolável”. Existia um direito privado consuetudinário, sobre o
qual Aristóteles chega até a comentar, criado pelos direitos do patér e que não
deveria se misturar com o espaço público. Contudo, as reformas de Demétrio
adentraram nos limites desse espaço reservado, dando a sensação, aos
atenienses da época, de que sua liberdade privada, assim como aquela política,
havia lhes sido roubada.
Exatamente por isso que O’Sullivan enxerga a origem do sentido dessas
reformas na criação dos magistrados e em seus papéis de “forçar a
observância das leis”. Porém, ela mesma não reduz sua visão a isso apenas, e
ao relacionar o programa demetriano aos assuntos do comportamento e da
moralidade privada abre um novo caminho para a compreensão do governo
de Demétrio de Falero sob o prisma da filosofia prática, ou moral, de
Aristóteles. Concomitantemente, o campo da moral peripatética se mostrou
proveitoso a Cassandro, na medida em que serviu de álibi aos seus interesses.
Mesmo sendo pouco provável, como normalmente concorda a maioria dos
historiadores, que Demétrio tenha tentado apenas fazer melhorias na
democracia ateniense em acordo com suas convicções. No entanto, sua
legislação, principalmente aquela que tange à religiosidade, em conjunto com o
contexto de domínio macedônico sobre a Ática, levaram à desmobilização
daquela identidade política anteriormente construída no período de Licurgo.
O decreto de 306 a.C. feito por Stratocles de Diomeia refletiu bem esse fato,
cuja ocorrência foi devida, fundamentalmente, pela tensão que acabou se
instaurando entre os valores surgidos das necessidades privadas e aqueles
emanados pelo governo da pólis.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 93

A problemática da identidade política: apontamentos para a


importância da crença

Retomando o tema inicial apresentado na introdução deste trabalho,


sobre a importância da identidade política para a inteligibilidade da politeía
grega, é necessário entender que, para o grego, a política era o domínio no
qual os indivíduos tomavam parte de uma vida pública, em que se superava a
esfera das relações domésticas, de parentesco, de vizinhança, assim como
também dos pequenos grupos de culto. Christian Meier menciona que,
quando atuava como cidadão, desfazia grande parte de suas diferenças sociais,
identificando suas ações nesse âmbito com os interesses de toda a
comunidade (1985, p. 17-18). Por esta forma, diversos elementos, no decorrer
da história, foram compondo as condições de existência que permitiam tal
identificação, como suas crenças na justiça, nos deuses, na isonomia, na
liberdade, etc. As ações tanto de Licurgo, na administração das finanças da
pólis, como de Demétrio de Falero, à frente de Atenas, deram-se na esfera
pública da vida grega e, principalmente, suas reformas religiosas contribuíram
imensamente e de maneiras totalmente diversas para a constituição, ou
melhor, para a reconstituição da identidade política ateniense de maneira
peculiar aos seus respectivos contextos.
Jon Mikalson aponta, em termos de construção de um kósmos ateniense,
no sentido de que tanto Licurgo quanto Demétrio acabaram instituindo uma
“ordem” por meio do adorno (kosméo) do espaço físico e jurídico de Atenas.
Kosméo significava “colocar em ordem” por meio de critérios que levassem a
“celebrar” ou a “honrar” determinado plano de alguma coisa (BAILLY, 2000,
p. 506). Esses critérios foram estipulados por rearranjos materiais feitos pelas
construções e pelos reparos nos diversos elementos dos santuários, templos e
94 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

estádios, fundamentalmente na administração de Licurgo, como também pelas


reformas legislativas implementadas em ambos os períodos. Eram estes
critérios que direcionaram os olhares dos cidadãos para uma nova realidade,
mesmo que sustentada por uma nostalgia clássica, como ocorreu entre 336 a
324 a.C., ou que permitisse a adaptação a um novo núcleo de poder externo à
própria pólis como aquele que existiu entre 317 a 307 a.C., e eles seriam
responsáveis pelas representações de onde estes mesmos cidadãos retiravam o
senso do e o consenso sobre o mundo.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1980, p.65) chama estes critérios de
“princípios de di-visão do mundo”, apontando que eles se impõem a um
conjunto de indivíduos lhes oferecendo unidade de visão e identidade de
grupo. Contudo, ele se utiliza desta noção para tornar explícito que os
mesmos princípios que unem alguns sujeitos são também aqueles que
imprimem marcas distintivas em relação à totalidade social. Portanto, os
mesmos critérios que unem também são aqueles que separam, situando os
indivíduos como sujeitos dentro do espaço social e é exatamente isso que
Bourdieu (2007, p.217) designa como “identificação distintiva”. É essa ideia
de identificação distintiva que permite o trabalho em conjunto de alguns
pressupostos entre as teorias de Bourdieu e Meier – como a compreensão da
dinâmica social de um e o conceito de política de outro.

A política [the political] denota “um campo de associação e


dissociação”, nomeadamente, o campo ou ambiente no qual as
pessoas constituem ordens onde elas mesmas vivem em comum
acordo e se diferenciam dos outros (MEIER, 1990, p. 4).

O próprio Christian Meier reconhece que esse conceito de política


possibilita sua incorporação a uma ampla rede teórica que concebe a estrutura
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 95

social ao modo bourdieuniano27. De um modo mais geral, a política se exerce


quando grupos (unidades políticas) interagem e onde várias forças ganham, ou
tentam ganhar, influência direta sobre estes mesmos grupos. Ao agirem, todas
as forças acabam, dessa maneira, sendo ipso facto políticas. Adotando certas
posições e se opondo a outras, estas unidades estão agindo politicamente e,
assim, se constituindo em um campo político que necessariamente interage
com outros (MEIER, 1990, p.18). Logo, qualquer análise que leve em conta
estes pressupostos busca a inteligibilidade de qualquer situação política nas
forças que impulsionam os movimentos de associação e dissociação social.
Este conceito de política pode ser vinculado ao de identificação distintiva, na
medida em que permite aos sujeitos se agruparem enquanto se diferenciam de
outros. Tais agrupamentos, por esta forma, ocorrem graças à dinâmica social
na qual – na ânsia de possuírem as condições que lhes proporcionem a
satisfação de suas necessidades – os critérios (ou objetos) de representação do
mundo peculiares a cada grupo são trocados.
A sociedade apresenta uma dinâmica que é o fruto da relação entre as
necessidades ou os interesses de seus sujeitos ou grupos e as possibilidades
que existem, ou condições sociais disponíveis, para satisfazê-las. Bourdieu
chama a isso de lógica da oferta e da procura, distinguindo de maneira
contundente dois polos, o de produção das possibilidades ou dos meios de
satisfação social e o de consumo desses mesmos meios. Portanto, tal dinâmica
tem como consequência a valorização dos meios pelos quais se torna possível
a satisfação dos interesses, além da valorização das posições sociais que
facilitam aos sujeitos obterem esses meios de satisfação. A valorização, por
meio das peculiaridades de cada relação social, forma um objeto nebuloso à

27
O qual inclusive considera o campo como local de tomadas de decisões a respeito de
ordenamentos e delimitações, bem como questões de interesses comuns, e onde há
contenções por posições pelos quais estas decisões podem ser influenciadas (MEIER,
1990, p.04).
96 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

percepção social – o “valor”. Este, considerado pelo sociólogo de objeto em si


(BEASLEY-MURRAY, 2000, n. 9), mostra-se sempre em sua inerência com
os objetos ou critérios representativos ou simbólicos que transitam pela
sociedade. Por este motivo, exatamente, é que a utilização do vocabulário
economicista de Bourdieu aparece como um caminho em que a análise do
valor e do seu papel social pode ser efetivada de maneira mais clara. Dessa
forma, para que seja viável qualquer análise que leve em conta ambas as
dimensões dos objetos, o seu simbolismo e o seu valor, o conceito de “bem-
simbólico” se figura como extremamente importante.
O trânsito de objetos simbólicos que configura a dinâmica social ocorre
somente porque as relações entre os sujeitos e os grupos se dão por meio de
“apropriações” que permitem aos que se apropriam deles reterem os valores
transmitidos por intermédio desse trajeto, possibilitando uma visão unitária e
uma identificação mútua entre os sujeitos que compartilham dos mesmos
valores adquiridos nos processos, ou práticas, de apropriação na sociedade.
Essa concepção de valores compartilhados e acumulados pelas unidades
políticas mediante operações de apropriação leva, em vez de se aderir
simplesmente à ideia de bem-simbólico, à noção de “crença” como alternativa
mais adequada para a compreensão de qualquer identidade social. Nesta ideia
há a conotação de “aceitação do valor dos critérios ou objetos
compartilhados” (BOURDIEU, 1977, p. 7), o que indica sua pretensão à
mobilização e, consequentemente, quando tal crença é descaracterizada ou
não há mais a aceitação de seu valor, desmobilização das unidades políticas.
Portanto, a força pela qual Meier aponta que a política se exerce nada
mais é do que os critérios que corroboram para a formação de espaços sociais
de aceitação. Assim, a crença, enquanto instrumento de análise que permite
entender as relações entre os simbolismos, os valores e a aceitabilidade (ou
grau de mobilização) das representações sociais, desponta como conceito
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 97

fundamental para a problemática que trata das identidades não apenas


políticas, mas sociais e culturais.

Considerações sobre a crença e a identidade política em Atenas: o

controle dos valores

Meier atribui muita importância à noção de “coisa pública” (tó koinón)


quando trata da estrutura sociopolítica grega, argumentando que isso era a
força motriz e a legitimação da atividade política grega, fundamentalmente em
Atenas, e tal ideia levou à criação de uma esfera peculiar, a pólis, por meio de
uma poderosa solidariedade vivificada pelos cidadãos por meio da consciência
de suas cidadanias, por um conhecimento e reconhecimento de práticas que
os representavam enquanto cidadãos. Esta consciência, ou identidade,
fortificava-se mascarando todas as diferenças que existiam no interior da vasta
comunidade de cidadãos, do demos, as quais perdiam seus valores frente àquilo
que representava algum benefício à polis (MEIER, 1985, p.26).
A solidariedade entre os cidadãos significava que todos os assuntos
competentes aos cidadãos eram considerados políticos. Não eram seus
interesses privados que prevaleciam na política, na esfera da pólis, mas
unicamente as necessidades materiais e simbólicas de suas existências. Esta
identificação se dava em distinção de outros agentes sociais – como mulheres,
crianças, estrangeiros e escravos –, mas todos acabavam sendo incorporados
pelas relações propriamente políticas, já que o oîkos (a esfera privada) acabava
sendo submetido aos interesses coletivos que permitiam a associação de todos
na pólis, de modos diretos como a dos cidadãos e indiretos como daqueles
acima citados. Todavia, tal associação somente foi possível graças a certas
“crenças” que foram enraizadas na estrutura política no decorrer do
desenvolvimento da pólis. Como a crença na igualdade entre todos os
cidadãos, ligada, necessariamente, à crença na justiça, pois somente os mais
98 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

virtuosos poderiam velar pelo respeito à justiça, o qual era a condição para
que fosse possível gozar plenamente da liberdade individual e política.
Originalmente, não era em nenhum regime de governo que se pensava
quando a justiça estava em questão, mas somente no estabelecimento da
segurança garantida por direito. A sansão divina foi um trabalho paralelo,
embora precioso para que os valores fundamentais para a fundição do corpo
social pudessem ser difundidos.
Os valores criados pelas práticas de solidariedade, que quase em sua
totalidade estavam sob o campo religioso helênico, possibilitaram uma
associação sem precedentes na história do mundo e que nem a posteridade
conseguiu reproduzir. A totalidade dos cidadãos coincidia com a totalidade da
pólis, a esfera privada, neste enquadramento, acabava sendo de modo indireto
incorporada à polis, devido à ambivalência do papel de seu chefe (kúrios) que
era também um cidadão (polités). O direito (dikaion) era o campo que regulava
o acesso da esfera pública ante a esfera privada, e vice-versa, a qual era regida
pelo kúrios e seu ordenamento era essencialmente fundado nos costumes
ancestrais. Por isso, a verdadeira liberdade, que deveria ser exercida pelos
homens maiores de idade, transitava por entre esses dois espaços por meio
das práticas de solidariedade, nas quais se comungavam crenças que lhes
faziam sentir como pessoas verdadeiramente livres, adquirindo a condição de
eleutheroí (homem/cidadão livre).
A identidade política, de cidadão, não negava a de homem privado, pelo
contrário, a reclamava. Foi exatamente isso que, de maneiras contrárias,
ocorreu em ambos os governos de Licurgo e de Demétrio de Falero. No
primeiro, Licurgo realizou um trabalho de revitalização de uma identidade
política nos moldes do período clássico, por intermédio, principalmente, da
efetivação de algumas reformas religiosas. A reconstrução de um kósmos que
reorganizou a estrutura de solidariedade políade fortaleceu novamente a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 99

identificação da população com as divindades protetoras da pólis, condição


necessária para uma identidade política na Grécia Antiga. Então, a democracia
ateniense se fez novamente confundir com a totalidade de seus cidadãos. Tal
mobilização fortaleceu a associação da pólis em harmonia com os costumes
tradicionais atenienses e a tensão entre a esfera pública e a privada se manteve
em equilíbrio.
Isso tudo, porém, aparentava ter uma finalidade, que circundava os
interesses comuns dos integrantes do partido antimacedônico: combater a
ameaça política que vinha do norte. Por outro lado, Demétrio de Falero,
influenciado por suas convicções peripatéticas, efetivou um programa de
reformas por meio do qual pretendia reorganizar a democracia ateniense. Os
antigos cidadãos, membros da ala antimacedônia, e que se identificavam como
pró-democráticos, afastaram-se da vida pública e, por meio da opulência,
fortaleceram as esferas privadas de seus próprios oîkos, o que colocou em
desequilíbrio a tensão entre o espaço público e o privado. Demétrio, portanto,
tentou combater tal desequilíbrio, mas, diferentemente de Licurgo, o filósofo
utilizou-se do direito, não para fortalecer os valores que já existiam
disseminados pela pólis por meio das crenças tradicionais, mas para
desacreditá-las de modo a violentar estas crenças enraizadas desde muito no
interior dos atenienses.
A legislação religiosa demetriana, dessa forma, invadiu a esfera privada
ateniense desacreditando parte das crenças que concebiam o patér/kúrios como
a suma autoridade do philía/oîkos. Algumas práticas religiosas privadas, que
com o esvaziamento da vida pública, passaram a ser mais importantes ainda
para a publicidade social necessária às abastadas famílias de Atenas. Demétrio,
contudo, refreou esses valores por meio da coerção jurídica, a fim de que
outra tensão social pudesse ser reequilibrada – aquela entre os pobres e os
ricos. Para os peripatéticos, a saúde da democracia dependia essencialmente
100 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

desse equilíbrio. No entanto, Aristóteles não era ateniense e seus costumes


diferiam daquelas necessidades tradicionais comungadas pelos cidadãos de
Atenas, e, por conseguinte, a ideia de democracia para os atenienses diferia
enormemente daquela comungada no Liceu.
O grande diferencial entre a administração de Licurgo e a de Demétrio,
portanto, foi que o primeiro soube conduzir suas convicções pessoais e as
comungadas pelos seus aliados com aquelas crenças difusas não apenas na
pólis, mas principalmente com aquelas enraizadas nos círculos privados.
Demétrio violentou valores muito importantes e que correspondiam às
necessidades atenienses, enquanto Licurgo soube controlá-los a seu favor.
Licurgo soube, além de administrar as finanças públicas em Atenas,
administrar os valores comungados pela pólis. Isto, pode-se dizer, foi o que
levou os atenienses a honrá-lo em morte logo após a expulsão de Demétrio de
Falero de Atenas.

Referências:28

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28
Todos os textos do banco de dados do Perseus Digital Library e do Hedoi Elektronikai
estão disponíveis, no primeiro, em inglês e, no segundo, em francês, além de oferecer os
textos originais em grego.
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As diferentes interpretações do texto hagiográfico:
uma análise sobre a Vita Desiderii de
Sisebuto de Toledo (612-621)

Germano Miguel Favaro ESTEVES*

A
s hagiografias, obras voltadas para a propaganda de centros de
peregrinação e para a edificação de fiéis, por visarem ao grande
público nos festejos e dias santos, podem mostrar-nos uma outra
realidade, ligada em grande medida mais aos anseios do hagiógrafo que à
exaltação do próprio santo, levando este a figurar como coadjuvante dentro
do relato.
O gênero hagiográfico cristão iniciou-se ainda na Igreja Primitiva
quando, a partir de documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas
oculares, eram registrados os suplícios dos mártires. Porém, a hagiografia
desenvolveu-se e consolidou-se na Idade Média, com a expansão do
cristianismo e a difusão do culto aos santos. Ainda hoje esse gênero continua
profícuo, tal como é possível verificar pelos diversos títulos que continuam a
ser publicados, principalmente pelas editoras religiosas.
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva apresenta uma clara explanação
que tomaremos por base. A autora mostra que são as hagiografias,

*
Doutorando em História / UNESP / Assis. Orientador: Prof. Dr. Ruy de Oliveira
Andrade Filho.
104 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...] obras voltadas, fundamentalmente, para a propaganda de


centros de peregrinação e a edificação de fiéis, por visarem o
grande público e serem, na grande maioria dos casos, redigidas por
homens cultos e ligados à Igreja. Ao mesmo tempo que transmitem
os pontos de vista e ensinamentos elaborados por intelectuais, tais
obras incorporam elementos do cotidiano das pessoas para que
suas mensagens se tornem mais adequadas e compreensíveis.
(FRAZÃO DA SILVA, 2001, p.135-172).

A autora ainda completa, em outra passagem, que era também o


objetivo da obra:

[...] propagar os feitos de um determinado santo, atraindo, assim


ofertas e doações para os Templos e Mosteiros que os tinham
como patronos; produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas
missas como nos ofícios monásticos; para a leitura privada ou nos
textos de escola; instruir e edificar os cristãos na fé; divulgar os
ensinamentos oficiais da Igreja, etc. (FRAZÃO DA SILVA, 2001,
p.167).

Verificamos, assim, que essas obras, atendendo a uma intenção e


função social, eram voltadas, fundamentalmente, para a propagação de
concepções teológicas, modelos de comportamento, padrões morais e valores.
Estas características eram postas por meio da narração dos feitos de um
homem que é tido como santo e dos elementos que estão vivamente inseridos
na sua vida ou à sua margem. Para completar, essas vidas de santos oferecem
para o historiador dados de enorme interesse. Refletem quadros do ambiente
social à sua volta com grande vivacidade e brilho, permitindo, desta forma,
uma entrada mais segura e direta nas condições reais de existência da
sociedade do que outros tipos de fontes, tais como as legais (MORENO, s/d,
p.12).
André Vauchez mostra o personagem central da narrativa, o homem
santo, como uma figura que estabelecia o contato entre o céu e a terra, e que
encarnava a maior realização do homem na Idade Média. O interessante a se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 105

notar em relação aos santos foi a busca que estes empreenderam a fim de
encarnar em sua pessoa os sofrimentos de Cristo ou os milagres análogos por
ele realizados (Imago Christi), com isso, obtendo entre a população em si um
grande sucesso, graças à sua eficácia. É, não obstante, um morto excêntrico,
cujo culto se aplica em torno do seu corpo, do seu túmulo e de suas relíquias;
colocava o seu poder sobrenatural mediador a serviço dos homens e, em
primeiro lugar, dos menos brindados pela sorte, como doentes e presos; o
Santo apresenta-se como o homem das mediações bem sucedidas (LE GOFF,
1989, p.24). O santo é oriundo, na maior parte das vezes, de grupos
aristocráticos e proprietários de terras, goza de um patrimônio de
conhecimentos e relações que pode colocar utilmente a serviço dos humildes,
quer se trate de obter do poder civil a redução de pesados encargos ou a
libertação de prisioneiros injustamente detidos (VAUCHEZ, 1987, p.291).
Os pedidos que são dirigidos ao homem santo, em geral pelas
comunidades, vão desde a libertação dos males de que são afligidos (a doença,
a miséria, a guerra), até o apaziguamento das tensões existentes no seio dos
grupos e entre os clãs. E é neste domínio que o santo é induzido a empenhar-
se nos mais duros combates, que o colocam em conflito direto com os
demônios, ou seja, com aqueles que destruíam a relação harmoniosa existente,
precedentemente, entre o homem e seu ambiente (VAUCHEZ, 1987, p.291).
A eficácia da sua ação basta para manifestar a vitória de Deus sobre o mal.
Representa uma possibilidade de salvação. O pecador, oprimido pelo remorso,
está seguro em encontrar no homem de Deus o perdão de seus pecados, e
vice-versa. Os grandes Santos atraem para si um grande número de aleijados,
penitentes ávidos de perdão e consolo espiritual. No mais, Vauchez completa:
“[...] os fiéis não esperam do homem santo nem um discurso nem a
transmissão de um saber: querem milagres” (VAUCHEZ, 1987, p.292).
106 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Tendo em vista esses aspectos, é dito que a figura do santo contou com
uma grande popularidade sociorreligiosa ao longo da Antiguidade Tardia tanto
nos reinos romano-germânicos ocidentais como no Oriente bizantino. Sua
busca incessante pela santidade e pela perfeição evangélica fazia do homem
santo um modelo ideal para populações localizadas à sua volta, que o viam
como autêntico sucessor dos antigos deuses e heróis locais pagãos (BROWN,
1981, p.5). O relato hagiográfico ainda pode nos apresentar uma importante
fonte para contemplar diferentes esferas sociais da vida quotidiana em seu
contexto. A obra literária medieval, na qual se enquadra o relato hagiográfico,
como nos mostra Fernando Baños Vallejo, é um conjunto de significações
que remetem a códigos de uma natureza muito diversa (linguísticos),
relacionados com a literatura latina, ideológicos, filosóficos, teológicos e
sociais) (BAÑOS VALLEJO, 1989, p.15).
Para tornar inteligível a proposta deste estudo, é necessária a análise do
contexto em que se insere a fonte trabalhada. A época de produção da Vida e
Martírio de São Desidério1 enquadra-se dentro do chamado período visigodo,
que se estende do século V até o começo do século VIII. Dentro deste
recorte, o foco recairá, como foi dito acima, sobre a Monarquia Visigoda
Católica e, mais especificamente sobre o período conturbado que compreende
o reinado de Sisebuto 612-621, como momento em que se produziu o relato
hagiográfico, e sobre os elementos que permeiam a época do monarca, fatos
históricos que se encontram interligados e explícitos na hagiografia.
Com o abandono oficial do arianismo por Recaredo (586-601), em fins
do século VI, a fé católica transformou-se como fundamento ideológico da
1
VITA VEL PASSIO SANCTI DESIDERII A SISEBUTO REGE COMPOSITA. In:
Ioannes Gil. Miscellanea Visigothica. Analles de la Universidad Hispalense: Publicaciones
Universidad de Sevilla 1975. A partir de agora citaremos a Vita Desiderii somente como
VD acompanhado do capítulo correspondente. Utilizamos como referencial a tradução de
Jose Carlos Martin Iglesias SISEBUTO DE TOLEDO. Vida y Pasión de San Desiderio
(trad. J. C. Martín). In: CORDOÑER, C. (Dir.). CD-ROM Escritores Visigóticos y Mozárabes
Digital. Fundación Ignacio Larramendi.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 107

sociedade do reino Visigodo. George Duby relata que, de fato, enquanto


ideologia, o cristianismo não se apresentava como um mero reflexo do que era
vivido, mas como “um projeto de ação sobre ele” (DUBY, 1979, p.17).
Ruy de Oliveira Andrade Filho mostra que é clara a intenção
estabilizadora das palavras do III Concílio de Toledo, de 589, quando expõe
que Deus incumbira a Monarquia do “Fardo” do reino em “proveito dos
Povos” (ANDRADE FILHO, 2002, p.82). Para tanto, completa Ruy, o
projeto de ação sobre essa realidade passa pela “verdadeira fé”, mediante os
cuidados do rei (ANDRADE FILHO, 2002, p.82). A composição do reino
passava a ser entendida como o conjunto de nações que não era mais o
Império, mas a Igreja, unidas pela fé (ANDRADE FILHO, 2002, p.84).
Desde então, procurou-se levar a cabo o trabalho de elaboração de uma teoria
política, que buscava garantir a Monarquia mediante um sistema teológico, em
que ganham destaque as ideias de Isidoro de Sevilha (ANDRADE FILHO,
2002, p.84). Essa aproximação entre governo laico e Igreja se torna
especialmente essencial para a Monarquia, uma vez que o caráter eletivo da
realeza contribuía para sua instabilidade, visto que o reino visigodo de Toledo
é pleno de deposições e revoltas (ANDRADE FILHO, 2002, p.84). Mas, até
onde poderia chegar essa aproximação? E até onde a instabilidade referente ao
caráter eletivo da realeza pode chegar? Que meios podem ser usados para
reduzir ou reverter tal quadro?
A Vida e Martírio de São Desidério enquadra-se neste contexto; ainda
mais, mostra-nos uma forte ligação e interesse do hagiógrafo com a religião, o
cristianismo niceano e com a produção literária que se encontrava a cargo do
influente bispo de Sevilha, Isidoro. Tendo isso em vista, sua atividade literária
não pode ser dissociada da ideia de que o monarca tem uma dupla missão –
uma política e outra religiosa –, como um Rei Cristão e como um Católico
Cristão (FONTAINE, 1980, p.97). Como Recaredo, o novo Constantino,
108 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Sisebuto sentiu-se ser o herdeiro do primeiro imperador cristão e entendeu


sua missão, de tal modo que seus elementos morais, religiosos e políticos
estão inextrincavelmente ligados. Ele é, assim, um ativo colaborador na
renascença Isidoriana, que tem como intuito, nada menos que a reconstrução
da vida civil e religiosa na Espanha Visigoda (FONTAINE, 1980, p.97).
As relações entre o reino Franco e o Visigodo, nos anos que antecedem
o reinado de Sisebuto, foram de grande hostilidade. Talvez isso tenha
influenciado o pensamento do monarca a tratar sobre este assunto,
pontuando e punindo os reis francos da época ou expondo as reais intenções
e o posicionamento que ele tinha sobre o período tratado na obra. A
estratégia pode ser vista, também, como a preservação da autoridade e
prestígio dos monarcas visigodos que sobrevivem apoiados em seus valores,
tanto os religiosos quanto os ligados aos grupos nobiliárquicos, e que, ao
mesmo tempo, questionam a legitimidade dos reis vizinhos.
Tendo essa breve explanação em vista, uma análise sobre o corpo da
fonte hagiográfica aqui tratada pode nos levar a uma abordagem direcionada à
compreensão de diversos aspectos que circundavam o reinado e as aspirações
do rei Sisebuto, que estão descritas no texto hagiográfico, colocando em
destaque as relações entre Igreja e Monarquia.
Desse ponto de vista é que trabalhamos a figura do hagiógrafo, aquele
que concebeu o relato e algumas situações que permeiam a sua vida e suas
influências no momento da escrita. Nesse sentido, destaca-se a proposição de
Michel de Certeau acerca da análise do conteúdo hagiográfico:

Do ponto de vista histórico e sociológico é preciso retraçar as


etapas, analisar o funcionamento e particularizar a situação cultural
desta literatura. Mas o documento hagiográfico se caracteriza
também por uma organização textual na qual se desdobram as
possibilidades implicadas pelo título outrora dado a este tipo de
relato. Deste segundo ponto de vista, a combinação dos atos, dos
lugares e dos temas indica uma estrutura própria que não se refere
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 109

essencialmente “aquilo que passou”, como faz a história, mas


“aquilo que é exemplar”. Cada vida de santo deve ser antes
considerada como um sistema que organiza uma manifestação
graças à combinação topológica de “virtudes” e de milagres. (DE
CERTEAU, 1997, p.267).

Com relação a Vita Desiderii, fonte aqui trabalhada, temos algumas


considerações que podem ser, no decorrer do estudo, de grande valia para
uma compreensão mais exata do relato hagiográfico.
A Vita Desiderii insere-se em uma categoria na qual estão os martírios,
as passio, com relação à vida e à morte do homem sagrado, o santo. Neste
caminho, como mostra Fernando Baños Vallejo, com relação à composição
desta estrutura:

A primeira estrutura característica das passiones consiste entre o


enfrentamento de dois grupos (mártires e perseguidores) e suas
conseqüências concretas: a detenção, o interrogatório e o martírio
(BAÑOS VALLEJO, 1989, p.38).

Essa primeira colocação mostra-nos, mesmo que brevemente, o


conteúdo geral do martírio e como esse gênero hagiográfico se apresenta.
Ampliando a análise, podemos vislumbrar que existem algumas características
mais intrínsecas que podemos somar ao nosso estudo. Como coloca De
Certeau:

A vida de santo indica a relação que o grupo mantém com outros


grupos. Assim o “martírio” predomina lá onde a comunidade é
marginal, confrontada com uma ameaça de morte, enquanto a “
virtude” representa uma Igreja estabelecida, epifania da ordem
social na qual se insere. Reveladores são também, deste ponto de
vista, o relato dos combates do herói (santo) com as imagens
sociais do diabo; ou o caráter, seja polêmico, seja parenético, do
discurso hagiográfico, ou o obscurecimento do cenário sobre o
qual o santo se destaca através de milagres mais fortemente
marcados; ou a estrutura, seja binária (conflitual, antinômica ), seja
110 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ternária (mediada e “em equilíbrio”) do espaço onde estão


dispostos os atores. (DE CERTEAU, 1997, p.270).

Saindo do plano textual propriamente dito, temos a complexa relação


entre o autor e sua audiência. Como explica Thomas J. Heffernan (1988,
p.18), a estética no texto hagiográfico deve ter seu valor diminuído, a arte do
texto não é designada para a reflexão de habilidades individuais, de
virtuosismo, mas sim como parte de uma tradição que postula uma diferente
orientação entre autor, texto e audiência O que une autor e sua audiência é o
quanto o texto reflete a tradição que tem seu locus na comunidade. A natureza
dessa complexa relação entre autor e seu público pode revelar muito sobre a
obra com que estamos trabalhando.
Ao iniciar a análise da Vita Desiderii de Sisebuto de Toledo como
considerações preliminares, tomando como base o gênero hagiográfico no
qual se enquadra, podemos dizer que esta se encaixa, em grade medida, nos
principais topos relacionados ao martírio: o santo apresenta-se como uma
homem forte e cheio de virtudes, perseguido sem nenhum motivo por
pessoas corrompidas incitadas pelo diabo; frente a este, Deus não desampara
seu servo, o faz objeto privilegiado de seus favores, que são manifestados na
capacidade de Desidério de realizar milagres, o primeiro testemunho direto de
sua santidade, que se relaciona diretamente ao seu martírio por não ceder em
sua pregação, em favor de seu povo, aos ataques dos servidores do diabo.
Diante da análise exposta, chega o momento de abordarmos a
hagiografia dentro do contexto em que ela se inscreve, ligada diretamente aos
anseios e objetivos de seu hagiógrafo. Para tanto, elencaremos a categoria
Imaginário social, proposta por Bronislaw Backzco, que elucida a
problemática proposta para esta pesquisa no que tange à legitimação de poder.
Como aponta Backzo (1985, p.299), exercer um poder simbólico não
consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potência real, mas sim
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 111

em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela conjugação das relações de


sentido e poderio. Por um lado, as técnicas de manejo dos imaginários sociais
visavam à constituição de uma imagem desvalorizada do adversário,
procurando, em especial, invalidar a sua legitimidade; por outro, exaltavam
por meio de representações engrandecedoras o poder cuja causa defendiam e
para o qual pretendiam obter o maior número de adesões (BACKZO, 1985,
p.300).
No sistema de representações produzido por cada época e no qual esta
encontra sua unidade, o verdadeiro e o ilusório não estão isolados um do
outro, mas, pelo contrário, unidos num todo, por meio de um complexo jogo
dialético. É nas ilusões que uma época alimenta a respeito de si própria que ela
manifesta e esconde, ao mesmo tempo, a sua verdade, bem como o lugar que
lhe cabe na lógica da história (BACKZO, 1985, p.305). Assim, o poder deve
apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam a imaginação coletiva.
E é desta forma que, por meio de seus imaginários sociais, uma coletividade
designa a sua identidade; elabora certa representação de si; estabelece a
distribuição dos papéis e de posições sociais; exprime e impõe crenças
comuns, constrói uma espécie de código de “bom comportamento”
designadamente pela instalação de modelos formadores tais como o do chefe,
do bom súdito, do guerreiro corajoso, etc. (BACKZO, 1985, p.309).
Com efeito, é no próprio centro do imaginário social que se encontra o
problema do poder legítimo, ou melhor, para ser mais exato, o problema da
legitimação de poder. Como ressalta Baczko, qualquer sociedade precisa
imaginar e inventar a legitimidade que atribui ao poder, mas, em contrapartida,
todo o poder tem de se impor não só como poderoso, mas também como
legítimo (BACKZO, 1985, p.310).
Continuando nosso raciocínio, o imaginário social torna-se inteligível e
comunicável por meio da produção dos discursos nos quais e pelos quais se
112 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

efetua a reunião das representações coletivas em uma linguagem. O controle


do imaginário social, da sua reprodução, difusão e manejo, assegura em graus
variáveis uma influência sobre os comportamentos e as atividades individuais
e coletivas, permitindo obter resultados práticos desejados, canalizar as
energias e orientar as esperanças. Desta forma, graças à sua estrutura
complexa e, em especial, ao seu tecido simbólico, o imaginário social intervém
em diversos níveis da vida coletiva, realizando, simultaneamente, várias
funções em relação aos agentes sociais. O seu trabalho opera por intermédio
de séries de oposições que estruturam as forças afetivas que agem sobre a vida
coletiva, unindo-as, por meio de uma rede de significações, às dimensões
intelectuais dessa vida coletiva: legitimar/invalidar; justificar/acusar;
tranquilizar/perturbar; mobilizar/desencorajar; incluir/excluir (relativamente
ao grupo em causa), etc. (BACKZO, 1985, p.312).
Sendo assim, para garantir a dominação simbólica, é de importância
capital o controle dos meios de difusão dos imaginários, que correspondem a
tantos instrumentos de persuasão, pressão e fixação de valores e crenças. É
assim que qualquer poder procura desempenhar um papel privilegiado na
emissão dos discursos que veiculam imaginários sociais, do mesmo modo que
tenta conservar certo controle sobre seus circuitos de difusão (BACKZO,
1985, p.313).
A produção literária do monarca pode, portanto, ser entendida como
uma estratégia na qual Sisebuto, por meio de uma história exemplar que
comunga os valores ideológicos do cristianismo vigente no período, legitima
sua posição de regente do reino de Toledo frente a seus pares e aos povos
vizinhos, dentro de um contexto de instabilidade interna, ligada à sucessão
real, e externa, em relação à política com francos.
A Vita Desiderii torna-se ainda mais inteligível quando interpretada
como parte de uma unidade funcional do projeto Isidoriano: propor e mesmo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 113

secretamente impor, por meio de uma história exemplar, certa moral,


religiosidade e valores políticos que definem, para os leitores ou ouvintes
dentro e fora do reino, a ideologia Cristã dos Reis Católicos de Toledo
(BACKZO, 1985, p.98-99).
Esta proposição torna-se mais evidente quando analisamos as palavras
do próprio Isidoro no livro III das Sentenças, nos capítulos 47, 48, 49, 50 e
51.
No capítulo XLVII intitulado “Os Súditos” (De Subditis), Isidoro
mostra como Deus constituiu os homens uns sendo servos e outros
soberanos, e estes últimos devem reprimir/coibir o mal pois esta é uma das
funções do poder régio (SENTENCIAS..., 3, 47, 1)2. Na sequência mostra que
é mais benéfica a escravidão submissa que a liberdade arrogante, pois muitos
que servem a Deus encontram-se em liberdade sob o domínio de senhores
depravados e, embora não corporalmente submetidos, em sua alma são
conduzidos (SENTENCIAS..., 3,47, 3).
Tratando pontualmente a Vita, vimos que na primeira conspiração
contra o santo (VD, 4) Teodorico e Brunhilda aparecem, mesmo que
indiretamente, como participantes do ato, sem reprimir de forma alguma a
conduta indigna contra o homem de Deus. Desta forma, Sisebuto denuncia a
má conduta dos monarcas Burgúndios, mostrando que, segundo a teoria
política Isidoriana, estes não cumprem seu dever com relação ao posto que
ocupam, o dever de guiar os seus súditos no caminho do bem.
No capítulo XLVIII, intitulado “Os Prelados” (De Praelatis), Isidoro é
mais incisivo em suas palavras com relação ao mau uso do poder. Vejamos:

2
Santos Padres Espanholes II, San Leandro, San Isidoro, San Fructuoso. Reglas monásticas de
la Espanhã visigoda. Los tres libros de las Sentencias. BAC. Madrid. p.496. A partir de agora
citaremos o referido documento com o Número do Livro, o Capítulo e a passagem
correspondente.
114 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Os reis tem recebido este nome por agir corretamente, e assim,


conserva o nome de rei por agir corretamente, e o perde com o
pecado. Por esta causa, lemos nas Sagradas Escrituras que os
homens santos se chamam também reis, porque agem
corretamente, governam com sucesso seus próprios sentidos e
dominam os movimentos desordenados com o bom juízo da razão.
Justamente, pois, se denominam reis aqueles que com seu bom
governo souberam dirigir tanto a sí mesmos como a seus súditos.
(SENTENCIAS..., 3, 48, 7).

Nessas palavras, o bom rei é aquele que age corretamente e que não
sucumbe ao pecado, sabendo dirigir a si mesmo e aos seus súditos com o bom
juízo da razão e, sendo um bom rei, como mostra a passagem seguinte, é,
pois, este um favor concedido por Deus, e quando mau, resultado dos crimes
do povo, pois ao afastarem-se de Deus os povos recebem o regente que seus
pecados merecem (SENTENCIAS..., 3, 48, 11).
Na caracterização que Sisebuto faz de Teodorico e Brunhilda no
decorrer do relato hagiográfico, vemos claramente o oposto do bom monarca
de Isidoro. Os reis são caracterizados como aqueles que semeiam o mal,
aliados do demônio e de suas obras. Teodorico é nomeado como protetor do
feiticeiro (VD, 8) caracterizado como indivíduo venenoso, de memória
deturpada, cheio de vícios, com ânsia por riquezas e Brunhilda, na confissão
de Justa (VD, 9) figura como aquele que orquestrou todo o plano,
convencendo a última com sua vã persuasão levando-a à perdição eterna.
No capítulo XLIX, intitulado “A Justiça dos Príncipes” (De Iustitia
Principum), Isidoro exalta os ideais de humildade, justiça e clemência,
mostrando como seria o comportamento de um bom monarca:

O que usa corretamente a autoridade real, estabelece a norma de


justiça com os fatos mais que com as palavras. A este não exalta
nenhuma prosperidade nem lhe abate adversidade alguma, não
descansa em suas próprias forças nem seu coração se afasta de
Deus, na cúspide do poder preside com ânimo humilde, não é
complacente com a iniqüidade nem lhe inflama a paixão, faz rico o
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 115

pobre sem defraudar nada e muitas vezes desculpa com


misericordiosa clemência como, com legítimo direito poderia exigir
ao povo. (SENTENCIAS..., 3, 49, 2).

Isidoro ainda fala de como os príncipes deveriam reger seu povo:

Deus concedeu aos príncipes a soberania para o governo dos


povos, quis que eles estivessem à frente de quem compartilha a
mesma sorte de nascer e morrer. Portanto, o principado deve
favorecer aos povos e não prejudicá-los, não oprimi-los com a
tirania, e sim velar para que eles sendo condescendentes, a fim de
que seu distintivo de poder seja verdadeiramente útil e usem o dom
de Deus para proteger os membros de Cristo. (SENTENCIAS..., 3,
49, 3).

E completa:

O rei virtuoso mais facilmente se afasta do delito para dirigir-se à


justiça do que abandona a justiça para entregar-se ao delito, a fim
de que conheça que o segundo é uma desgraça fortuita, o primeiro
constitui seu ideal. Em seu propósito não deve nunca se afastar da
verdade. E se por azar acontecer de ter um tropeço, que se levante
em seguida (SENTENCIAS..., 3, 49, 4).

Palavras esclarecedoras que mostram a figura exemplar de um bom


monarca que, ao nosso ver, é perseguido por Sisebuto dentro de todo o relato.
Em diversas passagens, o monarca faz intervenções em que trata de sua
escrita, mostrando-se incapaz, exortando sua própria humildade e, por fim,
sendo indigno da salvação3. Para tratar da morte dos monarcas Sisebuto
invoca o próprio Senhor para ajudá-lo no relato (VD, 15). Mesmo que na
primeira passagem seja explícito que o monarca deva exercer a justiça mais
com fatos que com palavras, encontramos em outra obra de Isidoro o poder
da palavra no exercício pastoral. Como salienta Eleonora Dell Encine, na obra
De Ecliesiasticis Officis, embora, em sua essência, imperfeita, o registro
discursivo “constituía o canal mais adequado para entabular relação com a
divindade e fazer chegar a mensagem divina”; assim, “com argumentos
3
As passagens compreendem os capítulos 1; 6; 12; 19 e 22.
116 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

teológicos, Isidoro justificou a centralidade que concedia à palavra: ela era o


instrumento eleito por Deus para transmitir aos homens a revelação de sua
presença” (DELL’ELCINE, 2007, p.73).
Neste caminho, o trabalho de Sisebuto continua a seguir as orientações
de Isidoro que, pelo poder da palavra, torna-se um instrumento pelo qual é
transmitida a mensagem Divina.
No capítulo L, intitulado “A Paciência dos Príncipes” (De Patientia
Principum), Isidoro mostra que um príncipe justo sabe o momento propício de
corrigir seus súditos, sabendo perdoar com exemplar paciência a culpa que
cometem (SENTENCIAS..., 3, 50). A influência dos reis na vida dos súditos é
o tema principal:

Os reis com seu exemplo facilmente edificam a vida de seus súditos


ou a arruínam; por isso é preciso que o príncipe não peque a fim de
que não constitua um estímulo ao vício e sua desenfreada licença
de pecar. (SENTENCIAS..., 3, 50, 6).

Essa passagem de Isidoro pode justificar a redação da Vita por


Sisebuto. Com tal história, estaria cumprindo um dos ideais Isidorianos, o de
servir como exemplo de edificação para o povo visigodo, estimulando-os a
seguir retamente os ditames do cristianismo e tornando-se, assim, um
expoente, um monarca modelar dentro do contexto visigodo.
No capítulo LI, intitulado “Os Príncipes estão Sujeitos às Leis” (Quod
Príncipes Legibus Teneantur), Isidoro trata sobre a obrigação dos príncipes em
cumprir de maneira correta as leis, mostrando a ligação que a soberania real
deve ter com a fé e com Cristo. Assim, o prelado deixa um importante aviso:

Saibam os príncipes terrenos que têm de prestar conta a Deus e à


Igreja, a cuja proteção Cristo os confia. Porque, ora se acrescente a
paz e a disciplina da Igreja graças aos príncipes leais, ora são
arruinadas por sua causa, a isso pedirá conta Cristo, que confiou
sua Igreja ao seu poder. (SENTENCIAS..., 3, 51, 6).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 117

Nesse caminho, podemos entender a Vita Desiderii, seu conteúdo


moralizante, sua ligação com o cristianismo e os ideais de boa governança
propostos por Isidoro e como vemos inseridos dentro do relato com os
chamados Espelhos de Príncipe ou Espelhos de Reis. Sobre esse gênero
literário Nair de Nazaré Castro Soares apresenta uma definição que amplia
significativamente a explicação sobre os espelhos. Segundo a autora, desde o
séc. IV a.C. até o séc. XVI aparece série de specula principum, dirigida a
imperadores, reis, príncipes, detentores do poder senhorial ou citadino em
que, à parte o elogio e louvor dos dedicandos, há uma ética de funcionalismo
laico, com a exaltação dos fundamentos e das relações do poder, enfim toda
uma teorização política. Esta se debruça sobre o ideal do governante, suas
responsabilidades e deveres, sobre o bom governo e a melhor forma de
constituição, os conselheiros e familiares do príncipe, as normas de uma boa
administração, a formação e educação do príncipe, exemplo vivo de uma
comunidade (SOARES, 1994, p.13-14). Como afirma João Lupi (2009, p.177),
há certamente em Agostinho um esboço precursor dos espelhos dos reis cuja
primeira exposição apareceu por volta de 640, na obra de um anônimo
irlandês, intitulada Os Doze abusos da nossa época. O autor abordou temas
principais que viriam a tornar-se a espinha dorsal deste gênero de escritos:
rejeição da tirania, uso do poder real para refrear as injustiças, autodisciplina
do rei que deve ser modelo de virtudes, apoio à Igreja, escolha de homens
honestos para governar com ele (LUPI, 2009, p.178).
Ademais, esta estratégia pode ser vista como a preservação da
autoridade e do prestígio dos monarcas visigodos que sobrevivem apoiados
em seus valores tanto religiosos quanto os ligados aos grupos nobiliárquicos e
que, ao mesmo tempo, questionam a legitimidade dos reis vizinhos. O
trabalho de Sisebuto de um ponto de vista mais amplo, como assinala
118 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Fontaine, é certamente mais importante em seu uso externo do que interno


(FONTAINE, 1960, p.128). Assim, a Vita serve como meio no qual o rei de
Toledo pode intervir ideologicamente na política interna da Gália Merovíngia.
Nessa ótica, podemos analisar por que Sisebuto é tão cuidadoso,
mencionando poucos nomes, concentrando toda sua atenção na recente
explosão de ódio expressa por Clotário na presença de sua vítima, tentando
apagar todos os conflitos passados e carregar estes dois bodes expiatórios,
possuídos pelo diabo, toda a responsabilidade de um século de conflitos e mal
entendidos, permitindo que as relações entre os dois reinos tomassem outra
roupagem.
Uma breve comparação com as duas outras Vitas dedicadas a Desidério
pode reforçar nossa colocação. Posteriormente ao relato de Sisebuto, temos a
Passio Sancti Desiderii episcopi et martyris, obra de um anônimo clérigo de Viena
que escreveu no século VIII, e a Passio Sancti Desiderii episcopi Viennensis obra
do bispo Adão de Viena datada, aproximadamente, do último quarto do
século IX4.
Na obra do bispo anônimo de Viena deparamo-nos com um relato
encaminhado exclusivamente à edificação moral de sua comunidade
monástica. Ainda que esse relato guarde certa similitude com o relato escrito
por Sisebuto, não encontramos, como assinala Díaz e Díaz, uma tragédia
espiritual, cujo intuito é mostrar o crime e o castigo dos perseguidores de um
inocente, que dá testemunho de sua fé e que enfrenta a maldade de
governantes tirânicos, mas, pelo contrário, deparamo-nos com uma
modalidade hagiográfica simples, baseada no claro e escuro, que tende, de um
lado, a exaltar os indubitáveis méritos de um mártir relativamente
contemporâneo e, de outro, a fustigar as incontáveis maldades de sua odiosa
perseguidora, a rainha Brunhilda (DÍAZ Y DÍAZ, s/d, p.220).
4
DÍAZ Y DÍAZ. Três biografias latino medievales de San Desidério de Viena ( traduccion y notas)
Universidad de Granada.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 119

Já a obra do Bispo Adão de Viena se diferencia dos outros dois relatos


hagiográficos anteriores. Adão não se interessa em narrar a vida, os milagres e
o martírio de São Desidério, mas, sim, como ponto central, a piedosa disputa
que mantiveram os habitantes de Viena e de Lion pela organização das
relíquias do santo e, ademais, o translado de seus restos mortais (DÍAZ Y
DÍAZ, s/d, p.222).
Desta forma, vemos na Vita Sancti Passio Desiderii uel Sisebuto Rege
Composita, a obra de um monarca letrado, que dentro de um contexto de
instabilidade monárquica, de desentendimento com os povos vizinhos e
aproximação entre Igreja e monarquia, produz um relato exemplar que
explicita tanto sua figura como bom regente, por meio de seu discurso,
legitimando seu poder, quanto a figura de bom cristão, que comunga com a
religião e seus ideais.

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ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 121

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Da Quanta Cura (1864) de Pio IX a Rerum
Novarum (1891) de Leão XIII: os discursos entre
afastamentos e aproximações com a modernidade

Carolina de Almeida BATISTA*

B
aseado em estudos sobre a hierarquia da Igreja Católica, no que diz
respeito a sua chamada autocompreensão (MANOEL, 2004)1, este
trabalho tem como objetivo estudar as relações, mudanças e
direcionamentos assumidos pelos discursos dos Pontífices Pio IX (1846-1878)
e Leão XIII (1878-1903), analisando suas especificidades no período de 1864,
com a publicação da encíclica Quanta Cura, que condenava os erros da época
(modernidade2), a 1891, data da publicação da encíclica Rerum Novarum, que
buscava um certo diálogo com a questão social. A importância desta análise
encontra-se no interesse em se estudar a História Eclesiástica e as suas relações
com a sociedade a partir da análise de discursos.
De acordo com Aline Coutrout (1996, p. 340), os posicionamentos e as
declarações da hierarquia são formas notáveis de intervenção da Igreja na
sociedade, pois tais declarações evidenciariam o perfil de uma Igreja e suas
posturas de adesão ou rejeição de prerrogativas desta mesma sociedade. A
*
Mestranda em História /UNESP/Assis. Orientador: Dr. Ricardo Gião Bortolotti
1
Para maiores detalhes acerca da noção de “autocompreensão” da Igreja, consulte O
Pêndulo da História - tempo e eternidade do pensamento.
2
O termo moderno, segundo Le Goff, “[...] torna-se pejorativo no século XIX; os chefes
da Igreja e os seus elementos tradicionalistas aplicam-no quer à teologia nascida da
Revolução Francesa e dos movimentos progressistas da Europa do século XIX (o
liberalismo e, depois, o socialismo) quer – o que, a seus olhos, é mais grave – aos católicos
seduzidos por estas idéias ou apenas as combatam com tibieza [...].”(LE GOFF, 2003, p.
186).
124 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

relevância do estudo da História Eclesiástica está justamente em analisar estes


mecanismos de ação e reação no meio em que ela opera e é operada. Desse
modo, seguindo a ideia de grande relevância dos estudos acadêmicos no que
se refere à História Eclesiástica, a análise dos discursos produzidos nos
pontificados dos Papas Pio IX e Leão XIII proporciona um debate histórico
que evidencia, explicitamente, tal relação entre Igreja e sociedade.
Para que essa análise seja possível, é preciso o entendimento de alguns
conceitos como secularização e modernidade, entre outros. Nesse contexto, a
compreensão de um termo é extremamente necessária para tal empreitada, já
que ambos os pontífices estudados participam desta mesma autocompreensão:
o chamado ultramontanismo. Tal termo estará presente durante todo o
percurso do presente estudo, sendo refletido e discutido tanto nas
semelhanças quanto nas divergências dos discursos nos referidos pontificados.
Por enquanto, é interessante que se faça apenas alguns esclarecimentos,
os quais serão úteis mais adiante. De acordo com Tavares, ultramontanismo e
romanização possuem significados que se confundem e se completam. Nas
palavras do autor:

Romanização e ultramontanismo são termos cuja


complementaridade é tal que já os tornou sinônimos. Mas se o
primeiro termo indica a política central da Igreja, em especial a
partir da segunda metade do século XIX, o segundo se refere à
postura de parte do clero francês ao adotar as prerrogativas da Sé
Romana situada ultra-montes, ou seja, além dos Alpes.
Posteriormente, o termo passou a ser aplicado a todos aqueles que
defendiam a centralização do poder papal em detrimento do poder
civil. (TAVARES, 2006, p. 14).

São dois termos criados para uma mesma função – defender e proteger
o status da Igreja Católica – e que permeiam a Quanta Cura e a Rerum Novarum
em seus respectivos conteúdos. Porém, o que caracteriza estes documentos
como chaves de compreensão no presente estudo são, justamente, os
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 125

contornos que entrelaçam e separam os discursos através do tempo e da


dinâmica apresentada pela sociedade dentro da inflexibilidade do
ultramontanismo. Assim, procurar-se-á enfatizar a relação de afastamento e
tentativa de envolvimento com a questão social dentro da rigidez de um
processo de romanização, demonstrando-se as condições de aproximação ou
não com as ideologias seculares do século período compreendido entre 1801 e
1900.
Antes de qualquer aprofundamento do assunto a ser estudado, é
preciso que se esclareça o que foi e para que serviu o período do catolicismo
ultramontano do século XIX, do qual as encíclicas discutidas fazem parte.
Ivan Manoel (2004) define a vertente ultramontana, que ocorreu entre 1800 e
1960, como uma das autocompreensões empreendidas pelas partes
institucional e hierarquizada da Igreja Católica. Tal postura política caracteriza-
se pela aversão ao mundo moderno, pelo centralismo na doutrina católica e
pela forte tendência de superestimar a Idade Média, saudando-a como o
grande modelo de perfeição da humanidade (MANOEL, 2004. p. 9).
Percebe-se que o “progresso”3 da humanidade significou o retrocesso
da Igreja Católica, enquanto a modernidade traduziu-se como o afastamento
de Deus. De acordo com a filosofia católica, o homem voltava a dar vazão ao
seu espírito revoltoso herdado do pecado original. Neste sentido, Manoel
afirma que “[...] a busca do conhecimento racional representa, no contexto da
doutrina do cristianismo, em geral, e do catolicismo ultramontano, em
particular, uma constante renovação do pecado original.” (MANOEL, 2004,
p. 97.) Todo progresso de reconciliação da humanidade com Cristo, no
período medieval, fora perdido graças à imperfeição humana, que se desviou
do caminho da salvação, mais uma vez, devido ao livre-arbítrio do homem.

3
Para a Igreja o “progresso” tem um caráter transcendente, é o progresso da alma em
direção à salvação, mas com as filosofias laicas e secularizadas esse caráter foi banido, o
progresso torna-se essencialmente laico, como apresenta Manoel (2004).
126 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Justamente, por conta do pecado original, o homem foi submetido a uma


realidade na qual o profano e o sagrado ocupam o mesmo espaço. Assim, foi
banido da totalidade sagrada e jogado na sua inerente imperfeição, tendo que
partilhar de tempos sagrados e ordinários (ELIADE, 1996).
A necessidade da volta ao centralismo da doutrina se dava em
decorrência do abandono da própria filosofia cristã por conta das filosofias
secularizadas. De acordo com a filosofia cristã, a história é a oportunidade que
o homem tem de se redimir da imperfeição de sua natureza, ou seja, a salvação
da humanidade somente poderá ser feita com a redenção humana através da
história. Aliás, a redenção consiste na causa da própria história. Se o pecado
original não tivesse sido cometido e o mundo não tivesse sido pervertido não
haveria o porquê da redenção; portanto, a história não existiria (MANOEL,
2004). Tal redenção deve ser ditada pela Igreja, que é o corpo vivo de Deus na
terra e conduz a humanidade.
Essa volta ao centralismo da Doutrina Católica estaria, justamente, no
suposto equilíbrio da Idade Média. Já que a modernidade corroia as bases
dogmáticas da doutrina católica, como o próprio conceito de tempo, era
necessário que houvesse a volta ao ponto de equilíbrio que conseguiu manter
a humanidade o mais perto possível da salvação: o período medieval.
Os papas Pio IX e Leão XIII estão imbuídos pelos ideais
ultramontanos, reforçando, ambos, a autocompreensão. Porém, devido à
própria dinâmica temporal e espacial, presentes na segunda metade do século
XIX, os discursos papais marcam determinados envolvimentos da Igreja em
relação à questão social e, mais ainda, com as ideologias seculares.
A partir de Pio IX, percebe-se que a Igreja começava a querer intervir
na questão social. Mas tais interferências eram feitas de forma paulatina,
demorando inclusive a utilizar experiências de grupos que já vinham, há algum
tempo, praticando um catolicismo social relevante como, por exemplo, o
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 127

Bispo Von Ketteler4, a quem Leão XIII e a Rerum Novarum devem bastante.
Outra razão se encontraria na própria conjuntura do primeiro período da
segunda metade do século XIX, que proporcionava à classe operária uma
possível estabilidade econômica, sustentada fragilmente por possíveis migalhas
que caíam do advento do capital, ainda que o mesmo período seja considerado
como “século da miséria operária” (GODOY, 2006, p. 120).
As encíclicas de Pio IX, que alertavam contra o socialismo, geralmente
se confundem com aquelas que combatiam o liberalismo, justamente por
considerar um a ramificação do outro. A preocupação do Papa se concentrava
mais na tentativa de combater qualquer tipo de liberdade secular que colocaria
em risco a Igreja Católica. Em Pio IX, o capitalismo era visto como o criador
do liberalismo, que, por sua vez, não estaria restrito apenas à liberdade das
práticas econômicas, mas à liberdade de qualquer laço com a Igreja e a
religião. A seguir destaca-se um trecho da Quanta Cura, de Pio IX:

Mas, quem não vê e não sente claramente que uma sociedade,


subtraída as leis da religião e da verdadeira justiça, não pode ter
outro ideal que acumular riquezas, nem seguir mais lei, em todos
seus atos, que um insaciável desejo de satisfazer a concupiscência
indomável do espírito servindo tão somente a seus próprios
prazeres e interesses? (PIO IX, 2007, p. 2).

Marchi (1989) afirma que “Pio IX tem como característica o combate


ao liberalismo, considerando-o como mal do século” (1989, p. 52). A vitória
da burguesia legitimou uma sociedade com aspirações liberais. O mesmo autor
refere-se ao fortalecimento desse combate, em Pio IX, que gerou a
centralização da doutrina e um não estreitamento com a questão social.

4
É importante que se perceba que as origens do catolicismo social são anteriores à carta
papal de LEÃO XIII. As preocupações com a questão social foram desenvolvidas pelo
Bispo Von Ketteler, na Alemanha, considerado um relevante precursor reconhecido pelo
próprio LEÃO XIII. Tanto Zagueni (1999) quanto Marchi (1989) afirmam isso.
128 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Eric Hobsbawm (2007), por meio das suas Eras, do século XIX,
salienta que tais obras procuram evidenciar uma situação de desconforto da
Igreja perante os tipos de aspirações anticlericais em um processo
secularizante, sob o qual a sociedade se encontrava.
Hobsbawm, em suas Eras, analisa o conflito entre a Igreja e a
modernidade no decorrer do século XIX. Percebe-se que o envolvimento da
sociedade com as ideologias laicas e o pensamento secularizado desenvolve-se
conforme o alcance dos desdobramentos das grandes revoluções
(HOBSBAWM, 1998). A religião tradicional, no início do século, ainda era
muito ligada às massas, portanto, o vínculo com a Igreja Católica ainda se
mantinha forte. Entretanto, pode-se dizer que no começo do século houve
um despertar para as ideologias secularizadas, mesmo que somente por parte
de uma minoria elitizada (HOBSBAWM, 1998, p. 243).
Já na passagem da primeira para a segunda parte do século XIX, nota-
se a ebulição ocasionada pela chamada Primavera dos Povos (1848), mas também
a frustração de seu fracasso logo em seguida e a relação disso nos movimentos
de esquerda. Outro fator que contribuiu para hibernação e apostasia da classe
trabalhadora foi o advento do capital, que propiciou altas taxas de emprego,
aumentos salariais, tudo que estivesse ao alcance de contentar as camadas
populares sem prejudicar os lucros dos capitalistas (HOBSBAWM, 2007, p.
56).
Além dessa possível hibernação política, o autor acrescenta que a
descrença pública em Deus tornava-se relativamente fácil no mundo
ocidental, uma vez que muitas ideias do mundo cristão estavam sendo
solapadas pela ciência e as ideologias seculares (HOBSBAWM, 2007, p. 375.).
O diálogo com o mundo moderno pode ser considerado quase como
inexistente, como se pode notar pelas palavras do próprio autor:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 129

O catolicismo, agora totalmente intransigente, recusando qualquer


acomodação com as forças do progresso, industrialização e
liberalismo, tornou-se uma força muito mais poderosa depois do
Concílio do Vaticano de 1870 do que antes, mas ao custo de
abandonar muito de seu terreno aos adversários. (HOBSBAWM,
2007, p.382).

Hobsbawm mostra Pio IX como definidor de posições da Igreja frente


ao século XIX, apresentando-o com uma postura de extrema hostilidade à
crescente tendência liberal. Lembrando que o momento abordado pelo autor,
em tal trabalho, é um período que “[...] reside na transformação e expansão
econômica extraordinária [...]” (HOBSBAWM, 2007, p. 54), ou seja, momento
de crescente capitalização nos primeiros vinte anos da segunda metade do
século XIX. Com efeito, havia muito mais possibilidades de participação do
operário, mesmo que insignificantes para o ponto de vista burguês, evitando,
assim, uma grande efervescência de revoltas ou revoluções.
No pontificado seguinte, que abarca o último quarto do século XIX,
houve uma tentativa mais firme de envolvimento com a questão social, ao
adentrar a condição calamitosa dos operários. Um caminho sem voltas e
inevitável, que coube ao papa Leão XIII seguir, levando consigo uma
instituição milenar, a qual tentava, ao máximo, afastar-se de um estado
melindroso, devido a todo um processo de secularização que vinha lhe
assombrando e se tornando cada vez mais forte e real nos últimos séculos.
As consequências das grandes revoluções, como o avanço no âmbito
tecnológico, a mecanização da produção e, principalmente, a expansão do
pensamento secularizado, proporcionaram o crescimento da urbanização e,
consequentemente, do proletariado. O aumento das políticas democráticas
impulsionava as expansões do pensamento nacionalista e socialista, que
completavam este momento, vivido no período de Leão XIII, analisado por
Hobsbawm em A era dos impérios. Observando minuciosamente o período,
percebe-se o envolvimento e a preocupação do Papa com a dinâmica que o
130 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

mundo estava apresentando, já se atentando em traçar uma estratégia que


envolvesse mais a Igreja na esfera de um diálogo com a situação da classe
operária que, por sua vez, estava caminhando para um possível confronto
com a Igreja Católica.
Pode-se apontar como uma das possibilidades de justificativa dessa
mudança de postura, de um total afastamento para uma tentativa de
aproximação, o advento da II Internacional (1889), a qual restitui a esperança
e a confiança da classe operária junto ao parlamento de diversos países e o
crescimento e adesão ao hasteamento da bandeira vermelha junto a partidos
trabalhistas.

Desse modo, Marx oferecia aos operários uma certeza, análoga


àquela anteriormente oferecida pela religião, de que a ciência
demonstrava a inevitabilidade histórica de seu futuro triunfo. No
que se refere a isso, no marxismo era tão eficaz que, mesmo os que
se opunham a Marx, dentro do Movimento, adotavam em larga
medida sua análise do capitalismo. (HOBSBAWM, p. 191, 2005).

Com a aproximação latente da classe sempre crescente de trabalhadores


alicerçados nas ideologias de esquerda, a Igreja não poderia mais virar as
costas para tal situação, continuando com sua perspectiva de afastamento total
e a postura intransigente. Com efeito, o que sobrava do outro lado para Leão
XIII, diante da rejeição total às ideias socialistas, e parecia-lhe a mais aceitável
das correntes de pensamento em ascensão, era a economia capitalista. Antes
uma economia egoísta regida por um mercado livre que aceitasse o
catolicismo, do que um estado socialista no qual a Igreja era considerada um
narcótico que fazia a sociedade permanecer quieta e contentando-se com sua
condição.
Uma possibilidade de explicação de tal envolvimento seria justamente a
ebulição dos movimentos operários neste período, que ocasionariam uma via
de diálogo com uma situação que se encontrava intransponível: o
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 131

envolvimento operário com os ideais de esquerda. Porém, tal tentativa


acabaria por propiciar a aproximação da igreja com a própria burguesia
capitalista, já que esta se encontraria beneficiada pelos posicionamentos de
repúdio a qualquer política socialista, defendendo amplamente a propriedade
privada.
A Rerum Novarum é citada por Hobsbawm (2005) como um documento
no qual a política social é mais evidente, uma vez que nota-se a tentativa de
dialogar com tal questão. Importante ressaltar que neste período as questões
sociais encontram-se mais latentes, diferenciando-se bastante do destacado
anteriormente, acerca da Era do Capital.
A reflexão sobre tais análises pode possibilitar a compreensão da
relação intrínseca da Igreja com a dinâmica social, revelando tanto um
afastamento quanto uma tentativa de aproximação da questão social.
Portanto, a análise dos discursos expressos nos documentos dos
pontificados de ambos os Papas proporcionou a possibilidade do
entendimento da dinâmica de aproximação e afastamento da Igreja Católica
com a sociedade europeia do final do século XIX, apresentando reflexos de
transformações sofridas pela sociedade e de sua reação a essas
transformações.
A partir de uma perspectiva crítica, pode-se distinguir todo um aparato,
uma vontade de verdade, ou seja, vontade de poder, por meio de uma base
institucional que buscava controlar uma pluralidade de discursos. A Igreja
Católica pode ser abordada como uma dessas bases institucionais, ou, mais
especificamente, como a própria política ultramontana, que se caracteriza
justamente como uma vertente política, assumida por essa hierarquia romana
132 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

durante o século XIX, e que se ajusta a essa tarefa de constrangimento 5


(FOUCAULT, 1996), exercida por tal instituição.
Esta instituição faz uso da linguagem litúrgica como meio de se
relacionar, meio este que não mais estava atendendo às expectativas frente aos
fiéis. Esta crise, por sua vez, pode também ser analisada por intermédio de
Pierre Bourdieu, mais especificamente em seu trabalho “A economia das
trocas lingüísticas” (1980), no qual o autor oferece excelente contribuição.
Bourdieu analisa essa linguagem como ritual, que fixa a palavra, mostrando
que ela não pode funcionar se não forem asseguradas as condições sociais
para a sua própria difusão. Se tais condições se dificultam, a reprodução do
campo religioso cessa (BOURDIEU, 1980).
Um dos pontos que pode justificar essa crise estaria no deslocamento
da noção de verdade, mencionada por Foucault. O autor defende que “Há
sem dúvida uma vontade de verdade no século XIX, que não coincide com a
vontade de saber que caracteriza a cultura clássica [...]” (FOUCAULT, 1996),
ou seja, as verdades, ou a vontade de poder, são modificáveis e estão em um
contínuo deslocamento. Na perspectiva de Peter Berger essa crise designaria a
falta de “plausibilidade”, isto é, a perda de sentido, a ausência de significação.
Com efeito, segundo o autor, o termo “plausibilidade” é utilizado para
expressar o equilíbrio do indivíduo, enquanto ser religioso, com o seu
contexto social particular (BERGER, 1985, p. 63).
À medida que a sociedade do século XIX vai perdendo a plausibilidade
do campo religioso, a Igreja vai buscando mecanismos para normatizar a
sociedade (MANOEL, 1992) e, com isso, procura adaptar suas práticas e
5
A ideia de constrangimento de acordo com Foucault se refere ao “[...] constrangimento da
verdade com as partilhas referidas, partilhas que à partida são arbitrárias, ou que, quando
muito, se organizam em torno de contingências históricas; que não são apenas
modificáveis, mas estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um
sistema de instituições que as impõem e as reconduzem; que, ao fim e ao cabo, não se
exercem sem constrangimento, ou pelo menos sem um pouco de violência” (FOUCAULT,
1996, p. 3).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 133

modificar seu discurso. Em relação à questão social, o modo como o


liberalismo era visto pelo episcopado reforçava a tendência de distanciamento
do envolvimento da Igreja com a realidade. O pensamento liberal era visto
não só no seu aspecto econômico, mas no âmbito da liberdade a qualquer
compromisso, inclusive no da Igreja, ela não se sentia completamente
responsável pela questão social. Conforme o entendimento de Pio IX, o
liberalismo prega a liberdade das leis da religião além das leis econômicas,
restringindo o envolvimento, nesse campo, à esfera devocional, abandonando
as ações sociais mais concretas.
Segundo Marchi (1989, p. 58), Pio IX afirmava “[...] que o maior
escândalo do século XIX foi a apostasia da classe operária”. Foi justamente
este abandono da crença que a levara para a situação de miséria em que se
encontrava. Tal postura da hierarquia da Igreja dificultou a percepção da
gravidade da questão social, não dando abertura a um catolicismo social que já
vinha sendo praticado, como na Alemanha, pelo bispo D. Von Ketteler, vindo
a ser adotado somente a partir de Leão XIII, com a tentativa de diálogo sobre
a questão social. A partir da análise das fontes, procurar-se-á evidenciar essa
mudança de direcionamento, presente nos discursos de Pio IX e de Leão
XIII.
Embora Eric Hobsbawm pertença à chamada Nova Esquerda Inglesa,
uma corrente marxista, não se considera, nesta pesquisa, nenhum
impedimento do uso de tal referencial teórico em conjunto com referenciais
pertencentes à chamada História Nova, pois ele também possui congruências
com mecanismos revistos pela mesma. Em seu livro A Invenção das Tradições
(1997), o autor debate sobre o ofício do historiador e os motivos que o
levaram a estudar tais invenções. Este debate reflete sobre a necessidade da
interdisciplinaridade, destacando o campo comum a historiadores,
antropólogos sociais e vários outros estudiosos das ciências humanas. Apesar
134 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de certa aproximação, não se deve descuidar da raiz economicista do autor,


bem exposta em seu artigo “Da história social à história da sociedade”
(HOBSBAWM, 1998), no qual é possível notar a presença da história
econômica, juntamente com a noção de processo, apesar das novas tendências
que mediavam o debate.
Outros trabalhos que destacam o uso da História Nova com o
marxismo são os textos de Jacques Le Goff (2005), que ressaltam a
necessidade de trabalhos históricos que busquem aprofundar a confrontação
entre linearidade e multiplicidades. Um dos autores que caminha para uma
dialética dos “eixos históricos” é Julio Aróstegui (2006), que chama atenção
para um marxismo renovado, que tende a focar a relação dialética entre a
decisão humana (sujeito) e a estrutura.
Outros autores, como Wright Mills, apresentam a estrutura como algo
imprescindível para análise histórica. Em seu trabalho intitulado A imaginação
Sociológica (MILLS, 1965), o autor defende, fervorosamente, a análise estrutural
como fundamental para o exercício da história, sendo que o homem é um
agente social, porém, deve ser compreendido em “[...] íntima e complexa
relação com as estruturas social e histórica” (MILLS, 1965, p. 172). Mills
coloca, ainda, que a história não pode ser vista, sobretudo, como uma trapaça,
descompromissada com qualquer tipo de “verdade” (MILLS, 1967, p. 170).
Cristopher Lloyd, em As estruturas da História (LLOYD, 1995), aborda a
ideia de hermenêutica e ciência como algo não totalmente oposto, diferentes
sim, mas não contrários, ressaltando o exercício de uma dialética entre
singularidade/generalidade. É importante mencionar que sua ideia de
estrutura não alimenta a imobilidade e rigidez, mas sim a “[...] reprodução
constante e a gradual transformação das estruturas, levando à criação de novas
estruturas” (LLOYS, 1995, p. 221).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 135

Guy Bois (1990) caminha também para a profundidade do debate


historiográfico de ambas as correntes, ressaltando a importância do elemento
quantitativo como primeiro momento da pesquisa, que se completa com o
recorte e suas singularidades. Foucault (1996) também alerta para a
necessidade em se atentar para que “[...] a história não considere um
acontecimento sem definir a série de que ele faz parte, [...], sem procurar
conhecer a regularidade dos fenômenos e os limites de probabilidades da sua
emergência [...]” (FOUCAULT, 1996). A necessidade de se trabalhar as
objetividades e subjetividades expressas nos caminhos que circundam as
encíclicas são definidoras e essenciais para análise, assim como as
particularidades e mudanças pertencentes nos discursos de cada um dos
pontífices.
Ainda considera-se fundamental, nesta pesquisa, o entendimento da
chamada filosofia e doutrina católica, conforme já comentado. Com essa
preocupação, nota-se, em Eliade, uma análise a respeito do cristianismo, ou
seja, para o autor, é por meio dessa doutrina que acontece a valorização do
tempo histórico. Com efeito, o tempo deixa de ser cíclico, como nas religiões
arcaicas para a renovação do “cosmo”, passando a ser linear, conforme a
concepção de uma história irreversível (ELIADE, 1957, p. 97-98). A
temporalidade só serve para que o homem se redima dos seus pecados, pois o
tempo real de Deus é a eternidade. Leão XIII ressaltava isso na própria Rerum
Novaum, a saber:

Quando estivermos abandonando esta vida, então somente


começaremos a viver; esta verdade que a mesma natureza ensina, é
um dogma cristão sobre o qual assenta, como sobre o seu primeiro
fundamento, toda a economia de religião. (LEÃO XIII, 2007, p. 7).

Thompson também se refere ao caráter do tempo da modernidade, só


que o concebe como possuidor não de um caráter divino ou de redenção
136 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como prega a Igreja, mas com características predominantemente econômicas:


“[...] o tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta”
(THOMPSON,1998, p. 272). Tais conceitos de tempo são importantes, na
medida em que esclarecem o caráter reformador de Leão XIII sem, no
entanto, perder suas bases ultramontanas. Mette, por sua vez, concebe o
tempo como um reformador político social (METTE, 1991, p. 41). O
capitalismo continuaria a existir sem o egoísmo proposto pelo liberalismo
econômico. Pode-se dizer que Leão XIII tentou, por intermédio da Rerum
Novarum, uma conciliação entre dois tempos, ou seja, uma junção dos valores
do tempo da Igreja ao tempo do homem capitalista.
Mas, mesmo com essa tentativa, não se recuperou o tempo da Igreja,
pois os elementos sagrados se encontravam em transição na modernidade. A
fé católica, juntamente com sua filosofia, estava em franco declínio graças às
vertentes de salvações terrenas em pura ascensão. Paden (2001) explica o
caráter sagrado de tal salvação:

A história da religião é lida como a história de objetos e


observâncias tornados sagrados. Mesmo as sociedades seculares
dão enfoque sagrados a princípios como igualdade, liberdade e
democracia, incorporando essas idéias em constituições, leis e
símbolos visuais referenciados. (PADEN, 2001. p. 65).

Os paradigmas estavam em processo de mudança. A esperança de


felicidade na eternidade estava sendo substituída pelas filosofias seculares da
temporalidade. Tanto o pensamento capitalista quanto o socialista propunham
ideais que se desvinculavam da religião tradicional, buscando proporcionar um
paraíso terreno. Tal transição de paradigmas é, obviamente, repudiada pela
linha teórica da política ultramontana, por Pio IX e, em partes, por Leão XIII,
o qual tenta propor, mesmo assim, um caminho para a situação social.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 137

Gonçalves afirma que o desenvolvimento do magistério eclesiástico


progrediu muito a partir das contribuições que surgiram no pontificado de
Leão XIII e de seus sucessores:

O desenvolvimento do magistério eclesiástico compreendido nas


vertentes dogmáticas, bíblicas e da doutrina social da Igreja denota
o processo de uma instância preocupada em ser fiel à missão da
Igreja no mundo e à doutrina revelada em Jesus Cristo. E essa
preocupação apareceu contextualizada social e teologicamente, uma
vez que a doutrina social e a doutrina bíblica e dogmática
desenvolvidas nos documentos [...] jamais deixaram de revelar e
considerar o momento histórico vivido em termos de sociedade e
de produção teológica. Tratava-se então de um novo tempo
também para o magistério Eclesiástico que demonstrava estar mais
propenso a uma apologética aberta do que em épocas anteriores.
(GONÇALVES, 2006, p. 138).

Quando Gonçalves fala das vertentes dogmáticas, apresenta as


encíclicas leoninas como pontapés iniciais em todas elas. No que se refere ao
campo social, a Rerum Novarum exemplifica-o, quando desenvolve amplamente
a questão do operário rodeado de miséria e precariedade. Com efeito, ao se
referir à vertente bíblica, cita a Providentissimus Deus, expondo a autoridade
sagrada das escrituras. E, sobre o campo dogmático, o autor se depara com a
encíclica Aeterni Patris, e defende a filosofia e a teologia como meios para
busca da verdade (GONÇALVES, 2006, p. 136-137).
Ivan Manoel (2004) e Euclides Marchi (1989) serão de grande valia
nesta tarefa de identificar este caminho, proposto pela Rerum Novarum. Manoel
contribuirá para a compreensão do pensamento e filosofia católicos,
imprescindíveis para o entendimento da relação entre Igreja e sociedade,
principalmente no que se refere ao ultramontanismo. Tais análises
proporcionarão um melhor entendimento das encíclicas e das bases que a
sustentam. Manoel também analisa, em outro trabalho (1992), a relação da
encíclica leonina com o capitalismo, dando-lhe aval na Rerum Novarum.
138 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Além destes pontos, também nota-se uma postura mais enfática de


Manoel, em ressaltar a ficcionalidade das propostas de Leão XIII em relação à
solução, previsível somente no “imaginário ultramontano”. Marchi, por sua
vez, não se aprofunda nessa contradição da doutrina, estabelecida por Leão
XIII como caminho de normatização, possível somente no campo das ideias,
afastadas, portanto, das compreensões históricas (MANOEL, 1992, p. 26). O
próprio motivo que justificaria isso seria o objeto de Marchi, centralizado na
questão social no Brasil, deixando a desejar quanto às reflexões em torno do
documento leonino. Mesmo assim, Marchi traz contribuições muito coerentes
ao relacionar características de Pio IX e Leão XIII, pois, apesar de possuírem
linhas de ação divergentes, suas bases são essencialmente ultramontanas.

Referências

Fontes

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Horácio, O Poeta da Festa

Mirtes Rocha RODRIGUES *


Cláudia Valéria Penavel BINATO**

Introdução

D
o modus vivendi do poeta, como subsídio para compreendermos
seu fascínio obsessivo em cantar os temas da vida cotidiana de
modo subjetivo e consagrar-se como poeta da juventude, do
amor, da amizade, do vinho – importa gozar o dia de hoje, o colher o dia que
foge, como se fosse o último, carpe diem –, tentaremos demonstrar, por meio
da análise de alguns versos, a recorrência do tema festa que perpassa boa parte
do seu corpus poético. Com rápidas considerações acerca das diversas
ocorrências desse tema que, para o poeta é o lugar onde se cultivam todos os
valores humanos, ou seja, o amor, a música, o canto, a dança, enfim, a
amizade, pretendemos dar a conhecer alguns episódios, algumas figuras
emblemáticas da história mítica cultural romana.

Tempus Aureum

A crença vigente e generalizada no século I a.C., e que se projeta nos


séculos seguintes, de que sobre Roma pesava a ameaça de uma dissolução
*
Professora do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/
UNESP.
**
Professora do Departamento de Linguística Tda Faculdade de Ciências e Letras de Assis/
UNESP.
142 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

irreversível, era natural que suscitasse, no povo romano, a esperança e, mais


do que isso, a necessidade de ultrapassar a crise de instabilidade, de
insegurança e de consequente decadência que caracterizaram o mundo
romano naquele século. Fiel intérprete da tradição oral do povo a que
pertencia, é natural que Horácio, dando corpo ao sentimento feito de angústia
e de esperança, comumente partilhado, se dispusesse a expressar por escrito a
realidade que então se vivia.
É a esta perspectiva que tem de entender-se toda uma série de textos
que, desde Vergílio a Sêneca, passando por Horácio, Tibulo, Ovídio..., nos
deixaram referências muito significativas a um tempo que teimava em
extinguir-se – a Idade de Ferro – e a um tempo que demorava a implantar-se
– a Idade de Ouro. Tal como a Idade de Ferro tinha a caracterizá-la a guerra, a
fome e a injustiça; a Idade de Ouro, por contraste, era identificada como uma
era de paz, abundância e justiça. E para que esta nova era, correspondente a
um novo sentir do povo, ficasse reafirmada, Horácio será um dos que terão
como tarefa prioritária implantar no mundo uma nova ordem que há de
traduzir-se na extinção da guerra e na instauração da paz. Compreender-se-á,
assim, a razão por que Horácio nos fala do tempus aureum para expressar o
despontar de um novo tempo que havia de avizinhar-se da terra dos homens,
um novo tempo que corresponda a uma nova esperança, a Pax Romana.
Nesse sentido, o papel desempenhado pelo poeta, na escrita romana, é
fundamental como instrumento de legitimação e difusão de novas práticas
sociais, que foram conquistando lugar em Roma com o fim da República.
A História se desenrola em ciclos que se repetem. Muitas são as
humanidades. Começa-se no alto, no paraíso terrestre, vem a seguir a queda,
acompanhada de redenção e nova queda, e assim indefinidamente.
Primeiro surge a Idade de Ouro. Depois da Idade de Ouro, seguem,
sucessivamente, a Idade de Prata, a Idade de Bronze e, finalmente, a pior de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 143

todas: a Idade de Ferro, quando o homem se torna um lobo para outro


homem, vivendo em perpétuas guerras.
Todavia, tudo muda e vem a virada. Os deuses se apiedam dos homens
e enviam seus mensageiros para civilizá-los. Em sua missão, o enviado se
serve da poesia para transmitir sua mensagem. Só mensagem. A partir daí, é
possível uma compreensão mais abrangente ou adequada da poesia de
Horácio que se consagra o poeta da festa. Ele faz da festa o ideal da felicidade
humana, de resto, navegar não é preciso.
Ao poeta não agrada cultuar o trágico, nem o elegíaco, nem o épico. A
Horácio agradaria que o mundo, em vez de guerras, fosse um mundo de
festas. Sua preocupação fundamental é ensinar a viver bem, sem excessos.
Faz, sobretudo, da morte a grande mestra da vida, porque a morte é incerta e
inelutável. Para ele, o ser humano deve fruir a vida em plenitude; formula a
teoria do carpe diem, segundo a qual se deve viver docemente o dia de hoje,
colher o dia que foge como se fosse o último. Pouco dura a vida e menos a
juventude e a beleza.

Carpe diem

Condenados a deixar o mundo que lhes foi dado pelos deuses – como
palco privilegiado para a sua realização – os homens só têm uma forma de
perpetuar no tempo a sua memória: viver a vida. Se a vida se assemelha à flor
do campo que, mal nasce, logo traz consigo o gérmen da morte, torna-se
urgente celebrá-la. E Horácio faz isso com o seu carpe diem, agarrar a vida na
hora que passa, antes que o tempo, na sua marcha inexorável, ponha termo à
existência.
Na brevidade da vida humana, há alguns dias fugazes em que a
felicidade fulgura. É preciso colher esses dias, que se escoam, usufruí-los
como se fossem frutos da árvore da felicidade, antes que chegue a velhice e a
144 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

morte. Essa célebre teoria do carpe diem é que vai fundamentar o processo da
festa, que se goze o dia que passa – especialmente o dia da festa: carpe diem
quam minimum credula postero (1,11) “colha o dia e não te fies nunca, um
momento sequer, no dia de amanhã.”

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi


Finem di dederint, Leuconoe, Nec Babylonios
temptaris números. Ut melius quicquid erit pati!
Seu plures hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
Quae nunc oppositi debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio brevi
Spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida
Aetas: carpem diem, quam minimum crédula postero.

Tradução:

Que tu não indagues, é impiedade saber


Que fim, os deuses reservaram para mim e para ti,
Ó Leucônoe, nem consultes os números babilônios.
Quanto melhor será suportar o que quer que seja!
Ou Júpiter te concedeu muitos invernos ou o último
(este) que agora extenua o mar Tirreno de encontro
Às rochas, sê sensata, coa o vinho e limita uma longa esperança
Pelo breve espaço da vida. Enquanto falamos,
Foge o tempo invejoso. Colhe o dia (de hoje),
Quanto menos crédula no dia seguinte.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 145

Horácio é, por excelência, o poeta da festa e se considera ao mesmo


tempo um conviva satisfeito da festa que ele supõe que a vida deva ser. Então,
ele se pergunta: Como se deve viver, neste mundo, para que se obtenha o
máximo de ventura possível, dado que ninguém pode ser integralmente feliz?
Ab omni parte beatum (2,16) “Felicidade inteira, essa não há.”
Horácio medita muito sobre o assunto felicidade e apresenta uma solução
simples, aparentemente simplória, mas de profunda significação mítica e
mística: a festa que não é uma realização individual, mas coletiva, pois se
concentra no congraçamento entre amigos.
O máximo de felicidade positiva só se verifica nos dias de festa. Ele
idealiza um mundo de festas frequentes, o que começa a acontecer, quando
surge a figura predestinada de Augusto que consolida o poder, instaurando a
paz e a ordem, derramando a abundância sobre a Itália. Augusto, ao instaurar
o Império, empreende a reforma dos costumes pela volta ao mos maiorum, isto
é, aos costumes dos antepassados; o povo romano passa a viver quase em
estado perene de festa, tanto nos dias de trabalho como nos dias sacros. É o
que se verifica em Livro IV, ode 15:

Phoebus uolentem proelia me loqui


Uictas et urbes increpuit Lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
Uela darem. Tua, Caesar, aetas

Fruges et agris rettulit uberes


Et signa nostro restituit Iovi
Derept Parthorum superbis
Postibus et uacuum duellis
146 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Ianum Quirini clausit et ordinem


Rectum euaganti frena licentiae
Iniecit emouitque culpas
Et ueteres reuocauit artes

Per quas Latinum nomen et Italae


Creuere uires famaque et imperi
Porrecta maiestas ad ortus
Solis ab Hesperio cubili.

Custode rerum Caesere non furor


Ciuilis aut uis exiget otium,
Non ira, quae procudit enses
Et miseras inimicat urbes.

Non qui profundum Danuuium bibunt


Edicta rumpent Iulia, non Getae,
Non Seres infidique Persae,
Non Tanain prope flumen orti.

Nosque et profestis lucibus et sacris


Inter iocosi munera Liberi
Cum prole matronisque nostris
rite deos prius adprecati,

Virtute functos more patrum duces


Lydis remixto carmine tibiis
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 147

Troiamque et Anchisen et almae


progeniem Veneris canemus.

Tradução:

As cidades vencidas e os combates


Desejando cantar, Febo me adverte,
Ao som da sua lira, não cometa
O mar Tirreno, em minhas frágeis velas,
A tia idades, César, propiciou
Aos nossos campos abundantes messes;
A Jove restituiu os estandartes
Dos partas orgulhosos, arrancados
Aos seus templos; fechou de jano as portas,
Dominadas as guerras; à licença,
Que dos retos limites exorbita,
Pôs freio; o vício erradicou, de vez;
As antigas virtudes revocou,
Pelas quais, dantes, o latino nome,
Junto às forças da Itália, se fez grande;
Do grande império a fama e a majestade,
Amplo, estendeu, do leito onde o sol morre
Àquelas partes donde nasce o dia
Guarda do estado César, a civil
Guerra, a violência, a cólera que aguça
O gume das espadas, que inimigas
148 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

As míseras cidades faz, não mais


Hão de o nosso repouso perturbar.
Nem os que bebem do Danúbio, rio
Profundo, nem o getas, nem os seres,
Nem os infidos persas, nem aqueles
Que bem próximos ao Tânais têm o berço,
Os editos de Júlio violarão.
E nós, nos dias úteis e feriado,
Entre os presentes do jocoso Baco,
Juntos aos nossos filhos e mulheres,
Em súplicas aos deuses, rito à risca
Cantaremos, ao modo dos antigos,
Ao som da lídia tíbia, os capitães
Que só foram em virtudes excelentes,
Tróia, Anquises e quantos constituam
A alma progênie da fecunda Vênus.

(...) Longas o utinam, dux bone, férias


Praeste Hesperiae! Dicimus integro
Sicci mane die, dicimus uiuidi,
Cum sol Oceano subest.

Tradução:
Praza aos céus, o bom guia, dês a Itália
Longos dias de festa! Assim dizemos,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 149

Jejunos, de manhã; de Baco aos braços,


Quando o sol já descamba sobre o mar.

A Ode 4,11 é exemplo de como se prepara um festim. Horácio imagina


o mundo que começava a surgir com Augusto, em que o homem gozasse de
muitas comemorações:

Est mihi nonum superantis annum


Plenus Albani cadus, est in horto,
Phylli, nectendis apium coronis,
Est hederae uis

Multa, qua crinis religata fulges,


Ridet argento domus, ara castis
Uincta verbenis auet immolato
Spargier agno;

Cuncta festinat manus, huc et illuc


Cursitant,mixtae pueris puellae,
Sordidum flammae trepidant rotantes
Uertice fumum.

Vt tamen noris quibus aduoceris


Gaudiis, Idus tibi sunt agendae,
Qui dies mensem Veneris marinae
Findit Aprilem, [...]
150 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Tradução:

Tenho um tonel de vinho velho de Alba,


Que já passou de nove anos; aipo há,
Fílis, com que se tecem as coroas,
No meu jardim:

Há muita hera também com que te alindas


Quando, nos teus cabelos a ligá-los,
Na casa, a prata brilha; o altar, que enfeitam
Castas verbenas,

Pede o sangue da vítima; os escravos


Agitam-se; as meninas e os meninos
Brincam; a chama, a crepitar, o teto
Mancha de fumo.

Para que saibas a que festas vens,


Deves os idos celebrar de abril,
Dia em que se biparte o mês da deusa
Vênus marinha, [...]

Horácio pressente uma volta à Idade de Ouro, que era um mundo em


festa. Acredita que, depois de tantas desgraças, se inaugura uma nova Idade de
Ouro e entrevê, em Augusto, um homem enviado pelo Céu e participa do
processo de sua divinização, considerando-o como maior e melhor com que
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 151

os deuses concederam aos homens – Júpiter reina nos céus e o divus Augustus
reina na terra.
Nos dias de festa, livre do trabalho, Horácio sempre se pergunta
retoricamente: como celebrar um dia de feriado? “quid potius faciam dies festo”. E
só há uma resposta: organizar um festim, porque é no clima da festa que,
participando dos alegres dons de Baco, se cultivam, pelo poder do vinho,
todos os valores humanos que integram a visão de mundo do poeta: o amor, a
amizade, a conversa amena, a música, o canto, a dança.
Mas quem é o herói do festim? O herói do festim é o vinho, presente
de Baco. O vinho reconforta a alma, livra da dor e traz prazeres. O uso do
vinho se integra sempre no contexto de uma festa. Também a lira, com sua
suavidade, deve participar da festa, não os instrumentos frenéticos, selvagens,
ruidosos.
Que significa isso para Horácio? Se não vejamos na Ode 3,28:

Festo quid potius die


Neptuni faciam? Prome reconditum
Lyde, strenua Caecubum
munitaeque adhibe vim sapientiae,
Inclinare meridiem
sentis ac, veluti stet volucris dies,
Parcis deripere horreo
cessantem Bibuli consulis amphoram?
Nos cantabimus invicem
Neptunum et virides Nereidum comas,
Tu curva recines lyra
Latonam et celeris spicula Cynthiae;
Summo carmine, que Cnidon
152 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Fulgentesque tenet Cycladas et Paphum


Iunctis visitat oloribus;
Dicetur merita Nox quoque nênia

Tradução:

Que farei de melhor


No dia festivo de Netuno
ó Lide, infatigável, põe
para fora o Cécubo escondido
e faz violência à cautelosa parcimônia
Percebes que o meio-dia declina
e entretanto,como se o dia alado parasse
Te absténs de tirar da adega a ânfora
que descansa desde o consulado de Bibulo?
Nós cantaremos alternadamente Netuno
e as verdes cabeleiras das Nereidas
tu cantarás, na curva lira
Latona e as flechas da célere Cíntia.
No fim do canto (se celebrará) aquela
que possui Cnido e as cícladas fulgentes
e que, atrelados os cines, visita Pafo. A Noite
também será celebrada com merecidas
canções embaladoras.

Nesse poema fica bem claro que Horácio é mesmo o poeta da festa:
Festo quid potius Neptuno faciam? “Que farei de melhor no dia festivo de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 153

Netuno?”. No dia santo de Netuno, a principal das divindades da água,


considerado o deus da fecundidade e da vegetação, ele pede a Lide, uma das
suas citaristas, que retire do fundo da adega um velho e precioso Cécubo (um
dos melhores e mais célebres vinhos da região do Lácio, considerado
digestivo) muito bem escondido, reservado para ocasiões especiais.
Como se percebe, o vinho é o centro de uma celebração litúrgica.
O poema documenta que havia hora para começar a festa. Só se bebe
depois do pôr do sol, nas vésperas dos dias de festa. Não se bebe além do
nascer do sol. A festa podia se estender do pôr do sol ao nascer do sol. E
documenta, também, o que se cantava, ao som da lira. Nessa noite festiva, ele
e Lide cantam particularmente Netuno, o deus do mar e as Nereides, que
personificavam os fenômenos marinhos. Homenageia-se Latona (mãe de
Apolo, deus da luz); Diana, também chamada de Cíntia, protetora dos partos
difíceis, sendo ela mesma filha de um parto quase impossível; Vênus, deusa do
amor e da beleza, tem templos célebres que visita, sempre, em carros puxados
por cisnes. E em honra da Noite, divindade primitiva, que gerou o Dia, o
Destino, a Morte, o Sono e os Sonhos, o Sacarmos, a Vingança, a Miséria, o
Engano, a Velhice, a Discórdia, a Ternura, cantam-se cantigas populares.
Onde mais Horácio encontra os modelos de sua festa?
A par dos feriados oficiais, que eram numerosos, dos banquetes
mitológicos de Júpiter no Olimpo, quando se reúnem os deuses para saborear
o nectar Jovis optatis epulis impiger Herculis (4,8) “Assim, o infatigável Hércules aos
festins de Jove assiste”; acrescentam-se os particulares como o dia de
aniversário, o reencontro de um amigo querido, o pagamento de uma
promessa.
154 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Miraculum

Pode-se admitir que o seu carpe diem e o seu realce ao tema festas sejam
as máximas orientadoras de Horácio, que testemunha a presença contínua de
milagres em sua vida: ainda menino, a brincar sozinho pelas trilhas do monte
Vulture, bem longe de casa, sentindo-se cansado, deita-se no chão e
adormece. Nisso, vieram do céu pombos fabulosos que o cobrem com ramos
de ouro e murta, protegendo-o contra as serpentes e os ursos que infestavam
a região; em outra ocasião, salva-se, por intervenção divina, da queda de uma
árvore nefasta que quase o mata.
Com frequência, recorda que sobreviveu à batalha de Filipos, na
Macedônia, por um favor divino. Aí pressentindo a derrota, para não morrer,
abandona o escudo (ele ocupava um alto cargo de tribuno militar encarregado
de comandar o exército) e foge sob o amparo de Mercúrio (deus dos
viajantes) e das Musas que o escondem dentro de uma densa nuvem. Esse
episódio, ele conta repetidas vezes, não por cinismo, descaramento, mas para
simbolizar sua repulsa radical pela guerra funesta funebre bellum. Quando
voltava da Grécia para a Itália, escapa, por milagre, de um naufrágio. E ainda,
uma vez, cantando seu amor por Lálage, defronta-se com um terrível lobo
que, no entanto, foge dele, desarmado (1,22):

Integer vitae scelerisque Purus


Non eget Mauris iaculis neque arcu
Nec vennatis gravida sagittis,
Fusce, pharetra,

Siue per Syrtes iter aestuosas


Siue facturus per inhospitalem
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 155

Caucasum uel que loca fabulosus


Lambit Hydaspes.

Nanque me silva lupus in Sabina,


dum meam canto Lalagen et ultra
terminum curis vagor expeditis,
fugit inermem,

Quale portentum neque militaris


Daunias latis alita aesculetis
Nec Iubae tellus generat, leonum
Arida nutrix.

Pone me pigris ubi nulla campis


Arbor aestiua recreatur aura,
Quod latus mundi nebulae malusque
Iuppiter urget;

Pone sub curru nimium porpinqui


Solis in terra domibus negata:
Dulce ridentem Lalagen amabo,
Dulce loquentem.

Tradução:

O íntegro de vida e isento de crime,


Não precisa dos dardos mauros, nem do arco,
156 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nem da aljava carregada de setas


Envenenadas, ó Fusco,
Quer deva fazer uma fiagem pelas Sirtes abrasadoras,
Quer pelo Cáucaso inóspito,
Ou pelos lugares que o fabuloso
Hidaspe lambe.
Com efeito, um lobo, na selva Sabina,
Foge de mim inerme, enquanto cato a minha Lálage
E vagueio, livre de cuidados,
Além das minhas divisas.
Um tal monstro nem a Dáunia belicosa
Cria, em seus vastos carvalhais,
Me, gera a terra de Juba. Árida
Nutriz de leões.
Põe-me em campos estéreis onde nenhuma árvore
Seja reconfortada por uma estiva aura,
Parte essa do mundo que as brumas e um Júpiter
Nocivo acossam;
Põe-me, muito perto, sob o carro do sol,
Numa terra recusada pelas casas,
Amarei Lálage que ri docemente,
Que fala docemente.

Considerações Finais

A festa é a ideia-mestra que dirige toda a obra de Horácio que, quando


descreve explicitamente uma festa, trata dos elementos que a integram. Por
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 157

isso, com toda razão, ele define a si mesmo como poeta da festa: nos convivia
cantamus “nós cantamos os festins...”.
Finalmente, parece podermos concluir que há, em Horácio, a presença
de um engajamento político e uma identificação natural para com a política de
Augusto, pois sua obra, principalmente as Odes, as suas festas manifestam,
denunciam um veículo, uma propaganda da ideologia imperial que se emerge a
partir de Augusto. Suas festas explicam, diríamos até justificam, os métodos
pelo princeps para assegurar a paz.

Referências:

BICKEL, E. Historia de La Literatura Romana. Trad. José M. D. R. Lopez.


Madrid: Gredos, 1982.
BIGNONE, E. Historia de La Literatura Latina. Trad. Gregório Halperin.
Buenos Aires, Losada: 1952.
BULFINCH, T. O Livro de Ouro da Mitologia. Trad. David Jardim Jr, 22ª ed. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2001.
CURTIS GIORDANI, M. História de Roma. Antiguidade Clássica II. 9ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1987.
FERRAZ, B. P. de Almeida. Horácio. Odes e Epodos. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
PARATORE, E. Historia da Literatura Latina. Trad. Manuel Losa. S. J. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
PICHON, R. Histoire de La Litterature Latine. 5ª Ed. Reévue. Paris: Hachette.
1912.
TRINGALI, D. Horácio Poeta da Festa. Navegar não é preciso. São Paulo: Musa
Editora, 1995.
VELLOSO, A. A. Tradução Literal das Odes de Horácio. Belo Horizonte: Ed.
Graphica Queiroz Breyner Ltda, 1985.
1.2

Questões religiosas na América Portuguesa e no Brasil.


Impressões e apontamentos dos missionários
jesuítas quanto aos costumes e à
etiqueta japonesa

Mariana Amabile BOSCARIOL*

O
século XVI, na Europa, foi marcado por um momento de
renovação, de revisão de conceitos estéticos, religiosos,
científicos. Após um período de dominação profunda da religião
na vida cotidiana e política, surgiram movimentos de reforma religiosa que
visavam a uma ruptura da supremacia católica vigente. Como forma de
superar essa situação, reavendo seu controle, a igreja católica deu início a um
outro movimento, o da contra-reforma. Uma das instituições que faziam parte
desse movimento é a Companhia de Jesus, uma ordem religiosa que buscava
reaver a força do catolicismo.
As descobertas geográficas dos séculos XV e XVI abriram novos
horizontes ao conhecimento do homem religioso. Com o descobrimento do
Japão, território que possuía uma taxa demográfica muito superior a de
Portugal, os eclesiásticos portugueses identificaram uma possibilidade de
conversão de novos fiéis para a “santa igreja“, que há tempos perdia
gradativamente seus membros. Enviando os primeiros missionários nos anos
seguintes ao descobrimento dessa região, deram início a uma campanha pela
cristianização desse outro país. Idealizadores desse projeto, os representantes
jesuítas eram insistentes na defesa daquilo que pregavam, tendo obtido

*
Mestranda em Letras/USP/São Paulo. Orientadora: Dr.ª Eliza Atsuko Tashiro.
162 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sucesso nessa investida em outras regiões pertencentes à rota comercial de


interesse português no oriente: Goa, Macau, etc. Apesar de terem conquistado
saldos positivos provenientes da campanha nesses outros territórios asiáticos,
não ocorreram na mesma dimensão que no Japão. Nesse país, conseguiram
um número de conversões que não se compara com nenhuma outra ocupação
na Ásia, e em um período relativamente curto. Resultados que estariam
vinculados não apenas às características japonesas, sobretudo quanto à
disciplina, mas também a uma mudança de postura, já que

no final do século XVI, os portugueses haviam majoritariamente


abandonado as atitudes e a mentalidade de conquistadores que os
inspiraram nas décadas iniciais de sua expansão na Ásia e estavam
prioritariamente interessados no comércio pacífico e na
conservação do que já haviam conseguido. (BOXER, 2002, p. 93).

A realidade do Japão, quando se deu o contato com os portugueses, em


1543, era a de um intenso conflito interno, marcado pela disputa entre as
forças dominantes que almejavam a liderança no processo de conquista e a
consolidação da reunificação japonesa. Esse conflito deu margem, da chegada
às primeiras décadas de contato, à realização do trabalho jesuíta. Por se tratar
de um período conturbado, de instabilidade e sem uma centralização muito
clara, a população japonesa, no geral, vivia em uma realidade dispersa e frágil,
possibilitando a eficácia do dinamismo dos ocidentais em seus
empreendimentos, que atingiram diversos elementos fundamentais da vida no
Japão. Grande parte dos trabalhos e livros elaborados, que abordam a história
do Japão e, em especial, o período de interação luso-japonesa, costumam
empregar definições que têm como base elementos europeus, como: o senhor
feudal, feudalismo, feudo, etc. Por entender que são termos pertencentes a um
período particular da história europeia – a qual apresenta características
próprias e bem distintas – essas formas de nomenclatura não serão aqui
empregadas. Esse tipo de recurso acaba por transportar para os territórios que
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 163

passaram pela interferência europeia elementos próprios da sua cultura,


fortalecendo um caráter eurocêntrico de se contar a história. Isso pode acabar
distorcendo, em certo ponto, o teor peculiar de cada caso.
A forma de ação da Companhia possuía, principalmente, um caráter
missionário e educacional, em que buscavam na linguagem, nas artes e na
cultura em geral, uma forma de atingir os seus objetivos. Mas, o método no
qual se embasavam não era unânime, não havendo entre os missionários que
atuavam nessa missão uma política ideal a ser seguida rigorosamente por
todos os seus membros, ressaltando-se, nessa circunstância, questões pessoais
de cada missionário que, diante das adversidades ou das situações enfrentadas,
marcava métodos inovadores (COSTA, 1998, p.75). A ocupação japonesa,
assim como de outros territórios ocupados, sofria a interferência de uma
comunidade fundamentalmente colonial.
Assim, esses locais possibilitavam uma investida quanto a um projeto
de reprodução da sociedade europeia, não apenas a partir de seus princípios
religiosos, mas também cotidianos. Situação essa que compreendia, então, a
adaptação por parte dos nativos à cultura europeia, imperando esse caráter
eurocêntrico. Nesse espaço descontínuo de atuação, que era o japonês, em
uma linha diferente, alguns missionários adotaram uma postura que exaltava,
justamente, a cultura nativa, como forma de encontrar um espaço de
reconhecimento e aceitação maior por parte da população alvo. Situação essa
entendida como de acomodação cultural, que nas palavras de João Paulo de
Oliveira e Castro1 significa um processo de inculturação, ou seja, o esforço em
converter esses nativos ao cristianismo partindo da adaptação do próprio

1
Descrição feita pelo professor na Enciclopédia Virtual da Expansão Portuguesa do Centro de
História de Além-Mar (CHAM), constando no seguinte endereço:
www.fcsh.unl.pt/cham/eve. João Paulo Oliveira e Castro é professor da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e é membro do CHAM, pelo
qual assumiu a posição de investigador responsável do projeto “Jesuítas portugueses no
extremo oriente nos séculos XVI- XVII” pelo mesmo centro de pesquisa.
164 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

missionário a essa outra cultura, valorizando sua peculiaridade. Só em um


período bem posterior a esse primeiro momento da missão jesuíta que esse
modelo seria mais abertamente adotado, sendo até então defendido por uma
minoria que sufocava em meio ao método oficial da Igreja. Querer
transformá-los em europeus era uma atitude equivocada, fazendo parte do
sucesso, nesse processo de conversão, a compreensão e tolerância das suas
especificidades culturais. Denominando com o tempo a acomodação cultural
como fator indissociável da Companhia de Jesus e em especial da ocupação
asiática (DINIZ, 2007, p.24).
Quando se levanta a questão da adaptação desse missionário, europeu
por excelência, mesmo tendo, na maioria dos casos, vivido a maior parte de
sua vida nas missões do oriente, há que se levar em conta que existe uma
situação muito delicada, já que muitos costumes e preceitos da vida japonesa
não combinavam com o que era pregado pela doutrina cristã. Sendo assim,
seria necessário que pesassem o que seria passível de adaptação e o que não
seria aceitável quanto à conduta que deles era esperada, enquanto religiosos.
Questões que são intrínsecas à realidade japonesa como a morte, que não
possuía o mesmo caráter do ocidental, e a sexualidade, que de longe não era o
ideal pregado, sobressairiam como grande preocupação por parte dos
missionários. A relação das japonesas com a sexualidade é relatada pelo
missionário Luís Fróis no seguinte trecho do capítulo II do seu tratado
Europa-Japão:
Em Europa a suprema honra e riqueza das mulheres moças é
a pudicícia e o claustro inviolado da sua pureza; as mulheres
de Japão nenhum caso fazem da limpeza virginal nem
perdem, pola não ter, honra nem casamento (FROIS, 1993,
p.68).
O que em muito contradiz o ideal cristão de pureza, em que a
virgindade tem papel de destaque, revelando a honra e as virtudes dessa
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 165

mulher, que deveria manter-se casta até o dia de seu casamento para ser
considerada mulher direita.
Já questões mais simples de adaptação, como o fato de deixar de comer
carne vermelha por não ser, por lá, um costume e causar certa estranheza; a
higiene, que para os japoneses era tão importante; a participação em
cerimoniais que eram valorizados pelos japoneses, como a cerimônia do chá;
e, para tanto, prestar atenção às suas normas a fim de não cometer gafes
quanto à etiqueta japonesa. O que gerava muita conturbação era, justamente,
até que ponto essa adaptação, essa aceitação de um modelo japonês, não
implicaria no desgaste e na corrupção dos preceitos defendidos pelo
cristianismo.
Essas impressões e observações dos missionários referentes aos
costumes e às características dos japoneses são rastreáveis nos seus relatos e
cartas, os quais escreviam com certa regularidade, tendo como remetente
Portugal e outras regiões ocupadas, como no caso da China, onde estas cartas
eram copiadas como forma de precaução a um possível extravio ou acidente.
Essa produção literária possui tanto a função de corresponder a uma
expectativa crescente por parte da população europeia, de inteirar-se quanto a
esses mundos exóticos, como também para a formação de novos padres, que
porventura se juntariam ao contingente nessas missões asiáticas.
Neste artigo, pretende-se tratar de dois missionários, em especial, os
padres Gaspar Vilela e Luís Fróis. Gaspar Vilela (1526-1572) chegou ao Japão
com sua delegação, em 1956, ou seja, nesse primeiro momento da missão
jesuíta em território japonês, que se iniciara em 1549, caracterizada como uma
fase de aprendizado e adaptação dos missionários a essa outra realidade.
Quando se trata de um estudo sobre a presença missionária no Japão, Vilela
não recebe papel de destaque, ficando um tanto quanto ofuscado pela
grandiosidade do trabalho de outros missionários que por lá conquistaram
166 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

resultados positivos em maior escala, no mesmo período. Não acompanhou a


primeira leva de missionários a desembarcarem no país, mas, por ter ido nos
anos subsequentes, participou desse momento inicial de formulação e
fundação da campanha de catequização jesuítica em território japonês, tendo
convivido com nomes importantes, como é o caso de Luís Fróis. Fróis (1532-
1597), aos 16 anos de idade, se juntou à Companhia de Jesus e seguiu para a
missão que era desenvolvida na Índia, tendo chegado ao Japão em 1563 e por
lá permanecido até sua morte, em 1597, com exceção de uma breve viagem a
Macau, de 1592 a 1595. Durante sua estadia no Japão Fróis escreveu sua obra
mais famosa, a longa Historia de Japam, concentrada em cinco volumes, na qual
conta a história da missão no Japão, desde sua fundação por Xavier até 1593.
Além desses volumes, Fróis elaborou um texto muito peculiar e ímpar quando
se trata de um trabalho de comparação civilizacional entre os europeus e a
população japonesa, originalmente chamado de:

[...] tratado em que se contém muito sucinta e abreviadamente


algumas contradições e diferenças de costumes antre a gente da
europa e esta província de Japão. e ainda que se achem nestas
partes do ximo algumas cousas em que parece convirem os japões
connosco, não é por serem comuas e universais neles, mas
adquiridas polo comércio que têm com os portugueses, que cá vêm
tratar com eles em seus navios – e são muitos de seus costumes tão
remotos, peregrinos e alongados dos nossos que quasi parece
incrível poder haver tão opósita contradição em gente de tanta
polícia, viveza de engenho e saber natural como têm. E pera se não
confundirem umas cousas com outras, dividimos isto com a graça
do senhor em capítulos – feito em canzusa aos 14 de junho de
1585 anos. (FRÓIS, 1993, p.52).

Posteriormente, a referida obra recebeu o título de Europa/Japão – Um


Diálogo Civilizacional no Século XVI. A proximidade de Fróis com a sociedade
japonesa e o Japão, no geral, pôde ser constatada tanto pelo seu domínio do
idioma japonês como pela escolha da utilização, em seu texto, de certos
termos em seu original, mesmo alguns deles sendo passíveis de tradução;
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 167

possibilitando, desse modo, que expressasse com riqueza de detalhes os


costumes mais cotidianos; destacando, especialmente, características de ordem
comportamental que refletem com que tipo de pessoas estavam lidando.
Sendo assim, Fróis coloca em foco, nesse tratado, a imagem e o
comportamento do japonês.
Esses dois missionários são considerados especiais para esta análise; o
primeiro porque figura entre esses missionários que iniciaram e
desenvolveram um trabalho experimental e pioneiro quanto a uma
aproximação cultural; e o segundo por conviver com os superiores da missão,
pertencendo a um momento em que esse método de ação já era empregado e
estava em pauta para discussão sobre a sua real eficiência e em que a sua
adoção implicava.
Uma situação que colaborava, em grande medida, para o
desenvolvimento de experimentações culturais por parte dos missionários era
o seu isolamento. Como no caso de Gaspar Vilela, alguns missionários
poderiam ficar, por um período relativamente longo, sozinhos, ou apenas com
mais algum companheiro, em determinada região. Vilela foi pioneiro na
missão no centro do Japão, saindo do eixo litorâneo, onde pôde colocar em
prática essa abordagem menos ortodoxa que era a de acomodação cultural,
longe da desaprovação e da repreensão de seu superior, no caso, Cosme de
Torres. Além desse isolamento, como coloca Madalena em seu artigo
“Gaspar Vilela: Between Kyushu and the Kinai”, a observação e o estudo da
religião e da cultura japonesa, a partir da visitação e do entendimento de como
acontecia a pregação por parte dos bonzos, seu estilo de vida, o próprio
budismo em si, os festejos, os costumes e a etiqueta, possibilitavam que os
missionários adquirissem a sensibilidade de como agir com essa população e
quais iniciativas poderiam tomar.
168 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O que é demonstrado nos seus escritos, tanto os de Vilela como os de


Fróis, são duas situações muito distintas. Um revela uma admiração profunda
em relação ao refinamento, à educação, à facilidade no aprendizado, à rigidez e
sobriedade dos japoneses, que em muito despertavam os interesses dos
missionários jesuítas quanto à conversão de novos fiéis, inclusive ao projeto de
criação de um clero nativo. E o outro faz observações com um ar um tanto
anedótico das tidas excentricidades dos japoneses, como em relação ao
conceito estético de beleza. Essa manifestação de admiração às características
do povo japonês é visível no fragmento do capítulo III, de Fróis: “Os nossos
meninos têm pouco assento e primor nos costumes; os de Japão são nisto
estranhamente inteiros, em tanto que põem admiração. […]” (FRÓIS, 1993,
p.83).
Certo espanto e apreço pela alfabetização, tanto de crianças como
também de mulheres, é um fator de grande relevância para o trabalho
missionário desenvolvido no Japão. Uma das bases da missão, em específico,
foi a fundação de escolas, seminários, sendo explorado, ao máximo, o
fundamento educacional da evangelização como forma de doutrinação. Assim,
nesses seminários, eram exercitadas as artes e a música, além do ensino de
matemática, medicina, geografia, astronomia, e também as línguas. Quanto às
línguas, é válido destacar que tanto era de interesse o aprendizado por parte
dos missionários da língua japonesa, como o ensino do português, e também
do latim, para os japoneses. A Literatura, nesse cenário, se mostrou de grande
importância, uma vez que funcionava como suporte para o exercício da língua,
e também, pelo conteúdo essencialmente moralista e religioso, auxiliava na
compreensão e assimilação da doutrina cristã.
Esse tom elogioso, também se encontra nos dizeres do padre Gaspar
Vilela, em relação à população da cidade de Sakai, da qual escrevia uma carta,
em 1562:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 169

Esta cidade como acima lhes diffe, eh muito grande e rica, eh a


gente della de bom entendimento. Depois que aqui cheguei
começarão os gentios a ouvir a lei de Deos, e já por fua bondade a
começão a tomar, e efpero em noffo Senhor fe fará muito fruito
nella, e fazendofe fera grande parte de em todo Iapão fe fazer, por
fer esta cidade fempre pacifica, e inexpugnável pola muita gente, eh
riqueza [...]. (VILELA, 1562).

Então, essa admiração pelo bom e rápido entendimento e compreensão


dos japoneses era de grande interesse aos intentos da real conversão de novos
fiéis. Tendo as cartas a função de demonstrar a eficiência do trabalho realizado
nessa região, o progresso que estava sendo conquistado, além de toda a gama
de possibilidades que se mostravam para o futuro da missão e da Companhia
de Jesus em geral.
Mas, como não é de se estranhar, nem tudo fazia sentido aos olhos dos
ocidentais, que até mesmo criavam empecilhos para a realização do trabalho,
tendo os missionários que exercitar sua paciência e tolerância, características
que não precisaram utilizar em outras regiões, inclusive as asiáticas como é o
caso da Índia, onde houvera uma onda de intolerância que resultou em
demonstrações maciças de agressividade e repressão. O que podia ser
relevado, muitas vezes, era entendido a partir de um caráter anedótico, por
vezes coberto com certo teor pejorativo, como se pode denotar em outro
trecho do tratado de Fróis: “Antre nós é grande injúria e descrédito
embebedar-se um homem; em Japão se prezam disso e perguntando: ‘Que faz
o Tono?’ dizem: ‘Está bebâdo’.[...]” (FRÓIS, 1993, p.108).
Criticavam, também, alguns costumes alimentares, que destoavam
muito do que era comum na Europa: “Nós fugimos de cães e comemos vaca;
eles fogem da vaca e comem lindamente os cães por mezinha. [...]”(FRÓIS,
1993, p.108).
170 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

No Japão a base da alimentação era o arroz, legumes e o peixe,


consumido de preferência cru, sem a presença de doces; ao passo que, na
Europa, o pão era o alimento fundamental, acompanhado pelo vinho, pelas
carnes vermelhas e de aves, queijo e leite, além dos doces, tão apreciados.
Com o passar dos anos e o progresso da missão no Japão, foram se
delineando os caminhos que eram eficientes para alcançar essa aproximação
tão desejada e o que precisava ser deixado de lado, por nessas terras não surtir
efeito. Deixava-se de lado a exaltação da pobreza, o desapego à vida material,
já que não era um discurso que tinha repercussão, para passar a ser valorizada
a cultura própria da aristocracia japonesa, que englobava os rituais de etiqueta,
refinamento e elegância, demonstrados desde a maneira de falar (conteúdo,
forma, intensidade, volume), como também a aparência física.
Um dos costumes, considerado de bom grado até os dias atuais pelos
japoneses, era oferecer um presente ao anfitrião quando se visitava alguém,
como observado por Fróis: “Antre nós ordinariamente se costumam as
visitações sem levar nada; em Japão quem vai visitar pola maior parte sempre
há-de levar alguma cousa.” (FRÓIS, 1993, p.167)
Trata-se de um detalhe do tratamento que um japonês esperaria
receber de outrem, sobretudo se ocupar uma alguma posição de destaque
dentro do cenário político-social. Desse modo, Fróis alerta para o fato de se
lidar corretamente com um indivíduo desse nível, em algum possível
encontro, quando as regras e os costumes apropriados deveriam ser
compreendidos e praticados sem equívocos, principalmente quanto aos gestos
que demonstram respeito e são ordenados por essa hierarquia tão demarcada
e, em todo momento demonstrada por seus simbolismos e rituais, conforme
cita Fróis, logo no primeiro capítulo: “Nós temos por descortesia não estar o
servo em pé quando o senhor está assentado; e eles por mau ensino não se
assentar também o criado.” (FRÓIS, 1993, p.167).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 171

Se em situação como essa fosse levado em conta aquilo que era


compreendido como ideal, segundo a etiqueta e as boas maneiras europeias,
estar-se-ia totalmente equivocado e inapropriado.
Como colocado pelo historiador Jurgis Elisonas (1991), em seu artigo
“Christianity and the Daimyo”, na primeira visita de Francisco Xavier ao Daimyo2
de Suwo, Ouchi Yoshitaka, em 1551, além de ele não ter sido recebido, sofreu
ofensas por parte da população durante o trajeto, justamente por ter adotado
uma postura de humildade e simplicidade. Buscando obter êxito na segunda
visita, demonstrou mais refinamento e levou consigo presentes, conseguindo
o que desejava, a autorização para pregar o evangelho e um espaço para o
mesmo. Segundo o autor, em outro artigo – “The jesuits, the devil and pollution in
Japan” –, não era vista com bons olhos pelo japonês a ajuda e a aproximação
aos menos afortunados. A intenção, nesse momento, era justamente a de se
aproximar das lideranças, da elite, para, consequentemente, ter acesso à
conversão da população sob sua alçada.
No que diz respeito ao entendimento de como foi e o que representou
a expansão marítima portuguesa, automaticamente, se associa a noção de
dominação e colonização sobre as populações tidas por eles como de um nível
civilizacional inferior. Nessa generalização, o que ficam marginalizadas são
justamente as especificidades de regiões distintas, onde o tipo de
relacionamento e o contato que se estabeleceu foram ímpares. Apesar de fazer
parte do mesmo processo, dessa ânsia de conquista de novos territórios – com
base em fundamentos comerciais, políticos ou religiosos –, em muito são
divergentes as investidas feitas nos territórios asiáticos que sofreram
interferência portuguesa e as estabelecidas nas possessões do atlântico.
Embora em um mesmo cenário – o asiático –, a forma de ação e o vínculo

2
Líder responsável por um território semiautônomo sob seu domínio, denominado Han,
frequentemente relacionado como um senhor feudal da Idade Média europeia. Esse título
significa Grande Nome, o que já demonstra o seu poder.
172 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

estabelecido foram bem distintos. Fugindo da ideia de uma população


subordinada e um território de dominação e autoridade portuguesa, o Japão se
mostrou, aos intentos portugueses, uma região de grande interesse, não
apenas para o estabelecimento das relações comerciais e mercantis, mas
também para a implantação do projeto de um Estado que, de longe não era
laico, e que trazia como ponto primordial do seu almejado Império
ultramarino a conversão religiosa.
Nessa situação, deixam de lado a concepção tradicional de
superioridade portuguesa/ ocidental, a fim de compreender que, no Japão,
para se alcançar o êxito pretendido, eram eles (portugueses) que deveriam
respeitar e seguir as regras. Mesmo colocando isso em prática, em um
ambiente heterogêneo, em uma ocupação fragmentada, é óbvio que havia
contradições e discordâncias dentro desse mesmo grupo que era o dos
missionários jesuítas. Os quais discordavam, por exemplo, quanto à
metodologia do trabalho que estava sendo desenvolvido, passando de uma
visão ortodoxa, tradicionalista, para uma experimental e inovadora no período.
Os missionários jesuítas começaram a disputar espaço e influência com
franciscanos e dominicanos, que começaram a atuar nesse mesmo espaço.
Apesar do grande sucesso alcançado, desse fato curioso que é o grande
número de conversões que foram realizadas, com o tempo, o culto ao
cristianismo foi praticamente erradicado do território japonês. Diante da força
e do poder de influência observados pelos líderes japoneses, que os religiosos
possuíam sob os fiéis, o exercício da religião se tornou uma ameaça constante
e crescente aos intentos japoneses de conquistar e consolidar a reunificação
japonesa sob um poder centralizado.
Deixando para trás o seu auge, a sua fase de sucesso, os missionários
passaram a sofrer sucessivas investidas de poda e restrição por parte das
lideranças japonesas, seja com demonstrações de agressividade e violência,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 173

seja com emendas e editos que eram elaborados no sentido de uma proibição
da prática da religião e expulsão dos ocidentais. Durante algumas décadas,
viveram em meio a essa realidade conflituosa, até a expulsão de todos os
ocidentais ser colocada, efetivamente, em prática pelo Xogunato3 que
assumira, iniciando-se um período de fechamento e reclusão do Japão em
relação ao contato externo, que duraria mais de 200 anos, denominado Era
Edo.

Conclusão

No contexto ultramarino português, a religião e os seus agentes,


especialmente os missionários jesuítas, obtiveram papel de destaque diante do
trabalho desenvolvido. O Japão, nesse contexto, se mostrou um território de
grande interesse por suas características peculiares, mas também por usas
especificidades quanto ao método de ação da evangelização, que ficou em
foco para discussão e experimentações. Sendo uma realidade de ocupação e
não de dominação, os ocidentais se sujeitaram a sua própria adaptação à
cultura e hábitos locais. Não eram eles que ditavam as regras, e o que era tido
como superior e admirável pelos japoneses não era o mesmo compreendido
pelo cristianismo. Assim, os religiosos tiveram que deixar de lado aquele ar
pedante de humildade e desapego, assumindo uma postura mais pomposa e
conseguindo, dessa forma, maior aproximação das lideranças locais, como
meio de obter sucesso nas conversões da população sob sua tutela. Elemento
fundamental dessa aproximação é o entendimento dos costumes, hábitos e da
etiqueta que regulavam as relações dos japoneses, que eram regidos valendo-se
de uma hierarquia rígida e bem clara.

3
Governo do Xôgum, líder de caráter militar que possuía poderes até superiores aos do
imperador.
174 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Aproxima-se, então, das singularidades desse caso em especial e do que


há de mais minucioso, deixando de lado o modelo de discurso generalista que
engole o que há de ímpar. Mesmo com a campanha de destruição a tudo o
que pertencesse ou fizesse referência ao cristianismo, é possível vivenciar e
analisar esse relacionamento por meio das cartas dos missionários jesuítas, que
eram constantemente enviadas à metrópole e permaneceram sob a guarda dos
eclesiásticos. Apesar da pouca importância que muitas vezes é dada a esse
episódio da história japonesa, ele é extremamente relevante não só para esse
país, mas também para entender a relação de Portugal e o funcionamento do
mundo no período em questão.
É nesse momento que o Japão é mostrado ao mundo, principalmente
como fruto das investigações dos missionários jesuítas, que buscaram
conhecê-lo e vivenciá-lo. À forma de escrita do idioma japonês foi acrescido
mais um alfabeto – o romano –, possibilitando uma melhor compreensão
dessa língua. Também surgiram as primeiras gramáticas abordando a língua
japonesa, tornando mais prático e eficiente o seu aprendizado, não só restrito
aos missionários, mas a outras pessoas que, posteriormente, se interessariam
em dar continuidade a esses estudos. Houve, assim, uma dimensão mundial,
projetando o Japão dentro de um contexto global, e não apenas restrito ao
pacífico.
Estudos que abordam essa temática não são importantes apenas para o
Japão e os japoneses. Pertencem a um contexto em que o próprio Brasil
passou a fazer parte. Um momento em que os continentes começavam a
ultrapassar seus limites territoriais e passavam a tomar uma posição em relação
ao resto do mundo.
Apesar do cristianismo nunca mais ter conquistado os sucessos de
outrora, mesmo após a reabertura do Japão, o trabalho realizado pelos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 175

missionários conseguiu destaque, mantendo-se de forma singular em relação a


um momento tão conturbado.
Tomando-se por base um movimento atual, ao lidar com a história
cultural, foge-se de uma concepção universal, partindo-se para análises mais
direcionadas e de maior sensibilidade. Como compreende Peter Burke, se faz
necessário levar em conta a história cultural como um processo de interação
entre diferentes culturas e subculturas, em que é possível se deparar com
diversos termos como: apropriação, troca, recepção, transferência,
transposição, resistência, sincretismo, aculturação, enculturação, inculturação,
interculturação, transculturação, hibridização, creolização e interação e
interpenetração de culturas. No caso japonês, é importante não apenas
considerar essa interação com os ocidentais, que permaneceram por um
tempo reduzido no Japão, mas principalmente sua cultura, valendo-se dos
fundamentos de sua relação com a China, que ditou muito do que se entende
como o “tradicional” japonês, caracterizando o que Burke denominou de
empréstimo cultural. Como a intenção com esse texto não é a análise da
origem dos seus elementos culturais, mas sim o olhar do europeu sobre eles,
essa questão da tradição e da influência chinesa ficam marginalizadas para uma
outra oportunidade.

Referências:

BOXER, C. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das


Letras, 2002.
BURKE, P. Variedades de história cultural. São Paulo - Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
COSTA, João Paulo Oliveira e. O Cristianismo no Japão e o Episcopado de D. Luís
de Cerqueira. 1998. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998. (texto
fotocopiado)
176 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

DINIZ, Sofia. Isabel P. dos Santos. A Arquitetura da Companhia de Jesus no Japão:


A Criação de um espaço religioso cristão no Japão dos séculos XVI e XVII.
2007. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2007.
ELISONAS, J. Christianity and the Daimyo. In: HALL, J. W. (Ed.). The
Cambridge History of Japan. Cambridge University Press, 1991. v. 4: Early
modern Japan, p. 301-374.
ELISONAS, J. The Jesuits, the Devil, and Pollution in Japan: The Context of
a Syllabus of Errors. Bulletin of Portuguese / Japanese Studies, Centro de História
de Além-Mar / Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, v. 1, p. 3-27, 2000.
FRÓIS, L. Europa-Japão: um diálogo civilizacional no século XVI: tratado em que se
contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a
gente de Europa e esta província de Japão [...], Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993 [1597].
RIBEIRO, M. Gaspar Vilela: Between Kyoto and the Kinai. Bulletin of
Portuguese / Japanese Studies, Centro de História de Além-Mar / Universidade
Nova de Lisboa, Lisboa, v. 15, p.9-27, 2007.
A prática do judaísmo no lar neocristão: heranças
da tradição sefaradi na América Portuguesa

Helena RAGUSA*

A
partir da segunda metade do século XVI, um grande fluxo de
judeus Sefarditas1 chegou ao Brasil fugido das perseguições
ibéricas. O objetivo era se livrar do estigma de cristãos-novos, sem
que fosse preciso se adaptar a uma realidade muito diferente daquela que já
estavam habituados, mantendo a língua e a organização social, como foi o
caso do Brasil que possuía tais características. (VALADARES, 2005, p.83).
Ao serem expulsos da Espanha no ano de 1492, os judeus também
denominados de Sefaraditas, ou conforme o termo hebraico antigo
Sepharads2, abrigaram-se em Portugal, e, conforme os estudos de Ronaldo
Vainfas e Jaqueline Hermann (2005), os mesmos teriam se deparado com uma

*
Mestranda em História /UEL/Londrina/Bolsista: CAPES. Orientadora: Profª. Drª. Ana
Heloisa Molina.
1
De certo modo os judeus denominados de Sepharad, seriam aqueles oriundos da Espanha,
que ao serem expulsos do país em 1492, estabeleceram-se em Portugal, onde a questão
judaica, pelo menos naquele período era menos problemática.
2
Entende-se que o nome Sepharad, originalmente, significasse Espanha, e os sefaradim
seriam os judeus de origem espanhola ou portuguesa. Atualmente, o termo foi ampliado, de
modo a incluir muitas comunidades judaicas em partes do mundo de fala árabe, que apesar
de não possuírem descendência espanhola, teriam adotado o rito espanhol (ASHERI,
1995).
178 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

comunidade judaica consolidada e organizada, além de um ambiente, que lhes


favorecia tanto no aspecto econômico, como também, no religioso3.
No entanto, essa realidade que lhes permitia uma vida
consideravelmente tranquila, foi se transformando, à medida que novas
monarquias foram se estabelecendo, adotando outros interesses. Então, a
hostilidade dos reis portugueses para com os judeus acabou gerando leis que
passaram a restringir sua atuação naquela sociedade, e, no ano de 1497, tendo
a situação agravada por um contexto de expulsão e conversão, os judeus
fizeram uma nova diáspora, espalhando-se por diversos lugares, destacando-
se, entre eles, o Brasil.4
Ainda colônia, o Brasil se consolidou de forma diversificada, tendo em
vista as ondas migratórias “despejadas” pela Inquisição. Assim, o seu
povoamento se fez a partir daqueles que eram acusados de adoecer a
Metrópole, ou seja, eram os degredados, homens e mulheres acusados de
prática do judaísmo (SOUZA, 1993).
Nesse contexto, entende-se que o cristão-novo esteve presente no
Brasil desde a chegada das primeiras caravelas. Vasco da Gama e Fernando de
Noronha5, por exemplo, foram judeus que não só participaram ativamente do
projeto colonizador do Brasil como teriam, secretamente, utilizado a nova
colônia como refúgio para os judeus perseguidos (CARVALHO, 1992).

3
A importância dos judeus nos primeiros tempos do Reino foi grande, tendo em vista a
batalha travada contra os muçulmanos e a necessidade de povoamento das terras
conquistadas (VAINFAS; HERMANN; 2005, p. 28).
4
Em seu estudo sobre a influência judaica na língua portuguesa, Glasman (2005), afirma
existir uma significativa probabilidade estatística de brasileiros descendentes de ibéricos,
principalmente portugueses, terem alguma ancestralidade judaica. Os judeus (além dos
cristãos-novos e dos cripto-judeus ou marranos) chegariam a constituir 20 a 25% da
população local.
5
Ronaldo Vainfas e Ângelo A. F. Assis em A esnoga da Bahia: cristãos-novos e criptojudaísmo no
Brasil quinhentista, afirmam existir uma controvérsia quanto à identidade cristã-nova de
Fernão de Noronha. De qualquer forma, o mesmo teria liderado um consórcio de cristãos-
novos no Brasil colonial.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 179

É a partir dessa perspectiva que os estudos da década de 1950 e 1960,


começaram a tratar da presença dos cristãos de ascendência judaica em nosso
território, isto é, como aqueles que vislumbravam o Brasil como rota de fuga,
seriam “[...] os mártires da Inquisição, entendidos como elemento não
adaptado à nova realidade ibérica” (SILVA, 2007, p. 10)
Um outro aspecto sobre o estabelecimento dos neocristãos na América
Portuguesa, estaria ligado ao fator de ordem econômica. Nos relatos de José
G. Salvador (1976) o Brasil surgia como um país de excelentes oportunidades
de enriquecimento, “[...] tão benéficas eram as condições do novo país no
raiar do seiscentismo, que o número deles começava a impressionar”.
Percebido o considerável aumento no número de judeus convertidos
que aportavam no Brasil, estudos começaram a surgir na historiografia
brasileira redimensionando o lugar que estes passaram a ocupar no passado
colonial, isto é, entendendo-o não mais como vítima, mas também com agente
histórico, sujeito de sua própria ação6. O sentido de se narrar uma história
sobre tal personagem no mundo luso-brasileiro seria compreender sua atuação
na sociedade e as dificuldades que enfrentaram diante das perseguições que
sofreram por parte da mesma e pela Inquisição, indicando resistências em
relação à cultura7 e à religião que lhe eram impostas.
Nesse contexto, as relações cotidianas entre cristão-novos e os demais
habitantes da colônia tornaram-se objeto de uma grande variedade de estudos.
As manifestações culturais da religião foram transmitidas de uma geração para
outra e, embora alguns apontem para certo distanciamento com o judaísmo8, é

6
Anita Novinsky, tida como pioneira, abriu novos horizontes para a pesquisa acerca da
questão judaica no Brasil ao estudar as perseguições sofridas pelos judeus no século XVII,
na obra Cristãos-novos na Bahia: a inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992.
7
O conceito de cultura ao qual nos referimos seria aquele defendido por Geertz (1989) a
partir de Max Weber, ou seja, como uma teia de significados.
8
Esse distanciamento dos cristãos-novos com a identidade judaica não anula o fato dos
mesmos “[...] fazerem parte da história judaica, uma vez que eram considerados como
180 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

possível perceber que a prática da tradição judaica não foi abandonada, e aos
poucos, os cristãos-novos, trataram de inseri-la na esfera pública à qual
pertenciam.
Pesquisando sobre a religiosidade popular no Brasil colônia, a
historiadora Laura de Mello e Souza (1986) enfatiza a existência do
sincretismo religioso, os traços católicos estavam misturados a outras formas
de crença, entre elas o judaísmo. Segundo ela, toda a multiplicidade de
tradições, era vivida, inseria-se no cotidiano das populações e, nesse contexto,
a prática judaica não fugia à regra.
Para os pesquisadores que se dedicam a investigar a presença judaica no
Brasil, e que admitem a formação da sociedade brasileira como um processo
diversificado, compreender tais relações, bem como a trama enredada por
cada indivíduo dentro delas parece ser um dos objetivos principais. Por meio
da ação, assim como do discurso, foi possível perceber os cristãos-novos, se
mostrando uns aos outros, se revelando.
Devemos ressaltar, porém, que tal tarefa torna-se um desafio, uma vez
que o lugar que os cristãos-novos de fato ocupavam na sociedade em questão,
não é fixo ou estável. De acordo com Valadares (2007), as dificuldades são
muitas, como o fato de não serem reconhecidos, ao serem muitas vezes
confundidos com os portugueses que aqui se encontravam; ou, o mecanismo
de assimilação criado pela metrópole portuguesa, no intuito de apagar uma
etnia não desejável; ou ainda, a própria missão de cristianizar9, inserida como
objetivo principal do projeto colonizador português do Brasil, no século XVI.
Contudo, tais desafios em torno da pesquisa sobre os cristãos-novos no
Brasil têm, na verdade, despertado o interesse de estudiosos que buscam

judeus pela comunidade ampla, e pelo Tribunal do Santo Oficio e mantinham uma
memória judaica.” (GORENSTEIN, 2005, p. 156).
9
É certo o desejo de enriquecimento de Portugal em relação ao Brasil, porém, cristianizar
era tão importante quanto.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 181

compreender as diversas maneiras do cristão-novo lidar com essa ascendência,


verificando as movimentações e adaptações decorrentes da expulsão e
conversão forçada ao cristianismo, assim como os múltiplos comportamentos
possíveis, enquanto mantenedores ou não da cultura judaica. Abre-se cada vez
mais, um leque de possibilidades, haja vista, as inúmeras fontes existentes que
tornam possível identificar e desvendar os papéis desenvolvidos por tais
personagens em nosso território, relacionados aos costumes, o
comportamento e às tradições que eles traziam.
Leituras recentes apontam para o fato de que o processo de conversão
forçada não foi determinante para que os judeus abandonassem seus hábitos e
costumes. Ainda que estivessem frente a duas realidades incompatíveis, uma
cristã e a outra judaica grande parte vivenciava o judaísmo secretamente ou,
em alguns casos, no sentido de sobrevivência, acabaram transformando suas
tradições religiosas.
Alguns estudos indicam inúmeros casos em que membros de uma
mesma família seguiram caminhos diferentes, isto é, alguns optando por
permanecerem dentro do cristianismo, professando-o com convicção, e
outros que, ignorando o batismo forçado, decidiram pela volta às raízes
judaicas (PERNIDJI, 2005, p.63).
Os documentos derivados dos procedimentos inquisitoriais contra a
prática do judaísmo, tais como as listas provenientes dos autos-da-fé10,
constituem um rico material, na medida em que carregam não só elementos
ligados à religiosidade dos neocristãos, mas também relacionados à sua vida
cotidiana, em seus mais corriqueiros aspectos, fornecendo ao pesquisador um
vasto campo a ser investigado. Segundo Jaqueline Hermann (2005, p.90), “[...]

10
Na definição de Carvalho (1992, p.35) as listas dos autos-da-fé, constituem-se como
documentos manuscritos pelos padres notários do santo ofício do século XVII, e são quase
todas impressas. Em seu conteúdo estariam os nomes dos condenados com os seguintes
dados: idade, profissão, filiação ou matrimônio, a profissão do pai ou marido, local de
nascimento e domicílio, condenações anteriores e a sentença que cada um deveria receber.
182 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

a fragilidade da estrutura eclesiástica na América portuguesa e a distância da


vigilância e do risco de punição inquisitorial favoreceu a continuidade da
religião proibida”. Em contrapartida, há aqueles que consideram a ligação com
a fé judaica razão suficiente para que a tradição não fosse esquecida, levando
para as prisões portuguesas centenas de cristãos-novos acusados de
criptojudaísmo.
O fato, porém, é que esses documentos, essas fontes, propiciaram e
propiciam ao historiador desvendar outras faces do judeu convertido e de sua
atuação no Brasil Português, de maneira que sua presença não seja entendida
apenas dentro de uma perspectiva.

Cristãos-novos no Brasil: uma questão de identidade

Em muitas manifestações culturais da religião, a alimentação era


transmitida de uma geração à outra, contribuindo, assim, para a afirmação das
identidades e sentimentos de pertencimento da comunidade judaica. De
acordo com Gimenez e Gonçalves (2010), tal prática ocorria na esfera
doméstica, ou seja, no âmbito familiar, de forma discreta para que não
levantasse suspeita entre os empregados ou escravos que pudessem existir ali.
Os pratos servidos, seus odores e sabores, além de portadores da memória
religiosa, contribuíram para reconstituir e perpetuar a história do povo judeu.
Certamente, algumas modificações foram necessárias em relação aos
alimentos e à forma da preparação dos mesmos, tendo em vista o novo lugar
que passaram a ocupar. No entanto, os ritos comumente realizados e
comemorados pela comunidade judaica não perderam seu significado, e o
judaísmo foi preservado, mesmo entre aqueles que já se encontravam sobre a
influência da fé católica.
Não só os hábitos alimentares faziam parte da vida cotidiana dos
cristãos-novos que mantinham fortes laços com o judaísmo, como também
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 183

outras práticas sinalizavam a necessidade de manter os elementos que


compunham a tradição judaica, como roupas limpas e joias finas; descanso aos
sábados; lavar as casas nas tardes de sexta-feira; acender velas novas após o
cair do sol na sexta-feira; o modo pelo qual enterravam seus mortos
(GIMENEZ; GONÇALVES, 2009, p.28).
Mesmo vivenciando outras realidades sociais, culturais e religiosas, a
ideia de “povo eleito por Deus”11 parece ter levado os judeus a resistirem a
qualquer ameaça à sua identidade, mesmo quando novas regras lhes eram
impostas. Estudos demonstram que, no início de sua chegada e
estabelecimento na colônia luso-brasileira, os cristãos-novos encontraram
certa tranquilidade e tolerância para darem continuidade à religião que outrora
foram obrigados a abandonar. No entanto, a partir da implementação do
Santo Ofício, no ano de 1536, um ambiente de hostilidade e de acusação
passou a tomar conta da vida de muitas famílias neocristãs, influenciando de
forma negativa no convívio com os cristãos-velhos.
O fato de mudarem seus costumes e rituais – como trocar o sábado
pelo domingo, serem menos rigorosos quanto às leis dietéticas12–, não os
levou a abandonar sua fé, apenas a restringirem-se a um lugar secreto, longe
das vistas dos inquisitores, ou de possíveis espiões.
Esse é apenas um dos vários indicativos de resistência em relação à
cultura e à religião que eram impostas aos cristãos-novos e que compõe os
relatos referentes às perseguições sofridas por eles pelos inquisidores, “[...] a
linha fronteiriça entre judeus e cristãos-novos era crucial, uma questão de vida
11
O caráter de escolhido que tem Israel não consiste num lugar hereditário no Céu, mas
sim no seguinte: que Deus escolheu Israel para ser seu povo que receberia Sua Lei, que
estudaria e compreenderia Sua Lei e obedeceria aos mandamentos contidos em Sua Lei.
(ASHERI, 1995, p.28).
12
O que distingue as leis alimentares judaicas é formar parte de um sistema simbólico-ritual
que constrói o mundo cotidiano dos atores sociais, em marcada oposição aos costumes e
leis que em outras culturas regem os jejuns e as comidas prescritos para celebrações
extraordinárias. Ainda assim, pode-se afirmar que, de forma similar a estes, as leis
alimentares judaicas fazem públicas filiações religiosas e culturais. (TOPEL, 2003).
184 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ou morte, sujeita a buracos e feridas” (GALLAGHER; GREENBLATT,


2005, p.28).
É fato que a abordagem do Santo Ofício sobre os cristãos-novos, na
Europa, foi muito mais violenta, gerando um grande número de mortes.
Contudo, as perseguições sofridas pelos que aqui se encontravam causaram
uma perda significativa da cultura judaica13.
O medo ainda fazia parte do cotidiano daqueles que para cá vieram e se
estabeleceram, entretanto, o perigo que a Igreja Católica representava não
impediu que os cristãos-novos se integrassem à língua e aos costumes das
regiões onde se estabeleciam, quer fosse na Bahia, quer em Pernambuco, quer
em Maranhão (DEL PRIORE, 2003).
Um destaque maior é dado para o século XVI, na exploração
econômica do Nordeste açucareiro, por haver uma disponibilidade maior de
documentação sobre o período. Motivados pelas oportunidades que se
abriam, muitos migravam para a região se fixando como senhores de engenho,
mercadores e traficantes de escravos (VAINFAS; ASSIS, 2005, p. 46).
Certamente que o estabelecimento de cristãos-novos no Nordeste
brasileiro e a chegada de judeus portugueses que acompanharam os
holandeses durante a invasão no processo de ocupação, constitui um capítulo
à parte. Contudo, o forte papel econômico e social que tais personagens
desenvolveram na região não pode ser ignorado, na medida em que nela foi se
estruturando uma nova comunidade, modificando todo um cenário que,
outrora influenciado exclusivamente pelo catolicismo, torna-se um ambiente
de relativa liberdade religiosa.

13
Em sua obra intitulada Inquisição: prisioneiros do Brasil séculos XVI a XIX, Anita Novinsky
(2009) afirma que os cristãos-novos representavam o maior número de prisioneiros do
Brasil, segundo a historiadora, constituíam 1.076 presos entre homens e mulheres. A autora
ainda constata ter sido feito o maior contingente de aprisionados na primeira metade do
século XVIII, 555 pessoas, também entre homens e mulheres.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 185

Segundo Levy (2008), em seu estudo sobre a presença judaica no Brasil


Holandês no século XVII, com a chegada dos holandeses, Pernambuco
tornou-se uma verdadeira metrópole. Nela, os judeus construíram suas
instituições, como as escolas, as sinagogas e o cemitério, de forma a contribuir
para o enriquecimento cultural da região que já era bastante intenso.
Ao terem se estabelecido de forma tão ampla e diversa, a presença dos
cristãos-novos, principalmente os de origem portuguesa, no Brasil
Quinhentista, apesar de bastante conhecida, é pouco explorada. Considerada a
pioneira nos estudos sobre os cristãos-novos no Brasil, a historiadora Anita
Novinsky (1972), em seus primeiros estudos sobre o processo migratório dos
judeus conversos na América Portuguesa, já apontava para tal fato. De acordo
com Novinsky (2001), as razões que levaram ao estabelecimento de cristãos-
novos na região nordeste do país não foram muito diferentes daquelas que
provocaram a migração para a região do ouro. O interesse pelo ouro também
teria levado ao aparecimento de outras atividades, pelas quais os cristãos-
novos se enveredaram revelando uma verdadeira interação social fosse como
criadores de gado, suprindo toda a região; fosse como médicos, advogados,
etc.
Há nas atividades exercidas pelos cristãos-novos, no Brasil enquanto
Colônia, muitos elementos culturais e religiosos que – se codificados – podem
revelar uma memória histórica que justifica a importância de se estudar a
presença desses personagens na construção do Brasil.

Considerações Finais

Partindo da ideia de que existe uma história viva que se perpetua ou se


renova através do tempo, o estudo em andamento, que deu origem a esse
texto, tem como objetivo, em relação à presença do cristão-novo no Brasil
186 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Colonial, evitar que os traços deixados pela sua cultura na sociedade brasileira
sejam apagados.

A história há muito tempo não procura mais compreender os


acontecimentos por um jogo de causas e efeitos na unidade
informe de um grande devir, vagamente homogêneo ou
rigidamente hierarquizado; mas não. É para reencontrar estruturas
anteriores, estranhas, hostis ao acontecimento. É para estabelecer
as séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas vezes, mas não
autônomas, que permitem circunscrever o "lugar" do
acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de
sua aparição. (FOUCAULT, 2001, p.22)

Os cristãos-novos assim como os judeus fazem parte da história do


Brasil desde o Descobrimento, até depois do domínio holandês, passando pela
independência e chegando aos dias atuais, por meio de seus descendentes,
assimilados no meio do povo e da cultura brasileira. A presença do cristão-
novo, segundo Valadares,

[...] fertilizou o cotidiano através de alguns símbolos, personagens e


valores éticos em quantidades suficientes para considerá-los como
um dos substratos importantes da formação nacional, mesmo que
passem desapercebidos e sejam sentidos apenas como uma
presença oculta. (VALADARES, 2005, p. 280).

Sendo assim, não resta dúvida de que o lugar histórico que tais
personagens ocupam na História do Brasil está indiscutivelmente em todas as
esferas da sociedade que aqui se formava, indo além do espaço
socioeconômico, influindo grandemente no seu dia a dia.
Como já apontado, a historiografia brasileira, até meados do século XX,
pouco se ocupou com o estudo desses agentes, “[...] as próprias exclusões,
relegações e marginalizações, constituem uma rica variedade de especulações
históricas” (GALLAGHER; GREENBLATT, 2005, p.96).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 187

Um exemplo é o trabalho realizado pela historiadora Laura de Mello e


Souza (1986), ao tratar da religiosidade popular da colônia, chamando a
atenção para o sincretismo religioso existente na nova terra, quando traços
católicos foram misturados a outras formas de crença, entre elas o judaísmo.
Segundo a historiadora, a diversidade fazia parte do contexto da sociedade que
aqui se formava e seus hábitos e costumes inseridos no dia a dia da população.
A cultura judaica, por ser tão antiga e ter se dispersado em diferentes
tempos e espaços, possui uma imensa variedade de costumes e modos de
comportamento nas sociedades em que se estabeleceu, tratando-se, portanto,
de várias narrativas Recentemente, a trajetória dos cristãos-novos no Brasil
colonial tem atraído a atenção de estudiosos que pretendem compreender não
só como os judeus se percebiam, mas também como eram percebidos na
sociedade em que estavam inseridos. Instituições como a família, a religião, o
trabalho, a forma de organização das comunidades espalharam-se por todas as
regiões onde se fixaram. Também as relações que nelas se estabeleceram, os
valores e as representações coletivas e a ação dos indivíduos, surgindo, então,
às diferenças que definiram uma identidade dos grupos que no Brasil Colonial
estavam estabelecidos (HELLER, 2008).
Num estudo acerca da memória coletiva, Maurice Halbwachs (1990,
p.80-81) ao conceber a multiplicidade das realidades sociais assinala que “[...]
poucas são as sociedades nas quais tenhamos vivido, seja em que tempo for
que não subsistam, ou que pelo menos não tenham deixado algum traço de si
mesmas nos grupos mais recentes onde estamos mergulhados.”
Devido às condições históricas, as quais os cristãos-novos estavam
submetidos no Brasil Colonial – como a ameaça de perseguições, torturas e
condenações por parte da Igreja Católica – a memória desse grupo foi, de
certa forma, apagada, ainda que houvesse meios de mantê-la no interior de
seus lares.
188 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Em Certeau (2002), entende-se que toda pesquisa historiográfica se


articula com um lugar de produção socioeconômica, política e cultural, e a
historiografia não descreve as práticas silenciosas que as constroem, mas
efetua uma nova distribuição de práticas já estabelecidas. O historiador
salienta, ainda, que:

[...] a escrita tem uma função simbolizadora; permite a uma


sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e
abrindo assim um espaço próprio para o presente. A arrumação
dos ausentes é o inverso de uma normatividade que visa o leitor
vivo, e que instaura uma relação didática entre o remetente e o
destinatário. Nomear os ausentes da casa e introduzi-los na
linguagem escrituraria é liberar o apartamento para os vivos, através
de um ato de comunicação, que combina a ausência dos vivos na
linguagem com a ausência dos mortos na casa. (CERTEAU, 2002,
p. 107-108).

Essa “linguagem escrituraria” refere-se a uma narrativa que,


diferentemente do que pregavam os pensadores do século XIX, possui várias
versões. São, na verdade, interpretações, que buscam narrar e problematizar
os acontecimentos atribuindo-lhes os modos de sentir, admitindo a
importância em se pensar nas transformações das sensibilidades, as quais
também se constroem historicamente.
A partir deste trabalho, foi possível constatar que, atualmente, são
muitas as pesquisas voltadas para a presença dos judeus e dos cristãos-novos
no Brasil, desde o período em que os portugueses estiveram aqui, o que atesta
a relevância do estudo, em andamento que possui como objetivo verificar o
papel significativo que tais sujeitos tiveram no mundo luso-brasileiro.

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Conservadores x Progressistas: uma
representação histórica da Igreja católica
brasileira em anos ditatoriais (1968-1974)

Glauco Costa de SOUZA*

O
texto tem por objetivo apresentar o conflito interno que ocorreu
entre os grupos católicos (conservadores e progressistas) em anos
ditatoriais. Procura-se, por meio do discurso analisado nos
artigos de duas revistas integristas, a representação histórica de um passado
recente, marcado por uma mudança estrutural na Igreja brasileira, diante das
transformações impostas pela sociedade a partir dos anos 50, com o processo
de urbanização e industrialização e com a expansão dos ideais socialistas em
todo continente americano. Dessa forma, por meio da representação do
anticomunismo e do antimodernismo dos grupos Hora Presente e
Permanência, pretende-se traçar um panorama histórico das décadas finais do
século XX, na tentativa de se compreender o fenômeno católico nas suas
interfaces com a sociedade brasileira.

1. Contextualização Histórica

Os grupos Hora Presente e Permanência lançaram, em outubro de


1968, suas revistas com o intuito de divulgar suas opiniões acerca das

*
Mestrando em História/ UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Ricardo
Gião Bortolotti.
194 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

situações políticas, econômicas, sociais e culturais do Brasil, em plena ditadura


militar. Batizadas com os nomes de seus respectivos grupos, os dois
movimentos representavam a ala conservadora da Igreja católica brasileira, em
anos marcados por uma extrema mudança interna na própria instituição
religiosa.
Observa-se, então, que desde os anos 50, a Igreja passava por um
período de instabilidade devido às mudanças econômicas e sociais geradas
pelo início da guerra fria e pelos processos de urbanização e industrialização
da sociedade brasileira, que repercutiram na disputa do controle político no
país (BRUNEAU, 1979).
Diferente dos anos 30, em que a Igreja era ligada ao Estado e ao
modelo da neocristandade1, nesse contexto, a instituição religiosa perdeu o
apoio das classes hegemônicas e assumiu, a partir de então, a liderança no
campo social. Desse modo, vê-se, nas principais capitais do Brasil, “[...] nas
universidades e nas escolas secundárias, os movimentos católicos assumirem a
liderança para estimular e encorajar os estudantes a participar da
transformação da sociedade” (BRUNEAU, 1979, p. 68).
No artigo de Antonio Flávio Pierucci, Beatriz Muniz de Souza e
Candido Procópio Ferreira de Camargo (1984, p.355), os autores reconhecem
que tanto a sociedade brasileira quanto a Igreja passaram por grandes
transformações. E descrevem que a instituição religiosa passou a criticar as
desigualdades sociais geradas pelo avanço do capitalismo no país e mudou sua
estratégia de influência ao atingir as camadas populares.

1
Para Simões (2006, p. 3), a neocristandade foi projeto restaurador da Igreja católica no
início do século devido à crescente laicização dos valores e pelo avanço de outros cultos
religiosos, como o protestantismo e o espiritismo. A resposta da Igreja se deu mediante a
proposta de instaurar uma Neocristandade, “uma ordem econômica, social e política sob a
direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, visando reconduzir a sociedade aos
valores morais e culturais do cristianismo católico e estabelecer o “Reino Social de Jesus
Cristo” – ideal que orientou o pontificado de Pio XI (1922-1939) e que, em terras
brasileiras, teve como principal articulador o cardeal Dom Sebastião Leme (1930-1942).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 195

Diante disso, muitas organizações católicas, principalmente do laicato,


mudaram sua orientação política e aliaram-se aos movimentos de esquerda.
Como exemplo desse processo, tem-se a atuação da Ação Católica Brasileira,
criada em 1932, e que, segundo Marin (2002, p. 41), entre os anos de 1948 a
1950, passou a se organizar aos moldes sociais franceses, com o aparecimento
de grupos especializados, como, entre outros, a JUC2 e a JOC3,.
Inicialmente, sua finalidade era de oferecer ao laicato uma nova visão
de Igreja, impulsionando a pastoral e a evangelização. Contudo, nos anos 60, a
organização se distanciou radicalmente das orientações oficiais da Igreja
católica, modificando-se, em junho de 1962, em Ação Popular, “un movimiento
político no confesional que desea asumir en plenitud el compromiso de los
cristianos en el mundo” (MARIN, 2002, p. 42), cujas alianças se davam com
as Ligas Camponesas e com a UNE4.
Mas, com a deposição do presidente João Goulart, ocasionado pelo
golpe de Estado de 31 de março de 1964, a tentativa de se implantar um
catolicismo pelo viés social no país é minada pela política repressiva do
Estado. Como exemplo, Marin descreve sobre a rapidez com que o
episcopado retorna ao seu discurso conservador e retoma suas posições:

Dom Helder Câmara es substituido como secretario general Del


episcopado por Dom José Gonçalves, o bispo auxiliar do Rio de
Janeiro, hombre de confianza Del cardenal Dom Jaime Câmara;
por su parte, Dom Agnelo Rossi, nuevo arzobispo de São Paulo y
conservador declarado, accede a la presidência de la CNBB.
(MARIN, 2002, p. 43).

Em contradição com a postura da ala conservadora da Igreja em relação


à cúpula militar e com o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, surge,

2
Juventude Universitária Católica.
3
Juventude Operária Católica.
4
União Nacional dos Estudantes.
196 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

no Brasil, e em todo continente americano, a ‘Igreja dos pobres’, inspirada na


Teologia da Libertação5, que tem como principal representante o brasileiro
Leonardo Boff6.
Sendo assim, segundo Michel Löwy (1991), a Teologia da Libertação, as
CEBs e os militantes pastorais da Igreja no Brasil forneceram todo o alicerce
para que fossem construídas unidades de base dos novos movimentos sociais
e políticos que antecederam a abertura do regime militar em 1984. A partir
disso, o autor distinguiu quais as peculiaridades do Brasil, propondo questões
como: Por que a teologia da libertação e a esquerda católica brasileira tiveram
tanta influência na sociedade brasileira? O autor aponta cinco razões:

Primeira: devido ao reduzido número de clérigos no Brasil, a Igreja


sempre dependeu de leigos em suas atividades. Segunda: por causa
da influência católica francesa nas organizações cristãs, laicas e
leigas. Terceira: pelo fato de que, durante a ditadura militar, o
regime acabou por transformar a Igreja em último refúgio de
oposição. Quarta: por causa do desenvolvimento capitalista, que
ocorreu com maior rapidez no Brasil, a partir dos anos 50, o qual
trouxe urbanização e industrialização. Por último: pelo fato de que
os padres e os teólogos radicais de esquerda não se distanciaram
das posições hierárquicas da Igreja. (LÖWY, 1991, p. 59).
5
Segundo Marin (2002, p. 44) sobre a Teologia da Libertação, “[…] de la modernidad
retoma varios elementos: la democracia política, incluso la revolución, el reconocimiento
Del lugar central que debe ocupar la mujer en la sociedade; El recurso al marxismo como
instrumento de análisis de la realidad; y, finalmente, la apuesta por una liberación humana
en la historia, como anticipación del Reino”.
6
Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina, aos 14 de dezembro de 1938.
Cursou Filosofia em Curitiba-PR e Teologia em Petrópolis-RJ. Doutorou-se em Teologia e
Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Ingressou na Ordem dos
Frades Menores, franciscanos, em 1959. Esteve presente nos inícios da reflexão que
procura articular o discurso indignado frente à miséria e à marginalização com o discurso
promissor da fé cristã, gênese da conhecida Teologia da Libertação. Em 1984, em razão de
suas teses ligadas à Teologia da Libertação, apresentadas no livro “Igreja: Carisma e Poder”,
foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex Santo
Ofício, no Vaticano. Em 1985, foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso” e
deposto de todas as suas funções editoriais e de magistério no campo religioso. Dada à
pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986, podendo retomar algumas
de suas atividades. Em 1992, sendo de novo ameaçado com uma segunda punição pelas
autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre e se autopromoveu ao estado
leigo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 197

Entretanto, além de ser específica do próprio contexto histórico


brasileiro, essa mudança na estrutura hierárquica do catolicismo seguiu as
orientações ditadas pela Santa Sé Católica. Sob o pontificado de João XXIII,
teve início o Concílio Vaticano II (1962-1965). Tal evento se caracterizou pelo
diálogo da Igreja católica com as questões da modernidade e com métodos de
análise das ciências sociais.
O sociólogo Rubem Alves (1978, p. 124) descreve que, a partir da
década de 50, a Igreja católica passou a fazer o uso da sociologia para entender
a crise institucional pela qual passava, devido ao crescimento de outras
religiões advindas com o processo de urbanização e industrialização no Brasil.
Dessa forma, o autor afirma que:
[...] os resultados desta aproximação são reconhecidos, em
escala mundial, pelo impacto do Vaticano II e da Conferência
dos Bispos Latinoamericanos em Medellín, ambos fortemente
informados pelos resultados das ciências sociais (ALVES,
1978, p. 124).

Já Daniel Aarão Reis Filho (1998) aponta que a instituição religiosa


passou por um processo de “atualização” da Igreja Católica Romana, a partir
do Concílio Vaticano II e com as encíclicas papais de João XXIII e de Paulo
VI7. Mas, com o Golpe de 1964, agravou-se o conflito pelo qual passava a
instituição religiosa e alguns setores apoiaram o governo dos militares, como a
ala conservadora, e outros tomaram distância desse regime, como a ala
progressista. Com isso, o historiador descreve o motivo pelo qual essa última
ala se afastou do governo:

Os religiosos denunciariam à miséria do povo, a injustiça social, a


doutrina de segurança nacional que se transmudava em insegurança
para a grande maioria. E, reclamariam reformas – em primeiro
lugar, a reforma agrária, compromisso assumido e esquecido pelos

7
Mater et Magistra (1961) e a Populorum Progressio (1967).
198 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que lideravam a intervenção militar. Denunciariam também a


ausência de direitos humanos, celebrados nos discursos e
desrespeitado na prática. (REIS FILHO, 1998, p. 21).

É sobre eventos históricos e sociais que os grupos conservadores Hora


Presente e Permanência passaram a refletir e a se posicionar em relação às
transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que ocorreram na
sociedade brasileira entre as décadas de 1960 e 1970. Por meio da
representação do anticomunismo e do antimodernismo, presente no discurso
das revistas editadas por esses grupos, pretende-se perceber a visão dos
grupos sobre seus oponentes e sobre a política da época: como eles pensavam,
sentiam, imaginavam e viam os progressistas católicos, a modernidade e a
política da época. Mas, vale ressaltar, essas representações são construções
embasadas na realidade e podem produzir visões deturpadas do real
(CHARTIER, 2009, p. 49).

2. As revistas e sua formação

2.1 Um breve olhar sobre a fonte

Por se tratar de uma fonte periódica, é importante a atenção do


historiador para a materialidade da revista, seu conteúdo e os seus
idealizadores. De acordo com Tânia Regina De Luca (2010, p. 138-139), as
condições técnicas e materiais de uma revista são dotadas de historicidade e se
engatam a contextos históricos específicos, o que permite ao pesquisador
localizar sua fonte numa determinada série, “[...] uma vez que este não se
constitui em um objeto único e isolado”.
Sendo assim, a imprensa periódica seleciona, de alguma forma, aquilo
que se elegeu digno de se chegar até o seu público. Portanto, de certa forma,
cabe ao historiador pesquisar as motivações que levaram os idealizadores de
determinado tipo de imprensa à decisão de dar publicidade há uma notícia
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 199

específica. Por isso, a importância de se estudar a análise do discurso, pois,


como salienta De Luca:

Os discursos adquirem significados de muitas formas, inclusive


pelos procedimentos tipográficos e de ilustração que os cercam. A
ênfase em certos temas, a linguagem e a natureza do conteúdo
tampouco se dissociam do público que o jornal ou a revista
pretende atingir. (DE LUCA, 2010, p. 140).

Nesse sentido, as revistas Hora Presente e Permanência selecionam,


ordenam, estruturam e narram uma realidade histórica passada. Por esta razão,
o conteúdo de seus artigos não pode ser dissociado do lugar ocupado pela sua
publicação e, principalmente, pelos seus idealizadores. Assim, as classes sociais
ou os meios intelectuais, de uma determinada época, produzem ideias e
discursos que representam as disposições estáveis e partilhadas, próprias de
um determinado grupo social.
Dessa maneira, os artigos escritos nas revistas revelam um mundo
como representação. Percebe-se uma articulação entre o mundo do texto e o
mundo do sujeito, as maneiras como as narrativas contidas em um documento
afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma ou compreensão de si
próprio e do mundo.
Conclui-se, portanto, que os periódicos e seus grupos formam um
“mundo à parte”, um “pequeno mundo estreito”. Os intelectuais e suas
relações de sociabilidade com os seus grupos são “[...] antes de tudo um lugar
de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo viveiro e
espaço da sociabilidade, e pode ser entre outras abordagens, estudada nesta
dupla dimensão” (SIRINELLI, 1996, p. 248-249).
Portanto, procurar-se-á identificar, cuidadosamente, os grupos
responsáveis pela linha editorial das revistas Hora Presente e Permanência, assim
como atentar para as escolhas dos títulos dos artigos e dos textos
200 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

programáticos a fim de se fazer uma leitura do passado capaz de inquirir sobre


os diferentes poderes e interesses financeiros a que os grupos eram ligados
(DE LUCA, 2010, p. 140).

2.2 Apresentação das Revistas

A revista criada pelo grupo Hora Presente, com sua primeira publicação
em setembro de 1968, em São Paulo, recebeu o nome do grupo que o criou.
Seus artigos caracterizavam-se por trazerem assuntos relativos aos fatos
políticos da ditadura e sobre as ações políticas dos grupos progressistas e
comunistas. Não possuía um líder específico e o grupo não contava com a
participação de religiosos na sua redação.
O periódico foi dirigido por Clovis Leme Garcia até o último número
de sua publicação. Sua redação era composta por vários intelectuais que
atuavam no grupo e, consequentemente, escreviam para a revista Hora
Presente8. Seus escritores receberam forte influência dos grupos integristas
estrangeiros, especialmente das revistas católicas francesas9.
Segundo Pe. Charles Antoine (1980), que escreve sua obra no contexto
de criação das revistas, as análises contidas em Hora Presente tratavam dos
vícios do sistema democrático brasileiro e apoiavam o regime militar.
Em relação à revista do grupo do Rio de Janeiro, Permanência nasceu em
outubro de 1968 e também recebeu o nome do grupo. Ao contrário de Hora
Presente, os artigos contidos em Permanência eram de cunho teológico e

8
Entre eles estavam: José Guarany, Marcondes Orsini, José Pedro Galvão de Souza, Adib
Casseb, Clovis Lema Garcia, José Fraga Teixeira de Carvalho, Lauro de Barros Sicicliano,
Italo Galli, Ruy de Azevedo Sodré e Alfredo Leite. Alguns artigos da revista também eram
escritos por membros da revista Permanência, como: Gerardo Dantas Barbosa, Leonardo
Van Acker, Nilo Pereira, Armando Dias de Azevedo, Claudio de Cicco, Gladstone Chaves
de Mello, Pedro Kassab e Luiz Delgado.
9
Vários escritores das revistas Permanences, Itinéraires, La Pensée Catholique e L´Homme
Nouveau, escreveram para a revista.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 201

filosófico. A liderança da revista e do grupo concentrava-se na figura do


católico leigo Gustavo Corção10, e foi dirigida por Júlio Fleichman.
Além dos inúmeros artigos escritos por Corção, a revista contava com a
participação de vários religiosos beneditinos do Rio de Janeiro e de
intelectuais leigos, como Alfredo Lage, Gerardo Dantas, Nuno Veloso e
outros. Como o pensamento de Gustavo Corção era influenciado pela
corrente integrista francesa de Jean Ousset11 e da revista Permanences, os artigos
escritos pelos seus membros receberam forte influência das ideias católicas
vindas da França nesse período.
Sendo assim, os artigos da revista dirigiam-se contra o pensamento
moderno na Igreja e apoiava o regime instalado, em 1964, pelos militares. A
revista Permanência se caracterizou por seus comentários teológicos e
polêmicos da vida da instituição e, por meio de citações de filósofos e
teólogos católicos, “[...] criticava o marxismo e os grupos progressistas da
Igreja” (ANTOINE, 1980, p. 44).
Diferente de Hora Presente, com suas publicações encerradas no início da
década de 1980, a revista criada no Rio de Janeiro parou de ser publicada em
1990, depois de 22 anos. Mas o grupo Permanência esteve em atividade até
2003, com Fleichman na presidência. Atualmente, o grupo veicula suas
opiniões por meio de um site na internet com alguns artigos publicados.

2.3 Os grupos e suas influências

De acordo com a apresentação das revistas, elas foram editadas por


dois grupos conservadores da Igreja católica brasileira e possuíam o mesmo
nome dos periódicos: o grupo Hora Presente e o Permanência. No plano
10
Herdeiro do pensamento conservador católico do centro D. Vital (nos anos 30),
transformou-se no maior símbolo do catolicismo integral no Brasil.
11
Segundo Antoine (1980), Jean Ousset foi o coordenador de “Centre d’Études Critiques
et de Synthèse”, criado em 1946, e que deu origem, em 1949, à revista Verbe – La Cité
Catholique. Em julho de 1963, Verbe é substituída pela revista mensal Permanences.
202 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

filosófico e teológico, ambas se caracterizaram por fazerem parte de uma


corrente que se desenvolveu no mundo católico a partir da crise modernista, a
qual de origem a um catolicismo moderno, “[...] junção da razão com a fé, e
um catolicismo integral ou intransigente, totalmente tradicional e hierárquico”
(ANTOINE, 1980, p. 11).
Assim, surge no final do século XIX, a corrente integrista, cujo objetivo
era combater o pensamento moderno que se difundia na Europa, nessa época.
Mas o nome ‘integrismo’ só foi criado no início do século XX – durante o
pontificado de Pio X, conhecido como papa integrista (1903-1914) – no qual
os católicos intransigentes tinham por escopo reocupar os espaços perdidos
pela Igreja católica no processo de secularização.
Com isso, como afirma Pierucci, o integrismo acolheu os grupos
tradicionalistas, ultraconservadores, ultraortodoxos e antimodernos da Igreja
católica, com o intuito de combater a ofensiva ad intra, ou seja, perseguir os
pensadores católicos progressistas. Para o autor, o vocábulo integrista
apareceu na França, em 1910, na querela entre católicos intransigentes e
modernistas, e possui as seguintes características:

1) a autoridade sacra para a qual se pretende inerrância literal é o


texto papal (melhor dizendo, certos textos de papas), não a Sagrada
Escritura; 2) a motivação do zelo militante é a defesa de valores
religiosos ameaçados de decomposição pelos efeitos da
modernidade; 3) a modernidade, por conseguinte, é pensada como
síndrome antagônica à tradição que se quer preservar; 4) numa
sociedade condenada a se desagregar pelos próprios erros, o único
e legítimo portador da boa ordem sociopolítica a restaurar é a
Igreja hierárquica , o alto clero; 5) para a restauração de uma
sociedade integralmente cristã, ou seja, confessional em seu
conjunto, é indispensável a manipulação ou o exercício do poder
político. (PIERUCCI, 1990, p.150).

Em relação ao desenvolvimento da corrente integrista no Brasil, o


primeiro representante do catolicismo integral foi Jackson de Figueiredo, que
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 203

criou, nas décadas de 1920, o Centro D. Vital e a revista A Ordem. Tal grupo
se caracterizou pela sua posição contrarevolucionária, “[...] em defesa da
ordem cristã na sociedade e sua intransigência ao pensamento moderno em
favor da teologia católica” (ANTOINE, 1980, p. 17).
Entretanto, logo após a Segunda Guerra Mundial, surgem as primeiras
fissuras no catolicismo brasileiro. Como expõe Rodrigo Coppe Caldeira (2004,
p. 7-8), de um lado, têm-se grupos preocupados com a problemática social, o
que os levou a uma tendência política de esquerda; de outro, grupos
preocupados em manter a “civilização ocidental cristã” e em combater o
“comunismo ateu” e a problemática religiosa da modernidade.
Com a ruptura constitucional, provocada pelos militares em 1964, se
acentua mais a cisão entre os católicos. Nesse momento, observa-se a
formação de vários grupos conservadores que serviram de apoio ao regime
instalado. Entre os mais significativos se destacaram os grupos Hora Presente,
Permanência e a TFP12, este último com sua revista Catolicismo, sob a liderança
de Plínio Corrêa de Oliveira.
Sendo assim, percebe-se uma forte cisão dentro da Igreja católica
brasileira ocasionada por fatores históricos que levaram os grupos
conservadores a se posicionarem contra os comunistas, a modernidade e os
próprios grupos progressistas da instituição católica. Cabe, portanto, a análise
desse período histórico por meio das representações dos setores
conservadores da Igreja católica contidas nos artigos das revistas Hora Presente
e Permanência.

3. Discurso e representação histórica em anos ditatoriais no Brasil

De acordo com a nova História Cultural, a noção de representação


evoca a maneira de como grupos de uma determinada sociedade dão sentido

12
Tradição, Família e Propriedade, movimento criado por Plínio de Oliveira em 1960.
204 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

às suas práticas sociais e aos discursos que a permeiam. Nesse sentido, as


relações sociais que ocorrem em um determinado período histórico, entre
diferentes grupos de uma mesma sociedade, “[...] são marcadas pela maneira
como os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais”
(CHARTIER, 2009, p.49), por meio dos diferentes discursos que regem
determinada sociedade.
Por se tratar de ideias e doutrinas de dois grupos religiosos, refletidas
nos artigos das revistas, o presente trabalho se utilizará do conceito de
representação, do historiador Roger Chartier. Tal conceito remete a
representações mentais de ideias e mensagens no qual os homens dão sentido
à sua realidade. Mas, como define o próprio Chartier:

As representações não são simples imagens, verdadeiras ou falsas,


de uma realidade que lhes será externa, elas possuem uma energia
própria que leva a crer que o mundo ou o passado é, efetivamente,
o que dizem que é. Nesse sentido, produzem as brechas que
rompem as sociedades e as incorporam nos indivíduos
(CHARTIER, 2009, p. 51-52).

Por se tratar do contexto brasileiro, o livro do historiador Rodrigo


Patto Sá Motta (2002) é essencial para se pensar a representação do
anticomunismo no período. Ao trabalhar com o conceito de imaginário,
Motta analisa o anticomunismo por meio de iconografias, jornais e revistas
produzidos pelos setores conservadores da Igreja católica.
Dessa forma, é possível o estudo das revistas Hora Presente e Permanência
como veículos de informação e de propagação do anticomunismo brasileiro e
de defesa da ditadura militar, por preservaram a ordem cristã e combaterem,
na ação política e teológica, a infiltração comunista no Brasil. Além disso, os
grupos atacaram e combateram os setores progressistas da Igreja católica e a
influência do pensamento moderno dentro da Igreja e da sociedade brasileira.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 205

Portanto, trata-se, aqui, de perceber a visão do grupo Hora Presente e


Permanência sobre seus oponentes e sobre a política da época: como
pensavam, sentiam, imaginavam e viam os progressistas católicos, a
modernidade e a política da época. Nesse sentido, serão apresentados alguns
artigos das revistas sob a orientação de três temas recorrentes nas suas
edições: críticas aos grupos progressistas da Igreja e de grupos de esquerda;
críticas ao pensamento moderno e sobre sua influência em setores da Igreja e
na sociedade; e manifestações de defesa e apoio ao governo ditatorial.

3.1 Progressistas e Comunistas

Nos artigos analisados até o presente momento, tanto o progressismo


como o comunismo foram os assuntos mais tratados e discutidos pelos dois
grupos. Para eles, o progressismo é um movimento caracterizado pela aliança
com o comunismo, e a diferença entre os dois encontra-se no fato da ala
progressista pertencer à Igreja católica. Encontram-se nas revistas artigos que
analisam os diferentes grupos formados por esse viés: o catolicismo holandês,
os grupos que formaram diversas revistas internacionais e brasileiras de cunho
progressista e outros.
Dessa maneira, os artigos se caracterizam por denunciarem uma
suposta infiltração do comunismo na Igreja e pelos males que essa união
poderia acarretar para a moral cristã da sociedade brasileira e para a vida
política do país.
Como exemplo, o quarto número da revista Hora Presente foi totalmente
dedicado a denunciar a infiltração comunista na Igreja católica em âmbito
mundial. Esta publicação traz o título As forças ocultas da Igreja: IDOC, CIDOC,
PAX, “Grupos Proféticos”, e aponta que a Igreja reconhece a força desse setor
por utilizar os meios de comunicação como grande propulsora de suas ideias.
Desse modo, aparecem narrações como: sacerdotes-guerrilheiros; os
206 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

escândalos de padres casadouros; as pregações sexualistas de freiras modernas;


a mundanização da Igreja; entre outras13.
Sendo assim, para os grupos Hora Presente e Permanência, a ala
progressista, naquele período, representava uma ameaça para os dogmas
pregados pela Igreja católica. Por ser uma instituição religiosa com mais de
dois milênios de história, os grupos afirmavam que o progressismo denegria
todos os Concílios realizados e colocava em xeque a autoridade do Santo
pontífice da Igreja católica, o Papa Paulo VI14. Para eles, tal ala, com o auxílio
dos meios de comunicação, representava um sinal de grandes mudanças para
o mundo católico:

Os sinais exteriores, aferidos pela doutrina de vinte séculos, ou até


simplesmente pelo credo de Paulo VI, bastam-nos para concluir
que o “progressismo” não deve ser visto como uma ala da Igreja, e
sim como a Anti-Igreja cuja organização se esboça com nitidez em
todo mundo15. (1969, p. 3).

3.2. O pensamento moderno na Igreja e na sociedade

Segundo os grupos Hora Presente e Permanência, o pensamento


moderno surge com a Reforma Protestante e atinge o seu auge com o
marxismo, sendo o responsável pela suposta crise interna na qual se
encontrava a Igreja naquele momento histórico. Os grupos salientam, ainda,
que o estopim da crise ocorreu por meio do diálogo entre o Concílio Vaticano
II e as ciências sociais.
No artigo escrito por Julio Garrido, o autor defende a ideia de que, com
a mentalidade pós-conciliar, surgiram doutrinas que subverteram a vida cristã

13
Hora Presente, ago. 1969, p. 27.
14
São inúmeros os artigos que tratam, especificamente, sobre a crise da autoridade do Papa
no mundo moderno, entre os quais se destacam: “A Infalibilidade do Papa”, escrito por
Hubert Saint Jacques (Hora Presente, fev. 1970, p. 63-83); “A Crise de Autoridade e o
Democratismo” (Permanência, jun. 1969, p. 6-18).
15
Artigo de Apresentação da Redação. Permanência, jun. 1969, p. 3.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 207

e os dogmas da Igreja católica, acarretando graves problemas para a instituição


religiosa:

O decréscimo do número de vocações, as aberrações litúrgicas, a


crise da disciplina, as destruições de tradições e obras de arte não
podem deixar de preocupar-nos, porém mais graves são as
infiltrações de ideologias acatólicas em certos meios eclesiásticos e
o desenvolvimento de certas teses que se vão afastando
paulatinamente da doutrina tradicional e vão constituindo, não uma
nova doutrina, mas uma mentalidade muito distinta daquela a que
estávamos acostumados e que o Sumo Pontífice chamou
“mentalidade pós-conciliar” expressando preocupações e
inquietações acerca de suas possíveis consequências16. (GARRIDO,
1968, p.77).

Percebe-se, portanto, que a modernidade é representada pela influência


do mal dentro do mundo católico. No artigo do espanhol Eugenio Vegas
Latapié, que descreve a perseguição dos papas católicos ao modernismo –
desde Leão XIII, no século XIX, até o seu auge, com o Concílio Vaticano II –
, destaca-se o seguinte comentário escreve sobre a manifestação do mal:

A Igreja sofre hoje talvez a maior crise de sua história, quando os


seus piores inimigos se acham instalados dentro dela própria,
espalhando o erro e a confusão na mente dos fiéis. Manifesta-se, de
novo, a “síntese de todas as heresias”, o modernismo, antigo nome
do “progressismo”, cuja obra maligna foi levada avante, em
silêncio, por organizações secretas, desde que São Pio X a fulminou
com a encíclica “Pascendi Dominici Gregisd”. De tão nocivos e
evidentes, os frutos do Mal não podem mais ser ignorados17.

Além dos reflexos da modernidade na Igreja, os grupos também


discutiam e criticavam a sua influência na mentalidade da sociedade brasileira,
sobretudo, no âmbito da moral. Têm-se inúmeros artigos e notas que tratam

16
“Concílio, Ano Zero”. Hora Presente, nov./dez. 1968, p. 77.
17
“O Velho Modernismo de Cara Nova”. Hora Presente, jan./fev. 1969.
208 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sobre anticoncepcionais18, educação sexual19, violência praticada pelos jovens20


e vários outros assuntos.

3.3 A ditadura militar


Durante o período ditatorial, tanto o grupo Hora Presente quanto o
grupo Permanência eram favoráveis às medidas tomadas e aos atos de
violência exercidos pelo governo militar no país. Na revista Permanência do
número de maio/junho de 1969, os redatores colocam a Igreja e Governo
como vítimas de uma suposta infiltração comunista no Brasil e pela veiculação
de informações falsas sobre os abusos de religiosos católicos:

Há um verdadeiro plano para desmoralizar o Exército e o


Governo. A estas horas D. Ivo Lorscheider e D. Castro Pinto se
aprontam para percorrer todas as dioceses brasileiras com a
finalidade de provar a inocência dos prisioneiros, torturados (no
dizer deles) por elementos do Exército. [...] Vários eclesiásticos
ousaram dizer que a Igreja estava sendo perseguida no Brasil, e nós
não sabemos o que pensar de tão grave inverdade [...]21.

Embora o apoio incondicional à política ditatorial, como no Decreto do


Ato Institucional AI- 0522, ou nos elogios proferidos aos discursos dos
presidentes militares23, as revistas traziam em seus artigos críticas ao

18
Entre os artigos se destacam: “A Pílula e a Emancipação da Mulher”, escrito por Alfredo
Leite (Hora Presente, set./out. 1968, p. 193-213); “Alcance e Obrigatoriedade da Humanae
Vitae”, escrito por Bernardo de Monsegú (Hora Presente, out. 1970, p. 187-237).
19
Destacam-se os seguintes artigos: “Sexo, Simplesmente” (Hora Presente, jan./fev. 1969, p.
211-223); “A Subversão Agora se Chama Sexo” (Hora Presente, fev. 1970, p. 29-39);
“Intimidade e Publicidade”, escrito por Gustavo Corção (Permanência, nov. 1968, p. 11-17).
20
Como exemplo, cita-se o artigo escrito por Henri Caffarel, sobre a importância de uma
educação cristã para que se evite a subversão dos jovens: “Filhos Morrendo de Fome”
(Permanência, jan. 1969, p. 73-75.
21
Artigo de Apresentação da Redação, Permanência, fev./mar. 1969, p. 2-3.
22
“O Momento Político: Abertura para o nada?”. Hora Presente, ago. 1969, p. 211-213.
23
“A Revolução à Procura de si mesma”. Hora Presente, fev. 1970, p. 21-28. A revista cita o
discurso proferido pelo General Garrastuzu Médici, no dia 07/10 de 1969, que propôs o
reerguimento político do Brasil por meio da efetivação dos princípios cristãos da cultura
ocidental.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 209

pensamento político do governo militar. No artigo “Impasse Político-Militar


no Brasil”, escrito pela redação de Hora Presente, o grupo inicia o texto
elogiando a política econômica dos militares, o governo e seus atos, mas, com
certa sutileza na construção crítica do texto, reconhece que existe um vácuo
de poder:

À falta de uma doutrina política corretamente formulada, recorreu-


se simplesmente – qual panacéia – à ocupação militar da máquina
administrativa, com vistas a assegurar a prevalência de critérios de
moralidade e a real preocupação com o interesse coletivo da coisa
pública. Como, no entanto, o problema não estava só em trocar
homens e como nem sempre o uso de uma farda gloriosa constitui
penhor de honradez pessoal e de capacidade técnica, pode-se
mesmo considerar que, de uma perspectiva global, ao invés de
avançar-se, na verdade houve retrocesso. A militarização do
aparato governamental fez brotar um sentimento anti-militar que
até então não existia, como fenômeno geral, no seio do povo
brasileiro. Os militares, vítimas do mesmo sistema viciado de
organização política e social dentro do qual têm de atuar, passam a
ser identificados – não faltando para isso a pregação
conscientemente dirigida pelos pescadores de águas turvas – com
as dificuldades e os malogros observados24.

Portanto, a relação de cooperação por parte dos grupos à ditadura


militar se construiu por meio da perseguição ao comunismo pelo governo
ditatorial. Dessa forma, em nome da honra e da moral cristã, a revista
veiculava informações aos católicos brasileiros sobre a ameaça do comunismo
na Igreja, na sociedade e na política do país.

4. Conclusão

Com o estudo do integrismo brasileiro, representado pelos grupos e


pelas revistas Hora Presente e Permanência, torna-se possível a compreensão da
história política do Brasil nos finais do século XX. As análises e os artigos

24
Hora Presente, set./out. 1968, p. 19.
210 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

apresentados acima caracterizam o movimento integrista como um fenômeno


católico e político.
Como foi possível retratar, ambos os grupos prestaram a sua
contribuição ideológica para o regime por meio de artigos que criticavam os
comunistas, os progressistas da Igreja e a modernidade, sem contar os artigos
que legitimavam o governo instaurado e seus atos de extremo autoritarismo.
Entretanto, a eficácia política desses movimentos foi limitada em
relação ao poder de reflexão e decisão aos círculos militares. Como afirma
Antoine (1980, p. 117), “[...] por feliz que se sinta o governo com o apoio que
recebe do integrismo católico, a aliança não é incondicional”.
Dessa forma, a aliança que se criou entre os grupos e a política da
época encontra-se na luta contra a subversão sob todas as suas formas –
política, moral ou social – e contra a minoria da Igreja oposta ao regime.
Como é possível analisar, os grupos se achavam no dever de oferecer aos
católicos um sistema de pensamento e uma diretriz de ação capaz de manter a
integridade da fé e a coesão da Igreja católica como um todo.
Portanto, torna-se essencial o estudo das revistas para que se
compreenda parte da história política do Brasil em anos ditatoriais. Por meio
do discurso e das representações históricas contidas em fontes produzidas por
grupos conservadores da Igreja católica brasileira, é possível que se conheça as
práticas e as ações dos grupos progressistas católicos em relação à ditadura
militar, possibilitando, assim, a análise das mudanças sociais que ocorriam
naquela conjuntura histórica.

Referências

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Brasil. Religião e sociedade, n. 3, p. 109 - 141, out./nov. 1978.
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O Reino de Deus na terra: mudanças teológicas e
participação política no pentecostalismo brasileiro

Vitor Aparecido Santos DE PAULA*

A
década de 1980, concomitantemente ao fim do regime militar no
Brasil, foi marcada pelo renascimento da vida pública brasileira. Foi
neste contexto que as igrejas pentecostais apareceram como novos
atores no campo político. Além dessas transformações ocorridas nos campos,
social e político, nos anos 1970 e 1980, ocorreram importantes mudanças na base
teológica pentecostal com a introdução de novas correntes provenientes dos
Estados Unidos, que são a Teologia da Prosperidade e a Teologia do Domínio.
Essas novas linhas teológicas trouxeram transformações ao padrão ascético
pentecostal e, consequentemente, à forma como estes passaram a se relacionar
com o político e o social, oferecendo substrato teológico para seu engajamento
político-partidário.
Embora já se façam presentes no Brasil há quase um século, foi somente
nas últimas décadas do século passado que as igrejas pentecostais1 passaram a
ganhar visibilidade social, aumentando seu espaço de atuação para fora do campo

*
Mestrando em História /UNESP/Assis. Orientador. Dr. Sidinei Galli.
1
Esse movimento religioso distinguia-se do protestantismo por enfatizar a busca pela
santidade e o batismo com o Espírito Santo, que seria evidenciado pela glossolalia. O nome
“pentecostalismo” é uma alusão ao que se entende ter sido um episódio registrado na Bíblia,
214 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

propriamente religioso. Entre os novos espaços que essas igrejas começaram a


almejar, suas incursões pelo campo da política têm despertado grande interesse, e
também preocupação, em diversos segmentos sociais.
Desde os anos 1930, há participação de protestantes no cenário político
nacional. Os primeiros políticos pentecostais foram eleitos ainda na década de
1960. Mas, então, o que há de novo na ação dos pentecostais contemporâneos?
Os pesquisadores do protestantismo brasileiro são unânimes em qualificar como
tímida a presença de protestantes no campo político, foi a partir das eleições para
a Assembleia Constituinte de 1986 que o protestantismo, representado
principalmente pelas igrejas pentecostais, passou a ocupar um papel relevante no
campo político. A novidade estava no fato de que as igrejas pentecostais
passaram a lançar candidatos próprios, mobilizando seus membros para que
votassem em seus candidatos, surgiam, então, os “políticos de Cristo”.
Desde então, a presença das igrejas pentecostais no campo político-
partidário brasileiro tem aumentado progressivamente. Esse aumento é
sustentado tanto pelas altas taxas de crescimento no número de frequentadores
dessas igrejas, bem como, por uma maior participação dessas igrejas junto ao
campo midiático, o que permite uma maior exposição de seus candidatos e
projetos. Todavia, a entrada desses novos atores no campo político tem
despertado inúmeras indagações a respeito dos benefícios ou entraves que a
presença de igrejas pentecostais junto ao campo político traria à consolidação do
regime democrático no Brasil e ao exercício da cidadania.
No presente trabalho, temos como objetivo levantar algumas
considerações acerca da participação das igrejas pentecostais no campo político

em Atos 2:1-4, ocorrido com os primeiros cristãos, no primeiro século, no dia da festa judaica
do “pentecostes”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 215

brasileiro e as relações que têm se estabelecido entre pentecostalismo, democracia


e cidadania. No primeiro tópico, faremos um breve histórico da chegada e do
desenvolvimento da Igreja do Evangelho Quadrangular, no Brasil. No segundo
tópico, procuramos realizar uma análise das principais linhas de pesquisa
desenvolvidas no Brasil acerca das relações entre pentecostalismo e atuação
política. No terceiro, procuramos demonstrar que a incursão de igrejas
pentecostais pela política deve ser situada num contexto maior de transformação
nos campos da política e da religião no Brasil. Por fim, no último tópico,
traçamos algumas breves considerações a respeito das relações entre
pentecostalismo e cidadania no Brasil.

Pentecostalismo no Brasil: a Igreja do Evangelho Quadrangular

A “International Church of the Four-Square Gospel”, que no Brasil


adotou o nome de Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), surgiu na cidade
norte-americana de Los Angeles, em 1922. O nome “Evangelho Quadrangular”
teria sido “revelado” à sua fundadora, a missionária Aimée Semple Mcpherson,
durante um culto realizado na cidade de Okland e refere-se “ao quadruplo
ministério do Senhor Cristo: O Salvador; O Batizador com o Espírito Santo; O
Grande Médico e o Rei que há de voltar” (IGREJA..., 1999, p.10).
A propagação da Igreja do Evangelho Quadrangular nos Estados Unidos
se realizou, principalmente, por meio da realização de “Cruzadas” evangelísticas e
pelo uso do rádio como meio de pregação. Por intermédio das “Cruzadas”,
missionários percorriam o país, utilizando locais pouco ortodoxos para a
realização de seus cultos, como ginásios, teatros e tendas de lona. Seus cultos
eram marcados por uma teologia centrada na pregação da “cura divina”, aliada a
uma prática litúrgica moderna, mais adequada às inovações culturais que
216 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

perpassavam a sociedade americana, com uso de guitarras elétricas e


instrumentos de percussão.
O Evangelho Quadrangular chegou ao Brasil, em 1951, por meio do
missionário norte-americano Harold Williams, um ex-ator de filmes far-west.
Williams, ao chegar ao Brasil, instalou-se, primeiramente, na cidade paulista de
São João da Boa Vista. Com o sucesso alcançado por suas pregações, e com a
ajuda de um amigo, construtor de tendas de lona, deu início, em 1953, à
“Cruzada Nacional de Evangelização”, na cidade de São Paulo. Embora seu
objetivo inicial fosse o de desenvolver um movimento não-denominacional,
frente a pouca aceitação da mensagem pentecostal, por parte dos pastores locais,
Williams fundou a igreja da Cruzada que, em 1954, veio a estruturar-se na Igreja
do Evangelho Quadrangular (FRESTON, 1993, p.83). Sua ligação com a igreja
norte-americana foi assegurada, cabendo-lhe a prerrogativa de indicar o dirigente
da Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil, situação essa que perdurou até
meados da década de 1980.
A implantação da Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), em 1953, tem
sido considerada, pelos pesquisadores do pentecostalismo no Brasil, um marco
na história desse movimento religioso. Segundo o sociólogo Ricardo Mariano, a
IEQ trouxe como novidades ao campo pentecostal brasileiro a ênfase teológica
dada à cura divina, o intenso uso do rádio e a estratégia proselitista da pregação
itinerante com o uso de tendas de lona (FRESTON, 1993, p.123). Essas
novidades trouxeram um novo fôlego à expansão pentecostal no Brasil, que até
então era representada pelas igrejas Congregação Cristã, fundada em 1910, e
Assembleia de Deus, fundada em 1911. Acompanhando o crescimento da IEQ,
surgiram as primeiras igrejas pentecostais fundadas por brasileiros: a Igreja
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 217

Pentecostal O Brasil para Cristo, fundada em 1955, e a Igreja Pentecostal Deus é


Amor, fundada em 1962.
Com a estruturação da IEQ, e a fixação de sua sede nacional na cidade de
São Paulo, a Cruzada Nacional de Evangelização deixou de ser um movimento
proselitista para se tornar o departamento evangelístico da Igreja do Evangelho
Quadrangular. A pregação itinerante, com uso de tendas de lona, passou, então, a
seguir um planejamento oficial. A abertura de novas igrejas fora entregue a
jovens missionários, que rumaram primeiramente para as principais cidades do
interior paulista. Sua estratégia proselitista, assim como acontecia nos Estados
Unidos, baseava-se na realização de cultos e sessões de cura divina em locais
públicos – praças, ginásios, estádios – aliada ao uso intenso do rádio. Ao final da
década de 1960, a IEQ já se fazia presente nas principais cidades do Estado de
São Paulo, alcançando também os Estados das regiões Sul e os demais Estados
da região Sudeste.
A Igreja do Evangelho Quadrangular figura entre as primeiras igrejas
pentecostais a se envolverem com a política partidária por meio do apoio a
candidatos próprios.2 Mas este envolvimento não ocorreu sem conflitos internos,
a iniciativa de apoiar as candidaturas dos pastores Mário de Oliveira e Jayme
Paliarin, em 1986, à Assembleia Nacional Constituinte, foi realizada mesmo com
a desaprovação do presidente nacional da igreja, que ainda era indicado pela
igreja norte-americana. Nos anos seguintes, o envolvimento da igreja brasileira
com a política partidária acabou causando um cisma com a matriz norte-
americana.

2
Embora, o pastor Mário de Oliveira já houvesse sido eleito deputado estadual, em 1982, sua
candidatura não passou de uma atitude isolada. Já nas eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte de 1986, os pastores Mário de Oliveira e Jayme Paliarin, contaram com o apoio
institucional para se elegerem a deputados federais.
218 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Embora tenha sido uma das pioneiras no engajamento político, a IEQ,


quando comparada a outras igrejas como a Igreja Universal do Reino de Deus,
obteve resultados modestos em seus projetos políticos. Com vistas a mudar essa
situação, durante a década de 1990, a igreja procurou mobilizar toda a sua
estrutura eclesiástica em seus projetos, a atuação política não deveria mais ficar
restrita aos pastores pertencentes à sua cúpula dirigente. Para que isso ocorresse
de forma coordenada, foram necessárias mudanças em sua organização
administrativa, como a criação da Coordenação Nacional de Ação Política, em
1999, que ficou responsável por traçar estratégias políticas, que permitissem à
IEQ o lançamento de candidatos próprios nas eleições nos níveis municipal,
estadual e federal (CONSELHO..., 2000, p.10).
Outra novidade apresentada foi a criação, também em 1999, da Secretaria
Geral de Cidadania da Igreja do Evangelho Quadrangular (SEGECIEQ), a qual
ficou responsável por formular a “Doutrina Sociopolítica” da igreja e, nas
palavras de seu secretário-geral Rev. Rui Barboza, “conscientizar e mobilizar o
povo Quadrangular sobre a importância da atuação da igreja no cenário político
nacional, estadual e municipal.”3

Pentecostalismo e política: a produção acadêmica

No Brasil, os estudos relacionados às manifestações religiosas populares


ganharam fôlego, sobretudo a partir da década de 1970. Os primeiros estudos
referentes ao pentecostalismo brasileiro também remontam a esta época. O
crescimento das igrejas pentecostais, que se acelerou a partir da década de 1950,
levantou novas questões aos grupos religiosos até então majoritários no campo

3
Disponível em:< http://www.ieqcedsp.com.br/portal/novidades/cidadania.asp>. Acesso
em: 26 set. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 219

religioso brasileiro. Católicos e protestantes buscaram compreender as razões do


crescimento pentecostal frente ao seu encolhimento ou estagnação.
O livro Refúgio das Massas (D’EPINAY, 1970), resultado de uma série de
estudos encomendada pelo Conselho Mundial de Igrejas, ao sociólogo suíço
Christian Lalive D’Epinay, encontrou grande eco entre pesquisadores brasileiros.
Realizados entre os anos de 1965 e 1966, estes estudos tiveram como tema o
“protestantismo e as mudanças sociais na América Latina”, com foco para o
pentecostalismo chileno. Para D’Epinay o pentecostalismo crescia no Chile, em
primeiro lugar, por ter sintetizado em sua teologia a teologia protestante –
cristocentricidade, biblicismo e união da fé com a ética –, com uma forma de
espiritualidade característica das religiões “populares” – emoção, ritos de
possessão e participação coletiva. Segundo o autor, a sociedade chilena estava
mergulhada em uma grave crise social, agravada pelo acelerado processo de
desestruturação da sociedade rural fortemente patriarcal e paternalista, que tinha
como base estrutural o sistema de haciendas. Nesse contexto, de forte
desestabilização social, o pentecostalismo surgiu como um referencial de apoio
frente a uma comunidade em fragmentação.

[..] o pastor coloca-se como patrão, chefe indiscutível, que protege,


que aconselha. Muito autoritário, assegura a proteção da comunidade,
e é possível crer nele pois é o depositário do dom de Deus.
(D’EPINAY, 1970, p.81).

Para D’Épinay, o pentecostalismo aparecia como um reprodutor das


relações autoritárias do mundo rural e, portanto, sendo prejudicial à formação de
uma sociedade democrática. Seus estudos tiveram forte influência na produção
sociológica sobre o protestantismo no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Nesse
220 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

contexto, enquanto que a Igreja Católica aparecia como um dos pontos de luta
pela democracia, as igrejas pentecostais eram tidas como defensoras dos regimes
autoritários então em curso em diversos países da América Latina.
O sociólogo Cândido Procópio Ferreira Camargo, no livro Católicos,
protestantes e espíritas, semelhantemente a D’Epinay, associou a expansão
pentecostal no Brasil ao “processo de desorganização social” decorrente do
declínio da sociedade rural brasileira. Segundo o autor, a história do
protestantismo brasileiro pode ser dividida em dois momentos: o primeiro,
denominado de “protestantismo de imigração”, teve início com a chegada dos
imigrantes europeus protestantes, especialmente alemães, que vieram para o
Brasil nos séculos XVIII e XIX. O segundo, denominado “protestantismo de
conversão”, teve início com a atuação de missionários norte-americanos, a partir
da segunda metade do século XIX. É neste último que o pentecostalismo está
inserido.
Para o autor, a expansão pentecostal está diretamente ligada ao processo
de êxodo rural e ao inchaço dos centros urbanos que marcaram a dinâmica social
brasileira no século XX. Esses processos ocasionaram para os novos habitantes
das cidades uma série de dificuldades de acomodação aos padrões de
comportamento adequados à nova sociedade urbana em rápido processo de
industrialização. O crescimento pentecostal se justificava “pela possibilidade que
[este] apresenta a seus adeptos de preencher necessidades e aspirações dos que se
encontram envolvidos em um processo acelerado de mudança sociocultural”
(D’EPINAY, 1970, p.148).
O pentecostalismo cumpriria duas funções, a primeira, de integração
social, ao restabelecer vínculos sociais comunitários, e a segunda, “terapêutica”,
ao oferecer salvação e cura ao corpo e à alma, conferindo um sentido espiritual a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 221

todos os eventos que perpassam a vida humana. Para o fiel, todas as dificuldades,
não passam de “provações” que podem ser vencidas pela fé. O autor oferece a
conclusão de que o pentecostalismo trouxe uma reorientação de conduta, em
termos sacrais, aos que se encontravam despreparados para participar de modo
efetivo da nova sociedade urbano-industrial (D’EPINAY, 1970, p.148).
Para os autores acima citados, o pentecostalismo crescia porque oferecia
uma resposta religiosa adequada à situação de anomia e desestabilização a que
estavam submetidos os segmentos populacionais privados das formas
tradicionais de organização econômica e social, reproduzindo as relações
autoritárias desenvolvidas no mundo rural.
Outra perspectiva de análise do pentecostalismo, surgida na década de
1970, foi proposta por abordagens que, partindo de uma matriz teórica marxista,
procuraram tratar o pentecostalismo “em sua relação com a organização
capitalista das relações de produção” (ALVES, 1978, p.126).
Francisco Cartaxo Rolim (1976) em sua tese de doutorado intitulada
Pentecostalismo: gênese, estrutura e funções, criticou o posicionamento téorico-
metodológico adotado por D’Epinay e Camargo. Para Rolim, a expansão
pentecostal e suas relações com a sociedade devem ser pensadas para além das
mudanças socioculturais e dos processos de urbanização e industrialização. Esse
fenômeno religioso deveria ser visto com base em uma perspectiva dialética, “à
luz da sua inserção em uma totalidade social, para daí se ter uma visão interna e
poder discernir sua significação na sociedade” (ROLIM, 1976, p.362).
Para o autor, a estrutura religiosa pentecostal mostra-se de grande
importância para a sua expansão. Sem uma “divisão social do trabalho religioso”,
ela abre-se às camadas marginalizadas da população, permitindo-lhes acesso aos
seus cargos eclesiásticos, e também, conclamando-as “para o trabalho religioso
222 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

coletivo”, algo até então inexistente no Catolicismo e no Protestantismo. Mas,


por outro lado, por ser um dos componentes da formação de uma sociedade de
tipo capitalista, o pentecostalismo favorece a continuidade desta. Atuando sobre
as camadas pobres, ele “esvazia as possíveis aspirações às transformações
histórico-sociais” (ROLIM, 1976, p.361). Assim, “ao mesmo tempo em que a
ideologia religiosa pentecostal cria condições para a reprodução de sua própria
estrutura religiosa, torna-se neste mesmo movimento um dos condicionamentos
da reprodução do modo de produção capitalista” (ROLIM, 1976, p.362).
Este último ponto é aprofundado por Rolim (1980) no livro Religião e classes
populares, no qual o autor se propôs a analisar e comparar as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e o pentecostalismo em suas relações com as classes
populares. Ele afirma:

Tal qual está sendo implantado entre nós, o pentecostalismo é um


mundo sacral que oprime por que expropria. Não apenas oprime
porque afoga seus adeptos no mar da sacralidade [...]. Expropria o
pobre dos instrumentos da luta contra a sua pobreza. Desarma-o,
embora o adestre moralmente para ser um bom e obediente servidor
do patrão. (ROLIM, 1980, p.185).

Embora adote uma perspectiva teórica diferente da adotada por Rolim,


Cátia Santos (1995), em sua dissertação de mestrado em História, chega a uma
conclusão semelhante, a de que o pentecostalismo impede seus adeptos de
procurarem a resolução de seus problemas por meio de atitudes concretas “neste
mundo”. A autora se propõe a analisar até que ponto o pentecostalismo
desenvolvido no Brasil se diferenciou do pentecostalismo branco norte-
americano4. Para Santos, o pentecostalismo brasileiro se distinguiu do

4
Segundo Rolim, o pentecostalismo norte-americano pode ser subdividido em duas vertentes
que guardaram posturas diferenciadas com relação às questões sociais: o pentecostalismo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 223

pentecostalismo norte-americano devido às especificidades políticas e sociais


brasileiras, concluindo que:

O questionamento das ações dos governantes, a discussão em torno


de seus direitos, além dos deveres, não parece ser ao adepto
pentecostal inerente à sua cidadania. Sua responsabilidade só passa
pelos deveres e raramente pelos direitos, os seus direitos, o divino
incumbe-se de resgatar. (SANTOS, 1995, p.107 - grifos nossos).

O próprio desenvolvimento do movimento pentecostal brasileiro,


principalmente nas últimas três décadas, com o campo de atuação das igrejas
pentecostais expandindo-se para fora dos limites de seus templos e com o
desenvolvimento de programas assistenciais, a sua presença junto aos meios de
comunicação e o engajamento político tem colocado em xeque as possibilidades
explicativas acima apresentadas. O fiel não é mais levado a colocar as suas
esperanças num mundo porvir, antes, é convocado a viver o agora.
Mais especificamente sobre a relação entre as igrejas pentecostais e a
política, destaca-se a tese de doutorado defendida por Paul Freston (1993),
Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Segundo o autor, a
atuação das igrejas pentecostais foi a grande novidade da eleição para a
Assembleia Nacional Constituinte de 1986. Abandonando o discurso de rejeição
à política estas instituições apresentaram candidatos próprios para concorrerem
pelas cadeiras da Constituinte.
Ainda segundo Freston, o apolitismo pentecostal estava embasado em
uma visão teológica que via o mundo como uma realidade transitória e

branco e o pentecostalismo negro. Os adjetivos “negro” e “branco” referem-se aos grupos


étnicos predominantes nas diferentes comunidades pentecostais que se formaram. Para o
pentecostalismo negro a religião esteve intimamente ligada às lutas político-sociais da
população negra, já o pentecostalismo branco esteve dissociado de qualquer movimento
político ou social, e foi este último que chegou ao Brasil.
224 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

condenada. Mas o abandono do discurso apolítico não foi acompanhado por


mudanças teológicas. A explicação para essa mudança de posicionamento estaria
nas tensões que permeiam as relações entre as igrejas pentecostais e o meio
social. As igrejas pentecostais buscariam, na ação política, dar respostas a três
questões principais. Em primeiro lugar, fortalecer as lideranças internas. Uma vez
que os pastores pentecostais sofrem de um status contraditório – frente ao grupo
religioso são líderes prestigiados, mas fora do ambiente sectário não possuem
prestígio social –, ao lançar-se na política ou apoiar um protegido, buscam
atenuar essas contradições. O segundo fator refere-se à concorrência religiosa
presente no campo religioso brasileiro. Com o lema de liberdade religiosa
ameaçada os pentecostais buscam, na atuação política, dar início a uma
concorrência com o catolicismo por espaço na religião civil. E o último fator,
está ligado ao tema de “ameaça à família”, em que os líderes pentecostais reagem
às mudanças no ambiente social que ameaçam a socialização sectária.
O trabalho apresentado por Freston contribui ao lançar novas
possibilidades explicativas ao crescimento pentecostal e às relações deste com a
política. Sua proposta de perceber o pentecostalismo em três ondas de criação
institucional tornou-se um modelo para os trabalhos posteriores sobre este
movimento. No entanto, historiograficamente sua abordagem limita-se a uma
abordagem factual, demonstrando dificuldade em situar o desenvolvimento
histórico do pentecostalismo nas estruturas sociais, econômicas e mentais
(SIEPIERSKI, 2003). Ademais, a emergência de novas práticas no campo
pentecostal, a partir da década de 1970, trouxe mudanças significativas não só ao
pentecostalismo como ao campo religioso brasileiro como um todo. Essas
mudanças têm provocado transformações, até no caráter sectário das igrejas
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 225

pentecostais, que passaram a buscar justamente o contrário, influenciar cada vez


mais a sociedade.
Nos trabalhos acima mencionados, foram dedicados espaços à análise das
práticas políticas suscitadas por essas novas expressões religiosas, neles podemos
delimitar duas tendências principais. Na primeira, corrente entre os anos de 1970
e 1980, o pentecostalismo aparece como um dos baluartes dos regimes
ditatoriais. A segunda vertente, que começou a ganhar força nos anos 1980, no
contexto de queda do regime militar, procurou focar o contraste entre os papéis
do catolicismo e do protestantismo em relação às funções que estes poderiam
desempenhar no fortalecimento de regimes democráticos. Uma característica
importante dessas duas tendências está no fato que ambas são dominadas por
pesquisadores da área de Ciências Sociais, foi somente a partir dos anos 1990 que
a historiografia passou a nutrir um interesse maior pelas expressões religiosas de
cunho popular, crescendo o interesse de historiadores pelo movimento
pentecostal brasileiro.
Um exemplo de trabalho em que podemos encontrar essas novas
tendências historiográficas, marcadas pela interdisciplinaridade, foi realizado pela
antropóloga Maria Lúcia Montes (1988), que aponta para as transformações
profundas observadas nas últimas décadas no campo religioso brasileiro.
Em primeiro lugar, no Brasil, país tradicionalmente católico, o
protestantismo tem alcançado um poder de dimensões inéditas. Por outro lado, o
próprio protestantismo tem vivenciado transformações internas com a
emergência dos pentecostais e neopentecostais e as novas práticas religiosas que
estes trouxeram pela proximidade com os “compósitos das crenças afro-
brasileiras”. Essa maior visibilidade pública tem se refletido no interior do
próprio grupo, que tem buscado, agressivamente, marcar sua presença na vida
226 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

pública por meio da atuação política, sobretudo a partir de 1986, como ressalta a
autora:

Desde então, a cada eleição, o acompanhamento dos apoios, adesões,


divergências e alianças de candidatos evangélicos, e das próprias igrejas
com relação a outros candidatos, se tornaria uma tarefa obrigatória dos
analistas da religião e da política no Brasil. (MONTES, 1988, p.88).

As análises do campo religioso oferecidas por Montes são de grande


relevância, porém, por ser um trabalho de mapeamento amplo do campo
religioso brasileiro, não há uma abordagem específica das relações entre os
pentecostais e a política.

Pentecostais na política: um contexto político e teológico

A inserção das igrejas pentecostais na política partidária deve ser situada


no contexto do processo de redemocratização, ou, se preferir, como expressa
Carvalho, de democratização pós-1985. Durante o período em que os militares
estiveram no poder, à semelhança do que já havia acontecido durante o Estado
Novo, houve um enfraquecimento dos direitos civis e políticos. Pode se
argumentar que esse enfraquecimento das instituições políticas tenha
desencorajado a participação de grupos religiosos junto às esferas do poder, além
do que no que tange aos grupos pentecostais, estes ainda não contavam com
grupos numericamente expressivos5.
No período pós-1985 há um despertar de novos atores que passaram a
lutar por espaço nas esferas do social e do político. Cita-se, por exemplo, a

5
Segundo os Censos Demográficos realizados pelo IBGE, os evangélicos perfaziam apenas
2,6%da população brasileira na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 227

emergência ou fortalecimento, de movimentos sociais e outras entidades


representativas da sociedade civil ou de algum de seus segmentos, como é o caso
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e das Organizações
Não-Governamentais (ONGs). Foi também nesse período que surgiram grupos
ligados a questões específicas: negros, mulheres, povos indígenas e homossexuais.
Há um renascimento da vida pública, com a mobilização dos mais variados
segmentos e instituições da sociedade civil que lutavam pelo direito de
participação nas importantes questões nacionais, o que culminou em grandes
manifestações em defesa da realização de eleições diretas, “o período da
‘transição democrática’ reafirmou o direito do cidadão de participar de eleições
livres e justas” (NAVES, 2003, p.569). É neste contexto que as igrejas
pentecostais apareceram como novos atores no campo político.
Além dessas transformações ocorridas nos campos social e político, nos
anos 1970 e 1980, ocorreram importantes mudanças na base teológica
pentecostal, com a introdução de novas correntes provenientes dos Estados
Unidos – a Teologia da Prosperidade e a Teologia do Domínio. Essas novas
linhas teológicas trouxeram transformações ao padrão ascético pentecostal e,
consequentemente, à forma como estes passaram a se relacionar com o político e
o social, oferecendo substrato teológico para seu engajamento político-partidário.
A disseminação da chamada “Teologia da prosperidade” pelo campo
protestante brasileiro, colocou os fiéis pentecostais diante de uma nova postura
frente ao mundo social. Antes detentores de um discurso de abandono “às coisas
deste mundo”, os fiéis pentecostais passaram a ser chamados a viver o “aqui e
agora”. O até então predominante ascetismo pentecostal foi abandonado em prol

5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000, ano em que somavam
26.184.941 de pessoas.
228 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

da busca por uma vida marcada pelo sucesso financeiro, pela saúde perfeita e o
triunfo nos empreendimentos terrenos, que passaram a ser vistos como
evidências da benção divina.
Originário do metodismo e do movimento Holiness, o movimento
pentecostal encontrou guarida, sobretudo entre as camadas pobres e
marginalizadas. Foi assim em sua expansão inicial nos Estados Unidos e,
posteriormente, também no Brasil. Devido ao seu forte caráter sectário e
ascético, os pentecostais defenderam uma forte desvalorização do mundo,
deslocando suas promessas redentoras para o além, a exceção estava na cura
física.
A Teologia da Prosperidade tem sua origem nos Estados Unidos, onde,
além desse nome, é também conhecida por Health and Wealth Gospel, Faith
Movement, Faith Prosperity Doctrines e Positive Confession. Surgida ainda na década de
1940, foi somente a partir da década de 1970 que conquistou maior repercussão
junto aos grupos evangélicos carismáticos. Na base de suas crenças estão ideias
provenientes da filosofia do “Novo Pensamento”6 e da teoria da “Confissão
Positiva”.
A “Confissão Positiva” refere-se à crença de que os cristãos detêm o poder
de trazer à existência o que declaram, decretam ou determinam com a boca em
voz alta. Em suma, as palavras ditas com fé compelem Deus a agir, seja para o
bem seja para o mal. Um ponto que têm gerado controvérsias em relação à
Confissão Positiva no meio protestante está no fato de que, para os seus
defensores, confessar não tem nada a ver com pedir ou suplicar a Deus. “Os

6
A filosofia do “Novo Pensamento” foi formulada originalmente por Phineas Quimby (1802-
66). Quimby, que estudara espiritismo, ocultismo, hipnose e parapsicologia para produzir sua
filosofia, inspirou e curou Mary Baker Eddy, fundadora da Ciência Cristã” (p. 151). A qual teria
fundado, posteriormente, a teoria da Confissão Positiva. (ROMEIRO, 1993).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 229

cristãos, em vez de implorar, devem decretar, determinar, exigir, [...], tomar posse
das bênçãos a que têm direito.” (MARIANO, 1999, p. 154).

Aqui reside praticamente metade do segredo do sucesso na vida


espiritual. Exigir a bênção que, segundo a Palavra, já é nossa, é
simplesmente concordar com o Senhor e não deixar o diabo ficar com
aquilo que nos pertence. Ao exigirmos o cumprimento de tudo o que
legalmente nos pertence, estamos agindo estritamente dentro da
vontade do Senhor, expressa nas Escrituras. (SOARES, 1997, p. 10)

O fato de muitos cristãos ainda não terem tomado posse das bênçãos
divinas à sua disposição está, em primeiro lugar, na incompetência desses em
confessá-las de forma adequada, na falta de fé, na existência de pecados ou,
simplesmente, pelo fato de ignorarem que possuem “direitos” divinos a serem
reclamados.

É exatamente isto que Ele está fazendo. O Senhor está lhe mostrando
que, a partir de agora, tudo o que você determinar no nome dEle, Ele
mesmo fará. Em outras palavras – você é quem determina o que terá
ou não. Você é de Deus. Recriado em Cristo Jesus para o sucesso, para
uma vida plena, para determinar o que quiser, e vencer. Se
fracassarmos em receber qualquer bênção, é por nossa culpa. O que
exigirmos, Ele o fará. (SOARES, 1997, p. 31-33).

No Brasil, a Teologia da Prosperidade iniciou sua trajetória nos anos 1970,


principalmente por intermédio das igrejas Universal do Reino de Deus e
Internacional da Graça, mas não se restringindo a estas igrejas, ela tem sido
assimilada, em menor ou maior grau, por muitas igrejas e ministérios
pentecostais.
Para os pregadores da Teologia da Prosperidade, a posse, a aquisição e a
exibição de bens, a saúde em boas condições e a vida sem aflições são
apresentadas como provas da espiritualidade do fiel, enquanto a doença e a
230 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

pobreza são sinais de falta de fé. Há, portanto, um rompimento com o velho
ascetismo pentecostal.
A Teologia do Domínio está inserida em contexto maior, marcado pela
concepção de que os cristãos devem tomar partido em uma “Batalha Espiritual”.
Desde o início, o Diabo tem encontrado enorme destaque na doutrina cristã, isso
se dá, em grande parte, devido à dificuldade de se conciliar a onipotência e
suprema bondade divina do Deus cristão com a existência do mal e do
sofrimento humano.
Desde o século XVII, a teologia liberal, católica e protestante, tem
reduzido o papel ocupado pelo Diabo, tratando-o como metáfora, assim como
esvaziou as possibilidades de intervenções sobrenaturais na vida cotidiana dos
indivíduos. Todavia, a teologia liberal nunca foi majoritária no meio protestante.
Suas interpretações da Bíblia causaram nos EUA do século XIX, horror em
diversos grupos cristãos tradicionalistas e fundamentalistas, “todos profundos
crentes no poder do Diabo.” (MARIANO, 1999, p.110). Foi entre essa maioria,
de crentes na ação do Diabo, que o pentecostalismo se estabeleceu, estes
enxergam a ação divina ou demoníaca nos acontecimentos cotidianos mais
insignificantes.
Ao ser trazido para o Brasil, o pentecostalismo não perdeu a noção de
estar inserido em uma realidade sacral, influenciada pela ação demoníaca e divina.
Aqui, a presença do “inimigo de Deus” foi identificada, especialmente na forte
influência do catolicismo nas esferas social e religiosa, além, é claro, das religiões
de matriz africana, candomblé e umbanda. Todavia, foi somente a partir da
década de 1980, que desencadeou no Brasil, o que veio a ser intitulada por muitos
de “guerra santa”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 231

Utilizando-se de uma pedagogia guerreira, os defensores da “guerra


espiritual” procuram acentuar a dependência do fiel pentecostal em relação a
soluções sacrais, ao mesmo tempo, em que procuram encorajá-los a tomar
partido em uma luta contra o Diabo, “revertendo as consequências de seus atos,
conquistando território e pessoas para Jesus” (MARIANO, 1999, p.122).
A concepção de “batalha espiritual”, ou guerra espiritual, ganhou força no
Brasil sobretudo no início da década de 1990. Nessa formulação teológica,
baseada na Teologia do Domínio, a “guerra” deve ser travada contra demônios
específicos, que são os “espíritos territoriais e de geração”.
A Teologia do Domínio fundamenta-se na ideia de que existem demônios
que dominam sobre áreas geográficas (bairros, cidades, países), instituições e
grupos étnicos, tribais, culturais e religiosos, que necessitam ser libertos por meio
da oração ou da guerra espiritual.

Para expulsá-los, os crentes fazem intercessões nos cultos e, de


preferência, no próprio local ou território que desejam libertar,
evangelizar e tomar posse para Deus. [...] a evangelização tem como
precondição a guerra espiritual, cuja principal arma é a oração [...] Daí
terem se tornado comuns as “caminhadas de oração” de fiéis por seus
bairros de moradia. (MARIANO, 1999, p. 138).

É nesta ideia de libertação por meio de atos e ações realizados em


determinados locais que se encontra a base teológica para a realização das já
conhecidas “Marchas para Jesus”, que hoje acontecem, anualmente, em diversas
cidades brasileiras. Ao “marcharem” pelas ruas de uma determinada cidade e
declarar a soberania de Cristo sobre aquele lugar, os fiéis acreditam estar
destruindo as influências malignas que impedem o sucesso da obra
evangelizadora.
232 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Por sua vez, os “espíritos geração”, ou hereditários, são responsáveis pelas


maldições de família. Segundo essa concepção, um indivíduo que possua um
ancestral que pecara ou mantivera ligações com qualquer prática antibíblica,
como o ocultismo e demonismo, carrega consigo uma maldição provocada pelo
demônio herdado. Para se libertar é necessário que este renuncie ao pecado e às
ligações demoníacas de seus antepassados, para assim “quebrar” as maldições
hereditárias.
Por meio da crença na maldição hereditária, seus defensores, procuram
explicar a causa de doenças, violências, guerras, desigualdades sociais e toda sorte
de problemas que não tenham uma causa aparente. Ainda segundo os defensores
dessas duas linhas teológicas, todos os problemas da sociedade brasileira
poderiam ser superados por meio da intercessão.
Segundo o sociólogo Ricardo Mariano, a Teologia do Domínio ao lado da
Teologia da Prosperidade, tem se prestado ao uso eleitoreiro.

Prato cheio para os políticos evangélicos, a crença nos espíritos


territoriais tem se prestado ao uso eleitoreiro. Justificam seus
defensores, candidatos e cabos eleitorais que a eleição de evangélicos
para os altos postos políticos da nação trará bênçãos sem fim à
sociedade. Além de desalojar parlamentares infiéis, idólatras,
macumbeiros e adeptos de práticas pagãs, parcialmente culpados pelas
terríveis maldições que recaem sobre o país, os políticos evangélicos,
eleitos, teriam a privilegiada oportunidade de poder interceder, nos
planos material e espiritual, diretamente no próprio local onde se
alojam poderosos demônios territoriais que tanto oprimem os
brasileiros. (MARIANO, 1999, p. 144).

Nesse sentido, é sintomática a afirmação da pastora Valnice Milhomens,


líder do Ministério Palavra de Fé, quando da candidatura de Francisco Rossi
(PDT/SP) ao governo paulista, em 1994.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 233

É inevitável concluir que a raiz dos nossos problemas é de ordem


espiritual [...] Diante do exposto, é de suprema importância elegermos
governantes que reconheçam Deus com Supremo e de fato dependam
dele e consultem sua palavra [...] Estamos não apenas apoiando a
candidatura do Dr. Francisco Rossi, mas empenhando-nos em batalha
espiritual, intercessão e apoio, para que este servo de Deus chegue ao
governo do Estado e o nome no Altíssimo seja glorificado. (Gospel
News, 5, outubro de 1994, p. 10).

Mas, se por um lado, a disseminação dessas novas linhas teológicas no


pentecostalismo brasileiro contribuiu para a mudança de postura de parte das
igrejas pentecostais frente à política, discordamos do posicionamento adotado
por Mariano, segundo o qual os agentes religiosos manipulariam o discurso
teológico submetendo-o aos seus interesses. Antes, acreditamos que as mudanças
ocorridas no posicionamento político dos fiéis pentecostais, inclusive de seus
líderes e pastores, são fruto de mudanças no seu posicionamento teológico e não
o contrário. Compartilhamos com os argumentos de Aline Coutrot, segundo os
quais existem relações estreitas entre prática religiosa e atitudes políticas.

Podemos nos espantar que o simples praticante, que tem com único
alimento o culto ou a missa semanal, seja modelado pelo ensinamento
da Igreja a ponto de nele se inspirar em suas condutas sociais e
políticas. (COUTROUT, 1996, p.336).

Segundo a autora, ao serem socializados por práticas coletivas, os cristãos


acabam adquirindo um sistema de valores que profundamente interiorizado
subtende suas atitudes políticas. Dessa forma, o fato de existirem formas
diferenciadas de posicionamento frente ao político está diretamente relacionado
ao fato de que “sempre existiram muitas correntes teológicas, há muitas
espiritualidades modelares de comportamentos profundamente dessemelhantes
em relação ao mundo e à sociedade política.” (COUTROUT, 1996, p.337).
234 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Ao abordarmos a religião em conexão com a política, não podemos nos


esquecer de que para os fundamentos teológicos, nos quais os fiéis assentam sua
fé, são reveladores de atitudes e ações que estes colocam em prática em seu dia a
dia.

Limitar-se como se faz, às vezes, às posições políticas é deter o olhar


na superfície das coisas. Elas são inseparáveis de uma concepção
determinada da verdade, das relações entre o espiritual e o temporal, e
inexplicáveis sem isso. (COUTROUT, 1996, p.338).

Pentecostalismo e cidadania: breves considerações

Ao analisarmos a atuação de igrejas pentecostais no campo político


brasileiro, surgem algumas questões importantes: Quais motivações têm guiado
estes novos atores em suas ações? Que novas propostas estes defendem trazer ao
campo político? O que pensam e como definem a cidadania e o papel do
cidadão? Que benefícios ou entraves eles podem trazer ao campo político e à
consolidação da democracia no Brasil?
A entrada de igrejas evangélicas no campo político tem, desde o início,
levantado a bandeira da moralização da política brasileira por meio da eleição de
políticos comprometidos com a verdade. Dessa forma, ao buscar o apoio de seus
membros para os seus candidatos, as igrejas pentecostais se apoiam em dois tipos
de argumentos diferentes que se complementam, por um lado, fundamentam seu
envolvimento político em bases teológicas, ou seja, o projeto não é da igreja ou
do pastor, estes apenas cumprem uma ordenança divina. Em segundo lugar,
apontam para o fato de a política estar tomada pela corrupção e decadência,
necessitando, portanto, de pessoas comprometidas com a verdade e integridade,
pessoas estas que poderão “trazer luz às trevas”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 235

O historiador José Murilo de Carvalho (2005) chama atenção para o fato


de o fenômeno da cidadania possuir uma historicidade, adquirindo características
próprias nos diversos contextos histórico-geográficos em que se desenvolveu.
Apoiando-se em T. A. Marshall, Carvalho desdobra o conceito de cidadania em
direitos civis, políticos e sociais. Segundo o autor, seriam cidadãos plenos
somente aqueles indivíduos que gozassem dos três direitos. Os direitos civis
seriam aqueles fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade
perante lei. Os direitos políticos referem-se à participação do indivíduo no
governo da sociedade em que está inserido. Por fim, os direitos sociais buscam
assegurar a participação de todos na divisão das riquezas produzidas, dele fazem
parte o acesso à educação, ao trabalho, à justa remuneração, à saúde e à
aposentadoria. Todavia, Carvalho aponta para um caminho diferente do trilhado
por Marshall, para a ele, por ser um fenômeno histórico, a cidadania não pode ser
estudada com base em um paradigma único, antes se deve buscar as
especificidades que marcam o seu desenvolvimento nos diferentes contextos
históricos e geográficos. Há, por exemplo, diferenças entre o caminho percorrido
pela cidadania na Inglaterra e no Brasil e, portanto, os cidadãos desses dois países
também guardam diferenças substanciais.
Em nossa pesquisa de mestrado, procuramos estudar a atuação da Igreja
do Evangelho Quadrangular junto ao campo político por meio da atuação direta
na política partidária. No trabalho com fontes é comum nos depararmos com o
emprego da palavra “cidadania”. Mas, de que forma as igrejas pentecostais têm
encarado o fenômeno da cidadania? Quando as igrejas pentecostais convocam
seus membros a exercer sua cidadania? A que tipo de cidadania se referem?
Esses pontos são importantes de serem esclarecidos uma vez que no Brasil
Pós-Regime Militar a palavra cidadania passou a ser empregada rotineiramente
236 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

por políticos, artistas, intelectuais, líderes sindicais e simples cidadãos


(CARVALHO, 2005, p.7). Ao ser empregada no senso comum, muitas vezes não
há clareza no sentido em que o conceito é empregado. Será que sindicalistas,
religiosos e intelectuais ao empregarem o conceito de cidadania o entendem com
o mesmo sentido? Procuraremos apreender de que forma um grupo religioso
cristão pentecostal, a Igreja do Evangelho Quadrangular, tem apreendido este
conceito e o empregado em sua prática política.
Como citamos anteriormente, a Igreja do Evangelho Quadrangular, com
vistas a melhorar o desempenho alcançado por seus projetos eleitorais, criou, em
1999, a Secretaria Geral de Cidadania da Igreja do Evangelho Quadrangular
(SEGECIEQ), a qual ficou responsável por formular a “Doutrina Sociopolítica”
da igreja e, nas palavras de seu secretário-geral Rev. Rui Barboza, “conscientizar e
mobilizar o povo Quadrangular sobre a importância da atuação da igreja no
cenário político nacional, estadual e municipal.”7
A leitura do material produzido pela SEGECIEQ aponta alguns indícios
importantes do posicionamento político adotado pela igreja. Sua “doutrina
sociopolítica” traz como pontos a serem combatidos: o divórcio sem
fundamento; o casamento de pessoas do mesmo sexo e homossexualismo; o
aborto; a imposição do controle de natalidade e esterilização; a pena de morte; a
exploração de crianças e adolescentes; a legalização da profissão de prostituta; a
discriminação (raça, cor, credo); a corrupção e impunidade; a opressão aos menos
favorecidos; os vícios em geral e o fechamento de igrejas e prisão de pastores.
Como pontos a serem defendidos ela traz: o direito da cidadania (conscientização
do povo); o direito à educação religiosa com plena liberdade de expressão; a

7
Disponível em: <http://www.ieqcedsp.com.br/portal/novidades/cidadania.asp>. Acesso em:
26 set. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 237

assistência social; o direito da ocupação da mídia pela igreja (liberdade de


imprensa); a ética e decência nos meios de comunicação; a preservação ecológica;
o amparo aos necessitados de saúde e moradia com infraestrutura, e o trabalho
justo e estável (DOUTRINA)8.
O conceito de cidadania empregado é muito próximo do apresentado por
Marshall,

Todo homem é possuidor de diversos direitos existenciais, morais,


culturais, religiosos políticos, econômicos e sociais. Temos, portanto,
direito à vida, à integridade física, ao respeito, à segurança e aos meios
necessários para uma vida digna.
A participação na vida pública, justa distribuição dos salários, livre
iniciativa, propriedade privada, liberdade de locomoção, expressão,
fixação de residência, etc. (DOUTRINA, p. 10).

Embora estejam contemplados os direitos civis, políticos e sociais, na


prática social a igreja entende o exercício da cidadania como a busca pela
conscientização da população, que passaria, então, a se mobilizar contra os
projetos contrários à fé cristã. O cidadão pentecostal, seria aquele que procurasse
“tomar conhecimento dos trabalhos dos parlamentares e dos projetos que
apresentam, como votam, como tratam da vida e da família, quais os interesses
que defendem, etc”(DOUTRINA, p. 10).
Um ponto ainda controverso na relação entre pentecostalismo e cidadania
está no direito à liberdade religiosa. Embora a defesa do direito à liberdade
religiosa apareça como uma das bandeiras defendidas pelos políticos
pentecostais, a relação conflituosa entre os pentecostais e as religiões de matriz

8
DOUTRINA sociopolítica da Igreja do Evangelho Quadrangular. Disponível em:
<http://www.cidadaniaquadrangular.com>. Acesso em: 14 mai. 2010.
238 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

africana dão a entender que essa liberdade religiosa deve ser restrita às religiões
cristãs, não havendo espaço para outras expressões religiosas.
Existem, portanto, algumas tensões entre o discurso pentecostal acerca da
cidadania e a sua prática religiosa. No discurso político, os grupos pentecostais
procuram alinhar-se a uma postura de respeito aos direitos civis, entre eles a
liberdade religiosa, mas, em sua prática e discursos religiosos, apresentam o
mundo como um campo de “batalha”, no qual as forças do bem, representadas
pelos fiéis pentecostais, devem combater o avanço das “forças malignas”, no
Brasil, comumente associadas ao catolicismo e às religiões de matriz africana.

Referências:

ALVES, R. A. A volta do sagrado: os caminhos da Sociologia da Religião no


Brasil. Religião e sociedade, n. 3, out-nov, 1978.
CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
CONSELHO NACIONAL DE DIRETORES. Estatuto da Igreja do Evangelho
Quadrangular. São Paulo: Editora Quadrangular, 2000.
COUTROUT, A. Religião e política. In: REMOND, R. (Org.). Por uma História
Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. p. 331-363.
D’EPINAY, C. L. Refúgio das Massas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
DOUTRINA sociopolítica da Igreja do Evangelho Quadrangular. Disponível
em: <http://www.cidadaniaquadrangular.com>. Acesso em: 14 mai. 2010.
FRESTON, P. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. 1999.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
1993.
IGREJA DO EVAGELHO QUADRANGULAR, O Evangelho Quadrangular. São
Paulo: Editora Quadrangular, 1999.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 239

MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Edições Loyola, 1999.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In:
NOVAIS, F.; SCHWARCZ, L. (Org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, v. 4, p. 63-171
NAVES, R. Novas possibilidades para o exercício da cidadania. In: PINSKY, J.;
PINSKY, C. B. (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
ROLIM, Francisco. Cartaxo. Pentecostalismo: gênese, estrutura e funções. 1976.
Tese (Doutorado em História) USP, São Paulo, 1976.
ROLIM, F. C. Religião e classes populares. Petrópolis: Vozes, 1980.
ROMEIRO, P. Supercrentes: o evangelho segundo Kenneth Hagin, Walnice
Milhomens e os profetas da prosperidade. São Paulo: Editora Mundo Cristão,
1993.
SANTOS, Cátia. Línguas de Fogo: acomodação, rebelião e cidadania entre os
pentecostais de São Paulo (1960-1994). 1995. Dissertação (Mestrado em
História) UNESP, Assis, 1995.
SIEPIERSKI, P. D. Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo
brasileiro. In: GUERRIERO, S. (Org.) O estudos da religião: desafios
contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 71-88.
SOARES, R. R. Como tomar posse da benção. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1997
II
CULTURA E SEUS SUPORTES:
IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES
2.1.

Os intelectuais, a imprensa e
outros meios de comunicação
Construindo um problema: o entusiasmo
intelectual nas cartas do Centro Cultural Euclides
da Cunha1

Itamar Cardozo LOPES*

Para conhecer o seu objeto, o historiador deve


possuir em sua cultura pessoal, na própria
estrutura do seu espírito, as afinidades psicológicas
que lhe permitirão imaginar, sentir, compreender
os sentimentos, as idéias, o comportamento dos
homens do passado com que virá a deparar nos
documentos.

Henri-Irénée Marrou
Sobre o conhecimento histórico

O
objetivo deste artigo é apresentar uma problemática de pesquisa
que vem sendo investigada há alguns anos. A construção dessa
proposta se deu a partir do contato com a documentação do
Centro Cultural Euclides da Cunha, um prestigioso agrupamento de intelectuais
que funcionou de 1948 a 1985 na cidade de Ponta Grossa, no Paraná. Ao
examinar tais documentos, em especial o rico acervo epistolar acumulado pela
agremiação, é possível perceber a existência de um apego muito grande às

1
Este texto é uma versão ligeiramente modificada do primeiro capítulo da Dissertação de
Mestrado, defendida em fevereiro de 2011, junto ao Programa de Pós-graduação em
História da UNESP/Assis, sob orientação do Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior. (Cf.
LOPES, 2011).
*
Mestre em História /UNESP/Assis.
246 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

lides científico-literárias e ao trabalho intelectual diletante. Reunindo então


alguns desses indícios, o presente artigo procura pensá-los como sendo
passíveis de uma reflexão historiográfica bastante promissora.
À primeira vista, a problemática aqui desenvolvida poderá vir a
despertar alguma estranheza no espírito do leitor. É preciso reconhecer, afinal,
que dedicar um estudo histórico sério a uma noção tão vaga e inusitada
quanto a de “entusiasmo intelectual”, de fato levanta suspeitas, como o faz,
aliás, toda e qualquer mudança, todo desvio de trajeto que, por ínfimo que
seja, em maior ou menor grau, sempre implicará em aventuras e desventuras.
Os historiadores, porém, dificilmente se lançam sozinhos pelos vales
ermos e pelos pântanos desconhecidos. Não obstante existam alguns poucos
entre eles que, vez por outra, abandonam as trilhas, se desgarram
corajosamente do bando e caçam a sós, como o fazem as aves de rapina ou
alguns grandes felinos – para depois ajuntarem ao seu redor outros caçadores
e desbravadores animados pelo seu sucesso –, a grande maioria evolui pelas
carreiras em grupos que se apoiam e se ajudam. Avançam, portanto, como o
fazem os alpinistas para enfrentar as agruras da escalada: amarrando-se uns
aos outros.
De maneira semelhante, não estivemos sozinhos em nenhum momento
do nosso percurso. Desde a formulação do que viria a ser a questão de partida
até seu posterior encaminhamento, procuramos sempre acompanhar, com
segurança e alguma autonomia, os passos firmes de alguns companheiros de
senda. Deste modo, a ênfase que achamos por bem destacar em nosso estudo
é consoante, em primeiro lugar, às investidas levadas a cabo não só pelos
historiadores, mas também por muitos outros pesquisadores ao longo das
últimas três décadas. Em termos mais precisos, pode-se mesmo dizer que as
questões que procuraremos explorar ao longo deste trabalho situam-se na
confluência de três campos distintos do conhecimento histórico: a história
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 247

cultural, a história intelectual ou dos intelectuais, e o que mais recentemente


vem sendo chamado de história da palavra impressa.2
A conjunção aqui operada entre esses três ramos da historiografia, no
entanto, só poderá ser adequadamente compreendida se for pensada em
função da natureza mesma do problema aventado. Em outras palavras, é
somente a partir da apresentação das principais indagações que o constituem
que poderemos apreender e distinguir com clareza os liames que mantêm com
os diferentes campos do conhecimento histórico mencionados logo acima.
Estando, então, em conformidade com tais condições, começaremos
por destacar que o problema aqui levantado esteve, inicialmente, ligado a uma
constatação importante, porém bastante fugidia: a empolgação característica
que até a metade do século passado ainda cercava as atividades de muitos
grupos de intelectuais, especialmente no interior do país.3 Por conseguinte, o
que precisamente despertou-nos a atenção e a curiosidade, nesse sentido, foi a
atmosfera entusiástica singular que, naquele contexto, continuava sendo parte
integrante do comportamento e, sobretudo, das práticas de grande parte
daqueles indivíduos dedicados aos labores científicos e literários.
No plano concreto, tal entusiasmo manifestava-se, muitas das vezes,
por meio da reunião de pequenos grupos de intelectuais em associações e
pequenas academias – tanto formais quanto informais –, cujo amálgama era
fornecido justamente por um clima de comprometimento e de investimento
pessoais muito fortes. No domínio individual, por sua vez, os caracteres deste

2
Não é o caso aqui de se estender numa longa definição de todos estes domínios
historiográficos. Contentar-nos-emos em remeter o leitor a algumas referências que, por
sinal, também são as nossas. São elas: Darnton (1990); Sirinelli (2003); Rioux & Sirinelli
(1998); Zanotto (2008). Com efeito, o exame desta pequena bibliografia parece ser
suficiente para acercarmo-nos da aproximação que tem marcado todos estes campos do
conhecimento histórico.
3
Segundo Michel Foucault, seria preciso justamente “[...] marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os
esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a
consciência, os instintos”. (FOUCAULT, 2005, p. 15).
248 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

investimento eram igualmente observáveis, demonstrando inclusive um


envolvimento subjetivo que seria ainda mais profundo. Como corolário, desde
o início de nosso percurso pela temática, fomos frequentemente
surpreendidos por testemunhos, personagens, perfis e declarações
desconcertantes procedentes deste mundo particular. O traço comum entre
todos estes elementos – ao menos no que toca ao período que vai do final do
século XIX até meados da metade do século XX – era a existência de um tipo
característico de apego aos livros e às lides intelectuais que, a rigor, traduzia-se
nos termos de uma verdadeira obsessão pelo conhecimento e pela edificação
espiritual.
No que se refere às primeiras décadas do século passado, por exemplo,
uma destas formulações pode ser encontrada na aventura intelectual
experimentada por Deusdedit Moura Brasil, advogado que frequentou a
Biblioteca Pública do Paraná, de modo intermitente, entre 1914 e 1918.

Leitor assíduo, Deusdedit deixou em seus escritos inúmeras


impressões, não somente sobre os autores e obras que leu, mas
também sobre o próprio processo de aprendizado calcado na
leitura e sobre os meios para este aprendizado. Em sua dissertação
para o concurso de professor na Faculdade de Direito, Deusdedit
descreveu de forma bastante enfática o processo que caracterizou
sua passagem pelas salas de aula daquela mesma faculdade. Esta
foi, para ele, uma “phase acerrima em que me trepidaram espírito e
corpo, como arbustos transplantados a regiões estranhas a lutarem
com o meio tellurico [...]”.
Este processo foi traumático, já que não buscava meramente obter
as notas para a aprovação nas cadeiras que cursou, mas tentava dar
conta do aprendizado de forma mais completa. O trauma se
manifestou ante o volume de leituras que ele teria que fazer durante
e após seu curso, expresso como pasmo e deslumbramento
causados pela obra humana, contemplada no espelho prefulgente
da bibliografia inexgotável que senti vontade absurda de resumi-la
em fóco e aluminar-me de vez, como por processo mechanico se
desaggrega, se desfaz, sem acção do tempo e da lucta, o corpo em
cinzas ou em pó. (DENIPOTI, 1998, p.314).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 249

Como é possível observar, o que realmente chama a atenção nas


declarações de Deusdedit – muito mais do que o nome e o vocabulário – é o
arrebatamento físico e quase transcendental que ele manifesta não só pela
prática da leitura, mas também pelo próprio processo de aprendizado que esta
lhe proporcionava. Causa ou consequência disso, aquilo que de fato importava
para o advogado era algo muito mais profundo do que a princípio poderíamos
supor. Com efeito,

[…] sua busca ia para além do conhecimento superficial sobre os


assuntos de seu interesse, para “regiões mais altas” e “recantos
mais límpidos”, as razões últimas que lhe proporcionassem a
satisfação de viver em paz, reservado e imune: a satisfação de
“lançar olhar em torno de si e não ignorar demasiadamente [...].
Buscava poder discernir entre “a semente e a casca”, habituar-se a
“colher do emaranhado venenoso [...] a jóia ou o brinco que
deleitará e confortará o espírito em seguida”.
Após esse processo, Deusdedit avaliou que estava capacitado para
exercer o cargo de professor substituto porque amadureceu o
suficiente, ou, em suas palavras: Estou na phase do incubo, do
empollamento, ou melhor, na puberdade mental, satisfeito porque
esclareci ao meu espírito irriquieto as primeiras duvidas, distendi-
lhe a primeira mão de cal, dei-lhe a primeira luz, retirei-o dos
cachos da escuridade, iniciei o grande enigma, e agora, poderá
adejar ao talante sem ignorância pasmosa de quem contempla
herbário, sem fazer antecipadamente classificação de cada arbusto.
(DENIPOTI, 1998, p.315).

O que Deusdedit pretendia, portanto, era garantir “uma sensação de


segurança e solidez naquilo que ele entendia como função do intelectual e do
cientista – são raros os momentos em que ele parece lembrar-se que é
advogado” (DENIPOTI, 1998, p.315). Em última instância, as motivações
que o impeliam ligavam-se a um desejo quase incontrolável de realmente
mergulhar fundo no debate científico e filosófico de seu tempo.

Esse debate, calcado em uma noção de ciência bem definida, tinha


por pressuposto o dever de “fomentar o ensino superior,
250 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ministrando-o como queria Alberto Torres – aos capazes de


recebê-lo e disseminando a grandeza anatômica do Brasil – supino
ideal de Sylvio Romero”.
A noção de educação adotada por ele transparecia também em sua
opinião sobre a alfabetização, ou a “diffusão dos vinte e cinco
utilíssimos caracteres, com alguns tragos de moralidade e civismo”.
Alfabetização essa, definida como “luz aos trevosos cérebros”, que
não deveria ser abrupta (“não tão forte para não maltratar a vista”),
nem em demasia (“moderada, lentamente”), mas apenas suficiente
para que família e pátria fossem engrandecidas. (DENIPOTI, 1998,
p.315).

Outro exemplo que ilustra bem esta dedicação apaixonada pelos


afazeres intelectuais pode ser encontrado no perfil e na própria vida de Dario
Vellozo, homem que viveu em Curitiba até 1937. Ao longo dos 58 anos de sua
existência, Vellozo demonstrou uma profunda devoção aos livros e às
atividades editoriais, além de ter fundado e colaborado na criação de inúmeros
periódicos e associações literárias na capital paranaense. Entre as agremiações
por ele fundadas, destacam-se, por exemplo, o Instituto Neo Pitagórico, de 1909,
e a Escola Brasil Cívico, de 1913.
Contudo, e malgrado o reconhecimento que logrou conquistar em todo
o Paraná,

[...] a inserção de Dario Vellozo [...] no universo da palavra escrita,


deu-se cedo e de forma não tão requintada, pois ele iniciou-se
como aprendiz de encadernador no Rio de Janeiro, logo após ter
estudado no Liceu de São Cristóvão. Em 1885, ano seguinte a seu
aprendizado, tornou-se compositor-tipógrafo na oficina de Moreira
Maximino & Cia., também na capital do Império. Iniciando-se nas
artes de confeccionar obras impressas, Vellozo antecipava sua total
inserção nesse universo. Esses conhecimentos valeram-lhe uma
profissão quando sua família, (pai e irmãos, já que a mãe morrera
ainda no Rio) emigrou para Curitiba, pois seu primeiro trabalho,
logo após a mudança em agosto de 1885, foi como tipógrafo do
jornal Dezenove de Dezembro, o primeiro a ser impresso no Estado.
Sua chegada ao novo lar e sua aceitação por parte dos habitantes
locais foi, de certa forma, atenuada pelos livros. Vários daqueles
que se tornariam seus discípulos ou admiradores admitiram que, a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 251

princípio, acharam-no petulante, mas foram vencidos ou pelo


maior volume de leituras que trazia em sua formação, ou pela rica
biblioteca da casa de seu pai. (DENIPOTI, 1998, p.31-32).

No que tange aos propósitos de nossa problemática, é sem dúvida


significativo que a rejeição inicial de que Vellozo foi vítima tenha sido
superada graças à bagagem de leituras e à biblioteca de que dispunha. Para
além da simpatia pessoal, porém, esta mesma biblioteca também possibilitou-
lhe a realização de um outro importante feito: a reunião de um pequeno grupo
de jovens estudantes e de intelectuais interessados em ler e discutir obras
literárias nacionais e estrangeiras. “Os serões literários diários contribuíram
para que o pequeno grupo constituísse uma associação – batizada de Cenáculo
– responsável por diversas publicações periódicas e de livros daqueles em seu
círculo de influência” (DENIPOTI, 1998, p.33).
Deste modo, a inserção de Dario Vellozo neste domínio particular
realmente se deu de forma integral, uma vez que atuou a um só tempo como
editor, como professor, como escritor profícuo e também como mentor. Em
outras palavras,

Dario Vellozo estava envolvido no mundo do livro, não somente


pela leitura, mas em todo o processo de produção, criação e
divulgação da palavra impressa. A forma intensa como ele leu os
simbolistas, os “pitagóricos” e os autores locais demonstram uma
profunda dedicação a este universo. Como personagem exemplar
do apego que seu tempo atribuía ao livro, Vellozo penetrou mais
do que a maioria de seus contemporâneos nesse universo,
carregando no processo algumas dezenas de seguidores mais
empenhados. Seu envolvimento com a leitura e o mundo do livro
foi a chave para seu reconhecimento naquela sociedade, que
inicialmente fechou-se provincianamente a ele, mas que elevou-o
ao patamar de um de seus maiores expoentes intelectuais.
Vellozo foi um exemplo extremo desse envolvimento com o
mundo da leitura, mas de forma alguma esteve sozinho. Sua
dedicação aos livros encontrou eco em um meio bastante fecundo,
onde a palavra impressa marcava o comprometimento com idéias
252 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de nação, pátria, civilização, arte, ciência, etc. (DENIPOTI, 1998,


p.41-42).

Assim como no caso de Deusdedit, as inclinações de Dario Vellozo


não se restringiam ao simples cultivo gratuito da erudição, mas apresentavam,
também, uma preocupação constante com os problemas cívicos e sociais do
país, especialmente no que tocava às questões suscitadas pela educação e pela
instrução pública. Em ambos os casos, no entanto, o ponto exato que parece
importante ressaltar neste momento diz respeito à entrega substancial a tais
questões, ou seja, ao fervor apaixonado que marca, respectivamente, o
testemunho do primeiro e o perfil do segundo. Do ponto de vista histórico,
foi justamente esta entrega entusiasmada aos afazeres intelectuais que nos
causou profunda impressão, visto que era então compreendida e vivenciada
simultaneamente como vocação, paixão e missão.
Esse tipo de envolvimento com as atividades intelectuais e com o
universo da palavra impressa, porém, não era uma exclusividade do ambiente
curitibano do período. Embora a capital paranaense estivesse de fato
atravessando um momento de transformações socioculturais e de
desenvolvimento intelectual sui generis no início do século passado, como já
observaram os historiadores, em outras cidades do interior do Estado também
era possível de se encontrar indivíduos cujas vidas haviam sido pautadas ou
profundamente inspiradas pelo apego aos livros e às lides intelectuais.4 Na
cidade de Ponta Grossa, por exemplo, o nome de José Hoffmann não aparece
apenas associado ao jornal Diário dos Campos ou aos vários cargos políticos que
ocupou, mas, sobretudo, pelo fato de que “possuía uma grande biblioteca e lia

4
Sobre as transformações socioculturais e sobre a efervescência intelectual da Belle Époque
curitibana, consultar, por exemplo, Berberi (1998); Denipoti (1999) e Trindade (1996).
Sobre o efeito destas mesmas transformações no interior do Paraná, principalmente sobre a
cidade de Castro, consultar Leandro (1999).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 253

muito” (CAHMMA, 1988, p.101). A recordação mantida por seu filho Celso
vem reforçar ainda mais tal associação:

Celso relata que seu pai dedicou grande parte de sua vida à leitura
de obras das mais variadas espécies, buscando, com isso, adquirir
novos e maiores conhecimentos sobre todas as questões que
achava relevante.
Uma das imagens que Celso mais guarda de José Hoffmann é
justamente a de um leitor costumaz que passava o tempo todo
rodeado por livros, em busca de um saber sem fim. (CHAVES,
2001, p.49).

Ainda que o perfil de Hoffmann estivesse profundamente atrelado à


própria natureza do trabalho jornalístico, ele é representante de um hábito que
era bastante comum entre o estrato letrado da sociedade do período. Essa
dedicação, como se sabe, ainda encontrava suas maiores justificativas junto ao
pensamento que conferia então aos livros, jornais, escolas e bibliotecas o status
de índices e promotores da “civilização” e do “progresso”, o que, contudo,
não a impediu de ser vivenciada de um modo subjetivamente mais intenso por
muitos outros indivíduos. O envolvimento com tais assuntos, neste caso,
ultrapassava, em muito, o aspecto imediatamente prático das justificativas de
caráter utilitarista, convertendo-se, por vezes, numa devoção quase que
religiosa. Em se tratando da cidade de Ponta Grossa, o perfil que mais se
enquadraria nesse sentido seria, talvez, o de Faris Antônio Salomão Michaele,
homem que dedicou praticamente toda sua existência às atividades de
natureza intelectual.
Nascido em 3 de setembro de 1911, Faris Michaele era natural de
Mococa, pequena cidade localizada no nordeste do Estado de São Paulo.
Filho de imigrantes da região de Akar, extremo norte do Líbano, Faris
mudou-se com a família de Mococa para Ponta Grossa, em 1913 ou 1914, e
em 1936 formou-se bacharel em Direito, pela Faculdade de Direito do Paraná,
254 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

localizada, então, na capital Curitiba. Como advogado, porém, atuou apenas


esporadicamente, “pois Faris, que já demonstrara não ter inclinação para o
comércio, não se sentiu tampouco atraído pelo dia-a-dia da advocacia”
(WANKE, 1999, p.36).
Desde os tempos em que integrou a primeira turma de estudantes do
Ginásio Regente Feijó, a partir de 1927, o jovem Faris já revelaria quais
seriam, na verdade, seus grandes e reais interesses: foi nesta escola que teria
fundado o Grêmio Literário Visconde de Taunay, além de ter colaborado,
juntamente com outros alunos, na edição do jornal estudantil O fanal. A este
interesse pela literatura e pelos implementos culturais, logo se juntaria um
outro, a saber: a disposição para o conhecimento e a aprendizagem de línguas
e idiomas. Segundo o que correntemente se afirmava a esse respeito, Faris
teria sido um verdadeiro poliglota. Além do árabe e do francês, conhecidos de
modo rudimentar talvez no próprio ambiente familiar, Faris também teria
tomado contato com o alemão em seus primeiros tempos na escola.
Posteriormente, escreveu e publicou poesias em inglês, castelhano, tupi-
guarani e nheengatu ou tupi moderno, sobre o qual publicou, inclusive, um
guia didático. Se acreditarmos nas palavras de Eno Theodoro Wanke, o autor
de sua biografia, os conhecimentos de Faris não teriam parado por aí:

Conhecia o grego. Lia o hebraico, já que esta língua é aparentada


com o árabe, uma de suas “línguas maternas” comentadas acima.
Isto sem falar nas línguas africanas haussá e iorubá sobre as quais
escreveu um livro erudito. Sabia, quer lendo, quer entendendo,
línguas e dialetos dos quais nós, os pobres mortais, nem
suspeitávamos existissem, como o copta antigo, a língua dos
hieróglifos faraônicos, o malaio, etc. (WANKE, 1983, s/p).

A despeito de qualquer exagero por parte daquele que foi também seu
discípulo, a extensão dos conhecimentos e/ou das pretensões de Faris nos
permite ter uma ideia aproximada do empenho e do esforço com que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 255

atirava a tais questões.5 Essa diligência é tanto mais impressionante se


lembrarmos que grande parte desta bagagem não poderia ser conquistada na
época, senão pela via do autodidatismo, requisito ainda muito comum nas
décadas de 1920 e 1930. Não obstante isso, sua dedicação às atividades
intelectuais se mostrava ser ainda mais ampla:

Foi professor do Colégio Estadual Regente Feijó, dos cursos de


Letras e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da
de Direito de Ponta Grossa, dedicando-se às mais variadas áreas do
saber: Sociologia, Antropologia, História, Etnografia, Direito,
Línguas e outras.
Sua biblioteca particular era famosa na cidade, reunindo perto de
oito mil exemplares e, curiosamente, entre eles, nenhum livro de

5
As inúmeras entidades culturais e literárias às quais Faris Michaele esteve vinculado são
também exemplares desta dedicação. Seguem algumas delas: Academia Paranaense de
Letras (Curitiba), Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense (Curitiba),
Academia de Letras José de Alencar (Curitiba), Centro de Letras do Paraná (Curitiba),
Centro do Professorado Paulista (São Paulo), Instituto Hans Staden (São Paulo), Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (São Paulo), Casa da Cultura (Limeira - São Paulo),
Casa de Euclides (S. José do Rio Pardo), Instituto Histórico de Paranaguá, (Paranaguá),
Instituto Histórico de Alagoas (Alagoas), Academia Belo-Horizontina de Letras (Belo
Horizonte), Casa de Euclides (Natal), Associação Passo-Fundense de Letras (Passo Fundo),
Academia Riograndense de Letras (Porto Alegre), Academia Piracicabana de Letras
(Piracicaba), Academia Brasileira de Filologia (Rio de Janeiro), Academia de Letras de
Uruguaiana (Rio Grande do Sul), União dos Trovadores do Brasil (Rio de Janeiro), Centro
Cultural Humberto de Campos (Espírito Santo), Academie Ansaldi (Paris), American
International Academy (Nova York), International Council of Museums (Londres),
Academia de Cultura Guarani (Assunção), Instituto de História, Etnologia y Folclore
(Tucumán - Argentina), Casa de Cultura (Lima), Faro dei Titánici (Nápoles), Accademia
Letteraria Scientífica Internazionale (Nápoles), Accademia di Paestum (Salerno), Accademia
dei Magnati ed Autori (Roma), Accademia dei Magnati Bibliófili (Nápoles), Unión Cultural
Americana (Buenos Aires), Instituto de Cultura Americana (La Plata), Accademia Letteraria
Araldica Scientífica (Treviso), Instituto e Biblioteca Panamericana (Buenos Aires), Órden
de los Insignidos de América (Buenos Aires), Asociación de los Escritores de la Provincia
de Buenos Aires (La Plata), Legión Espiritual Americana (La Plata), Confraternité
Universelle Balzacienne (Paris), Asociación Panamericana de Intercambio Cultural (La
Paz), Grupo Americanista de Intelectuales y Artistas (Montevidéu), Centro Cultural de
Filgueiras (Filgueiras - Portugal), Asociación de los Derechos del Negro (Buenos Aires),
Instituto Argentino de Críticos Literarios (Buenos Aires), Academia Universal de
Humanidad (Buenos Aires), Institut Nord-Africain d’Etudes Metapsychiques (Argel-
Argélia), Sociedad Naturalista Colombiana (Medelin), Centro Literario Filosófico “Arca del
Sur” (Montevidéu), Academia Andronosófica (San Marino - Mônaco). (MICHAELE, 1983,
p. 298-299; DITZEL, 1998, p. 175-178; WANKE, 1999, p. 110-112).
256 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Matemática, poucos de História Universal. Predominam as obras


de Antropologia, Biologia, Geografia Humana, Filosofia, Física,
Fitogeografia, Sociologia, Economia Política, Ensaios, Romances,
Gramática (416 volumes) e Dicionários (115 volumes). Chamam
também a atenção várias bíblias em diversos idiomas (31 volumes).
(DITZEL, 1998, p.172-173).

Deste modo, todo o saber acumulado por Faris só poderia mesmo ter
sido adquirido “através de uma insaciável fome de livros” (WANKE, 1983,
s/p). Assim, seu interesse pela literatura, pelas línguas e pelas diversas áreas do
conhecimento humano não poderia ser explicado apenas em termos
profissionais e/ou utilitaristas, pois envolvia também um investimento pessoal
e material que seriam efetivamente muito grandes. Como pudemos observar
nos exemplos acima, Faris e muitos outros de seus contemporâneos tiveram
suas vidas de tal forma absorvidas pelas lides intelectuais que para nós até se
torna difícil assimilar ou materializar no presente. É, portanto, a esse tipo
específico de postura ou comportamento que viemos até aqui nos referindo
ao falar em “entusiasmo intelectual”.
Evidentemente, esse entusiasmo não se encerrava pura e simplesmente
nesse clima de profunda imersão subjetiva visto acima. Como já foi
devidamente mencionado, Faris encontrava sua sustentação e sua razão de ser
em algumas ideias que já haviam sido transformadas em verdadeiras
“profissões de fé” da intelectualidade do período. Assim, a busca pelo
conhecimento que animava grande parte dos intelectuais, nesse momento,
combinava bem com exortações políticas em favor da educação e da
instrução, bem como com manifestações simpáticas a muitos outros
incrementos na esfera cultural. O caso de Faris Michaele é novamente
exemplar nesse sentido, pois seu nome esteve vinculado ao surgimento de
várias instituições importantes da cidade de Ponta Grossa. Faris participou
ativamente da instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da
Faculdade de Direito de Ponta Grossa, além de ter fundado outros órgãos na
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 257

cidade como o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, em 1944; o Centro Cultural


Euclides da Cunha, em 1948; o Instituto Histórico, Geográfico e Etnológico de Ponta
Grossa, em 1974; e o Museu Campos Gerais, em 1950.
Como se pode ver, o entusiasmo, que em geral cercava as lides
intelectuais, manifestava-se de diversas formas. Ele poderia simplesmente se
materializar em declarações ou confissões exaltadas, como no caso do
“advogado” Deusdedit Moura Brasil, ou então marcar de modo indelével a
própria existência, como ocorreu com Dario Vellozo e Faris Michaele. No
entanto, independentemente de suas modalidades, este entusiasmo parecia
estar sempre envolto numa espécie de libido sciendi, isto é, num
comportamento que seria caracterizado acima de tudo por um “desejo
extremo de saber” (BADINTER, 2007, p.11). Ora, a forma mais arraigada e
comum de dar vazão a este desejo era naturalmente acumular e se atirar aos
livros, tal como o fizeram José Hoffmann, o próprio Faris Michaele e também
muitos outros em suas pulsões autodidatas.
O que, todavia, necessita ficar claro é que este apego aos livros não
deve ser entendido apenas como a propensão ou o hábito de ler e colecionar
tais objetos – o que por si só já é significativo6 –, mas também como uma
inclinação muito mais ampla e que envolveria, portanto, todo o universo da
palavra impressa. De certa forma, isto acabava reforçando não só o prestígio
social que permeava neste momento o processo e a posse da instrução formal
ou da alfabetização, mas também a importância que se atribuía ao manejo e
domínio das letras, principalmente quando tais habilidades se referiam ao uso
e à função precisa de que estariam então investidos livros e jornais. Mas isso
não era tudo. Com efeito, a aquisição e a difusão do saber – via palavra

6
“A associação de livros com seus leitores é diferente de qualquer outra entre objetos e
seus usuários. Ferramentas, móveis, roupas, tudo tem uma função simbólica, mas os livros
infligem a seus leitores um simbolismo muito mais complexo do que o de um mero
utensílio. A simples posse de livros implica uma posição social e uma certa riqueza
intelectual”. (MANGUEL, 1997, p. 242)
258 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

impressa –pareciam ainda muito próximas dos termos em que eram pensadas
em fins do século XIX, quando

[...] bibliotecas, imprensa, livros e escolas aparecem como espaços


de realização futura da utopia do progresso, ao mesmo tempo que
são os instrumentos de construção do caminho civilizacional que se
imaginava para a nação. (DENIPOTI, 2004, p.151).

Deste modo, se no final do século XIX e início do XX havia de fato


uma grande celebração em função das benesses trazidas pela imprensa7, em
1944, ela ainda era vista por um jornal ponta-grossense como “o marco
assinalador de uma nova civilização”. No que se referia às bibliotecas, a
conclusão não era muito diferente, pois seriam elas de grande necessidade e
utilidade e ainda “de um valor insofismável” (DIÁRIO..., 1944, p.5).
Para Ary Martins, o articulista que registrou tais palavras, não seria nada
exagerado afirmar que a difusão de livros e a implantação de bibliotecas
seriam mesmo a solução para o desenvolvimento do Brasil. E isto não só do
ponto de vista humano, intelectual ou estritamente espiritual, mas inclusive no
que se referiria ao aspecto material ou econômico. No primeiro caso, os livros
eram vistos, por exemplo, como “‘mestres mudos’, pastores de almas,
pregadores de exemplos, cultivadores do entendimento, páis [sic] dos
conselheiros, semeadores de virtudes para o bem estar”, etc. Em relação ao
aspecto material ou econômico, o livro poderia funcionar, segundo Martins,
como um instrumento potencializador da força de trabalho no meio rural:

7
Ao começar a circular em dezembro de 1902, o periódico O Arauto apresentava-se
justamente discorrendo sobre as maravilhas da tipografia: “É com effeito a esta engenhosa
invenção que se deve principalmente a diffusão das luzes, dos progressos das ciências e das
artes e de uma multidão de descobertas que sem ella, teriam sido perdidas para o gênero
humano ou desterradas para o seio de um pequeno número de indivíduos; em uma palavra
a ella se deve o alto gráo de civilização a que chegaram a maior parte das nações modernas
[...]”. (MARTINS, 1908, p. 80 apud BERBERI, 1998, p. 69).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 259

Ele é um dos elementos que muito contribui para a educação do


homem do campo. Onde o caboclo, vítima de enfermidades,
desconhecedor de preceitos de higiene, de problemas agrícolas e
domésticos, vai buscar um melhor padrão de vida, é no livro”
(DIÁRIO..., 1944, p.5).

Assim, e a despeito das incongruências sociais presentes em tais


afirmações, a instalação de bibliotecas seria imprescindível tanto no meio
urbano como no meio rural, já que integrava e encerrava um esforço
genuinamente patriótico. Um esforço, aliás, que já havia sido iniciado e que
era também incentivado por muitos educadores no país. Como observava o
próprio autor das assertivas acima, muitos destes educadores haviam “feito
campanha pela realização de tais instituições, vizando um ideal construtivo: a
comprênção dos deveres morais e cívicos, a-fim de reequilibrar éticamente a
sociedade” (DIÁRIO..., 1944, p.5).
O verdadeiro argumento presente no artigo de Ary Martins, entretanto,
só pode ser inteira e adequadamente compreendido se levarmos em conta o
diagnóstico que o autor faz do contexto em que vive. Para ele, haveria um
grande reparo a ser feito no que dizia respeito aos rumos e caminhos tomados
pela humanidade. O progresso material, dizia, teria tomado a vanguarda do
intelectual, o que daria margem a graves consequências: “Do progresso
mecânico distanciado do da cultura”, afirmava, “advém a guerra que trás o
rebaxamento moral que repercute por todo o mundo, fazendo com que as
ocupações materiais sejam preferentes”. Diante deste estado de coisas,
alertava para a necessidade de uma “restauração intelectual”, uma preparação
das “novas gerações para as lides do porvir”. Tal restauração, por sua vez, não
poderia ser feita senão por meio dos livros: “É difundindo bibliotecas que o
Brasil poderá servir o espírito humano na obra de acudir o mundo do declínio
da cultura” (DIÁRIO..., 1944, p.5).
O objetivo do artigo, desse modo, era justamente evidenciar o
desequilíbrio e o afastamento que teria se estabelecido entre os progressos
260 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

técnicos, por um lado, e aqueles da esfera do espírito ou da cultura, por outro.


Para dar conta deste problema, no entanto, não bastaria apenas teorizar e
clamar comodamente em favor da instalação de bibliotecas e de instituições de
leitura. Seria ainda necessária “a intervenção de homens capazes, de espíritos
bem formados, para conduzirem seus semeliantes para um caminho mais
acertado” (DIÁRIO..., 1944, p.5). Além disso, as bibliotecas não podem se
erguer sozinhas. Elas demandam dedicação, esforço, trabalho, mobilização de
recursos e cooperação, o que pressupõe uma associação e uma conjugação das
iniciativas individuais. É, sobretudo, com base nesse espírito, por exemplo,
que se fundam, neste momento, diversas agremiações literárias e/ou de
cultura, e que também se multiplicam as manifestações favoráveis à sua
constituição. As proposições apresentadas pelo articulista, portanto, estão
longe de serem meros devaneios idiossincráticos. Com efeito, elas
representam as aspirações concretas de boa parte da intelectualidade do
período, que, como veremos, se identificava justamente com o papel de guia
do que seria então uma verdadeira “cruzada cultural”.
De um modo geral, poder-se-ia dizer que as questões que despertaram
o nosso interesse derivaram diretamente deste e de muitos outros
apontamentos semelhantes. No entanto, de todas as modalidades em que este
argumento se apresentava, foi, sobretudo, uma que despertou com maior
intensidade nossa curiosidade e atenção. Como já dissemos alhures, o que a
princípio realmente nos surpreendeu foi o modo arrebatado e apaixonado
com que muitas das vezes tais questões foram vivenciadas nesse momento.
Em outras palavras, poderíamos dizer que aquilo que, de fato, intrigou-nos foi
a forma profundamente elaborada e empolada com que estes assuntos eram
tratados e expressos nos registros e testemunhos. A nosso ver, ocorrências
como essas não constituiriam apenas recursos retóricos ou manifestações
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 261

estilísticas datadas e gratuitas, mas poderiam apontar para questões históricas e


historiográficas bastante elementares.
Essa surpresa inicial, por sua vez, só veio a aumentar, quando
finalmente travamos contato com um rico acervo documental, acumulado
entre 1948 e 1985, por um grupo de intelectuais congregados na cidade de
Ponta Grossa, no Paraná. Tratava-se, com efeito, do volumoso conjunto de
documentos produzidos e armazenados pelo já mencionado Centro Cultural
Euclides da Cunha8, órgão que havia sido fundado na cidade por Faris Michaele,
em meados de maio de 1948.
Em linhas gerais, o CCEC poderia ser definido como um agrupamento
intelectual formalmente instituído, que procurou fomentar o desenvolvimento
da literatura, das ciências e das artes, estimulando, nesse processo, o
intercâmbio de ideias entre as demais regiões do país e das Américas. No
quadro de seus associados estiveram presentes eminentes personalidades da
cidade de Ponta Grossa, oriundas dos mais diversos setores da sociedade
organizada: militares, professores, advogados, comerciantes, artistas e
escritores, médicos e políticos locais partilharam e participaram das atividades
que cercavam os ideais da instituição. Mas sua presença e atuação não ficaram
restritas apenas à esfera local ou ao território paranaense, pois, além de
congregar numerosos e destacados intelectuais da região e do Estado, os
euclidianos de Ponta Grossa mantinham-se em contato frequente com
diversas instituições espalhadas pelo Brasil, e seus laços chegavam mesmo a
ultrapassar os limites do país. Na sua grande maioria, porém, os indivíduos
ligados ao CCEC abraçavam um mesmo e amplo universo de questões,
envolvendo principalmente os temas patrióticos e nacionalistas, além dos
assuntos referentes aos indígenas, ao congraçamento dos povos da América e,
evidentemente, sobre a vida e a obra de Euclides da Cunha.

8
Doravante CCEC.
262 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Segundo o que afirma Carmencita Ditzel (1998, p. 4; 2001, p. 212),


historiadora que realizou um estudo pioneiro sobre o CCEC, o agrupamento
ponta-grossense poderia ser visto como um herdeiro legítimo da tradição dos
institutos históricos e das academias de letras que surgiram no Brasil durante o
século XIX. Esta tradição parecia ainda estar operando com bastante força
durante toda a primeira metade do século passado, de modo que o próprio
surgimento do CCEC não constitui um fato historicamente isolado. Na
verdade – e como o têm demonstrado muitas pesquisas –, a existência e a
proliferação de academias e de centros culturais e literários parecem mesmo
configurar um tipo de tendência comum à época. Além dos numerosos
estabelecimentos que mantiveram contato epistolar com o CCEC (órgãos
como o Instituto Neo Pitagórico e a Academia de Letras do Paraná, ambos situados
em Curitiba; o Centro de Letras Malba Tahan, localizado em União da Vitória; a
Casa de Euclides, de São José do Rio Pardo; a Casa de Cultura, de Limeira; a
Associação de Intercâmbio Cultural, de Guiratinga, no Mato Grosso, etc.), uma
comparação também pode ser estabelecida com a fundação da Sociedade
Capistrano de Abreu, no Rio de Janeiro, em 1927.

Pensando no contexto onde esta Sociedade começou a desenvolver


suas atividades, ou seja, no final da década de 20, podemos
observar que a reunião de letrados em torno de academias ou
instituições culturais e científicas era algo ainda bastante comum no
campo da produção intelectual, visto que a instauração do saber
especializado dentro das universidades só se efetuou no Brasil
durante os anos 30. (SILVA, 2006, p.2054).

Embora o CCEC tenha sido fundado duas décadas depois da instalação


da Sociedade Capistrano de Abreu no Rio de Janeiro, as notáveis semelhanças
existentes entre as duas instituições nos permitem supor que ambas ainda
partilhavam uma mesma funcionalidade no interior de seus respectivos
contextos. Assim, seguindo o exemplo da agremiação carioca, o CCEC
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 263

também adotou alguns preceitos organizacionais derivados diretamente dos


institutos históricos e geográficos e das academias literárias que, naquele
momento, ainda se constituíam em modelos de excelência na administração,
produção e divulgação do trabalho intelectual, especialmente no caso de
cidades interioranas como Ponta Grossa, no Paraná.
Funcionando assim de 1948 até meados de 1985, o CCEC talvez tenha
sido o maior e mais prestigioso empreendimento intelectual até então
realizado na cidade de Ponta Grossa. Segundo Eno Theodoro Wanke, ele teria
dado início a uma nova fase na história da cultura local, pois, a partir da sua
fundação, começariam “os anos de ouro de Ponta Grossa, que se torna uma
espécie de Meca da Cultura, não só em âmbito municipal, mas também
estadual, federal e até mundial!” (WANKE, 1999, p.7 - grifo do autor). Como
discípulo de Faris Michaele, Eno Wanke havia freqüentado, assiduamente, o
CCEC, sobretudo entre os anos de 1954 e 1955. Deste modo, quando
procurou descrevê-lo num livro, décadas mais tarde, assim o fez em termos
marcadamente nostálgicos. Segundo ele:

O CCEC foi, realmente, um ponto crucial, de referência na história


cultural da cidade, um lugar onde os escritores, poetas, jornalistas,
radialistas, professores e estudiosos em geral, ou seja, os que
tinham algo a ver com o estudo, a literatura e sua difusão em Ponta
Grossa tinham um refúgio, um local para se reunir, discutir os
assuntos, manter a amizade e a chama da camaradagem viva. Ou
então, simplesmente, consultar um livro ou – o que era bastante
freqüente – seu presidente, ele mesmo um livro sempre aberto,
pronto a resolver dúvidas e a ensinar.
Para isso, não havia [...] simplesmente reuniões mensais “na
primeira quarta-feira do mês” (digamos), onde a diretoria apenas
discute assuntos burocráticos ou simplesmente se atém a bate-
papos agradáveis sobre as últimas fofocas do futebol, da política,
ou de assuntos mundanos alheios à cultura. Não. O Centro estava
diariamente aberto, e sua grande e rica biblioteca estava sempre
funcionando para quem quisesse estudar ou simplesmente se
divertir lendo.
264 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...] A biblioteca, de cerca de 5000 volumes, dominava as paredes, e


a gente ia diretamente aos livros. Havia mesas onde se podia sentar
e ler. Podia-se tomar livros por empréstimo, levando-os para a casa.
Uma verdadeira biblioteca pública, aberta inclusive para os
estudantes e o público em geral, a primeira que Ponta Grossa teve.
(WANKE, 1999, p.7).

Ainda que eivada de certo saudosismo, a descrição de Wanke nos


permite entrever algo da importância e da projeção conquistadas pelo grupo
junto à cidade, além de nos dar também uma vaga ideia de como seria o dia a
dia e o funcionamento da instituição. O que, mais uma vez, fica evidente com
relação a este aspecto é o grande apreço destas pessoas pelas lides intelectuais
e literárias, demonstrando, assim, sua proximidade com as formulações que
vinham sendo discutidas mais acima. Essa proximidade fica ainda mais
manifesta quando nos acercamos do funcionamento propriamente dito da
instituição, que não poderia ser outro:

Para a consecução de suas finalidades, o Centro explicita[va] em


seu estatuto as suas atividades primordiais: realização de cursos,
conferências, palestras e reuniões culturais; divulgação de obras
científicas, literárias e artísticas nacionais e dos demais países
americanos; publicação de um jornal trimestral; organização de
uma biblioteca e sala de leitura; realização de maratonas intelectuais
periódicas para estimular na juventude o gosto pelas ciências, letras
e artes. (DITZEL, 1998, p.213).

Divulgação de obras científicas, literárias e artísticas nacionais e dos


demais países americanos; organização de uma biblioteca e sala de leitura. Há,
certamente, uma profunda ligação entre o papel ou função da palavra
impressa na sociedade de um modo geral e a razão de ser de uma instituição
como o CCEC. Estimular na juventude o gosto pelas ciências, letras e artes,
afinal, é também incitar nela o hábito da leitura e o apego aos livros. Não
podemos nos esquecer, além do mais, de que naquele momento a palavra
impressa desfrutava ainda de um enorme prestígio enquanto forma tradicional
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 265

de transmissão de conhecimento. Deste modo, a lógica de atuação e a própria


existência da instituição preconizavam uma proximidade – largamente
difundida – entre noções precisas de cultura, de literatura, de livro e de
intelectualidade.
Como frutos e também como promotores entusiastas de todas essas
ideias, os indivíduos ligados ao CCEC cristalizaram suas impressões, opiniões,
seus pensamentos e sentimentos nos documentos que produziram e que,
felizmente, foram preservados. O fundo documental que a entidade produziu
foi doado, em 1995, ao Departamento de História da Universidade Estadual
de Ponta Grossa, apresentando um acervo com cerca de 5.000 livros, 345
títulos de revistas, além de um grande número de cartas enviadas por
intelectuais do Brasil e do exterior como Gilberto Freyre, Érico Veríssimo,
Roquete Pinto, Cândido Rondon, Luís da Câmara Cascudo, Roger Bastide,
Valfrido Pilotto, Raul Gomes, entre outros. Também fazem parte deste
acervo alguns recortes de jornais, somados a outros manuscritos e discursos,
além de periódicos literários como o jornal Tapejara, editado pelo próprio
CCEC, no período de 1950-19769.
As atenções estarão aqui voltadas, especialmente, para as
correspondências reunidas pelo CCEC. Tais correspondências se encontram
atualmente organizadas em dois diferentes fundos: o acervo do CCEC, e o
acervo particular de seu emérito presidente, o professor Faris Michaele. Neste
último caso, as correspondências recebidas somam um total de 780,
compreendendo o período que vai de 1922 a 1989. Existem, também, alguns
rascunhos de cartas enviadas por Faris, tanto manuscritas quanto
datilografadas, mas que foram preservadas apenas eventualmente, já que o
mesmo não tinha o hábito de manter cópias.

9
Os dados e as informações sobre a documentação do CCEC foram extraídos de Gomes e
Sacchelli (2001, p.109-116).
266 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

No que toca à série de cartas do CCEC, organizada em ordem


cronológica e dividida em duas outras sub-séries, encontramos os seguintes
números: 728 correspondências endereçadas ao Centro para o período de
1948 a 1981 (sub-série 1), e 1456 cartas remetidas ao professor Faris Michaele,
abrangendo os anos de 1934 a 1976 (sub-série 2).10
Contudo, devido ao grande volume de documentos presente no
acervo epistolar da instituição, em nossa pesquisa, optamos por trabalhar com
apenas uma das sub-séries de cartas dirigidas ao CCEC (a sub-série 1), mais
especificamente com as 611 cartas enviadas à agremiação entre 1948 e 1959.
Esta delimitação explica-se não só pelo fato de serem poucos os documentos
referentes às décadas de 60, 70 e 80, mas também porque já não apresentavam
mais a mesma riqueza de conteúdo encontrada nas décadas anteriores. O
progressivo declínio do número de correspondências recebidas por ano, nesta
sub-série, pode ser visualizado no Quadro 1, inserido logo abaixo:

Quadro 1 - Correspondências recebidas pelo Centro Cultural Euclides da


Cunha de Ponta Grossa. Série: Correspondência Recebida (passiva); Sub-série:
Correspondências – Centro Cultural Euclides da Cunha.

Ano Quantidade

1948 18
1949 101
1950 60
1951 81
1952 99
1953 78
1954 46
1955 31
1956 20

10
Os números relativos ao acervo epistolar do CCEC foram retirados de Gomes (1997, p.
86-87).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 267

1957 34
1958 27
1959 19
1960 04
1962 01
1964 01
1966 01
1967 05
Década de 70 21
Década de 80 10
Sem data 43
Fonte: GOMES, 1997, p. 87.

Em se tratando de um acervo institucional, é até natural que o fluxo de


cartas seja maior nos primeiros anos de sua existência, pois é justamente nesse
momento que os convites e as nomeações tendem a ser mais numerosos. No
entanto, no caso específico do CCEC a diminuição no volume de cartas
parece ter, também, outro significado. Segundo Carmencita Ditzel, nos
últimos anos de sua existência – especialmente após a morte de Faris
Michaele, em 1977 – o CCEC já não apresentava o mesmo brilho de antanho:

[...] o entusiasmo foi arrefecendo, e as atas demonstram que a


rotina dos trabalhos não era a mesma: muitas reuniões não se
realizaram por falta de “quorum”, a correspondência se acumulava
sem ser lida e/ou respondida, as mensalidades estavam atrasadas, e
o Tapejara não foi mais publicado. Além da perda do carisma do
fundador e das dificuldades internas, os tempos eram outros.
(DITZEL, 1998, p. 223).

Apesar disso, as correspondências reunidas pelo CCEC entre 1948 e


1959 apresentam um grande potencial enquanto fontes de informação. Ainda
que não sejam completamente transparentes e espontâneas, elas se constituem
em preciosas fontes de informação, de modo que não podem mais ser
ignoradas pelos historiadores. Como têm demonstrado diversos pesquisadores,
268 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

as correspondências criam laços e, portanto, “guardam consigo os sinais de


parte de um tempo, mostram formas próprias e singulares de um
relacionamento social”. (BASTOS, CUNHA, MIGNOT, 2002, p. 6).
No caso desta pesquisa, um rápido passar de olhos pelo acervo
epistolar do CCEC é mais que suficiente para se encontrar declarações
inspiradas e profundamente inflamadas sobre as atividades desenvolvidas pela
instituição, cuja entonação é bastante similar àquela dos testemunhos incluídos
e comentados anteriormente. Nas palavras de um dos integrantes do CCEC,
por exemplo, o ingresso no rol de sócios da agremiação vinha de encontro a
uma curiosa aspiração:

Isto veio fortalecer em mim o propósito de que de então pra cá me


sinto animado, qual o de, em me estando nas posses, oferecer
àqueles que me deram de sua magnífica e inequívoca hospitalidade
provas irrecusáveis, um pouco – se não resvalo em veleidade em
lhes dando testemunho – das fôrças que me formigam no braço e
do entendimento que me bruxoleia no encéfalo. (SANDERS... ao
CCEC..., 30 de outubro de 1950).

O que ele afinal desejava era algo que, talvez, faça pouco sentido nos
dias de hoje: “requero a concessão de ir, de quando em vez”, diz ele,
“mergulhar a concha de meu espírito sequioso na abundante messe que aí
amealhou o trabalho incessante dos espíritos de escol de que se iluminou, cuja
cintilação me adivinhou a experiência do primeiro trato” (Sanders... ao
CCEC..., 30 de outubro de 1950).
Um ano antes, o poeta, advogado e professor Augusto Faria Rocha já
evocava um argumento semelhante ao comentar sua admissão junto ao
agrupamento ponta-grossense:

Não enxérgo fato senão o traço marcante do tradicional


cavalheirismo de que é apanágio a galharda mocidade intelectual da
linda metrópole campesina, cuja atividade, trepidante e multifária,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 269

ainda póde possibilitar, aos cultores das belas letras, o mél do


espírito, à maneira das abelhas encantadas de Píndaro. (ROCHA...
ao Secretário..., 16 de fevereiro de 1949).

A exemplo destes dois confrades, Alfredo Ellis Júnior também encarava


sua incorporação ao CCEC em termos marcadamente sublimes. Ainda “sob a
forte emoção e incontrolável contentamento” causados pela sua nomeação,
assegurava: “Vem a honraria com que fui homenageado servir de dulçuroso
bálsamo para a minha arestosa vida” (Junior... ao Secretario..., 16 de fevereiro
de 1959). Em 22 de outubro de 1953, Ruderico Dantas Barreto havia sido
igualmente enfático ao aceitar e agradecer sua recente inclusão como sócio-
correspondente no Rio de Janeiro, revelando, todavia, muito mais do que um
simples sentimento de gratidão:

Exulto-me, pois, nesse acto, de estima e bondade, a quem sempre


esteve na penumbra da profissão e na humildade da cultura
espiritual das nossas letras, [...] guardando o diploma de sócio
correspondente como estímulo e dever de amar, cada vez mais, à
cultura de nossa pátria através dos homens da ciência, arte, filosofia
e dos combatentes intelectuais da moralidade pública, tão
necessários na conjuntura política da atualidade do nosso querido
Brasil. (BARRETO... ao CCEC..., 22 de outubro de 1953).

Tais conjecturas, no entanto, não eram uma exclusividade dos


correspondentes brasileiros. Manifestações de profundo apego às lides
intelectuais também afloravam na mensagem enviada do Peru por Eduardo
Valdívia Ponce, cujo destinatário era o professor Faris Michaele, presidente e
fundador do grupo euclidiano ponta-grossense. Assim como os demais
colegas agraciados pela agremiação, Valdívia Ponce começava pelas palavras
de penhor ao proponente de sua incorporação à sociedade, mas logo afirmava:
“tan honorífica distinción [...] entraña para mí, un estímulo inquietante por
270 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

estudiar más e conocer mejor al hombre (PONCE... ao presidente..., 24 de


maio de 1949).
São analogamente emblemáticas, nesse sentido, as assertivas de
Joaquim Prestes, um procurador de Guarapuava que escrevia ao CCEC em
dezembro de 1949. “Conquanto simples leguleio na intrincada e sublime Arte
das Letras, porém [...] mantendo um pendor para êsse setor dos
conhecimentos humanos”. O procurador aceitava com deleite uma designação
e complementava convicto: “meu concurso, ainda que fraco, para o triunfo de
nosso Centro, será entusiasta e decidido” (MICHAELE... ao presidente..., 28
de dezembro de 1949). Em 20 de abril de 1952, era a vez do professor Artur
de Brito Machado realizar seu desejo de juntar-se à “seleta tertúlia”, isto é, de
formar ao lado dos “denodados campiões dessa falange de intelectuais
intrépidos, almas devotadas, de todo, ao serviço do Ideal e para glória da
Pátria” (MACHADO... ao secretário..., 5 de maio de 1951). Em situação e
registro semelhantes aos do professor Brito Machado, o “dilettante” Adar de
Oliveira e Silva proclamava em 1951: “acolhestes o mais frágil e o mais
desvalioso Amigo à sombra confortadora de vosso Idealismo” (SILVA... à
Diretoria..., 5 de maio de 1951). Em março de 1952, era um missivista do
Uruguai que evocava o mesmo argumento, pois aceitava o seu ingresso na
entidade “tan solo como un acicate para continuar adelante em nuestros
comunes afanes y entusiasmos, al servicio Del Ideal” (SENAC... a Ehlke..., 15
de janeiro de 1952).
Eram sentimentos e pensamentos equivalentes os que também
animavam João Pereira, um General que escrevia do Rio de Janeiro, em junho
de 1949. Em um tom de quase pregação, o General bradava:

Triste do homem que se não constrange de receber um pôsto de


eleição, ou de nomeação, com a mira feita em lhe não dar o melhor
de sua inteligência e de seus esforços. Os que ocupam lugares,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 271

pouco fazem êstes, movidos únicamente do desejo estulto de


brilhar, de mostrar-se, de aparecer, ou, então, levados da ânsia de
alcançar haveres e comodidades, êsses são daqueles que jamais hão-
de concorrer para tornar a Pátria venturosa e grande. A esta, só a
farão feliz e considerada, os que vão para os postos, que os fados
lhe designaram, sem a néscia preocupação de se fazerem vistos, e,
ainda, sem ambições de enrequecimento [sic], pois tudo isto é
próprio, apenas, das almas órfãs de idealismo. (MICHAELE... ao
presidente..., 18 de junho de 1949).

Numa carta inspirada e também remetida do Rio de Janeiro, em 1952, o


etnógrafo e folclorista Agnello Bittencourt parecia concordar com as
admoestações feitas pelo General. Para ele, os agrupamentos intelectuais
como o CCEC muito concorreriam “para solidificar a unidade nacional em
qualquer dos seus aspectos”. Quanto àqueles espíritos devotados aí reunidos,
ele dizia o seguinte:

Trocando pensamentos e entendendo-se, mesmo de pontos muito


distantes, os homens de boa vontade podem irmanar-se, melhor do
que agora, e criar um tipo de civilização que mais lhes convenha.
Cada agrupamento que se funda e trabalha com essa finalidade, é
uma sentinela avançada do nosso progresso, um broquel de paz e
de segurança na eternização brilhante do nome do Brasil. Não há
soberania nacional que dispense o apoio de seus intelectuais. A
nação que os relegar a plano inferior, não estimando o seu auxílio,
não passará de um bando de Panúrgio, que os espertos tanto
conduzirão para o aprisco como para o matadouro. As cidades
recomendam-os [sic] e glorificam-se com a manutenção carinhosa
de suas escolas e centros culturais. (BITTENCOURT... a Ehlke...,
18 de agosto de 1952).

A instalação do CCEC, por conseguinte, trazia-lhe recordações e lhe


reforçava convicções que não eram somente suas:

Lembro-me de Haarlem, na Holanda, em luta litânica, outrora, com


seus invasores espanhóis. Distinguiu-se pela bravura de seus
habitantes. Passada a refrega, o governo desejou recompensá-la,
indagando-lhe o que preferia: se um Teatro, se uma Universidade.
E éla, a invicta cidade, de pronto, respondeu: ma Universidade!
272 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Certamente, Ponta Grossa, na agitação de seu desenvolvimento,


não cogitou de mais uma casa de diversão, porque suas vistas se
voltaram para um ponto mais alto, sendo, então, criado o Centro
Cultural “Euclides da Cunha”. E bem haja nêsse caminho, para se
tornar a Athenas do Sertão. Louvo-lhe o propósito! Honro-me de
pertencer ao seu grêmio mais próspero. (BITTENCOURT... a
Ehlke..., 18 de agosto de 1952).

Mais uma vez, a defesa aberta que o autor da missiva faz ao papel ou
função do intelectual se mostra bastante afinada com os exemplos que viemos
discutindo até aqui. Em todas as cartas citadas, o que salta à vista é, sem
dúvida, a maneira exaltada com a qual se tratavam os afazeres, os assuntos e as
funções intelectuais. Para além das justificativas práticas, patrióticas,
educacionais ou civilizatórias, outra forma de se mensurar a dedicação com
que estas pessoas vivenciaram tais questões pode ser encontrada na própria
equação de seu dia a dia. Afinal de contas, o “entusiasmo pela causa” deveria
mesmo ter um papel de destaque para indivíduos que tinham de conciliar o
cotidiano do trabalho, os compromissos familiares da vida privada, entre
outras diversas atividades simultâneas.11 É o que deixa entrever, por exemplo,
a confissão de Raimundo Maranhão Ayres a Faris Michaele, nos idos de 1954:

Inegavelmente as ocupações e os encargos que se acumulam cada


dia, neste movimento intenso de intercâmbio consomem o nosso
tempo de forma tal que não nos possibilita trazer em dia a nossa

11
Outro aspecto deste diletantismo característico refere-se à própria questão financeira. No
caso do CCEC, por exemplo, muitas vezes, era o seu presidente quem arcava com os
gastos, como apontou Eno Wanke: “E quem pagava as despesas de manutenção, as de
limpeza, o aluguel, o salário da Secretária, a compra de livros, a edição do jornal Tapejara? É
claro que Faris. É verdade que havia, então, uma verba do governo Federal [...] e também
outra da Prefeitura – cujo prefeito era sempre euclidiano. Mas, evidentemente, não cobria
todas as despesas. Faris, sem dúvida, tirava dinheiro de seu magro salário de professor para
completar as despesas. Ele, discreto, jamais mencionou o assunto, mas acredito que esta
seria a maior parte delas. E a contribuição dos sócios? Não me lembro de ter pago sequer
uma mensalidade do CCEC, que jamais me foi cobrada – e que passei em brancas nuvens
nos dois anos em que o freqüentei tão assiduamente. Só me lembro de ter doado um bom
número de livros para a biblioteca, isso sim. E vi, é claro, Faris também fazer isso com
muita freqüência”. (WANKE, 1999, p. 101).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 273

correspondência. Vivemos sempre em atrazo com os amigos, por


mais que trabalhemos, por mais que nos dediquemos com carinho
[...] ao ideal e a causa que constitue o nosso maior enlevo, a nossa
maior preocupação espiritual.
O que consigo acontece é o mesmo que se verifica comigo. Tenho
casa comercial, Escritório de cobrança, Representações, Jornal,
Associações, enfim esta série imensa de encargos e cuja
correspondência sou eu exclusivamente que a redijo. Mesmo em
nossa A. I.C. [Associação de Intercâmbio Cultural] apezar dos
vários secretários que possue, nenhum deles se incumbe de
qualquer ou encargo semelhante. Diante disto o peso sobre meus
ombros é grande demais e o tempo exíguo para tudo atender
prontamente. (MICHAELE... ao presidente..., 25 de janeiro de
1954).

Antecipando-o em alguns anos, Oscar Argollo também legava à


posteridade sua reclamação ao receber um convite do CCEC, em agosto de
1952. Nesta ocasião, apregoava:

Tenho recusado, por motivo de acúmulo de trabalho, aceitar


incumbências dêsse caráter e não faz muito tempo pratiquei um
ato, talvez virgem na esfera política brasileira – solicitei aos meus
amigos, não votarem em meu nome para a representação federal
do Estado do Pará; (sendo, apesar disso, eleito suplente), não por
falsa modéstia, somente por falta de tempo para dedicar a essa
atividade. Todavia, aqui, abro uma exceção, por dois motivos: a
manifestação sincera da iniciativa; e por ter sido, em minha
mocidade, auxiliar técnico da comissão de limites sob a chefia do
Euclides. (ARGOLLO... ao secretário..., 4 de agosto de 1952).

Desse modo, nem o tempo atulhado, nem os afazeres corriqueiros da


vida impediam alguma dedicação aos labores intelectuais. À sua maneira, o
testemunho de Heloísa Alberto Tôrres também demonstra essa situação. Aos
23 dias de janeiro de 1952, ela afiançava:

Acredite que esse meu sentimento de admiração acompanhado da


maior simpatia vem, de há muito, seguindo o “Centro” e que, no
atropêlo da vida por demais sobrecarregada que levo, sempre
encontro uns momentos de folga para ler o seu jornal tão cheio de
274 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

inquietação e atividade intelectual. (TÔRRES... a Ehlke..., 23 de


janeiro de 1952).

A estes exemplos, somam-se também muitos outros. Eles


podem ser facilmente coligidos tanto na correspondência recebida pelo CCEC
– remetida das mais diversas regiões do país e do exterior – quanto em outras
pesquisas e trabalhos que, de algum modo, acabaram igualmente tocando a
superfície da questão. Tal constatação, vale dizer, constitui uma prova
contundente de que o problema aqui formulado transcende, em muito, o
aspecto regional. Com efeito, o entusiasmo e o afã científico e literário, que
transparecem em declarações como as que foram vistas acima, estão longe de
serem meras ocorrências localizadas. A nosso ver, este apego apaixonado às
lides intelectuais se constitui num fenômeno histórico de grande envergadura
e que retrocede muito mais no tempo; ele envolve concepções precisas de
ciência, cultura, arte e civilização; envolve, sobretudo, a relação destes
conceitos ou ideias com o lugar que a palavra impressa ocupou e ocupa na
história da sociedade ocidental. Em última análise, esta espécie de ethos
intelectual pode ser encontrada numa variedade de documentos como obras
literárias, estatutos institucionais, revistas, imprensa, entre outros.
No entanto – e a despeito deste fértil material –, parece não
haver mais surpresa alguma dirigida a este mundo no presente; parece mesmo
haver, antes, um desdém, um descaso e uma cegueira que realmente insistem
em permanecer. Ora, qualquer historiador, com sensibilidade o bastante para
ser designado como tal, logo perguntaria: O que houve com toda aquela
empolgação que cercava as lides intelectuais? O que fundamentava e em que
consistiria a animação singular daqueles devotados aos afazeres científicos e
literários? Que projeto ou sutil jogo de ideias estaria aí escondido?
Infelizmente, e como ocorre com grande parte das coisas
humanas expostas ao tempo, a presença e as respostas destas questões
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 275

perderam seu vigor e pujança. O legado defasado que hoje recebemos, parece
antes inclinado a uma atitude derrisória e irrefletida do que admirada e,
consequentemente, aberta a indagações. Como afirmou acertadamente Walter
Benjamin, “somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente
do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o
passado é citável, em cada um dos seus momentos” (BENJAMIN, 1987,
p.223).
A esta altura, no entanto, até mesmo o menos cético dos
leitores poderia, com razão, objetar: Não seria possível pensar e associar
declarações como as veiculadas pelas cartas acima a um tipo qualquer de
fórmula ligada à escrita epistolar? E esta fórmula, por sua vez, não explicaria o
resto, dado que os argumentos seriam então “lugar comum”? Ora, é
exatamente aí que o problema levantado encontra a sua razão de ser. Como
pudemos observar, alguns remetentes não limitavam suas cartas a um simples
exercício de gratidão descolorida, parecendo, muitas vezes, se utilizar da
ocasião para reforçar ainda mais os laços identitários que mantinham com o
grupo. E, assim, ao exteriorizarem seus anseios, seus pensamentos e suas
crenças mais arraigadas, intencionalmente ou não acabavam vinculando-as a
formulações que tinham ampla circulação no período em questão. Se
prestarmos certa atenção, por exemplo, aos termos, ideias, palavras e
evocações que marcam indelevelmente um significativo número de
correspondências, haveremos de concordar que, embora possam, certamente,
constituir uma fórmula, eles são índices unívocos da existência de um mundo
cultural e conceitual bastante distinto do nosso. Além disso, para a maioria
dos missivistas estudados o que estava em jogo neste empenho entusiástico
pelas lides literárias situava-se muito além do prazer individual. Na mais
remota das hipóteses e sem a menor dúvida, tais motivos devem ter ocupado
tempo e espaço consideráveis nas vidas dessas pessoas, devem ter mobilizado
276 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

suas existências e, até mesmo, forjado suas identidades. Em última análise,


essas questões devem ter tido um significado que agora irremediavelmente
nos escapa. A nós historiadores, cabe a nobre tarefa de tentar reconstruí-lo.

Referências

Fontes

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de 1944, p. 5.
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maio de 1951.
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de Janeiro, 18 de agosto de 1952
Carta de Alfredo Ellis Júnior ao secretário do CCEC. São Paulo, 16 de
fevereiro de 1959.
Carta de Artur de Brito Machado ao secretário do CCEC. Ouro Preto, 20 de
abril de 1952.
Carta de Augusto Faria Rocha a Cyro Ehlke, secretário do CCEC. Antonina, 5
de setembro de 1949.
Carta de Heloísa Alberto Tôrres a Cyro Ehlke, secretário do CCEC. Rio de
Janeiro, 23 de janeiro de 1952.
Carta de J. Eduardo Valdívia Ponce ao presidente do CCEC. Mollendo, 24 de
maio de 1949.
Carta de João Pereira a Faris A. S. Michaele, presidente do CCEC. Rio de
Janeiro, 18 de junho de 1949.
Carta de Joaquim Prestes a Faris Michaele, presidente do CCEC. Guarapuava,
28 de dezembro de 1949.
Carta de J. Román Pérez-Sénac a Cyro Ehlke, primeiro secretário do CCEC.
La Estanzuela, 15 de janeiro de 1952.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 277

Carta de Oscar Argollo ao secretário do CCEC. Rio de Janeiro, 4 de agosto de


1952.
Carta de Raimundo M. Ayres a Faris Michaele, presidente do CCEC.
Guiratinga, 25 de janeiro de 1954.
Carta de Ruderico Dantas Barreto ao CCEC. Rio de Janeiro, 22 de outubro de
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Construindo uma autoimagem: as memórias de
Joel Silveira1

Danilo Wenseslau FERRARI*

J oel Magno Ribeiro da Silveira (1918-2007) foi jornalista de destaque na


imprensa brasileira. Em sua longa carreira como repórter atuou em
diversos jornais e revistas e testemunhou importantes eventos da história
do Brasil republicano recente. Iniciou-se no jornalismo em 1937, quando
deixou Sergipe, sua terra natal, para viver no Rio de Janeiro, capital do país.
Realizou reportagens que lhe trouxeram fama e reconhecimento.
Acompanhou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) à Itália, nos momentos
finais da Segunda Guerra Mundial, como correspondente e por cuja atuação
se tornou mais conhecido. Esta é a imagem que prevalece quando se
menciona o nome de Silveira, resultado da construção que o autor
empreendeu em suas memórias.
Ao longo de sua vida, escreveu uma série de obras que variam entre
literatura, coletâneas de reportagens e memórias. Após sua aposentadoria e
afastamento das atividades profissionais (fim dos anos 1970), Silveira
intensificou a escrita dos livros de caráter memorialístico: Tempo de contar

*
Mestre em História /UNESP/Assis/ Orientadora: Profª. Drª. Tania Regina de Luca.
1
As reflexões aqui apresentadas compõem o primeiro capítulo da dissertação de mestrado
A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944), desenvolvida na Universidade
Estadual Paulista (UNESP/Assis), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).
282 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

(Record, 1985), Hitler/Stálin – o pacto maldito (RECORD, 1989), O presidente no


jardim (RECORD, 1991), Viajem com o presidente eleito (MAUAD, 1996), Na
fogueira (MAUAD, 1998), A camisa do senador (MAUAD, 2000), Memórias de
alegria (MAUAD, 2001), Diário do último dinossauro (TRAVESSA DOS
EDITORES, 2004) e O inverno da guerra (2004), entre outros.2
A maior parte versa sobre os anos iniciais de sua carreira, durante o
Estado Novo (1937-1945), governo autoritário de Getúlio Vargas, e sobre sua
atuação na guerra. Estas experiências foram marcantes na vida do autor. Por
meio de sua atuação no período, Silveira consagrou-se como jornalista e, mais
tarde, como repórter, além de intervir nos debates que movimentaram a
intelectualidade da época (FERRARI, 2011). Anos após estas experiências, o
autor era uma das únicas testemunhas vivas sobre o período e, portanto, foi
chamado a registrar suas lembranças.
Joel Silveira intensificou a produção de suas memórias justamente em
uma época de profusão destes registros.3 Os efeitos da modernidade e o
desaparecimento dos tradicionais meios de transmissão da memória levaram
ao surgimento dos “lugares de memória”, assim, o “lembrar” e o “guardar”
entraram na pauta do dia (NORA, 1993). As escritas de si tornaram-se
frequentes: “A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a
redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história. O dever de
memória faz de cada um o historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p. 17). O
surgimento dos “lugares de memória” deu-se em concomitância com a
emergência histórica do individualismo moderno. De acordo com Gomes
(2004, p. 14), o boom das escritas autorreferenciais incorporou-se à difusão das

2
Em FERRARI (2011), consta a lista de todas as obras escritas por Joel Silveira.
3
A partir dos anos 1960, muitos intelectuais brasileiros dedicaram-se ao registro de suas
memórias como Paulo Duarte, Érico Veríssimo, Pedro Nava, Nelson Palma Travassos,
Vivaldo Coaracy, Aureliano Leite, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia,
Cândido Motta Filho, Fernando Azevedo, Nelson Werneck Sodré e Gilberto Freyre
(ZIOLI, 2010, p. 117-118).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 283

práticas de “adestramento de si” (meditações, exames de consciência,


memorizações etc.).
Porém, a memória nem sempre foi considerada testemunho fidedigno
do passado. Em determinados momentos, distinguiu-se história e memória de
maneira absoluta. A primeira usufruía o rigor científico e a segunda abarcava
as experiências “flutuantes” do vivido. Porém, o contexto das últimas décadas
lançou novas luzes à problemática das experiências individuais, o que levou à
diminuição do desprestígio da memória em relação à história (DOSSE, 2004).
O registro das situações vividas individualmente seja em biografias ou
autobiografias acabou por despertar o interesse dos historiadores e alcançar
lugar de destaque nos estudos históricos (LEVI, 1996, p. 167-168).4
Entretanto, livros de memórias, autobiografias, cartas, diários e outras
escritas de si ainda são mobilizados com frequência como “portadores da
verdade” ou como fonte de dados para fundamentar análises sem a devida
discussão e tratamento crítico. Trata-se de fonte cuja crença em sua
neutralidade e verossimilhança é particularmente mais tentadora. Para Philippe
Lejeune, na literatura íntima, há um pacto de leitura entre autor e leitor, no
qual o público acredita na autenticidade do que lê por relacionar a identidade
da pessoa do discurso (aquele que narra o texto) com o nome estampado na
capa da obra. Porém, há uma distinção entre o autor de tais textos e o
narrador, como em um romance (LEJEUNE, 1975).5
Apesar das estratégias semelhantes às da literatura, não é o caso de
tomar estas obras como ficcionais. Nelas também há um compromisso com a
realidade. Evidentemente, na intenção de “se ver melhor”, o autor cria, se
4
Para Ângela de Castro Gomes, ainda são pouco frequentes as pesquisas históricas que
exploram este tipo de escrita tendo em vista os profissionais da área de literatura e
educação que se ocupam deste gênero há mais tempo (2004, p. 10).
5
De acordo com Gomes, há “[...] um distanciamento entre o sujeito que escreve –
autor/editor – e o sujeito de sua narrativa – o personagem do texto –, seja o texto uma
autobiografia, ou um diário ou carta, que não possuem a ampla dimensão retrospectiva do
primeiro caso” (2004, p. 16).
284 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

engana, deforma, estiliza e simplifica, mas não se inventa, conforme


reconheceu o próprio Lejeune: “Todos os homens que andam nas ruas são
homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé [...]. Nenhuma
relação com o jogo deliberado da ficção” (2008, p. 104). Assim sendo, na
escrita de si, os indivíduos são fiéis à sua realidade, mesmo que estabeleçam
uma lógica para tal existência. É esta construção que é necessário
compreender.
Em suas memórias, Joel Silveira produziu a imagem que se tem dele no
presente e com a qual desejou ser lembrado, estabelecendo uma lógica para
sua história de vida. Neste caso, não houve a intenção de verificar o que era
verdadeiro ou falso em tais discursos, mas sim compreender a construção
desta autoimagem e os motivos que levaram o jornalista a realizar este
trabalho. Não foram apenas as lembranças de Silveira que surgiram para
explicar determinados momentos. Ao registrar suas memórias, o autor
também visava dialogar com outros testemunhos.

O diálogo com outras memórias

As memórias de Joel dialogaram com os discursos autorreferenciais de


outros jornalistas que lhe foram contemporâneos e companheiros nas
redações de jornais e revistas, tais como: Samuel Wainer, Carlos Lacerda,
Edmar Morel, Rivadavia de Souza, entre outros. Estes jornalistas
reproduziram nas memórias antigas contendas em disputa pela representação
de um passado em comum. Não é possível entender as lembranças de Joel
sem situá-las nestes debates.
Entre estas disputas, ficou famoso o desentendimento entre os
ferrenhos inimigos Carlos Lacerda e Samuel Wainer. O desacordo entre os
dois jornalistas teve origem nas reviravoltas de suas trajetórias políticas.
Ambos foram opositores de Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 285

Novo (1937-1945). No entanto, Lacerda manteve a oposição ao ex-presidente


enquanto Wainer tornou-se seu partidário no governo democrático (1951-
1954). Em seu jornal Última hora, Wainer defendia Getúlio Vargas enquanto
Lacerda atacava o então presidente em sua Tribuna da Imprensa. Lacerda e
Wainer digladiaram-se por meio dos editoriais das duas publicações, pois o
primeiro acusava o segundo de beneficiar-se da amizade com Vargas para
conseguir favorecimentos políticos e recursos financeiros para o jornal Última
hora. (LAURENZA, 1998).
Os dois jornalistas retomaram a inimizade e as disputas em seus livros
de memória. Em 1977, Carlos Lacerda foi convidado pelo grupo do jornal O
Estado de S. Paulo para uma série de entrevistas que fariam parte de um banco
de dados sobre “personagens do drama político brasileiro”.6 Lacerda foi figura
polêmica na política brasileira. Ligado ao pensamento de direita, o autor teve
muitos desafetos. Na época da entrevista, Lacerda encontrava-se no
ostracismo e, portanto, o registro de suas lembranças consistiu em
oportunidade de reinserir-se no debate público. Logo após as entrevistas,
Lacerda morreu e a publicação do livro coube a seus herdeiros. A obra,
intitulada Depoimento, apresentou muitas passagens agressivas em relação a
Wainer:

Samuel Wainer [...], muito ignorante, mas muito inteligente, com


um grande faro de repórter, com um talento de repórter realmente
fora do comum, capaz até de encobrir a sua ignorância que é
monumental, quase enciclopédica. (LACERDA, 1977, p. 123)

Após a morte de Lacerda, Samuel Wainer também registrou suas


memórias. O jornalista concedeu uma série de entrevistas que deu origem ao
livro Minha razão de viver – memórias de um repórter, sua autobiografia. A intenção

6
As entrevistas originaram o livro de memórias de Lacerda, Depoimento, no prefácio da
obra, Ruy Mesquita afirmou que Lacerda encabeçava a lista dos que seriam entrevistados
no projeto (apud LACERDA, 1977, p. 11).
286 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

era a de que o próprio Wainer escrevesse sua história a partir destes


depoimentos. Entretanto, a morte do autor, em 1980, impossibilitou a
concretização destes planos.7 A decisão de publicar a obra coube a seus
herdeiros. Minha razão de viver apareceu pela primeira vez em 1987, publicada
pela editora Record. Na obra, Wainer reproduziu a disputa com o antigo rival,
Carlos Lacerda. Apesar de não ter se valido da mesma agressividade de
Lacerda, Wainer assim o descreveu:

Ele fundara a Tribuna da Imprensa em dezembro de 1949 e se juntara


ao círculo dos donos de jornais sem grandes problemas,
basicamente por duas razões. Primeiro, porque estava evidente
desde o início que a Tribuna da Imprensa jamais seria uma grande
publicação. Depois, porque Lacerda há muitos anos defendia, e
continuaria a defender os interesses e pontos de vista dos barões da
imprensa (WAINER, 2005, p. 171).

Minha razão de viver tornou-se best-seller e referência no gênero,


republicada em diversas oportunidades. Porém, lembrar não foi tarefa fácil
para Samuel Wainer. O jornalista pediu à família que ocultasse alguns
momentos que lhe eram incômodos e que os revelasse semente 25 anos após
sua morte, quando “todos” também estariam mortos: “Só poderia contar a
verdade depois que todos estivessem mortos” (WAINER, 2005, p. 06). Entre
os segredos, estava a nacionalidade de Wainer. O autor era judeu da
Bessarábia e a legislação brasileira não permitia que estrangeiros fossem
proprietários de veículos de comunicação no Brasil. Wainer teve de ocultar o
fato para garantir a posse de jornais e revistas. Além da nacionalidade
estrangeira, o embargo de Wainer também envolveu sua participação na
organização de um golpe preventivo em 1963 (que não se realizou) ao lado de
João Goulart e da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou
Última hora, nos anos 1950.

7
Sobre o processo de produção das memórias de Wainer, ver Rouchou (2006, p. 346-362).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 287

De fato, em 2005, após 25 anos da morte de Wainer, Minha razão de viver


surgiu sob o sinete de outra editora, a Planeta do Brasil. Seu organizador, o
jornalista Augusto Nunes, afirmou que se tratava da edição completa, sem as
informações que Wainer mantinha em segredo (WAINER, 2005, p. 05-08).
Tal situação demonstrou como as tarefas de lembrar e tornar pública suas
versões foram delicadas para esses intelectuais. A publicação póstuma destas
obras apontou para o fato de que familiares e partidários destes jornalistas
levaram a cabo suas divergências e reproduziram as antigas disputas.8
O livro de Samuel Wainer suscitou outras reações que vieram
posteriormente como resposta à Minha razão de viver. O próprio Joel Silveira
chegou a comentar que: “A biografia do Samuel Wainer está cheia de
inverdades, muitas. Ele fez a biografia que ele queria. Ele queria ser o que ele
escreveu, mas não era.” (SILVEIRA, 2005). Este comentário também foi
resultado de desavenças de outras épocas, reproduzidas nas disputas
registradas nestas lembranças referentes ao passado que tais figuras públicas
tiveram em comum. Wainer e Silveira conheceram-se durante o Estado Novo,
quando o primeiro era proprietário da revista Diretrizes, onde o segundo
trabalhou como repórter e secretário, cargo abaixo apenas do diretor, o
próprio Wainer.
Silveira figurou no expediente de Diretrizes até o momento em que a
revista saiu de circulação, em meados de 1944, por ordem dos órgãos
repressores. Wainer exilou-se no exterior e Silveira conseguiu nova colocação
nos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Segundo os livros de memória
de Silveira, o desentendimento entre ele e Wainer teria ocorrido quando o ex-
8
Segundo Pierre Bourdieu (1998), entrevistas são diferentes de memórias e autobiografias,
pois há a participação e intervenção direta do entrevistador na produção deste tipo de
fonte. No entanto, quando as entrevistas reportam-se ao passado do entrevistado, tornam-
se também tentativas de reconstituição de sua trajetória de vida, mesmo com a intervenção
do interlocutor (entrevistador) na produção do discurso. Sobre as entrevistas, Pierre Nora
questionou: “Que vontade de memória elas testemunham, a dos entrevistados ou a dos
entrevistadores?” (NORA, 1993, p. 16).
288 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

patrão voltou do exílio e reabriu Diretrizes, como jornal diário. Wainer teria
convidado Silveira para a nova empreitada e o induzido a abandonar o
emprego nos Associados, proposta que Silveira aceitou. Nas memórias, Joel
Silveira lembrou este fato como “Rasteira do Samuel”, pois o patrão o havia
enganado. Silveira afirmou que Wainer não lhe pagava em dia, tampouco os
valores prometidos, e esquivava-se quando possível: “Samuel tirava o corpo
fora e, diga-se de passagem que tirar o corpo fora era coisa que ele fazia com
rara maestria” (SILVEIRA, 2000, p. 125). Sobre a experiência, Silveira assim
registrou:

Fiquei lá apenas dois meses. Fiz umas reportagens sem graça, tendo
como fotógrafo o Ibrahim Sued. Da lista de matérias que havia
entregue a Samuel, logo na primeira semana, umas duas foram
aprovadas. Eu sentia que o chão começava a me faltar, as coisas
continuavam nebulosas, e vi logo que havia entrado de cara numa
aventura quando, no final do mês, em vez do salário combinado
(menos do que eu recebia nos “Associados”), me deram um “vale”,
com promessa de pagamento do resto na próxima semana, o que
não aconteceu. E percebi mais: que Samuel passou a me evitar.
Nunca tinha tempo, estava sempre tirando e botando o paletó; ou
então trancado na sua sala em conversa com cavalheiros para mim
desconhecidos e que jornalistas não eram. Bem vestidos demais
para serem jornalistas. (SILVEIRA, 2000, p. 125).

A autobiografia de Samuel Wainer causou tanto incômodo entre alguns


jornalistas que um deles publicou uma obra inteiramente dedicada a contrapô-
la. Em 1989, dois anos depois do lançamento de Minha razão de viver, Rivadavia
de Souza publicou, também pela Record, Botando os pingos nos is – as inverdades
nas memórias da Samuel Wainer. O prefácio do livro coube a Joel Silveira que não
criticou Wainer, mas ateve-se a elogiar a figura e a trajetória de Souza. O autor
do livro foi companheiro de Silveira e Wainer durante o Estado Novo, época
em que compartilharam as mesmas redações. Posteriormente, Rivadavia de
Souza foi ainda assessor de imprensa de Getúlio Vargas durante o segundo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 289

governo, época em que circulou o jornal Última hora, de Wainer. Souza teria se
ressentido, pois não foi ao menos mencionado na autobiografia de Wainer,
por desavenças pessoais. Sobre Minha razão de viver, Souza vaticinou que a obra
foi:

Urdida à sombra de incidências ocultas à contemplação do grande


público, que pouco ou nada poderia saber da movimentação dos
camarins distantes da boca de cena, talvez transmita, ao leitor de
boa-fé, a impressão de que só agora Minha razão de viver começa a
levantar o véu de acontecimentos cuja revelação caberia
exclusivamente a Samuel, por ter sido ele personagem central de
fatos ocorridos em seu derredor. Puro fricote: uma das
características que, com cansativa freqüência, recheiam esses pastéis
de fatuidades pode-se facilmente identificar pela ausência de
pessoas vivas nos pretensos atos descritos: diálogos, discussões,
ocorrências, decorrências, divergências, pertinências ou
impertinências, inferências, convergências, interveniências,
conferências, conveniências ou inconveniências e até possíveis
onisciências, tudo gira em torno de nomes que estão recolhidos ao
respeitável silêncio das inscrições tumulares (SOUZA, 1989,
p. 131).

O tom do livro de Souza é agressivo. O autor se propôs a reproduzir


passagens do livro de Wainer e refutá-las. Souza chegou a designar Wainer
como “rei dos trambiques”. No entanto, a obra não teve a mesma repercussão
de Minha razão de viver. Conforme se percebe, na época em que Joel Silveira
empenhou-se no registro de suas lembranças, a disputa pela representação do
passado estava acirrada. Estes jornalistas dialogaram por meio de suas
memórias, mobilizadas no fim de suas vidas como recurso do qual dispunham
para intervir no debate público em torno do passado e como instrumento de
poder e autorrepresentação.9 Numa palavra:

9
Ao analisar o caso de Monteiro Lobato em um contexto muito diverso, Tania Regina de
Luca constatou que o escritor, já no fim de sua vida, reuniu parte de sua produção epistolar
no livro A barca de Gleyre, como último instrumento de poder e autorrepresentação (DE
LUCA, 2004).
290 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O que se pode constatar destas leituras é que esses autores,


independente do encaminhamento que tenham dado às suas vidas,
ao transmutarem-se em memorialistas ratificam as posições sociais
conquistadas no decorrer de suas existências e, ao ingressarem no
campo simbólico da escrita da memória, procuraram representar
antigos embates contra velhos adversários. Nesse sentido esses
textos memorialísticos não deixam de ser uma tentativa de ratificar
ações do passado que não podia ser mais alterado (ZIOLI, 2010, p.
130).

Joel Silveira tomou parte nestas disputas pela representação do passado


que tinha em comum com os demais jornalistas. Estes indivíduos foram
testemunhas dos mesmos eventos, que marcaram a história recente do Brasil.
Longe de serem apenas rancores reminiscentes de questões pessoais, estas
contendas envolveram memórias sobre fatos da história que importava à
coletividade e, assim sendo, tornaram-se disputas pelo poder de representação
e legitimação. Joel Silveira necessitava construir uma autoimagem pela qual se
destacasse dos demais. Portanto, reforçou em suas memórias uma identidade
de repórter heroico e correspondente de guerra, que se cristalizou ao seu
respeito.

Correspondente de guerra e repórter heroico: Joel Silveira como

testemunha da história

Joel Silveira ficou conhecido, sobretudo, por sua atuação como


correspondente na Segunda Guerra Mundial. O jornalista foi escolhido por
Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados, para acompanhar a
Força Expedicionária Brasileira (FEB), à Itália, nos momentos finais do
conflito.10 Certamente a experiência foi marcante para o jovem repórter com

10
Outros jornalistas seguiram o mesmo caminho tal qual Rubem Braga, pelo Diário Carioca,
Egydio Squeff, por O Globo e Raul Brandão pelo Correio da Manhã. No entanto, Silveira era
do grupo jornalístico mais poderoso na época, os Associados, e por isto seus textos sobre a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 291

pouco mais de vinte anos. Desde seu retorno da Itália, em 1945, o autor
passou a publicar em livro suas impressões e crônicas sobre a guerra, com
Histórias de pracinhas (Editora Companhia da Leitura). Tais lembranças foram
reproduzidas em outros livros e textos e entrevistas que Silveira concedeu. A
fama como correspondente de guerra teve origem na construção desta
autoimagem.
Vale lembrar que a memória tem caráter seletivo e as lembranças mais
recorrentes são as que têm maior significado para o autobiografado. Em
entrevista concedida em setembro de 1978, Joel Silveira foi questionado sobre
a importância da FEB em sua atuação profissional. O jornalista respondeu que
a cobertura da guerra foi a experiência mais marcante em sua vida. Além
disso, em uma hierarquia de assuntos, Silveira destacou a guerra como
primeiro lugar, pois considerava a notícia mais importante na vida de um
jornalista:

- Qual a importância da FEB em sua vida profissional?


- Um jornalista que vai à guerra é fundamentalmente tocado por
isso, por que na vida de um jornalista eu acredito que não haja
coisa mais importante no mundo que ser correspondente de guerra.
Sob o ponto-de-vista de hierarquia de assuntos, uma guerra está em
primeiro lugar. Que notícia pode haver maior que uma guerra, e
você participar dela, e com 25 anos? É evidente que marcou de
maneira profunda. Eu pude dizer eu vi, e não eu li (SILVEIRA,
1978-b, p.5).

De fato, nas diversas entrevistas que concedeu, Joel recorreu às


lembranças de guerra, seja voluntariamente, seja por intervenção dos
entrevistadores (ver, por exemplo, sua fala em MIRANDA, 2009). Além disso,
a maioria de seus livros abordou esta experiência, tais quais: As duas guerras da
FEB (IDADE NOVA, 1965), Fatos e homens da Segunda Guerra (BLOCH, 1966,
em coautoria com Caio de Freitas, Mário Martins, Raimundo Magalhães

guerra chegavam mais rápido ao Brasil. Desta forma, o jornalista foi o correspondente de
guerra mais destacado e, assim, foi aclamado quando retornou ao Brasil.
292 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Júnior e Zevi Ghivelder), O Brasil na 2ª Guerra Mundial (EDIOURO, 1976), A


luta dos pracinhas (RECORD, 1983), Segunda Guerra Mundial – Todos erraram,
inclusive a FEB (Espaço e Tempo, 1989), 2ª Guerra – momentos críticos (MAUAD,
1995) e finalmente O inverno da guerra (Objetiva, 2004), sua última obra.
A temática da guerra também foi retomada por Silveira em livros de
memórias, nos quais o autor discorreu sobre outros momentos de sua vida.
Em Viagem com o presidente eleito (MAUAD, 1996), o jornalista descreveu a
viagem que fez com Jânio Quadros, após a vitória nas eleições em 1960. Em
determinado trecho do livro, Silveira “desviou-se” de seu tema central e
retomou as memórias de correspondente de guerra (SILVEIRA, 1996, p. 106-
118). No capítulo “Conversa de dromedário” o escritor, já nos últimos anos
de sua vida, descreveu as impressões que teve ao visitar a redação de um
jornal moderno. Nesta oportunidade, Silveira também incluiu lembranças
sobre o período que passou na Itália com a FEB (SILVEIRA, 1999).11 O tema
ainda rendeu ao jornalista outro capítulo de livro: “O Brasil na guerra”
(SILVEIRA, 1967).
Em outros momentos, Silveira mobilizou as lembranças de sua atuação
na guerra como instrumento de intervenção no debate político de contextos
específicos. Este foi o caso do livro As duas guerras da FEB (Idade Nova,
1965). A obra foi publicada logo após o golpe de 1964. No texto, o jornalista
assinalou que os oficias que derrubaram João Goulart do governo e
instauraram a ditadura foram os mesmos que partiram para a Itália entre 1944
e 1945, para lutar contra o nazismo nas conflagrações da Segunda Guerra
Mundial. O escritor lembrou: “[...] hoje a FEB está tão senhora do Poder
como senhora esteve de Monte Castelo, em fevereiro, e de Montese, em abril
de 1945” (SILVEIRA, 1965, p. 11).

11
A referência ao animal, dromedário, relaciona-se à imagem de Silveira enquanto figura
lendária entre os jornalistas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 293

Esta teria sido a segunda guerra da FEB a qual Silveira fez referência no
título do livro. Vale lembrar que, após o golpe de 1964, os intelectuais
derrotados publicaram suas memórias e autobiografias como forma de
resistência. Esta atividade mobilizou homens de letras de diversas orientações
ideológicas: comunistas, liberais e mesmo aqueles que inicialmente apoiaram a
tomada do poder pelos militares, como Carlos Lacerda.12. Por outro lado,
comemoravam-se vinte anos do fim do conflito mundial, o que também
tornava oportuna a publicação de uma reorganização de suas crônicas de
guerra.
A imagem de Joel Silveira como correspondente de guerra também foi
apropriada pelas editoras que publicaram suas obras a respeito do tema, em
momentos oportunos. Este foi o caso de 2ª Guerra – momentos críticos editado
pela Mauad, justamente em 1995, quando se comemorava cinquenta anos do
fim do evento. Situação semelhante aconteceu com o último livro de Joel
Silveira, O inverno da Guerra, publicado pela Objetiva, em 2004, quando o final
da guerra estava às vésperas de completar sessenta anos (SILVEIRA, 2004).
Joel Silveira teve êxito na construção de sua autoimagem, pois foi como
correspondente de guerra que seu nome passou para a história: “Jornalista
consagrado, com mais de cinquenta anos de militância na imprensa brasileira,
onde ocupou os mais diferentes cargos, de repórter setorista a correspondente
de guerra” (apud SILVEIRA, 1991, s/p). Na ocasião da morte de Silveira, em
agosto de 2007, Alberto Dines percebeu a cristalização desta imagem em

12
Em seu estudo sobre a obra memorialística de Paulo Duarte, Miguel Zioli constatou que
o intelectual, perseguido e exilado durante a Era Vargas, publicou livros sobre esta
experiência como oposicionista. Durante a ditadura instaurada em 1964, a situação não foi
diferente. Paulo Duarte, que compunha o corpo docente da Universidade de São Paulo
(USP) foi perseguido e teve sua aposentadoria compulsória em 1968 com o AI-5. O
projeto memorativo de Duarte iniciou-se antes da interrupção de suas atividades
profissionais, mas foi, sobretudo, após esta data, quando o jornalista perdia espaço na cena
política e intelectual, que a escrita autorreferencial tornou-se tarefa de primeira ordem
(ZIOLI, 2010).
294 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

relação ao jornalista, pois era a única informação que circulava a seu respeito
(DINES, 2007).
De fato, Dines tinha razão, conforme se percebeu nas notícias sobre a
morte do autor: “Um dos maiores destaques de sua carreira [de Joel] foi a
cobertura que realizou da Segunda Guerra Mundial na Itália, junto à FEB
(Força Expedicionária Brasileira), como correspondente de guerra dos Diários
Associados.”13 Para Dines, tratou-se de “necrológios apressados”, pois a
atuação de Silveira na guerra não foi o trabalho mais importante do jornalista.
Os correspondentes eram controlados pelos militares e não tinham autonomia
na transmissão das notícias:

O trabalho como correspondente de guerra não foi o mais


importante da sua [de Joel Silveira] carreira de jornalista. O
acompanhamento das ações militares durante a 2ª Guerra Mundial
hoje seria considerado “chapa-branca”. Os correspondentes de
guerra usavam uniformes, seus despachos eram geralmente
controlados pelos militares embora pudessem acompanhar algumas
operações, geralmente as mais demoradas. (DINES, 2007, p.1).

Além disso, não há na sociedade brasileira uma memória efetiva em


relação à guerra. Apesar da participação do país no conflito, por meio do
apoio aos aliados e dos pelotões enviados pelo governo à Itália na luta contra
o nazifascismo, a Segunda Guerra Mundial não alcançou o território nacional.
O governo da época esforçou-se em criar um espírito de alerta, caso as
conflagrações atingissem o país, mas estas ações visavam manter a “ordem”
supostamente estabelecida e incutir na sociedade determinados hábitos e
costumes (CYTRYNOWICZ, 2000). Desta forma, a lembrança da guerra

13
Jornalista e escritor Joel Silveira morre aos 88 anos no Rio. Folha de S. Paulo. (on-line). 15
ago.2007.Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u320190.shtml.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 295

pouco ecoa nas celebrações nacionais, restringindo-se aos grupos diretamente


ligados a ela, como foi o caso de Silveira:

O lugar da Segunda Guerra Mundial na história e na memória


coletiva da população de São Paulo, e do Brasil, tem sido, no
entanto, marcado muito mais pela ausência do que por uma
presença efetiva e consistente. A guerra, episódio central da história
do século 20, não está presente na memória da cidade de São
Paulo; ela não é celebrada coletivamente, não é lembrada. Os
soldados que lutaram e os mortos não são reverenciados a não ser
por pequenos grupos diretamente ligados a eles
(CYTRYNOWICZ, 2000, p. 17-18).

Portanto, o esforço de Silveira em afirmar-se constantemente como ex-


correspondente de guerra não respondia a uma questão presente na memória
coletiva, mas sim à sua própria individualidade, pela qual seria possível
destacar-se entre os demais jornalistas que publicavam memórias na mesma
época e com quem o autor dialogou. Silveira era a única testemunha do evento
que ainda vivia, logo, não deixou de mobilizar este atributo como estratégia de
autorrepresentação. Além da guerra, o autor também se constituiu como
testemunha de outros momentos históricos.
Este foi o caso do pacto germano-soviético assinado entre os dirigentes
da Alemanha e União Soviética, em 1939, semanas antes da eclosão da
Segunda Grande Guerra. O tratado visava a não agressão entre os dois países.
O pacto repercutiu em todo o mundo. O regime alemão, antes alvo dos
esquerdistas, deveria ser poupado de críticas por todos os admiradores do
socialismo. No Brasil, os intelectuais esquerdistas, inclusive Joel Silveira,
passaram a colaborar no jornal pró-Alemanha Meio Dia, de Joaquim Inojosa.
Anos após o acontecimento, o autor publicou o livro Hitler/Stálin – O
pacto maldito, em coautoria com o jornalista Geneton Moraes Neto, no qual
registrou lembranças de sua participação no Meio Dia. A tarefa de tornar
pública a lembrança de sua atuação em um jornal que defendia a Alemanha de
296 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Hitler foi bastante delicada para o jornalista (SILVEIRA; MORAES NETO,


1989). No entanto, é sintomático que a obra tenha sido publicada, justamente,
em 1989, ano da queda do Muro de Berlim, cuja construção simbolizava a
bipolarização da política mundial dividida entre influência capitalista e
soviética. O momento era oportuno para editar o livro, pois se remetia às
origens desta divisão, debate que voltava à tona.
Nas memórias, Joel Silveira também destacou sua atuação como
repórter heroico que combateu o Estado Novo (1937-1945), ditadura de
Getúlio Vargas. Em janeiro de 1979, o jornalista concedeu entrevista ao jornal
Folha de S. Paulo. No depoimento, afirmou que a revista Diretrizes, na qual
trabalhou durante o Estado Novo, foi fechada pela censura por conta de uma
entrevista que fez com o escritor Monteiro Lobato: “chegou um momento
que a revista [Diretrizes] foi fechada. Foi por causa de uma entrevista com o
Monteiro Lobato, que não passou pela censura e eu publiquei. Aí fecharam a
revista” (SILVEIRA, 1979).14 De fato, os editores da revista Diretrizes
publicaram esta reportagem em setembro de 1943 na qual, em plena ditadura
do Estado Novo, Lobato declarou: “[...] um governo deve sair do povo como
a fumaça de uma fogueira” (apud SILVEIRA, 1943, p. 22).
A frase foi manchete e a matéria foi capa da revista naquela edição.
Certamente que tal entrevista incomodou os censores, mas Diretrizes não saiu
de circulação por este motivo. A publicação circulou normalmente até meados
do ano seguinte. O engano de Silveira não foi ocasional, tampouco simples
esquecimento. Tratou-se de tomar para si a responsabilidade pelo fechamento

14
A entrevista fez parte de um projeto do jornal Folha de S. Paulo, intitulado “Jornalistas
contam a história”, no qual se realizaram entrevistas com intelectuais que atuaram nos anos
1930 e 1940, ou seja, durante a Era Vargas. Entre os entrevistados estavam Joel Silveira,
Barreto Leite Filho, Paulo Mota Lima, Raimundo Magalhães Júnior, Paulo Duarte e
Hermínio Sachetta. As entrevistas estão disponíveis no site
http://almanaque.folha.uol.com.br/memória_6.htm. Acesso em 12/01/10.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 297

da revista, por conta de uma entrevista que teria despertado a atenção dos
censores, reforçando sua imagem como opositor do Estado Novo.
Joel Silveira repetiu esta informação equivocada em outras
oportunidades. O dado também se reproduziu em verbetes de dicionários e
enciclopédias15 A ideia de que a revista Diretrizes teria deixado de circular por
conta desta entrevista que Silveira levou Lobato a cristalizar-se de tal forma
que se reproduziu, até mesmo, em um estudo feito sobre suas reportagens no
periódico (NEGRI, 2001, p. 35). Para Philippe Artières, nestes relatos
autobiográficos, “manipula-se, rasura-se e corrige-se” não apenas para legar a
maneira como se quer ser representado, mas também para construir uma
autoimagem para si mesmo:

Numa autobiografia [...] não só escolhemos alguns acontecimentos,


como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos
acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas
vidas. [...] Arquivar a própria vida é se por no espelho, é contrapor
à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o
arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de
resistência (ARTIÈRES, 1998, p. 11).

A imagem de Silveira como opositor do Estado Novo também foi


apropriada por alguns grupos de resistência à ditadura militar que mobilizaram
esta memória para espelhar a realidade política de seu tempo.16 Em setembro
de 1978, na ocasião em que comemorava sessenta anos de idade, Joel Silveira
concedeu uma entrevista ao jornal O Pasquim, um dos principais núcleos de
oposição à ditadura militar. Ao comentar as torturas contra os perseguidos

15
Ver por exemplo o caso de Morais (2004, p. 423); Morais (2003, p. 200). O catálogo A
revista no Brasil (2000, p. 195), também incorreu no erro, além do verbete “Joel Silveira”
presente em, Abreu (2001, p. 5459). Silveira repetiu a informação em entrevista presente
em Molica & Moraes Neto (2006, p. 131) e em Silveira (2001, p. 82).
16
Marieta de Moraes Ferreira (2006) estudou as apropriações feitas da imagem de Vargas e
de seus governos após a morte do ditador. A autora percebeu que, na época da ditadura
militar, o Estado Novo foi lembrado por alguns grupos de oposição que estabeleceram
relações entre os dois regimes.
298 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

políticos do regime de 1964, Silveira comparou com a ditadura de Vargas:


“No Estado Novo, pelo menos sabia-se (sic) quem tinha matado”
(SILVEIRA, 1978-a, p. 15). Na intenção de dar sentido à sua trajetória, o
jornalista afirmou, nesta mesma ocasião que a sua autoproclamada “verve
revolucionária” teria origem em sua própria família:

Deixa eu lhe contar de onde vem meu instinto revolucionário.


Minha mãe, dona Giovita Ribeiro, casou com meu pai quando já
tinha 40 anos. No tempo em que minha mãe era professora,
Sergipe tava divido entre o padre Olímpio Campos e o brilhante
orador Fausto Cardoso, e ela era faustista, quer dizer, mais da
esquerda. Aí assassinaram Fausto Cardoso e degredaram minha
mãe para ensinar lá em Caravelas, Belmonte, sul de Sergipe
(ARTIÈRES, 1998, p. 10).

Silveira procurou dar sentido para sua atuação como opositor do


Estado Novo, buscando em suas origens familiares a suposta razão de suas
preferências políticas. Desta forma, produzia uma lógica para sua existência,
como se o comportamento “revolucionário” fosse seu destino, marcado antes
mesmo de seu nascimento. Segundo Pierre Boudieu, em um relato
autorreferencial, há a intenção do “investigado” em construir uma sucessão
inteligível para a sua trajetória de vida. Nestes casos, há o projeto de
apresentar um relato coerente com a imagem pela qual o autobiografado
almeja ser lembrado. Bourdieu designou este efeito de “ilusão biográfica”.
Para o autor:

Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia


sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido,
de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo
retrospectiva e prospectiva, uma consciência e uma constância,
estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa
eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos
em etapas de um desenvolvimento necessário (BOURDIEU, 1996,
p. 184).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 299

Joel Silveira foi mesmo opositor do Estado Novo, apesar da acirrada


censura à imprensa que existia na época (ver FERRARI, 2011) e também um
dos correspondentes de guerra que mais escreveu sobre o assunto. O
jornalista não inventou uma autoimagem e foi fiel à sua realidade. No entanto,
necessitava mobilizar os recursos dos quais dispunha para reinserir-se nos
debates culturais e políticos num momento muito diverso daquele que o
consagrou como jornalista.
Desta forma, dialogou com as memórias de seus congêneres, em
disputa pela representação de um passado em comum, retomando antigas
desavenças e procurando destacar o que o diferenciava dos demais. Esta
construção produziu um balanço invariável sobre sua trajetória: repórter
heroico e correspondente de guerra. Toda sua longa carreira foi explicada
nestes termos, que se restringem aos anos iniciais de sua atuação como
jornalista. Algumas de suas práticas, no período estudado, foram lembradas na
construção memorativa, enquanto outras caíram em seu esquecimento, em
detrimento da complexidade dos processos, tão cara aos historiadores.

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Joaquim Inojosa e o Jornal Meio-Dia (1939-1942)

João Arthur Ciciliato FRANZOLIN*

Introdução

E
ste texto tem como fonte e objeto de reflexão o jornal Meio-Dia,
que circulou durante os anos de 1939 a 1942, sob direção de
Joaquim Inojosa, expoente do modernismo pernambucano. O
periódico tornou-se notório por apoiar causas defendidas pela Alemanha
nazista, em um contexto no qual a maioria dos órgãos da grande imprensa,
então amordaçada pelo duplo controle do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) e do Conselho Nacional de Imprensa, apoiava
incondicionalmente a causa aliada. Por meio da análise de seus editoriais e
artigos de seu fundador, foi possível analisar uma ampla gama de
representações não apenas a respeito da Alemanha, mas também em relação a
URSS, França, EUA e a Inglaterra, o país mais atacado nos textos veiculados.
Antes de abordar a trajetória do jornal, é necessária sua inserção no contexto
da imprensa brasileira dos anos 1930 e 1940.
Em 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder, estava a imprensa
brasileira em franco processo de expansão (BAHIA, 1967, p. 63). Não apenas
boa parte dos jornais passou a contar com serviço telegráfico efetivo de
agências internacionais – como Havas e United Press –, como também se valia
de novas técnicas de impressão, via a aquisição das linotipos e de outras
novidades no campo da impressão, e do estabelecimento de departamentos de

*
Mestrando em História/UNESP/Assis. Orientadora: Profª. Drª.Tania Regina de Luca.
304 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

publicidade, o que contribuiu, de forma decisiva, para a consolidação das


empresas jornalísticas.
Nas décadas de 1930 e 1940, os maiores jornais do país concentravam-
se, sobretudo, no Rio de Janeiro, então capital federal, e dominavam o
mercado nacional, com amplas tiragens. Destacavam-se o Correio da Manhã1,
talvez o maior matutino do período; O Jornal, vespertino “órgão líder” dos
Diários Associados, de Assis Chateaubriand; o Diário de Notícias, fundado em
2
1930 por Orlando Ribeiro Dantas, além de outros títulos não menos
importantes como o Jornal do Brasil, Diário Carioca e O Globo. Existiam dois
tipos de periódicos, matutinos e vespertinos: os primeiros circulavam logo no
começo do dia, possuíam diagramação e linha editorial sólidas e não tinham
edições às segundas-feiras. Já o segundo grupo saía por volta das 11 horas da
manhã, eram mais fluidos em relação ao seu conteúdo e não apareciam aos
domingos. Um vespertino também poderia ter várias edições no decorrer de
um mesmo dia, de acordo com sua vendagem, e eram, em geral, considerados
mais populares.
Em São Paulo, outro centro importante do país, circulava o poderoso
O Estado de S. Paulo3, propriedade de Júlio de Mesquita Filho, bem como o
Diário de S. Paulo, outro jornal incorporado à cadeia dos Diários Associados,
além da Folha da Noite e Folha da Manhã, esta última surgida em 1925
(DUARTE, 1972, p. 31-32).

1
A história desse importante órgão da imprensa brasileira foi documentada em
ANDRADE, Jeferson Ribeiro de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da
Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
2
Mais informações sobre os periódicos acima citados podem ser encontradas em SODRÉ,
Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999; e também em
RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50. Tese
(Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação, UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.
3
A trajetória de O Estado de S. Paulo foi analisada no pioneiro estudo de Maria Helena
Rolim Capelato e Maria Lígia Prado, o qual, com o passar dos anos, também se tornou uma
obra de referência sobre a imprensa brasileira. Ver CAPELATO, Maria Helena Rolim;
PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino: Imprensa e ideologia no jornal “O Estado de S.
Paulo”. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 305

Não se pode esquecer, todavia, que esse panorama foi severamente


influenciado pelos acontecimentos políticos do Brasil nas décadas de 1930 e
1940. O Estado Novo, governo autoritário capitaneado por Getúlio Vargas,
foi instaurado em novembro de 1937. O golpe desfechado no dia 10 daquele
mês foi alardeado como reação à descoberta do chamado “Plano Cohen”,
uma suposta revolução para implantar o comunismo no Brasil. Como se
descobriu mais tarde, o plano fora arquitetado por um capitão integralista,
Olímpio Mourão Filho, que teria participação importante no golpe de 1964,
desencadeando o processo que levaria à instauração do regime militar. Em
1937, seu plano serviu como uma luva para os propósitos varguistas de por
fim à disputa pela Presidência da República, endurecer definitivamente o
regime que, desde a Intentona Comunista de 1935, tornava-se cada vez mais
autoritário e centralizador (Cf. CARONE, 1976). A instauração de uma
ditadura levou o governo a agir de forma mais rígida e controladora em
relação à imprensa, e para tanto foi criado o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) em dezembro de 1939. As funções do DIP eram muito
abrangentes, contando com as seguintes divisões: Divisão de Divulgação,
Divisão de Radiodifusão, Divisão de Cinema e Teatro, Divisão de Turismo,
Divisão de Imprensa e Serviços Auxiliares.4
A divisão de Imprensa do DIP contava ainda com o Conselho
Nacional de Imprensa, formado por seis membros: três deles nomeados por
Vargas, e outros três escolhidos em assembleias realizadas pela Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), pelo Sindicato dos Proprietários de Jornais e
Revistas do Rio de Janeiro e ainda pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais
do Rio de Janeiro. A direção, porém, cabia ao diretor do DIP – no caso,
Lourival Fontes (GOULART, 1990, p. 66).

4
A atuação do DIP e sua trajetória podem ser vistos em ARAÚJO, Rejane. “Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP)”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (Coord.). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001, p. 1830-1833.
306 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Vê-se, assim, que a relação do DIP e do governo com os jornais não se


pautou apenas pela censura pura e simples, mas foi muito mais abrangente.
Algumas vezes não se hesitou em usar a força, como atesta a desapropriação
do matutino O Estado de S. Paulo e do diário A Noite, no Rio de Janeiro.
Todavia, essas ações constituíram-se em situações extremas, e não eram de
forma alguma rotineiras. Muito mais comum era a facilitação de verbas,
empréstimos, concessão de publicidade estatal e favores de outras ordens a
jornais que apoiassem a ditadura estadonovista, como bem exemplifica a
questão das cotas de papel. Como o Brasil não tinha indústrias produtoras de
papel-jornal, era preciso importar grandes quantidades,5 o que era feito pelo
Estado. Não obstante, o jornal que apoiasse o governo receberia isenção nas
taxas alfandegárias, o que facilitou muito o processo coercitivo. É necessário
lembrar, ainda, que o poder do DIP não foi o mesmo de 1939 até o fim do
Estado Novo. Maria Helena Capelato destacou como, a partir de 1942, o
quadro político alterou-se significativamente, uma vez que a batalha no
interior do círculo governista acabou sendo vencida pelos defensores dos
Aliados, devido à opção brasileira pelos Estados Unidos, o que implicou em
mudanças significativas, como exemplifica a saída de Lourival Fontes da
direção do DIP, famoso por sua defesa pró-Eixo (CAPELATO, 1998, p. 135-
136). Com a ascensão do Major Coelho dos Reis à direção do órgão, o
controle exercido tornou-se cada vez menos estrito, isso porque a situação
externa desenhava-se cada vez menos favorável ao regime que, de fato, caiu
em outubro de 1945.

5
Fernando Morais afirmou que a maior parte do papel consumido pelo Brasil vinha da
Finlândia, a qual após a Guerra de Inverno com a Rússia, passou a restringir suas
exportações. A alternativa escolhida foi importar papel do Canadá, cuja produção era
insuficiente, o que desencadeou uma alta nos preços. Isso fez com que muitos periódicos,
durante a guerra, tivessem que diminuir o número de páginas. Cf. MORAIS, Fernando.
Chatô: O rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 427.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 307

Em relação à Guerra, estudos recentes demonstraram que órgãos


importantes da grande imprensa como o Correio da Manhã (Cf. FRANZOLIN,
2008) e O Estado de S. Paulo (Cf. COSTA, 2010), se colocaram a favor dos
Aliados. Todavia, alguns periódicos de menor circulação destoaram e
manifestaram apoio explícito à Alemanha nazista. Pode-se citar o Diário de
6
Notícias da Bahia, analisado por José Carlos Peixoto Júnior, e os cariocas
Gazeta de Notícias7 e Meio-Dia. Sobre este último, fonte e objeto desta pesquisa,
são necessários alguns esclarecimentos importantes.

Meio-Dia - uma análise de sua trajetória:

Até o momento, não foram encontrados estudos acadêmicos sobre o


Meio-Dia, embora, como se viu, existam dissertações dedicadas ao estudo de
jornais que difundiram propaganda nazista no Brasil. 8 Parece que o periódico
editado de 1939 a 1942 não despertou interesse algum na historiografia
brasileira, como atesta o fato de o conhecido Dicionário Histórico-Biográfico
Brasileiro Pós-1930, coordenado por Alzira Abreu e outros e editado pelo
CPDOC/FGV, em 2001, não conter nenhuma referência ao periódico, fato
que se repete numa obra fundamental como História da Imprensa no Brasil, de
Nelson Werneck Sodré.
O único trabalho existente sobre o vespertino carioca é o livro de Joel
Silveira e Geneton Moraes Neto, Hitler/Stalin: O pacto maldito (1990). A obra é,
na realidade, uma reportagem dividida em duas partes: a primeira, a respeito

6
PEIXOTO JÚNIOR, José Carlos. A ascensão do nazismo pela ótica do Diário de Notícias da
Bahia (1935-1941): um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA, Salvador, 2003.
7
Para um estudo da atuação da Gazeta de Notícias durante o primeiro período varguista e o
início do segundo conflito mundial, ver: GAK, Igor Silva. Os fins e seus meios: diplomacia e
propaganda nazista no Brasil (1938-1942). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, UFF, Niterói, 2006.
8
Vale lembrar que o Meio-Dia é citado em uma delas, a de Igor Silva Gak sobre os jornais
Gazeta de Notícias e Boletim Mercantil. (Cf. GAK, 2006)
308 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

do pacto germano-soviético assinado em agosto de 1939, foi escrita por Joel


Silveira. A segunda reportagem, feita por Geneton Moraes Neto,9 trata
basicamente das consequências da assinatura do pacto no Brasil. A análise
feita pelo jornalista detém-se apenas no Meio-Dia, com ênfase no aspecto, que
julga paradoxal, de um jornal brasileiro ter apoiado a Alemanha nazista no
contexto da Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que possuía
colaboradores de esquerda.
Moraes Neto empenhou-se em traçar uma breve história do periódico,
além de elencar colaboradores e apresentar mais informações a respeito do
fundador do Meio-Dia, Joaquim Inojosa. Outros pontos destacados são o
suplemento literário “Letras-Artes-Ciências”, organizado, a princípio, por
Jorge Amado, bem como a relação do jornal com o Estado Novo.
Um aspecto bastante enfatizado por Moraes Neto em seu livro é o fato
de que, a princípio, o jornal contou com expressiva colaboração de nomes da
esquerda, como Jorge Amado e Oswald de Andrade. Para compreender tal
apoio deve-se ter em vista o pacto germano-soviético e seu impacto sobre as
lideranças comunistas no Brasil (e também em todo o mundo), que os
colocou, momentaneamente, ao lado de simpatizantes do fascismo, caso do
jornal Meio-Dia. Assim, até junho de 1941, quando os nazistas invadiram a

9
No seu site oficial, o jornalista esclarece que nasceu no Recife em 13 de julho de 1956. De
1975 a 1980 trabalhou no Diário de Pernambuco e na sucursal nordeste de O Estado de S.
Paulo. Depois de um breve período vivendo na França, voltou ao Brasil e começou a
trabalhar na Rede Globo Nordeste. Na Rede Globo do Rio de Janeiro, desde 1985, foi
editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, bem como correspondente da
Globo News e do jornal O Globo, em Londres. Foi, ainda, repórter e editor-chefe do
programa Fantástico em duas ocasiões. Mais informações sobre o autor estão na seção
“Quem é” de seu website. Disponível em: <http://www.geneton.com.br/quem/>. Acesso
em: 31 jan. 2010. O jornalista possui um blog no portal de notícias G1. Acessar MORAES
NETO, Geneton. Dossiê geral: o blog das confissões. Contatos imediatos de um repórter
em busca de segredos dos anônimos e famosos. Disponível em: <
http://colunas.g1.com.br/geneton/>. Acesso em: 31 jan. 2010. Vale acrescentar ainda que
o autor, atualmente, apresenta o programa Globo News Dossiê aos domingos. A página do
programa está disponível em: <http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,JOR337-
17665,00.html>. Acesso em: 31 jan. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 309

União Soviética, os mesmos foram vistos pelos comunistas de todo o mundo,


e mesmo dentro da própria URSS, enquanto “aliados” e “parceiros”, o que
eliminava qualquer possibilidade de crítica, por parte da esquerda brasileira e
mundial, então aliada da Alemanha nazista e de Hitler.
Embora a reportagem tenha seus méritos, Moraes Neto deu pouca
atenção aos artigos assinados por Joaquim Inojosa, diretor-proprietário do
jornal, comentando apenas alguns deles. Já os editoriais, presentes nas páginas
do periódico, nem sequer mereceram comentários do autor. Para tentar
entender as mudanças e posicionamentos adotados pelo jornal durante o
período em que circulou, torna-se imprescindível um exame acurado desses
textos, a fim de que se possa ter um quadro amplo de como se deu,
efetivamente, o aventado apoio do vespertino à Alemanha hitlerista. Dessa
forma, pretende-se realizar uma análise sistemática desses escritos durante o
tempo em que foi publicado o jornal.
É necessário precisar, ainda, o nível de envolvimento entre o Meio-Dia e
a agência de notícias alemã Transocean. Sobre essa última, conta-se com poucas
informações, a maioria fragmentada em obras diversas. 10 Ao que se sabe, suas
notícias não ocuparam espaço digno de nota na grande imprensa brasileira, na
11
qual figurou de forma marginal. A Transocean teve atuação em toda a
América, incluindo os Estados Unidos, onde era capitaneada por Manfred
Zapp e Günther Tonn, tendo finalizado suas atividades nesse país até 10 de
julho de 1941 (WAR & PEACE). No Brasil, entretanto, suas atividades
continuaram até 30 de janeiro de 1942, quando foi definitivamente fechada
10
O já citado estudo de Igor Silva Gak sobre a penetração da propaganda nazista no Brasil,
bem como o próprio livro de Geneton Moraes Neto e Joel Silveira contém algumas
informações importantes sobre a agência alemã de notícias, além ainda do livro de Priscila
Perazzo, o qual foi originalmente apresentado na USP como a dissertação de mestrado da
autora em 1997. Ver PERAZZO, Priscila Ferreira. O perigo alemão e a repressão policial no
Estado Novo. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999. (Coleção Teses e Monografias).
11
MÜLLER, Jürgen. Nationalsozialismus in Lateinamerika: Die Auslandsorganisation der
NSDAP in Argentinien, Brasilien, Chile und Mexiko, 1931-1945. Stuttgart: Verlag Hans-
Dieter Heinz/Akademischer Verlag Stuttgart, 1997, p. 267 apud GAK, Igor Silva. op. cit.
310 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

(SILVEIRA; MORAES NETO, 1990, p.443). Sabe-se que a agência alemã


distribuía propaganda nazista gratuitamente para todos os jornais que
aceitassem o seu serviço, como foi o caso da Gazeta de Notícias e do Meio-Dia.
Oficialmente, seu diretor no Brasil era José de Carvalho e Silva e o tesoureiro
Johanes Geyer. Contudo, segundo Perazzo, “sabe-se que o verdadeiro diretor
era Geyer, alemão, nazista e pessoa de confiança da embaixada alemã” (1999,
p. 90). Dessa forma, vê-se que a empresa não era meramente uma
distribuidora de material telegráfico para a imprensa, mas parte importante de
engrenagem da máquina de propaganda nazista para as Américas.
A trajetória do jornal Meio-Dia, que circulou de março de 1939 a
outubro de 1942, praticamente confunde-se com a biografia de seu diretor-
proprietário, Joaquim Inojosa. 12 Para a compreensão do jornal, é importante

12
Embora interesse aqui seja, particularmente, a atuação de Joaquim Inojosa como
jornalista durante as décadas de 1930 e 1940, são necessárias algumas considerações gerais
sobre sua vida. O escritor, advogado e jornalista nasceu em Pernambuco, no município de
Timbaúba, hoje São Vicente Férrer, em 27 de março de 1901. Os primeiros estudos foram
feitos em sua cidade natal bem como no Recife, onde cursou a faculdade de Direito,
exercendo, posteriormente, a profissão de advogado e promotor público. Ligou-se aos
expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922: Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Menotti Del Picchia, entre outros, e ainda manteve correspondência e contato com Manuel
Bandeira, Câmara Cascudo, Austregésilo de Athayde, etc, como se depreende da
observação da ficha catalográfica de seu arquivo pessoal, o qual pertence, na atualidade, à
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Também em seus livros o escritor
pernambucano fez sempre menção a suas epístolas, além de citá-las quando necessário.
Inojosa teve papel importante na divulgação das novas propostas estéticas em
Pernambuco. Escreveu o artigo “Que é futurismo”, publicado no jornal A Tarde, de Recife,
em novembro de 1922, de acordo com informação colhida no artigo “O estopim”,
publicado em O Jornal, em 05 de novembro de 1972, presente em INOJOSA, Joaquim. Os
Andrades e outros aspectos do modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Brasília: INL, 1975, p. 147. Em 1924, lançou o livro A arte moderna, considerado um apelo
para a união do Norte e Nordeste do Brasil ao movimento modernista. Ao final de sua
experiência jornalística com o Meio-Dia se afastou da imprensa, voltando à atividade
jornalística apenas em 1948, com o semanário A Nação, órgão de apoio ao Marechal Eurico
Gaspar Dutra, então presidente da República. Em 1965 reeditou, por breve período, o
Meio-Dia, a fim de garantir a posse da chancela e, em julho de 1968, voltou a colaborar em
O Jornal, no Jornal do Commercio e, ainda, no famoso Suplemento Literário de O Estado de S.
Paulo. Essas informações factuais foram retiradas do livro de memórias INOJOSA,
Joaquim. 60 Anos de Jornalismo (1917-1977). Rio de Janeiro: Meio-Dia, 1978. Por fim,
Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa afirmaram que o maior feito polêmico e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 311

ter em conta a atuação de Inojosa enquanto jornalista durante os anos de 1930


a 1945, período particularmente turbulento tanto nacional quanto
internacionalmente.
Com o advento da Revolução de 1930, conseguiu Inojosa, por meio de
um salvo-conduto, abandonar o Nordeste e chegar ao Rio de Janeiro, onde se
empregou em O Jornal, órgão da cadeia dos Diários Associados de Assis
Chateaubriand. Em 1934, reorganizou uma indústria de tecidos em Minas
Gerais, a “Companhia de Fiação e Tecelagem Industrial Mineira”, 13 que faliu
em 1939. Em março do mesmo ano fundou o vespertino Meio-Dia, que
circulou até outubro de 1942, data a partir da qual Inojosa afastou-se da
imprensa, atividade que retomou apenas em 1948.
O Meio-Dia circulou em pleno Estado Novo e, por certo, teve que se
registrar no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Para
compreender a história do vespertino é necessário retroagir a outubro de
1938, quando Inojosa firmou um contrato com a Linotipo do Brasil,
representante da Mergenthaler Linotype Company, para a compra de
equipamentos de impressão para um jornal. fechada (SILVEIRA; MORAES
NETO, 1990, p.412). Este surgiu alguns meses depois, em 1º de março de
1939 e contou, durante sua tumultuada existência, com vários colaboradores
importantes: Oswald de Andrade, que escrevia a coluna “Banho de Sol” e “De

documental do modernista pernambucano “foi desbancar o falso pioneirismo literário de


Gilberto Freyre no Nordeste, cujo Manifesto Regionalista, lançado em 1926, era falso,
segundo Inojosa, pois só foi aparecer, de fato, em 1952, lido no I Congresso Regionalista
do Nordeste. O próprio G.F. acabou por confessar a farsa”. Sobre a polêmica ver o
verbete “INOJOSA, Joaquim” em COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de.
Enciclopédia de Literatura Brasileira. São Paulo: Global Editora; Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional/DNL, Academia Brasileira de Letras, 2001, p. 859-860. 2v. Depois de
grande produção intelectual, Joaquim Inojosa morreu em 12 de janeiro de 1987. Em seus
85 anos de vida, publicou muitas obras, com destaque para O movimento modernista em
Pernambuco, No pomar vizinho, Os Andrades e outros aspectos do modernismo, entre outras.
13
O nome da empresa se encontra em um trecho de um artigo publicado por Oswald de
Andrade na primeira edição do Meio-Dia, de 1 de março de 1939. (Cf. SILVEIRA;
MORAES NETO, 1990, p. 355).
312 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Literatura”; Jorge Amado, encarregado da página “Letras-Artes-Ciências”,


além de Joel Silveira, já na época um expoente do jornalismo carioca.
Sua edição inaugural foi efusivamente saudada por várias
personalidades políticas e jornalísticas da época, como o ministro da Justiça
Francisco Campos, autor da carta constitucional de 1937, o diretor do DIP,
Lourival Fontes, Assis Chateaubriand, dono da cadeia dos Diários Associados,
Herbert Moses, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Pouco depois da estreia, chegou mesmo a receber uma mensagem de
congratulação de Getúlio Vargas.
Segundo consta na reportagem de Geneton Moraes Neto, o jornal teve
existência conturbada, pois sua orientação pró-Eixo causou-lhe inúmeros
problemas e desentendimentos com o DIP e o Conselho Nacional de
Imprensa, até o seu fechamento em outubro de 1942.
O vespertino circulou, originalmente, em três edições (surgindo às
vezes uma quarta edição, chamada de extra pelo jornal), sendo que a primeira
continha 16 páginas. A princípio, as edições subsequentes aumentavam o
número de páginas até o final do dia, chegando a 20 ou 24 e, para tanto, se
utilizavam de material proveniente das agências telegráficas, bem como
rearranjavam o conteúdo publicado na primeira edição a fim de ampliar o
exemplar. Isso se modificou com o passar do tempo e, no início de 1940, o
jornal mantinha três edições diárias (agora denominadas primeira edição, ante-
final e final), com 8 páginas cada.
Em dezembro de 1939, as dimensões do periódico foram alteradas para
o formato maior; o uso de caricaturas de personalidades foi um artifício
utilizado unicamente em março daquele ano, e não foi detectado seu emprego
novamente em 1939. No mês de dezembro passou a ocorrer maior utilização
de fotos, que ilustraram todas as edições a partir de então.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 313

O ano de 1940 trouxe, ainda, nova reorganização, com o aparecimento


de editoriais não assinados e uma profusão de articulistas alemães da
Transocean, bem como o suplemento literário do Meio-Dia, chamado “Letras,
Artes, Ciências”, que, a princípio, esteve sob o comando de Jorge Amado. Ao
mesmo tempo, as fotos passaram a ser fornecidas pela já citada agência alemã
Transocean. Em 1941, já não contava o jornal com Jorge Amado ou qualquer
outro colaborador da esquerda ou de tendências esquerdistas, pois a invasão
da União Soviética por Hitler colocou novamente nazistas e comunistas em
lados opostos, o que pôs um fim ao dilema iniciado em agosto de 1939, com o
pacto de não-agressão germano-soviético.
O expediente do vespertino, tal como nas suas edições, foi sempre alvo
de mudanças, com inúmeros secretários de redação. Nele estampavam-se o
nome do diretor-proprietário no cabeçalho (no caso, Joaquim Inojosa)
juntamente com o do secretário (se houvesse) e o do gerente, cargo este
ocupado por Mário da Trindade Henriques durante o período já consultado.
José Mandina era o responsável pela publicidade, mas foi substituído, por um
curto período, em dezembro de 1939, por Oswaldo Soares de Pinho. A partir
de 1941, passaram a figurar também naquele espaço todas as sucursais do
Meio-Dia, no Brasil e no exterior. Segundo dados presentes no próprio jornal,
a sucursal do exterior localizava-se em Berlim e seu diretor era Silva Monteiro,
que também exercia a função de articulista. Já as filiais brasileiras localizavam-
se em São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Recife, Goiás e Porto Alegre.
A publicidade também apresentou significativas mudanças, aliás, como
todo o conteúdo do vespertino. Em março de 1939, havia anúncios da
Tecelagem de Seda e de Algodão de Pernambuco S.A, que, conforme revelou
a consulta aos arquivos, era propriedade do sogro de Joaquim Inojosa, João
Pessoa de Queiroz; da Companhia de Fiação e Tecelagem Industrial Mineira,
a já citada empresa de Inojosa; Casas Pernambucanas; Antarctica; Klabin
314 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Irmãos & Cia., além da Westinghouse, a única empresa estrangeira. Tal


situação transformou-se em 1940, quando os anúncios tornaram-se,
predominantemente, germânicos. Alguns exemplos: Linhas Aéreas Condor;
Banco Germânico da América do Sul; Banco Alemão Transatlântico; Bayer;
Siemens; Merck, entre outras. Deve-se levar em conta que a publicidade é
peça importante para que se possa averiguar o grau de envolvimento do
periódico com a Transocean.
O artigo de Joaquim Inojosa, publicado como editorial, localizava-se na
primeira ou segunda página da primeira edição. Nas seguintes, podia figurar
na terceira ou quarta páginas, já que os exemplares tinham sempre sua
diagramação alterada no decorrer do dia. De forma mais frequente, o texto de
Joaquim Inojosa era publicado na segunda página, no canto superior
esquerdo, e variava de tamanho. Sua periodicidade era irregular, passando a
ser publicado diariamente apenas a partir de 1940. Os editoriais, por sua vez,
surgiram na mesma época, após o final de “Registro Internacional”, e
ocuparam geralmente a segunda página, embora sem lugar definido. Sua
periodicidade também era inconstante, e tornaram-se correntes no vespertino
apenas depois do ataque alemão à Bélgica, Holanda e Luxemburgo em maio
de 1940.
Outro dado importante a ser considerado é o fato de que a orientação
ideológica do Meio-Dia não foi sempre nazista. Em março de 1939, o jornal
contava com uma linha editorial com alinhamento próximo às democracias
ocidentais. Curioso notar que, nesse período, não havia extensa colaboração
da Transocean, nem tampouco possuía o periódico publicidade apenas de
empresas alemãs, embora estivessem desde o princípio presentes esses dois
elementos. Os dois fatores mencionados, alterados a partir de 1940, são
indícios importantes da mudança de rumos que se processou. Para
exemplificar a mudança na linha editorial, eis dois artigos de Joaquim Inojosa.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 315

O primeiro foi publicado em 23 de março de 1939, chamado “Princípio


Democrático”, no qual se louvava a política inglesa:

Eden, o simpático ex-secretário do Foreign Office, é uma das


inteligências políticas mais expressivas da Inglaterra. A sua
palavra dia a dia se reveste de mais autoridade, sobretudo no
instante em que os acontecimentos confirmam certas
previsões, feitas quando ocupava uma pasta no Gabinete. O
ânimo frio do inglês receou, então, que o ministro precipitasse o
país numa guerra. Ele apenas reagia, no momento, contra o
previsto desfecho dos fatos que atualmente sacodem os nervos da
Europa.
Eden tinha razão, se considerarmos o movimento de reação
que ora se esboça entre as democracias européias. Mas os
adversários apresentavam, naquela época, motivos
ponderosos, dentre os quais o de se não encontrar a
Inglaterra devidamente armada. E foi por isso que
Chamberlain resolveu pacificar a Europa, enfrentando a
tempestade com um guarda-chuva sem aspas...
Nada, porém, como a experiência dos fatos... Para Eden, quando
no poder, apresentava-se pouco sedutora qualquer aliança da
Inglaterra com os países totalitários. Hoje, a interpretarmos bem o
seu último discurso, modificou-se-lhe a linguagem. Não lhe
importam mais os regimes. Podem ser estes “branco, preto, cor de
rosa ou vermelho”. O que interessa à velha Albion é “saber se esse
governo está disposto a ligar-se a outros, caso se torne necessário
defender a paz”.
A expressão reflete bem o sentimento da democracia inglesa. Cada
povo tem o regime que merece, embora, muitas vezes, seja digno
de regime diferente... Mas a Inglaterra quer saber apenas da
conduta internacional dos diversos países, desprezando-lhes
as formas de governo. Pensassem todos assim, traçassem os
ditadores essa norma de “boa vizinhança” (porque os
continentes, hoje, são todos vizinhos), e talvez maior
confiança mútua e certa tranqüilidade reinasse entre os
povos...
Esse é, porém, um princípio democrático, que só encontra
eco nos espíritos formados em regimes de liberdade.
As palavras de Eden não têm oportunidade na América, onde
a “conduta internacional” é clara, tradicional e coerente;
onde cada povo vive bem com o seu regime, que por sinal é
todo ele cor de rosa, e não inveja nem estranha o regime do
vizinho.
316 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Na Europa, entanto, deveriam servir de paradigma, como


remédio mais pronto à cura de certas enfermidades políticas,
que ameaçam destruir civilizações milenares [...] (INOJOSA,
1939, p.2, grifo nosso).

Já em 1941, quando o periódico recebia farto material da Transocean,


Inojosa editou “Missa de 7º dia...” em 30 de abril, cujo tom era
particularmente virulento em relação à Inglaterra:

Winston Churchill proferiu palavras de desalento. Verdadeira


missa de sétimo dia, o seu discurso. Frases de um vencido,
que não sabe por onde recomeçar a vida. Falou em situação
moral quando é essa, justamente, a que mais lhe deve pesar
no ânimo.
Porque, prometendo vitórias ao seu povo, não lhe dá senão
sucessivas derrotas, de tal ordem que passa a não merecer fé
o que promete. É esse, hoje em dia, o aspecto real de sua
posição na política britânica: de um chefe de governo que de
tanto fracassar não tem mais autoridade para prometer.
Quando o homem público desce a um grau tão persistente de
descrédito, ele está com a sua carreira irremediavelmente
encerrada.

O povo inglês acha-se cansado de derrotas. Os políticos lhe


ocultaram a verdadeira situação, que ele, somente agora, começa a
compreender. Por isso mesmo, Churchill teve de proferir uma
de suas arengas, não para justificar a “estratégica retirada” da
Grécia, mas para anunciar que na África e no Atlântico é que
ajustará contas com os inimigos da judiaria inglesa...

Entanto, devemos convir em que para a Inglaterra não está


esgotada a lista de vítimas. As seculares e afiadas garras do Leão
Britânico ameaçam erguer-se contra Espanha e Portugal, ou, do
outro lado, contra a Turquia. O desembarque de tropas no
Iraque entremostram que os ingleses querem mesmo
“combater, recuando”, até os confins do seu Império...
Até lá, porém, irão os exércitos do “eixo” em perseguição
tenaz aos seculares inimigos da humanidade. (INOJOSA,
1939, p.2, grifo nosso).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 317

Tais excertos apenas ajudam a exemplificar tudo o que já foi aqui


assinalado, e demonstram a importância de se delimitar a relação existente
entre o jornal e propagandistas alemães.

Conclusões

A análise de periódicos exige uma metodologia específica. É importante


considerar as palavras de Maria Helena Rolim Capelato e Maria Lígia Prado,
na introdução do livro O Bravo Matutino, que trata da história do jornal O
Estado de S. Paulo e que se constitui num importante exemplo do trabalho com
fontes dessa natureza. Afirmam as autoras:

A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por


entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de
manipulação de interesses e de intervenção na vida social; nega-se,
pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam como mero “veículo
de informações”, transmissor imparcial e neutro dos
acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se
insere. (CAPELATO; PRADO, 1980, p.XIX).

Assim, os jornais possuem um projeto político que é apresentado


diariamente aos seus leitores. Dessa forma, como afirmam as autoras,
enganam-se os que acreditam que um jornal tem conteúdo e missão
puramente informativos. Tanto no caso analisado pelas autoras quanto no
Meio-Dia, existe uma tentativa de influenciar os rumos e os destinos da nação,
por meio das ideias defendidas pelo grupo, indivíduo ou família que
comandava o jornal. Com efeito, Joaquim Inojosa procurou imprimir em seu
periódico sua visão de mundo.
Tais formulações inspiram-se em Jean-François Sirinelli, que tem se
dedicado à análise dos intelectuais. O autor ressalta que esses se agrupam em
revistas, editoras, cafés e outras formas de agregação, constituindo, nas
318 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

palavras de Sartre, um “pequeno mundo estreito”. Por fim, Tânia Regina de


Luca apontou em “A Revista do Brasil (1916-1944): notas de pesquisa” que

[...] o conteúdo de jornais e revistas não pode ser dissociado das


condições materiais e/ou técnicas que presidiram seu lançamento,
os objetivos propostos, o público a que se destinava e as relações
estabelecidas com o mercado, uma vez que tais opções colaboram
para compreender outras como formato, tipo de papel, qualidade
da impressão, padrão da capa/página inicial, periodicidade,
perenidade, lugar ocupado pela publicidade, presença ou ausência
de material iconográfico, sua natureza, formas de utilização e
padrões estéticos. A estrutura interna, por sua vez, também é
dotada de historicidade e as alterações aí observadas no decorrer do
tempo resultam de complexa interação entre técnicas de impressão
disponíveis, valores e necessidades sociais. Observações
semelhantes aplicam-se aos anúncios, que tem sido alvo de estudos
individualizados. ( DE LUCA, 2008, p.118).

É com tal suporte teórico que se levou adiante a ideia de analisar os


artigos de Joaquim Inojosa e os editoriais do Meio-Dia. Sobre esses últimos,
são necessárias ainda algumas considerações.
Os editoriais surgiram já no final de 1939, com o fim de “Registro
Internacional”, e desde o princípio foram quase sempre publicados na
segunda página, aparecendo, eventualmente, na primeira. Os textos eram
sempre divulgados sem nenhum tipo de assinatura, e possuíam títulos
diferentes a cada edição, de acordo com o desenrolar da guerra. Não raro
eram discutidas realizações do Estado Novo, bem como era exaltada a figura
do presidente Getúlio Vargas. O que diferenciava o editorial do resto do
conteúdo era o fato do mesmo ser publicado em um Box, que podia aparecer
em qualquer parte da segunda página, porém, sempre em destaque. Em
períodos nos quais os acontecimentos da guerra tomavam grandes
proporções, podiam ser publicados mais dois ou até três editoriais que
mantinham, no entanto, a mesma diagramação. Convém lembrar que o
editorial deve “ter sempre em vista a orientação da casa, para evitar freqüentes
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 319

mudanças de opinião” (RAMOS, 1970, p.97). O material já analisado revelou


que os editoriais coadunavam-se perfeitamente com a linha ideológica dos
artigos de Joaquim Inojosa nos anos de 1940 e 41, quando o escritor
pernambucano passou a apoiar as forças do Eixo no Meio-Dia. Para
exemplificar, eis alguns trechos do editorial “Palavras de um vencedor”,
publicado em 05 de maio de 1941. Nele está escrito:

O chefe da nação alemã, Adolf Hitler, falou ontem perante o


Reichstag, dando uma extensa explicação dos últimos
acontecimentos bélicos que terminaram com a derrota da
Iugoslávia e da Grécia, as duas últimas vítimas de Londres.
Não só os homens que compõem o Reichstag alemão ouviram
com a máxima atenção as palavras do Führer e sim o mundo
inteiro. Ali estava falando um homem que com mão férrea e
vontade inquebrantável devolveu ao seu país, humilhado em
1918, o lugar de esplendor que lhe compete no concerto das
nações.
[...] Fechem seus olhos e tapem seus ouvidos aqueles que se negam,
na sua falta de lógica, a acreditar nas palavras sensatas dum homem
que se baseia em fatos e unicamente em fatos e que não obstante
os inomináveis ataques diários de seus inimigos possui a grandeza
de espírito de afirmar àqueles povos que foram instigados na luta
contra a Alemanha que os alemães não lhes guardam ódio ou
rancor.
Falou ontem um vencedor de batalhas travadas quer pelas
armas quer por fecundo trabalho para reerguimento duma
nação. Adolf Hitler mostrou-se mais uma vez um gênio
criador, não um fanático, nem um político ambicioso, e sim
um homem que o destino escolheu para salvar a humanidade
para sempre do jugo daqueles políticos para os quais os
povos apenas significam simples fatores de lucros que se
condenam à miséria e mesmo ao extermínio, desde que os
interesses dos capitalistas internacionais assim o
determinem. (MEIO DIA..., 1941, p.02, grifo nosso).

Assim, o jornal é fonte e objeto principal dessa pesquisa historiográfica,


e por meio de suas páginas é que está sendo problematizado o apoio dado à
Alemanha nazista durante o período em que circulou. Em 1940 e 1941, o
jornal continuou apoiando as forças do fascismo se utilizando de um artifício
320 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

próprio da propaganda nazista: a ideia de que seu inimigo no momento, a


Inglaterra, era uma nação governada por uma plutocracia, sistema de governo
no qual o poder é exercido pelos mais ricos. Além disso, foram veiculadas, a
partir de 1941, pesadas críticas a respeito da União Soviética (URSS), nas quais
se ressaltava a desumanidade do regime comunista, algo que igualmente foi
alvo de críticas por parte da propaganda alemã. Como foi possível observar, o
jornal tornou-se, a partir de 1940, um baluarte do nacional-socialismo alemão
e de suas ideias, devido à constante participação de agências de notícias da
Alemanha, como a Transocean, que fornecia imagens, textos e fotos e até
dinheiro para a manutenção do vespertino.

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Os dilemas do movimento operário brasileiro:
a Revolução Russa na imprensa dos anarquistas
(1917-1922)

Leandro Ribeiro GOMES*

[...] Foi mistér esclarecer a grande massa de trabalhadores, destruir-


lhes na consciência o respeito ao dogma, o pavor do inferno, a
reverencia ao rei e ao amo, sobretudo revelar aos salariados
militares, aos soldados e marinheiros, que a sua libertação, como a
libertação dos salariados civis, dependia da união de todos, numa
causa única. [...]
[...] A obra decisiva da revolução russa foi demonstrar isso aos
salariados e no momento da ação converter a idéa numa fórmula
pratica, instituindo o Conselho de operários e soldados. [...]
[...] O comunismo anarquico nos vem trazer essa fraternidade,
mudando o regimen de concorrencia em regimen de cooperação.
Só um milagre poderia impedir hoje essa transformação. E os
milagres são do tempo antigo1. (José Oiticica)

A
ssim iniciava mais uma edição de um dos periódicos anarquistas
mais conhecidos do Rio de Janeiro, em fins do tumultuado ano de
1919, que, assim como os anos imediatamente anteriores, foram
repletos de lutas e conflitos sociais não só no Brasil como em várias partes do
mundo. Nas folhas de Spártacus colaboravam os mais importantes e

*
Mestrando em História/UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador Dr. Sérgio
Augusto Queiroz Norte.
1
José Oiticica, no artigo “A revolução russa”, publicado no jornal operário anarquista
Spártacus, de 08 de novembro de 1919.
324 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

combatentes militantes anarquistas da época, como Astrojildo Pereira – futuro


fundador do partido comunista do Brasil em 1922 –, e José Oiticica – famoso
militante e intelectual anarquista que se manteve fiel aos princípios libertários
mesmo com a influência bolchevique2. Contudo, como fica evidente na
citação acima, a revolução socialista na Rússia e a organização dos soviets, com
seus conselhos de operários, soldados e camponeses, foi um evento
internacional que empolgou, cativou e excitou o imaginário político dos
militantes do movimento operário ao redor do mundo, inclusive os
anarquistas. José Oiticica não ficou de fora desta euforia dos “novos tempos”,
mesmo compreendendo e atacando depois o caráter autoritário do governo
bolchevique – pois a luta e o poder popular que aconteciam na Rússia iam de
encontro às aspirações anarquistas.
O movimento operário no Brasil vinha acumulando forças e
experiência desde o final do século XIX, com o aumento da população urbana
e o início da industrialização do país. A abolição do sistema escravagista e a
proclamação da república também devem ser analisadas como partes de um
mesmo processo, uma vez que o novo sistema político e mudanças sociais e
econômicas conduziram a uma política de imigração – que muito influenciou
o nascente movimento operário. E os limites das liberdades e direitos da
oligarquia daquela “república velha”, como é comumente chamada, foi um
fator explosivo a mais para acirrar os conflitos sociais da época. Por isso, a
corrente anarquista teve grande força no início da luta operária aqui do Brasil
– Espanha e Itália, as duas principais fontes de trabalhadores imigrantes,
concentravam as maiores forças do movimento anarquista internacional.
Construindo mesmo as bases de organização da luta social aqui no Brasil, os

2
A convicção anarquista de José Oiticica e sua polêmica com Astrojildo Pereira, por este
último ter se convertido ao comunismo, pode ser confirmada em depoimento transcrito na
obra: BANDEIRA, Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A. T. O Ano Vermelho: a
revolução russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1967, p. 279-281.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 325

anarquistas, imigrantes ou não, constituíam, no período, a maioria das


organizações proletárias e dos sindicatos, e denunciavam com grande
virulência as desigualdades da república.
A revolução russa foi um grande evento internacional que impactou o
mundo em diversos níveis e, logicamente, seus reflexos no movimento
operário do mundo é um assunto de singular importância – já que ela estava
em consonância com os projetos políticos destes movimentos. No caso do
Brasil não é diferente, a escolha da imprensa anarquista justifica-se não só por
esta doutrina ter guiado a grande maioria dos militantes de então, mas
também por ser anarquista o que se poderia dizer a “vanguarda” daqueles que
lutavam por justiça social, contra o capital, e pelo o que se poderia entender,
na época, como “socialismo”.
Os abalos que a “grande obra dos proletários russos ao ideal socialista”
causou no interior do movimento operário do Brasil estão registrados em sua
imprensa – ao noticiarem os acontecimentos russos e ao se posicionarem
diante deste evento. Abalos que levaram o movimento a cisões, interpretações
contrárias, modificações teóricas e revisões das estratégias. Fazer uma história
destas mudanças no pensamento e práticas da esquerda radical do Brasil do
início do século XX também é analisar as peculiaridades da cultura e
sociedade brasileiras – por meio das atitudes dos libertários brasileiros –
diante das novidades do palco político mundial. E um novo capítulo desta
história pode ser feito com esta imprensa militante.
A historiografia possui as suas tendências e “preconceitos”. As
consequências que a revolução russa e a III Internacional de 1919, criada por
Lênin, tiveram nas organizações operárias do Brasil podem divergir de acordo
com os autores consultados. Neste assunto, mais do que outros, a análise dos
fatos ocorridos é bastante influenciada por posições partidárias.
326 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Os anarquistas brasileiros, a sua imprensa e a revolução russa

Os limites temporais desta pesquisa (1917-1922) foram determinados


de acordo com o desenrolar dos episódios russos e brasileiros, o que condiz
com os objetivos propostos. As fontes jornalísticas serão colhidas a partir da
abdicação do czar Nicolau II na Rússia – março de 1917 – e se estendem até
dezembro de 1922 – às vésperas da proclamação oficial da URSS e no mesmo
ano da fundação do PCB. A fundação do PCB também é um marco para esta
pesquisa porque o partido foi fundado, em quase sua totalidade, por antigos
militantes anarquistas. Assim, este fato, por si só, já é uma repercussão da
revolução de outubro no seio do movimento operário brasileiro, que até então
era predominantemente anarquista.
A conjuntura estudada pertence, então, a uma época muito conturbada,
marcada por guerra mundial e intensos conflitos sociais ao redor do mundo e
no Brasil. Por isso, é um momento também que já foi bem estudado por
nossa historiografia, se insere na chamada “república velha”. Importantes
obras foram escritas a respeito do início da vida republicana e industrial do
país e sobre a formação da classe operária e de seu movimento. Portanto,
considerações básicas e indispensáveis já foram tecidas sobre esta realidade
única que foi a abolição; a proclamação da república; a industrialização; a
imigração e a urbanização do país. Considerações que não podem ser
negligenciadas se a intenção for entender o que foi a imprensa anarquista
brasileira e a maneira como esta imprensa enxergou e apresentou a revolução
russa em suas páginas.
O Brasil de fins do século XIX e início do XX passou por muitas
mudanças estruturais que, ao serem analisadas, ajudam a compreender as
condições dos operários da época, o seu movimento e os anarquistas. O
avanço da economia exportadora de café no século XIX, as necessidades de se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 327

abolir a escravidão e de importar mão de obra condicionaram as futuras lutas


que seriam travadas nos principais palcos urbanos do país:

[...] As necessidades da economia exportadora, baseada no café,


propiciaram profundas modificações no sistema de transportes e
nos serviços portuários, desde meados daquele século. [...]
[...] O avanço da economia capitalista de exportação gerou assim
diretamente as condições para que se constituísse um núcleo de
trabalhadores no setor de serviços. Indiretamente, preencheu os
requisitos para o surgimento do proletariado fabril, concentrado
em algumas poucas cidades. [...]. (FAUSTO, 1976, p. 13-14).

Segundo Boris Fausto (1976, p. 17), as relações capitalistas de produção


no Brasil foram impulsionadas com a liquidação final do sistema escravagista e
a entrada das grandes levas de imigrantes. E inclusive foram estes últimos que
desempenharam um papel importante no primeiro surto de industrialização
do país, devido à ampliação do mercado de trabalho e de consumo.
Dessa forma, de acordo com o referido autor, formou-se o ambiente
urbano que atuariam os futuros militantes num país ainda predominantemente
rural e que abandonou, há pouco tempo, a escravidão. Traços da cultura
brasileira que, com certeza, incidiram sobre a formação do movimento
operário:

Não obstante os vários fatores que entravaram a formação de um


movimento operário, a cidade reuniu os requisitos mínimos para o
seu surgimento. Existia aí um quadro objetivo de exploração que
podia ser interiorizado coletivamente, dada a facilidade de contatos;
os ideólogos revolucionários e organizadores, apesar das restrições
à sua atividade, não eram, no meio urbano, um peixe estranho.
(FAUSTO, 1976, p.21).

O elemento imigrante, como um fator importante para entender as


lutas sociais daquele período, também é destacado:
328 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

É desnecessário ressaltar o imenso significado da imigração no


surgimento de ideologias negadoras do sistema vigente no país e na
adoção de modelos organizatórios pela classe operária. A crítica a
posteriori às concepções anarquistas, predominantes entre os
trabalhadores organizados nos primeiros vinte anos deste sáculo,
não pode obscurecer a sua importância na aparição de novas
formas de luta e de uma visão crítica radical da sociedade.
(FAUSTO, 1976, p.32).

No entanto, apesar da imigração ter contribuído para o movimento


operário, e de muitos imigrantes provirem da Itália e Espanha principalmente,
onde o movimento anarquista era forte, o que justificaria a predominância
desta corrente no Brasil, este livro de Boris Fausto, apesar de continuar sendo
uma referência indispensável, é uma obra que prioriza muito a imigração na
explicação do anarquismo brasileiro.
Outro texto mais recente enriquece o fato de o anarquismo ter sido
predominante entre os trabalhadores daquele período, assim como a maneira
que os anarquistas daqui reagiram às propostas bolcheviques:

[...] O que levou o anarquismo a suplantar o socialismo na


preferência de muitos militantes operários deve-se menos às
características do tipo de trabalhador que militava nesse
movimento e muito mais às condições políticas do Brasil da
Primeira República. Pois é difícil supor que um socialismo em
grande parte voltado para a mudança através do processo eleitoral,
que distingue o socialismo da Segunda Internacional, pudesse
florescer em um quadro político em que o espaço para a
participação eleitoral dos trabalhadores fosse tão limitado quanto o
caso brasileiro. (BATALHA, 2006, p. 172).

Sendo assim, a imigração não pode ser considerada um fator


determinante, havia fatores endógenos, como as condições políticas e sociais
da Primeira República e uma cultura de total abandono das camadas mais
pobres e desfavorecidas, o que possibilitou a fertilidade da corrente anarquista
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 329

no nascente proletariado urbano. E este anarquismo no Brasil, como em


outros países, possuía diversas tendências e correntes, e uma das correntes de
maior visibilidade era o chamado “sindicalismo revolucionário” ou “anarco-
sindicalismo” – que também foi forte em outros países3.
O anarco-sindicalismo ganhou força no país devido às condições
anteriormente descritas. A luta institucional e eleitoral era uma realidade
distante da sociedade e da cultura de então. Portanto, pode-se ter uma ideia do
quanto a criação de “partidos de classe”, recomendada pelo comunismo,
encontrou resistências por parte dos anarquistas na conjuntura estudada:

Essa corrente, que dominou os três congressos operários


brasileiros realizados durante a Primeira República, recusava a luta
política não por conformismo com a ordem vigente, mas por não
ver nas práticas eleitorais e parlamentares a possibilidade de
transformar a sociedade. É através da luta econômico-sindical em
torno das condições e da remuneração do trabalho, e adotando por
método a ação direta particularmente expressa em movimentos
grevistas, que o sindicalismo revolucionário pretendia alcançar a
emancipação dos trabalhadores. (BATALHA, 2006, p.178-179).

O movimento anarquista caracteriza-se por sua fluidez, o que


corresponde à sua teoria, e isso se reflete na sua atitude em relação à
organização. Os anarquistas não rejeitam a organização, mas eles condenam a
continuidade artificial de uma organização, quando ela deixa de representar as
aspirações de um grupo e de ser a própria expressão deste grupo. O
anarquismo valoriza a liberdade individual e a espontaneidade, o que exclui

3
O anarco-sindicalismo foi uma corrente do anarquismo que ganhou impulso na França da
segunda metade do século XIX. Uma tendência que considerava o sindicato revolucionário
como o meio e o fim da ação revolucionária. Por meio dos sindicatos os trabalhadores
levariam adiante a luta contra o capitalismo e precipitaria o seu fim com a greve geral e,
assim, os sindicatos tornar-se-iam a estrutura básica da nova sociedade onde a solidariedade
dos trabalhadores alcançaria uma forma concreta. Ver: WOODCOCK, George. História
das Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM,
2006. v. 2: O movimento, p. 36-38.
330 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

uma organização rígida e, principalmente, que se assemelhe a um partido


criado para tomar e manter o poder:

[...] as próprias características da atitude libertária – a rejeição ao


dogma, a deliberada fuga a sistemas teóricos rígidos e, acima de
tudo, a ênfase que dá à total liberdade de escolha, à primazia do
julgamento individual – criam imediatamente a possibilidade de
uma imensa variedade de pontos de vista, inconcebíveis num
sistema rigorosamente dogmático [...]. (WOODCOCK, 2002. v. 1,
p. 16-17)

Por isso, os jornais operários aqui selecionados eram editados por


homens que acreditavam que sistemas teóricos rígidos atuavam como
obstáculos do progresso. Já a facção revolucionária vitoriosa na Rússia em
outubro, os bolcheviques, era dirigida por uma ideologia e uma teoria política
marcada pelo marxismo, que pretendia ser rigorosamente científica, propondo
uma nova sociedade fundada no saber, a vanguarda bolchevique era
majoritariamente constituída por intelectuais4.
A revolução russa, apesar de ser acusada de produzir uma ditadura
incompatível com os ideais socialistas, também teve um forte caráter popular
– o marxismo tocou fundo os operários das fábricas russas e toda essa
experiência foi feita inesperadamente, sem recursos e enfrentando a declarada
hostilidade de muitos países5. E, no mesmo período em que se estudou estes

4
Uma leitura heterodoxa do marxismo é apresentada pelo ativista Makhaïski em que o
socialismo científico, em “A ciência socialista, nova religião dos intelectuais”, tal como foi
construído no século XIX, acaba por deixar invioláveis os ganhos dos “colarinhos
brancos”, enquanto salários dos trabalhadores intelectuais, contribuindo para o progresso
burguês. E o anarquismo também é criticado por fundamentar um positivismo rigoroso ao
praticar raciocínios científicos baseados nas ciências naturais. Ver obra: TRAGTENBERG,
Maurício. (Org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 96-108.
E os conteúdos marxistas dos bolcheviques e dos outros socialistas na Rússia são descritos
no livro: FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. Trad. Maria P. V. Resende. São
Paulo. Editora Perspectiva, 1974.
5
As indicações do caráter socialista, marxista e popular das lutas dos operários russos
daquela época são encontradas na obra: HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa.
Trad. Geir Campos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 18 e 48
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 331

jornais anarquistas aqui no Brasil, a Rússia, assim como o Brasil, também era
um país que tinha iniciado o seu desenvolvimento industrial e urbano há
poucas décadas. E quanto às antigas relações sociais e de trabalho, a Rússia,
assim como o Brasil, abolira um sistema há não muito tempo – a emancipação
dos servos, o fim das obrigações e deveres feudais dos camponeses, só ocorre
na Rússia na década de 60 do século XIX.
Trata-se de uma época muito intensa, de fortes conflitos sociais no
Brasil e no mundo, muitas greves, agitações e até insurreições operárias
ocorreram ao longo dos anos de 1917, 1918 e 1919 aqui no Brasil6. Agitações
que influenciaram esta produção jornalística, a redação era composta por
intelectuais anarquistas e operários, e por pessoas que eram as duas coisas.
Periódicos eram sustentados financeiramente pelos próprios militantes e
associações operárias, e sofriam constantes privações e dificuldades – recursos
escassos, perseguição policial, estado de sítio, censura e outras violências. Por
isso, poucas destas folhas anarquistas conseguiam ser diários – e ainda por
curto período de tempo –, muitos eram semanais, quinzenais e ou ainda
mensais; muitos tiveram curta duração não passando de alguns números.
Tais condições impuseram a necessidade de selecionar diversos títulos,
contudo, a maior parte é das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores
cidades da época e que concentravam a maior parte do movimento operário,
entretanto, um jornal de Maceió também é selecionado, devido à sua
importância, pois se trata de A Semana Social. Este jornal foi conduzido por
Antonio Bernardo Canellas, que foi anarquista e, depois, convertido ao
comunismo, foi o primeiro brasileiro a conhecer pessoalmente a Rússia
Soviética como representante do PCB (ele também foi um dos fundadores do

6
Há obras significativas a respeito destes anos conturbados aqui no Brasil, além do livro já
citado de Boris Fausto: LOPREATO, Christina da Silva Roquette. A Semana Trágica: a
greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Museu da Imigração, 1997; ver também:
ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Dois Pontos Editora, 1986.
332 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

partido), e que é expulso do mesmo por discordar dos russos quanto à


centralização das decisões, retornando, então, às convicções ácratas7.
A forma como estes anarquistas, aqui no Brasil, perceberam a
revolução na Rússia é dividida em duas fases, que são perceptíveis em seus
jornais. O primeiro momento em que eles se empolgaram com a revolução
(mais ou menos de 1917 a 1919), enxergando nela uma revolução libertária, de
negação não só do capitalismo como do Estado – o artigo citado
anteriormente de Oiticica é um exemplo – e, devotos à causa revolucionária
que eram, apoiaram o caráter dos sovietes. E um segundo momento (mais ou
menos de 1920 a 1922) em que os anarquistas, antidogmáticos por essência,
perceberam seus enganos, acusando a burocratização do regime, a
centralização e as perseguições políticas. A repressão na Rússia às outras
tendências de esquerda, o fechamento das organizações e jornais anarquistas
russos, os massacres das comunas anarquistas de Nestor Makhno, na Ucrânia,
e da comuna de Kronstadt, em Petrogrado, em 1920/21, repercutiram em
toda a esquerda mundial, opondo definitivamente libertários e comunistas8.
O recorte inicia-se com a revolução de Fevereiro de 1917, com a queda
do czar, porque a partir deste momento a imprensa anarquista já passa a dar
mais atenção aos eventos russos – uma vez que a Rússia já possuía uma
tradição revolucionária, as primeiras grandes experiências dos sovietes
ocorreram na revolução de 1905. A greve geral anarquista de 1917, aqui no
Brasil, ocorre em São Paulo, pelo contexto de efervescência mundial, os
anarquistas daqui tinham muitas dificuldades para conseguirem notícias e

7
Ver obra: SALLES, Iza. Um cadáver ao sol: a história do operário brasileiro que desfiou
Moscou e o PCB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
8
Exemplos desta cisão ideológica entre os anarquistas e os comunistas devido à revolução
russa na imprensa libertária do Brasil podem ser verificados, entre outros, no jornal
operário paulista A Plebe, como os artigos: “O maximalismo e os anarquistas”
(maximalistas é como eram chamados os bolcheviques, na época, aqui no Brasil), e “O
terror bolchevique na Rússia”, respectivamente, A Plebe, 06 de novembro de 1920; A
Plebe, 04 de dezembro de 1920.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 333

informações confiáveis, sérias e responsáveis a respeito do que acontecia na


Rússia, não só por causa das condições internas e nacionais como também
devido às relações internacionais:

As notícias da imprensa sempre refletiram posições de classe.


Ontem, como hoje. Acontecimentos, manipulados no papel e
transmitidos pelo telégrafo, valem mais, geralmente, que as
opiniões, solenemente inseridas num editorial de quarta página.
Mais facilmente enganam. Atrás da aparente objetividade
escondem-se os fins da propaganda política. Fundem-se realidade e
desejos. Confundem-se o fato e o boato. Difundem-se as
informações, formadas ou deformadas ao sabor das conveniências,
num contexto de permanente guerra psicológica. E, quanto mais
entram em jogo os interesses vitais da burguesia, tanto mais
desaparecem as fronteiras entre a ficção e a história.
O Brasil acompanhou a queda do Czar e a deposição de Kerenski
com a rotina de Havas, United Press e outras agências
internacionais. A imagem da revolução russa, que projetavam, era a
imagem que as altas finanças de New York, Londres e Paris dela
faziam [...]. (BANDEIRA, 1967. p.73-74).

As poucas notícias mais confiáveis que os anarquistas brasileiros


poderiam conseguir vinham de seus contatos e correspondências com a
imprensa operária e o movimento operário europeu. E, com a revolução de
outubro, de caráter ainda mais radical, a guerra de informações fica mais
acirrada, fato que tanto aumentou a simpatia pela revolução por parte dos
anarquistas quanto as suas confusões e incertezas:

Eram as notícias mais absurdas. Os jornais, na verdade, exprimiam


a confiança das classes dominantes na vitória de Kerenski e da
contra-revolução. Mas, a fonte, que os supria e alentava, eram as
agências internacionais. Difundiam boatos e mentiras, traduziam os
desejos dos senhores da guerra e das altas finanças de Londres,
Paris e New York [...]. (BANDEIRA, 1967. p. 110).
334 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Entre "camaleões" e "cristalizados": os impactos da revolução

O estudo da repercussão que a revolução, ou as revoluções, russa de


1917 teve na imprensa operária anarquista do Brasil revela um momento de
agitada mutação ideológica no interior do movimento operário daquela época.
Um momento decisivo – em que os militantes buscaram se definir ou como
bolchevistas, aderindo a um programa rígido e fixo, ou como anarquistas,
aceitando a fluidez da heterodoxia. Este impasse entre “camaleões” e
“cristalizados” no Brasil espelha as ambiguidades da própria teoria socialista,
uma vez que Marx e Lênin nem sempre apresentaram ideias que permitiam
uma única interpretação9.
O anarquismo caracterizou-se como mais uma tendência do socialismo
e que rivalizou com o marxismo no movimento operário internacional desde
o século XIX. Tanto os anarquistas quanto os ditos “socialistas de Estado”
fundaram juntos a 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores,
ocasionando os debates entre Marx e o anarquista Bakunin10. Os anarquistas
se definiam como a corrente libertária do comunismo, herdeiros da mesma
tradição da luta pelo socialismo e da causa proletária. A “mutação ideológica”
que o movimento operário brasileiro sofre com o advento da revolução russa
inevitavelmente acaba sendo traumático e decisivo para o movimento – que
estava organizado sobre outras bases:

Em meados de 1918, Astrojildo Pereira, na apresentação de um


semanário feito de próprio punho, de título Crônica Subversiva,
9
A transfiguração do pensamento e práticas revolucionárias como um “camaleão” ou sua
“cristalização” é trabalhada na obra de Doeswijk sobre os impactos da revolução russa
entre os anarquistas do rio da prata, uruguaios e argentinos. ANDREAS L, Doeswijk.
Entre camaleões e cristalizados: os anarco-bolcheviques rioplatenses (1917-1930).
(Tese de Doutorado) - Unicamp, Campinas, 1998. E sobre as discussões heterodoxas do
marxismo e as ambiguidades de seus teóricos ver obra já citada de TRAGTENBERG.
10
Consultar obra: COLE, G. D. H. Historia del Pensamiento Socialista: marxismo y
anarquismo (1850-1890). Trad. Enrique Gonzáles Pedrero. 1ª Ed. México: Fondo de
Cultura Económica, 1961. v. 2.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 335

declarava ser um “militante apaixonado da Anarquia”. Algumas


semanas depois, observava a iminência da expansão da revolução
diante da situação militar inconclusiva. Para ele, “Outra solução,
que não a militar, tem, pois, de ser dada ao conflito. Ora, a não ser
pelas armas, com o esmagamento dum dos outros grupos
beligerantes pelo outro, a única solução possível será a resultante da
ação revolucionária dos povos, sobrepondo-se ao Estado e às
burguesias e dinastias dirigentes”. Como se vê, Astrojildo Pereira
não era, nem poderia ser, um marxista revolucionário, mas
encontrava-se no caminho da mutação ideológica que afetaria todo
o movimento operário brasileiro. (ROIO, 2003, p.77)11.

Crônica Subversiva era um tabloide semanal que foi editado no


mesmo ano da insurreição anarquista ocorrida no Rio de Janeiro, e Astrojildo
foi preso neste mesmo ano de 1918, por ter sido um dos organizadores da
insurreição, assim como Oiticica. Então, este jornal é importante porque
Astrojildo era um dos militantes anarquistas mais influentes no movimento
operário:

Nessa época Astrojildo editava, redigia e distribuía sozinho um


tablóide impresso nas oficinas do Jornal do Brasil, que se chamava
Crônica Subversiva. Quando Astrojildo foi solto, escreveu no jornal
que este não circulara porque a redação tinha sido presa pelo
governo do Rio. A partir de 1920, o movimento anarquista começa
a demonstrar sinais de crise interna e divergências. Crescia no
mundo a ação da organização criada com a Revolução Russa, a
Internacional Comunista, e que entrara em contato com militantes
latino-americanos a partir de 1921, entre eles Astrojildo Pereira,
pronto para a adesão aos princípios considerados fundamentais
para a revolução mundial inaugurada em Moscou. (FEIJÓ, 2001, p.
23).

Até antes de Crônica Subversiva, Astrojildo e outros companheiros


anarquistas já se entusiasmavam com os acontecimentos na Rússia, no ano de

11
Os trechos transcritos de Astrojildo são respectivamente de: Crônica Subversiva, 1º de
junho de 1918; Crônica Subversiva, 29 de junho de 1918.
336 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

191712, enquanto toda a dita “grande imprensa”, ou a famigerada “imprensa


burguesa”, publicava notícias incoerentes e absurdas a respeito de Lênin,
Astrojildo questionava tais afirmações em outro jornal operário carioca:

Desde o começo da revolução russa que o nome do agitador Lênin


percorre o mundo, através dos fios e das ondas do telégrafo, pelas
colunas dos grandes diários e sempre acompanhado dos
comentários e qualificativos os mais disparatados. A versão mais
geralmente corrente nesses telegramas dá Lênin como agente
alemão disfarçado em socialista (por mais de uma vez têm os
correspondentes telegráficos afirmado ter Lênin ido à Alemanha
receber ordens e dinheiro para a sua obra). Chegam mesmo a
precisar a quantia mensal que lhe é entregue. E assim, o mundo
inteiro, guiado pelo que diz a imprensa moderna, está
absolutamente convencido que Lênin é, de fato, um traidor da pior
espécie, fomentador de desordens que aproveitam os inimigos da
Rússia, miserável vendido ao ouro teutônico [...]. É a história que
se escreve! (O DEBATE, 29 de Setembro de 1917).

Durante estes anos iniciais de revolução russa a expectativa e o


encantamento por parte dos anarquistas foi grande, até mesmo por causa da
guerra de informação e a consequente desconfiança das notícias que eram
transmitidas pelos grandes jornais e agências de notícias. A revolução de
outubro é recebida como uma revolução libertária pelo movimento anarquista,
e uma série de atividades se desenvolve como consequência – por exemplo, a
comemoração do 1º de maio de 1918, que foi organizada para saudar a
revolução russa13.
Grupos comunistas proliferam pelo país, e até mesmo um Partido
Comunista Anarquista é fundado em 1919, para se ter uma ideia do nível de
confusão e de mistura de concepções naqueles anos:
12
O jornal de Antonio Canellas, em Maceió, publicou desde cedo: A Semana Social, 30 de
março de 1917.
13
Outros exemplos destes atos de apoio na imprensa anarquista operária são os artigos: “O
maximalismo alastra-se”, do jornal paulista A Plebe, de 29 de março de 1919; e “A
revolução russa: os massimalistas”, da folha carioca O Cosmopolita, de 1º de dezembro de
1917.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 337

A idéia de partido, o nome comunista, os termos secretariado e


comissariado do povo, tudo isto misturado e adaptado a
concepções tipicamente libertárias, denunciam a profunda
ressonância que a revolução russa alcançou no movimento operário
do Brasil. Astrojildo Pereira também salienta: “Tratava-se, na
realidade, de uma organização tipicamente anarquista, e a sua
denominação de ‘Partido Comunista’ era um puro reflexo, nos
meios operários brasileiros, da poderosa influência exercida pela
Revolução proletária triunfante na Rússia, que se sabia dirigida
pelos comunistas daquele país. O que não se sabia ao certo é que
os comunistas que se achavam à frente da revolução russa eram
marxistas e não anarquistas. Só mais tarde estas diferenças se
esclareceram, produzindo-se então a ruptura entre os anarquistas
ditos ‘puros’ e ‘intransigentes’, que passaram a fazer críticas e
restrições aos comunistas russos, chegando por fim à luta aberta
contra o Estado Soviético e os anarquistas que permaneciam fiéis a
classe operária, os quais chegariam finalmente a compreender que
no marxismo é que se encontra a definição teórica justa da
ideologia do proletariado”. (BANDEIRA, 1967. 159-160).

É de se imaginar, então, a polêmica que foi as primeiras acusações,


quando no momento em que toda a “grande” imprensa internacional e
nacional fazia a guerra contra a revolução russa, e que o movimento operário
brasileiro se encontrava num estado de excitação – devido às novas ideias e
perspectivas que ressoavam da Rússia – a posição dos anarquistas que
denunciavam seus desvios e atrocidades. Muitas das informações eram
encaradas com suspeitas, sob pretexto de que eram veiculadas pela “imprensa
burguesa”. Denunciar o que vinha ocorrendo na Rússia requeria posições
firmes, quando a maioria dos anarquistas brasileiros acreditava que tais relatos
eram apenas deturpações da imprensa burguesa, as controvérsias se
multiplicaram e o militante anarquista Florentino de Carvalho, que editava o
jornal operário paulista A Obra iniciou os ataques:

Florentino de Carvalho foi o primeiro anarquista brasileiro de


projeção a atacar os bolchevistas russos. Em 20 de março de 1920
ele escreve em A Plebe: ‘Não é verdade que os anarquistas sejam
338 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

partidários da ditadura, da lei, do Estado. Na Rússia, por exemplo,


tanto não estão conformes com a ditadura do proletariado, que
chegaram a sustentar contra os maximistas, verdadeiras batalhas
nas ruas de Petrogrado e Moscou’(CUBERP, 1997, p.32).

Florentino de Carvalho foi um importante representante do movimento


anarquista não só do Brasil como do movimento sul-americano, um dos mais
conhecidos divulgadores do pensamento libertário naquela época, portanto, os
seus comentários tinham influência no movimento14. Florentino polemizou
com os comunistas e defendeu os princípios de um sindicalismo livre das
diretrizes vinculadas por Moscou:

O alvorecer da aurora nas rudes estepes do oriente da Europa com


o triumpho da revolução do povo moscovita, trouxe a actualidade
novos e importantes problemas que os militantes do syndicalismo
não podem deixar passar em silêncio.[...]
[...] A dictadura do proletariado, clausula capital da carta doutrinal
do marxismo, não é, nem muito menos a exprime, a finalidade do
syndicalismo. Com Ella o Estado, a autoridade, o poder, não perde
sinão na forma a existência intrínseca de sua prepotência. [...]
[...] Insistimos, porem: de nenhuma maneira o syndicalismo, – que
há de abrir as portas da Anarchia, si cumprir sua missão histórica, –
pode fazer uso do Estado a maneira do “marxismo”. [...] O ideal
esta mais alto que todos os opportunismos, não pode descender e
involucionar. E a dictadura do proletariado, executada por uma
representação de seus homens, instituindo um novo poder;
fazendo uso da tyrannia, ainda que provisória, a outra cousa não
equivaleria. (A OBRA, 13 de maio de 1920.)15.

A partir deste ponto as diferenças entre anarquistas e comunistas só


aumentaram, com a cisão do movimento operário culminando com a
fundação do PCB, em 1922. Florentino de Carvalho, José Oiticica e Edgard
Leuenroth, que editavam o jornal anarquista paulista A Plebe – considerada a

14
Ver: NASCIMENTO, Rogério H. Z. Florentino de Carvalho: pensamento social de
uma anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000
15
“Definindo princípios: o syndicalismo não é marxista”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 339

maior representante da imprensa libertária no Brasil –, destacam-se como os


maiores críticos do regime bolchevique:

Acusando os bolchevistas de desenvolver propaganda


desmoralizadora do anarquismo, Leuenroth e seus companheiros
procuram reafirmar sua identidade como grupo em torno da
organização sindical firme e independente e fazem um trabalho de
apontar suas diferenças com aqueles. Salientam que, embora ambos
se digam comunistas e proponham-se a demolir as instituições
econômicas, políticas e religiosas atuais, cada uma dessas
idealidades – bolchevismo e anarquismo – tem uma concepção
muito diferente sobre os caminhos da revolução. [...] (KHOURY,
1988, p. 164-165)16.

A historiografia: interpretações e “preconceitos”

Para se situar dentro deste tema há a necessidade, mais do que nunca,


de identificar as diferentes tendências da historiografia, pois é um assunto
carregado de polêmicas, versões discordantes e paixões ideológicas. É
necessária uma prática historiográfica livre, para que todas as correntes sejam
consideradas e ouvidas, pois a história, como todas as expressões da vida, é
múltipla, diversa e plural – construída por todos, independente do tamanho de
seus poderes e forças.
No entanto, a prática e o exercício da liberdade são difíceis, sempre se
está apoiando em “autoridades”, mas a busca pela liberdade envolve a busca
pelo novo. Uma nova contribuição, mais um capítulo da luta e dos dilemas do
movimento operário brasileiro naqueles anos de agitação social mundial (por
meio de sua imprensa militante). Um objetivo que também não pode ser
alcançado, se forem negligenciadas as contribuições neste sentido. Só com a
destilação das contribuições teóricas e metodológicas, e a análise das diversas
versões, é que se pode ter progressos.

16
E consultar também: A Plebe, 15 de abril de 1922
340 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Uma referência inicial, neste sentido, são as considerações apresentadas


pela historiadora Margareth Rago. Segundo Rago, não se pode ser herdeiro de
tradições históricas autoritárias, que invalidam outras propostas alternativas de
se ler o passado. Ela aponta o fato da experiência anarquista não ser
incorporada à bagagem cultural e política da esquerda, de seus seguidores
serem estigmatizados de “românticos” e “pré-políticos” e das suas derrotas
sempre serem lembradas por liberais, marxistas e comunistas. Enquanto a
historiografia contemporânea do próprio anarquismo é pouco “criativa”,
voltada para os fatos e autores excluídos da história, mas mantendo os
mesmos enquadramentos disciplinares altamente questionados pelas mutações
historiográficas das últimas décadas e que convergem com as próprias críticas
formuladas pelo pensamento libertário: “[...] reproduzimos continuamente
uma leitura autoritária da história, inscrita numa temporalidade aprisionadora,
que congela os eventos, reafirma valores competitivos e mostra um caminho
desesperançado, único e sem alternativas [...]”(RAGO, 2001, p.24).
O livro já citado de Moniz Bandeira (O Ano Vermelho: a Revolução
Russa e seus reflexos no Brasil) foi um dos primeiros textos sobre este
tema no país, a edição usada neste trabalho é a primeira, de 1967. Ainda
continua sendo um livro muito importante, e que, até hoje, sempre é
referenciado na maioria dos trabalhos a respeito do movimento operário
daqueles anos. Contudo, até mesmo por causa da época em que ele foi escrito
– no auge da ditadura militar e nos anos tensos de guerra fira –, alguns
julgamentos feitos pelos autores podem e devem ser discutidos:

A partir de 1917 e, sobretudo, depois da revolução russa, os


militantes sindicais, pequeno-burgueses e operários, na sua grande
maioria de formação anarquista e, também, alguns intelectuais
começaram a buscar novas formas de organização. (BANDEIRA,
1967. p. 153).

E mais no final da obra, o autor ainda afirma:


ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 341

José Oiticica não compreendera que o surto industrial do Brasil e a


revolução russa, criando um fato novo para o proletariado,
superaram o movimento anarquista. O marxismo, “a expressão
consciente de um processo histórico inconsciente”, ganhou as
massas brasileiras. Os anarquistas, aqueles que se mantiveram
agarrados ao passado, perderam o apoio da classe operária. Mas,
ele, o velho acrata, atribuía tudo à atuação, pura e exclusivamente,
de Astrojildo Pereira. (BANDEIRA, 1967. p. 280).

É de se destacar que a conjuntura no Brasil de 1917 a 1922 corresponde


a um período de ascensão do movimento operário – tanto por causa dos
efeitos da primeira guerra mundial, que impulsionou o parque industrial do
país, quanto devido às condições de vida dos trabalhadores, que pioraram
(FAUSTO, 1976. p. 157-172). Mas fica evidente a simpatia pelo marxismo por
parte dos autores, que consideraram os anarquistas da época como “pequeno-
burgueses”, além disso, sua doutrina se tornou ultrapassada com a revolução
russa.
Outro historiador marxista bem conhecido, Eric Hobsbawm, em sua
importante obra, afirma:

A tradição libertária do comunismo – o anarquismo – tem sido


duramente hostil à tradição marxista desde Bakunin, ou o que vem
a ser o mesmo, desde Proudhon. O marxismo, e mais ainda o
leninismo, têm sido igualmente hostis ao anarquismo como teoria e
programa e o menosprezam como movimento político. Contudo,
se investigarmos a história do movimento comunista internacional
no período da Revolução Russa e da Internacional Comunista,
encontramos uma assimetria singular. Enquanto os principais
porta-vozes do anarquismo mantiveram viva sua hostilidade ao
bolchevismo com, na melhor das hipóteses, vacilações
momentâneas durante o próprio movimento revolucionário ou no
momento em que lhes chegaram as notícias de Outubro, a atitude
dos bolchevistas dentro e fora da Rússia foi, por algum tempo,
consideravelmente mais benevolente com respeito aos anarquistas.
[...]. (HOBSBAWM, 1982, p. 67).
342 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Pesquisas mais profundas são necessárias, pois considera-se complicado


afirmar que a atitude dos bolcheviques dentro e fora da Rússia foi mais
benevolente. A destruição pelos bolcheviques das comunas e sovietes livres
makhnovistas e de Kronstadt foram fatos que repercutiram – em maior ou
menor grau – em todos os movimentos de esquerda ao redor do mundo17.
Entretanto, a cisão ideológica entre anarquistas e comunistas, com estes
últimos aplicando as rígidas instruções de Moscou, prejudicou o movimento
operário brasileiro:

[...] Eles tumultuavam as reuniões das entidades operárias


impedindo que os trabalhos se desenvolvessem. A ação dos
comunistas foi mais deletéria ao movimento operário do que as
perseguições da polícia e todas as formas de repressão [...].
(CUBERO, 1997. p.32-33).

Então, além dos conflitos físicos que realmente ocorreram entre as duas
tendências há de se considerar ainda os efeitos das estratégias usadas pelos
comunistas, que os colocaram, naquela conjuntura, numa certa vantagem. Mas
isso certamente também não pode ser posto como um argumento final para
desqualificar o anarquismo, enquanto um conjunto de práticas e ideias que
contribuíram para a luta do movimento operário, não é apenas uma questão
de que a doutrina se tornou ultrapassada:

Distintamente à perspectiva defendida pelos sindicalistas


revolucionários para a organização operária no Brasil, os
comunistas basearam sua ação em diretrizes bastante definidas,
vinculadas aos princípios da IIIª Internacional, de 1919, opção que
deixava este grupo revolucionário em vantagem, se comparados
seus métodos e práticas com os dos anarquistas.

17
Ver, respectivamente: MAKHNO, Nestor; BERKMAN, Alexandre; SKIRDA,
Alexandre. Nestor Makhno e a Revolução Social na Ucrânia. Trad. Plínio Augusto
Coelho. São Paulo: Imaginário, 2001. ARVON, Henri. A Revolta de Kronstadt. Trad.
Elvira Serapico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 343

A via institucional, não rejeitada pelos comunistas, ampliava-se


como fórum de discussão das políticas sociais ligadas ao trabalho.
Processo esse ironicamente precipitado pelas greves e pela ação dos
anarquistas que, durante as duas primeiras décadas do século,
impediram os governos de ocultarem por completo a existência de
uma “questão social” no Brasil. (SAMIS, 2002, p. 258).

A revolução, na Rússia, aconteceu numa época de ascensão do


movimento e da luta operária aqui no Brasil, é certo que ela influenciou o
imaginário, as ideias e expectativas dos militantes. E aqueles que se
converteram ao comunismo já encontraram uma situação bem distinta
daquela que os anarquistas se depararam:

[...] O processo de burocratização dos sindicatos, que ocorre no


período posterior a 1919, teve duas raízes importantes, repetindo-
se o que já ocorrera em diversos países da Europa. Os sindicatos
nascem da luta contra o capital e em oposição a este. Entretanto,
posteriormente, o Estado capitalista, através de uma legislação
reguladora, exerceria ação burocratizante sobre a organização dos
trabalhadores, o que seria reforçado também pela ação dos partidos
políticos, especialmente, mas não unicamente, os autodenominados
de “esquerda”, a começar pelos comunistas e socialistas. Após
1919, no Brasil, tanto o Estado capitalista, quanto os partidos
políticos (entre os quais é fundamental destacar o PCB) irão
exercer um papel burocratizante. Quanto aos comunistas, vale
lembrar que seu crescimento ocorreu justamente com o refluxo do
movimento operário e a desilusão que levou muitos anarquistas a
trocarem o anarquismo pelo bolchevismo (o que foi facilitado, sem
dúvida, pela vitória bolchevista em 1917 na Rússia). (VIANA,
2006, v. I, p. 40).

Jornais anarquistas selecionados:

A Plebe, 20 de março de 1920.


A Plebe, de 29 de março de 1919.
A Plebe, 06 de novembro de 1920.
A Plebe, 04 de dezembro de 1920.
344 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A Plebe, 15 de abril de 1922.


A Obra, 13 de maio de 1920.
A Semana Social, 30 de março de 1917.
Crônica Subversiva, 1º de junho de 1918.
Crônica Subversiva, 29 de junho de 1918.
O Cosmopolita, 1º de dezembro de 1917.
O Debate, 29 de setembro de 1917.
Spártacus, de 08 de novembro de 1919.

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Pontos Editora, 1986.
ARVON, H. A Revolta de Kronstadt. Trad. Elvira Serapico. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984.
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russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.
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coletiva. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lucilia de Almeida N. (Org.). O
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bolcheviques rioplatenses (1917-1930) 1998. Tese (Doutorado em História
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ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 345

FAUSTO, B. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). Rio de Janeiro/São


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política cultural. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2001.
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Carlos Victor Garcia e Adelângela Saggieoro Garcia. Rio de Janeiro: Paz e
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MAKHNO, N.; BERKMAN, A.; SKIRDA, A. Nestor Makhno e a Revolução
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FILHO, Daniel Aarão Reis. (Org.). História do Anarquismo no Brasil.
Niterói/Rio de Janeiro: EdUFF/Mauad, 2006. Vol. I
WOODCOCK, G. História das Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia
Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 2002. v. 1: A idéia.
WOODCOCK, George. História das Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia
Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 2006. v. 2: O movimento.
Solução americana:
Argentina e Estados Unidos por meio do jornal A
Província de São Paulo (1875-1889)

Paula da Silva RAMOS*

Introdução

O
discurso antagônico em relação aos demais países americanos foi
uma marca do período monárquico brasileiro. Naquele período, a
defesa do regime político e a construção da identidade nacional
foram responsáveis pela formação de uma imagem de superioridade do Brasil
frente às repúblicas do continente americano. Neste sentido, polarização,
civilização e barbárie representando, respectivamente, Brasil e o restante da
América, fundamentaram os discursos brasileiros sobre os demais países do
continente. Sobre este aspecto é importante destacar a atuação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Fundado em 1838, o IHGB estava
intimamente ligado à monarquia, cujos elos se explicitavam com a constatação
de que o Império contribuía com doações que perfaziam 75% de seu
orçamento e de que o imperador D. Pedro II foi seu assíduo frequentador
entre 1849 e 1889. Desse modo, a produção historiográfica do século XIX,
vinculada ao Instituto, contribuiu muito para a construção negativa do
imaginário nacional acerca das repúblicas do continente. Esta percepção –

*
Mestranda em História/UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired.
348 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sempre renovada, como por exemplo, na luta contra Juan Manuel de Rosas e
na Guerra do Paraguai – chegou aos manuais e teses do Colégio Pedro II e
serviu como formadora de opinião para a maioria do público letrado
brasileiro, o que favoreceu para o afastamento do país em relação à “outra”
América (AZEVEDO, 2000). Mesmo em período de tranquilidade interna, os
exemplos “perniciosos” vindos de fora, especialmente do Prata, não eram
desprezados, e constantemente alardeava-se sobre “os perigos da anarquia que
ameaçavam a fronteira sul do Império” (AZEVEDO, 2000).
No entanto, a crise do regime monárquico brasileiro acarretou a revisão
de alguns argumentos utilizados na legitimação do regime político. Assim,
ater-nos-emos às formulações relativas às repúblicas americanas. O Manifesto
Republicano de 1870, embora evitasse o problema da abolição – essência da
monarquia – e não se aprofundasse no estudo da realidade econômica e social
do Brasil, atacava o exotismo da monarquia no continente. Naquele período, a
monarquia, “planta exótica na América” (MORENO, 2000, p.255), sofria
críticas políticas, que em última análise, contrariavam um aspecto fundamental
da identidade nacional durante o regime monárquico, pois refutavam o
discurso difundido sobre a superioridade brasileira frente às repúblicas
americanas.
Destacamos, contudo, que as propostas republicanas relativas à política
internacional brasileira baseavam-se em um idealismo sobre as questões
internacionais, restringindo a análise apenas à organização política do Brasil e
afirmando que o fato do Brasil pertencer à América constituía-se em razão
suficiente para se adotar uma política francamente americana. Segundo
Clodoaldo Bueno (1995), este romantismo apoiava-se na falta de
conhecimento do intrincado jogo de interesses inerentes ao sistema
internacional e no desconhecimento das dificuldades específicas existentes no
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 349

contexto sub-regional, e por este motivo esta política não prosperou por
muito tempo após a proclamação da República.
Entretanto, no mesmo período foram fundados inúmeros jornais
republicanos que deram continuidade à discussão levantada pelo Manifesto.
Neste sentido, destacou-se o jornal A Província de São Paulo, objeto de estudo
deste artigo. Como veremos a seguir, as diretrizes assumidas pelo referido
jornal, desde sua fundação, no ano de 1875, foram responsáveis por uma
construção singular deste periódico acerca de Estados Unidos e Argentina,
nos anos finais do Império, uma vez que não se apoiava nas imagens pré-
concebidas acerca destes países.

A Província de São Paulo e a imprensa em fins do século XIX

Durante o reinado de D. Pedro II, podem ser assinalados dois


momentos da imprensa brasileira. O primeiro, de 1841 a meados da década de
1860, e o segundo de 1868 em diante. O debate da maioridade foi o último
tema de tratamento político exaustivamente veiculado pela imprensa no
tempo das Regências. A inauguração do segundo reinado abriu uma nova fase
na vida política brasileira e a imprensa recebeu os reflexos das condições então
imperantes. No início da segunda metade do século XIX, o desenvolvimento
cafeeiro acentuou o predomínio da Corte, e, consequentemente, a imprensa
de oposição se enfraqueceu. Por esse motivo, segundo Sodré (1999),
predominou o discurso conservador e áulico na imprensa brasileira. No
entanto, a própria expansão cafeeira e a disponibilidade de capitais lentamente
alteram este quadro, particularmente nas áreas urbanas que ganharam vida
própria, emancipando-se gradativamente da larga supremacia rural. A
imprensa, como todo conjunto da cultura, refletiu as transformações da
época.
350 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A segunda fase da imprensa do período foi marcada por


transformações. Os anos de 1860 denunciaram mudanças e,
consequentemente, as alterações na fisionomia do país se manifestaram em
acontecimentos políticos: surgiu o conflito no Paraguai, de sérias
consequências na vida política do país e a suspensão do tráfico negreiro, dez
anos antes, mostrou claramente os seus efeitos. A quietude estava ameaçada e
as tormentas iam se acumulando. Ao final dos anos de 1860, com a guerra
terminada, tudo indicava o início de uma nova fase, com reformas que se
empunhavam e que não podiam ser proteladas; desse modo, as lutas políticas
se acirraram (SODRÉ, 1999). A agitação havia começado e a imprensa
retomou o fio de sua história, interrompida com a maioridade, expressando
significativamente o questionamento ao regime.
Naquele período, o país passou por uma série de transformações
econômicas e sociais que, por sua vez, não foram acompanhadas de mudanças
políticas. Esta conjuntura provocou inúmeras divergências e acentuou o
colapso do regime monárquico brasileiro, incapaz de se adequar ao aumento
da complexidade da sociedade brasileira após 1870.
O avanço da malha ferroviária substituindo transportes tradicionais,
adoção de processos mais modernos de produção, organismos de crédito,
introdução do trabalho livre, urbanização e aumento do mercado interno
foram algumas das mudanças ocorridas no Brasil durante o Segundo Reinado.
Destacou-se, sobretudo, a ascensão do setor cafeeiro do Oeste de São Paulo,
que introduziu em suas fazendas métodos mais aperfeiçoados, substituiu o
trabalho escravo pelo livre, e aumentou sua produtividade, tornando-se uma
classe emergente. Tais avanços, porém contrastavam com as feições das zonas
produtoras mais antigas, base do governo monárquico, que atingidas pela
decadência apegavam-se a formas tradicionais de produção e trabalho escravo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 351

O grupo paulista vivia uma situação contraditória, pois a transferência


do eixo econômico não implicou em sua ascensão política e no declínio do
poder dos setores tradicionais, os antigos “barões do café”. Embora tivesse se
convertido na área mais dinâmica do país, sua representação política era
pequena, pois, dos cinquenta e nove senadores, São Paulo possuía apenas três.
Outro dado que explicava o descontentamento era o fato da Província receber
apenas um oitavo da renda paga por ela em impostos ao Império.
Com tudo isso, passou a existir maior articulação entre os proprietários
do Oeste paulista em torno do Partido Republicano Paulista, o PRP, que
congregava os interesses específicos deste grupo, visando “satisfazer às mais
legítimas aspirações da rica e briosa província” (A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 04/01/1880). Desde a primeira convenção do partido, realizada em
Itu no ano de 1873, manifestou-se a ideia de montar um órgão de imprensa
constituído e financiado exclusivamente por republicanos, porém, somente na
segunda reunião, em 1874, a ideia tomou impulso.
O partido tentou comprar o Correio Paulistano, mas, diante da recusa dos
proprietários, partiu-se para criação de um órgão jornalístico próprio. Foi
então que Américo de Campos e Campos Sales, ambos signatários do
manifesto republicano paulista, reuniram um grande número de acionistas e
fizeram tomar corpo a ideia de criação de um órgão financiado por
republicanos.
Os acionistas eram agricultores, comerciantes, homens de letras e
capitalistas advindos da nova região. A sociedade se organizou sob a forma de
comandita e os dois maiores acionistas, Rangel Pestana e Américo de Campos,
assumiram a direção do jornal (SCHWARCZ, 1987, p.72-85).
O primeiro número, lançado em quatro de janeiro de 1875, declarava a
folha independente, “não sendo órgão de nenhum partido nem estando em
seus intuitos advogar os interesses de qualquer deles”. Embora assim se
352 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

apresentasse, o programa do periódico basicamente repetia as diretrizes do


Partido Republicano. Devido às balizas desta pesquisa, ater-nos-emos às
formulações acerca da política destinada à América, expressas nas diretrizes
tanto do Partido Republicano quanto do periódico analisado.
Um dos pontos-chave observados pelos republicanos brasileiros
consistia no exotismo da monarquia na comunhão americana. O manifesto do
Partido Republicano, de 1870, declarou o desejo de ser americano e apontou o
regime monárquico como fonte de hostilidade e de guerras com os vizinhos
continentais, opinião compartilhada pela Província:

Inglorioso, pernicioso aos nossos interesses, ofensivo aos nossos


brios de povo inteligente, é esse trabalho da política imperial nos
negócios das repúblicas vizinhas. Decididamente outro deve ser o
rumo da política brasileira nas questões daqueles povos. (A
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 06/06/1875).

Desde a sua fundação, A Província de São Paulo apresentou características


singulares no quadro da imprensa brasileira. Por exemplo, constância e
coerência na defesa dos postulados liberais, e a constante “autodefinição”
como órgão de oposição aos governos constituídos, base sobre a qual se
apresentaram os comentários a respeito dos países analisados nesta pesquisa.
Como demonstram Maria Helena Capelato e Maria Lígia Prado: “a atuação
política do jornal se orientava por um projeto idealizado para o Brasil e para o
São Paulo, cujas bases se prendiam ao corpo de idéias que compõe a doutrina
liberal e a experiência prática de outros países” (CAPELATO; PRADO, 1980,
p.23). Há que se ressaltar, também, a “permanente e sempre reiterada
preocupação política do jornal de – para além de sua função informativa – se
apresentar como ‘órgão modelador da opinião publica’” (CAPELATO;
PRADO, 1980, p.XIX).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 353

A atuação política do jornal se mostrou pautada, antes de tudo, nos


ideais de progresso advindos das instituições democráticas e liberais, por este
motivo, os artigos referentes aos Estados Unidos e à Argentina apresentavam
como motivação o progresso econômico em moldes liberais e a apresentação
do modelo político almejado para o Brasil.

“Olhemos para o abismo”1

As apreciações da Província de São Paulo sobre os Estados Unidos foram


pautadas no confronto entre as realidades norte-americana e brasileira. Neste
sentido, o periódico buscou explicações para as disparidades existentes entre
os dois grandes países do continente americano, que recaíram, principalmente,
sobre as “arcaicas” instituições monárquicas que, segundo o jornal, eram a
fonte dos males brasileiros. Desse modo, os Estados Unidos se constituíram
como exemplo de organização política e econômica aos representantes do
jornal, que em seu plano político almejavam abandonar o modelo europeu e
“lançar-se à liberdade conforme os princípios estabelecidos pelos norte
americanos” (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 31/08/1875).
Consequentemente, as atenções do jornal sobre este país centraram-se,
basicamente, na política e na economia. Desse modo, os principais objetos de
análise do periódico voltaram-se aos processos eleitorais, às deliberações do
Congresso e ao estado financeiro da república. A preocupação com a
manutenção deste mercado também foi uma constante e, nesse sentido, as
críticas à política nacional, devido à falta de investimentos em setores
produtivos, bem como a permanência do trabalho escravo, ganharam lugar de
destaque no jornal.

1
Referência ao artigo apresentado na seção Crônica Política, em 25 de julho de 1876.
354 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

É importante destacarmos que as notícias referentes aos Estados


Unidos apareceram em menor número no jornal, se comparadas à Argentina.
Este fato justifica-se pela distância entre os países, que acarretava na
dificuldade para obtenção de dados. Desse modo, a apresentação dos fatos
políticos da república norte-americana não seguiu um fluxo contínuo. A partir
da utilização sistemática do telégrafo, as notícias aumentaram, mas este
recurso trazia, na maioria das vezes, notas sobre o clima e aspectos do
cotidiano da república. Para suprir este problema, o periódico utilizou-se da
publicação de artigos encomendados a colaboradores que residiram naquele
país. Ainda que a presença de artigos sobre os Estados Unidos fosse
considerável, estes, na maioria das vezes, não se referiam aos acontecimentos
políticos em si, mas a história do país, biografia dos presidentes, histórico das
indústrias, personalidades, entre outros. Este fato apontava, sobretudo para a
importância que a república norte-americana tinha para os representantes do
jornal, pois, segundo eles, o Brasil só teria a ganhar com o contato com os
irmãos da América (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 07/12/1875).
O período abarcado por esta pesquisa relaciona-se com a fase de
reestruturação dos Estados Unidos após a Guerra Civil e a consolidação
interna sob a hegemonia do norte capitalista. Politicamente, a guerra marcou o
renascimento fortalecido da União e o restabelecimento do Estado, mais
centralizado no Executivo, que garantiu condições para que o país passasse a
um novo estágio de desenvolvimento. Entre os anos de 1865 e 1914, o
produto interno bruto norte-americano cresceu mais de 4% ao ano, colocando
os Estados Unidos como a maior sociedade industrial da época.
Depois de consolidado o crescimento interno, com a demarcação de
suas próprias fronteiras e a constituição de um país continental, moderno e
autossuficiente, os Estados Unidos passaram a expandir-se para o exterior. O
lançamento norte-americano a um maior ativismo no sistema internacional
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 355

data de 1898, com o envolvimento na Guerra Hispano-Americana, porém,


desde 1823, este país mostrou sinais de interesse a fim de garantir suas
demandas externas em nível regional, como, por exemplo, a Doutrina Monroe
e a I Conferência Pan-Americana. A doutrina Monroe tinha um conteúdo
quase que essencialmente político, faltando-lhe uma dimensão real e prática;
dimensão esta, aplicada à segunda iniciativa, que direcionou o foco para temas
econômicos, comerciais e financeiros. Organizada pelo secretário de Estado
James Blaine, a Primeira Conferência Pan-Americana foi realizada em
Washington, em 1889-1890, mas as propostas para sua realização datam do
início da década de 1880, e tinham como objetivo fundamental promover o
comércio e estabelecer, pela via do pan-americanismo, uma reserva de
domínio continental.
Em 28 de janeiro de 1879, o jornal apresentou detalhes de uma sessão
do senado norte-americano, que contou com a visita do presidente da União,
naquela data Rutherford B. Hayes. A presença do presidente visava manifestar
a posição do governo quanto às possibilidades de desenvolvimento das
relações comerciais dos Estados Unidos com os diversos Estados da América
do sul. Hayes chamou a atenção para o monopólio das nações europeias
naquela parte do continente que “parecia-lhe um campo privilegiado, que se
oferecia por si mesmo à indústria americana”. Buscou-se, desde então, a
solução para “semelhante anomalia”, a fim de “abrir novas saídas aos
produtos americanos para os mercados estrangeiros”. A fase do isolamento
ficava para trás e almejava-se a consolidação definitiva de um sistema americano.
Naquela data, entretanto, as afirmações do então presidente norte-americano
não geraram questionamentos no jornal.
Três anos depois, no entanto, as intenções norte-americanas sobre a
América Latina – debate que ganhou força nos últimos anos do século XIX e
início do século XX – reapareceram no periódico. Em 25/08/1882, A
356 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Província de São Paulo publicou um editorial intitulado “A América anglo-


saxônica e a América Latina”, no qual apresentou a interpretação de Torres
Caicedo, diplomata da República de S. Salvador em Paris, sobre a Doutrina
Monroe. Caicedo temia que a política da “grande república anglo-saxônica”
tomasse um caráter despótico, na medida em que se apresentava como um
protetorado dos Estados Unidos sobre os outros países da América; o
diplomata declarou seu horror à doutrina do Destino Manifesto, pois esta não
assegurava condições relativas ao progresso e à independência das repúblicas
latino-americanas e alertou, também, o perigo para os Estados latino-
americanos da participação na Conferência de Washington, idealizada desde o
início da década de 1880. Todavia, os temores de Caicedo pareciam
exagerados aos representantes do jornal, que concluíram o editorial
ressaltando que a opinião do diplomata teve, basicamente como mérito, o fato
de chamar a atenção para a “célebre doutrina Monroe, lembrada em oposição
às pretensões dominadoras da Santa Aliança”.(A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 25/08/1882)
Neste editorial já se delineava a posição singular que o Brasil adquiriria
na América quanto às relações com os Estados Unidos no início do século
XX, uma vez que o alinhamento do país com a república norte-americana foi
mais acentuado aqui que nos demais países americanos, nos quais correntes
como o latinismo e hispano-americanismo, em contraposição ao pan-
americanismo, tiveram maior impacto.
Contudo, os alvos da atenção do periódico, predominantemente, eram
as escolas, a democracia, enfim o progresso advindo das instituições liberais.
Desse modo, os principais objetos de interesse do jornal, alvos de longos
artigos, centraram-se nas instituições, nas maravilhas da instrução pública, na
liberdade religiosa e no progresso alcançado pelas estradas de ferro e pela
imigração. O interesse pela configuração da nação norte-americana ia além das
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 357

pequenas notas do Exterior, ou Revista Política, figurando significativamente


entre as seções: Questões Sociais, Crônica Política e Variedade, pois as instituições e
o povo americano eram os modelos nos quais o Brasil devia se espelhar, pois:

Se não encontramos modelo conveniente na história antiga,


tínhamos em compensação o exemplo recente de um país surgido e
formado das mesmas emergências, das mesmas circunstancias, e
que, no momento de nossa independência já atraia sobre si a
atenção do mundo civilizado. Os Estados Unidos da América ali
estavam para nos guiar com seu exemplo e sua experiência, e não
era difícil abstrair da forma republicana para com ele aprendermos
os meios de obter elementos para nós capital. (A PROVÍNCIA DE
SÃO PAULO, 21/02/1880).

É importante notar que os construtores das nações ibero-americanas


procuraram espelhar-se na Europa, buscando modelos a imitar. Consolidadas
as nacionalidades, os exemplos externos continuaram a ser invocados para
indicar o caminho do progresso. No Brasil, a proclamação da República
representou uma guinada nas orientações exteriores, mudando seu eixo de
gravitação da Europa para os Estados Unidos. Esta mudança, embora de
maneira tímida, inicia-se no último quartel do século XIX, ainda durante o
período monárquico, com a crescente relação comercial com os Estados
Unidos, da qual dependia a sustentação do projeto modernizador iniciado
pelo governo brasileiro nos anos finais do império; e, como pudemos notar no
fragmento acima, com a campanha empenhada pela imprensa republicana, a
fim de divulgar os “progressos” advindos do modelo político e econômico
estadunidense.
No periódico analisado, as impressões acerca das relações entre Brasil e
Estados Unidos são sistemáticas. Fazia-se necessário abandonar o modelo
europeu e lançar-se à liberdade, conforme os princípios estabelecidos pelos
norte-americanos. Desse modo não seria mais preciso que a “grande nação da
358 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

América do Sul corasse de vergonha ao fitar a grande nação da América do


Norte”.

Deixemos a Europa ultramontana com suas velhas usanças,


deixemos de imitar a França, querendo criar aqui uma
individualidade talhada pelo molde do império de Napoleão III; -
sejamos livres, inteiramente livres, haja tolerância religiosa,
igualdade de direitos para todos, tenhamos ensino na escola,
deixando à igreja e à família a educação religiosa; trabalhemos para
que não nos obriguem a deixar a trilha da civilização [...]. (A
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 31/10/1875).

Recorrentes às manifestações acerca da república norte-americana eram


também os paralelos feitos com a política brasileira. Publicados com títulos
sugestivos, tais como: “Triste confronto”; “Um confronto significativo” e
“Olhemos para o abismo”, o periódico exaltava a liberdade encontrada em
território norte-americano, advinda dos ideais democráticos, em contraposição
às práticas imperiais, que fazia o país retroagir à “velha idade”.

Grande diferença, - abismo imenso que separa o Brasil da grande


nação norte-americana!
Lá, as grandes idéias do século encontram a proteção do primeiro
magistrado do país. Aqui entre nós são elas postas de lado, e os
homens do poder são contra o povo, pretendendo fazer-nos
retrogradar até a velha idade [...]. Enquanto o povo americano
trabalha pela liberdade de pensamento, pela palavra autorizada da
imprensa, pela tolerância religiosa, pela criação de escolas livres, e
entrega do ensino religioso ao altar e à família; o governo do Brasil
manda calar o povo, quer impor silêncio a imprensa, levanta a
questão religiosa e manda-nos os jesuítas ensinar nossos filhos [...].
E por isso que os Estados Unidos progridem mais que todas as
nações e tem vida própria. Nós brasileiros esperamos tudo pela
onipotência governamental, contentando-nos em admirar nossos
irmãos do norte, maravilhando-nos com suas descobertas e com
seu progresso. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 31/10/1875).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 359

A Província de São Paulo salientava o abismo que separava as duas


nações. Os motivos apresentados pelo periódico para tal situação eram: a
diferença dos regimes políticos; o fato do Brasil não ter assegurado sua
autonomia, permanecendo ligado ao passado colonial e português; a
centralização despótica do governo e a deficiência da instrução pública
nacional, “base verdadeira do progresso e da grandeza de um povo”, e que no
Brasil ainda não era secular. Resolvidas estas questões, o gigante da América
do sul finalmente poderia mostrar sua força.

Fundem-se as escolas, eduque-se o povo, espalhe-se luz por todas


as camadas sociais e o gigante da América meridional, hoje
adormecido, levantará amanhã a cabeça altiva diante das outras
potências da terra. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO,
06/01/1877).

Enfim, embora o governo brasileiro mantivesse as relações com os


Estados Unidos de forma cautelosa e pragmática, a admiração e os anseios em
relação à grande potência do norte só faziam aumentar, fossem no âmbito
comercial fossem no político. E o uso do exemplo norte-americano por um
órgão republicano minou ainda mais a imagem da monarquia, abrindo o
caminho para o alinhamento definitivo ocorrido após 1889.
Tais aspectos demonstraram que nas notícias referentes aos Estados
Unidos foram destacados os “bons exemplos” advindos daquele país.
Contudo, a apresentação da superioridade norte-americana não constituía um
fim em si mesma, antes chamavam os brasileiros a não sujeitarem-se “a um
regime antiquado e absurdo”, que limitava as suas aspirações, e colocava
entraves às suas atividades. Desse modo, o combate à monarquia e o firme
traçado do projeto de nação do periódico modelaram as representações sobre
aquele país.
360 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“Lições aproveitáveis” 2 - Argentina em A Província de São Paulo

As relações do Brasil com a Argentina nas últimas décadas do Império


atravessaram um ciclo de alternâncias, em que tensão e distensão se sucediam,
porém com predomínio do primeiro termo. Ao final do império delineou-se
entre os estadistas brasileiros uma tendência no sentido de desradicalizar a
política brasileira de limites, principal fator de tensão nas relações com a
República Argentina. Segundo Cervo, tendia-se à “generosidade”, às “vistas
largas”, à disposição de “ceder” e, até mesmo, à aceitação do arbitramento,
tradicionalmente rejeitado em nome da soberania das decisões externas. Era o
efeito da política de distensão nas relações com o Prata, e com ela a falência
do imperialismo brasileiro na região, em favor da paz externa (CERVO, 2002,
p.118-119).
Concordava A Província com estes termos. A política intervencionista
no Rio da Prata foi alvo de inúmeras críticas pelo periódico que denunciou
ironicamente o glorioso papel nas lutas internacionais levantadas na América,
política esta que não honrava o povo. Entretanto, os receios e as antigas
rivalidades mantidas em relação à República Argentina também figuraram no
jornal, porém, estes eram acompanhados de explicações que privilegiaram a
crítica da política nacional e o desinteresse por parte dos brasileiros de
conhecer os reais motivos dos conflitos ocorridos em território argentino:

Grande parte da imprensa monarquista e mesmo alguns jornalistas


democratas costumam negar às repúblicas sul-americanas a justiça a
que tem direito. A Confederação Argentina, por exemplo, raras
vezes merece atenção dos jornais brasileiros e seu progresso não é

2
Título do editorial de 15/01/1884, referindo-se aos dados do, até então, último
recenseamento da Confederação Argentina.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 361

estudado por nós. Vai nisso um erro de nossa parte com os


vizinhos americanos.
Parece que em regra os homens públicos no Brasil preferem fazer
aquela nação passar aos olhos do povo como uma república
convulsionada pelas ambições pessoais, como uma terra onde a
anarquia arraigou, velando então a verdade que seria mais
importante conhecermos, podendo dar valor exato ao seu
progresso e riquezas.
Esses movimentos enérgicos da opinião ali não são estudados e
explicados aos nossos compatriotas apáticos e indiferentes ao
governo da sociedade em que vivem. Daí vem o juízo falso que se
forma entre nós das agitações na República Argentina. (A
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 02/06/1880).

Nota-se, no fragmento acima, uma nova perspectiva dirigida à república


platina. A Província de São Paulo estava, assim, na contracorrente das
interpretações sobre o país vizinho naquele período, pois se distanciava dos
discursos dos “homens públicos do Brasil” e das obras referentes às
repúblicas da América hispânica, nas quais predominavam as representações
destes territórios como anárquicos, conforme apresentado no início deste
artigo.
As diretrizes assumidas pelo periódico convergiram para a
caracterização da República Argentina de maneira diferente daquela
apresentada nos textos brasileiros de então: o horror à república vizinha deu
lugar à apresentação do modelo político que se almejava para o Brasil. Este
objetivo, porém, foi marcado por uma série de desafios, pois requeria um
novo tratamento às lutas internas e à suposta pretensão imperialista
argentinas. Neste sentido, tais aspectos ganhavam sempre menor relevância
no jornal, face ao “notável progresso industrial e rentístico da Confederação
Argentina”.
A Província priorizava, também, a ação do governo argentino diante de
“movimentações caudilhescas”, como a ocorrida, em 1876, em Entre Rios,
362 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

liderada por López Jordan. O fato ganhou destaque nas folhas do periódico e
a derrota do caudilho foi relatada dessa forma:

[...] um telegrama da Agência Havas já anunciara sua captura.


Como quer que fosse, o resultado forneceu mais uma prova de que
mesmo no Rio da Prata vai passando o tempo dos caudilhos, o elemento
bárbaro desaparece gradualmente, e as estradas de ferro, a
organização e armamentos do exército deram ao governo força tal,
que só poderia ser obrigado a ceder perante a vontade decidida e
resolução enérgica da grande maioria da nação. (A PROVÍNCIA
DE SÃO PAULO, 23/12/1876 – grifos nossos).

Em outra data, agora em um editorial, A Província de São Paulo


corroborou sua posição:

No meio das revoluções projetadas e terminadas pelo acordo dos


chefes populares o caráter nacional se acentua pelo
aperfeiçoamento das indústrias e da educação científica. (A
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 02/06/1880).

Questões territoriais e o armamento argentino também eram assuntos


vitais para A Província de São Paulo, pois suscitavam grande celeuma na opinião
pública brasileira. O armamento argentino e o litígio com o Chile, conflito
ligado à definição das fronteiras na Patagônia, deram margem, no Brasil, a
suspeitas quanto ao verdadeiro alvo do poderio militar argentino, bem como a
especulações quanto a possibilidade de uma guerra envolvendo, de um lado
Brasil e Chile e, de outro, Argentina, Bolívia e Peru – em um suposto “sistema
cruzado” de equilíbrios entre os países sul-americanos (PARADISO, 1993,
p.38). A folha tratou desse assunto em tom conciliatório e apelava para a
diplomacia para resolver a questão. Destacou que nunca foram melhores as
relações dos governos brasileiro e argentino, como também o interesse que o
Brasil “moderno, pacífico, comercial e amante do progresso” tinha nestas
boas relações (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 26/11/1880). Embora
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 363

ambos se armassem “o faziam sem pensar em hostilizar nenhuma nação” (A


PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 02/12/1880).
As hostilidades entre os dois países apresentaram-se no jornal como
coisas do passado, decorrências do antagonismo ibérico, pois agora a
aproximação dos “dois povos importantes na América do sul” seria mais
benéfico a todos:

Não vemos razões para isso (desconfianças mútuas), e cremos que


aqueles que assim opinam fundam-se mais em fatos anteriores,
neste antagonismo da Espanha e Portugal, quando uma era senhora
de parte da América do sul e o outro senhor do Brasil, do que nas
causas presentes e nas conveniências atuais [...] Hoje os interesses
melhor compreendidos das repúblicas do Prata e do Brasil, devem
influir para aproximar seus povos e seus governos, afim de saírem
do isolamento, concertando os meios de estreitar as boas relações e
exercer uma ação comum em benefício de todos – em benefício do
comércio, da paz e da civilização. (A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 26/11/1880).

No entanto, ainda que a Confederação Argentina fosse um modelo


para os organizadores da República brasileira (BELLO, 1969, p.56-58),
inegavelmente apresentava defeitos. Contudo, ainda que destacasse os erros
do governo vizinho, o jornal salientava que estes mesmos erros também eram
encontrados em território brasileiro. A Província de São Paulo, em concordância
com um jornal de Buenos Aires, apresentava os costumes herdados da
colonização ibérica como fonte dos entraves à prosperidade e ao progresso da
América do sul. Esta afirmação era corroborada pelo jornal com base no
paralelo com os Estados Unidos, que mesmo diante de difíceis situações
políticas asseguravam a “vitória dos princípios da Constituição” em vez de
“conspirarem ou revoltarem-se como no sul da América”.
Este aspecto chama a atenção para outro dado relevante à compreensão
das representações dos dois países analisados nas páginas do jornal A Província
364 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de São Paulo, o enfrentamento entre latinos e anglo-saxões. Esta contraposição


não era nova, pois já se inscrevia no afã classificador da diversidade humana
desde o século XVIII, consagrando a superioridade do homem branco.
Entretanto, em meados do século XIX, o pensamento racial introduziu
conceitos “científicos” à sua classificação, como por exemplo, a medida do
índice cefálico, utilizada fundamentalmente para medir as diferenças entre as
populações européias; a partir de então, tensões políticas receberam
constantemente a interpretação de lutas entre diferentes raças na Europa.
Em nenhum lugar do mundo ocidental esta visão dicotômica teve
projeções mais palpáveis que no continente americano, onde esta divisão
incorporou outro tipo de referência racial, a mescla com elementos indígenas
e africanos. Todavia, a matriz de significado não variava, pois se entendia a
resistência ao “cruzamento” com “raças inferiores” praticada pelos anglo-
saxões como mais um indício de superioridade frente aos latinos no
continente. Esse convencimento foi um elemento importante nas relações dos
Estados Unidos com seus vizinhos do sul, na medida em que foi utilizado
para legitimar ações de expansão do território norte-americano sobre
territórios mexicanos, por exemplo, argumento aceito pelo jornal em questão.
No extremo austral do continente, a visão “racializada” das diferenças
entre o norte e o sul se fez cada vez mais presente no último quarto do século
XIX. Naquela data passou a ser comum a utilização das categorias raciais para
explicar os fracassos próprios e os êxitos externos, ressaltando as diferenças
entre as duas Américas. Os fragmentos abaixo demonstram que o jornal A
Província de São Paulo partilhava dessas preocupações:

[...] A causa dos infortúnios dos sul-americanos assenta na raça, no


sangue, nos contornos e na educação colonial, do absolutismo que
dominou 300 anos, e no divórcio tradicional que sempre tem
separado o povo e o governo, que se reputam inimigos
irreconciliáveis, quando tem os mesmos interesses e são ambos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 365

obra um do outro [...] falta-nos, entretanto a calma, a frieza do


saxão, a reflexão alemã, para por em prática e desenvolver o
sistema de governo que, com o ser mais singelo, maior soma de
virtude exige. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 02/06/1876).

Não é raro os povos de raça latina, com uma educação metafísica,


fáceis de se deixar arrastar pelo entusiasmo, transformarem uma
instituição útil em verdadeira fonte de ilusões e desastres.
Pertencemos a essa raça e temos estado sujeitos à mesma educação
e pagamos com desgostos os atos de precipitação que nos merecem
em um dia calorosos aplausos e nos dão n’outro as mais tristes
decepções. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 02/07/1875).

Neste sentido, é importante destacar que esta perspectiva estava


intrinsecamente ligada à exposição que se fazia tanto dos Estados Unidos
quanto da Argentina, pois os pontos acima observados – princípios liberais e
democráticos – se apresentavam aos brasileiros em consonância com esta
divisão. Desse modo, os Estados Unidos se constituíam no modelo ideal de
organização política para os representantes do jornal. Entretanto, destacavam-
se, também, por suas especificidades raciais, ao passo que a Argentina, “essa
nação americana, tão nova como a nossa, da mesma raça latina, com a mesma
tendência para a oratória”, oferecia os exemplos mais admiráveis.

É bom que em todo o império se fique conhecendo bem o


desenvolvimento da República Argentina.
O parlamento d’essa nação americana, tão nova como a nossa, da
mesma raça latina, com a mesma tendência para a oratória
palavrosa, oferece-nos, entretanto, no funcionar do seu
parlamento, um exemplo admirável. Até nisso o confronto nos é
desfavorável. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 12/10/1883).

A Argentina constituía-se, desse modo, no modelo possível para o Brasil,


dada às semelhanças entre os dois povos. Por este motivo, o confronto com
este país foi mais insistentemente veiculado pelo jornal, a fim de demonstrar
os progressos que o país vizinho atingia no período, que a exemplo do caso
366 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

norte-americano, foram reservados às instituições políticas daquele país, em


detrimento ao regime político brasileiro.
Como exposto acima, as posições políticas do jornal referentes a
Estados Unidos e Argentina se orientaram de acordo com a clássica teoria
liberal do século XVIII, e em consonância com o cientificismo social do
século XIX. Com o intuito de corroborar suas posições quanto ao projeto de
nação que concebiam para o Brasil, os representantes do periódico divulgaram
intensamente os exemplos dos dois países. Todavia, ainda que tivessem nos
Estados Unidos seu exemplo maior, o confronto com a Argentina se destacou
nas páginas do jornal, na medida em que este país se assemelhava em muitos
pontos com o Brasil.

Conclusão
Os anos finais da monarquia no Brasil propiciaram um questionamento
acerca da política nacional em diversos âmbitos, inclusive a respeito das
relações interamericanas, vistas até então com muitas desconfianças. A
historiografia apresenta os primeiros aspectos de uma aproximação brasileira
com os demais países americanos a partir da proclamação da república,
quando se iniciou o paradigma da interação. No tocante à política de Estado,
certamente o discurso de aproximação teve que esperar a ascensão dos
republicanos ao poder em 1889, com seu idealismo a respeito das questões
internacionais. No entanto, a atuação destes mesmos republicanos, que
tiveram no jornal A Província de São Paulo um de seus principais divulgadores,
apresentou a uma parcela dos brasileiros um novo olhar às repúblicas do
continente desde o ano de 1875, e que contrariavam aspectos inerentes à
própria identidade nacional, uma vez que rechaçavam a superioridade do
império frente aos países vizinhos. A principal motivação dos representantes
do jornal centrou-se na apresentação do modelo político e econômico que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 367

almejava para o Brasil: uma república federativa e liberal, cujo modelo maior
eram os Estados Unidos. No entanto, outra marca do pensamento político
dos representantes do jornal, o cientificismo manifesto no confronto entre
latinos e anglo-saxões, levou a Argentina – uma nação que, no tocante à filiação
latina, se assemelhava muito com o Brasil – a ter seu exemplo mais
insistentemente veiculado pelo jornal. As críticas referentes à política nacional
eram sempre respaldadas pelos exemplos destes dois países, que apresentavam
ao Brasil a solução para os “males do império”.

Referências:
Fontes

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368 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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As escolas de engenharia e a produção do saber

Fernanda Ap. Henrique da SILVA*

O
período que compreende ao último quartel do séc. XIX e às
primeiras décadas do séc. XX tem como característica principal a
mudança e a necessidade de formação de um novo panorama
político e social. Os progressos materiais se consolidarão, sem, no entanto,
significar grandes mudanças nos costumes e nas condições econômicas da
população. Entendemos que a situação que se colocava no país, naquele
momento, era reflexo da ambição por parte da elite agrário-exportadora, que
apesar das disputas internas pelo poder, estava de acordo no que dizia respeito
ao desenvolvimento científico, e estimulava a incorporação de novos métodos
às profissões técnicas, tendo em vista o desenvolvimento e aprimoramento
dos cursos. Essa categoria incentivará o surgimento de novas profissões
ligadas à ciência, assim como a implementação de novos institutos e a criação
de universidades.
Minas Gerais era importante Estado no cenário político e econômico,
ficando atrás de São Paulo e Rio de Janeiro e, no entanto, não possuía uma
escola de minas, sendo assim prejudicado no cenário que tendia à expansão do
ensino (TURAZZI, 1989). A convite do Imperador, Gorceix é contratado
para organizar a nova escola, ficando responsável, inclusive, pela escolha do
local, optando pela cidade de Ouro Preto, por se encontrar perto das minas e
onde seria possível o desenvolvimento de um ensino prático. O objetivo da

*
Mestranda em História/UNESP/Assis/Bolsista: CNPq. Orientador: Dr. Eduardo
Romero de Oliveira.
372 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

escola mineira seria o levantamento das riquezas minerais do país e o seu


melhor aproveitamento, para o desenvolvimento da economia brasileira. Para
caracterizar a Escola, é necessário falar sobre seu primeiro diretor, Gorceix,
que dirigiu a instituição por 17 anos; francês, formado pela École Normale,
um dos estabelecimentos de maior influência na formação de intelectuais
(CARVALHO, 1978).
No entanto, partindo da realidade brasileira, o modelo escolhido por
Gorceix seria o Saint-Étienne e o da École de Mineurs de Paris. Com as
influências das duas instituições, foi elaborado um projeto. As diferenças em
comparação à principal escola de engenharia do país – a Escola Politécnica do
Rio de Janeiro – eram nítidas; a rigidez, o apego às normas, a seleção de
alunos e a dedicação integral dos professores, além do espírito cientificista que
buscava estimular a criatividade dos estudantes em aulas práticas, são
resultados não somente da orientação francesa da escola, mas, principalmente,
do empenho do diretor. O estatuto avançado para o período encontrou forte
oposição nos meios governamentais e nas outras instituições, no caso a
Politécnica do Rio que, sob direção do Visconde de Rio Branco, criticou
fortemente os regimentos da Escola de Minas, tais como: o curso
preparatório, o número limitado de vagas, entre outros. A influência dos
engenheiros de Minas se fez sentir na criação de vários cursos especializantes
e em importantes invenções, como o forno elétrico. Para a engenharia, essa
importância se deve ao fato dos alunos especialistas – em contraponto aos
enciclopédicos formados na Politécnica – se infiltrarem na política, ainda que
com dificuldade e em número não muito expressivo.
A implantação da República se, de um lado, representou a continuidade
do pensamento liberal, de outro, juntamente com a abolição, foi resultante das
novas condições econômicas que ganhavam força e significância (NADAI,
1987, p.12). O Estado de São Paulo tinha na capital um loco de atração,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 373

causado pelo desenvolvimento econômico do mercado dinamizado pela


expansão das estradas de ferro, que tinham quase obrigatória passagem pela
cidade, para o escoamento da produção e a obtenção de produtos importados,
além da concentração de estruturas urbanas, com alto poder de atração
populacional, bem como o rápido desenvolvimento do comércio e da
indústria. O Estado teve, em um curto espaço de tempo, estruturas técnicas e
científicas implantadas, que englobavam desde as redes de serviços de
utilidades públicas (ex: Departamento de Águas e Esgotos), até institutos de
pesquisa ou ensino, como foi o caso do Instituto Vacinogênico (1892),
Instituto Soroterápico Butantã (1901), Museu Paulista (1893), Escola de
Engenharia Mackenzie College (1891) e Escola Politécnica (1893).
Segundo Arasawa (2005 p. 34), a capital paulista centralizaria as funções
urbanas essenciais do espaço de itinerância do café, passando a sediar
instituições financeiras, uma crescente indústria, e uma rede de ensino e
pesquisa que se expandia. Ainda segundo o autor, às elites brasileiras colocou-
se o imperativo de preparar o país para a recepção desses fluxos financeiros
(ARASAWA, 2005, p.38), iniciando uma série de transformações, até mesmo
na infraestrutura material do país, em geral, e do Estado de São Paulo em
particular. Ao lado do projeto modernizador, por parte das classes
dominantes, tem-se um incipiente processo de urbanização e industrialização,
que traz como consequência o aumento da classe média. Por outro lado, é
notável também, a necessidade de adequar-se a novos padrões, o que exigia,
obviamente, a formação de um quadro técnico capaz de realizar as adequações
necessárias.
Todas essas modificações terão como resultado o aumento da demanda
por profissionais com formação técnica, podendo-se afirmar, em linhas gerais,
que a expansão do ensino foi consequência dos lucros obtidos com o café e
da descentralização político-administrativa do governo. A formação das
374 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

escolas de engenharia na capital faria parte de um processo de legitimação de


um novo campo do saber-fazer, que se organizava em uma capital em situação
de rivalidade com o Rio de Janeiro, até então o grande fornecedor nacional de
profissionais diplomados na área de engenharia, e como parte de um processo
de concentração e de ganho importância da cidade em nível nacional.
Apesar do aumento do número de engenheiros em São Paulo, esses
profissionais careciam de uma legitimação que servisse de base para constituir
a identidade do grupo e para defender seus interesses frente a opiniões
contrárias (ARASAWA, 2005, p.51-52). A fonte de autoridade a que estes
profissionais podiam recorrer encontrava-se ou no Rio de Janeiro – grande
centro de recrutamento de engenheiros e demais técnicos –, na Escola
Politécnica, na Escola de Minas de Ouro Preto, ou no exterior. Ainda no
período imperial, o Rio de Janeiro detinha as posições mais cobiçadas para os
engenheiros, em uma relação hierarquicamente definida entre as províncias e
sua proximidade com a corte. Essa mesma dependência em relação à corte se
fazia nas províncias no que tange à política e à economia. No entanto, São
Paulo era exceção da regra, devido, não somente ao surto das estradas de ferro
e aumento da demanda por engenheiros, que para lá se dirigiam e fixavam,
mas também pelo advento da República, uma vez que a autonomia dos
Estados possibilitou que se formasse um mercado de engenheiros autônomo
em relação ao Rio de Janeiro.
A fundação da Escola Politécnica seria resultado não apenas das
estratégias de reprodução das elites, pelas quais busca-se continuamente, por
meio do saber técnico, a manutenção da ordem vigente, mas também da
necessidade e vontade, por parte de membros de camadas médias da
sociedade, em obter reconhecimento e legitimidade para a competência
técnica, único trunfo capaz de promover uma ascensão social de membros de
famílias remediadas ou desprovidas de capitais sociais, além da necessidade de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 375

implantação de uma base técnica em São Paulo, e dos interesses das elites
nacionais em igualar-se aos países civilizados, partindo da valorização da
ciência em nome do progresso:

[...] voltemos a atenção para esta terra que será o theatro dos
nossos destinos, consideremos agora a vastidão do nosso território,
a feracidade do nosso solo, a extensão e capacidade dos nossos
rios, a grandeza das nossas mattas, tão ricas e tão várias... [...] e em
contra-posição carecemos de meios aperfeiçoados de locomoção,
multiplicados e amplos retalhando o nosso território, transpondo
os nossos rios e encurtanto as distâncias entre os centros que
produzem e os que consomem e promovendo o equilíbrio da
economia nacional. E foi para isso que se creou a Escola
Polytechnica de S. Paulo. Satisfacção de uma necessidade inadiável
é Ella um dos fructos bons da federação sem a qual nada teríamos
ainda conseguido; é Ella uma das manifestações da pujança deste
Estado. [...] Assim é que Ella a preparará para sustentar os foros de
independencia deste Estado e a forma de democracia de governo
que felizmente nos rege (SOUZA, 1894, p.9) 1.

A constatação dessa dupla motivação é, a nosso ver, o grande trunfo da


tese de doutorado de Arasawa. Também há, inegavelmente, a estratégia da
engenharia, na tentativa de aumentar seu poder frente a outros grupos. Com a
criação das escolas de engenharia em São Paulo, estas seriam fontes de
julgamento do mérito técnico, fazendo valer princípios de competência pelos
quais os engenheiros se classificariam hierarquicamente, por meio dos
modelos de ensino adotados e do renome dos professores empregados em tais
instituições. As discussões acerca da criação ou não da instituição tem início
um em 1892, como se verificou na fala de Paula Souza, deputado estadual,
diretor e professor da escola, que defendia o modelo representado pela
Politécnica de Zurich e pelos Institutos Superiores alemães, contrário ao
modelo da Politécnica do Rio de Janeiro, de orientação francesa:

1
Sessão de Inauguração da Escola Polytechnica. Palavra do sr. Dr. Bernardino de
Campos - Presidente do Estado - pela Casa Mercúrio - Souza, Sampaio & Leite. Typografia
a vapor Viuva Martha Wienke. São Paulo, 1894.
376 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“Observando os factos que se dão em nosso paiz e os exemplos altamente


edificantes dos Estados Unidos da América do Norte, convenci-me de que a
creação da escola era uma necessidade inadiável”( SOUZA, 1894, p. 532)2.
No entanto, havia outro projeto para a criação da escola, diferente do
de Paula Souza, que previa a fundação de uma escola de matemáticas e
ciências aplicadas, com um curso de nível secundário profissionalizante, sendo
os cursos de engenharia previstos para serem organizados posteriormente; o
deputado Alfredo Pujol era o autor do projeto que se diferenciava pela defesa
de uma escola de caráter prático, técnica, excluindo as matemáticas superiores.
Esse projeto teve o apoio de Gabriel Prestes, que apesar da concordância em
relação à criação da escola, tece algumas considerações que tocavam em
pontos até então ignorados no projeto de Paula Souza, como a melhoria do
ensino primário e secundário:

Acredito, Sr. Presidente, que a evolução do nosso progresso mental


não se há de manifestar pela creação de escolas superiores, e sim
pela diffusão das escolas primarias, tão amplamente que venhamos
a reduzir o vergonhosissimo estado de ignorância em que nos
achamos, e fazer desapparecer essa tristissima porcentagem de
analphabetos que colloca o Brazil no ínfimo dos logares entre as
nações civilizadas. (PRESTES, 1893, p. 535)3.

Na discussão que se segue, Gabriel Prestes atenta para as disparidades


entre as classes e também para o caráter elitista que teria o instituto, não
abrindo possibilidades de ascensão das classes baixas que não eram sequer
alfabetizadas. Na tréplica, Paula Souza, para defender seu projeto, faz uso da
ideia da ausência de classes no Brasil:

2
São Paulo (Estado). Câmara dos Deputados. Annaes da sessão Ordinária de 1892. S.L.P,
1893.
3
Discussão sobre o projeto n. 9 apresentado pelo Sr. Paula Souza em 20 de abril de 1893 e
debatido pelo Sr. Gabriel Prestes (art. n.01). Documento n. 4.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 377

Uma das nossas felicidades no Brazil, apesar do atrazo em que


estamos debaixo de outros pontos de vista, consiste justamente em
não ter classes. Nós não temos classes. Formamos um todo de
cidadãos do mesmo paiz. Eu não conheço classe alguma; si alguém
tem esse preconceito e se julga superior aos outros, o faz lá em seu
particular; mas a verdade é, repito, que não há classes (SOUZA,
1892, p. 543)4.

O projeto final foi transformado em lei, em 24 de agosto de 1893, e


definia a Escola Politécnica do Estado de São Paulo como instituição de nível
superior, excluindo a escola preparatória e estabelecendo, também, o curso de
artes mecânicas para a formação de mão de obra técnica. O que de fato se
pretendia era formar uma elite de engenheiros qualificados pela ciência,
capazes de fazer uso na prática de métodos científicos, e não uma escola para
a formação de artesãos para atender as necessidades econômicas do Estado.
Em 15 de fevereiro de 1894, é inaugurada a Escola Politécnica de São Paulo.
Nascida no final do século passado buscava aproximar o país dos ideais de
capitalismo dos grandes países, como os Estados Unidos e a França.
Envolvida nos moldes da política republicana, em contraponto ao
Império, apostava na mudança dos ares campesinos e na construção de uma
indústria forte. Acreditava-se que, ao final do século XIX, os politécnicos
seriam os iniciadores de uma intensa fase da industrialização moderna, com a
liberação da energia acumulada na natureza e a partir do aproveitamento do
carvão, do petróleo; e que a supremacia das nações seria decorrente do maior
ou menor aproveitamento desses recursos pelo homem. O mundo industrial e
liberal imaginado pelos primeiros politécnicos era eminentemente urbano.

Não escapou o facto ao governo provisório que a revolução


proclamou. A creação da Escola modelo, a reforma da Normal sob
competentíssimo e saudoso director, o início do palácio em que

4
Tréplica feita pelo Sr. Paula Souza durante a discussão sobre o projeto n. 9 apresentado
pelo mesmo em 20 de abril de 1892 e debatido pelo Sr. Gabriel Prestes. São Paulo
(Estado). Câmara dos Deputados. Annaes da sessão Ordinária de 1892. S.L.p, 1893.
378 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

deverá funcionar a escola dos mestres, attestam a aurora da nova


era. Quem, a partir dessa época folhear os Annaes do nosso
Parlamento Estadoal e os actos officiaes verá com prazer, o
interesse despertado pela questão do ensino: leis, decretos,
projectos, estudos vários foram então elaborados e organisados
pelos mais competentes, pelos mais devotos á causa da instrucção
do povo. (MOTTA JUNIOR, 1894, p.6)5.

Uma vez que a única tradição de ensino superior existente em São


Paulo era a dos cursos jurídicos, tornava-se preciso enfrentar o desafio da
educação técnico-científica. Por intermédio da fala do Dr. Luiz de Anhaia
Melo – lente catedrático da cadeira 4 do segundo ano –, mais uma vez afirma-
se o encontro de interesses entre a burguesia e o projeto modernizante do
Estado

É uma realidade palpitante a Escola Polytechnica do Estado de São


Paulo. Este acontecimento auspiciosissimo caracterisa, sem duvida,
mais um passo gigantesco por parte do nosso Estado na senda do
progresso e para que os fructos desta importantíssima Instituição
sejão magníficos basta que Ella seja cultivada com o affecto, o
cuidado e o zelo com que foi creada pelos competentes poderes do
Estado, notavelmente pelo Ministério do Interior, cujo
Illustradissimo Chefe tem sido o Paladino da propagação da
instrucção, o espírito gentil da educação constantemente
progressiva do povo paulista. (MOTTA JUNIOR, 1894, p.17).

A continuação desse discurso destacando o projeto modernizante de


educação e capacitação de profissionais que promoveriam o desenvolvimento
não só do Estado, mas também do país, fez-se até a década de 1970, na
homenagem em memória de dois professores, realizada em 19766.
Destacamos, também, a importância das posições sociais ocupadas pelos
professores da escola – figuras de renome e com um alto poder de influência
5
Sessão de Inauguração da Escola Polytechnica. Palavra do Secretário do Interior
Cesario Motta Junior. Pela Casa Mercúrio - Souza, Sampaio & Leite. Typografia a vapor
Viuva Martha Wienke. São Paulo, 1894.
6
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Sessão solene para homenagear os
engenheiros Edgard Egydio de Souza e Lucio Martins Rodrigues. São Paulo, 1976.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 379

na sociedade e com considerável capital econômico –, a exemplo de Ramos de


Azevedo. Sendo assim, torna-se provável a ligação entre alunos e os futuros
chefes, muitas vezes docentes da instituição, e o ajustamento das aulas, do
ensino, enfim, de um treinamento dos alunos para atender as expectativas da
sociedade, das empresas. O “bacharel” seria, a partir de então, obrigado a
dividir funções e cargos da máquina administrativa com o engenheiro, que
tinha, mediante a valorização de sua formação, uma forma de valorização
econômica de seus conhecimentos de engenharia. Apenas aparentemente, os
atritos e disputas por áreas de interesse e influência não ocorriam, como
explícito na fala do vice-diretor da Faculdade de Direito, João Monteiro,
durante discurso na inauguração da escola7.
Podemos afirmar que, além do sentimento de pertença por parte dos
alunos, causado pelo processo de seleção, que ditava um estilo diferente à
escola, pelo abandono, embora não por completo, do sistema de classificação
oligárquico, clientelista, em favor do reconhecimento pelo mérito; o
reconhecimento da capacidade e autoridade tanto dos professores, quanto dos
alunos formados, dentro do processo de criação de uma elite diferenciada.
Segundo a autora Elza Nadai (NADAI, 1978, p.16), a burguesia paulista
agroexportadora teria elaborado um projeto educacional como parte de seu
projeto político mais amplo. É esse projeto que culmina na fundação da
Universidade Estadual de São Paulo, em 1934. Nadai estuda a Politécnica
desde a sua formação e sua relação com a sociedade. Dessa maneira, verifica
que tal instituição consolidaria os anseios de uma nova burocracia que se
responsabilizasse pelos novos desafios que a modernidade traria.
A Escola moldaria seu ensino com base na industrialização, no
progresso e na modernidade. Vale lembrarmos que Paula Souza estudou em

7
Sessão de Inauguração da Escola Polytechnica. Palavra do sr. Dr. João Monteiro,
vice-diretor da Faculdade de Direito. Pela Casa Mercúrio - Souza, Sampaio & Leite.
Typografia a vapor Viuva Martha Wienke. São Paulo, 1894.
380 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Zurique de 1861 a 1863 e imprimiu sua marca pessoal à instituição, assim


como Gorceix o fez na Escola de Minas de Ouro Preto, criada em 1872,
quando começam a ser tomadas medidas no intuito de se criar um instituto
técnico de minas e metalurgia. Uma pequena demanda social pela engenharia
de minas e metalúrgica e o interesse dos estudos científicos por parte do
Imperador teriam sido a causa da criação da Escola de Minas de Ouro Preto.
Paula Souza, assim como Gorceix, associou sua imagem, prestígio e sucesso à
instituição que dirigia.
A Escola Politécnica de São Paulo foi de grande importância para a
engenharia brasileira, já que desenvolveu a engenharia mecânica, o curso de
engenheiros-arquitetos e também pelo caráter pioneiro em atender não só as
finalidades didáticas como também as necessidades práticas das firmas de
construção e da nascente indústria paulista (TELLES, 1993), a exemplo da
importância dos resultados e contribuições do Gabinete de Resistência de
Materiais. A produção acadêmica era publicada na Revista Politécnica, voltada
para um público mais amplo; o Boletim Técnico divulgava obras da própria
instituição, como dissertações, teses e demais trabalhos elaborados por
docentes (AIDAR, 1994). A escola teria departamentos especializados, que
visavam se ajustar às demandas econômicas e, a partir de uma reforma, no
mesmo ano de sua inauguração, 1894, passa a ter um curso preparatório, que
para os alunos sem condições de continuar os estudos era o curso que
conseguiam concluir.
Verifica-se, aí, uma forma de hierarquização entre os próprios
engenheiros, visto que, com menos recursos materiais, alguns jovens mais
humildes interrompiam o curso, não alcançando altas posições. A criação da
escola envolveu a conjugação de variados interesses, principalmente os ligados
à economia e ao desenvolvimento da infraestrutura do Estado, impulsionado
pela exportação do café, a necessidade de reafirmar o cientificismo em vigor, e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 381

dar a São Paulo legitimidade em relação ao conhecimento técnico e à


produção de ideias por parte dos engenheiros. Os diplomas emitidos pela
instituição não tiveram reconhecimento nos 6 primeiros anos, devido à
restrição imposta pela Lei Federal de 1891, que estabelecia que as escolas
deveriam adotar os programas das escolas oficiais, no caso da engenharia, a
Politécnica do Rio de Janeiro (ARASAWA, 2005, p.78 ). Em 1900, por meio
de um decreto, a Escola foi reconhecida pelo Estado Federal.
Nesse sentido, destacamos a contribuição para nossa pesquisa da tese
de Cláudio Hiro Arasawa (2005), pela qualidade e seriedade do trabalho
desenvolvido. O autor busca comprovar como os engenheiros buscaram criar
instituições que pudessem lhes garantir legitimidade para agir sobre o real, e
quais condições, arranjos institucionais, foram necessários para que atitudes de
reivindicação de poder, autoridade desses agentes associados ao saber técnico-
científico pudessem obter reconhecimento e, consequentemente, se
transformar em ação. O traço distintivo dos engenheiros seria a posse e o
domínio sobre saberes e procedimentos técnicos, constituindo-se um grupo
de número considerável dentro da restrita elite letrada de São Paulo, passando
a serem referidos como uma classe social distinta. Restringindo sua pesquisa
ao Estado de São Paulo, o autor verifica uma sequência de jogos repetitivos
que tendiam a gerar situações de equilíbrio, ou seja, soluções de ajustamento
das demandas e aspirações sociais dos engenheiros aos limites da sociedade
oligárquica paulista no final do séc. XIX.
No território paulista, entretanto, outra instituição viria a ocupar
importante espaço no que tange ao ensino técnico no Estado, e seria desde a
sua fundação uma opção de estudo para a elite paulista, sem que o quadro de
alunos ficasse restrito a alunos economicamente bem colocados; o Mackenzie
College, criado em 1891, foi a primeira escola privada do país, em função de
uma doação para a construção do prédio que abrigaria a Escola de Engenharia
382 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

por parte de um advogado americano – John Theron Mackenzie –, como


continuação da já existente Escola Americana –Colégio Protestante –,
vinculada à missão presbiteriana em São Paulo, sob tutela do Board of
Foreign Missions de Nova Yorque.
Osvaldo Hack (1915, p. 59) estabelece, em sua obra, as fases de
implantação da escola, com ênfase para a comparação do Mackenzie após a
proclamação da República com outras instituições de ensino no mesmo
período. Observa-se, na riqueza das fontes e na coerência no uso da
bibliografia, o aspecto mais positivo do livro, apesar da parcialidade do autor,
presbiteriano. Hack recorre a discursos internos, de diretores e ex-professores
da escola, sem, no entanto analisar os discursos oficiais por parte do governo
e de outras instituições. Porém, entendemos que uma obra de cunho histórico
e dentro do que, convencionalmente, é considerado correto e deve ser seguido
na visão de historiadores, não foi o objetivo na produção do trabalho.
Realçamos o valor do trabalho pela possibilidade que traz ao leitor de
conhecer a linha seguida, os objetivos sociais e pedagógicos de uma das
grandes instituições existentes, hoje, em nosso país.
A Escola Americana teve apoio de líderes republicanos e liberais em
São Paulo, por ser um colégio que adotaria o sistema americano de ensino.
Em 1886, é organizada uma sociedade civil para administrar a obra
protestante na cidade, chamada Protestant College of São Paulo State, um
departamento do Board de Nova Yorque. Assim, Escola Americana passa a
ter um curso preparatório e um curso secundário. A partir de 1896, a Missão
Presbiteriana norte-americana retirou-se da área educacional, passando a
Escola Americana – Colégio Protestante – a ser representada, perante a Board
de Nova Yorque, por Horace Lane, então diretor do colégio. O Mackenzie
College substituiu o Colégio Protestante por deliberação do Conselho de
Regentes da Universidade de Nova Yorque, em 1898, sendo uma continuação
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 383

em grau superior do curso secundário, graduado da Escola Americana. E


embora ambas instituições estivessem sujeitas à mesma administração e
regulamentos, cada uma delas teria seus cursos completos, e seu corpo
docente separado e independente.
A escola só é criada, de fato, depois da queda da monarquia, quando é
autorizada a criação do Board of Trustees of Mackenzie College, de caráter
leigo, para o qual se transferem o controle das unidades de ensino no Brasil,
momento que coincide com a elevação a altos postos de importantes figuras
simpatizantes do então colégio. É notável a empatia por parte de importantes
nomes da administração pública republicana, como Prudente de Moraes e
Luiz Piza, e o predomínio de alunos vindos de famílias de renome, já que a
escola era paga, limitando ainda mais a entrada de membros sem condições.
Havia, entretanto, alunos que obtinham bolsas de estudos, concedidas após
provas seletivas.
Apenas em 1891, a partir de uma emenda, é permitido que o ensino
secundário, profissional e superior pudesse ser promovido por indivíduos e
associações, subvencionadas ou não pelo Estado. Segundo Hack (1915, p.25),
a organização de um Colégio Protestante perfeitamente equipado, seguindo o
modelo americano, foi muito bem recebida, em um momento que o
liberalismo americano era o modelo a ser implantado com a proclamação da
República. Para os presbíteros, o College deveria preparar líderes nacionais para
conduzir as mudanças eminentes. O clima de fim de século criava
expectativas, e a separação entre igreja e estado na constituição de 1891
favoreceu a implantação da instituição. Em 1986, foi implantada a Escola de
Engenharia, apenas dois anos depois da criação da Escola Politécnica, o que
acirrava a concorrência pela qualidade e supremacia do ensino entre as duas
instituições, concorrência explicitada nos discursos proferidos e publicados na
Revista de Engenharia do Mackenzie College:
384 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...] porei em relevo desde já o contraste deste instituto com os


demais institutos do paiz. Em primeiro lugar há de notar o seu
regimem de – Academia Livre – fundada pela inciativa individual e
por Ella e por ela custeada sem a dependência dos poderes
públicos. Esta circunstancia guardou a instituição das injucções
nem sempre benéficas da política a que se tem sujeitado varias
escolas superiores fundadas nos differentes Estados. [...] é tempo
de começarmos ensaiar o nosso systema de ensino. Para chegarmos
a este resultado nenhum padrão poderia ser escolhido com mais
probabilidade de sucesso que o americano. (LISBOA, 1915, p.59).

Diferentemente da Politécnica do Rio de Janeiro, de orientação


francesa, e da Politécnica de São Paulo, que seguia o modelo dos institutos
técnicos alemães, a Escola de Engenharia do Mackenzie seguia o modelo
norte-americano, com preponderância de professores norte-americanos ou
brasileiros, formados nos Estados Unidos. Apresenta um currículo bastante
flexível, apesar da existência apenas do curso de engenheiro civil nos
primeiros anos, com grande ênfase na aplicação de conhecimentos teóricos a
contextos específicos e a situações próprias para cada tipo de experimentação.
Entre os principais problemas enfrentados pelo Mackenzie na implantação de
seus cursos destaca-se a necessidade de cumprimento das leis brasileiras,
embora fosse um projeto subordinado também às leis dos Estados Unidos. O
que se tinha, na verdade, era um curso-superior americano oferecido no
Brasil; no entanto, seus alunos gozavam dos mesmos privilégios de estudantes
americanos, como a liberdade de matrícula em qualquer estabelecimento de
ensino americano.
Assim, como a Politécnica de São Paulo, a escola não era reconhecida
em âmbito federal, o que era, de certo modo, remediado pela emissão dos
diplomas pela Universidade de Nova Yorque. Diferenciando-se da escola
consagrada no Rio de Janeiro, o ensino do Mackenzie também impunha uma
disputa e uma tentativa de recolocação dos valores relativos à formação
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 385

superior dos profissionais da engenharia, embora, assim como a escola oficial


paulista, primasse pelo caráter prático de seus cursos. Acreditamos na disputa
por reconhecimento, mercado, por teorias ditas ou não procedentes e
verdadeiras, resultados práticos, enfim, por uma reafirmação não somente dos
engenheiros enquanto capazes, mas também entre si, enquanto profissionais
que concorrem em diversos graus de hierarquia pelo prestígio e colocação na
sociedade, em relações de agrupamento ou oposição, em uma busca constante
pela monopolização da verdade, o que envolve indiscutivelmente a passagem
pelas recentes instituições de ensino, e quase simultaneamente criadas em
território paulista.
A rivalidade é percebida em alguns fatos, como o impedimento da
participação dos engenheiros formados no Mackenzie, pelo Instituto de
Engenharia, criado em 1917 (e presidido por Paula Souza). Os diplomas
emitidos pelo Mackenzie são reconhecidos em 1923, porém, em 1932 os
mesmos são cassados, permanecendo inválidos mesmo após a regulamentação
da profissão de engenheiros em 1933; essa situação dura até 1934, quando os
diplomas finalmente são reconhecidos, e os primeiros formados pela escola
americana se tornam sócios do Instituto de Engenharia.
Apesar de ter sido criada a partir de investimentos privados e vindos de
outro país, assim como os engenheiros formados na Politécnica, os egressos
do Mackenzie dependiam dos empregos públicos e, principalmente, das obras
e melhorias surgidas em meio ao avanço da cultura cafeeira e dos rendimentos
gerados por esta, além da composição da autonomia paulista, que abrangia
desde a produção cultural e a independência do centro irradiador – à época, o
Rio de Janeiro –, até a formação de um centro de inteligência, que recrutava e
fornecia profissionais aptos para atender a demanda do Estado em rápido
crescimento.
386 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nesse contexto em que se destaca e se valoriza a vontade


transformadora do homem empreendedor, que proporciona o bem-estar e o
desenvolvimento da sociedade, a criação das escolas foi de suma importância,
justificada pela bandeira da modernização. Destaca-se, também, a criação de
institutos que regulamentam e dão coesão ao grupo. É criado, em 1862, o
Instituto Politécnico Brasileiro, primeira instituição científica e de engenharia
fundada no Brasil e que se configurou como centro de estudos e debates por
mais de 60 anos, e o Instituto Politécnico de São Paulo, criado em 1876. O
Clube de Engenharia, tido por alguns autores como a mais importante
congregação de profissionais da área, foi fundado em 1880 (SANTOS, 1985).
Tendo, por várias vezes, realizado estudos e trabalhos, a instituição sempre
teve participação ativa no estudo e debate dos grandes problemas nacionais.
Segundo Barbosa (1993), se num primeiro momento os engenheiros colocam-
se como os portadores de uma racionalidade cientificista, num segundo
momento, colocam-se como gestores altamente capacitados.
As associações de profissionais, concentradas especialmente no Estado
de São Paulo, por meio de suas publicações, vão legitimar a imagem e reforçar
o domínio da ciência, tanto na esfera pública como na privada, de toda a
sociedade. Além de ressaltar o desenvolvimento não só da capital, como de
todo o Estado, com o povoamento de novas áreas e a construção de uma
nação mais adiantada, valorizando o espaço e sua efetiva ocupação. A
conquista da nação era, antes de tudo, estudar e planejar o que se desejava que
povo e território viessem a ser no futuro. Esses profissionais conquistaram,
em um curto intervalo de tempo, prestígio. Desejava-se que se delegasse ao
Estado e à vanguarda intelectual a administração dos interesses públicos e a
organização social, uma vez que, em meio a tantas transformações, era
necessário estabelecer critérios diferenciados de cidadania. Esses homens da
ciência logo passaram a ocupar os jornais e revistas com artigos, relatórios e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 387

conferências. Tem-se, como consequência desse processo, a autonomia dos


engenheiros que se formavam nas instituições paulistas, pela legitimação
institucional das escolas, com reconhecimento e prestígio não só nos meios
acadêmicos, mas também perante os leigos.

Referência

Fonte

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indústria e a organização do trabalho na virada do século XIX ao XX. São
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Portugal livra-se do passado:
cobertura jornalística da revista Veja à Revolução
dos Cravos (maio de 1974)

Rafael Henrique ANTUNES*

N
o ano de 1953, Ray Douglas Bradbury lançou seu romance
Fahrenheit 451, obra de ficção científica na qual fora descrita uma
sociedade futurista, na qual os livros haviam sido proscritos. O
simples fato de possuir obras literárias era considerado um crime. As casas,
por sua vez, seriam à prova de combustão e os bombeiros, sem função vital
nesta sociedade, seriam encarregados de queimar os livros. Ao debruçarmo-
nos sobre a sociedade brasileira no período compreendido, principalmente,
entre 1964-1985, podemos perceber a presença de autoridades do governo
federal com encargo figurativamente semelhante ao dos supracitados
bombeiros, a saber, censurar. É fundamental deixar claro que esta analogia é
sobremaneira figurativa, e que as funções são obviamente diferentes. No
entanto, em nossa pesquisa de mestrado, objetivamos perceber como a grande
imprensa brasileira atuou entre 1974 e 1976, buscando alternativas ao
cerceamento imposto pelo regime militar, que estava em um processo de
abrandamento, mas ainda vigorava. Objetivamos tal análise por meio da
cobertura dispensada pela grande imprensa brasileira do eixo Rio-São Paulo à

*
Mestrando em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
390 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Revolução dos Cravos, acontecimento de grande importância em finais do


século XX. Para esta apresentação, trataremos pontualmente sobre a
cobertura efetuada pela revista Veja, em suas quatro primeiras edições
posteriores ao acontecimento revolucionário.
Sobre a ligação deste episódio ocorrido em solo português e as supostas
tentativas de censura ao fato em nossa imprensa, é conhecida uma entrevista
concedida pelo repórter Ewaldo Dantas Ferreira, que havia efetuado a
cobertura da revolução a mando do Jornal da Tarde, pertencente ao mesmo
grupo detentor do jornal O Estado de S. Paulo. Em entrevista à Letícia Nunes,
para o Observatório da Imprensa, Ferreira atesta que:

[...] Portugal recebeu a notícia da chegada do novo embaixador


brasileiro, o general Carlos Alberto Fontoura, que deixara no Brasil
a função de responsável pelo Serviço Nacional de Informações
(SNI). O povo português não sabia o que era o SNI e foi
informado que era a PIDE do Brasil. O primeiro despacho que
mandei, registrando o movimento de indignação provocado até nas
ruas de Lisboa e outras cidades, foi recolhido pessoalmente pelo
censor de plantão no Jornal da Tarde. Todos sabem que, naquele
tempo dos Cravos, o Estadão e o Jornal da Tarde eram os dois
jornais brasileiros que tinham censores dentro da redação. Mas ao
receber a minha nota sobre a reação à chegada do novo
embaixador brasileiro, o censor pegou o despacho e foi embora
com ele no bolso. Ruy Mesquita notou, telefonou para Lisboa
contando o fato e me instruiu: ‘O jornal não vai publicar nada mas
você continue cobrindo tudo sobre o assunto. O governo precisa
saber’. A coisa continuou assim. A informação essencial ao
interesse da sociedade civil deste país que chegava à redação era
censurada. O censor a seqüestrava e a levava ao conhecimento do
poder censor, que precisava dela. Um raro flagrante da
irracionalidade e da ignomínia que a censura é. (NUNES, 2004).

Em tal depoimento, fica evidente a preocupação dos órgãos censores


em informar-se dos ocorridos em solo português, e ainda podemos perceber
as nuances da censura aqui praticada, visto que, segundo o depoimento, Ruy
Mesquita (NUNES, 2004), então diretor do Jornal da Tarde, acaba afirmando,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 391

“não iremos publicar, mas o governo precisa saber”, em uma clara alusão ao
alinhamento necessário com órgãos do regime militar.
Para entendermos estes ocorridos, faz-se necessário o entendimento
dos fatos inerentes ao 25 de abril de 1974 e seus posteriores desdobramentos.
Para tal expediente, fazemos uso de algumas referências bibliográficas, entre
as quais se destaca o belo livro do historiador Lincoln Secco, que retrata os
motivos que levaram ao desencadeamento do processo revolucionário militar
contra a ditadura salazarista. O livro de autoria de Lincoln Secco (2004) torna-
se fundamental, na medida em que sua análise privilegia a grande duração do
acontecimento histórico, oferecendo, assim, um panorama das bases históricas
que convergiram no acontecimento político português de 1974. Secco esmiúça
o contexto histórico deste fato, fazendo-se como leitura obrigatória para o
conhecimento de episódio de tal importância na breve história do século XX.
Algumas outras obras sobre o contexto histórico português são denotadas,
como o livro de Francisco Carlos Palomanes Martinho, A Bem da Nação, o
qual, ainda que o autor trabalhe com um período diverso do que pretendemos
abordar, nos demonstra um excelente panorama do que foi o governo
ditatorial de Salazar.
Assim como a obra de Secco suscita a análise dos acontecimentos
prévios para compreensão da Revolução dos Cravos, a de Kenneth Maxwell
(1999) também o faz. Contudo, este autor utiliza a análise da revolução para
compreender os caminhos que a então nascente democracia portuguesa
tomara. Para tanto, elabora um panorama do agitado campo político
português ao longo dos séculos, e denota as particularidades da Revolução
Portuguesa de 1974-76, considerando-a como fator determinante para a
transição à democracia lusitana. Sua contribuição mais importante talvez seja
um ensaio bibliográfico que finaliza a obra, no qual há referenciais sobre
fontes e obras fundamentais para o estudo do tema. Com o panorama
392 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

oferecido por estas obras, podemos versar sobre os acontecimentos


revolucionários e saber o que se segue.
Na madrugada do dia 25 de abril de 1974, oficiais intermédios da
hierarquia militar portuguesa iniciaram um processo golpista, o qual derrubara
uma das ditaduras mais reacionárias do século XX, vigente desde 1926; o
movimento fora denominado de Revolução dos Cravos, em alusão às flores
distribuídas por mulheres aos soldados revoltosos quando tomavam as ruas de
Lisboa; o movimento político português estava embasado no discurso
socialista; a ditadura bem estruturada e extremamente reacionária, a qual havia
sobrevivido mesmo à morte de seu mentor, António de Oliveira Salazar,
findara-se de maneira pacífica.
A cobertura denotada para tal fato foi notória na grande imprensa
brasileira, merecendo destaque nesta comunicação a cobertura efetuada pela
Veja, selecionando quatro capas para destacar.
Em conformidade com a bibliografia, podemos afirmar que a Veja é
considerada a maior e mais polêmica revista brasileira, chegando às bancas de
jornal em 1968, em um momento em que o mundo estava em ebulição, e no
Brasil medrava a oposição ao regime militar. A Veja, assim como a Editora
Abril, cresceu durante o regime militar, porém bem distante de tornar-se
porta-voz oficial de governos militares. O semanário sofre considerável
pressão do regime militar, principalmente com relação a um de seus criadores
e diretores, Mino Carta. E a direção da Editora Abril capitularia à pressão
oficial, dispensando Carta, em 1975. A atuação política da Veja foi
determinante para que atingisse sua amplitude nacional. Os problemas da
revista com os órgãos da censura federal já se dariam a partir de sua primeira
edição, cuja capa destacava, num fundo vermelho, uma foice e um martelo, e
com chamada de matéria que trataria da crise do império comunista. Porém,
aos olhos dos censores, tratava-se de propaganda comunista indireta. O
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 393

número 15 da Veja, ocupado com matéria sobre o Ato Institucional n° 5, fora


retirado de circulação pela ditadura. A partir daí, os aparatos de censura
inferem a suposta periculosidade do periódico e intensificam a vigilância às
edições por meio de bilhetes ou telefonemas à redação. A presença de um
censor na redação da revista – fato de considerável ocorrência na imprensa
brasileira do período – se inicia a partir da edição 68, em decorrência de duas
capas nas edições anteriores abordando o tema “Tortura”. As idas e vindas
dos censores à redação da revista tornam-se constantes durante a década de
1970, sendo em alguns períodos com maior regularidade e em outros uma
repressão, em termos, mais branda. No ano de 1974, a censura prévia volta a
instalar-se na Veja, após uma nota sobre a indicação de Dom Helder Câmara
ao Nobel da Paz, e a revista passa a denunciar a censura em suas páginas por
meio de gravuras de anjos e diabretes, além de personagens criados para
analisar a própria censura e, também, de páginas deixadas em branco.
Enquanto a Veja denunciava a censura, a revista se viu livre daquele
expediente por um curto período, contudo, na sua forma prévia, pois os
bilhetes e telefonemas com censura continuaram (ALMEIDA, 2008, p. 23-29;
DHBB/FGV, 2003).
É nesse contexto que analisaremos o golpe militar português que, em
1° de maio de 1974, ganhou as páginas da Veja em uma grande matéria
estampada na capa da revista. Alzira Alves de Abreu afirma que a cobertura de
acontecimentos internacionais foi uma das estratégias de sobrevivência
encontrada pela mídia brasileira diante da censura e da própria autocensura. A
queda da ditadura portuguesa e de outras mundo afora pode ser entendida
como uma maneira de informar ao público brasileiro como outros países
caminhavam rumo à democracia. Talvez seja por esse motivo que a Veja
estampa, em sua edição n° 295, em matéria presente na capa da revista, o
contundente título “PORTUGAL – O Fim de Uma Ditadura”. Valendo-se de
394 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

uma leitura crítica da bibliografia levantada até o presente momento, tem-se a


convicção de que havia um entendimento de que o governo militar aqui
instaurado era visto como uma ditadura, principalmente no meio intelectual e
na população com um nível cultural elevado, público central deste periódico.
É notório que a abertura proposta por Geisel englobava um abrandamento da
censura e maior liberdade de imprensa, contudo, um título como esse tornava
evidente uma postura tomada pela revista. Editar matérias proibidas pelo
governo acarretava a certeza de apreensões e volta da censura prévia, por esse
motivo, inferimos que tratar do golpe militar português não era assunto
proibido.
O título da matéria “Portugal livra-se do passado”, aliado ao subtítulo
“Em apenas 18 horas o fim de um pesadelo político”, igualmente
contundentes, poderiam ser considerados um reflexo da cobertura
internacional, e é importante relembrar que, neste período, as agências de
notícias internacionais eram as grandes fontes de informação de nossa
imprensa, mas a Veja desloca, nesse episódio, um enviado especial a Lisboa,
Pedro Cavalcanti, o que evidencia a importância relegada a tal fato. Em
setembro de 1973, menos de um ano antes do golpe luso, houve o golpe
militar chileno, de pouca ou quase nenhuma cobertura da imprensa brasileira,
devido, sobretudo, à censura imposta pelo governo. Esta nova atitude
certamente está ligada ao processo de abrandamento da censura, e à nova
postura da mídia nacional, buscando alternativas para o cerceamento ainda em
vigor.
Nesta matéria, não é possível notar postura ideológica claramente
definida ou posicionamento da revista, exceto no título e na capa, como já
afirmamos. O que vemos nas cinco páginas dedicadas à matéria e em diversas
imagens captadas em Portugal – as quais, exceto a foto da capa, não contêm
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 395

referência sobre sua origem – é uma grande descrição dos acontecimentos do


25 de abril.
Na sequência desta reportagem, mais duas páginas são dedicadas ao
episódio lusitano, porém com uma abordagem diferente.
Em matéria não assinada, sob título “A Caravela Ancorada – Após
Meio Século de Ditadura, um País Sufocado”, na qual se relata, em primeiro
lugar, os acontecimentos extraordinários que há muito não se viam em terras
lusitanas, como “jornais contando o que havia de fato ocorrido na véspera,
grupo de pessoas falando de política em público, grupos de policiais
destituídos de poder sobre a liberdade dos cidadãos”. Uma analogia com a
situação política em nosso país, no período, torna-se inevitável.
Segue uma descrição da situação econômica e social do país, com dados
alarmantes sobre analfabetismo e taxas inflacionárias, com um parágrafo que
entendemos como significativo do contexto analisado: “O processo
inflacionário, levaria a um aumento do custo de vida, derrubando o mito da
estabilidade econômica e financeira que fora a própria base do poder de
Salazar” (Veja, 295, p. 36). Ora, viveu-se aqui, também, algo semelhante, o
chamado milagre econômico, entre os anos de 1969 a 1973, mas que após a
crise do petróleo deixou marcas, entrando o país em grandes dificuldades
econômicas. Ao incluir o termo “mito da estabilidade econômica”,
acreditamos que a Veja faz uma analogia com o governo militar brasileiro e
sua semelhante base de apoio, uma economia forte.
Nos parágrafos que seguem, é incluído na matéria um panorama
histórico do mundo à época em que Salazar assume o poder em Portugal, e de
suas mudanças ao longo dos quase cinquenta anos em que o país viveu sob o
jugo desta ditadura e parecia ancorado no tempo. Neste breve editorial, é
exposto também um painel do governo de Salazar, bem como as bases
mantidas por Marcello Caetano, sucessor de Salazar após sua morte. Neste
396 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

breve relato há descrição da PIDE, a polícia política portuguesa, e seus


costumeiros excessos. Voltando às comparações, excessos cometidos por
autoridades policiais já haviam sido motivo para edições da Veja serem
apreendidas, como vimos anteriormente. Finaliza-se este texto com um
parágrafo certamente carregado de anseios dos jornalistas que o escrevem,
assim publicado: “para toda uma geração que nunca soube como os anseios
de uma nação podem ser expressados livremente, inicia-se agora uma
apaixonante aventura”( Veja, 295, p. 38). Apenas duas edições após esta, a
Veja volta a ter a presença do censor em sua edição, devido, segundo algumas
fontes, a uma charge de Millôr, considerada subversiva pelo governo.
Tal charge esteve presente na Edição n° 296, cuja capa retoma o tema
lusitano, sob o título “Portugal, o começo da democracia”. Este exemplar da
revista foi lançado com uma entrevista contundente, do empresário e
jornalista Carlos Lacerda, então profundamente desiludido com os rumos que
o golpe de 1964 tomou. Nesta entrevista, Lacerda, além de atacar
sobremaneira o governo então instituído e algumas de suas figuras mais
notórias, responde sobre sua participação no livro ‘Portugal e o Futuro’ do
General Antonio Spínola. Tal obra pode ser considerada como um dos pilares
que sustentou a ação revolucionária em território lusitano; e a edição nacional
do livro conta com o prefácio de Lacerda, que ainda foi editor da versão
portuguesa. Questionado sobre o que seria de Portugal no futuro, Lacerda
afirma que tudo dependeria dos democratas portugueses, e que se os rumos
do país foram alterados por militares, isso deve ser ponderado para que
eleições fossem possíveis. Neste trecho, é perceptível uma crítica de Lacerda à
situação vigente no país, dado que já havia afirmado em trechos anteriores seu
descontentamento com a ausência de eleições em nosso país.
Demonstramos particular interesse, também, sobre o fato de que
nenhuma carta de leitores estar focada no assunto da capa anterior, o golpe
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 397

militar português. Talvez o fato tenha sido deixado de lado nas


correspondências dos leitores devido ao trágico acidente que ocasionou o
falecimento do jornalista Oriel Pereira do Valle, importante repórter da Veja,
ocorrido na semana anterior à publicação desta Edição. Na seção Brasil, a
Veja destaca o grande interesse de exilados portugueses em voltar ao seu país,
no chamado “Vôo da Liberdade”. Também é destacado um cartaz produzido
por estudantes da Universidade de São Paulo, cujo tema é uma festa de
despedida da “oposição democrática portuguesa no Brasil”.
A matéria que compõe a capa desta edição está localizada no espaço
destinado aos acontecimentos internacionais, ocupando oito páginas centrais
na edição. Iniciando-se com o título “A Vertigem da Liberdade”, o que se
apresenta na matéria são as esperanças do povo português para com a
iminente democracia, além da impressionante velocidade com que os
portugueses desmontaram o aparato de censura da ditadura e renomearam
praças e monumentos anteriormente dedicados a Salazar. A chegada às terras
portuguesas de importantes figuras da dissidência política como Mário Soares
e Álvaro Cunhal denota particular importância nas palavras dos jornalistas
responsáveis. Um destes jornalistas era Pedro Cavalcanti, enviado especial da
Veja ao território lusitano, que denota casos curiosos nos jornais portugueses
de anúncios de pessoas atemorizadas por alguma possibilidade de serem
confundidas com antigos agentes da PIDE, a polícia política de Portugal. O
correspondente da Veja ainda destaca, em um quadro, a situação dos antigos
líderes do regime português: o ex-presidente Américo Thomaz e o ex-
primeiro-ministro Marcello Caetano, exilados na fortaleza de Funchal, na ilha
da madeira, onde outrora já havia sido abrigado o antigo ditador cubano
Fulgencio Batista, mas não na situação de presos e sim de convidados,
segundo os comandantes militares responsáveis. Tanto neste quadro, quanto
no desenrolar de toda a matéria, pudemos perceber uma constância de termos
398 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como ditadura, tortura, abusos. E ainda: liberdade de imprensa e slogans


como “o povo unido jamais será vencido”. Não se pode afirmar que esta
tenha sido a causa da volta da censura à redação da Veja. Porém, termos
contundentes, aliados à charge igualmente incisiva de Millôr – na qual um
preso jazia em uma cela, acorrentado, e uma voz do lado de fora de sua cela
afirmava: “nada consta” – certamente contribuíram para a volta da censura
prévia na revista. Consideramos que esta edição, certamente, está entre as
edições de crítica mais aberta do periódico ao governo militar.
A edição da Veja, publicada sob o nº 297, traz em sua capa um mapa
europeu permeado por novas figuras no horizonte político deste continente,
em matéria intitulada “As graves definições na Europa”. Parte importante do
cenário político europeu e mundial à época, Willy Brant, primeiro ministro
que havia acabado de renunciar ao cargo merece destaque em matéria não
assinada, cujo conteúdo permeia cinco páginas da revista. O segundo destaque
da matéria fica por conta da então acirrada e incerta disputa francesa entre
Giscard d’Estagne e François Mitterrand para a presidência deste país. A
terceira parte da matéria, escrita pelo novo enviado da revista Veja a Lisboa,
Claudius Ceccon, dedica-se ao caso europeu que nos é mais caro, o português.
Sob a legenda “Janelas Abertas”, a matéria de Ceccon versa sobre a
redescoberta da democracia em terras lusitanas; desde simples fatos
esquecidos, como jornais livres, a reuniões políticas com a presença da
imprensa e janelas abertas, tudo parecia novo para os novos comandantes da
nação lusitana – assim como para seus comandados:

Portugal começa a reaprender a andar, a exprimir-se, a


respirar uma liberdade que muitos não tinham chegado a
conhecer. Organizações de classe, instituições de ensino, os
intelectuais começam a movimentar-se como se estivessem
despertando de um longo sono (Veja, 297, p. 35).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 399

No entanto, a liberdade alcançada parecia ser utilizada de uma forma pouco


organizada, o que se demonstra, na matéria, pela proliferação de partidos
políticos – 53 em apenas três semanas de liberdade política. Neste
emaranhado de posições, Ceccon destaca os bizarros Kronstadt (anarquista
que pregava o ataque à propriedade privada) e o Liberal Monárquico, que,
apesar da legenda, baseava-se na crítica ao autoritarismo salazarista. A
tendência para uma guinada à esquerda nos rumos da revolução portuguesa é
evidenciada nesta pluralidade de partidos, devido ao destaque dado aos
partidos socialista e comunista, que então iam se firmando como os mais
importantes, auxiliando nas decisões da denominada Junta de Salvação
Nacional (JSN), capitaneada pelo General Spínola e responsável pelo governo
provisório de Portugal. Enquanto o Partido Socialista é descrito como ligado a
intelectuais, o Partido Comunista já ia definindo suas bases populares que
ajudariam a torná-lo ainda mais forte. A grande dúvida, ainda presente na
população, que é evidenciada nas páginas da Veja, é sobre os princípios e
programas que seriam seguidos nos próximos doze meses pelos dirigentes do
movimento libertador de 25 de abril. A divisão entre os diretores da JSN
estava presente, principalmente no tocante à questão colonial; apesar de ser
uma das principais bases da derrubada do regime Salazarista, o fim do império
colonial português causava aversão a alguns militares, preocupados em serem
transformados perante a história em desagregadores do império português.
Paralelamente, a matéria destaca a situação nas então colônias portuguesas,
onde a desconfiança com o grupo dos militares portugueses leva lideranças de
movimentos guerrilheiros de Angola, Cabo-Verde e Moçambique a recusarem
ofertas de cessar fogo por parte dos militares lusos e a realizarem alguns
ataques à bomba em seus países. O último assunto a ser tratado neste
panorama português é a situação econômica, que ia tomando seus rumos,
400 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

reforçada mais pela boa vontade de empresários portugueses do que pela ação
da JSN.
A edição nº 298 da Veja, lançada em 22 de maio de 1974, é a primeira
após a Revolução dos Cravos, em que o tema não se encontra presente logo
na capa. Ainda, assim, o tema português preenche quase duas páginas da
editoria internacional, e segue contando com a presença de um enviado
especial ao território lusitano. O mote lusitano está publicado na Veja no
painel internacional e ainda em uma carta de um leitor, a primeira que
encontramos publicada sobre o assunto que fora sobremaneira abordado pelo
periódico. O leitor Gabriel Santiago faz saber que:

A reportagem de Veja (n° 296) ‘Portugal, a vertigem da liberdade’


suscita claramente como conceito chave: democracia. Acontece que
esta forma política sofre sempre de ‘gravidez perene’, tendo em seu
bojo gêmeos tradicionais e irreconciliáveis: um capitalismo
crescente ou um socialismo eufórico e agressivo. Ora um, ora outro
abortam ou dão à luz. (VEJA, Edição 298, 22 de maio de 1974, p.
10).

O texto do leitor, reproduzido na íntegra, não deixa claro o intuito de


ser; não expõe críticas nem apoio, não exalta nenhum problema com relação
às formas, apenas faz uma possível previsão sobre quais poderiam ser os
rumos tomados pela Revolução.
A matéria que ocupa as páginas 37 e 38 desta mesma edição destaca,
ainda que timidamente, a posse do novo presidente português. Escolhido pela
Junta de Salvação Nacional, o general Antonio Spínola manteve o esperado e
assumiu a presidência portuguesa como o 11° detentor desde cargo no
período republicano. A Veja relata brevemente a cerimônia de posse, onde o
general afirma que seu governo seria “do povo, para o povo e pelo povo”. A
guerra em terras africanas continuava em pauta, e o novo chanceler português,
o secretário geral do Partido Socialista, Mário Soares, mal encerrou sua
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 401

participação na cerimônia de posse já partira para missões em territórios


africanos em situação conflituosa para possível resolução desta querela. A
matéria ainda relata, de maneira breve, alguns postos de comandos escolhidos
pelos militares, nos quais figuram de militantes históricos do Partido
Comunista Português a Liberais, importando aparentemente mais o histórico
de luta contra o regime de Salazar. O destaque final da matéria desta edição
fica por conta de outra novidade no campo político e social português: greves.
Os trabalhadores de indústrias têxteis, que já contavam com
aproximadamente duzentos mil trabalhadores, ameaçavam paralisação geral
em busca de melhores salários.
O que percebemos durante esta breve análise é a relativa presença de
liberdade por parte dos jornalistas e editores que então compunham o quadro
de profissionais da Veja. A cobertura efetuada neste primeiro momento dos
acontecimentos foi precisa, permeada por uma boa gama de informações e só
nos deixa dúvidas com relação à supracitada presença de censores na revista
por conta de uma charge. Para a resolução desta dúvida – se fora a charge de
Millôr ou as matérias e entrevistas com caráter incisivo nas críticas ao regime
militar – poderemos contar com futuras entrevistas, não previstas no projeto
inicial do mestrado que se ocupa com este tema, mas que se tornam
necessárias após este primeiro contato com nossas fontes. Na construção
deste texto pudemos ter a oportunidade de tomar contato mais amplo com
fontes históricas importantes e, no entanto, pouco exploradas. A leitura
apropriada destas fontes pode nos auxiliar no entendimento do importante
papel assumido pela nossa imprensa em tempos de exceção; e ainda auxiliar na
construção da história social deste campo sempre em movimento.
402 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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espaços e tomadas de consciência. São Paulo: Alameda, 2004.
VEJA, Edições n° 295 a 298. Disponível em: www.veja.com.br/acervodigital.
Acesso em: 10/10/2010.
Mídia comunitária, democratização da
comunicação e as interferências políticas

Vanessa ZANDONADE*

Introdução

A
relação entre mídia e política perpassa por situações de disputa de
poder constante. Tal fato é verificado na historiografia brasileira desde
o surgimento dos primeiros veículos de comunicação até a sua
expansão e abrangência com maior influência social, nos períodos seguintes.
Neste aspecto, das vertentes que podem ser objeto de estudo desta disputa entre
os dois campos no Brasil contemporâneo encontra-se, já na década de 1990, a
ação de lideranças de comunidades organizadas em torno da obtenção do direito
de se comunicar e produzir as suas próprias informações valendo-se de veículos
comunitários. Lideranças do bairro-favela de São Paulo, denominado Heliópolis,
reivindicaram o direito de possuir um veículo de comunicação desde a
implantação da Lei da Radiodifusão Comunitária, em 1998, e conquistaram este
direito somente em 2008.
A ausência da publicação de editais para a cidade de São Paulo, que daria
início ao processo de regularização e concessão das rádios comunitárias na
cidade, bem como a existência de jogos de interesses políticos, entre outros,
interferiram na possibilidade de uma haver uma rádio comunitária oficializada no

*
Mestranda em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
404 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

município durante mais de 10 anos de vigência da lei. A atuação e a reivindicação


por acesso à comunicação desenvolvido pela comunidade citada é um
desdobramento do movimento desencadeado a partir de década de 1980, por
movimentos sociais e até algumas lideranças políticas em torno da
democratização da comunicação no País.
Após um longo período de ditadura, surgia naquela década uma
mobilização intensa em torno de fatores que favoreceriam a democratização do
Brasil. No âmbito político, surgiram parlamentares envolvidos com esta questão
na Assembleia Constituinte, instaurada em 1986, e entre a comunidade civil
organizada, lideranças estudantis e movimentos de classe entre outros, se
manifestavam sobre o assunto em encontros nacionais e assembleias realizadas
no País, em defesa da democratização da comunicação. Embora houvesse este
avanço relacionado com a abertura de participação popular e até mesmo de
algumas representações políticas envolvidas com o tema, interesses dos setores
conservadores, tanto midiáticos, quanto políticos, barraram a concretização das
práticas idealizadas e defendidas pelos agentes já citados e obstaram o avanço da
democracia no País.
Com o desenvolvimento das tecnologias e o avanço do acesso aos meios, a
comunicação comunitária se tornou algo possível às comunidades, no que se
refere à sua instrumentalização. Contudo, a concentração da propriedade das
emissoras de rádio nas mãos de pequenos grupos que atuam diretamente junto ao
poder, interfere nas liberações de concessões que são definidas nos bastidores do
Congresso Nacional, já que os detentores do poder político são os mesmos que
possuem o poder econômico e o da radiodifusão. Tais situações alteram o quadro
de possibilidades para o envolvimento da comunidade junto aos meios de
comunicação, como se percebe no caso da rádio de Heliópolis.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 405

Tal abordagem do estudo proposto não é comum na historiografia


brasileira, sendo mais facilmente encontrada em estudos de comunicação e
política. Mesmo assim, a discussão sustentada com base no olhar das mídias
comunitárias e, portanto, não-hegemônicas, ocupa um espaço muito limitado, até
mesmo entre as produções de pesquisa na área de comunicação, tendo alguns
pesquisadores que se destacam nesta perspectiva de análise.
A maioria das pesquisas voltadas à comunicação comunitária se pauta pela
discussão sobre a sua importância no que se refere à valorização dos indivíduos e
ao favorecimento da cidadania e da participação social. Contudo, este trabalho se
volta especificamente ao registro da luta desempenhada pelas lideranças e pelos
membros da comunidade engajados na defesa da Rádio Comunitária de
Heliópolis, favela-bairro de São Paulo. Tal fato pode ser observado com base na
documentação armazenada pela comunidade na busca de regularização da
emissora, tendo os arquivos dos encontros de moradores e documentos
produzidos por movimentos que apoiam a comunicação comunitária e a rádio
em questão, como a Associação Mundial de Rádios Comunitárias, a Associação
Brasileira de Comunicação Comunitária, o Fórum Nacional de Democratização
da Comunicação e outros órgãos como subsídios para a verificação de tais
desdobramentos. A análise se estende entre os anos de 1997 a 2008.
No entanto, para a compreensão do contexto da disputa de lideranças de
Heliópolis com o poder instituído, será necessário remontar as discussões
suscitadas a partir da década de 1980, sobre a busca de democratização da
comunicação. O estudo leva em consideração o fato de que a oficialização e a
permissão de funcionamento das rádios comunitárias se caracterizam como
caminhos para esta reivindicação.
406 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Comunicação comunitária

Não há registros de historiadores dedicados ao tema da comunicação


comunitária. Entre os pesquisadores que se dedicam a estudos relacionados ao
tema, destaca-se Cecília Peruzzo, cuja atuação acadêmica volta-se para os estudos
da comunicação popular, alternativa e comunitária, delimitando conceitos desta
área e suas aplicações, além do uso da comunicação pelos movimentos populares
do Brasil e de países da América Latina e Europa. Peruzzo enfatiza que:

[...] essa comunicação não chega a ser uma força predominante, mas
desempenha um papel importante da democratização da informação e
da cidadania, tanto no sentido da ampliação do número de canais de
informação e na inclusão de novos emissores, como no fato de se
constituir em processo educativo, não só pelos conteúdos emitidos,
mas pelo envolvimento direto das pessoas no fazer comunicacional e
nos próprios movimentos sociais. (PERUZZO, 2004, p.51).

O conceito sobre o termo popular e comunitário sofreu alterações no


decorrer dos anos, até mesmo pelo seu emprego demasiado em diferentes
circunstâncias e usos. Diante disso, Peruzzo caracteriza, conceitualmente, a
comunicação popular1 e define a comunicação comunitária como:

[...] processos de comunicação baseados em princípios públicos, tais


como não ter fins lucrativos, propiciar a participação ativa da
população, ter propriedade coletiva e difundir conteúdos com a
finalidade de educação, cultura e ampliação da cidadania. Engloba os
meios tecnológicos e outras modalidades de canais de expressão sob

1
O termo popular ou comunitário está inserido em uma tênue separação de definições da
comunicação caracterizada como emancipadora, envolvidos em uma ampla discussão
conceitual. Enquanto o popular é desenvolvido por grupos politizados e suas mensagens
buscam uma tomada de posição frente aos fatos políticos, além de se opor aos grandes
veículos de comunicação de massa, o comunitário se caracteriza por uma comunicação feita
pela comunidade e para a comunidade, não necessariamente contendo posturas políticas no
sentido partidário e ideológico da palavra.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 407

controle dos movimentos e organizações sociais sem fins lucrativos.


Em última instância, realiza-se o direito à comunicação na perspectiva
do acesso aos canais para se comunicar. Trata-se não apenas do direito
do cidadão à informação, enquanto receptor – tão presente quando se
fala em grande mídia –, mas do direito do acesso aos meios de
comunicação na condição de emissor e difusor de conteúdos. E a
participação ativa do cidadão, como protagonista da gestão e da
emissão de conteúdos, propicia a constituição de processos
educomunicativos, contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento
do exercício da cidadania. (PERUZZO, 2006, p.15-16).

Já na definição do conceito de comunicação popular, Gilberto Gimenez


(1979, p.60) entende que a comunicação popular “implica na quebra da lógica da
dominação e se dá não a partir de cima, mas a partir do povo, compartilhando
dentro do possível seus próprios códigos”.
Denise Maria Cogo (1998), por sua vez, militante do movimento e
pesquisadora da área, também possui trabalho representativo neste setor. Ela
constrói uma reflexão teórica sobre o tema, sugerindo caminhos para projetos na
área de comunicação comunitária, destacando a trajetória destas emissoras no
Brasil e na América Latina, com o resgate do registro de experiências no campo
da rádio comunitária e as interrelações entre a proposta popular e a dos veículos
de massa. Além de um levantamento das atuações das rádios-poste no Brasil
(primeiros movimentos que deram origem à rádio comunitária) e outros
movimentos nacionais, Cogo também aborda o uso da rádio comunitária na
América Latina, dividindo essas experiências em vertentes católicas e sindicais.
Ela enfatiza os desafios enfrentados pelas comunidades que atuam nesses
projetos e destaca o papel desenvolvido pela Associação Mundial das Rádios
Comunitárias (Amarc), sendo um veículo para facilitar, coordenar e estabelecer o
intercâmbio entre as rádios de diferentes países. A autora ainda sugere caminhos
para a atuação das rádios, defendendo a capacitação das equipes e o investimento
408 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

em bons programas, entre outras medidas. “O êxito das emissoras, apontam as


diferentes experiências, depende, em grande medida, de sua proximidade e
estreita ligação com a vida da comunidade” (1998, p.137).

Demandas em torno da democratização da comunicação

A discussão em torno da democratização da comunicação ganhou fôlego na


Nova República, em que o Brasil vivia um período de transição política e forte
atuação de movimentos sociais em defesa da democracia. As mobilizações
seguiam a busca da implantação de uma atuação popular nas ações da vida social
e política brasileira, que havia sido cerceada com o golpe militar e a adoção de
Atos Institucionais que trouxeram censura e perseguição a oposicionistas do
governo militar. Paralelamente às reivindicações de transformações em instâncias
políticas, um intenso movimento de estudantes de Jornalismo, apoiados por
entidades de classe como a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), se
formava em defesa da democratização da comunicação no país. As iniciativas se
posicionavam contrárias ao controle centralizador das comunicações e ao uso de
autorizações para o funcionamento de veículos de radiodifusão como barganha e
troca de favores entre os políticos.
A década de 1970 havia sido marcada por alianças do governo militar com
emissoras de televisão e rádio, como forma de manutenção do sistema com
centenas de liberações de outorgas destinadas a “amigos”. A mídia foi utilizada
pelos militares como ferramenta estratégica na integração e segurança nacional2.
A esse respeito, Sérgio Capparelli (1986) destaca a existência da prática de

2
Intervozes, Revista. Concessões de rádio e TV: onde a democracia ainda não chegou.
Novembro de 2007. Caderno Especial. Durante o governo Figueiredo, entre 1979 e 1985, 634
canais de radiodifusão foram concedidos, divididos em 295 autorizações para rádios e 40
permissões de funcionamento a emissoras de TV.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 409

“apadrinhamento político” para o favorecimento de determinados grupos na


liberação de concessões públicas e outorgas, destinadas à regulamentação do
funcionamento dos veículos da radiodifusão, mostrando a utilização política em
favor de interesses eleitorais e a manutenção do poder daqueles que já são
beneficiados com concessões existentes neste período.
Foi no Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação (Enecom), em
Santa Catarina, em 1983, que o primeiro movimento expressivo foi criado em
busca da abertura de participação social na comunicação, em especial na
radiodifusão, com a “Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de
Comunicação”3.
Pereira (1987), autor citado em grande parte das produções direcionadas à
democratização da comunicação, lembra que a Frente foi uma primeira luta
profissional e política concreta para a democratização da comunicação no Brasil.
O jornalista e cientista político se posiciona como crítico da centralidade de
propriedade dos veículos de comunicação e argumenta que “a transição política
do país não teve, até o momento, qualquer repercussão no sistema de
comunicação” (PEREIRA, 1987); e define que, pelo menos por enquanto, a
democratização do campo é um “sonho ou projeto, sem densidade profissional
ou consistência política”.
Para a efetivação das propostas defendidas pela Frente, os integrantes da
iniciativa buscaram, então, apoio parlamentar com o objetivo de instalar o
movimento de forma oficial, valendo-se do encaminhamento das sugestões à
Comissão de Comunicações da Câmara Federal. Embora tenha obtido apoio de
alguns membros, a pauta de reivindicação sofreu entraves ao ser colocada em

3
O processo de criação da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de
Comunicação pode ser verificado com detalhes em PEREIRA, Moacir. A democratização da
comunicação: o direito à informação na Constituinte. São Paulo: Global, 1987.
410 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

discussão, uma vez que a medida atingia interesses empresariais, econômicos e


políticos. Mesmo assim, em 1984, a Frente Nacional é finalmente oficializada
com o aval de entidades representativas da comunicação, porém, com uma
grande redução no conteúdo das reivindicações.
Um intenso envolvimento4 social possibilitou a inclusão de pautas voltadas à
abertura de participação social em diferentes instâncias como a democratização
das comunicações no texto da Constituição Federal de 1988. Conforme Praça e
Diniz (2008, p.10), “o processo aberto de elaboração constitucional desencadeou
uma grande campanha nos meios de comunicação e deu impulso à mobilização
de grupos importantes da sociedade”. Os movimentos defendiam a tese de que
não seria possível haver democracia sem a democratização das comunicações.
Para isso, era necessário que a comunicação fosse expandida às comunidades em
um processo democrático de produção informativa, contrariando a realidade
histórica brasileira em que os veículos de comunicação estão centralizados sob o
poder de poucos, que comandam a transmissão de informações e a comunicação
no país.
As organizações sociais que defendiam a democratização das comunicações
na Assembleia Constituinte se mantiveram articuladas após a promulgação da
Constituição Federal e criaram, em 1991, o Fórum Nacional de Democratização
das Comunicações (FNDC). Diante dessa mobilização, com intensa atividade do
movimento estudantil, em 1996, ocorre o Encontro Nacional de Rádios Livres,
organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Parlamentares
apresentaram, então, diversas propostas de regulamentação do serviço de
4
Ver DANTAS, H. Direitos políticos e participação popular: entre o desejo e a cultura política
nacional. In: PRAÇA, S.; DINIZ, S. (Orgs.). Vinte anos de Constituição. São Paulo: Paulus, 2008.
p 227-246. Dantas destaca a participação social verificada durante a Assembleia Constituinte e
a mobilização gerada em meio à sociedade. Outros aspectos também podem ser verificados na
obra em outras esferas sociais.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 411

radiodifusão comunitária naquele ano, como resultado das reivindicações


apresentadas no encontro. Pouco tempo depois é criada a Associação Brasileira
de Rádios Comunitárias (Abraço).
Em 1998, 10 anos após a promulgação da Constituição Federal que previa a
ampliação do acesso à comunicação, foi aprovada, no Congresso, a Lei da
Radiodifusão Comunitária, que deveria ser um dos instrumentos para a
democratização do setor. Contudo, a lei acabou restringindo a atividade e a
obtenção da concessão pública para o funcionamento desses veículos. A
implantação da lei se mostrou mais como uma medida para regulamentar e
restringir a atuação das inúmeras rádios comunitárias em atuação naquele
período, do que de fomento ao setor, como era a expectativa.
Um estudo realizado por Lopes e Lima (2007) aponta alguns dos problemas
verificados junto às rádios comunitárias, como a dificuldade para a sua
legalização, tendo em vista que políticos e empresários do setor fazem lobby para
serem beneficiados diretamente na liberação das outorgas em troca do apoio
dessas rádios em períodos eleitorais, além de outras situações, trazendo entraves
aos pedidos de concessões para as rádios que não estão atreladas a parlamentares.

A Rádio Comunitária de Heliópolis

Mesmo com todas as dificuldades citadas, diversas rádios comunitárias ainda


resistem às pressões do setor empresarial e político, amparadas pelo trabalho de
mobilização das entidades em busca da mudança desta realidade. Um exemplo
desta busca por efetivação da democratização da comunicação reivindicada há
anos no País pode ser verificado com a Rádio Heliópolis que, em 1989, portanto
ainda antes da criação da Lei da Radiodifusão Comunitária, experimentava a sua
primeira atuação em um sistema de comunicação, a partir da implantação da
412 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

rádio-poste. Os canais foram instalados para atender a uma necessidade da


associação na transmissão de comunicados, tendo em vista a abrangência da
comunidade com 125 mil habitantes e a grande extensão territorial, que chega a
cerca de um milhão de metros quadrados. Depois de três anos, em 1992, a rádio-
poste foi transformada em uma rádio popular, como desdobramento das
atuações de militância da comunidade e suas lideranças. Já em 1997, ela é
finalmente inserida no sistema FM (rádio em frequência modulada), assumindo a
configuração de uma rádio comunitária, nos mesmos moldes adotados até o
momento.
A legislação que regulamenta a Radiodifusão Comunitária foi publicada um
ano depois da transformação da rádio popular de Heliópolis em rádio
comunitária, portanto, em 1998. Desde então, as direções e os colaboradores
iniciaram o processo de reivindicação pela sua regularização oficial,
encaminhando a documentação necessária para a análise do Ministério das
Comunicações. As datas registram o início de uma história de 11 anos em busca
da concretização desta iniciativa por meio da regularização oficial da rádio
comunitária daquela comunidade. A comunidade recebeu a adesão e o apoio de
movimentos sociais, universidades e da própria Unas (Unidade de Núcleos
Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis). Depois de ser fechada
pela Polícia Federal, em 2006, ela retomou o funcionamento provisório por meio
de um decreto da Anatel, que autorizou a atuação da rádio “para fins científicos e
experimentais”, em parceria com a Universidade Metodista de São Paulo, e
depois recebeu definitivamente, em 2008, a regularização pelo Ministério da
Comunicação.
Os acontecimentos que foram registrados nos 11 anos de atuação sem que
houvesse a possibilidade de regularização da rádio na capital do Estado de São
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 413

Paulo, podem ser considerados como uma amostra das dificuldades da efetivação
do processo de democratização das comunicações no país.

Conclusão

A reivindicação pela democratização das comunicações continua sendo uma


demanda atual de movimentos de entidades de classes, como sindicatos e
federações, assim como de integrantes do meio acadêmico e comunidades
engajadas na defesa da comunicação comunitária.
Embora o assunto seja pouco difundido pela mídia convencional, ele é
pauta constante em meio aos movimentos sociais espalhados em diferentes
partes do país. Tal fato pôde ser comprovado com base na abrangência e no
envolvimento de diferentes organizações em torno da I Conferência Nacional
das Comunicações, convocada pelo Governo Federal e realizada entre 14 e 17 de
dezembro de 2009, em Brasília. No entanto, as práticas de trocas de favores em
torno da liberação de concessões, que foram intensificadas ainda no governo
Figueiredo, continuam existindo nos dias atuais, com a presença de proprietários
de meios de comunicação no parlamento brasileiro, ou de seus representantes,
que atuam em benefício próprio. Tal fato denota que o tema pesquisado, voltado
à reivindicação de movimentos e grupos sociais em torno da democratização da
comunicação, valendo-se do contexto social e da experiência de Heliópolis, está
inserido em um contexto de disputa de poder e propriedade dos meios de
comunicação, dada a influência deste veículo em meio à sociedade.
Ainda que a rádio comunitária seja um instrumento de contribuição à
democratização das comunicações e de valorização das comunidades, as
interferências políticas e os interesses de poder, assim como as burocracias legais
414 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

verificadas neste campo, são empecilhos para a atuação e o livre acesso


democrático à comunicação por meio deste veículo.

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A TV Cultura: uma nova Emissora Associada
voltada para São Paulo, 1960-1967

Eduardo Amando de Barros FILHO

A
criação da TV Cultura por Assis Chateaubriand pode ser tomada
como uma antecipação por parte do empresário à concorrência
num quadro de possível crescimento do debate e das demandas do
uso do meio com propósitos cultural-educativos, inclusive dentro da órbita do
Estado.
Assim, dois dias após as comemorações de dez anos da inauguração da
primeira emissora de televisão do Brasil, foi inaugurada, no dia 20 de
setembro de 1960, a TV Cultura, canal 2, quinta emissora paulista e segunda
dos Diários e Emissoras Associados em São Paulo. O logotipo desta nova
emissora era “Cultura 2”, com o indiozinho, símbolo das Associadas,
localizado na letra “C”. Assis Chateaubriand nutria uma verdadeira paixão
pelos índios brasileiros, batizando várias de suas emissoras com nomes
indígenas, inclusive apelidando todo seu condomínio comunicacional de
“Taba Associada”. “Uma nova emissora associada a serviço do Brasil e
voltada para São Paulo”, “a mais paulista das emissoras de televisão”, “a
primeira em seu receptor” e “a caçula das Associadas” foram alguns dos
epítetos atribuídos à TV Cultura contidos em propagandas no dia da estreia

Mestrando em História /UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Áureo
Busetto.
418 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

do Canal 2. No mesmo dia 20, a emissora já aparece, juntamente com os


demais canais, no espaço reservado à grade de programação das emissoras
paulistas de televisão, tanto em O Estado de S. Paulo como no Diário de S. Paulo.
Os Diários e Emissoras Associados, antes de operarem a TV Cultura, já
haviam angariado a Rádio Cultura de São Paulo. Esta tinha nascido
clandestina sob o nome DKI, seguido do dístico “A voz do Juqueri”, e tendo
como fundador o farmacêutico Candido Fontoura, criador do popular
Biotônico Fontoura. Foi ao ar pela primeira vez em 1933, com equipamentos
rudimentares e uma antena improvisada, então instalados na garagem da casa
do farmacêutico, na Rua Padre João Manoel, 34. O sucesso de sua
programação foi surpreendente, e, após seguidas intervenções da polícia, seus
proprietários legalizaram a emissora. Em fins de 1934, a rádio recebeu o nome
de Cultura e, em 16 de junho de 1936, foi inaugurada oficialmente como
Rádio Cultura PRE-4 de São Paulo, sob os slogans: “A voz do espaço”; “O
melhor som de São Paulo”. A garagem da família Fontoura transformava-se
em um autêntico estúdio de rádio, com todas as exigências técnicas
necessárias. Posteriormente a sede da rádio foi instalada em um vasto terreno
na Av. Jabaquara, 2983, e, finalmente, na Av. São João, 1285, cujo prédio fora
denominado “O Palácio do Rádio”. Muitos artistas nacionais e internacionais
passaram pela “voz do espaço”, entre eles Luiz Gonzaga, Grande Otelo e a
companhia teatral de Procópio Ferreira1 (DIÁRIO..., 1960, p.6). Em 1958, a
Rádio Cultura PRE-4 era comprada pelos Diários e Emissoras Associados,
quando sua programação passou a ser exclusivamente musical. No ano
seguinte, Edmundo Monteiro assumiu o cargo de diretor-presidente da rádio,
cuja sede foi mudada para o bairro do Sumaré, batizada de “Cidade do
Rádio”.2 Ainda em 1958, os Diários e Emissoras Associados obtiveram seu

1
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 set. 1960. 1ª Seção, p. 6.
2
Diário de S. Paulo, São Paulo, 16 out., 4 nov. e 25 dez. 1958; 21 e 23 abr., 14 maio e 11 jun.
1959.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 419

segundo canal de televisão em São Paulo, o canal 2, o qual entraria no ar em


1960, sob o mesmo nome da rádio recém-comprada de Candido Fontoura,
então homenageado como padrinho da nascente TV Cultura. Tal
apadrinhamento pode ainda ter decorrido da possibilidade da concessão do
canal 2 de São Paulo ter sido primeiramente outorgada a Candido Fontoura e
posteriormente vendida, juntamente com a Rádio Cultura, aos Diários e
Emissoras Associados.
Desde o início de 1960, os leitores do jornal Diário de S. Paulo eram
informados de que a nova emissora do condômino comunicacional de Assis
Chateaubriand contaria com o transmissor instalado no edifício-sede do
Banco do Estado de São Paulo, naquele momento também usado pela TV
Tupi, e deveria entrar no ar, possivelmente, no final do primeiro semestre
daquele ano. Liam que para abrigar a “Caçula das Associadas” estavam sendo
feitas adaptações no 15° andar do edifício Guilherme Guinle, sede dos Diários
e Emissoras Associados em São Paulo, situado na rua 7 de abril, 230.
Por meio de matérias vazadas em um misto de reportagens e
propagandas, ficavam sabendo que a emissora seria uma das mais modernas
no setor de aparelhamento e que a administração estava com tudo em
andamento. Eram comunicados, também, que os responsáveis pela direção da
TV Cultura seriam Fernando Chateaubriand, filho de Assis Chateaubriand, na
direção geral, e José Duarte Junior, na direção artística e comercial.
Entretanto, os prazos foram se apertando e o jornal tratava de informar que a
estreia da nova emissora passava a ser anunciada para meados de agosto de
1960.3
Mesmo com o anunciado atraso na inauguração da TV Cultura, os seus
diretores não deixavam que o interesse do público pela nova emissora
diminuísse. Para tanto, anunciavam na imprensa que a Cultura seria

3
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 e 30 mar. 1960; 22 jun. 1960; 5 e 12 jul. 1960.
420 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

especializada em esportes e noticiários, além de exibir programas infantis,


filmes, teleteatros e “grandes programas de outras estações associadas”. Em
propaganda, anunciava que um “mundo maravilhoso do entretenimento” seria
oferecido ao telespectador de São Paulo com a TV Cultura, a qual recebia
investimentos para a formação de um respeitável “cast”.4 Prometia, ainda, a
produção de um telejornal dos mais informativos de São Paulo, então
preparado por Alexandre von Baumgarten, nome de relevo no mundo
radiofônico do período. Dentro da meta de fazer da TV Cultura uma emissora
de esportes, informava que a direção do Canal 2 tinha firmado um acordo
operacional com a Rádio Bandeirantes, pelo qual toda equipe de esportes
daquela rádio atuaria na tela do novo canal paulista. Edson Leite e Pedro Luís,
locutores esportivos da Rádio Bandeirantes, seriam os grandes comandantes
das transmissões desportivas da TV Cultura.5
Mais uma vez a estreia da TV Cultura foi adiada, agora a inauguração
era prevista para ocorrer em setembro de 1960. Para marcar o início das
transmissões da emissora com um feito televisivo, a direção tomou a iniciativa
de convidar os três candidatos à presidência da República para um debate
televisionado. No dia 3 de outubro de 1960, ocorreria a eleição presidencial
para a sucessão de Juscelino Kubitschek. A direção da TV Cultura julgou
oportuno inaugurar a emissora com um encontro entre os presidenciáveis,
alegando que a opinião pública nacional estava fazendo os últimos exames dos
programas de governo e candidatos, daí a utilidade pública do debate
proposto. Assim sendo, convidou os candidatos Adhemar de Barros, Jânio
Quadros e o marechal Henrique Lott, fixando a data do debate para 7 de
setembro, às 22 horas, sem limite de encerramento, uma vez que se tratava de
um debate inédito no Brasil.

4
Diário de S. Paulo, São Paulo, 23 jul. 1960. 1ª Seção, p. 9.
5
Diário de S. Paulo, São Paulo, 5, 16 e 26 jul.; 1 e 14 set. 1960.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 421

O Canal 2 buscava estrear com uma discussão democrática e de alto


nível. Para tanto, foram examinadas algumas fórmulas para o debate,
vencendo, finalmente, a de um diálogo frontal e direto entre os candidatos,
sem qualquer questionário previamente preparado. Os presidenciáveis
desfrutariam de total liberdade de iniciativa nas perguntas e respostas, ficando
adstritos a qualquer esquema elaborado pela emissora, que somente os
apresentaria aos telespectadores. Os candidatos Jânio Quadros e o marechal
Henrique Lott aceitaram prontamente o convite da diretoria da TV Cultura,
garantindo o comparecimento ao debate. Já Adhemar de Barros, a propósito
do convite, declarou à imprensa que não via inconvenientes em participar de
uma mesa redonda com os demais candidatos à Presidência da República.
Porém, alegou impedimento à sua participação no debate em virtude de que
seu roteiro de campanha estava traçado até 3 de outubro, e sugeriu que a mesa
redonda devesse ser realizada depois das eleições. A direção da TV Cultura
havia estabelecido uma única condição para a realização do programa: a
participação dos três candidatos.6
Sem o debate inaugural almejado pela direção da TV Cultura, a estreia
do Canal 2 foi marcada para o dia 20 de setembro de 1960, sob a promessa de
um “grande show inaugural”. Dessa vez não houve cancelamento e a
pomposa cerimônia de inauguração foi realizada. A solenidade de
inauguração, transmitida ao vivo, realizou-se no Jardim de Inverno Fasano, e
constituiu-se em um grande acontecimento social, como registraria o Diário de
S. Paulo.
Estiveram presentes à cerimônia, o representante do governador
Carvalho Pinto, Hélio Damante; diretores de emissoras de rádio e TV de São
Paulo; jornalistas e publicitários; bem como vários nomes de prestígio na
sociedade. Acolhendo os convidados, via-se toda a diretoria dos Diários e
6
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 ago. 1960, p. 5; Diário de S. Paulo, São Paulo, 13 e 14
ago. 1960.
422 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Emissoras Associados, Edmundo Monteiro, Armando de Oliveira, Ruy


Aranha, entre outros. Em meio a enormes cestas de rosas amarelas e
vermelhas ouviam-se as felicitações pelo significativo acontecimento. Na
entrada do recinto estava a banda da Força Pública, em traje de gala. No salão,
a Grande Orquestra Tupi. Osvaldo Soares e Maria Cecília foram os mestres da
cerimônia, e recolheram dos convidados depoimentos sobre a expressiva noite
em que ia ao ar uma nova emissora para São Paulo.
Às 21 horas, teve início a cerimônia inaugural com o pronunciamento
de Edmundo Monteiro, posteriormente, falou Fernando Chateaubriand e
Candido Fontoura. Assis Chateaubriand, em razão de sua convalescência, não
compareceu à inauguração de mais uma de suas emissoras de televisão,
naquele momento perfazendo o montante de onze. Na seqüência, houve um
show reunindo vários artistas das Emissoras Associadas, organizado por
Theophilo de Barros Filho.7
Edmundo Monteiro, diretor-presidente dos Diários e Emissoras
Associados, em pronunciamento, declarou não duvidar de que a TV Cultura
iria se empenhar na defesa dos direitos humanos e no “maior
engrandecimento” da população de São Paulo. Candido Fontoura, padrinho
do Canal 2, ao declarar inaugurada a emissora, desejou-lhe uma trajetória
brilhante, na certeza de que a emissora iria servir aos paulistas por muitos
anos, educando, informando e divertindo, correspondendo integralmente ao
nome que levava: Cultura.8 Tais discursos reforçam a ideia de que Assis
Chateaubriand, ao idealizar sua segunda emissora televisiva na cidade de São
Paulo, não ficou inerte diante do crescente debate sobre a função cultural-
educativa da televisão que emergia em terras brasileiras, e que era amplamente
tratada pelos veículos de comunicação pertencentes ao seu Diários
Associados. Ademais, além de grande empreendedor do campo
7
Diário de S. Paulo, São Paulo, 20, 21 e 22 set. 1960.
8
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 set. 1960. 1ª Seção, p. 6.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 423

comunicacional, Chateaubriand se destacava e apreciava a associação de sua


personalidade com benemérito das artes.
A nova emissora dos Diários e Emissoras Associados, em São Paulo,
segundo o Diário de S. Paulo, teve uma recepção positiva, sendo elogiada
principalmente por sua imagem “extraordinariamente límpida”. Segundo o
mesmo periódico paulista, a direção dos Diários Associados recebeu centenas
de telefonemas e telegramas apresentando felicitações pela imagem “soberba e
nítida”. Fato que gerou a Cultura mais um epíteto – “a melhor imagem de São
Paulo” –, o qual seria também utilizado em propagandas futuras9.
No dia seguinte à inauguração da TV Cultura, as propagandas do Canal
2 prometiam aos telespectadores paulistas “um espetáculo diário”. Apesar do
nome ostentado, a emissora exibia um perfil eminentemente comercial,
afinado com as demais Emissoras Associadas. No início, não obstante ter
telejornais e programas desportivos como base de sua grade, o Canal 2
apresentava uma programação variada. A emissora entrava no ar, diariamente,
às 18h30min, exibindo um programa infantil, posteriormente um esportivo,
seguido de programas de variedades, música, noticiário, filme, telejornal e
terminando com uma programação esportiva a partir das 22h30min. Já no
início de outubro de 1960, foram incluídas em sua grade uma novela diária e
teleaulas de inglês. Programas de calouros, entrevistas, teleteatros, entre
outros, também ganharam seu espaço no Canal 2.10 A emissora, reiteradas
vezes, anunciava o seu empenho em levar aos lares paulistas uma
programação de “alto gabarito”, estudando meticulosamente a elaboração dos
programas para que o telespectador recebesse uma mensagem artística ou
informativa digna de sua educação e atual.11

9
Diário de S. Paulo, São Paulo, 22 e 28 set. 1960.
10
Segundo consulta às grades de programação de TV Cultura de São Paulo, publicadas
diariamente nos periódicos O Estado de S. Paulo e Diário de S. Paulo entre 21 setembro a 31
de dezembro de 1960.
11
Diário de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1960. 1ª Seção, p. 8.
424 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A partir de 1961, a TV Cultura, a exemplo de emissoras de televisão


internacionais, passou a ter sua programação matinal, prática até então pouco
usada pelas emissoras brasileiras, exceto aos domingos. Nesse momento, de
segunda a sexta-feira, a TV Tupi e a Record iniciavam sua programação às 12
horas, a Paulista às 15 horas, e a Excelsior às 16 horas. Sendo a única emissora
paulista no ar no período diurno, das 9 às 12 horas, a Cultura exibia,
primeiramente, um programa jornalístico, um curso de culinária, um curso de
admissão ao ginásio, um programa feminino, um humorístico e, por fim, um
musical. Interrompida a partir das 12h30min, sua transmissão era restabelecida
a partir das 18 horas, mantendo basicamente a linha de programação
mencionada acima12.
Buscando fazer valer o seu nome de batismo, a Cultura firmou
parcerias com o governo do Estado de São Paulo para a produção de
programas estritamente cultural-educativos. O primeiro fruto da parceria entre
a emissora e a Secretaria de Educação a ir ao ar foi o programa Curso de
Admissão pela TV.13 Iniciado em 1° de março de 1961, chegou a ser anunciado
pelo Diário de S. Paulo como “o programa de maior audiência em São Paulo”14,
apesar de, como afirmado acima, não ter concorrentes no horário matinal. Em
1963, com a criação do Serviço de Educação e Formação de Base pelo Rádio
e Televisão, a Secretaria de Educação firmou um segundo convênio com a TV
Cultura. O intuito deste novo acordo visava à produção de 10 horas semanais
de programação educativa. Assim, a programação educativa veiculada pela
emissora ampliou-se com aulas de literatura, artes plásticas, educação musical,

12
Segundo consulta às grades de programação das emissoras paulistas, publicadas
diariamente nos periódicos O Estado de S. Paulo e Diário de S. Paulo entre 1 fevereiro a 31 de
dezembro de 1961.
13
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 abr. 1961, p. 17.
14
Diário de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 1961. 1ª Seção p. 6.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 425

educação de base, 5ª série ginasial, vestibular e curso de madureza aos


sábados.15
Em 1964, foram estendidas as atividades educacionais do Canal 2,
sendo inaugurado, pelo secretário da Educação, o primeiro Teleposto do
Serviço de Formação pelo Rádio e Televisão, localizado na Escola Nazaré.
Esta era a primeira iniciativa do gênero no magistério brasileiro. O objetivo
principal do Teleposto era dar aos alunos maior independência em relação aos
mestres, conferindo-lhes maior desembaraço nas suas atividades culturais.
Dessa forma, a monitora que assistia os alunos durante as aulas dadas pelo
Canal 2, e que os “vigiava” durante o desempenho das tarefas escolares,
deveria interferir o menos possível, propiciando melhor desenvolvimento do
trabalho individual das crianças.16
A TV Cultura chegou a ser, em 1961, a líder de audiência na região do
ABC, à época contando com 30 mil televisores. Tal posição era obtida em
razão dos sinais da emissora chegarem com melhor qualidade quando
comparados aos de suas concorrentes. A Cultura obtinha média diária de 68%
de audiência no ABC, índice elevado a 92% quando da transmissão do
programa Tele Revista Santo André.17 Observa-se, assim, o exemplo, ainda que
pontual, da TV Cultura em apresentar uma programação regional, mesmo que
não fosse propriamente de cunho cultural. A adesão dos telespectadores à
iniciativa também é prova da demanda por programação regional. Contudo,
este expediente não avançaria na Cultura, muito provavelmente por
dificuldades técnico-financeiras da emissora que possibilitassem a produção de
programas regionais.

15
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1 ago. 1963; Diário Oficial do Estado de São Paulo, São
Paulo, 1° ago. 1963, p. 1°.
16
Diário de S. Paulo, São Paulo, 3 mar. 1964. 1ª Seção, p. 9.
17
Diário de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1961. 1ª Seção, p. 9.
426 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Problemas que se acentuavam com os baixos índices de audiência da


emissora entre 1961 e 1962. Daí, a direção da Cultura propor uma
reestruturação na programação com vistas a alavancar a audiência da emissora.
Assim, Mário Fanucchi foi convidado para a direção artística da Cultura,
ficando José Duarte Junior apenas com a direção comercial. Um dos marcos
dessa nova fase foi a exibição de O Céu é o Limite, programa de auditório que
já havia sido um sucesso na TV Tupi de São Paulo. Requentado pelo Canal 2,
o programa chegou a ter grande audiência. Outro programa de grande
repercussão foi O Homem do Sapato Branco, o qual era a antítese de O Céu é o
Limite. Além destes programas, a nova grade da TV Cultura passou a contar
com atrações teatrais como Viva a Marionete, infantil de Lucia Lambertini;
Quando Menos se Espera, humorismo de Raul Roulien; e Sombras do Terror,
suspense de Caetano Gherardi. No setor musical, Eles Fazem do Sucesso, de
Fernando Negreiros; Audição Nadir, com Wilma Bentivegna; e Erion Chaves
Show. Uma nova prática adotada pela emissora foi a realização de pesquisas no
sentido de averiguar como seriam recebidos os novos programas.18
A tentativa de “arrancada para a audiência” promovida pela TV Cultura
obteve um sensível êxito. Com o índice de telespectadores sintonizados na
emissora aumentando, vieram os anunciantes e, assim, houve uma elevação no
faturamento da Cultura com publicidade. Nessa segunda fase, iniciada em
1963, o Canal 2 aumentou a sua potência de som e imagem, adquiriu nova
aparelhagem e lançou novos programas.19 Potencializando a qualidade e a
abrangência do seu sinal, contemplava cerca de 90 cidades do interior. Entre a
nova aparelhagem instalada estava o videoteipe, que era um dos aparelhos
mais modernos existentes no país.20 A TV Cultura alcançou um grande índice

18
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 set. e 3 out. 1963.
19
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 out. 1964. 2ª Seção, p. 4.
20
Diário de S. Paulo, São Paulo, 23 set. 1964. 2ª Seção, p. 1.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 427

de audiência em Campinas, principalmente com o programa Inglês com Fisk,


que atingia cerca de 32,1% de audiência.21
No momento em que a TV Cultura parecia engrenar, foi barrada pelo
fogo. No espaço de um ano foram registrados quatro incêndios no edifício
dos Diários e Emissoras Associados, localizado na Rua Sete de Abril. O
último, ocorrido no dia 28 de abril de 1965, a partir das 20h55min, de grandes
proporções, abalou os estúdios da emissora, localizados no 15° andar do
edifício. Embora não registrasse vítimas, o sinistro causou prejuízos enormes.
Entretanto, mediante esforços dos funcionários, foram salvas duas das três
câmeras que estavam em operação, equipamentos de videoteipe, algumas
películas e material eletrônico. A emissora continuou a operar por meio de um
retransmissor colocado fora do edifício. Circunscrito o fogo, as organizações
voltaram a funcionar normalmente. No momento em que se iniciaram as
chamas nos estúdios da emissora, era apresentado o filme norte-americano
Mr. Lucky, cujo título fora traduzido para Aventureiro de Sorte22.
Após o trágico episódio, a TV Cultura passou a funcionar em um
estúdio improvisado no Sumaré. Nesse momento, os dirigentes do Canal 2
passaram a estudar um projeto para a construção de uma “casa nova” para a
TV Cultura, no bairro Água Branca, local privilegiado que oferecesse, além de
um maior espaço útil, melhores instalações e o necessário isolamento
indispensável para proporcionar aos trabalhadores da emissora condições
ideais de trabalho. Acreditava-se que dentro de poucos meses a TV Cultura
teria seu endereço definitivo naquele bairro, onde já funcionavam os
transmissores da emissora. As transmissões do Canal 2 exigiam um enorme
sacrifício de seus funcionários23. Entretanto, apenas em dezembro de 1966, as
novas instalações ficaram prontas. Erguidas em um belo parque com bosques

21
Diário de S. Paulo, São Paulo, 29 ago. 1964. 2ª Seção, p. 4.
22
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 abr. 1965, p. 21.
23
Diário de S. Paulo, São Paulo, 5 e 7 maio 1965.
428 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

e lagoas, ocupando uma área de 1.500 metros quadrados, as novas instalações


apresentavam o que havia de mais moderno e funcional, com automatização
completa no sistema de iluminação, ar refrigerado nos estúdios e na técnica,
um excelente sistema acústico que impedia a reverberação e proporcionava
um som puro e sem interferências estranhas.24 O aumento na potência de
transmissão foi um fato. Sem repetidoras, a imagem da Cultura era captada em
quase todo o Estado de São Paulo, e até em outros Estados, como Paraná e
Minas Gerais. Modernos equipamentos para transmissões externas também
foram incorporados ao patrimônio do Canal 2.25
Ainda funcionando improvisadamente no Sumaré, a TV Cultura vinha
obtendo índices razoáveis de audiência no período das 22 às 24 horas. Nesta
faixa eram exibidos programas como Roda Viva e Cine TV 2. Admirada com
estes índices, a direção do Canal 2 lançou uma nova linha de programação
denominada “Linha 20 e 30”, que brigaria pela audiência na faixa das
20h30min, diariamente, de segunda a sexta-feira.26 Com as novas instalações
concluídas, a direção da TV Cultura intensificou sua atenção na parte artística,
e na disputa da audiência. Os planos para a nova programação contemplavam
séries inéditas, filmes e programas ao vivo, nos quais seriam empregados, além
de nomes já pertencentes à emissora como Jacinto Figueira Junior, Canarinho,
Julio Rosemberg e Ney Gonçalves Dias, “novos valores” televisivos.27 A nova
programação aumentara o número de telespectadores do Canal 2, em grande
parte devido ao programa de calouros Estamos em Órbita28.
Ao contrário de todos os discursos, quando da inauguração, a TV
Cultura não se consolidou como mais um vitorioso empreendimento do
poderoso condomínio comunicacional dos Diários e Emissoras Associados.

24
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 maio e 12 out. 1966.
25
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 1966. 2ª Seção, p. 7.
26
Diário de S. Paulo, São Paulo, 6 maio 1966. 2ª Seção, p. 7.
27
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 1966. 2ª Seção, p. 7.
28
Diário de S. Paulo, 22 jan. 1967. 4ª Seção, p. 8.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 429

Pois, este, já no início da década de 1960, dava mostras de sua enorme crise
financeira. A emissora foi criada em um momento em que os veículos de
comunicação pertencentes aos Diários e Emissoras Associados agonizavam
diante de dívidas fiscais e previdenciárias, o que levou o condomínio a uma
grande recessão interna. Somando-se a isso, enfrentavam a concorrência de
um bolo publicitário cada vez mais dividido entre novas ou renovadas cadeias
de mídia. Como afirmou Rondini (1996, p. 25), além de sofrer das mesmas
debilidades que afetavam todo o grupo, a Cultura desenvolveu-se à sombra da
TV Tupi paulista. Sendo ambas emissoras Associadas, a Cultura era voltada
estritamente a um público regional e com pretensões menores que a Tupi.
Apesar dos investimentos em reestruturações tecnológicas, a atuação da
emissora barrava no fato de ser a segunda do condomínio comunicacional em
orçamento e projetos.
Somando-se as dificuldades dos Diários Associados e,
consequentemente, da TV Cultura, o Decreto-Lei nº 236, de 1967, em seu
artigo 12, estabeleceu, por razões de políticas públicas relativas à prevenção do
monopólio dos serviços de radiodifusão de som e imagem, que proprietários
privados ficariam limitados a um máximo de 10 concessões em todo território
nacional. O Regulamento dos Serviços de Radiodifusão definiu que um
concessionário poderia somente participar de uma emissora de televisão, em
um único mercado (JAMBEIRO, 2002, p. 63). Tal Decreto-Lei representou
um duro golpe contra as Emissoras Associadas, que, naquele momento, se
constituíam em 18 estações de televisão, e deveriam se adequar ao novo limite
máximo de 10. A Cultura, muito provavelmente, não fosse uma das 10
emissoras escolhidas para continuar sob a posse dos Diários Associados,
buscando este se adequar à nova legislação. Ademais, a regra legal que impedia
a um mesmo grupo ter a posse de mais de uma emissora de televisão na
mesma localidade agravava a situação da Cultura. Pois, a TV Tupi e a TV
430 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Cultura, ambas pertencentes às Emissoras Associadas, estavam estabelecidas


em São Paulo, encontrando-se a primeira em melhores condições de audiência
e de rentabilidade para o condomínio comunicacional ao qual pertenciam.
Portanto, vender a Cultura representava uma boa alternativa para resolver
tanto as questões legais quanto as financeiras que assolavam os Diários
Associados.
A dinâmica e a competitividade instaladas a partir da década de 1960 no
campo televisivo brasileiro são fatores que também explicam o fracasso da TV
Cultura privada. A década de 1960 foi marcada por mudanças nas práticas
daquele campo, período em que os investimentos publicitários voltados para
televisão superaram ao de qualquer outro meio de comunicação. Nessa
década, o número de aparelhos vendidos multiplicou-se. Época de inovações
tecnológicas e de grandes reformulações em termos das programações das
emissoras. Anos em que a própria TV Tupi, primeira emissora do país e a
mais notável emissora Associada, começou a perder espaço dentro do campo
televisivo brasileiro. Portanto, como assevera Rondini (1996, p.12), um
momento inapropriado para o surgimento de uma emissora de televisão,
como a TV Cultura, que nascera aos moldes do meio nos anos de 1950 e que
aparece dividida pelo poder de fogo dos Diários Associados em São Paulo. A
dinâmica do campo televisivo brasileiro não permitia a continuidade de mais
uma emissora em São Paulo, e ainda mais sem um projeto que atendesse às
suas novas práticas, quer na produção, quer no consumo.
Os programas educativos realizados pela TV Cultura em parceria com a
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, apesar do esforço de ambas
as partes, foram concebidos sem o devido planejamento, carecendo de
recursos financeiros, técnico e profissional. Somente a partir da segunda
metade da década de 1960 é que será criada uma série de medidas, provindas
do poder federal, buscando constituição de tecnologias, estruturas e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 431

profissionais qualificados para o desenvolvimento de emissoras e programas


educativos. Porém, deve ser ressaltado que a transmissão de cursos regulares
pela Cultura, apesar do aparente insucesso, foi um importante passo para o
desenvolvimento de futuros telecursos, para a constituição de novas parcerias
entre emissoras e a Secretaria de Educação, assim como para a implementação
de uma emissora educativa no Estado de São Paulo.
Com grandes dificuldades em definir uma programação consistente que
mantivesse uma boa média de audiência, possuindo apenas alguns programas
de relativo sucesso e atravessando dificuldades financeiras, além das
imposições legais e a crescente concorrência do campo televisivo, a TV
Cultura, juntamente com a Rádio Cultura, foi vendida para o governo do
Estado de São Paulo. Assim sendo, “A Caçula das Associadas” saía do ar no
dia 7 de dezembro de 1967.

Referências

Fontes

BRASIL. Lei n° 4.117, de 27 de agosto de 1962.


BRASIL. Decreto n° 52.026, de 26 de maio de 1963.
BRASIL. Decreto-Lei n° 236, de 28 de fevereiro de 1967.
Diário de S. Paulo, São Paulo, período 01/1950 – 12/1967.
Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 1° ago. 1963.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, período 01/1950 – 12/1967.

Bibliográficas

JAMBEIRO, O. Regulando a TV: uma visão comparativa no Mercosul.


Salvador: EDUFBA, 2000.
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Os debates e as ações de teleducação durante o
regime militar (1964-1985)

Wellington Amarante OLIVEIRA*

Introdução

E
ste texto tem o objetivo de historiar as principais ações e os
debates empreendidos pelos agentes dos campos político,
educacional e televisivo em matéria de teleducação no Brasil
durante o regime militar (1964-1985).1 Refletir acerca da interface entre esses
campos é de suma importância para a compreensão do significado das
medidas tomadas durante os governos militares, seja por agentes
governamentais, seja por agentes televisivos, que alteraram decisivamente o
espaço que a educação ocupou na TV brasileira. Desse modo, nossa análise
busca historiar o período com base em uma perspectiva socio-histórica,
tributária da sociologia da prática de Pierre Bourdieu, que nos permita
compreender com densidade histórica o significado das práticas desenvolvidas
pelos agentes envolvidos com a teleducação ao longo do regime militar no
Brasil.
Pretendemos, por meio de nossa análise, demonstrar como as ações
desenvolvidas pelos governos militares – desde a criação de órgãos de
regulamentação, passando pelas TVs educativas – não conseguiram atingir os

*
Mestrando UNESP/Assis/Bolsista: CAPES. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
1
Uma versão preliminar desse texto foi apresentada no XII Encontro Regional da Anpuh-
PR - Regiões: Imigrações, Identidades. Realizado entre os dias 10 e 12 de outubro de 2010, em
Irati-PR.
434 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

objetivos traçados, ou esperados, resultando em experiências limitadas e


restritas. Situação que criou uma lacuna no que concerne ao espaço que a
educação poderia ocupar na TV brasileira. Lacuna que só se completaria com
a criação do Telecurso 2º Grau, da Fundação Roberto Marinho, em 1978.

Os modelos televisivos

Para o entendimento da estrutura e dinâmica do modelo da televisão


brasileira é necessário conhecermos, de maneira retrospectiva e comparativa,
os modelos de TV instituídos tanto na Europa quanto nos EUA, para que, de
tal forma, consigamos apreender práticas próprias e reiteradas da organização
e desenvolvimento do campo televisivo no mundo ocidental. E, assim,
possamos perceber quais visões e ações gerais sobre o meio foram
apropriadas ou adequadas na sua constituição no Brasil.
Há uma significativa diferença entre o modelo de TV norte-americano
e o europeu, principalmente nas primeiras décadas de história da TV. Segundo
Jeanneney (1996, p.244), “a televisão comercial americana não tem
praticamente nenhum papel cultural e, contrariamente ao que acontece na
Europa, está afastada dos meios universitários e intelectuais”. O modelo
norte-americano foi constituído baseado nas redes de televisão comerciais, ou
seja, ainda que frutos de concessões públicas, elas eram exploradas pela
iniciativa privada. Esse modelo tem algumas características básicas, como a
grande influência dos setores que pagam pelas propagandas. Por isso, é
necessário um público consumidor.
Em linhas gerais, podemos dizer que os objetivos das redes comerciais
centram-se em oferecer uma programação que busque o grande público. Tal
programação está alicerçada na informação e no entretenimento, com pouco
espaço para a educação e a cultura. Ainda segundo Jeanneney (1996, p.244),
“nos Estados Unidos, a ideia de uma emissão do tipo da francesa Apostrophes,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 435

destinada a promover os livros e a leitura, é inconcebível”. Todavia, existem


exceções. Podemos destacar a criação, em 1969, da PBS (Public Broadcasting
Service) que, desde então, tem organizado certo número de estações públicas
ou educativo-culturais, geralmente de alcance regional, veiculando
nacionalmente a programação destas.
O modelo europeu, conforme dito acima, está em posição oposta ao
estadunidense. O fator que diferencia os dois modelos é a característica
europeia do pioneirismo das redes públicas. No modelo televisivo europeu há
um equilíbrio um pouco maior entre o que Briggs e Burke (2004, p.193)
denominaram como quase uma tríade sagrada para os meios de comunicação
social: informação, educação e entretenimento. Com autonomia financeira e tempo
para experimentar programas diversos, as redes públicas conseguiram ganhar
um amplo espaço na audiência na Europa. Nos Estados Unidos, a TV surge
com a preocupação de divertir o grande público, para, com isso, angariar mais
anunciantes; ao passo que, na Europa, o financiamento das redes de TV não
depende, na maioria dos casos, de anunciantes, já que a emissão televisiva é,
antes de tudo, tomada efetivamente como serviço público. Dessa forma, nos
principais países europeus as TVs públicas são financiadas pelo dinheiro do
contribuinte, por meio de uma taxa cobrada de cada residência que possui um
aparelho televisor. O símbolo desse modelo é a BBC (British Broadcasting
Company) de Londres, que iniciou suas transmissões regulares no ano de 1936.
A BBC teve um importante papel na consolidação da Open University, criada
em 1969. Segundo Ivônio Barros Nunes:

A Open University britânica nasceu no momento em que se


acreditava na capacidade da televisão em promover as mudanças
educacionais desejadas para a incorporação de grandes
contingentes populacionais nos sistemas de ensino. Tanto que ela,
quando do projeto, era chamada de Universidade do Ar (como a
similar japonesa). A BBC (British Broadcasting Corporation) foi
436 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

instalada a servir de base para a criação da universidade e depois se


transformou em sua principal parceira. (NUNES, 2009, p.6).

Esse projeto de universidade aberta foi um dos pioneiros no mundo e


um dos mais influentes em outros países, chamando atenção de autoridades
brasileiras; porém, as discussões não avançaram.
Somente ao longo da década de 1980 é que há uma paulatina mudança
no panorama televisivo europeu, com o surgimento da concorrência de redes
privadas, além de uma abertura à publicidade, porém, com regras rígidas nas
emissoras públicas.
No Brasil, embora os investimentos iniciais fossem advindos, como nos
EUA, do setor privado para a criação e os primeiros passos do meio no país –
com destaque para o empreendimento de Assis Chateaubriand, com a sua TV
Tupi, em 1950 –, o avanço mais significativo da TV está ligado às políticas do
regime militar, por um eficiente sistema de telecomunicações. A ampliação da
estrutura para o desenvolvimento desse sistema recebeu atenção especial dos
militares antes mesmo do golpe civil-militar de 1964. Interesse evidenciado
pelo instrumental técnico do qual dispunha as Forças Armadas – é
interessante ressaltar que “as escolas militares de comunicações já eram
redutos dos especialistas da área, quando, em 1959, a Lei nº 3.654 criou as
Armas de Comunicações e Engenharia do Exército” (PIERANTI, 2006,
p.100) – e na sua participação ativa nas discussões e na elaboração do Código
Brasileiro de Telecomunicações (CBT). Aprovado em 27 de agosto de 1962,
durante o conturbado mandato presidencial de João Goulart, o CBT
regulamentou o setor de comunicação ponto a ponto (como a telefonia) e a
comunicação social eletrônica (rádio e TV) até 1988, quando da promulgação
da chamada Constituição Cidadã. De qualquer maneira, em matéria de
comunicação social eletrônica, o Estado brasileiro atuou sobremaneira, desde
o início do rádio até a Constituição de 1988, muito mais como distribuidor de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 437

concessões públicas para radiodifusão a particulares, do que tomou tal


atividade como um serviço público. Situação legal que atrelou o
desenvolvimento do rádio e da TV no Brasil a uma série de expedientes e
arranjos políticos extraoficiais entre concessionários e governantes.
Um elemento que amalgamou as ações dos militares sobre o meio
televisivo foi a Doutrina de Segurança Nacional. Segundo Nilson Borges:

Criada na época da guerra fria, nascida do antagonismo leste-oeste,


a Doutrina de Segurança Nacional fornece intrinsecamente a
estrutura necessária à instalação e à manutenção de um Estado
forte ou de uma determinada ordem social. [...] Objetivamente, a
Doutrina de Segurança Nacional é a manifestação de uma ideologia
que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total
entre o comunismo e os países ocidentais. (BORGES, 2003, p.24).

Os militares, com base nessa doutrina, viam o setor de


telecomunicações como um elemento de integração e segurança nacional e,
por isso, investiram de forma estratégica em seu desenvolvimento, o que
consolidou notadamente o avanço da televisão no campo da comunicação
social. Eugênio Bucci (2004, p. 223) assevera que “a TV, no Brasil, é um
produto de uma das poucas estratégias nacionais que deram certo”. Porém, ao
contrário do modelo europeu de emissoras públicas, o investimento do regime
militar no setor de telecomunicações não privilegiou a constituição de uma
ampla e forte TV pública, mas permitiu que a TV Globo, de propriedade de
Roberto Marinho e criada em 1965, fosse a mais beneficiada, direta ou
indiretamente, pelos investimentos oficiais na infraestrutura das
telecomunicações. Elementos que, somados a outros benefícios indiretos
concedidos por governos militares, transformaram a Globo na maior e na
mais bem equipada rede de televisão do país. Segundo Pieranti:

A política de integração nacional através das comunicações


defendida pelos governos militares encontrou na TV Globo uma
438 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

grande parceira. A emissora logo teria afiliadas em outros Estados


do país, formando uma rede com o aumento de concessões a
empresas de radiodifusão outorgadas pelo governo federal.
(PIERANTI, 2006, p.106).

Para compreendermos um pouco melhor o impacto da TV na


sociedade brasileira, podemos observar as palavras de Bucci:

A TV une e iguala, no plano do imaginário, um país cuja realidade é


constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas. A TV
conseguiu produzir a unidade imaginária onde só havia
disparidades materiais. Sem tal unidade, o Brasil não se
reconheceria como o Brasil que tem sido. (BUCCI, 2004, p.222).

Essa amálgama social que a TV produziu foi fundamental para a


legitimação do sistema político vigente. “Durante os governos militares, a
preocupação com a identidade constituiu uma verdadeira obsessão” (FICO,
1997, p.36).

Os debates e as ações em teleducação

Feita a discussão de como se constituem os modelos televisivos e quais


são suas principais características, sobretudo o brasileiro, devemos, agora,
observar quais foram os debates e as ações acerca da teleducação desenrolados
durante esse período. Ficou claro que a televisão deveria cumprir um papel no
projeto de integração nacional, e dentro do modelo televisivo brasileiro, que
teve as emissoras comercias como hegemônicas, poucas alternativas restariam
aos governos militares. Uma delas seria a propaganda oficial e, a outra, as
emissoras educativas.
No âmbito da propaganda oficial do regime, podemos destacar a
criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), que ficou sob o
comando de Octávio Costa durante o governo de Médici. Segundo Carlos
Fico:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 439

Dedicando-se, portanto, apenas as campanhas de “cunho cívico e


educativo”, a propaganda governamental pretendia se passar por
inofensiva, de utilidade pública, o instrumento criador de uma
atmosfera de paz, de concórdia, algo que soava enigmático vindo
de um regime autoritário. (FICO, 1997, p.97-98).

Esse seria o lado educativo não-formal, que se utilizava da propaganda


nas grandes emissoras de televisão. Aliás, Fico ressalta que “uma característica
que marcou a propaganda política no regime militar brasileiro foi sua
coincidência com uma fase de franca modernização dos meios de
comunicação de massa no Brasil”. Sabemos que, para além de coincidência,
havia o investimento planejado na infraestrutura para as Telecomunicações,
como vimos acima. Por isso, essa é uma relação de mão dupla: ao fortalecer
os meios de comunicação, o regime também aproveitava o seu alcance e
capilaridade para difundir suas mensagens.
Do outro lado, podemos observar diversas ações do regime com vistas
à criação de TVs educativas, bem como a exclusividade da produção de
conteúdo educativo mesmo para as emissoras comerciais.
Os debates sobre a teleducação têm sua gênese nos Estados Unidos, no
início dos anos de 1960, com um sistema de televisão composto
hegemonicamente por emissoras comerciais. Diversos setores norte-
americanos começam a se preocupar com o espaço educativo na TV e mesmo
com as potencialidades dessa inovação. Esses debates também chegaram aos
organismos internacionais, como a UNESCO e a OEA. Segundo Luiz
Navarro de Britto:

Desde 1960, a Conferência Geral da Unesco (Organização das


Nações Unidas para a Educação e Cultura), reconhecendo a
impossibilidade evidente de suprimir o analfabetismo das massas
com o emprego apenas dos meios tradicionais, aventou a ideia de
utilizar satélites para a educação. (BRITTO, 1981, p.5).
440 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Uma das subcomissões responsáveis pela discussão sobre teleducação


surgiu no contexto das Conferências Interamericanas de Telecomunicações
(CITEL), iniciadas em 1965. E será por meio dessas Conferências que as
autoridades brasileiras tomarão conhecimento do debate. A partir de 1969, as
discussões se internalizam e ganham o território nacional, com a organização
dos Seminários Brasileiros de Teleducação, patrocinados pela fundação
Konrad Adenauer. Esses debates foram responsáveis por uma familiarização
com o tema; durante esse período, diversas obras sobre teleducação, TV
educativa, e temas correlatos foram traduzidas para o português, o que
evidencia que a temática começava a ganhar espaço entre os estudiosos e as
autoridades nacionais.
Um pouco antes desses debates mais formais sobre a teleducação, no
início da década de 1960, algumas emissoras arriscaram apostar em programas
educativos, segundo Arnaldo Niskier:

Em 1961 tem início o curso de preparação para o ingresso no


ensino médio, promovido pela Secretaria de Educação de São
Paulo, Admissão pela TV, realizado pelos professores Osvaldo
Sangiorigi, Marília Antunes Alves, Elvira Reale e Raphael
Sansevero. [...] no Rio de Janeiro, em 1962, a TV Rio inicia a
emissão de aulas periódicas preparadas pela equipe da professora
Alfredina Paiva e Souza para a Fundação João Batista do Amaral.
(NISKIER, 1999, p.162).

Como destacamos, a TV Rio, criada em 1955 e de propriedade das


famílias Batista do Amaral e Machado Carvalho, investiu em programas
instrucionais e didáticos. Porém, tais investidas foram pontuais, não logrando
sucesso. Outra experiência organizada nos idos dos 1960 foi o Curso do Artigo
99, que ficou no ar entre 1966 e 1970. Sob os auspícios do Profº Gilson
Amado, e produzido e transmitido pela TV Continental, esse curso foi uma
das primeiras experiências na televisão brasileira que uniu pessoas
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 441

minimamente especializadas, uma televisão comercial, além de patrocínio de


anunciantes. Segundo Haddad (1993, p.266), o “curso ganhou impulso no ano
de 1967 quando a Shell passou a patrociná-lo: os professores começaram a ser
remunerados, todas as aulas foram gravadas e todas as apostilas foram
impressas”. O Curso do Artigo 99, apesar de todos os incentivos, não lograria
tanto sucesso devido às próprias limitações da TV Continental, encerrando
suas emissões no início da década de 1970. Para dimensionarmos o significado
da TV Continental, utilizamos as palavras de Octavio Penna Pieranti:

Criada em 1959, a TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, foi


arrendada pelo deputado federal Rubens Berardo, do MDB (a
partir do Regime Militar). A partir de 1966, quando a emissora já
enfrentava problemas financeiros, Heron Domingues tornou-se seu
novo arrendatário. Em 1971, afundava em dívidas, a TV
Continental faliu. (PIERANTI, 2006, p.103).

Após essas primeiras iniciativas, bem como os primeiros debates sobre


a utilização da TV para a educação, houve uma tentativa por parte do Estado
de realizar ações mais concretas. Segundo Sérgio Caparelli:

São de 1965 as normas do CONTEL para a Rádio e Televisão,


através da Portaria 312. O documento foi elaborado com o
princípio de que estes meios de comunicação são considerados de
interesse nacional, objetivando elevar o padrão cultural e educativo
dos programas de televisão, mesmo em seu aspecto informativo e
recreativo. (CAPARELLI, 1982, p.180).

Assim, o regime entende que mesmo as emissoras comerciais também


têm uma função educativa a ser cumprida. Com o passar dos anos, os
governos militares foram criando organismos capazes de dar forma a esse
princípio. Nesse sentido, é importante destacar a criação, no ano de 1967, da
Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa (FCBTVE), responsável
442 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

pela centralização da produção de programas educativos. Segundo Sergio


Haddad:

A FCBTVE foi instituída em 1967, gozando de autonomia


administrativa e financeira, com sede na cidade do Rio de Janeiro e
com a finalidade de produção, aquisição e distribuição de material
audiovisual destinado à radiodifusão educativa. Mas ao longo do
tempo suas atribuições foram se ampliando. Já em 1968, embora
não fizesse parte de suas responsabilidades, a FCBTVE iniciou
atividades de treinamento de pessoal para a televisão educativa
(HADDAD, 1991, p.279).

Tal programação serviria tanto para atender as emissoras educativas,


quanto para as emissoras comercias que deveriam cumprir a determinação
legal fixada na portaria nº 408/70 que obrigava a transmissão de cinco horas
semanais de conteúdos educativos. Segundo Arnaldo Niskier:

A portaria № 408, de 29 de julho de 1970, dos Ministérios da


Educação e Cultura – MEC e das Comunicações – MINICOM,
estipulou a utilização de tempo obrigatório e gratuito que as
emissoras comerciais de radiodifusão deveriam destinar à
transmissão de programas educacionais, prevista a duração de 5
horas semanais, distribuídas em 30 minutos diários, de 2ª a 6ª feira
e 75 minutos aos sábados e domingos e no período de 7 às 17
horas. (NISKIER, 1999, p.168).

Um pouco mais tarde, em 1972, foi criado o PRONTEL, aumentando


o espaço governamental no debate sobre a teleducação. Na verdade, com a
criação de diversas emissoras educativas, esse organismo surgia como um
agente centralizador, ao lado da FCBTVE – que organizava os conteúdos –
coordenando as atividades dessas emissoras. Essa busca por acerto na área
desembocou na tentativa de criação de um Plano Nacional de Teleducação;
segundo seus idealizadores, tal plano deveria integrar “os meios de
comunicação de massa com a educação, a partir do estabelecimento de
prioridades educacionais e culturais, através de um Sistema Nacional de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 443

Teleducação”. (SEMINÁRIOS BRASILEIROS DE TELEDUCAÇÃO, s/d,


p.3).
Haddad (1991, p.280) defende que “neste começo de década, enquanto
buscava-se fazer cumprir o horário educativo nas emissoras comerciais, o
governo federal” lançou os primeiros programas educativos. Essa ideia de
uma ação substitutiva é válida em partes, pois os programas criados por
emissoras ligadas, de algum modo, ao poder público, continuaram sendo
criados, mesmo depois da primeira metade da década de 1970, tempo que já
seria suficiente para as emissoras comerciais veicularem programas educativos.
Porém, “a amplitude de interpretações que esta terminologia oferece tirou da
lei todo o seu efeito prático” (VEJA..., 1975, p.57). Nesse sentido, surgiram os
programas Madureza Ginasial, pela TV Cultura de São Paulo, João da Silva e A
Conquista, pela FCBTVE.
O Madureza Ginasial, produzido pela Fundação Padre Anchieta,
mantenedora da Rádio e TV Cultura de São Paulo (canal 2, recém-adquirido
de Assis Chateaubriand), teve início em 1969 e era veiculado de 2ª a 6ª feira,
em dois horários – das 19h às 19h40min e das 22h às 22h40min. Além de ser
transmitido por outras 29 emissoras em todo o país e também via Rádio. A
produção dos fascículos do Madureza Ginasial ficava a cargo da Editora Abril
Cultural, “pioneira na publicação de material de apoio para a teleducação”
(AVALIAÇÃO MADUREZA GINASIAL, s/d. p. III). Haddad afirma que:

O curso de Madureza lançado pela FPA provocou a interrupção do


Curso do Artigo 99 da Universidade de Cultura Popular. Segundo
depoimento de Gilson Amado, o Curso do Artigo 99 foi
interrompido “porque surgiu a Fundação Rádio Televisão Anchieta
de São Paulo, que então lançou o seu curso de Madureza de 400
aulas, bem mais moderno, bem mais sofisticado. Com recursos e
apoio técnico”. (HADDAD, 1991, p.267).
444 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Apesar do desfecho do curso do Profº Gilson Amado, não demoraria


muito para que ele estivesse engajado em uma nova experiência para a
utilização da televisão em prol do ensino. Dessa vez, Gilson Amado
colaborou na elaboração de João da Silva, a primeira novela didática brasileira,
produzida entre 1972 e 1973 pela FCBTVE e voltada para as séries iniciais do
então denominado 1º Grau. A novela estreou na TV Rio em 1973 e foi
reprisada por outras emissoras como a Globo, Tupi e Cultura. Além das
emissões livres, a veiculação da novela também ocorria de forma organizada,
nos chamados telepostos. Tanto para aqueles que acompanhavam a novela na
sala de sua casa quanto para os que assistiam na sala dos telepostos, era
possível contar com cinco livros de apoio que versavam sobre os conteúdos
discutidos na telinha. Segundo Maciel:

João da Silva foi pioneiro por ser o primeiro Curso Supletivo de


teleducação do Brasil elaborado para ser transmitido em todo o
país e em formato de telenovela, bem como por ganhar o Prêmio
Japão – organizado pela emissora de televisão japonesa Nihon
Hôso Kyokai (NHK), que premia os melhores programas da
teleducação mundial. (MACIEL, s/d, p.3 - grifos nossos).

Maciel, ao que tudo indica, desconhece ou despreza a experiência do


Madureza Ginasial da TV Cultura, iniciada quatro anos antes, em 1969, ao
afirmar que João da Silva foi o primeiro Curso Supletivo de alcance nacional.
Como demonstramos acima, o Madureza Ginasial era retransmitido por 29
emissoras para todo o Brasil, e por sua abrangência chegou a ser o motivo de
encerramento do Curso do Artigo 99. Porém, devemos ressaltar o fato da João da
Silva ter utilizado um gênero televisivo de bastante sucesso junto à audiência
brasileira, que era a telenovela, para veicular um conteúdo instrutivo.
Na esteira das novelas didáticas surge A Conquista. Criada em 1977, ela
foi a continuação de João da Silva, porém voltada para as séries finais do curso
1º Grau, ou seja, uma possibilidade tanto para os telealunos que
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 445

acompanharam a primeira novela de aumentar seu nível de instrução, quanto


para uma audiência que já possuía as primeiras séries do 1º Grau concluir essa
etapa de estudo. A Conquista manteve toda a estrutura e a forma de recepção
do primeiro projeto.
As três experiências citadas, Madureza Ginasial, João da Silva e A
Conquista, têm em comum o fato de, além de serem iniciativas governamentais
ou de emissoras ligadas ao poder público, não terem tido grande sucesso, nem
continuidade, consequentemente não se tornando paradigma de teleducação
para a televisão brasileira.
No caso do Madureza Ginasial, ocorre uma vasta aprendizagem de
técnicas pelos profissionais da Fundação Padre Anchieta (FPA) envolvidos
com o programa. Experiência, essa, que foi fundamental para o
desenvolvimento posterior de novos produtos educativos para a TV brasileira,
um deles o Telecurso de 2º Grau, em parceria com a Fundação Roberto Marinho
(FRM).
No caso das novelas didáticas João da Silva e A Conquista, apesar de
terem sido reprisadas por grandes emissoras como Globo e Tupi, a própria
falta de uma melhor organização estrutural do projeto provocou sua
derrocada, e o que teria sido o atrativo de início, a telenovela, foi também o
fator desgastante do curso. Pois, ao fim e a cabo, as novelas tiveram uma
excelente audiência, mais propriamente pela sua trama, do que pelo conteúdo
instrucional.
Após essas experiências, uma novidade surge na televisão brasileira. No
ano de 1978, é criado o Telecurso 2º Grau, uma iniciativa da FRM e da FPA,
visando atender a população que não tinha completado o 2º Grau, atual
Ensino Médio. O projeto promovia a produção e a veiculação de teleaulas,
transmitidas pela TV Globo, TV Cultura e por outras emissoras educativas
espalhadas pelo país, além delas serem retransmitidas em versões radiofônicas,
446 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

utilizando a estrutura do Projeto Minerva do então Ministério da Educação e


Cultura. Os interessados em acompanhar as aulas, que eram transmitidas em
sinais livres, poderiam também adquirir o material impresso, com tiragem
semanal e vendido em bancas de jornal a preço acessível. Esse projeto trouxe
algo que foi tentado pela TV Continental, a experiência de uma rede comercial
de televisão a serviço da educação, com a diferença que, dessa vez, quem
encabeçava o projeto era a hegemônica Rede Globo, de Roberto Marinho,
quadro que alteraria de algum modo o status da educação na TV. Mas isso já é
uma outra história.

Conclusão

Podemos concluir que as experiências de teleducação no Brasil, ao


longo da década de 1970, apesar das ações do governo militar, como as
novelas didáticas e a criação de organismos especializados no assunto, não
obtiveram o sucesso esperado. Ou seja, em momento algum o Estado
conseguiu colocar toda a sua estrutura a favor de um programa nacional de
Teleducação. Todas as vezes que se tentou isso, as ações foram
desencontradas dos setores interessados. Essas primeiras ações, que foram
empreendidas em sua grande parte por iniciativa do setor público, foram
restritas e localizadas. Por sua vez, os empresários de comunicação social, que
tinham uma obrigação legal a cumprir, determinada pela Portaria nº 408, não
viram, a priori, na programação educativa um elemento interessante para a
veiculação em suas redes, dando preferência a uma programação voltada ao
entretenimento.
Em suma, podemos concluir que os projetos, ações e experiências
analisadas durante o texto, se configuram como pontuais, de atuação
circunscrita, e que acabaram, em um dado momento pela falta de coesão, seja
com o público, que não correspondeu conforme o esperado, ou com a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 447

própria televisão. A única exceção foi o Telecurso, que logo após o seu
surgimento, em 1978, prosseguiu e se tornou o paradigma de teleducação no
Brasil, o que é exemplificado nos seus mais de 30 anos de existência,
demonstrando a perspicácia de seu idealizador Roberto Marinho em situação
de relação e concorrência com os outros agentes do campo televisivo.

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Nova, São Paulo, n. 68, p.91-121, 2006.
REVISTA VEJA. Edição 338, 26 de fevereiro de 1975.
SEMINÁRIOS BRASILEIROS DE TELEDUCAÇÃO. Rio de Janeiro, s/d.
Possíveis relações entre agências de propaganda e
a ditadura militar brasileira

David A. Castro NETTO*

Introdução

E
xistem muitas maneiras de se contar a história do regime militar
brasileiro, e o acesso a novas fontes transforma a produção
acadêmica do período, marcada, por muito tempo, pelo
memorialismo e pela escassez de fontes primárias (FICO, 2009).
Atualmente, a pesquisa histórica direcionada para o período ampliou e
diversificou para as mais variadas vertentes, tais como, a análise por meio da
crônica política, a repressão, os movimentos ligados à igreja católica, a
sistematização da tortura, os ciclos econômicos, a sucessão dos generais
militares e os meandros da aliança civil-militar.
Existe, ainda, o caso deste trabalho, que pretende examinar a ditadura
militar brasileira voltando os métodos de análise para a propaganda
“comercial”, na televisão, durante os anos de 1969-1977.
Todas as vertentes de pesquisa vêm “[...] transformando aos poucos o
padrão da literatura existente” (FICO, 2009, p.169), seja por meio de novas
análises sobre fontes “antigas” seja por meio da análise de “novas” fontes para
a pesquisa.

*
Mestrado em História /UEM/Bolsista: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Reginaldo
Benedito Dias.
450 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Cabe ainda uma ressalva, como assinala Fico (2009), o interesse pelo
período não é novo, ao contrário, começou desde o momento do golpe com a
tentativa de responder o porquê, tanto o presidente quanto a esquerda que se
dizia articulada, não resistiram ao golpe e o país mergulhou em uma ditadura
por muitos anos.
Carlos Heitor Cony e Marcio Moreira Alves foram os primeiros a
apontar os “excessos” do regime. O primeiro reuniu suas crônicas em um
livro chamado O ato e o fato, em sua noite de autógrafos, junho de 1964, o
lançamento se transformou em uma verdadeira manifestação política,
tamanho o sucesso de público e vendas. O segundo, ao fazer uma excursão
pelo Nordeste, reuniu matérias sobre os casos de tortura, o que obrigou
Ernesto Geisel (futuro Presidente), então chefe da Casa Militar, a apurar as
denúncias sobre as torturas, no retorno:

Geisel voltou tergiversando sobre as denúncias, no que seria apenas


o primeiro caso de não-condenação de torturadores por parte dos
oficiais-generais, conivência que muito se repetiria até o fim do
regime. (FICO, 2009, p. 170).

Os trabalhos dos dois jornalistas precederam uma série de trabalhos,


acadêmicos ou não, que tinham como norte a análise da institucionalização da
tortura durante o regime militar brasileiro. Trabalhos de memorialistas
levantariam os meandros desse processo e nomes como “cadeira do dragão”,
“geladeira” e “maquineta” formariam um “verdadeiro glossário de vilezas”
(FICO, 2009, p.170). Esse memorialismo não ficaria centrado apenas nas
vítimas, alguns torturadores se manifestariam pouco tempo após a queda do
regime e, recentemente, o documentário Perdão Mr. Fiel, dirigido por Jorge
Oliveira e lançado em 2009, no festival de cinema de Brasília, conta com
entrevistas concedidas por um ex-agente do DOI-CODI/SP.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 451

Ao silêncio, ou parcimônia (FICO, 2009) dos militares no tocante a este


tema, se sobrepôs a memória da esquerda armada, pelo menos, durante algum
tempo.
Porém os militares, ao perceberem que “[...] a luta pela constituição da
memória é um espaço de luta como outro qualquer [...]” (FICO, 2009, p.170),
vieram ao conhecimento público algumas memórias de generais militares.
A pouca visibilidade da memória militar não se deve ao pouco interesse
editorial ou de divulgação, ao contrário, nesse propósito cita-se o belo
trabalho realizado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC – da Fundação Getúlio Vargas, que
recolheu todas as publicações que viraram sucesso instantâneo (ver
D’ARAUJO, SOARES e CASTRO, 1994a, 1994b e 1995).
Desta maneira, a história da ditadura militar

[...] também pode ser contada como sendo a história da luta pela
constituição da memória correta, na qual versões algo romantizadas
dos remanescentes da assim chamada “luta armada” [...] se
confrontam com o verdadeiro “acordo implícito” sobre certos
temas (tortura principalmente) que se verifica nos depoimentos
militares. (FICO, 2009, p. 171).

A tortura se tornaria o grande “personagem” da pesquisa


historiográfica do período durante algum tempo, como citado.
Outra vertente importante da pesquisa histórica relacionada ao período
ganharia corpo com a crônica política, produzida no “calor da hora”, que
tentava fornecer os argumentos que explicassem o processo histórico,
tomando por base as decisões, opiniões e atitudes daqueles que comandavam
o país.
Esta vertente, muitas vezes ligada à história política, em seu
posicionamento mais “tradicional”, forneceu o material para uma linha de
pesquisa que via a atuação de alguns personagens e a eleição de alguns
452 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“marcos históricos” como importantes para o desdobramento do processo


histórico como um todo.
Talvez o grande exemplo do tipo de material produzido seja as crônicas
produzidas na “Coluna do Castello”, publicada entre 1962 e 1993, no Jornal do
Brasil, e reunidas em livros (ver BRANCO, 1977, 1978, 1979). Tais crônicas
aguçariam os pesquisadores para descobrir as tramas e os jogos de bastidores
durante o governo militar.
O cuidado na construção de tal tipo de pesquisa deve ser redobrado,
uma vez que esse tipo de abordagem pode dar margem à construção de alguns
“mitos” políticos (como a suposta “legalidade” e “moderação” do general
Castello Branco frente à chamada “linha dura”) quando na realidade as coisas
não aconteceram dessa maneira.
Como assevera Fico:

Essas narrativas destacam aquilo que faz o gosto da história política


tradicional, como a suposta predestinação dos sujeitos-heróis; a
teatralidade das magnas decisões, vistas como espetáculos e, no
caso do regime militar, com direito aos efeitos especiais das
movimentações de tropas e dos rumores na Vila Militar; as
maquinações de decisões ardilosas, que conseguem sobrepujar
inimigos com ações de inteligência, enfim, narrativas que vêem um
sentido na história e, em graus variados, romantizam o que
eventualmente foi acaso ou contingente. (FICO, 2009, p, 172)

Essas duas grandes vertentes da pesquisa histórica relacionada ao


regime militar (a tortura e o viés da crônica política) sempre podem trazer
esclarecimentos, porém, é necessário dizer que dificilmente serão encontradas
“maiores revelações no campo da memorialística de esquerda ou da crônica
política” (FICO, 2009, p.173).
O desafio para as pesquisas no período residem, especialmente, na
busca de novas fontes, sejam elas oriundas do governo e de caráter sigiloso
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 453

(FICO, 2009) sejam, como no caso deste trabalho, decorrentes de outros


ambientes ainda pouco explorados, como a propaganda.
A busca de novas fontes e novas interpretações aliada à bagagem já
produzida pela historiografia promove uma:
[...] mudança de perfil da pesquisa e da produção histórica
sobre a ditadura militar que nos permite fazer abordagens
com maior rigor factual e que, ao mesmo tempo, proponham
leituras, interpretações ou hipóteses explicativas. (FICO,
2009, p, 174).

Com esta linha de pensamento à frente, o objetivo do presente trabalho


é mostrar que também se pode fazer uma “história da ditadura militar” por
meio das propagandas comercias1 de televisão.
Como todo trabalho acadêmico, estabeleceu-se os limites cronológicos
para a realização deste estudo, assim, esta análise compreenderá os anos de
1968/9 até 1977, ou seja, são os anos marcados pelo “milagre econômico” e
pela crise internacional do petróleo, que tiveram início em 1974.
Ao utilizar as propagandas para compreender o período buscar-se-á
entender as formas pelas quais as propagandas e/ou agências de publicidade
se manifestaram em favor do regime instalado, em alguns momentos mais
nítido e, em outros, mais subliminar.
Para a realização de tais objetivos, este texto abordará a temática da
seguinte maneira: primeiramente, será apresentada uma breve contextualização
do período a ser estudado; em segundo lugar, uma análise sobre a propaganda
brasileira no período escolhido e, por fim, propõe-se mostrar as aproximações
entre o regime militar e as agências de propaganda.

1
Adotou-se o adjetivo “comercial” para deixar claro a diferença entre as propagandas
oficiais que veicularam no período.
454 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O milagre brasileiro e a crise de 1974

Os anos de 1968 a 1973 foram os anos do chamado “milagre


brasileiro”, o crescimento do PIB teve uma média de 11% ao ano. Para
mostrar a grande variação deste crescimento, segue a Tabela 1, contemplando
os anos de 1964-1980:

Tabela 1 - CRESCIMENTO DO PRODUTO INTERNO BRUTO EM


PORCENTAGEM: 1964-1980
Ano Variação do PIB (%)
1964 2,9
1965 2,7
1966 3,8
1967 4,8
1968 11,2
1969 10,0
1970 8,8
1971 13,3
1972 11,7
1973 14,0
1974 9,8
1975 5,6
1976 9,0
1977 4,7
1978 6,0
1979 6,4
1980 8,5
Fonte: Maria Helena Moreira Alves. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Bauru, EDUSC,
2005. p. 176.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 455

Os números apresentados pela Tabela 1 permitem localizar três


momentos distintos.
O primeiro, ligado aos anos de 1964-1967, mostra uma pequena
variação do PIB até mesmo com um decréscimo do PIB no ano de 1965. É
resultado das primeiras ações do governo.
O plano de ação adotado (Plano Ação Econômica do Governo),
mesmo prevendo tal retração econômica, teve sucesso nos anos posteriores.
As medidas implantadas pelo governo Castelo Branco, ao mesmo tempo em
que sanavam as necessidades econômicas, se tornavam muito impopulares.
Entretanto, as medidas foram implantadas com o “suporte” político
conseguido pelos atos institucionais (sobretudo AI-1 e AI-2). além da retirada
forçada da maior parte da oposição, mediante a operação limpeza e os IPM’S.
O governo de Castelo teve essa marca, um profundo descontentamento
popular, a ponto de alguns analistas, como Thomas Skidmore (1994),
sugerirem que nenhum governo eleito politicamente poderia sustentar-se se
resolvesse implantá-las.
O plano de estabilização trouxe poucos resultados no curto prazo, o
crescimento do PIB nos anos 1966-1967, foi leve em comparação aos anos
posteriores, isso é fruto da nova regulamentação que foi estipulada pelos
primeiros ministros Campos e Bulhões.
Um segundo momento, com base nos dados de 1968-1973, mostra o
auge do ciclo de crescimento do período militar. Esse é momento em que se
verifica uma guinada na política econômica brasileira.
Nesse momento, o governo passa a colher os frutos, tanto econômicos
como políticos, do sucesso de seu diagnóstico para que o país voltasse a
crescer. Os anos de 1968-1973 são marcados por um otimismo nacional e
456 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

grandes perspectivas para o Brasil. O Estado agora passa a ter um novo tipo
de legitimidade, baseada na eficiência do modelo econômico.
O terceiro momento, que começa nos anos de 1975 e se estende até
1980, é o período de desaceleração do crescimento e o início de uma crise,
interna e externa. Mesmo com uma recuperação em 1976, o modelo
econômico não conseguiu se sustentar e nem produzir muitos frutos.
Os anos do milagre brasileiro são marcados por dois momentos
diferentes, ou seja, ao mesmo tempo em que o Brasil vivia o auge do seu
otimismo, do sentimento de que faltaria pouco para o país entrar no seleto
grupo de nações do dito “primeiro mundo”, havia movimentos de
contestação do regime vindos de diversos setores da sociedade, como
estudantes, alguns sindicatos e a guerrilha.
O auge da expansão econômica no período militar pode ser estudado
sobre vários prismas, no presente estudo tentar-se-á entender como ele foi
visto pelas classes médias e como estas se aproveitaram dos seus benefícios.
É evidente que não se pode traçar um panorama de como todas as
pessoas desse extrato social sentiram as consequências do milagre, porém
pretende-se mostrar como ele afetou o mercado interno, favorecendo o
desenvolvimento mais rápido de agências de publicidade e do avanço da
propaganda.
Sendo assim, discorrer-se-á sobre as medidas empreitadas pelo “novo
ministro” Delfim Neto e as consequências, dentro do mercado interno
brasileiro, com a propagação e popularização de produtos, muitos ainda tidos
como artigos de luxo.
As principais medidas empreendidas por Delfim foram: O aumento do
crédito privado, ou seja, um estímulo à demanda pelo afrouxamento do
crédito (ao contrário da política até então praticada), utilização da capacidade
ociosa da indústria, o controle dos preços (exercido por meio de um decreto
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 457

de 1967, em 1968, a criação do CIP, Conselho Interministerial de Preços) e


ainda um maior vigor no controle de salários.
Com tais medidas, era estabelecida a meta do governo Costa e Silva e
Médici: “Um rápido desenvolvimento sem aumento da inflação”
(SKIDMORE, 1994, p, 144).
Um ponto importante para o sucesso dessa política era a presença do
investidor estrangeiro na economia brasileira, sobretudo nos setores de bens
de consumo duráveis.
Para atingir tal objetivo, o governo prepara uma série de incentivos para
a entrada do capital estrangeiro no país, como apresenta Alves:

O investimento estrangeiro era considerado de fundamental


importância para os objetivos de desenvolvimento do país, pois
esperava-se que a maior eficiência atribuída às empresas
multinacionais promovesse um crescimento rápido. [...] um amplo
sistema de incentivos fiscais foi estabelecido por decreto lei.
Deduções e mesmo isenções de impostos passaram a beneficiar o
investimento em áreas consideradas pelo governo de crucial
importância para o plano global de desenvolvimento. (ALVES,
2005, p, 177).

As áreas consideradas importantes para o governo eram, sobretudo, das


indústrias de bens duráveis, era ali que o investidor estrangeiro deveria
canalizar seus investimentos.
O raciocínio da equipe econômica não estava totalmente equivocado,
segundo Belluzzo e Tavares (1998), as indústrias desse tipo é que são as
responsáveis pela dinamização da economia do país, porém, não podem
sozinhas sustentar o crescimento econômico, que deve ser amparado por
outros tipos de indústrias, como a de bens de capital e de transformação.
Assim, a estratégia do governo firma-se em aumentar o
desenvolvimento dessas indústrias aproveitando um mercado interno,
pequeno, porém com um poder aquisitivo alto – a classe média – como
458 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

maneira de escoar todos esses produtos, criando uma falsa impressão de


desenvolvimento equitativo.
A “pequena” classe média tem uma participação muito grande nesse
momento, com o acesso a uma gama vasta de produtos. A euforia toma conta
desse estrato social que não via problemas em conviver com uma ditadura,
com o AI-5, com a repressão e a censura, se o seu padrão de vida não fosse
alterado.
Evidentemente, os ganhos desse período não foram sentidos de
maneira igual pela população em geral, não só a concentração de renda
aumentou, como os salários também sofreram uma perda real.
Outro fator importante a ser destacado é a presença destes princípios
na Doutrina de Segurança Nacional, assinalamos dois pontos importantes
nesse quesito:
1º - “Desenvolvimento com segurança” – Desta maneira o país
precisava livrar-se de toda a ameaça comunista e aproximar-se dos países de
economia de mercado. Os poderes excepcionais dos militares eram tidos
como necessários para que fosse “construída” a paz social que era necessária
para a chegada do investimento externo.
2º - O desenvolvimento econômico não era para todos. – As diretrizes
dessa doutrina preconizavam um desenvolvimento do Brasil como potência
mundial, porém isso não queria dizer que todo o progresso seria direcionado
para as necessidades básicas da população e os esforços para a construção do
“Brasil potência” não deveriam ser poupados, mesmo que isso custasse o
sacrifício de gerações posteriores.
Com estes preceitos é possível perceber que o desenvolvimento parcial,
ou seja, que beneficiou uma pequena parte da população em detrimento de
uma maioria, já estava previsto dentro do corpo teórico, que seguiam os
militares.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 459

Nesse momento de euforia, o governo (Executivo) começa a construir


em torno de si toda a responsabilidade pela situação que o Brasil vivia nos
anos de 1968-1973, foram anos de otimismo, euforia e patriotismo.
Diniz (1994) afirma que, nesse momento, o Estado se legitima por
meio de sua eficiência econômica, valorizando-se pela ideologia do Brasil
Grande e a afirmação da potência em que estava se tornando.
Em outras palavras:

Juntamente com a nova disponibilidade de bens de consumo, ao


alcance das classes médias através de um ampliado sistema de
crédito ao consumo, isso deu um novo tipo de legitimidade ao
Estado de Segurança Nacional: uma legitimidade baseada em
crescimento econômico contínuo e acelerado. (ALVES, 2005, p.
182).

Essa legitimidade não foi construída apenas com as perseguições e


torturas, com os IPM´s e operação limpeza, foi uma construção que teve
sustentação nas classes médias. E o apoio desse estrato social foi muito
importante para a sustentação do regime durante toda a sua duração.
Alguns episódios marcam essa proximidade amigável entre a classe
média e os militares, como a comemoração do Sesquicentenário da
Independência, cujas comemorações foram grandes e gerais, contando com
apoio das mais diversas instituições de classe, como ABI, OAB, Rotary’s Club,
Lions Club. As comemorações do tricampeonato de futebol, em 1970,
também foram marcantes.
O enfoque do presente estudo é justamente esse “outro lado” da
história desse período, ou seja, aquele não permeado por lutas pela revolução,
empreitadas por partidos da extrema esquerda.
Portanto, entre os vários aspectos que são permitidos para estudo,
optou-se por mostrar como o auge desse ciclo econômico – que esparramou
não apenas uma nova onda de produtos, mas também uma onda de otimismo,
460 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de patriotismo e de orgulho de ser brasileiro – foi refletido nas propagandas


de televisão.
Nesse período, a economia brasileira mostra resultados de países
desenvolvidos e um fôlego digno de respeito:

Num período relativamente curto de cinqüenta anos, de 1930 até o


início dos anos 80, e, mais aceleradamente, nos trinta anos que vão
de 1950 até final da década de 70 tínhamos sido capazes de
construir uma economia moderna, incorporando os padrões de
produção e de consumo próprios aos países desenvolvidos.
Fabricávamos quase tudo. (NOVAIS; MELLO, 1998, p, 562).

Tratar-se-á de entender como o governo militar utilizou o momento de


grande euforia nacional (1969-1974) para ganhar apoio político e social e, no
momento posterior (1974-1979), com uma conjuntura desfavorável, como ele
conseguiu manter o apoio do grupo de poder que o cercava para dar início ao
processo de distensão.
É necessário deixar claro tais momentos, uma vez que as fontes a que
se teve acesso mostram essas diferenças de conjuntura, ou seja, o período do
auge da modernização, durante os anos do “milagre”, quando as propagandas
eram “pedagógicas” e, em grande medida, eufóricas e o segundo momento, de
1974-1979, quando elas se mostram mais alinhadas com o projeto de
distensão segura que o governo Geisel começa a executar.
A primeira questão que devemos apontar é a construção da Doutrina de
Segurança Nacional e, como um subitem desta, a Estratégia Psicossocial.
A Doutrina de Segurança Nacional foi um corpo teórico, criado dentro da
Escola Superior de Guerra (ESG), com a função de ser um “guia” para os
militares dos caminhos que deveriam seguir para fazer do Brasil uma potência
mundial.
A edificação de tal doutrina começou a dar sinais de existência na
América Latina em meados do século XIX e teve como ponto de apoio os
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 461

movimentos sociais ligados à direita e à extrema direita, como a Opus Dei.


(ALVES, 2005)
A chegada da Guerra Fria muda o contexto e os ideais na construção
dessa doutrina e suas perspectivas, para os latinos americanos, eram a da
guerra nuclear total (entre as duas principais potências EUA e a extinta
URSS).
Dois conceitos foram sendo aglutinados para a base da vertente
brasileira: o primeiro foi o Desenvolvimento Econômico; e o segundo a
Segurança Interna e Externa.
O desenvolvimento, como já citado, era um desenvolvimento
econômico de viés excludente e não um direcionado para a necessidade da
maioria da população, voltado ainda para a penetração do capital externo no
país como forma de atingir um desenvolvimento rápido.
Organizações civis e militares foram importantes para disseminar as
ideias da doutrina e criar uma rede de informações, tais como: a ECEME
(Escola de Comando do Estado Maior do Exército), pessoas ligadas à
ADESG (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra),
organizações como IPES e IBAD (que teorizavam sobre um novo modelo de
Estado e faziam a propaganda do mesmo) e a CONCLAP (Conselho Superior
das Classes Produtoras).
A esse respeito, Maria Helena Moreira Alves esclarece:

A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento foi


formulada pela ESG, em colaboração com o IPES e o IBAD, num
período de 25 anos. Trata-se de abrangente corpo teórico
constituído de elementos ideológicos e diretrizes para a infiltração,
coleta de informações e planejamento político-econômico de
programas governamentais. Permite o estabelecimento e avaliação
dos componentes estruturais do Estado e fornece elementos para o
desenvolvimento de metas e o planejamento administrativo
periódicos. (ALVES, 2005, p.42)
462 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Como a autora explica, este “abrangente corpo teórico” atua em


grandes pontos-chave para o governo, mediante estratégias que ditam as
diretrizes a serem seguidas, tais como: Estratégia Política, Estratégia
Econômica, Estratégia Psicossocial e a Estratégia Militar.
Neste tópico, o foco será mostrar como a estratégia Psicossocial foi
construída, a fim de alinhar os preceitos que o grupo de poder queria instalar
no país e sua diluição pela sociedade.
A estratégia Psicossocial torna-se importante, já que foi por meio de
sua utilização que os militares tentaram inculcar na sociedade brasileira os
valores que eles acreditavam que eram os mais corretos, estes mesmos valores
que justificaram o golpe, a saber: união familiar, disciplina, combate ao
comunismo, coesão nacional e um ufanismo exacerbado e a transformação do
Brasil em grande potência.
Outro fator importante desta estratégia é mostrar o outro lado do
processo de legitimação em curso naquele momento. Muito embora o uso
excessivo da força – primeiro com os dois atos institucionais, depois com a
“Operação Limpeza”, instituindo o uso da tortura transformada em política
de Estado, a censura, a repressão aos movimentos sociais e o fechamento dos
canais de contestação – tivesse atuado como base de sustentação, esse recurso
não foi o único.
Para além do uso indiscriminado da força, a ditadura logrou de um
aparato ideológico que passaria pelo filtro dos preceitos de tal estratégia a fim
de exercer uma dominação mais subliminar.
Assim, a estratégia psicossocial, firmou-se dentro das instituições
apoiadas pelo Estado, como a escola (nas aulas de Educação Moral e Cívica) e
pelos meios de comunicação escrito, jornais e revistas e a grande novidade, a
televisão.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 463

Considera-se importante destacar que, ao contrário das outras


estratégias estabelecidas (A Política, a Econômica e a Militar), que sofreram
alterações por meio das constantes mudanças de conjuntura, os percalços dos
anos de crise econômica, das disputas políticas entre o governo e oposição e
dentro da própria instituição militar, a estratégia Psicossocial sofreu poucas
alterações durante os anos do regime militar.
Durante os anos de estabilização, governo do general Castelo Branco,
essa estratégia permeou os valores “sagrados” como maneira de salvar toda a
sociedade brasileira; durante os anos de auge econômico, governos dos
generais Costa e Silva e Médici, a confirmação de que não apenas a
modernização vinha da economia, mas também o controle moral e a
modificação das instituições começavam a dar resultados positivos; e, por fim,
com o período de abertura, de Geisel a Figueiredo, a moral estabelecida pelos
militares deveria ser mantida para que a nação não expandisse uma crise
econômica e política (ambas iniciadas em 1974) para um colapso social, a
estratégia Psicossocial, nesse momento, atuaria como o fator de união.
De tal modo, naquele momento, o “milagre econômico” era evocado
como o início do surgimento do Brasil potência e da ascensão ao primeiro
mundo, desenvolvido, educado e, sobretudo, moderno.
A convivência do AI-5 com o “milagre econômico”, na ótica dos
militares, deveria ser uma convivência pacífica, uma vez que um justificava o
outro. O AI-5 era a expressão máxima da “Democracia com
responsabilidade” e o “milagre” era o resultado desse exercício responsável da
democracia.
Desta maneira, era necessário que toda a população aceitasse as regras
que o regime impunha como recurso para continuar no caminho do
desenvolvimento com sucesso e sem desvios de rota.
464 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Destarte, a busca de uma coesão nacional e da criação de um consenso


acerca do tipo de democracia instalada era parte necessária para a continuação
do plano econômico/político posto em jogo.
Tal consenso, materializado numa atitude coletiva e de uma opinião
pública favorável da população era buscado nas escolas, nas próprias forças
armadas e nos meios de comunicação de massa, dessa maneira “[...] as
instituições da sociedade civil deveriam ser estáveis (nos moldes da ditadura)
para apoiar o controle do executivo sobre as instituições políticas como o
Congresso [...]” (REZENDE, 2001, p.117).
Os anos de 1970 são marcados por um extremo otimismo nacional, que
contribuiu muito para a maior aceitação do regime nos moldes que estava
instalado. Não apenas as classes altas, beneficiárias diretas do regime, mas
também a sociedade em geral2.
Esse período merece destaque neste estudo, os anos de 1970 até 1974
são os anos da confirmação do país como potência mundial, naquele
momento parecia ter chegada a hora da concretização do surgimento de uma
nação organizada e de primeiro mundo.
Esse otimismo que pairava no ar não deve ser visto apenas como
instrumento de dominação ideológica, uma vez que era pautado em uma
realidade sólida e em uma longa duração (FICO, 1996), que levou amplos
setores sociais a apoiarem o regime.
Boa parte da década de 70 foi um período de comemorações
(CORDEIRO, 2009), parecia que nada poderia tirar o Brasil de seu rumo

2
Evidentemente quando se discorre sobre o apoio social que a ditadura angariou com o
surto econômico, não se pode englobar a sociedade como um todo. Existe uma bibliografia
vasta que abarca os movimentos sociais, os partidos de esquerda e as guerrilhas que fizeram
uma ampla oposição ao regime, porém, este heroico combate ao regime não é o foco do
presente estudo, o qual está voltado para o apoio social que a ditadura recebeu, que se não
foi total, foi significativo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 465

promissor: em 1970 a Copa do Mundo; em 1971 os 75 anos do cinema


nacional; em 1972 os grandes festejos do Sesquicentenário da Independência.
Foram, sem dúvida, os “anos de ouro” do governo militar. Coaduna-se
com a opinião de Cordeiro (2009), de que não era possível para a sociedade
ficar ausente a esta euforia nacional:

A sociedade não ficava alheia a esse clima “alucinante” de festejos,


celebrações, desenvolvimento econômico e progresso. Sob este
aspecto, o Sesquicentenário da Independência pode ser
considerado uma ocasião importante para se observar a adesão e o
consentimento social com relação ao regime. É um momento no
qual podemos analisar as formas pelas quais os mais diversos
segmentos da sociedade reivindicaram sua participação num
evento, que ao fim, servia como forma de legitimação do governo.
(CORDEIRO, 2009, p.87-88)

Por todo aquele período, diversos setores da sociedade civil, por todo o
país, fizeram parte dos festejos de comemoração:

Assim, encontramos manifestações de adesão de grupos como os


Lions Clubes, Confederação Brasileira de Basketball, Academia
Fluminense de Letras, entidades femininas como a União Cívica
Feminina (UFC) e o Movimento de Arregimentação Feminina
(MAF), ambos de São Paulo, o Sindicato dos Jornalistas da
Guanabara e outros órgãos de representação dos profissionais da
imprensa, como a União dos Profissionais da Imprensa e a própria
Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que integrava a Comissão
Executiva Nacional do Sesquicentenário da Independência.
(CORDEIRO, 2009, p.88).

É importante destacar que, naquele momento “especial”, existe um


encontro de coisas positivas que levam diversos setores sociais, como foi
mostrado, a manifestarem sua aliança com os militares.
Concorda-se com Fico (1996) e Cordeiro (2009), quando mostram que
para buscar explicações para questões nesse período, é necessário enxergar
além de reducionismos do tipo manipulação pela propaganda, repressores
466 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

versus reprimidos e tantos outros binarismos que reduzem a explicação do


período. Como ratifica Cordeiro:

E aqui é importante destacar: se de fato o Milagre beneficiou


economicamente, sobretudo os setores médios e os mais abastados,
a fé no progresso e a crença no futuro do país não conhecia
fronteiras de classes e foi partilhada por segmentos sociais os mais
diversos. Como, por exemplo, aquelas 500 mil pessoas que vieram
do Nordeste e do Sul do país, principalmente (Manchete, abril de
1972), e se dispuseram a desbravar as fronteiras e a colaborar para a
integração nacional, ajudando a construir a Transamazônica e o
Brasil moderno, vislumbrando ali novas perspectivas de vida; ou
ainda os que se entusiasmavam com a nação alegre, jovem e
confiante [...] (CORDEIRO, 2009, p.96).

Como mostra a autora, esse sentimento não tem “consciência de


classe” e nem é medido pelos ganhos econômicos, perpassa por tudo isso,
atingindo setores que não seriam beneficiados diretamente, mas poderiam
almejar o futuro próximo.
Os anos do governo Médici também foram os anos mais agudos da
repressão e tortura do regime, são dois momentos que ocorrem,
paralelamente, e que devem ser vistos de maneiras diferentes.
É importante enfatizar que os “anos dourados”, em contraste com os
“anos de chumbo”, devem ser entendidos de acordo com a perspectiva que o
observador toma para seu trabalho; de outra forma, é necessário entender
como determinados setores viram o período e entender como se
comportaram frente ao que viveram.
A partir de 1974, uma nova conjuntura se instala na sociedade
brasileira. O início do processo de crise, marcado pelo esgotamento do
modelo econômico, problemas no campo político, o início do processo de
distensão e ainda pressões vindas de movimentos organizados pela sociedade
civil.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 467

É importante destacar que, mesmo com as grandes mudanças sociais, a


construção da legitimidade e a busca de adesões ao governo, pós 1974,
embora com suas particularidades, mostra certo continuísmo dos preceitos
defendidos em 1964.
A aplicação da estratégia Psicossocial mostra-se pouco alterada, com
um pequeno deslocamento para a construção de legitimidade baseada na
democracia que os militares estavam construindo (e não mais na busca da
mesma, como era corrente no discurso militar) e na adesão de grupos para a
solidificação dos valores propagados pelos condutores do regime.
Seria reducionismo afirmar que o início de um processo de recessão e
em seguida uma crise econômica seria suficiente para desestabilizar os apoios
que o regime militar dispunha naquele momento.
A crise, que segundo alguns analistas como Belluzzo e Tavares (1997),
teria começado mesmo com a ausência da crise estrangeira, provocada por
conta do aumento do petróleo, ou seja, o processo de industrialização
acelerado e com base no investimento estrangeiro já dava sinais de desgaste e
entraria em colapso por não ser um modelo sustentável de crescimento.
Tratar-se-á, agora, de inserir a propaganda brasileira e suas evoluções
nesse contexto. Em seguida, verificar-se-á a aproximação das agências e das
propagandas produzidas com o regime militar.

A propaganda brasileira

A evolução da propaganda brasileira pode ser datada desde a década de


1930. Porém, para localizar melhor o presente estudo, far-se-á uma análise da
evolução da propaganda a partir da instalação da televisão brasileira, na década
de 1950.
O contexto dos anos 50, quando o Brasil passa por um processo de
modernização e de ampliação, ainda que restrita, do seu mercado consumidor,
468 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

é o período em que se inicia a expansão do mercado da propaganda.


Otimismo, crescimento e modernidade essas são as palavras de ordem.
Nelson Varón Cadena ratifica essa situação do país:

O lançamento de uma revista em quadrinhos e a inauguração de


uma estação de TV sinalizam mudanças profundas na
comunicação. Surgem quase simultaneamente a Editora Abril e a
TV Tupi Difusora e, em seguida, a revista Manchete. Jornais
renovam o seu parque gráfico em todo o país, e o rádio luta para
manter a sua hegemonia.
A indústria automobilística se expande, através de políticas oficiais
e torna-se, ao final da década, o maior segmento anunciante. O 4º
Centenário de São Paulo e os 50 anos do vôo histórico de Santos
Dumont motivam campanhas publicitárias de grande repercussão.
O setor que desde os anos 40 conta com Publicidade & Negócios –
PN ganha uma nova revista especializada: Propaganda. Surge a
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e o 1º
Congresso de Propaganda reúne mais de 400 profissionais
estabelecendo as bases que regem até o final do século 20 a
atividade e a profissão. (CADENA, 2001, p.122.).

Além da televisão, toda essa euforia desenvolvimentista que varria o


país, injetou mais fôlego nas agências de publicidade que superam o nível de
investimentos esperados para a década. Se em 1950 elas somavam 101, no
início dos anos 60 já são 180.
O investimento publicitário, segundo dados de Cadena (2001, p.124),
em 1955, já ultrapassava os 5,8 bilhões de cruzeiros, o triplo do apurado no
início da década. Na virada dos anos 50 para os 60, o Brasil já é oficialmente o
7º mercado no ranking mundial, com investimentos de 20,5 bilhões de
cruzeiros.
A transição dos anos 50 para os 60, além do aspecto modernizante,
modificou o panorama da propaganda nacional com o direcionamento dos
maiores investimentos para um novo setor que estava em expansão: o
automóvel.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 469

O Presidente Juscelino Kubitschek inaugura a fábrica da Mercedes-


Benz (1956); a Ford lança utilitários; é inaugurada a filial da Scania; e ocorre o
início da fabricação dos primeiros ônibus elétricos, em 1957. No mesmo ano,
a Kombi é lançada pela Volkswagen. Já em 1959, chega ao mercado o modelo
Sedan, também da Volkswagen, e a produção em série do Rural Willys (carro
nacional).
Os dados da Tabela 2, abaixo, indicam os maiores anunciantes em 1959
e 1960 e confirmam a tendência que se consolidaria nos próximos anos: o fim
da era dos remédios e cosméticos como principais anunciantes.

Tabela 2 - OS MAIORES ANUNCIANTES BRASILEIROS (ANOS 1959-


1960)
Empresa Investimento em Cr$
Lever 160 milhões
Nestlé 160 milhões
Gessy 150 milhões
Sydney Ross 100 milhões
General Eletric 90 milhões
General Motors 90 milhões
Real Aerovias 90 milhões
Ford 80 milhões
Willys-Overland 80 milhões
Esso 80 milhões
Gillette 80 milhões
Firestone 80 milhões
Goodyear 80 milhões
Coca-Cola 80 milhões
Arno 70 milhões
470 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Johnson & Johnson 70 milhões


Walita 65 milhões
Brahma 60 milhões
Kolynos 60 milhões
Shell 60 milhões
Fonte: CADENA, Nélson Varón. Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições
Referência, 2001, p,. 125.

Dos anunciantes listados, oito estão ligados ao automóvel (General


Eletric, General Motors, Ford, Willys-Overland, Esso, Firestone, Goodyear e
Shell). A indústria de automóvel assume a liderança do investimento no setor
com 672 milhões de cruzeiros investidos, contra 570 milhões da indústria de
higiene pessoal, 340 milhões da indústria de alimentos, e eletrônicos e
eletrodomésticos com 275 milhões (CADENA, 2001, p.125).
A expansão da indústria automobilística trouxe consigo as indústrias
periféricas que giram em sua órbita, como a indústria de autopeças e
acessórios que começava a dar seus passos naquele momento e já gerava
grande expectativa no meio publicitário:

Otimismo era a linguagem da época. Houve o boom do


faturamento das agências, houve o de salários. Os veículos
esforçavam-se, iam de fato melhorando. A televisão, que já
existiam várias emissoras em São Paulo e no Rio, subindo de nível.
O rádio foi se modificando, por força da competição da TV,
abandonando o grande broadcasting pela fórmula de música e
notícias, esquema em que havia a influência do transistor e do rádio
do automóvel [...] (MARCONDES; RAMOS, 1995, p.55).

É importante o destaque para o tom que os anúncios3 levavam naquele


momento, imersos na atmosfera expansionista e na euforia do país os

3
Anúncios retirados de MARCONDES, Pyr. 200 anos de propaganda no Brasil: do reclame ao
cyber anúncio. São Paulo: Meio & Mensagem, 1995. p. 55.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 471

fabricantes fizeram questão de mostrar que seus produtos ajudavam na


expansão nacional: “Acelerando a expansão da riqueza agrícola, Jeep Willys.”;
“É mais forte! É mais econômico! Chevrolet!”; “Já está correndo nas estradas
do Brasil o Volkswagen brasileiro.”; “Quase 2 metros de visibilidade, nova
cabine Ford”. E eram feitos sob medida (“Especial para o Brasil. Inédito em
todo mundo. Rural Willys.”; “O DKW-Vemag é o carro mais apropriado para
o Brasil.”). Otimismo e nacionalismo andavam juntos também na propaganda.
Em depoimento para o projeto “A propaganda brasileira: trajetórias e
experiências dos publicitários e das instituições de propaganda”, desenvolvido
pelo CPDOC e por iniciativa da ABP (Associação Brasileira de Propaganda) e
com o apoio da Souza Cruz S. A., que ouviu publicitários que tiveram atuação
destacada a partir da segunda metade do século XX, o publicitário Roberto
Duailib4 confirma o salto qualitativo da propaganda brasileira:

E a indústria automobilística é que criou realmente o negócio de


agência, o negócio de propaganda, e que foi esse período
juscelinista do desenvolvimentismo, da produção. Foi um período
importantíssimo na vida do país. E realmente hoje, olhando
retrospectivamente, foi o momento em que o Brasil deixou de ser a
fazendona para se transformar em uma potência industrial
(DEPOIMENTO, RD/CPDOC).

A modernização também afetou a mídia impressa. A fundação da


“Editora Abril” e da revista Manchete são marcos desse processo. Inicia-se uma
forte concorrência com a já consolidada revista O Cruzeiro, de propriedade de
Assis Chateaubriand.
As concorrentes menores como Fon-Fon e O malho, ainda estampavam
anúncios menores, os “anuncinhos” (RAMOS, 1985, p.67), porém, a maneira
como a propaganda impressa era feita estava sendo modificada, primeiro pela

4
A partir de agora, a referência no texto, de tal depoimento, será feita da seguinte maneira:
RD/CPDOC.
472 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

nova capacidade tecnológica gráfica e, segundo, pela disposição de bens


duráveis disponibilizados a um mercado consumidor em crescimento:

[...] essas velhas revistas estavam com os dias contados. E nas


revistas novas, apareciam produtos como Nescafé: “o café é feito
na xícara!”, “em 3 tempos você faz o seu café”, “agora é na xícara
que se faz, em 3 tempos, o café!”. Novos conceitos de produtos,
novas opções para o consumidor. A popularização dos
eletrodomésticos, com GE, Walita, Frigidaire. De tantas marcas,
em tantos os sentidos. Alimentação melhor: “se a senhora quiser
agradar mais...” (Creme de Leite Nestlé), “para a grande festa do
ano...” (Fermento Royal), “crescido, bonito e gostoso...” (A Dona).
Receitas, cupons e folhetos. Mais diversão: “pedalando com gosto
através do Brasil – Todos têm sua bicicleta Monark”. (RAMOS,
1985, p, 67-68).

A onda de desenvolvimento e ampliação do mercado publicitário criou


a necessidade de profissionalizar, criar regras para agências e anunciantes e
organizar o setor como classe.
A propaganda brasileira, no limiar dos anos 1970, já se encontra
estruturada e ensaia uma incursão para além do eixo Rio-São Paulo, começam
a despontar as agências regionais em várias capitais brasileiras.
Em Fortaleza, com a criação da “Scala” (1965), anos mais tarde surge a
“Publicinorte”; em Recife surge a “Ampla” e “Abaeté” (que atende a conta da
cervejaria “Pitú”). Na Bahia ainda surgem duas grandes agências, 1965, a
“Propeg” e, em 1968, a “Vínculo”.
A “Propeg”, após conseguir a conta do Banco Econômico, 1968,
expande seus escritórios regionais para Recife, Rio de Janeiro e São Paulo e,
assim, tornar-se-ia nos anos 1970, a maior agência regional do Brasil.
Na região Sudeste/Sul surgem agências importantes. Em Minas Gerais,
Edgar de Melo implanta, em 1963, a “Asa”. Em Santa Catarina surgem a “AS”
e a “Propague”. No Paraná, uma importante agência – “Exclam” – é fundada
em 1965 e a “Prodescel”, fundada anos mais tarde.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 473

Os anos 1960 ainda viram a conquista da propaganda, por meio de um


Projeto de Lei sancionado por Castello Branco, em 18 de junho de 1965, que
fixa a remuneração das agências e agenciadores em 20%.
O grande otimismo que marcou o país com a chegada dos anos 70, não
deixou de permear também o meio publicitário. Os anos do “milagre
brasileiro”, a formação das redes, a TV em cores, a renovação radiofônica
com o surgimento das emissoras FM, fomentaram altos investimentos em
propaganda, mesmo após a crise de 1974. O Brasil ainda teria reconhecimento
internacional no festival de Cannes, com o primeiro “Leão de Ouro”
recebido.
Os anos 70 foram anos de grande avanço para a propaganda brasileira,
investimentos elevam a posição do país no ranking mundial e a propaganda
começa a figurar como parte importante do Produto Nacional Bruto (PNB).
Durante os anos 1970-19745, o Brasil vigora entre os 10 maiores países
do mundo no tocante ao investimento publicitário em milhões de dólares.
Entre 1970 (370 milhões) e 1972 (580 milhões), a taxa de crescimento
brasileira fixou-se em 56,75% e entre 1972 (580 milhões) e 1974 (900), houve
um leve decréscimo para 55,17%.
A explicação para tantos investimentos e um crescimento grande num
período de quase uma década, pode ser encontrada ao se rever o modelo
econômico aplicado pelos militares após o golpe de abril de 1964.
É nesse momento que o plano econômico discutido mostra um dos
seus muitos resultados práticos, ou seja, essa diferença dos índices brasileiros
frente aos estrangeiros. Como referenda Arruda:

5
Dados retirados de: Maria Arminda do Nascimento Arruda. A embalagem do sistema: a
publicidade no capitalismo brasileiro. 2ª ed. Bauru: Edusc, 2004. Salvo por indicação, os
números referentes à propaganda, durante os anos 1970-1975, provêm daquele estudo.
474 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Esta peculiaridade do investimento publicitário no Brasil se explica


pelo tipo de desenvolvimento do capitalismo monopolista no
Brasil, no qual o Departamento de bens de consumo capitalista
exerceu o comando da economia no período 1967 a 1973,
caracterizando-se a acumulação pela preponderância do setor de
duráveis e da construção civil. (ARRUDA, 2004, p, 163).

A aceleração da economia brasileira – apoiada na indústria de bens


duráveis e na construção civil – tinha como lastro um mercado consumidor,
ainda que restrito a 30 ou 40 milhões de habitantes (são números
representativos, porém é necessário lembrar, que a população brasileira,
naquele momento, era de aproximadamente 90 milhões), com condições de
participar deste mercado.
Novos ingredientes adicionados pelas políticas liberalizantes pós-68
(como acesso facilitado ao crédito), tiveram como resultado prático a entrada
de mais estratos sociais no mercado, o que favoreceu o crescimento dos
investimentos em propaganda, que buscavam diversificar o consumo
concentrado naquela faixa (ARRUDA, 2004).
Desta maneira, a concentração de renda é uma das responsáveis diretas
pelos altos investimentos em propaganda, no Brasil, uma vez que o mercado
também estava concentrado. Diante desse quadro, a publicidade exerce a
função de “puxar” o carro do consumo, se a distribuição de renda fosse mais
igualitária, a publicidade não teria essa função em especial.
Mesmo o país enfrentando uma grande crise econômica (1974), os
investimentos foram redirecionados para a publicidade (1976), na expectativa
de aumentar a velocidade de circulação das mercadorias. Como afirma Arruda:

Paradoxalmente, entretanto, alguns momentos de recuo


econômico, como o que se verifica entre 1975-1976, são momentos
de avanço do investimento publicitário, o que evidencia uma
característica marcante do setor publicitário no Brasil, no qual a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 475

publicidade assume o papel de acelerador do marasmo


econômico. (ARRUDA, 2004, p.166).

A chegada dos anos 1970 trouxe consigo uma virada na representação


das agências de capital nacional e agora passariam a vigorar no ranking das dez
maiores, “[...] o governo transforma-se no maior anunciante do país”
(CADENA, 2001, p.176) e a entrada, mesmo muito pequena, de novas
parcelas da população aptas a consumir favorece “[...] outros segmentos [que]
despontam, revigorando os mercados regionais, como o varejo de
supermercados e shopping centers, lojas de departamentos” (CADENA,
2001, p.176).
Na metade da década elas desbancam as duas grandes agências que
dominaram o mercado brasileiro, praticamente, desde sua chegada ao país, a J.
W. Thompson e a McCan Erickson.
As principais agências que dominam o ranking são a MPM, seguida pela
Almap, em quarto lugar a Salles e DPZ, em sétimo lugar.
De acordo com Arruda, em 1974,

[...] ocorre uma verdadeira confluência de posições, pois as


empresas brasileiras Alcântara Machado, Mauro Salles e MPM
assumem os primeiros postos em lugar das empresas de capital
internacional. Tal fenômeno é menos evidente para a Mauro Salles,
mas é marcante no caso da Alcântara Machado e da MPM. Esta,
particularmente, que ocupava a 4ª posição em 1970, aí
permanecendo até 1974, ascende ao segundo lugar em 1975, e
vertiginosamente alcança o primeiro lugar em 1976,
significativamente distanciada em relação às demais. (ARRUDA,
2004, p.184).

No grupo das cinco últimas agências, algumas mudanças também são


perceptíveis. A “disputa” entre a Denison e a Norton acaba em 1973, quando
tem uma definição. O crescimento da DPZ também é formidável, sai do
476 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

décimo lugar, em 1970, para o sétimo, em 1975. A Standard e a SSC & B


Lintas, ambas de capital estrangeiro, se mantém no fim da lista.
O alto faturamento da MPM, de 1974-75, pode ser explicado pela
incorporação da Casabranca, a partir de 1° de janeiro de 1975, e a absorção de
faturamentos da LAB e da Voga (RJ) (ARRUDA, 2004).
A Alcântara Machado recebe, no mesmo período, quatro grandes
contas de publicidade: Petrobrás, Vasp, Volkswagen e Gillete (ARRUDA,
2004; ABREU; DE PAULA, 2007). A DPZ tem um crescimento significativo
devido ao aumento das verbas da Souza Cruz e aos novos clientes, como
Colorado, Cachaça de São Francisco e Minalba.
Concorda-se com Arruda quando este encontra explicação para
ascensão das agências nacionais a partir da implantação do Decreto-Lei nº
4.860:

Pensamos que o Decreto-Lei 4.860 criou condições para o


crescimento das agências nacionais, dado o seu caráter
protecionista. Ou melhor, uma vez fixada a porcentagem que
estipulará a remuneração das agências, a competição passa a
depender menos da estrutura econômica das empresas,
transferindo-se para o setor da criação. (ARRUDA, 2004, p, 190).

Após 1974, o governo assume a liderança dos investimentos em


propaganda e a “novidade” merece destaque da revista Veja, em maio de
1976:

[...] a veiculação dos filmes – e esta sai de graça para a ARP.


Representaria, aos preços de mercado, uma conta mensal de 20
milhões de cruzeiros – o dobro do que gasta hoje o maior
anunciante brasileiro, a Gessy-Lever. [...] Com isso, as despesas da
ARP ficam em 1 milhão de cruzeiros mensais para produção e
distribuição das 195 cópias de cada filme. (A GRANDE
CAMPANHA..., 1976, p.29)
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 477

A presença do governo militar como o principal anunciante e o


“protecionismo” com as agências nacionais, com exclusividade das contas
deste para as agências de capital unicamente nacional, fortalece o faturamento
das agências.
Algumas agências se destacam como “agências oficiais”, são elas: MPM
(que sai do quarto lugar, em 1974, para o primeiro, em 1976), Salles, Norton,
Almap e Denison, eram chamadas de “cinco irmãs”.
As “cinco irmãs” integravam um consórcio que atendia as campanhas
específicas do governo, que não pagava para a exibição das mesmas. As contas
do governo estavam entre o rol das maiores, tais como, as do Banco do Brasil,
do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER),
Telecomunicações de São Paulo (Telesp), Correios e Telégrafos.
Existiam, ainda, as contas de outras esferas do governo que
fortaleceram as agências regionais, como a Propeg e DM9, na Bahia, que
atendiam ao governo baiano e à prefeitura de Salvador. Algumas contas
estaduais para a publicidade oferecem grande possibilidade de crescimento,
tais como Companhia Aços Especiais Itabira (Acesita), Centrais Elétricas,
Loteria do Estado e Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa),
Banco do Estado no Pará, Prefeitura de Curitiba, são alguns exemplos da
fartura de recursos.
A aproximação do governo militar com as agências de publicidade
ocorre nos primeiros momentos após o golpe, como mostra Cadena:

O governo militar bate nas portas da Associação Brasileira de


Agências de Publicidade (Abap), seção paulista. Solicita o apoio da
entidade para criar uma campanha publicitária de desarmamento
dos espíritos, que contribuía para serenar os ânimos, neste primeiro
momento de dúvidas e incertezas. O general Moacyr Gaia e o
coronel Araken de Oliveira incumbem-se de tratar do assunto.
Surge um plano de comunicação que implanta o chamado “Serviço
de Difusão Democrática”. (CADENA, 2001, p.156).
478 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O “Serviço de Difusão Democrática” (SDD) teve uma existência muito


efêmera, seu trabalho foi apenas de relações públicas e os resultados se
resumiram a boletins diários. Porém, “[...] o episódio representa uma
aproximação entre o novo governo e as entidades de propaganda”
(CADENA, 2001, p.156) e pode ser considerado o primeiro ensaio do
governo para o nascimento, quatro anos mais tarde, da AERP, Assessoria
Especial de Relações Públicas.
Outro fato que concorreu para a aproximação entre agências e ditadura
militar foi a divulgação de um “anúncio”, encomendado pela Associação
Paulista de Propaganda (APP) junto à agência J. W. Thompson, em 1964, com
o título “A Beira do Abismo”:

À beira do abismo
À beira do abismo... para aí construir uma das grandes nações do
mundo: quinta em território, oitava em população, décima em
produto nacional bruto – e ampliar-se em petróleo, aço, energia
elétrica, celulose, num ritmo de vida que é estímulo e certeza.
À beira do abismo... para aí erguer, em dois decênios, a maior
nação industrial dos trópicos, o parque manufatureiro que é
tratores e turbinas, caminhões, automóveis, refrigeradores, navios –
a produção de um nível melhor para todos.
À beira do abismo... para aí edificar duas das maiores cidades do
globo... para aí criar a maior nação latina e católica de nossos
tempos – a mais expressiva cultura moderna do continente.
À beira do abismo... porque dessas alturas onde plantamos nossa
bandeira, se descortina melhor o panorama do futuro, e o abismo
se transforma em brancura de edifícios, várzeas produtivas,
montanhas de cimento, por onde trilharemos novos caminhos,
encontrando sempre, como até hoje, como tantas vezes no
passado, a porta que conduz à segurança, ao progresso, à paz! 6
(CADENA, 2001, p.166).

6
Nélson Varón Cadena. Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições Referência,
2001, p. 166.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 479

O conteúdo do anúncio, embora não muito bem interpretado pelos


militares, na época, foi uma manifestação de apoio ao golpe de 1964 e aos
novos rumos que o país tomaria daquele momento em diante. O último
trecho do anúncio deixa claro a esperança no “melhor panorama do futuro”:

À beira do abismo [...] porque dessas alturas onde plantamos nossa


bandeira, se descortina melhor o panorama do futuro, e o abismo
se transforma em brancura de edifícios, várzeas produtivas,
montanhas de cimento, por onde trilharemos novos caminhos,
encontrando sempre, como até hoje, como tantas vezes no
passado, a porta que conduz à segurança, ao progresso, à paz!
(CADENA, 2001, p, 157).

Além da criação do SDD e do anúncio da APP, é importante o


destaque para o Conselho Nacional de Propaganda (CNP), cuja criação é
datada de 05 de novembro de 1964 e teve Renato Castelo Branco como
fundador e presidente.
O CNP foi criado após as recomendações do I Congresso Brasileiro de
Propaganda, realizado em 1957 e tinha como principais objetivos criar
campanhas educativas que esclarecessem a função da propaganda. Suas três
primeiras campanhas foram de: exportação (“Exportar é a solução”);
sanatórios de Campos do Jordão; estímulo ao consumo.
Porém, como pontua Cadena (2001), o CNP aproximou-se do governo
militar ao executar campanhas institucionais pagas para os militares nas mais
diferentes esferas e “[...] estabelece uma proximidade entre empresários
integrantes do Conselho e o governo federal” (CADENA, 2001, p.190).
Diferente do que ocorre após a criação da AERP (que não pagava pela
veiculação de anúncios) e do Serviço de Difusão Democrática (que exerceu
mais a função de relações públicas do que efetivamente fazer propaganda), o
CNP, ao mesmo tempo em que elaborava campanhas gratuitas (como a
480 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

campanha contra a inflação), começou a receber altas quantias para a


elaboração de propagandas para órgãos do governo.
A presença do Estado militarizado em toda a economia, e na
propaganda em particular, mostra a face intervencionista deste, sinalizando
mais uma contradição no regime.
Como argumenta Arruda:

Contudo, essa é uma contradição não resolvida no próprio âmbito


do Estado autoritário brasileiro, expressão do embate entre grupos
antagônicos no seu interior. A política estatal, apesar de oferecer
vantagens à penetração do capital externo, exibe, ao mesmo tempo,
anseios nacionalistas. As medidas voltadas para o setor publicitário
evidenciam a intenção de preservar a chamada “cultura nacional”,
refletindo a natureza profundamente contraditória do Estado
brasileiro. (ARRUDA, 2004, p, 192).

Como demonstrado, a década de 1970 é frutífera para a propaganda


brasileira e a coroação da maturidade da propaganda viria com o “Festival de
Cannes”, onde a propaganda brasileira começara a fazer a sua história, em
1972.
Nelson Varón Cadena destaca a importante participação do Brasil:

O Brasil estréia, em 1971, abocanhando três leões (leão de prata


para um comercial da Swift criado pela Julio Ribeiro Mihanovich, e
bronze com trabalhos da Hot Shop e Lince Propaganda para a
Lacta e Cofap, respectivamente). Quatro anos depois, conquista o
seu primeiro leão de ouro com o comercial da DPZ intitulado
“Homem de mais de 40 anos”, criado por Washington Olivetto e
dirigido pelo polonês Andres Bukowinsky, da ABA Produções. No
ano seguinte, o ouro é do Paraná com um filme da Umuarama para
o Bamerindus (“O homem frustrado”), com interpretação de Irene
Ravache. Ainda nessa década, o Brasil conquista mais um ouro em
1978 com “O menino de bicicleta” da SSCB & Lintas. Boa
participação do Brasil, nos anos 70: são 47 leões conquistados por
17 agências, duas delas fora do eixo Rio-São Paulo: Umuarama do
Paraná e Mendes do Pará. (CADENA, 2001, p, 186).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 481

A década de 1970 foi o período da maturação e da expansão da


publicidade brasileira. Internamente, a década promove o nascimento de mais
de 1007 agências por todo território nacional. Entre as quais se destacam: no
eixo Rio-São Paulo, Adag, CBBA, Caio, Fishcer & Justus, Giovanni, Gang,
Publicittà; no Norte e Nordeste, D&E, DM9, Gruponove, Italo Bianchi,
Oana, Mark e Randam; e no Sul, Martins & Andrade, Módulo, Múltipla e
Símbolo.
Os anos 1970 são classificados como “[...] os anos de ouro da mídia no
Brasil (CADENA, 2001, p. 191), os meios de comunicação se modernizam
(sobretudo o rádio e a TV) e o outdoor reaparece.
Com base no que foi trabalhado até o momento, acredita-se ter
proporcionado ao leitor uma visão do cenário brasileiro para a propaganda
durante o período escolhido para o estudo.
A aproximação do governo militar com as agências brasileiras foi
demonstrada de duas maneiras: primeiro, por meio dos dados que confirmam
o crescimento destas por meio da participação exclusiva nas contas do
governo (que ao final da década já era o maior anunciante do país); segundo,
com o apoio de um representativo órgão de classe (APP), pela veiculação do
anúncio “A Beira do Abismo”, o apoio para a criação do “Serviço de Difusão
Democrática” a construção de propagandas que “melhorassem” o clima no
país e a criação do Conselho Nacional de Propaganda, que se aproximou dos
militares, primeiro com a elaboração de campanhas institucionais (como a da
pechincha, do combate à inflação e de estímulo ao consumo) que abriram
caminho para as altas contas de órgãos do Estado, tais como bancos (Banespa
e Caixa Econômica Federal), empresas siderúrgicas e órgãos do governo
(DNER).

7
Dados de Nelson Varón Cadena: Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições
Referência, 2001.
482 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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139-160.
A instituição em foco: a criação da ANCINE e o
desenvolvimento do cinema nacional

William Geraldo Cavalari BARBOSA*

A criação

O
s questionamentos acerca das instituições ligadas ao patrimônio
permeiam diversos debates na História Política e têm aberto uma
série de possibilidades de pesquisa. São destacadas as pesquisas
que versam sobre o patrimônio cultural e a sua formação no interior dos
organismos que o direcionam em vários aspectos, entre eles o da preservação.
Entre os setores da cultura sobressai o cinema que ganhou novo destaque no
Brasil na década de 1990 e foi alvo de inúmeros dispositivos legais e
mecanismos de fomento nas últimas duas décadas. A criação da Agência
Nacional de Cinema (ANCINE) é um dos mais fortes indícios dessa retomada
e, ao mesmo tempo, de determinadas alterações nos padrões de fomento e
controle da atividade. O objetivo deste trabalho é questionar a criação da
ANCINE, em 2001, analisando o contexto em que ela foi criada, além das
mudanças e permanências que a instituição provocou ou não no setor.
A ANCINE é a responsável pela regulamentação, fiscalização e
fomento da indústria cinematográfica nacional. A Agência foi criada no ano
de 2001, durante o mandato do, então, presidente Fernando Henrique
Cardoso, no momento em que o Brasil passava por algumas mudanças no
aparelho administrativo do Estado em função, sobretudo, das sucessivas
privatizações de setores estratégicos da economia nacional, tais como os de

*
Mestrando em História /UNESP/Assis. Orientadora: Drª Célia Reis Camargo
486 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

energia e mineração, dando origem a agências semelhantes entre si. O


presente texto não pretende tirar conclusões definitivas acerca do papel
desempenhado pela ANCINE no contexto de produção de um patrimônio de
cinema no país, mas levantar questões que auxiliem no entendimento dos
mecanismos de fomento voltados à produção cinematográfica em âmbito
nacional, fornecendo subsídios para a compreensão de uma problemática
maior, a saber, as relações entre o Estado e o cinema no Brasil. A ligação entre
a atividade e o Estado são explícitas, como pode ser observado no Relatório
de Gestão de 2002 da Agência, o qual apresenta um balanço do primeiro ano
de existência:

Com Sede e foro no Distrito Federal e Escritório Central na cidade


do Rio de Janeiro, a ANCINE tem por finalidade promover a
regulação, fiscalização e o fomento das atividades cinematográficas
e videofonográficas, de acordo com o estabelecido na legislação e
nas políticas e diretrizes emanadas pelo Conselho Superior do
Cinema. (Relatório de Gestão 2002, 2003, p.4).

Para tanto, selecionamos apenas dois momentos cruciais, no que se


refere à definição de políticas claras, relacionados ao cinema nacional. O
primeiro deles se inicia no ano de 1966, quando foi criado o Instituto
Nacional de Cinema (INC), além da posterior criação da Empresa Brasileira
de Filmes (Embrafilme S.A.), em 1969. O segundo momento é o da própria
criação da ANCINE, em 2001. Com base na legislação que cria tais órgãos, o
objetivo é comparar as atribuições de cada um e verificar o que é a ANCINE
e o que ela acumulou em termos de função.
Antes, porém, algumas questões teóricas são interessantes para
entender as políticas relacionadas ao cinema, as quais a ANCINE cria ou
gerencia. Tendo isso em vista, apresentamos uma breve discussão acerca dos
conceitos de Estado e Governo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 487

Estado e Governo

Para uma análise satisfatória dessas temáticas essencialmente políticas


que permeiam as relações do Estado com o setor cultural, acreditamos ser
necessário apontar referenciais teóricos acerca do próprio Estado e sua
organização em termos de governo.
A princípio, podemos dizer que o Estado Contemporâne (GOZZI, 2009)
vive uma fase em que a sua relação com a economia se modificou: a política
econômica do mesmo interfere diretamente nas dinâmicas do mercado. A isso
corresponde, segundo Gustavo Gozzi (2009), um tipo de poder específico
(GOZZI, 2009, p.402) que se nutre, principalmente, de um saber
especializado para ter legitimidade e fazer obedecer as suas determinações. No
entanto, é preciso acrescentar que houve uma complexificação deste Estado e as
possibilidades de planificação de toda a estrutura produtiva se tornou impossível, daí
a necessidade da criação de agências com o objetivo de atender a interesses
setoriais ( GOZZI, 2009, p.405-406).
A discussão é complexa, mas cabe aqui ressaltar que processos
históricos específicos criaram uma série de condições para as mudanças no
aparelho administrativo do Estado. No tocante à realidade nacional, embora
ela esteja carregada de especificidades, não podemos nos furtar de inseri-la em
uma perspectiva mais global, o contrário tornaria a análise extremamente
limitada.
Cabe, ainda, uma última colocação teórica: a definição de governo.
Segundo Lucio Levi, pode-se definir governo como o conjunto de pessoas que exercem o
poder político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade (LEVI,
2009, p.553). Para atender aos desenvolvimentos do Estado atual, é preciso
incluir os órgãos que institucionalmente têm o exercício do poder (LEVI, 2009, p.553), e
não seria forçoso incluir a ANCINE nesse contexto, já que ela tem a missão
de exprimir a orientação política do Estado. Assim, é preciso entender o governo
488 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

e os órgãos que o compõem como um aspecto desse mesmo Estado (LEVI,


2009, p. 553-555).
Dessa forma, os órgãos responsáveis pelo cinema no Brasil ao longo
das décadas que selecionamos para este estudo estão calcados em uma
tentativa, por um lado, de aparelhar o Estado com mecanismos de controle e,
por outro, de atender às expectativas de interesses setoriais e às demandas de
mudança do aparelho administrativo, tema trabalhado mais adiante.

O INC e a Embrafilme S.A.

A criação, em 1966, do INC inicia, durante o Regime Militar, um


efetivo esforço do governo brasileiro em assumir o controle e a fiscalização da
produção cinematográfica nacional. Durante o Governo Vargas, outro
período de exceção da República no Brasil, medidas também foram tomadas
nesse sentido, como a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais. Tais
ações denotam a preocupação do Estado brasileiro em interferir em setores da
cultura, entre os quais o cinema.
Entre as atribuições do INC estavam o fomento e a fiscalização, de um
lado o financiamento e de outro o controle:

Art. 1º O Instituto Nacional de Cinema (INC), criado pelo


Decreto-lei nº 43, de 18 de novembro de 1966, é uma autarquia
federal, com autonomia técnica, administrativa e financeira,
diretamente subordinada ao Ministério da Educação e Cultura e
tem por finalidade formular e executar a política governamental
relativa à produção, importação, distribuição e exibição de filmes,
ao desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, ao seu
fomento cultural e à sua promoção no exterior.

Mas o que importa ressaltar é que, alguns anos depois, mais


precisamente em 1969, foi criada a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme
S.A.). Inicialmente, a Embrafilme tinha por objetivo ser um órgão de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 489

cooperação do INC, como o próprio artigo 2º do Decreto-Lei nº 62/69


demonstra:

Art. 2º A EMBRAFILME tem por objetivo a distribuição de filmes


no exterior, sua promoção, realização de mostras e apresentações
em festivais, visando à difusão do filme brasileiro em seus aspectos
culturais artísticos e científicos, como órgão de cooperação com o
INC, podendo exercer atividades comerciais ou industriais
relacionadas com o objeto principal de sua atividade.

Em 1975, essa situação se modificou, quando o INC foi extinto e as


atribuições que a ele se referiam foram absorvidas pela própria Embrafilme
por meio da Lei nº 6.281/75:

Art. 2º As atribuições conferidas ao Instituto Nacional do Cinema


(INC) passarão, segundo se dispuser em regulamento, a ser
exercidas pela Empresa Brasileira de Filmes S.A. - EMBRAFILME
- e por órgão a ser criado pelo Poder Executivo, com a finalidade
de assessorar diretamente o Ministro da Educação e Cultura,
estabelecer orientação normativa e fiscalizar as atividades
cinematográficas no País.

Esses ajustamentos institucionais não foram exclusividade da área do


cinema. Os sucessivos ministros da Educação que passaram pelos governos
militares, sobretudo nas décadas de 60 e 70, se singularizaram pelas decisões
tomadas acerca das políticas culturais nascidas no interior do Ministério da
Educação e Cultura (MEC)1. Segundo Sérgio Miceli:

Os sucessivos remanejamentos dos órgãos de cúpula do MEC


incumbidos de direcionar a intervenção governamental na área
cultural expressam não apenas os conflitos de interesses entre as
vertentes ‘patrimonial’ e ‘executiva’ mas também prenunciam a
progressiva diferenciação organizacional, política e doutrinária da
vertente “cultural” em seu conjunto, quer no âmbito do próprio
MEC, quer ao nível dos governos estaduais e municipais ou da
iniciativa privada. (MICELI, 1984, p.59)

1
As informações acerca de tais gestões do MEC podem ser encontradas em MICELI, 1984, p. 54-83.
490 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O parágrafo 1º desse mesmo artigo demonstra outro aspecto dessas


disputas acerca das políticas culturais do Estado: a participação de
representantes desses diversos setores diretamente nos órgãos criados pelo
governo. Ele determinou que três integrantes da Empresa fossem
provenientes das áreas contempladas pelas atribuições da mesma: produção,
exibição e distribuição, e realização dos filmes.
Para Anita Simis, embora a Embrafilme, de fato, tenha contribuído para
aumentar o espaço das produções nacionais, ela, por outro lado, criou uma
política de clientela favorecendo, talvez, algumas poucas empresas (SIMIS,
2005). Joaquim Arruda Falcão destaca a relação entre uma ideologia cultural e a
distribuição de recursos financeiros públicos2(FALCÃO, 1984, p. 25), já que uma
das atribuições da empresa era o fomento. Embora o referido pesquisador não
esteja falando diretamente das ações relativas ao objeto deste estudo (a saber,
o cinema), ele mesmo destaca que a criação do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), esse sim o foco da sua análise,
inseriu-se em um processo mais amplo de legalização, institucionalização e
sistematização da presença do Estado na vida política e cultural do país, que, iniciado da
década de 30, vai ganhar novas feições na década de 70 (FALCÃO, 1984,
p.21-39).
Ainda nesse bojo, durante a gestão de Ney Braga no MEC, foi criado,
pelo Decreto nº 77.299/76, o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE),
que se constituiu, segundo o artigo 1º, como órgão de orientação normativa e
fiscalização das atividades relativas a cinema.
Sérgio Miceli aponta que a gestão de Ney Braga tinha, entre suas
particularidades, o próprio ministro, já que o mesmo era um militar reformado
que, no entanto, se destacava por inúmeras ações favoráveis à área cultural.

2
A ideologia Cultural pode ou não consolidar uma elitização da cultura brasileira, e a
alocação desigual dos recursos para preservação pode aumentar desníveis regionais
e/ou favorecer determinados grupos sociais.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 491

Ele foi capaz de angariar o apoio de setores aparentemente inconciliáveis com


o regime político do período, além de promover a arrecadação de recursos
importantes para as atividades culturais no país. Isso denota certo movimento
de “abertura” promovido pelo governo Geisel o que resultou, até mesmo, no
apoio dos cinemanovistas à gestão. Além disso, a legislação em vigor –
sobretudo as leis que tratam da composição das diretorias da Embrafilme e do
CONCINE – permitia aos integrantes do setor cinematográfico escolher seus
próprios representantes nesses órgãos governamentais. Podemos inferir que
esse tipo de ação causou certa simpatia do grupo responsável pela
cinematografia nacional às instituições do Estado que lhes interessava o que
poderia ter provocado ou não simpatias ao governo. O que se constata é que
as posições eram as mais diversas, mas não se deve esquecer a combatividade
ao Regime expressa em alguns filmes e das novas linguagens criadas em
virtude da ação dos órgãos de censura.
É emblemático o destino que tomou tais ações no período posterior, o
da redemocratização. Na década de 1980, iniciou-se um processo de
asfixiamento do cinema nacional face à concorrência estrangeira (SIMIS, 2005,
p.8). Não bastasse tal fenômeno, o governo de Fernando Collor de Melo,
iniciado em 1990, pôs fim a uma série de órgãos responsáveis por setores
estratégicos da cultura, entre os quais a Fundação de Cinema Brasileiro, o
CONCINE e a Embrafilme S.A., além de reduzir o setor da cultura a uma
Secretaria. É fato que a Embrafilme já vinha sofrendo duros golpes na década
de 1980, com sucessivas limitações orçamentárias e que o seu fim, talvez o
mais significativo entre as baixas sofridas pelas políticas de cinema, fosse o
encerramento de um processo de esgotamento da empresa e da
impossibilidade de avançar em termos de fomento. Os esforços do setor para
contornar a situação só tiveram efeito após o fim da referida gestão, na
ocasião do impeachment em 1992 (SIMIS, 2005, p.09-10).
492 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O processo de retomada e a criação da ANCINE

Quando em 1993 foi sancionada a Lei nº 8.685, mais conhecida como


Lei do Audiovisual, o governo brasileiro dava sinais de que a cultura e, em
particular, o setor audiovisual, no qual se inclui o cinema, voltava a fazer parte
da pauta de investimentos e incentivos governamentais às áreas com demanda
de mercado limitada devido à concorrência internacional, como é o caso da
produção cinematográfica.
Mais especificamente, a criação, em 1999, da Comissão de Cinema,
demonstra o efetivo interesse em promover ações relativas ao fomento e à
fiscalização do setor audiovisual no Brasil. O Decreto nº 2.946/99, em seu
primeiro artigo estabelece:

Art 1º O art. 15 do Anexo I ao Decreto nº 2.599, de 19 de maio de


1998, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 15. À Comissão de Cinema compete assessorar o Ministro de
Estado da Cultura na definição e formulação das diretrizes e
estratégias para a ação governamental e na aprovação de projetos,
na área audiovisual.

No entanto, na criação dessa comissão residem duas diferenças básicas:


a composição e o status. Ao contrário dos demais órgãos elencados
anteriormente, ela não era autônoma em relação ao, agora, Ministério da
Cultura (MinC). Ao contrário, era presidida por seu ministro e contava com
representantes de diferentes pastas da União: Fazenda; Desenvolvimento,
Indústria, e Comércio; Relações Exteriores; Comunicações. Além disso,
contava com representantes do próprio setor audiovisual, predominantemente
do cinema – de um total de 12, apenas dois não se vinculavam diretamente ao
cinema, considerando que o documentário se inclui nesse último.
Naquele momento, portanto, a criação de tal Comissão denota a
preocupação, em âmbito federal, com o setor. Mais tarde, pelo Decreto de 13
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 493

de setembro de 2000, que criou o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria


do Cinema, o governo Fernando Henrique Cardoso confirma a intenção de
estabelecer os parâmetros da participação do Estado nas questões relativas ao
cinema. O objetivo de que trata o artigo 1º desse Decreto era o de articular,
coordenar e supervisionar as ações para o desenvolvimento de projeto estratégico para a
indústria do cinema no Brasil. Para tanto, havia o prazo de seis meses, mais tarde,
prorrogado até 30 de junho de 2001.
Por fim, no dia 6 de setembro de 2001 foi publicada a Medida
Provisória nº 2.228-1 que, entre outras coisas, criou o Conselho Superior de
Cinema e a ANCINE. O primeiro mantinha a estrutura de outros órgãos
governamentais criados em períodos anteriores formado por representantes
de pastas ministeriais além de membros do setor audiovisual. Entre as suas
atribuições estava a distribuição dos recursos de Contribuição para o
Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (CONDECINE), importante
ferramenta para a distribuição de recursos a projetos cinematográficos
executados em âmbito nacional. No entanto, a ANCINE, na forma da Lei, foi
criada como uma autarquia inicialmente vinculada à Casa Civil e depois
transferida para o Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e Comércio
Exterior, responsável pela sua supervisão, cujos membros de sua diretoria não
necessariamente tinham que fazer parte do setor de interesse, já que a escolha
de seus diretores era prerrogativa do Presidente da República.

Para o cumprimento de suas atribuições legais, a ANCINE foi


organizada em quatro áreas de atuação finalística: Fomento da
Indústria, Controle e Fiscalização, Promoção no Mercado
Internacional e Informação, além de uma área de Apoio
Administrativo-Financeiro. Sua estrutura possui três níveis
hierárquicos: Diretoria, Secretaria e Superintendência, além dos
níveis funcionais de caráter operacional, denominados
Coordenações. (Relatório de Gestão 2002, 2003, p.7)

E mais:
494 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A concepção de Diretoria Colegiada tem o caráter de unidade


superior de deliberação, a instância decisória máxima responsável
pela análise e decisão sobre as propostas de ação encaminhadas
pelas unidades executivas, em especial no tocante às decisões de
caráter regulatório e de fomento, aos assuntos estratégicos e da
rotina operacional e administrativa da Agência, tendo na figura do
Diretor-Presidente, a autoridade que em nome da Diretoria
Colegiada, determina o cumprimento das suas deliberações.
(Relatório de Gestão 2002, 2003, p.9).

Tendo em vista a similaridade com outras agências criadas no mesmo


período – cabe ressaltar, durante o governo FHC –, entendemos que a criação
da ANCINE insere-se no contexto de reforma do Estado promovida pela
gestão governamental do período. Segundo os pesquisadores Marcos Vinícius
Pó e Fernando Luiz Abrucio:

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, preparado


pelo então Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado (Mare), declarava como propósitos alterar as bases do
Estado brasileiro, a fim de melhorar seu desempenho e
democratizá-lo. Para isso atividades que não fossem consideradas
essenciais deveriam ser repassadas à iniciativa privada e reguladas
pelo Estado, ao mesmo tempo em que se implantaria a
“administração pública gerencial”. Nessa lógica destacavam-se a
criação de agências autônomas, divididas em reguladoras e
executivas. (PÔ; ABRUCIO, 2006, p. 682).

No entanto, como aponta o mesmo estudo, embora haja semelhanças


marcantes nos modelos levados a cabo na implantação das agências, diversos
elementos históricos, econômicos e sociais interferem na maneira como esses
órgãos vão se comportar (PÔ; ABRUCIO, 2006, p.696). Só uma pesquisa
aprofundada poderia estabelecer, de fato, as diferenças existentes entre cada
uma delas. No entanto, o que nos importa aqui é evidenciar que, embora
inserida em um contexto mais amplo, a ANCINE é resultado, também, de
interesses setoriais específicos relacionados aos atores envolvidos, aos
desenvolvimentos anteriores do setor e aos interesses do Estado no setor
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 495

cinematográfico e audiovisual. A própria legislação elencada nesse artigo e os


apontamentos do Relatório de Gestão de 2002 permitem tal conclusão, já que
a Agência é herdeira de atribuições que antes competiam a outros órgãos, tais
como a Embrafilme e o Instituto Nacional de Cinema, e que foram
concatenadas na recente autarquia.

A transferência das atribuições do Ministério da Cultura para a


ANCINE, estabelecida pelo Decreto n° 4.456, de 2002, iniciou de
forma prática com o treinamento ministrado pela Secretaria de
Audiovisual – SAV, a respeito do processo de análise de projetos
audiovisuais que solicitam benefícios fiscais, e sobre o sistema
computacional denominado Sistema de Acompanhamento de Leis
de Incentivo à Cultura – SALIC, dado a 3 (três) servidores da
Superintendência de Desenvolvimento Industrial, antes mesmo da
edição do próprio Decreto.
As demais atribuições, definidas por meio daquele Decreto,
autorizaram também a transferência de projetos audiovisuais,
beneficiários cumulativamente ou não, dos mecanismos previstos
na Lei 8.685, de 1993 e na Lei 8.313, de 1991. Até 31 de dezembro
de 2002, um total de 1.175 projetos já haviam sido transferidos
para a ANCINE [...]. (Relatório de Gestão 2002, 2003, p.13-14).

A afirmação de Regina Silvia Pacheco confirma a proposição:

Entre as agências criadas, o caso da Ancine é bastante peculiar.


Definida como “órgão de fomento, regulação e fiscalização da
indústria cinematográfica e videofonográfica”, suas atribuições
parecem caracterizar a atividade de fomento, mais do que
regulação. Não se justifica, portanto, o formato de agência
reguladora. Foi a única agência reguladora criada por medida
provisória. Sua vinculação inicial foi à Casa Civil, com previsão de
posterior vinculação ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio Exterior. (PACHECO, 2006, p.530).

Nesse sentido, a ANCINE não pode ser reduzida a um instrumento de


regulação do mercado de produção, distribuição e exibição de produtos
audiovisuais em âmbito nacional. Por ser um órgão de fomento, é ela que
controla os recursos provenientes, por exemplo, de isenções fiscais e os
distribui aos projetos aprovados pelas diretorias específicas a ela vinculadas.
496 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Dessa forma, influencia diretamente nos produtos cinematográficos


disponibilizados ao consumo pelas demandas do mercado. Cabe, no entanto,
analisar os limites dessa influência e de que forma se dá efetivamente as
interferências, quando as há, no produto final, o filme.

Algumas Considerações

A partir das informações elencadas ao longo do presente artigo, foi


possível estabelecer as formas de interferência na área cinematográfica dos
sucessivos governos em épocas diferenciadas da história do Brasil, mais
especificamente nos dois marcos temporais mais recentes: o Regime Militar e
a passagem do século XX para o XXI. A legislação levantada permite
visualizar, por meio de uma prerrogativa dos governos, qual seja a lei, as
tentativas de interferência no que se refere aos recursos, às reservas de
mercado e aos procedimentos de que o Estado lança mão para levar a efeito
objetivos predeterminados.
Podemos, preliminarmente, inferir que os modelos de interferência
implantados durante a década de 70, em especial, eram condizentes com o
regime vigente na época e, por isso mesmo, se esvaziaram no momento
posterior da redemocratização. Não é forçoso lembrar que, anterior a isso, as
medidas de maior relevância nessa área foram implementadas em outro
regime ditatorial, o de Getúlio Vargas no Estado Novo (1937-1945).
Na passagem do século, o projeto de reforma do aparelho
administrativo do Estado brasileiro, encampado pelo governo Fernando
Henrique Cardoso, incluiu o setor audiovisual entre as suas preocupações, por
motivos ainda não tão claros. No entanto, o que é possível identificar, a
princípio, é a singularidade do caso da ANCINE frente às outras Agências
Reguladoras criadas na mesma época, fenômeno destacado por mais de um
autor, embora não devidamente trabalhado por nenhum. Nessa perspectiva,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 497

podemos apontar como possíveis causas desse fato as especificidades do setor


cinematográfico nacional, condicionadas ao próprio desenvolvimento
histórico que lhe é inerente e que podemos perceber por intermédio da
legislação.
Ao observar o status jurídico das Agências recentemente criadas no
Brasil e os princípios que a norteiam, não parece forçoso concluir que há um
processo de burocratização de diversos setores da administração do Estado
em termos específicos e a área cultural não se exclui. A necessidade de
legitimação das ações, até mesmo a concessão de recursos financeiros, confere
um caráter específico às agências:

Na base deste princípio de legitimidade, uma organização


burocrática é caracterizada por relações de autoridade entre
posições ordenadas sistematicamente de modo hierárquico, por
esferas de competências claramente definidas, por uma elevada
divisão do trabalho e por uma precisa separação entre pessoa e
cargo no sentido de que os funcionários e os empregados não
possuem, a título pessoal, os recursos administrativos, dos quais
devem prestar contas, e não podem apoderar-se do cargo. Além
disso, as funções administrativas são exercidas de modo
continuado e com base em documentos escritos. (GIRGLIOLI,
2009, p.125).

Não há a pretensão de aplicar de forma irrestrita uma conceituação


acerca da burocracia às recentes configurações do governo brasileiro. No
entanto, essas considerações de caráter teórico nos ajudam a pensar nos
caminhos que tomaram as mudanças na administração do governo brasileiro
na década de 1990 e que atingiram a área de interesse desse estudo, o cinema,
resultando na criação da ANCINE.
O presente texto não teve a intenção de esgotar o assunto acerca das
vinculações da ANCINE com as medidas relativas ao cinema e ao audiovisual
no Brasil ao longo da segunda metade do século XX, mas simplesmente
levantar algumas questões relativas às atribuições e ao lugar ocupado pela
498 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

indústria cinematográfica nacional no âmbito governamental. Para tanto,


utilizamos como fonte principal a legislação, entretanto, dada a sua limitação,
faz-se necessário um aprofundamento para dar conta da complexidade do
tema e, efetivamente, delimitar a aplicabilidade dessas medidas legais. No
entanto, a vinculação entre os períodos é evidente e isso pode ser
comprovado tanto pelas atribuições legais e a singularidade da Agência
comparada às outras agências, quanto pela evidente absorção de funções e,
inclusive de acervos documentais, de outros órgãos como os vinculados ao
MinC, à Secretaria do Audiovisual e às extintas Embrafilme S.A. e
CONCINE, apontados pelo Relatório de Gestão da autarquia (Relatório de
Gestão 2002, 2003).

Referências:
Fontes:

Decreto nº 60.220, de 15 de fevereiro de 1967.


Decreto-lei nº 862, de 12 de setembro de 1969.
Decreto nº 77.299, de 16 de março de 1976.
Decreto nº 575, de 23 de junho de 1992.
Decreto nº 2.946, de 26 de janeiro de 1999.
Decreto de 13 de setembro de 2000.
Decreto de 9 de março de 2001.
Decreto de 8 de maio de 2001.
Lei nº 6.281, de 9 de dezembro de 1975.
Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993.
Medida provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 499

Agência Nacional de Cinema – ANCINE. Relatório de Gestão 2002. Presidência


da República, Casa Civil, 2003, 47 p.

Bibliográficas:

FALCÃO, J. A. Política Cultural e Democracia: a preservação do patrimônio


histórico e artístico nacional. In: MICELI, S. (Org.). Estado e Cultura no Brasil.
São Paulo: DIFEL, 1984, p. 21-39.
GIRGLIOLI, P. P. Verbete “Burocracia”. In: Dicionário de Política. 13ª. Edição.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, vol. 1, p. 124-130.
GOZZI, G. Verbete “Estado Contemporâneo”. In: BOBBIO, N.;
MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 13ª. Edição. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2009, vol. 1, p. 401-409.
LEVI, L. Verbete “Governo”. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.;
PASQUINO, G. Dicionário de Política. 13ª. Edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2009, vol. 1, p. 553-555.
MICELI, S. O processo de “construção institucional” na área cultural federal
(anos 70). In: MICELI, S (org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL,
1984, p. 54-83.
PACHECO, R. S. Regulação no Brasil: desenho das agências e formas de
controle. RAP, Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº. 40, Jul/ Ago 2006, p. 523-43.
PÓ, M. V.; ABRUCIO, F. L. Desenho e funcionamento dos mecanismos de
controle e accountability das agências reguladoras brasileiras: semelhanças e
diferenças. RAP, Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº. 40, Jul/ Ago 2006, p. 679-98.
SIMIS, A. Cinema e Política Cultural durante a ditadura e a democracia. In: V
ENLEPICC - Encontro Latino de Economia Política da Informação,
Comunicação e Cultura, 2005, Salvador. V ENLEPICC, 2005, p. 1-17.
2.2.

As festas, práticas educativas e de sociabilidades


A experiência pelo relato de quem a fez: uma
história do projeto banda LOKONABOA

Guilherme Gonzaga Duarte PROVIDELLO*

O
campo da saúde mental vem se constituindo em um novo
paradigma, especialmente a partir do acúmulo de conhecimento
advindo das novas práticas de produção de cuidado: a Atenção
Psicossocial. Este novo paradigma designa um conjunto de novas experiências
na saúde mental, agregando ao seu objeto aspectos psíquicos e sociais,
acrescentando críticas radicais às práticas psiquiátricas tradicionais e
apresentando a interdisciplinaridade como exigência, ao propor em seus
fundamentos a horizontalização das relações intrainstitucionais. A este
paradigma são acrescentadas contribuições de movimentos de crítica mais
radical à Psiquiatria, como a Antipsiquiatria, a Psiquiatria Democrática e
alguns aspectos originários da Psicoterapia Institucional, que aspiraram para
este campo de saber outra lógica, outra fundamentação teórico-técnica e outra
ética, visando à transformação da prática psiquiátrica e a negação do Modo
Manicomial (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2001).
Entre as características deste novo paradigma, destacam-se quatro
dimensões fundamentais que compõem a sua complexidade: a epistemológica,
a técnico-assistencial, a jurídico-política e a sociocultural (YASUI, 2006;

*
Mestrado em Psicologia /UNESP/Assis/Bolsista; CAPES/CNPq. Orientador: Dr. Silvio
Yasui
504 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

AMARANTE, 2007). Enquanto muitas práticas na área trabalham na


perspectiva da dimensão técnico-assistencial1, o grupo musical “Banda
Lokonaboa”, objeto de estudo desta pesquisa, se insere na dimensão
sociocultural, que tem por objetivo transformar o imaginário social, que teme,
infantiliza e exclui os portadores de distúrbios mentais. Visa, portanto,
provocar a sociedade a refletir sobre sua relação com a loucura, com objetos e
ações culturais.
A Banda Lokonaboa, nasceu no Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) Ruy de Souza Dias, da cidade de Assis. Esse CAPS trabalha sob as
resoluções designadas pelas portarias do Ministério da Saúde, regido pelos
princípios de universalidade, hierarquização, regionalização e integralidade das
ações; pela diversidade de métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de
complexidade assistencial; e pela ênfase na participação social desde a
formulação das políticas de saúde mental até o controle de sua execução.2
Este projeto surgiu em 2001, a partir de uma oficina de expressão
musical realizada por estagiários do curso de psicologia da UNESP – Assis. A
oficina propiciava um espaço de expressão para os usuários do serviço:
expressão de suas angústias e alegrias, possibilitando aos usuários uma
reinserção no terreno da comunicação com o mundo. Assim como várias
outras oficinas que acontecem e aconteceram naquele local, visava possibilitar
a expressão dos usuários por um método diferenciado: a música, a pintura, o
artesanato, marionetes, fotos e vídeos, entre outras formas de expressão.
Esta oficina, em especial, foi se desenvolvendo e resultou na formação
de um grupo musical integrado por estagiários e usuários do serviço, além da

1
A saber, dimensão entendida “como a constituição de uma rede de novos serviços, como
espaços de trocas, de sociabilidade e de subjetivação, a partir e simultaneamente à
desconstrução dos conceitos que sustentam a prática psiquiátrica e a reconstrução de novos
conceitos.” (AMARANTE 1999, 2003 apud YASUI, 2006).
2
http://www.saude.mg.gov.br/atos_normativos/legislacao-sanitaria/estabelecimentos-de-
saude/saude-mental/PORTARIA_224.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2008.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 505

eventual participação de músicos da cidade. Esse projeto paralelo à oficina foi


chamado de Banda Lokonaboa, nome dado pelos usuários do serviço de
saúde mental, passando a propiciar, além de um espaço de promoção de saúde
mental, uma estratégia de inclusão social e cultural, por meio de apresentações
em diversos locais do município e da região. Em 2008, viajou a Buenos Aires
e se apresentou no VI Congreso Internacional de Salud Mental y Derechos Humanos,
a convite do coordenador geral da Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo,
Gregório Kazi, como uma forma de sociabilizar e intercambiar o trabalho que
vem sendo desenvolvido no Brasil e, em especial, na cidade de Assis.
O autor deste presente texto fez parte do projeto nos anos de 2007 a
2008, como estagiário, retornando em 2009 e 2010 como voluntário. Neste
período, se deu a viagem à Argentina, entre outras apresentações em eventos
da rede de saúde mental de Assis (Semana da Luta Antimanicomial,
Conferência Regional de Saúde Mental, festas no próprio CAPS, etc.),
apresentações na Faculdade de Ciências e Letras de Assis (Semana da
Liberdade Criativa, Som do meio dia, etc.) e em outros eventos acadêmicos do
Estado (Encontro da Luta Antimanicomial em Bauru, Conferência Municipal
de Saúde Mental de São Carlos, etc.)
É a partir desta experiência de quatro anos que se pretende elaborar um
histórico do projeto da banda. Tendo completado nove anos recentemente, o
projeto é inovador na área de saúde mental, pois, como já foi dito, trabalha em
uma dimensão diferenciada da reforma psiquiátrica. Nessa dimensão,
aparecem projetos que enunciam sobre a potencialidade da reforma
psiquiátrica ultrapassar uma questão epistemológica (rompendo com teorias
fundantes da razão científica, expressadas, no caso, pelo paradigma
psiquiátrico), técnica (diferenciando o cuidado com o portador de distúrbios
mentais a partir de conceitos como a humanização, a responsabilização e o
acolhimento) ou jurídica (revendo as legislações vigentes sobre os usuários da
506 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

rede de saúde mental)3. É nessa dimensão que se insere a banda Harmonia


Enlouquece4, criada, no mesmo ano, em um CAPS do Rio de Janeiro, e que
trabalha de forma muito similar à banda Lokonaboa.
A banda Lokonaboa está ligada, principalmente, ao núcleo de estágio
em saúde mental do curso de Psicologia da UNESP-Assis: este núcleo de
estágio, também supervisionado pelo orientador da dissertação de mestrado e
deste texto, trabalha com oficinas terapêuticas no CAPS Ruy de Souza Dias.
Este estágio tem uma ampla circulação de estagiários, visto que alunos
do curso que chegam ao 4º ano da graduação concorrem em grande
quantidade por uma vaga. No 5º ano, os alunos que já estão vinculados ao
estágio têm a liberdade de decidir continuar ou não fazendo parte do núcleo, e
ao se formarem, passam adiante o projeto ao qual estavam vinculados.
Aqui se insere a primeira problemática que requer uma elaboração do
histórico da banda: a cada ano, os estagiários responsáveis pelo projeto da
banda mudam, trazendo um novo ânimo ao projeto, uma “vontade de fazer”,
mas também tornando os relatos sobre os acontecimentos no projeto, seus
objetivos específicos de cada gestão, e sua memória, fragmentados.
Para tentar suprir os novos estagiários da experiência desenvolvida
pelas gestões anteriores, o supervisor incita os novos estagiários a entrarem no
projeto, enquanto algum outro com mais experiência esteja ainda vinculado,
levando adiante o conhecimento de como administrar a banda, oralmente.
Entretanto, essa memória de como a banda funcionou, do que ela fez,
de quais eram seus objetivos e de como administrá-la vai escoando juntamente
com os antigos estagiários que partem para seguir com sua carreira de
psicólogo nos mais diversos locais do país.

3
Para mais informações sobre essas rupturas, ver Yasui (2006) e Amarante (2003).
4
A experiência do grupo Harmonia Enlouquece, que fez participações até mesmo em uma
novela do horário nobre da Rede Globo de Televisão, é abordada por Calicchio (2007).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 507

Por isso, para lançar-se ao trabalho de elaborar a história do projeto, a


metodologia do trabalho precisou ser mais maleável do que o ideal: por mais
que uma entrevista aberta fosse a melhor forma de conseguir informações
sobre cada gestão do projeto, a impossibilidade de entrevistar cada ex-
estagiário presencialmente levou à elaboração de um questionário.
Este questionário se constitui de questões semidiretivas, versando sobre
as apresentações que ocorreram na época de contato com o projeto, os
usuários do CAPS que faziam parte do projeto, os objetivos e realizações da
banda na época, e questões teóricas referentes ao objetivo maior da banda e
da dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica como um todo.5
Os questionários e o termo de consentimento livre e esclarecido,
necessários à utilização deles, foram entregues, após um contato inicial –
pessoalmente, por telefone, ou, em último caso, por meios digitais –, a todos
os ex-estagiários que participaram do projeto, totalizando 14 ex-estagiários,
divididos em cinco períodos de diferentes gestões. Do total de questionários
enviados, cinco já foram respondidos e se encontravam em mãos no
momento da elaboração deste texto. Outros dois, referentes ao ano anterior à
formação da banda e a um dos estagiários fundadores, estão sendo
respondidos e serão enviados em breve. De posse destes questionários, será
possível obter relatos referentes a cada ano em que a banda esteve em
andamento e, a partir deles, pode-se retirar dados para a elaboração do
histórico.
A própria premissa de entrevistar os estagiários de cada “gestão” já se
mostra falha ao começar a leitura das entrevistas, já que a banda sempre
trabalhou por meio de uma horizontalização das relações entre estagiários e
usuários. Nada é resolvido estritamente pelos estagiários, seja o repertório,
seja aceitar ou não determinado convite de apresentação. Isso pode ser

5
Uma cópia do questionário se encontra em anexo.
508 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

confirmado nos trechos abaixo, extraídos das entrevistas, a partir do estagiário


mais antigo:

A proposta [de organização da banda]é que os usuários


participassem de todo o processo da banda, por crer que os
sentidos e o processo terapêutico são construído a partir de tal
integralidade.(Estagiário 1 - informação verbal).

Eu sempre procurava manter minha relação com eles o mais


próximo possível da forma como eu mantenho qualquer uma das
minhas relações. Quero dizer com isso que eu sempre procurava
me relacionar com eles naturalmente, sem atenção excessiva para o
meu papel de cuidador. Dessa maneira eu me via mais livre e a
vontade, e sentia que eu permitia algumas manifestações por parte
dos usuários que não ocorreriam caso nossa relação fosse um
pouco mais na lógica psicólogo-assistido. (Estagiário 2 -
informação verbal).

[a relação com os usuários] Sempre foi tranquila. Como um ser


humano, uma pessoa, um amigo. A única diferença é que esta
pessoa passava por um mal qualificado e quantificado pela ciência.
Aprendi muito com eles. (Estagiário 3 - informação verbal).

Com relação a ensaios e apresentações acredito que temos


liberdade de falar um para o outro o que não achou legal, o que
poderia mudar, ou mesmo elogiar e ressaltar o que tem sido bom.
(Estagiário 4 - informação verbal).

Assim se mostra uma primeira característica do projeto: apesar de


aparentemente funcionar em uma relação de poder entre estagiários e
usuários, o projeto rompe com a racionalidade científica ao dispor, lado a
lado, os detentores do saber sobre a loucura e os pretensos objetos deste
saber. Esse processo pode também ser visto na banda Harmonia Enlouquece,
conforme relata Calicchio:

Como um reflexo deste processo, do exercício de relações cada vez


mais horizontalizadas, os vínculos se renovam e são ressignificados
como “amizade” e “fraternidade”, fortalecendo ainda mais a
identificação entre os sujeitos. (CALICCHIO, 2007, p. 130)
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 509

Essa “des-hierarquização” das relações entre os participantes remete a


uma premissa das críticas que se fazem à racionalidade científica visível em
vários autores (FOUCAULT, 2006; SANTOS, 2000). As entrevistas revelaram
que a horizontalização das relações são uma preocupação da banda desde seu
início e, por isso, uma característica do projeto. Ora, se um projeto tem por
objetivo reavaliar, e fazer o público repensar o trato com a loucura em seu
aspecto social, é preciso a criação de novas relações entre os considerados
sãos e os considerados não-sãos.
Quando se fala do objetivo do projeto, é difícil não se pensar na
inserção, ou na reinserção do portador de distúrbios mentais na sociedade.
Entretanto, acredita-se que tanto o termo inserção quanto o termo reinserção
sejam rasos demais para caracterizar esse objetivo. A banda, e a dimensão
sociocultural da reforma psiquiátrica, presa por algo muito mais amplo que
isso: ao invés de colocar os usuários dentro da sociedade, de permitir-lhes o
acesso aos mesmos espaços que os “não-loucos”, objetiva-se desconstruir o
papel social destes, contribuindo para que a sociedade deixe de tratar os
“loucos” como perigosos, deixe de pensar neles baseado em estereótipos
depreciativos (o louco-infante, o louco-napoleão, o louco-assassino).
Para os estagiários entrevistados, esse é o motivo da apresentação da
banda, pois o momento em que uma pessoa é capaz de admirar um portador
de distúrbios mentais pela arte que este cria, é um momento para se reavaliar o
que se entende da e por loucura.

Para muitos, um usuário é um doente, incapaz e coitado. A banda


vem romper com esse pensamento. Não é qualquer um que leva
tão bem um compromisso como esse de banda, de várias pessoas
em conjunto realizarem uma arte. (Estagiário 5 - informação
verbal).

A sociedade passa a ver o usuário em suas diferentes perspectivas.


Não apenas como alguém que sofre (e para a visão histórica,
510 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

alguém que em surto é perigoso, não apto a viver em sociedade),


mas como uma pessoa que tem um modo diferente de ver e sentir
o mundo, e que pode habitá-lo. (Estagiário 1 - informação verbal).

Entretanto, mudar o imaginário social acerca da loucura é apenas um


dos passos rumo a esse objetivo:

[...] eu penso que devemos, além de reconstruir um papel social da


loucura, também construir um papel louco da sociedade. Quero
dizer, em última instância, enlouquecer o mundo, e mostrar pra ele
que ele não vai ficar doente depois.
A banda nos serve para a mais fundamental das etapas de tal
ousadia que é a de [...] dar visibilidade positiva à loucura
qualificada. E eu digo positiva porque só dar visibilidade é abrir
canal pro sensacionalismo e pro espetáculo que se encerra em si
mesmo. O show pelo show, e isso é nojento, a meu ver. A
visibilidade, para ser positiva, deve transformar a ideia coletiva e
primitiva de loucura em algo fora dos grilhões da periculosidade
certa e da exceção humana. Isto é, do louco como rapidamente
associado ao perigo e como uma exceção ao humano abstrato
perfeito, plenamente capaz de responder por si só. (Estagiário 2 -
informação verbal).

Uma característica aparentemente inócua mostra a efetividade do


projeto: nas apresentações, os usuários e os estagiários tocam lado a lado e,
para aqueles que não conhecem os integrantes, sempre surge a pergunta: “Mas
quem é louco e quem não é louco?”. A impossibilidade de distinguir quem
porta e quem não porta o estigma da loucura por si só já obriga os
observadores a se questionarem sobre qual é a real diferença entre um “louco”
e um “são”. “Era curioso que, em algumas apresentações, pessoas
confundiam usuários, estagiários e músicos (quem era quem). Eu achava isso
genial. Pensava: ‘o projeto está funcionando’” (Estagiário 1).
A leitura dos questionários mostra que o objetivo primário da
banda se mantém o mesmo desde seu início, mas existem objetivos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 511

secundários no projeto que se fazem serem vistos, e que são inclusos em cada
“gestão” do projeto. Em 2003, por exemplo:

O poder contratual era algo trabalhado, na perspectiva das relações


micropolíticas. Em um momento, por exemplo, Wilson conseguiu
uma apresentação numa lanchonete, na qual os usuários seriam
pagos. Fomos à apresentação, e abriu-se uma importante discussão
acerca do uso do dinheiro, que inclui agora os usuários enquanto
protagonistas (o dinheiro seria dividido entre todos? Ficaria numa
“caixinha” da banda? Qual seria o valor a ser cobrado?
Começaríamos a cobrar sempre?).” (Estagiário 1 - informação
verbal).

Em 2006, um novo objetivo, agora organizacional se impôs:

Os ensaios eram realizados de forma mesclada à oficina de


expressão musical, dentro de uma das salas do prédio do CAPS.
Logo após alguns ensaios, percebi que tal metodologia era
infrutífera, pois nem a oficina de expressão musical nem os ensaios
conseguiam atingir um objetivo satisfatório, ficando sempre
“faltando alguma coisa”. A impaciência de alguns usuários
pertencentes à banda começava a se manifestar, o que me causou
muita felicidade, por perceber que eles não se restringiam a firmar
uma opinião sobre o andamento da coisa. (Estagiário 3 -
informação verbal).

Neste mesmo período, foram elaboradas outras ideias que,


infelizmente, não puderam, por motivos burocráticos, ser levadas à frente:

Dentre as ideias discutidas, duas foram de suma importância: a ida


da banda para tocar em Buenos Aires e um possível incentivo da
Petrobrás. Estas constituíram as principais angústias. Ambos os
projetos falharam à época, principalmente devido à burocracia de
órgãos como CFP (Conselho Federal de Psicologia) e de disputas
de ego especialmente envolvendo a Pirassis. (Estagiário 3 -
informação verbal).

Foi somente em 2007 que a banda foi capaz, com o preparo de seis
meses de antecedência, fazer a viagem para Buenos Aires, graças à insistência
512 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

do coordenador do Congresso, que novamente encaminhou um convite para


a banda.
Outra preocupação que sempre apareceu na banda era em relação à
qualidade musical: para cumprir com seus objetivos, os músicos deviam estar
sempre atentos ao modo de tocar, como explicita um dos estagiários:

Outro ponto importantíssimo é a qualidade da música, estar


afinado, tocar bem, etc., uma vez que a sociedade é bem menos
tolerante com eles. Isso pode acarretar comentários carregados de
dó ou pena: ‘que bonitinho os louquinhos’, ‘tadinho deles, pelo
menos estão tentando’, etc. [...]. (Estagiário 3 - informação verbal).

A qualidade musical também era um problema que cabia aos


estagiários: afinal, todos os que fizeram parte do projeto eram músicos por
hobby e, assim, muitas vezes faltava a qualidade técnica para se apresentar,
regular a aparelhagem de som, ou para ajudar os usuários a aprenderem a
tocar seus instrumentos.
A maior crise em relação a isso era a possibilidade de criar músicas
próprias, a partir de letras escritas pelos participantes das oficinas de expressão
sonora ou da banda. Por muito tempo, faltou a instrumentalização dos
integrantes da banda para “musicar” as letras que iam aparecendo, e isso
causava certa angústia, pois os participantes sentiam que a banda poderia
avançar rumo a uma profissionalização, se fosse capaz de elaborar músicas de
autoria própria.
No ano de 2009, a formação da banda foi restabelecida graças a mais
uma “troca” dos estagiários do projeto: os estagiários que faziam parte do
projeto tinham se formado, e a busca por novos estagiários se mostrava difícil.
Entretanto, na seleção de estágio daquele ano, foram admitidos cinco
estagiários interessados, especificamente, na banda: um violonista, uma
clarinetista, uma tecladista, um percursionista e uma violoncelista. A banda
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 513

passou a ser composta por uma grande quantidade de músicos, o que auxiliou
na qualidade musical que há tanto tempo se almejava.
Um deles, inclusive, deu continuação ao sonho de elaborar um
repertório próprio, utilizando as letras compostas por um dos vocalistas da
banda, um dos usuários do sistema de saúde mental. Daí nasceram as três
músicas originais da banda: Comprimido, Professor e Psicologia.
Foi também nesse último período que a Faculdade de Ciências e Letras
de Assis recebeu a visita da banda Harmonia Enlouquece, que se apresentou
na Faculdade, juntamente com a banda LOKONABOA:

Mas no dia que tocamos com “Harmonia Enlouquece” foi o


melhor. Estar ao lado que quem admiramos e que tem muito
talento foi uma inspiração. Também vimos como precisamos
melhorar a nossa qualidade como banda, mas que estamos no
caminho. (Estagiário 5 - informação verbal).

As apresentações da banda sempre são a parte mais recompensadora do


projeto, por isso foi a parte que deixou mais marcas nas entrevistas:

A principal [apresentação da época do autor] foi na semana da luta


antimanicomial de 2005 [...]. A pluralidade do repertório refletia a
diversidade da banda, a proposta de diferentes encontros e
produção de olhares múltiplos, de produção de vida. Assim,
tocávamos sertanejo (às vezes em versão hardcore!), rock (Titãs,
Ultraje a Rigor, Paralamas, Raul Seixas), forró (Alceu Valença),
músicas do Harmonia Enlouquece. As músicas, sempre, eram
escolhidas pelos usuários. (Estagiário 1 - informação verbal).

No Clube recreativo foi a primeira vez em que eu realmente me


senti como parte de uma banda que era uma banda. Tínhamos um
baterista profissional, equipamento de som profissional e uma festa
“profissional”. Os usuários estavam um pouco endurecidos no
inicio, mas logo se soltaram. O público nos aceitou muito bem e as
músicas ficaram bem tocadas sem muitos erros, tudo dentro do
aceitável. Foi uma noite divisora de águas no meu modo de ver a
banda. (Estagiário 2 - informação verbal).
514 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Num clube, no centro de Assis: equipamentos fantásticos e um


palco espetacular! Pessoal super animado, em torno de 200 pessoas,
todos cantando e vibrando com a banda! Abrimos para mais duas
bandas. Foi a melhor, sem dúvida! (Estagiário 3 - informação
verbal).

Viajamos com eles [os usuários] algumas horas e foi um momento


de amizade mesmo e de aproveitar o que estava sendo
proporcionado para nós como banda. Foi muito interessante,
porque em Tupã, na época havia 3 hospitais psiquiátricos e quem
foi nos assistir foram alguns internos. Dá pra ter noção da emoção
de estar ali? Mostrando para as pessoas o trabalho e dizendo que é
possível ter uma vida melhor, com mais qualidade e liberdade. Eles
mesmos comentaram se os usuários da banda ficavam fora do
hospital e ficaram admirados disso. (Estagiário 5 - informação
verbal)

É claro, porém, que apesar da banda se elaborar em torno da criação de


um novo imaginário social para a loucura, enquanto um projeto de saúde
mental, ela não foge das outras dimensões que perpassam a reforma
psiquiátrica: essas dimensões são apenas linhas guias para melhor se
posicionar frente ao desafio de mudar a sociedade, torná-la “uma sociedade
sem manicômios”, ou mesmo dar um lugar na sociedade à loucura, à desrazão.
Esses objetivos secundários, ou seja, inscritos na dimensão jurídico-
política, técnico-assistencial, ou epistemológica, se mostram também nas
memórias dos estagiários sobre o dia a dia da banda:

Nosso vocalista estava em surto. Iríamos realizar uma apresentação


dentro de dois dias. Marcamos um ensaio fora do horário da
oficina para ter uma ideia se seria possível fazer a apresentação.
Nunca vi o Wilson cantar tão bem como naquele ensaio, parece
que colocando todas as suas angústias para fora, ali, na música,
errando pouquíssimo. (Estagiário 3 - informação verbal).

Certa vez, no CAPS, chamei uma usuária que estava em surto, não
falando nada com nada. Ela sentou num corredor próximo de onde
a banda estava tocando, parecia que não queria ser vista pelos
outros, não pegou nenhum instrumento, apesar da minha
insistência. Perguntei se ela iria ficar bem ali, sozinha, ela
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 515

respondeu que sim. Poucos minutos depois fui ver como ela
estava. Ainda estava lá, cantando baixinho. Ao conversar com ela,
sua lucidez havia retornado. (Estagiário 3 - informação verbal).

Entretanto acreditamos, e as entrevistas dão sentido histórico a essa


ideia de que a banda é uma forma inovadora de “tratar” a loucura, não
cuidando do “louco”, mas da sociedade que o estigmatiza, trancafia, ignora e,
ainda hoje, em tempos de reforma psiquiátrica, exclui e desqualifica (seja no
domínio do social, seja no domínio da linguagem). As entrevistas mostram de
onde vem esse modo de pensar, mostram a herança que o projeto trouxe,
oralmente, desde sua criação.
E mostram, também, uma perspectiva que tornou possível a elaboração
do projeto, uma perspectiva pautada na ideia de romper com a forma
desumana de tratar a loucura que até pouco tempo ainda vigorava.
Acredita-se, como Amarante, que o objetivo sociocultural da reforma
psiquiátrica é o seu objetivo maior:

Na medida em que o imaginário social – e muito dele é decorrente


da ideologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona loucura
à incapacidade do sujeito em estabelecer trocas sociais e simbólicas,
a quarta dimensão é a que denominamos de sociocultural, e que
expressa o objetivo maior do processo da reforma psiquiátrica, ou
seja, a transformação do lugar social da loucura. Assim, o aspecto
estratégico desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que
visam transformar a concepção da loucura no imaginário social,
transformando as relações entre sociedade e loucura.
(AMARANTE, 2003, p. 53, grifos do autor).

Ressalta, ainda, que o relato e a história, de uma experiência que se


pauta por essas premissas, são de extrema importância para a continuação
desse processo social complexo que é criar uma sociedade sem manicômios.
Seja para vincular essa cartografia dos acontecimentos que circunscreveram o
projeto da banda desde seu início a outros profissionais da área, e a outros
516 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

acadêmicos em geral, seja para quesitos documentais, para que, num futuro, a
história deste projeto não se perca para sempre.
E por falar em história, cabe acompanhar Foucault, num exercício de
imaginação, que leva a um futuro distante, onde o desaparecimento da loucura
não seja mais um fato em processo, ou mesmo recente, mas um sonho
concretizado:

[...] entre as mãos das culturas historiadoras não restará mais nada a
não ser as medidas codificadas da internação, as técnicas da
medicina e, do outro lado, a inclusão repentina, irruptiva, em nossa
linguagem, da fala dos excluídos. (FOUCAULT, 2006, p. 211).

E segue-se, considerando que ao fim da loucura, enquanto doença,


surgirá ainda a desrazão em outras formas:

Mas uma coisa permanecerá: a relação do homem com seus


fantasmas, com seu impossível, com sua dor sem corpo, com sua
carcaça da noite; uma vez o patológico posto fora do circuito, a
sombria pertença do homem à loucura será a memória sem idade
de um mal apagado em sua forma de doença, mas obstinando-se
como desgraça. (FOUCAULT, 2006, p. 211).

Objetivando uma sociedade sem manicômios (como diziam os cartazes


da luta antimanicomial nos anos oitenta), não se ilude com a possibilidade de
um fim da falta de razão do ser humano: busca-se, sim, a construção de outra
sensibilidade para o que se entende hoje como loucura, retirando desta o
estigma de doença mental e buscando vincular um fortalecimento dos
usuários enquanto seres humanos, cidadãos e músicos, artistas, ou seja,
pessoas capazes de produzir. Talvez um dia não haja mais discriminação
frente aos portadores de distúrbios mentais (ou qualquer outro nome pelo
qual venham a ser conhecidos), apesar de suas particularidades.
O delírio, a loucura enquanto materialidade ainda existirá, mas o
importante não é curar o sintoma, e sim aceitar as particularidades de cada um
enquanto diferença, mas uma diferença possível, e não um critério de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 517

exclusão. Acredita-se, portanto, que o projeto em questão trabalha sobre estas


premissas.

Referências

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ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 519

YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira.


2006. Tese (Doutorado em Ciências na Área de Saúde) - Escola Nacional de
Saúde Pública da Associação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006.

Anexo

Questionário da pesquisa
O roteiro de entrevista que se segue consiste em quatro partes,
separadas para facilitar a organização das respostas pelo pesquisador.
Não é importante, de forma alguma, que sejam respondidas em escrita
formal ou sejam levantadas questões teóricas de campo algum do saber. Sinta-
se livre para escrever conforme melhor entender e não se importe com
quantidade mínima/máxima de linhas, páginas ou afins.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi encaminhado a
você juntamente com esse roteiro, e é importante enviá-lo de volta ao
pesquisador devidamente assinado, juntamente com a entrevista, para
possibilitar a utilização do material da entrevista na elaboração da dissertação
sobre a banda Lokonaboa.
O pesquisador, desde já agradece sua colaboração e se compromete a
mantê-lo informado sobre o andamento da pesquisa.

I. Histórico
1. Quais anos em que participou do projeto?
2. Conte como foi sua participação na banda Lokonaboa e/ou na oficina de
música (quando entrou, quais os objetivos na época, principais angústias...)
3. De quais apresentações você se lembra? Como foram?
4. Você se lembra de quais usuários participavam? De quantos participavam?

II. Terapêutica/Clínica
1. Como é/era a relação com os usuários da banda?
520 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

2. Para você, qual o sentido que a banda fazia para esses usuários?

III. Dimensão Sociocultural


1. Você acredita que a banda pode ser uma ferramenta para a reconstrução do
papel social da loucura? Se sim, como?

IV. Outros
1. Acredita que há algo mais a ser dito? Algo que não foi contemplado nas
questões acima?
Carnavais Cariocas: entre a teoria e a prática

Danilo Alves BEZERRA*

Os caminhos teóricos no campo cultural

E
ste texto tem por objetivo pensar a produção historiográfica
referente ao carnaval, e mais precisamente o carnaval carioca. Sabe-
se, de antemão, que a produção sobre o tema, em certos períodos,
ainda é escassa, tendo em vista o privilégio de abordagens políticas e
econômicas comparado às manifestações culturais para perfazer o percurso
histórico social. Nesse sentido, outros temas são alçados para a reconstrução
do passado a partir do viés cultural, incluindo manifestações culturais diversas,
que exprimiam sentido e condição de grupos sociais variados. Assim, o
carnaval como tema de estudo, faz parte desse movimento. Dimensionar a
produção referente a esse tema é tarefa útil e obrigatória para que se pese o
avanço dos estudos culturais.
O alargamento da concepção de fonte histórica, propiciado pela Nova
História Cultural, traz à tona indivíduos e manifestações até então alijados
desse processo, tendo em vista a preferência que era concedida às questões, já
assinaladas, como via para se entender o passado.

*
Mestrando em História/UNESP/Assis/ Bolsista CAPES/Orientadora: Prof. Dr. Zélia
Lopes da Silva.
522 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

No que tange à Nova História Cultural e seus objetos, François Dosse


expõe a mudança da perspectiva histórica e seus objetos em A História em
Migalhas: dos Annales à Nova História (DOSSE, 1992).
Ao enfrentar uma reviravolta metodológica em busca de se defender
como ciência, a História assimila a Antropologia e suas ferramentas para
manter seu espaço; segundo o autor, “[...] o preço a pagar por essa nova
readaptação é o abandono dos grandes espaços econômicos braudelianos, o
refluxo do social para o simbólico e para o cultural” (DOSSE, 1992, p.169).
Novos horizontes são traçados por essa antropologia histórica ou
história etnográfica: o tempo humano passa a ser imóvel, o estudo das
sensibilidades e da cultura material é privilegiado frente aos aspectos
econômicos e sociais bem como as mudanças que estes acarretam.
A História econômica e social transforma-se em cultural e este se
configura no maior engodo para Dosse, o qual considera que “[...] a história
da cultura material é certamente rica em descobertas, mas com a condição de
ser o lugar de ‘cruzamentos’ da história econômica, social e cultural” (DOSSE,
1992, p.175).
Por perder de vista a dimensão do político nos anos de 1930, e o social
nos de 1970, os Annales acabam por elaborar uma dualidade entre cultura
popular e erudita que oculta a dimensão política. O social e o cultural devem
ser entendidos desde que analisados numa dimensão política, pensando seus
protagonistas como sujeitos políticos (DOSSE, 1992, p. 178).
A quarta geração da Escola dos Annales (Nova História Cultural) tem
no tempo local a busca por um referencial que possa refletir um conjunto
globalizante, pois, por mínimo que seja um objeto, ele contém a totalidade e o
historiador mergulha neste em busca das séries que irão refletir o passado que
se procura reconstituir.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 523

A História deixa de ser global e passa a ser serial, o tempo único cede
lugar a temporalidades heterogêneas. A seriação dos fatos pertencentes a
conjuntos homogêneos pode medir as flutuações do objeto aferido dentro de
sua própria temporalidade.
A história serial privilegia as descontinuidades, busca nas margens do
social o contorno do real. O louco, a criança, o corpo e o sexo ganham foco
nesse rol de novos objetos que perfazem a realidade descontínua (DOSSE,
1992, p.185).
A abertura histórica a outras ciências sociais além de ser uma defesa
aberta da História como ciência, perpassa a influência da modernidade e suas
técnicas como influenciadora dessa modificação,

[...] que se adapta a nossa sociedade moderna ao nos restituir a


história em migalhas, quantitativa, ao decompor a totalidade
histórica em objetos heterogêneos, ao apresentar o universo imóvel
em que a mudança é somente técnica ou cultural, jamais social ou
política. (DOSSE, 1992, p.190).

Ao defender a História que engloba o social, o cultural e o econômico,


François Dosse critica os anacronismos que podem surgir da história serial ao
pensar o passado com os quadros mentais presentes; ao privilegiar séries que
deixam de lado as estruturas que a perfazem, sem, no entanto, resolver o
problema de passagem de uma série à outra (DOSSE, 1992, p.194).
Adepto da história cultural, Peter Burke avalia como proveitoso o
encontro da História com a Antropologia, pautando novos objetos e olhares
ao passado. Segundo Burke (2000), o problema está em lidar com a
fragmentação sem retornar a uma posição que homogeneizava e diluía as
diferenças. A questão é “[...] revelar uma unidade subjacente (ou pelo menos
ligações subjacentes) sem negar a diversidade do passado” (BURKE, 2000,
p.255).
524 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A defesa da história antropológica se faz na medida em que há culturas


que devem ser entendidas sem qualquer juízo de valor daquele que as observa,
no sentido de atribuir adjetivos como “sociedades com cultura” e “sem
cultura”. Estas se configuram apenas de maneira diferente.
Essa redefinição, para Burke, passa pela abrangência de outros campos,
não apenas a arte, mas a cultura material; não apenas o escrito, mas o oral. A
cultura como instrumento de invocação para entender fenômenos
econômicos e políticos.
A ideia de recepção e tradução também incorpora um saldo positivo
para os historiadores culturais, “[...] os receptores, de maneira consciente ou
inconsciente, interpretam e adaptam as idéias, costumes, imagens e tudo o que
lhes é oferecido” (BURKE, 2000, p.249).
A consequência desse alargamento conceitual e metodológico pelo qual
passou a História nos anos de 1970 resulta no fato de que a História cultural
deve conter em si mesma toda a “polifonia” que a representa. Todos os
pontos de vista: dos vitoriosos aos vencidos, dos homens às mulheres, dos
contemporâneos aos historiadores.
Os problemas conceituais estão no modo como caracterizar esses
encontros: hibridismo, aculturação, transculturação, etc. Partindo para
problemas empíricos que determinam o olhar a ser privilegiado,
reconstituindo, assim, a maneira pela qual os indivíduos elaboram a sua
identidade e a retransmitem (BURKE, 2000, p. 260-7).
A mudança no foco do processo histórico em direção ao imaginário, à
cultura material, aos movimentos populares foi demarcada acima como
referente aos anos de 1970. No entanto, pode-se verificar, na obra do linguista
Mikhail Bakhtin, as bases para a codificação da relação de segmentos
excluídos da organização social com a ordem vigente.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 525

Em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (1993)


demonstra a importância do riso na literatura renascentista de Rabelais como
representativos de uma nova ordem, um novo mundo que se constrói à parte
da organização oficial ditada pela Igreja e pelo Estado.
Sem a percepção dessa dualidade de mundos não há como
compreender a consciência cultural da Idade Média e da civilização
renascentista. Na sociedade dividida medieval, o riso toma formas não-
oficiais, expressando, no âmbito da cultura, o pensamento e os anseios dos
segmentos populares.
As festividades, entre elas o carnaval, exprimem uma concepção de
mundo em que as alternâncias e as renovações se opõem à regulamentação e
ao tempo estático propostos pelos governantes. A consciência individual é
antes social, e, por isso mesmo, pretende-se reinventar dialeticamente esse
mundo de restrições imposto de cima para baixo. Mesmo que essa inversão de
lugares seja efêmera.
Portanto, “[...] o carnaval é a segunda vida do povo, baseada no
princípio do riso, é a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de
todas as formas de ritos e espetáculos cômicos da Idade Média” (BAKHTIN,
1993, p. 07). Neste, unidade e diferença estão juntas, a linguagem cômica
reflete a diversidade de formas e manifestações, nas festas, nos rituais e na
literatura paródica de Rabelais.
A dimensão da cultura popular, para Bakhtin, encontra-se em
consonância com a sua dimensão social, seu lugar dentro dessa sociedade de
classes. Esta se concretiza na praça pública, por meio dos ritos que ali se
perfazem e tornam os atos cômicos significativos nesse contexto de
circularidade cultural.
526 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Bakhtin entende os ritos e espetáculos como representativos de uma


nova ordem, um novo mundo, que se constrói à parte da organização feita
pela Igreja e pelo Estado.
É nesses ritos que se constitui a possibilidade do povo colocar seus
anseios, suas vontades, seu pensamento. Nos ritos, o povo propõe uma nova
visão do mundo em que se vive, no qual a ruptura do paradigma vigente é
posta como possível e alcançável, tendo como meio para tanto: o riso, o
chiste, a inversão dos valores e a quebra dos paradigmas.
Quanto às obras cômicas e verbais, o autor destaca os fenômenos e os
gêneros da praça pública, reduto dessa produção e sua transmissão, onde são
promovidas novas formas de comunicação. Formas estas que evidenciam as
questões do corpo, do princípio material e que estão caracterizadas pelo
realismo grotesco, característico do modelo rabelaisiano (BAKHTIN, 1993, p.
05).
A comicidade no contexto de Rabelais tem uma significação positiva,
regeneradora, criadora, que a diferencia, nitidamente, das teorias e filosofias
do riso posteriores. De acordo com Bakhtin (1993, p. 63), “[...] o riso na Idade
Média, durante o Renascimento, tornou-se a expressão da consciência nova,
livre, crítica e histórica da época”. Desfigura, degrada, desvirtua os poderes
estabelecidos, na sincronia (a festa e sua ambivalência) e na diacronia (em
relação à dimensão histórica). Portanto, o riso liberta e ao libertar concede a
consciência social. Bakhtin talvez tenha escolhido o riso como viés analítico
desse contexto porque ele destrói a seriedade oficial, e o faz para revigorá-la
em seguida. Configurando uma situação de oposição (base/superestrutura)
para a construção de algo novo, por intermédio da dialética do materialismo
histórico.
O riso carnavalesco é a chave para o entendimento da cultura popular
da Idade Média e do Renascimento, por ser universal, e ser patrimônio do
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 527

povo, pois abarca tudo que existe; e também ambivalente, porque opõe
popular/erudito.
As formas e as imagens da festa popular na obra de Rabelais podem ser
vistas por meio do seguinte exemplo:

Nesse sistema [carnaval], o rei é o bufão, escolhido pelo conjunto


do povo, e escarnecido por esse mesmo povo, injuriado,
espancado, e quando termina o seu reinado, da mesma forma que
hoje ainda se escarnece, bate despedaça, queima ou afoga o boneco
carnavalesco que encarna o inverno desaparecido ou o ano velho.
(BAKHTIN, 1993, p. 172, grifos nossos).

Por meio das injúrias, dos golpes, o soberano – escolhido pelo povo – é
destronado. Nos rituais de destronamento/injuriação, o chicaneiro é, ao
mesmo tempo, o representante da velha e da nova ordem. Mata-se, espanca-se
o antigo para que o novo renasça a partir daquele mesmo (BAKHTIN, 1993,
p. 174-5). Tudo isso se faz rindo e para rir. O destronamento do velho poder,
do velho mundo, da antiga verdade morre e dele mesmo brota o novo,
materializado na figura do chicaneiro.
Mesmo que passageiro, o carnaval enraíza-se no âmbito ideológico dos
anseios e da busca por um futuro díspar do presente,

[...] a multidão em júbilo que enche as ruas ou a praça pública não é


uma multidão qualquer. É um todo popular, exterior e contrária a
todas as formas existentes de estrutura coercitiva social, econômica
e política, de alguma forma abolida enquanto durar a festa.
(BAKHTIN, 1993, p. 222).

A carnavalização do mundo abre caminho para uma nova verdade, uma


nova convicção, com a possibilidade de abolir toda e qualquer estrutura
coercitiva ou que suprima o corpo e o pensamento popular. Este processo
528 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

fornece a entrada para um universo utópico sem uma perspectiva utilitária,


adentrando num campo sem limites (BAKHTIN, 1993, p. 239-41).
A praça pública, reduto das imprecações, das festividades, das feiras, do
novo vocabulário, da nova maneira de se expressar, torna-se o local de
propagação dessas imagens. É o meio pelo qual o povo coloca sua vontade,
seus desejos e anseios, escarnecem e destronam a velha ordem, rindo de si e
para si.
Os populares são os atores e expectadores desse espetáculo que
configura a sua própria realidade. Atuam de maneira a querer modificá-la,
buscando um sentido que os satisfaça, uma vez que os moldes propostos pela
vertente oficial não correspondem aos seus problemas.
O carnaval, nesse contexto, instaura a liberdade. Pontua a diversidade
na unidade de um grupo e anseia por uma ordem diferente da existente. Um
grupo que ambiciona, por uma válvula de escape, para a velha estrutura da
vida e encontra na festa seu regozijo, sua evolução, sua tomada de consciência.
Enfim, uma segunda vida.
A obra de Rabelais, na leitura de Bakhtin, parte do ponto de vista
popular em oposição à cultura oficial. Bakhtin pontua suas referências como
reais, apenas hiperbolizadas, capazes de delinear um panorama do período
“[...] Por trás das mais fantásticas imagens desenham-se acontecimentos reais,
figuram pessoas vivas, residem a grande experiência pessoal do autor e suas
observações precisas”. (BAKHTIN, 1993, p. 385). Por detrás da hipérbole,
dos injuriamentos, dos rebaixamentos, das imprecações e “personagens”,
Rabelais denota a realidade da praça pública, da feira, das festas, do povo que
se unia para buscar outra configuração social.
O desafio lançado por Mikhail Bakhtin é a compreensão desses
discursos que se opõem, interpelam-se, e que, aparentemente, estão divididos
entre cultura oficial (erudita) e popular. A questão está na absorção desses
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 529

discursos, das modalidades as quais estes se colocaram, na visualização dos


seus objetivos, nas permanências e rupturas que delimitam. Aqui
base/superestrutura se enfrentam e se diluem no mesmo movimento.
Os festejos carnavalescos no Brasil têm sido influenciados por algumas
dessas abordagens teóricas e ganharam projeção a partir das interpretações e
reflexões de Mikhail Bakhtin, ou em oposição às suas propostas, negando o
caráter de inversão da ordem para análise do carnaval brasileiro.

Os carnavais na percepção historiográfica

Maria Isaura Pereira de Queiroz, socióloga de formação, ao estudar o


carnaval brasileiro, baseia-se no modelo estruturalista ao defender que a
organização geral da festa e suas mudanças relacionam-se com as mudanças
estruturais ocorridas na sociedade brasileira1.
A dimensão do processo histórico pelo qual o carnaval carioca passou é
percorrida por Maria Isaura Pereira de Queiroz, em um trabalho pioneiro, no
qual a autora demarca as modificações ocorridas nesta manifestação cultural
ao longo dos anos. Em Carnaval brasileiro: o vivido e o mito (QUEIROZ, 1992, p.
69), a autora expõe a trajetória da festa em questão dividida em três fases:
entrudo, grande carnaval e carnaval popular.
Na primeira fase, a perseguição quanto à prática do entrudo nas ruas
cariocas, e a preleção pelo carnaval das Grandes Sociedades ocorreram em
decorrência da adesão ao modelo veneziano, que remetia ao ideário de
progresso, objetivando construir uma imagem ligada às tendências europeias.
Pretendia-se homogeneizar, numa única base, todos aqueles que dançavam
1
Para François Dosse, a utilização da abordagem estruturalista, no caso da História, é
necessário que se reconstitua, “[...] a pluralidade de abordagens, das personalidades, sem
reducionismo, sem deixar de procurar alguns núcleos coerentes que revelem a matriz de
uma abordagem, para além da multiplicidade de seus objetos [...]. Reconstituir a riqueza de
itinerários individuais que não se deixam reduzir a uma história massificante”. (DOSSE,
1993, p. 16)
530 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

nesses dias de festa sob a tutela das Grandes Sociedades e, por consequência,
o modelo europeu (CUNHA, 2001, p. 86-89).
Posteriormente, na interpretação de Maria Isaura Pereira de Queiroz,
graças ao crescimento industrial e demográfico e à remuneração da mão-de-
obra negra e imigrante, surge, no início do século XX, o “pequeno carnaval”
(QUEIROZ, 1992, p. 64). Composto por habitantes dos morros e das regiões
periféricas, que propunham uma nova maneira de festejar, despretensiosa no
que tange aos estatutos e outras formas representativas de desfile, como a
grandiosidade dos carros alegóricos das Grandes Sociedades.
Em um breve histórico, Queiroz pontua o avanço do carnaval popular,
ou pequeno carnaval, inserido numa proposta de valorização da cultura
nacional. Em 1936, Vargas legaliza as Escolas de Samba, inserindo-as no
calendário festivo oficial. Com algumas exigências que incidiam no programa
de desfiles das Escolas, tais como a proibição de propaganda reivindicadora e
alusão comercial. Em meio às “orientações” propostas pelo poder público, as
alusões a temas ligados à história do país, suas riquezas e à possibilidade de
progresso e modernidade por meio dos mesmos, ganhavam destaque
(QUEIROZ, 1992, p. 94).
Segundo Maria Clementina Pereira Cunha (2001, p. 192), Queiroz
monta uma sucessão das formas de brincar o carnaval, vista como separadas,
deixando de contemplar a convivência de ambas nos espaços que a folia
ocupava nesses dias, bem como as representações interiores e exteriores e suas
possíveis trocas. Ou seja, não determina, por exemplo, como os ranchos e
cordões enxergavam-se.
Rachel Soihet ao discutir o trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz
considera que este “soa como uma arriscada generalização”, pelo fato desta
não considerar as particularidades referentes a determinados eventos atendo-
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 531

se a uma história linear dividida em etapas, adotando um “[...] substrato


comum a todos os seus participantes.” (SOIHET, 1998a, p. 11-12).
Portanto, o olhar que estruturaliza o objeto, além de global, deve ater-se
à diacronia. Em relação à legalização das escolas de samba, Queiroz entende
esse processo como uma simples concessão, de caráter populista, feita pela
Prefeitura para controlar a massa dos subúrbios, bem como um signo de
aceitação da miscigenação como representativo do caráter nacional
(QUEIROZ, 1992, p. 96-7).
Essa adaptação dos segmentos populares ao meio é interpretada por
Queiroz como uma “adesão espontânea” ao modelo das Grandes Sociedades,
“[...] o desfile nas avenidas centrais do Rio deixa de parecer a afirmação de um
direito conquistado e apresenta-se como recompensa concedida diante de um
“bom comportamento” manifesto” (QUEIROZ, 1992, p. 110). Assim, a
ascensão das escolas de samba, se deveu ao nacionalismo exacerbado da
década de 20 e não como fruto de um movimento interno dos populares que
a organizaram, “para ela [Queiroz], tudo foi decidido de cima” (SOIHET,
1998a, p.13). Truncando, assim, a verificação desse complicado processo que
tem atores distintos, com objetivos diversos e que trilharam um caminho de
intenso intercâmbio de opiniões.
A relação entre poder público e segmentos sociais diversos que
compõem o cenário do carnaval carioca é um dos focos do estudo de Rachel
Soihet em A Subversão Pelo Riso (SOIHET, 1998b), no qual salienta que essa
relação adquire contornos díspares dos mostrados por M. Isaura Pereira de
Queiroz nas linhas acima.
Soihet pensa o riso, via Mikhail Bakhtin, como uma arma contra toda
forma de hierarquização social, em que o caráter subversivo da festa se impõe.
Para a autora, os aspectos observados pelo linguista na cultura cômica popular,
entre eles o “realismo grotesco”, possibilitavam o “rebaixamento” para o plano
532 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

físico de estruturas sociais rígidas que permeavam o cotidiano medieval e,


também, esse riso pode ser percebido nas manifestações populares do Rio de
Janeiro na virada do século XIX para o XX, onde:

[...] por meio de canções, representações teatrais, cartas anônimas,


inversões e utilizações jocosas de signos de poder, os populares
demonstraram resistência a situações que lhe eram opressivas. Para
estes segmentos excluídos, o Carnaval, particularmente,
representou uma possibilidade de participação da qual não se
omitiram. (SOIHET, 1998b, p. 15)

Diferentemente de M. Isaura Pereira de Queiroz, Soihet informa que os


segmentos populares:

[...] não foram, portanto, passivos e impotentes, nem ficaram à


mercê de forças históricas externas e dominantes. Pelo contrário,
desempenharam um papel ativo e essencial na criação de sua
própria história e na definição de sua identidade cultural.
(SOIHET, 1998b, p. 16).

Mesmo usando o termo “cultura popular”, a autora o entende em pleno


intercâmbio com a cultura dita dominante, tomando o conceito de circularidade
cultural presente na obra de Bakhtin e reforçado por Carlo Ginzburg em O
queijo e os vermes. E. P. Thompson, também influencia Soihet quanto ao uso
dos rituais para perfazer os costumes de uma dada sociedade, pensando-os
historicamente e deixados de ser entendidos como “relíquias”. Portanto, “[...]
na análise do ritual [ou do carnaval] importa ultrapassar a forma e atentar para
as relações reais que nele se expressam. Verifica-se que, seja qual for sua
origem e seu simbolismo manifesto, este foi adaptado para um novo fim”
(SOIHET, 1998b, p. 17).
As influências teóricas de Soihet se completam com o trabalho de
Roger Chartier – História Cultural. Entre práticas e representações –, firmando-se no
conceito de apropriação, em que cada indivíduo possui práticas específicas e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 533

apropria-se “[...] de forma diversa dos materiais que circulam numa


determinada sociedade, dando lugar a usos diferenciados e opostos dos
mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas ideias” (SOIHET, 1998b,
p.16).
A autora inicia sua análise com olhos à Festa da Penha, uma espécie de
avant-première do carnaval, tendo em vista a posição dos literatos da época,
entre eles Olavo Bilac, que considerava a procissão da Penha como atrasada e
anacrônica. No contexto de atrelamento aos ideais modernos, os governantes
e boa parte dos intelectuais julgavam bárbaros os costumes e tradições
populares. A grande massa popular, que lotava a homenagem a Nossa
Senhora da Penha, representava um empecilho ao projeto modernizador
(SOIHET, 1998b, p.20-28).
Para controlar essa massa que lotava a procissão, um grande número de
soldados e policias eram usados para vigiar a multidão que ali se encontrava. A
autora destaca que os indivíduos que ali estavam, podiam ser separados entre
os verdadeiros devotos, portugueses e os duvidosos que formavam rodas de
samba e verdadeiros cordões.
Portanto, o samba, além de receber os adjetivos de bárbaro e atrasado,
levava consigo o estigma da desordem, acrescido da obscenidade da dança. A
proibição dos cordões e de seus instrumentos musicais tornou-se recorrente
entre 1890 e 1920.
No entanto, tais proibições por parte do poder público carioca e da
Igreja não desanimaram os foliões. A composição de novas músicas, e a
presença constante desses grupos tornou a Festa da Penha a mais popular
depois do carnaval, difundindo o samba para além dos guetos negros
(SOIHET, 1998b, p. 29-46).
Posteriormente à década de 1920, Rachel Soihet interpreta o processo
de nacionalização do samba, do reconhecimento do negro (mesmo que de
534 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

maneira exótica e caricaturada) e da malandragem como parte do projeto de


turismo, no qual o samba representa a cultura do seu povo em estado bruto, e
por tal, símbolo da nacionalidade (SOIHET, 1998, p. 86).
Soihet pondera a relação do DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) do governo de Getúlio Vargas, com a produção das letras de
samba, quando a década de 1920 foi permeada por sambas que exaltavam a
malandragem como característica do povo do morro. Nesse sentido, a censura
interfere para que o discurso implícito nessas letras, na década de 1930,
optasse por uma abordagem mais atrelada ao mundo do trabalho e sua
exaltação.
O processo de valorização do samba está pautado na consagração da
música popular no ocidente. No caso do Brasil, esse panorama é composto
pela valorização do samba negro; pela transição de um país rural para um país
urbano, cujo ponto nodal era o trabalhador urbano e, por fim, o discurso
nacionalista iniciado com a Semana de Arte Moderna de 22 (SOIHET, 1998,
p. 115).
O alinhamento das políticas públicas com os setores populares é
entendido como uma via de mão dupla. Em um extremo, os populares
buscavam seu espaço de festejar e, portanto, reconhecimento. No outro
extremo, o governo Vargas se propunha a negar o liberalismo da República
Velha, aos moldes europeus, e a reconhecer as riquezas do país. Essa relação
bilateral tem um custo aos populares na medida em que se enquadraram ao
sistema, de acordo com a lei (SOIHET, 1998, p. 145).
A autora aponta resistência e circularidade cultural como demonstrativos
dos festejos carnavalescos analisados, em que se pesem, mais especificamente,
manifestações como o entrudo e os cordões que recebiam dos cronistas da
virada do século XIX para o XX adjetivos pejorativos, além de toda sorte de
interdições que lhes recaíam. Os espaços partilhados pelos segmentos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 535

populares não se restringiram à Festa da Penha, rua do Ouvidor e à Praça


Onze; depois de negociações estes grupos adentraram à Avenida Central, até
então reduto do carnaval elegante das Grandes Sociedades. No entanto, em
nenhum momento esses desistiram de sair às ruas,

[...] a partir de suas manifestações culturais, desenvolveram formas


alternativas de organização, garantindo a expressão de suas
necessidades, anseios e aspirações [...] constituindo o Carnaval o
zênite de sua liberação, momento de penetração no reino da utopia.
(SOIHET, 1998b, p. 179).

Em termos de circularidade cultural, Soihet aponta a mudança de posição


na década de 1930, vislumbrada por meio da fala de um cronista requerendo
do Estado a interferência na organização dos festejos, mantendo as coisas
próprias do carnaval como o samba, os cordões e as cotoveladas próprias do
carnaval de rua que atraía mais turistas do que os bailes realizados pela elite
(SOIHET, 1998b, p. 179).
Para Rachel Soihet, mesmo em face de um governo autoritário
outorgado por Getúlio Vargas, os populares lançaram mão de estratégias para
burlar os mecanismos que pretendiam homogeneizar e disciplinar a
espontaneidade do Carnaval, negociando, recuando e avançando, como
sempre o fizeram, com o poder público. Por meio de suas práticas
construíram, com essas negociações, uma forma de “cidadania cultural”, “[...]
através da festa, de forma galhofeira, tendo o riso como arma, organizaram-se,
contagiando e empolgando toda a festa, na qual suas práticas culturais,
embora entrelaçadas às demais, acabaram tendo, apesar de tudo, maior peso”
(SOIHET, 1998b, p. 181).
Essa “cidadania cultural” apontada por Rachel Soihet é aprofundada
por Maria Clementina Pereira da Cunha em Ecos da Folia, cujo objetivo é
resgatar:
536 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...] uma história social da cultura que o faça retornar ao leito dos
conflitos, da mudança e do movimento próprios à história; chegar
perto de tensões e diálogos entre sujeitos que nem sempre estão
reconciliados sob o reinado de Momo. (CUNHA, 2001, p. 16).

Assim, a autora busca ouvir as diversas sonoridades expressadas pelas


dimensões de classe, raça, gênero e demais variantes que compõem os
folguedos da virada do século XIX para o XX. Cunha analisa uma ampla
variedade de documentos, açambarcando literatura, relatos de viajantes,
legislação, papéis da polícia e da administração da cidade, estatutos de
agremiações carnavalescas e, por fim, a imprensa carioca.
O recorte temporal (1880-1920) se faz longo, pois, Cunha se propôs a
rever essa concepção que confere às manifestações carnavalescas certa
evolução com o passar dos anos, vista anteriormente em M. Isaura Pereira de
Queiroz; por não contemplar o caráter de competição existente entre os
foliões que partilhavam “a cotoveladas” os espaços das estreitas ruas do Rio
antigo2.
Ao examinar o carnaval carioca, a autora relativiza a noção de cultura
popular, homogeneizada pela crítica nas primeiras décadas do século XX, suas
diferenciações, oposições e continuidades. Questiona as fronteiras entre
Pequeno e Grande Carnaval, bem como seus enfrentamentos para conquistar
espaço próprio (CUNHA, 2001, p. 157).
Aquém de uma concepção estreita em torno da busca pelos locais de
representação e o jogo do poder, o duelo entre elite e povo configura-se
relativo. A concessão de um dia considerado “forte” (a segunda-feira gorda) e
a adesão dos suburbanos aos estatutos que os enquadravam na norma

2
A autora, tal qual Soihet, no trecho que segue, critica as análises que instauram uma
posição contra uma “[...] infância colonial do entrudo, seguida pela adolescência enfatuada
e esnobe dos préstitos venezianos de oligarcas afrancesados, por fim substituídos pela
maturidade original e cadenciada das escolas de samba que celebram e exprimem a imagem
que nos reconcilia, acima da diversidade e das profundas desigualdades entre brasileiros.”
(SOIHET, 2001, p.15).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 537

pretendida, não percorre os significados e potencialidades que a relação


demanda.
Cunha pontua essas modificações tendo em vista a dinâmica tradição-
progresso. De um lado estava a tradição, representativa da identidade nacional
e de outro a civilização e o progresso pretendido por alguns intelectuais. No
decorrer do século XX, o conceito de tradição altera-se no sentido de
valorização da essência nacional (CUNHA, 2001, p. 245).
Esse movimento que entendia na valorização do carnaval popular
como elemento aglutinador de brasilidade tinha por objetivo, por parte dos
intelectuais,

[...] resolver os impasses legados por gerações anteriores: a tensão


entre o desejo de afirmar a peculiaridade e a originalidade
brasileiras, definindo o país como uma nação dotada de uma
identidade forte e definida, e, ao mesmo tempo, operar com o
registro racista e elitista com o qual havia longo tempo se olhava
para as práticas culturais das ruas (sem falar no desejo de apagar o
passado comprometedor). (CUNHA, 2001, p. 258).

A forma como os literatos, particularmente Coelho Netto, defendia a


festa parecia encobrir as tensões nela existentes, assim, “[...] a alternativa
patriótica funcionava, nesse contexto, como uma boa solução para os
impasses criados pelo falso consenso, fazendo da folia uma expressão
reveladora e irmanadora do “povo” nos braços da nação” (CUNHA, 2001, p.
261).
Para Cunha, a nacionalização do carnaval tendo em vista incorporar as
manifestações de classes alijadas do poder e em busca de representação,

[...] tem a ver com o antigo esforço de ocultamento daquela que


talvez seja a mais original marca da ‘brasilidade’: a ausência de
direito, a fragilidade da cidadania, a desigualdade radical encoberta
538 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

por um incorrigível populismo nacionalista que insiste em


reaparecer ao longo dos anos. (CUNHA, 2001, p. 307).

O desinteresse da História pela festa, talvez seja pela permanência da


“força do símbolo” de “país do Carnaval” que acaba dispensando um esforço
de reflexão por algo que “está no sangue”. A autora arrola as percepções
assentadas na produção acadêmica quanto à festa onde uma ideia de cultura
“nacional-popular” subsiste dividindo-as em três: a primeira entende “cultura”
como dotada de uma harmonia advinda de tradições que emergem em
momentos ritualizados como o carnaval, é o caso, em linhas gerais, de
Roberto Da Matta. A segunda, representada por Hermano Vianna, postula
que essa mistura harmônica de influências é resultado do esforço de
importantes mediadores culturais, em que “as diferenças podem assumir a
forma do único”. E a terceira interpretação entende no “popular”, “[...] um
veículo de resistência dos dominados em face das imposições (também)
unívocas das elites brancas e europeizadas em uma interpretação binária e
redutora, embora sempre bem-intencionada.” Que é o caso, segundo Cunha,
da posição assumida por Rachel Soihet (CUNHA, 2001, p. 310).
O termo “cultura” é abordado via E. P. Thompson, abandonando uma
simetria entre esse conceito e uma visão bipolar das classes sociais. Ao
contrário, a autora demonstra por meio das diversas análises de crônicas,
charges, e estatutos que o termo “popular” açambarca um grande leque de
posições distintas incapazes de conjecturar-se e impor-se de forma única e
congraçadora de diversos estratos sociais. Cabe, portanto,

[...] decidir se queremos fazer da festa a reiteração do sabido -


rituais de inversão e válvulas de escape - ou arriscar uma
interpretação capaz de lidar com a indeterminação e mais
preocupada em estabelecer os nexos entre as diversas práticas
carnavalescas e seus significados para os vários protagonistas,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 539

presentes em embates que tiveram dia, hora e lugar (CUNHA,


2001, p. 312)

Natalie Z. Davis é acrescida nas considerações teóricas da autora,


sugerindo que essas festas sejam entendidas como “[...] formas de teatralização
e realização coletiva (e datada) de conflitos ou tensões sociais”. Em vez de
fazer claras alusões quanto às permanências, a autora conclui que “[...]
significados pertencem a seus respectivos tempos e sujeitos, e só podem ser
buscados na história.” (CUNHA, 2001, p. 312-4)
A construção dessa “alma brasileira” é discorrida pela autora, primeiro
como um signo de tensão e busca por espaço “[...] antes que [o carnaval] se
transformasse em um atrativo turístico e em símbolo oficial da nacionalidade,
o Carnaval foi o principal meio de expressão de uma sociedade dilacerada por
feridas que se revelaram difíceis de cicatrizar.” (CUNHA, 2001, p. 314-5)
O duelo de forças entre elite-povo é interpretado pensando o contexto
da discussão da identidade nacional buscada pelo poder público e literatos no
início do século XX. Assim, os aspectos culturais são relacionados com o
contexto político do período, no qual temporalidades heterogêneas – a
cultural e a política – estão entrelaçadas perfazendo cruzamentos, proveitosos,
apontados por François Dosse.
Zélia Lopes da Silva em Os carnavais de rua e de clubes na cidade de São
Paulo: metamorfoses de uma festa (1923-1938) (SILVA, 2008) também delimita os
embates entre letrados e populares sobre a questão da nacionalização e
institucionalização do carnaval nas primeiras décadas do século XX, quando a
festa passa a ser percebida de outra forma, realçando o carnaval popular. Essa
constatação é feita via M. Clementina Pereira da Cunha. Ao longo dos anos,
segundo Silva, as práticas carnavalescas são entendidas por meio do binômio
cultura ilustrada/cultura popular, atrelado aos debates em torno do perfil de
Nação. Os festejos ganham novos contornos e de “festa organizada para a
540 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

elite divertir-se” metamorfoseou-se, ao longo dos anos, em “festejos


populares”, os quais cada vez mais passaram a expressar o amálgama dos
valores dos grupos ali participantes (SILVA, 2008, p. 29).
Pensando o carnaval como uma prática cultural, a autora discute o
termo cultura via Raymond Willians entendendo que a mesma é partilhada de
forma a eliminar a dicotomia entre elite e cultura popular. Pautada em Hannah
Arendt, Silva associa o termo à busca da imortalidade, cujo processo se daria
na produção de artefatos que levasse à “[...] superação da vulnerável
perenidade do homem em relação à natureza” (SILVA, 2008, p. 24).
A autora discute as práticas e representações carnavalescas tendo por
base autores como B. Baczko (Imaginação Social), Roger Chartier (A história
cultural: entre práticas e representações). Enquanto, a problemática do riso é
pensada via Mikhail Bakhtin, Georges Minois (História do Riso e do Escárnio) e
Vladímir Propp (Comicidade e Riso).
Silva atribui às fantasias e aos desfiles uma possibilidade de leitura dos
costumes dos foliões, considerando que alguns deles sinalizam para a
possibilidade de quebra de uma sociedade marcada por convenções sociais
diversas, estabelecendo, portanto, um dos sentidos do carnaval. Aos espaços
partilhados por segmentos sociais distintos, polos diferentes de interpretação
são postos: se no âmbito internacional M. Bakhtin entende nestes um papel
subversivo, M. Isaura Pereira de Queiroz insiste que a situação econômica dos
integrantes da festa se mantém e se reproduz durante os folguedos (SILVA,
2008, p. 43-44).
Os valores presentes nas telas e charges analisadas por Silva são
entendidos por meio da composição dos seus personagens para afirmar a
ambivalência anunciada nos desejos expressos pelos mesmos. Nesse sentido, a
tríade Pierrô, Columbina e Arlequim ganha destaque, evidenciando a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 541

permanência e/ou mudança dos valores vigentes na sociedade burguesa da


época (SILVA, 2008, p. 54).
As fantasias usadas pelos foliões são analisadas pela autora como um
componente, entre muitos, da caracterização dos folguedos. Nos bailes que
imprimiam um tom de distinção social, essas são entendidas como uma
maneira da sociedade paulista se expressar; no caso da elite, elementos do
mundo greco-romano estão presentes em diversos foliões, apontando para o
refinamento e a erudição. Quanto aos desfiles de rua, a autora analisa as
fantasias dos homens, que entre outras opções, eliminavam o chapéu da
vestimenta tradicional, apontando para a quebra das tradições (SILVA, 2008,
p. 60-1).

Sobre os espaços do acontecer carnavalesco,

As notícias sobre os festejos de Momo permitem acompanhar a


ampliação da cidade, se considerarmos, mesmo que incompleta, a
listagem dos clubes citada pelos jornais, nos anos 1920 e 1930,
como indicativa do quadro potencial desses espaços de
sociabilidade, podendo daí deduzir-se que tal ampliação
relacionava-se com a diversificação e a segmentação maior da
população da cidade e de sua espacialidade que se projetava em
diferenciadas direções. (SILVA, 2008, p. 63).

Ao pensar a importância dos clubes e grupos carnavalescos, a autora


atenta para a relação neles existente, entre seus participantes, criando laços
afetivos e de comunhão, com interesses específicos que emergem via clubes.
No caso dos agrupamentos negros,

[...] ao oferecerem atividades múltiplas, tornaram possível a esse


estrato social a ampliação das relações de convívio e de
engendramento de práticas sociais mais diversificadas. Assumiram,
além da demarcação dos parâmetros da sociabilidade desejadas para
os seus membros, também o delineamento da identidade sonhada.
(SILVA, 2008, p. 78).
542 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Aqui a autora adota a proposta bakhtiniana da possibilidade de quebra


da ordem cotidiana vigente durante o tríduo carnavalesco. Em seu livro, Silva
aponta também que as atividades desses grupos ocupavam não somente os
dias de carnavais, como o restante do ano, promovendo uma rede de
sociabilidade representativa de seus anseios, denotando, via práticas culturais,
uma representação de sua posição social claramente presente.
Para outros segmentos, médios e assalariados, analisados em charges,
desfilar e participar do carnaval representava a manutenção de seus status em
relação aos outros segmentos sem muitas posses. Assim, “[...] o verdadeiro
sonho de carnaval era poder participar dos bailes e dos corsos elegantes, nas
avenidas, alinhando-se aos segmentos endinheirados que encarnavam a tão
sonhada distinção social” (SILVA, 2008, p. 83). Instaurando a possibilidade da
quebra do cotidiano e a paridade social sonhada por esses segmentos de
assalariados tem-se reforçada a interpretação da autora em entender o carnaval
como uma prática cultural que pretende uma demarcação social.
As determinações policiais que regram e colocam barreiras no
comportamento dos foliões como um interdito à metamorfose de indivíduo
em folião,
[...] o personagem, para exibir-se nos espaços públicos, precisava da
autorização prévia, pois, a rua não era o povo, no sentido amplo,
podia ocupar e exibir informalmente suas fantasias e os seus
blocos, uma vez que pesadas interdições recaíam sobre as
brincadeiras irreverentes e impunham ao outro algum castigo. Era a
morte do charivari e a (des)ritualização do carnaval (SILVA, 2008,
p. 85-86).

O carnaval entendido por Silva na década de 1920 é mostrado de forma


polifônica, abordando matérias de jornais, caricaturas e livros de militantes
políticos. De maneira geral, as principais atrações que a festa trazia eram vistas
nos bailes fechados de organizações de imigrantes (que tinham no esporte seu
elemento fundamental), de agrupamentos trabalhistas, bem como nos bailes
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 543

fechados que traziam na distinção de suas fantasias e no preço de suas


entradas a distinção da elite em relação às outras classes, “[...] era uma festa
organizada para elite se divertir, embora esse modelo já começasse a dar sinais
de certo esgotamento.” (SILVA, 2008, p. 124)
A autora rastreia nos periódicos da época o discurso favorável ao
atrelamento dos desfiles das Escolas de Samba com o poder público, na forma
de subsídios, bem como veículo de propaganda da cultura brasileira.
Encontra-se no seio desse debate, a questão dos benefícios para a cultura
popular brasileira ser “guiada” pelos maiores representantes das artes desse
país, a Escola de Belas Artes. Sugestão parcialmente consolidada, visto que os
professores da instituição mencionada passaram a julgar os desfiles das
Escolas de Samba. Ou seja, o poder público passa a orientar os novos
paradigmas, “[...] demarcando os contornos dos temários a serem abordados,
valorizando assuntos nacionais e regionais” (SILVA, 2008, p. 131).
Mesmo contemplando o caso paulista, algumas questões desdobram-se
para o Rio de Janeiro. Em sua análise fica claro que a partir do ano de 1935, a
Prefeitura do Rio passa a participar efetivamente na organização dos festejos,
delineando os parâmetros desse processo, conglomerando a uniformização
dos padrões de julgamento, amplamente debatida na imprensa, em 1932, e
implementada, inicialmente, no carnaval carioca.
A comissão julgadora, composta pelos professores da Escola de Belas
Artes priorizava: o luxo, a cenografia, a harmonia e a originalidade (SILVA,
2008, p. 150). Portanto, tem-se, por meio dessas informações, um
posicionamento circunscrito no que tange à nacionalização da festa, aos
caminhos percorridos, e assim, ao modelo definido por aqueles que julgavam
o desfile das Escolas de Samba.
Após problematizar o uso das charges e caricaturas, para o melhor
entendimento dos valores que permeavam o período; descrever de que modo
544 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

deu-se a participação de segmentos sociais diversos na promoção dos festejos


carnavalescos; e problematizar a questão da legalização e nacionalização do
modelo carioca de carnaval; Silva problematiza o papel da mulher na
participação dos festejos carnavalescos num primeiro momento, e em seguida,
aponta como a mudança de valores em direção ao símbolo sexual deu-se no
contexto da sociedade brasileira (SILVA, 2008, p. 199-200).
De início, a participação feminina de elite: dos redutos de suas casas,
onde gerenciavam a confecção dos “limões de cera” usados no entrudo,
protagonizando o início dessas batalhas domiciliares, às ruas em desfiles no
corso, agora subordinadas à proteção dos familiares e amigos em relação aos
perigos que a multidão das ruas constituía; como também em bailes fechados
destinados à burguesia. A autora assenta-se na obra de M. Isaura Pereira de
Queiroz e relativiza a postura assumida por Queiroz considerando-a aplicável
em um curto espaço de tempo, visto que a década de 1930 já sinalizava para
uma abertura na incorporação de setores femininos, de elite e populares, nos
folguedos de rua (SILVA, 2008, p. 207).
Ao fazer um balanço sobre os avanços das conquistas femininas na
sociedade em geral, e nos festejos carnavalescos em específico, a participação
das mesmas em blocos e cordões em São Paulo deu-se já no início da década
de 1920. De fato, segundo a autora, a participação das mulheres no mercado
de trabalho informal, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, evidencia
uma maior liberdade de movimento nos espaços de sociabilidade (SILVA,
2008, p. 218-220). O que não deve caracterizar uma associação direta ligando
classe à liberdade sexual, pois, isso acarretaria outro preceito que determina o
recato e o ideal de pureza somente às mulheres de família. (SILVA, 2008, p.
222).
Ao analisar as fantasias carnavalescas das mulheres, em que algumas se
configuram com certa dubiedade abrindo frestas para os desejos, ainda que
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 545

muitas vezes envoltos no recato; a autora lança mão do conceito de


coroamento e descoroamento (conceitos bakhtinianos) dos valores presentes
no período. O “fantasiar-se” não é uma ação gratuita, esta envolve a intenção
de fazer rir que o indivíduo busca perante o grupo; o uso de fantasias como as
de presidiários, ciganos, empregadas domésticas, pela elite, reforça o caráter de
inversão por meio do riso destruidor (SILVA, 2008, p. 230-231).
Em suas considerações finais, Silva discorda da interpretação vigente na
historiografia que dicotomiza o carnaval praticado pela elite e pelos populares.
Tal prerrogativa traz mais problemas que soluções, não considerando os
espaços múltiplos ocupados por estes segmentos sociais, desconsiderando a
quebra de hierarquia por meio do descumprimento das imposições e, por fim,
as críticas de setores militantes que qualificavam a festa como um instrumento
de alienação (SILVA, 2008, p. 242).
O estudo de Zélia Lopes da Silva passa por um conceito de
estruturação do social como representativo das práticas culturais. O carnaval,
como prática cultural demarca o local do indivíduo na sociedade, indo além de
uma mera válvula de escape. Este confere sentido aos desejos que a rotina e a
estratificação social impõem aos indivíduos durante o ano que, ao
metamorfosearem-se em personagens desse palco carnavalesco, trazem
consigo a possibilidade de quebra e inversão da ordem e dos valores vigentes.
O carnaval carioca, e em alguns momentos o paulista, foi assinalado
nos trabalhos acima como componente essencial no entendimento do
processo de construção da identidade e nacionalidade brasileira. A busca por
espaços de expressão daqueles que foram alijados das organizações formais da
dinâmica social deu-se, predominantemente, de maneira simbólica, sem deixar
de considerar os embates corporais com a polícia.
Entrudo, cordões, blocos e ranchos trouxeram para as vias urbanas os
anseios daqueles que habitavam morros e periferias. Sua existência e
546 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

permanência, mesmo que reelaboradas, indicam a posição ativa desses


indivíduos na manutenção do espaço social e simbólico.
O samba e, em seguida, as Escolas de Samba alcançaram espaços
predominantemente da elite. O interesse do poder público nessa forma de
expressão merece um olhar verticalizado, em que se pesem os avanços e
recuos populares ao conseguir: a segunda-feira de carnaval para desfilar na Av.
Central; a subvenção oficial da Prefeitura para a confecção dos carros
alegóricos e fantasias; e o destaque recebido no programa de turismo do
município do Rio de Janeiro, ocorridos em meados da década de 1930.
Conjecturar as manifestações culturais com o desenvolvimento de
medidas políticas e econômicas, nas quais seus atores possuem postura ativa,
interferindo e expandindo para outros segmentos sociais seus valores e
anseios é prerrogativa fundamental dos estudos culturais. Essa posição atuante
foi interpretada, quase unanimemente, via Mikhail Bakhtin, evidenciando o
maior farol lançado sobre os estudos analisados.3
À vista do exposto, concluí-se que o carnaval carioca, que se tornou
símbolo de Brasil, proporciona questões nada simples no que tange à
reconstrução desse processo que teve influências e trocas constantes entre
segmentos sociais distintos, indo além de uma mera válvula de escape, um
passatempo ou brincadeira para turista ver; cujas respostas devem alcançar a
demarcação dos atores envolvidos nessa festa, por motivos diversos, que
movimentam, além dos dividendos financeiros, inúmeros grupos em prol da
sua realização, construindo uma rede de sociabilidade e projeção
consideráveis.
3
Outros estudos como o de Fábio dos Santos (Uma Festa e suas máscaras: carnavais populares
no Rio de janeiro de 1888 a 1923. Assis/SP: Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, 2001 -
Mestrado em História) e o de Fabiana Lopes da Cunha (Caricaturas carnavalescas: Carnaval e
humor no Rio de Janeiro sob a ótica das revistas ilustradas Fon-Fon! e Careta (1908-1921). São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2008. Doutorado em História Social), também integram o rol
de pesquisas historiográficas sobre o tema em questão e, também, fundamentaram-se em
conceitos bakhtinianos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 547

O uso de outras fontes (jornais) para se pensar o passado, a mudança


na perspectiva de tempo (curta duração), o olhar para outros atores históricos
(negros/marginalizados), e a fluidez das relações entre dominantes e
dominados (que até então se pensavam em fixas e submissas) desencadeados
pela mudança das interrogações emergentes da Nova História Cultural e de
reflexões fora deste campo, proporcionaram caminhos frutíferos em
possibilidades para a reconstrução dos carnavais carioca.

Referências:

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O


contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UnB,
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Vozes, 1994.
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: Carnaval e humor no Rio de
Janeiro sob a ótica das revistas ilustradas Fon-Fon! e Careta (1908-1921). Tese
(Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
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São Paulo: Editora Ensaio, 1993.
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SANTOS, Fábio dos. Uma Festa e suas máscaras: carnavais populares no Rio de
janeiro de 1888 a 1923. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2001.
548 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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metamorfoses de uma festa (1923-1938). São Paulo: Editora Unesp; Londrina:
Eduel, 2008
SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia - algumas
abordagens. Revista Tempo, nº 07. Terra e Trabalho. s/ano. Recebido para
publicação em jun. 1998a.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Estudos sobre o carnaval carioca da
Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas, 1998b.
Festa: um dia de exceção

Priscila Miraz de Freitas GRECCO*

O
ensaio foi o gênero literário que, em determinado momento da
história intelectual da América Latina (aqui nos focamos na
primeira metade do século XX), permitiu a comunicação e a
coexistência com outros tipos de produção e de tendências, como por
exemplo, as relacionadas ao nacionalismo como defesa e reivindicação da
identidade, e com as escolas psicológicas que exerciam evidente influência
sobre as questões da busca por um caráter nacional. Essa confluência de
temas e tendências diversas, como a psicológica, a filosófica e a social,
proporcionou discussões que configuram um estilo de pensamento e de
realização de ideias bastante enriquecedor para o pensamento latino-
americano, indicando um salto qualitativo em suas produções (DEVÉS
VALDÉS, 2000, p. 9-10).
Nesse sentido, encontramos na produção ensaística da América Latina
uma extensa série de “radiografias” acerca das várias culturas nacionais, como
Radiografia de la pampa (1937), do argentino Ezequiel Martinez Estrada, Casa
Grande e Senzala (1933), do brasileiro Gilberto Freyre, Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana (1928), do peruano José Carlos Mariátegui,
entre outros. A obra de Octavio Paz, apesar de publicada no ano de 1949,
quando já havia passado, então, o auge dos ensaios identitários, pertence ainda

*
Mestre em História /UNESP/Assis. Orientador: Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa.
550 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

a esse grupo, figurando como uma das mais importantes, tanto dentro da
produção pazeana, como para as discussões sobre a identidade nacional na
América Latina. Essa importância é marcada tanto pelo estilo ensaístico de
Paz, como pela maneira como este elaborou as discussões sobre identidade
em seu tempo.
De maneira geral, em O labirinto da solidão, Paz escreveu – nos nove
ensaios que compõem a obra – sobre temas variados que, segundo ele,
ajudavam na busca pelo entendimento do que viria a ser o mexicano no
mundo, suas relações entre si e com os outros homens, no advento da
modernidade da segunda metade do século XX, utilizando para isso
instrumentos vindos da psicanálise, da antropologia e dos estudos
sociológicos sobre as religiões e mitologias. Vinte e cinco anos depois da
primeira edição de O labirinto, em entrevista ao jornalista francês Claude Fell,
Paz afirmou que seu livro de 1950 havia surgido como tentativa de resposta
pessoal à situação cultural de seu tempo (PAZ, 2001, p. 269).
Quando vislumbramos a estrutura geral do livro, percebemos uma
organização que conduz do particular (o mexicano e o México), para o geral
(o mexicano e o México no mundo). Notamos que essa é uma estratégia do
livro, presente em todos os ensaios: caminhar do particular para o geral,
dando-se, assim, o que Paz chamou de “ritmo” para a história. No entanto,
ressaltamos que esse movimento que tentamos estruturar, não está dado, não
é evidente. Esse ritmo surge do manejo da linguagem que o ensaio
proporciona por meio de sua descontinuidade, de sua experimentação, de
certa flexibilidade na composição, que, segundo Santí (1997), Paz já usa com
propriedade, apesar de ser seu primeiro grande exercício ensaístico.
Podemos então destacar um padrão dialético na composição interna
dos ensaios de El laberinto, assim como na relação externa entre os ensaios, na
composição total do livro. Esse padrão que integra os textos permite,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 551

também, que estes sejam tratados separadamente, como é o caso deste artigo,
em que pretendemos abordar mais detidamente o terceiro ensaio, “Todos os
Santos, Dia de Finados”, no qual Paz trata de questões culturais do México
com relação às festas religiosas e cívicas, entendidas como explosões de
vitalidade, de necessidade de encontro com o outro, de comunhão com o
semelhante, e, seguindo o ritmo dialético de sua escrita, a cultura mexicana da
morte, hermética para o mexicano moderno, já esvaziada do sentido
transcendente que tinha tanto para o ancestral asteca quanto para o
colonizador cristão, mas que ainda participa de seu cotidiano, mesmo que para
demonstrar sua indiferença a ela.
Logo no título escolhido por Paz já encontramos duas imagens
marcantes que percorrem todo o livro: o labirinto e a solidão. Essas imagens
são imprescindíveis para todos os ensaios, tanto que foram escolhidas
justamente para dar unidade ao livro, como ressalta Paz em carta ao poeta e
amigo Alfonso Reyes (STANTON, 1998, p. 96), porque remetem à questão
da orfandade. Segundo Paz, o mexicano seria um ser que se sente isolado em
meio à racionalidade do mundo moderno, apartado de sua origem mítica pela
brutalidade da Conquista espanhola. Assim, suas atitudes diante do outro são
sempre de reserva, de desconfiança e submissão. Em todos os ensaios de El
laberinto, Paz tenta demonstrar o sentimento de orfandade do mexicano, e,
portanto, sua busca pela comunhão com os outros homens e com o mundo
moderno.
Assim, a abordagem desse sentimento de orfandade, presente no
terceiro ensaio “Todos os Santos, Dia de Finados”, é perpassada pelos
significados que Paz atribui à figura e significado mítico do labirinto e ao
sentimento de solidão.
Dentre as formas possíveis da figura do labirinto, conforme nos aponta
Umberto Eco (1989, p. 23-48), Paz escolheu o labirinto clássico, identificado
552 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como aquele que possui uma só saída, por isso, não existe engano possível em
seu trajeto. Ainda segundo Eco, se fosse possível desenrolar os traçados do
labirinto clássico, este se converteria no próprio fio de Ariadne: o fio condutor
da história.
Assim, temos o uso do mito aliado à história, interferindo também no
entendimento do tempo na obra pazeana. Segundo Aguilar Mora (1978), a
relação entre história e mito está presente na obra de Paz “La divina pareja”,
na qual as divisões temporais (passado – presente – futuro) são trabalhadas de
forma concomitante. Os acontecimentos desde a Conquista, os passados
indígena e espanhol até o momento em que escreve, a primeira metade do
século XX, são pensados e trabalhados nos ensaios de forma que não se
excluem, não se sobrepõem. Eles surgem integrados entre si no presente. O
passado não está excluído do presente, mas oculto nele.
Aguilar Mora (1978) assinala que essa integração dos tempos é uma
característica historicista, porque por meio dessa concepção aponta-se uma
única raiz mítica, de tradição como elemento imutável, como uma “entidade”
imóvel que espera uma “reencorporação”: “el historicismo con su “presente”
nos revela que está ahí, en el lugar lejano en donde el origen es origen.”
(AGUILAR MORA, 1978, p. 29-30). A interpretação que Paz faz das festas e
da morte, como veremos adiante, está inteiramente imbuída dessa ideia de
tempo fora do tempo, de tempo ideal.
Já a solidão surge com duplo significado: possibilidade de ruptura com
o mundo e tentativa de criar outro. A solidão apresenta-se como momento de
retiro, de expiação para a criação de outro lugar, de um novo ser. Dessa
forma, ela é a consequência da perda de um centro, de uma origem, sendo
ainda aliada ao sentimento de orfandade.
Esse sentimento surge em relação a questões importantes para se
entender o livro como a busca por uma idade primordial, uma “Idade de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 553

Ouro”, análise mítica que terá seu contraponto na história, e o sentimento de


orfandade que, surgindo através da vertente mítica, faz sua ligação com a
psicanálise. Como assinala em “Dialéctica de la soledad”: “[...] orphanos no
solamente es huérfano, sino vacío. En efecto, soledad y orfandad son, en
último término, experiencias del vacío.” (AGUILAR MORA, 1978, p. 29-30)
Paz, ao propor resolver o problema da solidão por meio de sua
dialética, ou seja, de suas duas significações no livro, como ruptura e criação, e
a buscar a identidade no regresso ao centro do labirinto, não mitificou a
história, mas num diálogo de tempos, vinculou mito e história (AGUILAR
MORA, 1978, p. 25-30).
Assim, na busca pela comunhão com seu semelhante, o mexicano,
segundo Paz, necessitaria renunciar ao tempo do cotidiano, quando deve se
“fechar” diante do outro para manter sua dignidade, e encontrar um novo
tempo, suspenso, no qual poderia se extravasar, encontrar com sua pátria ou
seu santo. O parágrafo do terceiro ensaio “Todos Santos, Día de Muertos”,
em que Paz narra a “Festa”, é celebre pela maneira vívida com que descreve
os gestos e as atitudes do povo mexicano:

En esas ceremonias – nacionales, locales, gremiales o familiares – el


mexicano se abre al exterior. Todas ellas le dan ocasión de revelarse
y dialogar con la divindad, la patria, los amigos o los parientes.
Durante esos días el silencioso mexicano silba, grita, canta, arroja
petardos, descarga sua pistola en el aire. Descarga su alma. Y su
grito, como los cohetes que tanto nos gustan, sube hasta el cielo,
estalla en una explosión verde, roja, azul y blanca y cae vertiginoso
dejando una cauda de chispas doradas. Esa noche los amigos, que
durante meses no pronunciaron más palabras que las prescritas por
la indispensable cortesía, se emborrachan juntos, se hacen
confidencias, lloran las mismas penas, se descubren hermanos y a
veces, para probarse, se matan entre sí. [...] Nadie habla em voz
baja. Se arrojan los sombreros al aire. Las malas palabras y los
chistes caen como cascatas de pesos fuertes. Brotan las guitarras.
En ocasiones, es cierto, la alegría acaba mal: hay riñas, injurias,
554 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

balazos, cuchilladas. También eso forma parte de la fiesta (PAZ,


1959, p. 43-44).

Dessa forma, encontramos em “Todos Santos, Día de Muertos”, a


afirmação de que o mexicano ama as festas e as reuniões públicas, por essas
serem ocasiões em que pode se redimir. Nas Festas, a marcha do tempo é
suspensa e um “outro tempo” ressurge e é vivido.
Neste “tempo fora do tempo”, o mexicano pode ser outro, deixando de
ser o que reprime sua vida afetiva, o que é cortês e dissimulado no seu
tratamento pessoal, podendo, na vivência coletiva da festa, se abrir, se
desgarrar. A festa seria, então, uma forma “aberta” de expressão do mexicano,
seu renascimento para vida, o que lhe permite ultrapassar a muralha da
solidão, e que na segunda parte de “Todos Santos, Día de Muertos”, ganha
sua oposição no hermetismo da morte.
Assim, o tempo da festa seria o tempo de um passado mítico, do
resgate de um passado original, o lugar do presente infinito, em que o tempo
deixa de ser linear para ser a reconciliação de todos os tempos: “La Fiesta es
una Revuelta, en el sentido literal de la palabra” (PAZ, 1959, p. 46). A
sociedade, na festa, comunga consigo mesma, os contrários misturam-se,
bem/mal, dia/noite, santo/maldito. Perde-se a noção de ordem, desaparece a
hierarquia social entre os sexos, cometem-se profanações rituais, o amor se
torna promíscuo. A festa pode tornar-se uma ruptura violenta, lançá-lo ao
vazio, à embriaguez: “A veces la Fiesta se convierte em Misa Negra” (PAZ,
1959, p. 45):

Inscrita en la órbita de lo sagrado, la Fiesta es ante todo el


advenimiento de lo insólito. La rigen reglas especiales, privativas,
que la aíslan y hacen un día de excepción. Y con ellas se introduce
una lógica, una moral, y hasta una economía que frecuentemente
contradicen las de todos los días. Todo ocurre en un mundo
encantado: el tiempo es otro tiempo (situado en un pasado mítico o
en una actualidad pura); el espacio en que se verifica cambia de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 555

aspecto, se desliga del resto de la tierra, se engalana y convierte en


un “sitio de fiesta” (en general se escogen lugares especiales o poco
frecuentados); los personagens que intervienem abandonan su
rango humano o social y se transforman en vivas, aunque efímeras,
representaciones. Y todo pasa como si no fuera cierto, como en los
sueños. Ocurra lo que ocurra, nuestras acciones poseen mayor
ligereza, una gravedad distinta: asumen significaciones diversas y
contraemos con ellas responzabilidades singulares. Nos aligeramos
de nuestra carga de tiempo y razón. (PAZ, 1959, p. 46).

Segundo Mircea Eliade (1998), o mito é uma realidade cultural


extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada por meio de
perspectivas múltiplas e complementares. Existe um novo valor semântico
dado ao vocábulo “mito”, extrapolando o comumente aceito, que o aproxima
de “fábula”, “ficção”. Assim, o uso da palavra se torna um tanto equívoco,
sendo utilizada tanto no sentindo de ficção como, no caso de etnólogos,
sociólogos e historiadores, no sentido de “tradição sagrada, revelação
primordial, modelo exemplar” (ELIADE, 1998, p. 9).
Levando em conta a nova forma de tratar o termo, que tenta se
aproximar das formas arcaicas, fazendo referência a realidades históricas, essa
abordagem pretende considerar o mito como uma “história verdadeira”
(ELIADE, 1998, p.7)1. Nesse sentido, o mito da origem da morte, por
exemplo, seria real, pois pode ser provado pela mortalidade humana. A função
principal dos mitos seria revelar os modelos a serem seguidos e fornecer uma
significação ao mundo e à existência humana, vislumbrando exercer seu papel
na formação do homem.

1
Logo no início de seu livro Mito e realidade, Eliade (1998) relata sobre uma diferença
sensível na maneira dos eruditos ocidentais estudarem os mitos, contrastando da
perspectiva adotada no século XIX, por exemplo, que tratavam os mitos com a acepção
igual a de termos como “fábulas”, “invenção”, “ficção”. Numa nova perspectiva, os mitos
passam a ser entendidos como nas sociedades arcaicas, como “histórias verdadeiras”,
preciosas por seu caráter sagrado, exemplar e significativo.
556 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Por meio dele, nascem as ideias de transcendência, de um passado


recuperável, num tempo original, forçando o retorno à origem. Ainda segundo
Eliade (1998, p.7): conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das
coisas.
De acordo com Paz (1959), os mitos, as máscaras, as festas, seriam
relatos de uma ação imaginária na qual se disfarça determinada realidade. Por
meio de metáforas nos revela, nos dá consciência do destino. Sendo assim, o
mito, segundo Paz, permitiria a transcendência, seria o lugar da revelação de
um destino, entendimento da solidão como tempo de preparação, de
provação e busca de encontro, síntese da dialética da solidão-comunhão. O
tempo cíclico do mito permitiria o reencontro dos tempos.
Nessa perspectiva Aguilar Mora (1978, p. 202-203) adverte que, quando
Paz se refere ao tempo cíclico e ao mito, está fazendo uma interpretação
equivocada do “eterno retorno” nietzscheano, entendendo-o justamente
como o que Nietzsche nega, ou seja, o “mito do eterno retorno”. A presença
de Nietzsche em El laberinto é confirmada pelo próprio Paz, na entrevista a
Claude Fell, “Vuelta a El laberinto de la soledad”: “Mire usted. Hemos hablado
de las deudas mías: Freud e Marx... No hemos hablado de una influencia
esencial, sin la cual no hubiera podido escribir El laberinto: Nietszchie” (PAZ,
2001, p. 258).
Paz insiste em que o tempo que retorna, retorna sempre o mesmo,
sempre igual, fazendo uso de uma interpretação mecanicista do eterno
retorno, que implica em uma falsa consequência de estado final, fixo, imóvel,
ao qual seria possível retornar por meio do que chamou de verdadeira “re –
volta”, ou seja, o retorno ao centro onde estaria a verdadeira identidade.
Essa interpretação mecanicista acarreta, então, um estado final idêntico
ao inicial, num processo que passaria novamente pelas mesmas diferenças. Paz
apresenta uma afirmação do que Nietzsche combate: o pensamento do
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 557

idêntico, do retorno ao que identifica, de que existiria uma origem para a qual
seria possível o regresso: um começo para o tempo. Segundo Deleuze (1976):

O eterno retorno, segundo Nietzsche, não é absolutamente um


pensamento do idêntico, mas sim um pensamento sintético,
pensamento do absolutamente diferente que exige um princípio
novo fora da ciência. Esse princípio é o da reprodução do diverso
enquanto tal, o da repetição da diferença [...] E, com efeito, não
compreendemos o eterno retorno enquanto dele fazemos uma
conseqüência ou uma aplicação da identidade. Não
compreendemos o eterno retorno enquanto não o opomos de uma
certa maneira à identidade. O eterno retorno não é a permanência
do mesmo ou o um que retornam, mas o próprio retorno é o um
que se diz somente do diverso e do que difere (DELEUZE, 1976,
p. 38).

Assim, a afirmação da vida em Nietzsche está no que difere, ou seja, no


que pela diferença, pela ruptura, potencializa: “Em outros termos, a identidade
no eterno retorno não designa a natureza do que retorna, mas, ao contrário, o
fato de retornar para o que difere” (DELEUZE, 1976, p. 40).
Se na festa o mexicano se abre, na morte ele se fecha: “La muerte es un
espejo que refleja las vanas gesticulaciones de la vida” (PAZ, 1959, p. 48).
Essa morte não é a de seu ancestral asteca, para quem a morte é uma extensão
da vida, tão impessoal quanto esta, pois estava inserida na concepção de
sacrifício: o asteca seguia seu destino. O mexicano contemporâneo não nega a
morte nem a suprime de seu cotidiano, a tem como algo vazio, um espelho de
sua vida:

Muerte de cristiano o muerte de perro son maneras de morir que


reflejan maneras de vivir. Si la muerte nos traiciona y morimos de
mala manera, todos se lamentan: hay que morir como se vive. La
muerte es intransferible, como la vida. Si no morimos como
vivimos es porque realmente no fue nuestra la vida que vivimos: no
nos pertencía como no nos pertenece la mala suerte que nos mata.
Dime cómo mueres y te diré quién eres (PAZ, 1959, p. 48-49).
558 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Apesar de cultivar a morte, como por meio da festa de Día de Muertos,


o mexicano não se abre para viver a experiência da morte. Num mundo
fechado sobre si, a morte mexicana não dá nem recebe, mas se consome a si
mesma. Existe um jogo de duplicidade: o mexicano adora a morte, mas não se
entrega a ela. A morte o seduz. Mantém com ela relações que são íntimas, mas
sem significação, sem erotismo, estéril.
Também a morte tem seu sentido religioso, encontrando na festa um
modo de “religação” com o passado mítico, quando as temporalidades se
reconciliam. Diante da morte existiriam, segundo Paz, duas atitudes: uma que
leva à frente, quando considerada como criação, e outra de regresso, de
fascinação diante do nada, nostalgia do limbo.
Na poesia hispano-americana somente Cesár Vallejo conseguiu se
aproximar da maneira criativa de conceber a morte. Já a segunda maneira, a de
regresso, pode ser encontrada em dois poetas mexicanos: Xavier Villaurrutia2
em Nostalgia de la muerte, e José Gorostiza3 em Muerte sin fin, que segundo Paz,
é talvez o mais alto testemunho hispano-americano de uma consciência
verdadeiramente moderna:

Creo, pues, que el poeta desea encontrar em la muerte (que es, en


efecto, nuestra origen) uma revelación que la vida temporal no le
ha dado: la de la verdadera vida.

Al morir
la aguja del instantero
recorrerá su cuadrante
todo cabrá en un instante
...
y será posible acaso
vivir, después de haber muerto.

2
Xavier Villaurrutia (1903-1950). Poeta e dramaturgo mexicano. Colaborou com a revista
Contemporáneos, e foi fundador do teatro experimental no México. Ficou conhecido por seus
dramas teatrais curtos, Autos Profanos. Em 1941, escreve sua peça Invitación a la Muerte.
3
José Gorostiza (1901-1973). Poeta mexicano também pertencente aos Contemporáneos.
Publicou Muerte sin fin em 1939.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 559

Regresar a la muerte original será volver a la vida de antes de la


vida, a la vida de antes de la muerte: al limbo, a la entraña materna
(PAZ, 1959, p. 56)

Para a análise mitológica que fez, Paz valeu-se de autores como Mircea
Eliade, Lucien Lévy-Bruhl4 e Roger Caillois. A revalorização positiva dos
mitos e de seus necessários ritos na sociedade moderna Paz encontrou no
livro de Caillois, El mito y el hombre (1939). Segundo sua leitura deste livro, o
herói moderno seria aquele capaz de nos revelar o que somos e o que
queremos, o que guardamos de mais íntimo, secreto, instintivo. E iria além:
não só nos outorgaria um conhecimento de nós mesmos, assinalaria a conduta
a ser tomada e revelaria o destino: o mito teria a força de ser uma fonte de
sentido, de identidade (SANTÍ, 1997, p. 167-220).
Segundo Santí (1997), a influência de El laberinto na literatura e no
pensamento do século XX foi extensa. Essa influência estaria presente em
obras importantes da literatura da América Latina, como em Pedro Páramo
(1955) de Juan Rulfo, La muerte de Artemio Cruz (1965) de Carlos Fuentes e
Cien años de soledad (1967) de Gabriel Garcia Márquez.
Voltando a já citada entrevista a Claude Fell, Paz afirma que El laberinto
de la soledad foi uma tentativa de descobrir e compreender certos mitos. Ao
mesmo tempo, e uma vez que se trata de uma obra de literatura, se converteu
ele mesmo, em um mito (PAZ, 2001, p. 241-260).

Referências:
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México: Ediciones Era, 1978.

4
Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939). Filósofo francês. Sob a influência da sociologia de Émile
Durkhein, procurou elaborar uma ciência dos costumes.
560 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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Mulheres Organizadas

Jamilly da Cunha NICACIO*

A
Igreja Presbiteriana chegou ao Brasil em 1859, com o jovem
missionário americano Ashbel Green Simonton e, desde então,
encontramos pequenos grupos de mulheres presbiterianas ligadas
ao trabalho missionário. A Igreja crescia e se organizava, e juntamente com ela
o trabalho feminino também se destacava. Não demorou muito para que
fossem iniciadas as atividades desenvolvidas pela Sociedade auxiliadora da
Igreja Presbyteriana de S. Paulo, criada com o objetivo de realizar estudos
bíblicos e arrecadar fundos para auxiliar os necessitados e a Igreja. As
missionárias presbiterianas já participavam ativamente na sociedade americana
como educadoras e, no Brasil, de certa forma, influenciaram na modernização
do sistema educacional.
Porém, o Primeiro Manual do Trabalho Feminino só começou a ser
preparado em 1935, pela Comissão Permanente, e só foi publicado pela Casa
Editora Presbiteriana em 1937. Em todo o Brasil, o trabalho presbiteriano
feminino foi uniformizado. O Jornal Imprensa Evangélica, de fevereiro de 1880,
noticia a criação da sociedade de mulheres presbiterianas cujo objetivo era
auxiliar no trabalho missionário. Estas mulheres realizavam eventos como
bazares, para ajudar na renda da igreja e nos projetos assistidos, como lemos
abaixo:

*
Mestrado em História/UNESP/Assis. Bolsista: CNPq. Orientador: Prof. Dr. José Carlos
Barreiro.
564 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Noticiario
Sociedade auxiliadora da Igreja Presbyteriana de S. Paulo – É
este o titulo de uma associação feminina creada em S. Paulo, por
distinctas senhoras christãs, com o fim de auxiliarem os trabalhos
evangelicos nesta cidade por meio de suas contribuições.
Não deixa de ser curiosa a fonte de suas rendas.
Reunem-se há mezes, duas vezes por mez, e por duas horas mais
ou menos trabalham em commum: fazem rendas, cosem, etc.
O resultado de tão methodico trabalho tem dado os mais
inexperados quão satisfactorios resultados.
Agora exibiram no Rink um rico e variado bazar de prendas,
convidaram o publico, que acudiu ao chamado com a sua natural
bondade.
A boa escolha das prendas com o aprimorado da execução,
influiram para o bom êxito.
O producto liquido da venda, como foi annunciado, tem dois fins
de maxima importancia social: 10 por cento para o hospital dos
lázaros, e o resto para edificação de uma casa para o culto christão.
Não devemos deixar em segredo que distinctas senhoras
americanas residentes nos Estados-Unidos muito concorreram para
este fim.
Nossos parabens ao bello sexo. (SOCIEDADE
AUXILIADORA..., 1880, p.45)

Um dos projetos desenvolvidos pelas mulheres era o Dia Mundial da


Oração, um movimento que reúne, ainda hoje, mulheres cristãs de diferentes
tradições, em 170 países. Elas reservam a primeira sexta-feira do mês de
março para a reflexão e oração. As origens do movimento remontam ao
século XIX, quando, em 1812, mulheres dos Estados Unidos e do Canadá
deram início, por meio da oração, a atividades de apoio à missão interna e no
exterior. Mesmo sofrendo resistência de grupos missionários, compostos
exclusivamente por homens, mulheres fundaram, em 1861 e nos anos
seguintes, grupos femininos voltados à missão. Em 1887, mulheres
presbiterianas convocaram um dia mundial de oração pelas missões nacionais
e mulheres metodistas o fizeram pelas missões estrangeiras. Nascia, assim, o
Dia Mundial de Oração.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 565

Nas últimas décadas, as questões ligadas às mulheres têm despertado


grande interesse e controvérsia em todo o mundo. O movimento feminista ou
movimento de libertação da mulher, surgido nos anos 50, intensificou-se na
década seguinte, no contexto de grandes transformações sociais e de uma
onda contestadora e revolucionária que atingiu todos os segmentos da
sociedade. Esse movimento, com sua ênfase nos direitos da mulher, não só
abalou fortemente a sociedade civil, mas também afetou de maneira direta as
igrejas cristãs. Duas áreas em particular tornaram-se focos de intensos debates:
em primeiro lugar, a questão do papel da mulher na igreja e mais
especificamente a ordenação das mulheres ao ministério/sacerdócio; em
segundo lugar, o problema ainda mais fundamental da interpretação das
Escrituras e do entendimento da fé tradicional da igreja.
À vista do exposto, o objetivo deste texto é destacar o trabalho das
principais pioneiras presbiterianas que começaram a trabalhar no Brasil até
1900, e que eram, em sua maior parte, norte-americanas. Quanto às suas
atividades, destacam-se de modo especial as esposas de pastores, as
missionárias e as educadoras.
As primeiras mulheres presbiterianas que atuaram no Brasil foram as
esposas dos missionários pioneiros. Ainda que nem sempre se dedicassem
diretamente ao trabalho evangelístico ou educacional, limitando-se às lides
domésticas, eram consideradas como missionárias pelas juntas norte-
americanas. A importância de trabalhar as questões de gênero podem ser
analisadas numa bibliografia atual, que discute a relevância do trabalho
feminino na história.
Rachel Soihet e Joana Maria Pedro apontam que a definição primeira
do termo Gênero é uma categoria tomada de empréstimo da gramática e, em
seu sentido original, “gênero seria o fenômeno da presença, em algumas
566 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

línguas, de desinências diferenciadas para designar os indivíduos de sexo


diferente.” (SOIHET; PEDRO, 2007, p.8).
Para uma das principais teóricas sobre estudos das mulheres, Johan
Scott, gênero é a organização social da diferença sexual. Não refletindo ou
implementando diferenças físicas e naturais entre homens e mulheres, gênero
seria “o conhecimento que estabelece significações para diferenças
corpóreas.” (SCOTT, 1991, p. 21-55). O que não significa que gênero reflita
diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que
gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais.
Ao longo da História, multiplicaram-se as pesquisas sobre as mulheres
em seus mais diversos aspectos. Muitas dessas pesquisas guardaram, e, ainda
hoje, guardam o ranço do conservadorismo; outras ainda caminham no
sentido de buscar uma maior compreensão da vida feminina em seus mais
variados aspectos. Pode-se afirmar que esses novos estudos sobre as mulheres
são, em grande parte, originários das novas figurações femininas nos quadros
sociais, das novas condições assumidas pelas mulheres em seus meios. Como
observa Gilles Lipovetsky:

[...] como não se interrogar sobre o novo lugar das mulheres e suas
relações com os homens quando nosso meio século mudou mais a
condição feminina do que todos os milênios anteriores? As
mulheres eram “escravas” da procriação, libertaram-se dessa
servidão imemorial. Sonhavam ser mães no lar, agora querem
exercer uma atividade profissional. Estavam sujeitas a uma moral
severa, hoje a liberdade sexual ganhou direito de cidadania.
(LIPOVESTSKY, 2000, p.136)

Segundo Louise Tilly, ainda que definidas pelo sexo, as mulheres são
algo mais do que uma categoria biológica; elas existem socialmente e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 567

compreendem pessoas do sexo feminino de diferentes idades e situações


familiares, pertencentes a diversas classes sociais, nações e comunidades; suas
vidas são modeladas por diferentes regras sociais e costumes, em um meio no
qual se configuram crenças e opiniões decorrentes de estruturas de poder.
(TILLY, 1994, p.29-62)
A história que se abre, então, está relacionada ao trabalho destas
mulheres e do projeto educacional que, juntamente com a missão, fazia parte
do ideário presbiteriano norte-americano em território brasileiro, cujo
principal líder foi Ashbel Green Simonton. Dias afirma que a historiografia
das últimas décadas favorece uma história social das mulheres, pois vem se
voltando para a memória de grupos marginalizados do poder. Novas
abordagens e métodos adequados libertam, aos poucos, os historiadores de
preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do
quotidiano.
Para Georges Duby e Michelle Perrot, o título “História das Mulheres”
é cômodo e belo, mas, segundo os autores, seria necessário recusar a ideia de
que as mulheres são, em si mesmas, objeto de história. É seu lugar, sua
condição, seus papéis e poderes, suas formas de ação, seu silêncio e sua
palavra que devemos perscrutar a diversidade de sua representação. Os
autores analisam o importante papel desenvolvido por elas para que o
trabalho missionário fosse realizado com sucesso. Elas seriam responsáveis
por organizar a vinda dos pregadores itinerantes aos seus lugares de destino;
assim, o êxito da vinda do pregador, as multidões que ele deslocava e a
influência durável que ele podia exercer, afirmam os autores, dependiam
amplamente da capacidade organizativa e da irradiação religiosa da
“hospedeira”.
Essas mulheres não possuem, no entanto, qualquer estatuto oficial,
qualquer legitimidade institucional. Duby afirma que, quando o pastor
568 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

precisava se ausentar para visitar outras igrejas, a sua esposa poderia tornar-se
um guia espiritual temporário. Teóloga autodidata, ela reconfortava,
aconselhava, explicava a Bíblia, dirigia reuniões de oração. As mulheres eram
socialmente engajadas, não apenas na educação, organizaram-se num
movimento antiescravagista e combatiam a prostituição, que segundo elas,
estava diretamente relacionada com a negligenciada educação, os insuficientes
salários e a ausência de certos direitos civis das mulheres, um conjunto de
“iniquidades sociais” comuns ao período. (DUBY; PERROT, 1991, p.242,
247, 251).
Em 1870, fundou-se, em São Paulo, a modesta Escola Americana,
marco inicial do que é hoje a Universidade Mackenzie, na sala de jantar da
residência do missionário George Chamberlain. Uma escola para abrigar as
meninas protestantes que sofriam constrangimento nas escolas por causa da
convicção religiosa. No discurso inaugural do prédio da Consolação, em
expansão da Escola Americana, Chamberlain diz:

[...] desde que uma senhora americana recebeu na escola, por uma
hora cada dia, umas poucas meninas brasileiras ensinando-as a ler e
lendo a elas as palavras do mestre vindo de Deus [...] a Escola
Americana estava em gérmen naquele pequeno ajuntamento de
meninas por uma hora diariamente. (GARCEZ, 1970 p.55)

Émile Léonard explica que as atividades da escola começaram


modestamente, com aulas particulares que a esposa do missionário
Chamberlain, Mary Chamberlain, ministrava em sua própria casa, uma hora
por dia, e onde recebia as crianças que eram impedidas de frequentar as
demais escolas, nascendo dali a instituição que, no ano seguinte, manteria
cursos regulares, instalada no local da própria Igreja Presbiteriana, sob a
direção de uma professora americana. (LEONARD, 2002, p.149).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 569

A educação feminina, apesar da pretendida igualdade, diferenciava-se


nos seus objetivos, pois, segundo os positivistas, o trabalho intelectual não
devia fatigá-las, nem se constituir um risco a uma constituição que se afirmava
frágil e nervosa, o que poderia debilitar seus descendentes. Na realidade, o fim
último da educação era preparar a mulher para atuar no espaço doméstico e
incumbir-se do cuidado com o marido e os filhos, não se cogitando que
pudesse desempenhar uma profissão assalariada. (ALMEIDA, 1998, p.19)
Em meados do século XIX, a mulher não tinha lugar no mundo da
política e nem tão fora de casa. As suas competências e a força que ela tira do
respeito pela sua própria pessoa são colocadas ao serviço da sua família, não
se estendem às decisões públicas. Mas, nem por isso, a mãe republicana deixa
de ter um papel a representar: educando os filhos como bons cidadãos. Tem
também uma responsabilidade no âmbito político: fazer a política penetrar no
privado, conferindo uma essência cívica a uma função doméstica. Outra tarefa
seria zelar pela virtude e moralidade, qualidades privadas, individuais e
religiosas, pelas quais cada um responde perante Deus. “A maternidade deve
ser vivida como uma tarefa cívica, e não como a antítese da instrução ou do
espírito.” (DUBY; PERROT, 1991, p.36 e 55).
Propusemo-nos neste texto, a conhecer as mulheres presbiterianas que
participaram da missão norte-americana no Brasil. Saber quem eram, e por
que se dispuseram a vir para cá, ou de que forma estas mulheres se
envolveram com o trabalho missionário. Algumas delas poderão até ser
conhecidas:
Elizabeth Simonton Blackford criou a pequenina Helen Simonton, após
o falecimento de sua cunhada e de seu irmão Ashbel G. Simonton. Com a
morte de Simonton, o casal Blackford voltou para o Rio de Janeiro e esteve
por um decênio à frente da igreja local. Lille veio a falecer em 23 de março de
1879, após quase vinte anos dedicados à obra missionária no Brasil. A Imprensa
570 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Evangélica publicou um texto assinado por Modesto Carvalhosa com um belo


depoimento sobre sua fé e dedicação.
Helen Murdoch Simonton foi a esposa de Simonton, nasceu de pais
cristãos, teve boas oportunidades de estudo. Logo após deixar a escola,
professou a sua fé em Cristo na Primeira Igreja de Baltimore e era atuante na
Escola Dominical. Após o casamento, Ashbel e Helen passaram algum tempo
visitando pessoas em diversas cidades e seguiram para o Brasil em maio,
chegando ao Rio de Janeiro em 16 de julho de 1863. Philip Landes registra o
seguinte depoimento acerca de Helen, dado por William Rankin, em sua obra
Missionary Memorials:

Ela era adaptada à vida missionária, tendo uma mente primorosa e


bem cultivada, um juízo sadio, um coração mui terno e amoroso,
com uma fé simples, profunda humildade e zelo altruísta. Era
especialmente qualificada para ser uma ajudadora no campo
missionário. Sua modéstia a princípio fazia com que parecesse
retraída e insegura; no entanto, conferia um delicado refinamento
às suas maneiras e lhe dava incomum facilidade para granjear a
confiança e a afeição de todos com os quais se relacionava.
(LANDES, 1941, p.41).

A filha do casal nasceu no dia 19 de junho de 1864 e nove dias depois


Helen veio a falecer devido a complicações resultantes do parto.
A Igreja Presbiteriana do sul dos Estados Unidos começou a enviar
missionários para o Brasil somente em 1869. Alguns dados estatísticos sobre o
período 1869-1900 são bastante esclarecedores. Nesses 30 anos, a PCUS
enviou ao Brasil cerca de 65 obreiros, dos quais 36, ou seja, pouco mais da
metade, foram mulheres. Destas, 23 foram esposas de pastores e as demais
educadoras e evangelistas. Ao mesmo tempo, deve-se levar em conta que
algumas das esposas de missionários foram também educadoras, ao passo que
algumas educadoras que aqui chegaram solteiras vieram a casar-se com
missionários solteiros ou viúvos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 571

Os nomes de algumas esposas de obreiros vindos do sul dos Estados


Unidos, por ordem cronológica de ingresso no campo missionário, são os
seguintes: Mary Brown Morton e Sarah Ligntner Lane, Agnes Morton Boyle,
Mary Hoge Wardlaw, Rena Humphrey Butler, Kate E. Bias, Katherine Hall
Porter, e Susan Carolina Porter Smith. Entre as muitas dificuldades
enfrentadas por essas senhoras e suas famílias estavam as frequentes
perseguições religiosas. Katherine Hall, ou Kate, como era conhecida na
intimidade, também pertencia a uma família americana que havia emigrado
para o Brasil, indo estabelecer-se em Campinas. Mais tarde, voltou à Georgia,
onde estudou música e educação religiosa, vindo a casar-se com o Rev.
William Calvin Porter, em 1891. O casal trabalhou, inicialmente, em
Pernambuco e no Ceará, e depois no Rio Grande do Norte, onde Katherine
fundou, em 1895, o Colégio Americano de Natal, a primeira escola evangélica
do norte do Brasil.
Em seu estudo sobre os primeiros 50 anos da obra presbiteriana no
Brasil, Robert L. McIntire presta tributo às mulheres pioneiras. Diz ele: “As
esposas, muitas das quais fizeram sacrifícios de proporções heroicas, foram
tão importantes para a difusão do evangelho quanto seus maridos.” Duas
páginas adiante, McIntire acrescenta:

Muitos anos se passaram até que as mulheres ligadas à Missão


fossem devidamente reconhecidas e recebessem o direito ao voto
nas questões da obra, mas a influência das esposas e das mulheres
solteiras que se dedicaram ao trabalho evangélico no Brasil
provavelmente nunca poderá ser corretamente aquilatada.
(MCINTIRE, 1969, p.55-57).

Os difíceis desafios a que as esposas estavam sujeitas incluíam a tarefa


de cuidar dos filhos e de serem mestras em todos os assuntos. Elas também
tinham de cuidar da casa, que devia ser flexível o suficiente para tornar-se um
hotel ou hospedaria para hóspedes e viajantes. Além disso, a esposa do
572 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

missionário tinha de ser uma professora da Bíblia para outras mulheres da


igreja.
As primeiras missionárias-educadoras enviadas ao Brasil pela Junta de
Missões Estrangeiras da PCUSA foram Mary Parker Dascomb e Elmira Kuhl.
Nascida em Providence, Rhode Island, em 30 de junho de 1842, Mary P.
Dascomb passou a sua infância e mocidade em Oberlin, Ohio. Formou-se no
Oberlin College, em 1860, e lecionou por alguns anos em diversas escolas.
Veio pela primeira vez ao Brasil em 1866, como professora dos filhos do
cônsul americano no Rio de Janeiro. Seus contatos com o Rev. Ashbel G.
Simonton fizeram-na voltar ao Brasil em 1869, como missionária da Junta de
Nova York, indo fixar-se em São Paulo. Dois anos mais tarde, passou a dirigir
a recém-criada Escola Americana; ao mesmo tempo colaborava com o Rev.
Chamberlain como organista da igreja. Um relatório de Chamberlain diz o
seguinte: “Desde março de 1871 têm funcionado sob a direção da Sra. Mary
P. Dascomb duas aulas, sendo uma frequentada por 23 meninos e meninas
inglesas e a portuguesa por 10 meninos e meninas”1. Mais tarde, ela também
dirigiu a escola fundada pelo Rev. George Landes, em Botucatu.
Mary P. Dascomb teve uma grande amiga e colaboradora – Elmira
Kuhl (1842-1917) –, conhecida pelos amigos como Ella. Elmira nasceu em
Copper Hill, Nova Jersey, no dia 13 de janeiro de 1842. Após concluir os seus
estudos, passou a lecionar em sua cidade natal, revelando-se uma excelente
professora. Em 1870, abriu uma escola particular na casa do seu pai, escola
que logo adquiriu grande popularidade. Foi nomeada para o trabalho
missionário no Brasil, em 7 de maio de 1874, e um mês depois chegou a Rio
Claro, onde trabalhou na escola evangélica fundada pelo Rev. João Fernandes

1
MATOS, A. Para Memória Sua: a participação da Mulher nos Primórdios do
Presbiterianismo no Brasil. Disponível em:
<old.thirdmill.org/files/portugueses/60469~9_18_01_4-21-
27_PM~para_memoria_sua.htm>. Acesso em: 07 ago. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 573

Dagama. Em janeiro de 1878, transferiu-se para São Paulo, a fim de trabalhar


ao lado de Mary P. Dascomb, na Escola Americana. A partir de então, as duas
mestras passariam, juntas, boa parte do restante de suas vidas. Depois de
algum tempo em Botucatu, ambas foram, em 1892, para Curitiba, a fim de
dirigir uma filial da Escola Americana, o que fizeram por 25 anos.
Seus contemporâneos apontaram para as diferenças de temperamento e
métodos de trabalho dessas duas companheiras inseparáveis. De acordo com
Matos, Mary Dascomb era cheia de energia e possuía uma conversa cativante.
Versada na literatura moderna e nos grandes movimentos mundiais, emitia
opiniões positivas sobre temas sociais, literários, políticos e pedagógicos. O
autor fala, ainda, de Elmira Kuhl, referindo-se a ela como sendo uma pessoa
calma, quieta, mas alegre, muito paciente e reservada em suas opiniões, mas
firme em conservá-las tenazmente. “Com grande prudência e mansidão,
diligente e conscienciosa em seu trabalho, metódica e sistemática em negócios,
possuía grande capacidade administrativa e uma determinação inabalável.”
Segundo Matos, estas duas educadoras nasceram no mesmo ano (1842) e
faleceram, ambas, aos 75 anos em 1917, Mary Dascomb em Curitiba e Ella
Kuhl em Nova York, antes que a notícia da morte de uma pudesse alcançar a
outra viva. (MATOS, 2010, p.3).
A primeira educadora da PCUS, Arianna (Nannie) Henderson, chegou
a Campinas em 1872, iniciando, em janeiro do ano seguinte, uma escola para
meninas, ao mesmo tempo em que os Revs. George Nash Morton e Edward
Lane lançavam as bases do famoso, porém efêmero, Colégio Internacional.
Em 1874, chegou nova missionária-educadora, Mary Videau Kirk, que
permaneceu apenas cinco anos no Brasil. Mais tarde, Nannie Henderson
também serviu à Missão de Nova York, trabalhando como professora e
evangelista (leitora da Bíblia nos lares), em São Paulo, Itatiba, Botucatu e
574 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

outros lugares. Após cerca de 20 anos dedicados ao Brasil, Nannie voltou para
os Estados Unidos, onde faleceu em 1910.
A terceira educadora da Igreja do Sul a vir para Campinas, Charlotte
Kemper (1837-1927), era neta de um coronel do exército prussiano emigrado
para a Virgínia, onde Charlotte nasceu, em 21 de agosto de 1837. Lotty, como
era conhecida, recebeu sólida educação em seu estado natal, sendo o seu pai
diretor da Universidade da Virgínia. Segundo Syldenstricker, Kemper tinha o
temperamento um tanto introvertido, mas era dotada de uma inteligência
excepcional. Em 1882, aos 45 anos de idade, enquanto lecionava no Mary
Baldwin College, viu realizar-se o sonho de ser missionária educadora. Em
resposta a um apelo do Rev. Edward Lane, decidiu vir ao Brasil com ele e sua
família para substituir Nannie Henderson, que se achava doente. Dirigiu a
escola de moças e foi a superintendente de compras, além de lecionar o que
fosse preciso. Diz-se que D. Pedro II, em visita a Campinas, manifestou
grande admiração por seu raro talento (SYLDENSTRICKER, 1941, p. 44).
Em dezembro de 1889, após um período de férias nos Estados Unidos,
Charlotte regressou ao Brasil com o Dr. Lane e Mary Dascomb. Do grupo
também fazia parte um novo missionário, Samuel Rhea Gammon (1865-
1928). Charlotte o orientou no estudo da língua, foi revisora de seus sermões e
artigos e, daí em diante, sempre esteve associada com ele na obra educacional.
No final de 1892, por causa da febre amarela que assolava Campinas e que
naquele ano ceifara a vida do Rev. Lane, o Colégio Internacional foi
transferido para Lavras, em Minas Gerais, vindo a tornar-se, mais tarde, no
Instituto Gammon. Em Lavras, Charlotte passou o restante da sua vida. Além
de ser a tesoureira da Missão Sul e dirigir a nova escola, Charlotte gastava
muito tempo em visitação e no trabalho evangelístico. Passou a ser conhecida
do pessoal da missão como “Aunt Lotty” (tia Carlota), tamanha a sua
bondade e solicitude – a “velhinha que andava depressa” sempre tinha
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 575

palavras de carinho e incentivo para cada um. Sua bondade para com os
candidatos ao ministério era proverbial e foram muitos os futuros líderes da
igreja que passaram por suas mãos. Colaborou decisivamente com a escola,
cada vez mais conceituada, e com a igreja, muitas vezes em meio a
perseguições. Também era conhecida por sua versatilidade e grande cultura.
Conhecia a fundo o latim, bem como o grego e o hebraico. Como
passatempo, gostava de ler os clássicos latinos, resolver problemas de
trigonometria e fazer cálculos. A história antiga e moderna era outra de suas
especialidades. Foi considerada, por muitos, a mulher mais culta do Brasil.
Quando a falta da vista começou a impedir-lhe de ensinar, passou a gastar
grande parte do tempo em visitas. Charlotte faleceu aos 90 anos, em 15 de
maio de 1927 (SYLDENSTRICKER, 1941, p. 64).
Kate E. Bias, outra missionária, chegou a Campinas em 1888 para
assistir Charlotte Kemper na escola de meninas. Em 1891, casou-se com um
novo missionário, Rev. Frank A. Cowan, que chegara dois anos antes para
ajudar o Rev. John Boyle no Triângulo Mineiro e sul de Goiás. O casal foi
residir em Bagagem, hoje Estrela do Sul, mas logo o Rev. Cowan contraiu
tuberculose. Agravando-se o seu estado, o Rev. Gammon o levou até Lavras,
onde ele faleceu em maio de 1894.
Kate, ou Catarina, como era conhecida dos brasileiros, poderia ter
desistido de tudo e voltado para a sua terra. Porém, decidiu, corajosamente,
continuar a obra do seu falecido esposo. Regressou a Bagagem e a Araguari,
onde fundou uma escola evangélica. Um de seus alunos foi o futuro pastor e
professor do seminário Jorge Thompson Goulart. Como uma verdadeira
missionária equestre, Catarina cortou centenas de quilômetros no Triângulo
Mineiro. Mais tarde, cooperou eficazmente com o Rev. Aníbal Nora, em Alto
Jequitibá, fez breve estágio em Lavras e foi residir em Piumhi, onde, no dizer
576 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de Júlio A. Ferreira, ela “escreveu sua página final de consagração ao Brasil.”.


Aposentou-se em 1928, após quarenta anos de serviços. (MATOS, 2010, p.4).
Outra figura de destaque na obra educacional presbiteriana foi Eliza
Moore Reed, que chegou ao Brasil em 1891 e, no final do ano seguinte, fez
parte do grupo que transferiu o Colégio Internacional para Lavras. Em 1894,
foi trabalhar com a Missão Norte, inicialmente em Pernambuco e depois em
Natal, onde foi diretora do Colégio Americano, fundado por Katherine Hall
Porter, esposa do Rev. William C. Porter. Apesar da oposição dos adversários,
em poucos anos, o colégio tornou-se o melhor educandário da cidade. Em
1903, a missão resolveu abrir um colégio em Recife e para ali transferiu Eliza
Reed. No dia 1º de agosto de 1904, foi fundado o Colégio Americano de
Pernambuco, mais tarde Colégio Agnes Erskine, nome que conserva até hoje.
Entre os primeiros alunos estavam jovens que haveriam de alcançar posições
de destaque na vida da igreja nacional, como Cecília Rodrigues, que veio a
casar-se com o Rev. Cícero Siqueira e foi grande educadora em Alto Jequitibá,
bem como secretária do trabalho feminino presbiteriano no Brasil. Alguns
anos mais tarde, Eliza Reed teve de deixar a direção do colégio por razões de
saúde e foi para os Estados Unidos. Eventualmente, regressou ao Brasil e já
idosa colaborou com o Rev. George E. Henderlite na educação de candidatos
ao ministério em Garanhuns e em Recife, onde faleceu em 12 de maio de
1926. (FERREIRA, 1992, p. 127)
Algumas outras missionárias-educadoras que trabalharam no Brasil até
1900 foram as seguintes: da PCUSA – Harriet Greenman, Clara E. Hough,
Marcia P. Brown e Phebe Thomas; da PCUS – Sallie H. Chambers, Carrie M.
Cunningham, Blanche Dunlap, Rebecca T. Morrisette, Margaret Henry Youell
e Ruth Bosworth See. Algumas estiveram em serviço por poucos anos, ao
passo que outras chegaram a dedicar muitas décadas de suas vidas à obra
missionária. Muitas, mesmo depois de aposentadas, permaneceram no Brasil e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 577

aqui terminaram seus dias. Vale observar que, além destas educadoras e
evangelistas oficiais, havia também nas igrejas mulheres brasileiras humildes
que voluntariamente serviam a causa de Cristo. Júlio A. Ferreira refere-se a
Vitória Maria de Jesus, uma das primeiras participantes da Igreja do Rio na
época de Simonton, que se ocupava da visitação aos lares com objetivos
evangelísticos (FERREIRA, 1992, p. 164).
Também é importante destacar, em um estudo como este, a presença
feminina nas primeiras congregações presbiterianas estabelecidas no Brasil.
Émile Léonard aponta que, desde o seu início, as comunidades protestantes
brasileiras foram bastante diversificadas em sua composição social, e observa:
“No Brasil... eram famílias inteiras, quase que tribos, dir-se-ia, que aceitavam o
protestantismo, e em todas as classes sociais.” (LEONARD, 2002, p. 87) Mais
adiante, acrescenta:

O ‘corpo protestante’ brasileiro que assim se criava teve mais esta


circunstância privilegiada de se constituir normalmente à imagem
exata de todo o corpo social do país. Desde o início, todas as
classes e todas as profissões ali foram representadas. (LEONARD,
2002, p. 94).

Foi, todavia, em São Paulo, que ocorreu a maior diversidade social


dentro da mesma comunidade, a partir de 1878. Nesse ano, a Igreja
Presbiteriana, que até então tivera uma situação social bastante modesta,
recebeu a adesão de sete senhoras da alta aristocracia brasileira. Em abril,
foram recebidas por transferência Gabriela Carneiro Leão, irmã do Marquês
do Paraná e do Barão de Santa Maria, e sua filha Henriqueta Augusta Soares
do Couto. Elas haviam sido batizadas no início de 1859 pelo Dr. Robert
Kalley, em Petrópolis. Em maio, a Igreja de São Paulo recebeu, por
transferência da Igreja do Rio, Ana Rita Vieira Ferreira Pinto e suas filhas
Luíza e Estefânia e, por profissão de fé, Rosa Edite de Souza Ferreira,
integrantes de uma família aristocrática de São Luís do Maranhão. Finalmente,
578 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

em junho, professou a fé Maria Antonia da Silva Ramos, filha do Barão de


Antonina, um senador do Império. Foi a Sra. Maria Antonia quem vendeu ao
Rev. Chamberlain e sua esposa a chácara que hoje constitui o campus da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Mais importante para a Igreja Presbiteriana de São Paulo foi a adesão
de uma outra família de destaque, a dos Souza Barros, descendente tanto de
nobres europeus quanto das mais antigas e tradicionais famílias paulistas. Essa
família foi alcançada para o evangelho pela instrumentalidade de uma simples
criada, Inácia Maria Barbosa, recebida na Igreja de São Paulo no mesmo dia
que Dona Maria Antonia. Inácia contribuiu para a conversão de seis filhas de
Luiz Antonio de Souza Barros e sua segunda esposa, Dona Felicíssima de
Campos. Chamada a cuidar de um filho de Maria Paes de Barros, a baronesa
de Piracicaba, Inácia levou-a a aceitar a fé evangélica. Nos anos seguintes, ela e
suas irmãs Elisa, Felicíssima, Adelina, Eugênia e Antonia professaram a fé na
Igreja Presbiteriana. Mais tarde, também a sua mãe as acompanhou e o pai,
embora não tenha feito adesão expressa, igualmente abraçou o evangelho.
(MATOS, 2010, p.4).
Ainda que as experiências dessas mulheres presbiterianas brasileiras em
muitos aspectos tenham sido diferentes das de suas correligionárias norte-
americanas, todas elas tinham o mesmo ideal de servir à missão, apesar das
limitações que experimentavam como mulheres numa sociedade brasileira
ainda marcadamente conservadora, ao final do século XIX.
Apesar do destaque às contribuições positivas de algumas pioneiras do
presbiterianismo brasileiro, este estudo não quer dar a entender que tais
mulheres eram perfeitas. Como seres humanos que eram, estavam sujeitas às
limitações e falhas, próprias de todas as pessoas. Todavia, não se pode negar o
seu valor.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 579

Ruth Tucker ressalta que, apesar do seu envolvimento com as missões,


as mulheres têm sido, em grande parte, esquecidas pelos historiadores de
missões. Essas obreiras, muitas vezes, desempenharam um papel essencial no
desbravamento de novas regiões ou na criação de novos programas, mas
receberam pouco crédito por seus esforços, seja na sua época seja
posteriormente. Com frequência, os missionários e outros líderes do sexo
masculino são enaltecidos pelos seus feitos. No entanto, é preciso considerar
que, muitas vezes, eles só puderam dedicar-se de maneira eficiente e
desimpedida às suas tarefas porque contavam com o encorajamento e o
auxílio valioso de suas esposas, filhas e outras colaboradoras no ministério
(TUCKER, 2010 p.122).
O que mais nos chama atenção é ver que, ainda hoje, as discussões que
permeiam o ambiente cristão se referem à mulher como se estas vivessem no
período bíblico. Um artigo atual discute quais as vestimentas adequadas a uma
mulher presbiteriana, ou cristã:

As mulheres devem vestir-se com sabedoria visando apenas à


edificação do próximo, jamais, despertar a sensualidade ou desejos
lascivos, [a não ser que o faça tão somente para seu esposo]. Vestes
transparentes, decotes [muito] profundos, saias e blusas [muito]
curtas, calças [muito] apertadas ([super] justas) e toda a espécie de
roupas que mostram ou marcam [muito] o corpo despertando
[propositalmente] a sensualidade devem ser rejeitadas, [como já
dito, salvo quanto se faz para seu esposo]. É preciso cuidado com
os extremos, o uso de vestidos e saias cobrindo os tornozelos,
blusas com mangas até os pulsos e golas à altura do pescoço; não é
sinal de santidade, geralmente desperta a rejeição no próximo
impedindo que exalemos o bom perfume de Cristo. [O uso destas
roupas cumpridas (saias cobrindo os tornozelos, blusas com
mangas até os pulsos e golas à altura do pescoço) é uma falsa
santidade, uma devoção baseada na aparência e não nos frutos do
Espírito Santo (“Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” Gl 5.22).
O uso de roupas de “marca” ou “etiqueta” de modo geral é um
canal aberto para o devorador (são caríssimas) e que desperta no
coração a [extrema] vaidade. [...]
580 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“Quero também que as mulheres sejam sensatas e usem roupas decentes e


simples. Que elas se enfeitem, mas não com penteados complicados, nem com
jóias de ouro ou de pérolas, nem com roupas caras! Que se enfeitem com boas
ações, como devem fazer as mulheres que dizem que são dedicadas a Deus!” 1
Tm 2:9,10 (OLIVEIRA, 2010)

É interessante olhar para a nossa sociedade e perceber que a mulher


tem demonstrado valor e capacitação nas mais variadas áreas de atuação. Tem
demonstrado, também, adequação em muitos serviços que antes eram
considerados masculinos. O papel da mulher, na sociedade moderna e/ou
pós-moderna, é de grande valor, pois ela está, cada vez mais, participando
ativamente da construção da sociedade de hoje, mas a igreja ainda relega às
mulheres, um papel de auxiliar. Hoje, as mulheres presbiterianas trabalham
unidas na SAF – Sociedade Auxiliadora Feminina. Em um blog, de um pastor
presbiteriano, vimos que a descrição desta sociedade e do trabalho feminino
dá-se, como segue:

A Sociedade Auxiliadora Feminina (SAF) é o instrumento que


agrega as mulheres, as treina e as prepara para um engajamento
maior no Reino de Deus e, especificamente, na Igreja, nas suas
mais variadas esferas. Podemos dizer com isso que lugar de mulher
é na SAF, pois essa sociedade feminina agrega uma parcela preciosa
na vida da sociedade e da igreja. Agregar, equipar, treinar e
capacitar são ações preciosíssimas para o desenvolvimento
espiritual dessas valorosas mulheres, e esse é o desafio que tem a
SAF local. Portanto, se você é mulher, seu lugar é, sem dúvida, na
SAF. (GUIMARÃES)

O segundo domingo de fevereiro é separado para celebrar o Dia da


Mulher Presbiteriana. A igreja reconhece e valoriza o protagonismo
de todas elas. A presidente da Confederação Nacional da SAF,
Anita Eloisa Chagas, ressalta que as funções da mulher encontram-
se na passagem bíblica de Gênesis 2:18, que é “auxiliadora idônea,
igual”, e também é estar sempre envolvida em todos os segmentos
da igreja, dedicando sua vida, seus talentos, seus bens. Anita deixa
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 581

uma mensagem a todas as mulheres presbiterianas: “Que o alvo da


mulher presbiteriana seja sempre servir e glorificar a Deus, servir e
amar a igreja presbiteriana, servir e colaborar com o trabalho
feminino como um todo, buscando ajudar no seu crescimento.”
(PIRAGIBE; CASTRO).

Quando estudamos os primórdios da IPB, verificamos que outra área


de grande interesse era a expansão da igreja. Havia a preocupação não só de
consolidar os locais já ocupados, mas de buscar novos campos para a
pregação do evangelho e a plantação de igrejas. Para isso, se investiu muito em
termos de recursos e pessoal. As igrejas norte-americanas, por meio de suas
juntas missionárias, fizeram um imenso esforço, ao longo de um século, para
implantar a obra presbiteriana no Brasil.
Os reformados sempre se preocuparam, desde o século XVI, com um
ministério bem preparado. Disso testifica a Academia de Genebra, fundada
por Calvino, visando especialmente à formação de pastores para as igrejas
reformadas da França. Disso testificam os colégios de Harvard, Yale e
Princeton, entre outros, fundados pelos calvinistas norte-americanos nos
séculos XVII e XVIII. Os homens e mulheres que vieram para o Brasil como
missionários, no século XIX, eram herdeiros dessa tradição. Eram pessoas
dotadas de uma educação tanto secular como religiosa, e preocuparam-se,
desde o início, em formar líderes bem treinados para a igreja nascente. Essa
preocupação também se expressou com a criação do Seminário Presbiteriano
(1888).
Outra esfera de importância fundamental para os missionários
presbiterianos, era a educação e a cultura. Os pioneiros da missão deram
prioridade à evangelização e à plantação das igrejas. Mas, em quase todas as
regiões do país, os presbiterianos criaram escolas, algumas de grande porte,
como a Escola Americana (São Paulo, Curitiba), o Colégio Internacional
(Campinas), o Instituto Gammon (Lavras), o Colégio Agnes Erskine (Recife)
582 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

e o Colégio 15 de Novembro (Garanhuns). Muitos pastores que estudaram ou


trabalharam nessas instituições deram relevantes contribuições à sociedade na
área intelectual, mas este trabalho não teria sido possível, sem a importante
contribuição das mulheres (MATOS, 2004).
Vimos que o trabalho missionário não se limitava à conversão, mas
estava imbuído de todo um projeto fundamentado na mudança completa do
homem, alterando seus hábitos e condutas e fornecendo uma nova cultura aos
seus membros, concebida como a verdadeira e a melhor maneira de se viver.
Os norte-americanos se consideram os “eleitos” de Deus para mudar toda a
consciência pervertida das nações, e empreenderam-se, então, na pregação do
evangelho.
O nosso propósito foi conhecer essas mulheres missionárias e entender
até que ponto elas realmente estavam privadas ao âmbito doméstico ou se,
como identificamos, não teria partido delas o estabelecimento e a manutenção
de um dos principais ideais da missão: a educação. De que valeria pregar a um
povo que não sabia ler as Escrituras e que pouco compreendia acerca do que
os pastores falavam? De que valia inculcar nos brasileiros um ideal de riqueza
e progresso se estes pouco sabiam contar? Reconhecemos que o ideal
oitocentista esperava que as mulheres permanecessem limitadas ao pouco.
Predominou o apoio a uma educação que permitisse às mulheres a
possibilidade de ler, escrever, e cuidar dos afazeres domésticos. Sabendo mais,
poderiam desviar-se do seu legado quase celestial, o lar!
Nossas fontes revelam como o período é marcado por essa delimitação
entre o privado e o doméstico, demonstrando o que era esperado das relações
e os poderes familiares, à mulher caberia a “cozinha e o confessionário”.
Contudo, nossas fontes também apontam para o fato de que as mulheres nem
sempre ficavam limitadas a este espaço e a essa condição, pois elas intervieram
na sociedade e contribuíram de forma considerável com o ideal de progresso
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 583

que se estabelecia e com a missão norte-americana. Devemos, no entanto,


levar em consideração o fato de que as mulheres presbiterianas encabeçaram o
projeto educacional, apesar da falta de reconhecimento destes feitos, o que
pode ser exemplificado com o caso do colégio Mackenzie, cujas atividades
foram iniciadas – conforme o Jornal Imprensa Evangélica – por Mary
Chamberlain, mas o crédito foi dado ao marido dela, o missionário e pastor
George Chamberlain, o monumento que homenageia o fundador da escola,
remete a ele, e não a ela. Atitudes como estas, a ação seletiva da memória
referente às missões no Brasil, as interpretações peculiares de passagens
bíblicas – nas quais a Igreja Presbiteriana se baseia – contribuíram para
construir a imagem das mulheres presbiterianas que atuaram na educação
brasileira como apenas auxiliadoras.

Referências

ALMEIDA, J. S. de. Mulher e Educação: a Paixão pelo Possível. São Paulo:


Fundação Editora da UNESP, 1998.
DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente. São Paulo: Edições
Afrontamento, 1991.
FERREIRA, J. A. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. Vol. I. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1992.
GUIMARÃES, J. E. Lugar de mulher é na.... Disponível em:
<http://mulheresquesurpreendem.blogspot.com/2009/02/08-de-marco-dia-
internacional-da-mulher_26.html>. Acesso em: 02/09/2010.
LANDES, P. S. Ashbel Green Simonton: Model Pioneer Missionary of the Presbyterian
church of Brazil. Texas: Don Cowan, 1956.
LEONARD, É. G. O Protestantismo Brasileiro. São Paulo: ASTE, 2002.
LIPOVESTSKY, G. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.
Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
584 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

MATOS, A. S. de. Eles e nós: comemorando 145 anos de presbiterianismo no Brasil.


2004. Disponível em:
<http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/Textos/11_Eles
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______. Para Memória Sua: a participação da Mulher nos Primórdios do


Presbiterianismo no Brasil. Disponível em:
<old.thirdmill.org/files/portugueses/60469~9_18_01_4-21-
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MCINTIRE, R. L. Portrait of Half a Century: Fifty Years of Presbyterianism in
Brazil (1859-1910). México: Centro Intercultural de Documentación, 1969.
OLIVEIRA, E. R. de Vestimenta e Jóias. Disponível em:
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Acesso em: 21/08/2010.
PIRAGIBE, J. P.; CASTRO, E. IPB comemora Dia da Mulher Presbiteriana.
Disponível em:
<http://www.ipb.org.br/noticias/noticia_inteligente.php3?id=1387>. Acesso
em: 12/09/2010.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução: Christine
Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Recife: SOS Corpo, 1991.
SOCIEDADE AUXILIADORA DA IGREJA PRESBYTERIANA DE
SÃO PAULO. Imprensa Evangélica. Noticiário. São Paulo, 14 fev. 1880, n. 6, p.
45.
SOIHET, R.; PEDRO, J. M. A emergência da pesquisa da história das
mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.
17, n. 54, p 281-300, 2007.
SYLDENSTRICKER, M. Carlota Kemper. São Paulo: Editora Limitada, 1941.
TILLY, L. Gênero, História das Mulheres e História Social. Cadernos Pagu,
Campinas: n. 3, p. 29-62, 1994.
TUCKER, R. Missões até os confins da terra. São Paulo: Vida Nova, 2010.
2.3.

Os locais de memória e as políticas culturais do patrimônio


Instituições de proteção ao patrimônio cultural:
um olhar sobre as práticas políticas do Condephaat
no Oeste Paulista (1969-1999)

Rodrigo Modesto NASCIMENTO*

Introdução

A
execução de políticas preservacionistas, quase sempre é estudada no
âmbito do poder público federal e, com frequência mínima, nas
esferas estadual e municipal. O que, de certo modo, reflete as práticas
locais – quando existem – de reproduzir as fórmulas federais, aplicadas “de cima
para baixo”, sem considerar suas próprias particularidades e necessidades.
Portanto, este texto tem por finalidade a apresentação e a discussão de algumas
considerações acerca das mudanças e permanências da política de preservação do
patrimônio no Oeste Paulista, com base na análise da atuação do Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo).
Para uma melhor análise das políticas estaduais de preservação do
patrimônio, foram delimitados dois períodos distintos, a saber: Primeiras Tentativas

*
Doutorando em História /PUC/São Paulo/Bolsista: CNPq. Orientadora: Profª. Drª. Olga
Brites.
588 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

(1969 a 1978) e Interiorização do Patrimônio (1979 a 1999). Foram selecionados três


processos de tombamento – a seguir descritos – de municípios do Oeste Paulista,
a fim de se apresentar e analisar as principais rupturas e permanências na política
de preservação do Condephaat na região.

Casa Souza Leão

A solicitação de tombamento desse bem cultural foi desencadeada por um


dos membros do Condephaat, o conselheiro Vinício Stein Campos, enumerando
o valor histórico do imóvel, por se tratar da casa do fundador de Tupã, Luiz
Souza Leão.
Depois do parecer de Carlos Alberto Cerqueira Lemos, contrário ao
tombamento do bem cultural por identificar apenas o valor local do bem imóvel,
insurge-se contra esse parecer o Secretário Executivo do Conselho Estadual de
Cultura, Paulo L. Bonfim, que apontou como valor histórico exatamente o fato
de ter sido a morada do fundador da cidade de Tupã, aspecto que, segundo ele,
teria desdobramentos na valorização turística do município. Mas o pedido,
naquele momento, em decorrência do parecer de Carlos Lemos, foi arquivado.
O parecer do arquiteto Carlos Lemos nega o valor histórico e
arquitetônico da Casa Souza Leão, embora enfatize a condição histórica de
residência do fundador da cidade:

A casa, de boa feitura e de estilo indefinido, foi construída em 1935,


seis anos após a fundação da cidade. Certamente não se trata da
primeira ou das primeiras construções de Tupã. Assim sendo, não
estamos em face de um exemplar arquitetônico de valia e, de modo
algum, constituem obra de arte digna de tombamento e, pelo visto,
também não é aquela residência um documento histórico de maior
valor, seu único título é servir de moradia ao fundador da cidade [...].
(Processo n. 11.101/69, p. 09).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 589

Nesse parecer, a ênfase está na impossibilidade de incluir a Casa Souza


Leão no conjunto das primeiras residências/edificações construídas na cidade.
Fica evidente uma visão de história que privilegia o passado remoto, o momento
da origem (LE GOFF, 1984), como ponto fundamental para a preservação do
patrimônio cultural. Portanto, o parecer de Carlos Lemos sobre a Casa Souza
Leão não reconhece seu valor no âmbito do patrimônio cultural do Estado, mas
apenas na esfera municipal.
Em seguida, o processo passou para as mãos de dois conselheiros: Vinício
Stein Campos, o mesmo que pediu o tombamento do bem, e Arnaldo D’Ávila
Florence, ambos elaborando parecer favorável ao tombamento, privilegiando o
valor histórico:

Embora não tenha sido esse edifício dos primeiros a ser edificado em
Tupã, essa circunstância não tira do solar a sua condição histórica de
casa de fundador, pois foi a primeira e única casa residencial por ele
construída para seu uso na cidade que havia fundado [...]. A única
maneira válida de se preservar o magnífico patrimônio, erigindo em
bem histórico de interesse estadual, pela trasladação dos episódios de
significação municipal e estadual que neles se deram, é o tombamento
do imóvel na forma da proposta inicial, [...]. (Processo n. 11.101/69, p.
49)

Nesse primeiro processo de tombamento, há a oportunidade de observar,


no espaço da memória, a disputa entre membros do próprio Condephaat pelo
discurso simbólico. O parecer do arquiteto Carlos Lemos nega o seu valor
histórico e arquitetônico, “não estamos em face de um exemplar arquitetônico de
valia”, enquanto os conselheiros Stein Campos e D’Ávila Florence, ao contrário,
590 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

destacaram o valor histórico da Casa Souza Leão como a morada do fundador da


cidade de Tupã.
Nos dois pareceres, tanto o contrário quanto o favorável ao tombamento,
observa-se o conceito de história enquanto passado remoto, mito fundador,
período distante em que se encontram os símbolos fundadores das identidades
atuais (POLLAK, 1992).
Outro aspecto importante foi o destaque dado à única morada do
fundador de Tupã, Luiz Souza Leão, o que revela uma visão de patrimônio que
torna visível o Estado e dá ênfase aos grandes vultos da história.
Sobre o mito fundador, José Reginaldo Santos Gonçalves discorre:

É um mundo feito de fundadores, de heróis considerados os primeiros


e os melhores, que deram início a uma determinada coletividade
nacional. [...]. Entre o passado e o autor fica a tradição. O passado é,
portanto, narrado com base no que é transmitido por esta tradição, e
não com base na experiência pessoal. [...]. Esse passado é sagrado,
absoluto, jamais é submetido a um ponto de vista relativo.
(GONÇALVES, 2002, p.112).

Nenhum abaixo-assinado foi encontrado nos autos dos processos que


pudesse evidenciar a participação ou conhecimento da existência dessa iniciativa
pelo tombamento dos bens. O único agente da sociedade local a interessar-se
pela preservação da Casa Souza Leão foi a Diretora do Museu de Tupã.
Em carta enviada ao Presidente do Condephaat, em 14/06/1969, Nair
Ghendini, Diretora do Museu de Tupã, ressaltou:

Em conversa com o nosso amigo prof. Vinício Stein Campos, achou


ele de toda a conveniência, que fosse proposto a este Conselho, o
tombamento da residência do Sr. Luiz de Souza Leão, doado por
escritura pública a Prefeitura Municipal, para após sua morte ser
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 591

instalada a sede do “Museu Histórico e Pedagógico índia Vanuíre” de


Tupan, [...]. (Processo n. 11.101/69, p.04)

Durante o estudo de tombamento da Casa Souza Leão, em Tupã, circulou


também uma notícia veiculada em âmbito nacional, no jornal O Estado de S. Paulo,
de 28/03/1971, intitulada “Tupã é homenagem aos índios”, a qual descreveu a
relação da sociedade local com os indígenas e enfatizou que Tupã é a localidade
brasileira onde mais se valoriza o índio, ao seu entendimento, com
desdobramentos turísticos para a cidade.
Em seguida, apresenta-se a análise do tombamento do Cemitério Japonês,
em Álvares Machado, que representou uma ruptura com as políticas tradicionais
do campo patrimonial.

Cemitério Japonês

A solicitação de tombamento do Cemitério da Colônia Japonesa de


Álvares Machado partiu da Delegacia Regional de Cultura de Presidente
Prudente. O delegado Gilberto Malacrida ressaltou como itens importantes para
o tombamento em nível estadual: o atributo mítico fundador do bem cultural,
pois foi construído antes da chegada da Estrada de Ferro Sorocabana na região; o
valor excepcional do bem, pois, de acordo com Gilberto Malacrida, trata-se do
único cemitério japonês do Brasil. E continua:

A colônia da gleba Brejão, no município de Álvares Machado,


começou a funcionar em fevereiro de 1918, por iniciativa dos
pioneiros Ken Itiro Hoshina e [...] Ogassawara, [...], para receberem os
imigrantes japoneses, quando os trilhos da estrada de ferro, [...] não
tinham chegado na região. Foram épocas difíceis e de muitos
sacrifícios e obstáculos para os primeiros colonos da região da gleba
Brejão, [...]. (Processo n. 21.028/79, p.04).
592 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O Delegado Regional de Cultura destacou o turismo em torno do bem


cultural, pois, de acordo com Malacrida, descendentes de japoneses de várias
partes do Brasil visitam, todo ano, o cemitério, no segundo domingo de julho.
Marcelo Alario Ennes assinala que a formação das colônias japonesas foi
parte do segundo momento da imigração nipônica no Brasil, quando os
imigrantes, desiludidos com a tentativa de lucro rápido em terras brasileiras,
optaram por fixar-se à terra, não mais como colonos e sim, proprietários, indo ao
encontro das áreas ainda não desbravadas para praticar a agricultura. Sobre as
colônias japonesas, Ennes discorre: “A formação de colônias responde a uma
característica cultural japonesa, a saber, o caráter gregário do povo. Associações
de vários níveis, [...] se estruturaram à medida que as colônias consolidavam”
(ENNES, 2001, p.60).
A conselheira Maria Thereza S. Petrone deliberou em favor da abertura de
estudo de tombamento do Cemitério Japonês – deliberação aceita pelo Egrégio
Conselho Deliberativo, Ata 425 – e ressaltou o valor histórico da imigração
japonesa e da ocupação do Oeste Paulista:

[...], cujo início data de 1920, época em que se localizaram grandes


levas de imigrantes japoneses no oeste paulista [...].
A abertura de processo de tombamento do cemitério japonês, pelas
pesquisas que se farão necessárias, talvez permita inclusive um exame
mais cuidadoso de outros bens culturais ligados à história da imigração
e da ocupação das frentes pioneiras no nosso Estado [...]. (Processo n.
21.028/79, p.22).

É importante ressaltar a viagem feita por membros do Condephaat ao


município de Álvares Machado para explicar e conscientizar o Prefeito Municipal
e o presidente da Nihonjinkai (Associação dos antigos imigrantes japoneses)
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 593

sobre o significado do ato jurídico do tombamento, e, vale lembrar, tudo isso


antes do referido ato de proteção oficial ser decidido.
Endereçado ao Secretário de Estado da Cultura, o comunicado de Kazuo
Miyazaki, Presidente da Colônia Japonesa, enfatiza o valor histórico e afetivo do
bem cultural para a comunidade japonesa: “[...], o referido cemitério, constitui
para nós, um marco histórico da cultura da imigração japonesa e campo sagrado
onde foi derramado, sangue e suor, indício de lutas contra suas adversidades”.
(PROCESSO DE TOMBAMENTO n. 21.028/79, p. 45).
O conselheiro Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, em parecer favorável
ao tombamento, datado de 10 de julho de 1980, inscreveu o Cemitério da
Colônia Japonesa de Álvares Machado como parte integrante do patrimônio
cultural paulista, enumerando quatro valores: etnográfico, histórico, afetivo e o
estético:

a) Valor etnográfico, pelos elementos característicos da cultura


japonesa, aos quais acrescentam traços aculturativos;
b) Valor estético, pelo interesse formal [...];
c) Valor histórico, por sua associação à atividade pioneira da
colonização [...];
d) Valor afetivo, pela referência indispensável que constitui para os
descendentes e para toda a comunidade. (Processo n. 21.028/79, p.59).

A proteção oficial do Cemitério Japonês foi noticiada, em âmbito nacional,


em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de julho de 1980, anexada ao
processo, intitulada “Cemitério japonês é monumento”, e destacando os
seguintes pontos:
594 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...]. A cerimônia está marcada para domingo e faz parte das


comemorações do dia de Finados japonês, na presença de membros
do Condephaat e Secretaria da Cultura, que visitarão a região pela
primeira vez.
A informação, transmitida por fonte oficial, causou euforia na colônia
japonesa, que vê na medida a salvação do cemitério, composto por 180
túmulos. [...].
Durante a cerimônia, a ser presidida por Ruy Othake [...], os japoneses
rememorarão a história do cemitério [...]. (Processo n. 21.028/79,
p.76).

Sobre esse momento das políticas de preservação no Estado de São Paulo,


Marly Rodrigues salienta:

[...]. As considerações dos excluídos, das singularidades e o silêncio na


atual escrita da História, é um fator que, juntamente com a percepção
do patrimônio como fator cultural, tende a modificar este quadro, pois
desvenda o existir não apenas de um patrimônio, mas de patrimônios,
cada um dos quais referenciados em memórias específicas ou locais
cujo valor tem que ser aferido por critérios múltiplos. (RODRIGUES,
1996, p.198)

No plano estadual das políticas de patrimônio, como já referido e também


apontado por Rodrigues, o Condephaat passou a adotar novos objetos para
proteção, incluindo o patrimônio natural e a ampliação da noção de patrimônio,
aprofundada por meio do curso de Varine-Bohan, em 1974.
Sérgio Miceli sintetiza o momento da abertura política na área cultural:

As três últimas iniciativas relevantes no domínio cultural oficial ao


longo dos anos 70 – a saber, a implantação do Programa de
Reconstrução das Cidades Históricas, do Centro Nacional de
Referência Cultural, e a criação da Secretaria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional e da Fundação Nacional Pró Memória – alteraram
significativamente o perfil da vertente “patrimonial”, refletindo ao
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 595

mesmo tempo a emergência de novas lideranças e orientação


doutrinárias. (MICELI, 1984, p.59).

É importante analisar as relações entre o patrimônio imaterial e material


no estudo e tombamento do Cemitério Japonês, município de Álvares Machado.
Dez anos depois de tombado, por meio da Resolução nº 23 de 1980, o
Condephaat recebeu um aviso de uma construção irregular dentro do perímetro
tombado como patrimônio estadual: a Capela da família Ikeda. Junto a esse aviso,
estava o pedido de demolição da capela, feito pelo órgão responsável.
A arquiteta Diana Danon do Condephaat discorre:

2 – Causa-me enorme surpresa que doze anos de seu tombamento seja


questionada sua importância como bem cultural e histórico e como
vem se arrastando durante dez anos a solução para a construção
irregular da capela [...]. Neste caso o CONDEPHAAT foi ignorado,
[...].
3 – A capela da família [...] deve ser inegavelmente demolida [...] já que
descaracteriza o bem [...]. (Processo n. 21.028/79, p.130).

Segundo a arquiteta do STCR (Serviço Técnico de Conservação e


Restauro), houve ausência de comunicação sobre a construção da capela; pois,
como se sabe, toda alteração de bens tombados tem de ser aprovada pelo
Conselho o que, nesse caso, não foi feito pela família Ikeda.
As relações entre o patrimônio material, representado pelo Cemitério em
questão, e o imaterial, pelas variadas práticas religiosas que acontecem nesse
espaço físico, emergem claramente dessa discussão.
No tombamento de bens de natureza religiosa, estudado por Alexandre
Fernandes Correa (2001), quanto ao tombamento de bens etnográficos como os
terreiros de candomblé, em São Luís/São Paulo, é praticamente impossível
596 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dissociar o meio material do meio imaterial, como demonstra o tombamento do


Cemitério Japonês.
Sobre o estudo de tombamento dos terreiros, em São Luís do Maranhão,
Correa afirma:

[...]. O que realmente é tombado num terreiro de mina ou candomblé?


O que se tomba são os bens materiais e imateriais, os bens móveis, as
heranças culturais e simbólicas? Tombam-se os ritos e a mitologia, o
panteão das entidades, os vestuários, as cores da parede, o peji?
[...] A prática de tombamento deve evitar congelar, petrificar e
fossilizar bens sociais e culturais que estão enraizados na vida social,
na memória e tradição viva de grupos. (CORREA, 2001, p.157-158).

No caso da capela construída no Cemitério Japonês, foi o que ocorreu: a


tensão entre o material e o imaterial e a figura jurídica do tombamento, uma vez
que a capela da família Ikeda é um monumento aos mortos.
Nesse caso, significava rememorar os mortos sepultados no local,
representando os valores espirituais, ritualísticos, religiosos e também
etnográficos, pois o bem cultural pertence à comunidade japonesa de Álvares
Machado.
Quando ocorreu o fato, as discussões sobre o patrimônio imaterial, que
culminariam no registro desses bens no ano de 2000, ainda nem haviam se
iniciado, mesmo entre os especialistas do IPHAN.
Para resolver o problema gerado pela construção da capela, a presidência
do Condephaat, em comum acordo com a Prefeitura Municipal e a Associação
Japonesa local, resolveu não demolir a capela, mesmo considerando que a sua
construção desrespeitava uma norma do tombamento. O pedido de demolição
foi arquivado.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 597

Com esse arquivamento do pedido, ficou resolvido o impasse. A


demolição da capela da família Ikeda teria provocado sérios problemas locais
entre o poder público e a comunidade japonesa, que integra grande parte da
população de Álvares Machado, significando desrespeito para com o sagrado – o
imaterial –, a família Ikeda e a comunidade japonesa local.
Para finalizar, abordar-se-á o estudo de tombamento da Sede da Fazenda
Santa Sofia e Mirante, bem cultural localizado em Presidente Venceslau.

Sede da Fazenda Santa Sofia e Mirante

Os estudos para o tombamento da Sede da Fazenda Santa Sofia e do


Mirante iniciaram com a solicitação da Promotoria de Justiça do município de
Presidente Venceslau, por intermédio dos promotores públicos Eduardo Araújo
da Silva e João Aparecido dos Santos.
Os promotores ressaltaram a importância da Fazenda Santa Sofia no
momento inicial da ocupação do Oeste Paulista. Segundo os promotores o
imóvel foi uma das primeiras fazendas da região, residência do primeiro prefeito
de Presidente Venceslau, onde aparece, de novo, a valorização do momento
inicial, como a fundação das cidades, ponto principal na identificação de sua
memória e de sua identidade.
Os solicitantes compararam a Fazenda Santa Sofia às fazendas dos
Estados Unidos e o Mirante a um estilo de arquitetura europeia sem, no entanto,
precisar o estilo arquitetônico, enfatizando o seu idealizador, Álvaro Antunes
Coelho:

[...] formam singular conjunto arquitetônico, fruto da inteligência,


criatividade do senhor Álvaro, cuja cultura foi assimilada nos claustros
598 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dos conventos lusitanos, [...], justificando, pois, a beleza estética dos


monumentos.
Tal beleza inclusive já determinou a presença da “torre” em cartões
postais da região [...]. (Processo n. 26.912/89, p. 06).

O cidadão João Marques de Oliveira, em carta datada de 05 de janeiro de


1979, endereçada ao proprietário do bem apontado para o tombamento, Álvaro
Ribeiro Coelho, pediu a conservação da sede da Fazenda Santa Sofia como forma
de preservar a história de Presidente Venceslau e solicitou a instalação de um
museu histórico no local.
Em parecer da conselheira Maria Ângela D’Incao, favorável à abertura de
processo de estudo de tombamento, ressaltou o valor da Sede da Fazenda Santa
Sofia e do Mirante para a cidade de Presidente Venceslau e para a região,
representando um ciclo econômico importante no Estado de São Paulo, a
expansão da cultura cafeeira e o consequente povoamento da região.
A conselheira relatou, ainda, a participação da esposa do senhor Álvaro
Antunes Coelho, Dona Carmem Coelho, que segundo Maria Ângela D’Incao foi
líder política regional. Insiste ainda:

Neste imóvel ocorreram grande número de reuniões políticas sob a


direção da chefe política da região, Dona Carmem Coelho, esposa de
Álvaro Coelho e figura interessante e precursora, digamos assim, da
liberdade feminina. Um estudo mais aprofundado, tanto da casa como
de sua história deverá se proceder, assim como, um estudo de sua
arquitetura. (Processo n. 26.912/89, p.29).

O técnico do Condephaat, Flávio Luiz M. B. de Moraes, manifestou


interesse em preservar a Sede da Fazenda Santa Sofia e o Mirante, destacando o
valor arquitetônico do conjunto:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 599

[...] o conjunto edificado exemplo fiel de uma postura cultural trazida


de fora para nosso meio, no modo de construir e pensar os espaços
numa região ainda virgem de pesquisa científica com essa finalidade
nos leva a manifestar uma posição favorável a sua preservação.
(Processo n. 26.912/89, p. 140).

Os promotores que solicitaram o tombamento da Sede da Fazenda Santa


Sofia em Presidente Venceslau entraram com uma Ação Civil Pública contra o
proprietário, Álvaro Ribeiro Coelho, proibindo-o de empreender qualquer
descaracterização do bem cultural:

[...] devido a crescente especulação imobiliária neste município, tais


monumentos estão sendo ameaçados de destruição, tendo em vista
que o requerido resolveu transformar a antiga fazenda Santa Sofia em
um condomínio fechado, [...].
[...], pois da noite para o dia podem ser objeto de destruição, o que
acarretará incalculável prejuízo à gente desta região, já que somente
guardarão na memória a lembrança da primeira fazenda deste
município. (Processo n. 26.912/89, p. 23).

É importante destacar no discurso do solicitante o argumento da perda,


representado pelo perigo iminente de destruição desse bem cultural pela
crescente especulação imobiliária, sempre referida pelos especialistas do
patrimônio. Importante, também, é a valorização da memória como direito social
e expressão da cidadania.

O proprietário da Sede da Fazenda Santa Sofia e Mirante (Processo n.


26.912/89, p. 23), em Presidente Venceslau, Álvaro Ribeiro Coelho, entrou com
um Mandado de Segurança na Justiça, objetivando anular o processo de estudo
de tombamento. O advogado João Braz Serraceni afirmou que os prazos para
uma decisão de tombamento expiraram em mais de sessenta dias.
600 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O Juiz de Direito Thales Estanislau do Amaral Sobrinho caracterizou a


ação do Condephaat como abuso de poder, pois não liberou nem tombou o bem
cultural: “[...], concordo em parte a segurança, [...] Sr. Presidente do
CONDEPHAAT, no prazo de 60 dias contados da intimação desta sentença,
ultime o processo de estudo de tombamento, iniciando ou não a abertura do
processo, [...]” (Processo n. 26.912/89, p.103)2.
Mas o proprietário Álvaro Ribeiro Coelho, por meio de seu advogado
Mario Roberley Carvalho da Silva, entrou novamente com um Mandado de
Segurança contra o Presidente do Condephaat, alegando não possuir condições
financeiras para recuperar o imóvel. Pediu o cancelamento do tombamento,
afirmando não ter condições de atender ao Decreto que determinou a área de
entorno dos bem tombados (Decreto n. 13.426 de 16/03/1979)3.
O Presidente do Conselho, Edgard de Assis Carvalho, em comunicado ao
Juiz de Direito Ari Alves Arantes, insurgiu contra o Mandado de Segurança
impetrado pelo proprietário reafirmando o interesse do órgão em preservar: um
testemunho da história paulista.
O Juiz de Direito Henrique Ferraz C. de Mello emitiu sentença e ressaltou
o valor histórico do bem cultural, corroborado por Álvaro Antunes Coelho, pois
o local foi parte da história da família do proprietário. E continua:
[...]. A torre ou mirante, por sua vez, tornou-se símbolo arquitetônico
da cidade, como se vê na impressão deixada pelo cartão folha 12. [...].
Ela e a mansão do primeiro prefeito formam um todo harmônico,
visão histórica do passado, deixado pela ação do tempo. (Processo n.
26.912/89, p. 259).

2
Mas o processo de estudo de tombamento já havia se iniciado com o parecer da conselheira Maria Ângela
D’Incao acatado pelo Egrégio Colegiado em 08/05/1989. A decisão judicial é de 29/01/1990.
3
O Decreto n. 13.426 de 16/03/1979 define em 300 metros a área envoltória dos bens tombados. Coleção de
Leis e Decretos do Estado de São Paulo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 601

Relatou, ainda, que o impetrante insurgiu apenas contra a questão do


entorno. Com isso, o Juiz sentenciou o proprietário a não realizar o loteamento
pretendido.
O Juiz de Direito Danilo Panizza Filho denegou o Mandado de Segurança
impetrado por Álvaro Ribeiro Coelho. O proprietário, em carta endereçada ao
Presidente do Condephaat em 11 de fevereiro de 1992, acatou a preservação do
bem cultural, mas criticou incisivamente o entorno, dado seu interesse em
construir um condomínio fechado, sobre o que afirmou:

Com a altura de 3,50 metros fica vedada a realização de um


loteamento em regime de condomínio fechado que daria segurança e
proteção aos imóveis tombados, [...]. Não era nem é nossa intenção
descaracterizar ou destruir os imóveis históricos [...], o loteamento virá
proporcionar a segurança necessária à preservação, evitando atos de
vandalismo [...]. (Processo n. 26.912/89, p.294).

Argumentou que a sua família sempre preservou o imóvel, residência de


seu pai, e pediu a resolução da questão sobre a área envoltória. Em mais duas
cartas datadas de 27 de março de 1992 e 12 de junho de 1992, solicitou uma
solução para a questão do entorno.
Na última correspondência, sustentou não possuir condições financeiras,
pedindo auxílio ao Condephaat para resolver a questão. O que mostra que o
tombamento, em alguns casos, não está em consonância com os anseios
econômicos dos proprietários dos imóveis sob proteção oficial do Estado.
O arquiteto Nilson Ghirandello do Condephaat, na tentativa de resolver a
questão da área envoltória do bem cultural, pediu a presença do proprietário no
Conselho e decidiu: “3 - Como permuta e em contra partida na liberação deste
lote, o Conselho poderia exigir a restauração da casa, e especialmente da torre,
[...]”. (Processo n. 26.912/89, p.325).
602 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

No processo de tombamento da Sede da Fazenda Santa Sofia e Mirante


não houve um embate entre historiadores e arquitetos do Condephaat, mas as
disputas ficaram circunscritas em torno da área envoltória do bem cultural por
parte da não aceitação pelo seu proprietário.

Considerações finais

Dos doze estudos de tombamento realizados durante o mestrado, foram


selecionados apenas três bens culturais tombados no Oeste Paulista para se
apresentar e discutir as mudanças e as permanências da política de preservação
do Estado.
Durante a primeira fase (Primeiras Tentativas 1969-1978) – na qual o
processo sobre a Casa Souza Leão é esclarecedor – registrou-se uma constante
nesse período, o total distanciamento entre a sociedade local e as políticas de
patrimônio. As discussões ficaram restritas aos especialistas do patrimônio. As
sociedades locais mantiveram-se alheias aos estudos realizados pelo órgão
estadual. O parâmetro principal em que se pautou o Condephaat ficou restrito à
história oficial e à história da arquitetura brasileira, critério básico para as decisões
finais.
Na segunda fase (Interiorização do Patrimônio 1979-1999), o perigo de
destruição dos bens culturais, fruto da crescente especulação imobiliária, em que
o valor econômico dos imóveis pesou gravemente contra as decisões do
Condephaat, na maioria das vezes pela recusa do proprietário ao ato
administrativo, proporcionou entraves políticos originados dos conflitos entre o
público e o privado.

Verificou-se, entretanto uma permanência na política de patrimônio em


todo o período analisado, com ênfase no “mito fundador”, em que é importante
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 603

destacar a valorização pelos membros do Condephaat, do momento de fundação


das localidades, bem como os fundadores dos municípios do Oeste Paulista.
Esses critérios de valoração atribuídos tanto pelo solicitante como pelos
membros do Condephaat, remetem mais uma vez a uma visão de história que
privilegia o passado remoto.

O tombamento do Cemitério Japonês pelo Condephaat, em finais do


Regime Militar, representou um avanço considerável nas políticas de patrimônio.
Tanto no Estado como no Brasil, a maior ruptura nesse campo se deu com a
inclusão e o reconhecimento do primeiro bem cultural que não representava os
valores cristãos da história oficial (a católica luso-brasileira4), mas sim os da
história da imigração japonesa no Brasil, o chamado patrimônio cultural não
consagrado.5
Com a inclusão do Cemitério da Colônia Japonesa, reconhecia-se, mais
uma vez, a pluralidade da cultura nacional, as múltiplas memórias formadoras da
nacionalidade brasileira, em detrimento dos tradicionais bens em “pedra e cal”.

Referências:

Fontes

Processo de Tombamento n. 11.101/69, Centro de Documentação do


CONDEPHAAT.
Processo de Tombamento n. 21.028/79, Centro de Documentação do
CONDEPHAAT.
4
O tombamento do Casarão do Chá (1982); o Bairro do Cafundó (1990); exemplos de bens
culturais representativos da comunidade japonesa e negra. (RODRIGUES, 1996).
5
De acordo com Fonseca (1996, p. 159), “A expressão ‘patrimônio cultural não consagrado’
surgiu [...] para designar aqueles bens culturais que, até então, não integravam o universo do
patrimônio histórico e artístico nacional. [...]. Tratava-se das produções dos ‘excluídos’ da
história oficial: indígenas, negros, populações rurais, imigrantes etc”.
604 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Processo de Tombamento n. 26.912/89, Centro de Documentação do


CONDEPHAAT.
Decreto n. 13.426 de 16/03/1979.

Bibliografia

CORREA, A. F. Vilas, parques, bairros e terreiros: novos patrimônios na cena das


políticas culturais em São Paulo e São Luís. São Luís: Ed. da UFMA, 2003.
ENNES, M. A. A construção de uma identidade inacabada. Nipo-brasileiros no
interior do Estado de São Paulo. SP: Ed. da UNESP, 2001.
FONSECA, M. C. L. Da modernização à participação: a política federal de
preservação nos anos 70 e 80. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio
de Janeiro, IPHAN, n. 24, p. 153-165, 1996.
GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ/SPHAN, 1996.
LE GOFF, J. Memória – História. Lisboa. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. Vol. 1.
MICELI, S. (Org.). Estado e cultura no Brasil. SP: Difel, 1984.
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
10, p. 200-216, 1992.
RODRIGUES, M. De quem é o patrimônio? Um olhar sobre a prática
preservacionista em São Paulo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
Rio de Janeiro, IPHAN, n. 24, p. 195-205, 1996.
Arquivos pessoais e acervos literários:
o caso do arquivo pessoal do escritor
João Antônio (1937-1996)


Thais Jeronimo SVICERO

Introdução

E
ste trabalho pretende apresentar algumas indagações que permeiam
a pesquisa em pleno desenvolvimento sobre o arquivo pessoal do
escritor João Antônio (1937-1996) que se encontra depositado na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de
Ciências e Letras de Assis/UNESP.
É oportuno observar que as séries documentais de um arquivo pessoal
fornecem ao pesquisador a possibilidade de conhecer aspectos da vida
intelectual e pessoal de seu titular. Porém, algumas informações presentes
nestes arquivos podem ser organizadas e apresentadas pelo próprio titular, da
forma desejada, para que os futuros pesquisadores as vejam.
Em relação ao arquivo pessoal do escritor João Antônio, pode-se
perceber um possível projeto autobiográfico por meio do acúmulo e da
organização de determinados documentos por ele próprio, na intenção de


Mestranda em História /UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientadora: Drª. Célia Reis
Camargo.
606 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

contrapor a sua imagem boêmia, marginal e amante da vida noturna, a uma


preocupação em demonstrar o seu envolvimento e sua importância no cenário
da literatura brasileira.

O sentido de arquivar a própria vida

Para proceder ao estudo e análise dos arquivos pessoais é preciso


apropriar-se de sua definição pelos teóricos da arquivística.1 Heloisa Liberalli
Bellotto os define como:

[...] os constituídos por documentos produzidos e/ou recebidos


por uma pessoa física (cidadão, profissional, membro, de uma
família ou elemento integrante de uma sociedade), enfim, de
documentos que, preservados para além da vida dessa mesma
pessoa, constituem seu testemunho, como um conjunto orgânico,
podendo então ser abertos a pesquisa pública (BELLOTTO, 2007,
p. 265-266).

Nesse sentido, pode-se estabelecer a lógica da formação desses


arquivos. Para Aurélio Vianna, Mauricio Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de
Sá (1986, p.65-6), o arquivo encontra sua unidade em seu produtor, ou seja,
naquele que acumula os documentos no exercício de suas atividades. Por isso,
a lógica desse arquivo não reside nos documentos, mas no sujeito que os
seleciona e arranja. Não é a produção do documento que interessa, mas sim a
constituição da coleção.
Assim, em relação ao arquivador, ou melhor, ao titular do arquivo, o
seu papel fundamental é demonstrado pelos referidos autores da seguinte
forma:

1
O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005), apresenta a seguinte definição de
arquivo privado: “Arquivo de entidade coletiva de direito privado, família ou pessoa.
Também chamado arquivo particular”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 607

O arquivador constitui a sua coleção de documentos segundo


critérios que lhe são preciosos – precaução, vingança, pragmatismo
político ou administrativo (economia, eficiência, etc.), orgulho,
fantasia e até mesmo, senso histórico. De qualquer forma, o
arquivador constitui sua coleção como parte de si segundo um
movimento que é, em primeiro lugar, um exercício de controle
sobre os eventos2 e que pode ainda estar erigindo sua eternidade
enquanto indivíduo, cujo único critério de aferição, e sólida
garantia, é exatamente a memória (VIANNA; LISSOVSKY;
MORAES DE SÁ, 1986, p. 67).

Há que se dizer ainda, na análise das diversas formas do arquivamento


do eu, que para Philippe Artiéres, a prática de arquivar a própria vida traduz-
se como um valor social. O titular, porém, ao escolher e ordenar alguns
acontecimentos traça o sentido que deseja dar à sua vida. Assim, “arquivar a
própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem
íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de
construção de si mesmo e de resistência” (ARTIÉRES, 1998, p.11).
Segundo Artiéres, para nossa sociedade, é imperativo manter arquivos,
guardar determinados documentos com o valor de um seguro social. O
indivíduo deve classificar seus papéis e deve, a qualquer momento, estar
preparado para apresentá-los. Portanto, ele deve manter seus arquivos
pessoais para ver sua identidade reconhecida.
Dessa forma, ao pensarmos sobre a constituição dos arquivos pessoais
e a ação de seu titular, guardar seus registros torna-se uma maneira de
demonstrar sua contribuição, de assegurar sua presença na posteridade, de
ignorar o esquecimento e trazer ao público sua importância.

2
Segundo os autores, o evento “é a única forma de reter o fluxo do tempo que escorre por
entre nossas mãos, transformando em algo que pode ser descrito, narrado, reproduzido,
rememorado, mas o seu reconhecimento é ele próprio uma operação da memória”.
608 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O interesse pelos arquivos pessoais

Nas últimas décadas, os arquivos privados, especialmente os arquivos


pessoais, assumiram relevante posição nas pesquisas acadêmicas. Esses
arquivos trazem personagens das mais diversas atuações profissionais, e suas
considerações permitem que o pesquisador amplie seu campo de estudo.
No âmbito da História, Cristophe Prochasson demonstra que o
aumento de interesse dos historiadores pelas fontes privadas ocorreu devido a
uma mudança de paradigma fundamental na história das práticas
historiográficas. Para o autor,

[...] os papéis pessoais atraíam muito mais os historiadores da


literatura ou da arte, que santificavam profissionalmente as notas
das lavadeiras dos grandes homens. Hoje, o desenvolvimento da
história cultural e da história das elites tornou as fontes privadas,
não mais fontes excepcionais capazes de acrescentar um pouco de
sal a uma narrativa austera ou de fornecer (enfim!) a chave do
mistério da criação, mas fontes comuns, que se tenta conservar
como se conservam as fontes administrativas ou estatísticas. Essa
evolução traduz uma mudança fundamental de sensibilidade
historiográfica que alguns podem interpretar como sinal de uma
“crise” e outros, talvez mais perspicazes, vêem como uma
modificação da relação com a história como disciplina científica,
com o tempo e, de modo mais geral, com os fenômenos
observados. (PROCHASSON, 1998, p.105).

Ainda segundo esse mesmo autor, dois fatores são responsáveis pelo
aumento do uso dos arquivos pessoais, primeiro, a história cultural e o
aumento dos trabalhos relacionados aos intelectuais e, segundo, o interesse
por fontes menos seriais e mais qualitativas, impulsionada pela micro-história
e pela antropologia histórica.
Por mais que ao autor se trate excepcionalmente do caso francês, esse
interesse parece fluir também no Brasil. Ângela de Castro Gomes (1998,
p.124) ressalta que as instituições ligadas à guarda de arquivos privados
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 609

também surgiram na década de 1970, juntamente ao “boom” da descoberta


francesa e, como exemplo, a autora traz duas dessas instituições, que
atualmente vivem plena “aceitação e rotinização” do meio acadêmico, tanto
no país quanto no exterior, é o caso do CPDOC (Centro de Documentação
de História Contemporânea do Brasil) da Fundação Getúlio Vargas/FGV e
do Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de
Campinas/UNICAMP.
Sobre o uso desses acervos, para Heloisa Liberalli Bellotto (2007,
p.267), os arquivos pessoais possuem duas fases. A primeira, fase do uso
primário, compreende a acumulação dos documentos e a utilização desses em
vida, o arquivo serve necessariamente ao próprio titular, tanto para suas
atividades de trabalho quanto para a comprovação de sua existência civil,
deveres cívicos e relacionamentos dentro e fora da vida intelectual.
A segunda fase, na qual se estabelece o uso secundário, o objetivo não é
mais jurídico ou profissional do próprio titular e sim o da pesquisa científica
feita por terceiros. Assim, a potencialidade informacional dos documentos
multiplica-se, podendo alcançar um campo infinitamente maior do que a vida
e a obra do produtor/detentor desses papéis. E é nessa segunda fase que os
pesquisadores tentam elucidar algumas questões propostas por esses acervos.

Os estudos sobre os arquivos pessoais

As pesquisas relacionadas aos arquivos pessoais são relativamente


recentes. Porém, nos últimos anos, percebe-se uma atenção mais concentrada
sobre esse tema. Dessa forma, foram desenvolvidas, no Brasil, algumas
discussões e trabalhos relacionados a esses acervos, a respeito dos quais seria
pertinente apresentar, aqui, um breve apontamento a fim de ajudar a
compreender melhor sua preservação e seu uso. Tais pesquisas englobam
610 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

diversas áreas do conhecimento e contribuem para um melhor entendimento


do seu uso como fonte e também como objeto de pesquisa.
Um exemplo importante, e que merece referência, foi o Seminário
Internacional de Arquivos Pessoais, realizado em 1997, promovido pelo
CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo IEB (Instituto de Estudos
Brasileiros) da Universidade de São Paulo/USP. Esse seminário resultou na
publicação da revista Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, integrada por artigos que
abordam as mais diversas discussões contemporâneas relevantes sobre o
universo dos arquivos pessoais e suas possibilidades de abordagem. Com a
presença de nomes de destaque, tanto no campo da arquivística, quanto no
campo das humanidades, a intenção desse encontro foi refletir sobre os
arquivos pessoais, por meio de uma perspectiva interdisciplinar, e permitir
discussões teóricas e metodológicas envolvendo o tratamento e o uso desses
acervos.
A revista tornou-se referência para este tema e encontra-se dividida em
duas partes, a primeira, intitulada “Escrita de si/escrita da história”, tem por
objetivo entender as motivações da ação acumuladora dos documentos e da
trajetória intelectual do indivíduo e a segunda, denominada “O espaço do
arquivo”, aborda questões sobre as políticas de preservação e acesso, além das
convergências entre o público e o privado.
Considera-se importante para entender, também, a lógica de
acumulação desses arquivos; tema abordado no artigo “A Vontade de guardar:
Lógica da acumulação em arquivos privados”, de Aurélio Viana, Maurício
Lissovsky e Paulo Sérgio de Sá (1986). Os autores buscam esclarecer algumas
das noções de memória, documento, pessoa, público, privado e história, além
de tentar compreender o Modus operandi do titular e a racionalidade da
acumulação de seus papéis, fornecendo um novo modo de repensar esses
acervos particulares.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 611

Um estudo inovador foi o de Priscila Morais Varella Fraiz (1994) que


em sua dissertação intitulada A construção de um eu autobiográfico: o arquivo privado
de Gustavo Capanema faz uma análise dos fragmentos deixados por Gustavo
Capanema, observando, a partir deles, a existência de um projeto
autobiográfico como intenção maior na formação de seu arquivo particular.
No caso deste acervo, fundamentado na acumulação, seleção e organização de
seus documentos, que em primeira instância serviriam para a consolidação de
um livro memorialístico, Capanema demonstra a tentativa da construção de
sua imagem como um sujeito político e moral.
Ainda sobre Gustavo Capanema, Ângela de Castro Gomes (2000)
organizou a obra Capanema: o ministro e seu ministério, com base nos estudos
realizados sobre e no seu arquivo pessoal. Além das discussões propostas
sobre o período em que Capanema atuou como ministro do MES (Ministério
da Educação e Saúde) no governo do presidente Getúlio Vargas, o livro traz
questões relevantes sobre os arquivos privados, e o tipo de documentação que
neles se encontra.
Em As obrigações do poder: relações pessoais e vida pública na correspondência de
Filinto Müller, dissertação de Luciana Quillet Heymann (1997), além da
discussão sobre os arquivos pessoais e os princípios do campo arquivístico, a
autora também demonstra, por meio dos documentos presentes no arquivo de
Filinto Müller, mais propriamente das suas correspondências, as relações de
sociabilidade no período em que o titular atuou como chefe de polícia no
Distrito Federal, durante o governo de Getúlio Vargas.
Ana Maria de Almeida Camargo e Silvana Goulart (2007), em Tempo e
circunstância: a abordagem contextual dos arquivos privados: procedimentos metodológicos
adotados na organização dos documentos de Fernando Henrique Cardoso discorrem
sobre a problemática dos arquivos pessoais valendo-se do arquivo do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso. Por intermédio do acervo e das
612 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

teorias e práticas arquivísticas, as autoras analisam de forma clara e objetiva os


problemas relacionados à acumulação e à ordenação desses arquivos
particulares. Um dos principais conceitos formulados nesse trabalho refere-se
às circunstâncias e ao período em que cada conjunto documental (ou
documento) foi produzido, recebido ou acumulado pelo titular do arquivo,
como elemento determinante para a sua compreensão e posterior
classificação.
Em outra perspectiva, o estudo de Maria Celina Soares de Melo e Silva
(2007), intitulado O cientista e a preservação de documentos, analisa a relação que os
cientistas mantêm com os documentos produzidos nos laboratórios científicos
e tecnológicos, definindo os conceitos de arquivo, documento e suas
características no contexto das pesquisas científicas e tecnológicas. Na
tentativa de esclarecer os limites entre os documentos pessoais e os
institucionais, além das dicotomias existentes no entendimento do caráter
público e privado desses documentos, a autora elabora um programa de
preservação de arquivos de ciência e tecnologia.
Portanto, os trabalhos citados acima são exemplos da tentativa de
esclarecer alguns aspectos da formação e da pesquisa desse tipo de arquivo.
Obviamente, há outros estudos, não menos importantes, porém, que não
foram citados apenas por falta de espaço. Vale lembrar que os estudos
relacionados a esses arquivos particulares continuam alavancando as mais
diversas discussões que, por um longo período de tempo, ainda não terão
respostas definitivas.
Cada acervo, com sua particularidade, fornece ao pesquisador uma
nova perspectiva e uma nova forma de abordagem, colaborando cada vez
mais para o entendimento de seu tratamento e preservação e também de seus
usos. Dessa forma, a história pessoal e intelectual está sempre presente nos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 613

acervos documentais, especialmente nos arquivos pessoais. Heloisa Liberalli


Bellotto define sua importância e potencialidade:

O caminho dos arquivos é aberto aos historiadores, aos sociólogos,


aos antropólogos, aos arquivistas, aos literatos, aos detetives, aos
policiais, aos juristas, aos educadores, aos médicos, aos psicólogos,
aos psicanalistas, aos jornalistas e a outros que, pelas características
de sua atuação profissional, têm maiores condições e
oportunidades de realizar essa espécie de viagem ao interior do
pensamento de uma pessoa, e a razão de ser de ações e atitudes
suas, das quais, de outro modo, só se conheceria a finalização.
(BELLOTTO, 1998, p. 201).

Os acervos literários3 e a literatura

A análise do arquivo pessoal do escritor João Antônio traz à tona a


questão do uso dos acervos literários e as possibilidades de pesquisa existentes
nesses acervos. Portanto, seria importante também fazer uma breve discussão
sobre os estudos relacionados aos arquivos pessoais de escritores.
A descoberta dos arquivos pessoais de escritores pelos pesquisadores
da literatura é recente, porém, este espaço contribui para a redescoberta do
escritor como sujeito e testemunho da história, além de propiciar um maior
conhecimento sobre seus métodos de trabalho e o caminho percorrido para a
elaboração de suas obras.
Esses acervos constituem uma história de vida, uma extensão do
próprio titular, seu perfil confunde-se com o perfil do escritor, portanto, “O
conhecimento, a experiência e os registros dessa experiência acumulados por

3
O uso do termo acervo em vez de arquivo vem do artigo de Maria da Glória Bordini. A
autora, ao escolher denominar o acervo de Érico Veríssimo, explica que a opção pelo
termo acervo denomina um trabalho mais amplo, que não conserva simplesmente sua
ordem e a catalogação, mas sim a obra e a imagem do escritor, enquanto o termo arquivo
sugere apenas imobilização e simples classificação (BORDINI, 2003, p. 131). Essa
observação torna-se pertinente nesse texto, pois nas leituras feitas sobre os estudos dos
arquivos pessoais de escritores pelos estudiosos da literatura, percebe-se um uso mais
recorrente do termo acervo, em detrimento do termo arquivo.
614 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

uma pessoa ou instituição constituem uma variada e rica fonte informativa”


(SANTOS, 1995, p. 105).
O material preservado existente nesses acervos contribui para iluminar
a trajetória intelectual de um escritor e esclarecer alguns caminhos, talvez,
incompreendidos. Seu conteúdo, como correspondências, depoimentos,
material iconográfico, entrevistas, documentos de natureza pessoal, objetos
pessoais constituem um importante material “paraliterário”4 para o
pesquisador.
O ressurgimento das teorias críticas literárias dos últimos anos foi
responsável pelo interesse em pesquisas das chamadas fontes primárias, no
sentido em que se iniciou uma valorização da figura do autor, nos bastidores
de sua criação, por meio de seus rabiscos e rascunhos. Segundo Maria da
Glória Bordini:

A teoria da literatura, hoje, não mais concebe o estudo


imanente do texto, assim como não aceita relações puramente
extrínsecas deste com seu entorno sócio-histórico ou uma
origem aistóica na expressividade subjetiva ou no
inconsciente de um escritor-autor. No impasse das
articulações entre texto e extratexto, quer assegurar as
conquistas relativas à estruturalidade da obra, devidas ao
imanentismo, considerando ao mesmo seus aspectos
transcendentes, segundo a concepção de que dados históricos
e pessoais participam do corpo da obra [...]. (BORDINI, 2003
p. 129).

A Crítica, em suas diversas diretrizes, redescobriu o campo


consideravelmente aberto pelo material presente nos acervos literários. Com
suas diversas possibilidades de leituras, as concepções sobre os escritores e a

4
O termo “paraliterário” foi utilizado para denominar o material presente nesses acervos
que colaboram com a análise dos bastidores da criação, antes do resultado final da obra
entregue ao público (MIRANDA, 2003, p.12).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 615

história literária passam a ser revistas. Para Maria Zilda Ferreira Cury (1995, p.
53) a crítica literária na contemporaneidade, se redefine por uma nova
disposição, assimilando o lugar de seu sujeito e suas diferentes mediações. De
todos os ramos da crítica literária, a chamada crítica genética, iniciada na
França nos anos 1960, voltada para a gênese do texto e de seus processos de
criação, talvez seja a que mais aponte para o remanejamento da história
literária.
A Crítica genética pode ser definida da seguinte maneira: “[...] é uma
investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção acompanhando
seu planejamento, execução e crescimento [...]” (SALLES, 2007. p. 12). Não
sendo mais uma interpretação do produto considerado final, aquele entregue
ao público, mas a do processo responsável pela geração da obra. Assim, os
documentos presentes nos arquivos pessoais dos escritores, fornecem
detalhes, muitas vezes, escondidos nesse material.
Os estudos baseados nesse tipo acervo pelos estudiosos da literatura,
publicados no Brasil, são recentes, porém, de grande colaboração ao trabalho
direto com o material presente nesses arquivos particulares. Portanto,
considera-se pertinente realizar, aqui, um pequeno levantamento de algumas
colaborações que contribuem para a difusão da pesquisa que utiliza esse tipo
de fonte.
Dessa forma, a Revista Letras de Hoje, v.29, nº 1, 1994, publicada pela
PUCRS com os Anais do “1º Encontro de Acervos Literários” traz uma
importante reflexão sobre os métodos de trabalho nos arquivos de escritores
com exemplos de diversos arquivos presentes nos mais variados projetos e
instituições. Os textos contidos nessa revista esclarecem alguns
questionamentos e contribuem para a preservação desse patrimônio
documental.
616 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Por meio do arquivo pessoal de escritores como, Clarice Lispector,


Henriqueta Lisboa, José Lins do Rego, Reynaldo Moura, Pedro Geraldo
Escoteguy, Dyonélio Machado e Érico Veríssimo, além dos projetos “Acervo
de Escritores Mineiros da UFMG e “Acervos dos Escritores Sulinos” da
PUCRS são abordadas as mais variadas questões interdisciplinares sobre os
métodos de trabalho possíveis nesses acervos: a organização, a classificação, a
preservação e os estudos sobre a crítica literária.
A obra A trama do arquivo (1995), organizada por Wander Mello
Miranda e publicada pelo Centro de Estudos Literários da UFMG também
apresenta – com base no já citado projeto “Acervo de Escritores Mineiros” –
um panorama diversificado de temas e perspectivas de abordagem, com o
objetivo de elaborar uma metodologia adequada à pesquisa das fontes
primárias presentes nesse tipo de acervo e visando consolidar a memória
literária no Brasil por meio da preservação e da análise crítica do corpus
bibliográfico dos escritores mineiros representativos no cenário literário
nacional. (MIRANDA; SOUZA, 1994, p. 43).
O projeto desenvolve-se por meio dos acervos de Henriqueta Lisboa,
Murilo Rubião e Oswaldo França Júnior, as coleções de Aníbal Machado e
Octavio Dias Leite, a correspondência de Alexandre Eulálio para Lélia Coelho
Frota e a de escritores mineiros para a poetisa portuguesa Ana Harthely.
Tendo em vista as novas concepções da crítica literária e o uso dos
manuscritos, as discussões tentam elucidar, da melhor maneira, as mais
diversas abordagens da pesquisa, além de demonstrar o trabalho arquivístico e
a importância da preservação e difusão do conteúdo desses acervos.
Também de grande importância, o livro Arquivos literários (2003),
organizado por Wander Mello Miranda e Eneida Maria de Souza, pretende
oferecer uma abertura das práticas da crítica literária. Os artigos dessa obra
concentram-se nas atividades desempenhadas pelos pesquisadores ligados à
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 617

Coleção Archivos, vinculada à UNESCO e sediada em Paris, ao CNRS


(Centre National de la Recherche Scientifique) e ao ITEM (Institut des Textes
et Manuscrits Modernes), além da participação de diversos centros de
pesquisa do Brasil como a Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), Centro de
Estudos Literários (UFMG), Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS,
Centro de Estudos Murilo Mendes (UFJF) e a Fundação Casa de Jorge
Amado (BA).
A Coleção Archivos envolve pesquisadores do mundo inteiro, com o
intuito de proporcionar um diálogo inovador a partir do acesso e tratamento
da memória escrita e da crítica genética, além da publicação de suas edições
que tornam o sentido e a importância dos acervos manuscritos, conhecidos
somente por uma parcela mínima de especialistas. (SEGALA, 2003, p. 26-7).
Além disso, é importante frisar que o Brasil ocupa um lugar extremamente
significativo nessa coleção.
Alguns artigos também fornecem exemplos importantes sobre as
pesquisas realizadas nesses arquivos pessoais. O artigo de Eliane Vasconcelos
“Preservação da memória literária” (1999) demonstra, por meio do Arquivo-
Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, a importância do
conteúdo desses acervos, além da intencionalidade e conscientização da
preservação da memória literária brasileira pelos próprios escritores.
Maria da Glória Bordini, em “Os acervos de escritores Sulinos e a
memória literária brasileira” (2009), discorre sobre a preservação da memória
cultural no âmbito literário brasileiro e fornece o conteúdo do importante e
inovador projeto “Acervos de escritores sulinos”, desenvolvido até 2007 pelo
Centro de Estudos Literários da PUCRS, e que teve por objetivo o
estabelecimento de uma rede eletrônica de bancos de dados sobre as fontes
primárias da literatura nacional (BORDINI, 1994, p. 86).
618 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Por fim, Regina Zilberman em “Autores entre o testemunho e o


arquivo” (2009), traz uma análise interessante sobre o papel do arquivo e o
escritor como sujeito histórico, demonstrando que, muitas vezes, o autor
transcende o texto impresso. Além de fornecer como exemplo de um
contínuo trabalho em seus textos, o escritor Machado de Assis.
Assim, por meio desses acervos, frequentemente, a exigência da
constituição de arquivos pessoais leva os indivíduos a desenvolverem práticas
de arquivamento do eu. Por exemplo:

Percebe nos nossos escritores um empenho zeloso para guardar


papéis e documentos, armazenar recortes de jornais, arquivar e
ordenar originais manuscritos ou datiloscritos, correspondências
(cartas, bilhetes, cartões postais, telegramas), acumular fotografias,
montar bibliotecas, preservar objetos pessoais, E também a prática
de colecionar: revistas, suplementos literários, obras de artes, obras
de artesanato. (MARQUES, 2003, p. 147-8).

Verifica-se que – por meio do empenho de guardar suas


correspondências, textos, paratextos e protextos, recortes sobre sua pessoa e
sua obra, entre outros materiais – muitos escritores demonstram uma
intencionalidade e uma preocupação em preservar determinados aspectos
intelectuais e culturais.
Muitos dos acervos exemplificados ao decorrer desse tema demonstram
essa preocupação constante do escritor em guardar e preservar sua memória e,
consequentemente, demonstrar sua participação no cenário literário nacional,
portanto, os projetos e as pesquisas desenvolvidos com base nesses arquivos,
tornam realidade esse desejo. Dessa forma, as possibilidades de pesquisa
nesses acervos podem se renovar permitindo novas modalidades, tais como:

[...] a das obras, do seu destino, das relações entre os processos


materiais e os processos ideativos que cercam não só a obra mas
toda a instituição literária. Reinventam a biografia e a autobiografia,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 619

dão acesso às subjetividades produtoras e receptoras, fazem pontes


com os Estudos Culturais, com as preocupações pós-modernas e
pós-coloniais ligadas à construção de identidades e às lutas das
minorias, desfazendo preconceitos. (BORDINI, 2009, p. 4).

A “democratização” do acesso ao material presente nos arquivos de


escritores abre caminho para as diversas concepções da pesquisa tanto no
campo da literatura, como também no campo da arquivologia e da história.
Portanto, a preservação desses acervos torna-se necessária para o
conhecimento dos caminhos percorridos pela literatura brasileira e assim,

[...] a sobrevivência dos acervos não diz respeito apenas à guarda


do material em condições de sustentabilidade. Ela incide numa
concepção específica sobre documentos literários, que não devem
ser museificados, mas organizados e difundidos a fim de contribuir
para a expansão dos estudos literários e o conhecimento sempre
mais aprofundado dos autores e das obras. Além disso, preservar
implica dar acesso às fontes, não indiscriminadamente, mas com a
supervisão de especialistas, ou a conservação não teria sentido, pois
se esgotaria nas prateleiras e arquivos. (BORDINI, 2009, p. 19).

Por isso, as fontes primárias e documentais encontradas nestes, são


entendidas como os documentos e os fatos que, recolhidos pelo escritor,
encontram-se na elaboração de um texto final e são os elementos que o autor
procura para capturar a realidade, sendo, assim, “Uma forma de exposição
mais próxima à realidade histórica, permitindo que o escritor monte o
arcabouço, a estrutura daquilo que ele pretende narrar” (REMÉDIOS, 2004,
p. 281).
Os estudos realizados por meio dos acervos de escritores esclarecem
alguns hábitos comuns da profissão, porém, cada arquivo constituído possui
sua particularidade. No caso dessa pesquisa, a análise do arquivo pessoal do
escritor João Antônio demonstra uma acumulação proposta pelo próprio
escritor, talvez, para a comprovação de sua participação na literatura brasileira.
620 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Dessa forma, torna-se importante conhecer algumas particularidades desse


arquivo.

Quem foi João Antônio?

João Antônio Ferreira Filho, filho do português João Antônio Ferreira


e da mestiça carioca Irene Gomes Ferreira, nasceu, em 1937, em bairro
operário da cidade de São Paulo. Essa união pode ser representada da seguinte
maneira: “[...] em João Antônio uniram-se, pois o lirismo lusitano e a emoção
quente e vibrante do carioca, tudo moldado numa atmosfera operária,
capitalista, violenta: a da cidade de São Paulo” (RIBEIRO NETO, 1981, p. 3).
Da infância à adolescência vivida na rua, a verdadeira escola de um
menino pobre, emergiu a figura de um homem ligado à literatura. Já na
adolescência começa a escrever no jornal infanto-juvenil O Crisol e, nesta
mesma época, descobrir as mulheres, a sinuca e os boêmios, personagens que
serão recorrentes na sua literatura.
Aos 21 anos, o autor ganhou um importante concurso literário
promovido pela revista A Cigarra com o conto “Fujie”, que teve como
integrantes da comissão julgadora personalidades como Paulo Ronái e Aurélio
Buarque de Holanda. Ainda nesse mesmo ano, sai vitorioso de mais dois
concursos importantes, realizados pelos jornais Tribuna da Imprensa e Última
Hora.
Em 1960, um incêndio destruiu a casa em que vivia com sua família, e
João Antônio perdeu os originais de seu livro de estreia Malagueta, perus e
bacanaço. O seu primeiro livro seria reescrito e publicado em 1963, pela
Editora Civilização Brasileira, com grande sucesso de público e crítica. Este
título rendeu-lhe dois prêmios Jabuti e o prêmio Fábio Prado.
Em 1964, João Antônio mudou-se para o Rio de Janeiro e passou a
integrar a importante equipe jornalística do Jornal do Brasil. E, em 1966, volta a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 621

São Paulo para trabalhar na revista Realidade. Porém, foi no Rio de Janeiro que
o escritor passou a maior parte de sua vida.
A produção literária de João Antônio sempre correu paralela às
atividades que desenvolvia na imprensa e à busca constante pelo
reconhecimento de suas obras. Na década de 1970, depois de 12 anos sem
novas publicações, João Antônio voltou à literatura com mais três obras
publicadas: Leão-de-chácara; Casa de loucos e Malhação do Judas carioca.
Nos anos de 1980, mais duas obras foram publicadas: Dedo-duro e
Abraçado ao meu rancor. Esta última rendeu ao autor mais cinco prêmios. A
década de 1990 não registra novidades significativas em sua produção, exceto
mais um prêmio Jabuti, em 1993, pela coletânea Guardador.
Em outubro de 1996, no Rio de Janeiro, morre João Antônio, só e de
forma emblemática, pois mais de 20 dias se passaram até que seu corpo fosse
encontrado em seu apartamento.
João Antônio sempre procurou fazer uma literatura que se tornasse
próxima à realidade tanto em suas obras literárias quanto em sua atuação
como jornalista. Sua participação na imprensa brasileira pode ser vista em
periódicos de grande circulação como Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, O
Estado de S. Paulo, além de jornais da chamada imprensa alternativa como, por
exemplo, Nicolau e O Pasquim. Dessa forma, seus textos são caracterizados
pela defesa das personagens marginalizadas da sociedade.
Portanto, pela sua vasta contribuição a imprensa e literatura brasileiras,
seu acervo torna-se um inesgotável manancial para o desenvolvimento de
pesquisas históricas e literárias. Sob esse aspecto, é perceptível a importância
de João Antônio no cenário da escrita brasileira.
622 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O arquivo pessoal de João Antônio e seu “possível” projeto

autobiográfico

O arquivo pessoal do escritor foi cedido à UNESP, campus de Assis,


em 1998, após um prévio acordo com seus familiares. Nele encontram-se
documentos produzidos desde seu nascimento, em 1937, até sua morte, em
1996. Este é considerado um acervo bastante heterogêneo, no qual se
encontram correspondências pessoais, blocos de anotações, agendas, fotos,
contratos de trabalho com editoras, coleções de revistas, recortes de jornais
relacionados ao autor e suas obras, discos, uma biblioteca com
aproximadamente sete mil e quinhentos livros, originais de suas obras,
incluindo inéditos, e alguns móveis que pertenceram ao escritor.
Porém, conforme relatado acima, devido às circunstâncias de sua
morte, seus pertences foram retirados às pressas de seu apartamento e
colocados em um galpão no sítio de um primo de sua primeira esposa, Marília,
sem qualquer ordenação ou cuidados de preservação.
A partir do contato com a Professora Tania Celestino de Macedo –
amiga e correspondente do escritor –, que lecionava nessa época em Assis, seu
arquivo foi trazido para a UNESP e organizado com a ajuda de outros
docentes, conforme alguns prévios conhecimentos da vida de João Antônio. 5
Dessa forma, é impossível estabelecer a ordem original de todo acervo.
Contudo, ao analisar os documentos acumulados pelo escritor, podem-se
perceber algumas organizações feitas pelo próprio João Antônio, que
permaneceram dessa forma, fazendo contraponto com a imagem boêmia e
marginal, muitas vezes relacionada a ele pela mídia, ao seu papel como
intelectual, ou melhor, colaborador da literatura brasileira.

5
Dados referentes à destinação do acervo após a morte de João Antônio foram fornecidos
pela Dra. Tania Celestino de Macêdo, em entrevista realizada em julho de 2008, com a
finalidade de esclarecer aspectos essenciais do mesmo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 623

Com base nessa organização, Ana Maria Domingues de Oliveira analisa


o papel desempenhado por João Antônio como “arquivista”, demonstrando a
preocupação com a imagem que será legada à posteridade:

[...] João Antônio expôs publicamente uma imagem de outsider, de


marginal, cultivando no âmbito privado, zelosamente, a imagem do
arquivista aplicado, que guarda com devoção cada pedaço de papel
marcado com sua letra ou sua datilografia (OLIVEIRA, 2006, p.
211).

Um exemplo desta organização feita pelo próprio João Antônio está


presente na ordenação de pastas de jornais e revistas que incluem seus
escritos, além daqueles referentes à sua pessoa e sua obra. Algumas destas
encontram-se organizadas cronologicamente, em sua maioria, datilografadas
com data e nome do periódico em que foram publicadas e até mesmo com
algumas anotações feitas por ele mesmo.
Suas correspondências também evidenciam uma organização prévia.
Além de muitos dos envelopes indicarem que estas cartas já foram
respondidas, há um caderno de protocolo no qual o autor anotava toda a
correspondência recebida, grafava o assunto e ainda a data do recebimento e
da resposta.
O desejo de João Antônio de que suas correspondências fossem
publicadas após sua morte aparece constantemente em algumas das cartas
enviadas a seus constantes missivistas. Um exemplo disso está presente na
reunião das cartas enviadas por João Antônio a Mylton Severiano, publicadas
em uma obra com a intenção de se realizar uma biografia do escritor por meio
dos mais de trinta anos de correspondências trocadas entre os dois amigos.
Em uma delas, João Antônio escreve: “Quando eu morrer, meu amigos de fé
624 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

herdarão minhas cartas. Tomara fiquem ricos” 6. Mais uma vez, pode-se
verificar, aqui, essa preocupação futura com seus documentos.
Além das séries documentais já referenciadas, o cuidado de João
Antônio relacionado ao acervo pode ser percebido, também, em sua biblioteca
pessoal, em meio a obras de diversos autores nacionais e internacionais de sua
preferência, como: Graciliano Ramos, Lima Barreto, Machado de Assis,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Luís da Câmara Cascudo, Caio
Prado Júnior, Karl Marx, George Lukács, Tolstoi, Búnin, Gorki, Tchecov,
Lênin, Dostoievski, Walter Benjamin, entre outros. Nelas, o escritor revela seu
apreço, pois as anotações de seu interesse foram feitas em papéis colocados
no meio desses livros ou na marginalia, para assim, não danificá-los, além de
encapar os que já estariam danificados com a ação do tempo.
Pelo exposto, essas séries documentais constituem indícios claros do
intuito de preservação de João Antônio. No entanto, há no acervo outras
séries que não se encontram organizadas devido às circunstâncias de sua
morte e à apressada retirada desse acervo do apartamento do escritor e a vinda
para a Universidade.
Enfim, foi por meio da preservação e do cuidado com o conjunto de
seus documentos pessoais, que o escritor legou ao pesquisador a possibilidade
de conhecer sua luta constante (para João Antônio, talvez, não conquistada
em vida) pelo reconhecimento de um lugar fundamental no cenário literário
nacional. A análise mais aprofundada do acervo pode esclarecer diversas
questões relacionadas ao processo de acumulação dos documentos e sua
“organização”, por isso os estudos dedicados a esse tema são de extrema
importância para, talvez, de alguma maneira, esclarecer as possibilidades da
formação desse arquivo pessoal.

6
Carta datada de 10 de junho de 1981 e publicada em: SEVERIANO, Mylton. Paixão de
João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.184.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 625

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de uma vida militante, 1962-1988

Carlos Alberto Nogueira DINIZ*

A
nalisar a construção da memória de Santo Dias significa dialogar
com parte da memória do movimento sindical e social brasileiro e
sua importância no processo de redemocratização do Brasil. A
manutenção e as agregações de elementos sobre esse personagem também
refletem anseios políticos, enfim, propostas de novas lutas dentro dos
dinamismos e das inquietações presentes na sociedade. Propor uma
abordagem sobre a memória do operário Santo Dias da Silva é, além disso,
trazer para a atualidade questões que nortearam sua luta e também inquietam
aqueles que se encontram nas “fileiras” da luta contra a desigualdade, a
exclusão e a exploração, ainda tão presentes na sociedade brasileira atual.
Pode-se, por meio dos fragmentos de registros de sua vida simples,
encontrar peculiaridades e sutilezas do seu cotidiano que, mesmo pequenas,
revelam aspectos brutais e desumanos que encontraram eco em grande parte
da vida dos trabalhadores brasileiros.
Para a “construção” da memória de Santo Dias, é necessário, também,
partir da experiência biográfica, levando em consideração suas convicções

*
Mestrado em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Wilton Carlos Lima da Silva.
630 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

políticas no sentido amplo do termo e que foram silenciadas pela repressão do


regime militar instaurado em 1964.
O uso da biografia na história é tão antigo, quanto o próprio ofício do
historiador; desde a antiguidade, as biografias de ilustres personagens, reis e
heróis têm fascinado gerações de leitores e amantes da história.

[...] Como “domínio” da história, praticamente se confunde com este


“gênero” historiográfico ou literário que já é conhecido desde a
Antiguidade. Se for possível situar a Biografia como domínio tão
perene e duradouro quanto a própria História, pois, ao que se sabe, os
homens de todas as épocas sempre foram freqüentadores assíduos
deste fascinante campo de estudos que poderia ser chamado de
“História das Vidas Humanas”. (BARROS, 2004, p.187).

Durante o século XX, historiadores influenciados pela Escola dos


Analles e pelo marxismo deixaram a abordagem biográfica em segundo plano.
Mas estas posições estavam ligadas, justamente, em uma tentativa de ruptura
com a história dos grandes personagens e heróis nacionais no século XIX.
Aliás, esta era uma das críticas mais recorrentes na Escola dos Analles.

[...] Os historiadores profissionais já não o discutem: a Biografia é


banida para um limbo, para um espaço especial entre a História e a
literatura que será pouquíssimo frequentado pelos historiadores
acadêmicos... Literatos e diletantes invadem prazerosamente este
antigo domínio historiográfico, abandonado pelos pregadores dos
Annales e dos novos marxismos da primeira metade do século XX.
(BARROS, 2004, p.188).

Isso ocorreu na academia, entre os historiadores profissionais, já que no


mesmo século XX, as biografias de personagens políticos, artistas e outras
celebridades fizeram e ainda fazem um grande sucesso, basta lembrar
biografias recentes feitas por escritores como Rui Castro, que retrataram as
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 631

vidas do jogador de futebol Garrincha e da cantora Carmem Miranda. As


biografias têm atingido o grande público, mas seria melhor se fossem feitas
por historiadores, claro que com uma abordagem que fosse além das
curiosidades e idealizações.

[...] Embora apreciada do grande público e dos romancistas, ela


suscitou a indiferença e a desconfiança dos historiadores, pois estes
consideravam que o relato da vida de um indivíduo não poderia ser
objeto de um autêntico trabalho de historiador. Portanto, a inclusão da
biografia no campo da história foi uma evolução reveladora das
questões inerentes à disciplina. [...]. (CADIOU, 2007, p.187).

Depois de quatro décadas (BARROS, 2004, p.188), os historiadores


retomam o gênero biográfico. Carlo Ginzburg (1987), em sua obra O Queijo e
os Vermes, utiliza-se do personagem Menoquio para poder analisar e perceber
realidades mais amplas; não se trata de analisar simplesmente o indivíduo
isolado em si mesmo, nem de fazer dele apenas um sujeito dentro de uma
conjuntura social; valendo-se do moleiro herege, Ginzburg almejou perceber
as trocas culturais, ou seja, expressar o conceito de circularidade cultural.
Para o historiador Giovanni Levi, a Micro-história significa estudar
coisas pequenas, mas o objetivo é estudar coisas grandes. Pode, assim, estudar
uma pequena comunidade, a história de uma pessoa, contudo, o objetivo é
sempre mais amplo.

[...] Estuda-se através de uma vida com vistas a enxergar mais longe,
mais profundo, mais densamente, de maneira mais complexa, ou
porque o estudo desta vida permite enxergar a vida social em sua
dinamicidade própria, não excluindo os seus aspectos caóticos e
contraditórios [...] (BARROS, 2004, p.191).
632 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Houve, também, o retorno da biografia de figuras ilustres por parte de


historiadores como Jacques Le Goff, autor da biografia de São Luís e artigos
sobre São Francisco; e Cristopher Hill com a obra O eleito de Deus na qual fala
sobre a vida de Cromwell. Hannah Arendt (2008), em sua obra Homens em
tempos sombrios relata a vida de homens e mulheres que em épocas difíceis como
no período da Alemanha nazista e sua ocupação na França, o papado de João
XXIII durante a crise dos mísseis entre Estados Unidos e União Soviética.
Enfim, a vida da própria autora foi retratada, conforme ressaltou Celso Lafer
no posfácio do livro.
Santo Dias também encontrou, em sua vida, em meio a situações
políticas e sociais adversas, um objetivo para sua existência; claro que não se
trata nem de um intelectual e muito menos de uma figura ilustre, mas é um
trabalhador que viveu em uma época em que os pobres procuravam, valendo-
se de suas próprias bases, construir alternativas de vida, de democracia e
participação, mesmo em espaços restritos apenas ao “chão da fábrica ou à
paróquia do bairro”.
A perspectiva da história política e a biografia de Santo Dias, bem como
o contexto no qual está inserido, comporão esta abordagem. Nesta pesquisa,
estes são aspectos que expressam a relação dialética entre indivíduo e
sociedade. Reconstituir vidas é retornar ao passado que ainda não findou, pois
há que articular o fio da vida do presente com o passado, para então surgir o
que é memória. A biografia, assim como a memória, se conflui no tempo
presente como uma interpretação, como uma construção intelectual
consciente, enquanto um sistema complexo de existência. Em suma, biografar
implica em reinterpretar o passado no que ele tem de complexidade e de efeito
do real.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 633

O passado não está pronto. Ele ainda está por fazer e articula-se no
presente, ou melhor na presença, onde elaboramos a mentira e a
transformamos em discurso [...]. (PENA, 2004, p. 23).

Santo Dias da Silva nasceu em Terra Roxa, na fazenda Paraíso,


localizada no interior de São Paulo, em 22 de fevereiro de 1942, contava sete
irmãos, sendo ele o filho mais velho. Seus pais eram Jesus Dias da Silva e
Laura Vieira, ambos lavradores que trabalhavam como meeiros na produção
de café e grãos (DIAS, 2004, p.18).
Estudou até o 4ª ano primário, sabendo, pois, ler e escrever, algo raro
entre os trabalhadores rurais do início da década de 1960. Desde jovem teve
que ajudar seus pais no sustento da família, sendo um trabalhador preparado,
desempenhava funções de mecânico na fazenda. Embora tivesse uma situação
de trabalho melhor que a da maioria dos trabalhadores da fazenda Paraíso, a
condição de vida de Santo Dias e de sua família era de constante dificuldade e
penúria. Dona Laura mãe de Santo dizia:

As roupas das crianças a gente fazia de saco de farinha alvejado e


depois tingia. Não tinha dinheiro pra comprar tecido. E as roupas
tinham de durar: a gente cerzia até não poder mais. Uma vez, o Santo
rasgou a única camisa que tinha, que já estava muito puída. Peguei a
toalha de mesa, que era de saco também, para fazer outra camisa, pois
não tinha com o que comprar um pedaço de pano [...]. (DIAS, 2004,
p.27).

Em 1961, Santo Dias, depois de se envolver na luta por direitos


trabalhistas e melhores condições de trabalho na fazenda em que trabalhava,
foi expulso das terras junto com toda sua família.
Na cidade de Viradouro, Santo Dias e seus familiares tiveram que
trabalhar como “boias-frias” para sobreviver e pagar aluguel na cidade.
634 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Inconformado com sua situação profissional e financeira, parte para São Paulo
em 1962, para tentar uma vida melhor, tendo morado com conhecidos de sua
família por certo tempo. Em uma entrevista a Paulo Nosella o operário Santo
Dias relata a opção de partir para São Paulo em busca de trabalho:

Aí entrei em contato com alguns colegas, que estavam já aqui em São


Paulo. Achei melhor vir tentar alguma coisa aqui em São Paulo. Foi
quando eu me transferi para cá. Mudei para cá em 1962. Foi umas das
épocas em que tinha mais facilidade de empregos dado o todo
desenvolvimento automobilístico que estava crescendo e pegavam
mão-de-obra, assim, de qualquer jeito [...]. (NOSELLA, 1980, p.34).

Consegue emprego em uma empresa metalúrgica de Santo Amaro


chamada Metal Leve. Santo tinha uma namorada que se chamava Ana, ela
trabalhava como empregada em Viradouro e seus patrões não aprovavam o
namoro, justamente pelo envolvimento de Santo Dias com as reivindicações
trabalhistas de fazendas da região, mas Ana decidiu continuar o
relacionamento. Em uma carta, Santo desculpa-se em não poder visitar Ana no
carnaval:

[...] Ana espero que seja feliz ai em Viradouro, mesmo eu não podendo
ir ai no carnaval, queira me desculpar porque foi tratado tudo certo
para passarmos o carnaval juntos, mas infelizmente não posso, tenho
que trabalhar no domingo [...]. (CORRESPONDÊNCIA...,)1.

O casamento de Santo Dias e Ana estava programado para acontecer


em 1963, mas com a doença de seu pai e as despesas com o tratamento e de
sua família, somente aconteceu no dia 6 de fevereiro de 1965, com celebração
e festa simples.

1
Correspondências de Santo Dias. Coleção Santo Dias. Centro de Estudos, Documentação e Memória
(CEDEM) da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 635

Logo após o casamento, indicados por um colega de trabalho como


pessoas confiáveis ao proprietário do imóvel, Santo e Ana conseguiram alugar
uma casa na região de Santo Amaro, localizada na zona sul de São Paulo.
O primeiro filho do casal nasceu em 1965 e recebeu o nome de Santo,
semelhante ao pai, o segundo filho do casal nasceu em 1967 e recebeu o nome
de Luciana, filha que, anos após a morte de Santo Dias, escreveu um livro
dedicado à memória de seu pai.
Nos anos 1970, muitos movimentos sociais surgem como resultado de
um processo de exclusão social, atingindo grande parte da população,
principalmente a falta de espaços para a denúncia e a participação em questões
essenciais para o povo.
A Igreja é o principal agente na denúncia, tanto na violação dos direitos
humanos, pelas mortes e desaparecimentos de lideranças comunitárias quanto
às questões sociais como a terra, a moradia, os alimentos, o preconceito racial
e de gênero, além dos problemas que envolviam os operários na construção de
uma nova forma de organização sindical.

Nunca será exagerado salientar a importância da Igreja Católica ao


garantir, nos anos mais difíceis do período autoritário, um espaço de
interação e organização, uma rede de comunicações e a defesa dos
direitos humanos [...] (KECK, 1991, p.61).

Os bairros da periferia de São Paulo careciam de quase tudo. A situação


não era diferente às de o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Faltavam
quase todos os serviços básicos, inclusive opções de lazer para os
trabalhadores.
636 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A Igreja Católica e os botecos eram, às vezes, as únicas opções, por isso


as atividades da paróquia acabam sendo um refúgio de convivência e distração
para muitas famílias de operários.
Santo Dias gostava muito de participar da Igreja, já que também era
uma forma de socialização e de fazer amizades em uma cidade grande como
São Paulo.
Participava das missas aos domingos e gostava de usar sua melhor
roupa, ou seja, sempre que podia utilizava terno para ir à Igreja. Depois da
missa, apreciava fazer reuniões e grupos de discussão no qual debatiam
assuntos relativos às escrituras da Bíblia e a temas relacionados à comunidade.
Nos finais de semana, Santo Dias e sua esposa, além de frequentarem a
Igreja, começaram a participar das Comunidades Eclesiais de Base, conhecidas
como CEBs, experiências de organização popular dentro da Igreja Católica
que naquele momento crescia, sobretudo nas periferias de São Paulo.
Entre os principais movimentos, destacam-se as CEBs, a CPT
(Comissão Pastoral da Terra), o MCV (Movimento Custo Vida)2, os diversos
sindicatos, em especial o dos metalúrgicos, as Pastorais Operárias em São
Paulo, essenciais para os movimentos de greve do final dos anos 1970.
O movimento sindical brasileiro, durante grande parte do regime
militar, salvo curto espaço de abertura com mobilizações em Minas Gerais e
São Paulo, que antecederam o AI-5 em 1968, permaneceu sujeito às
intervenções e ao controle do regime.
Sua estrutura sindical era de caráter paternalista e quase sempre de
acordo com interesses da classe patronal. O papel da oposição sindical, da qual

2
O Movimento Custo de Vida surge (porém não com esse nome) a partir de clubes de mães
na zona de M`Boi Mirim, na região sul de São Paulo (MOISES, 1982, p.76).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 637

Santo Dias participou, foi romper com essa estrutura de poder e organizar os
trabalhadores a partir do “chão da fábrica”. As organizações de bairro, as
CEBs e a Pastoral Operária foram essenciais nessa luta.

[...] Os ativistas sindicais e dos movimentos sociais que participavam


das CEBs também colaboraram na organização do apoio da Igreja na
greve dos metalúrgicos em 1978-80. A sobreposição de papéis entre os
membros dessas organizações era freqüente; os vínculos com a Igreja
constituíam um componente essencial das redes dos movimentos
sociais que se desenvolveram nos anos 1970 [...]. (KECK, 1991, p.61).

O movimento sindical no ABCD, desde o início do século XX, sempre


se caracterizou, dentro de suas possibilidades, como um dos mais atuantes de
São Paulo. E mesmo antes das indústrias automobilísticas e metalúrgicas
surgirem, a classe operária já demonstrava grande poder de organização, mas
muito longe do que foram as greves e manifestações do final dos anos 1970.
O “novo sindicalismo” que foi uma ruptura com o “sindicalismo
pelego” trazendo à cena novas lideranças sindicais, entre elas o próprio Santo
Dias, isso reflete justamente o contexto histórico no qual a sociedade civil e,
sobretudo os pobres, começaram a se organizar. Essa organização, partindo
principalmente de setores progressistas da Igreja Católica, começava a dar
“voz” àqueles que nunca puderam, de fato, participar das decisões e exigir seus
direitos.
Movimentos que tinham em comum seu caráter democrático e
participativo, construídos a partir da base, traziam uma experiência que essas
pessoas, vivendo em um regime autoritário e excludente, não tinham
conhecimento. As CEBs, os movimentos contra a carestia, movimentos de
mulheres faveladas, negros, movimentos pela terra, todos eles refletiam os
anseios, principalmente da classe trabalhadora.
638 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Santo Dias, por meio dos espaços de participação na Igreja Católica e


no diálogo com outros trabalhadores, demonstrou seu inconformismo que não
se resumiu a apenas uma esfera do social, sua inquietação era em relação às
condições do bairro, à situação dos trabalhadores nas fábricas, ao custo de
vida; enfim, contra toda situação de exclusão e exploração que caracterizava o
regime militar no Brasil dos anos 1970.
O Brasil do final dos anos 1970, é um país de industrialização tardia que
após o grande crescimento econômico do início da década de 1970,
demonstrou suas fragilidades depois da crise do petróleo de 1973, ou seja, o
“milagre econômico estava chegando ao fim”.3
O crescimento econômico que o regime militar exaltava, beneficiou,
principalmente, as camadas médias da população, destacando-se o consumo de
bens duráveis, como eletrodomésticos e automóveis. A maioria da classe
trabalhadora foi excluída desse processo de desenvolvimento e era carente de
necessidades básicas como alimentação, saneamento e moradia.
Além de participar das CEBs, da Pastoral Operária, do Movimento
Custo de Vida, da Oposição Sindical Metalúrgica, Santo Dias, durante sua vida
profissional, buscou sempre a qualificação, fazendo cursos de desenho
industrial e mecânica, mas trabalhou dez anos na indústria Metal Leve sempre
como operador de empilhadeira, saindo assim da empresa, pela
impossibilidade de mudar de cargo.
Trabalhou, ainda, nas empresas Bristan, Burdy e MWM, até 1976. Em
1977, volta a trabalhar na Metal Leve, como inspetor de qualidade e é demitido
por participar como candidato a vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos

3
A crise do petróleo e o arrefecimento econômico mundial vinham levantar o “véu de
euforia” que o milagre produzira (MENDONÇA, 1998).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 639

da cidade de São Paulo, na chapa da oposição. Em entrevista a Paulo Nossella,


Santo revelou que a demissão da Metal Leve foi o pior momento de sua vida.

[...] Agora, em termos de coisa pior mesmo foi quando estava se


organizando para participar do processo das eleições dos metalúrgicos
em 1978. Eu fui mandado embora da fábrica em que eu trabalhava
(Metal Leve). Fui mandado embora 3 dias após a abertura do edital de
convocações para inscrição das chapas [...]. (NOSELLA, 1980, p. 53).

A morte de Santo Dias não foi um episódio casual ou circunstancial. O


seu envolvimento com as causas sociais e trabalhistas, sua constante
participação no processo sindical, marcadamente oposicionista, liderando
grupos católicos na resistência à repressão nas comunidades, articulando uma
oposição crítica dentro das fábricas e no movimento sindical, Santo Dias foi se
tornando uma figura emblemática nas relações com os agentes da repressão,
da política e com os empresários.
Santo Dias fora alvo da polícia por representar uma liderança sindical
mobilizadora, atuante nas Comunidades Eclesiais de Base e como membro
participante da Pastoral junto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na
Região Sul da cidade de São Paulo.
Santo Dias da Silva, funcionário da empresa Filtros Mann, líder sindical
e comunitário, foi morto pela polícia durante um piquete, no dia 30 de
outubro de 1979, em frente à empresa Sylvania; tornou-se um mártir para os
trabalhadores, movimentos sociais e comunidades ligados à Igreja Católica, em
São Paulo, no final dos anos 1970.

[...] Uma bala disparada a menos de um metro e quarenta centímetros,


a queima-roupa, por um miliciano da rota 220, matou ontem à tarde ás
14:20 o metalúrgico Santo Dias da Silva, de 38 anos. Empregado da
640 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Filtros Mann e representante dos operários na Pastoral Regional Sul da


Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil [...]. (DIAS, 1979)4.

A celebração de sua memória, enquanto líder sindical e comunitário,


acontece até os dias atuais e em linguagens diversas, todas elas exaltando a luta
e o compromisso de Santo Dias com os direitos humanos e as causas
populares.
Entre as manifestações que celebram sua memória estão a denominação
de capelas, ruas, praças e escolas com seu nome, a realização de festivais de
música e poesia em sua homenagem, audiovisuais, criação de instituições e de
um acervo de documentos sobre Santo Dias, na UNESP.
É preciso ultrapassar essas barreiras e práticas da vida imediata na qual
Santo Dias estava inserido em sua experiência política e determinar a dimensão
histórica de suas ações e pensamentos. Somente, assim, é possível constituir
um discurso da memória política de um militante.
Para analisar a construção da memória de Santo Dias, é necessário ter
duas perspectivas diferentes: a primeira caracteriza-se pelo operário militante e
desconhecido; a segunda pela figura do que seria um “mártir operário” morto
pela repressão da ditadura. Antes de sua morte a memória de Santo Dias é
representada pelos registros familiares e por alguns documentos referentes à
sua morte e à lembrança produzida por meio de homenagens.
A memória de Santo Dias foi construída valendo-se das relações sociais
e políticas que ele estabeleceu durante sua vida, mas o seu uso, seja como
inspiração seja como homenagem, está carregado também de apropriações e
por que não de idealizações da figura do operário. A memória de Santo Dias
passa a não somente pertencer a seus a familiares e amigos, mas a todos
4
Folha de S. Paulo, 31 de outubro de 1979. Coleção Santo Dias. Centro de Estudos,
Documentação e Memória (CEDEM) da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 641

aqueles que buscam em sua lembrança motivações e representações políticas


que estejam ligadas às causas sociais dos pobres trabalhadores do campo e das
periferias das grandes cidades. Poucas situações são tão eficazes quanto o
martírio para unir pessoas, basta lembrar os jovens suicidas no Oriente Médio.

Tal sentimento de persuasão é o que garante, de certa forma, a coesão


no grupo, esta unidade coletiva, concebida pelo pensador como o
espaço de conflitos e influências entre uns e outros (HALBWACHS,
2004, p.51-52).
A memória individual, construída a partir das referências e lembranças
próprias do grupo, refere-se, portanto, a “um ponto de vista sobre a
memória coletiva”. Olhar este, que deve sempre ser analisado
considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e
das relações mantidas com outros meios (HALBWACHS, 2004, p. 55).

Na leitura de Halbwachs, a memória se diferencia da história oficial e é,


ao mesmo tempo, influenciada pela mesma e pela memória coletiva. A
memória do Santo Dias operário ou do mártir – essas duas visões são parte
da memória e são influenciadas pela historiografia e pela memória coletiva.

A memória individual não está isolada. Freqüentemente, toma como


referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apóia a
memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas
pela memória coletiva e pela memória histórica. (HALBWACHS,
2004, p. 57).

Michael Pollak, em sua análise sobre o assunto, considera necessário


trazer à tona memórias que estavam encobertas e, com isso, estabelecer uma
luta entre as memórias oficiais e as memórias subterrâneas do silêncio.

Não se trata de historicizar memórias que já deixaram de existir, e sim,


trazer à superfície memórias “que prosseguem seu trabalho de
642 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que


“afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e
exacerbados”. (POLLAK, 1989, p. 3).

A história oral, por exemplo, pode, mesmo nos momentos de silêncio e


lacunas, encontrar memórias que pelos diversos motivos estão escondidas nas
falas e nos discursos. Resgatar estas memórias e perceber a maneira como
foram construídas pode ajudar o historiador a romper com os discursos
comuns e que, muitas vezes, relegam para um segundo plano práticas políticas
e de autonomia de trabalhadores como Santo Dias e outros grupos que são
marginalizados pela história oficial ou vistos como meros autômatos. A
disputa entre memórias ou a luta entre a memória oficial e as memórias
subterrâneas. Este embate que se trava pela incorporação destas memórias
marginalizadas, silenciadas, é um embate pela afirmação, sobretudo, de uma
identidade que, por pertencer a uma minoria, encontra-se marginalizada
(POLLAK, 1989, p. 3).
A memória de Santo Dias, durante estas quase três décadas de sua
morte, está sempre ligada à luta dos movimentos sociais e sindicais dos
trabalhadores, a prática de sua rememoração consiste, então, também em uma
prática política de rememoração de seu legado.
“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é homogêneo e
vazio, mas um tempo saturado de agoras [...]” (BENJAMIN, 1994, p.229).
Walter Benjamim precisou uma profunda influência do presente na
construção do conhecimento histórico, o ato de reconstrução e de
rememoração daquilo que estava perdido ou daqueles que foram derrotados
consiste, também, em uma ação política no presente, e, com base nessa
ruptura, consegue-se promover novas reflexões da realidade presente. A autora
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 643

Jeanne Marie Gagnebin trabalha a questão da memória valendo-se da


experiência, assim, utiliza-se justamente da perspectiva de rememoração de
Walter Benjamim e da própria experiência do autor em relação ao trauma
diante do contexto da ocupação nazista e no caso de Benjamim seu suicídio
diante da ameaça nazista.

Esse narrador sucateiro (o historiador também é um Lumpensammler)


não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar
tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação,
algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a
história oficial não saiba o que fazer [...]. (GAGNEBIN, 2004, p.90).

Muitos dos que contribuíram com os documentos e a manutenção da


memória de Santos Dias da Silva também partilharam da experiência de luta,
de repressão, de privações, na qual motivou sua vida e, posteriormente, a
construção de sua memória.

Referências

Fontes

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Memórias e gênero no espaço urbano: reflexões

Bruno Sanches Mariante da SILVA*

O olhar percorre as ruas como se fossem


páginas escritas: a cidade diz tudo o que você
deve pensar, faz você repetir o discurso, e,
enquanto você acredita estar visitando
Tamara, não faz nada além de registrar os
nomes com os quais ela define a si própria e
todas as suas partes. (CALVINO, 2006, p.18)

O
autor italiano Ítalo Calvino, em seu célebre livro As cidades invisíveis
(do qual o trecho supracitado foi retirado), procura, por meio do
romance, narrar a história de cidades que existem – ou existiram –
tanto na materialidade quanto na memória de seus habitantes e/ou seus
apaixonados. Dessa forma, Calvino empreende o entrecruzamento das cidades
com diferentes conceitos como: a memória; os nomes; os mortos etc. Já o
presente texto – fruto de comunicação oral – leva em conta a obra de Calvino e
tem por objetivo maior refletir sobre as interfaces de gênero, memória e espaço
urbano, pensando as possibilidades de se relacionar tais conceitos. Começaremos
refletindo sobre o espaço urbano – as cidades.
As cidades povoam os imaginários, adoradas, cidades de maravilhas,
cidades da infância, cidades de amores, cidades de dramas e dores; de algum
modo, elas fazem parte das histórias de vida e, ao mesmo tempo, gozam de
*
Mestrado em História/Unesp/Assis. Orientadora: Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva.
648 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

elevada consideração em políticas públicas e tratados internacionais. Esse cenário


talvez se deva ao fato de que mais da metade da população mundial já vive em
cidades, fato inédito na história da humanidade de acordo com a ONU1. É
preciso dizer que a cidade é uma realização muito antiga, desde três mil anos
antes de Cristo nos zigurates da Mesopotâmia, passando por Atenas da
democracia e por Roma dos Césares, chegando às grandes metrópoles dos
séculos XX e XXI. A urbe é tida como o espaço de sociabilidade, da mesma
forma que espaço de produção de significados sociais, ou seja, cultura por
excelência (PESAVENTO, 1995). Desta forma, escolher a cidade como plano de
observação nos confere a oportunidade de perceber como a sociedade está
organizada, além, é claro, de nos depararmos com as práticas culturais de uma
sociedade.
Sobre a origem das cidades, Raquel Rolnik (1988) explica que estas nascem
com o processo de sedentarização do homem e seu aparecimento delimita uma
nova relação homem/natureza, pois é preciso fixar-se a fim de viabilizar a
produção agrícola e, assim, garantir o domínio permanente de um território.
Desta forma percebemos a oposição entre cidade e natureza, já que a cidade
emerge pela transformação que o homem empreende na natureza, moldando-a,
adaptando-a ao seu viver. Ou seja, a cidade como fruto da imaginação e do
trabalho articulado de muitos homens, sendo, portanto, “[...] uma obra coletiva
que desafia a natureza” (ROLNIK, 1988, p.8). Esse conceito relaciona-se, desta
maneira, ao que Sergio Buarque de Holanda (2006, p.97) considerou sobre a
cidade, que esta é “[...] essencialmente anti-natural, associa-se a manifestações do
espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza”. Da mesma
forma, Ulpiano Bezerra de Meneses (1984, p.199) descreve que “[...]a cidade é

1
Matéria da ONU publicada em 19/04/2007, no site em português da referida organização.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 649

um artefato, coisa feita, fabricada pelo homem, segmento do universo material


socialmente apropriado”. O autor enfatiza, ainda, que “[...] todo artefato é, ao
mesmo tempo, produto e vetor de relações sociais. Assim, a cidade é também
lugar onde agem forças múltiplas: produtivas, territoriais, de formação e pressões
sociais etc” (MENESES, 1984, p.199, grifo do autor).
Assim, para concluirmos essa sucinta conceituação, recorremos à definição
de Bronislaw Baczko, que salienta que:

[...] Todas as cidades são, entre outras coisas, uma projeção dos
imaginários sociais no espaço. A sua organização espacial atribui um
lugar privilegiado ao poder explorando a carga simbólica das formas
[...]. A arquitetura traduz eficazmente, na sua linguagem própria, o
prestígio que rodeia um poder, utilizando para isso a escala
monumental, os materiais “nobres” etc. (BACZKO, 1982, p.313).

É nesse sentido colocado por Baczko que, na presente proposta, emerge a


concepção de cidade, ou seja, enquanto meio propício à propagação dos ideários
e da imaginação social. A cidade é moldada de acordo com esse ideário, é fruto
da imaginação dos homens e mulheres que a constroem. Portanto, as cidades são,
antes de qualquer coisa, imaginadas.
Desta forma, ao andarmos por uma cidade, podemos ver seu passado
inscrito em suas ruas, prédios e praças; é a história da cidade e de seu povo, de
culturas e sociedades. Podemos considerar os diversos elementos urbanos
(prédios, praças, bairros, ruas, monumentos, etc.) como documentos para que
essa história possa ser narrada. Contudo, devemos analisar estes documentos urbanos
como os demais documentos, pensando-os como versões do fato ou do
momento e profundamente atrelados à percepção de seu autor. Pensamos, deste
modo, o documento como fruto intencional de uma sociedade em legar uma
imagem de si para as próximas gerações (LE GOFF, 1996). Neste sentido,
650 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

entendemos os monumentos e outros elementos e imagens urbanas atrelados a


essa função de perenização de uma representação2, do mesmo modo que os
demais documentos.
Calvino (2006, p.23) relata que “[...] a cidade é redundante: repete-se para
fixar alguma imagem na mente[...]”, repete-se para divulgar mensagens, ideias;
para fixá-las. É uma projeção dos imaginários, materializados nos elementos
urbanos da cidade. No entanto, essa imagem fixada da cidade é uma imagem
parcial, uma versão dos fatos. A versão de um autor e ou de um grupo de
autores. Neste mesmo sentido, Calvino (2006, p.23) afirma que “[...] a memória é
redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”. A memória
de um grupo, de uma parcela da população.
Neste ponto, podemos pensar a relação profícua entre memória e cidade.
O espaço urbano pode ser um dos instrumentos para que a memória seja
eternizada e/ou silenciada.O historiador francês François Dosse aponta que a
memória é indissociável do esquecimento e conclui que “[...] a memória é,
portanto, em relação à história, um modo de seleção no passado, uma construção
intelectual e não um fluxo exterior ao pensamento” (DOSSE, 2004, p.289). A
memória, enquanto construção intelectual. O autor propõe, também, a
diferenciação entre silêncio e esquecimento, citando Michael Pollak, para o qual
“[...] silêncio sobre si – diferente do esquecimento – pode ser condição necessária
para a comunicação” (POLLAK apud DOSSE, 2004, p.294).
Em seus escritos Michael Pollak, sociólogo austríaco, investigou a(s)
memória(s) e suas transmutações políticas para o status de memória oficial e as
relações com as identidades sociais. Um ponto que o autor defende é que a

2
Utilizamos o conceito de representação enquanto um conjunto de práticas discursivas,
construídas e/ou construidoras de um determinado universo simbólico, compartilhado por
sujeitos de um grupo ou coletividade (CASTRO, 1994, p.24).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 651

memória é seletiva, em razão, também, de seus aspectos biológicos. No entanto,


é importante frisarmos que não são apenas os aspectos biológicos que explicam o
caráter seletivo da memória. Pollak afirma que a memória é um fenômeno
construído, e explica: “[...] quando falo em construção, em nível individual, quero
dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes ou
inconscientes” (POLLAK, 1992, p. 4-5). Sendo a memória um fenômeno
construído e seletivo (POLLAK, 1992), por diversas vezes as memórias coletivas
acabam por se homogeneizar, ou serem homogeneizadas. É o que Halbwachs
(1990) chamou de memória coletiva oficial ou nacional. E que para Michael
Pollak significa uma memória enquadrada, significa o enquadramento da
memória, ou seja, dar à memória uma forma específica, não permitindo outra que
aquela predeterminada. Segundo Pollak (1989, p.9) “[...] a referência ao passado
serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma
sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas
também as oposições irredutíveis”.
O historiador francês Jacques Le Goff certa vez afirmou que

[...] tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das


grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e
os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990, p.426).

Nessa perspectiva, podemos entender que a questão da memória, tem


sido uma das grandes preocupações de grupos e classes sociais, assim como de
governos e partidos políticos (LE GOFF, 1990). O ato de tornar-se senhor da
memória, seja ela própria ou alheia, é um ato político e que está diretamente
652 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ligado à formação e à conservação das identidades. Concorda, nesse sentido,


Pollak ao afirmar que:

Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas


oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes
problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a
memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são
comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos
vão ser gravados na memória de um povo. (POLLAK, 1992, p.4).

A memória, deste modo, é disputada, tendo em vista que este é um


elemento que ocupa papel de destaque nas celebrações, sendo exaltados datas,
acontecimentos, personagens com o objetivo de enaltecer o passado de um
grupo. Uma vez que o ato de construir o passado está situado em um campo de
disputas, no qual diversas camadas da sociedade se embatem numa batalha a fim
de conseguir legitimação para suas memórias. É o que Le Goff (1990) chamou de
assenhorear-se da memória.
Eternizar é uma ação que se preocupa com a efemeridade dos atos, exaltar
o passado, organizar dados e feitos são determinantes para registrar notoriedades
da sociedade. Segundo Helenice Rodrigues da Silva (SÃO PAULO, 2002), o ato
de comemorar faz-se buscar no passado fatores de caráter coletivo que
configuram a memória a partir de acontecimento de importância fundadora,
aquela, na qual terá a incumbência de sacralizar origens.
As comemorações são bastiões dessa memória que insiste em escorrer
pelos vãos do tempo. Pierre Nora analisa os lugares de memória e seus suportes,
ressaltando que tais lugares nascem a partir do momento que não há memória
espontânea, e, por isso, refugiam-se em focos privilegiados, ou como o autor diz
que o surgimento de um lugar de memória nasce a partir da cristalização da
memória. Ou seja,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 653

[...] os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há


memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais.
(NORA, 1993, p. 13).

Ao pensarmos as relações de memória e o espaço urbano, chegamos à


percepção de que as celebrações, assim como alguns lugares de memória, operam
essa intersecção memória-cidade. Dessa forma, podemos refletir sobre certos
elementos urbanos como as vias públicas, as praças e os monumentos da cidade,
por estarem ligados às celebrações. Aqui cabe, portanto, uma breve explanação
sobre esses elementos urbanos.
As ruas e avenidas são referências em uma cidade por alocarem as
residências, os comércios, os prédios públicos etc. Assim como por se
constituírem em espaços de sociabilidades, que podem incluir desde festas, feiras
e passeatas até o footing, o namoro na calçada, a prosa do final da tarde. De várias
maneiras, as vias públicas ligam-se às memórias dos habitantes de uma cidade.
Podemos pensar as ruas relacionadas às celebrações das memórias ou da
memória oficial, ao analisarmos a nomenclatura atribuída às ruas, avenidas e
praças, sejam estas espaços de sociabilidades ou não. De acordo com Reginaldo
Dias “[...] analisar a organização dos nomes de rua de uma cidade é aferir
dimensões significativas de sua relação com a história” (2000, p.105). Como o
fez, por exemplo, Gabriel Ramon J. em estudo sobre as ruas de Lima, no Peru.
Ramon J. (2001, p.124) aponta que “[...] o tratamento dado pela cidade oficial à
nomenclatura diz muito sobre as características do projeto urbano que esta
tramava”.
Nomear ruas e praças de uma cidade é dotar de significação este elemento
urbano, ao mesmo tempo, é uma celebração daquele acontecimento ou
654 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

personagem representado. Certamente, celebra-se a vida da Princesa Isabel, a


“Redentora”, ao dar seu nome a uma avenida ou praça. Assim como é uma
celebração das vidas das Marias, Terezas, Josés e Joãos que fazem parte das
histórias locais e que cada cidade tem a oportunidade de consagrar em suas vias
públicas e praças.
Outra maneira destas vidas serem consagradas no espaço urbano é
erigindo monumentos aos seus heróis, locais ou não. Segundo Le Goff (1990,
p.535) “[...] o monumentum é sinal do passado, o monumento é tudo aquilo que
pode evocar o passado perpetuar a recordação”.
Os monumentos fazem parte do esforço das sociedades em legarem uma
imagem de si, estão, portanto, impregnados de representações. Seus significados
não estão apenas presentes em sua nomenclatura, como ocorre com as ruas e
praças, mas também em sua forma, imagem e disposição. Françoise Choay vai
mais longe ao afirmar que os monumentos estão ligados ao poder de transmissão
de valores.

A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo


de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza
pela mediação da efetividade, de forma que lembre o passado fazendo-
o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado,
convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele
é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de
forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma
comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar (CHOAY,
2001, p.18).

Desta forma percebemos como a nomenclatura urbana e as celebrações


são significativas na formação da memória coletiva, seja por meio de ruas, seja de
praças, seja de monumentos. Esses elementos estão presentes no dia a dia da
população das cidades, frutos do imaginário. No entanto, nos perguntamos: Os
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 655

monumentos são erguidos a todos os cidadãos? Não, não o são. Não haveria
espaço urbano suficiente para isso. Nem seria possível lembrarmos de todos os
cidadãos homenageados. A memória é seletiva, já nos dizia Maurice Halbwachs.
Da mesma maneira são os monumentos, integram o que se chama de memória
oficial ou memória-enquadrada. E a memória necessita dos seus suportes – sejam
eles materiais ou não – pois, desta forma, ela é construída, destruída ou
reconstruída de acordo com o presente. A memória está diretamente ligada ao
presente, mais que ao passado. Lembrando o caráter artificial – no sentido de
construção da memória – Le Goff expõe que:

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no


passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos
que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os
historiadores. (LE GOFF, 1990, p.535).

Ao elegermos um personagem para ocupar um espaço da cidade,


representado em um monumento, por exemplo, estamos endossando e
legitimando sua biografia, sua história de vida. Mesmo que de forma parcial e
seletiva em face aos esquecimentos e silêncios, como cabe à memória, sua vida é
contada publicamente. Tomando a cidade como um artefato permeado por
imaginários, como uma projeção de intenções e construtora de memórias oficiais,
nos propomos a pensar a relação entre espaço urbano e gênero. De que maneira
essas memórias oficias locais e/ou nacionais abarcam as mulheres e as
concepções de feminino.
Mas por que as mulheres? Por modismo historiográfico? Podemos afirmar
que as mulheres foram longamente obscurecidas por uma história oficial escrita
por homens e para homens, na qual, sobretudo, se narrou feitos de homens que
656 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

lutaram em suas guerras, que descobriram novos mundos, “[...] as mulheres,


muito pouco ou quase nunca referidas nesses acontecimentos, preencheram um
espaço em que a presença e o olhar masculino não a alcançaram” (BRISOLARA,
2007, p.20). Os monumentos e celebrações as alcançaram?
Na oposição público/privado o espaço das mulheres, de acordo com o
pensamento normativo, sempre fora o privado, o lar. A historiadora Michelle
Perrot discorre sobre essas relações:

Em linhas gerais, as “esferas” são pensadas como equivalentes dos


sexos e jamais a divisão sexual dos papéis, das tarefas e dos espaços foi
levada tão longe. Aos homens, o público, cujo centro é a política. Às
mulheres, o privado, cujo coração é formado pelo doméstico e a casa.
(PERROT, 2005, p.349).

Joan Scott, uma das mais importantes pesquisadoras de gênero, argumenta


que há certas questões implícitas ao trabalho dos historiadores das mulheres:

Através de que processos as ações dos homens vieram a ser


consideradas uma norma, representativa da história humana em geral,
e as ações das mulheres foram subestimadas, subordinadas ou
consignadas a uma arena particularizada, menos importante? [...] Qual
é o efeito sobre as práticas estabelecidas da história de se olhar os
acontecimentos e as ações pelo lado de outros sujeitos, as mulheres,
por exemplo? (SCOTT, 1992, p.78).

Para Scott (1990), devemos considerar em gênero, principalmente, a


abordagem dentro de uma perspectiva de construção cultural, refutando as
explicações biológicas, como as que justificam a subordinação das mulheres e a
supremacia masculina. Ainda de acordo com Scott, o gênero se torna uma
maneira de percebermos os papéis sociais e culturalmente criados e destinados a
homens e mulheres. Concepção esta presente na conhecida frase de Simone de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 657

Beauvoir – “não se nasce mulher, torna-se” – refutando as concepções biológicas


e considerando as prerrogativas culturais e históricas. Deste modo, as relações de
gênero não podem ser analisadas tomando homens e mulheres isoladamente, sem
a percepção das relações sexuadas em que estão presentes.
Dessa forma, tentaremos, em nossa pesquisa de mestrado, refletir sobre as
representações de mulheres no espaço urbano, tendo em vista a oposição
público/privado que permeia as relações de gênero. Circunscreveremos nossa
pesquisa à cidade de Londrina, norte do Paraná.
Cidade jovem do setentrião paranaense, conta com pouco mais de 70 anos
e a soma de 500 mil habitantes, Londrina é uma sociedade fortemente marcada
pelo empreendedorismo e pela ideia de modernidade3. Em Londrina, há um forte
discurso com relação ao pioneirismo, sobretudo com o sentido de afirmar
sempre a coragem dos homens que participaram do desbravamento da região e
da construção da cidade, discursos atrelados à memória da empresa responsável
pela colonização da cidade e da região, a Companhia de Terras Norte do Paraná
– CTNP.
A cidade de Londrina foi formada para venda de lotes rurais e urbanos no
final da década de 1920, pela CTNP. Alçada à condição de município em 1934,
rapidamente cresceu e ultrapassou o ínfimo número de 20.000 habitantes para o
qual fora planejada, passando, a partir da década de 1940, por um processo de
reestruturação urbana que visava ao moderno e ao progresso, ação esta que se
consolidará na década de 1950.
Acreditamos ser possível perceber as representações criadas acerca da
mulher e do seu papel social, também, por meio da análise da nomenclatura
urbana. Isso se dá em razão de que ao catapultar personalidades ao espaço

3
Ver mais em Adum (1997) e Arias Neto (1993).
658 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

urbano, está-se por legitimar e oficializar suas histórias de vida, principalmente


porque suas biografias são anexadas juntamente ao processo de nomeação das
ruas. Eles ou elas são homenageados(as) por causa dessa história de vida, pelo
que conquistaram ou contribuíram para a sociedade local.
Pela análise destas biografias, é possível perceber que as representações
que, por vezes, se fizeram presentes em periódicos, assim como nas falas do
poder (judiciário, legislativo e, sobretudo, religioso) também estão impregnadas
nas biografias dos homenageados, em nosso caso de análise, das homenageadas
no espaço urbano. Essas imagens repetidas competem, mormente, aos papéis
atribuídos como naturais à mulher: o papel de mãe, de rainha do lar, de
companheira fiel do homem etc. Como exemplo, podemos citar que é comum
vermos uma lei que indica um casal para nomear ruas em Londrina, no entanto, a
biografia do homem é, por vezes, muito mais extensa e detalhada do que a da
mulher. Há situações que a biografia é conjunta, pouco contemplando a presença
feminina.
Por meio dessas concatenações analíticas, percebemos como a cidade e
seus elementos urbanos são utilizados para ratificarem concepções de gênero e
definições de papéis estabelecidas pelas estruturas de poder dominante. A cidade
é entendida como modeladora da memória, a partir do momento que erige
monumentos e batiza ruas em honra dos heróis locais, homens e mulheres
ligados aos grupos dominantes que têm suas vidas contadas em vias públicas e
por meio das quais podemos aferir acerca dos valores transmitidos pela memória
oficial como honra, retidão e contribuição inestimável para o progresso da
cidade.
A nomeação de ruas pode ser reveladora das formas de manipulação da
memória, corroborando na construção da memória oficial ligada a poucos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 659

grupos. No entanto, procuramos, também, demonstrar que a fim de consolidar


concepções de gêneros e garantir a permanência de papéis sociais estabelecidos
às mulheres, os discursos normativos se reproduzem também no batismo das
ruas.

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III

DIMENSÕES DA POLÍTICA
Ideias em movimento. Por uma história
conectada do movimento operário mexicano e
brasileiro no período de expansão Comunista.

Fábio da Silva SOUSA*

A fusão do conhecimento e da ação precisa realizar-se na própria


luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque no
outro a garantia de sua verdade. A constituição da classe proletária
como sujeito é a organização das lutas revolucionárias e a
organização da sociedade no momento revolucionário: é aí que
devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a
teoria das práxis se confirma tornando-se prática.
(Guy Debord, A sociedade do espetáculo).

Travessia revolucionária: circulação atlântica de ideias radicais no

México e Brasil

U
ma das maiores imagens políticas do século XX foi a do operário
revolucionário como força social e representativa de alternativa do
status quo para o sistema capitalista. Muitas características dessa
imagem desestabilizadora foram construídas após os eventos dramáticos da
Comuna de Paris de 1871 e dos conceitos oriundos do Manifesto do Partido
Comunista, publicado em Londres entre fevereiro e março de 1848 por Karl
Marx e Friedrich Engels. O Manifestou impôs um papel de ator social ao

*
Doutorando em História/ UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP/Orientador: Dr. Carlos
Alberto Sampaio Barbosa.
664 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

proletário e o colocou como o inimigo da burguesia, que na concepção do


lendário documento, foi responsável pela industrialização selvagem e
capitalista da sociedade: “[...] a burguesia não forjou apenas as armas que a
levarão à morte; produziu também os homens que usarão essas armas: os
trabalhadores modernos, os proletários” (MARX; ENGELS, 1998, p. 14 -
grifo nosso).
Elevado à escala de agente responsável por uma mudança da realidade
industrial e capitalista, o proletariado também recebeu uma atenção especial
pelos anarquistas, principalmente por Mikhail Bakunin, contemporâneo de
Marx (cf. NORTE, 1988). Eric J. Hobsbawm, em sua investigação sobre a
formação do capitalismo industrial, com ênfase na realidade europeia, afirma
que, nas últimas décadas do século XIX, a massa trabalhadora começou a
definir uma consciência social e de sua situação enquanto classe. Para
Hobsbawm (2009, p. 180), a Ideologia forjou uma consciência e construiu
uma identidade que uniu as diversas tendências, as quais formavam esse
segmento social, cujo posto de liderança estava dividido entre socialistas e
anarquistas:

Um modo poderoso de unificar era o da ideologia, amparada pela


organização. Os socialistas e anarquistas levaram seu novo
evangelho às massas, até então desprezadas por quase todas as
instituições, exceto por seus exploradores e por aqueles que as
aconselhavam a se manter silenciosas e obedientes [...]
(HOBSBAWN, 2009, p. 180).

Tanto as ideias socialistas quanto anarquistas atravessaram o Atlântico,


por meio de diversos periódicos panfletários e também na bagagem cultural de
diversos militantes que migraram do Velho para o Novo Mundo. As ideias
circulam e estão longe de serem estáticas, uma vez que um conceito ou uma
ideia possui uma liberdade de movimentação e nunca está fora do lugar,
porque não possui, exatamente, um lugar. Contudo, a ideia nasce em um
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 665

determinado lugar, cujas características sociais e culturais do momento


histórico lhe fornecem o solo de sua germinação. No caso do anarquismo, apesar
de ter surgido no final do século XVIII e se consolidado um século depois,
suas referências podem ser rastreadas em momentos históricos bem
anteriores, como demonstrado por George Woodcock:

As raízes do pensamento anarquista são antigas. Doutrinas


libertárias que sustentavam que, como ser normal, o homem pode
viver melhor sem ser governado já existiam entre os filósofos da
Grécia e da China Antiga, e entre seitas cristãs heréticas da Idade
Média. Filosofias cuidadosamente elaboradas e que eram
totalmente anarquistas começaram a aparecer já durante o
Renascimento e a Reforma, entre os séculos XV e XVII, e
principalmente no século XVIII, à medida que se aproximava a
época das revoluções Francesas e Americana, que deram início à
Idade Moderna. (WOODCOCK, 1981, p.12).

Concomitante a essas origens antigas, o desenvolvimento do


pensamento anarquista ocorreu em meados do século XIX, sendo retomado,
discutido e reestruturado por Pierre-Joseph Proudhon. Nos estudos de
Proudhon, a Anarquia recebeu uma interpretação moderna e se adequou às
novas questões sociais expostas pela Revolução Industrial. Em sua mais
conhecida obra – O que é a propriedade? – publicada em 1840, o pensador
autodidata francês nega a propriedade privada, argumentando que a
exploração da força de trabalho de um semelhante era um roubo e que cada
pessoa deveria gerir os seus próprios meios de produção, conforme suas
necessidades. Os ideais de Proudhon influenciaram organizações de
trabalhadores em todo o mundo industrial e contribuíram para a formação
dos movimentos sindicais mais poderosos da Europa, resididos em países
como Espanha, França, Itália e Rússia. Entrando em contato com diversos
revolucionários europeus – entre eles, Karl Marx e Mikhail Bakunin, sendo
que este acabou se tornando uma espécie de discípulo –, Proudhon participou
666 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dos primeiros debates realizados pela Associação Internacional dos


Trabalhadores (AIT), organização fundada em 1864, na qual expôs e
fortaleceu as suas convicções. Com as contradições do mundo industrial e o
início da organização do proletariado, o ideal anarquista cresceu e, de um
pensamento filosófico, tornou-se um movimento revolucionário social, tendo
como principal opositor ideológico, entre os trabalhadores industriais, o
comunismo moderno elaborado por Karl Marx.
Da Europa, o anarquismo, como ideia política, circulou e chegou às
Américas. Sobre essa questão do movimento das ideias e dos conceitos
políticos, Peter Linebaugh e Marcus Rediker, em sua investigação sobre o
proletariado inglês, demonstraram que os navios que circularam pelo
Atlântico nos séculos XVII e XVIII levavam em seu convés não apenas mão-
de-obra, como também conceitos e ideias de resistência e subversão:

O navio tornou-se ao mesmo tempo motor do capitalismo, na


seqüência da revolução burguesa na Inglaterra, e cenário de
resistência, um lugar para o qual e o qual as idéias e práticas dos
revolucionários derrotados e subjugados por Cromwell, e depois
pelo rei Charles, escapavam, reordenavam-se, circulavam e
persistiam. (LINEBAUGH; REDIKER, 2008, p. 157; grifo
nosso).

Apesar do caso específico analisado pelos historiadores estadunidenses,


a trajetória das doutrinas anarquistas, possuiu dinâmicas semelhantes ao
destaque da citação acima, que fica mais perceptível no caso do México.
Os primeiros registros do ideal libertário mexicano se remetem ao
esforço do reformador social inglês Robert Owen, na criação da colônia
socialista de New Harmony, na região fronteiriça do Texas com os Estados
Unidos, em meados de 1820. Pela proximidade geográfica, a notícia dessa
comunidade ultrapassou a fronteira, incentivando tentativas frustradas de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 667

fundação, em território mexicano, de grupos comunitários no mesmo modelo


da idealizada pelo socialista inglês (Cf. ZARCONE, 2006).
Esse empreendimento de Owen rapidamente fracassou, por não obter
os resultados esperados, e o anarquismo mexicano se desenvolveu
peremptoriamente com o desembarque do grego Plotino C. Rhodakanaty, em
abril de 1861. Participante ativo das lutas de independência da Grécia e da
Hungria, Rhodakanaty, antes de imigrar para o México, passou uma larga
temporada em Paris, onde entrou em contato com diversas correntes
ideológicas, em especial, os ideais comunais de Charles Fourier. No México,
conheceu os problemas sociais dos camponeses e desenvolveu atividades de
propaganda libertária – como a criação do periódico de curta duração Nota
Socialista (E. LIDA; ILLADES, 2001, p.127).
No Brasil, encontra-se uma dinâmica diferente do desenvolvimento do
pensamento anarquista, que se consolidou nos primeiros anos do governo
republicano, instaurado em 1889. Contudo, no período monárquico,
verificam-se as primeiras concepções sobre a anarquia. O termo anarquista foi
utilizado pejorativamente para descrever os opositores da ordem imperial.
Segundo Emília Viotti da Costa (2007, p.81-82), essa denominação foi usada
em diversas ocasiões por José Bonifácio em suas críticas contra os
“democratas”, as “sedições demagógicas”, as “sociedades secretas regidas por
princípios carbonários” e sobre qualquer oposição à Monarquia. Vale ressaltar
que os abolicionistas também eram taxados de anarquistas. A repercussão das
notícias da Comuna de Paris na Monarquia também foi significativa para o
desenvolvimento dessa interpretação sobre os anarquistas. Como
demonstrado por Alexandre Samis, mesmo sem nenhum registro oficial do
desembarque de communard’s no Brasil, houve na imprensa oficial e na corte
um intenso temor sobre uma eventual chegada desses revolucionários
(SAMIS, 2004, p.14).
668 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nesse contexto, antes da chegada dos libertários, a palavra Anarquia e o


seu significado pejorativo, associado ao caos e a baderna, já estavam presentes
na sociedade brasileira.
Essas diferenças expostas na introdução do pensamento anarquista no
México e no Brasil – o primeiro por um imigrante e o segundo como uma
ideia ou conceito –, constituem um exemplo da grande circularidade que essa
doutrina percorreu da Europa para as Américas.
Em ambos os países, a militância anarquista se intensificou no começo
do século XX. No México, o melhor exemplo dessa práxis esteve com
Ricardo Flores Magón e na atuação do Partido Liberal Mexicano (PLM), e na
propaganda política e libertária das páginas do periódico Regeneración,
principalmente após 1910, quando eclodiu a Revolução Mexicana. No Brasil, a
atuação anarquista foi caracterizada por uma crescente organização sindical
protagonizada pelo movimento operário. Núcleos de resistência e educação
libertárias eram fundados, diversos periódicos publicados e vários militantes,
entre eles Edgar Leuenroth, José Oiticica, Martins Fontes, Orlando Corrêa
Lopes, Avelino Foscolo, Maria Lacerda de Moura, Neno Vasco, Elvira Boni,
Gigi Damiani, objetivaram, por diversos meios (o mais utilizado foi a
imprensa operária), propagar o ideal ácrata e fomentar uma revolução.
Conforme investigado em dissertação de mestrado (SOUSA, 2010), em ambos
os casos, detectou-se a formação de uma Cultura Política, que uniu os
anarquistas mexicanos e brasileiros, pois, eles compartilharam de um mesmo
discurso ideológico e simbólico, cujo epicentro de seus anseios seria a
destruição do sistema capitalista. Contudo, depois de outubro de 1917, com o
advento da Revolução Russa, uma nova ideia de resistência ao Capitalismo
surgiu para os operários em escala mundial: o Comunismo. Nas palavras de
Winock:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 669

No feudo marxista, a função da ideologia foi reavaliada na práxis


revolucionária e na instauração de um Estado socialista [...] As
idéias transformaram-se em propaganda. Uma nova sociedade
fechada se instituiu, sobre um sistema de crenças radicalmente
novo. (WINOCK, 1996, p.272).

Nesse cenário radical e de transformações ideológicas, uma questão se


coloca para o pesquisador das ideais políticas nas Américas: Como analisar a
repercussão, a significação, a resignificação e a mediação de um conceito
revolucionário germinado na Europa em terras americanas?
A partir deste questionamento, longe de apresentar respostas, pretende-
se discorrer sobre alguns instrumentos e métodos de investigação ao
historiador, tendo como base o impacto do Comunismo entre os operários
mexicanos e brasileiros.

Conexões e Comparações: a Revolução Vermelha no México e Brasil

Um desafio inquietante ao historiador que se propõe em investigar um


fenômeno ou processo histórico em dois, ou mais países, está no
direcionamento do seu olhar. Qual seria o melhor foco investigativo para tal
compreensão histórica: a História Comparada ou a História Conectada?
A História Comparada apresenta sustentáculos teóricos que permitem
ao historiador, em um primeiro momento, ter a certeza de que está no
caminho certo para elucidar os fenômenos históricos do seu objeto de
pesquisa. No caso dos Americanistas, comparando a trajetória de um conceito
ou de um desenvolvimento histórico em realidades nacionais e sociais
distintas, o historiador das Américas, teria os subsídios metodológicos de,
enfim, se distanciar do domínio eurocêntrico sobre o campo de investigação.
Contudo, Serge Gruzinski demonstra os limites de tal abordagem:

Para limitar o etnocentrismo e ampliar os nossos horizontes, a


história comparada pareceu uma alternativa possível. Mas as
670 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

perspectivas que propõe podem ser enganosas. A seleção dos


objetos que têm de ser comparados, dos quadros e dos critérios, as
perguntas, os mesmos modelos de interpretação, continuam sendo
tributárias de filosofias ou de teorias da história que muitas vezes já
contêm as respostas às questões do pesquisador. No pior dos
casos, a história comparada pode aparecer como um ressurgimento
insidioso do etnocentrismo. (GRUZINSKI, 2001, p.175).

Gruzinski alerta que a seleção dos objetos e as perguntas elaboradas nas


comparações podem redundar em uma perspectiva eurocêntrica na pesquisa
histórica proposta. No caso do movimento operário, essa afirmativa fica mais
evidente, como demonstrado por Maria Ligia Coelho Prado:

A historiografia esperava encontrar nas sociedades latino-


americanas o mesmo comportamento político e a mesma
organização sindical que haviam criado “a consciência de classe”
do proletariado europeu. Os autores se decepcionavam ao fazer a
comparação e assumiam uma certa hierarquização apoiada em
determinados juízos de valor assumidos a priori, escalonando dos
mais “avançados movimentos sociais europeus aos mais
“atrasados” latino-americanos que, por seu turno, ainda teriam um
longo caminho a percorrer até chegar ao patamar idealizado.
(PRADO, 2005, p.23).

A colocação de Coelho Prado entra em sintonia com os perigos da


comparação histórica apontada por Gruzinski. Como apontado na citação
acima, as análises sobre o movimento operário nas Américas foram, durante
muito tempo, realizadas pelo prisma dos proletários do Velho Mundo. Tais
investigações, muitas delas difundidas na década de 1960, resultaram, quase
sempre, em conclusões que colocavam o movimento operário da América-
Latina em atraso com os trabalhadores europeus. Essa discrepância fica mais
evidente em estudos voltados para as ideais políticas radicais, como o
anarquismo e o comunismo, que circularam nos meios operários no final do
século XIX e início do XX.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 671

Como exemplo, cita-se o anarquismo brasileiro que, por muito tempo,


foi associado à teoria da flor exótica, na qual defendia a tese de que o
pensamento anarquista foi formulado a partir do desembarque de imigrantes
europeus. A participação de italianos e de outros imigrantes na difusão da
ideologia anarquista no Brasil é inegável, contudo, esse papel não deve ser
interpretado de forma hegemônica. Há uma literatura sobre a formação da
classe operária brasileira que interpreta como fundamental o papel do
imigrante em sua organização militante. Na historiografia clássica do tema,
essa influência europeia recebeu a denominação de planta exótica, que explicaria
a origem estrangeira do proletariado e da consequente introdução e
hegemonia da corrente anarquista no início da República brasileira.
Entretanto, tais teorias foram debatidas nos anos de 1970, que demonstraram
a heterogeneidade dos imigrantes e dos próprios operários brasileiros.
No México, também se encontra críticas semelhantes, principalmente
em virtude dos Batallones Rojos, que foram colunas formadas por operários que
combateram as tropas de “Pancho” Villa e Emiliano Zapata (cf. CLARK,
1979). A maioria dos operários que constituíram essas tropas eram filiados a
Casa del Obrero Mundial (C.O.M.), fundada na cidade do México em
setembro de 1912, cuja atuação durou até meados de 1918. Chama a atenção
que a C.O.M. era de tendência anarco-sindicalista e, segundo Anna Ribera
Carbó (2010), uma grande parcela de integrantes do movimento operário
mexicano, filiada a essa organização, tinha uma visão depreciativa dos
camponeses e criticava a religiosidade dos mesmos. Vale ressaltar, que houve
algumas divergências nessa decisão da C.O.M. e uma parte de seus filiados se
uniram aos zapatistas.
Nesses dois casos mencionados, verificou-se uma peculiaridade, tanto
no movimento operário brasileiro quanto mexicano de orientação anarquista
ou anarco-sindicalista, que, se comparada com os ácratas europeus, acaba
672 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

redundando em afirmações de que, nesses dois países, a doutrina anarquista


não se desenvolveu na sua plenitude e nem foi interpretada corretamente
pelos seus adeptos. Tal conclusão fortalece as afirmações apresentadas por
Gruzinski e Coelho Prado.
Algumas referências sobre essa diversidade conceitual podem ser
detectadas no Comunismo. A Revolução de Outubro trouxe um novo
paradigma de práxis revolucionária para o movimento operário em
perspectiva continental. De 1917, período da Revolução Russa até o período
próximo da Segunda Guerra, diversos operários latino-americanos aderiram
ao comunismo e formaram partidos inspirados pelos soviéticos
revolucionários, como demonstra Codovilla:

Entre 1918 e 1922 surgiram partidos comunistas na Argentina, no


México, no Uruguai, no Chile e no Brasil. Em 1925, fundava-se o
Partido Comunista cubano. Durante a grande crise econômica
mundial e as grandiosas lutas realizadas pelos trabalhadores dos
países da América Latina, formaram-se partidos comunistas na
Venezuela, na Colômbia, no Peru, no Equador, na Costa Rica, em
El Salvador e no Paraguai; em outros países, constituíram-se às
vésperas ou depois da Segunda Guerra Mundial. (CODOVILLA,
2006, p.430).

A seguir, pretende-se examinar, de maneira sucinta, a formação do


Partido Comunista Mexicano (PCM), e do Partido Comunista Brasileiro
(PCB).
O PCM foi fundado em 25 de setembro de 1919 e reconhecido pela
Internacional Comunista de Moscou (IC), em 24 de novembro do mesmo
ano. O PCM surgiu nos últimos momentos da etapa armada da Revolução
Mexicana e é um dos partidos mais antigos do México. Foi o segundo PC
formado na América Latina, cujo pioneirismo fica com a Argentina. Para a
URSS, a fundação de um PC no México era de fundamental importância,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 673

devido a sua proximidade geográfica com os Estados Unidos, EUA (cf.


MÁRQUEZ FUENTES; RODRÍGUEZ ARAUJO, 1973).
O PCB foi fundado em março de 1922 e foi reconhecido pela IC em
janeiro de 1924. Entre seus fundadores, destaca-se a presença de Astrojildo
Pereira, que colaborou em diversos periódicos de orientação anarquista do
período de 1910 a 1918. Em novembro desse último ano apontado, participou
da malograda “insurreição anarquista” do Rio de Janeiro e acabou preso no
dia 18 de novembro. Depois do reconhecimento da IC sobre o PCB,
participou da 5ª Internacional Comunista (IC), em Moscou, e de 1929 a 1930,
trabalhou como secretário representante da América Latina na IC. Retornou
ao Brasil em 1930, afastou-se do Partido um ano depois e retornou no ano de
1945. Com a legalização do Partido Comunista após a Segunda Grande
Guerra, candidatou-se a vereador do Rio de Janeiro, não conseguiu se eleger,
foi preso após o golpe militar e faleceu em 1965 (BATALHA, 2009, p.125).
Nesses dois casos citados acima, tanto o PCM quanto o PCB tiveram
uma trajetória peculiar em sua formação. Ao se realizar uma História
Comparada de ambos, tendo como ponto de análise o Comunismo soviético,
há o risco de apenas demonstrar as dificuldades dos comunistas mexicanos e
brasileiros, em implantar as diretrizes da IC em suas respectivas agremiações.
Essa afirmação também poderia ser utilizada como explicação pelas diversas
dificuldades enfrentadas pelos dois partidos em fomentar uma revolução
comunista em suas respectivas realidades. Em outras palavras, as conclusões já
estariam formadas antes mesmo da pesquisa referente ao tema e fortaleceriam
a equivocada afirmação historiográfica denunciada por Coelho Prado, de que
o movimento operário europeu seria mais avançado que o latino-americano.
Em uma tentativa de desatar esse nó metodológico, considera-se que as
Histórias Conectadas fornecem importantes contribuições para se pensar essa
questão complicada da relação do movimento operário mexicano e brasileiro
674 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

– das Américas e de outras realidades –, com o conceito de Comunismo


revolucionário que circulou intensamente pelo mundo após a Revolução
Russa.
O conceito de Histórias Conectadas foi desenvolvido pelo indiano
Sanjay Subrahmanyam (1997). Nesse texto, o autor realiza uma crítica em
diversos estudos sobre a história da Ásia e, aponta como um dos entraves
metodológicos o fato de que as civilizações desse continente são analisadas
em comparação com o mundo europeu. Nas colocações do autor, os estudos
sobre o sudoeste asiático sempre foi realizado com os “big players” – Japão e a
Europa ocidental –, deixando de lado comparações com outras regiões
asiáticas (1997, p.744). Outra questão apontada por Subrahmanyam, está
relacionada às pesquisas, que tinham como proposta investigar fenômenos
históricos clássicos nos países europeus, em outras sociedades, como a
Modernidade e a Renascença:

[...] to delink the notion of “modernity” from a particular European


trajectory (Greece, classical Rome, The Middle Ages, the
Renaissance and thus ‘modernity’...), and to argue that it represents
a more-or-less global shifty, with many different sources and roots,
and-inevitably-many different forms and meanings depending on
which society we look at it from. (SUBRAHMANYAM, 1997,
p.737).

Na citação acima, segundo Subrahmanyam, a modernidade europeia


apresenta diversas lacunas quando aplicada em outras regiões, pois, tal
processo possui diversas particularidades definidas por meio de sua trajetória
histórica no Velho Mundo. O autor coloca em xeque o esforço de se realizar
uma História Total, pois, se a Renascença foi um processo divisor de águas no
desenvolvimento europeu, como se poderia pensar o seu impacto na Ásia e
mesmo nas Américas? Para Subrahmanyam, se existe essas dificuldades
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 675

metodológicas nas Histórias Comparadas, poder-se-ía conseguir resultados


interessantes com as Histórias Conectadas:

Is there a realistic methodological alternative, one that does not


require one to become a specialist on everything? There are
probably several, and in what remains of this paper, Ishall
concentrate on on broad possibility, namely that of ‘connected
histories’ as opossed to ‘comparative histories’.
(SUBRAHMANYAM, 1997, p.744 - grifo nosso).

As Histórias Conectadas são opostas às Histórias Comparativas, como


apontado pelo autor?
Cabe observar, abaixo, como Gruzinski se coloca diante dos desafios da
História Conectada:

Parece-me que a tarefa do historiador pode ser a de exumar as


ligações históricas ou, antes, para ser mais exato, de explorar as
connected histories, se adotarmos a expressão proposta pelo
historiador do império português, Sanjay Subrahmanyam, o que
implica que as histórias só podem ser múltiplas — ao invés de falar
de uma história única e unificada com “h” maiúsculo. Esta
perspectiva significa que estas histórias estão ligadas, conectadas, e
que se comunicam entre si. Diante de realidades que convém
estudar a partir de múltiplas escalas, o historiador tem de
converter-se em uma espécie de eletricista encarregado de
restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as
historiografias nacionais desligaram ou esconderam, bloqueando as
suas respectivas fronteiras. (GRUZINSKI, 2001, p.176).

Na concepção de Gruzinski o conceito de Subrahmanyam abre a


possibilidade de se pensar em uma história global e multifacetada, com alguns
pontos de convergências que o historiador tem de perceber para poder ligar.
Comentando o trabalho Gruzinski, Coelho Prado reafirma as vantagens de
trabalhar com História Conectada, principalmente em pesquisas voltadas para
a América Latina:
676 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Associa a visão eurocêntrica daqueles que trabalham com a história


da América Latina com as perspectivas dualistas: o ocidente e os
outros, os espanhóis e os índios, os vencedores e os vencidos, em
suma, as análises sistematicamente concebidas em termos de
alteridade. A solução seria trabalhar com as histórias conectadas,
pois elas são múltiplas e ligadas entre si, comunicando-se umas
com as outras. Tal postura está de acordo com a elaboração de seu
conceito de mestiçagem resultante do encontro de vários universos
culturais na América – o indígena, o europeu, o africano, o asiático
– que se manifesta na produção das técnicas, das artes e das leis.
(PRADO, 2005, p.27).

E, ao contrário de Subrahmanyam, Coelho Prado defende que Histórias


Conectadas e Comparadas podem convergir e dialogar entre si:

Penso, ainda, que a escolha da história comparada não exclui a


abordagem de histórias conectadas. A única crítica metodológica
indicada por Serge Gruzinski com relação à comparação refere-se à
dificuldade de escapar da visão eurocêntrica e dos modelos
dicotômicos. Do meu ponto de vista, é possível fazer história
comparada e permanecer crítico das visões eurocêntricas e
dicotômicas. Assim, entendo que há mais complementação entre
comparação e conexão, do que exclusão. (PRADO, 2005, p.30).

Esta exposição metodológica permitiu compartilhar de diversas


afirmações realizadas por Gruzinski, Coelho Prado e Subrahmanyam. Pensar
os fenômenos históricos pelas particularidades de cada realidade é bastante
inovador e desafiador para o historiador, principalmente no que concerne ao
movimento operário, pois, como já apontado neste texto, as suas teorias
radicais, o anarquismo e o comunismo nasceram na Europa.
Sobre tal afirmação, o movimento operário, tanto mexicano quanto
brasileiro, sofreu com a sombra da dinâmica europeia em diversos estudos que
propuseram investigar como o anarquismo e o comunismo se desenvolveu
nessas duas realidades. No caso do comunismo, essa discrepância se acentuou,
pois, a Rússia pós-revolucionária colocou-se como o modelo fidedigno de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 677

organização proletária a ser seguida, não apenas pelos operários das Américas,
como em escala global.
Os estudos clássicos sobre o PCM e sobre o PCB, em diversos
momentos, se valeram da estrutura da IC para explicar os deslizes de seus
partidários em seus países. O caso do México é emblemático dessa afirmação.
Além das ressalvas direcionadas às próprias ações do PCM, alguns
historiadores de tendência trotskistas mexicanos o utilizaram como exemplo
das resoluções elaboradas por Trotsky sobre os defeitos da direção
revolucionária soviética após a sua derrota na disputa contra Stálin, que se
seguiu da morte de Lênin. Como demonstrado por Peláez:

Para los trotskistas, tanto mandelianos, posadistas y pablistas como


lambertistas y morenistas, la explicación de la historia
posrevolucionaria de México – ¡no sólo del PCM! – se localiza en
un elemento: la crisis de dirección revolucionaria, que, como dice el
Programa de Transición, es la crisis de la humanidad. Aguilar Mora,
Rodríguez Araujo, Gómez-Jara, Gilly, Fernández Christlieb y otros
cuadros teóricos del PRT, la LOM y demás tendencias del
trotskismo repiten las conclusiones y antiguallas de Trotsky,
Mandel, Broué y Lora sobre la “degeneración burocrática” de la
Unión Soviética y el movimiento comunista internacional, incluido,
naturalmente, el PCM. En esta forma, ¡la historia está clarísima!
(PELÁEZ, 1980, p.7).

Vale ressaltar, que além das dificuldades em dividir a vanguarda


revolucionária com outras organizações operárias, como a CGT de orientação
anarco-sindicalista e a CROM reformista, o PCM ainda enfrentou a intensa
influência do trotskismo, resultada do período em que Trotsky esteve asilado
no México, de janeiro de 1937 até 21 de agosto de 1940, quando foi
assassinado.
O PCB enfrentou crises de adaptações ou divergências táticas em 1923,
1926 e 1928. Após sua fundação em 1922, Antônio Bernardo Canellas foi
enviado para Moscou com o objetivo de obter o reconhecimento do PCB
678 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

diante da IC. Autodidata e tipógrafo, a bagagem intelectual e revolucionária de


Canellas teve como base o socialismo comunal, e sua participação nas
reuniões do IV Congresso da IC, realizado em novembro de 1922, foi
bastante polêmica. Canellas formulou uma interpretação peculiar do
bolchevismo, como demonstra Carone:

Para ele, o “bolchevismo é uma fórmula prática de aplicação do


socialismo, é uma teoria socialista surgida na prática. Ela é,
portanto, a mais exata de todas as teorias socialistas e a única que
pode tomar o nome de socialismo científico porque, só sendo
cientificamente exato o que for praticamente demonstrável, ele o é.
O ponto de origem do bolchevismo, é certo, foi o marxismo, mas
o bolchevique só foi um partido rigorosamente marxista até a
véspera de seu triunfo [...]”. (CARONE, 1981, p.23).

Canellas divergiu de algumas resoluções da IC, e como representante


do PCB as suas opiniões foram consideradas como orientações oficiais dos
comunistas brasileiros. Nas resoluções definidas a posterior da participação de
Canellas, a IC atestou que o PCB sofria de uma “confusão reinante sobre a
teoria e a tática comunistas”, e, até 1924, a agremiação representante do
comunismo no Brasil foi considerada um “Partido simpatizante”.
À vista do exposto, pondera-se que tanto o PCM quanto o PCB não
devem ser considerados partidos que não conseguiram implantar o
comunismo no México ou no Brasil, em virtude de uma ineficiência inicial em
compreender as resoluções da IC. Acredita-se que tanto o Comunismo no
México quanto no Brasil tiveram uma trajetória distinta, uma História
particular, com pontos que podem ser conectados, como proposto por
Subrahmanyam. Assim, Gruzinski e Coelho Prado demonstraram a força e as
vantagens do historiador em trabalhar com as Histórias Conectadas, o que
fornece subsídios metodológicos interessantes para avaliar o impacto da
Revolução Russa e do Comunismo soviético nas Américas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 679

Referência

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Instituição do policiamento ambiental paulista:
condições sociopolíticas e econômicas (1930 - 1949)

Adilson Luís Franco NASSARO *

A
formação e o desenvolvimento da atividade policial especializada na
fiscalização do uso de recursos naturais, a partir de 14 de dezembro de
1949 no Estado de São Paulo, relacionam-se às condições
sociopolíticas e econômicas que marcaram o Brasil e, particularmente, São Paulo,
nos anos que antecederam a data referenciada. O percurso se inicia na década de
1930, em face da mudança de uma sociedade de ocupação e economia rurais para
uma concentração urbana e um modo de produção industrial, com os efeitos da
ocupação e da industrialização ligados à degradação ambiental, passando pela
criação de estruturas para atender a uma demanda crescente de proteção de
direitos.

1. O motivo de uma data e a delimitação do período analisado

Nos quadros da Força Pública do Estado de São Paulo formou, se em 14


de dezembro de 1949, um 1º Pelotão de “Policiamento Florestal”. O efetivo foi
ampliado ao longo dos anos, recebendo sucessivas denominações em estruturas
mais complexas, nas seguintes conformações: “Corpo de Policiamento Florestal”,

* Mestrando em História /UNESP/Assis. Orientador: Paulo Henrique Martinez


682 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

no nível de companhia em 1956; “Corpo de Policiamento dos Recursos


Naturais”, em 1971; “1º Batalhão de Polícia Florestal e de Mananciais”, em 1975;
“Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais”, nível de grande
comando, em 1987; e “Comando de Policiamento Ambiental”, nome oficializado
em 2001, mediante o Decreto Estadual nº 46.263. Manteve-se essa última
denominação na estrutura que envolve, atualmente, quatro batalhões
especializados, com efetivo total de 2.300 homens distribuídos em 116 unidades
operacionais para atuação em todo o território paulista. Em razão do trabalho
ininterrupto de fiscalização do uso dos recursos naturais e de sua formação
característica, é considerado o mais antigo corpo militar de proteção ao meio
ambiente da América Latina1.
Já nas últimas décadas do século XX, o fortalecimento da organização que
acompanhou a emancipação do tema “meio ambiente” é invocado como
justificativa da rememoração da data, apresentada como um marco do
surgimento de um grupo propriamente policial voltado à fiscalização do uso dos
recursos naturais em São Paulo, junto às manifestações de celebração dos seus
feitos.
A presente pesquisa, no entanto, não pretende explicar a origem do
policiamento ambiental paulista sob determinada perspectiva ou mesmo justificar
o seu surgimento em 1949, mas apresentar as circunstâncias em que tal fato
documentado ocorreu, ou seja, interessa a análise do momento histórico em que
se deu a formação do contingente especializado com integrantes destacados da
Força Pública. Procedimento diverso e de maior amplitude poderia incidir no

1
Até 1980, informações constantes no trabalho: GRITTI, Euzébio Carlos. Resumo histórico do 1º
Batalhão de Polícia Florestal e de Mananciais. Pesquisa documental realizada em 28/04/80. São
Paulo. PMESP. /datilografado/. Após 1980, informações obtidas diretamente no comando do
órgão policial, em São Paulo, capital.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 683

vício da “explicação do mais próximo pelo mais distante”, conforme advertência


de Marc Bloch (2002, p.56), ao impulso que nomeou “obsessão das origens”.
Fosse o propósito a busca das raízes desse órgão policial, seria possível alcançar
um passado mais remoto, sob o ponto de vista da instituição originária de seus
integrantes, sondando-se a formação da Força Pública e, portanto, a consolidação
do próprio Estado que tem como uma de suas características essenciais o
monopólio do uso da força2.
Convém, diante disso, delimitar a análise ao período de 1930 a 1949,
observando-se as transformações sociais, políticas e econômicas que marcaram o
cenário do país nessas quase duas décadas de intenso movimento. Destacam-se,
no estudo dessa fase, a centralização do poder no país, as limitações impostas
pelo governo central à Força Pública após 1932 e a busca pelo desenvolvimento
na mudança de uma sociedade de ocupação e economia rurais para uma nova
concentração urbana e uma produção industrializada (FAUSTO, 1995, p.329).
O ponto de partida é o ano de 1930, considerado um divisor de águas para
o país exatamente pela aceleração das transformações sociais e políticas, no
momento em que “a história começou a andar mais rápido” (CARVALHO,
2001, p.87).

2
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p.18: “Assim, para Weber, no resumo de Bendix, ‘a ordem legal, a
burocracia, a jurisdição compulsória sobre um território e a monopolização do uso da força
são as características essenciais do Estado moderno’. Não muito distinta é a caracterização feita
por Immanuel Wallerstein: ‘Como se fortaleceram os reis, que eram os administradores da
máquina estatal no século XVI? Usaram quatro mecanismos principais: burocratização, a
monopolização da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da população dos
súditos’”.
684 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

2. Fase revolucionária: o início de mudanças

De 1930 a 1934 o Brasil viveu uma fase revolucionária que resultaria


alterações no cenário político e social. O país inicia um processo de transição do
domínio das elites rurais para outro domínio caracterizado pelo começo da
industrialização e da urbanização, principalmente no sudeste. Depois do período
de revezamento no poder central entre São Paulo e Minas Gerais, que marcou a
Primeira República, Getúlio Vargas assume a chefia de um governo provisório,
na condição de chefe da revolução vitoriosa de 1930, sob grande expectativa
popular de mudanças e de desenvolvimento do país (SILVA, 1964, p.07).
De fato, o Brasil era ainda um país predominantemente agrícola até 1930.
Não houve censo nesse ano, mas o censo de 1920 indicava apenas 16,6% da
população vivendo em cidades de 20 mil habitantes ou mais e 70% com
ocupação em atividades agrícolas em uma economia que se chamava “voltada
para fora”, por conta da orientação pela exportação, no caso, de produtos
primários. Não somente a política, mas a economia da Primeira República fora
dominada pelos Estados de São Paulo e de Minas Gerais, especialmente em
função da riqueza do café produzido em São Paulo, produto migrado do Rio de
Janeiro para o sul de Minas e oeste de São Paulo, onde encontrou terras muito
férteis e trabalho dos imigrantes europeus, circunstâncias que multiplicaram sua
produção. Ao mesmo tempo, o desmatamento nessa fase pré-revolucionária
não constituía aparente fator de preocupação: “O processo de degradação
começou a acelerar com o advento do plantio de café, que, como um surto,
rapidamente passou a se expandir em direção ao interior, deixando um forte
rastro de degradação do meio ambiente natural” (MELE, 2006, p.121).
Em razão do avanço das plantações o problema enfrentado era exatamente
a superprodução, motivando medidas de controle do preço impostas pelo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 685

governo central e governos dos Estados produtores, o que se agravou com a


crise da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, levando o preço do café a ser
reduzido à metade, sem possibilidade de venda de estoques. Esse fator gerou
grande insatisfação e, como consequência, mobilização certeira: “A crise
econômica que se seguiu foi um dos motivos que levaram ao movimento
político-militar que pôs termo à Primeira República” (CARVALHO, 2001, p.54).
Em 1930, São Paulo foi o centro dessas tensões, em razão da dissidência
paulista que apoiava e estimulava o movimento armado para a derrubada do
presidente Washington Luiz, aliando-se com lideranças e dissidências de outros
Estados, objetivando romper com o controle do Partido Republicano. Fato é que
o governador paulista tinha a seu serviço a mais bem treinada milícia estadual
brasileira – a Força Pública – e organizou uma resistência armada que, apesar da
mobilização no sul do Estado, em Itararé, que seria passagem obrigatória de
Vargas em direção ao Rio de Janeiro, não foi concretizada. Washington Luiz
deixou a presidência em 24 de outubro.
Conforme descreveu Dallari, a impossibilidade de resistir ao movimento
antigovernista, que fora “apresentado em cores emocionais” ao efetivo da milícia
paulista, como manifestação contrária à lei e a São Paulo, “deixou na Força
Pública um amargo sentimento de frustração, que se tornou mais agudo com a
designação de um interventor militar federal para governar o estado de São
Paulo”. Esse interventor buscou conquistar a confiança da burguesia paulista,
mediante repressão ao movimento operário utilizando a própria Força Pública
para dissolver comícios, greves e outras manifestações, o que agravou ainda mais
a situação, pois a oficialidade da Força Pública não se conformava em ver seus
batalhões “utilizados como arma política, a serviço dos inimigos da véspera”
(DALLARI, 1977, p.59).
686 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O governo central nomeou, então, Pedro de Toledo – civil, paulista e


homem idoso – como interventor em São Paulo, mas o movimento por um
governo constitucional para o Brasil cresceu rapidamente e o próprio Pedro de
Toledo aderiu a ele com apoio unânime de seu secretariado, declarando que não
mais acataria determinações do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Iniciaram-
se ações de guerra de grande envergadura com o efetivo da Força Pública e de
milhares de civis voluntários de São Paulo na “Revolução Constitucionalista de
1932”, que São Paulo perdeu em termos bélicos quando se viu sem apoio de
outros Estados que haviam se comprometido inicialmente com a causa, e
enfrentou praticamente todo o país mobilizado por Vargas, com exceção de
Mato Grosso cuja guarnição federal aderiu a São Paulo (DALLARI, 1977, p.60).
Não obstante, a Constituinte Federal foi instalada em 15 de novembro de 1933, o
que os paulistas aclamaram como uma vitória, resultando na promulgação da
Constituição do país, em 16 de julho de 1934.
Quanto à caracterização da Força Pública depois 1932, foi imposta a
eliminação de seus setores militarmente importantes, por medidas sucessivas do
governo instalado em São Paulo, militar de nomeação federal. Identifica-se, nessa
fase, uma lenta transição, a partir da desmobilização de perfil bélico a fim de que
a milícia não mais fosse direcionada como instrumento de política armada e para
que agisse de forma mais discreta e voltada à manutenção da ordem. Até 1936, o
efetivo foi reduzido de 9.000 homens (em 1931) para 6.214, apesar de não haver
redução de despesas e, com isso, pode-se concluir que se investia no
aperfeiçoamento da milícia ao mesmo tempo em que o seu papel como
instrumento político era diminuído.
Em 1937, alguns dias depois de Vargas instalar um regime ditatorial que
perduraria até 1945, ao qual denominou Estado Novo, foi imposta à Força
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 687

Pública a aplicação do regulamento disciplinar do Exército Brasileiro e a sua


subordinação direta ao interventor federal, não havendo a repetição de 1932
(DALLARI, 1977, p.70).

3. Os recursos naturais e as inovações legislativas da década de 1930

Superada a fase revolucionária, o cenário político e institucional favoreceu


inovações legislativas também relacionadas à proteção dos recursos naturais ao
longo da década de 1930. Pode-se explicar esse quadro por dois fatores: a
influência de movimentos organizados voltados à defesa do meio natural e a
construção de um projeto político para o país, “que tinha na modernização e na
busca de maior inserção internacional seu principal norte”. Como descreveu
Rodrigo Medeiros:

Mudanças políticas foram implementadas visando colocar o Brasil no


trilho rumo à modernidade. Novas leis trabalhistas, incentivos à
industrialização e à expansão e ocupação do oeste brasileiro ditaram o
ritmo das mudanças. Neste cenário de ambiciosas transformações, o
"ambientalismo" brasileiro que pregava a criação de áreas protegidas
sob a forma de parques nacionais – a esta altura uma tendência
internacional - encontrou enfim espaço. (MEDEIROS, 2006, p.06).

Quanto ao primeiro fator apontado, é certo que o rápido avanço da


degradação ambiental que se deu junto ao processo de ocupação de novas áreas,
a exemplo do oeste paulista – importante para o plantio do café –, mobilizou
intelectuais vinculados a instituições científicas e associações cívicas, culminando
com a realização da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza,
entre 08 e 15 de abril de 1934. Ao pensar a proteção da natureza, mesmo sem
caracterizar propriamente um “movimento ambientalista” no Brasil (que
ocorreria apenas na década de 1970), esse grupo unia preocupações de estudiosos
688 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como a criação de áreas protegidas a um amplo projeto de “construção da


nacionalidade”, garantindo espaço nas deliberações do governo Vargas e
colaborando “na formulação e aprovação de uma série de leis, decretos e
regulamentos pertinentes, bem como na criação dos primeiros parques
nacionais” (FRANCO, 2009, p.22).
As mudanças são significativas, com a centralização na esfera federal da
competência de legislação relacionada aos recursos naturais, de acordo com a
Constituição Federal de 1934. Ela atribuiu à União a prerrogativa de legislar
sobre “bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia,
águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e a sua exploração” (alínea j, do
inciso XIX, do art. 5º). Ainda, estabeleceu que essa competência legislativa “não
exclui a legislação estadual supletiva ou complementar sobre as mesmas
matérias”, bem como, “As leis estaduais, nestes casos, poderão, atendendo às
peculiaridades locais, suprir as lacunas ou deficiências da legislação federal, sem
dispensar as exigências desta” (parágrafo 3º, do art. 5º)3.
Não se pode deixar de reconhecer que a década de 1930 representou um
marco para a legislação conservacionista de um modo geral, apesar do fato de
que os regulamentos foram motivados muito mais pela intenção de submeter a
exploração econômica de recursos naturais ao controle dos detentores do poder.
No mesmo ano de 1934, além das inovações da Constituição Federal, veio a
lúmen o Código de Caça e Pesca (Decreto nº 23.672, de 02 de janeiro), o Código
Florestal (Decreto nº 23.793, de 23 de janeiro) e o Código de Águas (Decreto nº
24.643, de 10 de julho). Houve, também em 1934, a criação no governo federal
do Serviço de Saúde Vegetal, do Serviço de Saúde Animal, para fiscalização de

3
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. In: Constituições do Brasil.
São Paulo: Livraria Cristo Rei Editora, 1944.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 689

alimentos e condições sanitárias da agricultura e da pecuária e do Serviço de


Irrigação, Reflorestamento e Colonização (DRUMMOND, 1998, p.135).
Os três primeiros parques nacionais foram criados na mesma década, em
sequência: o Parque Nacional de Itatiaia, pelo Decreto nº 1.713, de 14 de junho
de 1937, na divisa entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais e, dois anos depois, em
1939, o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, e o Parque Nacional da Serra dos
Órgãos, no Rio de Janeiro (MEDEIROS, 2006, p.03). Esses parques e outros
posteriores, das três esferas de Poder Público, foram criados com base no artigo
9º do Código Florestal vigente, de 1934, que trazia a primeira referência legal a
parques nacionais, estaduais e municipais e proibia o exercício de qualquer
espécie de atividade contra a flora e a fauna nesses locais.
No aspecto de “preservação da natureza”, apesar do expressivo
ordenamento jurídico na direção de sua proteção e o funcionamento de novos
órgãos federais, pode-se concluir, acompanhando a interpretação de José
Augusto Drummond, que a década de 1930 e também o período posterior – até
1988 – nada tiveram de ambientalistas, “se entendermos o ambientalismo como
uma preocupação específica da sociedade com a qualidade do mundo natural,
expressa em leis, políticas e órgãos governamentais especificamente dedicados a
essa qualidade” e explica:

Pelo contrário, o período foi desenvolvimentista, no pior sentido que


o termo pode ter para quem se preocupa com o ambiente natural. Não
é que o desenvolvimento socioeconômico seja incompatível com a
qualidade ambiental, nem que o atraso econômico seja
necessariamente benigno ao ambiente natural. No caso, a nossa
sociedade e os seus governos se mobilizaram pelo crescimento
econômico a qualquer custo. De fato, foi entre as duas guerras
mundiais que o Brasil acelerou o seu crescimento industrial, inclusive
com políticas governamentais agressivas a partir do primeiro governo
de Getúlio Vargas (1930, 1945), especialmente na ditadura do Estado
690 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Novo (1937, 1945). Já na década de 1950, restabelecida a democracia


política, o "desenvolvimentismo" virou uma unanimidade nacional que
levou governo e sociedade a se empenharem em fazer do Brasil uma
potência econômica. (DRUMMOND, 1998, p.127).

O mérito da legislação da década de 30 foi o de tirar da exploração privada


uma grande parcela dos recursos naturais. Não obstante, o prevalecente
desenvolvimentismo provocou a intensa exploração e consumo desses bens, que
não ficaram protegidos diante de uma maciça ação empresarial do próprio
Estado nos anos seguintes. Ocorre que não houve exatamente políticas
conservacionistas ou preservacionistas e o governo se orientou pelo
desenvolvimento do país a qualquer preço. Como consequência, o Brasil veio a
se tornar, em pouco tempo, uma potência mundial na área mineral e hidrelétrica,
para lembrar alguns exemplos.

4. A ordem constitucional e o exercício do poder após 1937

Quanto à ordem constitucional vigente, nota-se que a Constituição


Federal, outorgada em 1937, não alterou a disposição dos órgãos policiais
estaduais, apesar de marcar o início do período ditatorial (Estado Novo, de 1937
a 1945) e, no que se refere aos recursos naturais, não retirou dos estados-
membros a possibilidade de legislar supletivamente ao poder central sobre
riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas,
caça e pesca e sua exploração. Mesmo na existência de lei federal sobre a matéria,
a lei estadual independeria de autorização, “para suprir-lhes as deficiências ou
atender às peculiaridades locais, desde que não dispensem ou diminuam as
exigências da lei federal” ou, em não havendo lei federal e até que esta
sobrevenha a regular a respectiva matéria (art. 18, alínea “a”). A tendência de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 691

atribuir à legislação estadual um caráter de complementaridade à legislação


federal na área do meio ambiente manteve-se nas décadas seguintes, como
expressão característica do pacto federativo.
Quanto à Constituição promulgada em 1946, cuja vigência alcançou o
surgimento do Corpo de Policiamento Florestal em São Paulo, veio o seu art. 183
a vincular as forças estaduais à coordenação do Exército se necessária a
mobilização, na condição de força “auxiliar”4.
Em relação às Constituições do Estado de São Paulo, interessa ao período
em análise a verificação da Constituição de 1935 e a de 1947. A primeira,
acompanhando o espírito da Constituição Federal de 1934, após o intenso
movimento revolucionário de 1932, representou um “compromisso instável”
entre o governo central e as lideranças paulistas, na definição de José Luiz de
Anhaia Mello (1991, p.51), materializado logo no seu artigo 1º: “O Estado de São
Paulo, parte integrante da Federação Brasileira, exerce, em seu território, todos os
poderes que não tiverem sido, pela Constituição Federal, explícita, ou
implicitamente, atribuídos à União”. Justifica o autor: “este princípio registrou no
texto legal uma solução de compromisso, que a Carta Federal de 1934 havia
encontrado para a disputa entre os partidários da autonomia dos Estados e os
defensores do fortalecimento da União” (MELLO, 1991, p.53).
No que se refere às forças policiais, o art. 100 da Constituição Estadual de
1935 pontua que: “A Força Pública, corporação militar essencialmente obediente
ao Governador do Estado, é instituição permanente, destinada à manutenção da
ordem e da segurança pública” e, ainda, impõe sua ascendência às demais forças
estaduais nos seguintes termos do art. 100: “As corporações policiais, estaduais

4
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. In: Constituições do Brasil.
São Paulo: Livraria Cristo Rei Editora, 1944.
692 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ou municipais, ficam sob a fiscalização do comando da Força Pública, o qual


possuirá tantos órgãos diretores, quantos se fizerem necessários, para que a
mesma fiscalização se exerça eficientemente”. No que tange à proteção dos
recursos naturais, sem maiores detalhamentos, estabelece o seu art. 18, inciso 21,
alínea “g”, que compete ao Estado, por meio de sua Assembleia, em harmonia
com a Carta Magna de 1934, legislar sobre florestas, caça e pesca e respectiva
exploração. A Constituição Federal de 1934 e a Constituição Paulista de 1935
tiveram vida muito curta, “naufragando em 1937 nas águas turvas do Estado
Novo” (MELLO, 1991, p.58).
A Constituição Estadual de 1947 não trouxe surpresas quanto à Força
Pública, mantendo-se no artigo 148 a mesma redação genérica do antigo art. 100.
Mas, no aspecto da proteção da natureza, apresentou um destaque: o seu
penúltimo artigo (116), sob o derradeiro Título V (Da Ordem Econômica e
Social), prescreve que: “O Estado e os municípios preservarão a flora e a fauna,
criando-lhes reservas invioláveis”. Essa previsão no texto constitucional paulista
indica a importância que o tema da preservação do meio natural veio a alcançar e,
tratando-se de um compromisso que o próprio estado federado assume em sua
lei maior, virá a honrá-lo com o direcionamento – pouco tempo depois – de
integrantes da Força Pública para atuação em um grupo policial autossuficiente,
voltado aos trabalhos de fiscalização. Ainda, uma sutileza reveladora pode ser
notada na medida em que, se a criação de “reservas invioláveis” em nível estadual
não aproveita a “Ordem Econômica” – posto que impedido o seu
aproveitamento privado – ela somente poder ser voltada à “Ordem Social”,
preconizando-se, ainda que não expressamente, o propósito de um ambiente
ecologicamente equilibrado, pela conservação de espaços indispensáveis para esse
fim, em benefício da coletividade.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 693

No plano do exercício do poder e nas relações entre estados federados e


governo central não houve significativas mudanças na década de 1940, e mesmo
no período imediatamente posterior ao Estado Novo, apesar do processo de
democratização ter ocorrido a partir de 1945. Nesse sentido, analisando as
origens do sistema partidário no Brasil, Maria do Carmo Campello de Souza
observou que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a oposição
interna brasileira contrária ao regime autoritário vigente no país desde 1937
ganhou maior vigor em função do descrédito no âmbito externo quanto aos
regimes fascista e nazista; desse modo, a restauração democrática em 1945 teria
sido causada “muito mais por eventos internacionais que por dissensões
econômicas internas graves que estabelecessem sério conflito de classes, não
produzindo uma substituição radical dos grupos no poder, embora exigisse uma
reformulação político-institucional”. Prova dessa posição é o fato de que as
preocupações no debate político da época se mantiveram sobre os temas da
unidade nacional, da incorporação de novos setores sociais e da modernização
institucional; enquanto isso, o pensamento liberal brasileiro vivia em uma
encruzilhada histórica:

Predisposto, por origem e formação, à defesa da autonomia estadual e


da independência dos agrupamentos políticos de ‘notáveis’, e à
proteção de ambos contra a centralização do poder, temia, no entanto,
a crescente participação popular. (SOUZA, 1976, p.65).

Importa por fim registrar, ainda sobre os anos que se seguiram às


transformações da década de 1930, que se manteve durante longo tempo o
fenômeno do “coronelismo” dominando a vida política no interior do país,
apesar da decadência da figura do dono de terras diante do processo de
industrialização e a paulatina migração dos moradores da área rural para os
694 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

centros urbanos. Destaca-se, nesse ponto, a questão da dicotomia do público e


do privado no meio em que chamou Victor Nunes Leal de “superposição de
formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e
social inadequada”. Depois de um século da criação da Guarda Nacional (de
1831), o uso do título de “coronel” – que era atribuído ao comandante local de
fração – se manteve não justificado pelo comando e coordenação dos integrantes
dessa força em determinada área, mas então pela liderança política exercida ainda
pelo proprietário local, que garantia votos de cabresto a partir de uma relação
mantida com os trabalhadores que dele dependiam. O mesmo autor explica essa
situação na sua obra clássica de 1949, “Coronelismo, enxada e voto”:

Por isso mesmo o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma


troca de proveitos entre o poder público, progressivamente
fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais,
notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois,
compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que
fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado
ainda tão visíveis no interior do Brasil. Paradoxalmente, entretanto,
esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder
público, e isto se explica justamente em função do regime
representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode
prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é
incontestável (LEAL, 1975, p.20).

A influência do poder privado era sintomática enquanto os chefes locais, à


frente do governo municipal, podiam nomear o delegado e o subdelegado de
polícia como decisivo trunfo ainda na década de 1940, o que representava “pôr a
polícia do Estado sob as ordens do chefe situacionista local”. Dessa forma,
garantiam a representação “pelo bem e pelo mal”, de um lado pelo exercício do
filhotismo (o bem) e, por outro, pelo exercício do mandonismo (o mal) como
“recurso simultâneo ao favor e ao porrete”. O autor conclui que, todavia, já na
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 695

ocasião do seu estudo, em 1949, a ausência do poder público – que teve como
consequência a atuação do poder privado – estava já muito reduzida no interior
dos estados federados e cita a melhoria dos serviços prestados pela polícia como
um fator que favoreceu essas mudanças junto à diminuição da influência dos
“coronéis”, com sua já perceptível decadência no final da década em um cenário
de industrialização e de concentração urbana:

A polícia de hoje, salvo em raros Estados, poderá comparecer ao local


de perturbação e atuar com relativa eficácia num período de tempo,
que cada vez se torna mais curto. A rebeldia do chefe local – tão
característica de certo período da Colônia – já não é um meio de
consolidar, mas de enfraquecer e minar a influência do “coronel”
(LEAL, 1975, p.42).

O progressivo fortalecimento dos órgãos policiais, a partir da segunda


metade da década de 1940, seria sinal de diminuição do poder privado, em um
processo que se evidencia no interior de um país caracterizado por enormes
distâncias, em face de suas dimensões continentais, passados mais de cem anos
de sua formação e consolidação, com a manutenção da unidade territorial.

5. O policiamento voltado aos recursos naturais em São Paulo

Enquanto a Constituição Federal de 1934 havia centralizado na esfera


federal a competência de legislação relacionada aos recursos naturais, o Código
Florestal – também de 1934 – prescrevera as responsabilidades dos Estados e
Municípios relacionadas especialmente à fiscalização, constituindo o seu art. 56 o
primeiro dispositivo legal que prevê a organização de uma “guarda florestal”
estadual mediante coordenação, estímulo e orientação da repartição federal de
florestas, nos seguintes termos do seu parágrafo 3º:
696 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Os Governos dos Estados e dos Municípios organizarão os


serviços de fiscalização e guarda das florestas dos seus
territórios, na conformidade dos dispositivos deste Código e das
instruções gerais das autoridades da União, e cooperarão com
estas no sentido de assegurar a fiel observância das leis
florestais. . (NOMURA, 2004, p. 57, grifo nosso).

Observou Milton Sussumu Nomura, o fato de que o poder central federal


avocava a questão das florestas sem, contudo, inibir ou descartar o necessário
envolvimento e participação dos Estados e Municípios. Na sua análise, a partir da
centralização, acompanhando definição de Klaus Frey, houve uma abordagem
“de caráter ecológico-tecnocrata de planejamento, caracterizado pela forte
presença da administração pública, por meio de instituições com amplas formas
de imposição e intervenção” (NOMURA, 2004, p.57).
As decisões impositivas do Governo Central, na conclusão de Warren
Dean, significaram uma “rejeição histórica do liberalismo e uma reversão para o
controle estatal, abafado desde os primeiros dias do império, mas agora revivido
sob a bandeira de um nacionalismo modernizante e tecnocrata” (DEAN, 1996,
p.276). Todavia, essa postura não impediu as iniciativas das unidades da
federação que inclusive foram incentivadas no plano da atividade de fiscalização,
dos trabalhos de “polícia florestal” nos termos do Capítulo IV, artigos de 56 a 69
do Código Florestal.
Em São Paulo, o Serviço Florestal já existia como repartição da Secretaria
da Agricultura, Indústria e Comércio, desde 31 de dezembro de 1927, criado pela
Lei Estadual nº 2.223 do mesmo ano, atribuindo-se a ele as funções até então a
cargo da Diretoria de Agricultura, por meio do Horto Botânico e Florestal, que
passou a denominar-se Horto Florestal. Nessa oportunidade, definiram-se as
linhas prioritárias para sua atuação como: conservação e preservação de matas;
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 697

defesa, exploração racional dos recursos madeireiros; e ensino e divulgação de


práticas silviculturais e da indústria extrativa da madeira. Em 1941, esse mesmo
órgão foi objeto de reorganização para também desenvolver “fiscalização e
execução do Código Florestal, em colaboração com o Departamento de Botânica
e Procuradoria de Patrimônio Imobiliário e Cadastro do Estado”. Todavia, ainda
não comportava um corpo de fiscalização a que se pudesse atribuir o título de
“guarda florestal”, o que somente viria a ocorrer em 1943 (ZORAIDE, 1991,
p.217).
De fato, mesmo com o funcionamento do Serviço Florestal, não há
registros de criação, mediante lei estadual, de uma guarda específica para
proteção florestal na década de 1930 em São Paulo, apesar da prescrição do
Código Florestal. Em 08 de fevereiro de 1943, por meio do Decreto Estadual nº
13.213, atribuiu-se à Procuradoria do Patrimônio Imobiliário e Cadastro do
Estado a responsabilidade pelas atividades de proteção que, alguns meses depois,
em 28 de julho de 1943, por intermédio do Decreto-Lei nº 13.487, foram
direcionadas ao Serviço Florestal, nos seguintes termos: “Artigo 3º - Passam a
competir exclusivamente ao Serviço Florestal da Secretaria da Agricultura,
Indústria e Comércio, os serviços de guarda e fiscalização das florestas do Estado
[...]”.
O mesmo Decreto-Lei nº 13.487, de 1943, do então Interventor do
governo federal no Estado de São Paulo, também organizou a Polícia Florestal
do Estado, finalmente atendendo os termos do parágrafo 3º, art. 56, do Código
Florestal, com a seguinte redação:

Artigo 16 – Incumbe à Polícia Florestal os serviços de fiscalização e


guarda das florestas existentes no território do Estado, das reservas
florestais, oficiais e, ainda, cumprir e fazer cumprir as determinações
698 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de autoridade competente no tocante à defesa das matas, ao


reflorestamento e à caça e pesca.
Artigo 17 – A Polícia Florestal terá um corpo efetivo de guardas
florestais, subordinados ao Delegado de Polícia Florestal, correndo as
despesas pelos recursos referidos no artigo 1º.
Artigo 18 – O Secretário de Segurança Pública designará um Delegado
de Polícia para dirigir o policiamento florestal, diretamente
subordinado à Diretoria do Serviço Florestal do Estado. (NOMURA,
2004, p.58).

Ainda, Nomura (2004, p.58) observa que “o efetivo de guardas florestais,


inicialmente previsto, era de quinhentos e vintes homens” e que passados dois
anos, em 1945, com o Decreto-lei 15.143, de 19 de outubro, “o Governo do
Estado reorganiza o Serviço Florestal, instituindo o cargo de Diretor do Serviço
Florestal, nomeado em comissão. As atribuições dos órgãos que compunham o
Serviço Florestal, por sua vez, seriam previstas em Regimento”.
O referido regimento (regulamento) veio a ser aprovado pelo Decreto nº
19.008-A, de 14 de dezembro de 1949, publicado no Diário Oficial do Estado
no dia 16 do mesmo mês e ano (nº 282, ano 59º, p.01 e 02). Exatamente por
meio desse instrumento legal que a Força Pública de São Paulo foi chamada à
proteção dos recursos naturais, constituindo um grupo propriamente policial para
exercício de fiscalização, conforme o seu artigo 4º:

Além do corpo efetivo de guardas-florestais a que se refere o


artigo 17, do Decreto-lei nº 13.487, de 28 de julho de 1943, a
Polícia Florestal contará com um contingente de oficiais e
praças da Força Pública do Estado, ao qual incumbirá o
exercício das funções policiais previstas no art. 1º deste
Regulamento (NOMURA, 2004, p.58, grifo nosso).

Em extenso estudo sobre a Secretaria de Agricultura de São Paulo, ao


discorrer sobre sua história de mais de cem anos completados em 1991, Zoraide
Martins também identificou o momento em que a Força Pública passou a atuar,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 699

por meio de seus integrantes destacados, junto a essa pasta então denominada
Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio:

Na área florestal, em 1949 seria aprovado o Regulamento da Polícia


Florestal (que fora criada em 1943), incumbida da fiscalização e guarda
das florestas existentes no Estado, das Reservas, Hortos e Parques
Florestais, na defesa das matas e reflorestamento, da caça e da pesca,
zelando pela execução do Código Florestal. O serviço Florestal, além
do corpo de guarda de florestas, passou a contar com o contingente de
oficiais e praças da Força Pública do Estado. (ZORAIDE, 1991,
p.347).

A data 14 de dezembro de 1949, portanto, representará um marco da


atuação policial em defesa do meio natural em São Paulo. A rigor, até então
existia uma guarda florestal, apesar de identificada como “Polícia Florestal” nos
termos do Decreto-Lei nº 13.487, de 1943, com missões não regulamentadas em
lei estadual e com a presença apenas de guardas – agentes civis – da própria
Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio. Com sua regulamentação, a
partir de 1949, estruturou-se um verdadeiro órgão policial especializado com
capacidade própria de uso da força, quando necessário, para suas intervenções
objetivando a proteção dos recursos naturais, o que até então não era possível.
As atividades atribuídas ao inicial contingente de 27 homens distribuídos
em um pelotão com cinco segundo-sargentos, quatro cabos e 18 soldados,
comandados pelo então 2º Tenente Odilon Spinola Neto, estavam relacionadas a
uma gama variada de serviços, entre os quais se destacam: guarda e fiscalização
das Reservas, Hortos e Parques Estaduais; fiscalização das regras contidas no
Código Florestal; divulgação da legislação florestal; prevenção e combate aos
incêndios florestais; prevenção e repressão dos crimes e contravenções nas zonas
de suas vigilâncias e fiscalização; fiscalização das determinações legais referentes à
700 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

caça e pesca; lavratura de autos de multa e apreensão contra infratores da


legislação florestal; vigilância especial no que se refere à soltura de balões,
conforme artigo 1º do seu regulamento, nos termos do mesmo Decreto nº
19.008-A.
Em 1949, era então governador de São Paulo Adhemar de Barros,
responsável também pela ampliação do efetivo geral da Força Pública, de 11.571
para 13.503 homens, um aumento que indica um ciclo de crescimento
institucional contínuo (DALLARI, 1977, p.91).

6. Considerações finais

Em conclusão, superada a fase revolucionária e o inicial encolhimento da


milícia paulista na década de 1930 – como efeito do movimento de 1932 –, a
evolução da força policial estadual terá vínculo direto com o fortalecimento do
processo de industrialização, em conjunto com o aumento da concentração
urbana dele decorrente. Tal movimento é traduzido no crescimento da demanda
pelos seus serviços e a necessidade de crescimento dos quadros de seu efetivo,
especialmente nos últimos anos da década de 1940. Heloisa Rodrigues Fernandes
identificou esse aspecto gerador de tensões e impulsionador do aperfeiçoamento
contínuo da Força Pública de São Paulo, representado pelo crescimento
institucional em efetivo e em qualificação, compatibiliza-se com a economia do
estado federado:

[...] é sob o período republicano que se conjugam uma série de


condições propícias ao aparecimento e expansão do processo de
industrialização e, portanto, de urbanização, que amplia, quantitativa e
qualitativamente, os focos de alteração da ordem pela ampliação e
agudização das tensões econômicas, sociais e políticas. Estas, por sua
vez, geram a necessidade de um aperfeiçoamento contínuo da força
mantenedora da ordem. Ainda, ao mesmo tempo em que cada força
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 701

repressiva estadual depende da riqueza do seu próprio Estado (antes


Província), ou seja, do crescimento econômico de cada região, é este
que intensifica as tensões do sistema e exige, por sua vez, o
aperfeiçoamento contínuo da repressão. (FERNANDES, 1973, p.256).

O impulso abriu caminho para a especialização de algumas tarefas, com o


surgimento de modalidades particulares de policiamento como o Rodoviário e o
Florestal, ambos organizados no final da década de 1940 com base em
integrantes da Força Pública disponibilizados para essas atribuições, em atuação
direta com os respectivos órgãos originalmente responsáveis pela fiscalização.
Quanto à primeira modalidade, a partir de 19485, o efetivo destinado ao
policiamento rodoviário já atuava em conjunto com o Departamento de Estradas
de Rodagem, que fora criado em 1930 (NASSARO, 2008, p.22). Interessante
notar que os policiais que seriam direcionados para essas atividades passavam por
seleção mediante a imposição de algumas exigências, a exemplo dos critérios de
recrutamento junto ao Corpo de Policiamento Florestal, registrando-se no art. 6º
do Decreto nº 19.008-A, de 1949, que o candidato deveria ter os seguintes
requisitos: robustez física e gosto pela vida campestre; pelo menos instrução
primária; altura mínima de 1,60m e boa conduta.
No entanto, paradoxalmente, a nascente “Polícia Florestal” se encontrava
ligada a uma Secretaria que funcionava como grande fomentadora do
desenvolvimento da agropecuária em São Paulo (Agricultura, Indústria e
Comércio) e, portanto, com propostas, em tese, colidentes quanto à utilização
dos recursos naturais. Tal situação viria a ser mudada em 1986, com a criação da
Secretaria do Meio Ambiente (SMA) – que manteve a parceria de ação com o
efetivo da Polícia Militar – designação da milícia paulista já em 1970, com a

5Em 10 de janeiro de 1948, com a edição do Decreto Estadual nº 17.868, foi instituída, em
São Paulo, a “Polícia Rodoviária”, com o efetivo inicial de 60 homens.
702 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

unificação da Força Pública com a Guarda Civil –, visando à contenção das


infrações ambientais mediante convênio para autuações administrativas,
sucessivamente renovado com a Secretaria da Segurança Pública.
Como final consideração, ainda quanto aos últimos anos da década de
1940, convém anotar que, depois da Segunda Guerra Mundial, com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, cresceu nitidamente o reconhecimento da
necessidade de proteção de direitos individuais, coletivos e difusos. Como
identificou Norberto Bobbio, a comunidade internacional passou a influenciar
fortemente a tutela dos Estados em um movimento contínuo e, ao lado dos
chamados “direitos de segunda geração”, que são os direitos sociais, emergiram
os direitos de “terceira geração”; nessa categoria heterogênea incluem-se
aspirações e direitos relacionados à convivência em equilíbrio e “o mais
importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de
viver num ambiente não poluído” (BOBBIO, 1992, p.05).
Pode-se identificar essa preocupação pelos efeitos trazidos pelo processo
de industrialização associado à degradação ambiental e às estruturas que surgiram
no Estado e que, depois de estabelecidas, prosseguem em aperfeiçoamento para
fazer frente a uma demanda contemporânea de proteção, em face da clara
definição das esferas pública e privada. Trata-se de um processo histórico em que
os direitos surgem e, com eles, o aparato para sua tutela, contrapondo-se à
capacidade do homem de dominar o próprio homem e também de dominar a
natureza.

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Os Veteranos da FEB: O Conflito ideológico na
Associação de Ex-Combatentes
do Brasil (1945-1950)

Carlos Henrique Lopes PIMENTEL*

N
os últimos anos, os estudos sobre a História Político-Militar do
Brasil têm passado por algumas mudanças. O maior acesso às
fontes e o aumento significativo de pesquisadores – composto de
civis e militares, que se dedicam aos estudos neste campo –, despertaram
interesses, resultando em uma ampliação historiográfica sobre as Forças
Armadas e sua participação na História do país. O debate acerca do tema vem
crescendo em sua variação temática mudando os aspectos teóricos e
metodológicos, com ganhos recíprocos, em vez de se ocuparem apenas com a
intervenção militar na política, a instituição militar é estudada como um todo,
sem prejuízo de suas relações com a sociedade civil.
Um dos tópicos que tem atraído a atenção dos pesquisadores é a Força
Expedicionária Brasileira (FEB). As novidades nesse campo de estudos
despertaram o interesse desses novos pesquisadores que, se utilizando de
novas abordagens, vêm ampliando os campos de pesquisa nessa temática. A
memória, a reintegração social dos veteranos de guerra e as associações de ex-
combatentes (com seus conflitos ideológicos), têm sido algumas dessas

*
Mestrado em História Social - UEL/Londrina. Orientador: Prof. Dr. Francisco César
Alves Ferraz.
706 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

mudanças. Porém, a historiografia brasileira relega alguns personagens


importantes que, por possuírem orientações políticas diferentes e opostas aos
altos escalões do Estado Maior das Forças Armadas, foram perseguidos e,
posteriormente, esquecidos por nossa historiografia.
É sabido de todos que o Brasil participou da Segunda Guerra Mundial,
mas o que poucos sabem é o que aconteceu com esses homens depois que
regressaram ao país. A Força Expedicionária Brasileira (FEB) era formada por
aproximadamente 25 mil brasileiros, que se transformaram em cidadãos-
soldados para combater as forças do Eixo na Campanha da Itália, entre 1944 e
1945, constituindo a única força de combatente oriunda da América Latina no
continente europeu. Encerrado o conflito, foram desmobilizados, e a maioria
dos expedicionários (composta de civis recrutados), buscou retornar às
relações sociais e profissionais que tinham antes de participarem da guerra,
convertidos agora em ex-combatentes.
A chegada dos pracinhas à Capital Federal (Rio de Janeiro) causou, de
início, comoção popular, festas de boas-vindas e desfiles os esperavam, e a
empolgação tomou conta de todos, pois foram recebidos como heróis. O
mesmo acontecera nas outras cidades, além do que, havia o pagamento dos
soldos devidos, o que dava aos pracinhas uma sensação de reconhecimento e
bem estar (cobertos de glórias e recompensados financeiramente). Mas, esses
combatentes logo caíram em esquecimento e o grande entusiasmo do regresso
diminuiu muito, e os agora veteranos de guerra, buscaram retornar as suas
vidas e rotinas. O desejo dos veteranos da FEB eram menores, de início,
voltar a seus trabalhos ou, no caso de estarem desempregados antes da
partida, conseguir um emprego e retomarem suas vidas.
Esses ex-combatentes, entretanto, não eram mais homens comuns,
eram diferentes, pois passaram meses vivendo em outro meio social,
presenciando os horrores de uma guerra, já não eram mais os mesmos. Isso
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 707

ficou evidente ao surgirem dificuldades na readaptação e nos conflitos em


seus empregos, famílias e na sociedade. Os problemas começaram quando se
deu início a desmobilização (oficial) da FEB. Mesmo compartilhando com a
máquina de guerra dos Estados Unidos da América, os planejamentos e a
execução de todas as etapas de combate, as autoridades militares brasileiras,
não prepararam nenhuma ação (política) de reintegração social de seus
combatentes, diferente do que acontecia em outros países como nos EUA,
por exemplo, onde políticas de reintegração social dos ex-combatentes de
guerra foram adotadas (até pelo fato desses países já vivenciarem outras
experiências do gênero), enquanto nas nações aliadas, essa questão já era
estudada desde o início da guerra, no Brasil quase nada foi feito de concreto, a
não ser alguns estudos e planejamentos para os procedimentos de
desmobilização e licenciamento das tropas expedicionárias (FERRAZ, 2003).
Se não bastasse a falta de planejamento na reintegração dos veteranos,
havia ainda, uma nítida má vontade com a FEB por parte de algumas
autoridades do governo, que temiam alguma ação por parte das tropas, que
gozavam de prestígio popular, após seu regresso. Dentro do Exército, os
oficiais que preferiram permanecer no Brasil (por diversos motivos) temiam
ser preteridos nas promoções pelos oficiais e praças da FEB. A recepção dos
militares febianos regulares nos quartéis foi fria e até mesmo hostil; a cúpula
da hierarquia militar brasileira contribuiu para as dificuldades dos militares da
FEB, destacando-os para bases e guarnições distantes, muitos ex-combatentes
reclamavam que no dia a dia dos quartéis, eram hostilizados pelos seus pares
que não foram combater na Europa. Contudo, embora considerassem injusto
o tratamento que recebiam nos quartéis, os militares febianos possuíam, ainda
assim, com uma carreira segura, pensão integral na reforma e direitos médicos
garantidos. Em contrapartida, os expedicionários civis, sem a proteção do
Exército, tiveram de lidar com problemas mais críticos; deveriam reintegrar-se
708 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

à vida cotidiana em uma sociedade que não conhecia os horrores da guerra e


que não estava preparada para recebê-los. Já nas primeiras semanas após o
retorno, quase todos os ex-combatentes sentiram, em maior ou menor grau,
dificuldades no convívio social com a população não combatente. Isso
ocorreu em todos os países e guerras que utilizaram massas de cidadãos-
soldados em combate.
As trajetórias dos veteranos brasileiros, que foram civis recrutados,
foram variadas. Os que possuíam alguma formação escolar ou habilitações
profissionais encontraram menores dificuldades, assim como os que antes da
partida exerciam algum cargo público. Mas o grosso do contingente
expedicionário deparou-se com o medo do desemprego (os patrões eram
obrigados, por lei, a readmitir seus empregados que foram para a guerra, mas
em seguida, sob alegação de desajustamento e neurose, demitiam esses
funcionários). As dificuldades de conseguir emprego cresciam pelo fato de a
maioria dos expedicionários terem sido recrutados, justamente, na idade de
aprender uma profissão. Assim, sem capacitação para trabalhar (profissões
definidas), muitos veteranos tiveram que enfrentar um mercado de trabalho
desigual, pois estavam em desvantagem em relação aos demais trabalhadores.
Além disso, muitos ex-combatentes, feridos em combates ou portadores de
doenças contraídas na guerra, tiveram que lidar com a má vontade burocrática
para receberem auxílio e provar sua incapacidade física para o trabalho.
Histórias de veteranos reduzidos à mendicância ou dependentes de favores da
família eram comuns, e foram relatados nas memórias dos ex-combatentes e
por alguns jornalistas (FERRAZ, 2003).
Assim que retornaram ao Brasil, as reclamações aumentaram muito.
Então, devido a essas tantas dificuldades de adaptação e econômicas, foi
resgatada a ideia, cogitada ainda em solo italiano, de se criar associações de ex-
combatentes. Os brasileiros foram influenciados por outras tropas aliadas que,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 709

por já terem vivido essas dificuldades de readaptação, oriundas de outros


conflitos, haviam constituído associações de ex-combatentes, em países como
França, Inglaterra e Estados Unidos. A luta dessas associações de veteranos
buscou adquirir direitos, benefícios e amparo aos milhões de associados, o que
transformou as associações em uma grande força social e política; no mundo
todo, as associações de ex-combatentes possuíam as mesmas funções, tendo
em suas principais reivindicações, a pressão por empregos e pensões,
reintegração social e maior participação política. Assim, em 1º de outubro de
1945, foi fundada no Rio de Janeiro a primeira Associação de Ex-
Combatentes do Brasil (AECB), a seguir, outras foram sendo criadas, de
maneira espontânea, em várias cidades do país.
Em todo o mundo, as associações de ex-combatentes, ficaram em
evidência maior, principalmente no período entre guerras, tendo impacto nos
países que enviaram cidadãos-soldados para a guerra, tanto no âmbito
econômico (pressão por empregos e pensões), quanto no social (dura
reintegração à rotina) e político (pressão por maior participação nos destinos
das nações as quais defenderam), somando, assim, milhões de filiados em
todo o mundo. Porém, se as associações de ex-combatentes nas grandes
potências mundiais tiveram grande força social e política, no Brasil, essas
escalas não foram atingidas pelas associações de ex-combatentes, tendo sua
importância política, como grupo de pressão, quase irrelevante; devido ao
fato, de que os ex-combatentes (aproximadamente 25 mil homens)
representavam apenas 0,06 % da população brasileira nesse período.
Com o nascimento das associações, o veterano podia rever seus
companheiros de campanha, receber orientações de seus direitos, poderiam
ajudar-se uns aos outros e, sobretudo, constituir um espaço de vivência social
e política (ponto de encontro e de eventos sociais de seus afiliados e
familiares). A associação se constitui na voz (interlocutora) legítima dos ex-
710 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

combatentes brasileiros junto das autoridades. Fora desse espaço social, não
haveria possibilidade de pressão, pois os veteranos encontravam-se
espalhados pelo território nacional, principalmente pelo interior. Portanto,
agrupar-se foi a melhor saída que os ex-combatentes encontraram para
reivindicar por sua situação e direitos; além do que, as associações também
lutariam para preservar a memória da FEB (organizando comemorações,
desfiles, cerimônias cívicas, publicação de livros e jornais, a fim de divulgar a
memória dos veteranos).
Essas associações, de início, agregaram ex-combatentes de diferentes
localidades e com diferentes ideologias políticas. Segundo seu primeiro
estatuto, elaborado e aprovado em novembro de 1946, na 1ª Convenção
Nacional da AECB, o intuito da associação girava em torno de promover a
integração social entre os companheiros de combate na Itália, representando e
defendendo os interesses coletivos da FEB perante os governantes, além de
cuidar das questões relativas à memória dos ex-combatentes; oferecendo, na
medida do possível, ajuda jurídica e social; ficando proibida nas associações
qualquer ação política atrelada a algum partido político. Ficou também
decidido, nessa Convenção, que as associações se organizariam de maneira
colegiada, tendo seus representantes eleitos em chapas, que seriam
apresentadas e votadas em assembleias gerais, para períodos estabelecidos em
seu estatuto. As várias sedes da AECB, em todo o Brasil, eram orientadas por
um Conselho Nacional, órgão centralizador, composto por delegados
escolhidos por votação, realizadas nas Convenções Nacionais (ocorridas de
dois em dois anos), nas quais todas as seções poderiam votar. Nessas
Convenções Nacionais também eram discutidas as principais pautas, que se
aprovadas, constituiriam as práticas de todas as seções do país.
A adesão dos ex-combatentes da FEB, às associações ocorreu nos
primeiros anos de funcionamento dessas, somando mais da metade dos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 711

associados. Não se tem um dado preciso sobre a quantidade de pracinhas que


se filiaram nas várias seções da AECB em todo Brasil, mas o número de
adesões em algumas seções foi expressivo (Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo,
Belo Horizonte e São João Del Rei). Outro dado interessante é o fato de que,
no início, a maioria dos filiados às seções possuía instrução primária e ocupava
empregos medianos e subalternos. Nota-se, também, a ausência de oficiais
superiores da FEB, entre os primeiros associados, sendo a maior parte
composta por civis que lutaram na guerra como soldados.
As atuações dos associados, inicialmente, foram variadas, constituindo-
se desde membros assíduos que organizavam eventos e buscavam aumentar
os quadros associativos, até os que “apareciam” raramente para obter
consultas sobre seus direitos ou, até mesmo, ajuda material (inclusive, muitas
vezes, as associações foram vítimas de pessoas que se passavam por
expedicionários, a fim de conseguir alguma vantagem). Segundo o relatório do
Conselho Nacional da AECB, os ex-combatentes estavam assim divididos:

[...] em três grupos. O primeiro é constituído por aqueles que,


voltando da Itália, permaneceram nas forças armadas ou, ao serem
desmobilizados, tinham emprego público do qual se afastaram por
conseqüência da guerra. O segundo, daqueles que carregam em si
as cicatrizes da guerra, a neurose, a tuberculose, etc, que precisam
ser amparados. O último grupo – o maior – está constituído de ex-
combatentes que, deixando a farda e gastando suas economias se
viram de um momento para o outro sem emprego ou inadaptados
as novas funções civis. Do ponto de vista da Associação, o
primeiro grupo, não sentindo o problema dos veteranos de guerra
no após guerra, pouco veio se interessando pela sua sorte ou pela
sorte da Associação. O segundo grupo nada pode fazer pela
Associação, de vez que necessita de seu amparo. O último, na
verdade o único que vive as situações das Seções, freqüenta suas
reuniões e participa do movimento dos veteranos em defesa de
suas reivindicações, pois que sente verdadeiramente o problema do
abandono do desemprego e do ostracismo a que foram relegados 1.

1
Apresentado ao plenário da 2ª Convenção Nacional. São Paulo, 16 de novembro de 1948,
em Ex-Combatente.
712 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

(RELATÓRIO DO CONSELHO NACIONAL DAS


ASSOCIAÇÕES DE EX-COMBATENTES DO BRASIL, 1948,
p.3).

A AECB possuía periódico mensal, o jornal Ex-Combatente, editado pela


seção do Rio de Janeiro, para divulgar as notícias e preocupações dos
combatentes. Esse jornal tinha âmbito nacional, enquanto outros jornais e
boletins eram produzidos pelas seções, mas em sua maioria ficavam em seus
âmbitos regionais. A situação material da grande maioria das seções era
precária, com suas sedes alugadas e em prédios de baixo porte; as finanças
também eram restritas, pois as seções dependiam da contribuição dos filiados,
o que nem sempre acontecia, muitos eram inadimplentes, sem citar os que,
assim que conseguiam seus objetivos, abandonavam a Associação sem pagar
suas mensalidades. Muitas vezes, o trabalho realizado era voluntário, para o
primeiro presidente da AECB-SP, Raimundo Paschoal Barbosa, havia um
número bastante expressivo de médicos e advogados militantes ou
simpatizantes do Partido Comunista que atendiam os ex-combatentes
gratuitamente, ou por um valor simbólico2.
Importante característica dos anos iniciais das associações foi a
participação ativa de expedicionários de esquerda (ligados ou não ao PCB). A
seção de São Paulo se constituiu em um claro exemplo desse envolvimento,
fundada no final de novembro de 1946 (assim que constituída, a seção já se
filiou à AECB) por Gervásio Gomes de Azevedo (ex-sargento), Raimundo
Paschoal Barbosa (soldado), Abrahão Abait (soldado), Dionísio de Vechi e
Antonio Sá Rodrigues, sendo os três primeiros ligados ao Partido Comunista
Brasileiro (Gervásio foi, inclusive, deputado constituinte em 1946 pelo PCB).
Não ficando essa participação de membros de esquerda restrita apenas na
seção de São Paulo, nas demais seções pelo país houve expressivo

2
Entrevista com Raimundo Paschoal Barbosa, 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 713

envolvimento de militantes ou simpatizantes do PCB, acostumados com as


organizações sindicais e colocando em prática a política de células pregada
pelo partido, esses membros ocuparam posições importantes nas diretorias
das seções e, posteriormente, no Conselho Nacional (SILVEIRA, 1989).
As associações sofriam com o descaso das autoridades (tantos as locais
como as nacionais), na maioria das vezes, as petições (Memoriais) endereçadas
aos parlamentares e demais autoridades não eram levadas a sério; como já dito
anteriormente, as associações, em sua grande parte, sobreviviam de seus
próprios esforços.
Em detrimento dessa situação, surge, no seio da AECB, uma disputa
entre duas práticas de ação pública. De um lado os que compreendiam que a
luta pelos benefícios e direitos dos expedicionários era política, que só
obteriam êxito por meio de uma mobilização constante, sendo dever dos ex-
combatentes opinar e agir no que tange aos assuntos do Brasil. Do outro lado,
existiam os que não aceitavam essa prática, se colocando terminantemente
contrários a qualquer ação de cunho político, considerando que a AECB não
era o espaço apropriado para essas questões partidárias.
O embate entre essas duas concepções foi inevitável, principalmente no
período em que os expedicionários “comunistas” frequentavam assiduamente
e comandavam a direção da AECB, entre 1946-1949. Esses associados de
esquerda – principalmente na seção da Capital Federal – adotaram práticas de
contestação, defendendo a concepção de exigirem seus direitos, não
dependendo de favores das autoridades. Essa postura ficou evidente no
discurso do então presidente da AECB-RJ, Pedro Paulo Sampaio de Lacerda:

[...] tem os ex-combatentes consciência de seus direitos e por terem


tal consciência é que, sem bajulação, sem subserviência e sem
elogios desnecessários e importunos aos poderosos, mas de cabeça
erguida e convictos da justiça, de sua causa, através de nossa
querida Associação, já conquistaram considerável número de
vitórias e haverão de conquistar muitas outras. Entretanto que
714 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

fique bem caracterizado a aqueles maus companheiros. O regime


de favores destrói, portanto, a união de uma coletividade, desperta
o egoísmo e abre caminho para a destruição da Democracia que é,
essencialmente, o regime do povo e pelo povo, e para o povo. Os
ex-combatentes sabem que o caminho a seguir é o que vem
trilhando sua Associação, a estrada da luta pelos seus mais sagrados
direitos. (LACERDA, 1948, p.1).

Os associados de esquerda, entusiastas nos primeiros anos, além de


confiarem na conscientização dos veteranos de que somente a firme defesa de
seus direitos é que possibilitaria as conquistas dos benefícios, defendiam,
ainda, que os companheiros não deveriam reivindicar apenas para conseguir
seus direitos, mas para defender conquistas sociais para toda a população e
para o país. A esse respeito, o comunista Salomão Malina assevera:

De nada adiantará arranjarmos emprego para um ex-combatente se


nesse ínterim dois outros tiverem perdido os seus. É por isso que
devemos lutar por medidas que nos dêem nossa independência
econômica, tais como a exploração de nosso petróleo, aço,
nacionalização de energia elétrica, etc. (SALOMÃO, 1948, p.4).

Apesar dos estatutos da AECB proibirem atividades de cunho político-


partidário de seus associados, o fato é que a política sempre esteve presente
nas associações, abertamente ou não. Para Francisco Ferraz, trazia à tona as
duas concepções políticas que se enfrentavam no interior da AECB:

Desta maneira, havia pelo menos duas propostas diferentes para as


práticas públicas da associação. De um lado, uma tendência de
esquerda, que era mais contestadora e que propunha ir além das
reivindicações dos problemas específicos dos ex-combatentes,
associando os problemas nacionais aos dos expedicionários. Seu
relacionamento com as autoridades era tenso, não apenas por
cobrar intransigentemente seus direitos e não esperar por favores
de governantes e de seus prepostos, mas, principalmente, porque
tais práticas eram largamente associadas, na cultura política
brasileira da época, com o comunismo. Foi justamente neste
período entre o final da década de 40 e primeira metade da década
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 715

de 50, que as polarizações da guerra fria se tornaram mais intensas


no Brasil. Reivindicações de expansão dos direitos políticos, civis e
sociais, ou manifestações de cunho nacionalista, que tivessem o
mínimo indício de apoio de grupos de esquerda, eram logo taxadas
de comunistas, subversivas, e seus defensores acusados de
“inocentes úteis” (na melhor hipótese) ou de estarem a “soldo de
Moscou” (na pior). Do outro lado, havia o outro grupo de
membros da associação, que era maioria no quadro dos associados,
onde às questões políticas eram deixadas de lado, e o que se
discutia e lutava era em torno das problemáticas dos veteranos,
colocando-se por um viés mais conservador, portanto
anticomunista. (FERRAZ, 2003, p.303).

Esse envolvimento dos comunistas foi recebido com extrema


preocupação por setores à direita (com ideais mais conservadores) das
associações e até fora delas (hierarquia das Forças Armadas). Essa politização
das questões sociais dos veteranos acarretou uma crise interna nas associações,
causando uma divisão política que, no futuro, definiria o papel político das
associações e seus posicionamentos. Os setores anticomunistas usaram essa
politização, para atacar e acusar os veteranos de esquerda dentro das
associações e, também, por meio da imprensa, alegando que as associações
não eram lugares de política e que essa tentativa, por parte dos comunistas, de
usar a associação para fins partidários, provocava a desagregação dos
companheiros, além de utilizarem o prestígio da FEB para causas políticas. E
discursos como o do comandante da FEB, o General Mascarenhas de Moraes,
explicitavam o evidente confronto ideológico no interior da Associação:

A Imprudência de alguns delegados da causa expedicionária, que,


com propósitos velados, pretendem, há muito, desviar as
associações dos ex-combatentes de sua finalidade eminentemente
cívica e essencialmente restrita à sobrevivência de nossas glórias, à
assistência aos nossos camaradas a as suas famílias, à veneração e
respeito aos que morreram ou foram mutilados. Já temos perdido
terreno no conceito da opinião pública e de nossas autoridades, por
pretenderem aqueles delegados se imiscuir em assuntos que não
interessam aos ideais precisos e definidos das associações dos ex-
combatentes. Somos brasileiros que [...] muito e muito fizeram pela
716 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

honra e soberania do Brasil, pela liberdade e direitos do homem e


das nações. Nem por isso, no entanto, podemos explorar o título
de ex-combatentes para conduzirmos os problemas magnos da
Nação, entrechocando-nos com os partidos políticos e intervindo
nas querelas internacionais. [...] Servir-se dos ex-combatentes e de
suas glórias para disputar idéias e opiniões que não solucionam os
seus males físicos e morais é crime contra a dignidade
expedicionária3.

Em contrapartida, partindo ainda mais para a vertente contestadora, os


comunistas decidiram levar tanto as problemáticas dos ex-combatentes quanto
às do Brasil para fora das associações alegando, que não bastava introduzir na
Associação as discussões sobre os problemas do país. Era preciso fazer,
também, o caminho inverso, ou seja, levar à população os problemas que
afligem os ex-combatentes. A concretização dessa postura ocorreu com o
“Desfile do Silêncio” (ou Passeata do Silêncio), organizada pela Associação do
Rio de Janeiro, em julho de 1947, possuindo como objetivo maior entregar
aos Vereadores e aos Deputados documentos com as reivindicações dos
expedicionários. O evento foi apoiado por estudantes e por parte da imprensa,
alcançando seu ápice no discurso do então presidente comunista da seção do
Distrito Federal, Sampaio de Lacerda, que em seu pronunciamento destacou-
se a luta dos expedicionários na Europa, ressaltou, porém, que agora esses
“guerreiros” cobravam seus direitos, não necessitando de favores nem de
privilégios, mas sim lutavam por justiça. A passeata despertou certa atenção
(como relatam os jornais da época) e alguns deputados e vereadores
discursaram, prometendo melhorias na situação dos ex-combatentes.
O fato é que, após a manifestação, existiu certo progresso nesse
sentido: alguns ex-combatentes obtiveram vagas no serviço público; houve,

3
Mensagem do Marechal Mascarenhas de Moraes aos Expedicionários Brasileiros. Rio de
Janeiro, 11 abril 1949. Arquivo do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra
Mundial (doravante AMNMSGM). Rio de Janeiro. Segundo informação constante no
documento, esta mensagem foi publicada em vários jornais do país.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 717

também, melhorias nos atendimentos hospitalares e maior interesse por parte


das autoridades. Porém, meses depois, os ex-combatentes voltaram ao
esquecimento de outrora, uma vez que não foi registrado um evento
semelhante. Essas manifestações não contavam com o apreço da maioria dos
associados, preocupados com o proveito político que os companheiros
esquerdistas poderiam extrair com essas manobras. Este posicionamento
amparou-se nas acusações de que as passeatas seriam demagogas, por
exporem os expedicionários necessitados e com feridas de batalhas
(mutilados) pelas ruas da cidade, em benefício de um partido político, no caso
o PCB.
Tentativas de amenizar este conflito foram feitas, buscando uma
conciliação entre os lados opostos. A Convenção criou o Conselho Nacional,
elegendo para tal um veterano insuspeito de comunismo, o cabo Oswaldo
Gudole Aranha, filho do ex-ministro do Exterior de Vargas, tendo como vice
o militante comunista Salomão Malina, mesclando ainda os demais cargos do
Conselho Nacional com “comunistas” e não-comunistas. Porém, essa
tentativa não surtiu o efeito desejado, pois, tanto dentro quanto fora da
AECB, ocorriam acusações de práticas e pregações comunistas, assim como
no Conselho Nacional e nas sedes filiadas. Um exemplo claro dessas
acusações é assim relatado por Ferraz:

[...] surgiu a idéia de fazer entre os dias 15 e 19 de novembro, uma


Convenção Nacional dos Ex-Combatentes do Brasil. Sua finalidade
principal, além de congraçar ex-combatentes da FEB, FAB,
Marinha de Guerra e Mercante, era estabelecer as estruturas
nacionais das associações e propor, para o governo do General
Dutra, medidas unificadas de amparo e readaptação dos ex-
combatentes à vida civil. A Convenção seria realizada nas
dependências do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro. Uma onda
de boatos associando a Convenção dos Ex-Combatentes com o
comunismo internacional colocou em risco a realização do evento.
No Exército e no governo Dutra, havia má vontade explícita para
com os ex-combatentes e seu congresso. Entendendo que a
718 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

convenção dos veteranos da FEB seria uma provocação ao seu


governo, Dutra não apenas não apoiou encontro, como contribuiu
para boicotá-lo. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro, alugado
para solenidades de abertura do encontro, foi negado aos ex-
combatentes na véspera do encontro. As razões não foram
expostas oficialmente, mas havia rumores que o cancelamento das
reservas se deu a suspeita de que tal encontro seria promovido
pelos comunistas. [...] Um incidente entre o ex-combatente e
presidente da associação de ex-combatentes de Porto Alegre,
Newtair Pithan e Silva, e o senador paraense e general reformado
Magalhães Barata, mostra bem o estado de ânimo em que estavam
ex-combatentes e autoridades com relação ao evento (FERRAZ,
2003, p.296).

Ao que concerne a este episódio, ao ter seu evento cancelado por “falta
de local”, uma vez que o teatro tinha sido negado, as lideranças dos ex-
combatentes dividiram-se para protestar na Câmara Municipal, na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal, destacado para protestar no senado, Pithan e
Silva, se desentendeu com Magalhães Barata, pois este último se aproximou
dos veteranos e lhes disse: “Vocês, ex-combatentes da FEB, não passam de
um bando de comunistas disfarçados. Não contem com meu apoio”. Então,
teria respondido Pithan e Silva que os expedicionários não necessitavam “do
apoio de uma barata suja que somente havia tomado conhecimento da guerra
através da Hora do Brasil”; os envolvidos chegaram às “vias de fato”.
Apesar de toda essa confusão, o evento aconteceu, mas poucos
políticos e autoridades das Forças Armadas prestigiaram, mesmo sendo
convidados; a única exceção foi o deputado do PCB Maurício Grabois,
contribuindo para aumentar a desconfiança dos anticomunistas. A tensão
entre os lados era tamanha, que algumas associações, como a de Curitiba, se
recusaram a filiar-se ao Conselho Nacional e participar das Convenções
enquanto os comunistas estivessem exercendo poder na EACB, no âmbito
externo, as pressões aumentavam cada vez mais, atrelando os ex-combatentes
com o comunismo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 719

A pressão não diminuía e a tensão só aumentava. Em 1947, quando um


grupo de oficiais militares da ativa (liderados por Humberto Castelo Branco),
assustados com o envolvimento e a força dos comunistas dentro da AECB,
começaram a planejar uma nova organização para os veteranos. Mesmo sendo
civil, o presidente do Conselho Nacional, Oswaldo Aranha, juntamente com o
oficial e deputado pelo PCB Henrique Cordeiro Oest, foram a essa reunião a
fim de convencer os oficiais de que tal cisão enfraqueceria a causa dos ex-
combatentes. Mesmo aprovada com uma esmagadora votação, essa nova
organização nunca saiu do papel.
No final de 1947, o conflito dentro da AECB atinge seu ápice quando
um dos diretores da AECB-DF e membro do Conselho Nacional, Salomão
Malina foi preso por resistir ao fechamento do jornal comunista que dirigia,
sob pena da Lei de Segurança Nacional. Lei esta que foi utilizada pelas
autoridades policiais do governo para prender suspeitos de subversão. Das
seções de São Paulo, Goiânia, Salvador, Porto Alegre e a do Distrito Federal
emergem protestos contra as prisões – Malina não foi o único expedicionário
detido, o deputado pelo PCB e Membro do Conselho Nacional Gervásio
Gomes de Azevedo também o foi. Esses protestos ficam evidentes nas
publicações do jornal Ex-Combatente:

Foi um acontecimento sem par o ato público em homenagem ao


ex-combatente Salomão Malina, realizada no dia 25 de setembro na
A.B.I. O auditório que se encontrava repleto, era pequeno para
contar o grande número de pessôas presente ao grande movimento
ora liderado pelos ex-combatentes e estudantes que, unindo-se,
iniciaram uma rigorosa campanha pró-libertação desse ex-
combatente, condenado a pena de 6 anos e 3 meses por um crime
que não cometeu. A solenidade foi dirigida pelo Presidente da
Comissão Pró-Libertação de SALOMÃO MALINA, que convidou
para participar da mesa, o Sr. Milton Elci Vaz, representante do
Conselho Nacional das Associações dos Ex-Combatentes;
Oswaldo Aranha Filho, Egídio Squeff e outros jornalistas presentes
a solenidade. Além desses, tiveram assento também à mesa,
720 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

diversos representantes da classe estudantil e o representa da


Associação dos Ex-Combatentes - Secção do Distrito Federal, Sr.
Daniel Pereira de Souza. Os trabalhos tiveram início com a palavra
do presidente da mesa, que apresentou ligeiros dados biográficos
do homenageado, enaltecendo as suas qualidades de cidadão, na
vida militar e civil, e encarecendo a necessidade dos ex-
combatentes, do povo e dos estudantes se unirem para libertá-lo da
prisão, onde se encontra injustamente. Falaram ainda, o tenente
Milton Elói e os diversos representantes das entidades que se
fizeram representar. Todos, ressaltando o heroísmo, as qualidades e
reclamando a sua imediata libertação (LIBERDADE PARA...,
1948, p.1).

Ainda em 1947, as pressões políticas em torno da AECB aumentaram,


e como consequência o presidente do Conselho Nacional, Oswaldo Aranha,
renunciou alegando sua incompatibilidade com as ideias e práticas ocorridas
na Associação, referindo-se às ações dos associados comunistas. Novas
eleições foram necessárias por conta do licenciamento do presidente da
associação fluminense e pelo fato do vice, Salomão Malina, estar incapacitado
de assumir sua função, por encontrar-se preso. Em outubro de 1947, uma
chapa única apoiada por comunistas e não-comunistas lança Humberto
Castelo Branco como presidente e Sampaio de Lacerda como primeiro
secretário. Com apenas uma legenda concorrendo, tudo levava a crer que a
eleição se desenrolaria apenas para cumprir os ritos eleitorais estabelecidos
pelos regimentos internos da Associação. Porém, de última hora, o major e
deputado recém-cassado do Partido Comunista, Henrique Oest e o civil e
militante comunista Jacob Gorender organizaram uma chapa para
concorrente, agravando ainda mais a situação. A chapa de Castelo vence por
uma margem mínima de votos, 13 votos, e presidindo a AECB-DF por quatro
meses (DULLES, 1978). A situação de conflito dentro das associações era
irreversível, tanto na seção da Capital Federal (a mais importante) quanto no
Conselho Nacional. Em 1948, novas eleições são realizadas, tendo como
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 721

vencedor, o grupo anticomunista liderado pelo coronel Delmiro Pereira de


Andrade, em detrimento da chapa comunista liderada por Henrique Oest.
O golpe derradeiro contra os comunistas na AECB foi dado no final de
1948 e 1949, nas eleições para a seção do Distrito Federal e na destituição do
então presidente do Conselho Nacional da AECB, Sampaio de Lacerda,
comunista, que é destituído por conta, de seu apoio a um Congresso, que teria
sido organizado pelos comunistas. A partir desse período as lideranças
hierárquicas das Forças Armadas participaram ativamente do processo de caça
aos comunistas, culminando no progressivo afastamento dos veteranos das
associações. Para Jacob Gorender, soldado da FEB e ativo participante da ala
comunista nas lutas da AECB, as ordens de intervenção nas associações
partiram do próprio Ministério da Guerra: “Foi uma ação mais ou menos
concertada. Eles (os oficiais superiores anticomunistas) tomaram conta das
diretorias. Desde então, as associações de veteranos se tornaram apêndices das
Forças Armadas”4.
Os comunistas, nunca foram unanimidade na AECB, mesmo sendo
assíduos membros em seu início, muitos ex-combatentes não se identificavam
com as práticas e ações desse grupo; a maioria dos associados sempre manteve
posturas mais conservadoras, na maioria das vezes, alinhavam-se à direita nas
questões políticas. O fato de os “comunistas” levarem para dentro das
associações problemas da nação e vice e versa, nunca agradou aos associados,
pelo contrário, quanto mais se acirrava a disputa pelo controle da Associação,
mais os expedicionários, alheios a essas questões, se afastavam. Muitos ex-
combatentes apenas frequentavam aquele espaço, a fim de buscar auxílio para
suas dificuldades, fossem elas físicas, psicológicas, financeiras ou até mesmo
para desfrutar do convívio social que as associações proporcionavam. A
militância comunista pouco ocultada, de alguns setores, contribuiu muito para

4
Entrevista com Jacob Gorender (FERRAZ, 2003).
722 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

a antipatia dos demais companheiros; embora tenha havido ex-combatentes


comunistas que evitaram misturar as lutas de seu partido com as dos
veteranos. Outro motivo primordial desse distanciamento foi o fato, de pouco
ter sido feito por esses comunistas em relação aos ex-combatentes
necessitados, mesmo quando ocupavam as diretorias, não se preocupando em
conquistar a maioria silenciosa de afiliados. Segundo alguns depoimentos,
vários ex-combatentes deixaram de frequentar as reuniões e as associações por
não concordarem com as práticas políticas dos dirigentes do Conselho
Nacional e de algumas seções, temendo ainda serem vistos como comunistas5.
Vencidos nas eleições do conselho, perseguidos pelas novas lideranças,
que eram atreladas à hierarquia militar (pois com o embate político, cada vez
mais oficiais da ativa começaram a se infiltrar nas associações, para controlar e
afastar os comunistas) e colocados na ilegalidade, os veteranos comunistas se
afastaram das associações (muitos desses veteranos eram vigiados pelo DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social). Esse isolamento e afastamento
dos veteranos de esquerda ficou evidente nas direções (gestões) seguintes, no
jornal Ex-Combatente, a linha editorial se alterou, tornando-se comuns artigos
que enalteciam a nova direção (conservadora) e atacavam os ex-combatentes
de esquerda:
Os problemas de nossos pracinhas com os objetivos políticos de
seu partido, e que se congratulavam com a nova fase da associação,
sem explorar as suas chagas gloriosas (do ex-combatente), e suas
misérias em benefício de um partido [...], sem distribuir volantes de
propaganda, sem passeatas para obrigar nossos mutilados a
exporem suas feridas em público sem cartazes em que se misturava
o nome dos ex-combatentes com as reivindicações de um partido
político (EX-COMBATENTE, 1949, p.1).

Os comunistas se afastaram das atividades dirigentes das associações,


uns voluntariamente, mas a maioria forçada pelas perseguições; A partir de

5
Entrevista com Boris Schnaiderman, 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 723

então, alguns continuaram frequentando as seções, outros se desligaram, o


fato é que, após 1950 não se registrou mais nenhum conflito entre esquerda e
direita nas associações, alinhando-se, essa, cada vez mais com a hierarquia das
Forças Armadas, ou seja, a um viés conservador. O conflito entre os grupos
de esquerda e de direita dos veteranos de guerra antecipou as práticas de
intimidação que seriam a base dos conflitos internos do Exército nas décadas
de 1950/1960, com o exacerbado anticomunismo dos militares, e alguns
conflitos de caráter nacionalista, até culminar com o Golpe de 64, onde alguns
ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial tiveram papel importante. As
associações de ex-combatentes existem até hoje, sendo fortemente ligadas às
Forças Armadas.

Considerações Finais

Neste trabalho, procurou-se mostrar os entraves dos veteranos de


guerra da FEB, ao retornarem para as atividades civis e militares, e quando
procurou reunir-se em associações de ex-combatentes. Tais associações, como
aqui demonstrado, tinham funções sociais, assistenciais e também políticas.
Em relação a essas últimas, os confrontos aqui analisados revelaram a clara
divisão entre veteranos comunistas e não-comunistas, e também se verificou
como as ideologias à esquerda eram fortemente combatidas no seio da
instituição militar.
Ao fim do período estudado, constatou-se a vitória da ala conservadora
das associações, responsável pela hegemonia de expressões políticas
conservadoras, que perdura até os dias de hoje, antecipando práticas e
conflitos entre essas concepções nas décadas seguintes, com destaque para os
embates no Clube Militar, até culminar na deflagração do golpe de 1964.
724 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Deixando evidente as implicações da bipolaridade ideológica, consequência da


Guerra Fria (que no Brasil foi pra lá de quente).

Referência:

Fontes Orais

Jacob Gorender. São Paulo, 30 novembro, 1999.


Neltair Pithan e Silva. São Paulo, 31 março, 2000; 7 abril, 2000.
Raimundo Paschoal Barbosa. São Paulo 7 junho, 2001
Salomão Malina. São Paulo, 29 janeiro, 2002.

Fontes Impressas

Arquivo do Conselho Nacional da Associação de Ex-Combatentes do Brasil.


Estatutos e regimentos da Associação de Ex-Combatentes do Brasil.
Coleção do jornal Ex-Combatente:
A NOSSA causa. Ex-Combatente, Rio de Janeiro, Ano III, nº 36, dez. 1949, p.
1.
LIBERDADE PARA Salomão Malina. Ex-Combatente, Rio de Janeiro, Ano 2,
nº 23, set.1948, p. 1.
Bibliografia

CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um olhar a esquerda: a utopia tenentista na


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Oposição armada aos governos militares
brasileiros (1964-1985): a trajetória do Movimento
Comunista Revolucionário (MCR)

Fabricio Trevisan Florentino da SILVA*

Introdução

D
urante os governos militares brasileiros (1964-1985), a oposição
ao regime se deu de diversas maneiras, entre elas as
fundamentadas numa resistência que agia por meio da luta
armada, composta por um grande número de organizações guerrilheiras.
Entre esses grupos armados destacamos o autodenominado Movimento
Comunista Revolucionário (MCR), fundado na cidade de Porto Alegre, capital
do Rio Grande do Sul. Tal organização tinha o intuito de se opor militarmente
ao governo, apropriando-se da concepção de guerrilha rural, ou seja, do
ideário de forma de luta realizado pelos revolucionários em Cuba, em 1959.
No entanto, sua área de atuação concentrou-se no espaço citadino de Porto
Alegre. A proposta deles partiu daquela apropriação de guerrilha rural;
entretanto, os membros do MCR têm suas origens no meio urbano,
composto, em sua maioria, de estudantes universitários, portanto, sem contato
e intimidade alguma com o espaço rural. Sobre o assunto, informamos que,
com exceção do Partido Comunista do Brasil (PC do B) que efetuou a famosa
*
Mestrando em História /UNESP/ Franca /Bolsista: CAPES. Orientadora: Drª. Márcia
Pereira da Silva.
728 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Guerrilha do Araguaia (1967-1974), a maioria das manifestações da esquerda


ocorreu mesmo nas cidades.
Tomamos como fonte as ações executadas pelo Movimento Comunista
Revolucionário. As informações do grupo foram reunidas pelos órgãos de
repressão e, posteriormente, montadas em forma de inquérito por crime
político de subversão. Depois da prisão dos militantes, foi montado o
processo-crime da organização. Objetivamos, no presente estudo,
compreender as ações guerrilheiras de resistência aos governos militares
brasileiros (1964-1985), enquanto fundamentadas no âmbito urbano, mesmo
que seus agentes defendessem arduamente a então aclamada guerrilha rural.
Foi a partir da leitura e análise da documentação que pudemos
conhecer o cotidiano e as formas de atuação do grupo guerrilheiro estudado.
Assim, procuramos nos ater às seguintes informações: de que forma a
organização foi fundada e por quem; o perfil dos fundadores, no sentido de
trajetória pessoal política dos militantes e quais suas ocupações anteriores;
como se caracterizou cada assalto e expropriação feita pelo grupo; os
objetivos das ações, enfim, como se deu a trajetória do MCR.
Analisamos o depoimento de cada testemunha e o dos militantes
presos, procurando observar uma possível manobra dos órgãos de repressão
na composição destas declarações, pois a presença da rede de informações
governamentais é clara nos interrogatórios colhidos por ocasião da
regulamentação dos processos militares. Cabe explicarmos sobre a
organização da escrita, que deveria reproduzir a fala dos réus, mas fica
evidente que os depoimentos foram construídos pelos próprios oficiais da
polícia, já que tais depoimentos eram normalmente “tomados” com agressões
físicas e “pressões psicológicas” (dificilmente os interrogatórios narrariam as
confissões tal como se apresentam no processo-crime). Observamos a
maneira pela qual o MCR fazia a propaganda revolucionária, na tentativa de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 729

expor as atrocidades do regime e, igualmente, de recrutar novos membros


para a organização. Procuramos, também, conhecer os termos utilizados pelos
órgãos de repressão para qualificar os guerrilheiros nos textos produzidos
pelos delegados do DOPS, bem como identificar a quantidade de informações
inseridas no processo-crime e que foram aparentemente colocadas ali pelos
agentes da repressão na tentativa de otimizar e/ou legitimar outras prisões.
Muitas perguntas registradas nos interrogatórios denotam, ainda, que havia
informações que já eram do conhecimento dos organismos repressivos muito
antes da prisão dos militantes de um dado grupo de esquerda.
Durante a leitura e análise da documentação, consideramos os cuidados
no trato com documentos “montados” por órgãos repressivos e com base no
autoritarismo. O processo, obviamente, expressa uma determinada visão do
governo acerca dos acusados de subversão; mas não somente isso: são
também ricos depositários do cotidiano, das crenças, valores dos grupos de
esquerda do período.
Atualmente, em virtude do aumento das possibilidades de pesquisa em
arquivos militares e demais acervos do período, multiplicaram-se trabalhos
sobre o assunto, incluindo aqueles que se utilizaram de processos-crime.
Muitos deles identificaram a crença na guerrilha rural enquanto via de
afirmação do mundo almejado pelas esquerdas. Inserido neste debate, este
trabalho abarca as manifestações armadas de esquerda no âmbito urbano, em
comparação com suas concepções teóricas de guerrilha rural. Analisar a ação
do grupo guerrilheiro MCR (que tomamos como exemplo neste estudo) no
intuito primeiro de demonstrar como os mesmos acabaram fundando um
conceito de guerrilha urbana que tinha fim em si mesmo, sobretudo em
termos de propaganda e formação de novos quadros de militantes.
730 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O contexto do período e o ideário de guerrilha rural

No ano de 1964, o Brasil sofreu um golpe de Estado que pôs fim ao


governo constitucional do então presidente João Goulart. Desde então, um
determinado projeto de país, em muito pautado pela Doutrina de Segurança
Nacional e pelos estudos da Escola Superior de Guerra (ESG) começou a ser
efetivamente implantado no Brasil.
Como mostra Maria Helena Moreira Alves (1987), na sua obra
intitulada Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), os elementos que
compunham a formação do Estado militar estavam, há muito tempo, sendo
gestados no interior das Forças Armadas. No início da década de 1960 foi
estruturado um esquema complexo de coleta de informações, começando por
“instituições civis de fachada” denominadas Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES) e, juntamente, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD) até o completo aperfeiçoamento da Doutrina de Segurança Nacional,
ocasião em que passa a ser ministrada pela Escola Superior de Guerra.
A Doutrina de Segurança Nacional trouxe a sustentação para o Estado
militar, tendo como maior expressão nacional o General Golbery do Couto e
Silva, que era o coordenador da principal tarefa atribuída ao complexo
ESG/IPES/IBAD: a de criar e implantar eficazes redes de informação,
consideradas imprescindíveis na instalação de um Estado centralizado que
funcionasse. O general Golbery foi apontado por Alves como o mais influente
teórico brasileiro do Exército. Em suas obras, grandemente utilizadas pela
ESG, ele desenvolveu o conceito de vários tipos de guerras, preocupando-se
em compor estratégias que informassem a melhor maneira de lutar contra os
“inimigos internos” e a “pressão psicológica” (SILVA, 2001).
O golpe civil-militar de 1964 teve considerável oposição, materializada
e ramificada no movimento estudantil, sindicatos, partidos clandestinos e
organizações guerrilheiras. Inúmeros grupos armados também fizeram
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 731

oposição aos governos militares, principalmente após a implantação do AI-5,


pois, com o endurecimento do regime, a repressão tornou-se mais incisiva e
violenta, levando milhares de opositores de esquerda e os nacionalistas a
consolidarem a ideia de que só seria possível lutar contra a ditadura por meio
das armas, ou seja, construindo grupos de guerrilheiros.
As ações armadas se multiplicaram depois do AI-5. De 1968 até
meados de 1974 houve inúmeras investidas tanto no meio urbano quanto no
meio rural, e as cidades foram palco da maioria das manifestações
guerrilheiras. Neste sentido, percebemos que a elaboração para a luta armada
no Brasil se deu pela falência do caminho pacífico para a revolução, já que a
maioria dos militantes não mais acreditava nessa hipótese, com exceção do
Comitê Central do PCB. Os grupos dissidentes do PCB formaram outras
organizações-matrizes, tais como a Ação Popular (AP), o Partido Comunista
do Brasil (PC do B) e a Política Operária (POLOP).
Dessa forma, a luta armada contra os governos militares tornou-se
imperiosa, pois as Forças Armadas já estavam estabelecidas no poder, já que
no momento do golpe de Estado as esquerdas não combateram os golpistas,
como supostamente estava planejado pelos nacionalistas ligados a Leonel
Brizola e aos camponeses de Francisco Julião.
As esquerdas não conseguiram estruturar uma união afinada para lutar
contra o regime, em virtude da pluralidade ideológica de questões partidárias e
doutrinárias, influências teóricas do próprio país ou de estrangeiros, maneiras
organizativas e formas de luta distintas, limitações espaciais e temporais, etc.
Nesse sentido, ainda que não tivessem se unido para combater o regime
militar, as esquerdas tinham divergências e convergências nos projetos de
guerrilha que foram elaborados pelos diferentes grupos armados. A relação
dos grupos com seus respectivos membros já foi apontada por Marcelo
Ridenti (1993).
732 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Uma grande parcela de guerrilheiros, a exemplo do vasto material


teórico que produziram e/ou divulgaram, concebia a luta no campo, também
chamada de guerrilha rural, como a única via de revolução para o país. Entre
os grupos que assim pensavam estava a Ação Libertadora Nacional (ALN) e
também os grupos de cunho nacionalista, como o Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR) que buscava uma espécie de “guerra para a libertação
do país”.
Um aspecto essencial do ideário guerrilheiro, considerado quase que
“senso comum”, era a concepção da guerrilha originada e estruturada no
campo, no meio rural. Tais concepções eram inspiradas em modelos
estrangeiros, a exemplo da Revolução Cubana, ocasião em que as formas de
luta revolucionária foram fundamentadas no “guevarismo”.
O conhecido guerrilheiro “Che” Guevara considerava o foco
insurrecional uma das três principais lições da tomada do poder em Cuba.
Não seria preciso que estivessem reunidas todas as condições necessárias para
a efetivação da revolução, já que focos de manifestações supririam tal lacuna.
Encontramos em Guevara a raiz daquilo que Régis Debray tornaria
mundialmente conhecido como a “teoria do foco” ou “foquismo”. Segundo a
mesma, grupos revolucionários se apossariam de lugares estratégicos
espalhados por todo país. Apoiariam uns aos outros e passariam, cada vez
mais, a conquistar outros terrenos e maior número de adeptos. Desta forma,
um grupo de homens atuaria entre os camponeses numa região propícia por
apresentar melhores condições de defesa e dali espalharia para outras regiões,
criando os fatores necessários para a revolução: estava iniciada a luta. O foco
guerrilheiro poderia, por meio da ação, criar as condições subjetivas para o
andamento da revolução, ou seja, era preciso que a massa de trabalhadores
oprimidos desejasse-a tanto quanto os revolucionários. Assim, a “revolução”
contra o militarismo viria do espaço rural (SILVA, 2005).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 733

Outra concepção teórica que embalava os grupos guerrilheiros vinha de


Mao Tsé-Tung e do “maoísmo”. Nesse caso, a ideia era:

[...] iniciar a “guerra popular prolongada” pela organização dos


camponeses e da guerrilha rural, sem descartar as lutas de massas
nas cidades e as ações de guerrilha urbana. A idéia era aproveitar
“as condições favoráveis que as zonas rurais oferecem, e
congregando no Exército Popular as grandes massas exploradas no
campo, a guerra popular permitirá a libertação paulatina de vastas
regiões [...] quando o Exército Popular, a partir de suas bases de
apoio, desfechar o ataque contra os centros urbanos, as forças
revolucionárias nas cidades desencadearão a insurreição urbana
para o aniquilamento total do inimigo” [...] (RIDENTI, 1993,
p. 44-45).

Ambas as concepções teóricas polarizaram o ideário dos grupos


armados. Entretanto, mesmo as organizações que se autointitulavam
essencialmente “foquistas”, como a Dissidência do Rio de Janeiro (DI-RJ) e o
Comando de Libertação Nacional (COLINA), e também os que se
declaravam puramente “maoísta”, como a ALA Vermelha do PC do B,
tinham elementos com diversas posições híbridas, como podemos perceber
em um documento da ALA:

A eclosão da luta armada necessita da existência de uma força


armada regular no campo, clandestina, que possa iniciar o choque
aberto com o inimigo. Para garantir a sobrevivência desse
contingente e permitir a continuidade de sua ação, é necessário
contar com amplo apoio das massas locais e do país. Esse método
de eclosão da luta armada se constitui no Foco Revolucionário
(REIS FILHO; SÁ, 1985, p. 129 apud RIDENTI, 1993, p. 45).

Chamou-nos a atenção o fato de que, independente das nuanças que


pudesse ganhar, uma coisa era comum entre os grupos que aturam contra os
governos militares brasileiros na segunda metade do século XX: a presença da
questão rural, a necessidade de iniciar a guerrilha no campo. Até mesmo a
734 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

própria ALN de Carlos Marighella, cujas ações revolucionárias eram


supervalorizadas em detrimento da aproximação e do recrutamento das
massas, colocava a importância da guerrilha rural como prioridade, mesmo
apresentando algumas revisões na “teoria do foco”, como mostra Jacob
Gorender:

Marighella se declarou contrário aos focos e, inspirado na


experiência histórica brasileira (das lutas contra os holandeses ao
cangaço de lampião), apresentou a tarefa das colunas guerrilheiras
móveis, que se deslocariam contando com pontos de apoio de
antemão assentados. (GORENDER, 1987, p. 97-98).

No tocante a essa prioridade das organizações armadas iniciarem o


processo revolucionário no meio rural, é imprescindível ressaltar que os
militantes que incorporaram as colunas guerrilheiras acreditavam nisso,
incluindo os estudantes. Dessa forma, as manifestações nas cidades foram
compreendidas como temporárias e úteis, desde que dessem condições para as
ações no campo. Os assaltos a bancos, por exemplo, objetivavam respaldar
financeiramente a guerrilha rural, como comprar uma propriedade, uma
fazenda ou similar, para iniciar a organização e estruturação da guerrilha.
A guerrilha rural não se efetivou como almejavam os grupos
guerrilheiros, excetuando casos isolados e até hoje não difundidos, como a
famosa Guerrilha do Araguaia, idealizada pelo PC do B. Acreditamos que as
ações urbanas acabaram, a exemplo da propaganda revolucionária que
divulgava a luta contra a ditadura para as massas supostamente “alienadas”, a
soltura de presos políticos e os sequestros de embaixadores, entre outros,
materializando o ápice das movimentações contra a direita no Brasil dos
governos militares.

Depois do fechamento político imposto pelo AI-5, no final de 1968,


com as ondas de prisões, com o cerco policial aos guerrilheiros e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 735

com a imersão geral das esquerdas na “luta armada” e o


distanciamento da implantação da almejada guerrilha rural, as teses
sobre o papel das ações armadas urbanas foram deixando de vinculá-
las apenas à preparação da guerrilha no campo. Começaram a
ocorrer ações propagandísticas da violência revolucionária. [...] a
guerrilha urbana tinha também “uma função de agitação e
propaganda. [...] por exemplo, colocando no ar manifestos
revolucionários através da tomada de rádios, fazendo planfetagem
nas portas de fábricas por intermédio de grupos armados [...]
(RIDENTI, 1993, p. 49).

Convém notar que quando os grupos guerrilheiros foram


desmantelados pela repressão, a almejada guerrilha rural sequer havia dado
seus primeiros passos. É verdadeira a afirmação de que uma parcela
significativa de militantes não tinha nenhuma intimidade com o ambiente
agrário, sequer imaginava morar em “fazendas”. Estes se aproveitavam dos
assaltos e sequestros não só para a pretensa preparação para a luta no campo,
mas, sobretudo, para a propaganda e a manutenção das esquerdas
revolucionárias.
Consideramos que a análise do processo-crime que envolveu os
integrantes do Movimento Comunista Revolucionário (MCR) em muito
contribui para o levantamento do cotidiano das organizações de esquerda no
âmbito urbano. Os mesmos protagonizaram inúmeras ações, sobretudo
assaltos, até que a organização fosse desmantelada pela repressão.

O Movimento Comunista Revolucionário: Ações, Práticas, Cotidiano e

Identidade

A história do Movimento Comunista Revolucionário (MCR) foi construída


e analisada por meio do processo-crime (documentação selecionada por nós)
que envolveu os membros do grupo guerrilheiro.
736 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O processo-crime1 está estruturado em seis volumes, totalizando mais


de seis mil páginas que englobam denúncia, auto de corpo de delito, apreensão
de material dito subversivo por ocasião de desmantelamentos de aparelhos,
testemunhos dos denunciados, declaração de testemunhas, defesa, declaração
de advogados, parecer do júri e sentença.
As páginas do processo revelam ações e ambições da organização em
questão, bem como a concepção política do governo, tendo em vista a
organização do processo que revela, entre outras coisas, a aplicação da justiça.
O primeiro volume abarca denúncia de membros do MCR e da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) (o MCR teve auxílio da VPR
durante sua formação; aspecto que abordamos mais adiante), bem como os
demais elementos do processo que compõe a acusação. É nesse primeiro
volume do processo-crime que encontramos maiores informações acerca das
atividades executadas pelo grupo, ou seja: auto de prisão em flagrante delito;
auto de apreensão de material subversivo; fotografias de “aparelhos” e
materiais apreendidos; denúncia; declaração dos envolvidos e das
testemunhas; e demais documentos e/ou peças do processo produzido pela
Justiça Militar com intuito de demonstrar a culpabilidade dos envolvidos.
Dessa forma, é a esse volume (composto de 412 páginas) que mais nos
atemos.
As demais partes do processo-crime compõem cinco volumes de
apelação que trazem, tanto a afirmação da denúncia e das respectivas e
possíveis provas do delito (e/ou crime), bem como a defesa e a argumentação
da esquerda (que todos sabemos que reafirma a versão oficial, dada à violência

1
Os volumes do processo que envolveu os membros do MCR estão arquivados no
Supremo Tribunal Militar em Brasília/DF e disponíveis para pesquisa por todos que
conseguirem autorização do general que preside o órgão. Desde que autorizado, o
pesquisador pode reproduzir a documentação. Assim, uma cópia de todo o processo
encontra-se no arquivo pessoal da Profª Drª Márcia Pereira da Silva (nossa orientadora),
adquirido por ocasião da confecção do projeto para a tese de doutoramento e não utilizado.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 737

dos inquéritos), ou seja, são nesses cinco volumes que encontramos a parte
predominantemente judiciária do processo. No conjunto, as peças do
processo, apesar de autoria do governo, revelam muito mais sobre o cotidiano
das esquerdas do que sobre a história da direita no Brasil.
Convém salientar que na análise do processo-crime não nos
preocupamos com os aspectos formais e/ou legais presentes, principalmente,
nesses cinco volumes de apelação (já que o objeto deste estudo não é a
aplicação da Justiça Militar), mas com os detalhes sobre as atividades armadas
e urbanas efetivadas pelo grupo. Tais atividades foram descritas no primeiro
volume do processo com riqueza de detalhes, já que o interrogatório baseava-
se mais nas informações que os órgãos de repressão já tinham dos militantes
do que no próprio testemunho de cada um deles colhido por ocasião da
formalização do documento. Muitos já tinham sido torturados e
“interrogados” antes da abertura oficial do processo. A verdade é que os
oficiais da repressão reuniam tudo o que já sabiam sobre a organização, com
uma ou outra informação colhida no momento, redigiam as declarações e
forçavam a assinatura.
Construídos ou não pelos denunciados, as falas registradas no
documento revelam detalhes do cotidiano da esquerda em movimentos
armados e urbanos de oposição à ditadura militar.
O Movimento Comunista Revolucionário foi idealizado e fundado no
ano de 1970, em Porto Alegre, por Antônio Pinheiro Sales, o “Ferreira”
(codinome usado para realizar as ações expropriatórias)2. Antônio Sales era
professor, formado em Sociologia, e cursava o 4º ano de Direito. Ele militava
no Partido Operário Comunista (POC) (organização clandestina armada)
sendo que, no final de 1969, foi expulso do POC por divergências
administrativas, junto com seu amigo Paulo Walter Radtke, o “Matias”. Paulo
2
A partir deste momento, todos os nomes próprios que estiverem entre aspas, são
codinomes que os guerrilheiros usavam para praticar as ações revolucionárias nas cidades.
738 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Radtke foi uma espécie de cofundador do MCR, sendo “Ferreira” e “Matias”


os primeiros membros e os que mais atuaram nas ações do grupo.
Antes de Sales e Radtke se estabelecerem definitivamente no estado do
Rio Grande do Sul no início de 1970, ambos, mesmo após a expulsão do
POC, permaneceram ainda por um tempo na cidade São Paulo, quando
“Matias” viajou até Porto Alegre e iniciou contatos com os militantes da
Vanguarda Popular Revolucionária. Dessa forma, Antônio e Paulo passaram a
residir no sul do país em “aparelhos” (os aparelhos eram lugares, geralmente
casas ou apartamentos, onde alguns militantes moravam e/ou guardavam
posses da organização, tais como armas, munição, documentos do grupo e
também dos militantes, dinheiro e objetos expropriados, etc e também onde
poderia haver reuniões com os membros) da VPR onde ficaram um tempo
relativamente curto.
“Ferreira” e “Matias”, ambos expulsos do POC, conseguiram
estabelecer conexão com a Vanguarda Popular Revolucionária, sendo possível
atuar nessa organização em que os comandantes regionais tinham contato
direto com o capitão Carlos Lamarca. Antônio Sales (o “Ferreira”) optou
então por instituir um novo grupo guerrilheiro que foi o Movimento
Comunista Revolucionário.
Mas quais foram os motivos da fundação desse novo grupo? Na
verdade, várias dissidências aconteceram por motivos semelhantes. De uma
dissidência da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares)
surgiu a VPR; do PCB surgiram inúmeras dissidências, tais como a ALN de
Carlos Marighella, o PC do B, sendo oriundo do mesmo, a facção
denominada ALA Vermelha; o próprio POC é proveniente da POLOP; entre
outros. As causas de todas as fragmentações nos partidos e organizações são
de tônica teórico-metodológica dissolvida na prática da luta revolucionária
armada ou reformista não armada.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 739

Podemos perceber a escolha de “Ferreira” por formar uma nova


organização no registro de sua declaração ao Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) inserida no processo-crime do MCR: “A V.P.R.,
organização de que o declarante diverge em questões de fundo, [...]”. No caso,
apenas para ratificar, a tal “questão de fundo” se fundamenta pela
discordância da teoria e prática revolucionária de Antônio Sales para com o
modelo da VPR3.
Apesar das divergências teóricas de Sales para com a VPR, a
organização de Carlos Lamarca forneceu auxílio material para a construção do
MCR; ambas as organizações agiram, muitas vezes, em conjunto. Nesse
sentido, no momento em que o MCR estava relativamente inserido na luta
armada, conquistando aos poucos certa independência da VPR, seus membros
foram presos pela repressão. Portanto, o MCR foi desmantelado ainda em
processo de construção pela polícia política.
O Movimento Comunista Revolucionário realizou, ao todo, sete
operações em Porto Alegre e em cidades do interior do Estado do Rio
Grande do Sul. Em todas as ações que o MCR promoveu, membros que
integravam a VPR também participaram conjuntamente, o que permitiu ao
DOPS gaúcho acusar o MCR de ser uma célula da VPR, e não um grupo
independente.
A primeira ação executada pelo MCR e a VPR ocorreu na noite do dia
26 de julho de 1970, na cidade de Gramado, interior do Estado do Rio
Grande do Sul. A proposição desta operação era expropriar dinheiro do
Banco do Brasil, sequestrando o gerente e o subgerente, levando-os até o
Banco para que abrissem o cofre. Assim, formaram dois grupos que,
simultaneamente, se dirigiram até a residência destes bancários para aplicar a
operação. A reunião de elaboração do plano de execução foi feita num
3
Arquivo Público do Supremo Tribunal Militar - APSTM. Processo 39.769 – Apelação, 1°
vol, p. 176.
740 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

aparelho da VPR; neste exato momento, “Ferreira” e “Matias” fundaram o


MCR, caracterizando-o como um grupo, teoricamente, independente da VPR.
Os grupos formados para tal operação foram estabelecidos da seguinte
maneira: o primeiro tinha responsabilidade com o gerente (Nestor Streb) e foi
composto por Paulo Walter Radtke, o “Matias”; Carlos Roberto Serrasol
Borges, o “Breno” e José Clayton da Silva Vanini, o “Raimundo” (os dois
últimos são da VPR). A segunda facção que iria sequestrar o subgerente (Ivo
Sippel), compunha Antônio Pinheiro Sales, o “Ferreira”; Luiz Carlos
Dametto, o “Braga” e Edemar Meimes, o “Joaquim” (apenas o primeiro era
do MCR).
Foram usados dois veículos de marca Volkswagen, um de propriedade
de um militante da VPR que não participou desta ação – Airton Antonio
Castagna, o “Bruno” –, e outro de propriedade da própria Vanguarda Popular
Revolucionária, apelidado de “cancheiro”. O “cancheiro” foi utilizado em
todas as expropriações feitas por ambas as organizações. As armas usadas
foram de cano curto, tais como revólveres calibre 32, com exceção de uma
metralhadora (na verdade, trata-se de uma submetralhadora I.N.A., calibre
.45ACP, utilizada pelo Exército Brasileiro entre 1950 e 19724.
O grupo que foi até a residência do gerente não obteve o êxito
esperado. Adentrou a residência de forma relativamente fácil, como podemos
aferir em um trecho do depoimento de Nestor Streb, o gerente do banco:

[...] quando ouviu o tilintar da campainha, levantou-se e foi até a


porta a fim de atender, deparando-se com um indivíduo, baixo,
4
A submetralhadora INA possui uma cadência de cerca de 600 tiros por minuto; não tem
dispositivo de tiro seletivo e funciona com o princípio de ferrolho (culatra) aberto (embora
a sua relativamente baixa cadência de tiro permita que um atirador, com certo treino, dê
rajadas curtas; basta, para isso, ter alguma intimidade com o gatilho da arma). A arma
também não permite o disparo com uma só mão: uma tecla de segurança, posicionada
junto ao retém do carregador, tem que ser pressionada com a outra mão, obrigatoriamente,
para que a arma dispare. O peso da arma era de 3,400 kg, comprimento total de 74,9 mm e
comprimento de cano de 214 mm.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 741

moreno, forte, bem barbeado, bem vestido e trazendo um pacote


na mão, dizendo que havia, recebido do gerente da agência centro
de Porto Alegre, quando o declarante abriu “meia porta”, para
receber o tal pacote, o indivíduo empurrou-a (a porta) derrubando-
o de encontro a uma Rádio Eletrola que havia no canto da sala
(ante sala) e de imediato, empunhando um revólver calibre 32,
colocou-o sôbre seu rosto, mandando-o que ficasse quieto.
(APSTM. Processo 39.769 – Apelação, 1° vol, p. 380).

Apesar de tal facilidade para conseguir entrar, a esposa de Nestor Streb,


Nilse Ria Streb, ficou muito nervosa com a situação, sendo que um deles, o
único que permaneceu com máscara (meias de mulher), tentou em vão
inúmeras vezes fazer com que Nilse se acalmasse e ficasse quieta, mas ela
continuou gritando com guerrilheiros para que eles fossem embora.
Dada a situação, “Matias”, “Breno” e “Raimundo” foram embora sem
levar nenhum pertence e comunicaram, por transceptores, ao outro grupo que
não lograram sucesso na operação.
Concomitantemente, na residência do subgerente Ivo Sippel, o grupo
formado por “Ferreira”, “Braga” e “Joaquim” também não obteve êxito.
Entrou na casa do subgerente de forma semelhante, só que, neste caso, o
bancário não tinha em seu poder as chaves do Banco (estavam na residência
do gerente). Apesar da tentativa frustrada, as possíveis vítimas não chamaram
atenção suficiente para a chegada da polícia e/ou da repressão. O grupo
amarrou a todos (o bancário, esposa, filhos e empregada) antes de saírem.
Também não levaram nenhum pertence que pudesse contribuir com as
organizações.
É importante ressaltar que, mesmo não obtendo sucesso, a operação
teve o comando do “Ferreira” do recém fundado MCR, e auxílio da VPR.
O segundo conjunto de expropriações foi realizado no dia 13 de agosto
de 1970, simultaneamente, em duas empresas de cigarros. Uma delas era a
Companhia de Fumos Santa Cruz e a outra era a Fábrica de Cigarros Flórida.
742 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Novamente, foram formados dois grupos englobando militantes de ambas as


organizações guerrilheiras em questão.
O grupo que atuou no assalto à Companhia de Fumos Santa Cruz foi
composto pelo “Ferreira”, “Breno”, “Bruno” e dois integrantes da VPR que
ainda não foram citados, “Araújo” (Diógenes Sobrosa de Souza) e “Olavo”
(Jorge Sobrosa de Souza). Estes dois últimos eram irmãos.
Para o assalto, roubaram um automóvel Corcel dois dias antes da ação e
trocaram as placas do carro, visando dificultar o reconhecimento do mesmo.
Os guerrilheiros estavam armados com a submetralhadora INA, pistolas
automáticas Mauser (usadas pela polícia brasileira até a década de 1970) e
revólveres.
Este assalto também não foi bem sucedido. No momento em que os
militantes armados invadiram a fábrica para expropriar toda a quantia do
cofre, o gerente Rogério Freitag não tinha em seu poder as chaves do mesmo.
Dessa forma, para não irem embora sem levar nada, os guerrilheiros
obrigaram os operários presentes a entregar todos os seus pertences.
Antes de fugirem, os revolucionários jogaram panfletos intitulados “ao
povo de Porto Alegre – MCR – VPR”, como uma forma demonstrativa de
justificar e explicar aos operários os motivos do assalto. Entretanto, como não
foi possível expropriar o dinheiro patronal, a ação perdeu em credibilidade. A
imprensa aproveitou da situação para desmoralizar o movimento contra os
governos militares. O DOPS gaúcho fez questão de anexar ao processo-crime
recortes de jornal impresso de matérias que criticavam e condenavam tal ação
do MCR e da VPR.
Seguem dois excertos, a título de exemplificação:

O desespero é tanto, continua, que nem mesmo os operários são


agora poupados. Ainda nesse último assalto, por exemplo, simples
trabalhadores foram obrigados a entregar seu dinheiro. Até mesmo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 743

um operário que passava pela frente da firma assaltada foi


despojado de sua pasta. Os terroristas afirmam que os seus
movimentos visam a beneficiar os operários, mas eles próprios se
desmentem roubando as minguadas economias dos trabalhadores e
contra eles praticando violências (Jornal Correio do Povo, 15 de agosto
de 1970).

O que os “festivos assaltantes” fizeram não é digno nem de ladrão


comum, ainda mais de quem se diz “lutador pela grande causa da
libertação...” – Roubar dinheiro, o dinheirinho suado, de modestos
operários é mais do que um crime, é uma infâmia! [...] Onde está
aquela ênfase que os comunistas e comunistóides sempre dão
quando se referem às classes trabalhadoras? – Como justificar a
“expropriação” do dinheiro dos operários? – Ou será que tais
operários servem também às incursões do “espoliativo capitalismo
estrangeiro”? [...] Quero ver agora como é que vão explicar ou
justificar o roubo escancarado aos minguados cruzeirinhos dos
operários da Santa Cruz. E se não fora só o roubo, ainda o tiro
quase no rosto de um trabalhador, só porque não tinha tanto
dinheiro quanto esperavam os delinqüentes [...] (Jornal Correio do
Povo, 16 de agosto de 1970).

Em virtude dessas acusações, o MCR e a VPR enviaram uma carta


justificando aos operários os motivos e a quantia em dinheiro que fora
retirada dos mesmos, por meio do Jornal Zero Hora; deixaram na redação o
pacote (justificativa e dinheiro). Abaixo, trechos da referida carta:

Estamos mandando esta cartinha aos companheiros, para


explicarmos melhor o ocorrido, quando da desapropriação que
pretendíamos executar, do dinheiro arrecadado pelos seus patrões.
Deixamos claro aos companheiros que o dinheiro que queríamos
não era o de vocês, que são funcionários e lutam arduamente pela
sobrevivência. Só levamos o dinheiro e certos pertences porque
circunstâncias da hora, exigiram que assim o fizéssemos. [...]
Podem ver companheiros, enquanto vocês sofrem caladinhos,
passando privações, eles nada fazem contra os companheiros,
porque é isto que interessa aos patrões e ao governo, explorar sem
ter problema nenhum. Mas para nós que já nos rebelamos contra
esta situação, eles põem a polícia a nos caçar; massacram e
torturam os nossos companheiros que se encontram presos. E
mentem descaradamente para a imprensa, quando são perguntados
pelas torturas que existem em todo o Brasil. Mas um dia, isto tudo
744 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

vai mudar, e é lutando que se muda este estado de coisas. [...]


Esperamos a compreensão dos companheiros, e pedimos desculpas
pelo acontecido mais uma vez. [...]. (APSTM. Processo 39.769 –
Apelação, 1° vol, p. 313.).

Houve outra carta das organizações dirigida aos funcionários da


Companhia de Fumos Santa Cruz, pois os órgãos de repressão afirmavam que
os guerrilheiros não haviam devolvido todo o dinheiro e que, supostamente,
faltava uma parte da quantia. Dessa forma, o MCR e a VPR se justificaram:

Estamos deixando em mãos dos companheiros a quantia de 609,54


cruzeiros e mais um comunicado, que pedimos seja lido por todos
os companheiros. Como os companheiros sabem, telefonamos
dizendo que devolveríamos o dinheiro obtido dos companheiros, o
que foi feito sábado pela manhã, quando telefonamos para o Jornal
Zero Hora e indicamos o local onde estava o dinheiro. Mas o
dinheiro e os pertences que ali também estavam foram remetidos à
polícia, e esta diz que não entregamos todo o dinheiro obtido dos
companheiros. Para evitar nova confusão resolvemos enviar o
dinheiro que a polícia diz faltar, diretamente. Pedimos novamente
desculpas aos companheiros pelo acontecido [...] Estamos é contra
os patrões e os donos do dinheiro, contra aqueles que exploram o
trabalho de vocês. Mais uma vez pedimos desculpas. E aceitem a
nossa saudação revolucionária [...]. (APSTM. Processo 39.769 –
Apelação, 1° vol, p. 312)

A respeito dos panfletos, a confecção deles, em princípio, era feita por


Mailde Cresqui, a “Chênia”, que, juntamente com o “Ferreira”,
mimeografavam em papel de gelatina5. Posteriormente, “Ferreira” passou a
fabricá-los sozinho nos aparelhos do Movimento Comunista Revolucionário.
“Chênia” serviu de apoio ao MCR por pouco tempo, todavia, foi indiciada
pela Justiça Militar como integrante do grupo. Este assalto na Companhia de

5
O papel de gelatina é utilizado na técnica impressão de foto criada por Peter Mawsdley
em 1973. Este papel consiste numa camada adesiva de gelatina transparente que fixa os sais
de prata no papel.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 745

Fumos Santa Cruz também foi coordenado e liderado por Antônio Pinheiro
Sales.
O outro grupo que no mesmo dia (13 de agosto de 1970) fez a
expropriação da Fábrica de Cigarros Flórida obteve êxito acima do esperado.
Compuseram esta facção os seguintes guerrilheiros: o comandante da
operação, “Braga”; o único do MCR, “Matias”; o “Joaquim” e os ainda não
mencionados Antônio Carlos de Araújo Chagas, o “Beto” e Carlos Alberto
Tejera de Ré, o “Danilo”. O carro utilizado para esta operação foi o já
referido “cancheiro” e as armas, as mesmas que o outro grupo utilizou na
Companhia de Fumos Santa Cruz.
No momento em que chegaram à Fábrica de Cigarros Flórida, os
militantes armados conseguiram, rapidamente, render todos os funcionários e
expropriar do caixa da empresa uma quantia relativamente alta, e não levaram
os pertences dos trabalhadores da fábrica. O dinheiro obtido neste assalto
ficou apenas para a VPR, que manteve o apoio necessário para a manutenção
e crescimento do MCR.
A terceira operação em que o MCR esteve envolvido ocorreu no dia 29
de agosto de 1970. Nesta, a organização comandada por “Ferreira”
incorporou um novo militante: José Angeli Sobrinho, o “Meirelles”.
Este assalto foi realizado na Firma Oficina Precisão, mais conhecida
por Caça e Pesca. Havia três pessoas na loja: dois proprietários (um casal) e
uma faxineira. Todos foram rendidos e amarrados com cordas pelos militantes
armados. A operação durou poucos minutos e os guerrilheiros conseguiram
obter nove revólveres calibre 23; três espingardas; uma carabina (arma
semelhante a uma espingarda, mas com comprimento reduzido e usada como
arma de caça) e dez mil e cem cartuchos calibre 38 e 32. No assalto, utilizaram
pistolas, revólveres e dois automóveis, o famoso “cancheiro” e o outro
Volkswagen do militante “Bruno”. Participaram desta expropriação, além de
746 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“Bruno”, o “Ferreira”, “Matias” e “Meirelles”, do MCR e “Beto”, “Joaquim”


e “Breno”, da VPR. Todas as armas e munições apanhadas foram levadas a
um aparelho da Vanguarda Popular Revolucionária.
A quarta expropriação foi realizada na madrugada do dia 4 de setembro
de 1970, quando seis militantes armados de pistolas e revólveres, usando
lenços para cobrirem a face (algo raro de acontecer, já que na grande maioria
das ações, os guerrilheiros não se preocupavam em esconder o rosto), três no
“cancheiro” e os outros três a pé chegaram ao Posto de Estacionamento
Antão Farias. Com o pretexto de abastecer o veículo, renderam o funcionário
de plantão e levaram dois automóveis que estavam estacionados no local, e
um deles foi utilizado na operação seguinte. Da iniciativa participaram
“Matias”, “Breno”, “Joaquim”, “Bruno”, “Braga” e o mais novo integrante do
MCR, com apenas 17 anos, César Cresqui, o “Zeca”. Este último era irmão de
“Chênia” que ajudou “Ferreira” a mimeografar os panfletos distribuídos em
algumas ações expropriatórias e também alugou uma casa para que ele
pudesse residir por algum tempo. É imprescindível ressaltar que, pela primeira
vez, o comandante e fundador do Movimento Comunista Revolucionário não
participou da operação.
A quinta ação se deu no dia 8 de setembro de 1970; o local assaltado foi
S.A. Moinhos Riograndenses (SAMRIG), uma empresa que produzia óleo de
soja e que, atualmente, faz parte do grupo transnacional Bunge Alimentos e
Fertilizantes. O grupo formado por integrantes do MCR e da VPR,
comandados por “Ferreira”, invadiu o escritório da SAMRIG, armado de duas
submetralhadoras INA, revólveres e pistolas, submeteu os funcionários e
forçou o tesoureiro Valter Alves Campelo a entregar toda a quantia em
dinheiro que estava no cofre. Angariado o dinheiro, os revolucionários
distribuíram panfletos propagandísticos sobre as causas que motivaram a
expropriação e, abandonando o local, executaram alguns disparos para cima.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 747

Os veículos usados no assalto foram o “cancheiro” e um dos automóveis


expropriados quatro dias antes do posto de estacionamento.
Acreditamos ser essencial a reprodução do conteúdo dos panfletos que
foram divulgados nesta expropriação, pois os mesmos demonstram a forma
como os guerrilheiros divulgavam e abordavam o movimento de esquerda
para os operários. O panfleto era dirigido à população de Porto Alegre e
assinado pelo Movimento Comunista Revolucionário e pela Vanguarda
Popular Revolucionária:

Enquanto a gorilada da Ditadura tenta enganar a população, com


as suas comemorações da “INDEPENDÊNCIA DA PÁTRIA”,
nós continuamos a nossa longa luta contra todas as formas de
exploração e de opressão. A casa de armas e munições que há
pouco desapropriamos, e esse dinheiro que agora expropriamos da
burguesia, tem como fim o fortalecimento das vanguardas
revolucionárias do proletariado, dos trabalhadores do campo e
todos os setores explorados por esse regime ditatorial. Nesta
Semana da Pátria intensificamos as nossas ações, certos de que essa
é uma das maneiras de efetuarmos a nossa comemoração e
assegurarmos a continuidade da luta que há de culminar com a
grande vitória que será comemorada pelas massas exploradas e
oprimidas. – Pela revolução dos trabalhadores. – Ousar lutar, ousar
vencer. (APSTM. Processo 39.769 – Apelação, 1° vol, p. 398)

Enfatizamos que essa foi a primeira vez em que a divisão do dinheiro


obtido com as ações foi equitativa para as organizações. Percebemos, neste
momento, a ascensão do MCR no tocante à importância do grupo dentro das
operações expropriatórias realizadas com a VPR.
A penúltima ação ocorreu no dia 27 de novembro de 1970, na
Distribuidora e Representações Ltda, mais conhecida como Distribuidora de
Bombons Lacta. O único membro do MCR que participou desta operação foi
o “Meirelles”. A expropriação logrou êxito, pois foi possível angariar todo o
dinheiro do cofre e alguns documentos e objetos da empresa, no qual a
organização fundada por “Ferreira” ficou com mais da metade do valor.
748 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A última ação expropriatória foi realizada no dia 10 de dezembro de


1970, em uma agência do Banco Itaú América S.A., localizada no Hospital
Nossa Senhora da Conceição. Esta operação foi planejada por um longo
período, em virtude da complexidade estrutural que o local apresentava.
Inúmeros militantes (de ambas as organizações) fizeram várias sondagens das
condições externas e internas do local, tais como: se haviam e quantos eram
os seguranças; conversaram com algumas enfermeiras tentando obter alguma
informação que pudesse contribuir para a elaboração da ação etc. O
planejamento teve como “cabeças”: “Ferreira”, “Meirelles” e “Braga”, o
último da VPR.
Foram estruturadas três equipes, sendo uma comandada por “Ferreira”
e composta por “Olavo” e “Breno” da VPR, “Zeca” e “Prisco” do MCR, e
este último era um novo integrante da organização. Esta equipe ficou
encarregada de entrar no interior do hospital; “Ferreira” permaneceu na porta,
impedindo a entrada e a saída de pessoas; “Olavo” pegou o dinheiro do caixa
da Farmácia; “Breno” e “Zeca” pegaram o dinheiro do caixa do Hospital e
“Prisco” cortou os fios que ligavam o PABX.
A equipe responsável pelo assalto ao Banco Itaú América, agência
dentro do referido Hospital, foi liderada por “Meirelles”, os outros
participantes, membros da VPR, foram: Marco Antônio Lima Dourado, o
“Orlando”; “Joaquim” e “Danilo”.
A terceira equipe comandada por “Braga” foi composta por “Araújo”,
“Raimundo”, Isko Germer, o “Camilo” e o único do MCR, “Lídio”. Este
grupo ficou responsável pelas tarefas fora do Hospital, tais como fazer a
segurança e angariar as chaves de todos os veículos que chegavam ao local
para evitar uma possível perseguição.
Os catorze guerrilheiros estavam armados de revólveres, pistolas e
submetralhadoras INA; nenhum deles estava mascarado ou tentando
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 749

esconder a face. Podemos apontar, sem delongas, que tudo o que foi
planejado foi executado. Mas “Breno”, no momento da fuga, quando foi subir
num dos veículos já em movimento, caiu (literalmente) ferindo a perna direita
com estiramento do nervo ciático. Ele foi levado para um aparelho do MCR e
medicado pelo militante da mesma organização chamado Brilo Kan-Iti Suzuki,
o “Salvador”, que não tinha conhecimento nenhum de Medicina. Nota-se que
o MCR julgou necessário, no momento, fazer crer aos membros da VPR que
tinham um esquema médico necessário para situações extremas.
Os panfletos elaborados para a ação foram distribuídos sem qualquer
tipo de problema. Os militantes utilizaram três automóveis para a retirada: o
“cancheiro”, um Volkswagen adquirido algumas semanas antes e um táxi que
estava em frente ao Hospital.
Apesar do sucesso desta operação, dois dias depois, praticamente todos
os militantes do MCR foram presos. A maioria deles “caiu” (detida) em
flagrante “cobrindo pontos” (os pontos eram locais públicos de encontro dos
militantes), e nestas ocasiões foram apreendidas pelo DOPS gaúcho e levadas
quantias em dinheiro que foram angariadas nos assaltos; armas que os
guerrilheiros portavam no momento, documentos de identidade falsos e
outros documentos relativos à organização.
Após a prisão dos integrantes do MCR, com exceção de “Prisco” e
“Lídio”, tendo os membros detidos confessado (provavelmente sob tortura)
tudo o que sabiam, os órgãos da repressão desmantelaram os aparelhos, sendo
no total de três.
No primeiro deles, na época o principal, foram encontrados e
apreendidos os seguintes itens: alta quantia do assalto ao Hospital Nossa
Senhora da Conceição e do Banco Itaú América; várias armas, inclusive
submetralhadoras; farta munição de diversos calibres; documentos falsos e
documentos relativos à organização. Num segundo aparelho, já praticamente
750 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

abandonado pelo MCR, foi apreendida uma quantia em dinheiro


relativamente baixa. No terceiro aparelho, que estava sob os cuidados de
“Meirelles”, foram apreendidas armas, munições, panfletos, placas de carro,
etc.
O Movimento Comunista Revolucionário teve 11 militantes ou
personagens ligadas indiretamente à organização e indiciadas pela Justiça
Militar com base na Lei de Segurança Nacional, foram eles: Antônio Pinheiro
Sales, o “Ferreira”; Paulo Walter Radtke, o “Matias”; José Angeli Sobrinho, o
“Meirelles”; Brilo Kan-Iti Suzuki, o “Salvador”; Ivan Braescher Ferreira; Paulo
Oscar Bohn, o “Muller”; Ulisses Arpini, o “Barbieri”; Juarez Santos Alves; o
“Freitas”; Mailde Cresqui, a “Chênia”; César Cresqui, o “Zeca” e Ana Maria
Rocha da Silva.
No conjunto, as ações do MCR em ambiente urbano acabaram por
colocar em questão os objetivos da guerrilha urbana (entre eles a propaganda),
para além do discurso da esquerda de que as mesmas serviam apenas para
financiar a tão aclamada guerrilha rural. Acreditamos que a guerrilha urbana,
enquanto suposto financiamento para a efetivação da guerrilha rural, acabou
por financiar a própria guerrilha urbana.
No entanto, poucos militantes denominavam as ações na cidade como
guerrilha. Entre eles estava Carlos Marighella, que confeccionou e compilou
escritos reunidos no Manual do Guerrilheiro Urbano, divulgado em 1969.

O guerrilheiro urbano é um homem que luta contra uma ditadura


militar com armas, utilizando métodos não convencionais. Um
revolucionário político e um patriota ardente, ele é um lutador pela
libertação de seu país, um amigo de sua gente e da liberdade. A área
na qual o guerrilheiro urbano atua são as grandes cidades
brasileiras. Também há muitos bandidos, conhecidos como
delinqüentes, que atuam nas grandes cidades. Muitas vezes assaltos
pelos delinqüentes são interpretados como ações de guerrilheiros.
O guerrilheiro urbano, no entanto, difere radicalmente dos
delinqüentes. O delinqüente se beneficia pessoalmente por suas
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 751

ações, e ataca indiscriminadamente sem distinção entre explorados


e exploradores, por isso há tantos homens e mulheres cotidianos
entre suas vítimas. O guerrilheiro urbano segue uma meta política e
somente ataca o governo, os grandes capitalistas, os imperialistas
norte-americanos. [...] O guerrilheiro urbano é um inimigo
implacável do governo e infringe dano sistemático às autoridades e
aos homens que dominam e exercem o poder. O trabalho principal
do guerrilheiro urbano é de distrair, cansar e desmoralizar os
militares, a ditadura militar e as forças repressivas, como também
atacar e destruir as riquezas dos norte-americanos, os gerentes
estrangeiros, e a alta classe brasileira. O guerrilheiro urbano não
teme desmantelar ou destruir o presente sistema econômico,
político e social brasileiro, já que sua meta é ajudar ao guerrilheiro
rural e colaborar para a criação de um sistema totalmente novo e
uma estrutura revolucionária social e política, com as massas
armadas no poder. O guerrilheiro urbano é caracterizado por sua
valentia e sua natureza decisiva. Tem que ser bom taticamente e ser
um líder hábil. O guerrilheiro urbano tem que ser uma pessoa
preparada para compensar o fato de que não tem suficientes armas,
munições e equipe. [...] As armas do guerrilheiro urbano são
inferiores às do seu inimigo, mas vendo desde o ponto de vista
moral, o guerrilheiro urbano tem uma vantagem que não se pode
negar. Esta superioridade moral é o que sustem ao guerrilheiro
urbano. Graças a ela, o guerrilheiro urbano pode levar ao fim seu
trabalho principal, o qual é atacar e sobreviver. O guerrilheiro
urbano tem que capturar ou desviar armas do inimigo para poder
lutar. O guerrilheiro urbano não é um homem de negócios em uma
empresa comercial, nem é um artista numa obra. A guerrilha
urbana, assim como a guerrilha rural, é uma promessa que o
guerrilheiro se faz a si mesmo. Quando já não pode fazer frente às
dificuldades, ou reconhece que lhe falta paciência para esperar,
então é melhor entregar seu posto antes de trair sua promessa, já
que lhe faltam as qualidades básicas necessárias para ser um
guerrilheiro.6

Para Marighella, independente de qualquer teoria, o “dever do


revolucionário era fazer a revolução”. Nesse sentido, ele advogou uma
identidade própria para as organizações armadas citadinas.

6
Introduzimos uma citação longa, porém imprescindível para a compreensão de como o
guerrilheiro urbano foi qualificado, em detalhes, por Marighella.
752 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...] precisamos considerar que toda identidade é uma construção


histórica: ela não existe sozinha, nem de forma absoluta, e é sempre
construída em comparação com outras identidades, pois sempre
nos identificamos com o que somos para nos distinguir de outras
pessoas (SILVA; SILVA; 2005, p.204).

As concepções que a esquerda armada no Brasil pós-64 tinha de si


mesma e do país eram marcadas pela história nacional, pela experiência
internacional vinculada aos países ditos socialistas/comunistas e pela imagem
que a direita deles difundiu. Longe de haver uma única ideia do que era o
militante da esquerda, a fragmentação dos grupos oriunda de dissidências
várias – que deram origem a múltiplas caracterizações do que era a esquerda,
de sua função social e de como a mesma tomaria o poder político do Estado –
não proporcionou transformações profundas no âmago identitário dos que se
sujeitaram à ventura pela luta armada.
Para o historiador e geógrafo David Lowenthal (1998) não é possível
dissociar a identidade da memória, pois sem a recordação do passado, não é
possível saber quem somos. Se a identidade é a territorialização da memória, a
última é construída coletivamente com base nas experiências cotidianas de
uma dada comunidade política. Assim, mesmo que o discurso, em muito
emprestado de países e autores de vivência diferente da brasileira, insista na
primazia da guerrilha rural, é verdadeira a afirmação de que a maioria dos
membros da esquerda nacional eram pessoas muito acostumadas no meio
urbano. Concreto e edifícios faziam mais sentido prático a eles do que
plantações, criações, mata fechada, foice e enxada.
A identidade é fruto das leituras e representações do cotidiano de cada
um dos membros de uma dada sociedade. Assim, pessoas cujo exercício
político estava concentrado nas cidades – uma vez juntas – somente podiam
se relacionar no sentido do urbano, desenvolvendo e (re)significando
concepções de mundo relacionadas às cidades. A guerrilha rural para eles, e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 753

segundo estas concepções, foi compreendida enquanto ideal utópico e, por


isso mesmo, sempre localizada no vir a ser dos grupos de esquerda; nunca fez
parte dos esforços concretos da maioria dos membros das esquerdas armadas
do período.
O discurso difundido entre os grupos da esquerda armada era o de que
o dinheiro conseguido de assaltos e expropriações nas cidades deveria ser
enviado e/ou guardado para financiar a tão almejada guerrilha rural. No
entanto, necessidades mais prementes acabaram por comprometer as quantias
angariadas com a manutenção das próprias ações de expropriação.
Quando falamos em necessidades de manutenção, nos referimos à
estrutura das organizações e à aquisição de novos membros.
Quanto à estrutura das organizações convém ressaltarmos que o
dinheiro levantado nas ações tinha que manter o grupo, no que toca ao
pagamento do aluguel dos aparelhos, à alimentação dos militantes, ao
combustível dos veículos usados nas operações, mesmo quando o carro era
roubado já “com o tanque cheio”, além de outros custos. O “cancheiro”, por
exemplo, foi o apelido dado ao carro usado nas ações do MCR e da VPR que,
por ser de propriedade desta última, exigia manutenção que iria além do
combustível. Registram-se, ainda, vários outros custos, como o envio de certa
quantia para algum militante que necessitasse do dinheiro com urgência.
Aqui vale notarmos que a organização que tivesse mais membros na
clandestinidade, mais custos tinha com a sobrevivência dos mesmos. Antes da
clandestinidade, os militantes, em geral, viviam com a família, fato que
significa moradia, comida e estudos. Quando reconhecidos pela repressão
abandonaram a antiga vida e passaram a sobreviver à custa da organização.
Desde então moradia, comida, roupas e demais necessidades pessoais
passavam a ser financiadas pelo dinheiro que a organização conseguia levantar
nas ações guerrilheiras. Os custos da manutenção dos membros somados aos
754 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

valores exigidos para a aquisição dos aparatos utilizados nas próprias


operações consumiam a maioria dos lucros, ou seja, bem pouco ou nada
sobrava para a guerrilha rural.
Além da essencial manutenção, lembramos do aprimoramento da
estrutura das organizações, tais como aquisição de armas, munições e veículos,
abertura de novos aparelhos e a compra de alimentos e coisas que não
despertassem a atenção de outrem exatamente por não serem furtados.
Ainda no quesito manutenção era sempre preciso angariar novos
quadros para a sobrevivência da organização. Explica-se: uma vez na
clandestinidade, a expectativa de vida útil do militante não passava de alguns
meses. Novos membros significavam mais gastos com documentos,
treinamentos e similares.
Nas declarações de Antônio Pinheiro Sales, o “Ferreira”, durante seu
suposto depoimento, essa ideia é clara:

[...] é necessário que se cria (sic) uma infraestrutura material que


assegure as atividades políticas. Essa infraestrutura material só pode
ser criada quase que exclusivamente com assaltos a mão armada.
(APSTM. Processo 39.769 – Apelação, 1° vol. p. 176).

Embora alguns militantes pensassem nas ações urbanas, como Carlos


Marighella, a maioria dos revolucionários não percebeu que a guerrilha
citadina não era simples financiamento da guerrilha rural, mas um conjunto de
ações que tiveram lógica e identidade próprias.
Quisessem os militantes da esquerda nacional ou não, o fato é que o
maior movimento contra os governos militares brasileiros do período em
questão foi o registrado nos centros urbanos. Não queremos, com isso, negar
algumas iniciativas no meio rural, a exemplo da Guerrilha do Araguaia (1967-
1974).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 755

Podemos observar que o ideário de guerrilha rural perpetuou pelas


concepções da esquerda armada de uma forma enraizante e imortalizada. Em
meados de 1970, os militantes ainda sonhavam com a luta no campo, como é
possível notarmos num trecho desta carta que foi dirigida aos funcionários da
Companhia de Fumos Santa Cruz, em que o MCR e a VPR se desculpavam
por terem levado dinheiro dos operários:

Pretendemos nas cidades formar as milícias populares para


combater a polícia e o exército, e, no campo propomos a guerrilha
como forma de luta. E a possibilidade de vitória no campo, já ficou
categoricamente demonstrada, quando o líder revolucionário
capitão Carlos Lamarca com mais vinte guerrilheiros deu um
“banho” nas forças da repressão que tinham no local uns 20 mil
homens, conseguindo saírem (sic) todos com vida. Enquanto o
exército e polícia tiveram 8 mortos e 16 prisioneiros, feitos por nós.
(APSTM. Processo 39.769 – Apelação, 1° vol. p. 313).

O texto fala da guerrilha rural. No entanto, as organizações armadas


não tinham infraestrutura para fazê-la. Além de fazer menção à guerrilha rural,
o fragmento da carta ilustra uma das funções dos assaltos e apropriações: a
propaganda da esquerda. Independente do exagero dos números e da não
comprovação do evento mencionado, o fato é que a carta divulga a existência
do Lamarca, da repressão e da resistência política. Ora, sabemos que, no
início, os governos militares tentaram esconder as organizações de esquerda,
guerrilheiras ou não, por meio da censura. Com o tempo, e diante da
impossibilidade de ocultar o movimento da esquerda nacional, o governo
instituído em 1964 adotou outra estratégia: apresentar os militantes como
criminosos perigosos e nocivos à sobrevivência da sociedade em geral.
A propaganda revolucionária foi extremamente importante para a
propagação ideológica dos anseios da esquerda. Os governos militares não
queriam ser reconhecidos como ditadura, mas os esquerdistas queriam ser
756 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

conhecidos como guerrilheiros. Não tinham vergonha do que pensavam e,


portanto, não se escondiam, por muitas vezes, nos assaltos.
O MCR e a VPR não chegaram a fazer ler na imprensa televisiva e no
rádio um “manifesto ao público”, como ocorreu com aqueles que
sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 1969,
mas enviaram as cartas já mencionadas aos funcionários da fábrica assaltada –
Companhia de Fumos Santa Cruz.
Os membros das organizações em questão também não negavam os
assaltos que tinham cometido, ao contrário, divulgavam as ações que
obtiveram algum sucesso: “[...] é que nós agimos com mais intensidade e as
armas usadas neste assalto foram roubadas em uma casa de armas na rua
Benjamin Constant [...]” (APSTM. Processo 39.769 – Apelação – 1° vol. – p.
09).
Dentro desta perspectiva, as organizações armadas fizeram diversos
tipos de propaganda revolucionária, não apenas de divulgação da luta armada,
mas também como tentativa de angariar mais adeptos para compor novos
quadros, ou no mínimo possibilitar que os operários as conhecessem.
No conjunto, enquanto os militares tentaram esconder ações da
esquerda que obtiveram algum sucesso, os militantes se esforçavam para
divulgá-las. Quando a repressão atingiu a maioria dos grupos e a polícia
política mandou divulgar assaltos e demais operações enquanto fruto de
criminalidade latente e comum, os militantes se esconderam. Afinal, com o
acirramento da repressão e o desmantelamento da guerrilha, os que restaram
precisavam se empenhar para sobreviver.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 757

Considerações Finais

A análise do processo-crime que envolveu os membros do Movimento


Comunista Revolucionário (MCR) deu-nos respaldo para pensarmos uma
proposta de guerrilha urbana em toda a sua estrutura e organização. Além
disso, procuramos caracterizar todas as suas ações com suas formas de
divulgação da luta armada e denúncia às perseguições e torturas efetuadas
pelos agentes de repressão do regime. Por último, problematizamos dois
aspectos fundamentais para depreendermos a guerrilha urbana em sua
dinâmica interna, os quais são a fundação de uma identidade própria da
guerrilha citadina e como se distendeu a composição da propaganda
revolucionária. Tais argumentos, acreditamos firmemente, podem contribuir
para a compreensão da guerrilha urbana como detentora de uma identidade
singular, com particularidades e importância para a análise dos movimentos
sociais e de oposição aos governos militares brasileiros da segunda metade do
século XX.

Referências

Fontes

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Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.
Debate: Atenuando a aridez do exílio*

Rodrigo PEZZONIA**

C
om a edição do AI-5, e o consequente recrudescimento da repressão
promovida pelo regime militar, uma “nova geração” de exilados se
constitui em fins da década de 1960. Nos países de destino, grupos
se formam como o intuito de acolher, organizar e congregar forças para
ultrapassar os obstáculos (em grande medida, emocionais) que o degredo
carrega, além, e principalmente, de denunciar as agruras cometidas pelo
regime que os desterrara. Este artigo tem como objetivo central, valendo-se
dos depoimentos de alguns dos seus quadros militantes, tratar da relevância
do grupo DEBATE, e de seu meio de divulgação, a revista Debate: Problemas da
Revolução Brasileira, um importante veículo de informação, debate de ideias,
além de órgão de confluência enquanto coletivo de parte dos exilados
brasileiros, principalmente para os que se encontravam na França na primeira
metade da década de 1970.

Exílios e Exilados

O surgimento de grupos de exilados brasileiros fora do país tem alguns


objetivos muito evidentes. Em primeiro lugar, o de se organizar e congregar
forças para ultrapassar os obstáculos, sobretudo os emocionais, que o degredo
*
Trabalho referente à pesquisa que resultou na dissertação de mestrado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP), sob a orientação do Prof. Dr.
Marcelo Siqueira Ridenti no ano de 2011.
**
Doutorando em História/FAFICH-UFMG/ Belo Horizonte.
762 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

carrega. Na bibliografia disponível e nos depoimentos concedidos, verificou-


se que os coletivos têm papel crucial no acolher e amparar os exilados recém-
chegados das frentes de resistência no Brasil, servindo como suporte para a
compreensão desta nova fase de sua vida que, na grande maioria das vezes,
não é bem-vinda.
Como se pode presumir, os problemas destes militantes não
terminavam com o pouso em terras estrangeiras. Edward Said, importante
pensador dos exílios, ao criticar a ideia de que o exílio consiste em uma
ruptura total com o lugar de origem, salienta:

Para a maioria dos exilados, a dificuldade não consiste só em ser


forçado a viver longe de casa, mas, sobretudo, e levando em conta
o mundo de hoje, em ter que viver com a lembrança de que ele
realmente se encontra no exílio, [...]. Portanto, o exilado vive num
estado intermediário, nem todo integrado ao novo lugar, nem
totalmente liberto do antigo, cercado de envolvimentos e
distanciamentos pela metade; por um lado ele é nostálgico e
sentimental, por outro um imitador competente ou um pária
clandestino. (SAID, 2005, p.56).

A partir da necessidade de adaptação a um novo modo de vida, o exílio


se transforma em um conflito entre permanência e mudança. Há um embate
entre a realidade de sobrevivência em outra terra, isto é, o impacto do
encontro com uma nova cultura no sentido mais amplo (língua, costumes,
política, etc.), e o desejo de não perder suas raízes. Neste último, o exilado
acredita que esta situação é passageira, podendo chegar ao ponto máximo da
negação de assimilar o modus vivendi do país de acolha. Sendo assim, a
necessidade de se unir a grupos de outros com a mesma sorte é
imprescindível. Daí a formação de vários coletivos de exilados que surgem por
todos os países que acolheram os brasileiros (ROLLEMBERG, 2007).
Fora do Brasil, e tendo que sobreviver neste novo mundo, a melhor
forma que encontra para diminuir as dificuldades é se solidarizando com
outros da mesma sorte que ele, e ocupando o tempo com o que lhe era mais
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 763

familiar, e que, além de tudo, poderia dar subsídios para continuar sua
resistência no degredo, ou seja, sua produção intelectual.
Os coletivos, ainda no que diz respeito ao exílio, têm a qualificação de
amenizar a dor da permanência em terras estrangeiras. Além das atividades de
convivência e cultura que estes proporcionam, a ênfase na necessidade de
estudo e especialização é muito forte, sobretudo para se entender os motivos
pelos quais estão sofrendo o degredo, e discutir as maneiras para transpor as
dificuldades que o degredo acarreta – aqui se remete diretamente aos objetivos
do grupo DEBATE.
Quanto à continuação da militância, estes grupos teriam como metas,
além de discutir e entender a conjuntura brasileira, tentar intervir e servir
como órgão de denúncia das ações cometidas pelo regime militar. Aqui vale
lembrar que a revista é significativa em pelo menos dois pontos deste
processo. Além de ser o órgão divulgador das denúncias, também é a vitrine
para aquilo que se produz em seu meio interno, os grupos de estudo. Os
grupos e a imprensa exilada, por muitas vezes, davam até mesmo a sensação
de aproximação entre os brasileiros, tanto que Moacir Palmeira teria dito que a
revista DEBATE “Foi das melhores coisas que vieram atenuar a aridez do
exílio.”1

Jovens Intelectuais e o exílio

Como revelam Elide Rugai Bastos e Walquíria Leão Rêgo, o intelectual


como figura social, crítico às relações e aos poderes constituídos – igreja, clero,
nobreza, poderes absolutistas – nasce no século XVIII, a partir, sobretudo, da
criação do espaço e da opinião pública, o campo de ação desta categoria. É
inserido neste espaço público, no qual ele se encontra e se posiciona na
produção da crítica da sociedade à qual pertence. As autoras também mostram
que é no momento de “crise social” que o intelectual seria mais acionado. O
momento de crise é um momento de mudança, em que se requer a revisão de
1
Depoimento concedido por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
764 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

conceitos e o retorno a “velhas questões”. Este momento de crise, para as


autoras, é o “[...] que se retoma mais intensamente o debate sobre a missão,
função, papel do intelectual, em que se impõe a recuperação da memória da
atividade e o balanço da atuação deste personagem.” (BASTOS, 1999, p.12).
Pensando desta forma, acredita-se que poucos foram os períodos mais
conturbados para a intelectualidade, no Brasil, do que o século XX.
Marcelo Ridenti, valendo-se da documentação do Projeto Brasil Nunca
Mais, afere que a maior parte dos processados por envolvimento com
organizações de esquerda, no Brasil, a partir de meados dos anos 60, era
estudante; 906 indivíduos ou 24,5% do total de 3.698 de processados com
ocupação conhecida da esquerda em geral, e 583, ou seja, 30,7% dos 1.897
denunciados por vinculação com organizações guerrilheiras. Isso reflete a
extraordinária mobilização estudantil, sobretudo nos anos de 1966 e 1968.
Outro dado importante, trazido por Ridenti, é que nestes números não são
levados em conta aqueles que tinham como sua ocupação principal ser
“estudante”, pois muitos trabalhavam para pagar seus estudos. Assim,
acredita-se que as estatísticas podem aumentar, relevando os estudantes
operários, os estudantes professores, ou seja, os estudantes trabalhadores.
Agora, se forem analisar os que tiveram acesso ao ensino superior, quase 60%
dos atingidos figuram a lista. Quando se fala de faixa etária, quase 52 por
cento dos simpatizantes ou quadros da militância armada tinham menos de 25
anos, 75,33% até 30, e 85,88% até 35 anos. Na maioria das organizações
predominava militantes entre 22 e 25 anos (RIDENTI, 1993).
Ridenti ainda colabora para evidenciar o que leva grande parte destes
estudantes à luta armada e, consequentemente, ao exílio, mostrando o grau de
proximidade entre os estudantes e a esquerda armada:

A ligação entre o movimento estudantil e as organizações de


esquerda estreitava-se entre 1967 e 1968. Por exemplo, segundo o
depoimento de um ex-guerrilheiro, Marighella exercia forte atração
sobre a “massa avançada” dos estudantes paulistas, a quem deu
“cobertura armada” durante a ocupação da faculdade de filosofia
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 765

da USP em 1968, além de fornecer armas para a “segurança” das


centenas de seguranças que foram ao XXX Congresso da UNE em
Ibiúna no final daquele ano – armas ineficazes, pois todos os
estudantes foram presos no local. (RIDENTI, 1993, p.130).

Como mostrado acima, em números e nesta citação, mais tarde, esses


laços irão se estreitar mais e mais, até que os jovens estudantes de classe média
se tornem os quadros mais ativos da resistência armada à ditadura militar
brasileira. Assim, a partir do recrudescimento do regime com o AI-5, em
1968, quando a repressão do Estado se profissionaliza tornando-se
insustentável a permanência destes militantes em terras brasileiras, estes
seguem para o exílio, onde se veem obrigados a começar nova vida em um
novo país, e convivendo com novas realidades socioculturais.
Mas o exílio não é um fenômeno único para todos. O exílio é
multifacetado. Ou seja, não existe apenas um tipo de exílio ou exilado. Há
aqueles que, por acreditar que sua segurança poderia estar em risco –
especialmente os ligados à primeira geração de exilados pós-1964 –, com seus
próprios documentos conseguem sair do país pela “porta da frente”; há os
que fogem clandestinamente com documentos falsos cruzando as fronteiras
terrestres; há aqueles que, efetivamente procurados pela repressão, são
obrigados a se refugiar em embaixadas, adquirindo o direito de asilo político.
E há um último tipo, que são os expulsos do país pelo regime, depois de
serem trocados por diplomatas estrangeiros capturados por organizações da
esquerda armada.
Além disso, existem diferenças nas formas que estes indivíduos
encaram o exílio. Alguns rapidamente se adaptam à nova vida e cultura, outros
sufocam longe de sua terra; uns deixam a militância, outros chegam ao país de
acolhida já pensando na volta para o Brasil e no retorno à luta, enquanto
outros, ainda, exercem sua militância de dentro do exílio.
Mas, no que concerne ao esquema temporal, hoje o exílio é visto como
vivido em dois momentos distintos. Denise Rollemberg entende esses dois
períodos como geracionais. Este conceito de geração – que a autora busca em
766 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Jean François Sirinelli, e que, por sua vez, se apoia em Jean Luchaire – para o
caso específico do presente artigo, diz respeito à existência de uma primeira
geração de exilados que, temporalmente, se situaria no período do golpe, em
1964, e que politicamente teria como característica a identificação com “[...] o
projeto da reforma de base, ligados a sindicatos e partidos políticos legais,
como o PTB, ou ilegais como o PCB.”, e que, “Quando foram para o exílio, já
eram, na maior parte, homens maduros definidos profissionalmente”
(ROLLEMBERG, 1999, p.50). Além disso, em grande medida, estariam
engajados em um sistema de luta legal (na medida do possível) e pacífico
contra o regime militar. Já a segunda geração, diferente da primeira, teria
como características a pouca idade dos exilados, o pertencimento ao
movimento estudantil, e a sua atuação em estreita ligação com os meios
armados de resistência.
Por fim, poderia ser colocado mais um ponto que teria importância no
que concerne à trajetória dos exilados, a saber: o exílio dentro do exílio, que se
caracteriza pelo êxodo de exilados para terras europeias, principalmente
francesas, após o golpe que derruba Salvador Allende em 1973.
Ao se referir estritamente ao exílio dos intelectuais, acredita-se que este
esquema também possa ser usado. A primeira geração exilou-se com o golpe,
no ano de 1964, em que se registrou como maior contingência de exilados os
pensadores brasileiros renomados no país, e um tanto quanto conhecidos no
exterior. No segundo momento, com o avanço da violência do regime a partir
do AI-5, tem-se um novo fluxo de degredados, que são, em sua maioria,
aqueles jovens estudantes secundaristas e universitários já citados, que estão
cada vez mais ligados às organizações de esquerda, e que começam a se
refugiar em países europeus e da América Latina, principalmente no Chile.
Fora do país, iniciam ou desenvolvem suas carreiras acadêmico-intelectuais,
tendo grande importância em seu retorno pós-anistia na luta pela conquista da
democracia. Assim, usando a definição de intelectual exilado de Helenice Silva
“o intelectual exilado é não só o produtor e difusor do conhecimento que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 767

beneficiou da notoriedade em seu país de origem, como o estudante


universitário, preparando, na França, um diploma de mestrado e doutorado
[...]” (SILVA, 2008, p.31). A única ressalva que se faz, aqui, é que no trabalho
da professora Helenice, há a tentativa de separar o militante político do
intelectual; ao passo que, neste artigo, não se pretende diferenciá-los, e sim,
mostrar que sua produção intelectual e política fora do país são indissociáveis
e influenciou o Brasil nos anos sucedâneos à anistia2.
Quanto à categoria social destes indivíduos, é válido ressaltar que, no
caso intelectual, como supracitado, este é um personagem que, em geral,
advém da classe média, ou seja, com posses e influências que podem facilitar
sua saída do país, enquanto, para outras categorias essa tarefa era um pouco
dificultada.
Isso não quer dizer que se concorda com teorias, como por exemplo, a
da professora Helenice Rodrigues da Silva, que descaracteriza o exílio
intelectual brasileiro como não sendo um ato exclusivamente político, e tendo
caráter voluntário. A esse respeito ela argumenta:

Ora, se aprofundarmos melhor o nosso enfoque, constataremos


que, se o exílio dos intelectuais, principalmente o dos brasileiros,
foi um ato de revolta contra o poder, ele não deixou de ser uma
escolha voluntária. Em relação a outros exílios latino-americanos, o
exílio brasileiro constitui, portanto, uma singularidade. [...] (o) exílio
brasileiro – resultando de acontecimentos menos trágicos e
contando com um número restrito de pessoas – não pode ser visto
como um fenômeno, exclusivamente de ordem política. (SILVA,
2007).

Em primeiro lugar, embora se concorde com a autora sobre o fato que,


comprovadamente em números, o processo de repressão e exílio tenha sido
mais “ameno”, ou melhor, tenha estatisticamente feito menos vítimas no
Brasil, discorda-se de que este tenha sido “voluntário”, e entende-se este
termo como não sendo pertinente, já que passível do entendimento de que o

2
A influência do exílio nas culturas políticas brasileiras pós-anistia é o principal objeto de
nossa pesquisa de doutorado em andamento.
768 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

exílio viria da vontade espontânea do indivíduo e não da necessidade deste


que teme pela sua segurança. Além disso, cabe lembrar que o Chile – um dos
exemplos usados pela autora – foi o destino de grande parte da
intelectualidade exilada, onde, aliás, tiveram efetiva participação política.
Sendo assim, se o primeiro exílio (oriundo do Brasil) não foi exclusivamente
político, acredita-se, então, que o segundo (pós-queda de Allende) teria que ser
reconhecido pela autora.
Acredita-se, portanto, que para entender as relações entre os militantes
nos grupos que trafegam no exílio, e particularmente no DEBATE, é
interessante entender como funcionavam as relações entre estes jovens, ainda
em terras brasileiras.

Os grupos de estudo no Brasil

Os grupos de estudos já eram conhecidos modelos de resistência no


Brasil, mas no exílio, estes parecem tomar proporções bem maiores. As
funções destes coletivos tinham peculiaridades tanto no Brasil quanto em
terras estrangeiras. Acredita-se que, no exílio, antes de ter um caráter de
formador político, tem o de socializador e instrumento que permeia as
relações sociais dos exilados.

A gente sempre, - independentemente das discussões semanais da


DEBATE - todo sábado tínhamos também, como chamávamos, os
encontros da esquerda. Além de grupos de estudo. O João
[Quartim] todo ano formava um, por exemplo, o ano que eu estava
lá nós fizemos a questão agrária. Muitos participavam como o
Paulo Sérgio Pinheiro, a Ana Maria Amaral que eram as pessoas
que participavam dos grupos de estudo... O Gabeira e tal, daí
variava. Quando estive no Chile fizemos um sobre Lênin. Então
tinha sempre um grupo de estudo. Então, quando eu fui para o
Chile, que eu fiz a Escolatina, no primeiro ano, no primeiro
semestre era o tomo I d’O Capital, a teoria econômica. Segundo era
o tomo II, e o terceiro seria o tomo III, mas esse ai eu li no
DEBATE com o João. Então quando eu digo da importância da
formação teórica, é porque eu acho que a minha formação teórica
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 769

básica, que é essa marxista, ela se deve ao João (risos). (Informação


Verbal)3.

Já no Brasil, e isso é nossa leitura, os grupos de estudos têm um caráter


de formação de quadros para as esquerdas, principalmente a armada.
Abramovay parece corroborar com esta leitura, quando diz que um grupo de
estudos naquela época “[...] era uma espécie de vestibular para você acabar
entrando na organização” (Informação Verbal) 4.
Mas, como a formação destes grupos se dá ainda em terras brasileiras?
Como se pode verificar nos depoimentos de Maria Lygia Quartim de
Moraes e Ricardo Abramovay, ficam muito evidentes as relações entre
indivíduos que se reúnem a favor de um mesmo objetivo, ou seja, a resistência
contra o regime militar. Essas relações não se dão de forma aleatória, mas sim,
por meio de alguns fatores, como os de classe, família (relações inter e
intrafamiliares) e acadêmicas (escolas e universidades em comum). Nota-se
que, naquele momento, quase todos os envolvidos tinham algum vínculo com
a Universidade de São Paulo. Observa-se, também, que as relações políticas,
como em qualquer “comunidade afetiva”, também davam lugar às relações de
amizade e amorosas, como se pode notar no depoimento de Maria Lygia
Quartim de Moraes, no qual relata tanto as relações no Brasil quanto no exílio:

[...] isso tudo são relações pessoais, basicamente são relações


pessoais, Eduardo é irmão da Miriam Abramovay, que é casada
com Samuel Iavelberg que era irmão da Yara Iavelbrg. A Yara
Iavelberg foi namorada do meu irmão João, militava no mesmo
grupo, eu conheci Iara Iavalberg, nós éramos muito amigas...
Entende? Então você tem de pensar muito nas relações pessoais.
Então tinha a família Abramovay, a família Quartim de Moraes,
quer dizer são grupos familiares, não é? [...] Pessoal da USP
basicamente, das ciências sociais [...] esse pessoal mais jovem, que
tinha tido militância estudantil ou intelectual, isso todo mundo se
conhecia. Isto tanto vale pra São Paulo, como vale para os cariocas,
eram grupos de afinidades. E se não havia afinidade, não se
conheciam antes, acabaram se conhecendo depois. Eu conheci

3
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes, em 30/04/2010.
4
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
770 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

muita gente lá por intermédio dos Abramovay, eles conheceram


por nosso intermédio, e assim circulava. (Informação Verbal)5.

Abramovay confirma as questões intra e entre famílias para evidenciar


sua curiosidade nos movimentos de esquerda:

Para mim o que foi muito importante, foi um fator familiar, minha
irmã freqüentou desde 1966/67, o famoso cursinho do Grêmio, do
qual você já deve ter ouvido falar, e que é quase uma instituição.
Por lá ela conheceu Samuel Iavelberg. Minha irmã eu me lembro
que fazia trabalho em favela desde os 15 anos de idade. De vez em
quando eu ia com ela. Eu tenho a lembrança de distribuir alimentos
com a marca da Aliança para o Progresso no saco de alimento para as
populações pobres de favela, até então não tinha nada de esquerda
isso, mas quando ela vai para o cursinho no Grêmio, essas coisas, aí
então começa a namorar o Samuel Iavelberg (Irmão da Iara
Iavelberg, não é?) e, claro, aí passa a haver uma influência muito
grande. Ela se liga [...] Ela entra na VPR [...]. (Informação Verbal)6.

Não só no ambiente universitário e familiar estavam os focos de


resistência à ditadura. No meio secundarista, os debates e ações contra o
regime militar também se desenvolviam, como relembra Abramovay:

Eu entrei no Colégio de Aplicação em 1968, fevereiro ou março de


1968, e o Colégio de Aplicação era um lugar, um ambiente cultural,
muito propício à tomada de contato com o mundo da política da
esquerda. O Colégio de Aplicação era, e é dirigido pela Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo, e tinha esse
magnetismo de atrair essa parte da elite de esquerda. Então, sei lá,
havia pessoas que tinham vindo no Colégio de Aplicação da Escola
de Aplicação (do ginásio do Colégio de Aplicação), de origem
relativamente popular, de uma espécie de baixa classe média. Mas
havia também vários filhos de intelectuais. Então era um ambiente
muito propício. (Informação Verbal)7.

Assim, o ponto que se evidencia, tanto nos depoimentos de Maria Lygia


Quartim de Moraes, quanto de Ricardo Abramovay, é que este ambiente está

5
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes em, 25/04/2010.
6
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010
7
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 771

a todo tempo ligado aos fatores escola e família. No depoimento de Maria


Lygia, ela se refere à construção deste movimento antiditatorial dentro das
instituições de ensino, estando muito ligados às relações familiares que se
desenvolviam fora deste ambiente. Abramovay, no final deste último trecho
de seu depoimento, coloca mais um ponto que abre caminho para entender de
onde viria esse ambiente que ele considera “propício para a tomada de contato
com o mundo da política da esquerda”. De acordo com ele, havia vários
alunos originados na classe média e filhos de intelectuais. O Colégio de
Aplicação é, em boa medida, frequentado por filhos dos próprios professores
da Universidade de São Paulo.
E continua:

[...] no Colégio de Aplicação nós tínhamos um contato não só com


a questão imediata da política, mas de forma geral com tudo que
era cultura de inovação. Então sei lá, a gente ouvia Charlie Mingus,
ouvia John Coltrane, ouvia Hornet Colleman, que é um compositor
de Jazz quase abstrato, a gente sabia o que era a Bauhaus, era ultra
elitizado, dentro dessa... no quadro dessa coisa super elitista e ...
não era ruim, só era uma cultura muito voltada para a inovação,
muito voltada para as coisas revolucionárias em todos os sentidos,
no plano dos costumes também. E aí que, eu não me lembro
exatamente se foi... é deve ter sido em 68, que eu me liguei de
alguma forma, eu não me lembro como, ao POC – Partido
Operário Comunista. (Informação Verbal)8.

Aqui, fica evidente a questão de que parte desta classe média,


intelectualizada, elitizada, mesmo assumindo sua condição de classe, foi levada
a se colocar politicamente à esquerda.
No depoimento de Abramovay, encontra-se uma ocorrência não muito
estudada que é, como já relatado, a atividade de adolescentes nas organizações
de esquerda e a visão do regime com relação a estes jovens militantes.

8
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
772 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Abramovay, ao falar de sua ligação com a POC, depois VPR e VAR-


Palmares, revela uma atividade colegial bem organizada no Colégio de
Aplicação, em relação às organizações clandestinas:

O Colégio de Aplicação é um colégio que sempre teve muita


militância. Tinha gente do partidão, tinha gente da ALN, tinha...
Bom, e nós construímos uma estrutura piramidal de pessoas mais e
menos próximas à VAR-Palmares [...] eu acho que devia ter umas
40 pessoas envolvidas nisso [...]. (Informação Verbal)9.

Esse tipo de atividade dos estudantes secundaristas, por si só, já poderia


chamar a atenção da repressão contra estes adolescentes. Mas, segundo
Abramovay, neste momento sequente ao AI-5, isso não ocorreu. Ele relata ter
sido preso em dezembro de 1969, com o pai, como forma de pressão para que
sua irmã, que já estava na clandestinidade, se entregasse. Ele diz:

Eu tava perto do meu pai no momento que a Operação


Bandeirantes chegou lá, e daí fui preso também. A Operação
bandeirantes não tinha a menor suspeita que pudesse haver uma
organização composta por jovens de 16 anos, para a minha sorte.
(Informação Verbal)10.

Ricardo ainda ficaria preso por cinco dias, e seu pai por quinze. Depois
disso, Ricardo Abromavay, sem saber, segue para o exílio. Em seu
depoimento, ele explica o porquê desse “sem saber”:

Eu fui logo que eu saí da prisão, esses cinco dias que eu passei, e
meu pai quinze, logo que eu sa eu fui para Paris, legalmente, tudo
certinho porque eu não tinha nenhum problema. Fui de férias, ia
voltar, e quando eu estou em Paris... na verdade eu fui fazer uma
viagem de férias, ir para Amsterdã... Na volta meu irmão fala:
“Olha, a mãe ligou e disse para te dar um recado, o recado é que o
Marcelo não pode voltar.” Eu recebi o recado e, sabe tava num
clima de férias, moleque e tal. E eu lembro até hoje, Rodrigo. Eu
estava no Boulevard Saint-Michel, descendo o Boulevard Saint-

9
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
10
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 773

Michel, quando de repente cai a ficha, Marcelo era eu. (risos) Puta
merda! Que porra que aconteceu?! (risos) Aí eu me vi com 16 anos,
meio herói, sobretudo porque havia um lado meio [...] um lado
heróico, entende? Muito voltado para aquela coisa do homem
novo, etc. [...]. (Informação Verbal)11.

Ricardo diz ter recebido este recado de seu irmão Eduardo, em


fevereiro de 1970, momento em que o Colégio de Aplicação estava já na mira
da repressão.
Vendo-se como exilado, Ricardo Abramovay, assim como os demais
jovens com o mesmo destino, vê a necessidade de se integrar àqueles que há
mais tempo tentavam se estabelecer enquanto cidadãos estrangeiros em terras
desconhecidas.

Debate: Entre o coletivo e a revista

Pode-se dizer que DEBATE é um grupo que nasceu dos esforços de


João Quartim de Moraes (militante intelectual desligado da Vanguarda
Popular Revolucionária – VPR), com a ajuda de alguns outros intelectuais, que
tinha por objetivo organizar e reunir os exilados brasileiros que estavam na
França, em fins de 1969, início de 1970.
O então boletim DEBATE: Problemas da Revolução Brasileira foi criado e
publicado pela primeira vez em fevereiro de 1970, na cidade de Paris. Vale a
pena ressaltar que França e Brasil, mesmo antes do exílio, já tinham muito em
comum no que se refere à formação de uma nova identidade de esquerda. Por
exemplo, os movimentos que começam a se insurgir em ambos os países,
principalmente no meio estudantil, vinham de dissidências dos partidos
comunistas destes países. Essas jovens dissidências (que não se limitam ao
Brasil e França, mas que existiram em diversos outros países) é que
determinam a formação da chamada “Nova Esquerda”. Com o exílio,

11
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay em 25/05/2010
774 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sobretudo após golpe de Estado que derrubou Salvador Allende em 11 de


setembro de 1973, a França passa a ser um dos destinos mais procurados
pelos que, do Brasil, foram expulsos, e principalmente pelos estudantes de
classe média. Para a intelligentsia exilada, a França serviu de terreno muito fértil
para produção e especialização intelectual12.
A primeira constatação que deve ser feita para se entender a revista
DEBATE, é o fato de que DEBATE não nasce revista, e o seu desenvolver
não é autossuficiente. O boletim, ou revista DEBATE, nada mais é do que
um veículo de externalização das principais inquietações e estudos que
estavam sendo produzidos por membros de um coletivo naquele momento.
Sendo assim, é preciso entender que ela é só uma expressão de algo mais
amplo, e que o trabalho principal, que tem realmente importância nas relações
com os exilados, ou pelo menos neste pequeno grupo que é “o” DEBATE,
não está necessariamente ligado às páginas da revista, e sim aos seus
bastidores no seio do grupo.
As posições entre revista e grupo se confundem, como se pode notar
no próprio discurso de Quartim:

E aí, a revista era a idéia de fazer uma publicaçãozinha bem


modesta, bem tosca, já nos primeiros contatos. Tínhamos algumas
idéias, não é? Uma era reunir os brasileiros que pudessem ir para lá,
que estivessem dispersos, ter alguma forma de contato. Também
estudar, não é? Ajudar. Tudo o que você pode imaginar. Desde
arrumar casa para dormir, até começar a estudar o que fazer da
vida. (Informação Verbal)13.

Assim, apresenta-se, aqui, um resumo das questões que permeiam a


revista e o grupo DEBATE, e que começar-se-á a tratar agora. Nota-se que ao
falar da revista, João Quartim lhe dá atribuições que acredita-se irem além da

12
Sobre “Nova Esquerda” ver: ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A Utopia
Fragmentada: As novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
13
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 775

capacidade de um periódico, como o de reunir, e servir de posto de campanha


para os brasileiros exilados. Acredita-se que estas seriam tarefas destinadas a
um grupo. Já o periódico teria outras atribuições, como o de apresentar os
estudos produzidos pelos militantes pertencentes ao grupo, divulgar o ideário
do coletivo, denunciar as ocorrências repressivas no Brasil, e assim por diante.
Além disso, neste trecho de entrevista revelam-se outros pontos que precisam
ainda ser colocados para analisar o grupo, como, por exemplo, suas posições e
disposições, o papel da instrução acadêmica para este grupo e a influência de
Quartim para os jovens exilados que aportavam em terras estrangeiras.
Inicialmente, impõe-se a constatação de que, sem o grupo DEBATE,
não haveria seu órgão mais visível, a revista DEBATE, e que esta estaria para
os exilados envolvidos, talvez, em um segundo plano. Como se pode notar no
depoimento que concedido por Ricardo Abramovay:

É, nós nos referimos ao DEBATE sempre no masculino, mesmo


porque era mais o grupo DEBATE do que a revista DEBATE, a
revista era instrumento de algo que no fundo era mais revelador da
condição de estarmos organizados, ou seja, nós não éramos
colaboradores eventuais de uma revista, nós éramos membros de
um grupo com os riscos que isso envolvia. E me dá a impressão
desde o início das suas mensagens [correspondências eletrônicas
que mantivemos com Abramovay], que você estava tratando a
DEBATE no feminino, e aí isso me chamou a atenção, e me fez
pensar olha, que gozado, a gente sempre tratou a DEBATE no
masculino, e acho que é por isso. (Informação Verbal)14.

Como apontado anteriormente, os envolvidos neste segundo momento


do exílio eram militantes ainda muito jovens, e sem maiores experiências,
sejam profissionais, ou mesmo de vida em outras culturas. Essa constatação
fará com que João Quartim, além de idealizador, um dos principais quadros de
DEBATE, acabe por se transformar em modelo para esses jovens aderentes

14
Entrevista cedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
776 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ao grupo, como relata Maria Lygia Quartim de Moraes ao falar dos militantes
do DEBATE:

E desses nomes que você tem ai os nomes de guerra, digamos que


havia duas ou três pessoas que, quando estavam no exterior tinham
16 anos de idade, não tinham acabado o colegial. E o João teve um
papel quase que paternal. Vamos estudar, vamos fazer, vão se
formar, então lá fizeram suas faculdades, filosofia, enfim, se
formaram na França. (Informação Verbal)15.

Um destes adolescentes que estava na França neste período, e que diz


ter sido muito influenciado por Quartim, foi Ricardo Abramovay. Então, com
16 anos, quando se viu exilado, revela:

O João foi muito importante [...] Para você ver, a gente era tão
doidão, que a minha primeira reação a isso [exílio] foi: Ah não,
vamos voltar para o Brasil e ir para a clandestinidade, e tal. Entrar
para a classe operária, trabalhar em fábrica, sei lá, esse tipo de
coisas. E aí começa a importância do João. João disse assim: “De
jeito nenhum!” [...] Então a Lia [Zatz] chega, e nós dois (e ainda
mais o namorado da Lia que estava na clandestinidade), nós ainda
estávamos, como jovens que éramos, muito ligados a idéia de que a
guerrilha iria dar certo, etc, etc. O João foi muito importante para
mostrar para a gente que, enfim, que aquilo era um equívoco, e que
não era por aí. Ele foi fundamental no começo de nossa formação
política. Então, Lia e eu fomos, por influência do João, que disse:
“Não, vocês tem que ir para a escola estudar e pronto!” E, tanto a
Lia quanto eu entramos em um colégio francês, começamos a
cursar em setembro de 70. (Informação Verbal)16

Nota-se aqui também, que a necessidade de se especializar


academicamente para se inserir no grupo se torna imprescindível. Além disso,
a especialização intelectual também parecia fazer parte de uma espécie de
“terapia ocupacional” para sobrevivência ao exílio, meio de se sentir útil para a
resistência à ditadura militar, já que o sentimento de culpa por estar vivo, não
ter “caído” em batalha, ou não estar preso e sofrendo as sevícias da repressão,

15
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes, em 30/04/2010.
16
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 777

era intrínseco à parte dos exilados, com particular intensidade nos mais
jovens, como o próprio João Quartim relembrou:

Porque a maioria chegava meio arrependida de ter chegado viva.


Então tinha aquela coisa: ‘Tenho que voltar, vou voltar, vou voltar!’
Voltar como, não é? Alguns voltaram e praticamente todos foram
estraçalhados. Eu fiz o que pude dentro dos limites dizendo:
‘Espera um pouco. Não é de um dia para outro que vão mudar as
relações de força. Espera um pouco, agora vocês estão queimados
[...]’ (Informação Verbal)17.

Estes estudantes de classe média, declinando da ideia de volta imediata,


acabam por se tornar boa parte da “mão-de-obra” referente à produção do
coletivo e do periódico DEBATE, e de outros órgãos de imprensa no exílio,
durante toda a sua existência.
Para Quartim, a DEBATE “[...] nasce apenas de uma preocupação com
o conhecimento, com a propaganda, sustentar por argumento suas
convicções. Enfim, usar a escrita, a linguagem para tudo que ela pode
proporcionar [...].” (Informação Verbal) 18. Em outro depoimento ele diz:

Debate a servi de remède au désarroi et à la dispersion. Elle proposait tout


d’abord Le regroupement, ensuite l’effort intellectuel, la confiance dans nos
propes forces, lesquelles, bien entendu, étai entextrêment limitées, sortout au
début, c’est-à-dire entre décembre 1969 et février 1970, lorsque le premier
numéro est paru19 (SANTOS; ROLLAND, 2008, p.74).

Obviamente, não só estudantes desconhecidos colaboravam para a


feitura da DEBATE. Intelectuais, então, no início de sua carreira, mas já
conhecidos no meio acadêmico, e principalmente de esquerda, como Michael

17
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
18
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes em 15/01/2010.
19
A DEBATE serviu de remédio à desordem e a dispersão. Ela propunha em primeiro
lugar o agrupamento, seguidamente o esforço intelectual, a confiança nas nossas próprias
forças, as quais, naturalmente, eram extremamente limitadas, sobretudo no inicio, ou seja,
entre dezembro de 1969 e fevereiro de 1970, quando o primeiro número saiu. Depoimento
de Quartim de Moraes.
778 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Löwy e Roberto Schwarz estiveram presentes no início dos trabalhos do


coletivo. Löwy chegou a colaborar com o segundo texto publicado no
primeiro número da revista. Neste, como o próprio título explicita, “A
Tortura a Serviço do Capitalismo”, Löwy, ou melhor, Carlos Moura (seu
pseudônimo) mostra a importância da tortura para a manutenção do regime
instalado além-mar.
Lowy revela que sua inserção no grupo DEBATE se deu,
essencialmente, pela sua amizade com João Quartim de Moraes, a quem ele
diz que “admirava muito, por seu compromisso militante com a resistência
armada à ditadura, e sua inteligência política.” Além disso,

[...] me interessava a idéia, avançada no "Debate", de criar


condições para favorecer um diálogo, uma aproximação, e,
eventualmente, uma unificação, da esquerda revolucionária
brasileira. Mas também achava que o papel dos exilados, neste
respeito, era limitado, o essencial tendo que vir do Brasil mesmo.
(Mensagem recebida)20.

Dotada de uma base intelectual muito bem formada, a DEBATE (1970),


já em seu primeiro número, se mostrava disposta ao objetivo de ser “... pois,
fundamentalmente um instrumento de elaboração, de crítica e de divulgação
da política revolucionária no Brasil.” além de “uma tribuna de denúncia, em
todos os níveis, das atrocidades praticadas pela ditadura oligárquico-militar
contra todo o povo brasileiro, e em especial contra os militantes
revolucionários”. É importante lembrar que essa atividade deveria ser
realizada com base no mais pleno rigor teórico. Esta será a posição da revista
durante todo o primeiro período de produção da mesma, entre 1970 e 1974,
quando havia o que chamavam de “apoio crítico” à luta armada no Brasil.
Com o tempo, o apoio dará lugar a críticas ascendentes e mais ácidas,

20
LÖWY, Michael. Questões DEBATE. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por:
Rodrigo Pezzonia. Em: 14 mar. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 779

conforme vão percebendo que as organizações vão sendo dizimadas, e as


perdas humanas começam a tomar proporções inaceitáveis. Então, após o
golpe que derruba Allende, no Chile, em 1973, a DEBATE acaba por romper
definitivamente com a ideia de revolução armada. Já que, a partir desse
momento, conforme mostra a literatura e os testemunhos, muitos começam a
ter a ciência que a revolução iminente havia falhado, já que o efetivo humano
destacado para a revolução estava sendo dizimado pelas forças repressivas.
A DEBATE se diferenciará dos demais periódicos lançados no exílio,
como já mostrou Denise Rollemberg, principalmente por duas peculiaridades:
Longevidade: A DEBATE, dado o período no qual se insere (1970-
1982), vivencia do momento mais conturbado e violento da vida política
nacional até o processo de abertura e retorno dos exilados políticos ao Brasil,
quando, aliás, esta começa a ser publicada em novembro de 1980 (n° 36).
Volume de produção: Publica quarenta números em doze anos, assim,
lançando, em média, três números por ano em um ambiente diferente do
comum, o exílio.
Além disso, a revista não se limitou à língua portuguesa, sendo também
editada em espanhol pelo seu coletivo chileno com o título Teoria y Practica:
Problemas de la Revolución Brasileña. No Chile, dado os acontecimentos políticos
de 1973, poucos números foram editados, e os textos publicados, quase que
exclusivamente, eram traduções para o espanhol de textos em português
lançados na DEBATE. Mas, diferente da edição francesa, a chilena era em
forma esteticamente superior, inclusive disponibilizando de uma editora.
Já a DEBATE, de acordo com o próprio Quartim, inicia sua produção
de maneira muito tímida e artesanal. As capas dos cinco primeiros números,
para se ter uma ideia, eram todas feitas em letra set e seu interior
mimeografado. Em suas próprias palavras “J’aime penser que le contenu dépassait la
forme, car celle-ci était affreuse à voir: mauvais papier machine à écrire fort medíocre
780 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

[...]21.”(SANTOS; ROLLAND, 2008, p. 74.). Também de acordo com


Quartim, naquele período, a revista chegaria a ter a tiragem de uma a duas
centenas. Tiragem esta que parece não ter necessitado de maiores mecanismos
de promoção para esgotamento, já que, principalmente na França, o número
de exilados brasileiros era vultoso. Portanto, considerando-se que esta era uma
revista publicada na França em língua portuguesa, voltada para um público
específico, pode notar que não foi pouco lida. A sua distribuição, de acordo
com Abramovay, se dava por meio de consignação nas livrarias de Paris, ou
seja, os números eram deixados em livrarias no Quartier Latin, reduto dos
exilados brasileiros e latino-americanos em geral22. No depoimento de
Eduardo Abramovay, fica muito claro que, pelo menos no início, não se
precisava de maior infraestrutura para publicar a revista devido à sua
característica ainda muito artesanal. Segundo ele, todo o trabalho era feito
pelos membros do grupo, em particular Fabio Ionescu e ele próprio. A feitura
de DEBATE teria um caráter extremamente braçal e sua distribuição ocorria
nos encontros da Anistia Internacional, congressos e quaisquer tipos de
eventos que servissem de divulgação para as ideias do grupo 23.
Além do interesse dos exilados, a revista ainda teve outra importante
ajuda em seu início, como revela o próprio João Quartim, que embora nunca
tenha sido adepto das ideias trotskistas, teve grande apoio da tendência
marxista da IV internacional, sob o comando de Michel Raptis, também
conhecido como Pablo, apoio este que foi crucial para a edição dos dez
primeiros números do periódico.
Possivelmente, fora da França, a publicação chegaria por intermédio de
militantes que estariam nestes países de acolha, ainda mais que naquele

21
Gosto de pensar que o conteúdo excedia a forma, porque era terrível de ver: papel ruim,
máquina de escrever medíocre [...]
22
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010
23
Entrevista concedida por Eduardo Abramovay em 21/01/2011.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 781

momento, órgãos como a FBI (Frente Brasileira de Informação) tentavam


diminuir os espaços entre os exilados por meio de sua união, acredita-se que
também as publicações podiam ser passadas de mão em mão pelos militantes
exilados.
Quartim recorda que, com o tempo, a distribuição se dava em todo
lugar que havia grupos de exilados. No início, na França, e “depois foi
abrindo, né? Portugal com a revolução dos Cravos, Suécia por causa dos
marinheiros, alguns na Alemanha. Bom, e o Chile nos primeiros anos, não é?
Enquanto durou a experiência no Chile.” O criador da revista ainda lembra
que no “exílio eram alguns milhares, e alguns milhares é um público em
potencial em boa parte.” (Informação Verbal)24.
Outra preocupação do exilado tinha relação com a segurança. Para o
DEBATE, o sanar desta preocupação se limitava ao uso de nomes falsos para
escreverem no boletim, e assim não serem identificados. Por esse método,
várias pessoas hoje conhecidas passaram pelo grupo, além dos já citados como
Michael Löwy (Carlos Moura), outros como Fernando Gabeira (com o
pseudônimo F. Gomes) escreveram para a DEBATE nestes primeiros quatro
anos de produção da revista, e muitos outros vieram.
José Pacheco Pereira (1993), ao citar Nechaeu, diz que o revolucionário
não tem sequer nome, mas, na realidade, tem vários após abandonar o seu.
Assim foi também com a DEBATE. Todos os colaboradores da revista
escreveram sob codinomes, alguns usaram mais que um, por exemplo,
Ricardo Abramovay que escreve com os nomes de Pedro Alves e Josué Costa-
Saturnino, Maria Lygia Quartim escreveu como Joana Almeida, e relata
também ter usado nomes masculinos em outros escritos. A escolha dos
nomes é tratada com muito bom humor por Abramovay:

24
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
782 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

É, meu nome é Saturnino não sei das quantas... E isso é coisa do


João, esse jeito... Não sei se o João ainda tem esse jeito (rindo). O
João era um cara que tinha um humor fantástico. Apesar do mal
humor, dessa coisa ranzinza dele (ainda rindo), ele tinha um humor
fantástico, e era uma coisa muito irreverente, e tal. (Informação
Verbal)25.

Na opinião destes militantes com os quais se teve contato, os


codinomes não eram vistos como algo estritamente necessário para se manter
a segurança, mas a própria realidade do órgão político clandestino colocava a
necessidade de usá-los. Para Löwy, “O uso de pseudônimos era comum em
qualquer publicação do exílio, e também nas publicações da LCR (Liga
Comunista Revolucionaria) francesa. Era uma regra geral na época, não
significa a existência de uma repressão específica contra os exilados.”
(Mensagem Pessoal)26.
Já para Quartim:

Tinha que ser um pouco discreto, porque a rigor um refugiado


político não pode fazer política. Mas [quanto a] isso a tolerância era
enorme [...] [o uso de codinomes] Não era necessário, era prudente,
por exemplo, há fatos que eu sou contra revelar, todos os fatos [...].
(Informação Verbal)27.

Abramovay concorda com a tolerância em relação à repressão interna,


ou seja, a facilidade de se fazer política dentro do país de acolha.

Ah não, mas essa preocupação não existia [...] Zero [...] Nada, nada,
nada! Nada, porque a França era solidária. Para você ter uma idéia,
em 1974, nós tivemos um encontro de denúncia à ditadura no
Brasil. No lugar onde trabalhava Aluizio Nunes Ferreira, que não
era do DEBATE, tinha sido da ALN, e fazia parte de todas as
discussões, que era do grupo de estudos do Capital (Aluizio Nunes
Ferreira é um cara que conhece bem o Capital), e nesse encontro
Miterrand foi, por exemplo. Então em nenhum momento a gente
25
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
26
LÖWY, Michael. Questões DEBATE. Mensagem recebida por: <Rodrigo Pezzonia>.
Em: 14 mar. 2010.
27
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 783

tinha [...] Eu não me lembro de em qualquer momento, a gente ter


qualquer tipo de temor em relação à polícia francesa. (Informação
Verbal)28.

Mas, ao mesmo tempo, via com mais cautela a questão de segurança, e


diz que a participação no grupo era omitida até aos próprios companheiros de
exílio:

Pois nós tínhamos um ritual de organização, inclusive nós


tínhamos mesmo no exílio um ritual que consistia em nós sermos
clandestinos em relação aos nossos amigos próximos, mesmo no
exílio. Quer dizer, meus amigos em Paris não sabiam que eu era
membro do grupo DEBATE. [...] Foi só a partir da anistia, que
houve uma queda muito grande dos riscos, a gente vivia no exterior
com o sentimento que havia riscos, e de fato havia, né? Sei lá, não
era Argentina, não era Chile, mas havia. (Informação Verbal)29.

Essa possível contradição parece estar ligada muito mais a um medo


introjetado, talvez persecutório, no qual o indivíduo sabe que não precisa ter
medo, mas inconscientemente ele existe.
Quem ajuda a entender isto um pouco melhor é Quartim de Moraes,
que mostra, também em seu depoimento, que não havia repressão dos órgãos
oficiais franceses, mas “Não vamos dizer, também, que fomos acolhidos de
braços abertos, porque não fomos. Mas enfim, tolerados, aceitos, e a aceitação
era em função em boa medida da imagem horrível que o Brasil tinha, mesmo
nos meios burgueses, nos meio pensantes.” (Informação Verbal)30. Esta
imagem horrível à qual João Quartim se refere é a de “País da Tortura”,
alcunha que a nação adquiriu internacionalmente na virada dos anos 60 para
os 70.
Mas o que os militantes daquele período pareciam não saber é o que
Samantha Viz Quadrat afere em suas pesquisas. A partir da análise da

28
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
29
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
30
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
784 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

documentação da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da


Justiça, principalmente do CIEx (Centro de Informação do Exterior), órgão
subalterno ao Ministério das Relações Exteriores, Samantha nos mostra que,
diferente do que se imaginava, a inteligência brasileira estava ciente de todos
os passos dos movimentos de exilados brasileiros, e para isso contava com
métodos como “infiltração de agentes, violação de correspondências, troca de
informações com outros órgãos de inteligência e observação permanente dos
exilados.” (QUADRAT, 2004, 318). De acordo com a autora, as preocupações
dos militares eram basicamente quatro: possível retorno de exilados;
campanhas de denúncia das violações dos direitos humanos e pela anistia,
com as consequentes reuniões dos exilados para discutirem os rumos do
movimento; atuação dos brasileiros exilados no exterior; monitoramento das
viagens de brasileiros para o exterior.
Neste artigo, Quadrat nos mostra a preocupação dos militares com as
agitações dos movimentos pró-anistia e com o “denegrir”, no exterior, da
imagem do regime militar que vigorava. Revela também que, mesmo que não
houvesse repressão visível contra estes exilados, os militares seguiam passo a
passo cada um destes grupos ou indivíduos, logrando de muito êxito,
demonstrando de forma contundente que a repressão brasileira no que diz
respeito à sua inteligência, não tinha sido vitoriosa apenas no Brasil, como já
provado em outros trabalhos, mas também no que concerne à militância que
se encontrava fora das terras brasileiras. E o que não pudemos deixar de notar
é que, a partir dos depoimentos que colhemos, a atuação dos órgãos militares
foi pouco ou nada notada pelos exilados.
Outra informação do trabalho de Quadrat é de que estes órgãos não
tinham poderes de reprimir, mas sim, apenas informar. Por isso, a relativa
fluidez com a qual a DEBATE conseguia transitar na Europa.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 785

Mas a relativa facilidade com a qual a DEBATE conseguia transitar na


Europa não existia no Brasil, principalmente nos anos mais duros de
repressão, de acordo com Breno Raigorodsky e Lia Zatz, após o governo
Geisel, a inserção da DEBATE em solo brasileiro foi facilitada. Inclusive
revelando que, na segunda metade dos anos 70, coletivos se formam dentro
do Brasil em cidades como Campinas, São Paulo e Salvador, esta última, de
acordo com ele, somando mais de 60 militantes.
No entanto, no período que antecede a “abertura lenta e gradual” de
Geisel era quase impossível a entrada do periódico em terras brasileiras. Em
depoimento, Quartim revela:

Uma coisa é você tentar construir uma imprensa clandestina em


uma organização clandestina que está lutando, que tem uma
perspectiva de se fortalecer. E outra coisa é fazer um boletim de
exilados, sobretudo naquele começo. Mais tarde, ao longo dos anos
70, restabeleceram-se os contatos com o Brasil com um mínimo de
circulação, não digo de penetração, pois no Brasil era pouco, era
bem limitado. Poucos dirigentes que estavam aqui acompanhavam
e se interessavam por aquilo. [...] foi chegando depois, quando da
segunda metade dos anos 70. (Informação Verbal)31

Então, perguntado especificamente sobre a circulação no Brasil no


primeiro período da publicação (1970-1974) Quartim revela ser “... muito
esporádico. Tudo ia por microfilme. Depois até eu mesmo me perguntava se
valia a pena mesmo o risco de pegarem alguém com esses microfilmes.”
Então, foi perguntado ao professor: “E pegaram, não é?”. E ele responde com
outra pergunta: “Pois é, e vale a pena isso, assim dessa forma?” (Informação
Verbal)32. Com esta questão faz-se referência ao processo que pode ser
encontrado no Projeto “Brasil Nunca Mais” sob o nome do então militante
Eduardo Ribeiro Ralston, de setembro de 1971.

31
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
32
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
786 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Neste processo, o réu é acusado por ser detentor de 48 microfilmes,


além de material subversivo impresso:

Neste inquérito é informado que no dia 7 de setembro de 1971,


Eduardo Ribeiro Ralston foi detido por elementos do D.O.I., na
av. Brigadeiro Faria Lima, de fronte ao numero 380, ocasião em
que com ele foram encontradas cópias fotográficas de material
subversivo, bem como em sua residência microfilmes desse
material. (LAUDO POLICIAL, 1971, BNM, 373)33.

Foram encontrados em mãos de Eduardo, de acordo com o DOPS, 48


negativos bem como o clássico livro de Lênin, Que fazer?. Os 48 negativos, a
que se refere a autuação, dizem respeito aos primeiros números da DEBATE.
Eduardo foi primeiramente denunciado como incurso nas sanções do
artigo 13, no Decreto de Lei 898/69, de setembro de 1969, o qual proíbe
“Redistribuir material ou fundos de propaganda de proveniência estrangeira,
sob qualquer forma ou a qualquer título, para a infiltração de doutrinas ou
idéias incompatíveis com a constituição.” (LAUDO POLICIAL, 1971, BNM,
373). Mais tarde, a procuradoria pediu a condenação do réu em outro artigo, o
16, que proíbe “Divulgar por qualquer meio de comunicação social, notícia
falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado de modo a
indispor o povo com as autoridades instituídas.”34.
A acusação pediu a desclassificação do artigo 13 para o 16, com base no
conteúdo do material apreendido, ou seja, os primeiros números da
DEBATE. Para o procurador “nos escritos de fls., com exclusão onde se faz a
crítica de ação esquerdista, tudo é posição distorcida dos fatos, comentários

33
No laudo pericial, datado de 19 de novembro de 1971, os peritos Lamartine Bizzarro
Mendes e Ernesto Perello, atestam os negativos não serem de microfilmes, e sim
microfotografias, ou seja, “negativos obtidos com máquina fotográfica conhecida no
comércio” e que podem ser “copiados sem a necessidade de aparelhamento especializado”.
Assim, negativos fotográficos comuns. BNM, 373.
34
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/126023/decreto-lei-898-69. Acesso em:
10/06/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 787

tendenciosos, visando denegrir os poderes dirigentes aos olhos do povo.”


Assim, é claro, onde a autocrítica da luta armada se fazia, era a constatação da
verdade, enquanto que a crítica ao regime vigente era notícia falsa e
tendenciosa.
Em resumo, no julgamento, que ocorreu dia 28 de dezembro de 1971,
decidiu-se procedente o processo contra Ralston. Ele foi condenado a nove
meses de reclusão, mas com base no parágrafo único do artigo 5035 da mesma
lei na qual foi autuado, esta pena foi reduzida para três meses de detenção, os
quais já haviam sido cumpridos, sendo então, logicamente, depois de muitas
sevícias, solto. O processo ainda se desenvolveu por mais cerca de um ano.
Apelações de ambos os lados ocorreram até que em 11 de dezembro de 1972,
Eduardo Ribeiro Ralston foi absolvido.
Esta foi, até o momento da presente pesquisa, o único indício da
entrada no país da DEBATE nos primeiros anos de sua publicação. O que, a
partir de 1974-75, mudará sensivelmente, já que, como mostrado, a DEBATE
terá maior visibilidade e militância em terras brasileiras.

***

Neste artigo, procurou-se, longe de fazer uma análise político-


ideológica dos primeiros anos da revista DEBATE: Problemas da Revolução
Brasileira, dedicar apenas a mostrar o quão importante foram, para a
comunidade exilada, as iniciativas como a deste coletivo. O DEBATE foi,
como já mostrado por meio dos depoimentos de seus quadros, muito
relevante para uma parcela de jovens militantes que, longe de seu país, de sua

35
“Quando a tentativa não constitui por si só crime, é punida com a pena combinada a
este, reduzido de um a dois terços.”
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/126023/decreto-lei-898-69. Acesso em:
10/06/2010.
788 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

família e de seus amigos tiveram oportunidade de estudar e se especializar,


formando, assim, mais adiante, imprescindível capital humano para aquela que
seria uma luta democrática pelo fim da ditadura. Longe do Brasil, e sob
influência deste grupo, muitos jovens no momento de maior influência da luta
armada, reviram suas posições, desistiram de uma reação beligerante contra o
regime militar e se concentraram nas vias políticas de reação.
Tendo em vista este largo período em que a DEBATE se insere, notou-
se que ela também não deixou de se transformar. O periódico, que tem
inicialmente o objetivo de ser um organismo de apoio crítico ao movimento
armado contra a ditadura, com o tempo e com a ciência de que a luta armada
havia sido quase dizimada, transforma-se em mesa de debate e crítica radical à
guerrilha urbana36. Graças à extensão de sua vida produtiva, ela foi capaz de
participar de todo o processo evolutivo dos movimentos de resistência, desde
os de aspirações armadas, depois se posicionando acerca de vários assuntos
espinhosos (sindicalismo, feminismo, racismo) até se envolver com as
discussões referentes à resistência dos hoje chamados “novos movimentos
sociais”, que culmina com o processo de anistia, e a volta daqueles que ainda
estavam em terras estrangeiras37, levando então a DEBATE a firmar bases no
Brasil e a existir até o ano de 1982.

Referências:

Fontes
DEBATE. Apresentação. Paris - Fr. N° 1, Fev. 1970.

Bibliográficas

36
Projeto Brasil Nunca Mais; Tomo III – Perfil dos Atingidos, p. 103.
37
Alguns exilados voltam já na primeira brecha na abertura do governo Geisel, em 1974.
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Industrialização, Urbanização e Pensamento
Jurídico no Brasil entre os anos de 1945 e 1964

Patrícia Graziela GONÇALVES*

Introdução

N
o presente trabalho objetivamos fazer uma articulação entre as
características da sociedade brasileira entre os anos de 1945 e
1964, marcada por intensas transformações econômicas e sociais,
e os reflexos destas no pensamento jurídico-penal do período. Nossa intenção
é, justamente, tentar analisar como as transformações sociais influenciaram na
constituição de um pensamento jurídico com base no qual determinados
segmentos sociais foram considerados mais propensos ao crime devido ao seu
não-ajustamento à sociedade pretensamente moderna que se configurava.
Para essa análise, remetemo-nos, primeiramente, à obra já clássica de
Georg Rusche e Otto Kirchheimer, Punição e Estrutura Social, publicada pela
primeira vez em 1939, na qual os autores, pioneiramente, afirmaram que as
práticas jurídico-penais não podem ser analisadas sem se levar em
consideração a realidade histórica na qual ocorre o processo de movimentação
das normas jurídicas. Também Michel Foucault, algumas décadas depois, ao
lançar a obra Vigiar e Punir, em 1969, reafirmou a importância de se analisar os

*
Mestranda em História/PPH-UEM/Bolsista: CAPES. Orientador: Dr. Rivail Carvalho
Rolim.
792 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sistemas punitivos concretos como fenômenos sociais, os quais não poderiam


ser explicados simplesmente pela armadura jurídica da sociedade, ressaltando,
no entanto, que as práticas de punição seriam tecnologias de poder, articuladas
de maneira complexa com as demais práticas sociais.
Posteriormente, outros autores afirmaram a importância de se analisar o
pensamento jurídico e as teorias penais sem dissociá-los da dinâmica histórica.
Gizlene Neder (1995), por exemplo, ressaltou que “a análise das normas
jurídicas no acontecer social deve privilegiar o processo histórico,
promovendo um recorte em sua conjuntura a fim de viabilizar a análise dos
mecanismos de estruturação e de movimentação dessas normas” (NEDER,
1995, p. 25).
Assim, encaminharemos nossas reflexões sobre o pensamento jurídico
no Brasil de meados do século XX, valendo-se de uma abordagem conjunta
entre as transformações econômicas e sociais ocorridas naquele período e os
reflexos das mesmas no discurso de alguns juristas sobre as características
desse processo histórico. Para tal, utilizaremos como fonte artigos escritos por
juristas em revistas especializadas no campo do direito, articulando-os com a
bibliografia sobre o contexto histórico em questão.

Uma sociedade em “movimento”: industrialização, modernização e


urbanização no Brasil de meados do século XX

Os anos que se estendem de 1945 a 1964, no Brasil, foram marcados


por grandes transformações econômicas e sociais, acarretando intenso
processo de industrialização, modernização e urbanização da sociedade com
consequente mudança nos padrões socioculturais, os quais foram refletidos no
pensamento jurídico. A sociedade do período foi paradoxalmente marcada
pelo desenvolvimento econômico e pela acentuação dos desequilíbrios e as
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 793

desigualdades já existentes, persistindo acentuados níveis de desigualdade e


pobreza no país.
De início, cabe ressaltar que, de acordo com Nabil Bonduki (1994), no
Brasil pós Segunda Guerra, havia uma significativa mobilização dos grupos
populares urbanos que vivenciavam um clima de euforia criado pelo fim do
Estado Novo e pelo processo de redemocratização política. Aliado a isso,
vivia-se um período de excepcional crescimento e desenvolvimento
econômico, proporcionado, em parte, pela conjuntura de guerra, que
provocou, ao mesmo tempo, um aumento dos lucros dos industriais e uma
crise de abastecimento de gêneros de toda espécie, agravando as condições de
vida de todos os assalariados.
O quadro de carência generalizada, concomitantemente ao
desenvolvimento econômico e ao influxo populacional provocado pelas
migrações internas, gerou uma significativa sequência de protestos populares.
“Assiste-se, assim, sobretudo entre 1945 e 1947, a um sem número de ações
de protesto contra as condições de vida urbana que, como fica claro ao se
rever os jornais diários da época, marcaram o cenário das cidades brasileiras”
(BONDUKI, 1994, p. 114).
Nessa direção, são sintomáticas as palavras de Nelson Hungria (1947),
um dos juristas mais importantes do período, pronunciadas no discurso de
abertura da I Conferência Pan-Americana de Criminologia, que foi realizada
em julho de 1947, na cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal) e em São
Paulo. Na ocasião, Hungria ressaltou a importância de se combater “um dos
mais graves e obstinados problemas da sociedade humana, qual seja o da
delinquência” (HUNGRIA, 1947, p. 266). De acordo com Hungria, a
sociedade vivenciava um momento de aumento da criminalidade:

Estamos vivendo uma época de alarmante recrudescimento de


criminalidade. Cresce o número de conscritos no crime, a
794 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

precocidade para o delito assume proporções até agora


desconhecidas, a reincidência desacredita o atual aparelhamento da
justiça punitiva, a delinqüência organiza-se como profissão ou meio
de luta pela vida (HUNGRIA, 1947, p. 267)

Essas palavras de Hungria, provavelmente, referiam-se ao processo


descrito por Bonduki (1994) entre os anos de 1945 e 1947, no qual houve
intensas mobilizações sociais na luta pela obtenção de gêneros necessários à
sobrevivência, num contexto paradoxalmente marcado pelo início do
processo de desenvolvimento do país, mais ainda atrelado às condições
decorrentes do período de guerra. Nos jornais analisados por Bonduki (1994),
as notícias são principalmente sobre delitos provocados pela busca de
alimentos em estabelecimentos comerciais1. Nessa direção, Hungria ressaltou
que:

A iteração quotidiana dos assaltos a mão armada e a difusão do


aguerrido gangsterismo, em pleno coração das cidades, são índices do
crescente arrojo dos que vivem à margem da lei. Foi mesmo
cometido o asserto de que o crime evoluíra dos meios primitivos
da violência cruenta para os recursos vulpianos da fraude
(HUNGRIA, 1947, p. 267).

Hungria questionou como resolver esse “intricado e desconcertante”


problema, “sem perder de vista as árduas dificuldades de execução de um
novo programa de ação do Estado, notadamente nos países que não dispõem
de largueza financeira?” (HUNGRIA, 1947, p. 267). No entanto, essa
preocupação com os recursos financeiros do Estado para resolver o problema
da delinquência deve ter sido parcialmente resolvido, se levarmos em conta
que o período subsequente foi marcado por intenso desenvolvimento

1
O autor citou edições do jornal Correio Paulistano, publicadas no ano de 1946, nos quais
noticiava-se ataques a estabelecimentos comerciais empreendidos por indivíduos isolados
ou por grupos de pessoas, bem como de protestos populares contra o aumento do preço
dos alimentos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 795

econômico, notadamente da sociedade brasileira. Entretanto, esse


desenvolvimento trouxe consigo um agravamento dos problemas sociais já
existentes, bem como o surgimento de novos.
Assim, temos que após a Segunda Guerra Mundial e o fim do Estado
Novo, a sociedade brasileira inseriu-se num processo de modernização e
industrialização sem precedentes. As transformações foram de tamanha
intensidade que deram nova configuração às cidades como São Paulo e Rio de
Janeiro, por exemplo. Segundo Maria Armandina do Nascimento Arruda
(2001, p. 18), essas mudanças estavam associadas à ideia de progresso, no
plano mais imediato, e manifestava-se nos diferentes modos de
reconhecimento do moderno. Sobre este período, escreve João Manuel C.
Mello e Fernando Novais:

Entre 1945 e 1964, vivemos os momentos decisivos do processo


de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente
mais avançados, que exigiam investimentos de grande porte; as
migrações internas e a urbanização ganham um ritmo acelerado
(MELLO; NOVAIS, 1998, p. 561-2).

De acordo com Ângela de Castro Gomes, “a década de 1950 [...]


recoloca de maneira particularmente enfática, para os políticos, intelectuais e
para a sociedade em geral, as questões da construção de um Estado moderno
no Brasil” (GOMES, 1998, p. 539). Nesse sentido, segundo João Manuel C.
Mello e Fernando Novais (1998), entre as décadas de 1950 e 1970, o país
construiu uma economia moderna e incorporou padrões de produção de bens
e de consumo característicos dos países mais desenvolvidos.
Sobre as características desse processo de modernização ocorrido na
sociedade brasileira entre as décadas de 1950 e 1960, são bastante
entusiasmadas as palavras de Mello e Novais (1998). De acordo com os
autores, o desenvolvimento da indústria nacional poderia ser percebido por
796 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

toda parte. Éramos capazes de produzir quase tudo. As indústrias pesadas, tais
como a Companhia Siderúrgica Nacional – na Cosipa, na Usiminas, na
Acesita, em Tubarão, fabricavam o aço. Os derivados do petróleo se tornam
mais acessíveis e baratos: o óleo diesel, a gasolina, o óleo combustível, o
plástico, os produtos de limpeza e a fibra sintética. Do mesmo modo, a
engenharia brasileira estava avançada e era capaz de produzir as gigantescas
hidroelétricas. As indústrias do alumínio, do cimento, do vidro e do papel
cresceram, tal como as indústrias de alimentos, têxtil, de confecções, calçados,
bebidas, móveis e farmacêutica. Além disso, o sistema rodoviário foi
desenhado, ligando as diversas regiões do país.
As cidades modernizavam-se rapidamente com o surgimento de
arranha-céus construídos com tecnologia nacional, equipados com elevadores,
feitos de aço de primeira categoria, fibras de vidro. A indústria
automobilística, implantada pelo governo de Juscelino Kubitschek, nesse
momento produzia não apenas caminhões pesados, caminhões médios, mas
também caminhonetes, ônibus, tratores e utilitários de passeio.
Nas cidades espalhadas por todo o Brasil ocorreu o processo de
“implantação das redes de água e esgoto, construção de grandes avenidas,
edificação de uma arquitetura moderna, ruas pavimentadas e iluminadas”
(ROLIM, 2006, p. 180). Essas transformações em busca da modernidade
criaram um otimismo nas elites brasileiras, que manifestavam a crença de que
o Brasil poderia, em pouco tempo, ingressar no “Primeiro Mundo”. De
acordo com Mello e Novais, entre os anos de 1950 e 1979, havia a sensação
de que faltava pouco para o Brasil se tornar uma nação moderna.

Na década de 1950, alguns imaginavam até que estaríamos


assistindo ao nascimento de uma nova civilização nos trópicos, que
combinava a incorporação de conquistas materiais do capitalismo
com a persistência dos traços de caráter que nos singularizavam
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 797

como povo: a cordialidade, a criatividade, a tolerância. (MELLO;


NOVAIS, 1998, p. 560).

Isso porque, segundo os autores, as conquistas materiais davam a


impressão de um grande salto econômico que possibilitara o acesso das
classes mais abastadas aos produtos eletroeletrônicos – ferro elétrico, fogão a
gás, chuveiro elétrico, liquidificador, batedeira, geladeira, secador de cabelos,
máquina de barbear, aspirador de pó, entre outros –, aos alimentos
industrializados, aos vestuários mais modernos, e aos hábitos antes
inexistentes, como “comer fora”, por exemplo. De acordo com Rivail
Carvalho Rolim,

Meios de comunicação de massa como o rádio, principal veículo de


preferência popular, a televisão, que começava a dar seus primeiros
sinais de vida, a imprensa escrita e o cinema tratavam de difundir
essa crença unilateral do progresso e atualizar o país em relação à
modernidade dos centros industrializados (ROLIM, 2007, p. 6).

Esse processo de desenvolvimento do país colocou a “sociedade em


movimento”, usando as palavras de Mello e Novais (1998, p. 574), e implicou
em transferências maciças de população das zonas rurais para as urbanas,
formando grandes correntes migratórias. Antonio Luigi Negro e Fernando
Teixeira da Silva, em trabalho no qual analisaram a relação entre
trabalhadores, sindicatos e política no período de 1945 e 1964, relatam que,

Entre 1945 e 1964, qualquer cidadão que atinasse para os


problemas econômicos e sociais do Brasil se deparava com uma
industrialização rápida – pesada ou de bens de consumo duráveis.
Contudo, enquanto uns apreciavam a matéria, migrantes saíam do
campo para a cidade e encontravam lugar nas indústrias (NEGRO;
SILVA, 2008, p. 49).

Considerados “matutos, jecas e caipiras” (MELLO; NOVAIS, 1998, p.


574) pelas pessoas que viviam na cidade, os moradores do campo, dos
798 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

vilarejos e das cidadezinhas com menos de 20 mil habitantes foram atraídos


para os grandes centros urbanos, mas foram considerados “inferiores” por
aqueles que se viam como “superiores” na sociedade do período. De acordo
com Eunice Ribeiro Durhan:

No Brasil, o desenvolvimento econômico resultante da


industrialização está associado a dois fenômenos complementares e
concomitantes: o incremento das desigualdades regionais e a
constituição das metrópoles. Tanto um quanto outro fenômeno
implicam na formação de grandes correntes de migração interna,
através das quais se processa uma maciça redistribuição de
população (DURHAN, 1978, p. 20).

A autora realizou um estudo sobre migrantes rurais, apontados como


suportes do tradicionalismo e das práticas personalistas e paternalistas do
clientelismo, e sobre as estratégias utilizadas pelos mesmos na mobilização de
relações pessoais como única saída para sua sobrevivência, dada à ordem
institucional vigente2. De acordo com a autora, o ritmo acelerado dos
movimentos migratórios internos no Brasil e o consequente processo de
urbanização decorreram de transformações econômicas e sociais profundas,
não podendo esse fenômeno ser compreendido isoladamente, tendo refletido
em transformações no nível do comportamento dos sujeitos que viveram esse
processo:

A industrialização e a urbanização significam a quebra de


isolamento de comunidades tradicionais, a crise do sistema
produtivo rural e da estrutura tradicional de autoridade, a negação
de velhos valores, a adoção de novos padrões de comportamento
(DURHAN, 1978, p. 8).

A população migrante fugia da miséria e da extrema pobreza em que


vivia no campo, fruto de uma estrutura agrária desigual que legava famílias a
2
Essa formulação foi feita por Alba Zaluar (1985, p. 60).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 799

submissão e a precárias condições de vida. Segundo Eunice Ribeiro Durhan


(1978, p. 145), “para o trabalhador rural, a migração se apresenta como uma
tentativa de ‘melhorar de vida’, isto é, de restabelecer, em nível mais alto, o
equilíbrio entre as necessidades socialmente definidas e a remuneração do
trabalho”. Escrevendo, posteriormente e em concordância com a autora,
Mello e Novais (1998, p. 574) ressaltam que “a vida da cidade atrai e fixa
porque oferece melhores oportunidades e acena para um futuro de progresso
individual, mas também porque é considerada uma forma superior de vida. A
vida do campo, ao contrário, repele e expulsa”.
Foi desse modo que migraram para as cidades, nos anos 50, cerca de 8
milhões de pessoas, ou 24% da população rural naquela década, e cerca de 14
milhões de pessoas nos anos 60, ou 36% da população naquela década
(MELLO; NOVAIS, 1998, p. 581). Segundo Rivail Carvalho Rolim (2006, p.
181), “a taxa de crescimento anual das cidades do país na década de 1950
chegou a 6,31% ao ano, caindo nas décadas de 1960 e seguintes”. Essa
população se concentrava em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio
de Janeiro que, na década de 1960, reuniam 24,01% da população urbanizada.
Na cidade de São Paulo a população era de 1.326.261 habitantes em 1940,
subindo com as migrações para 2.198.096 habitantes, em 1950 (DURHAN,
1978, p. 29).

Nas cidades, em São Paulo, o centro do progresso industrial, mas


também no Rio de Janeiro, a capital do Brasil até 1960, em Belo
Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza, Porto Alegre, até em
algumas cidades médias, a industrialização acelerada a urbanização
rápida vão criando novas oportunidades de vida, oportunidades de
investimento e oportunidades de trabalho (MELLO; NOVAIS,
1998, p. 581).

No entanto, de acordo com Eunice Ribeiro Durhan (1978), como o


migrante recém-chegado se caracterizava pela falta de qualificação e não
800 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

possuía os documentos necessários, se marginalizava no processo produtivo e


se empregava como trabalhador não registrado, não contava com nenhuma
proteção legal e dependia do patrão de uma forma mais completa, recriando
uma situação, em parte, muito semelhante à da clientela.

Nessas condições, e como o trabalhador frequentemente ignora as


condições do mercado de trabalho, o pagamento é sempre muito
reduzido, inferior ao salário mínimo e insuficiente, inclusive, para
prover a subsistência e reprodução da mão-de-obra (DURHAN,
1978, p. 150).

Na verdade, de acordo com Negro e Silva (2008), o migrante rural não


era considerado um trabalhador cidadão por muitos intelectuais ou políticos,
dirigentes empresariais e do governo. Isto porque o “trabalhador de origem
rural era visto com as mesmas carências atribuídas ao antigo trabalhador
escravo ou pobre” (NEGRO; SILVA, 2008, p. 49). Para esses autores, se o
imigrante havia substituído o trabalho dos negros na virada do século XIX
para o XX, “de 1945 em diante a figura do sujeito sem voz nem vez era
reintroduzida em cena no papel do trabalhador brasileiro” (NEGRO; SILVA,
2008, p. 49). Assim, o trabalhador brasileiro, egresso da escravidão ou do
campo era visto como “servo do atraso”, sem capacidade de inventar suas
tradições de forma independente.
É importante frisar que essa população que migrou para as grandes
cidades acabou por se instalar em áreas marginalizadas ou como puderam,
aglomerando-se com um contingente de pessoas pobres que já residiam nas
áreas periféricas das cidades e que também não foram incluídas de modo
satisfatório no processo produtivo. Referimo-nos, principalmente, à
população negra, que foi abandonada à própria sorte após abolição da
escravidão.
Em 1947, Nelson Hungria estava preocupado com o aumento da
criminalidade na sociedade brasileira, e essa preocupação continuou presente
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 801

no pensamento jurídico, aumentando de intensidade devido às transformações


em curso na sociedade, como visto anteriormente. Em 1952, Romão Cortes
Lacerda, Desembargador do tribunal de justiça da cidade do Rio de Janeiro
(Distrito Federal), publicou um artigo na Revista Forense demonstrando
preocupação sobre criminalidade no Brasil. Lacerda escreveu que havia uma
habitual indiferença com que eram encarados alguns problemas sociais, os
quais interessavam à coletividade, ressaltando que, no entanto, que “já
algumas vozes se fazem ouvir acerca do alarmante incremento da
criminalidade violenta entre nós, notadamente na modalidade violenta e da
crise por que passa a repressão” (LACERDA, 1952, p. 520). Lacerda apontou
que o próprio Nelson Hungria havia assinalado, no ano anterior, que no “Rio
de Janeiro se vinha cometendo um homicídio por dia” (LACERDA, 1952, p.
520). Na sequência, demonstrou a preocupação com o aumento das
estatísticas criminais:

Pode-se, sem receio de erro, afirmar que de então pra cá mais


carregadas se vêm mostrando as estatísticas, e é lícito dizer que
somente nessa Capital se comete mais de um, senão dois
homicídios em média, cada 24 horas. E isso sem se levarem em
conta as tentativas de homicídio, equivalentes morais e sociológicos
desse crime, as quais a nossa inalterada benignidade qualifica como
lesões corporais, apesar de punidas, na legislação de povos cultos,
como a Franca, com o mesmo rigor que os homicídios
consumados (LACERDA, 1952, p. 520-521).

Lacerda ressaltou que essas estatísticas eram bastante significativas


quando comparadas a cidades como Londres, por exemplo, que possuía uma
população quatro ou cinco vezes maior que a do Rio de Janeiro, mas cujos
dados apontavam para cerca de 40 homicídios por ano. Em comparação com
a cidade de Chicago, Lacerda argumentou que “Chicago com 4.500.000
habitantes, em época de anormal criminalidade, viu, num ano, 365 mortes; o
Rio, com menos da metade daquela população, assiste, cada ano, a homicídios
802 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

em número muito maior” (LACERDA, 1952, p. 520). A solução para esse


problema era encontrar e punir exemplarmente aqueles considerados
criminosos.
Percebemos, desse modo, que havia uma clara preocupação com o
aumento da criminalidade na sociedade brasileira, a qual vivenciava intenso
processo de industrialização e modernização, com consequente urbanização e
crescimento populacional nas cidades, bem como aumento das desigualdades
sociais. Em meio ao euforismo das elites com o “progresso” trazido pela
industrialização, determinados segmentos sociais se encontravam em uma
situação não condizente com as transformações econômicas do período.
De acordo com Mello e Novais, a desigualdade era extraordinária no
Brasil do início da década de 1950. “Basta comparar os três tipos sociais que
foram protagonistas da industrialização acelerada e da rápida industrialização:
o imigrante estrangeiro, o migrante rural e o negro urbano e seus
descendentes” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 582).
Sobre os imigrantes, Mello e Novais (1998, p. 582) afirmam que eles
mesmos ou os seus filhos já estavam em São Paulo – o centro da
industrialização – havia algumas gerações e construíram famílias
semipatriarcais socialmente estabelecidas. Obtiveram algum progresso, sendo
muitas vezes donos de pequenos negócios ou trabalhavam por conta própria,
mas poucos se tornaram grandes empresários.

Além disso, muitas vezes com enormes sacrifícios, puderam


dar educação formal aos filhos – alguns já tendo, naquela
época, chegado à universidade, mesmo que em profissões
consideradas então de segunda categoria (MELLO;
NOVAIS, 1998, p. 582).

Em relação aos negros, estes estavam em situação de abandono nas


cidades e se ocupavam de trabalhos mais pesados e mais precários, “muitos
vivendo de expediente, amontoada em habitações imundas, favelas e cortiços,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 803

mergulhada também no analfabetismo, na desnutrição e na doença”


(MELLO; NOVAIS, 1998, p. 583). De acordo com os autores, até a década
de 1930, poucos tinham conseguido ocupar algum cargo público, mesmo que
subalterno, ou algum trabalho mais valorizado, como marceneiro, costureira,
alfaiate. A maioria era analfabeta e apenas um ou outro tinham chegado à
universidade. Talvez essa situação tenha melhorado um pouco na década de
1950, mas havia limites muito estreitos deixados pela escravidão para
progredir na ordem social competitiva. Estavam, desse modo, muito próximos
da condição dos migrantes rurais, exposta anteriormente. De acordo com o
jurista Nelson Hungria, esta era a situação dos negros no período:

Nas cidades, são ‘gente do morro’, congestionando improvisados


‘barracos’ ou ‘mocambos’, os párias das ‘cabeças de porco’ e dos
porões infectos, aglomerando-se numa promiscuidade de arrepiar,
a braços com todas as necessidades, forçadamente habituados à
penúria, subnutridos, esfarrapados, sem o mais elementar conforto
e higiene, lavrados pela sífilis e pelo álcool, com um insuficiente
mínimo de aquisições éticas ou com critérios morais deturpados,
entregues à licenciosidade sexual (sem exclusão do próprio incesto)
e aos vícios de toda ordem, solidários em todos os maus costumes
(formando-se entre certos grupos um verdadeiro sprit de corps para o
crime), sem qualquer espécie de vida recreativa, uns sem profissão
definida e outros mal ganhando para o próprio sustento e o da
família provinda da mancebia (HUNGRIA, 1951, p. 11).

Essas palavras de Nelson Hungria são bastante expressivas sobre a


condição dos negros na sociedade brasileira de meados do século XX. O
jurista escreveu um artigo3, em 1951, publicado na Revista Forense, no qual
desenvolveu a ideia de que os “homens de cor” cometiam mais crimes que os
brancos por serem social e culturalmente inferiores e estarem mal-ajustados à
sociedade do período. Afirmou, ainda, que os negros formavam o “grosso”
3
HUNGRIA, Nelson. A criminalidade dos Homens de cor no Brasil. Revista Forense, Rio de
Janeiro, v. 134, mar./abr. 1951. Este artigo foi analisado minuciosamente por ROLIM
(2007), em artigo no qual procurou demonstrar o pensamento jurídico sobre a
criminalidade negra no Brasil de meados do século XX.
804 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

das favelas, as quais eram focos criminógenos ou áreas de delinquência


endêmica. “Nas áreas rurais, o seu teor de vida não é melhor” (HUNGRIA,
1951, p. 11), já que continuavam escravizados e ocupados dos trabalhos mais
rudes, vivendo em desabrigadas moradias de taquara e sapé.
Analisando quantitativamente os homens presos na década de 1950,
Hungria (1951, p. 5) revelou que “o coeficiente de criminalidade dos homens
de cor (negros e mulatos, isto é, mestiços indo-europeus e negros), é, no
Brasil, comparativamente, muito maior que o da população branca”. De
acordo com o autor, em alguns Estados e na cidade do Rio de Janeiro
(Distrito Federal), nos quais haveria elevada porcentagem demográfica de
“homens de cor”, mesmo sendo sensivelmente em menos número do que os
brancos, eles eram responsáveis pelas “cifras culminantes nos quadros de
estatística criminal” (HUNGRIA, 1951, p. 5).
Hungria ressaltou que, na cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal),
por exemplo, que possuía uma população de 2.138.200 habitantes, sendo
1.506.672 brancos e 631.528 “homens de cor”, entre os quais havia 762 presos
brancos e 1.170 presos negros, distribuídos entre a Penitenciária Central e a
Colônia Penal Cândido Mendes. “Verifica-se, portanto que,
proporcionalmente, os homens de cor praticam crimes com frequência três
vezes e meia maior que os brancos. Representam 30% da população e
contribuem com 61% da criminalidade” (HUNGRIA, 1951, p. 5).
Para o Estado de Minas Gerais as cifras também eram elevadas. A
população do Estado era de 8.245.975 habitantes, sendo 5.062.630 brancos e
3.183.345 “homens de cor”. No entanto, a Penitenciária de Neves contava
com 240 presos brancos e 422 presos homens “de cor”. Assim, “constituindo
39% da população geral, concorrem os homens de cor com 64% da
delinquência. Proporcionalmente, três vezes mais que os brancos”
(HUNGRIA, 1951, p. 5). Já para o Estado do Rio de Janeiro, que possuía uma
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 805

população de 2.239.667 habitantes, dos quais 1.337.732 eram brancos e


901.935 “homens de cor”, dos 126 sentenciados naquele período, recolhidos
na Penitenciária de Niterói, 55 eram brancos e 71 “homens de cor”. “Assim,
representando 40% da população, os homens de cor contribuem com 57% de
criminosos, o que vale dizer que praticam [...] proporcionalmente, três vezes
mais crimes que os brancos” (HUNGRIA, 1951, p. 5)
Em relação a São Paulo, de acordo com as estatísticas apresentadas por
Hungria, o número de “homens de cor” era relativamente muito menor do
que o número de brancos: dos 8.713.915 habitantes, 7.400.299 eram brancos e
apenas 1.048.215 eram “homens de cor”. No entanto, a Penitenciária de
Carandiru contava com 217 sentenciados brancos e 105 “homens de cor”.
Assim, “formando 12% da população total, contribuem os homens de cor
com 33% da criminalidade (devendo notar-se que, em porcentagem, os
condenados por crime de furto, a sua percentagem é de 45%)” (HUNGRIA,
1951, p. 5). Desse modo, em proporção, os “homens de cor” cometiam três
vezes mais crimes do que os brancos.
Não entrando no mérito das estatísticas apontadas por Hungria, mas
atentando principalmente para o dado de que os “homens de cor” eram
responsáveis por 45% dos furtos praticados na cidade de São Paulo, mesmo
representando apenas 12% da população, percebemos que a população negra
das grandes cidades encontrava-se numa situação socioeconômica que a
impelia para o crime.
Percebemos, assim, que o padrão de vida de determinados grupos
sociais que residiam nas cidades não condizia com os novos padrões
introduzidos pelo processo de modernização da sociedade. Estes grupos
ficaram nas margens do desenvolvimento econômico que, na verdade, aguçou
os desequilíbrios e as desigualdades já existentes. “Portanto, apesar de ter
havido um relativo dinamismo do emprego industrial, houve a persistência de
806 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

acentuados níveis de desigualdade e pobreza no país” (ROLIM, 2007, p. 7).


De acordo com Lucio Kowarick, o modelo econômico implantado no pós-
guerra associou até o final da década de 1890 “acelerado crescimento
econômico com acentuada pauperização” (KOWARICK, 1994, p. 59).

A luta pela moradia: loteamentos periféricos, favelas e autoconstrução

O processo de intensificação da industrialização e consequente


urbanização da sociedade brasileira, ocorrido em meados do século XX
colocou em pauta a questão da moradia para as famílias de trabalhadores que
migraram para as cidades em busca de trabalho e melhores condições de vida,
bem como para as famílias que já residiam nas áreas urbanas, mas que se
viram diante de uma situação na qual não podiam mais pagar os aluguéis pelas
antigas moradias. De acordo com Licia do Prado Valladares (2005), que
analisa a “invenção” da favela, ou seja, os estigmas que foram construídos
sobre as mesmas,

Após a Segunda Guerra Mundial tanto no Brasil conjunto da


América Latina, a retomada do crescimento econômico acelera o
crescimento urbano, e o afluxo dos migrantes rurais para as cidades
também intensifica o crescimento das favelas, tornando mais aguda
a questão da moradia para as classes populares (VALLADARES,
2005, p. 74).

De acordo com Lucio Kowarick (1979), até a década de 1930, o


problema da moradia para os trabalhadores urbanos era resolvido pelas
empresas por meio da construção de “vilas operárias”4, geralmente localizadas
aos arredores das fábricas, sendo estas vendidas ou alugadas aos
trabalhadores. Ao fornecer a moradia, a empresa diminuía os gastos dos

4
Sobre as vilas operárias em São Paulo, a socióloga Eva Alterman Blay possui vasta
produção bibliográfica, sendo, talvez, a obra mais significativa: BLAY, Eva Alterman. Eu
não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 807

operários com sua própria sobrevivência, permitindo que os salários fossem


rebaixados. Este tipo de solução era viável já que o número de trabalhadores a
ser alojado era pequeno, pois estava destinado aos operários menos
disponíveis no mercado. Dessa forma, os custos com o terreno e com a
construção compensavam a fixação do trabalhador na empresa.
No entanto, esse cenário muda radicalmente na década de 1950. De
acordo com o autor, o aumento na oferta da mão-de-obra, provocado pelo
intenso processo das migrações internas, aumentou a pressão sobre a oferta
de habitações populares. Paralelamente, houve uma valorização dos terrenos
fabris e residenciais, tornando inviável a construção de moradias pelas
empresas.
Dessa forma, os custos com a moradia, bem como com o transporte
para o local de trabalho, são transferidos para os próprios trabalhadores, e a
questão da infraestrutura urbana, quando existente, é transferida para o
Estado. A partir desse momento, a questão da moradia passa a ser resolvida
pelo mercado imobiliário, desaparecendo as “vilas operárias”.

A partir de então surge no cenário urbano o que passou a ser


designado de “periferia”: aglomerados distantes dos centros,
clandestinos ou não, carentes de infra-estrutura, onde passa a
residir crescente mão-de-obra necessária para fazer girar a
maquinaria econômica (KOWARICK, 1979, p. 31).

A situação econômica, das famílias de trabalhadores que passam a


residir nas cidades, as impedia de ter condições de pagar os aluguéis de uma
casa, ainda que baixos. Desse modo, essas pessoas buscaram soluções em
loteamentos periféricos e, até mesmo, nas favelas, que “incharam” na década
de 1950, para resolver o problema da moradia. Lucio Kowarick (1994b),
analisando o desenvolvimento industrial vivenciado pela cidade, como São
Paulo, explica que essa industrialização:
808 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Desencadeou um processo de assentamento urbano que reservou


as áreas centrais, melhor equipadas, para as camadas de médio e
alto poder aquisitivo e segregou a classe trabalhadora nas múltiplas,
longínquas e rarefeitas periferias da Metrópole, particularmente
entorno dos principais troncos ferroviários e rodoviários
(KOWARICK, 1994b, p. 61).

Assim, se até a década de 1950, a casa de aluguel ou as “vilas operárias”


eram os alojamentos mais importantes para os trabalhadores urbanos, essa
situação mudou radicalmente no período seguinte. A situação encontrada para
a questão da moradia foi a construção de casas em áreas periféricas das
cidades, com localização distanciada do trabalho, falta de infraestrutura e
custos por conta do trabalhador.
Essa segregação espacial à qual foi submetida uma parcela significativa
da população, provocou a expansão das áreas residenciais dos trabalhadores
nos chamados loteamentos periféricos. A antropóloga Maria Helena Beozzo
de Lima (1980), que analisou a alternativa da autoconstrução de moradias na
periferia do Rio de Janeiro, escreveu sobre o crescimento populacional na
cidade, bem como as soluções para a questão da moradia:

O crescimento populacional da Baixada Fluminense, principal


ponto de expansão das áreas residenciais da classe trabalhadora,
quando examinado juntamente com os níveis de renda da sua
população, se revela como uma expressão desse processo de
segregação espacial. No período de 1950/1970, os quatro
municípios da Baixada juntos tiveram um incremento populacional
de 340, 2%, o que representa aproximadamente 1.228.000 pessoas,
perto de 33%, do crescimento populacional da Região
Metropolitana como um todo. (LIMA, 1980, p. 70).

Os loteamentos periféricos, segundo a autora, se cristalizaram como


alternativa para a população de baixa renda, que fora impedida de se fixar nas
áreas mais urbanizadas. De acordo com Lima (1980), esses loteamentos foram
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 809

abertos em antigas áreas rurais e fracionados em lotes muito pequenos,


carentes de infraestrutura, e distantes das áreas centrais geradoras de emprego.
O baixo custo desses lotes permitia que o seu preço fosse praticamente
estabelecido de acordo com as condições da demanda. Ou seja, o valor que
deveria ser pago pelas prestações era estimando com base na capacidade de
pagamento de quem os comprava, “no caso, os trabalhadores que por seus
baixos rendimentos se vêem obrigados a aceitar bairros carentes de quaisquer
serviços”. (LIMA, 1980, p. 70).
Assim sendo, foram os baixos salários recebidos pelos trabalhadores
que levaram uma parcela significativa dessas pessoas a encontrar nos
loteamentos periféricos uma possibilidade de resolver o seu problema
habitacional. “É nessa situação, de salários achatados e insuficientes para
pagar aluguéis ou comprar moradias prontas, que a questão da habitação
proletária vai encontrar uma alternativa de solução na autoconstrução” (LIMA,
1980, p. 71).

Não encontrando solução para o seu problema de moradia no


mercado comercial nem as alternativas da política habitacional
oficial, que fracassou nos seus programas de atendimento à
população de baixa renda, a classe trabalhadora busca solucionar
esse problema por conta própria, substituindo por trabalho os
recursos monetários que lhe faltam para pagar a moradia; e o fez
assumindo todos os riscos e com tanta eficácia que a
autoconstrução, ao que tudo indica, poderá ser de fato
encaminhada pelo Estado como uma das alternativas de solução
para o problema habitacional da população de baixa renda. (LIMA,
1980, p. 71).

De acordo com Lucio Kowarick (1979), a autoconstrução da casa


própria, com a ajuda mútua de outras pessoas, se constituiu na única
alternativa de alojamento para os trabalhadores que recebiam baixos salários e
eram, portanto, impossibilitados de arcar com os custos de uma casa alugada e
810 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

muito menos ter condições de se candidatar a aos empréstimos do BNH


(Banco Nacional de Habitação).
No entanto, vale ressaltar que, segundo Lima (1980), essas construções
eram sempre inacabadas e com precárias condições de habitabilidade: sem
paredes de revestimento, o piso tratado apenas com água de cimento, com
coberturas de lajes de concreto batidas sobre taipa de madeira, sem
impermeabilizante para evitar infiltrações da água das chuvas e nenhum
telhado sobre as lajes para que diminuísse a absorção de calor do sol. “O
resultado são as goteiras e as elevadíssimas temperaturas dos interiores. A
quase totalidade não dispõe de água encanada, pias e tanques, as roupas e os
“trem” de cozinha são lavados em latas ou bacias à beira do poço” (LIMA,
1980, p. 88).
Além desses loteamentos periféricos, os trabalhadores encontravam
moradia em cortiços localizados, de acordo com Lucio Kowarick (1979), em
áreas decadentes de bairros mais centrais. Referindo-se à cidade de São Paulo,
o autor relata que “os cortiços tendem a se expandir, na medida em que
reurbanizam os bairros centrais, ao longo de outras áreas desvalorizadas, em
especial as que margeiam trilhos ferroviários em regiões como Perus e
Pirituba” (KOWARICK, 1979, p. 41). Resumindo, segundo Kowarick,
“favelas, casas precárias da periferia e cortiços abrigam as classes
trabalhadoras, cujas condições de alojamento expressam a precariedade dos
salários” (KOWARICK, 1979, p. 41).
Esse cenário social suscitou debates, ao longo da década de 1950, sobre
os segmentos sociais que habitavam esses lugares. Em artigo escrito na Revista
Forense, em 1959, o representante do Serviço de Recuperação das Favelas e
Habitações Anti-higiênicas (SERFHA), o advogado Waldir Meuren, referindo-
se ao Estado do Rio de Janeiro, apontou que “as favelas cariocas se tornaram
mais que um problema urbanístico, são um perigoso sintoma de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 811

subdesenvolvimento econômico de graves consequências sociais”


(MEUREN, 1959, p. 463).
Meuren teceu seus comentários à Lei das Favelas (Lei n° 2.875 de
19/09/1956), promulgada em homenagem ao décimo aniversário da
Constituição de 1946, ressaltando que esta lei tinha como “exclusiva finalidade
resolver um antigo problema social, não mais local, mas nacional”
(MEUREN, 1959, p. 463). De acordo com Meuren, “dada as suas
características, único meio de moradia ao alcance das classes humildes, são o
câncer que poderá fazer sucumbir toda a organização político-social do país”
(MEUREN, 1959, p. 463). Meuren atribuiu às favelas da capital o perigo de
ser a causa de uma convulsão revolucionária com motivações conhecidas,
mais resultados incalculáveis, ressaltando que o problema deveria ser encarado
pelas autoridades competentes, antes que eclodissem as massas, tendo à frente
a “multidão dos favelados”.
Meuren apontou as estatísticas referentes ao número de pessoas que
residiam nas favelas, revelando que havia 800 mil moradores somente na
cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal). De acordo com esse jurista, “o
índice de crescimento da população favelada é da ordem de 10% anualmente”
(MEUREN, 1959, p. 463). E expressou seu receio de que, se não fossem
tomadas medidas necessárias, o número rapidamente poderia chegar a um
milhão, o que tornaria essa população ainda mais perigosa.

As crises econômicas, a espiral inflacionária, o elevado custo das


moradias e o baixo salário das classes proletárias, concorrerão para
que mais rapidamente proliferem as favelas e cresça
assustadoramente o número de favelados (MEUREN, 1959, p.
463).

Meuren buscou na legislação a definição do que seria favela. Segundo o


autor, o Decreto Lei n° 6.000 de 1937 deixou expresso que a favela não seria
812 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

somente o “conglomerado de dois ou mais casebres regularmente dispostos


ou em desordem, construídos com materiais improvisados e em desacordo
com as obrigações deste decreto”, mas também “o barraco, ou casebre
construído nos terrenos, pátios ou quintais dos prédios” (MEUREN, 1959, p.
463). O autor complementou essa definição afirmando que não haveria favelas
somente no morro e que nem todo morro era favela, e ela poderia existir em
terrenos planos, nos pântanos, charcos e vales.
Sobre as origens da favela, o autor explicou que esta era simples:
bastava a construção de um barraco em um terreno baldio que a notícia se
espalhava e logo muitos encontrariam ali um lugar para morar, multiplicando
o número de barracos. De acordo com Meuren, a favela seria um problema
das grandes cidades, merecendo, portanto, atenção especial. Sua origem se
derivava, principalmente, do êxodo das populações rurais que provocava a
concentração demográfica nas cidades.

Os desníveis econômicos entre o campo e a cidade, concorrem


para o maior afluxo para estas, das populações rurais. A falta de
moradias a preço acessível concorre sobremaneira para a formação
das favelas, mocambos e congêneres. O problema é nacional
existindo favelas em grande número no Rio de Janeiro, em Recife,
Vitória e São Paulo. (MEUREN, 1959, p. 463).

O local que apresentaria mais condições favoráveis ao surgimento das


favelas, as quais o autor considerou “germe social”, seriam os morros, que
geralmente não contavam com adequada proteção das matas e florestas, o que
facilitaria a instalação desses tipos de moradia ali, provocando, segundo o
autor, a devastação da reserva florestal da cidade. Meuren ressaltou, ainda, que
a maioria dos donos desses terrenos, imprestáveis para qualquer exploração
comercial, não queria arcar com os custos da urbanização e infraestrutura, o
que facilitava a construção das favelas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 813

De acordo com Meuren, as autoridades municipais teriam autoridade


para demolir os barracos ou forçarem os próprios proprietários a fazê-lo. No
entanto, caso essa medida fosse tomada, surgiria outro problema, qual seja,
pra onde essas pessoas iriam. Na verdade, eles acabariam por se fixar em
outro local, formando novas favelas, quando não, ficariam nas ruas, agravando
os problemas políticos das cidades, tornando-se “presa fácil dos agitadores e
dos demagogos” (MEUREN, 1959, p. 464).
Para resolver o problema das favelas era necessária a remoção dos
moradores. Mas isso não poderia ser feito sem oferecer meios para os
moradores se transferirem para outras moradias. Com a chamada Lei das
Favelas, abriu-se crédito para a construção de casas de tipo mínimo, dando
um seguro golpe nos exploradores de favelas.

Pelo art. 5º durante dois anos, proibiu o despejo de favelado.


E pelo art. 6º, assegurou-lhe a permanência na habitação que
então ocupasse, enquanto não lhe fosse atribuída uma casa
construída com as verbas consignadas na lei (MEUREN,
1959, p. 464).

Assim, de acordo com a lei, o único meio de acabar com as favelas era
das casas aos favelados e impedir que eles fossem despejados. Isso também
obrigava os proprietários dos terrenos baldios a cuidarem para que não
fossem construídos barracos nesses locais.
Para Meuren, a questão das favelas era social, devendo ser combatida,
mas sem provocar outros problemas. Algumas medidas deveriam ser tomadas
para remediar a situação como um todo: elevar o padrão de vida dos
trabalhadores; realizar adequada política de urbanização das zonas residenciais
ou industriais da cidade; retirar as vantagens da exploração econômica das
favelas. Os moradores das favelas não poderiam ter, simplesmente, seus
barracos destruídos e irem parar nas ruas sem lugar para morar, mas sim
814 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

receberem recursos para a construção de uma nova moradia. Desse modo, o


autor ressalta:

Atacando rijamente a exploração das favelas, a lei nº. 2.875, de


1956, tocou fundo na chaga social. Atingiu em cheio o problema e
cooperou decisivamente na sua eliminação. De um lado,
fornecendo recursos para a construção de casas de tipo mínimo.
De outro, traçando planos de urbanização das favelas recuperáveis.
E acima de tudo, impedindo o despejo (MEUREN, 1959, p. 465).

Vale ressaltar que, no início da década de 1960, “desenvolveram-se


políticas para erradicar esse tipo de moradia, removendo as pessoas para
conjuntos habitacionais distantes dos centros das cidades” (ROLIM, 2006, p.
183). O governador do recém-criado Estado da Guanabara, Carlos Lacerda,
por exemplo, empreendeu diversas ações no intuito de acabar com as favelas,
tornado-se uma verdadeira obsessão do Poder Executivo “limpar a cidade”
dos indesejáveis (ROLIM, 2006). De acordo com o professor e pesquisador
Carlos Nelson Ferreira dos Santos:

No começo da década de 1960 ocorre uma reação à permissividade


urbana dominante durante os anos que vão de 1930 à 1950, época
em que se alastravam favelas nas áreas cêntricas de quase todas as
grandes cidades. O Estado, primeiro através de governos locais e
logo através da ação centralizadora do Governo Federal, iniciou
um ataque em massa às favelas, pretendendo erradicá-las todas
(SANTOS, 1980, p. 18).

Nesse sentido, foi criada uma instituição para atender aos problemas e
necessidades de moradia: o Banco Nacional de Habitação (BNH), que
ofereceria recursos técnicos e financeiros aos moradores das favelas para que
os mesmos adquirissem moradias novas, construídas em conjuntos
habitacionais afastados do local onde moravam.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 815

A princípio, a remoção era indiscriminada. Como, no entanto, o


tipo de sistema financeiro adotado exigia que os imóveis fossem
pagos, começaram a surgir muitos problemas de inadimplência. A
recuperação dos primeiros reveses permitiu o aperfeiçoamento das
“operações sociais” do BNH: primeiro as remoções passaram a ser
seletivas; depois admitiu-se que era inviável contar com favelas
inteiras ou com favelados como clientela cativa e os programas
foram abertos para quem se candidatasse, desde que provasse estar
na faixa de renda permitida, independentemente do local onde
morasse. (SANTOS, 1980, p. 19).

O BNH tinha a função social de fornecer aos brasileiros, condições


para a aquisição da casa própria. No entanto, como não possuía funções
executivas diretas e estava encarregado apenas de orientação técnica e de
repasses financeiros, não construía casas, apenas emprestava dinheiro a
agentes que executavam os programas habitacionais, eles mesmos, ou para
empresas de construção. Assim, o BNH tinha que “agilizar dinheiro caro,
através da venda de uma mercadoria de alto valor (terreno+construção
moderna) para uma clientela de pessoas que mal ganhavam o suficiente para
comer” (SANTOS, 1980, p. 19). E, devido aos problemas com falta de
pagamento das prestações das casas vendidas às pessoas de baixa renda, “o
resultado prático é que os programas ‘de interesse social’ e especiais para ‘os
de baixa renda’ foram sendo sempre oferecidos a famílias com renda cada vez
mais alta” (SANTOS, 1980, p. 20).

Movimentos sociais de reivindicação

Lucio Kowarick (1994a) ressalta que o padrão periférico de crescimento


urbano dispersava os trabalhadores, o que dava a sensação de que a cidades
estavam “prevenidas” dos movimentos sociais. Mas a década de 1950
demonstrou que isso não era verdade, sendo marcada por fortes movimentos
grevistas e outras mobilizações.
816 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Em trabalho sobre as greves e a repressão aos sindicatos no Rio de


Janeiro, entre 1954 e 1964, Marcelo Badaró Mattos (2004) rediscutiu a relação
entre Estado, empresários e trabalhadores organizados a partir da dimensão
de conflito explicitada nos momentos de greve. O autor afirmou que existia
certa dificuldade em precisar o número de greves ocorridas nas décadas de
1950 e 1960, pois não havia estatísticas oficiais de greves até pelo menos a
década de 1980. De acordo com os dados apurados por Mattos, foram
realizadas 480 greves entre os anos de 1945 e 1954, somente naquele Estado.
Apenas no período de 1958-1963 o autor localizou 307 greves.
O primeiro momento de estouro das paralisações no período
compreendido entre o fim do Estado Novo e início da Ditadura Militar, foi
em 1946, seguido de dois anos de quase completa inexistência de movimentos
grevistas.
Nos anos seguintes, até meados da década de 1950, mantém-
se, com oscilações, um patamar semelhante e uma
continuidade de atividades grevistas, com cinco greves no ano
de mais baixa atividade (1951) e 23 paredes no ano de maior
agitação (1956) (MATTOS, 2004, p. 243).

Mas é na segunda metade da década de 1950 e início da década de 1960


que:
a curva de movimentos grevistas toma um rumo ascendente
significativo, com saltos sucessivos no número de
paralisações, que configuraram uma das fases mais dinâmicas
do movimento operário brasileiro (MATTOS, 2004, p. 243).

Esses movimentos sociais causavam grande apreensão entre os juristas


desse período, que escrevem vários trabalhos sobre as greves, bem como o
perigo que representavam as “multidões reunidas”. Em 1953, foi publicado
um artigo5 na Revista dos Tribunais, escrito pelo Jurista Paulo Carneiro Maia, no

5
Esse mesmo artigo foi publicado, também, na Revista Forense, v. 154, jul./ago. 1954.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 817

qual o autor analisou os aspectos constitucionais da greve. De acordo com


Maia, o direito de greve estabelecido pela Constituição de 1946 era conflitante
com o “mandamento” penal que vedava o ato de fazer justiça com as próprias
mãos. Além disso, era desnecessário em uma sociedade como a brasileira, que
já possuía a Justiça do Trabalho, encarregada de resolver os problemas entre
patrões e empregados. Nesse sentido, a greve seria “o império do arbítrio em
substituição ao poder instituído para deslindar o conflito” (MAIA, 1953, p. 5).
Maia recuperou os comentários do constitucionalista Carlos Maximiliano em
seu “Curso de Direito Constitucional Brasileiro”, de 1951, sobre o dispositivo
constitucional que regulamentava o direito à greve:

A greve assemelha-se ao denominado direito de revolução:


constituía uma revolta contra a onipotência do capital, um meio
violento para forçar os patrões a melhorarem as condições do
trabalho. Carece, quase totalmente, de fundamento nos países em
que se instituíram processos regulares e suaves para dirimir os
dissídios entre empregados e empregadores. Não se deve recorrer à
força quando se tem à mão a justiça; desaconselha-se o remédio
violento desde que existe o mais brando, o jurídico (cf. MAIA,
1953, p. 5-6).

Maia também recuperou os escritos de Charles Gide sobre o caráter


violento da greve e sua técnica que se assemelhava à guerra, em sua obra
Compêndio d’Economia política, de 1935. Concordando com a colocação de Gide
de que o feitio violento da greve era com que a guerra dos empregados,
ressaltou esse jurista que a greve seria um “ato tipicamente de violência para
uma reivindicação que não se compreende seja feita ‘quando de tem à mão a
justiça” (MAIA, 1953, p. 8). Mas reconhece o autor que a situação de
desigualdade entre empregado e empregador reclamava uma solução mais
rápida. Mas “não nos parece que uma solução coercitiva e violenta deva se
sobrepor ao órgão especial de justiça instituído pela Lei das Leis” (MAIA,
1953, p. 8).
818 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nessa mesma direção, em artigo escrito na Revista Forense, no ano de


1954, Carlos Medeiros Silva, consultor da República, discorreu sobre a
regulamentação do direito de greve pela Constituição de 1946, por meio de
seu artigo 158, no qual estava expresso: “É reconhecido o direito de greve,
cujo exercício a lei regulará” (SILVA, 1954, p. 7). No entanto, Silva deixou
clara sua posição contrária às greves ao afirmar que esta era uma “forma
violenta de reivindicação” (SILVA, 1954, p. 7).
De acordo com Silva, o recurso à greve teria tido causas diversas no
decorrer do tempo, e “a luta dos trabalhadores, para melhoria de suas
condições de vida, criaram uma mística da greve com instrumento de
reivindicação que é preciso preservar em homenagem aos antigos
combatentes, dizem os seus apologistas” (SILVA, 1954, p. 7-8). Na concepção
desse jurista, a greve era o caminho encontrado por “revolucionários
profissionais e agitadores políticos” (SILVA, 1954, p. 8) para a subversão
social.
Silva recuperou diversos autores, tais como George Sorel, Charles Gide,
Langlois, Carnelutti, que comparavam a greve à guerra, na qual se procurava
obter pela força o que não se havia conseguido pela livre e espontânea
vontade. Silva também citou o francês Julien Durand, que afirmava ser
interesse dos revolucionários cultivar a mística da guerra. Para este último
autor, “as desordens que dela resultam, os sofrimentos que determina são
sacrifícios que o triunfo da causa impõe, como fatores de desorganização do
regime social a abolir” (SILVA, 1954, p. 8).
De acordo com Silva, além desses motivos, haveria outro responsável
pelas greves, qual seja “a ausência de órgãos idôneos e capazes de tomar
conhecimento e de atender, na justa medida, as reivindicações dos
trabalhadores” (SILVA, 1954, p. 8). Esses órgãos poderiam evitar a greve no
plano nacional, tal como acontece com a guerra no plano internacional. Silva
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 819

referia-se aos tribunais especializados, que seria o caminho para a solução


justa e oportuna das “reivindicações proletárias”. Desse modo, o autor lançou
críticas à Constituição vigente, na medida em que:

Por forma incoerente, institui a Justiça trabalhista e assegura o


direito de greve, como se a existência da primeira não fosse o
veículo adequado à solução dos conflitos. A par da via judiciária,
imparcial e fiel aos interesses permanentes da coletividade, abriu-se
brecha para as reivindicações violentas (SILVA, 1954, p. 8).

O que podemos perceber, nas palavras de Silva, é uma preocupação


com o sentido político da greve e um discurso desqualificador de sua real
função. Para o autor, a greve seria uma manifestação contestadora da ordem
política vigente, tendo um caráter revolucionário e sendo liderado por
“profissionais”. Vale ressaltar, que as greves trabalhistas no Brasil sempre
estiveram aliadas a líderes de orientação socialista, e as ocorridas na década de
1950 seguiam essa mesma direção.
Silva considerou oportunas suas observações em matéria de
regulamentação do direito de greve. E ressaltou: “é preciso que o legislador
ordinário não se deixe influir pelas opiniões extremadas e pelos espíritos
teóricos e desassustados da realidade social” (SILVA, 1954, p. 11). Silva ainda
frisou que não se poderia ter “ordem e progresso” em uma sociedade que
admitisse a desordem como meio capaz de resolver as reivindicações dos
trabalhadores.

O apelo à violência, apontado como conquista democrática, é antes


um retrocesso aos tempos bárbaros em que os fracos não tinham
outro remédio senão o de enveredar pelo caminho do desespero,
quando vítimas da opressão dos fortes (SILVA, 1954, p. 11).

Também Davi Campista Filho, em artigo escrito na Revista Forense, no


ano de 1995, se posicionou contrário ao direito de greve expresso na
820 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Constituição de 1946, considerando “perigoso o influxo da declaração


constitucional” (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 441). De acordo com esse
jurista, após o reconhecimento do direito de greve pelo artigo 158 da
Constituição então vigente, aconteceram inúmeros fatos que deveriam servir
de advertência ao legislador “em premunição a investidas do trabalhismo que,
certamente, fará do problema o ponto central de suas expansões
demagógicas” (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 441). E mais,

Os acontecimentos que nestes últimos anos desenrolaram-se no


Brasil imprimem significação impressionante à importância dos
fatos, perante os quais a atitude do legislador há de ser de extrema
prudência e imparcialidade. Esses fatos, sob a luz do raciocínio que
os explica projetam-se pela conjectura na lei a estatuir-se, revelando
a gravidade das conseqüências cujo alcance na vida econômica do
país seria dos mais funestos (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 441).

Em meio à aceleração histórica do período, afirmou o autor, era


necessário rejeitar as improvisações e afastar o arbítrio, pois é na fase de
aceleração histórica que o direito postulava leis de interesse particular. Foi o
que teria acontecido com a Constituição de 1946, que no clima inquietante de
psicologia política e social, decorrente do retorno da democracia após longo
período de letargia, num “regime popular, imbuído de ilusões socialistas e
ávido de conquista, por extrema tolerância e temerosa complacência”
(CAMPISTA FILHO, 1955, p. 442), expressou em seu texto o
reconhecimento do direito de greve. “Semelhante atitude roçava pela anarquia,
de tantas que as produzem os governos populares” (CAMPISTA FILHO,
1955, p. 442).
Nas palavras do autor, “greve consiste na suspensão deliberada do
trabalho por parte de operários no sentido de obter melhores salários ou de
testemunhar solidariedade aos companheiros” (CAMPISTA FILHO, 1955, p.
442). Suas origens remontariam à Revolução Francesa (1789), quando se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 821

declarou o direito ao trabalho e à livre profissão. Assim, tendo surgido do


direito ao trabalho, teria evoluído como conquista para direito de cessão ou
interrupção do trabalho.
O autor ressaltou, ainda, o perigo que representava a “influência das
massas que desempenham papel preponderante no mundo atual, inspirando a
certos autores sustentarem que a era das massas significa o declínio da
civilização, ou o retorno à primitividade” (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 446).
A massa social, na concepção do autor, se distinguiria pela ausência de
diferenciação individual, de iniciativa, de originalidade e de consciência.

A massa julga quantidade e não qualidade; e quando julga


impulsionar, é apenas impulsionada, intervém no sentido de
grandeza física, composta, embora, de seres vivos, que não passam
de simples unidades estáticas e que se resolvem em números. Não
é ativa, mas puramente receptiva, e não agindo, satisfaz-se em
reagir. (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 446).

A influência das massas se formaria e se avultaria pela ação impregnada


das características das multidões, assim como indicou Gustave Le Bon: “a
impulsividade, a irritabilidade, ausência de julgamento e de espírito crítico”
(CAMPISTA FILHO, 1955, p. 446). Nesse sentido, “a multidão aparece
como a ressurreição de uma horda primitiva, porquanto se desanuvia
inteiramente a personalidade consciente perdendo-se a vontade e o
discernimento” (CAMPISTA FILHO, 1955, p. 446). De acordo com o autor,
haveria um hipnotizador que orientaria os sentimentos e os pensamentos das
chamadas massas.

As massas geram o pavor dos cegos elementos em fúria,


produzindo o terror crescente na abstração das ameaças sinistras e
o terror implacável da imensidade infinita do número. Certas
unidades, puras, simples, inócuas, são capazes de desencadear
calamidades quando assumem o incomensurável – tais como a
822 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

nuvem de gafanhotos e a invasão de formigas carregadeiras.


(CAMPISTA FILHO, 1955, p. 446).

De acordo com Campista Filho, devido a essas características das


massas, estas poderiam determinar as greves as quais tinham o poder de
influenciar outras pessoas, como um germe que contaminava a todos. O local
privilegiado para a propagação desse mal seriam as associações sindicais, nas
quais se conseguia a adesão e a propagação do movimento grevista. Sendo
assim, estas devem ser consideradas elementos extremistas interessados na
perturbação da ordem, devendo o Estado se prevenir desse mal por meio dos
órgãos de vigilância.

Considerações finais

Tendo em vista que o pensamento jurídico não pode ser analisado


dissociado da dinâmica social, a análise dos artigos escritos por juristas nos
marcos dessa pesquisa demonstraram que os acontecimentos sociais se
refletiram no posicionamento dos juristas sobre determinados assuntos,
como, por exemplo, no que se refere às questões da criminalidade, da situação
dos negros na sociedade do período, das favelas enquanto problema social e
das greves, entendidas como uma espécie de guerra, na qual se conseguiria
pela força o que não havia sido conseguido pelos meios pacíficos.
Além disso, valendo-se destes artigos, percebemos que estava presente
no pensamento jurídico a ideia de que as multidões, nas grandes cidades,
representavam um grande perigo à ordem. Assim, havia um grande receio por
parte de alguns juristas em relação às atitudes dos grupos sociais inseridos no
cenário social de meados do século XX. Havia a percepção de que
determinados segmentos sociais eram compostos por pessoas que mereciam
receio por parte do poder judiciário, que devido às suas “condutas”, às
“condições de vida”, ou mesmo às “práticas sociais e culturais”, não
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 823

respeitavam as normas, estando esses indivíduos mais propensos a cometer


crimes.

Referência:

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Ideias e debates na defesa da industrialização de
São Paulo na Primeira República (1889-1930)

Tomás Rafael Cruz CÁCERES*

E
sta pesquisa analisa o movimento da industrialização em São Paulo
partindo das ideias e ações dos envolvidos na sua defesa face à política
econômica e dos setores contrários. Até as duas últimas décadas do
século XIX não houvera, no Brasil, um movimento organizado pela própria
indústria para lutar pelos seus interesses. Essa situação começa a mudar com a
crise de meados da década de 1870 e a intensificação da concorrência externa. A
reação foi iniciada pelos fabricantes de chapéus do Rio de Janeiro que,
mobilizados contra tal situação, conseguiram o apoio e a participação de outros
setores manufatureiros. Em relação a São Paulo, o setor manufatureiro paulista,
ainda em fase incipiente, a partir da segunda década do século XX, já começa a
ter expressão defendendo os seus interesses no Parlamento e na imprensa.
Carlos M. Pelaez (1971), analisando a evolução econômica desde o século
XIX até meados do seguinte, do Brasil e demais países conhecidos como de
colonização recente, como foram os Estados Unidos da América do Norte,
Canadá, Austrália, África do Sul e outros, observa que todos eles começaram
dedicando-se à produção de produtos primários e que, com a entrada de capital e
*
Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP.
828 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

trabalho qualificado, conseguiram alcançar o progresso. E se pergunta por que o


Brasil e a Argentina não conseguiram se desenvolver juntamente com esses
países, já que ambos receberam um grande influxo de trabalho e capital europeus
e se tornaram grandes exportadores de produtos primários. O autor identifica o
insucesso do Brasil, em matéria de desenvolvimento antes de 1945 como um
insucesso na industrialização, atribuindo a dois fatores interdependentes,
relacionados com a política econômica oficial. O primeiro, o mais importante
para ele, foi a política econômica de proteção ao setor cafeeiro em relação às
demais atividades. O segundo fator refere-se às políticas monetária, cambial e
fiscal, e às bases institucionais contrárias à industrialização. Desse modo,
considera que o sistema monetário e bancário de um país deve ser orientado para
a promoção da industrialização, assim como fizeram os países desenvolvidos. No
caso do Brasil, esse sistema deveria ter fornecido liquidez para o estabelecimento
de novas indústrias com base em tecnologia estrangeira, já que não estava
disponível internamente. Porém, isso era praticamente impossível devido à
orientação que prevaleceu na condução da economia, na maior parte do século
XIX e nas primeiras décadas do seguinte, que estava dominada pela escola de
pensamento ortodoxo, que se traduzia em sua implementação em três objetivos
de políticas econômicas, perseguidos sob quaisquer condições econômicas. Estes
eram o equilíbrio orçamentário, a austeridade monetária e as altas taxas de
câmbio, isto é, valorização da taxa cambial, constituindo o remédio ou a receita
ordinária e recorrente para qualquer contração dos negócios.
Em relação ao atraso relativo da economia brasileira na primeira metade
do século XIX, Furtado (1982, p.106-109; p.110-116) aponta que a causa
principal foi o estancamento de suas exportações tradicionais (açúcar, algodão e
fumo), e que fomentar a industrialização nessa época, sem o apoio de uma
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 829

capacidade para importar em expansão, seria tentar o impossível num país


totalmente carente de base técnica, ainda que se deixasse de considerar que uma
política inteligente de industrialização seria impraticável num país dirigido por
uma classe de grandes senhores agrícolas escravistas. Entretanto, ao contrastar
esse estado de estagnação e decadência com as mudanças ocorridas na segunda
metade desse século, o autor confessa que “dificilmente um observador que
estudasse a economia brasileira pela metade do século XIX chegaria a perceber a
amplitude das transformações que nela se operariam no correr do meio século
que se iniciava” (FURTADO, 1982 p.110-116) Sendo impulsionadas essas
transformações pelo aparecimento do café como produto de exportação, que
rapidamente se converte na principal fonte de riqueza para o país, o que se
constata por meio de alguns dados que Furtado oferece: no primeiro decênio da
independência o café já contribuía com 18% do valor das exportações do Brasil,
colocando-se em terceiro lugar depois do açúcar e do algodão. E nos dois
decênios seguintes já passa para o primeiro lugar, representando mais de 40% do
valor das exportações.
Como já foi ressaltado, o estado de estagnação que apresenta a economia
brasileira na primeira metade do século XIX e que se arrasta desde as últimas
décadas do século anterior com a decadência da economia do ouro na região
mineira e a crise do setor agrícola exportador que perde mercados para os
produtos tradicionais como o açúcar, o algodão e o fumo. Com exceção de
alguns curtos intervalos, em que esses e outros produtos de produção nacional se
beneficiam de perturbações no fornecimento no mercado internacional, geradas
por acontecimentos políticos circunstanciais que ocorreram no período que se
estende dos anos 70 do século XVIII até as duas primeiras décadas do seguinte,
como foram a guerra de independência dos Estados Unidos da América, a
830 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Revolução Francesa, as guerras napoleônicas e de independência das colônias


hispano-americanas. O açúcar brasileiro enfrentava a concorrência do açúcar de
beterraba produzido por países europeus; o algodão a enorme produção norte-
americana, que abastecia o grande mercado consumidor dessa matéria-prima que
era o inglês. Em ambos os casos, usavam-se métodos e processos de produção,
tanto no nível da agricultura quanto da indústria, muito mais modernos que os
utilizados no Brasil, além de possuírem terras apropriadas para essas culturas,
superando em muito a produtividade nacional. O fumo, por sua vez, perdeu o
mercado de maior consumo, que era o africano, com a proibição do tráfico
internacional de escravos que era trocado por estes.
Porém, a partir de meados do século XIX, começa a modificar-se
sensivelmente essa situação de atraso com o setor agrícola reintegrando-se ao
comércio internacional, fundamentalmente, por meio da atividade cafeeira que se
desenvolve com grande dinamismo, especialmente a partir da década de 1870,
quando sua produção começa a ocupar a região oeste da província de São Paulo,
graças à penetração da estrada de ferro. Até meados da década de 1890, o Estado
do Rio de Janeiro era o maior produtor de café do país, tendo como centro
principal a região do Vale do Paraíba, que abarcava parte do Estado de São
Paulo. Daí em diante, São Paulo assume a liderança.
Na década de 1860, outro produto que teve enorme expansão da produção
e de sua participação nas exportações brasileiras foi o algodão, favorecendo-se da
Guerra de Secessão Americana que impedia o abastecimento dos mercados
europeus, sobretudo o inglês. A partir da metade dessa década, as atividades
industriais também receberam um significativo estímulo como consequência da
Guerra com o Paraguai ao provocar um aumento da demanda global. Da mesma
forma, as exportações de borracha natural apresentam uma tendência de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 831

acelerado crescimento desde a década de 1880 até as duas primeiras do século


XX, aumentado significativamente sua participação no valor total das
exportações do Brasil.
O crescimento das exportações agrícolas, liderado pelo café, gerou com
seu reflexo dinâmico na renda interna, um processo de modernização e
diversificação na economia brasileira, favorecendo as atividades manufatureiras,
ao ampliar o mercado interno para artigos de consumo, como tecidos grossos, e
alguns insumos e bens de capital simples para a agricultura e serviço de
transporte. Realizaram-se, também, investimentos na infraestrutura para esse
serviço, como em estradas de ferro e em portos, permitindo certa articulação das
diferentes regiões, especialmente a do Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro) com
as demais regiões. O surgimento de um sistema bancário também foi um fator
importante nesse movimento de mudanças e progresso, se bem que dedicado
basicamente às atividades de curto prazo. O crescimento da cafeicultura,
sobretudo em São Paulo, teve outro impacto importante como consequência do
aumento da demanda de trabalhadores, que foi acelerar a passagem do trabalho
escravo para o trabalho livre, o que foi possível com a introdução de imigrantes
europeus, especialmente a partir da década de 1880, favorecendo o início da
formação de um mercado de trabalho. O aparecimento de grupos com
mentalidade e comportamento empresarial dentro da própria cafeicultura e fora
desta é outra consequência dessa expansão, como nas atividades industriais,
bancárias, de comércio interno e externo, e nos demais serviços ligados à
urbanização.
Pode-se afirmar que até as últimas duas décadas do século XIX não
houvera, no Brasil, um movimento organizado pela própria indústria para lutar
pelos interesses ligados a seu setor. Não obstante, ao longo de sua história, desde
832 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

a época da colônia, sempre surgiram pessoas, ligadas ou não à indústria, que


tentaram conscientizar a nação de que sem a industrialização o país não
alcançaria seu desenvolvimento econômico e social, nem sua real e efetiva
autonomia frente às demais nações.
Essa situação começou a mudar com a crise de meados da década de 1870
e a intensificação da concorrência de produtos importados. A reação foi iniciada
pelos fabricantes de chapéus do Rio de Janeiro, que sofriam uma violenta
concorrência dos artigos importados da Alemanha. No começo, colocaram o
problema à Associação Comercial do Rio de Janeiro sem conseguir qualquer
resultado; logo se dirigiram à Associação Auxiliadora da Indústria Nacional
solicitando apoio a suas reivindicações protecionistas. Depois de intensos debates
e com apoio da Associação, obtido em votação (já que o parecer da seção de
comércio foi contrário e o da seção de Indústria a favor), a Associação decidiu
enviar ao governo uma representação, pedindo providências para o
desenvolvimento industrial e amparo às fábricas já existentes por meio de uma
tarifa alfandegária adequada. Esse movimento encontrou um forte e decidido
apoio na pessoa do Comendador Malvino da Silva Rei1. Este e mais alguns
industriais convocaram uma reunião, dirigida a todos aqueles que se
interessassem pelo desenvolvimento do trabalho nacional. O resultado foi a
criação da Associação Industrial, em 1881, tendo sido eleito como presidente
Antônio Felício dos Santos, que logo teve que renunciar por ter sido eleito
deputado.
Esses acontecimentos tinham como cenário o Distrito Federal, cidade do
Rio de Janeiro, já que era aí, juntamente com o Estado do Rio de Janeiro, onde

1
ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL. Relatório apresentado à Assembleia Geral, sessão de 10 de junho
de 1882, pela Diretoria. p. 28, In: LUZ, Nicia V. A. A luta pela industrialização do Brasil. 2 ª ed.
São Paulo: Alfa-ômega, 1975, p. 56-57.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 833

então se desenvolvia a indústria brasileira. Wilson Cano (1990, p. 245) enumera


uma série de condições que teriam favorecido a Guanabara para constituir-se no
centro comercial e financeiro do país e desenvolver um amplo setor industrial –
seu porto marítimo concentrou a entrada e saída dos fluxos mais importantes
desde a atividade mineradora no século XVIII e da cafeeira no século XIX, o
status de cidade sede do governo central, intermediação dos fluxos da sua
tributária região cafeeira (Estado do Rio de Janeiro, parte de Minas Gerais e São
Paulo). Também assinala as limitações das quais padecia, como as deficiências de
funcionamento e de acumulação da economia escravista-cafeeira, a limitação da
expansão do mercado interno devido ao trabalho escravo e os efeitos das
políticas cambial e tarifária, dominadas pelos interesses da economia agrário-
escravista-exportadora e monocultora que dependia das importações para tudo –
bens de produção e bens de subsistência, obtidos por meio dessas políticas a
custos menores do que seria se fossem produzidos no país.
Para conhecer as ideias que impulsionaram o movimento inicial a favor da
industrialização do Brasil é fundamental recorrer ao manifesto que a Associação
Industrial do Rio de Janeiro divulgou ao se constituir, redigido por Antonio
Felício dos Santos (O INDUSTRIAL..., 1881), seu primeiro presidente, e
publicado no seu órgão de divulgação oficial, O Industrial, em 11 de maio de 1882.
Esse documento constitui um ataque ao liberalismo e à política do governo,
combatendo as objeções dos adversários da industrialização com uma
argumentação que pretendia se basear em fatos concretos e nas condições
econômicas e sociais do Brasil. Argumentava-se que, com a industrialização, o
Brasil não só conseguiria a independência econômica, mas também resolveria
outros vários problemas, tais como: a entrada de capitais e mão-de-obra
estrangeiras; a criação de oportunidades de ocupação para a população
834 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

desocupada que poderia gerar um problema social; o abastecimento do mercado


interno com produção nacional melhoraria o resultado da balança comercial, ao
diminuir a importação.
O protecionismo defendido não era baseado em doutrina e sistema
preestabelecido. Fundava-se, segundo os industrialistas, na situação real do país,
beneficiando apenas as indústrias viáveis. Rejeitavam as acusações de que
defendiam um regime proibitivo, alegando que as taxas solicitadas eram
moderadas, reconheciam que tarifas exageradas isolariam o país e não era isso
que perseguia a indústria nacional. O que ela defendia era um certo grau de
estabilidade, pois acreditava-se que a instabilidade alfandegária afugentava os
estrangeiros que poderiam investir no país.
Um dos aspectos mais enfatizados na defesa da proteção à produção
nacional era o desequilíbrio no comércio exterior do Brasil, do balanço de
pagamentos. Ideia que se converte na força mais poderosa na evolução do
nacionalismo econômico brasileiro. Antonio Felício dos Santos desenvolve este
assunto em discursos no Parlamento e por meio do jornal da Associação, com
amplitude e coerência frente à realidade dos fatos da economia brasileira.
Denuncia o desequilíbrio real da balança de pagamentos, mascarado pelos saldos
fictícios da balança comercial, argumentando que, enquanto a estimativa do
volume de exportação era quase exata, a da importação não correspondia à
realidade, já que se baseava em valores oficiais fixados pelo governo para fins
fiscais, valores que, em geral, estavam abaixo do valor real das mercadorias
importadas. Indicava, também, a existência dos itens invisíveis constituídos pelo
envio constante de dinheiro para a Europa, em pagamento de juros dos
empréstimos levantados pelo governo brasileiro e:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 835

[...] pelas remessas dos particulares, a emigração constante dos capitais


que não confiam na nossa estabilidade, as retiradas dos brasileiros que
passeiam pelo velho mundo ou lá vivem, porque, senhores, o terrível
cancro do absentismo já se faz sentir gravemente no Brasil: essa
corrente esterilizadora parece mesmo avultar diariamente [...]. (ANAIS
DO PARLAMENTO BRASILEIRO, 1882, p.135-136).

Esse desequilíbrio do balanço de pagamentos e uma precária situação


econômica eram tanto mais imperdoáveis quanto o Brasil dispunha de recursos
tais que poderia bastar-se a si mesmo.

[...] um país que se projeta em enorme extensão do nosso planeta,


contendo os mais variados climas e solos, todas as grandezas e
opulências naturais, podendo produzir tudo, assimilar todas as raças e
dar emprego vantajoso a todas as aptidões, não pode continuar a ser
uma feitoria colonial.(O INDUSTRIAL..., 1881).

Em relação às medidas a serem tomadas para solucionar os vários


problemas que enfrentava a economia brasileira – déficits orçamentários,
desequilíbrio nas contas externas, alcançar a independência econômica –
consideravam, os industrialistas, que não seria por meio de empréstimos anuais
para saldar as diferenças da importação sobre a exportação, nem com emissões
de papel-moeda e de apólices; nem com outras protelações e artifícios que seriam
equilibradas as contas públicas. O único meio era o fomento da produção e
particularmente da indústria. Adotar medidas que diminuam a importação
enquanto não se eleva a exportação. Isso importa a proteção à indústria nacional,
que há de suprir grande parte da importação (O INDUSTRIAL..., 1881).
As ideias econômicas nacionalistas de Amaro Cavalcanti estavam
relacionadas com o comércio e sua defesa das fontes produtoras da riqueza do
país, que considerava constituídas essencialmente pelas atividades industriais. Na
836 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sua atitude contra o comércio, contra o intermediário, considerado um parasita, o


foco principal era o comércio importador, sobre o qual declarava:

[...] esses indivíduos que são agentes consignatórios ou representantes


de fábricas ou manufaturas estrangeiras, os quais não importando,
sequer, por contra própria, só tem a lucrar, como simples
intermediário, dispondo de nossos mercados, como de outros tantos
canais para os produtos que recebem. O mesmo se pode dizer das
casas filiais que aqui negociam em gêneros e mercadorias que lhes são
remetidos pelas suas matrizes no estrangeiro. (ANAIS DO SENADO
FEDERAL..., 1892, p.42).

Esses comerciantes que enfrentavam baixo nível de risco e obtinham


elevados lucros, tendiam a dificultar o desenvolvimento industrial do país porque
este faria “cessar o monopólio de fato, de que eles gozam acerca do consumo do
país”. Não obstante, o que mais o incomodava era o desequilíbrio da balança de
pagamentos provocado pelas atividades importadoras, e que causava a queda do
câmbio (desvalorização), impedindo o saneamento da moeda:

[...] tenhamos por verdade iniludível: enquanto a situação econômica


do país for tal que dependamos quase total, da importação de
produtos estrangeiros, para os objetos necessários às artes (ofícios), às
ciências, às indústrias, à habitação, ao vestuário e à própria alimentação
quotidiana, não poderemos contar com a probabilidade prática,
constante, da circulação metálica. O valor do nosso meio circulante
ficará sempre dependente do nosso equilíbrio anual nas contas, que
tivermos que saldar no estrangeiro. (ANAIS DO SENADO
FEDERAL..., 1892, p.42).

A solução para tal situação estava no desenvolvimento da economia


nacional, das fontes geradoras de riqueza, sendo a indústria fabril a mais
importante. Considerava a agricultura uma fonte precária e irregular ao depender
das condições climáticas e do fator humano, devido ao pouco uso de maquinaria.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 837

Para desenvolver a indústria, porém, era necessário que o Estado lhe desse
proteção, já que sendo o Brasil um país novo, a atividade industrial ainda era
muito embrionária. Fundamentava a atuação protecionista do Estado nos
seguintes termos: a) Dotar o país de indústrias necessárias ou lucrativas, que de
outra sorte seriam sufocadas logo ao nascer; b) Assegurar, por esse meio,
trabalho e bem estar à população operária do país; c) Tornar-se independente do
estrangeiro, dispensando-se de comprar-lhe produtos, a respeito dos quais, é de
supor, aquele acabaria por adquirir o monopólio, depois de haver arruinado a
indústria nacional (CAVALCANTI, 1896, p.220). Para alcançar tais objetivos,
defendia, ao igual que Felício dos Santos, um protecionista baseado nas
circunstâncias e levando em conta o estágio industrial dos diferentes países, e
rejeitava todo sistema preconcebido. Incluía nessa proteção, além das tarifas
alfandegárias, medidas de auxílio direto, como empréstimos feitos pelo Estado e
até emissões de papel-moeda.
As ideias de Serzedelo Correa (1980, p.27-30) coincidiam em vários pontos
com as dos outros nacionalistas que o precederam, como o grau de
protecionismo defendido, as justificativas a favor do mesmo, a recusa a todo
sistema, a priori. O que o diferenciava era sua visão de conjunto do problema
econômico brasileiro que, para ele, consistia em desenvolver de modo harmônico
as suas forças produtivas, por meio de uma política de proteção razoável tanto da
indústria quanto da agricultura, a fim de garantir a independência nacional e
aumentar o trabalho no seio do vasto país. Defendia para esse desenvolvimento
harmônico, não apenas uma política de moderada proteção alfandegária, mas
enquadrava esse protecionismo num conjunto de medidas que abrangiam o setor
monetário, como o saneamento da moeda; o fiscal, recomendando maior
eficiência na arrecadação; o bancário pela organização do crédito; o
838 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

desenvolvimento dos transportes e o incremento do comércio internacional.


Dava especial atenção ao tema das companhias de seguro que o associava ao
problema de drenagem de capitais para o exterior. Aconselhava o governo a,

[...] favorecer o avigoramento das companhias de seguros nacionais de


modo que os seguros dos valores de nossa exportação, de nosso
comércio interestadual, de nossos valores móveis, fiquem no país, e as
economias empregadas nos seguros de vida não sejam transferidas
para o exterior, nada nos deixando. (CORREA, 1980, p.17).

Em relação às companhias estrangeiras estabelecidas no país, considerava


que suas respectivas reservas deviam ser empregadas no país, valorizando os seus
títulos e prédios.
No conjunto das ideias nacionalistas de Serzedelo Correa, o aspecto que
mais se destaca é o relacionado à defesa da industrialização. Fundamentando essa
defesa e a necessidade de uma política de proteção à indústria, declarava que só a
indústria era capaz de desenvolver as forças produtivas nos países novos, de
assegurar a prosperidade da nação e de livrá-la da instabilidade econômica, pois,
em um país de estado econômico complexo, as crises serão sempre de caráter
parcial, sem se afetar por todas as manifestações da atividade do trabalho e
manter a atividade do trabalho nacional, libertando o país dos monopólios
industriais e comerciais.
Para Serzedelo Correa a forma ideal de implementar uma política
protecionista seria por meio da concessão de prêmios, já que

[...] permitem distinguir e animar os melhores meios de fábrica, não


expõem a nação às justas represálias, e, ainda amparando os primeiros
produtores não oneram as industrias subseqüentes de transformação e,
finalmente, não encarecem os gêneros estrangeiros de consumo no
país” (CORREA, 1980, p.165-166).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 839

Mas, devido às condições do Brasil decidia-se pelo protecionismo


alfandegário: “O sistema que emprega as taxas de tarifa é, todavia, o mais natural,
porque não sobrecarrega o orçamento do Estado e porque tem a vantagem de
constituir uma receita” (CORREA, 1980, p.165-166). Recomendava ao governo,
além do protecionismo aduaneiro, dar preferência, em todos os campos, aos
artigos nacionais e a supressão completa de todos os impostos interestaduais que
em uns estados prejudicavam a produção dos outros.
Na década de 1880, os fabricantes de tecidos e outros industriais
recorreram, com insistência, a dois argumentos principais em favor do apoio do
Estado. Tendiam a identificar a Indústria com o progresso da nação; auxiliar a
indústria, representando, por extensão um ato de patriotismo. Além disso, se os
países evoluídos industrialmente haviam empossado a doutrina do livre-
cambismo e, se o livre-cambismo permite aos produtores estrangeiros estrangular
a indústria nacional, à adesão a essa doutrina constituía de acordo com esse
raciocínio, um ato essencialmente impatriótico. “O Brasil ainda não se deu conta
da importância do aparato industrial para a economia de uma sociedade”
(STEIN, 1979, p.92), afirmava um memorial dos industriais dirigido ao Ministro
da Fazenda, em 1881. “A produção local de tecidos grossos é antagonizada pelos
concorrentes estrangeiros e se a indústria não for socorrida por medidas
legislativas, todo o esforço e o capital empregados até hoje serão desperdiçados”
(STEIN, 1979, p.92-93). Poucas vezes os industriais da década de 1880
expressaram de forma tão clara o seu pensamento a respeito do papel do Estado
como no primeiro número de O Industrial2, órgão da Associação Industrial do Rio
de Janeiro, como foi observado nos parágrafos anteriores. A independência

2
O Industrial. Manifesto da Associação Industrial, Órgão da Associação Industrial, 21 de maio
de 1881.
840 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

política será apenas uma ilusão – afirmavam – enquanto o Brasil for uma nação
produtora de matérias-primas,

[...] uma feitoria comercial colonial explorada pelos comerciantes


europeus. As matérias-primas exportadas pelo Brasil retornavam com
o dobro do seu valor sob a forma de produtos manufaturados.
Recusar-se a promover a indústria equivalia a reconhecer como justas
as políticas livre-cambistas e sua aplicação em âmbito mundial. Pode
essa doutrina ser aplicada com os mesmos resultados, tanto na
Inglaterra como no Brasil, tanto na França como na China? (O
INDUSTRIAL, 21.mai.1881).

Indagava O Industrial, depois de analisar o desenvolvimento industrial de


outros países, concluía que os governos “civilizados” haviam favorecido a
expansão da indústria, o que confirmava os seus pontos de vista. A intervenção
do Estado era indispensável para estimular o desenvolvimento industrial em
“países jovens”. Na Alemanha e nos Estados Unidos, países cujo modelo de
desenvolvimento lhes parecia digno de ser imitado, a proteção tarifária
constituíra instrumento de progresso econômico. Constataram, ainda, que esses
países, quando estavam em jogo interesses específicos, os princípios e as teorias
econômicas cediam imediatamente lugar ao “espírito de proteção”. Até mesmo o
governo da Inglaterra, que apregoava para o mundo a sua teoria livre-cambista
tinha que proteger a indústria contra os concorrentes estrangeiros, comentava um
fabricante de tecidos brasileiro.
Nas primeiras décadas da República, além de intensificar-se o
nacionalismo econômico brasileiro na defesa da produção nacional, incluindo
tanto a indústria como a agricultura, com medidas de proteção alfandegária e de
política econômica interna, também se fortalecem as forças contrárias à
industrialização ou à maneira como esta se estava levando a cabo. Essas forças
iriam questionar o industrialismo defendido até então, utilizando como
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 841

argumento fundamental o conceito de indústria natural, em oposição à indústria


artificial. Serzedelo Correa deixou bem claro que não admitia essa distinção, pois,
para ele, o elemento fundamental da indústria era a transformação realizada pelo
trabalho:

A indústria é sempre o resultado do trabalho humano é pelo trabalho


que o homem consegue dar a todos os objetos a utilidade, isto é – a
qualidade abstrata que os torna aptos à satisfação de nossas
necessidades, e que os transforma em riqueza. Indústria natural é, pois,
um contra-senso. (CORREA, 1980, p.153-154).

Entre as lideranças que questionavam o processo de industrialização


vigente até o final da década de 1890, destaca-se Joaquim Murtinho, Ministro da
Fazenda do Governo Campos Sales (1898-1902), por sua veemência e
persistência na crítica contra a indústria artificial e a intervenção direta do Estado
na economia e, sobretudo, por implementar com extremo rigor e determinação
uma política econômica profundamente recessiva nesse período.
Uma das coisas que mais incomodava a Murtinho eram os altos custos de
produção que resultavam da indústria artificial e, como consequência dos preços
que tinham que pagar, os consumidores em relação aos mesmos bens
importados:

O custo de produção nessas indústrias, sendo muito alto em relação ao


dos que nos vêm do exterior, eleva, por meio de taxas
ultraprotecionistas nas tarifas da alfândega, o preço dos produtos
estrangeiros, criando assim um mercado falso, em que os produtos
internos vencem na concorrência os produtos do exterior. Todo o
consumidor é, pois, lesado, e a diferença entre o que ele paga pelos
objetos nesse regime e o que pagaria em um regime livre representa
um imposto que lhe é arrancado para manutenção daquelas indústrias.
(MURTINHO, 1901).
842 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Considera, além disso, que

[...] sendo o produtor agrícola também um consumidor, o alto custo


dos objetos manufaturados onerava igualmente a produção exportável,
colocando os produtos agrícolas brasileiros em condições de
inferioridade no mercado internacional e reduzindo a riqueza
nacional3.

A expansão da indústria, a partir dos primeiros anos do século XX, isto é,


após a recessão provocada pela política econômica do ministro Joaquim
Murtinho, não foi um fenômeno isolado. A possibilidade de crescimento decorria
das transformações ocorridas no cenário político, econômico e social do país.
Em 1900, a permanência do regime republicano já não era mais incerta. As lutas
vitoriosas que a República travou contra os revolucionários monarquistas da
Marinha, em 1893-1896, a campanha sangrenta que moveu contra a rebelião que
se difundia no interior do país, em 1898, demonstraram que o regime tinha forças
para sobreviver. Sobreveio, então, o período de estabilidade política que se
prolongou até a década de 1920, quando o país foi novamente sacudido por
violentos conflitos internos.

A participação dos paulistas nas discussões sobre a condução da política


econômica no que respeita às atividades industriais ainda não se fazia sentir, tanto
em nível do Congresso Nacional como da imprensa local. Essa situação começa a
mudar com a crise internacional de 1913 e, sobretudo, com os efeitos produzidos
pela Primeira Guerra Mundial no funcionamento da indústria nacional,
especialmente na paulista. A crise internacional de 1913 repercute intensamente
no Brasil com a queda dos preços externos dos produtos brasileiros de

3
Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Sr. Presidente da República dos Estados
Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, Joaquim Murtinho, 1901.
In: LUZ, N. Vilela, Opus Cit., p.86.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 843

exportação e o retraimento do capital estrangeiro, afetando fortemente as


atividades industriais, que haviam sustentado um ciclo de expansão da economia
relativamente longo, desde 1903 até esse ano. Um dos ramos industriais mais
atingidos foi o de tecidos.
Como consequência da crise, a concorrência entre as fábricas brasileiras
intensificou-se. O volumoso influxo de capital estrangeiro entre 1908 e 1912,
destinado não só aos governos estaduais e ao federal como também às empresas
privadas, diminuiu abruptamente ao se iniciar a Primeira Guerra Mundial. A isso
somava-se a situação precária da balança comercial brasileira em decorrência do
grande volume de compra realizado no exterior e do colapso dos preços do café
e da borracha no mercado internacional, em 1913. Em 1912, o Brasil recebeu
uma quantidade líquida de ouro equivalente ao valor 17,5 milhões de Contos; no
ano seguinte, inverteu-se o fluxo, registrando uma sangria líquida de 23 milhões
de Contos. A contração do crédito provocou, por sua vez, violenta redução nas
operações das fábricas, dos atacadistas e dos comerciantes do interior. A Primeira
Guerra Mundial começa em 03 de agosto de 1914 e, nos quatro dias
subseqüentes, os industriais debateram o assunto e decidiram ir ao Congresso
pedir ajuda. Em 06 de agosto, uma comissão de industriais visitou as comissões
de finanças do Senado e da Câmara, recomendando a adoção de medidas que
atenuassem a escassez de crédito. O pedido de auxílio fundamentava-se,
cautelosamente, na ideia da responsabilidade do governo pela segurança das
empresas industriais, baseando-se no exemplo do apoio governamental à
agricultura e ao comércio. Jorge Strett, destacado industrial têxtil, declarou que,
devido ao provável retorno dos produtores estrangeiros após a Guerra, somente
com a concessão de favores governamentais a indústria nacional poderia “evitar a
tirania comercial do conquistador de amanhã”, fosse ele a Inglaterra ou a
844 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Alemanha, e preservar a independência nacional. Os argumentos invocados por


Strett visavam convencer Wenceslau Bráz, presidente da República, que tinha
grandes interesses numa fábrica de tecidos de Minas, a Companhia Industrial Sul
Mineira (STEIN, 1979, p.115).
Não obstante, é a guerra, precisamente, que iria ajudar sobremaneira a
indústria nacional a sair da crise em que se encontrava, depois de um primeiro
momento de aprofundamento do aperto das condições econômicas e financeiras
do país. Com a interrupção dos fluxos do comércio internacional surge a
oportunidade do mercado interno ser suprido quase que totalmente com a
produção nacional, o que permitiu o fortalecimento das fábricas já existentes e o
surgimento de novas.
Sob pressão, tanto dos industriais quanto dos comerciantes, o governo
lançou mão das emissões de papel moeda. Em 24 de agosto de 1914, autorizou a
emissão de 250 milhões de Contos e, doze meses depois, de mais 350 milhões.
Estas duas emissões representaram pouco menos de 50% do total de papéis
inconversíveis em circulação em 1918. O papel-moeda e o crédito fácil
financiaram durante a guerra as operações dos fabricantes de tecidos e dos
demais setores da economia, que obtendo “grandes lucros”, procuravam agora
preencher o vazio deixado pela interrupção das importações. A desorganização
do comércio mundial durante a Primeira Guerra continuou o que a proteção
tarifária fizera pela indústria têxtil algodoeira de 1900-1913. A principal
consequência da Guerra para as fábricas de tecidos brasileiras não foi o crédito
fácil e sim o monopólio do mercado interno. Era oferecida a chance de abastecer
os consumidores de um largo cinturão ao longo de toda a costa do Brasil, de
Belém, ao Norte, ao Rio Grande, no Sul. Os trabalhadores rurais, os operários
fabris, os empregados domésticos, os artesãos e inúmeras outras categorias de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 845

trabalhadores urbanos mal remunerados. São Paulo, especialmente, foi


beneficiado pelo novo surto industrial, tendo se expandido, principalmente, as
indústrias de tecidos, de calçados e de chapéus. Segundo Nícia V. Luz (1978,
p.152-157), a imprensa paulista, até então bastante silenciosa em relação ao
movimento em prol da industrialização, animava-se, exaltando essa indústria que
já estava se tornando motivo de orgulho nacional.
A indústria, terminada a guerra, saiu com o poder político fortalecido,
devido à sua importância em termos de participação na renda arrecadada pelo
governo e o significativo aumento da população ocupada na indústria.
Entretanto, o comércio importador, apoiado na massa de consumidores, iria
combater o prestígio crescente da indústria nacional. A luta se tornaria
particularmente acirrada na década de vinte, nos debates em torno,
principalmente, das tarifas aduaneiras. O governo considerou, depois da guerra,
oportuno o momento para tentar uma revisão da pauta alfandegária, e em 1919 o
Ministro da Fazenda, Homero Batista, apresenta seu projeto, enviado ao
Congresso com uma solicitação para que fosse autorizado o governo a
implementá-lo logo em seguida, a título de experiência. O governo queria evitar
que sua reforma fosse muito alterada com as emendas. Mas, a indústria queria
uma ampla discussão do projeto, do qual era contra. A oposição partiu
principalmente dos industriais paulistas, que enviaram uma representação ao
Congresso, protestando contra a reforma. Enquanto a indústria defendia sua
posição, levantavam-se contra ela os tradicionais ataques, qualificando-a de
“artificial”. Estes provinham, principalmente, da lavoura paulista (VEIGA
MIRANDA, 1919).
Apesar dos ataques contra ela, conseguia a indústria conservar a proteção
que lhe era dispensada. Pronunciou-se contra o projeto, Paulo de Frontin, que
846 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

invocou o problema social, a perturbação no trabalho nacional que a nova tarifa


provocaria; toda a bancada paulista que apoiou o voto contrário emitido pelo
representante de São Paulo, no Congresso, Rodrigues Alves, também votou
contra. Apesar das investidas de certos representantes da lavoura paulista contra
a indústria nacional, a bancada mostrou-se coesa numa questão de vital
importância como a reforma da tarifa, fato bastante revelador da força política já
exercida pela indústria paulista.
A partir desse momento, a defesa da indústria se amplia e fortalece cada
vez mais, encontrando-se em sua fileira, além do grupo dos fundadores da
Associação Industrial do Distrito Federal, os nomes de Serzedelo Correa, Amaro
Cavalcanti, Jorge Street, Leite e Oiticica, Américo Werneck, Vieira Souto e
outros, formando o que Edgar Carone (1977, p. 6-7) chama de primeira geração
de industrialistas. A segunda surge a parir da década de 1920, destacando-se os
nomes de Roberto C. Simonsen, Edvaldo Lodi, João Daut d’Oliveira, Carnelo
D’Agostini, Pupo Nogueira, entre outros.
Em relação à concorrência externa, iniciou-se, em 1928, uma campanha
contra o “dumping” de tecidos de algodão ingleses, visando à exclusão dos tecidos
importados de qualidade média e superior. Os industriais têxteis de São Paulo
desempenharam nela um papel importante. Estes consideravam que os ingleses
tinham perdido os seus extensos mercados no Oriente, onde vários países
emancipavam-se da dependência comercial por meio da industrialização e que
agora o Brasil era visto como um vasto mercado a reconquistar para o que
estavam dispostos a vender, inicialmente, com prejuízos para esmagar a
impotente indústria têxtil do algodão. A associação comercial de São Paulo, após
formar uma comissão para estudar a revisão das clausulas tarifárias concernentes
ao algodão e seus manufaturados decidiu “colocar a disposição dos interessados”
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 847

as suas conclusões. Publicou em O Jornal, de 1 de janeiro de 1929, uma matéria


paga de duas páginas, na qual sugeria que as cláusulas da tarifa referentes ao
algodão precisavam ser modificadas com urgência em vista das bem conhecidas
dificuldades que perseguem a indústria têxtil nacional. Para evitar protesto dos
que se opunham às tendências protecionistas da indústria, a comissão
recomendou que só fossem efetuadas revisões de emergência nas tarifas, pois
uma revisão completa e definitiva exigiria um longo e cuidadoso estudo. Além
disso, as modificações tarifárias não tinham o objetivo de aumentar as taxas
alfandegárias, apenas reajustar as taxas específicas aos níveis nominais indicador
na tarifa “proibitiva” de 18964.
Os panfletos e os artigos de jornal não foram os únicos instrumentos de
pressão utilizados pelos empresários têxteis e seus aliados industriais. Desde os
primeiros dias da República, a indústria vinha cimentando, pouco a pouco, os
seus laços com o governo. A importância da indústria aumentou com a estreita
colaboração do Centro Industrial do Brasil com o governo, durante a guerra,
atendendo aos pedidos de que a indústria ajudasse a amenizar o desequilíbrio
econômico causado pela queda das importações de produtos vitais. A
consolidação da estrutura política do Brasil, onde a todo-poderosa presidência e,
consequentemente, a burocracia governamental inteira oscilavam entre as
máquinas políticas das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, facilitou a
ascensão dos industriais paulistas, ajudados pelos do Rio igualmente bem
organizados. As campanhas, bem como a preservação da organização política
entre uma e outra companhia exigia muito dinheiro. Os vários centros industriais,
produtos da década de 1920, angariavam muito mais fundos políticos para o

4
“Tarifas sobre manufaturas de algodão”. O Jornal, Associação Comercial de São Paulo, 1 de
janeiro de 1929.
848 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

partido Republicano de São Paulo do que a antiga Sociedade Rural, a organização


dos fazendeiros de café. A “caixinha” era administrada com eficiência, pois o
partido no poder, por intermédio de seus líderes de bancada no Senado e na
Câmara, invariavelmente, fazia aprovar ou engavetar legislações, segundo os
interesses, segregados nos bastidores, dos grupos de pressão organizados. E não
havia nada que impedisse os industriais de ocupar cargos políticos na Primeira
República, os fazendeiros de Café de São Paulo tomaram posse de sua herança
política. Contudo, na época em que faliram os últimos planos de valorização do
café, no final dos anos vinte, os grupos industriais em ascensão e seus porta-
vozes em São Paulo e no Rio de Janeiro – Matarazzo e Street, Seabra e Oliveira
Passos, Nogueira e Galliez – já ombreavam com os fazendeiros em termos de
prestígio político (STEIN, 1979, p.133).
A influência política dos empresários têxteis revelou-se de forma clara por
ocasião da reforma tarifária, no período de 1928-1929. A campanha pelo
aumento da proteção tarifária contra o dumping de produtos ingleses ofereceu aos
diretores das associações das indústrias têxteis do Brasil, assediados por três anos
de dificuldades econômicas, uma plataforma capaz de aglutinar todos os
empresários relacionados com a indústria. Embora não fossem a única causa da
crise que a indústria atravessava, as importações constituíam, certamente, um
problema dos mais sérios. O relatório “A Crise Têxtil” (preparado pelos
industriais do Rio e São Paulo em 1928) e a matéria paga de duas páginas
publicada em O Jornal foram apenas parte de um plano bem organizado, visando
ao Congresso. No fim de agosto de 1928, o presidente da comissão bancária do
Senado e porta-voz do governo, o Senador Arnolfo Azevedo, de São Paulo,
reuniu os membros da comissão para discutir uma possível revisão das cláusulas
tarifárias concernentes ao algodão. A convocação apressada da reunião e as
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 849

declarações “vagas” do Senador Azevedo aos repórteres provocaram uma


advertência do influente Jornal do Comércio, que não via quais as intenções da
comissão, se de atenuar ou enrijecer as cláusulas. O jornal temia manobra de
bastidores e advertiu que as “questões” devem ser discutidas por todas as partes
interessadas, sem esquecer os interesses permanentes da Nação. Era preciso
chegar a um compromisso, mas “através de discussão públicas”. Recomendava a
análise de todos os pontos de vista, para evitar pressões unilaterais do governo
(STEIN, 1979, p.133-134).
Alguns jornais censuram, ostensivamente, a campanha tarifária dos
industriais têxteis de algodão. Os leitores de jornais, em sua maioria
consumidores de classe média e baixa, tinham seus rendimentos afetados pelas
alterações tarifárias, uma vez que os preços dos produtos domésticos estavam
relativamente inferiores aos dos artigos importados, apenas o suficiente para tirá-
los do mercado. Foi para tais leitores que o jornal de esquerda A Vanguarda
declarou que os proprietários das fábricas haviam engavetado a reforma tarifária
por oito anos, até que o Presidente decidiu retirar a lei da revisão tarifária das
mãos da comissão para que fosse rapidamente votada. O povo, afirmava A
Vanguarda, tem razões para ficar apreensivo “quem estiver consciente dos fortes
laços que ligam os políticos aos homens de negócios não pode esperar que das
discussões sobre a tarifa saia algo de bom para as classes desfavorecidas”. A
Vanguarda acusava os jornais, em geral favoráveis ao governo, de silenciar sobre a
natureza da revisão tarifária proposta e de falar em “circunlóquios”, a respeito da
necessidade de encontrar uma solução de compromisso para a indústria, o
comércio e o consumidor. “Paz e amor entre tubarões e sardinhas” (A
Vanguarda, 27 de agosto de 1928).
850 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Os comentários da imprensa não extremista também eram críticos. O


Correio da Manhã, reproduziu as opiniões de H. F. Wileman (O JORNAL..., 1927),
editor de uma publicação financeira em língua inglesa editada no Brasil. Quando
os fabricantes de tecidos de algodão divulgaram memoriais em favor do aumento
da proteção tarifária, em 1927, Wileman lembrou-os que as suas vendas
totalizaram 87% dos tecidos de algodão vendidos no Brasil. A expansão do
capital social, das debêntures e das reservas da indústria, entre 1924 e 1926, fora
bastante elevada. Em 1927, as reservas equivaliam a 58% do capital por ações. A
revisão tarifária proposta, advertia ele, permitiria aos fabricantes elevar os preços
além das possibilidades das classes médias e baixas. Como a maior parte das
fábricas não estava produzindo os tecidos de alta qualidade que a revisão tarifária
pretendia excluir, apenas um “segmento minúsculo dos fabricantes brasileiros”
seria beneficiado, penalizando o consumidor.

Apoiando os argumentos de Wileman, O Correio da Manhã enfatizava a


próspera situação financeira da maior companhia têxtil do Brasil, a América
Fabril. Investigando os balanços da companhia publicados em 1926 e 1927, o
Jornal verificou que uma soma de quase 3.000 contos fora desembolsada após a
distribuição de dividendos, resgate de bônus e aumento de fundos de reserva e
depreciação. Alertou seus leitores para a influência que os “magnatas” da
indústria têxtil algodoeira exerciam sobre o chefe do governo e o Congresso. No
mês seguinte, qualificou um membro da comissão bancária da Câmara dos
Deputados, Manuel Villaboim, de “advogado dos magnatas”, porque ele defendia
o ponto de vista dos industriais. Quando Villaboim e Azevedo, os líderes da
maioria na Câmara e no Senado, viajaram para São Paulo, em dezembro de 1928,
correram rumores de que essa viagem pressagiava um pacto político entre o
Partido Republicano de São Paulo e os empresários têxteis Jorge Street,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 851

Francisco Matarazzo e Rodolpho Crespi (CORREIO DA MANHÃ..., 1928). A


campanha pela revisão da tarifa, iniciada em agosto de 1928, alcançou a vitória
cinco meses depois, em janeiro de 1929, quando foram modificadas as cláusulas
tarifárias do algodão. A eficácia da medida foi comprovada pela redução das
importações de tecidos de algodão que baixaram de um total 8,3 milhões de
quilos para 1,3 milhões entre 1929 e 1930.

Referências:

Fontes

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ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO. Câmara dos Srs. Deputados.
Segundo Ano da Décima Oitava Legislatura. Sessão de 1882, Rio de Janeiro, IV.
P. 135-136.
ANAIS DO SENADO FEDERAL. Congresso Nacional. Segunda Sessão da
Primeira Legislatura. Sessões de 16 de julho a 15 de agosto de 1892. Rio de
Janeiro, 1892, vol. III, p.42.
ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL. O Industrial, Rio de Janeiro, 21/05/1881, nº 01.
CORREIO DA MANHÃ, 18/10/1928.
O Jornal - Associação Comercial de São Paulo. “Tarifas sobre manufaturas de
algodão”, 01/01/1929.
O Jornal - Associação Comercial de São Paulo – 23/11/1927.
852 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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Sessão de 10 de setembro de 1919.
Terrorismo e a agenda/pressão política dos Estados
Unidos: o caso da tríplice fronteira

Sérgio Luiz Cruz AGUILAR*

O
s atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da
América (EUA), provocaram alterações na agenda de segurança do
país, com implicações tanto na configuração interna do aparato de
segurança e defesa, como nas suas relações externas. Os norte-americanos
passaram a pressionar os Estados onde poderia haver alguma conexão com o
terrorismo internacional. No bojo do que poderíamos chamar de histeria em
relação ao perigo do terrorismo, os EUA pressionaram os governos da
Argentina, Brasil e Paraguai por conta da possibilidade de haver pessoas com
conexões a grupos terroristas internacionais atuando na região da tríplice
fronteira (Puerto Iguazu – Foz do Iguaçu – Ciudad del Este). O presente
trabalho apresenta uma leitura da pressão política exercida pelos EUA em relação
a essa região, a partir das notícias veiculadas na imprensa brasileira logo após os
atentados.

Introdução
854 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O terrorismo não é um fenômeno novo na história da humanidade, mas,


com o processo de globalização seu caráter, dimensão e capacidade letal foram
transformados. O desenvolvimento da tecnologia dos meios de comunicação e a
maior permeabilidade das fronteiras permitiram que grupos terroristas
adquirissem um alcance transnacional.
Em 11 de setembro de 2001, atentados simultâneos contra instalações nos
EUA, planejados e coordenados pela rede terrorista internacional Al Qaeda, além
de chocarem o mundo, provocaram profundas mudanças naquele país e nas
relações norte-americanas dentro do sistema internacional. No campo externo,
resultou nas invasões do Afeganistão e do Iraque, em pressões por resoluções
contra o terrorismo nas organizações internacionais e por ações mais concretas
de inúmeros países, onde poderia haver pessoas ou organizações ligadas ao
terrorismo, tudo isso no contexto que o então presidente George W Bush
denominou “guerra ao terror”.
Nessa perspectiva se insere a tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e
Paraguai que, por uma série de razões, particularmente por abrigar população de
origem árabe-palestina, recebeu atenção especial do governo norte-americano.
O texto trata da pressão do governo Bush logo após os atentados aos
governos responsáveis por aquela região a partir das notícias veiculadas pela
mídia no Brasil. Para isso, abordaremos o terrorismo e as relações internacionais,
a alteração na agenda política dos EUA pós-atentados para, então, apresentarmos
a pressão norte-americana e a reação, principalmente do Brasil, a essas pressões.

*
Doutor em História /UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. Clodoaldo Bueno
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 855

O terrorismo na agenda das relações internacionais

O enfoque global adquirido pelo terrorismo salientou a incapacidade dos


Estados em lidar com o problema individualmente, fortalecendo a necessidade da
cooperação internacional. Um exemplo foi a Convenção Internacional para a
Repressão ao Financiamento do Terrorismo que havia sido aprovada em 1999 e,
por conta dos atentados nos EUA, adquiriu o quorum suficiente para entrar em
vigor em 2002, contando com o expressivo número de 169 membros.
Logo após os atentados, o Conselho de Segurança da ONU (CS), por meio
da Resolução 1.373, de 28 de setembro de 2001, criou o Comitê Contra o
Terrorismo – Counter-Terrorism Committee (CTC) para monitorar a implementação
da resolução e tentar aumentar a capacidade dos Estados no combate ao
terrorismo. Em seguida, aprovou duas resoluções para o esforço global no
combate ao terrorismo, a de número 1.377, de 12 de novembro de 2001, e a de
número 1.456, de 20 de janeiro de 2003. Em 2004, a Resolução 1.540 do CS
atribuiu ao CTC a função de monitorar as medidas que incluem a prevenção ao
acesso às armas de destruição em massa por atores não estatais, incluindo grupos
terroristas A Resolução 1.624 do CS, de 14 de setembro de 2005, determinou que
os Estados-membros deveriam se comprometer, por lei, com a proibição de
qualquer ato terrorista ou seu incitamento, independente da motivação; bem
como a negação de asilo ou instrumento similar para os considerados culpados
por tais crimes. Em 2006, a ONU aprovou a Estratégia Global Contra o
Terrorismo1.

1
Resoluções disponíveis em http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html. Acesso em:
12 ago. 2009.
856 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

No âmbito regional, em 2003, entrou em vigor a Convenção Interamericana


para a Repressão ao Terrorismo2, no âmbito da Organização dos Estados
Americanos (OEA). No MERCOSUL, foi criado, no âmbito da Reunião de
Ministros do Interior, um Grupo de Trabalho Especializado sobre Terrorismo e,
em 28 de setembro de 2001, os ministros do Interior da Argentina, Paraguai e
Uruguai e da Justiça do Brasil decidiram criar um Grupo de Trabalho
Permanente para avaliar ações conjuntas e coordenadas contra o terrorismo, o
aumento de troca de informações sobre a questão, além de estudar ações a serem
inseridas no Plano de Segurança Regional. (BRASIL..., 2001)3 Do trabalho desses
grupos, foi possível chegar a acordos sobre a operação conjunta de serviços de
inteligência das polícias do Mercosul, cooperação contra o tráfico aéreo ilegal
conexo com atividades criminosas trans-fronteiriças e contra a corrupção nas
fronteiras.
As convenções universais ou regionais, relacionadas com o terrorismo, que
se apresentavam um tanto quanto limitadas e com poucos resultados práticos,
ganharam mais fôlego. O próprio Comitê Inter-Americano Contra o Terrorismo
(CICTE), que havia sido criado em 1999, só se tornou ativo a partir de 2002.
Várias organizações internacionais adotaram medidas relacionadas à questão,
com implicações a todos os seus membros, como as novas regras para aprimorar
a segurança em portos e navios da Organização Marítima Mundial (OMM) e o
sistema adotado pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) de
transmissão adiantada de nomes de passageiros e tripulações para as autoridades
de destino dos vôos verificarem a presença de possíveis terroristas.

2
Já ratificada por 24 membros. Disponível em http://www.oas.org/juridico/english/sigs/a-
66.html. Acesso em 15 jul. 2009.
3
O grupo passou a se reunir, quinzenalmente, desde 2001 para trocar e analisar informações
relativas à possível atuação terrorista na sub-região.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 857

O Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o


Financiamento do Terrorismo - GAFI (Financial Action Task Force on Money
Laundering and Terrorist Financing - FATF), organização intergovernamental criada
em 1989 para desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de
combate a esses ilícitos, foi fortalecida (FATF/GAFI).
Cabe salientar que os atentados, apesar de não modificarem a estrutura das
relações internacionais, alteraram suas dinâmicas, especialmente pelo
comportamento dos EUA em suas relações com os demais países.

A alteração na agenda política dos Estados Unidos

No âmbito das relações internacionais, alguns momentos na história, pela


sua importância ou, sobretudo, por suas consequências, são considerados pontos
de inflexão ao provocar alterações no relacionamento dos Estados, no âmbito do
sistema internacional. O 11 de setembro de 2001 pode ser considerado um desses
momentos pelas amplas repercussões que provocou na política internacional
contemporânea.
Inicialmente, os ataques da Al Qaeda nos EUA, o maior atentado terrorista
que se tem notícia na história, provocaram danos em parte do Pentágono, a
destruição de quatro aviões privados e as torres do World Trade Center, e um saldo
de 2.792 vítimas (EUA..., 2004). Logo após, resultou na invasão do Afeganistão
por forças norte-americanas e, dois anos depois, na invasão do Iraque.
Para um gasto estimado da Al Qaeda, entre 400 e 500 mil dólares para a
realização dos ataques (EUA..., 2004), segundo o governo norte-americano, os
EUA já gastaram 300 bilhões de dólares com a guerra no Afeganistão
(DOCUMENTOS SECRETOS...,), com uma estimativa total de gastos em torno
de três trilhões até o final de 2010 ao se incluir a guerra no Iraque (ARAÚJO,
858 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

2010). Somam-se a esse montante os recursos utilizados para implantar medidas


de segurança e modificar as instituições do Estado norte-americano, como por
exemplo, a criação do departamento de segurança interna ou de segurança da
pátria (Homeland Security).
As medidas de segurança internas tiraram a liberdade da população,
restringiram o acesso de estrangeiros e, principalmente, permitiram que o
governo adotasse procedimentos que feriram a privacidade das pessoas e o
direito de ampla defesa, no caso de prisões consideradas ilegais para os padrões
normais, especialmente nos EUA.
A lista anual de grupos reconhecidos como terroristas publicada
unilateralmente pelos EUA desde 1997, foi robustecida chegando a 47 grupos
apresentados em agosto de 2010 pelo Escritório do Coordenador de
Contraterrorismo do Departamento de Estado (EUA..., 2010).
O fenômeno do terrorismo, entretanto, não é novo na agenda de segurança
norte-americana. Em abril de 1983, um atentado à bomba contra a Embaixada
dos EUA, no Líbano, matou 63 pessoas. Em outubro do mesmo ano, a explosão
de dois caminhões bomba no quartel de marines, em Beirute, deixou 241 mortos e
resultou na retirada das tropas norte-americanas daquele país no ano seguinte. O
governo Reagan, tendo que lidar com esses e mais uma série de outros atentados,
durante a década de 1980, que vitimaram cidadãos norte-americanos, elegeu o
combate ao terrorismo como uma das prioridades de sua agenda de segurança,
tendo inclusive, autorizado ações armadas de retaliação4.

4
Um dos exemplos foi o ataque a Líbia em 15 de abril de 1986 após descoberta a ligação do
governo de Kadafi com o atentado na discoteca la Belle em Berlim que matou um soldado
norte-americano e deixou outros 79 feridos. AMARAL, Arthur Bernardes do. A tríplice
fronteira e a guerra ao terror. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 106–107.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 859

O prenúncio do 11 de setembro aconteceu em várias ocasiões. A Al


Qaeda, que obteve abrigo do governo talibã no Afeganistão, com a experiência
acumulada na luta contra as forças russas que ocupavam aquele país e com a
facilidade de movimentar dinheiro e materiais através do mundo, iniciou uma
série de atentados contra alvos norte-americanos. Em 1993, uma bomba explodiu
no estacionamento do World Trade Center, em Nova Iorque5. Em junho de 1996,
um caminhão com combustível explodiu num complexo militar em Darhran, na
Arábia Saudita, matando 19 soldados norte-americanos (O IMPÉRIO..., 2001).
Em agosto de 1998, dois atentados simultâneos contra as embaixadas dos EUA
no Quênia e na Tanzânia deixaram 244 mortos e mais de cinco mil feridos. Em
2000, a Al Qaeda atacou o destróier norte-americano USS Cole no Golfo de
Adem, resultando em 17 mortos e 39 feridos (O HORROR..., 1998).
Com os atentados de 11 de setembro, o governo de George W Bush
declarou que a América se encontrava em um novo estado de guerra e o
congresso autorizou o presidente a utilizar toda a força necessária contra os
envolvidos, fossem eles Estados, organizações ou pessoas. Com a declaração da
“guerra ao terror”, o governo norte-americano dividiu o mundo em duas partes,
os que estavam junto dos EUA na luta global contra o terrorismo e aqueles que
apoiavam terroristas, classificados como “Estados Parias”. Bush projetou, então,
os EUA “como força imperial declarada, voz única a ser seguida ou punida. ‘A
vingança’ e o ‘extermínio de santuários e até de Estados’ passaram a ser, na hora
e na forma, deliberações de uma só vontade, que deu por anuladas as leis e os
tratados internacionais” (FREITAS, 2001, p. A5).
Além dos planos militares que resultariam nas invasões do Afeganistão e
do Iraque, o governo de Bush aprofundou as tendências neoconservadoras de

5
O atentado teve um saldo de 6 mortos e mais de mil feridos.
860 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sua política externa e, entre uma série de ações, se engajou no sentido de que os
Estados do sistema internacional adotassem medidas para o combate ao
terrorismo. O engajamento foi maior em relação àqueles que pudessem ter em
seu território áreas que facilitassem a ligação de pessoas com os grupos
terroristas. É assim que, regiões que abrigavam uma considerável comunidade
árabe palestina e que, pelas suas características, facilitassem o movimento, tanto
de dinheiro como de pessoas e materiais, ganharam importância para os norte-
americanos.
Foi nesse contexto político que a tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e
Paraguai, foi uma das que ganhou destaque no noticiário nacional e internacional
por conta de uma série de posicionamentos e propostas dos EUA para a região.

A tríplice fronteira e a pressão política dos EUA

Entre o território brasileiro e seus vizinhos sul-americanos há várias


tríplices fronteiras, por exemplo, a região de Tabatinga, no Amazonas, entre
Brasil, Colômbia e Peru e no Rio Grande do Sul entre os municípios de Barra do
Quarai, Monte Caseros (Argentina) e Bella Union (Uruguai). No entanto, a mais
conhecida é a compreendida pelas localidades de Foz do Iguaçu no Brasil,
Ciudad del Este, no Paraguai e Puerto Iguazu, na Argentina. Na área abrangida
por esses municípios vive uma população total de 700 mil habitantes, bem maior
do que os 60 mil habitantes do início da década de 1970. Esse crescimento se
deu, principalmente, pela construção da Hidrelétrica de Itaipu e pelo
estabelecimento da terceira maior zona franca do mundo em Ciudad del Este.
Com a conclusão das obras em Itaipu, Foz do Iguaçu se beneficiou dos
royalties da hidrelétrica e se especializou no setor de turismo. Ciudad del Este
permaneceu voltada para o comércio e sofre altos e baixos de acordo com as
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 861

variações cambiais internas e de seus vizinhos. Já a argentina Puerto Iguazu,


depois do “boom” econômico das décadas de 1980 e 1990, enfrentou grave crise,
inicialmente provocada pela reforma cambial brasileira e, posteriormente, pela
própria crise econômica argentina (EM PUERTO, 2001).
Nessa região, ocorrem alguns problemas como os de controle das pontes
internacionais, os inúmeros pontos de passagem e os portos clandestinos no Rio
Uruguai. A facilidade de locomoção de pessoas e de transporte de materiais sem
o devido controle favorece a uma série de atividades ilícitas.
Essas atividades estão inseridas no campo da segurança internacional no
que se convencionou chamar de “novas ameaças” e têm ligação com uma rede de
atividades ilegais que adquiriram um caráter transnacional na qual se insere o
crime organizado, o contrabando, o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, a
imigração ilegal, o tráfico de armas e de pessoas, além de possíveis conexões com
redes terroristas. O caráter transnacional dos ilícitos faz com que o seu combate
não possa ser realizado por um só Estado, mas somente pela cooperação
internacional.
O potencial dessa região para o desenvolvimento dessas atividades lhe
confere uma tipicidade na qual se percebe facilmente a interdependência em
termos de segurança. As respostas às novas ameaças só podem ser realizadas em
conjunto pelos três Estados envolvidos. Logo, os problemas da tríplice fronteira
não se enquadram na conceituação clássica de segurança, mas num conceito
multidimensional6.
Esse potencial, por si só, faz da região um atrativo para a possível
formação, refúgio ou montagem de bases de apoio para grupos terroristas de

6
Sobre o conceito de segurança multidimensional ver: VILLA, Rafael Antonio Duarte. Da crise
do realismo à segurança global multidimensional. São Paulo: Annablume, 1999.
862 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

qualquer espécie. Mas, no caso da tríplice fronteira há um adicional importante


que é a grande comunidade árabe-palestina que ali vive. Só no lado brasileiro são
12 mil pessoas, 90% de origem libanesa (CUNHA, 2009, p.77). Esse foi, sem
dúvida, o principal motivo para que aquela região surgisse com força no
noticiário internacional logo após os atentados de 11 de setembro de 2001.
A certeza de que organizações criminosas agem na região levaram as
autoridades dos três países a adotarem medidas especiais de segurança antes
mesmo dos atentados. Em 1999, por exemplo, a Polícia Federal brasileira teria
descoberto uma organização chamada “religiosos”, estruturada militarmente na
tríplice fronteira, que teria surgido a partir do final dos anos de 1980, com a vinda
para a região de 55 religiosos financiados por extremistas do Irã e da Arábia
Saudita com a incumbência de difundir o islamismo. A maior parte teria se
dispersado e os poucos que ficaram articularam esse grupo clandestino (EX-
GUERRILHEIROS..., 2001, p.14).
Em abril de 2010, O Estado de S. Paulo noticiciou o fechamento das
embaixadas dos Estados Unidos no Paraguai, Uruguai e Equador, assim como o
consulado em Guaiaquil (Equador) por temores quanto a segurança. No
Paraguai, o fechamento da embaixada foi determinado “por precaução” e a
Polícia Nacional reforçou a segurança do prédio, medida que a imprensa
relacionou com possíveis ameaças que teriam sido feitas por elementos
fundamentalistas árabes que se encontrariam na zona da tríplice fronteira (EUA
TEMEM..., 2001).
O Estado de S. Paulo noticiou, em 11 de novembro de 2001, que agências da
inteligência militar do Brasil, da Argentina e do Paraguai acompanhavam “há pelo
menos 20 anos as atividades de pessoas estabelecidas na tríplice fronteira, no sul
do País e ligadas a grupos radicais” e que o Brasil mantinha um esquema especial
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 863

de vigilância no eixo da fronteira desde 1976 por conta da construção da Usina


Hidrelétrica de Itaipu (TRIPLICE FRONTEIRA..., 2001).
Em matéria do jornal O Estado de S. Paulo de 19 de setembro de 2001, o
encarregado de negócios da embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Cristobal
Orozco, informou que há quatro anos o governo investigava as movimentações
em Foz do Iguaçu, assim como no sul do País. O Ministro da Defesa Geraldo
Quintão justificou que esse acompanhamento começou após os atentados em
Buenos Aires (de 1992 contra a Embaixada de Israel, e de 1994 contra a
Associação Mutual Israelita Argentina), pois houve suspeitas de que as pessoas
que teriam participado daqueles atos terroristas poderiam estar baseadas na
tríplice fronteira ou no sul do país, na região de Chuí (RS) (EUA NÃO..., 2001).
A ação do governo Bush em relação à tríplice fronteira começou logo após
os atentados nos EUA. O jornal Folha de S. Paulo noticiou que o embaixador
norte-americano, em Assunção, havia pedido uma reunião com autoridades
paraguaias e os embaixadores do Brasil e da Argentina, quando solicitou um
reforço nas medidas de segurança naquela região (AMARAL, 2010, p.165).
Dois dias após os atentados, matéria da Folha informava, com base na
divulgação do Ministro da Justiça José Gregori, que a Polícia Federal (PF) havia
redobrado a vigilância nas fronteiras brasileiras e que a preocupação do governo
tinha como foco duas áreas específicas: a tríplice fronteira e a região do extremo
sul do País, na fronteira com o Uruguai. Em encontro com líderes do Congresso,
o presidente Fernando Henrique Cardoso as teria classificado como “áreas
delicadas”. A matéria as apontava como locais utilizados para lavagem de
dinheiro e tráfico de drogas e que já haviam sido feitas investigações sobre o
possível envolvimento de brasileiros nos atentados terroristas em Buenos Aires
(PREOCUPADOS..., 2001). No mesmo dia, em entrevista coletiva, o Ministro
864 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

das Relações Exteriores Celso Lafer se apressou em assegurar que não havia
qualquer informação sobre ramificações de redes terroristas no Brasil (AMARAL,
2010, p.168).
Nas discussões no âmbito da Organização dos Estados Americanos
(OEA) nas semanas seguintes, sobre o envolvimento dos países latino-
americanos em uma guerra antiterrorista junto com os Estados Unidos, a
Argentina e o Paraguai teriam evocado apoio militar, possibilidade descartada
pelo Brasil. A matéria da Folha relatava que o diretor de Comunicação da
Delegação de Assistência Israelense Argentina (Daia), Adolfo Neuberger
lamentava que os países membros da OEA não tinham, até então, utilizado esses
instrumentos para combater as chamadas “células adormecidas” do terrorismo na
tríplice fronteira. Dizia, também, que o Secretário Geral do Itamaraty havia
afirmado que a questão daquela região nunca fora objeto de discussão
diplomática no Ministério das Relações Exteriores (OEA DISUTE..., 2001).
Em 19 de setembro, o encarregado de negócios da embaixada dos Estados
Unidos no Brasil, Cristobal Orozco, afirmou que, no Brasil, não havia sido
detectada qualquer pista sobre terroristas responsáveis pelos ataques a
Washington e Nova York. A mesma matéria asseverava que o Ministro da
Defesa, Geraldo Quintão, havia declarado na Comissão de Relações Exteriores e
Defesa Nacional do Senado que os órgãos de inteligência do governo estavam
atentos a toda e qualquer informação em relação à possibilidade de terroristas
terem passado pelo Brasil (EUA NÃO..., 2001).
O governo paraguaio se apressou em dar uma resposta aos norte-
americanos e prendeu 17 pessoas de origem árabe em uma operação
desencadeada em Cuidad del Este e Encarnación (PARAGUAI PRENDE...,
2001). No final daquele mês, 13 das 17 pessoas detidas por porte de documentos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 865

falsos e suspeitas de envolvimento com grupos extremistas do Oriente Médio


ainda estavam presas (PERMANECEM PRESAS..., 2001). Um dos presos, o
libanês Sobhi Mahmoud Fayad, seria um importante elemento do Hezbollah na
tríplice fronteira, segundo o Departamento Antiterrorismo da Polícia Nacional
paraguaia (LIBANÊS PRESO..., 2001). Enquanto isso, o General Cardoso, então
Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, descartava tanto a
presença de grupos terroristas como transferências de fundos para essas
organizações no Oriente Médio (AMARAL, 2010, p.170).
Também como forma de amenizar as pressões dos EUA, o jornal O Globo
anunciou que havia sido estabelecido, no Brasil, no final de setembro, um
escritório do serviço secreto norte-americano, na cidade de São Paulo, para
aprofundar a colaboração entre os governos dos dois países a fim de reprimir a
lavagem de dinheiro e, se for o caso, trocar informações sobre movimentos
terroristas (GASPARI, 2001, p.7). Na realidade, em 25 de setembro, o governo
norte-americano recebeu a autorização brasileira para instalar um escritório de
representação do Tesouro norte-americano junto ao Consulado-Geral dos
Estados Unidos, em São Paulo, para combater operações de lavagem e circulação
de dinheiro procedente de fontes ilícitas, trabalhando em parceria com o Banco
Central, a Polícia Federal e o Conselho de Atividades Financeiras (COAF). A
solicitação oficial para essa instalação havia sido feita pela Embaixada dos EUA,
em 13 de julho daquele ano, com base em consultas iniciadas em janeiro daquele
ano, ou seja, sem relação com os atentados terroristas de 11 de setembro7.
Em 27 de setembro, o Estadão noticiou uma reunião em Puerto Iguazu, na
qual foram discutidas ações conjuntas de combate ao terrorismo internacional na

7
BRASIL. Câmara dos Deputados. CREDN. Audiência Pública n. 001079/01. Depoimento
do Ministro de Relações Exteriores Celso Lafer. Brasília, 4 out. 2001.
866 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

tríplice fronteira. A mesma matéria afirmava que o Brasil investigava seis pessoas
por suspeita de envolvimento com terrorismo por meio da força antiterror da PF
e apoiada pela polícia federal americana (FBI) (BRASIL..., 2001).
No dia seguinte, matéria da Folha informava sobre a criação do grupo
especializado em terrorismo internacional, o Grupo de Trabalho Permanente
(GTP), para coordenar todas as ações conjuntas a serem desenvolvidas na região,
principalmente na fronteira do Brasil, Uruguai e Argentina, onde autoridades
internacionais suspeitavam da existência de células terroristas ou mesmo pessoas
que financiariam a ação de grupos extremistas pelo mundo (MERCOSUL...,
2001). Outra matéria afirmava, com base em informação prestada pelo
Subsecretário Antiterrorismo do Departamento de Estado, Steven Monblatt, que
os EUA acreditavam na existência de focos terroristas na área que, por meio do
contrabando e do uso de instituições de caridade de fachada, arrecadavam
recursos e os enviavam para grupos estrangeiros. No entanto, o mesmo
Subsecretário afirmava ser ainda “nebuloso” o vínculo entre o terrorismo e o
contrabando na região. Monblatt fez tal afirmação após reunião na OEA, em que
fora enviado pelo Secretário de Estado, Colin Powell, para pedir aos países
latino-americanos maior controle nas fronteiras (AITH, 2001).
Em meados de outubro, a Folha declarou que o coordenador da agência de
contraterrorismo do Departamento de Estado dos EUA, Francis Taylor, havia
reiterado a preocupação da Casa Branca com a suposta atividade de grupos
fundamentalistas islâmicos na tríplice fronteira. “Os terroristas que atuam na
tríplice fronteira nos preocupam. Por isso, queremos trabalhar com os governos
(de Buenos Aires, Brasília e Assunção) para interromper as operações” desses
grupos, disse ele (EUA PREOCUPADOS..., 2001).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 867

No final daquele mês o jornal O Globo noticiou que tanto o FBI como a
CIA teriam descoberto “indícios” da atividade do grupo terrorista, dirigido pelo
milionário suadita acusado de ordenar os ataques terroristas de 11 de setembro,
em Nova Iorque e Washington. O chanceler paraguaio José Moreno Rafinelli se
apressou em afirmar não ter informações de que a organização Al Qaeda tivesse
uma base logística na tríplice fronteira (PARAGUAI DESCONHECE..., 2001).
No início de novembro, o presidente paraguaio Luis González Macchi
negou a existência de atividades terroristas no local, afirmando que, em vez disso,
a região seria vítima de um “terrorismo verbal” por parte dos Estados Unidos e
que, segundo os prefeitos de Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e de Puerto Iguazú,
a área apresentaria um alto índice de delinquência e criminalidade, mas não havia
ali terrorismo (TRÍPLICE FRONTEIRA..., 2001).
No discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o
presidente Fernando Henrique Cardoso desaconselhou as ações unilaterais e,
numa conversa com Bush, informou que o Brasil considerava o trabalho de
construção da coalizão contra o terrorismo que os EUA estavam conduzindo
como uma expressão de uma preocupação saudável de Washington com o
multilateralismo.
A mesma matéria do jornal O Estado de S. Paulo apresentou que as suspeitas
norte-americanas sobre atividades de financiamento da rede terrorista Al Qaeda
por membros da comunidade árabe que vivia na região da tríplice fronteira não
haviam sido tratadas diretamente pelos dois presidentes, mas que Fernando
Henrique fora acompanhado pelo então Ministro-Chefe do Gabinete de
Segurança Institucional, que manteve reuniões com representantes dos serviços
de inteligência dos EUA. O Ministro disse, em entrevista, que “O Brasil não tem
nenhum interesse em negar por negar que haja terrorismo no País, mas não
868 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

temos nenhum indício que nos permita afirmar que há bases ou células terroristas
naquela região e consideramos tal possibilidade remota” e que era sabido “que ali
se faz contrabando e lavagem de dinheiro e existe a possibilidade de que dinheiro
que as pessoas remetem para o exterior possam ser usado para esse fim, mas os
rastreamentos que fizemos e continuamos a fazer não nos permite afirmar isso”
(FHC DESACONSELHA..., 2001).
Em novembro, a rede de notícias CNN divulgou, em seu site, uma notícia
a respeito de uma casa em Cabul que possuiria um quadro grande na parede com
a paisagem das Cataratas do Iguaçu que chamou a atenção da repórter “diante
das crescentes suspeitas de que a região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai
e Argentina concentra atividades terroristas” (IMAGENS DAS..., 2001).
Posteriormente, comprovou-se que não se tratava das cataratas na referida foto.
Naquele mesmo mês, ainda que não tivesse provas concretas da existência
de células terroristas na região, o governo brasileiro decidiu reforçar o
policiamento na tríplice fronteira, criando um núcleo de Polícia Marítima em Foz
do Iguaçu com o objetivo de auxiliar na segurança da área, “considerada um dos
pontos de maior vulnerabilidade do País e uma das grandes preocupações do
governo norte-americano” (BRASIL REFORÇA..., 2001) e a Usina de Itaipu
adotou um rígido controle de turistas (ITAIPU ESTÁ..., 2001, p.5).
Enquanto isso, O Estado de S. Paulo apontava a preocupação da OEA com
as atividades ilícitas na região, sobretudo com o contrabando no lado paraguaio
(TRÍPLICE FRONTEIRA PREOCUPA..., 2001). No final de 2001, foi
anunciada, ainda, a visita de uma delegação de congressistas americanos na zona
da tríplice fronteira (DELEGAÇÃO DOS..., 2001).
As notícias sobre o tema prosseguiram em 2002. Em maio, o Estadão
noticiou que o Departamento de Estado dos EUA afirmou, por meio do
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 869

documento “Padrões do Terrorismo Global 2001”, haver evidências sobre a


presença de membros ou simpatizantes dos grupos terroristas Hezbollah e
Hamas na região da tríplice fronteira, onde conseguiriam, anualmente, “milhões
de dólares em atividades criminosas”. O documento apontava, também, a
presença desses “membros” em áreas do Chile, Colômbia, Venezuela e Panamá.
O relatório apresentou as prisões realizadas pela polícia paraguaia em setembro
de 2001, salientando que alguns dos suspeitos haviam sido identificados como
membros do Hezbollah ou com vínculos com o Hamas (HÁ TERRORISTA...,
2002).
Em setembro de 2002, a rede de televisão NBC informou que, na luta
contra o terrorismo, a Casa Branca iria se voltar também para a região da tríplice
fronteira (BUSH PODE..., 2002).
No mês seguinte, O Estado de S. Paulo noticiou que a rede de televisão
CNN afirmara que vários líderes de organizações terroristas haviam se reunido
na cidade paraguaia de Ciudad del Este e em seus arredores para planejar novos
ataques terroristas contra interesses norte-americanos e israelenses no Ocidente,
incluindo representantes do grupo Hezbollah e de organizações simpatizantes da
rede terrorista Al-Qaeda (CÚPULA DO..., 2002). O ministro da Justiça do Brasil,
Paulo de Tarso Ribeiro, declarou em seguida a não existência de célula terrorista
e afirmou haver “uma certa demonização da região” (MINISTRO NEGA...,
2002).

Conclusão

A região da tríplice fronteira, por suas características próprias, há algumas


décadas, faz parte das preocupações em segurança dos governos da Argentina,
Brasil e Paraguai. As suspeitas de que a região abrigaria terroristas de
870 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

movimentos fundamentalistas islâmicos se tornaram mais fortes após os


atentados terroristas na Argentina em 1992 e 1994 e as polícias Federal Brasileira,
Nacional do Paraguai e a Gendarmería Argentina passaram a preparar e manter
listas de supostos terroristas que estariam escondidos na região.
Notícias afirmavam que na comunidade árabe palestina na tríplice fronteira
estariam os chamados “terroristas adormecidos”, ex-combatentes de movimentos
extremistas que exerceriam outras atividades, mas que se manteriam em
condições de retomar práticas terroristas, e os “apoios”, formados por
comerciantes que auxiliariam as causas extremistas com dinheiro e propaganda
(EX TERRORISTA..., 2001, p.5).
Com os atentados, os EUA definiram zonas de risco de presença de
terroristas nas Américas, focalizando, principalmente, áreas com elevada presença
de imigrantes árabes ou palestinos.8 Naquela ocasião, o Brasil teria sido acusado
de benevolente com os árabes, os quais teriam transformado Foz do Iguaçu em
“fábricas de documentação falsa e geração de renda” (DIVERGÊNCIA NAS...,
2001, p.8). No entanto, o governo brasileiro continuou mantendo a posição de
discordância em relação à presença de terroristas na região. Já o Paraguai, aceitou
a tese dos norte-americanos, tanto é que, logo após os atentados, realizou uma
série de operações que resultou na prisão de vários suspeitos não só em Ciudad
del Este, como também em Assunção e Encarnación. Da Argentina vieram
acusações de descuido do governo brasileiro em relação à presença de terroristas
na região.
Com relação à imprensa brasileira, o volume de matérias publicadas
relacionadas com o terrorismo na tríplice fronteira não pode ser considerado

8
As zonas de risco incluíram a Venezuela, o Chile e o Suriname, em decorrência de sua
expressiva população muçulmana. (CUNHA, 2009, p. 78).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 871

substancial. A maior parte delas apresentava dados de agências ou órgãos da


mídia imprensa ou televisa norte-americana e algumas reportagens foram
preparadas por repórteres lotados em Washington ou na região de Foz do
Iguaçu. Destacam-se, também, os vários artigos publicados em jornais no Rio
Grande do Sul, justificados pelo fato daquele Estado ter em seu território uma
considerável comunidade árabe, especialmente no Chuí e na região de
Uruguaiana.
A pressão política do governo Bush provocou respostas, seja por meio de
declarações, seja por meio de ações, com a intenção de demonstrar que os
governos responsáveis pela tríplice fronteira não estavam inertes ante a
prioridade dada ao tema do terrorismo. No Brasil, a pressão serviu, também, para
que houvesse um consenso no Congresso brasileiro em torno da agilização da
votação de projetos na área da segurança nacional como a quebra de sigilo
telefônico e de envio de dados por meio eletrônico e a regulamentação da
permissão para agentes se infiltrarem em organizações criminosas (GOVERNO
E..., 2001, p.16).
Dessa forma, o contexto de pressão política do governo Bush por conta da
prioridade dada ao combate ao terrorismo, somado às discussões que se
desenvolviam no âmbito da OEA e nas Nações Unidas, desde a década de 1990,
em relação a novos conceitos de segurança e a sua característica multidimensional
atual, fizeram com que se tornasse relevante a adoção de medidas comuns no
campo da segurança, de modo a diminuir a possibilidade da ação de grupos
terroristas contra as instituições ou pessoas dos Estados que compõem a tríplice
fronteira, resultando num aumento do entendimento e a cooperação entre os
países do Cone Sul.
872 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 877

VILLA, R. A. D. Da crise do realismo à segurança global multidimensional. São Paulo:


Annablume, 1999.
Aumento da governabilidade, política de mercês e
concessão de sesmarias: fundamentos práticos da
ação metropolitana no processo de ocupação das
minas de Cuiabá (1721-1728)

Luis Henrique Menezes FERNANDES*

E
ste artigo tem por objetivo avaliar o papel da metrópole no
processo de dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo,
durante o governo do capitão-general Rodrigo César de Menezes.
A relevância dessa conjuntura espaço-temporal para a compreensão do objeto
proposto está relacionada aos significativos descobrimentos auríferos,
realizados por sertanistas paulistas, no interior do continente, e à posterior
incorporação dessas “novas” regiões aos domínios portugueses na América.
Trata-se, portanto, de uma exposição sobre a ação metropolitana na expansão
dos domínios portugueses na América em princípios do século XVIII, tema
este tradicionalmente tributário da história das bandeiras paulistas.
Rodrigo César de Menezes tomou posse do cargo de governador da
capitania de São Paulo em 6 de setembro de 1721, perante o Senado da
Câmara de São Paulo, no qual permaneceu até 1728. Era membro de uma
família da qual saíram importantes autoridades do vasto Império português.

*
Mestrando em História/UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Claudinei
Magno Magre Mendes.
880 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Seu pai, Luís César de Menezes, fora governador do Rio de Janeiro, de Angola
e, posteriormente, governador-geral do Brasil. Durante o período em que
esteve encarregado do governo da capitania de São Paulo, seu irmão mais
velho, Vasco Fernandes César de Menezes, primeiro Conde de Sabugosa,
ocupava o cargo de vice-rei do Brasil, com o qual trocou abundante
correspondência.1 É importante mencionar, também, que após o término de
seu serviço na capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes foi
governador de Angola de 1732 a 1738, ano em que faleceu, em sua viagem de
volta para o Rio de Janeiro.
Há algumas razões que fazem do governo de Rodrigo César de
Menezes um objeto de estudo importante para a compreensão do papel da
metrópole na expansão dos domínios portugueses aos sertões longínquos da
América. Em primeiro lugar, devemos esclarecer que Rodrigo César foi o
primeiro governador da capitania de São Paulo após o desmembramento de
Minas Gerais, em 1720, por recomendações do Conselho Ultramarino. Essa
reorganização administrativa esteve diretamente vinculada ao descobrimento
das minas do Cuiabá, ocorrido em torno de 1718, por sertanistas paulistas
comandados por Pascoal Moreira Cabral, os quais encontraram o precioso
metal na região mais central da América do Sul e, portanto, muito além do
meridiano proposto pelo Tratado de Tordesilhas (1494). Como sabemos, essa
linha imaginária deveria delimitar as possessões portuguesas e castelhanas na
América, muito embora na prática não fosse respeitada, tanto pela sua
caducidade como pela dificuldade em reconhecer sua exata localização. Assim,
a nomeação de Rodrigo César de Menezes ao cargo de governador da nova

1
Para informações biográficas e genealógicas sobre Rodrigo César de Menezes, cf. LUIS,
Washington. Capitania de São Paulo: governo de Rodrigo Cezar de Menezes. São Paulo:
Typ. Casa Garrauz, 1918; SOUZA, Laura de Mello e. “Morrer em colônias: Rodrigo César
de Menezes, entre o mar e o sertão”. In: SOUZA, L. de M. O sol e a sombra: política e
administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia de Letras,
2006. p. 284-326.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 881

capitania de São Paulo vincula-se a essa conjuntura de descobrimentos


auríferos em regiões de soberania duvidosa.
Além disso, em 1725, foram descobertas outras importantes jazidas de
ouro no interior do continente, desta vez pelo bandeirante Bartolomeu Bueno
da Silva – o segundo Anhanguera –, o qual organizou uma expedição oficial,
regimentada pelo próprio governador, rumo aos “sertões dos Guayazes”
(Goiás). Por fim, não podemos nos esquecer de que a terceira década do
século XVIII, na América portuguesa, foi um dos períodos mais promissores
da economia mineradora, tanto pela ascendência dos lucros proporcionados
pelas Minas Gerais, como pelo surgimento de novos centros proeminentes de
extração aurífera na América, durante o reinado de D. João V, em Portugal
(1706-1750), considerado o período de maior ostentação da corte portuguesa
em toda a sua história.
A maneira como foram anexadas ao domínio português as regiões
mineradoras de Cuiabá e Goiás, e o papel da ação metropolitana nesse
empreendimento, pode ser exemplar para uma compreensão mais genérica do
processo que efetivou a dilatação dos domínios lusitanos em toda a América,
por meio da exploração das riquezas proporcionadas pelas distintas capitanias.
Não devemos nos esquecer, porém, de que uma das fundamentais habilidades
do historiador consiste na cautela das suas afirmações, pois, deve-se buscar
um equilíbrio perfeito entre as generalizações e as especificidades, equilíbrio
dificilmente encontrado. Houve, obviamente, especificidades relacionadas às
diferentes conjunturas encontradas pelo Império português no processo de
incorporação de territórios americanos aos seus domínios, mas o papel da
metrópole nas diferentes situações pode ser equivalente por causa da aparente
recorrência dos instrumentos utilizados.
No período analisado, expandiam-se as possibilidades de
enriquecimento no interior do território americano, tanto para a metrópole
882 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como para os colonos, sobretudo nos sertões auríferos de Cuiabá e Goiás, que
iam sendo revelados. Por esse motivo, era conveniente que a monarquia
portuguesa dilatasse o seu domínio e governança a regiões tão distantes
quanto promissoras. Vivia-se um momento de grandes expectativas quanto às
explorações auríferas na América portuguesa, e era mister que a Coroa
portuguesa assegurasse a governabilidade e a defesa da sua colônia. De acordo
com a nossa hipótese inicial, o que garantiu a incorporação das regiões das
minas de Cuiabá e Goiás ao Império português, concomitantemente e em
harmonia expansão bandeirante paulista, foi a ação do próprio Estado
metropolitano em busca de interesses definidos, cuja realização culminou na
dilatação territorial da América portuguesa. Sendo assim, supomos que a
Coroa portuguesa não entregou a tarefa de ocupação desses espaços
exclusivamente à iniciativa privada, mas que o processo de dilatação das
fronteiras da capitania de São Paulo, no período analisado, ocorreu como
resultado, em grande medida, de uma política de ocupação idealizada e
praticada pela metrópole.
No entanto, privilegiaremos, neste artigo, o processo de incorporação
das minas de Cuiabá aos domínios lusitanos, em detrimento da ação da
metrópole sobre os sertões de Goiás. Esse aparente desequilíbrio pode ser
explicado pelo fato de que o grande assunto de toda a documentação
referente ao governo de Rodrigo César de Menezes na capitania de São Paulo
são as minas de Cuiabá. Enquanto estas se encontravam em crescente
processo de exploração, Goiás ainda estava em fase de descobrimento e as
demais regiões eram relativamente ofuscadas diante da proeminente riqueza
que se vislumbrava nos sertões cuiabanos. Desse modo, centralizaremos nossa
análise em avaliar o papel da metrópole na incorporação das minas de Cuiabá
ao domínio efetivo da Coroa lusitana.2

2
Para uma perspectiva socioeconômica da formação da fronteira oeste da América
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 883

A historiografia brasileira compreendeu, tradicionalmente, o processo


de formação territorial do Brasil como resultado direto e exclusivo da ação
particular dos bandeirantes paulistas nos sertões longínquos da América.
Herdeira, sobretudo, da historiografia paulista de princípios do século XX –
cuja característica central fora a heroificação do antigo bandeirante –, essa
interpretação estabeleceu um rígido vínculo entre a exploração dos sertões
pelas bandeiras e a dilatação das fronteiras da América portuguesa. No
entanto, não obstante essa visão historiográfica já cristalizada, supomos que
existiram, além das importantes expedições sertanistas, outros aspectos
fundamentais que contribuíram para a formação histórica do território
nacional, como a própria ação metropolitana, mas que acabaram ignorados ou
minimizados por essa interpretação dominante.
A exploração dos sertões da América pelos bandeirantes poderia muito
bem não ter acarretado a sua anexação aos domínios lusitanos – como muitas
vezes de fato aconteceu –, embora não possamos deixar de reconhecer que
tenha sido um aspecto fundamental. Além dos descobrimentos realizados
pelos sertanistas paulistas nas regiões localizadas a oeste do meridiano de
Tordesilhas, como os próprios sertões de Cuiabá e Goiás, deve também ser
considerado essencial, para a efetiva anexação desses espaços à América
portuguesa, o papel da ocupação política e econômica realizada nesses rincões
pela metrópole portuguesa e pelos seus prepostos residentes na América. A
ocupação política e econômica, neste caso, se fez, por um lado, por meio da
expansão da governabilidade metropolitana ao interior do continente,
mediante a formação de estruturas administrativas, militares e fiscais e, por
outro, pela organização da produção, do abastecimento interno e da

portuguesa, a partir do descobrimento das minas de Cuiabá, cf. VOLPATO, Luiza Rios
Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do
Brasil, 1719-1819. São Paulo, HUCITEC; Brasília, INL, 1987.
884 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

comunicação nas regiões que se desejava incorporar. Neste sentido, o papel da


metrópole, nesse processo, parece ter sido crucial para a bem sucedida
anexação desses espaços aos domínios portugueses. Entretanto, como já
apontamos, a historiografia brasileira herdou de alguns de seus intelectuais
mais proeminentes que se dedicaram a essa temática – principalmente os
paulistas – uma perspectiva bastante contraditória com relação à hipótese que
confere à metrópole uma importância significativa nesse fenômeno. Antes de
adentrarmos com mais especificidade no tema central deste artigo – a relação
entre o governo de Rodrigo César de Menezes e a dilatação das fronteiras da
capitania de São Paulo –, apresentaremos, de maneira bastante breve, as razões
desse aparente “desequilíbrio” da historiografia brasileira sobre o tema
proposto.3
Um dos intelectuais que se deteve com profunda assiduidade em
pesquisas históricas e arquivísticas sobre os primeiros tempos da ocupação
portuguesa em Cuiabá e Goiás foi Affonso d'Escragnolle Taunay. Nos tomos
X e XI de seu grandioso trabalho sobre a História geral das bandeiras paulistas, o
autor apresenta uma narrativa pormenorizada dos acontecimentos
relacionados aos descobrimentos auríferos nas regiões de Cuiabá e Goiás e
sua incorporação aos domínios portugueses (TAUNAY, 1948-1950). O papel

3
Entre os historiadores das três primeiras décadas do século XX responsáveis pela
heroificação do bandeirante como construtor do território nacional, privilegiaremos em
nossa análise Affonso de E. Taunay e Basílio de Magalhães. Embora outros importantes
estudiosos – como Alfredo Ellis Junior, Paulo Prado, José de Alcântara Machado, Azevedo
Marques – tenham sido tão importantes quanto eles para a construção do símbolo
bandeirante, o trabalho daqueles primeiros tem mais proximidade com o tema ora em foco:
a expansão territorial do Brasil. Além deles, Washington Luís e Sérgio Buarque de Holanda
também encontrarão neste artigo especial atenção: o primeiro por trabalhar, na mesma
perspectiva dos demais, especificamente o governo de Rodrigo César de Menezes; e o
segundo por ser historiador muito consagrado, que cristalizou importantes imagens sobre
nossa história colonial, conservando, porém, alguma influência da heroificação em torno
do bandeirismo paulista. Sobre o surgimento do símbolo bandeirante, cf. ABUD, Katia
Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo
paulista, o bandeirante. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1986.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 885

da metrópole é bastante minimizado por esse autor, quando não ignorado ou


ridicularizado. Essa perspectiva pode ser compreendida se entendermos que
Affonso de Taunay intenta, acima de tudo, exaltar os bandeirantes como
construtores do território nacional, em justa harmonia com a conjuntura
histórica em que vivia, desejando enaltecer o Estado de São Paulo diante das
demais unidades federativas do recém-estabelecido Brasil Republicano.4
Embora este autor não esteja conscientemente defendendo alguma hipótese
explicativa dos acontecimentos – buscando por isso narrar nada mais do que
“a verdade dos fatos” –, podemos compreender que a ideia implícita do
trabalho de Taunay é a grandeza epopeica do movimento sertanista e a
heroificação do bandeirante, de modo que as fontes são analisadas com base
nessa perspectiva. Por esse motivo, não cabe em sua análise qualquer atenção
especial à ação metropolitana portuguesa, que estaria em estrutural
contradição com seus propósitos regionalistas.
Por sua vez, o trabalho de Basílio de Magalhães (1978) intitulado
Expansão Geográfica do Brasil Colonial apresenta aquele tradicional ofício do
historiador que consiste na busca pela exatidão de nomes e datas para, dessa
forma, atingir a desejada verdade histórica. No entanto, este autor também
exalta apaixonadamente o trabalho dos sertanistas paulistas como os
construtores do território brasileiro. Sobre o papel da metrópole no processo
global de formação geográfica da América portuguesa, o autor afirma que “se
a dilatação das fronteiras do Brasil houvesse ficado apenas aos esforços da
metrópole – pouco, muito pouco, teria ela transposto a linha de Tordesilhas”
(MAGALHÃES, 1978, p. 54). Essa afirmação corresponde cabalmente à
perspectiva dominante na historiografia brasileira que parece minimizar, por

4
cf. LIPPI, L. A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos. vol. V (suplemento), 195-215 julho 1998;
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados instituições, invenção
histórica (1870-1840). São Paulo: UNESP, 2002.
886 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

razões nacionalistas e/ou regionalistas, o papel da metrópole no processo de


dilatação das fronteiras da América portuguesa.
Apesar de seus grandes méritos, a interpretação adotada por Basílio de
Magalhães, bem como por Affonso de Taunay, inspirada em grande medida
pelos antigos trabalhos setecentistas de Pedro Taques de Almeida Paes Leme e
Frei Gaspar da Madre de Deus, é reconhecidamente tendenciosa, relacionada
a um esforço desmedido para a exaltação dos feitos dos bandeirantes e de seus
resultados. Essa perspectiva historiográfica que exalta e glorifica os feitos dos
sertanistas paulistas pode ser compreendida ora como reflexo da historiografia
paulista que buscava demonstrar por meio da pesquisa histórica a importância
de São Paulo para a formação do Brasil, ora em decorrência de uma visão
ufanista que buscou no passado colonial brasileiro/paulista objetos de culto
nacional.5
Muito ilustrativo sobre o assunto é o seguinte trecho de um poema de
Olavo Bilac, citado por Basílio de Magalhães, sobre o célebre sertanista
Fernão Dias Paes: “Cada passada tua era um caminho aberto / Cada pouso
mudado, uma nova conquista! / E, enquanto ias, sonhando o teu sonho
egoísta / Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!” (MAGALHÃES,
1978, p. 54). Sendo conhecida a tendência ufanista desse poeta, pode-se
compreender a mitificação em torno da ação bandeirante na literatura, bem
como ocorre na historiografia. Há uma forte relação construída entre a
exploração do território e a sua colonização efetiva, elementos distintos e
reconhecidamente não correspondentes. Além disso, sabemos, hoje, que a
ação bandeirante não estava direcionada ao interesse de uma “nação
brasileira” – afirmação grosseiramente anacrônica –, mas sim à possibilidade
de obtenção de lucros proporcionados pela escravidão indígena, pelos
descobrimentos auríferos ou pelas mercês régias.
5
Sobre este mesmo assunto, cf. também: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Ufanismo
paulista: vicissitudes de um imaginário. Revista USP, n. 13, p. 79-87, mar.-maio 1992.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 887

Não podemos deixar de mencionar o livro Capitania de São Paulo: governo


de Rodrigo Cezar de Menezes de Washington Luís (1918), cuja análise
corresponde, também, à perspectiva historiográfica que exalta os bandeirantes
como únicos responsáveis pela formação do território brasileiro. Apesar de
estudarmos o mesmo recorte espaço-temporal e, basicamente, as mesmas
fontes, adotamos uma linha interpretativa quase oposta à de Washington Luís.
Enquanto ele compreende o governo de Rodrigo César de Menezes como um
empecilho à expansão das fronteiras da América portuguesa, buscamos
enquadrá-lo em uma perspectiva que o considere como um preposto
metropolitano que agiu também em prol dela.
Além de entrar em conflito com essa tradição historiográfica paulista, a
proposta de estudar as diretrizes de uma política metropolitana de expansão
territorial encontra-se em grave contradição com o clássico trabalho de Sérgio
Buarque de Holanda (1986) sobre o semeador e o ladrilhador, no livro Raízes do
Brasil. Como sustentar a existência dessa política diante da afirmação de que
Portugal preferia “agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas
umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim”?
(HOLANDA, 1992, p. 151). Considerando a empresa colonizadora
portuguesa como tateante e negligente, este pensador afirma sobre a
construção das suas cidades coloniais que não houve “nenhum rigor, nenhum
método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que
exprime a palavra ‘desleixo’ […], [como] convicção de que não vale a pena”
(HOLANDA, 1992, p. 152). De acordo com essas afirmações, a dilatação das
fronteiras da América portuguesa não pode ser compreendida como resultado
de uma política metropolitana de ocupação, mas como consequência
unicamente da ação particular dos bandeirantes paulistas.
Não obstante essas afirmações, parece-nos inegável a existência de,
quando não uma política muito bem ordenada, ao menos um propósito de
888 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

ocupação, sobretudo no período dos descobrimentos auríferos em Cuiabá e


Goiás, ainda que suas diretrizes se mostrem de maneira implícita e
fragmentada na documentação. O autor de Raízes do Brasil também assevera
que “os paulistas, graças a sua energia e ambição, tinham corrigido por conta
própria o traçado de Tordesilhas, estendendo a colônia sertão adentro”
(HOLANDA, 1992, p. 135). Essa afirmação corresponde à supracitada
tendência historiográfica paulista, que heroifica o bandeirante como
construtor exclusivo do território nacional. Os sertanistas podem ter
explorado imensos territórios por conta própria – ou seja, sem o auxílio direto
da Fazenda Real –, mas, como já apontamos, a dilatação de um território não
se faz somente com a sua exploração.
A noção de que a metrópole não exerceu papel significativo na
expansão das fronteiras luso-americanas está relacionada à verdade de que a
maioria das expedições sertanistas foi custeada por particulares paulistas,
sendo essa uma das justificativas capitais para se considerar os bandeirantes
como os únicos responsáveis pela formação territorial do Brasil. No entanto,
seria inimaginável que a Fazenda Real financiasse todas as expedições
sertanistas, quando estas eram em grande parte, sobretudo nos séculos XVI e
XVII, destinadas à escravidão indígena ilegal. Para que a linha de Tordesilhas
fosse efetivamente “corrigida”, a metrópole pode não ter financiado
diretamente as expedições sertanistas, mas provavelmente exerceu o seu poder
por meio de outras ferramentas para fazê-lo. Desse modo, se a metrópole de
fato exerceu um papel fundamental no processo de incorporação de Cuiabá e
Goiás à América portuguesa, como tencionamos demonstrar, algumas das
assertivas basilares de Sérgio Buarque de Holanda precisarão ser relativizadas.
O próprio Sérgio Buarque de Holanda assegura que
acabadas as expedições, quando não acabavam mal, tornavam eles
[os bandeirantes] geralmente à sua vila e aos seus sítios da roça. E
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 889

assim, antes do descobrimento das minas, não realizaram obra


colonizadora, salvo esporadicamente (HOLANDA, 1992, p. 137).

Essa afirmação sugere que a expansão territorial dos limites da América


portuguesa não dependeu apenas da ação sertanista, mas também de outros
fatores essenciais, ligados aos descobrimentos auríferos, dentre os quais
pretendemos destacar a ação metropolitana. Sobre a nova conjuntura
econômica do século XVIII, Sérgio Buarque de Holanda afirma que:

[...] então Portugal delibera intervir mais energicamente nos


negócios de sua possessão ultramarina, mas para usar de uma
energia puramente repressiva, policial, e menos dirigida a edificar
alguma coisa de permanente do que a absorver tudo quanto lhe
fosse de imediato proveito. (HOLANDA, 1992, 139).

Desse modo, o próprio autor relativiza suas próprias generalizações,


sem, contudo, creditar importância alguma à metrópole no tocante à dilatação
territorial. Fica claro, porém, que eram tanto as riquezas recém-descobertas
quanto a expectativa de encontrar novas fontes de enriquecimento que
motivaram a metrópole a exercer mais efetivamente seu poder sobre o
território americano.
Podemos notar que a balança historiográfica tem pendido
exageradamente para o papel das bandeiras paulistas e suas iniciativas privadas
no processo de expansão dos domínios portugueses na América, enquanto
têm sido quase relegados à nulidade os esforços metropolitanos que
contribuíram para o mesmo fim. Embora a historiografia brasileira já tenha,
em grande parte, demonstrado e desconstruído a existência de um “mito
bandeirante”, relacionado a conjunturas históricas específicas que desejavam
exaltar a figura do paulista, a noção de que os sertanistas “corrigiram” por
contra própria o meridiano de Tordesilhas, sem qualquer participação
metropolitana, permanece geralmente como senso comum. É conveniente,
890 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

portanto, aquilatar com maior precisão o papel da metrópole nesse processo.


Portugal obteve grandes benefícios territoriais, em detrimento da Espanha,
por ocasião da assinatura do Tratado de Madri, de 1750, pelo qual ficou
estabelecido o princípio do “uti possidetis” como norteador da delimitação das
fronteiras luso-castelhanas na América. Segundo este preceito, cada parte
permaneceria com as porções que já havia efetivamente ocupado. Assim, o
anacrônico Tratado de Tordesilhas perdia, definitivamente, o seu valor
político, passando Portugal a possuir legitimamente grandes porções
territoriais além da antiga linha imaginária.
Desse modo, podemos, logicamente, supor que houve uma política de
ocupação – ainda que apresentada de forma difusa na documentação analisada
–, pois as riquezas encontradas na América no período e a expectativa de
encontrar mais justificam uma atenção especial da metrópole nessa região do
Império português. As possessões portuguesas na América constituíam-se,
ainda no início do século XVIII, um mundo a ser explorado. Isso não
significa, apenas, que havia vastas regiões territoriais desconhecidas, mas,
sobretudo, que esse Novo Mundo possuía grandes potencialidades
econômicas que poderiam proporcionar grandes fontes de enriquecimento ao
Reino. Nessa conjuntura, supomos que Portugal buscava incessantemente
novas fontes de riquezas na América, com o intuito de fortalecer
economicamente a monarquia.
Voltando ao trabalho de Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo “O
Semeador e o Ladrilhador” de Raízes do Brasil, o autor traça pertinentes
comparações entre o processo colonizador de Portugal e Espanha, em suas
respectivas possessões, apontando que:

[...] a colonização espanhola caracterizou-se largamente pelo que


faltou à portuguesa: - por uma aplicação insistente em assegurar o
predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 891

suas terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de


povoação estáveis e bem ordenados. (HOLANDA, 1992, 125).

Entretanto, embora a criação de povoações estáveis não seja um


instrumento central analisado neste artigo, a fundação da vila de Cuiabá, em
1727, por exemplo, se enquadra perfeitamente nesse propósito metropolitano
português. Como poderíamos compreender, então, a afirmação de Sérgio
Buarque de Holanda de que a empresa colonizadora portuguesa na América
foi “desleixada”, reflexo da sua “simples ambição de riquezas” em suas conquistas,
diferentemente do que ocorria na América espanhola, na qual a ambição era
“de arquitetar o futuro, de sujeitar o processo histórico a leis rígidas”?
(HOLANDA, 1992, p. 163-165). Porquanto se havia desleixo, não haveria
lugar para uma política de ocupação organizada.
Podemos encontrar uma resposta plausível, que explique a questão, se
conciliarmos as supracitadas ambições portuguesa e castelhana. Ao menos
durante o governo de Rodrigo César de Menezes, a metrópole portuguesa
buscava, sim, arquitetar o futuro, mas somente tendo em vista que este
satisfizesse a sua simples ambição de riquezas. Em outros termos, o autor de
Raízes do Brasil tem razão apenas em parte, já que Portugal buscava sujeitar o
processo histórico, ainda que somente à lei rígida do aumento da Fazenda
Real. Neste aspecto, portanto, não havia apenas um desejo de enriquecimento
rápido, mas um projeto para um enriquecimento duradouro.
Neste sentido, podemos caracterizar essa política de ocupação como
uma ação muito prática, quase espontânea, mas não “desleixada”, como o fez
Sérgio Buarque de Holanda. Em Castela, por exemplo, afirma este autor que
“o amor exacerbado à uniformidade e à simetria surge, pois, como um
resultado da carência de verdadeira unidade [no reino]” (HOLANDA, 1992, p.
164). Como na monarquia portuguesa a unidade é mais consistente em relação
à Castela, os projetos políticos de ocupação das conquistas coloniais
892 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

apareceram espontaneamente e de forma prática, ao passo que na América


espanhola, a ação metropolitana é direcionada artificialmente e de maneira
bem mais teórica. Por esse motivo, o caráter de “desleixo e certa liberdade” que,
de acordo com o autor de Raízes do Brasil, imprime a personalidade e a
mentalidade portuguesa em sua empresa colonizadora, não está em
fundamental contradição com a existência de uma política de ocupação. Esse
caráter pode implicar no fato de que não houve uma política explicitamente
organizada em regulamentos específicos, mas uma ação dispersa e
fragmentada, expressa desorganizadamente em toda a documentação
ultramarina. Portanto, o “desleixo” lusitano não impediu a existência de
projetos, mas talvez tenha colaborado para o surgimento de uma política
fragmentada e não tão organizada.
Sérgio Buarque de Holanda parece não ter enfatizado, ao menos em
Raízes do Brasil, que, tanto na América portuguesa como na espanhola, o que
motivou o estabelecimento do Estado nos respectivos territórios interioranos
foi, principalmente, o descobrimento de metais preciosos. A diferença está
somente na época em que se iniciou essa atividade intensivamente na América
portuguesa (última década do século XVII e início do século XVIII) e na
espanhola (logo no alvorecer do século XVI). Desse modo, nos anos
setecentistas, com a crescente importância da atividade mineradora na
América portuguesa, uma nova conjuntura se apresentava: com os
descobrimentos e a exploração aurífera em regiões de posse diplomática
duvidosa, fez-se urgente que a metrópole portuguesa passasse a “assegurar o
predomínio militar, econômico e político sobre as terras conquistadas”
(HOLANDA, 1992, p. 125), não somente por intermédio da fundação de
vilas, mas também por outros artifícios.
Ainda em meados do século XVII, porém, conforme encontramos no
Decreto Real de 1643, por meio do qual fora criado o Conselho Ultramarino,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 893

entendemos que o próprio ato de criação desse conselho já é uma expressão


da existência de uma atenção especial metropolitana para o território
americano. Muito embora o Conselho não tenha sido criado exclusivamente
para a América portuguesa, mas para todas as suas possessões ultramarinas,
lemos, na introdução do Decreto, que o motivo da sua criação estava
vinculado ao “estado em que se acham as coisas da Índia, Brasil, Angola e
mais conquistas do reino, e pelo muito que importa conservar e dilatar o que
nelas possuo” (DECRETO REAL apud CAETANO, 1967, p. 125). Assim, o
Conselho Ultramarino surgiu como um órgão metropolitano para conservar e
dilatar as conquistas do reino, e ainda que a expressão “dilatar” não esteja
vinculada, necessariamente, à noção de territorialidade, podemos inferir que
esse aspecto não deveria ser ignorado pela metrópole, acima de tudo por sua
importância econômica.
Analisando o caso da capitania de São Paulo, durante o governo de
Rodrigo César de Menezes, vemos que o processo de dilatação das fronteiras
não pode, em vista da documentação consultada, ser considerado como um
fenômeno totalmente espontâneo. Houve um claro interesse metropolitano na
efetiva incorporação das recém-descobertas minas de Cuiabá e Goiás aos
domínios portugueses, e um conjunto de ordens régias foi elaborado para
proporcionar uma ocupação organizada.
Bastante ilustrativa a esse respeito é a carta do capitão Rodrigo César de
Menezes ao Vice-Rei do Estado do Brasil, escrita em abril de 1722, na qual o
governador apresenta, resumidamente, as principais circunstâncias relativas ao
seu governo na capitania, até então.6 Primeiramente, o governador apresenta o
interesse da metrópole pelas riquezas que poderiam proporcionar as minas de
Cuiabá. O governador também já dá mostras da maneira como pretende

6
“Registro de uma carta escrita ao Vice-Rei do Estado” In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 19-24.
894 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

estabelecer a governabilidade metropolitana sobre a região cuiabana. Tudo


deveria ser feito com “algum temperilho”, para evitar revoltas contra o peso da
presença do Estado português. A expressão “temperilho” descreve
perfeitamente as intenções da metrópole sobre a região, interessada em
estabelecer o governo sem que os moradores o sentissem com uma
intensidade indesejável. Afirma o governador que:

Do novo descobrimento das minas de Cuiabá tem sido


repetidas as notícias, e todas são gostosas. A última me veio
por um homem de capacidade e inteligência, que gastou
setenta dias na jornada, fazendo-a fora de monção, por ser o
tempo da maior força das águas. Depõe ser a abundância do
ouro muita, sem embargo de não haverem faiscado em forma
até o natal, por se empregarem primeiro em plantar
mantimentos, fazendo roças, como também em conquistarem
o gentio, que não tem sido pouco […] O povo elegeu por
guarda-mor a Pascoal Moreira Cabral, que havia sido o
descobridor, e por capitão-mor, para os governar, Fernando
Dias Falcão, ambos sujeitos de capacidade [...] Eu me
conformei com a eleição por ora, assim por entender estava
bem feita, como por ser necessário levar aquela gente com
algum temperilho, porque em semelhantes ocasiões é o que
mais vence.7

Rodrigo César de Menezes também já apresenta a sua preocupação


com o abastecimento daquela região, por meio dos projetos acerca da abertura
de um caminho. Logo após, descreve resumidamente o seu intento de passar
às minas de Cuiabá, para estabelecer com mais firmeza a governança
portuguesa na região. Literalmente, o capitão-general afirma que:

A 25 de abril se principiou a abrir o caminho novo, que ajustei se


abrisse, como já dei conta à Vossa Excelência, e segura o homem
dá-lo acabado nos fins de agosto, capaz de irem boiadas e

7
“Registro de uma carta escrita ao Vice-Rei do Estado”. In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896. p. 20-21.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 895

cavalgaduras com cargas. […] Assim os homens principais de toda


esta capitania, como os que assistem em Cuiabá, procuram com
grande instância que eu passe àquele novo descobrimento, porque
de outra sorte é muito dificultoso conservarem-se unidos, como
também para a boa arrecadação dos quintos reais.8

Esse interesse dos paulistas pela residência de Rodrigo César de


Menezes, em Cuiabá, pode estar relacionado ao fato de que a presença de um
capitão-general na região proporcionaria uma defesa considerável contra os
perigos relacionados aos ataques dos índios belicosos e à proximidade dos
castelhanos. Por fim, o governador apresenta a força das mercês para que a
metrópole atingisse seus objetivos para a região. Ele informa ao Vice-Rei que
“estes homens estimam mais a honra de um hábito de que toda outra
conveniência”. Em seguida, recomenda que “parece deve Sua Majestade, que
Deus guarde, contentá-los com estas mercês […] e posso assegurar a Vossa
Excelência lhe deve o maior cuidado esta mercê”.9
Desse modo, essa carta do governador ao representante maior da
metrópole no Estado do Brasil nos parece valiosíssima para comprovar a
existência de toda uma gama de atitudes metropolitanas para com a região do
novo descobrimento de Cuiabá. Essa correspondência apresenta, de modo
resumido, os principais instrumentos utilizados pela metrópole no processo de
anexação daquele espaço à capitania de São Paulo: o aumento da
governabilidade, o abastecimento interno e a política de mercês. De modo
geral, foram esses instrumentos que, elaborados pelo poder metropolitano,
proporcionaram, juntamente com a iniciativa sertanistas, a efetiva integração
daquele espaço à América portuguesa. Além disso, estes mesmos
8
“Registro de uma carta escrita ao Vice-Rei do Estado”. In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896. p. 21-23.
9
Ibid., p. 24. Para uma visão global a respeito da política de mercês – ou economia da
mercê – no Estado moderno português, cf. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o
Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar,
2001.
896 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

instrumentos foram utilizados, em diferentes proporções, nos “sertões dos


Guayazes”, bem como nas demais regiões da capitania que se desejava
conservar.
A utilização destes instrumentos pela metrópole, no processo de
dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo, é o que estamos
denominando “política de ocupação”. Como já foi apontado, é preciso deixar
bem claro que, apesar da existência dessas diretrizes metropolitanas no
tocante à ocupação sistematizada do território da capitania, essa política não
está organizada em uma espécie de tratado e nem explicitamente ordenada em
algum papel. De forma diferente, encontra-se difusa em toda a documentação
correspondente à administração de Rodrigo César de Menezes na capitania de
São Paulo. Por este motivo, é necessário analisar cuidadosamente o conteúdo
de toda a documentação selecionada e organizá-la de modo que se possa
visualizar as diretrizes dessa política.
A grande distância existente entre São Paulo, Cuiabá e Lisboa, motivo
pelo qual se tornava dificultosa a comunicação entre o governo local e o
central, fazia com que as diretrizes da política portuguesa em relação à
ocupação do território não emanassem de um centro específico de poder, mas
fossem elaboradas e postas em prática pelas diferentes instâncias da
organização estatal do Império. Desse modo, tanto os agentes metropolitanos
residentes na América, como os membros do Conselho Ultramarino e o
próprio monarca, tinham papel ativo nas decisões concernentes aos
instrumentos utilizados para a dilatação das fronteiras da América portuguesa.
Há inúmeras ordens régias no período, relacionadas à forma como a
metrópole desejava que a ocupação desse espaço fosse efetivada, e todas essas
diretrizes da ocupação são chamadas, genericamente, na documentação, como
“serviço real” ou “serviço de Sua Majestade”. Havia, portanto, um serviço a
ser realizado e metas preestabelecidas que deveriam ser atingidas. É preciso
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 897

que compreendamos em que consistia esse serviço e quais foram os


instrumentos utilizados pela metrópole para cumpri-lo.
Compreendendo-se a política como o conjunto dos meios que
permitem alcançar os efeitos desejados, na definição de Hobbes e Russell,
infere-se que diferentes instrumentos foram utilizados pelo Estado português
como uma política elaborada para atingir determinados alvos nos sertões da
capitania de São Paulo (BOBBIO, 1992, p. 954). Instrumentos são, portanto,
ferramentas utilizadas pelo Estado para proporcionar ou facilitar o alcance de
determinados objetivos.
O aumento da governabilidade, a política de mercês e o abastecimento
interno são os três grandes instrumentos utilizados pela metrópole para
proporcionar, efetivamente, a incorporação das minas de Cuiabá e Goiás à
América portuguesa e, portanto, na dilatação das fronteiras da capitania. Sobre
essas duas regiões, o interesse metropolitano aparece na documentação com
bastante intensidade. Em relação às minas de Cuiabá, Rodrigo César de
Menezes afirmava, em outra carta ao Vice-Rei, datada de 24 de dezembro de
1722, que “das esperanças das novas minas de Cuiabá me chegaram
confirmadas não só de serem permanentes, mas abundantes de ouro e grande
a sua extensão, e [...] esta notícia não pode causar pequeno gosto a Sua
Majestade” 10.
Em outra correspondência, ainda de modo mais claro o governador
demonstra a sua ação sobre a região cuiabana, apresentando, desde já, os
objetivos metropolitanos na incorporação daquele espaço ao seu domínio:

[...] e porque o descobrimento das novas minas do Cuiabá se acha


com muitos mineiros e várias pessoas que tem concorrido para elas
com grande número de escravos, e pelas notícias que tem dado

10
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 35.
898 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

muitas pessoas principais desta capitania que dela tem vindo, se


tem a certeza de que a sua extensão é grande e que são
permanentes, por cujas razões tenho procurado por todos os meios
não só a sua subsistência, mas o seu grande aumento de dízimos e
quintos reais11.

Como já estavam descobertas as minas de Cuiabá desde antes do


governo de Rodrigo César de Menezes, a política metropolitana para a região
era direcionada para que uma organização fiscal fosse estruturada, visando ao
aumento da Fazenda Real. No caso dos sertões dos Guayases, a metrópole
agia em harmonia com a iniciativa bandeirante para proporcionar o
descobrimento de ouro na região. Isso pode ser verificado pelo regimento
elaborado pelo governo de Rodrigo César de Menezes, entregue ao célebre
sertanista Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera. Este
documento estabelecia os fundamentos do contrato firmado entre eles e
demonstra a existência de uma ação conjunta entre metrópole e paulistas no
descobrimento. Na introdução do documento, o governador afirma que:

Porquanto Sua Majestade, que Deus guarde, foi servido ordenar-me


por carta de 14 de fevereiro do ano passado de 1721, assinada pela
sua mão real, ajustasse com o Capitão Bartolomeu Bueno da Silva
o prêmio que se lhe havia de dar, no caso em que descobrisse nos
sertões desta capitania minas de ouro e prata, e outros haveres, e
que lhe desse regimento quando entrasse em tropa a fazer
descobrimento nos ditos sertões, e em cumprimento da ordem do
dito Senhor, lhe mandei dar o presente regimento, que há de
guardar inviolavelmente o dito Capitão Bartolomeu Bueno da
Silva.12

11
“Registro do regimento que levou para as novas minas de Cuiabá o mestre de campo
regente João Leme da Silva”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XII. São
Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1901, p. 99.
12
“Registro do regimento que levou o Capitão Bartolomeu Bueno da Silva, cabo da tropa
que foi ao sertão a descobrir minas de ouro e pedras preciosas”. In: Arquivo do Estado de
São Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e
Costumes de São Paulo, v. XII. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1901, p. 53.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 899

Pode-se ver, dessa maneira, a inequívoca existência de firmes diretrizes


estabelecidas pela metrópole no tocante à dilatação dos seus domínios, por
meio dos descobrimentos auríferos nos sertões da América. Fica evidente que,
além de uma política de ocupação que visava estabelecer a governança lusitana
sobre as regiões já descobertas, como Cuiabá, a metrópole também agiu no
sentido de promover, em uma espécie de aliança com os paulistas, novos
descobrimentos auríferos. Baseados nessas convicções, estamos persuadidos
de que a historiografia brasileira se equivocou quando afirmou que a
incorporação desses espaços à América portuguesa foram feitos sem um
auxílio significativo da Coroa lusitana. Esse equívoco está ligado à convicção
de que a dilatação das fronteiras da América portuguesa se fez somente com a
exploração do território pelas bandeiras, o que, na verdade, consiste apenas
em um primeiro passo. Foi necessário, além disso, que a metrópole dilatasse os
seus domínios por intermédio de diversos instrumentos.
É muito importante assinalar que, no início do século XVIII, o império
português já não era a grande potência que fora no século XVI. Com o
Tratado de Methuen, em 1703, Portugal tornara-se subordinado
economicamente à Inglaterra. Sabe-se que toda a riqueza mineral extraída da
América não fora suficiente para restaurar as glórias passadas do reino
lusitano e fazê-lo reviver como o grande império de outrora. Apesar de todos
os seus esforços, era um reino em decadência. Por esse motivo, é sensato
supormos que a política de expansão dos domínios portugueses na América
esteja diretamente vinculada à tentativa de D. João V de reerguer
economicamente o império, pelejando sempre pelo aumento da Fazenda Real,
mediante de diversos instrumentos utilizados em suas possessões ultramarinas.
Quanto à região das minas de Cuiabá, era urgente que a metrópole
elaborasse uma política de ocupação se desejasse auferir lucros consideráveis
com aquele descobrimento. Isso porque a distância entre Cuiabá e as
900 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

possessões castelhanas era relativamente pequena, e a Coroa temia perder a


região para os espanhóis. Depois de informado sobre o assunto, Rodrigo
César de Menezes afirmava o seguinte:

Eu tenho procurado examinar de todos estes homens práticos e


dos melhores sertanistas a distância em que ficam as novas minas
do Cuiabá à primeira povoação dos castelhanos, e todos
uniformemente assentam que serão três meses de viagem, que além
de dificultoso chegarem a eles pela aspereza do terreno, os
impossibilita também a falta de água, porque os paulistas, por
aquelas partes, dizem que, para satisfazerem a sede, se valiam da
raiz de um pau, que metiam na boca, e pelo que a todos ouço, os
respeitam os castelhanos, de sorte que basta ouvir o nome de
paulista, a quem eles intitulam por feras, para não intentarem
nenhum projeto, e a experiência bem tem mostrado foram estes
sempre o seu flagelo.13

Apesar dessa aparente tranquilidade sobre o assunto, após averiguada a


real distância entre as possessões portuguesas e castelhanas, além da fama dos
paulistas para com eles, ainda era preciso temer o fato de que os próprios
sertanistas podiam se submeter à Coroa espanhola, se achassem que isso seria
mais proveitoso. Por esse motivo, era necessário que a metrópole elaborasse
uma maneira de estender a sua governabilidade à região, respeitando, o quanto
possível, a autonomia paulista, sem que os sertanistas se sentissem ultrajados.
Após julgar ter tido bom êxito nesse propósito, Rodrigo César de Menezes
informava ao Vice-Rei, em carta datada de janeiro de 1723, que:

Não tem sido pequena felicidade chegar a por as coisas nos termos
em que estão, depois de achar tudo desordenado, parecendo não
aproveitaria remédio algum, porque o ânimo destes homens estava
bastantemente empedernido, concorrendo o seu avesso gênio para
lho fazer endurecer mais, e os que se acham no novo

13
“Registro de outra carta para o dito Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 25.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 901

descobrimento lhe excediam, pois publicavam que ainda tinham as


feridas frescas do que nas Minas Gerais experimentaram, porque
havendo sido os descobridores, foram os que sem honra nem
riqueza ficaram, e porque assim não consentiriam passasse àquelas
minas ninguém, alargando-se alguns a mais, dizendo que se os
apertassem, dariam obediência a quem lhes atendesse, pois até aqui
o não haviam devido a Sua Majestade, e como se não acham em
muita distância dos castelhanos, se fazia este particular
bastantemente vidrento.14

Ademais, a concessão de sesmarias pode ser também compreendida,


assim como a política de mercês e o aumento da governabilidade, como um
dos instrumentos utilizados pela metrópole no processo de dilatação das
fronteiras da capitania. As terras concedidas por sesmarias eram recompensas
(mercês) oferecidas pela metrópole àqueles que se harmonizassem com o
“serviço real de Sua Majestade”. Por esse motivo, encontramos claramente em
cada uma das cartas que o suplicante “pedia lhe fizesse mercê conceder, em
nome de Sua Majestade, que Deus guarde, por carta de data de terra de
sesmaria, as ditas terras”.15
Embora houvesse uma espontaneidade no afluxo populacional aos
sertões auríferos da capitania, graças às riquezas prometidas pelos
descobrimentos, a metrópole atuou no sentido de organizar essa ocupação, de
modo que houvesse governo e rendimento em Cuiabá, e as fronteiras de fato
se dilatassem. Nessa ocupação organizada, visada pela metrópole para que
cada região proporcionasse os lucros esperados, o abastecimento interno era

14
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 35-36.
15
Por esse motivo, em vez da expressão “doação de sesmarias”, optamos por “concessão
de sesmarias”, pois o primeiro conceito sugere irremediavelmente a conotação de
propriedade privada, enquanto o termo “concessão” apresenta as sesmarias como mercês
oferecidas pela monarquia portuguesa – legítima possuidora das terras – condicionadas por
inúmeros deveres dos suplicantes, expressos um a um nas cartas emitidas. cf. Arquivo do
Estado de São Paulo. Sesmarias (1720 – 1736), v. III. Edição do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, 1937.
902 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

primordial. Caso não fossem bem estruturados os caminhos para os sertões e


as produções agropecuárias, destinados ao abastecimento das regiões
mineradoras, não haveria “combustível” para o funcionamento do sistema.
Após a experiência de carestia nos primeiros anos da exploração aurífera em
Minas Gerais, o capitão-general Rodrigo César de Menezes estava consciente
da gravidade do problema. Por isso, se expressava da seguinte maneira em
carta ao Vice-Rei do Brasil:

Pela abertura do novo caminho que fez o sargento-mor Luís


Pedroso, pretendo fazer com que se introduza gado e cavalgaduras
por ele nas ditas minas [de Cuiabá], e para se facilitar mais a
passagem e vencer uma grande parte de distância, me foi preciso
eleger um cabo dos melhores sertanistas, para que com um corpo
de gente vá assistir naquela paragem que for mais conveniente [...]
para que sem impedimento possam os viandantes cursar o
caminho, com a introdução do gado e socorro de gente, que se faz
muito necessário.16

Nesta conjuntura, o serviço prestado pelos suplicantes para que


pudessem receber os títulos das sesmarias era basicamente o cultivo da terra,
de que resultaria o abastecimento interno da colônia, principalmente da
atividade mineradora em Minas Gerais e Cuiabá. Mas, além do abastecimento
interno, havia grande interesse na tributação imposta às sesmarias, de modo
que os proprietários tinham, entre outros requisitos, o dever de entregar a
décima parte da sua produção ao governo local. Assim, o sistema sesmarial
funcionava como um instrumento da política de ocupação que visava, em
última instância, como os demais, ao aumento da Fazenda Real. Esse aumento
era proporcionado tanto diretamente, pela arrecadação dos dízimos, como
indiretamente, pelo abastecimento da atividade mineradora que, por sua vez,

16
“Registro de uma carta escrita ao Excelentíssimo Senhor Vice-Rei do Estado”. In:
Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes
para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896,
p. 211.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 903

era tributada pela metrópole. Deste modo, o regime sesmarial era estruturado
com base em uma relação de serviços e recompensas entre os proprietários e a
metrópole.
O funcionamento do regime sesmarial, enquanto subsidiário da política
de mercês, pode ser entendido como reflexo da estratégia metropolitana de
utilizar o trabalho de particulares para a realização do “serviço real”. Tanto o
abastecimento interno quanto os descobrimentos auríferos eram efetuados
dentro de um sistema de serviços e recompensas, sem que a metrópole
precisasse investir significativamente o seu erário para colocá-lo em
funcionamento. Os colonos pediam sesmarias em áreas estratégicas, visando
realizar o lucrativo comércio com as regiões mineradoras, e a metrópole fazia
a mercê, se a solicitação estivesse de conformidade com seus propósitos. Os
descobridores deviam partir para os sertões por conta própria, assim como os
sesmeiros deviam cultivar as terras com seus próprios cabedais. Dessa
maneira, a fórmula da política de mercês, apresentada por Rodrigo César de
Menezes na já citada carta ao Vice-Rei, cumpria-se cabalmente: “[…] não
despendendo nada da sua real fazenda, será aquele o caminho de aumentá-la
muito”17. As sesmarias, enquanto mercês, devem ser compreendidas em dois
níveis distintos e hierárquicos. Em primeiro lugar, como já foi dito, essas
terras eram concedidas como recompensas pelo simples serviço de cultivá-las;
bastava que o suplicante possuísse recursos para fazê-lo, principalmente a
posse de escravatura. Havia, entretanto, casos especiais, nos quais as sesmarias
eram concedidas pela realização de outros serviços prestados, como os
descobrimentos de minas preciosas, a abertura de caminhos, a cobrança dos
dízimos e quaisquer outros que proporcionassem direta ou indiretamente o
aumento do erário régio. Nesses casos, as terras poderiam ser melhor

17
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 37.
904 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

localizadas e mais extensas, em alguns casos ultrapassando o próprio limite


estabelecido pelas ordens régias. Quanto maior o serviço prestado pelo
suplicante, mais privilégios este recebia na obtenção das suas terras. Por esse
motivo, a sesmaria concedida a Luiz Rodrigues Vilares ultrapassava a medida
de uma légua quadrada, pois:

[…] o suplicante, com grande trabalho e despesa de sua fazenda,


povoara as terras de que estava de posse na barra de Camapuã-
Guassú, caminho destas minas, de que se seguia grande utilidade
aos mineiros e viandantes que a elas passavam, por acharem
naquela paragem mantimentos e lhe ficar a viagem mais breve, por
um varadouro novo a que o suplicante tinha dado princípio. E
porque no estabelecimento da dita fazenda tinha o suplicante feito
uma considerável despesa, e experimentando com a vizinhança do
gentio bárbaro da nação Caiapó grande perda pelos escravos que
lhe havia mortos, como era notório, e porque do aumento da dita
sua fazenda se seguia conveniência à Fazenda Real e ao bem
comum, e o suplicante se achava com posses de cultivar as ditas
terras, debaixo do mesmo risco em que até agora as conservou, e
de fabricar pelo tempo vindouro uma fazenda de gado vacum e
cavalar, na mesma paragem chamada Camapuã-Guassú, correndo
para a parte da Vacaria, assim rio abaixo. E como o suplicante tinha
tomado posse da dita paragem sem impedimento, beneficiando
restingas de matos virgens para produzir mantimentos, dos quais
estava pagando dízimos a Deus, em utilidade da Fazenda Real e dos
viandantes destas minas, por ser aquela paragem deserta, em que o
suplicante também se queria utilizar. Me pedia lhe fizesse mercê
conceder, em nome de Sua Majestade, que Deus guarde, por carta
de data de terra de sesmaria, as ditas terras.18

A relação entre a concessão de sesmarias e a política de mercês também


aparece bem evidenciada na correspondência trocada entre os governadores
Rodrigo César de Menezes e Aires Saldanha de Albuquerque, da capitania do
Rio de Janeiro. O governador de São Paulo parece contente com o fato de que

18
“Registro de uma carta de data de terra de sesmaria, de légua e meia em quadra, de Luiz
Rodrigues Vilares, do sítio Camapuã”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Sesmarias
(1720 – 1736). vol. III. Edição do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1937, p.
169.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 905

os construtores de um importante caminho não desejavam outras mercês,


além das sesmarias, talvez pelo fato de que a concessão delas era um benefício
não apenas para os proprietários, mas também à própria Coroa, visto que
proporcionava a ocupação produtiva do território. Rodrigo César de Menezes
se explicava nos seguintes termos:

Pela utilidade que se segue à real fazenda, como ao bem comum


dessa e desta capitania, procurei se abrisse o caminho por terra até
Santa Cruz, para se evitarem os riscos que costumam experimentar-
se nas viagens do mar, e para que possam pelo tempo adiante irem
seguros os reais quintos, e tudo o mais preciso e importante que de
uma e outra parte se houver de transportar, e como desta empresa
se encarrega o capitão-mor da Vila de Guaratinguetá com seus
sócios, e todos com grande desejo e ânimo de fazerem tão
importante serviço, que além do grande trabalho que hão de ter,
não é menos a despesa que à sua custa fazem, não pretendendo
outra remuneração, mais que a de eu lhe dar as terras por
sesmarias.19

As sesmarias concedidas na capitania de São Paulo, durante o governo


de Rodrigo César de Menezes, demonstram a estratégia metropolitana para o
abastecimento interno das regiões produtivas da América portuguesa,
sobretudo as regiões auríferas de Cuiabá e Minas Gerais, para que estas
pudessem cumprir eficientemente o seu papel enquanto possessão da Coroa
portuguesa. As cartas de sesmarias do período apresentam as diretrizes da
metrópole relativas à produção agropecuária na capitania, voltadas, acima de
tudo, para o aumento da Fazenda Real.
Como já explicitamos, além de uma política de ocupação sobre as
regiões economicamente favoráveis que se desejava anexar aos domínios
lusitanos, havia, também, uma preocupação com as regiões da capitania mais

19
“Registro de uma carta que se escreveu ao general do Rio de Janeiro sobre a abertura do
novo caminho”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 153.
906 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

vulneráveis aos ataques estrangeiros. A política de ocupação, desse modo,


também caminhava no sentido de estabelecer uma melhor defesa militar sobre
áreas que, embora já estivessem estabelecidas, precisavam de uma atenção
especial com relação aos adversários. Em carta régia enviada ao governador da
capitania de São Paulo, o Conselho Ultramarino apontava as diretrizes
sugeridas por Rodrigo César de Menezes no tocante à defesa do porto de
Santos:

Faço saber a vós Rodrigo César de Menezes, governador e capitão-


general da capitania de São Paulo, que se viu o que me
representastes em carta de vinte de dezembro do ano passado, em
como as dependências desse governo crescem, aumentando-se
juntamente às utilidades a minha Fazenda Real, e que pelo tempo
em diante serão muito maiores, pelo prometer assim o que a
experiência vai mostrando, e se vos fazia preciso fazer-me presente
ser muito conveniente reforçar a guarnição do presídio de Santos
com mais uma companhia de infantaria, para segurar aquele porto
de qualquer invasão dos inimigos, por que daqui por diante
poderão intentar invadi-la, pelas notícias do cabedal que a ele vai
das novas minas de Cuiabá.20

Desse modo, fica bem clara a existência de uma política de ocupação do


território da capitania de São Paulo, durante o governo de Rodrigo César de
Menezes. As diretrizes dessa política de ocupação estavam voltadas, não
somente para o aumento da governabilidade sobre as regiões que se desejava
anexar, mas também para o incentivo a novos descobrimentos auríferos,
organização do abastecimento interno e proteção de espaços já conquistados.
É mister notar que, em certa medida, estão bastante inter-relacionados
os diferentes instrumentos metropolitanos utilizados pela metrópole no
processo de incorporação de novos territórios à dominação estatal. Assim, a

20
“Carta régia participando que o rei de Portugal não concorda com as medidas propostas
para a defesa do porto de Santos”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação
Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v.
XVIII. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 144-145.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 907

política de mercês está associada aos descobrimentos, bem como ao


abastecimento interno, por intermédio da concessão de sesmarias, e também
ao aumento da governabilidade e à distribuição de cargos administrativos
entre os paulistas. Aparentemente, a política de mercês está na base da
execução do serviço real em terras americanas, inter-relacionando-se com os
demais instrumentos de ocupação do território. Quanto ao Tratado de Madri,
cumpre notar que não se trata exatamente de um instrumento de ocupação,
mas de um acordo diplomático que, simplesmente, legitimou a ocupação
efetivada por aqueles instrumentos.
*
Tendo em vista, por fim, nossa hipótese inicial, podemos concluir que a
metrópole exerceu um papel significativo no processo de incorporação das
minas de Cuiabá e Goiás aos domínios portugueses, contribuindo, dessa
forma, para a dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo. Cumpre-nos
apontar, todavia, que a existência da ação metropolitana nesse processo não
desmerece a ação sertanista – fator importantíssimo e também crucial para a
realização da expansão territorial luso-americana – mas apenas equilibra com
mais precisão a historiografia brasileira, herdeira, sobretudo, da paulista, que
heroificou demasiadamente os sertanistas, tornando nula a participação da
Coroa. Antes, demonstramos que houve, na realidade, uma confluência de
interesses entre a metrópole e os poderosos paulistas – ou, em outras palavras,
entre a iniciativa pública e a privada – na exploração de uma região
economicamente atrativa, a qual foi anexada aos domínios portugueses
mediante uma ação conjunta.
Essa conclusão é valiosa, na medida em que contribui para desmistificar
a artificial oposição metrópole/colônia, construída após a independência,
demonstrando que, no processo de dilatação das fronteiras da capitania de São
Paulo, houve uma harmonização entre o centro e a periferia, cada parte
908 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

visando a interesses específicos. Por outro lado, compreendemos, também,


que a metrópole não elaborou uma política que visava exatamente à dilatação
das fronteiras territoriais da América portuguesa, e nem os sertanistas
buscavam a formação de um território nacional. Sucedeu que, labutando
ambos incessantemente por interesses próprios – e, por vezes, unindo-se para
alcançá-los –, a dilatação das fronteiras ocorreu como consequência, e não
como objetivo. Em outros termos, a metrópole desempenhou, sim, um papel
fundamental na expansão das fronteiras luso-americanas além Tordesilhas,
embora seu objetivo não fosse exatamente dominar uma colônia
territorialmente imensa, mas imensamente rentável.
Assim sendo, o estabelecimento da governabilidade nos sertões
objetivava, principalmente, o aumento da Fazenda Real, e não do território.
Evidentemente, porém, um fator dependia do outro. Do mesmo modo, os
sertanistas partiam aos sertões em busca de indígenas para escravizar ou de
jazidas de metais preciosos, visando também à recompensa oferecida por Sua
Majestade aos que descobrissem minas. Em suma, nem os sertanistas e nem a
Coroa labutavam pelo aumento de território em si, mas por objetivos mais
imediatos, centralizados no enriquecimento advindo da exploração aurífera. E
mesmo o Tratado de Madri, de 1750, parece estar centralizado na ideia de
pacificação das conquistas portuguesas e castelhanas, por meio do
estabelecimento de limites reconhecíveis, para a continuação dos lucros, e não
com a noção de aumento territorial. Assim, metrópole e colonos agiram,
naquele contexto, de acordo com o que sua própria época lhes apresentava –
como não poderia deixar de ser –, e não a favor de interesses que eles nem
mesmo conheciam, como a formação do território nacional brasileiro, o qual,
todavia, acabaram inconscientemente colaborando para construir.

Referências:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 909

ABUD, K. M. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um


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IV

HISTÓRIA, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS:


DEBATES NA ESCRITA DA HISTÓRIA
Genealogia e hermenêutica: novas perspectivas nas
relações entre história e filosofia

Lucas de Almeida PEREIRA*

Introdução

A
s filosofias da história foram combatidas com veemência por
historiadores desde o início do século XX. Destacamos dois
resultados destes “combates” intelectuais (e também acadêmicos) para
a relação entre filosofia e história. Em primeiro lugar, o fortalecimento da
interdisciplinaridade na pesquisa histórica, que passou a pautar sua metodologia
não em modelos definidos, mas na apropriação de conceitos. Em segundo lugar,
o diálogo entre história e filosofia tornou-se árido, cercado por incertezas e
desconfianças. No entanto, alguns trabalhos recentes propõem novas
perspectivas a este distanciamento. Pretendemos analisar, de forma tópica, duas
abordagens inovadoras que articulam filosofia e história: a perspectiva
genealógica derivada das pesquisas de Michel Foucault e a leitura hermenêutica
de Paul Ricoeur, buscando mapear as possibilidades que ambos os sistemas
abrem ao território do historiador. Um diálogo problemático em vias de

*
Doutorando em História/UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador: Prof. Dr. Hélio
Rebelo Cardoso Jr.
914 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

reconstrução. Talvez seja esta a melhor maneira de definir as relações entre


história e filosofia ao longo do século XX.
O apelo pela produção de uma história cada vez mais científica impeliu os
historiadores a menosprezar a perspectiva narrativa de seu ofício em prol da
busca de aspectos que trouxessem à história se não um caráter científico, ao
menos “núcleos de cientificidade”. Neste movimento, os próprios historiadores
passaram a pensar seu ofício, rejeitando abordar rigorosamente os aspectos
teóricos constitutivos deste ofício apegando-se a um empirismo por vezes
duvidoso.
No entanto, o ato de se fazer história implica, em si, operações reflexivas
por parte do historiador, operações de corte, de seleção. É necessário estabelecer
um objeto a ser pesquisado, delimitar a periodização à qual se refere, estabelecer
as fontes que utilizará e a forma como essas fontes deverão ser tratadas, apenas
para enumerar algumas das inúmeras operações reflexivas relativas ao ofício do
historiador.
Durante boa parte do século XX, as respostas, e as ferramentas para
executar tais operações, foram buscadas nas relações de interdisciplinaridade
mantidas com outras ciências sociais, aliadas a certa recusa das perspectivas
filosóficas em história.

A proximidade da História com as Ciências Sociais até meados dos


anos 1980 distanciou os historiadores de um necessário diálogo com a
filosofia. Aliás, as desconfianças dos primeiros em relação à Filosofia
da História impediram que a disciplina evoluísse em direção a uma
maior conceituação e reflexão (SILVA, 2007, p. 168).

Após os anos 80, novas perspectivas históricas forçam os historiadores a


rever esta recusa da filosofia que, por sua vez, deixou de operar como as
filosofias “clássicas”, tão criticadas pelos historiadores, ao abdicar de definir
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 915

modelos, não mais buscando enquadrar o ofício histórico em termos de método


ou de sentido, mas oferecendo, justamente, novos elementos para o ofício do
historiador, seja em forma de novos objetos a serem abordados, seja como novas
ferramentas teóricas que permitem ao historiador (re)pensar sua prática e suas
dificuldades. Temos, portanto, o estabelecimento de uma relação renovada entre
filosofia e história, baseada na mutualidade e na valorização da singularidade
inerente a cada campo do saber, assim, “a cooperação entre filosofia e história
deve, em princípio, acolher a autonomia de ambas em suas relações de
convivência” (CARDOSO JR., 2003, p.13).
Devido à amplitude da temática selecionada e às limitações de um artigo,
buscaremos apreender em linhas gerais os principais conceitos por meio dos
quais tanto hermenêutica quanto genealogia cruzam com a história 1 . Na
hermenêutica de Ricoeur, aprofundaremos a relação entre tempo e narrativa e a
forma como a tríplice mimese permite ao historiador desenvolver sua intriga e ser
seguido pelo leitor.
Na genealogia nos concentraremos em indicar que o projeto genealógico
não anula a arqueologia, a abarca e a complementa, buscando não apenas as
regularidades e limites do discurso, mas os próprios efeitos que o discurso exerce
sobre o real. Centraremos nosso foco sobre a análise de três aspectos dessa
genealogia foucaultiana que consideramos fundamentais para a compreensão de
sua historicidade: a crítica à noção de origem, a função das descontinuidades em
história e, por fim, uma nova abordagem do acontecimento, sendo este não mais

1
No entanto, esta verdadeira explosão da teoria da história não se limita a este debate aqui
levantado, temos como exemplo de outras formas de teorização, as relações entre história e
pós-modernidade (em especial quanto à questão narrativa) em Keith Jenkins, a história dos
conceitos e o resgate dos projetos de futuro passado com Reinhardt Kosseleck, ou ainda a
elaboração de uma meta-história com Jorn Rüsen.
916 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

uma batalha, um evento grandioso que daria sentido à história, mas a emergência
de uma ruptura, de uma singularidade.

Foucault, a genealogia e a história

O projeto genealógico começou a ser desenvolvido por Foucault pouco


tempo após a publicação de Arqueologia do saber. A primeira menção de Foucault a
um projeto “genealógico” encontra-se na Ordem do discurso, edição de sua aula
inaugural no Collége de France. Para empreender suas análises em torno da
“História dos sistemas de pensamento”, denominação de sua cadeira no Collége,
Foucault propôs a adoção de dois conjuntos de análise, o “crítico” e o
genealógico.
O conjunto crítico refere-se aos aspectos oriundos da Arqueologia do saber,
que Foucault agora articula como elementos de apoio à dimensão genealógica e
operando na “análise das instâncias de controle discursivo” (FOUCAULT, 1996,
p. 61), ao conjunto crítico cabe, portanto, a análise dos discursos, seu controle e
limites, os processos de reagrupamento e de unificação. O conjunto crítico
permanece atrelado ao mundo da análise discursiva.
Já o conjunto genealógico abordaria os efeitos que os discursos (analisados
por si no conjunto crítico) impõe ao real, a partir de que agrupamentos se
formam e qual sistema de coação podem deflagrar, enfim, em relação aos
discursos “a genealogia estuda a sua formação, que é simultaneamente dispersa,
descontínua e regular” (FOUCAULT, 1996, p. 65). No entanto apesar de
distinguir seus conjuntos de análise Foucault salienta que crítica e genealogia são
formas de reflexão que devem necessariamente se complementar, por um lado
questionando as formas de limitação discursiva e por outro detectando as marcas
que tais discursos aplicam ao real:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 917

[...] toda a tarefa crítica, interrogando as instâncias de controlo, deve ao


mesmo tempo analisar as regularidades discursivas por intermédio das
quais aquelas se formam ; e toda a descrição genealógica deve ter em
conta os limites actuantes nas formações reais. Entre a tarefa crítica e a
tarefa genealógica, a diferença não está tanto no objecto ou no
domínio, mas no ponto a atacar, na perspectiva e na delimitação
(FOUCAULT, 1996, p.66).

A genealogia se pauta, portanto, em duas operações distintas: a análise dos


discursos e a pesquisa em torno de como esse discurso se efetiva. Neste sentido,
é fácil perceber porque as análises de Foucault foram focadas por tanto tempo
em instituições: nelas o discurso se manifesta livremente, expõe sua dureza, sua
capacidade de torturar, de marcar um corpo. No entanto, se observarmos
atentamente seus cursos no Collége de France, Foucault deslocou seu foco para
estratégias de controle mais abertas, saindo das paredes fechadas das instituições
e transferindo sua crítica para o Estado (Biopoder). Não podemos, então, afirmar
que houve uma única genealogia no pensamento de Foucault, pelo contrário,
todo o movimento de seu pensamento parece ser um constante esforço de
reformulação, Chartier inclusive enxerga, neste exercício de reformulação, uma
“pequena (e talvez odiosa) maquinaria” (CHARTIER, 2006, p.126) haja vista a
dificuldade em se elaborar uma sistematização de um pensamento tão arredio. A
genealogia muda de foco, de objetivos, mas mantém algumas disposições ao
longo de suas metamorfoses, tais como sua ligação com o tempo presente e sua
função de dissolver as verdades. Em termos teóricos, a genealogia mantém
algumas perspectivas que a aproximam da história.
As disposições teóricas gerais da genealogia foucaultiana podem ser
apreendidas por meio da análise de três aspectos: a recusa da origem, a função da
descontinuidade e um novo olhar sobre o acontecimento. Em primeiro lugar, Foucault
918 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

recusa a existência de uma essência como origem histórica estável posto que esta é
um campo de forças marcado pela heterogeneidade da luta. Dessa forma, a
genealogia não representa a busca de uma origem, de um espírito perfeito,
olvidando os fatos, os erros, mas demorar-se nas meticulosidades, nos acasos de
um começo. Pensemos em Vigiar e punir. Para analisar a emergência do poder
disciplinar e da prisão como forma universal de punição Foucault produziu um
recorte temporal preciso entre 1791 e 1840, sem recuar ad-infinitum. Desta forma,
observamos que, ao recusar o “mito de origem” como definiria Bloch, Foucault
produziu uma história-problema que deve seguir algumas regras: “Escolha do
material em função dos dados do problema: focalização da análise sobre os
elementos suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento das relações que permitem
essa solução” (FOUCAULT, 2006, p. 326).
Le Goff, inclusive, vai além e atribui a Bloch os fundamentos da
genealogia “Sem que a palavra existisse em Marc Bloch, mas a idéia ali estava, é a
genealogia” (LE GOFF, 2003, p. 203). Um pequeno parágrafo deve ser aberto
neste ponto. As conexões encontradas entre o pensamento genealógico de
Foucault e a história praticada pelos autores ligados aos Annales não deve ser
menosprezada, afinal tanto na introdução da Arqueologia do saber quanto no
argumento geral da Ordem do discurso, Foucault faz questão de traçar um paralelo
entre sua empreitada e a dos historiadores de ofício (que podemos identificar
como os ligados aos Annales) e de como ambas se afastam de certa história
tradicional. As aproximações entre Foucault e os assim chamados pais fundadores
dos Annales, March Bloch e Lucien Febvre, não são inconsequentes e, certamente,
necessitam de uma análise mais específica2.

2
Além do texto citado de Le Goff, podemos arrolar nesta perspectiva os comentários de
autores como Peter Burke, Roger Chartier e François Dosse, que também reforçam essa
ligação o projeto de Foucault e o dos autores dos Annales.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 919

A recusa a uma pesquisa retrospectiva em busca das origens é possível por


meio das operações desempenhadas pela descontinuidade. Foucault nos alerta que a
descontinuidade ocupa uma posição de elemento fundamental da análise histórica,
por possuir três funções: é o recorte que o historiador deve fazer, isolando e
distinguindo os níveis possíveis de uma análise; é resultado da descrição, e não
mais elemento a ser excluído, pois “[...] o que ele (o historiador) tenta descobrir
são os limites de um processo” (FOUCAULT, 2005, p.84); e, por fim, trata-se de
um conceito multiforme que “assume uma forma e uma função diferentes
conforme o domínio e o nível nos quais é assinalada” (FOUCAULT, 2005, p.85).
Assim, a descontinuidade aparece na genealogia de Foucault como um conjunto de
operações fundamentais para a prática. A descontinuidade é o que deve definir o
problema a ser analisado, selecionar as fontes, os métodos que escolherá para
tratar desta fonte etc. Tais operações também permitem ao historiador
reformular o acontecimento na perspectiva histórica.
No pensamento genealógico de Foucault, o acontecimento supõe uma
ruptura evidente que faz emergir a singularidade. O acontecimento é, nas próprias
palavras de Foucault, uma inversão nas relações de força, é a emergência de uma
singularidade no momento e local de sua produção. Uma ruptura, portanto, com
uma verdade estabelecida como algo tomado como uma constante histórica. Ora,
nos diz Foucault, não era tão evidente assim que todos os criminosos foram
encarcerados. E de fato, ao retomar os projetos de punição que concorreram
com o encarceramento vemos que a prisão já sofria críticas infraestruturais desde
sua emergência (aglomeração de indivíduos; massificação penal) e que as mesmas
críticas, de modo até não tão surpreendente, permanecem em nossa sociedade.
Desta forma, não é tão óbvio pensar que os criminosos deveriam ser
encarcerados. Entre as inúmeras formas de punição, que se apresentam na forma
920 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de discursos, o aprisionamento surge como punição exemplar, universal. É ao


questionar as bases desta punição “universal” que Foucault nos lembra sobre
nossa própria historicidade. Constituímo-nos, enquanto sujeito, a partir de uma
infinidade de feixes de poder, que nos atravessam, discursos que nos afetam.
Pensar no acontecimento é, em primeiro lugar, romper com evidências.
Em segundo lugar, o acontecimento, para Foucault, pressupõe uma análise
do polimorfismo que suscita a elaboração de séries documentais. A filosofia
relacional foucaultiana se afasta de modo radical de qualquer elaboração
positivista a partir do momento em que pretende expandir, ao máximo, as
possibilidades do acontecimento (emergência), ao passo que o historicismo
tendia a uniformizar o acontecimento. Ao analisar os discursos sobre tal ótica, a
genealogia não pode se furtar de um posicionamento político, afinal, parte de um
presente. E aqui depreendemos uma das mais belas dimensões do trabalho de
Foucault: o deslocamento do olhar do filósofo para o si. Uma ontologia que não
se limitava a aceitar um poder, mas a entender como nos constituímos enquanto
sujeitos, não a aceitar um poder uniformizante, mas a compreender como, dentro
desta homogeneidade, a história surge como discurso de diferença nos
lembrando que nem sempre fomos assim, que o que hoje nos soa anormal,
dissonante, outrora fora melodia a embalar gerações.
Se, como vimos, a matriz teórica da genealogia pode ser apreendida por
meio do eixo Origem/Acontecimento/Descontinuidade, existe outro elemento
que aproxima a perspectiva foucaultiana da história. Assim como os historiadores
e os hermenêuticos, Foucault partia do documento em suas análises. Nos textos
foucaultianos, não encontramos referências à literatura, mas sim a sistemas
penais, nos documentos, nos relatos e discursos que se cobriam com o véu do
verídico. Segundo Foucault, “A genealogia é cinzenta; ela é meticulosa e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 921

pacientemente documentária” (FOUCAULT, 2000, p.260). Neste ponto a


genealogia, obviamente, toca o território do historiador, afinal, ambos vivem
imersos no mundo dos arquivos, dos textos, dos testemunhos. O documento,
para Foucault, é profundamente relacional, expressivo apenas se orientado
dentro de uma série. Torna-se inteligível, portanto, a partir da multiplicidade de
relações possíveis que venham desencadear dentro de uma série.

De agora em diante, o problema é constituir séries: definir para cada


uma seus elementos, fixar-lhes os limites, descobrir o tipo de relações
que lhe é específico, formular-lhes a lei e, além disso, descrever as
relações entre as diferentes séries, para constituir, assim, séries de
séries, ou quadros (FOUCAULT, 2005, p. 08).

No entanto, e este ponto é fundamental para a temática que levantamos, a


genealogia se constitui como a análise do discurso em sua superficialidade. É este,
talvez, o ponto de distanciamento mais radical entre Foucault e a hermenêutica.
Para ele, não se devia buscar o sentido profundo do texto, mas sim, como esse
discurso se articula a outros e que efeitos tal operação inflige no real. Ora,
quando nos deparamos com uma lei ou um regimento (militar, educacional
hospitalar), por exemplo, percebemos que em tais discursos o poder se apresenta
em toda sua força e materialidade. O início de Vigiar e punir nos passa esse efeito.
Primeiro, a descrição dantesca de um suplício em toda sua crueza, opondo-lhe,
logo em seguida, a monotonia de um esquartejamento temporal contido no
regulamento da casa dos jovens detentos de Paris. Não é em torno do autor, ou a
quem o texto se destina que preocupa Foucault. É o curto espaço de tempo entre
uma formação discursiva (suplício) e outra (encarceramento). De resto, o
conteúdo em si, está explícito. Para Foucault, não há exterioridade ao discurso.
922 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Essa crueza está contida nos documentos oficiais, nas sentenças, nas leis,
discursos de ação, de sangue.
Não é à toa que os (anti-)heróis de Foucault, em sua genealogia, foram os
homens infames. Não infames por terem construído sobre si uma “má reputação”,
mas vidas obliteradas pelo poder e esquecidas pelo tempo, anônimas. Sobre elas,
encontramos a irônica risada de Foucault, ao afirmar que,

Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e


a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros
– breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – a partir do momento
de seu contato instantâneo com o poder. (FOUCAULT, 2006, p. 219-
220).

Foucault afirmou que A vida dos homens infames não serviria ao historiador
de ofício, estaria mais para uma coleção dispersa de existências. Mas ao coletar
existências alerta-nos para as infinitas possibilidades de existência, de modos de
um indivíduo constituir-se enquanto sujeito. Enfim, “Esses discursos realmente
atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas
nessas palavras” (FOUCAULT, 2006, p. 207).

Paul Ricoeur: tempo e narrativa como articuladores de uma hermenêutica

histórica

O percurso da hermenêutica e da história por vezes se confunde, afinal,


desde o século XVIII, a história, em sua busca pela cientificidade, se orienta pela
pesquisa documental – campo, por excelência, da hermenêutica. No entanto, esta
mesma busca afastou os historiadores da experiência hermenêutica já que, com o
intuito de valorizar os elementos de cientificidade em seu ofício, os historiadores
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 923

passaram se não a desvalorizar explicitamente, ao menos a evitar o núcleo


narrativo referente ao ofício histórico.
Poucos pensadores aliaram história e hermenêutica de forma tão
contundente quanto Paul Ricoueur. Como destaca Dosse (1999), Ricoeur
permaneceu às margens do debate historiográfico até meados da década de 80,
tendo, no entanto, escrito obras de peso como História e verdade, em 1955. Tal
“sufocamento” pode ser explicado, em parte, devido às poucas inclinações dos
historiadores dos Annales em questionar os pressupostos teóricos que envolvem a
história, apoiando-se em sua própria experiência (práxis) para estabelecer seus
parâmetros teóricos. Paul Ricoeur articula a experiência histórica tomando por
base a tensão própria à relação entre tempo e narrativa.
O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um
modo narrativo, e a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma
condição da existência temporal (RICOEUR, 1994, p.85). Essa articulação entre
tempo e narrativa se dá a partir daquilo que Ricoeur define como tríplice mimese.
Ricoeur ressalta que a tripla operação mimética constitui uma análise circular (e
não viciosa) que envolve o campo de possibilidades, a escrita e a leitura:
“Seguimos, pois, o destino de um tempo prefigurado em um tempo refigurado,
pela mediação de um tempo configurado” (RICOEUR, 1994, p.87). Tracemos,
em linhas gerais, as funções de cada operação mimética.
A mímesi I constitui um campo de “pré-compreensão” do mundo e da
ação valendo-se de três traços, a saber, “de suas estruturas inteligíveis, de suas
fontes simbólicas e de seu caráter temporal” (RICOEUR, 1994, p.88). A
narrativa desenvolvida pelo historiador baseia-se numa relação de
intratemporalidade, na qual as dimensões temporais (Passado/Presente/Futuro)
são articuladas de modo prático. A mímesi I, portanto, parte do princípio de que
924 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

o tempo é a base que constitui o mundo humano e que se constitui uma


operação comum tanto ao leitor quanto ao escritor, pois ambos utilizam um
texto a partir de sua pré-compreensão de mundo. Desta forma

Imitar ou representar a ação, é primeiro pré-compreender o que


ocorre com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica,
com sua temporalidade. É sobre esta pré-compreensão, comum ao
poeta e ao leitor, que se ergue a tessitura da intriga e, com ela, a
mimética textual e literária (RICOEUR, 1994, p.101).

A mimese II representa a “tessitura da intriga” (RICOEUR, 1994, p.102)


na qual a “pré-compreensão” é articulada à narrativa, operando como estágio
intermediário, como uma configuração mediadora entre autor (relacionado à pré-
compreensão) e o leitor (agente de refiguração). O traço mediador da intriga
pode ser apreendido com base em três aspectos. Em primeiro lugar, a intriga é o
que permite articular acontecimentos dispersos a uma história, que configura um
todo. Em segundo lugar, a intriga permite integrar fatores heterogêneos, agentes,
fins e meios, em um conjunto único. Por fim, a intriga também opera como uma
síntese do heterogêneo, combinando diferentes dimensões temporais. Ao permitir
configurar o tempo (ou melhor, as temporalidades) em texto, por meio da
narrativa, a intriga também estabelece a mediação entre autor e leitor,
“compreender a história é compreender como e por que os episódios sucessivos
conduziram a essa conclusão, a qual, longe de ser previsível, deve finalmente ser
aceitável, como congruente com os episódios reunidos” (RICOEUR, 1994,
p.105).
Por fim a mimese III articula o mundo do texto ao leitor, preocupando-se.
Constitui-se, assim, numa prática de refiguração do texto, já que a relação entre a
prefiguração e a configuração só se efetiva na empatia entre o mundo do texto e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 925

o mundo do leitor. A leitura, sob tal ótica, não deve ser considerada uma ação
passiva, na qual o leitor simplesmente aceita as teses do autor, mas uma operação
ativa, na qual cada leitor estabelece um entendimento particular do texto. Essa
postura ativa do leitor permite a Ricoeur contornar o caráter vicioso que a
circularidade hermenêutica poderia abarcar, pois não reduz a análise do texto a
compreender apenas os elementos da própria obra e/ou de seu autor, mas
também abarca a forma sob a qual o leitor refaz, distorce esse texto a partir de
sua própria pré-compreensão. Ricoeur afirmou:

O postulado subjacente a esse reconhecimento da função de re-


figuração da obra poética em geral é o de uma hermenêutica que visa
menos restituir a intenção do autor por trás do texto que explicitar o
movimento pelo qual um texto exibe um mundo, de algum modo,
perante si mesmo (RICOEUR, 1994, p.123).

Paul Ricoeur surge, portanto como um pensamento alternativo, e


conciliatório, para a principal questão teórica que circundou a história após o
esfriamento do debate estruturalista em meados da década de 1970: afinal qual
seria o limite da narrativa, as possibilidades da relação entre história e ficção?
Desde as críticas dirigidas por Hayden White, e que autores como Jacques Le
Goff buscaram contornar minimizando-as, os historiadores procuram delimitar
os termos de narrativa e de cientificidade na escrita da história. Paul Veyne, por
exemplo, apontou em direção a uma história conceitualizante que se caracterizou
com uma narrativa apoiada em núcleos de cientificidade. Já Ricoeur propôs uma
alternativa ao debate, ao atribuir à memória a função de reconstrução
mnemônica do real, do que se passou. Para Dosse,

Ricoeur mantém a tensão interna à escrita histórica que com a ficção


tem em comum as mesmas figuras retóricas, mas que também
pretende ser, sobretudo um discurso sobre a verdade, um discurso de
926 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

representação de algo real, de um referente passado. (DOSSE, 1999,


p.75).

Ricoeur propõe, portanto, uma superação da polêmica da narrativa,


atrelando-a a um referente temporal que se pretende verdadeiro. Ora, a história é
sim narrativa, mas uma forma singular de narrativa temporal apoiada em
discursos que se pretendem fatos e que constituem o real como o conhecemos.
Ricoeur desfaz a oposição, levantada por autores como Le Goff, de que haveria
uma distinção entre história e memória. Para Ricoeur, é a memória, operação
mnemônica que se efetiva em reconhecer o que passou, que pode embasar e
validar a história, que é a narrativa temporal da experiência dos homens. A
memória se configura, para Ricoeur, como a possibilidade de representar, no
presente, algo que está ausente, mas que um dia ocorreu: “A operação
historiográfica procede de uma dupla redução, a da experiência viva da memória,
mas também a da especulação multimilenar sobre a ordem do tempo”
(RICOEUR, 2007, p. 170).
E é esse apego ao verídico que distingue a memória da imaginação, mais
associada à ficção. No entanto, no processo narrativo memória e imaginação não
se excluem, pois a imaginação, e seus ornamentos, auxiliam a memória em seu
processo de reconstruir a experiência efetiva. A memória narrada articula o
tempo e se constitui, portanto, como a base do estudo da história.

Genealogia e Hermenêutica

A ligação entre a genealogia, a hermenêutica e a história se dá ao


tomarmos o documento como eixo comum. Ambas partem de princípios
radicalmente distantes, a genealogia buscando ouvir e agrupar o documento a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 927

uma série, a hermenêutica da interpretação textual e da valorização da leitura da


relação, circular e não viciosa, entre autor-texto-leitor.
No entanto, estes dois projetos, diametralmente opostos, parecem
convergir em alguns pontos comuns que seriam proveitosos enumerar. Tanto a
genealogia quanto a hermenêutica elaboram a relação entre presente e passado.
Foucault, algumas vezes, denominou sua pesquisa como esforços de uma história
do presente. Ora, se, como vimos, Foucault pratica uma história-problema, foi de
demandas de seu presente que partiram suas análises. Os próprios temas que
Foucault abordou ao longo de suas pesquisas refletem sua preocupação e seu
comprometimento com o presente, ao trazer ao horizonte as vozes tão
esquecidas dos indivíduos desviantes, dos “anormais”.
Mais do que uma história do presente, o desafio proposto e empreendido
por Foucault até fim de sua vida foi a produção de uma ontologia histórica. Foucault
submete o ser ao tempo e vasculha o emaranhado de possibilidades para nos
constituirmos. Em uma de suas últimas entrevistas Foucault orienta a estrutura
geral de suas pesquisas ao domínio das ontologias históricas

Três domínios da genealogia são possíveis. Primeiro uma ontologia


histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos
constituímos como sujeitos de saber; segundo uma ontologia histórica
de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos
constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; terceiro, uma
ontologia histórica em relação à ética através do qual nos constituímos
como agentes morais (DREYFUSS, 1995, p. 262).

Em Paul Ricoeur, como ressalta Dosse, o tempo presente encontra-se em


posição de proeminência, já que. “Inscrito no tempo como descontinuidade, o
presente é trabalhado por aquele que deve historicizá-lo com um esforço de
apreensão de sua presença como ausência” (DOSSE, 1999, p. 92).
928 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Acerca da relação entre documento e história, Ricoeur defende uma


postura hermenêutica, que avalie não só a produção, mas também a disseminação
e a recepção do discurso. Assim,

A construção dessa hermenêutica no tempo histórico oferece um


horizonte não mais tecido apenas pela finalidade científica, mas
estendido para um fazer humano, um diálogo por ser instituído entre
as gerações, um agir sobre o presente. É nessa perspectiva que convém
reabrir o passado, revisitar suas potencialidades (DOSSE, 1999, p. 86).

Tal postura é totalmente incompatível com uma análise exteriorizada do


discurso já que a história, além de produzir a memória, também está envolvida
em experiências subjetivas de valor como a dívida, o esquecimento e o (difícil)
perdão3. Para Dosse, Ricoeur “defende com a mesma firmeza o dever, a dívida
das gerações presentes para com o passado, fonte da ética da responsabilidade”
(DOSSE, 1999, p. 100).
No entanto, como vimos no exemplo dos homens infames, a genealogia
(ou melhor, as ontologias históricas) vai além de um exame frio (científico),
procura também restituir a voz das vidas caladas pelo poder e questionar nossas
práticas de saber, de ser e de investir-nos de poder:

Propondo-se a realizar uma “ontologia histórica de nós mesmos”,


Foucault destituiu o sujeito do lugar privilegiado de fundamento
constituinte, que ocupava na cultura ocidental, passando a
problematizá-lo como objeto a ser constituído. (RAGO, 1995,
p. 77).

3
Sobre a dura experiência de memória e perdão, Ricoeur dedica o belo epílogo de seu livro A
memória, a história, o esquecimento, onde afirma que “Minha tese, aqui, é que existe uma assimetria
significativa entre o poder perdoar e o poder prometer, como o comprova a impossibilidade de
autênticas instituições políticas do perdão” (RICOEUR, 2007, p. 466).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 929

Desta forma, tal como a hermenêutica de Ricoeur, a genealogia implica


uma história marcada por um posicionamento ético sobre a política em nosso
presente, que se articule como uma forma de diagnóstico do presente que “não
se limite a mostrar o que somos, mas que aponte para aquilo que estamos nos
tornando” (RAGO, 2005, p. 263).

Conclusão

Ao traçar essas linhas entre hermenêutica e genealogia, intentamos


enfatizar a importância da reflexão filosófica no campo do historiador. Em
ambas encontramos formas de pensamento histórico apoiadas pela postura ativa
do historiador e ligadas a um compromisso com o presente. Por meio da reflexão
acerca da articulação entre tempo (baseado nas aporias agostinianas) e narrativa
(orientada pela poética aristotélica), Ricoeur concebe a história como a narrativa
temporal produzida pela memória. Já a genealogia de Foucault opera como uma
ferramenta que permite ao historiador questionar os pressupostos estabelecidos
em torno de seu objeto, executando uma história-problema que não se alheia às
demandas do presente.
Ricoeur reforça o laço entre a história e algumas experiências como o
perdão e o esquecimento, a genealogia permite lembrar-nos de nossa constituição
enquanto sujeitos. Perspectivas, portanto, que articulam filosofia e história de
maneira particular e que abrem possibilidades éticas e políticas indispensáveis aos
historiadores.

Referências

CHARTIER, Roger. À Beira da falésia. Porto Alegre: Editora da


Universidade/UFRS, 2002.
930 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

DOSSE, François. A história à prova do tempo. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005a.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005b.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006.
RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social -
Rev. Sociologia da USP, S. Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 67-82, 1995.
RAGO, Margareth; RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas:
Papirus, 1994.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007.
Aproximações entre Thompson e Foucault na
historiografia brasileira dos anos 80:
alguns apontamentos

Igor Guedes RAMOS*

N
a década de 1980 ocorreram mudanças significativas na produção
historiográfica brasileira. Diversos intelectuais perceberam e
diagnosticaram essas mudanças como resultantes, sobretudo, do
fim do regime militar e da abertura política, do crescimento das instituições de
produção historiográfica e da introdução de novas reflexões teórico-
metodológicas. Entre essas reflexões, que “movimentaram” a historiografia
brasileira do período, se destacam as de Edward Palmer Thompson e de
Michel Foucault. Nossa intenção é indicar de que modo uma parte da
historiografia brasileira da década de 1980 aproximou alguns elementos do
pensamento desses autores, criando debates acalorados; bem como discutir os
desdobramentos teóricos da aproximação de autores oriundos de vertentes
bastante distintas.
Em artigos publicados em 1994, Emília Viotti da Costa e Zélia Lopes
da Silva assinalam as mudanças ocorridas na produção historiográfica
brasileira a partir de 1980. Costa, em seu ensaio denominado “A dialética
invertida: 1960-1980”, discute o deslocamento das análises historiográficas de

*
Doutorando em História /UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso
Junior.
932 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

“estruturais” para “superestruturais”, suas razões e problemas. Silva, em “A


história social em debate”, faz um balanço crítico sobre a produção brasileira
na área de História Social e discorre sobre o alargamento das temáticas e a
percepção de outros sujeitos sociais para além do trabalhador industrial.
Apesar das autoras possuírem objetivos distintos em seus artigos,
ambas apontam a influência de Edward Palmer Thompson e Michel Foucault
nas referidas mudanças. Partindo de perspectivas distintas e, muitas vezes,
contraditórias, as reflexões de Thompson e Foucault fazem parte de um
amplo debate das ciências humanas que se desdobra desde meados da década
de 1950, quando predominavam os pressupostos estruturalistas.
Segundo François Dosse, Michel Foucault participa do movimento
estruturalista, pois seus estudos compreendem a “[...] busca de um objeto
desembaraçado das camadas sedimentarizadas de discurso que sobre ele se
depositaram correspondendo inteiramente à temática estruturalista” (DOSSE,
1993, p.178). O historiador acrescenta que, em 1966, Foucault buscou “[...]
apresentar-se como líder potencial de todos os estruturalistas” (DOSSE, 1993,
p.379).
Contudo, Dosse assinala semelhanças e diferenças entre os
pensamentos de Foucault e dos estruturalistas. Por um lado, uma noção
intensamente compartilhada entre ambos é a rejeição ao humanismo, pois, em
ambos, o “homem-sujeito de sua história, atuante, consciente de sua ação,
desaparece” (DOSSE, 1993, p.370). Em Foucault, o sujeito emerge como
“efeito das construções discursivas” e, ainda, o “homem-sujeito de sua
história” só é assim pensado em um determinado e efêmero momento da
história (episteme), que emerge no século XIX.
Por outro lado, Dosse considera que a noção de “história genealógica”
de Foucault, em que prevalece a descontinuidade, se opõe, ao mesmo tempo,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 933

às “histórias evolucionistas”, como do marxismo, e à “não-história”, do


estruturalismo de Claude Lévi-Strauss.

Entretanto, ao contrário do estruturalismo lévi-straussiano,


Foucault não se furta à historicidade, tornando-a até como campo
privilegiado de análise, lugar por excelência de sua pesquisa
arqueológica, mas para localizar aí as descontinuidades que a
trabalham, a partir de grandes fraturas que justapõem cortes
sincrônicos coerentes. (DOSSE, 1993, p.373).

Assim mesmo, qualquer aproximação entre Foucault e os estruturalistas


gera polêmica, como assinala François Ewald, a “estrutura é uma das formas
do grande sujeito histórico, da grande identidade que atravessa a história, ao
passo que Foucault explica muito bem ser justamente isso o que ele quer
destruir” (EWALD apud DOSSE, 1993, p.369).
Em entrevista de 1972, o próprio Foucault afirmou com veemência seu
distanciamento em relação ao estruturalismo:

- Primeiramente, eu não sou estruturalista, jamais disse que era


estruturalista, eu insisti sobre o fato de que não sou estruturalista, e
eu repeti isso diversas vezes. Nada, absolutamente nada no que eu
publiquei, nada, nem meus métodos nem qualquer um de meus
conceitos, lembra, nem que seja de longe, o estruturalismo. É
preciso chamar-se Piaget para imaginar que eu sou estruturalista.
- De onde vem então a convicção de que o senhor é estruturalista?
- Eu suponho que é um produto da ignorância ou da ingenuidade.
(FOUCAULT, 2005, p.446-447).

A história descontínua de Foucault se opõe, também, ao paradigma


predominante na escola dos Annales, por volta de 1960. Isto é, a análise das
três unidades temporais de Fernand Braudel: a estrutura ou longa duração,
quase imóvel ou secular, referente às condições geográficas, biológicas,
demográficas e econômicas, possuindo primazia sobre as outras
temporalidades; a conjuntura ou média duração, que diz respeito às relações

933
934 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

sociais, definida por décadas; e o evento ou curta duração, que incluía as


questões políticas, culturais e intelectuais, extremamente dependente das duas
unidades anteriores e definida por poucos anos, o efêmero. Desta maneira, ao
contrário de Foucault, Braudel valoriza as continuidades1.

Ao contrário de Claude Lévi-Strauss, a estrutura para Fernand


Braudel é mais arquitetura, conjunto, mais perceptível em uma
realidade concreta e observável. Sua concepção permanece
fundamentalmente descritiva, nisso, portanto, fiel a uma escritura
tradicional da história. (DOSSE, 1992, p.116).

Neste mesmo período, a concepção materialista de história é


renovada a partir de duas vertentes distintas (e contraditórias), num primeiro
momento, por Louis Althusser e, posteriormente, pela Nova Esquerda
inglesa. Em linhas gerais (Cf. ROCHA, 1976, passim), o pensamento de Louis
Althusser se funda na noção de “causalidade estrutural”, na qual a relação
entre a “infraestrutura” (relações de produção, forças produtivas, etc.) e a
“superestrutura” (Estado, cultura, ideologia dominante, etc.), depende das
posições que cada elemento ocupa na “totalidade estruturada”. Isso possibilita
considerar uma grande multiplicidade de interações determinantes – apesar de
o econômico permanecer determinante em última instância – agindo em
diferentes níveis:

Assim, Althusser reconhece uma eficácia própria à superestrutura, a


qual pode encontrar-se, em certos casos, em posição de
dominância e, em todos os casos, figurar numa relação de
autonomia relativa em relação à infra-estrutura. [...] a totalidade
estruturada do marxismo, estrutura complexa e hierarquizada

1
Na introdução de A Arqueologia do Saber, Foucault discute com atenção a “história
contínua” (clássica) e a história descontínua (genealógica). A primeira busca apagar os
“acidentes”, suprimir as descontinuidades em favor de um sentido lógico e único, uma
continuidade que progride. A segunda utiliza a descontinuidade como conceito operatório,
esta é, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa (Cf. FOUCAULT, 2004, p.3-
20).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 935

diferentemente segundo os momentos históricos pelo lugar


respectivo que as diversas instâncias (ideológica, política...) ocupam
no modo de produção, entendendo-se que o econômico
permanece determinante, em última instância. (DOSSE, 1994,
p.340).

Cada época representa uma “totalidade estruturada” acabada,


agente de repressão completo e inevitável aos sujeitos, apesar de conter
múltiplas contradições. A passagem de uma época à outra é uma
“sobredeterminação”, ou seja, por meio das contradições dos diversos
elementos da estrutura, apaga-se toda a estrutura anterior em benefício de
uma nova “totalidade estruturada”.
Daí, Althusser aproxima o marxismo do estruturalismo em
ascensão, ao compreender a história por meio de uma estrutura relacional –
próxima, mas não igual à de Lévi-Strauss –, que apresenta rupturas – a
exemplo de Michel Foucault – e, por fim, ao eliminar o sujeito histórico,
atribuindo as transformações às contradições dos elementos estruturais. Isso
possibilita a manutenção do marxismo como ciência reveladora e crítica. (Cf.
DOSSE, 1994, p.329-344).
Na década de 1970, o pensamento de Althusser foi criticado por
parte da Nova Esquerda inglesa, especialmente por Thompson, que adverte:

Althusser e seus acólitos questionam, centralmente, o próprio


materialismo histórico. Não pretendem modificá-lo, mas deslocá-
lo. Em troca, oferecem um teorismo a-histórico que, ao primeiro
exame, revela-se um idealismo [...]. E se, (como suponho), o
marxismo althusseriano não é apenas um idealismo, mas tem
muitos dos atributos de uma teologia, então o que está em jogo,
dentro da tradição marxista, é a defesa da própria razão.
(THOMPSON, 1981, p.11-12).

Thompson, já conhecido por sua oposição às “teorias marxistas


modelares” e à noção de classe como categoria estática, defendia a

935
936 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

importância dos atores em relação a qualquer noção de estrutura. Contudo,


nem todos da Nova Esquerda inglesa pensavam exatamente como Thompson
(Cf. SAES, 1994, passim): Hobsbawm, por exemplo, aplicava uma noção de
classe mais “modelar”, na qual a classe só atinge a maturidade de sua
consciência quando existe uma organização formal (sindicato e partido) (Cf.
HOBSBAWM, 2000 & 2001, passim). Anderson, por sua vez, como resposta
às críticas feitas a Althusser, censurou a posição demasiadamente historicista
de Thompson:

Para que as categorias sejam no sentido pleno da palavra, precisam


de uma definição exata e inequívoca. Para captar os processos de
mudanças que caracterizam a história, os conceitos históricos têm
de ser formulados e especificados com extremo cuidado: porém
somente serão conceitos se fixam alguma estrutura de
invariabilidade, por mais variações internas que permitam a dita
estrutura, quer dizer, por mais ampla que seja sua morfologia.
(ANDERSON, 1985, p.11).

O debate no interior da própria Nova Esquerda inglesa apontava,


não apenas para uma mudança no marxismo, mas para uma pluralidade de
mudanças. No geral, essas mudanças indicavam um desvio para a cultura, ou
seja, uma maior preocupação com os elementos que tradicionalmente
formavam a superestrutura e sua mediação com a infraestrutura (Cf. HUNT,
2006, p.6).
Os estudos de Thompson contribuíram para o desenvolvimento da
chamada “história vista de baixo” e para mudanças na história do trabalho,
sobretudo, quando o autor redefine as noções de classe e de consciência de
classe:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam
sua identidade e seus interesses entre si, e contra outros homens
cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 937

experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas


relações de produção em que os homens nasceram – ou entram
involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em
tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a
experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a
consciência de classe. (THOMPSON, 1987, p.10).

Assim, em Thompson, a “consciência de classe” tem caráter temporal e


geográfico, é constituída pela articulação histórica entre experiência e cultura
de um determinado grupo social, não pode ser imputada ao grupo social por
um partido, seita e/ou intelectual portador da consciência “verdadeira” e,
consequentemente, não deve ser julgada ou avaliada como mais ou menos
verdadeira, mais ou menos revolucionária. E, ainda, a classe deve ser
compreendida por meio de evidências históricas tratadas, isto é, o historiador
deve iniciar sua análise pelos dados empíricos e, posteriormente, organizá-los
por meio da teoria. Desta maneira, a classe é expressa como uma “categoria
histórica”, em oposição à parte da tradição marxista (leninista, estruturalista,
etc.), que muitas vezes define classe por meio de um modelo ideal – que
precede as evidências históricas – e medidas quantitativas, produzindo uma
noção de classe como “categoria estática”. (Cf. THOMPSON, 1989, p.33-39;
THOMPSON, 1981, p.57).
Essa perspectiva de interpretação está presente na obra A formação da
classe operária inglesa (THOMPSON, 1987), na qual Thompson vasculha os
becos sem saída, as causas perdidas e a história dos perdedores, “tentando
resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do ‘obsoleto’
tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de Joanna
Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade”
(THOMPSON, 1987 p.13). Portanto, produz uma história que se preocupa
com o “fazer-se da classe operária”, com a análise da relação entre “ser social”
e “consciência social”; em oposição a vertentes historiográficas que

937
938 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

classificam a atuação dos trabalhadores por meio de modelos preestabelecidos


e/ou determinações estruturais (Cf. THOMPSON, 1987, p.9-14).
Como assinala Carlos Z. F. de Sena Junior (2004, p.55-59), a postura de
Thompson o aproxima da tradição marxista humanista, em especial de Jean
Paul Sartre. Daí surge um “oponente” comum, o estruturalismo. Como já
referido, em A miséria da teoria (THOMPSON, 1981), o autor faz duras críticas
ao pensamento de Althusser – e ao marxismo estruturalista e/ou economicista
em geral – e propõe um “método lógico de investigação” que consiste no
diálogo permanente entre conceito e evidência. Isto é, a concepção
materialista da história estaria submetida à investigação empírica, promovendo
alguns conceitos gerais e temporários, já que o próprio desdobramento
histórico levaria à formulação de outros conceitos, novamente submetidos à
validação empírica. Desta forma, os conceitos utilizados pelo materialismo
histórico servem mais como expectativas do que como regras universais e
permanentes, esta é a “lógica histórica”:

As razões para isso não estão na falta de lógica do historiador, mas


em sua necessidade de um tipo diferente de lógica, adequado aos
fenômenos que estão sempre em movimento, que evidenciam –
mesmo num único momento – manifestações, cujas evidências
particulares só podem encontrar definição dentro de contextos
particulares, e, ainda, cujos termos gerais de análise (isto é, as
perguntas adequadas à interrogação da evidência) raramente são
constantes e, com mais freqüência, estão em transição, juntamente
com os movimentos do evento histórico: assim como o objeto de
investigação se modifica, também se modificam as questões
adequadas. [...] Quando Althusser e muitos outros acusam os
historiadores de não ter ‘nenhuma teoria’, deveriam pensar que
aquilo que consideram como inocência ou letargia pode ser a rejeição
explícita e autoconsciente: uma rejeição de conceitos analíticos
estáticos, de uma lógica inadequada à história. (THOMPSON,
1981, p.48-49)
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 939

As críticas de Thompson possuem como um dos objetivos principais


questionar as análises históricas que partem de modelos interpretativos
“prontos”, formulados, a priori, da investigação empírica. Assim, submetem a
análise documental a um modelo teórico, que não considera as experiências
dos sujeitos e as variantes históricas.
A perspectiva de interpretação de Michel Foucault é bastante distinta a
de Thompson, e sua relação com a produção historiográfica é controversa.
Para alguns, foi considerado um historiador da cultura, que “estudou a cultura
pelo prisma das tecnologias do poder, que ele situou estrategicamente no
discurso” (HUNT, 2006, p.12); outros o acusaram de favorecer o modismo, o
relativismo absoluto e a fragmentação da disciplina histórica em “micro-
temas” que não estabelecem relação com o macro (Cf. HUNT, 2006, p.12-13;
COSTA, 1994, p.14-15). Ainda, em outro sentido, Jacques Le Goff adverte:

[...] Foucault ensinou aos historiadores, entre outras coisas, que o


discurso histórico faz parte da história, mas continua a ser verdade
que nós só podemos considerar Foucault como um historiador se
ele entender que o suporte desse discurso não é inapreensível ou
inexistente. (LE GOFF, 1991, p.39-40)

Entendemos que o pensamento de Foucault apresenta duas grandes


dificuldades quando apropriado pelos historiadores: A primeira é a
“eliminação do sujeito” – “e aí a guerra é brava” (RAGO, 1993, p. 122) –,
pois, diferente de Foucault, para o historiador “é fundamental o sujeito
produtor de determinado documento [...]. A não existência de uma autoria ou
de um autor não faz parte do horizonte do pesquisador e do que almejamos
enquanto explicação histórica” (JOANILHO, 2003, p. 16-17).
Em outras palavras, para dar coerência à narrativa historiográfica, é
necessária a existência de um sujeito responsável pelos acontecimentos e,

939
940 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dentro do pensamento de Foucault, os sujeitos não são produtores


fundamentais dos acontecimentos:

Os objetos históricos assim como os sujeitos emergiam aqui como


efeitos das construções discursivas, ao invés de serem tomadas
como pontos de partida para a explicação das práticas sociais. [...]
Nesse sentido, trata-se de traçar a história a partir das objetivações
pelas quais determinadas coisas começam a ser tomadas como
objeto para o pensamento e passam a fazer parte do objetivamente
dado, como configurações naturais. O acontecimento, então, não
está dado como fato, mas emerge num campo de forças assumindo
determinadas configurações. (RAGO, 1995, p.71, p.75).

Contudo, como assinala Paul Veyne (1998, p.251), Foucault não fala de
um mundo diferente do apresentado pelo historiador. Apenas busca descrever
todo o “relevo”, todos os contornos, por mais pontiagudos que sejam, desse
mesmo mundo descrito pelos historiadores de forma “plana”, completamente
coerente e com sentido único.
Isso remete à segunda grande dificuldade, a “noção de
descontinuidade”, pois, para Foucault, a história não é contínua, não existe
uma origem da qual evoluímos (progredimos) até a excelência. A história é
repleta de rupturas, por isto, pode ser dividida em “epistemes”. Cada episteme
organiza de modo completamente diferente os saberes, permite que algumas
coisas sejam enunciadas, vistas e praticadas e outras não; ainda, as epistemes
não podem ser hierarquizadas em uma cronologia de progresso ou evolutiva,
são simplesmente singulares. Destarte:

O que a história tradicional tratava de apagar e reduzir a fim de


estabelecer as continuidades, isto é, ‘os obstáculos’, passa agora a
ser um conceito operativo [episteme], fazendo parte da análise
histórica. (RAGO, 1995, p.76).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 941

Outra noção importante do pensamento foucaultiano, que não causa


tanto desconforto aos historiadores – talvez por uma incompreensão de seus
desdobramentos –, é a de poder. O poder, para Foucault, não está localizado
em uma instituição, instância ou grupo sociocultural, está distribuído em rede,
é exercício e não posse, é local e difuso. Isto significa, por exemplo, que o
Estado não é a única ou a maior expressão de poder, mas é resultado de uma
multiplicidade de focos de poder; e que a burguesia não é criadora e detentora
do poder e também sofre seus efeitos (Cf. CARDOSO JUNIOR, 2006,
passim).
Gradativamente, as reflexões de Foucault vão sendo apropriadas pelos
historiadores. Por volta de 1980, surge a chamada Nova História Cultural,
associada à quarta geração dos Annales, representada, principalmente, por
Roger Chartier e Jacques Revel. Nessa geração, a influência de Foucault é
notória, sobretudo sua demonstração da inexistência de “objetos intelectuais
naturais”. Isto é, o sujeito, a história, a loucura, a medicina e o Estado, por
exemplo, não são categorias universais, mas adquirem um conteúdo particular
em cada época, são categorias construídas historicamente e,
consequentemente, sujeitas a mudanças. Daí, a quarta geração repensa os
paradigmas anteriores:

Os historiadores da quarta geração dos Annales, como Roger


Chartier e Jacques Revel, rejeitaram a caracterização de mentalités
como parte do chamado terceiro nível de experiência histórica
[cultura, mentalidade, imaginário, política, etc.]. Para eles, o terceiro
nível não é de modo algum um nível, mas um determinante básico
da realidade histórica. [...] As relações econômicas e sociais não são
anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são
campos de prática cultural e produção cultural – o que não pode
ser dedutivamente explicado por referência a uma dimensão
extracultural. (HUNT, 2006, p.9).

941
942 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Todas essas “vertentes de pensamento” e contendas surgidas desde a


década de 1960: “Nova Esquerda”, Nova História, Nova História Cultural,
entre outras, inclusive as reflexões de Thompson e Foucault, chegam ao Brasil
mais ou menos na mesma época, por volta de 1980, produzindo mudanças e
alguma “desordem” em nossa produção historiográfica. O mais importante é
que os historiadores brasileiros retiraram desse processo certas
experimentações conceituais e certos procedimentos teórico-metodológicos
que dotaram sua produção de alguma singularidade, tendo em vista o debate
aberto com seus interlocutores, em especial Thompson e Foucault.
Da produção historiográfica brasileira da década de 1980, com essas
características, destacamos as seguintes obras como exemplo: Do cabaré ao lar,
de Luzia Margareth Rago; A estratégia da recusa: análise das greves de maio de 1978,
de Amnéris Maroni; Práticas médico-sanitárias e remodelação urbana na cidade do Rio
de Janeiro 1890/1920, de Myriam Bahia Lopes; A vida fora das fábricas, de Maria
Auxiliadora Guzzo Decca; O prazer justificado: história e lazer (São Paulo,
1969/1979), de Denise Bernuzzi de Sant’Anna; e O Sonhar Libertário, de
Cristina Hebling Campos.
Do cabaré ao lar, de Margareth Rago, é sua dissertação de mestrado em
História, defendida em 1984, na Unicamp, sob a orientação de Edgard
Salvadori de Decca, publicada pela primeira vez em 1985. Segundo a autora, a
luta pela transformação/manutenção da sociedade não passa,
necessariamente, pela instância política formal, pela luta político-partidária,
como assinala a produção historiográfica anterior sobre o tema. Em sua obra,
não existe sequer a dicotomia entre instância política formal e informal,
existem múltiplas formas políticas, que não se hierarquizam ou se centralizam
em uma única “instância verdadeira ou superior”. A dominação e a resistência
políticas estão em todos os espaços e todos os momentos da vida operária.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 943

Daí, não é difícil imaginar, que entre as referências teóricas da autora estejam
Foucault e Thompson:

Embora situados em campos teóricos e metodológicos


diferenciados, Thompson e Foucault chamam a atenção para
outros momentos do exercício da dominação burguesa,
possibilitando recuperar as práticas políticas ‘não-organizadas’ do
proletariado e desfazer o generalizado mito do atraso e do
apoliticismo dos libertários. (RAGO, 1985, p.14).

Desta maneira, de acordo com Rago, é restituída às “práticas


políticas não-organizadas” da classe operária – até então consideradas banais,
economicistas ou inconscientes – sua exata capacidade de transformação
social, econômica e política. Nesta obra, a autora se propõe a estudar todas
essas manifestações de resistência cotidiana e a cultura produzidas pelos
trabalhadores brasileiros, entre 1890 e 1930; bem como, as normas
disciplinares a eles impostas pela fábrica, pelas várias agências do poder
público ou privado, regulando a sua maneira de morar, a sua saúde, a sua
educação, a sua sexualidade, etc. (Cf. RAGO, 1985, p.11-14).
Rago se aproxima de Foucault quando define sua noção de poder,
já que não enxerga o Estado, o sindicato ou o partido como únicos locais
verdadeiros de poder, assinalando os múltiplos focos que se encontram em
todos os lugares e momentos da vida cotidiana. Entretanto, se afasta de
Foucault, se aproximando de Thompson, quando, em algumas passagens,
localiza os sujeitos produtores dos mecanismos de controle disciplinares (os
patrões) e quando reconstrói as formas de resistência libertária, atribuindo aos
anarquistas o caráter de agentes sociais de transformação (Cf. RAGO, 1985).
Em linhas gerais, as referências a Thompson parecem ter, também,
a função de legitimar o texto dentro do campo de produção sobre o trabalho,
em que predominavam (ou predominam) as concepções marxistas da história;
e, como diagnosticou a própria autora, servia à valorização da existência social

943
944 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

dos libertários “numa atitude militante, nitidamente preocupada em realçar a


importância da ação do sujeito na história” (RAGO, 1993, p.133).
A estratégia da recusa: análise das greves de maio de 1978, de Amnéris
Maroni, é sua dissertação de mestrado em História, defendida em 1982, na
Unicamp, sob orientação de Maria Stella Martins Bresciani, financiada pela
Fapesp, e publicada pela primeira vez em 1982. Na obra, a autora analisa as
formas de controle dos operários no interior das fábricas paulistas e as formas
“autônomas” de organização (comissões de fábrica) e resistência (operação
tartaruga, panfletagem, etc.) dos trabalhadores, surgidas nas greves operárias
de 1978, no “ABC paulista”.
Ainda, Maroni critica os métodos de análise, predominantes na
historiografia brasileira da década de 1970, que constituem o sindicato e o
partido como locais privilegiados de resistência operária:

Ao lutar por aumentos salariais, melhores condições de trabalho e,


em muitos casos, pelo reconhecimento e a estabilidade das
comissões de fábrica, os grevistas, em maio de 78, viram-se
obrigados a lutar também contra aspectos da organização
capitalista do processo de trabalho. Se se quiser, as lutas de maio
apropriaram-se e, nesse movimento, questionaram a racionalidade
subjacente às práticas capitalistas de organização do processo de
produção. É este o elemento novo da resistência operária que as
greves de maio de 78 explicitaram. As comissões de fábrica surgidas no
bojo desse movimento, por momentos, sintetizaram essas práticas
de resistência. Produto de condições históricas específicas, as
comissões de fábrica não se confundem com as organizações
sindicais. (MARONI, 1982, p.125).

A obra apresenta referências diretas às reflexões de Thompson


(Tradición, revuelta y consciencia de clase) a respeito do “fazer-se” da classe operária
e de Foucault (Microfísica do poder e Vigiar e punir) sobre as relações de poder.
Práticas médico-sanitárias e remodelação urbana na cidade do Rio de Janeiro
1890/1920, de Myriam Bahia Lopes, é sua dissertação de mestrado em
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 945

História, defendida em agosto de 1988, na Unicamp, orientada por Maria


Stella Martins Bresciani. Na obra, Lopes analisa o processo de mudança da
paisagem carioca – de colonial para “saneada e civilizada” –, aponta os
conflitos entre os vários discursos médico-sanitaristas por uma pretensão de
verdade e, consequentemente, de remodelação das práticas e das paisagens
urbanas e, por fim, focando a Revolta da Vacina, demonstra como a
população carioca resiste ou recodifica as normas médico-sanitaristas (Cf.
LOPES, 1988).
A análise de Lopes, bem como suas referências, manifesta uma
utilização simultânea de Foucault e de Thompson. Pois, busca captar a
genealogia de um discurso com pretensão de verdade, como este se efetiva em
práticas disciplinares e como a população resiste a essa forma de dominação.
A vida fora das fábricas, de Maria Auxiliadora Guzzo Decca, é sua
dissertação de mestrado em História, defendida em 1983, na Unicamp, sob
orientação de Dea Ribeiro Fenelon, financiada pela Fapesp, e publicada pela
primeira vez em 1987. Na obra, a autora estuda o cotidiano operário fora dos
locais de trabalho na cidade de São Paulo, entre 1920 e 1930; elaborando uma
reconstituição das condições salariais, de habitação, saúde, lazer, etc., bem
como do conhecimento e das práticas operárias de resistência. Para isto, utiliza
como inspiração e referência teórico-metodológica as obras A formação da classe
operária inglesa e Tradición, revuelta y consciencia de clase, de Thompson.
A autora analisa, também, as formas “como o trabalhador era
percebido e sua situação avaliada nas estatísticas, inquéritos, relatórios,
imprensa” (DECCA, 1987, p.12), isto é, como o trabalhador era percebido
por meio de diferentes discursos. E, correlatamente, as práticas de controle
desses trabalhadores, evidenciando uma apropriação do pensamento de
Foucault, cujas obras referenciadas por Decca são Microfísica do poder e A
verdade e as formas jurídicas (Cf. DECCA, 1987).

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O prazer justificado: história e lazer (São Paulo, 1969/1979), de Denise


Bernuzzi de Sant’Anna, é sua dissertação de mestrado em História, defendida
em setembro de 1988, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), a pesquisa foi orientada por Déa Ribeiro Fenelon, financiada pela
Capes, e publicada pela primeira vez em 1994. Na obra, a autora analisa as
formas como o “tempo livre” é construído por meio de dispositivos diversos
em tempo de “lazer produtivo” em oposição ao “ócio”, no período de
endurecimento da ditadura militar. Em outras palavras, a autora
problematizou o processo que normatizou o “tempo livre” em “tempo de
lazer”, distinto do ócio que prejudica.

A partir desse processo, percebe-se que o lazer foi transformado,


mais ampla e diversificadamente, em uma disciplina, num campo
de exercício do poder e de produção e acúmulo de novas teorias e
saberes sobre o corpo, a diversão, o espaço urbano e o próprio
tempo livre. É como se o lazer ganhasse uma linguagem própria,
que mais do que antes, autorizava-se a falas de si mesmo a partir de
suas regras e verdades essenciais. (SANT’ANNA, 1994, p.104).

A autora faz referências diretas às reflexões de Thompson a respeito do


“tempo do relógio” e do “tempo da natureza”, presentes em Costumes em
comum. E, apesar de não haver referência direta a Foucault – com exceção da
epígrafe, uma evidência sutil – há indicações indiretas como os textos de Rago
e Decca, já referidos.
O Sonhar Libertário, de Cristina Campos, é sua dissertação de mestrado
em História, defendida em 1983, na Unicamp, sob orientação de Michael
McDonald Hall, e publicada pela primeira vez em 1986. Na obra, a autora
aponta que, entre os anos de 1917 e 1921, o trabalhador brasileiro sonhou
com a liberdade, se organizou e lutou para tentar conquistá-la. Esse momento
só poderia ser compreendido, segundo Campos, por meio de um estudo
aprofundado das diversas formas de dominação, exercidas pelo patronato e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 947

pelo Estado; e das diversas formas de resistência, empregadas pelos operários


(Cf. CAMPOS, 1988, p.17-22). Novamente surgem referências a Thompson e
Foucault. Pois, tanto para Thompson quanto para Campos,

[...] a classe só se constitui no processo de luta, quando, ao criarem-


se laços de solidariedade entre indivíduos, enfrenta o patronato e o
Estado. A consciência que é produzida nesse momento é
registrável, às vezes comparável, mas não existem ‘desajustes’ na
história, nem atrasos, nem falsa consciência. (CAMPOS, 1988,
p.12).

Para compreender o fenômeno de descenso do movimento


operário por volta de 1920, Campos se utiliza das reflexões de Foucault –
expostas em Vigiar e punir – sobre as relações de poder, buscando pensar os
múltiplos locais de dominação e resistência, desde a fábrica e o processo de
produção até a vida privada e os sentimentos conjugais, parentais e filiais (Cf.
CAMPOS, 1988, p.17-21). Contudo, as reflexões de Foucault parecem estar
mais presentes onde não existe referência direta a ele; quando a autora define
sua concepção descontínua de história:

A tentativa revolucionária dos anos de 1917 a 1920, além de ter


sido esquecida pela historiografia oficial, foi ‘malvista’ pela
historiografia marxista (leninista). Esta postura ligou-se
essencialmente ao fato dos libertários terem se negado a criar o
partido revolucionário e por não participarem do processo político-
eleitoral, estabelecendo alianças com outras camadas sociais.
Teoricamente isto é insustentável, a tarefa do historiador é a de
fazer da história um uso que a liberte para sempre de qualquer
absoluto. Não se pode permitir que a história se deixe levar por
nenhuma obstinação e tampouco que se deixe obstinar pela idéia
de continuidade. [...] Não existe nada imortal no homem, nada
escapa a ter uma história. A história não é um continuum, com um
sentido estabelecido, as forças que se encontram em jogo
obedecem ao acaso da luta. (CAMPOS, 1988, p.23).

Essas obras são exemplos das formas como Thompson e Foucault


foram apropriados pela historiografia brasileira, na década de 1980. Em linhas

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948 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

gerais, foram criadas “bricolagens” de elementos do pensamento de ambos os


autores, que muitas vezes foram alvos de críticas. Emilia Viotti da Costa
(1994), por exemplo, enxergou com preocupação as mudanças historiográficas
decorrentes de uma leitura simplificada ou equivocada das obras de
Thompson e Foucault. A autora assinala que, por um lado, a apropriação das
reflexões de Thompson ampliou a preocupação com a subjetividade dos
agentes históricos, mas “o que começou com uma crítica salutar e necessária a
mecanismos e reducionismos economicistas e à separação artificial entre infra
e superestrutura” (COSTA, 1994, p.12), acabou com a inversão da dialética,
ou seja, a superestrutura (cultura, política, etc.) tornou-se determinante em
relação à infraestrutura.
Por outro lado, a apropriação do pensamento de Foucault, segundo a
autora, resultou em uma “extraordinária expansão das fronteiras da história e
do enriquecimento inegável da nossa compreensão da multiplicidade da
experiência humana através dos tempos” (COSTA, 1994, p.15). Entretanto,
com raras exceções, não se estabeleceu conexões entre a microfísica e a
macrofísica do poder, levando à fragmentação da história.
De acordo com Costa, as controvérsias trazidas pelas novas
perspectivas de análise historiográfica são diversas e não se restringem às
diferenças teórico-metodológicas, pois abarcam também conflitos de
representações de mundo, perspectivas de futuro e práticas de resistência. Em
suas palavras, “o que está em questão não é apenas qual a melhor
interpretação do passado, mas também qual a melhor estratégia no presente”
(COSTA, 1994, p.20).
Em suma, Costa assinala que a historiografia brasileira a partir de 1980,
abdicou das sínteses e interpretações em favor do estudo do detalhe e da
descrição, se tornando indiferente à sociedade e sem qualquer propósito. Para
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 949

a autora, a solução seria um retorno às preocupações gerais, à dialética como


mediação entre o macro e o micro, entre a superestrutura e a infraestrutura.
Das aproximações entre Thompson e Foucault, também surgiram
críticas de caráter político, como evidencia a opinião de Ciro Flamarion
Cardoso:

O Thompson é muito bom; o que andei criticando muito, na época


[década de 1980], foi a tentativa de casar Thompson e Castoriadis
feita na Unicamp. Tentaram juntar um filósofo de direita e que não
trabalha com o conceito de classe social, como é Castoriadis, com
um pensador de esquerda. Para mim Castoriadis, Foucault, a
descontrução, Deleuze, Derrida e todos os nietzscheanos, são
pensadores de direita. (CARDOSO, 2002, p.228).

As críticas políticas são compreensíveis se considerarmos a perspectiva


historiográfica brasileira das décadas anteriores, como assinala Ronaldo
Vainfas:

O fundamental era, então, fazer uma história que buscasse as raízes


socioeconômicas de nosso atraso, subdesenvolvimento ou
dependência do imperialismo, em especial o norte-americano. Uma
história engajada, portanto, uma história militante. (VAINFAS,
2009, p.225)

Como Foucault não se preocupou com análises econômicas e, muito


menos, em apontar um “sentido verdadeiro e libertário” para a história, foi
muitas vezes denominado conservador ou reacionário. Thompson, por sua
vinculação ao marxismo e preocupação com a ação libertária da classe
operária, sofreu muito menos esse tipo de crítica.
Diferente de Costa e Cardoso, Edgar Salvadori de Decca considera que
as apropriações de Thompson e Foucault foram positivas à historiografia
brasileira, pois, fazem ver os conflitos de “margem”.

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950 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nesse sentido, a microhistória despontou também como um


caminho importante nesse campo, pois nela aparecem as franjas
das instituições e é no cotidiano que a norma e o desvio operam
com as negociações, as resistências e as descontinuidades. Então,
não vejo nos Annales os ventos novos, e sim na microhistória
italiana, na historiografia inglesa e em Michel Foucault. Na verdade
Foucault é quem acaba revalorizando os Annales, com a
problemática das descontinuidades e das rupturas pelas margens.
Ele aponta para os prisioneiros, para aqueles que estão no silêncio
das fábricas, dos hospitais, das escolas, dos hospícios, da família,
justamente onde não existem ou não podem existir ações coletivas,
a não ser esporádicas. (DECCA , 2002, p.280).

Especificamente em relação à área da História do Trabalho no Brasil,


Decca assinala as seguintes contribuições de Thompson e Foucault:

As diferenças de abordagens em se tratando de Thompson e


Foucault são significativas. Para o primeiro, as classes trabalhadoras
são sujeitos de sua própria história, e por isso, a ênfase dada à
questão da experiência de classe e do fazer (making) de uma cultura
de classe. Com os seguidores de Foucault desloca-se
significativamente o eixo da experiência e/ou da cultura das classes
trabalhadoras, acentuando-se o significado da ação disciplinar de
inúmeros agentes sociais na produção do cotidiano e da identidade
dos trabalhadores, através da criação das instituições basilares da
sociedade, tais como a família nuclear, a escola e a fábrica.
(DECCA, 1987, p.III).

Segundo Margareth Rago (Cf. RAGO, 1993; 1995, passim), por volta
de 1980 ocorreu, entre os historiadores brasileiros, uma leitura indireta de
Foucault, filtrada principalmente pelas análises do filósofo Roberto Machado.
Isto gerou uma inversão do percurso teórico-prático dos estudos de Foucault:

Enquanto este passou da análise arqueológica às relações de poder,


nós o encontramos inicialmente em seu principal estudo histórico
propriamente dito, que é o Vigiar e punir, para mais tarde
procurarmos as suas formulações anteriores. (RAGO, 1993, p.122).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 951

Entendemos que esta inversão e leitura indireta de Foucault


favoreceram a incompreensão do lugar e do referente teórico do autor,
gerando aquilo que Ciro Flamarion Cardoso chamou de “mixórdias”,
exemplificando a associação de Marx com Weber e Durkheim e de Thompson
com Castoriadis (Cf. CARDOSO, 2002, p.234). Isto é, associações
teoricamente incoerentes ou apropriações fragmentárias:

[...] parece-nos que grande parte da produção historiográfica ligada


a Foucault, ao menos durante a década de 80, caracterizou-se por
uma apropriação particular da noção de poder disciplinar.
Particularmente porque, na minha opinião, foi uma apropriação
muito pontual. Havia um interesse por essa concepção de poder
disciplinar que permitia pensar as relações de dominação para
aquém ou para além do Estado, mas não se assumia
necessariamente todos os dardos que o filósofo lançava contra os
postulados do marxismo. (RAGO, 1993, p.124).

Isso não significa que essas “mixórdias” não possam produzir reflexões
ou resultados relevantes como, por exemplo, a de Thompson com Foucault
na obra Do cabaré ao lar (1985), de Rago, alvo de uma autocrítica:

Eu, por exemplo, queria mostrar que o anarquismo era uma força,
que os libertários sabiam se formular a despeito dos intelectuais
orgânicos. Mas isso era muito contraditório porque, ao mesmo
tempo em que trabalhava com a tendência de dar voz aos
‘vencidos’ e retirar os pobres do silêncio, mostrando sua
racionalidade, ao contrário do que o discurso liberal afirmava,
utilizava Foucault, que dissolvia o sujeito e o mostrava como efeito
das redes de relações e da formação de saberes. Então a questão
ficou muito complicada porque, pelo lado do filósofo, minimizava-
se a ação do sujeito e descartava-se a importância da sua ação
racional e consciente, e pelo lado de Thompson fazia-se o
contrário, mostravam-se os homens agindo e fazendo a sua história
o despeito das estruturas. (RAGO, 1993, p.133-134).

Em outras palavras, a historiografia brasileira dos anos 80, utilizou


amplamente de temáticas presentes nas obras de Thompson e Foucault –

951
952 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

como as diversas formas de dominação e de resistência possíveis em uma


determinada sociedade –, mas não considerou a especificidade de noções
como experiência, sujeito, dispositivos disciplinares, práticas discursivas, etc.,
fundamentais ao pensamento desses autores. Apesar dessa produção
“bricolada” analisar dinâmicas sociais até então desconsideradas, ocorreram
descuidos teóricos. Assim sendo, seria impossível qualquer aproximação entre
o pensamento de Thompson e Foucault, teoricamente adequada?
Acreditamos que é possível, mas de uma forma bastante particular.
Como sugere a citação de Rago, o pensamento de Foucault demonstra,
de maneira crítica, como inúmeros dispositivos constituem o sujeito de
formas diferentes ao longo do tempo. Em outras palavras, as obras de
Foucault são “uma história das formas de subjetivação/objetivação dos seres
humanos” (CASTRO, 2009, p.408), sendo assim, o sujeito não tem uma
essência, ele é constituído historicamente. O mesmo pode ser dito da
liberdade, por exemplo, aquela almejada pelos anarquistas do início do século,
não é a mesma dos grevistas do ABC paulista de 1978.

Para Foucault [...] o que chamamos o ‘sujeito’ ou ‘a natureza


humana’ não é independente dos processos históricos que lhe dão
forma. Por isso não se trata de liberação, mas de práticas de
liberdade, isto é, da forma que podemos dar à subjetividade. No
caso das lutas de liberação política (dos povos colonizadores, por
exemplo), a liberação não é suficiente; obtida a liberação, será
necessária determinar as práticas de liberdade que definirão a vida
política desses povos. Em suma as lutas de liberação podem ser
uma condição necessária para as práticas de liberdade, mas, em
todo caso, elas não são uma condição suficiente. (CASTRO, 2009,
p.247).

Foucault aponta para a inexistência de qualquer essência universal e


permanente, mas para a constituição histórica de objetos/sujeitos a partir de
relações de força. Para o filósofo, existiriam “máscaras sobre máscaras”:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 953

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez


de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das
coisas há ‘algo inteiramente diferente’; não seu segredo essencial e
sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua
essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe
eram estranhas. [...] E a liberdade, seria ela, na raiz do homem o
que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é apenas uma ‘invenção
das classes dominantes’. O que se encontra no começo histórico
das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a
discórdia entre as coisas, é o disparate. (FOUCAULT, 2010, p.17-
18).

Dessas noções emerge a crítica foucaultiana ao humanismo e,


também, ao marxismo, que atribui uma essência ao ser humano, bem como a
sua liberdade, sua consciência, sua ação, etc.
Thompson, por sua vez, não questiona a existência de uma
realidade essencial; ou de uma essência da liberdade, do sujeito, etc. Acredita
na realidade como verdade, existente antes da linguagem ou das relações
sociais que a ocultam, a realidade é desvendada por meio da razão e da luta de
classes (Cf. NICOLAZZI, 2004, p.121-122). No entanto, o autor elabora uma
profunda crítica às análises “modelares” marxistas, indicando que estas não
percebem a constituição histórica dos indivíduos e de sua consciência como
sujeitos. Por isto, o autor busca resgatar a experiência dos trabalhadores e as
práticas libertárias, por exemplo, no período de formação da classe operária
inglesa.
Portanto, seria na crítica aos paradigmas modelares e generalizantes,
que pode ocorrer uma aproximação entre o pensamento de Thompson e
Foucault. Ambos, cada um a sua maneira, questionaram os modelos
interpretativos predominantes na historiografia, desde a década de 1960; suas
reflexões podem ser usadas simultaneamente, como instrumentos para crítica
teórica. E não como modelos interpretativos complementares – macro e

953
954 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

micro histórias – ou correlatos, já que partem de pressupostos distintos,


inclusive da noção de sujeito e de história.

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A semelhança e a mediação do conhecimento na
concepção de Walter Benjamin

Victor Martins de SOUZA *

O
presente trabalho visa discutir a mediação do conhecimento com
base na ótica benjaminiana, tendo em vista as reflexões deste
autor no ensaio As doutrinas da Semelhança (1933).
Um estudo desta natureza vai ao encontro de um questionamento às
formas de tramitação do saber que, no mais das vezes, têm priorizado a escrita
em detrimento dos demais veículos de transmissão de conhecimento:
oralidade, dança, música, astrologia, arquitetura, cerimônias, entre outras
práticas bastante difundidas em cosmogonias de povos não europeus.
Para acalentar tal debate são trazidos à discussão autores cujos estudos
nos permitem uma reflexão acerca da mediação do conhecimento no
ocidente. Daí ser pertinente a recorrência aos teóricos Michel Foucault, Esiaba
Irobi, Hampâté Bâ, Maria Antonacci, Abdou Raberry, como forma de
questionarmos a racionalidade instrumental que, sob a rubrica do
cartesianismo, tem colocado, às margens, visões de mundo de povos
africanos, asiáticos, ameríndios e diaspóricos.
São bem significativos o vigor e o ímpeto do pensamento de Walter
Benjamin, quer por sua coerência analítica, quer pela relevância social e
científica de sua produção intelectual que, aliás, perpassa seu tempo e espaço.
Tanto é verdade que, nos últimos anos, são inúmeros os trabalhos que têm

*
Mestrado em História/PUC/SP/Bolsista: CNPq. Orientadora: Drª. Maria Antonieta
Antonacci.
958 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

recorrido às reflexões teóricas de Benjamin para problematizar temas e


objetos da atualidade.
Vale assinalar que o viço notável da ótica benjaminiana é fruto de
diversos fatores: olhar politizado e extremamente crítico, “marcante
experiência do exílio”1 e questionamento voraz de padrões sociais e estético-
teóricos de sua época. Cabe deixar claro que, nas suas reflexões, Benjamin
também contemplou objetos que, até então, não passaram pela clivagem de
filósofos de seu tempo, seja pelo fato das temáticas serem consideradas
irrelevantes do ponto de vista científico, seja pela falta de trabalhos que
dialogassem com tais temas. Daí ser inevitável, a título de nota, não citarmos
alguns destes ensaios inovadores que trazem análises argutas no que se refere
a diferentes temas: História cultural do brinquedo (1928), Brinquedo e brincadeira
(1928), Pequena História da Fotografia (1931) e, finalmente, mas não menos
importante, A doutrina das semelhanças (1933) e O narrador (1936).
Vale frisar que, no presente ensaio, não pretendemos, de forma alguma,
fazer um mapeamento conceitual ou teórico destes artigos escritos por
Benjamin, não haveria nem tempo nem espaço para tanto. Contudo, uma
proposta que tenha como ponto de partida os artigos, A doutrina das
semelhanças, pode nos proporcionar rica discussão acerca das formas como o
conhecimento é mediado, visto que, na cultura ocidental, quando se fala na
transmissão e na tramitação do saber, automaticamente, pensa-se logo na
palavra escrita, na mensagem criptografada.
Benjamin possui interessante observação a este respeito. Segundo ele
“O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas”, mais
adiante complementa, “o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê, ao

1
A este respeito é esclarecedor o artigo Notas sobre Siegfried Kracauer, Walter Benjamin e a Paris
do Segundo Império – pontos de contato, de Carlos Eduardo Jordão Machado, em que são
discutidas as afinidades estético-teóricas de Benjamin e Kracauer, ao se analisar a Paris da
segunda metade do século XIX.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 959

mesmo tempo, nessa posição, o futuro ou o destino” (BENJAMIN, 1994,


p.113). Ou seja, por esta observação, percebemos que Benjamin, no que se
refere à assimilação e apreensão do conhecimento, não se limita ao escrito,
mas também considera símbolos e imagens do mundo que nos cerca – artes
plásticas, fotografia, paisagens, arquitetura e cinema. Por isso, a nosso ver,
uma reflexão a este respeito seria muito salutar e frutífera para analisar outras
formas de mediação do conhecimento para além do “abecedário” que é
passível de ser lido.
Daí ser fácil presumir que esta doutrina da qual nos fala Benjamin será o
ponto de partida para o desenvolvimento deste breve ensaio. Porém, antes de
entrarmos nos pormenores das ideias aventadas pelo autor de A doutrina das
semelhanças, consideramos necessário trazer a lume outro teórico, cujos estudos
têm estado muito em voga na academia, com base nos quais questões
prolíficas têm sido suscitadas – Michel Foucault – em especial a sua clássica
análise referente à espistémê.
Foucault, em As Palavras e as Coisas, nos alerta que “até o fim do século
XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura
ocidental” (FOUCAULT, 1999, p.23). Mais adiante, ao efetuar a análise desta
“trama semântica” da similitude, o renomado filósofo põe em evidência as
principais figuras que prescreveram as articulações ao saber da semelhança,
nomeadamente: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia. A primeira
– convenientia, segundo Foucault, pauta-se na lei do lugar, ou seja, são as
coisas que próximas uma das outras acabam se emparelhando, “tocam-se na
bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o começo da
outra” (FOUCAULT, 1999, p. 24) (p.ex. a alma e o corpo). A aemulatio,
consiste numa espécie de correspondência de coisas “dispersas pelo mundo”,
uma espécie de “geminação natural das coisas”, formando círculos
concêntricos, contidos e rivais (p.ex. o intelecto do homem que reflete

9
960 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

imperfeitamente a sabedoria divina). A analogia é um conceito já presente no


pensamento grego e medieval, mas que em fins do século XVI passou por
uma alteração. Assinala Foucault que, por meio da analogia, “todas as figuras
do mundo podem se aproximar”, o que denota seu aspecto mais
universalizante. Por último está a simpatia, cuja similitude atrai as coisas uma
às outras por meio de um movimento exterior e invisível (p.ex. “rosas
fúnebres que são usadas num funeral”). O pensador francês infere, ainda, que
“Convenientia, aemulatio, analogia e simpatia nos dizem de que modo o mundo
deve se dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se refletir ou se encadear para que
as coisas possam assemelhar-se” (FOUCAULT, 1999, p.35).
Em análise correlata à de Foucault, Mary Louise Pratt mostra como
potências europeias, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, por meio dos
relatos de viagens, produziram ‘o resto do mundo’ para leitores europeus”.
Através das taxonomias da história natural iluminista e da literatura de
viajantes forjou-se uma forma eurocêntrica de consciência global, para não
dizer planetária. Desta feita, conhecimentos autóctones são escamoteados,
nativos são vistos enquanto partes de uma infinita paisagem, numa espécie de
contínuo amorfo carente de classificação, sistematiza-se não apenas plantas e
animais, mas igualmente o humano, produzindo-se o estranhamento.
Desnecessário dizer que pensadores como Kant,2 Hegel, Fichte e Herder
fomentaram ainda mais tal distinção, a história é universal, tendo-se a Europa
como modelo. Conforme assinalou Pratt, “O século XVIII tem sido visto
como um período no qual a Europa do Norte se firmou como o centro da
civilização” (PRATT, 1999, p.37). Vale frisar que tais relatos e taxonomias são
2
As reflexões de Kant, na sua Idéia de uma História Universal do ponto de vista cosmopolita,
sintetizam muito bem a vigência de tal eurocentrismo, uma vez que, neste ensaio, o filósofo
de Konigsberg (atual Kaliningrado) infere que a história humana pode ser vista como uma
linha teleológica que se origina no estado de barbárie e que caminha rumo à civilização.
Claro está que o modelo de civilização defendido por Kant é a Europa. Daí a ideia de Kant
defender que o Aufklarung (Esclarecimento), consiste na saída do homem de sua
menoridade.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 961

gestos inaugurais de um processo contínuo e gradual de dominação. Ainda na


esteira da Pratt, “Na segunda metade do século XVIII, a expedição científica
tornar-se-ia um catalisador das energias e recursos de intricadas alianças das
elites comerciais e intelectuais por toda Europa.” (PRATT, 1999, p.52-53).
A julgar pelas análises de Mary Pratt acerca da “personalidade europeia”
de dominação, e de Michel Foucault no que se refere à epistémê do século XVI,
que põe às claras como este saber ocidental foi sendo moldado sob a rubrica
da semelhança, temos todo um tempo histórico a nosso favor que nos permite
afirmar que este legado epistemológico trouxe consequências drásticas para as
nações e culturas não ocidentais, dada à consagração e à hegemonia do
pensamento eurocêntrico. Basta observarmos as desvairadas investidas do
colonialismo que, sob a flâmula da modernidade, buscou minimizar e
simplificar as diferentes culturas e civilizações. Tal como observou Maria
Antonieta Antonacci,

Modernidade e colonialidade, enquanto face e contra-face de um


mesmo processo histórico, constituíram-se impondo poderes e
saberes de elites européias, desmoralizando considerável gama de
memórias, línguas e escritas, como universos simbólicos, práticas
de conhecimento e de comunicação de povos e culturas
submetidos às diretrizes mercadológicas de auto denominados
Estados Modernos. (ANTONACCI, 2009, p. 1).

Daí ser fácil presumir que por meio das classificações arbitrárias e
taxonomias imperativas, entre outras formas estanques e engessadas de se
apreender o mundo e tudo que nele habita,3 as potências europeias fizeram
“bom uso” da semelhança para esquadrinhar e classificar seres vivos e objetos
inanimados, transformando o mundo e o cosmo numa grande prosa passível

3
A este respeito é esclarecedora a observação de Sérgio Buarque de Holanda que, ao
analisar o pensamento cartesiano, assinalou o seguinte: “Descartes [...] tinha em mira dar
motivos racionais e mecânicos para fenômenos supostamente ocultos”. (HOLANDA,
2000, p.19).

9
962 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

de ser lida e narrada. Claro está que a forma escolhida para transmitir este
saber foi o letramento tipográfico, ou seja, a palavra escrita por meio do seu
suporte impresso. Isto foi ainda mais fomentado a partir do desenvolvimento
da imprensa e das novas demandas aventadas pela Revolução Industrial.
Desta feita, os objetos e todos os demais seres deveriam caber dentro
de um signo correspondente, o significante e o significado do qual nos fala
Ferdinand Saussure,4 sugerindo-nos uma imagem acústica do objeto
representado que nos remete, de imediato, ao próprio objeto. Doravante, tudo
deveria ser sistematizado de forma enciclopédica, por meio de gramáticas
específicas (FOUCAULT, 1999, p.52). É interessante notar, neste processo, a
perda, em termos de influência e importância, das línguas vernáculas e o
aparecimento dos idiomas modernos, assim como, ao longo dos séculos
posteriores, a estandardização destas línguas em vista do florescimento dos
Estados Nacionais.
Evidentemente, no que diz respeito à validade do conhecimento, a
oralidade e os demais veículos e simbolismos foram gradativamente
escamoteados. Tal como assinalou Foucault (1999, p.53), a respeito deste
processo: “De agora em diante, a linguagem tem por natureza primeira ser
escrita, os sons da voz formam apenas sua tradução transitória e precária”. Por
essas vias, as culturas de tradições orais foram gradativamente minimizadas e
subvencionadas, criando-se uma espécie de racialização das culturas afro,
indígenas e nativas. Ora, pois, o porquê de se recorrer à memória e ao saber
popular, se todo o conhecimento do mundo poderia ser catalogado,
classificado e registrado numa enciclopédia?
Se é verdade que as culturas orais foram, em termos de importância,
minimizadas pelas potências europeias, também é verdade que tais culturas

4
Ferdinand Saussure (1857 - 1913), linguista e filósofo suíço cujas elaborações teóricas
propiciaram o desenvolvimento da linguística, enquanto ciência, dando grandes
contribuições ao estruturalismo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 963

sabem da relevância e significado do simbolismo e da oralidade para a


mediação do conhecimento e salvaguarda de seus valores. A observação do
sábio africano Amadou Hampathé Bâ vai justamente ao encontro disso:

O fato é que não há sistema de escrita que destitua a África de um


passado ou de um corpo de conhecimento... É claro que este
conhecimento herdado que é transmitido da boca de uma geração
ao ouvido da geração seguinte pode tanto crescer como diminuir...
O corpo de conhecimento africano é vasto e diverso, estando
presente em todos os aspectos da vida. O “conhecimento
especializado” nunca é especialista, mas sim generalista... O corpo
de conhecimento africano é, consequentemente, um conhecimento
vivo e “abrangente”, é por este motivo que os anciães são vistos
como os seus últimos detentores, podendo ser comparados a uma
vasta biblioteca, cujas estantes estão articuladas umas às outras por
meio de conexões invisíveis que são a essência da “ciência do
invisível”. (BÂ, 1972, p.22).

Foi em vista da urgência em recompor e implantar o conhecimento e a


sabedoria desta última geração de grandes depositários da memória viva da
África, que Hampâté Bâ5 fez sua canônica declaração de que, na África, um
ancião que morre é uma biblioteca que queima. A este respeito é igualmente
esclarecedor a fala do sábio e contador de histórias angolano Abdou Ferraz
que, numa entrevista, ao comentar sobre a relação entre música e narrativa,
observa que:

Quando falamos em música, na África, importa dizer que o


conhecimento africano parte de um conceito unitário. Quer dizer,
não temos divisão entre música, poema; a música está ligada ao
poema, ou melhor o poema está ligado à música, que está ligado à
dança, à escultura, à pintura, que está ligada à luz, etc, etc. Quer
dizer, não podemos dissociar o poema da música, a música da
dança, a dança da escultura, a escultura da pintura e da luz. Sem luz,
não teríamos cores, sem as cores não teríamos pintura, sem a

5
Para maior aprofundamento no pensamento de Hampâthé Ba é esclarecedor o trabalho
de MACHADO, Fernanda Murad. Construction d’un Univers Fabuleux: L’écrivain et lecteur dans
l’ouvre d’Amadou Hampâté Bâ. Tese (Doutorado), Paris IV, Sorbonne, 2010.

9
964 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

pintura não ilustraríamos a dança. Sem a dança, não teríamos a


escultura e sem música não teríamos tal dança, que influenciou a
escultura. A sociedade, ou melhor, tudo está interligado, é uma
idéia unitária, não existem domínios autônomos. Vemos a
sociedade a partir de um olhar global, quer dizer, de nossas aldeias.
Essa vivência me permitiu, com o tempo, entrar na academia, na
faculdade, enxergando um mundo a partir daquela estrutura de
pensamento vindo das aldeias. Inspirado na aldeia, consegui ver o
mundo, ou melhor, ela me levou a olhar, a partir dela, para o todo.
De um pedaço para o todo. Tudo está ligado, a idéia do mundo é
unitária e vem da experiência e da observação. (FERRAZ, 2007,
p.114)

A observação de Abdou é de grande relevância para compreendermos


a concepção de valores e conhecimento dos povos afro, que é bem diferente
da visão ocidental. É nítido que, entre cosmogonias afro, não há esta
preocupação em separar, diferenciar e extrair as coisas de seus contextos, uma
vez que se reconhece que elas estão intimamente ligadas. Desta feita, o homem
(e também a mulher) não se coloca como dominador frente à natureza, mas se
vê como parte desta cosmogonia que lhe confere um espaço determinado,
juntamente com o mundo animal, vegetal, mineral e espiritual. Assim, todo
este conhecimento é transmitido de geração a geração por intermédio de uma
performance que é acalentada por uma tradição de representação ritual,
cerimonial e simbólica, amparada em músicas, danças, linguagens de tambores,
arquitetura, canções, espetáculos, configurações espaciais, coreografias e
demais representações, bem diferente da racionalidade instrumental
europeizante.
Desnecessário dizer que, no mais das vezes, a transmissão desses
valores ocorre por meio da produção de semelhanças, uma vez que o maior
veículo de tramitação deste saber é o corpo, ímpeto que perpassa os códigos
arbitrários do texto escrito. Daí a importância em trazer Walter Benjamin a
este debate, pois se por um lado a construção e a classificação do
conhecimento ocidental se deu fortemente por meio da similitude, como
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 965

insistiu Foucault, por outro lado, por meio de uma “doutrina das semelhanças”
outras formas de conhecimento foram transmitidas. Desnecessário dizer,
também, que anos antes de Foucault escrever suas As Palavras e as Coisas,
Benjamin já estava atento a isto. Vejamos a seguinte passagem:

A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o


homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças.
Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores
que não seja decisivamente co-determinada pela faculdade
mimética. (BENJAMIN, 1994, p.102).

Ao falar da mimese, Benjamin dá grande importância ao uso do corpo


enquanto veículo simbólico de expressão e mediação de uma mensagem, eis
esta passagem em que ele analisa as brincadeiras na infância:

Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos,


que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A
criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas
também moinho de vento e trem. A questão importante, contudo,
é saber qual a utilidade para a criança desse adestramento da atitude
mimética. (BENJAMIN, 1994, p.102).

Mais adiante, Benjamin assinala que “A resposta a esta questão


pressupõe uma reflexão atenta sobre o significado filogenético do
comportamento mimético”, ou seja, ele busca entender este comportamento
valendo-se de uma perspectiva histórica, numa espécie de arqueologia da
similitude, pois como ele próprio assinalou, “não basta pensar no sentido
contemporâneo do conceito de semelhança. Sabe-se que o círculo existencial
regido pela lei da semelhança era outrora muito mais vasto”. Isto é, seria uma
espécie de “domínio do micro e do macrocosmos” (BENJAMIN, 1994,
p.102).
Nada fará melhor compreender tais observações aventadas por
Walter Benjamin do que a ideia de “textos culturais” e “depósitos

9
966 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

fenomenológicos” dos povos africanos e afro-diaspóricos. Para acalentar este


debate recorremos às reflexões do poeta, dramaturgo e intelectual africano
Esiaba Irobi que, em estudo recente, buscou justamente compreender como
os africanos, valendo-se de suas infraestruturas híbridas, sincréticas e
incorporadas, têm recorrido a estes depósitos fenomenológicos para
“interrogar as teologias associadas à ‘branquitude’ (whiteness) e a outras
manifestações da hegemonia cultural do ocidente” (IROBI, 2007, p.11).
Irobi nos mostra que, no que concerne à mediação do
conhecimento, as culturas afro recorrem fortemente à oralidade e às demais
“inteligências do corpo”. Interessante notar que, quando o autor busca
pormenorizar tal explicação, ele se ampara na fenomenologia. Em face a isto,
Irobi discorre que a fenomenologia deve ser vista para além do cânone ocidental
que faz dela uma representatividade qualitativa, pois os intelectuais da
diáspora, sobretudo os africanos, também fazem uso desta noção. Daí ser
pertinente a pergunta: De qual fenomenologia se está falando? Enfim, se por um
lado Hegel, Hursserl, Sartre e Merleau Ponty possuem suas concepções no que
se refere a esta categoria, por outras vias, povos de culturas orais, numa visão
de conjunto, também fazem uso de suas fenomenologias, uma vez que,
parafraseando Fortier, “a fenomenologia enfatiza ‘o engajamento na
experiência vivida entre a consciência individual e a realidade enquanto
fenômeno mental e sensorial” (FORTIER, 2002, p.108). Longe de nós a ideia
de se aprofundar em questões acerca da fenomenologia, mas só assinalamos
estes aspectos para mostrar formas de transmissão do conhecimento que se
apoiam em práticas mais autênticas que, muito embora, não façam uso da
escrita criptográfica, recorrem a símbolos extremamente sofisticados e
complexos. Tal como observou Fortier,

[...] a fenomenologia postula que há possibilidades mais autênticas de


existência no mundo, ou seja, formas que põem os seres humanos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 967

em maior contato com seus valores e consigo mesmo, além de lhes


dar acesso à verdade e até mesmo a um reino espiritual.
(FORTIER, 2002, p.41).

Interessante notar que um modo de transmissão de conhecimento


pautado na fenomenologia, e que faz uso do corpo enquanto veículo portador
de mensagens, recorre continuamente aos processos que engendram as
semelhanças. Isto novamente nos remete às ideias aventadas por Benjamin em
A doutrina das semelhanças, pois como ele próprio observou,

[...] o universo do homem moderno parece conter aquelas


correspondências mágicas em muito menor quantidade que os
povos antigos ou primitivos. A questão é que se trata da extinção
da faculdade mimética ou de sua transformação. (BENJAMIN,
1994, p.102).

Ou seja, Benjamin não só observou a complexidade e importância de


outras formas de mediação do conhecimento, como também reconheceu sua
perda contínua em nossa sociedade. Se é verdade que, para os antigos, os
astros, as estrelas e os planetas remetiam a toda uma simbologia e
cosmogonia, não resta dúvidas de que, na contemporaneidade, grande parte
deste cosmo já se encontra catalogado, indexado e registrado em nossa
cosmologia logocêntrica e racional –, que, por meio de métodos sofisticados,
identificou-lhes as origens (Big Bang), as estruturas (galáxias) e seus respectivos
movimentos (órbitas). No onirismo do racionalismo engessado é o logos
viabilizado pela escrita que tornaria o homem semelhante ao homem. Numa
inversão absurda de causa e efeito, eis a sofística tirânica da mediação do
conhecimento – a oralidade condicionada à escrita, falar corretamente
significa falar de acordo com a norma culta.
Contudo, Benjamin assinala outras formas de leitura, segundo ele
“Investigando as antigas tradições, podemos imaginar que certas
configurações sensíveis tenham sido dotadas de características miméticas de

9
968 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que hoje não podemos suspeitar. As constelações são um exemplo”


(BENJAMIN, 1994, p.103). Mais adiante, tal análise fica mais nítida, com base
na qual se observa que:

A alusão à astrologia poderia bastar para esclarecer o conceito de


uma semelhança extra-sensível. Esse conceito é obviamente
relativo. Ele deixa claro que nossa percepção não mais dispõe do
que antes nos permitia falar de uma semelhança entre uma
constelação e um ser humano. Não obstante, possuímos também
um cânone, que nos aproxima de uma compreensão mais clara do
conceito de semelhança extra-sensível. É a linguagem.
(BENJAMIN, 1994, p. 105).

É de se admirar a percepção de Benjamin no que diz respeito a esta


correlação entre o universo cósmico e o universo humano, visto que ele dá
grande importância aos antigos, dada a sua faculdade e capacidade de
apreender e transmitir o conhecimento por meio da mimese. Contudo, não se
pode afirmar que Benjamin é um saudosista no que se refere às novas formas
de se transmitir o conhecimento. Já no que diz respeito à oposição entre
linguagem oral e escrita, tendo em vista a semelhança, Benjamin traz um
ponto de vista interessante. Segundo ele: “A escrita transformou-se assim, ao
lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências
extra-sensíveis.” (BENJAMIN, 1994, p.104). Logo adiante, ele conclui este
raciocínio:

O texto literal da escrita é o único e exclusivo fundamento sobre o


qual pode formar-se o quebra-cabeça. O contexto significativo
contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante,
num instante, com a velocidade do relâmpago. (BENJAMIN, 1994,
p.105).

Daí ser presumível que Benjamin considera a importância da escrita e


da oralidade, reconhecendo um traço comum entre elas, ou seja, a semelhança.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 969

Ele avalia a linguagem como sendo a “mais alta aplicação da faculdade


mimética”.
Em suma, tais questionamentos trazidos por Benjamin nos convidam a
uma reflexão, pois, se por um lado, a sociedade atual tem passado por um
desenvolvimento tecnológico-científico e informacional6 voraz (de
distribuição desigual, vale ressaltar) –, por outro lado, esta mesma sociedade
tem, cada vez mais, perdido sua capacidade de interagir com o cosmo – dada a
nossa pretensão de dominadores frente à natureza. Então, uma das lições que
pode ser retirada deste breve ensaio de Benjamin, escrito em 19337, é que,
diferentemente dos astros e estrelas que vivem em incandescência e harmonia,
a nossa sociedade tem se tornado cada vez mais opaca e esfacelada, sobretudo
pela perda da capacidade de “mimetizar com os astros” e, consequentemente,
de ler os símbolos que se encontram ao nosso redor. Seria um convite à nossa
reinserção numa cosmogonia para reavermos algo que perdemos? Enfim, se
tal pergunta nos é incômoda, está provado o pioneirismo e a atualidade das
ideias de Walter Benjamin, um criador de símbolos, alegorias e,
consequentemente, de semelhanças.

Referências:

ANTONACCI, M. A. Colonialidade e decolonialidade de corpos e saberes. In: I


Seminário Internacional Áfricas: historiografia e ensino de história, Salvador e
Florianópolis, 2009.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. SP: Brasiliense, 1994.
FERRAZ, A. Contos e tradições orais em culturas africanas. In: Revista Projeto
História, jun/2003, n.26, p. 211-247.

6
Termo cunhado pelo geógrafo brasileiro Milton Santos.
7
Não se pode perder de vista que é justamente neste período do entreguerras, mais
especificamente no ano de 1933, que se dá a ascensão de Hitler na Alemanha.

9
970 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

FORTIER, M. Theatre/theory: An introduction. London: Routledge, 2002.


FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Trad: Salma Tannuss Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HOLANDA, S. B. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000.
IROBI, E. O que eles trouxeram consigo: o Carnaval e a Persistência da
Performance Estética Africana na Diáspora. Ohio: Journal of Black Studies,
2007.
PRATT, M. L. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo:
Edusc, 1999, p.37.
BÂ, A. H. Aspects de la civilisation africaine. Paris: Présence Africaine, 1972.
“Da guerrilha ao socialismo”: Florestan
Fernandes e a Revolução Cubana

Barthon Favatto Suzano JÚNIOR*

Introdução

R
eferência ainda hoje para boa parte dos pesquisadores brasileiros
debruçados sobre os temas cubanos, Da Guerrilha ao Socialismo: a
Revolução Cubana, de autoria do sociólogo Florestan Fernandes,
tornou-se um marco do estudo sobre Cuba. Passados mais de trinta anos de
seu lançamento editorial, a vitalidade analítica dessa obra encontra ressonância
em quase todas as pesquisas sobre a Ilha encampadas no Brasil. No presente
texto, buscou-se apresentar a conjuntura histórica em que a obra fora gestada,
os debates e os desafios que a moldaram, discutir algumas das aproximações e
rupturas teórico-metodológicas latentes entre a referida obra e outros escritos
produzidos no Brasil sobre a Revolução Cubana e seus desdobramentos à
mesma época ou em período anterior.
A ideia de levar a cabo um trabalho desta envergadura floresceu durante
o transcurso da disciplina de História & Cultura, ministrada no primeiro
semestre de 2010 aos discentes do Programa de Pós-graduação do
Departamento de História da UNESP/Campus de Assis pelos professores
Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa e Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso
Júnior. A fim de corresponder às profícuas reflexões propostas pelo curso,
*
Mestrando em História UNESP/Assis/Bolsista CAPES. Orientador: Dr. Carlos Alberto
Sampaio Barbosa.
972 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

que versou a respeito das contribuições advindas das vertentes marxistas para
o saber-fazer História, como trabalho de conclusão, aceitei o desafio de tatear
um campo do qual não sou especialista.

O nascimento de uma obra: a conjuntura do Brasil na década de 1970 e


Florestan Fernandes
Há certo consenso entre os historiadores em afirmar que, no Brasil, a
escrita sobre a Revolução Cubana e seus desdobramentos é vasta e densa.
Todavia, esse magnetismo brasileiro pela Cuba pós-revolucionária não é
recente, tão pouco caracterizado desde o princípio pela prevalência de estudos
acadêmicos. Ao largo de mais de cinquenta anos, inúmeros escritos sobre
Cuba e a Revolução foram produzidos e publicados no país a partir de
variados campos do conhecimento e sob óticas e discursos tão plurais quanto
os que comumente se está apto a identificar.
Uma explicação primeira a esse fenômeno de identificação pode partir
de uma assertiva de Eric Hobsbawn (1993, p.427), para quem nenhuma
revolução poderia ter sido mais bem projetada para atrair a esquerda do
hemisfério ocidental do que a Revolução Cubana. Isso porque Cuba e sua
revolução sintetizaram a realização in locus dos anseios de toda uma geração de
esquerda, em especial, mas, não só daquela congregada nos anos de 1960, e,
principalmente, alocada nos países da América Latina, pois, possibilitou
àqueles jovens visualizar, a partir das consistentes conquistas políticas e sociais
galgadas pelo governo revolucionário na Ilha, a efetividade das projeções que
idealizaram para seus próprios países.
Desse modo, para Emir Sader (1991) o alcance do impacto causado
pela Revolução Cubana na América Latina dos anos de 1960 foi, de longe,
maior do que aquele logrado pela Revolução Russa na Europa das décadas de
1910 e 1920. Diferente do que ocorreu no Velho Continente quando da
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 973

deflagração da revolução que abalou o mundo, em Nuestra América os países


partilhavam nos anos de 1960 de condições sociopolíticas mais homogêneas.
Ou seja, quando não partilhavam dos mesmos problemas, estes eram entre si
muito semelhantes. Dentre tais condições, destacam-se o alto grau de
dependência econômica externa dos países latino-americanos, os problemas e
as lutas sociais no campo, a deterioração das políticas públicas,
principalmente, das políticas sociais, de distribuição de renda, e a ascensão
quase endêmica de regimes ditatoriais de direita ao poder. De certo modo e
feitas as devidas ressalvas, querelas em muitos aspectos análogas àquelas
vivenciadas por Cuba antes do triunfo da revolução, em 1959, e, que de uma
maneira ou outra, acabaram solucionadas de pronto ou estancadas a longo
prazo pelo governo revolucionário. Circunstâncias que em grande medida
podem ser atribuídas ao calor com que as ideias e os projetos levados a cabo
pela Revolução Cubana foram abraçados por amplos segmentos da esquerda
na América Latina.
No caso específico do Brasil, alguns desses fatores comuns aos países
latino-americanos nos anos 1960, além de desdobrarem circunstâncias
especiais, também concorreram para o fortalecimento dessa indução de
campo.1 Deve-se levar em consideração que na década assinalada o país
vivenciou tempos difíceis. O golpe militar de 1964 pôs fim à frágil e breve,
porém, crepitante ordem democrática, passando a gerir o país subvertendo a
Constituição e o sistema legal por ela estabelecido a partir dos chamados Atos
Institucionais, ou, simplesmente, AI’s. Como bem alertou o historiador André
Lopes Ferreira (2009, p. 187), a ascensão dos militares ao poder no Brasil não
assinalou o início das relações entre os movimentos de esquerda brasileiros
com o regime revolucionário cubano. Apenas impeliu à ampliação e ao

1
Utiliza-se, aqui, a acepção da Física, para quem a indução de campo designa a magnitude
fundamental preexistente entre polos. No caso, entre a esquerda latino-americana e a
Revolução Cubana.
974 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

estreitamento de relações, muitas vezes já preexistentes, como se pode


verificar no caso das Ligas Camponesas:

No histórico das relações entre os dirigentes cubanos e as


esquerdas do Brasil destaca-se a atuação das Ligas Camponesas, a
primeira organização que efetivamente manteve contato com as
lideranças de Cuba. Alguns dos postulados centrais no discurso
político das Ligas seriam largamente debatidos no seio do
movimento comunista brasileiro antes e depois de 64, sendo o
principal deles a primazia do campo e dos trabalhadores rurais no
processo revolucionário. O apoio de Cuba às Ligas Camponesas no
limiar dos anos 60 seria um preâmbulo do relacionamento que os
cubanos manteriam com diversos grupos armados no Brasil até
meados da década de 70 do século XX. (FERREIRA, 2009, p. 164-
165).

Ocorre que a identificação e o estreitamento das relações de vastos


segmentos da esquerda brasileira com a causa e o governo revolucionário
cubanos não ficaram circunscritos somente ao campo dos embates práticos.
Com o tempo essa indução de campo – também preexistente no seleto
universo dos intelectuais brasileiros – permeou com mais ênfase outras
regiões do saber-fazer, devendo-se destacar, assim, que boa parte dos escritos
brasileiros sobre a Revolução Cubana e seus desdobramentos foram por aqui
produzidos e publicados durante a década de setenta, tendo nos anos de 1978
e 1979 o olho do furacão editorial. Concorreu para esse feito não somente a
aproximação do vigésimo aniversário do triunfo da Revolução Cubana, muito
aguardado pela esquerda brasileira; mas também, a própria dinâmica do
processo revolucionário, que àquela altura consolidara uma posição
geopolítica no continente e a distensão do Regime Militar no Brasil
(WASSERMAN, 2007, p. 66)2.

2
A partir da Crise do Petróleo de 1973, a Ditadura Militar brasileira sofreu profundos
golpes que tornaram sua continuidade longo prazo inviável. O progressivo esgotamento do
Milagre Econômico que sustentava o regime acionou, por parte do próprio governo militar,
vários dispositivos distensores, entre os quais aquele que, a partir de 1975, promoveu o
paulatino enfraquecimento da censura e da repressão, culminando no abrandamento da Lei
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 975

Dos anos de 1970 figuram importantes escritos, tais como, A Ilha


(1976), de Fernando Morais; Cuba Hoje: 20 Anos de Revolução (1978), do
jornalista Jorge Escoteguy; Cuba de Fidel: Viagem à Ilha Proibida (1978), de
autoria de Ignácio Loyola Brandão; e, por último, o clássico dos clássicos
brasileiros sobre Cuba, Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana (1979)3, do
sociólogo Florestan Fernandes, objeto deste trabalho. Ao tencionar esse
arrolamento torna-se perceptível que, excetuando a obra de Florestan
Fernandes, todas as demais foram escritas fora do circuito acadêmico. Para
Cláudia Wasserman (2007, p. 64) essa constatação revela que, mesmo
completadas duas décadas, o impacto causado pela Revolução Cubana na
sociedade brasileira fora desproporcional às tentativas acadêmicas de explicá-
la. Talvez, graças à permanência durante boa parte da década de setenta –
mesmo com a debilitação do regime militar – da ingerência governamental nos
assuntos pedagógicos, reverberando, assim, no enraizamento de um cenário
dominado por uma escrita mais empírica sobre Cuba, baseada nos relatos que
seus autores (em sua maioria, jornalistas militantes ou simpatizantes da
esquerda) confeccionaram durante ou após viagens que fizeram à Ilha.
Aliás, a própria trajetória intelectual de Florestan Fernandes e, por
conseguinte, o itinerário que o levou a romper com essa tradição empírica da
escrita produzida no Brasil sobre Cuba denunciam de maneira tácita o cenário
de arbitrariedades estabelecido no país sob as botas dos militares, onde as
universidades tornaram-se verdadeiros alvos das medidas abjetas propugnadas
pelo regime. Em 1969, então atuando como professor da Cadeira de
Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da
Universidade de São Paulo (USP), Florestan fora, assim como alguns de seus
colegas docentes, impelido à aposentadoria compulsória. As causas dessa

de Segurança Nacional, em 1978, e, por fim, na revogação do Ato Institucional nº 5, em


1979. Cf. SADER, 1990: 18-31.
3
A partir de agora, neste texto, somente, Da Guerrilha ao Socialismo.
976 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

querela apresentam nuances mais complexas que não cabe aqui enunciar, haja
vista que excelentes trabalhos já foram produzidos e publicados por
especialistas na vida e obra do sociólogo, entre os quais, o de Lidiane Soares
Rodrigues (2010), cuja utilidade e riqueza de detalhes cobrem e suportam as
lacunas biográficas pendentes nestas páginas. Contudo, podemos auferir em
linhas gerais que duas foram as causas que concorreram para esse afastamento
compulsório de Florestan Fernandes da USP: o acentuamento da repressão e
da censura pelo Regime Militar a partir de dezembro de 1968 com o AI-5,
sobrepesando no universo acadêmico; e, ao próprio engajamento do
sociólogo, que ao longo da vida sempre atuou como fiel defensor da
autonomia do ensino, porquanto, das universidades, e, da legitimidade do
exercício intelectual mesmo antes do golpe de 1964. Sobre essa conjugação,
atenta-se para o fato de que:

Com efeito, as tensões produzidas pelo golpe não arrefeceram o


sociólogo. É usual, aliás, que a inegável aproximação de Florestan
Fernandes com as causas e os debates mais afeitos ao espaço
público de atuação seja assinalada pelo termo ‘radicalização’. Ao
que tudo indica, é válida essa denominação, se a entendermos
como intensificação das relações entre o sociólogo e a sociedade,
fruto da exacerbação, convocada pelas condições históricas e posta
em relevo por sua expressão pública, das elaborações que podem
ser localizadas em fins dos anos 1950 – mas não de uma mudança
de diretriz, ou de conteúdo político, em resposta ao golpe militar.
Quando confessa, à época, a sua amiga Bárbara Freitag, seu
envolvimento com reformas de base, ‘exclusivamente’ no quesito
da reforma universitária e a afirma que ‘r.u. quer dizer, para nós,
construção de uma sociedade democrática’, parece revelar também
que essa radicalização desdobra-se de projeto acadêmico-político.
(RODRIGUES, 2010, p. 46).

Uma vez órfão de um nicho, do qual foi, a seu modo, o pater, o sociólogo
partiu para o exterior, onde atuou como professor na Universidade de
Toronto, até 1972 (RODRIGUES, 2010, p. 19-20). Retorna ao Brasil no
mesmo ano. Voltando a lecionar em 1976, primeiro no Sedes Sapientae, e,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 977

posteriormente, pela Universidade de Yale, em 1977. Nesse interstício, de


1972 a 1977, Florestan Fernandes compõe e publica aquela que se tornaria a
obra central de seu pensamento, A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de
Interpretação Sociológica (1975). E, finalmente, no último trimestre de 1977, o
autor assume o posto de professor titular em cursos de pós-graduação na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É justamente nesta
volta e nesta instituição que Florestan Fernandes começa a expelir o sopro
que daria vida ao livro Da Guerrilha ao Socialismo, tal como relata:

Desde que voltei a lecionar, primeiro no Sedes Sapientae, em 1976,


e na PUC, em 1977 (último trimestre) fiquei atento à possibilidade
de ocupar-me de um curso ou de uma seqüência de exposições
sobre Cuba. No entanto, só quando foram projetados os cursos do
Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais na PUC,
para 1979, foi possível atingir esse objetivo. Compreendia que o
assunto transcendia às minhas qualificações, mas pensava que era
necessário arcar com o ônus da improvisação, pelo menos até que
se consiga abrir um espaço adequado para o estudo do socialismo
no mundo moderno, em geral, e de Cuba socialista, em particular,
dentro das atividades de ensino e pesquisa na universidade
brasileira. (FERNANDES, 2007, p. 21).

Da Guerrilha ao Socialismo floresceu, assim, da compilação dos roteiros de


aulas e das anotações, apontamentos e reflexões realizados pelo autor e seus
alunos durante o curso que ministrou na PUC, e repetido no segundo
semestre para os discentes da USP. É válido ressaltar que o curso ofertado por
Fernandes na PUC e que repercutiu na confecção do livro, provavelmente,
fora pioneiro ao inserir no Brasil a temática da Revolução Cubana como
objeto de estudos nos cursos universitários (WASSERMAN, 2007, p. 65). O
que enaltece o esforço do autor em suscitar no horizonte das ciências sociais
no Brasil, e, por conseguinte, no meio acadêmico, a crepitante necessidade de
pensar Cuba e sua Revolução. Sobre esse aspecto, reiterou:
978 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

A incorporação de ambos os assuntos [Cuba socialista e o


Socialismo no Mundo Moderno] no currículo universitário deveria
ter sido feita há tempo. Com referência a Cuba, mesmo que não se
tivesse avançado nessa direção no início da década de 1960, por
volta de 1965 ou logo depois, não se justificava a omissão. Não se
pode nem se deve atribuir ao regime implantado em 1964 essa
situação. Ela decorre, claramente, do teor provinciano de nosso
‘espírito universitário’. Como ignorar o significado de um novo
padrão de desenvolvimento econômico, social e político nas
Américas? Por que a obsessão pelo desenvolvimento e pelo estudo
do capitalismo dependente? Seria possível entender a América
Latina contemporânea sem tentar-se explicar o que representa a
Revolução Cubana e o Socialismo em Cuba nas relações (e nas
lutas) das nações periféricas contra as nações centrais? Diante de
revoluções burguesas em atraso, a revolução em avanço procede do
socialismo, o que quer dizer que temos de estudar Cuba se
pretendemos desvendar o futuro e conhecer a história de ritmos
fortes, que se abre para a frente e assinala uma ‘nova época de
civilização’ no solo histórico da América Latina. (FERNANDES,
2007, p. 21-22).

Com base em tais afirmações, percebe-se claramente que Florestan


Fernandes edifica calorosa crítica àquilo que considera como “teor
provinciano de nosso espírito universitário” e que a seu ver deveria, mesmo
em circunstâncias adversas (frente à Ditadura), buscar inclinação ao
entendimento da realidade social latino-americana, e, por suposto, da
brasileira. Por esse caminho e consonante com aquilo que se apresenta
tomando o conjunto de sua vasta obra até aquele momento, o interesse
primeiro do sociólogo era o de estabelecer uma ponte entre o devir do saber-
fazer conhecimento e o pensar e transformar a realidade social. Algo que,
segundo Octávio Ianni (1996, p. 26), é um aspecto marcante da sociologia
crítica de Florestan Fernandes, sempre aberta a pensar a revolução social a
partir do casamento entre a pesquisa e a interpretação das condições com as
possibilidades das transformações sociais. Esse caráter engajado presente na
concepção de Da Guerrilha ao Socialismo, mas, principalmente, e, em
decorrência, advindo da capacidade de Florestan Fernandes de enxergar a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 979

educação como uma matriz libertadora jamais fora negado pelo autor. Tanto
assim que, na Nota Explicativa do livro em questão, Florestan esclarece que:

As opiniões [de Antonio Candido, Heloisa Rodrigues e Atsuko


Haga] foram favoráveis à publicação e acatei-as. Não modifiquei os
roteiros: deixei-os na forma original, como uma homenagem aos
meus estudantes e também como uma evidência de que as salas de
aula ainda constituem uma fronteira na luta pela liberdade e pela
autonomia da cultura. (FERNANDES, 2007, p. 17-18).

É lógico que, se a preocupação primeira de Florestan foi a de suscitar


no meio acadêmico a necessidade de pensar Cuba e a Revolução, mesmo
como força libertadora e integrante de um todo maior, o conjunto de seu
pensamento, ela transcorre em confluência a outras determinantes. A primeira
diz respeito à resistência a uma condição que, ulteriormente estabelecida,
agravou-se com o Golpe Militar de 1964, o “provincianismo” acadêmico, cuja
existência em tempos anteriores já era considerada aberrante, no final da
década de 1970, então, sua continuidade tornar-se-ia escandalosamente
inaceitável frente à “nova época de civilização no solo histórico da América
Latina”, marcada pelo anúncio de outras lutas encampadas em concordância
com o princípio de autonomia dos povos emitido pela Revolução Cubana, tal
como a Sandinista na Nicarágua, e, pelo paulatino enfraquecimento do
Regime Militar no Brasil. Quanto à segunda, revela-se como a outra face desse
movimento. Ao enunciar, com a publicação do livro, a emergência de, no
Brasil, se pensar Cuba e a Revolução Cubana a partir das ciências sociais, ou,
da necessidade destas em se aprofundar nos estudos e no ensino de tais
temáticas, Florestan Fernandes renovou o fôlego da escrita brasileira sobre
Cuba que, à época, carecia de um olhar mais “científico”, quadro que pode ser
comprovado levando em consideração o próprio cenário do mercado editorial
brasileiro do final da década de 1970.
980 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

O legado de Florestan Fernandes: pensar Cuba e a Revolução Cubana

Inaugurar uma nova etapa do pensar sobre Cuba no Brasil não significa
que se possa afirmar que a obra de Florestan Fernandes fora a primeira
concebida por um brasileiro a lançar um olhar mais “científico” sobre Cuba e
a Revolução Cubana. Na verdade, deve-se recordar que ainda no início da
primeira metade da década de setenta uma acadêmica brasileira já se
aventurava com maestria análoga nas turbulentas águas que naquele período
colocavam a toda prova qualquer tentativa em suportar uma explicação mais
científica e menos ideológica sobre o processo revolucionário cubano e seus
desdobramentos. Trata-se da cientista política Vânia Bambirra e de seu
magistral livro A Revolução Cubana - uma Reinterpretação, que, datado de 1975,
ainda hoje é reconhecido em boa parte da América Latina como um dos
melhores aportes interpretativos já realizados por um acadêmico brasileiro
sobre Cuba e a Revolução. Todavia, ao contrário do que ocorreu com Da
Guerrilha ao Socialismo, o livro de Bambirra não logrou no cenário brasileiro do
período o mesmo patamar de reconhecimento que a obra de Florestan
Fernandes. Fato que emana seus reflexos até os dias atuais, haja vista a
dificuldade que ainda se apresenta aos pesquisadores em encontrar tal obra,
mesmo em bibliotecas mais especializadas.4 Uma explicação plausível para
essa tímida difusão da obra de Bambirra no Brasil, e, por conseguinte, de seu
tardio e restrito reconhecimento pelos leitores brasileiros decorre das
circunstâncias que marcaram sua publicação. Em virtude do exílio da autora, o
livro não fora publicado no Brasil, mas em Portugal, o que de certo modo
dificultou a penetração e difusão do mesmo por essas bandas, ainda mais num
período em que o mercado editorial brasileiro tinha que seguir à risca os
ditames do Estado. Mas, se os livros de Bambirra e Fernandes percorrerem

4
A Biblioteca da UNESP do Campus Experimental do Litoral Paulista guarda em seu
acervo um exemplar do referido livro.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 981

trajetórias bem distintas quando o assunto diz respeito às questões práticas,


por exemplo, de ordem editorial, eles possuem denominadores comuns,
pontos de encontro:

A tendência de interpretar a Revolução Cubana por meio de


conceitos teóricos que originaram o foquismo entrou em crise após
o fracasso das tentativas de aplicação prática desta teoria em outras
partes do mundo. Em decorrência da derrota dos inúmeros
movimentos que seguiam esta orientação na década de 1960, entre
eles a guerrilha liderada pelo próprio Che Guevara na Bolívia, os
pressupostos teóricos do foquismo enquanto modelo abstrato de
interpretação da Revolução Cubana passaram a ser questionados.
Com a década de 1970, muitos pesquisadores, ao abandonarem
esta perspectiva detiveram-se em investigar mais profundamente as
singularidades e complexidades do processo revolucionário cubano.
Dentre os trabalhos publicados neste período cumpre-se destacar o
do sociólogo haitiano Gérard Pierre-Charles, Génesis de la Revolución
Cubana, o do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, Da Guerrilha
ao Socialismo: a Revolução Cubana e o da socióloga brasileira Vânia
Bambirra, A Revolução Cubana: uma Reinterpretação. (MÁO JÚNIOR,
2007, p. 15).

Ao defender a ideia de um processo revolucionário como produto


incontestável de um mecanismo histórico superestrutural, totalidade passível
de singularidades e complexidades, Florestan Fernandes distingue o modo
como opera sua análise, não só das demais obras publicadas no Brasil (por
brasileiros) sobre Cuba, como também das propostas de análise dos processos
históricos emitidas por outros marxistas que, muitas vezes engessadas numa
abordagem mais tradicional, apreendiam neles a prevalência da base sobre a
superestrutura, como é possível detectar nas obras de Caio Prado Júnior e
Nelson Werneck Sodré. Nessa perspectiva, ao pretender uma análise
estruturada na longa duração (do passado colonial e neocolonial de Cuba,
perpassando pelas crises políticas até chegar à guerra de guerrilhas e a guinada
socialista), Florestan Fernandes demonstra em seu livro que imersas no
processo revolucionário cubano coexistem singularidades superestruturais que
982 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

distinguem a luta histórica do povo de Cuba das demais revoluções ocorridas


na América Latina. Para ele, diferente dos acontecimentos que coroaram as
independências dos países latino-americanos, a luta em Cuba surge em 1868,
ressurge em 1893-95 e reflui por ocasião da própria dinâmica de organização
social peculiar à Ilha (FERNANDES, 2007, p. 329).
Entendida nesses termos, a análise de Florestan Fernandes almejou
demonstrar que, para além do entendimento da consciência revolucionária
que entremeia os processos históricos, algo intrínseco ao escopo marxista, ou,
da simples reflexão calcificada na justaposição da base sobre a superestrutura,
uma compreensão científico marxista sobre a História deveria abarcar e
ressaltar as singularidades imersas nos processos, e não a generalizá-las ou
dissolvê-las. Algo que para Florestan poderia ser executado por meio do
empreendimento de uma análise comparativa de casos. Ou seja, a Revolução e
Cuba vistas a partir da contextualização continental, em comparação aos
processos históricos vivenciados por outros países da América Latina. Método
que, como afirmou o próprio Florestan em entrevista à Folha de S. Paulo,
datada de 1º de janeiro de 1984, deve muito a Antonio Gramsci:

Para ele (Gramsci) foi importante interpretar a situação difícil da


Itália na relação com outras nações que exerciam hegemonia
econômica, política e cultural dentro da Itália. Aqui a presença das
nações não se dava em termos de hostes militares, mas se dava de
outra forma. E a própria burguesia vive a mesma insegurança,
então, são revoluções que não se completam. E o que é peculiar a
Cuba? Por causa da situação neocolonial se tornar extremamente
viva, a luta contra ditadura, a luta contra a república títere, a luta
contra o imperialismo, que assumia proporções dramáticas, acaba
gerando um nacionalismo libertário que desata num processo
diferente do resto da América Latina. (FERNANDES, 2007, p.
329).

A aproximação de Florestan Fernandes com o pensamento gramsciano


imprime à sua obra Da Guerrilha ao Socialismo um caráter diferenciado em
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 983

relação à produção de outros teóricos marxistas brasileiros, à época


debruçados sobre as questões sociais de Nuestra América, mas não suprime,
todavia, tal como na obra do marxista italiano, uma tentativa de compreensão
totalizante dos processos, mesmo que colocando à ribalta as singularidades
que lhes são próprias, entre elas a da dominação social como resultante das
particularidades históricas de formação do tecido superestrutural. Tal como
em outras obras de Florestan Fernandes, por exemplo, em Capitalismo
Dependente e Classes Sociais na América Latina (1973), ou, A Revolução Burguesa no
Brasil (1975), a espinha dorsal da análise gira em torno de como diversos
fatores históricos superestruturais comuns ou singulares influenciaram a
formação de uma determinada configuração histórica, dentre a qual, a de
sociabilidade. Se em Gramsci, essa preocupação com as classes e suas
sociabilidades históricas está personificada mais na compreensão dos extratos
intelectuais, em Fernandes ela se volta mais para o entendimento dos
mecanismos de formação e atuação da classe burguesa e sua respectiva
inserção local. Exemplo:

Eu pude ver como em Cuba aconteceu a mesma coisa que no resto


da América Latina, só sucedeu de uma maneira pior, porque lá a
situação neocolonial se restabelece com uma grande vitalidade,
graças ao fato de que os Estados Unidos alienam a independência
que os cubanos ganharam na frente militar. E, através de processos
econômicos, culturais, políticos e diplomáticos criam uma situação
neocolonial de grande vitalidade, de grande envergadura. Lá eu
pude estudar como, afinal de contas, se repete em Cuba a história
comum da América Latina, quer dizer, as tais revoluções que não
se concluem, que se paralisam porque a burguesia não é uma
burguesia de país com desenvolvimento capitalista autônomo, ela
está sujeita a uma dominação externa. (FERNANDES, 2007, p.
328-329).

Essa aproximação de Fernandes com o método gramsciano não ocorre


por acaso, bem como não é uma particularidade do livro Da Guerrilha ao
Socialismo: a Revolução Cubana. Octávio Ianni (1996, p. 29-33) aponta que no
984 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

âmbito da teoria, além fundar as bases da sociologia crítica no Brasil,


Florestan sempre buscou contínuo e crescente diálogo com inúmeras
vertentes filosóficas e sociológicas, que em seu itinerário teórico encontram-se
como referência desde notáveis da escola francesa, alemã, inglesa e norte-
americana – como Durkheim, Simiand, Weber, Spencer, dentre outros –, até a
sempre contínua e crescente aproximação com os legados teóricos de Marx,
Engels, Trotsky e Gramsci, além, é claro, com as obras de renomados
marxistas brasileiros como Caio Prado Júnior (IANNI, 1996, p. 29-30).
Certamente, por essa pluralidade de diálogos estabelecidos pelo autor,
outra característica marcante em Da Guerrilha ao Socialismo é a de não se fechar
às contribuições bibliográficas, o que implica numa tentativa de tecer uma
análise parcial da questão cubana, mesmo que ainda animadora e envolta pela
aura do discurso da esquerda militante. Dessa maneira, a análise empreendida
por Florestan Fernandes não se furta em entoar um tom mais crítico sobre o
processo revolucionário cubano e seus desdobramentos, que, nesses termos,
raras vezes presenciamos na leitura das obras de cunho jornalístico ou nos
relatos de viagem muito difundidos à época. Um dos principais pontos de
discordância de Florestan Fernandes em relação ao processo de consolidação
do socialismo em Cuba tange à questão da concentração de investimentos por
parte do governo revolucionário na agricultura, em detrimento da
modernização dos polos industriais já existentes na Ilha, o que implica para o
autor, numa certa transferência de dependência econômica do capital
estadunidense para o soviético. Sobre isso, escreveu:

Todavia, mesmo ignorando-se os custos diretos e indiretos do


cerco imperialista, o grau ainda incompleto de coalescência de
Cuba às economias e às tecnologias do chamado bloco socialista e
o súbito aumento de encargos de interesse social que pesam
terrivelmente no orçamento de um governo socialista, é fácil
perceber a contradição entre um excedente econômico de origem
agrícola, a autonomização da política econômica e a rápida
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 985

diferenciação de uma economia socialista. Essa contradição é tanto


maior quanto o excedente econômico depende, basicamente, da
produção e exportação do açúcar, ambas sujeitas a flutuações
incontroláveis, além de certos limites (por exemplo: as secas, que
podem arruinar inesperadamente as melhores previsões; as
oscilações de cotação do produto no mercado mundial,
especulações financeiras, modificações nas relações entre oferta e
procura, efeitos conjunturais da prosperidade ou das crises
econômicas etc.). [...] No entanto, aqui reside o principal obstáculo
a uma política global de diferenciação da economia mais rápida e
ambiciosa. Com o excedente econômico de que dispõe, Cuba não
pode enfrentar, simultaneamente, essa revolução agrícola e a
revolução industrial. As conquistas são obtidas a duras penas e
ficam aquém, quer das ambições do governo revolucionário, quer
das esperanças do povo cubano (para não falar dos requisitos
materiais da transição para o socialismo). (FERNANDES, 2007, p.
193-196).

Por fim, ao pensar a Revolução Cubana dentro de uma perspectiva


histórica, Florestan Fernandes conseguiu demonstrar que, para além da
existência de uma conjuntura propícia para eclosão de uma revolução em
Cuba, desde o início do século XX, a própria Revolução desencadeou um
processo sui generis ao qual o sociólogo denominou de “revolução dentro da
revolução”. Para Fernandes, como em seu transcurso a Revolução Cubana
logrou reunir entorno de si setores e grupos com ideias e projetos muitas
vezes antagônicos, foi necessária uma espécie de autodepuração do
movimento por ela engendrado. Desse modo, paulatinamente, as lideranças
envolvidas no processo foram definindo a natureza do mesmo, à medida que
as circunstâncias se apresentavam. O que explica a transição de um
movimento em princípio puramente nacionalista para o estabelecimento do
socialismo na Ilha após o fim da luta revolucionária.

Considerações Finais

O impacto causado pela Revolução Cubana na sociedade brasileira fora,


por algum tempo, desproporcional às tentativas acadêmicas de explicá-la.
986 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

Nesses termos, a obra de Florestan Fernandes atuou não somente no sentido


de romper com a tradição quase hagiográfica que balizou a escrita sobre Cuba
no Brasil, mas também como agente que operou um afastamento em relação
ao casuísmo assinalado por alguns textos confeccionados pela esquerda da
época. Neste último caso, Fernandes estabeleceu a passagem de uma escrita
quase “guerrilheira” sobre Cuba, mais concentrada na “bandeira” ideológica,
para uma escrita com sólida base socialista, à medida que, sem deixar de lado
o engajamento, procurou conferir à análise um estatuto científico, materialista
dialético, apontando os avanços socio-históricos galgados pela Revolução e
criticando os deslizes do regime castrista, sobretudo no tocante à priorização
de uma economia arraigada na monocultura do açúcar.
Apesar de gestada no ventre da sociologia, Da Guerrilha ao Socialismo: a
Revolução Cubana é uma obra com profundo e duplo impacto histórico.
Primeiro, porque sintetizou o compromisso de Florestan Fernandes com o
amadurecimento da sociologia made in Brazil, levando esta a transcender uma
etapa de timidez metodológica e teórica, postulando ingresso numa fase em
que a depuração analítica e a visão historicizada da realidade social passassem
a atuar como imperativos. Segundo, ao alavancar no pensar sociológico
brasileiro a inclusão de uma prática analítica da realidade social balizada no
encontro entre sociologia e história, a contribuição do gênio de Florestan
Fernandes não se limitou a uma engessada circunscrição ao perímetro da
primeira área do conhecimento. Seu lume reverberou além, impactando sobre
o saber-fazer de inúmeros matizes das ciências humanas, inclusive, e,
principalmente, na História.
Mesmo frente aos distanciamentos inerentes à praxe de construção do
conhecimento, sempre autorrecicladora, a tendência inaugurada pela obra de
Fernandes fundamentou no Brasil, além de uma ruptura com a escrita
empírica que marcou o período anterior, uma sólida tradição historiográfica
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 987

sobre Cuba, cujas aproximações e ressonâncias podem ser verificadas em boa


parcela das proeminentes produções das décadas seguintes, oitenta, noventa,
até os dias atuais. Muito do que se produziu no Brasil sobre Cuba seguiu,
assim, uma proposta semelhante, principalmente, se forem levados em
consideração três eixos: o crescimento da escrita acadêmica sobre os temas
cubanos, o que revela uma maior preocupação dos intelectuais vinculados às
universidades em compreender Cuba; a historicização dos objetos em análise
sem perder de vista as totalidades e as singularidades pertinentes às temáticas,
inclusive, estabelecendo conexões com o itinerário e o contexto pertinentes a
outros países da América Latina; e, por fim, a depuração analítica que, além de
não rechaçar os aspectos político e econômico, condecorou a ênfase aos
aspectos sociais da Revolução Cubana, muitas vezes enaltecendo comparações
com outras realidades socio-históricas latino-americanas.
É justamente essa capacidade crítica que supera em grande medida as
paixões, aliada à sustentação de diálogos plurais e ao distanciamento de uma
análise marxista mais tradicional dos processos históricos que permitiram que
Da Guerrilha ao Socialismo continuasse figurando como importante contribuição
teórica para todos os pesquisadores debruçados sobre a compreensão da
Revolução de 1959 e de seus desdobramentos até os nossos dias. Todavia,
quando pensamos na atualidade da obra de Florestan Fernandes sempre é
bem-vinda uma certeza, a de que, como produto cultural de uma época, o
livro ainda carrega as marcas das vicissitudes e incertezas que abalaram o
período.

Referências

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988 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)

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Assis

FCL – Assis – UNESP – Publicações


2011

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