Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Escrita Historica e Suas Multiplas Fac
A Escrita Historica e Suas Multiplas Fac
KARINA ANHEZINI
(Organizadoras)
A ESCRITA HISTÓRICA
E SUAS MÚLTIPLAS FACES
COMISSÃO CIENTÍFICA
Drª. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi
Drº. Áureo Busetto
Drª. Karina Anhezini de Araújo
Profª. Drª. Tania Regina de Luca
Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva
Revisão Português
Olga Liane Zanotto Manfio Jaschke
KARINA ANHEZINI
(Organizadoras)
A ESCRITA HISTÓRICA
E SUAS MÚLTIPLAS FACES
Assis
FCL – Assis – UNESP – Publicações
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
ISBN: 978-85-88463-66-0
CDD 200
301.2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 11
A TV Cultura: uma nova Emissora Associada voltada para São Paulo, 1960-
1967.
Eduardo Amando de Barros Filho 417
Mulheres Organizadas
Jamilly da Cunha Nicacio 563
2.3. Os locais de memória e as políticas culturais do patrimônio
Introdução
I
nicialmente, destaca-se que este artigo é parte de uma pesquisa
desenvolvida, que abrange as fontes Satyricon de Petrônio e Epigramas de
Marcial, e que busca entender as religiões praticadas na cidade de Roma
no decorrer do primeiro século e início do segundo, período do Principado.
O artigo trará comentários acerca da religião romana no período, em
seguida um breve resumo sobre cada uma das fontes, a análise delas e algumas
considerações a respeito do tema.
*
Doutoranda em História/UNESP/Assis. Orientadora: Drª. Andrea Lúcia Dorini de
Oliveira Carvalho Rossi.
22 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
fazer”. “Crer na Roma antiga equivalia a ter uma confiança cega no rito [...]”
(1993, p.58, minha tradução)1. Ou seja, crer significava acreditar no poder do
ritual e buscar sua perfeita execução.
Scheid enumera alguns dos maiores princípios. O primeiro deles é que a
religião romana “é uma religião sem revelação, sem livros revelados, sem
dogma e sem ortodoxia. O que existe é a chamada ‘orthopraxis’, a
performance correta que descreviam os rituais” (SCHEID, 2003, p.18, minha
tradução)2.
Como destaque entre os conceitos que envolvem a religião dos
romanos, poderia-se citar a supervalorização do rito. Enquanto o povo grego
valorizava o mito, os romanos valorizavam o rito (SCARPI, 2004, p.154).
Estes acreditavam que quando o ritual era perfeitamente executado, os deuses
permitiriam a manutenção do equilíbrio da cidade, ou seja, a observância ao
ritual trazia o equilíbrio das relações entre homens e deuses, o que eles
chamavam de pax deorum.
Um ponto importante a respeito da religião pública praticada no
Império é que se trata de uma religião social, ligada à comunidade. Há tantas
religiões romanas quanto grupos sociais: os cidadãos, as legiões, as várias
unidades das legiões, colégios dos servidores públicos, artesãos, famílias, entre
outros (SCHEID, 2003, p.19).
Destaca-se, ainda, que se tratava de um modelo cívico de religião: “[...]
respeitava-se a liberdade do cidadão e ajudava-o no estabelecimento de
relações com os deuses fundadas especialmente na razão mais do que no
medo” (SCHEID, 2003, p.21).
1
“'Croire', dans la Rome ancienne, équivalait à faire une confiance aveugle au rite [...]”
2
“This was a religion without revelation, without revealed books, without dogma and without orthodoxy.
The central requirement was, instead, what has been called ‘orthopraxis’, the correct performance of
prescribed rituals”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 23
3
“Cibeles, introducida por decisión aristocrática, presenta así un perfil popular que expresa la concordia
ordinum, el consenso de los grupos sociales ante el sacro procedimiento para repeler al invasor cartaginés.
La historia de Cibeles en Roma reproducirá la tensión del conflicto de clases y la contradicción conductual
del grupo dominante entre la marginalidad e integración del culto”.
28 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
“Cibeles había triunfado en Roma. Su culto había quedado integrado en el calendario oficial y, sin
embargo, las características de sus ritos impidieron, aparentemente, su plena incorporación en la vida
cívica.”
5
“[...] sans que leurs cultes fussent épures pous autant des éléments choquants pour la sensibilité romaine,
telle l´autocastration des Galles de Cybèle. Il furent simplement encadrés par des pratiques tout à fait
traditionnelles, comme si les autorités avaient précisement cherché l’effet scandaleux, afin que, certains jours
del’année, léxhibition de ces conduites contraires aux normes permette aux Romains de réfléchir sur la
complexité de leurs rapports avec les dieux, avec leurs dieux puisque Cybèle était, en fait, à leurs yeux une
lointaine parente des Romains.”
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 29
outras localidades, passando inclusive pela Grécia, onde seu culto pode ter
adquirido características mistéricas.
Petrônio, por sua vez, descreve em duas cenas do romance os rituais ao
deus Priapo. Neste momento, trata-se mais especificamente do episódio de
Quartila. Seguindo a divisão de capítulos da tradução de Ernout (1950), no
capítulo XVI, iniciam-se as aventuras do trio com a sacerdotisa do culto
priápico, chamada Quartila.
O episódio conta com vários personagens além da sacerdotisa e dos
garotos. Quartila afirma que os jovens cometeram um crime terrível, por
terem possivelmente violado um ritual que estava sendo feito em honra a
Priapo. Por isso, teriam que participar de um tipo de iniciação na qual foram
torturados e sofreram vários tipos de violência.
Ao contrário das práticas mais tradicionais da religião romana, no
capítulo XX parece iniciar-se um diferente “ritual”. A escrava Psique e uma
moça começaram a excitar os jovens. Havia uma espécie de “poção” –
medicamentum (doses de “segurelha” ou “satírio”) que foi dada a Encolpio.
Participam da cena também várias “bichas” que molestam os personagens.
Alguns atletas entraram e massagearam os jovens com um óleo. Depois
os protagonistas foram conduzidos a um quarto próximo, onde havia camas e
foram servidos com vários pratos e beberam muito vinho, numa espécie de
banquete. Em seguida, todos dormiram, mas foram interrompidos por
Quartila a qual advertiu que o culto em honra a Priapo deveria ser feito.
No fim do episódio, Quartila resolve que aquela era uma bela ocasião
para Paniques, uma menina de sete anos, perder sua virgindade, numa espécie
de casamento. Encólpio fica assustado em razão da idade da menina. Quartila
discorda e o leito nupcial é preparado. A menina vai o para o quarto com
Gitão. Quartila beija Encólpio e eles passam juntos o restante da noite.
O outro episódio traz a sacerdotisa priápica chamada Enotéia. Um
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 31
pouco antes do início desse episódio, o narrador tem um longo diálogo com o
seu membro, pois sua virilidade o tinha abandonado quando ele pretendia
relacionar-se com Circe.
No momento em que Encólpio suplica ao deus Priapo, a velha
Proselenos chega e conduz o rapaz ao encontro de outra sacerdotisa de Priapo
chamada Enotéia.
Os capítulos a seguir se desenrolam num ambiente – o templo da
sacerdotisa – descrito por Encólpio como sujo, nojento e velho. Nesse lugar, a
sacerdotisa utiliza muitos produtos para a prometida cura de Encólpio que ela
iria efetuar. Depois de beijar Encólpio, Enotéia parece começar uma espécie
de “ritual”.
Enotéia inicia um sacrifício que é interrompido e a velha sacerdotisa sai
em busca de fogo pela vizinhança. Enquanto a sacerdotisa procura o fogo,
Encólpio comete um “crime terrível”: mata um ganso que estava na porta
desse templo. Ao descobrir tal ato, a sacerdotisa fica furiosa com Encólpio,
pois aqueles, segundo ela, eram gansos de Priapo.
Mas, uma das partes mais surpreendentes do episódio é quando
Encólpio oferece moedas de ouro pela perda dos gansos e a velha mostra-se
bastante satisfeita.
A seguir, tem-se um poema no qual há a ideia de que o dinheiro pode
inúmeras coisas ou quase tudo. E o ritual continua: a sacerdotisa faz uma
previsão do futuro de Encólpio. Enotéia e Proselenos bebem muito vinho
puro e as torturas sexuais são iniciadas.
A interpretação dos rituais do romance de Petrônio é bastante
complexa, o distanciamento temporal e de costumes cria, a princípio, a
sensação de incapacidade de conhecimento. Como pondera Burkert:
dizer em que consiste essa experiência, sem ter passado por dias e
dias de jejuns, purificações, esgotamento, apreensão, e agitação?
(BURKERT, 1991, p. 100).
Os Epigramas de Marcial
proprietário cujo nome significa “alegre”, “feliz”. O nome, nesse caso, seria
justificado pela riqueza do personagem (2006, p.308).
Por meio desse epigrama, Marcial mostra, portanto, que o deus estaria
presente nas propriedades de terra dos mais abastados de Roma.
O epigrama que se segue é o 40, do livro VIII:
7
“Pauper amicitiae cum sis, Lupe, non es amicae / et querittur de te mentula sola nihil. / Illa siligineis
pinguescit adultera cunnis, / couuiuam pascit nigra farina tuum; / incensura niues dominae Setina
liquantur, / nos bibimus Corsi pulla uenena cadi; / empta tibi nox est fundis non tota paternis, / non sua
desertus rura sodalis arat; / splendet Erythraeis perlucida moecha lapillis, / ducitur addictus, te futuente,
cliens; / octo Syris suffulta datur lectica puellae, / nudum sandapilae pondus amicus erit. / I nunc et
miseros, Cybele, praecide cinaedos: / haec erat, haec cultris mentula digna tuis” (MARCIAL, 1973, p.
35).
36 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Címbalos
“Estes bronzes que choram o jovem de Celenas amado da Grande
Mãe,
Muitas vezes costuma vendê-los o Galo esfomeado” (MARCIAL,
2004, p.208).
Algumas considerações
Além dos atributos mistéricos que o deus trouxe, como resultado das
suas passagens inclusive pela Grécia, ao longo do primeiro século, ficou
conhecido na Urbs também como amuleto, representado em inúmeros
espaços, principalmente em jardins e plantações.
Mesmo que não participante oficial daquela religião pública relacionada
ao Estado, Priapo se apresenta como um deus bastante conhecido em seus
atributos e, provavelmente, objeto de culto na cidade da metade do primeiro
século em diante. Nas décadas de 80, 90 e início do segundo século, a
utilização do deus, por parte de Marcial para criar jocosidade em seus poemas,
atesta a popularidade de Priapo.
Acredita-se, dessa forma, que a religião romana no período tratado
corresponde a várias outras expressões religiosas e não apenas à religião
pública oficial, como alguns historiadores costumam associar, ao culto ao
imperador e às festas oficiais.
No caso do casal frígio, Cibele e Átis, entende-se que a representação
de Marcial a respeito mostra que os ritos de Cibele ocorriam com frequência
na Urbs, mas mesmo incorporada ao calendário oficial do Império, a deusa
tinha ritos que chocavam alguns grupos sociais romanos. Mesmo assim, os
atributos dela foram incorporados, tendo em vista as diversas citações dos
celebrantes do culto por Marcial. O culto de Cibele é entendido, aqui, também
como parte da religião romana no período tratado.
A partir das fontes apresentadas, a religião romana de meados do
primeiro século ao início do segundo mostra-se bastante híbrida. Não há
como afirmar, diante da popularidade de cultos como esses aqui estudados,
que a religião romana é o mesmo que a religião oficial e o culto ao imperador,
ela engloba os vários cultos, advindos de outras partes, mas que depois de
adaptados são aceitos, em maior ou menor grau, e vividos pela população.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 39
Referências
Fontes:
ERNOUT, Alfred: Pétrone. Le Satiricon. 3ed. Paris: Les Belles Lettres, 1950.
MARCIAL. Epigramas. v.I. Lisboa: edições 70, 2000.
MARCIAL. Epigramas. v.II. Lisboa: edições 70, 2000.
MARCIAL. Epigramas. v.III. Lisboa: edições 70, 2001.
MARCIAL. Epigramas. v.IV. Lisboa: edições 70, 2004.
MARTIALIS, M. V. Épigrammes. Tome I (livres I-VII) Texte établi et traduit
par H.J. Izaac. Paris, Belles Lettres, 1930.
MARTIALIS, M. V. Epigrammes. Tome II(livres VIII-XII) Texte établi et
traduit par H.J. Izaac. Paris, Belles Lettres, 1973.
40 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Bibliografia:
O
s visigodos, como a maioria dos reinos germânicos, tiveram sua
história política vinculada à sua história religiosa bem como às
suas relações com o Império Romano. Visto que, uma vez
estabelecidos no interior das fronteiras romanas, conseguiram manter certa
independência política e social, muito em virtude de terem se convertido ao
arianismo (AGUILERA, 1992, p.15). Este fato possibilitou-lhes a manutenção
de certa autonomia, subtraindo mais facilmente a ação unificadora e
centralizadora dos imperadores romanos e da Igreja oficial1. Neste sentido,
dialogamos com o medievalista E. A. Thompson, que expressa a opinião de
que:
2
Pertenceu a uma família católica de origem bizantina ou hispano-romana. Como bispo de
Sevilha, Leandro foi o instrumento decisivo para conseguir a renúncia oficial ao arianismo
dentro do reino visigodo, proclamada no III Concílio de Toledo. Leandro foi sucedido por
seu irmão Isidoro por volta de 600 e, durante o seu bispado e de seu irmão Isidoro, Sevilha
desfrutou de preeminência como centro intelectual do reino visigodo. LOYN, H. R.
Dicionário da Idade Média.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 212-213.
46 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
Sobre o desfecho dessas conjurações e a resposta de Recaredo a elas, veja mais em:
CASTELLANOS, S. Op. cit., 2007, p. 153-165.
4
Mais informações sobre estas revoltas contra a conversão do rei Recaredo, ver em:
CASTELLANOS 2007, p. 153-165.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 49
5
Cabe destacar que não foram apenas os visigodos que no III Concílio de Toledo passaram
a professar o catolicismo, pois o tomus régio também fazia referência à conversão dos
suevos. Mais informações a respeito do reino suevo: SILVA, L. R. Monarquia e Igreja na
Galiza na segunda metade do século VI – O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga
dedicadas ao rei suevo. Niterói/RJ: UFF, 2008.
50 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
6
Recaredo enviou uma carta para o papa Gregório Magno, para informar a conversão de
seu reino. O conteúdo desta carta foi editado por José Vives em conjunto com as Atas do
III Concílio de Toledo. IDEM, ibidem, p. 144-145.
7
Mais informações sobre o discurso régio nos concílios de Toledo, ver em: MARTINEZ
DIEZ, G. Op. cit., 1971, p. 119-138, p. 128.
52 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
que aconteceriam todos os anos. A partir deste momento, eles seriam o órgão
principal dessa ação conjunta.
Cabe ressaltarmos que E. A Thompson apontam que, nos primeiros
anos do reinado de Leovigildo, foram conhecidos apenas dois nomes de
bispos visigodos católicos, o cronista João de Bíclaro e Masona de Mérida.
Entretanto, assinaram nas atas do III Concílio de Toledo alguns bispos
arianos conversos com nomes germânicos, mas boa parte dos bispos
presentes não tinha sido ariana e alguns deles possuíam nomes visigodos8.
O reinado de Recaredo proporcionou para a Igreja não só um período
de consolidação e fortalecimento como organização eclesiástica, mas também
como proprietária de um patrimônio avultante em terras, gado, servos, etc.
(CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.127).
Entretanto, a incorporação oficial dos prelados à vida pública da Monarquia
visigoda deu-se, de modo definitivo, a partir do IV Concílio de Toledo (633),
visto que o episcopado permaneceu praticamente integrado ao estamento
dirigente do reino. Desta forma, segundo J. Orlandis, este foi o momento em
que o episcopado se germanizou consideravelmente, em decorrência do
crescente número de prelados de nome e geração germânica, muitos de
descendência nobre (ORLANDIS, 1988, p.233).
Recaredo apareceu perante este sínodo como o autor da conversão do
reino e, também, como o monarca católico de todos os seus súditos, defensor
dos interesses da única Igreja do reino:
9
Mais informações sobre o Concílio de Nicéia (325): CASTELLANOS, S. Op,cit., 2007, p.
38-39.
10
Mais informações sobre a vida do imperador Constantino: PALANQUE, J.-R.
Constantino. Rio de Janeiro: Atlântica, 1945.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 57
Conclusão
No caso do III Concílio de Toledo (589), temos que ter em mente que
foi um acontecimento previsto e programado com a finalidade de anunciar a
conversão dos visigodos ao catolicismo. A noção cristã de realeza no reino
visigodo alcançou sua plena maturidade no século VII, tanto em virtude das
definições da doutrina política isidoriana como da obra legislativa levada a
término pelos grandes concílios gerais de Toledo (CONCILIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963). Como apontamos
anteriormente, todo esse processo se iniciou com o III Concílio de Toledo
(589) – uma iniciativa do rei Recaredo (568-601) e da Igreja –, episódio de
fundamental importância, pois esse sínodo marcou a oficialização do
catolicismo niceísta como religião do reino visigodo. Além disso, percebemos
que essa conversão conferiu um novo caráter à Monarquia, contudo, esta
ainda não alcançou uma consolidação e estabilidade total no reino.
Com a conversão, a monarquia passou a ter forte atuação nos Concílios
gerais toledanos, pois a frequência desses sínodos construiu a imagem do que
fora o catolicismo visigodo na Hispânia: uma prática religiosa fortemente
amparada em uma tradição jurídico-canônica. Realizadas com o objetivo de
discutir questões pertinentes ao âmbito da fé e do político, as atividades
conciliares acabaram apresentando-se como o espaço de produção ideológica
decorrente da interação entre interesses monárquicos e eclesiásticos. Para P.
D. King, a homogeneidade em uma única religião entre visigodos e hispano-
romanos se converteu em uma poderosa força, que atuou em favor da
unidade do direito. O que mais contribuiu para fomentar a ideia de um direito
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 61
territorial teve início com o III de Toledo, em que a Igreja conseguiu sua
expressão institucional (KING, 1981, p.35).
Referências:
O
memorável orador Licurgo (390-324 a.C.), homem que esteve à
frente das finanças públicas da democrática Atenas durante doze
anos (336-324), e um dos líderes do partido antimacedônico,
efetuou reformas importantes nas práticas religiosas da cidade, e suas
preocupações iam mais além do mero dispêndio público. De maneira
diferente, mas na mesma direção, Demétrio de Falero (350-280 a.C.),
discípulo do escolarca peripatético Teofrasto, após ser nomeado pelo general
macedônio Cassandro, reinou tiranicamente (317-307) sob uma Atenas
oligárquica e, primando pela noção da justa medida aristotélica, promoveu
reformas religiosas cujos sentidos também ultrapassavam qualquer finalidade
filosófica imediata. A proposta deste trabalho, no entanto, é refletir sobre
ambas as administrações de Licurgo e Demétrio, de modo a iluminar como os
seus governos controlaram os “valores” de algumas práticas religiosas por
meio de reformas que possibilitaram a constituição de certas estratégias
*
Mestrando de História/UNESP/Assis. Orientadora: Drª. Andrea Lúcia Dorini de
Oliveira Carvalho Rossi.
64 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Tal termo significa “aquilo que o conduz” e, na mesma acepção, “crer nos deuses ou em
seu poder” (BAILLY, 2000, p.399).
68 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
preenchia de sentidos as instâncias da pólis. Era assim que o eixo mais vertical
da pólis, aquele que hierarquizava os cidadãos pela distribuição dos papéis
políticos, era atado ao transcendente de modo a dotar o governo com
potências onisciente e onipresente. Destarte, esta congruência entre o
transcendente e a pólis era garantida pelo juramento, o qual assegurava o
comum acordo da democracia. É o que afirma Licurgo ao desenrolar sobre o
governo da pólis:
3
Relativo ao cumprimento dos nomoi, leis de cunho tradicional de forte conotação religiosa.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 69
todo bom cidadão ateniense. Contudo, como homem público fez o que
poucos fizeram, o que lhe valeu, sete anos após sua morte, em 306 a.C., a mais
alta honra concedida pela pólis a um ateniense – uma estátua na Ágora e um
privilegiado banquete aos seus descendentes4. Porém, o que interessa aqui, da
sua vasta realização política, como já dito, são as suas propostas de leis
aprovadas pela Bulé (boulé) e o seu trabalho frente à administração das
finanças públicas naquilo que concerne à esfera religiosa.
O decreto político de 306 a.C., levado a cabo por Stratocles de
Diomeia, levava um elogio a Licurgo que dizia: “fez muitas boas leis para sua
terra natal” (MIKALSON, 1998 p.23). Entre essas leis, as que faziam
referências às matérias religiosas e que chegaram até o nosso conhecimento
eram: restabelecimento da colapsada competição de atores cômicos no festival
de Kitroi5 (Khýtros) e para inscrever seus vitoriosos na Cidade Dionisia; propôs
o estabelecimento de uma competição de corais ditirâmbicos para Poseidon
no Pireus, cujos ganhadores receberiam 1000 dracmas e 800 e 600 dracmas,
respectivamente, aos segundo e terceiro colocados; elevou estátuas de bronze
dos principais poetas trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes e mandou copiar
e resguardar nos arquivos públicos os textos desses mestres, além de
especificar que o secretário da cidade (grammateús6) teria que lê-los de modo
que os atores que fariam suas performances teriam que seguir à risca suas
instruções; estabeleceu novas previsões para a manipulação dos fundos
sagrados e das dedicações para os deuses; e, proibiu que mulheres andassem
em carros nas procissões para Eleusis durante os Mistérios (MIKALSON,
1998 p.23).
4
Tais honrarias tiveram origem em um decreto proposto pelo pró-democrático e
antimacedônio Stratocles, filho de Eutidemos do dēmos de Diomeia.
5
Terceiro dia de comemoração de um dos quatro festivais atenienses em honra a Dionísio,
Antestérias ou Dionisia.
6
Um dos dez arcontes da pólis, o qual preenchia as funções de escrivão e oficial de
diligências.
70 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Esta última lei, de acordo com Plutarco em Vida de Licurgo, era para que
as mulheres ordinárias não fossem diferenciadas das mais abastadas (842). A
própria mulher de Licurgo, entretanto, teria violado tal lei, levando-o a pagar
6000 dracmas como penalidade. Os Mistérios de Eleusis eram comemorações
de caráter iniciático que celebravam, principalmente, a fertilidade, já que sua
data coincidia com a chegada do verão, período em que as plantas ficam
seriamente ameaçadas pela seca devido ao rigoroso clima do Mediterrâneo.
Nessa festividade a participação das mulheres atenienses não só era permitida
como necessária, era o momento em que elas participavam da vida pública,
oportunidade para que sobrepujassem os laços sociais que as colocavam em
condições inferiores às do homem. Possivelmente, era esta a intenção da lei
licurguiana, isto é, manter a pureza do festival de Eleusis, que primava, entre
outras coisas, pela necessidade de afrouxar momentaneamente alguns laços
que pressionavam certos grupos da pólis, não permitindo que houvesse marcas
distintivas nestas ocasiões.
Paralelamente, as três primeiras leis elencadas mais acima, todas elas,
devem ser compreendidas em um contexto mais amplo, o de reativação das
principais e o de criação de novas festividades para pólis. Todas as leis e
realizações de Licurgo que diziam respeito à religiosidade, como afirma
Mikalson, objetivavam a criação de um kósmos que possibilitasse o
fortalecimento da identidade política ateniense, a qual, na então conjuntura,
indicava consistentemente sentimentos antimacedônios. Assim, não é exagero
considerar que a administração de Licurgo rivalizou com a de Péricles quanto
ao seu programa de construção (MIKALSON, 1998, p.29). Boa parte do
dinheiro da pólis havia sido usada com a defesa para a reconstrução dos muros
e da frota da cidade, principalmente após o episódio de Queronéia, no
entanto, os santuários foram igualmente beneficiados, particularmente com a
construção de novos locais e a reparação dos antigos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 71
7
Estrangeiros residentes em Atenas e que tinham alguma participação política, mesmo esta
sendo muito restrita.
8
Os epimeletai eram encarregados pela Bulé para administrar trabalhos referentes às
festividades religiosas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 73
volta de 325 a.C., o Teatro de Dionísio foi completado graças a ele, elevando
sua capacidade para cerca de 17.000 espectadores. Um pouco antes,
provavelmente em 329 a.C., Licurgo já havia reformado o Estádio
Panatenaico, reconstruindo, entre outras coisas, os seus assentos em mármore.
Percebe-se que, em ambas as reconstruções, há em comum a preocupação
com o público que comparecia às competições, respectivamente, dramáticas e
atléticas. Sabe-se que, ao final do quarto século, houve problemas relativos à
demografia em Atenas, principalmente no período logo depois dos governos
licurguianos e que levou a pólis a reduzir os direitos políticos e a instigar a
migração (PODDIGHE, 1993). Mas, mesmo assim, Licurgo aumenta a
capacidade do teatro e melhora as instalações do estádio. Em diversos textos
dos séculos V e IV a.C., há testemunhos de preocupações com os altos
números relativos à demografia e à possibilidade de stásis9 da população
ateniense, contudo, Licurgo parecia não se preocupar com isso e, na verdade,
suas intenções parecem indicar que queria mobilizar o maior número de
cidadãos em torno dos negócios da pólis. Atenas tinha, aproximadamente,
21.000 cidadãos no início da penúltima década do século IV a.C.
(PODDIGHE, 1993, p. 272-273), portanto, caberiam, praticamente, todos os
cidadãos no estádio, nos dias dos jogos. Tal festividade permitiria, desta
forma, a real confraternização de quase todo o demos e os laços entre seus
indivíduos poderiam ser fortalecidos com a emotividade das comemorações
patrióticas.
O objetivo de conseguir mobilizar o maior contingente possível de
cidadãos para os interesses da pólis fica patente quando se observa a atenção
que Licurgo dedicou à deusa patrona da cidade – Atena Polias. No decreto de
306 a.C. em homenagem a Licurgo, Stratocles falava que ele tinha adornado a
deusa com a confecção de estátuas douradas para Niké (epíteto da Atena
9
Termo que fazia referência às situações de agitação interna da pólis e denotava
“sublevação” ou “revolta”.
74 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Vitoriosa). Parece que foram ao menos sete as estátuas que tiveram o seu
kósmos remodelado com vasos de ouro e prata e joias de ouro para uma
centena de cestas, todas carregadas durante a procissão do Panatenaia. Parte
da soma gasta com os adornos teria saído das contas pessoais de Licurgo e
outra parte, cerca de 650 talentos, foi angariada de outros setores privados,
como indica uma fonte de 334 a.C. que menciona a coleta do ouro e dos
vasos para a procissão e a nomeação dos oficiais responsáveis por fiscalizar tal
projeto (MIKALSON, 1998, p.28).
Quase todas as estátuas de Nikai, exceto uma, haviam sido derretidas
para cunhagem de moedas entre os anos de 407 e 406 a.C., devido às despesas
com a Guerra do Peloponeso. Licurgo tratava, assim, em ato de piedade à
deusa, de restaurar sua honra que poderia estar manchada desde então. Sabe-
se que o templo de Atena Niké foi o símbolo da ambição da liderança de
Atenas antes da guerra e a restauração das Nikai (vitórias) claramente
significava uma tentativa de instaurar novamente um kósmos semelhante à
época de Péricles. No entanto, já em 335 a.C., um ano após o início de sua
administração, Licurgo propôs à Bulé que adornos fossem adicionados ao
templo de Agathe Tyche (Boa Fortuna), localizada provavelmente em algum
ponto dos Muros Longos que acompanhavam a estrada que ligava a cidade ao
Pireus. Esta deusa era cultuada em Atenas desde o início do século IV a.C.,
porém, foi apenas na segunda metade deste mesmo século que ela passou a ter
um templo próprio (SMITH, 2003, p. 25). Não se sabe como era exatamente
o culto de Agathe Tyche e, certamente, não apresentava relações diretas com
as celebrações que envolviam a imagem de Atena, fosse em seu epíteto Polias
ou Niké. Todavia, observando as frentes que Licurgo escolheu para
reconstruir o kósmos religioso ateniense e levando em consideração estas
últimas realizações expostas, percebe-se, claramente, que a mobilização
política licurguiana direcionava-se a um novo fortalecimento da pólis por meio
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 75
Ao próprio liturgista era dada uma coroa pelo seu serviço, mas de
modo algum seus atos beneficiavam aos outros. A gratidão pública
deveria ir para aqueles que custeavam o trirremo ou ajudado a
construir os muros da cidade, ou provisionado outros modos a
segurança pública com seus fundos privados. Assim, poder-se-ia
vislumbrar a virtude [aretén] dos doadores, mas nas liturgias é visto
apenas prosperidade para aqueles que têm custeado suas despesas
(LICURGO, Contra Leocrates, p.139-140).
10
Provavelmente fora por isso, também, que logo depois saber da morte de Alexandre os
partidários de Licurgo conseguiram apoio no dēmos para levar adiante sua participação na
Guerra Lamíaca em 323-322 a.C., que colocou a liga chefiada por Atenas – em coalizão
com os etólios, locrianos e fócios – contra as tropas macedônias de Antipatro. É o que
afirma Claude Mossé em Alexandre, o Grande: “Ele [um certo decreto] atesta que, mesmo
antes da morte de Alexandre, a maioria do demos (conjunto dos cidadãos) ateniense estava
pronta para seguir os oradores do ‘partido’ antimacedônio e iniciar hostilidades” (69).
78 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Demétrio, que fazia parte da ala perseguida por Polipercon, e que escapara à
morte por não estar em Atenas quando houve a execução de Fócion e de seus
partidários, em seu retorno, acabou participando da delegação que o então
governo democrático ateniense enviou a Cassandro para que fossem
negociadas as determinações da nova paz. Os termos diziam que Atenas
voltaria a controlar o porto do Pireus mediante a instalação de uma guarnição
macedônica no morro de Munique e a qualificação para o politeuma foi fixada
em 1000 dracmas, além da nomeação de um epimeletès (administrador)
escolhido pessoalmente pelo novo hegemon11 de Atenas. Demétrio, com quem
negociara Cassandro, acabou sendo o escolhido e passou a controlar
diretamente o governo da pólis.
A função de epimeletès em Atenas não estava vinculada à ação de legislar.
O próprio sentido da palavra apenas nomeava aqueles cidadãos incumbidos
de realizar algum serviço público de administração ou organização de
construções civis e eventos como festividades e sacrifícios. Todavia, em
diversos momentos Demétrio acabou utilizando seu cargo, uma magistratura
nova à realidade de Atenas e instituída por um macedônio, para instaurar
novas leis que provavelmente não passaram pela aprovação da Assembleia.
Isto, explicitamente, deu tons de tirania ao seu governo. Contudo, quando
analisado mais atentamente, o programa de Demétrio mostra reformas cujo
sentido apresenta certa conotação democrática, ou ao menos democratizante,
se for levada em questão a conjuntura política de sua efetivação.
As ações de Demétrio enquanto legislador, segundo Hans B.
Gottschalk (2000, p.370-371), recaíram em três setores, a saber, constitucional,
social e fiscal ou administrativo. Entre as modificações constitucionais, além
11
O significado da palavra queria dizer aquele que conduz ou aquele que comanda, mas sua
conotação vem propriamente de hegemónios, isto é, aquele que conduz as almas. Tal
referência estava ligada ao fato de a presença macedônica ter levado os gregos a não se
sentirem mais livres.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 81
12
Acusação pronunciada contra qualquer oficial público feita durante ou após a duração de
seu mandato. O caso poderia ser levado diretamente para a Ekklesia ou então para a Boule,
sua audição final poderia ser tomada na primeira ou no dikasterion.
13
Organização dos festivais dos teatros.
14
Manutenção da frota ateniense.
15
Responsável pelos custos e administração da organização dos festivais.
82 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
16
Responsável pela administração dos festivais que diferentemente dos khoregoi eram eleitos
pelo demos.
17
Fundo monetário público gasto com a organização dos festivais, sacrifícios, com
hospitalidade e com alguns cargos no governo da pólis.
18
Serviço militar prestado pelo jovem ateniense quando ingressava no corpo cívico (demos)
de Atenas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 83
19
Aristóteles dizia que a melhor maneira de a população ter acesso aos cargos públicos era
pela sorte (Política, VII, 4, 6). Em uma de suas modificações constitucionais, Demétrio
instaurou a nomeação por sorte para os cargos das magistraturas e assembleias em uma
clara tentativa de possibilitar o acesso dos grupos mais pobres à política da época, já que no
período licurguiano a arena pública de Atenas fora dominada por oradores “profissionais”
advindos de famílias ricas.
86 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
20
Foi este o caso de Zeus Sóter, que estava em ampla ascensão antes desta data e tal
ruptura fez esta divindade ganhar status nacional para o demos pirenáico. No mesmo
caminho, mas em sentido contrário, os cultos estrangeiros ali instalados, como o de Isis e o
de Afrodite Ourania, estavam penetrando lentamente na cidade e, possivelmente, seriam
tomados pelos atenienses como cultos da pólis. No entanto, o seu isolamento levou estas
divindades a crescerem em importância no Pireus e, consequentemente, a perderem sua
força no restante do território ático.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 87
mais propriamente pelo mito que os fundavam21. Havia uma procissão que
saía do santuário de Artemis Brauronia erigido na Acrópole da cidade em
direção a oeste, ao seu outro santuário em Brauron, onde as jovens atenienses
realizariam os seus rituais. Contudo, este ritual também tinha por função
fortalecer o demos ático, ligando não somente a cidade à região de Brauron,
mas unificando a identidade entre dois dos principais portos de Atenas. Desta
forma, com o isolamento do Pireus, o culto de Artemis Mounichia entrou em
declínio e, não só o santuário de Brauron acabou sendo afetado, como
também parte da força de mobilização ligada à identidade ateniense foi
desfeita.
Não era apenas por meio de suas guarnições que os atenienses sentiam
a presença do rei macedônio, a própria figura de Demétrio como epimeletès de
Atenas levava a essa sensação. Mesmo que as ações demetrianas possam ter,
provavelmente, representado para boa parte dos atenienses a vontade de
Cassandro, não se pode eclipsar o já citado programa de reforma de
Demétrio. Como frisa Mikalson (1998, p.54), Demétrio fez três importantes
mudanças referentes à religiosidade ateniense e que tiveram profundo impacto
na identidade dos cidadãos de Atenas: eliminou o serviço khoregiai dos festivais
da pólis; elaborou leis que limitavam os gastos com funerais e com
monumentos fúnebres; e, instituiu oficiais – gynaikónomoi – que fiscalizavam
algumas restrições impostas às atividades ritualísticas privadas. Ora, se a
preocupação política de Demétrio estava essencialmente vinculada à
moralidade e se o objetivo comum entre o filósofo e Cassandro era refrear as
influências dos demagogos, nada melhor do que introduzir leis que
controlassem a religiosidade pública e privada dos atenienses.
21
O herói epônimo Mounichos, do Pireus, foi o fundador do culto a Artemis na Ática.
88 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
22
A noção é utilizada para frisar o caráter extremamente religioso dos festivais, mas, de
modo geral, por todo festival ser religioso na Grécia Antiga, tal expressão acaba sendo um
pleonasmo.
23
Os khoregoi para as tragédias e para as comédias da Cidade Dionysia eram escolhidos pelo
arconte eponymous e aqueles para a Lenaia eram escolhidos pelo arconte basileus. Nos
ditirambos, que eram competições realizadas entre as dez tribos, todas elas escolhiam os
seus khoregoi.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 89
Novamente, isso não significava apenas mais economia, nas práticas ou nos
monumentos, mas indicava limitações à aristocracia ou aos ricos. Mikalson
aponta, ainda, que nesse aspecto as leis de Demétrio podiam ser análogas às
de Licurgo que impedia as ricas mulheres de caminharem em carros durante a
procissão à Eleusis (MIKALSON, 1998, p.59). Isto indica que, semelhante a
Licurgo, Demétrio mirava a unidade do demos para que o corpo político
pudesse alcançar a igualdade democrática que pregara Aristóteles25.
Lara O’Sullivan enxerga uma continuidade entre as legislações religiosas
de Licurgo e Demétrio naquilo que tange às restrições dos comportamentos
dispendiosos dos ricos atenienses. Na verdade, a historiadora mostra que as
reformas de Demétrio não estavam necessariamente em tensão com a
ideologia e as práticas democráticas, pois poderiam promover uma maior
harmonia dentro do regime democrático limitando o escopo da exibição
aristocrática (O’SULLIVAN, 2009, p.102-103). Entretanto, a grande
divergência entre os dois governos era que Demétrio estava sob a tutela
macedônica e duas de suas ordenações interferiam diretamente nos assuntos
privados da pólis, esfera que estava intimamente ligada à ideia de liberdade na
Grécia.
A moralidade privada era assunto para o chefe da família (oîkos) e a
criação de magistrados para fiscalizar tal esfera exacerbou os limites da própria
moralidade privada, os quais mormente delimitavam as fronteiras entre o
público e o privado. Nessa direção, muito mais do que coibir os gastos
excessivos com os funerais, Demétrio também interferiu no comportamento
25
“Tais são as instituições comuns a todas as democracias. Elas surgem diretamente do
princípio que se considera democrático, ou seja, a igualdade perfeita entre todos os
cidadãos, não existindo diferença entre eles que não seja apenas de número, condição que
parece ser essencial à democracia e querida pela multidão. A igualdade quer que os pobres
não tenham mais poderes que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, se não, que
sejam todos na mesma proporção de seu número, não encontrando outro meio mais eficaz
de a pólis garantir a igualdade e a liberdade” (ARISTÓTELES, Política, VII, 1, 10).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 91
26
Isso, porém, não era coisa extraordinária, pois no VI século a.C. Sólon já havia
estabelecido lei semelhante no que tangia aos comportamentos das mulheres durante as
procissões dos funerais.
92 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
coisas que lhe eram particulares, suas, e que ele dispunha como bem lhe
entendesse. Neyde Teml (1988, p.77) explica que a “família e o oîkos foram, no
tempo da pólis, considerados como um espaço absolutamente fechado,
particular, submetido à autoridade do pai e de certa forma da mãe, cujo
domínio era inviolável”. Existia um direito privado consuetudinário, sobre o
qual Aristóteles chega até a comentar, criado pelos direitos do patér e que não
deveria se misturar com o espaço público. Contudo, as reformas de Demétrio
adentraram nos limites desse espaço reservado, dando a sensação, aos
atenienses da época, de que sua liberdade privada, assim como aquela política,
havia lhes sido roubada.
Exatamente por isso que O’Sullivan enxerga a origem do sentido dessas
reformas na criação dos magistrados e em seus papéis de “forçar a
observância das leis”. Porém, ela mesma não reduz sua visão a isso apenas, e
ao relacionar o programa demetriano aos assuntos do comportamento e da
moralidade privada abre um novo caminho para a compreensão do governo
de Demétrio de Falero sob o prisma da filosofia prática, ou moral, de
Aristóteles. Concomitantemente, o campo da moral peripatética se mostrou
proveitoso a Cassandro, na medida em que serviu de álibi aos seus interesses.
Mesmo sendo pouco provável, como normalmente concorda a maioria dos
historiadores, que Demétrio tenha tentado apenas fazer melhorias na
democracia ateniense em acordo com suas convicções. No entanto, sua
legislação, principalmente aquela que tange à religiosidade, em conjunto com o
contexto de domínio macedônico sobre a Ática, levaram à desmobilização
daquela identidade política anteriormente construída no período de Licurgo.
O decreto de 306 a.C. feito por Stratocles de Diomeia refletiu bem esse fato,
cuja ocorrência foi devida, fundamentalmente, pela tensão que acabou se
instaurando entre os valores surgidos das necessidades privadas e aqueles
emanados pelo governo da pólis.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 93
27
O qual inclusive considera o campo como local de tomadas de decisões a respeito de
ordenamentos e delimitações, bem como questões de interesses comuns, e onde há
contenções por posições pelos quais estas decisões podem ser influenciadas (MEIER,
1990, p.04).
96 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
virtuosos poderiam velar pelo respeito à justiça, o qual era a condição para
que fosse possível gozar plenamente da liberdade individual e política.
Originalmente, não era em nenhum regime de governo que se pensava
quando a justiça estava em questão, mas somente no estabelecimento da
segurança garantida por direito. A sansão divina foi um trabalho paralelo,
embora precioso para que os valores fundamentais para a fundição do corpo
social pudessem ser difundidos.
Os valores criados pelas práticas de solidariedade, que quase em sua
totalidade estavam sob o campo religioso helênico, possibilitaram uma
associação sem precedentes na história do mundo e que nem a posteridade
conseguiu reproduzir. A totalidade dos cidadãos coincidia com a totalidade da
pólis, a esfera privada, neste enquadramento, acabava sendo de modo indireto
incorporada à polis, devido à ambivalência do papel de seu chefe (kúrios) que
era também um cidadão (polités). O direito (dikaion) era o campo que regulava
o acesso da esfera pública ante a esfera privada, e vice-versa, a qual era regida
pelo kúrios e seu ordenamento era essencialmente fundado nos costumes
ancestrais. Por isso, a verdadeira liberdade, que deveria ser exercida pelos
homens maiores de idade, transitava por entre esses dois espaços por meio
das práticas de solidariedade, nas quais se comungavam crenças que lhes
faziam sentir como pessoas verdadeiramente livres, adquirindo a condição de
eleutheroí (homem/cidadão livre).
A identidade política, de cidadão, não negava a de homem privado, pelo
contrário, a reclamava. Foi exatamente isso que, de maneiras contrárias,
ocorreu em ambos os governos de Licurgo e de Demétrio de Falero. No
primeiro, Licurgo realizou um trabalho de revitalização de uma identidade
política nos moldes do período clássico, por intermédio, principalmente, da
efetivação de algumas reformas religiosas. A reconstrução de um kósmos que
reorganizou a estrutura de solidariedade políade fortaleceu novamente a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 99
Referências:28
28
Todos os textos do banco de dados do Perseus Digital Library e do Hedoi Elektronikai
estão disponíveis, no primeiro, em inglês e, no segundo, em francês, além de oferecer os
textos originais em grego.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 101
SMITH, A. C. Athenian Political Art from the Fifth and Fourth Centuries
BCE: Images of Political Personifications. The Stoa: a Consortium for Eletronic
Plubication in the Humanities. 18 jan. 2003.
THEML, N. Público e privado na Grécia do VIIIº ao IVº séc. a.C.: o modelo ateniense.
Rio de Janeiro: Sette Letras, 1988. 116 p.
As diferentes interpretações do texto hagiográfico:
uma análise sobre a Vita Desiderii de
Sisebuto de Toledo (612-621)
A
s hagiografias, obras voltadas para a propaganda de centros de
peregrinação e para a edificação de fiéis, por visarem ao grande
público nos festejos e dias santos, podem mostrar-nos uma outra
realidade, ligada em grande medida mais aos anseios do hagiógrafo que à
exaltação do próprio santo, levando este a figurar como coadjuvante dentro
do relato.
O gênero hagiográfico cristão iniciou-se ainda na Igreja Primitiva
quando, a partir de documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas
oculares, eram registrados os suplícios dos mártires. Porém, a hagiografia
desenvolveu-se e consolidou-se na Idade Média, com a expansão do
cristianismo e a difusão do culto aos santos. Ainda hoje esse gênero continua
profícuo, tal como é possível verificar pelos diversos títulos que continuam a
ser publicados, principalmente pelas editoras religiosas.
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva apresenta uma clara explanação
que tomaremos por base. A autora mostra que são as hagiografias,
*
Doutorando em História / UNESP / Assis. Orientador: Prof. Dr. Ruy de Oliveira
Andrade Filho.
104 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
notar em relação aos santos foi a busca que estes empreenderam a fim de
encarnar em sua pessoa os sofrimentos de Cristo ou os milagres análogos por
ele realizados (Imago Christi), com isso, obtendo entre a população em si um
grande sucesso, graças à sua eficácia. É, não obstante, um morto excêntrico,
cujo culto se aplica em torno do seu corpo, do seu túmulo e de suas relíquias;
colocava o seu poder sobrenatural mediador a serviço dos homens e, em
primeiro lugar, dos menos brindados pela sorte, como doentes e presos; o
Santo apresenta-se como o homem das mediações bem sucedidas (LE GOFF,
1989, p.24). O santo é oriundo, na maior parte das vezes, de grupos
aristocráticos e proprietários de terras, goza de um patrimônio de
conhecimentos e relações que pode colocar utilmente a serviço dos humildes,
quer se trate de obter do poder civil a redução de pesados encargos ou a
libertação de prisioneiros injustamente detidos (VAUCHEZ, 1987, p.291).
Os pedidos que são dirigidos ao homem santo, em geral pelas
comunidades, vão desde a libertação dos males de que são afligidos (a doença,
a miséria, a guerra), até o apaziguamento das tensões existentes no seio dos
grupos e entre os clãs. E é neste domínio que o santo é induzido a empenhar-
se nos mais duros combates, que o colocam em conflito direto com os
demônios, ou seja, com aqueles que destruíam a relação harmoniosa existente,
precedentemente, entre o homem e seu ambiente (VAUCHEZ, 1987, p.291).
A eficácia da sua ação basta para manifestar a vitória de Deus sobre o mal.
Representa uma possibilidade de salvação. O pecador, oprimido pelo remorso,
está seguro em encontrar no homem de Deus o perdão de seus pecados, e
vice-versa. Os grandes Santos atraem para si um grande número de aleijados,
penitentes ávidos de perdão e consolo espiritual. No mais, Vauchez completa:
“[...] os fiéis não esperam do homem santo nem um discurso nem a
transmissão de um saber: querem milagres” (VAUCHEZ, 1987, p.292).
106 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Tendo em vista esses aspectos, é dito que a figura do santo contou com
uma grande popularidade sociorreligiosa ao longo da Antiguidade Tardia tanto
nos reinos romano-germânicos ocidentais como no Oriente bizantino. Sua
busca incessante pela santidade e pela perfeição evangélica fazia do homem
santo um modelo ideal para populações localizadas à sua volta, que o viam
como autêntico sucessor dos antigos deuses e heróis locais pagãos (BROWN,
1981, p.5). O relato hagiográfico ainda pode nos apresentar uma importante
fonte para contemplar diferentes esferas sociais da vida quotidiana em seu
contexto. A obra literária medieval, na qual se enquadra o relato hagiográfico,
como nos mostra Fernando Baños Vallejo, é um conjunto de significações
que remetem a códigos de uma natureza muito diversa (linguísticos),
relacionados com a literatura latina, ideológicos, filosóficos, teológicos e
sociais) (BAÑOS VALLEJO, 1989, p.15).
Para tornar inteligível a proposta deste estudo, é necessária a análise do
contexto em que se insere a fonte trabalhada. A época de produção da Vida e
Martírio de São Desidério1 enquadra-se dentro do chamado período visigodo,
que se estende do século V até o começo do século VIII. Dentro deste
recorte, o foco recairá, como foi dito acima, sobre a Monarquia Visigoda
Católica e, mais especificamente sobre o período conturbado que compreende
o reinado de Sisebuto 612-621, como momento em que se produziu o relato
hagiográfico, e sobre os elementos que permeiam a época do monarca, fatos
históricos que se encontram interligados e explícitos na hagiografia.
Com o abandono oficial do arianismo por Recaredo (586-601), em fins
do século VI, a fé católica transformou-se como fundamento ideológico da
1
VITA VEL PASSIO SANCTI DESIDERII A SISEBUTO REGE COMPOSITA. In:
Ioannes Gil. Miscellanea Visigothica. Analles de la Universidad Hispalense: Publicaciones
Universidad de Sevilla 1975. A partir de agora citaremos a Vita Desiderii somente como
VD acompanhado do capítulo correspondente. Utilizamos como referencial a tradução de
Jose Carlos Martin Iglesias SISEBUTO DE TOLEDO. Vida y Pasión de San Desiderio
(trad. J. C. Martín). In: CORDOÑER, C. (Dir.). CD-ROM Escritores Visigóticos y Mozárabes
Digital. Fundación Ignacio Larramendi.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 107
2
Santos Padres Espanholes II, San Leandro, San Isidoro, San Fructuoso. Reglas monásticas de
la Espanhã visigoda. Los tres libros de las Sentencias. BAC. Madrid. p.496. A partir de agora
citaremos o referido documento com o Número do Livro, o Capítulo e a passagem
correspondente.
114 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Nessas palavras, o bom rei é aquele que age corretamente e que não
sucumbe ao pecado, sabendo dirigir a si mesmo e aos seus súditos com o bom
juízo da razão e, sendo um bom rei, como mostra a passagem seguinte, é,
pois, este um favor concedido por Deus, e quando mau, resultado dos crimes
do povo, pois ao afastarem-se de Deus os povos recebem o regente que seus
pecados merecem (SENTENCIAS..., 3, 48, 11).
Na caracterização que Sisebuto faz de Teodorico e Brunhilda no
decorrer do relato hagiográfico, vemos claramente o oposto do bom monarca
de Isidoro. Os reis são caracterizados como aqueles que semeiam o mal,
aliados do demônio e de suas obras. Teodorico é nomeado como protetor do
feiticeiro (VD, 8) caracterizado como indivíduo venenoso, de memória
deturpada, cheio de vícios, com ânsia por riquezas e Brunhilda, na confissão
de Justa (VD, 9) figura como aquele que orquestrou todo o plano,
convencendo a última com sua vã persuasão levando-a à perdição eterna.
No capítulo XLIX, intitulado “A Justiça dos Príncipes” (De Iustitia
Principum), Isidoro exalta os ideais de humildade, justiça e clemência,
mostrando como seria o comportamento de um bom monarca:
E completa:
REFERÊNCIAS:
B
aseado em estudos sobre a hierarquia da Igreja Católica, no que diz
respeito a sua chamada autocompreensão (MANOEL, 2004)1, este
trabalho tem como objetivo estudar as relações, mudanças e
direcionamentos assumidos pelos discursos dos Pontífices Pio IX (1846-1878)
e Leão XIII (1878-1903), analisando suas especificidades no período de 1864,
com a publicação da encíclica Quanta Cura, que condenava os erros da época
(modernidade2), a 1891, data da publicação da encíclica Rerum Novarum, que
buscava um certo diálogo com a questão social. A importância desta análise
encontra-se no interesse em se estudar a História Eclesiástica e as suas relações
com a sociedade a partir da análise de discursos.
De acordo com Aline Coutrout (1996, p. 340), os posicionamentos e as
declarações da hierarquia são formas notáveis de intervenção da Igreja na
sociedade, pois tais declarações evidenciariam o perfil de uma Igreja e suas
posturas de adesão ou rejeição de prerrogativas desta mesma sociedade. A
*
Mestranda em História /UNESP/Assis. Orientador: Dr. Ricardo Gião Bortolotti
1
Para maiores detalhes acerca da noção de “autocompreensão” da Igreja, consulte O
Pêndulo da História - tempo e eternidade do pensamento.
2
O termo moderno, segundo Le Goff, “[...] torna-se pejorativo no século XIX; os chefes
da Igreja e os seus elementos tradicionalistas aplicam-no quer à teologia nascida da
Revolução Francesa e dos movimentos progressistas da Europa do século XIX (o
liberalismo e, depois, o socialismo) quer – o que, a seus olhos, é mais grave – aos católicos
seduzidos por estas idéias ou apenas as combatam com tibieza [...].”(LE GOFF, 2003, p.
186).
124 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
São dois termos criados para uma mesma função – defender e proteger
o status da Igreja Católica – e que permeiam a Quanta Cura e a Rerum Novarum
em seus respectivos conteúdos. Porém, o que caracteriza estes documentos
como chaves de compreensão no presente estudo são, justamente, os
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 125
3
Para a Igreja o “progresso” tem um caráter transcendente, é o progresso da alma em
direção à salvação, mas com as filosofias laicas e secularizadas esse caráter foi banido, o
progresso torna-se essencialmente laico, como apresenta Manoel (2004).
126 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Bispo Von Ketteler4, a quem Leão XIII e a Rerum Novarum devem bastante.
Outra razão se encontraria na própria conjuntura do primeiro período da
segunda metade do século XIX, que proporcionava à classe operária uma
possível estabilidade econômica, sustentada fragilmente por possíveis migalhas
que caíam do advento do capital, ainda que o mesmo período seja considerado
como “século da miséria operária” (GODOY, 2006, p. 120).
As encíclicas de Pio IX, que alertavam contra o socialismo, geralmente
se confundem com aquelas que combatiam o liberalismo, justamente por
considerar um a ramificação do outro. A preocupação do Papa se concentrava
mais na tentativa de combater qualquer tipo de liberdade secular que colocaria
em risco a Igreja Católica. Em Pio IX, o capitalismo era visto como o criador
do liberalismo, que, por sua vez, não estaria restrito apenas à liberdade das
práticas econômicas, mas à liberdade de qualquer laço com a Igreja e a
religião. A seguir destaca-se um trecho da Quanta Cura, de Pio IX:
4
É importante que se perceba que as origens do catolicismo social são anteriores à carta
papal de LEÃO XIII. As preocupações com a questão social foram desenvolvidas pelo
Bispo Von Ketteler, na Alemanha, considerado um relevante precursor reconhecido pelo
próprio LEÃO XIII. Tanto Zagueni (1999) quanto Marchi (1989) afirmam isso.
128 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Eric Hobsbawm (2007), por meio das suas Eras, do século XIX,
salienta que tais obras procuram evidenciar uma situação de desconforto da
Igreja perante os tipos de aspirações anticlericais em um processo
secularizante, sob o qual a sociedade se encontrava.
Hobsbawm, em suas Eras, analisa o conflito entre a Igreja e a
modernidade no decorrer do século XIX. Percebe-se que o envolvimento da
sociedade com as ideologias laicas e o pensamento secularizado desenvolve-se
conforme o alcance dos desdobramentos das grandes revoluções
(HOBSBAWM, 1998). A religião tradicional, no início do século, ainda era
muito ligada às massas, portanto, o vínculo com a Igreja Católica ainda se
mantinha forte. Entretanto, pode-se dizer que no começo do século houve
um despertar para as ideologias secularizadas, mesmo que somente por parte
de uma minoria elitizada (HOBSBAWM, 1998, p. 243).
Já na passagem da primeira para a segunda parte do século XIX, nota-
se a ebulição ocasionada pela chamada Primavera dos Povos (1848), mas também
a frustração de seu fracasso logo em seguida e a relação disso nos movimentos
de esquerda. Outro fator que contribuiu para hibernação e apostasia da classe
trabalhadora foi o advento do capital, que propiciou altas taxas de emprego,
aumentos salariais, tudo que estivesse ao alcance de contentar as camadas
populares sem prejudicar os lucros dos capitalistas (HOBSBAWM, 2007, p.
56).
Além dessa possível hibernação política, o autor acrescenta que a
descrença pública em Deus tornava-se relativamente fácil no mundo
ocidental, uma vez que muitas ideias do mundo cristão estavam sendo
solapadas pela ciência e as ideologias seculares (HOBSBAWM, 2007, p. 375.).
O diálogo com o mundo moderno pode ser considerado quase como
inexistente, como se pode notar pelas palavras do próprio autor:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 129
Referências
Fontes
LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum- sobre a condição dos operários (1891).
Disponível em
http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=encic
licas&artigo=rerumnovarum. Acesso em: 24 jun. 2007.
PIO IX, Papa. Quanta Cura - sobre os principais erros da época. (1864). Disponível
em
http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=encic
licas&artigo=quantacura&lang=bra. Acesso em: 01 out. 2007.
Bibliográficas
Introdução
D
o modus vivendi do poeta, como subsídio para compreendermos
seu fascínio obsessivo em cantar os temas da vida cotidiana de
modo subjetivo e consagrar-se como poeta da juventude, do
amor, da amizade, do vinho – importa gozar o dia de hoje, o colher o dia que
foge, como se fosse o último, carpe diem –, tentaremos demonstrar, por meio
da análise de alguns versos, a recorrência do tema festa que perpassa boa parte
do seu corpus poético. Com rápidas considerações acerca das diversas
ocorrências desse tema que, para o poeta é o lugar onde se cultivam todos os
valores humanos, ou seja, o amor, a música, o canto, a dança, enfim, a
amizade, pretendemos dar a conhecer alguns episódios, algumas figuras
emblemáticas da história mítica cultural romana.
Tempus Aureum
Carpe diem
Condenados a deixar o mundo que lhes foi dado pelos deuses – como
palco privilegiado para a sua realização – os homens só têm uma forma de
perpetuar no tempo a sua memória: viver a vida. Se a vida se assemelha à flor
do campo que, mal nasce, logo traz consigo o gérmen da morte, torna-se
urgente celebrá-la. E Horácio faz isso com o seu carpe diem, agarrar a vida na
hora que passa, antes que o tempo, na sua marcha inexorável, ponha termo à
existência.
Na brevidade da vida humana, há alguns dias fugazes em que a
felicidade fulgura. É preciso colher esses dias, que se escoam, usufruí-los
como se fossem frutos da árvore da felicidade, antes que chegue a velhice e a
144 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
morte. Essa célebre teoria do carpe diem é que vai fundamentar o processo da
festa, que se goze o dia que passa – especialmente o dia da festa: carpe diem
quam minimum credula postero (1,11) “colha o dia e não te fies nunca, um
momento sequer, no dia de amanhã.”
Tradução:
Tradução:
Tradução:
Praza aos céus, o bom guia, dês a Itália
Longos dias de festa! Assim dizemos,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 149
Tradução:
os deuses concederam aos homens – Júpiter reina nos céus e o divus Augustus
reina na terra.
Nos dias de festa, livre do trabalho, Horácio sempre se pergunta
retoricamente: como celebrar um dia de feriado? “quid potius faciam dies festo”. E
só há uma resposta: organizar um festim, porque é no clima da festa que,
participando dos alegres dons de Baco, se cultivam, pelo poder do vinho,
todos os valores humanos que integram a visão de mundo do poeta: o amor, a
amizade, a conversa amena, a música, o canto, a dança.
Mas quem é o herói do festim? O herói do festim é o vinho, presente
de Baco. O vinho reconforta a alma, livra da dor e traz prazeres. O uso do
vinho se integra sempre no contexto de uma festa. Também a lira, com sua
suavidade, deve participar da festa, não os instrumentos frenéticos, selvagens,
ruidosos.
Que significa isso para Horácio? Se não vejamos na Ode 3,28:
Tradução:
Nesse poema fica bem claro que Horácio é mesmo o poeta da festa:
Festo quid potius Neptuno faciam? “Que farei de melhor no dia festivo de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 153
Miraculum
Pode-se admitir que o seu carpe diem e o seu realce ao tema festas sejam
as máximas orientadoras de Horácio, que testemunha a presença contínua de
milagres em sua vida: ainda menino, a brincar sozinho pelas trilhas do monte
Vulture, bem longe de casa, sentindo-se cansado, deita-se no chão e
adormece. Nisso, vieram do céu pombos fabulosos que o cobrem com ramos
de ouro e murta, protegendo-o contra as serpentes e os ursos que infestavam
a região; em outra ocasião, salva-se, por intervenção divina, da queda de uma
árvore nefasta que quase o mata.
Com frequência, recorda que sobreviveu à batalha de Filipos, na
Macedônia, por um favor divino. Aí pressentindo a derrota, para não morrer,
abandona o escudo (ele ocupava um alto cargo de tribuno militar encarregado
de comandar o exército) e foge sob o amparo de Mercúrio (deus dos
viajantes) e das Musas que o escondem dentro de uma densa nuvem. Esse
episódio, ele conta repetidas vezes, não por cinismo, descaramento, mas para
simbolizar sua repulsa radical pela guerra funesta funebre bellum. Quando
voltava da Grécia para a Itália, escapa, por milagre, de um naufrágio. E ainda,
uma vez, cantando seu amor por Lálage, defronta-se com um terrível lobo
que, no entanto, foge dele, desarmado (1,22):
Tradução:
Considerações Finais
isso, com toda razão, ele define a si mesmo como poeta da festa: nos convivia
cantamus “nós cantamos os festins...”.
Finalmente, parece podermos concluir que há, em Horácio, a presença
de um engajamento político e uma identificação natural para com a política de
Augusto, pois sua obra, principalmente as Odes, as suas festas manifestam,
denunciam um veículo, uma propaganda da ideologia imperial que se emerge a
partir de Augusto. Suas festas explicam, diríamos até justificam, os métodos
pelo princeps para assegurar a paz.
Referências:
O
século XVI, na Europa, foi marcado por um momento de
renovação, de revisão de conceitos estéticos, religiosos,
científicos. Após um período de dominação profunda da religião
na vida cotidiana e política, surgiram movimentos de reforma religiosa que
visavam a uma ruptura da supremacia católica vigente. Como forma de
superar essa situação, reavendo seu controle, a igreja católica deu início a um
outro movimento, o da contra-reforma. Uma das instituições que faziam parte
desse movimento é a Companhia de Jesus, uma ordem religiosa que buscava
reaver a força do catolicismo.
As descobertas geográficas dos séculos XV e XVI abriram novos
horizontes ao conhecimento do homem religioso. Com o descobrimento do
Japão, território que possuía uma taxa demográfica muito superior a de
Portugal, os eclesiásticos portugueses identificaram uma possibilidade de
conversão de novos fiéis para a “santa igreja“, que há tempos perdia
gradativamente seus membros. Enviando os primeiros missionários nos anos
seguintes ao descobrimento dessa região, deram início a uma campanha pela
cristianização desse outro país. Idealizadores desse projeto, os representantes
jesuítas eram insistentes na defesa daquilo que pregavam, tendo obtido
*
Mestranda em Letras/USP/São Paulo. Orientadora: Dr.ª Eliza Atsuko Tashiro.
162 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
Descrição feita pelo professor na Enciclopédia Virtual da Expansão Portuguesa do Centro de
História de Além-Mar (CHAM), constando no seguinte endereço:
www.fcsh.unl.pt/cham/eve. João Paulo Oliveira e Castro é professor da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e é membro do CHAM, pelo
qual assumiu a posição de investigador responsável do projeto “Jesuítas portugueses no
extremo oriente nos séculos XVI- XVII” pelo mesmo centro de pesquisa.
164 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
mulher, que deveria manter-se casta até o dia de seu casamento para ser
considerada mulher direita.
Já questões mais simples de adaptação, como o fato de deixar de comer
carne vermelha por não ser, por lá, um costume e causar certa estranheza; a
higiene, que para os japoneses era tão importante; a participação em
cerimoniais que eram valorizados pelos japoneses, como a cerimônia do chá;
e, para tanto, prestar atenção às suas normas a fim de não cometer gafes
quanto à etiqueta japonesa. O que gerava muita conturbação era, justamente,
até que ponto essa adaptação, essa aceitação de um modelo japonês, não
implicaria no desgaste e na corrupção dos preceitos defendidos pelo
cristianismo.
Essas impressões e observações dos missionários referentes aos
costumes e às características dos japoneses são rastreáveis nos seus relatos e
cartas, os quais escreviam com certa regularidade, tendo como remetente
Portugal e outras regiões ocupadas, como no caso da China, onde estas cartas
eram copiadas como forma de precaução a um possível extravio ou acidente.
Essa produção literária possui tanto a função de corresponder a uma
expectativa crescente por parte da população europeia, de inteirar-se quanto a
esses mundos exóticos, como também para a formação de novos padres, que
porventura se juntariam ao contingente nessas missões asiáticas.
Neste artigo, pretende-se tratar de dois missionários, em especial, os
padres Gaspar Vilela e Luís Fróis. Gaspar Vilela (1526-1572) chegou ao Japão
com sua delegação, em 1956, ou seja, nesse primeiro momento da missão
jesuíta em território japonês, que se iniciara em 1549, caracterizada como uma
fase de aprendizado e adaptação dos missionários a essa outra realidade.
Quando se trata de um estudo sobre a presença missionária no Japão, Vilela
não recebe papel de destaque, ficando um tanto quanto ofuscado pela
grandiosidade do trabalho de outros missionários que por lá conquistaram
166 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Líder responsável por um território semiautônomo sob seu domínio, denominado Han,
frequentemente relacionado como um senhor feudal da Idade Média europeia. Esse título
significa Grande Nome, o que já demonstra o seu poder.
172 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
seja com emendas e editos que eram elaborados no sentido de uma proibição
da prática da religião e expulsão dos ocidentais. Durante algumas décadas,
viveram em meio a essa realidade conflituosa, até a expulsão de todos os
ocidentais ser colocada, efetivamente, em prática pelo Xogunato3 que
assumira, iniciando-se um período de fechamento e reclusão do Japão em
relação ao contato externo, que duraria mais de 200 anos, denominado Era
Edo.
Conclusão
3
Governo do Xôgum, líder de caráter militar que possuía poderes até superiores aos do
imperador.
174 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
Helena RAGUSA*
A
partir da segunda metade do século XVI, um grande fluxo de
judeus Sefarditas1 chegou ao Brasil fugido das perseguições
ibéricas. O objetivo era se livrar do estigma de cristãos-novos, sem
que fosse preciso se adaptar a uma realidade muito diferente daquela que já
estavam habituados, mantendo a língua e a organização social, como foi o
caso do Brasil que possuía tais características. (VALADARES, 2005, p.83).
Ao serem expulsos da Espanha no ano de 1492, os judeus também
denominados de Sefaraditas, ou conforme o termo hebraico antigo
Sepharads2, abrigaram-se em Portugal, e, conforme os estudos de Ronaldo
Vainfas e Jaqueline Hermann (2005), os mesmos teriam se deparado com uma
*
Mestranda em História /UEL/Londrina/Bolsista: CAPES. Orientadora: Profª. Drª. Ana
Heloisa Molina.
1
De certo modo os judeus denominados de Sepharad, seriam aqueles oriundos da Espanha,
que ao serem expulsos do país em 1492, estabeleceram-se em Portugal, onde a questão
judaica, pelo menos naquele período era menos problemática.
2
Entende-se que o nome Sepharad, originalmente, significasse Espanha, e os sefaradim
seriam os judeus de origem espanhola ou portuguesa. Atualmente, o termo foi ampliado, de
modo a incluir muitas comunidades judaicas em partes do mundo de fala árabe, que apesar
de não possuírem descendência espanhola, teriam adotado o rito espanhol (ASHERI,
1995).
178 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
A importância dos judeus nos primeiros tempos do Reino foi grande, tendo em vista a
batalha travada contra os muçulmanos e a necessidade de povoamento das terras
conquistadas (VAINFAS; HERMANN; 2005, p. 28).
4
Em seu estudo sobre a influência judaica na língua portuguesa, Glasman (2005), afirma
existir uma significativa probabilidade estatística de brasileiros descendentes de ibéricos,
principalmente portugueses, terem alguma ancestralidade judaica. Os judeus (além dos
cristãos-novos e dos cripto-judeus ou marranos) chegariam a constituir 20 a 25% da
população local.
5
Ronaldo Vainfas e Ângelo A. F. Assis em A esnoga da Bahia: cristãos-novos e criptojudaísmo no
Brasil quinhentista, afirmam existir uma controvérsia quanto à identidade cristã-nova de
Fernão de Noronha. De qualquer forma, o mesmo teria liderado um consórcio de cristãos-
novos no Brasil colonial.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 179
6
Anita Novinsky, tida como pioneira, abriu novos horizontes para a pesquisa acerca da
questão judaica no Brasil ao estudar as perseguições sofridas pelos judeus no século XVII,
na obra Cristãos-novos na Bahia: a inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992.
7
O conceito de cultura ao qual nos referimos seria aquele defendido por Geertz (1989) a
partir de Max Weber, ou seja, como uma teia de significados.
8
Esse distanciamento dos cristãos-novos com a identidade judaica não anula o fato dos
mesmos “[...] fazerem parte da história judaica, uma vez que eram considerados como
180 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
possível perceber que a prática da tradição judaica não foi abandonada, e aos
poucos, os cristãos-novos, trataram de inseri-la na esfera pública à qual
pertenciam.
Pesquisando sobre a religiosidade popular no Brasil colônia, a
historiadora Laura de Mello e Souza (1986) enfatiza a existência do
sincretismo religioso, os traços católicos estavam misturados a outras formas
de crença, entre elas o judaísmo. Segundo ela, toda a multiplicidade de
tradições, era vivida, inseria-se no cotidiano das populações e, nesse contexto,
a prática judaica não fugia à regra.
Para os pesquisadores que se dedicam a investigar a presença judaica no
Brasil, e que admitem a formação da sociedade brasileira como um processo
diversificado, compreender tais relações, bem como a trama enredada por
cada indivíduo dentro delas parece ser um dos objetivos principais. Por meio
da ação, assim como do discurso, foi possível perceber os cristãos-novos, se
mostrando uns aos outros, se revelando.
Devemos ressaltar, porém, que tal tarefa torna-se um desafio, uma vez
que o lugar que os cristãos-novos de fato ocupavam na sociedade em questão,
não é fixo ou estável. De acordo com Valadares (2007), as dificuldades são
muitas, como o fato de não serem reconhecidos, ao serem muitas vezes
confundidos com os portugueses que aqui se encontravam; ou, o mecanismo
de assimilação criado pela metrópole portuguesa, no intuito de apagar uma
etnia não desejável; ou ainda, a própria missão de cristianizar9, inserida como
objetivo principal do projeto colonizador português do Brasil, no século XVI.
Contudo, tais desafios em torno da pesquisa sobre os cristãos-novos no
Brasil têm, na verdade, despertado o interesse de estudiosos que buscam
judeus pela comunidade ampla, e pelo Tribunal do Santo Oficio e mantinham uma
memória judaica.” (GORENSTEIN, 2005, p. 156).
9
É certo o desejo de enriquecimento de Portugal em relação ao Brasil, porém, cristianizar
era tão importante quanto.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 181
10
Na definição de Carvalho (1992, p.35) as listas dos autos-da-fé, constituem-se como
documentos manuscritos pelos padres notários do santo ofício do século XVII, e são quase
todas impressas. Em seu conteúdo estariam os nomes dos condenados com os seguintes
dados: idade, profissão, filiação ou matrimônio, a profissão do pai ou marido, local de
nascimento e domicílio, condenações anteriores e a sentença que cada um deveria receber.
182 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
13
Em sua obra intitulada Inquisição: prisioneiros do Brasil séculos XVI a XIX, Anita Novinsky
(2009) afirma que os cristãos-novos representavam o maior número de prisioneiros do
Brasil, segundo a historiadora, constituíam 1.076 presos entre homens e mulheres. A autora
ainda constata ter sido feito o maior contingente de aprisionados na primeira metade do
século XVIII, 555 pessoas, também entre homens e mulheres.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 185
Considerações Finais
Colonial, evitar que os traços deixados pela sua cultura na sociedade brasileira
sejam apagados.
Sendo assim, não resta dúvida de que o lugar histórico que tais
personagens ocupam na História do Brasil está indiscutivelmente em todas as
esferas da sociedade que aqui se formava, indo além do espaço
socioeconômico, influindo grandemente no seu dia a dia.
Como já apontado, a historiografia brasileira, até meados do século XX,
pouco se ocupou com o estudo desses agentes, “[...] as próprias exclusões,
relegações e marginalizações, constituem uma rica variedade de especulações
históricas” (GALLAGHER; GREENBLATT, 2005, p.96).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 187
Referências
O
texto tem por objetivo apresentar o conflito interno que ocorreu
entre os grupos católicos (conservadores e progressistas) em anos
ditatoriais. Procura-se, por meio do discurso analisado nos
artigos de duas revistas integristas, a representação histórica de um passado
recente, marcado por uma mudança estrutural na Igreja brasileira, diante das
transformações impostas pela sociedade a partir dos anos 50, com o processo
de urbanização e industrialização e com a expansão dos ideais socialistas em
todo continente americano. Dessa forma, por meio da representação do
anticomunismo e do antimodernismo dos grupos Hora Presente e
Permanência, pretende-se traçar um panorama histórico das décadas finais do
século XX, na tentativa de se compreender o fenômeno católico nas suas
interfaces com a sociedade brasileira.
1. Contextualização Histórica
*
Mestrando em História/ UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Ricardo
Gião Bortolotti.
194 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
Para Simões (2006, p. 3), a neocristandade foi projeto restaurador da Igreja católica no
início do século devido à crescente laicização dos valores e pelo avanço de outros cultos
religiosos, como o protestantismo e o espiritismo. A resposta da Igreja se deu mediante a
proposta de instaurar uma Neocristandade, “uma ordem econômica, social e política sob a
direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, visando reconduzir a sociedade aos
valores morais e culturais do cristianismo católico e estabelecer o “Reino Social de Jesus
Cristo” – ideal que orientou o pontificado de Pio XI (1922-1939) e que, em terras
brasileiras, teve como principal articulador o cardeal Dom Sebastião Leme (1930-1942).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 195
2
Juventude Universitária Católica.
3
Juventude Operária Católica.
4
União Nacional dos Estudantes.
196 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
7
Mater et Magistra (1961) e a Populorum Progressio (1967).
198 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
A revista criada pelo grupo Hora Presente, com sua primeira publicação
em setembro de 1968, em São Paulo, recebeu o nome do grupo que o criou.
Seus artigos caracterizavam-se por trazerem assuntos relativos aos fatos
políticos da ditadura e sobre as ações políticas dos grupos progressistas e
comunistas. Não possuía um líder específico e o grupo não contava com a
participação de religiosos na sua redação.
O periódico foi dirigido por Clovis Leme Garcia até o último número
de sua publicação. Sua redação era composta por vários intelectuais que
atuavam no grupo e, consequentemente, escreviam para a revista Hora
Presente8. Seus escritores receberam forte influência dos grupos integristas
estrangeiros, especialmente das revistas católicas francesas9.
Segundo Pe. Charles Antoine (1980), que escreve sua obra no contexto
de criação das revistas, as análises contidas em Hora Presente tratavam dos
vícios do sistema democrático brasileiro e apoiavam o regime militar.
Em relação à revista do grupo do Rio de Janeiro, Permanência nasceu em
outubro de 1968 e também recebeu o nome do grupo. Ao contrário de Hora
Presente, os artigos contidos em Permanência eram de cunho teológico e
8
Entre eles estavam: José Guarany, Marcondes Orsini, José Pedro Galvão de Souza, Adib
Casseb, Clovis Lema Garcia, José Fraga Teixeira de Carvalho, Lauro de Barros Sicicliano,
Italo Galli, Ruy de Azevedo Sodré e Alfredo Leite. Alguns artigos da revista também eram
escritos por membros da revista Permanência, como: Gerardo Dantas Barbosa, Leonardo
Van Acker, Nilo Pereira, Armando Dias de Azevedo, Claudio de Cicco, Gladstone Chaves
de Mello, Pedro Kassab e Luiz Delgado.
9
Vários escritores das revistas Permanences, Itinéraires, La Pensée Catholique e L´Homme
Nouveau, escreveram para a revista.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 201
criou, nas décadas de 1920, o Centro D. Vital e a revista A Ordem. Tal grupo
se caracterizou pela sua posição contrarevolucionária, “[...] em defesa da
ordem cristã na sociedade e sua intransigência ao pensamento moderno em
favor da teologia católica” (ANTOINE, 1980, p. 17).
Entretanto, logo após a Segunda Guerra Mundial, surgem as primeiras
fissuras no catolicismo brasileiro. Como expõe Rodrigo Coppe Caldeira (2004,
p. 7-8), de um lado, têm-se grupos preocupados com a problemática social, o
que os levou a uma tendência política de esquerda; de outro, grupos
preocupados em manter a “civilização ocidental cristã” e em combater o
“comunismo ateu” e a problemática religiosa da modernidade.
Com a ruptura constitucional, provocada pelos militares em 1964, se
acentua mais a cisão entre os católicos. Nesse momento, observa-se a
formação de vários grupos conservadores que serviram de apoio ao regime
instalado. Entre os mais significativos se destacaram os grupos Hora Presente,
Permanência e a TFP12, este último com sua revista Catolicismo, sob a liderança
de Plínio Corrêa de Oliveira.
Sendo assim, percebe-se uma forte cisão dentro da Igreja católica
brasileira ocasionada por fatores históricos que levaram os grupos
conservadores a se posicionarem contra os comunistas, a modernidade e os
próprios grupos progressistas da instituição católica. Cabe, portanto, a análise
desse período histórico por meio das representações dos setores
conservadores da Igreja católica contidas nos artigos das revistas Hora Presente
e Permanência.
12
Tradição, Família e Propriedade, movimento criado por Plínio de Oliveira em 1960.
204 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
13
Hora Presente, ago. 1969, p. 27.
14
São inúmeros os artigos que tratam, especificamente, sobre a crise da autoridade do Papa
no mundo moderno, entre os quais se destacam: “A Infalibilidade do Papa”, escrito por
Hubert Saint Jacques (Hora Presente, fev. 1970, p. 63-83); “A Crise de Autoridade e o
Democratismo” (Permanência, jun. 1969, p. 6-18).
15
Artigo de Apresentação da Redação. Permanência, jun. 1969, p. 3.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 207
16
“Concílio, Ano Zero”. Hora Presente, nov./dez. 1968, p. 77.
17
“O Velho Modernismo de Cara Nova”. Hora Presente, jan./fev. 1969.
208 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
18
Entre os artigos se destacam: “A Pílula e a Emancipação da Mulher”, escrito por Alfredo
Leite (Hora Presente, set./out. 1968, p. 193-213); “Alcance e Obrigatoriedade da Humanae
Vitae”, escrito por Bernardo de Monsegú (Hora Presente, out. 1970, p. 187-237).
19
Destacam-se os seguintes artigos: “Sexo, Simplesmente” (Hora Presente, jan./fev. 1969, p.
211-223); “A Subversão Agora se Chama Sexo” (Hora Presente, fev. 1970, p. 29-39);
“Intimidade e Publicidade”, escrito por Gustavo Corção (Permanência, nov. 1968, p. 11-17).
20
Como exemplo, cita-se o artigo escrito por Henri Caffarel, sobre a importância de uma
educação cristã para que se evite a subversão dos jovens: “Filhos Morrendo de Fome”
(Permanência, jan. 1969, p. 73-75.
21
Artigo de Apresentação da Redação, Permanência, fev./mar. 1969, p. 2-3.
22
“O Momento Político: Abertura para o nada?”. Hora Presente, ago. 1969, p. 211-213.
23
“A Revolução à Procura de si mesma”. Hora Presente, fev. 1970, p. 21-28. A revista cita o
discurso proferido pelo General Garrastuzu Médici, no dia 07/10 de 1969, que propôs o
reerguimento político do Brasil por meio da efetivação dos princípios cristãos da cultura
ocidental.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 209
4. Conclusão
24
Hora Presente, set./out. 1968, p. 19.
210 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências
A
década de 1980, concomitantemente ao fim do regime militar no
Brasil, foi marcada pelo renascimento da vida pública brasileira. Foi
neste contexto que as igrejas pentecostais apareceram como novos
atores no campo político. Além dessas transformações ocorridas nos campos,
social e político, nos anos 1970 e 1980, ocorreram importantes mudanças na base
teológica pentecostal com a introdução de novas correntes provenientes dos
Estados Unidos, que são a Teologia da Prosperidade e a Teologia do Domínio.
Essas novas linhas teológicas trouxeram transformações ao padrão ascético
pentecostal e, consequentemente, à forma como estes passaram a se relacionar
com o político e o social, oferecendo substrato teológico para seu engajamento
político-partidário.
Embora já se façam presentes no Brasil há quase um século, foi somente
nas últimas décadas do século passado que as igrejas pentecostais1 passaram a
ganhar visibilidade social, aumentando seu espaço de atuação para fora do campo
*
Mestrando em História /UNESP/Assis. Orientador. Dr. Sidinei Galli.
1
Esse movimento religioso distinguia-se do protestantismo por enfatizar a busca pela
santidade e o batismo com o Espírito Santo, que seria evidenciado pela glossolalia. O nome
“pentecostalismo” é uma alusão ao que se entende ter sido um episódio registrado na Bíblia,
214 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
em Atos 2:1-4, ocorrido com os primeiros cristãos, no primeiro século, no dia da festa judaica
do “pentecostes”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 215
2
Embora, o pastor Mário de Oliveira já houvesse sido eleito deputado estadual, em 1982, sua
candidatura não passou de uma atitude isolada. Já nas eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte de 1986, os pastores Mário de Oliveira e Jayme Paliarin, contaram com o apoio
institucional para se elegerem a deputados federais.
218 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
Disponível em:< http://www.ieqcedsp.com.br/portal/novidades/cidadania.asp>. Acesso
em: 26 set. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 219
contexto, enquanto que a Igreja Católica aparecia como um dos pontos de luta
pela democracia, as igrejas pentecostais eram tidas como defensoras dos regimes
autoritários então em curso em diversos países da América Latina.
O sociólogo Cândido Procópio Ferreira Camargo, no livro Católicos,
protestantes e espíritas, semelhantemente a D’Epinay, associou a expansão
pentecostal no Brasil ao “processo de desorganização social” decorrente do
declínio da sociedade rural brasileira. Segundo o autor, a história do
protestantismo brasileiro pode ser dividida em dois momentos: o primeiro,
denominado de “protestantismo de imigração”, teve início com a chegada dos
imigrantes europeus protestantes, especialmente alemães, que vieram para o
Brasil nos séculos XVIII e XIX. O segundo, denominado “protestantismo de
conversão”, teve início com a atuação de missionários norte-americanos, a partir
da segunda metade do século XIX. É neste último que o pentecostalismo está
inserido.
Para o autor, a expansão pentecostal está diretamente ligada ao processo
de êxodo rural e ao inchaço dos centros urbanos que marcaram a dinâmica social
brasileira no século XX. Esses processos ocasionaram para os novos habitantes
das cidades uma série de dificuldades de acomodação aos padrões de
comportamento adequados à nova sociedade urbana em rápido processo de
industrialização. O crescimento pentecostal se justificava “pela possibilidade que
[este] apresenta a seus adeptos de preencher necessidades e aspirações dos que se
encontram envolvidos em um processo acelerado de mudança sociocultural”
(D’EPINAY, 1970, p.148).
O pentecostalismo cumpriria duas funções, a primeira, de integração
social, ao restabelecer vínculos sociais comunitários, e a segunda, “terapêutica”,
ao oferecer salvação e cura ao corpo e à alma, conferindo um sentido espiritual a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 221
todos os eventos que perpassam a vida humana. Para o fiel, todas as dificuldades,
não passam de “provações” que podem ser vencidas pela fé. O autor oferece a
conclusão de que o pentecostalismo trouxe uma reorientação de conduta, em
termos sacrais, aos que se encontravam despreparados para participar de modo
efetivo da nova sociedade urbano-industrial (D’EPINAY, 1970, p.148).
Para os autores acima citados, o pentecostalismo crescia porque oferecia
uma resposta religiosa adequada à situação de anomia e desestabilização a que
estavam submetidos os segmentos populacionais privados das formas
tradicionais de organização econômica e social, reproduzindo as relações
autoritárias desenvolvidas no mundo rural.
Outra perspectiva de análise do pentecostalismo, surgida na década de
1970, foi proposta por abordagens que, partindo de uma matriz teórica marxista,
procuraram tratar o pentecostalismo “em sua relação com a organização
capitalista das relações de produção” (ALVES, 1978, p.126).
Francisco Cartaxo Rolim (1976) em sua tese de doutorado intitulada
Pentecostalismo: gênese, estrutura e funções, criticou o posicionamento téorico-
metodológico adotado por D’Epinay e Camargo. Para Rolim, a expansão
pentecostal e suas relações com a sociedade devem ser pensadas para além das
mudanças socioculturais e dos processos de urbanização e industrialização. Esse
fenômeno religioso deveria ser visto com base em uma perspectiva dialética, “à
luz da sua inserção em uma totalidade social, para daí se ter uma visão interna e
poder discernir sua significação na sociedade” (ROLIM, 1976, p.362).
Para o autor, a estrutura religiosa pentecostal mostra-se de grande
importância para a sua expansão. Sem uma “divisão social do trabalho religioso”,
ela abre-se às camadas marginalizadas da população, permitindo-lhes acesso aos
seus cargos eclesiásticos, e também, conclamando-as “para o trabalho religioso
222 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
Segundo Rolim, o pentecostalismo norte-americano pode ser subdividido em duas vertentes
que guardaram posturas diferenciadas com relação às questões sociais: o pentecostalismo
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 223
pública por meio da atuação política, sobretudo a partir de 1986, como ressalta a
autora:
5
Segundo os Censos Demográficos realizados pelo IBGE, os evangélicos perfaziam apenas
2,6%da população brasileira na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 227
5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000, ano em que somavam
26.184.941 de pessoas.
228 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
da busca por uma vida marcada pelo sucesso financeiro, pela saúde perfeita e o
triunfo nos empreendimentos terrenos, que passaram a ser vistos como
evidências da benção divina.
Originário do metodismo e do movimento Holiness, o movimento
pentecostal encontrou guarida, sobretudo entre as camadas pobres e
marginalizadas. Foi assim em sua expansão inicial nos Estados Unidos e,
posteriormente, também no Brasil. Devido ao seu forte caráter sectário e
ascético, os pentecostais defenderam uma forte desvalorização do mundo,
deslocando suas promessas redentoras para o além, a exceção estava na cura
física.
A Teologia da Prosperidade tem sua origem nos Estados Unidos, onde,
além desse nome, é também conhecida por Health and Wealth Gospel, Faith
Movement, Faith Prosperity Doctrines e Positive Confession. Surgida ainda na década de
1940, foi somente a partir da década de 1970 que conquistou maior repercussão
junto aos grupos evangélicos carismáticos. Na base de suas crenças estão ideias
provenientes da filosofia do “Novo Pensamento”6 e da teoria da “Confissão
Positiva”.
A “Confissão Positiva” refere-se à crença de que os cristãos detêm o poder
de trazer à existência o que declaram, decretam ou determinam com a boca em
voz alta. Em suma, as palavras ditas com fé compelem Deus a agir, seja para o
bem seja para o mal. Um ponto que têm gerado controvérsias em relação à
Confissão Positiva no meio protestante está no fato de que, para os seus
defensores, confessar não tem nada a ver com pedir ou suplicar a Deus. “Os
6
A filosofia do “Novo Pensamento” foi formulada originalmente por Phineas Quimby (1802-
66). Quimby, que estudara espiritismo, ocultismo, hipnose e parapsicologia para produzir sua
filosofia, inspirou e curou Mary Baker Eddy, fundadora da Ciência Cristã” (p. 151). A qual teria
fundado, posteriormente, a teoria da Confissão Positiva. (ROMEIRO, 1993).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 229
cristãos, em vez de implorar, devem decretar, determinar, exigir, [...], tomar posse
das bênçãos a que têm direito.” (MARIANO, 1999, p. 154).
O fato de muitos cristãos ainda não terem tomado posse das bênçãos
divinas à sua disposição está, em primeiro lugar, na incompetência desses em
confessá-las de forma adequada, na falta de fé, na existência de pecados ou,
simplesmente, pelo fato de ignorarem que possuem “direitos” divinos a serem
reclamados.
É exatamente isto que Ele está fazendo. O Senhor está lhe mostrando
que, a partir de agora, tudo o que você determinar no nome dEle, Ele
mesmo fará. Em outras palavras – você é quem determina o que terá
ou não. Você é de Deus. Recriado em Cristo Jesus para o sucesso, para
uma vida plena, para determinar o que quiser, e vencer. Se
fracassarmos em receber qualquer bênção, é por nossa culpa. O que
exigirmos, Ele o fará. (SOARES, 1997, p. 31-33).
pobreza são sinais de falta de fé. Há, portanto, um rompimento com o velho
ascetismo pentecostal.
A Teologia do Domínio está inserida em contexto maior, marcado pela
concepção de que os cristãos devem tomar partido em uma “Batalha Espiritual”.
Desde o início, o Diabo tem encontrado enorme destaque na doutrina cristã, isso
se dá, em grande parte, devido à dificuldade de se conciliar a onipotência e
suprema bondade divina do Deus cristão com a existência do mal e do
sofrimento humano.
Desde o século XVII, a teologia liberal, católica e protestante, tem
reduzido o papel ocupado pelo Diabo, tratando-o como metáfora, assim como
esvaziou as possibilidades de intervenções sobrenaturais na vida cotidiana dos
indivíduos. Todavia, a teologia liberal nunca foi majoritária no meio protestante.
Suas interpretações da Bíblia causaram nos EUA do século XIX, horror em
diversos grupos cristãos tradicionalistas e fundamentalistas, “todos profundos
crentes no poder do Diabo.” (MARIANO, 1999, p.110). Foi entre essa maioria,
de crentes na ação do Diabo, que o pentecostalismo se estabeleceu, estes
enxergam a ação divina ou demoníaca nos acontecimentos cotidianos mais
insignificantes.
Ao ser trazido para o Brasil, o pentecostalismo não perdeu a noção de
estar inserido em uma realidade sacral, influenciada pela ação demoníaca e divina.
Aqui, a presença do “inimigo de Deus” foi identificada, especialmente na forte
influência do catolicismo nas esferas social e religiosa, além, é claro, das religiões
de matriz africana, candomblé e umbanda. Todavia, foi somente a partir da
década de 1980, que desencadeou no Brasil, o que veio a ser intitulada por muitos
de “guerra santa”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 231
Podemos nos espantar que o simples praticante, que tem com único
alimento o culto ou a missa semanal, seja modelado pelo ensinamento
da Igreja a ponto de nele se inspirar em suas condutas sociais e
políticas. (COUTROUT, 1996, p.336).
7
Disponível em: <http://www.ieqcedsp.com.br/portal/novidades/cidadania.asp>. Acesso em:
26 set. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 237
8
DOUTRINA sociopolítica da Igreja do Evangelho Quadrangular. Disponível em:
<http://www.cidadaniaquadrangular.com>. Acesso em: 14 mai. 2010.
238 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
africana dão a entender que essa liberdade religiosa deve ser restrita às religiões
cristãs, não havendo espaço para outras expressões religiosas.
Existem, portanto, algumas tensões entre o discurso pentecostal acerca da
cidadania e a sua prática religiosa. No discurso político, os grupos pentecostais
procuram alinhar-se a uma postura de respeito aos direitos civis, entre eles a
liberdade religiosa, mas, em sua prática e discursos religiosos, apresentam o
mundo como um campo de “batalha”, no qual as forças do bem, representadas
pelos fiéis pentecostais, devem combater o avanço das “forças malignas”, no
Brasil, comumente associadas ao catolicismo e às religiões de matriz africana.
Referências:
Os intelectuais, a imprensa e
outros meios de comunicação
Construindo um problema: o entusiasmo
intelectual nas cartas do Centro Cultural Euclides
da Cunha1
Henri-Irénée Marrou
Sobre o conhecimento histórico
O
objetivo deste artigo é apresentar uma problemática de pesquisa
que vem sendo investigada há alguns anos. A construção dessa
proposta se deu a partir do contato com a documentação do
Centro Cultural Euclides da Cunha, um prestigioso agrupamento de intelectuais
que funcionou de 1948 a 1985 na cidade de Ponta Grossa, no Paraná. Ao
examinar tais documentos, em especial o rico acervo epistolar acumulado pela
agremiação, é possível perceber a existência de um apego muito grande às
1
Este texto é uma versão ligeiramente modificada do primeiro capítulo da Dissertação de
Mestrado, defendida em fevereiro de 2011, junto ao Programa de Pós-graduação em
História da UNESP/Assis, sob orientação do Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior. (Cf.
LOPES, 2011).
*
Mestre em História /UNESP/Assis.
246 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Não é o caso aqui de se estender numa longa definição de todos estes domínios
historiográficos. Contentar-nos-emos em remeter o leitor a algumas referências que, por
sinal, também são as nossas. São elas: Darnton (1990); Sirinelli (2003); Rioux & Sirinelli
(1998); Zanotto (2008). Com efeito, o exame desta pequena bibliografia parece ser
suficiente para acercarmo-nos da aproximação que tem marcado todos estes campos do
conhecimento histórico.
3
Segundo Michel Foucault, seria preciso justamente “[...] marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os
esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a
consciência, os instintos”. (FOUCAULT, 2005, p. 15).
248 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
Sobre as transformações socioculturais e sobre a efervescência intelectual da Belle Époque
curitibana, consultar, por exemplo, Berberi (1998); Denipoti (1999) e Trindade (1996).
Sobre o efeito destas mesmas transformações no interior do Paraná, principalmente sobre a
cidade de Castro, consultar Leandro (1999).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 253
muito” (CAHMMA, 1988, p.101). A recordação mantida por seu filho Celso
vem reforçar ainda mais tal associação:
Celso relata que seu pai dedicou grande parte de sua vida à leitura
de obras das mais variadas espécies, buscando, com isso, adquirir
novos e maiores conhecimentos sobre todas as questões que
achava relevante.
Uma das imagens que Celso mais guarda de José Hoffmann é
justamente a de um leitor costumaz que passava o tempo todo
rodeado por livros, em busca de um saber sem fim. (CHAVES,
2001, p.49).
A despeito de qualquer exagero por parte daquele que foi também seu
discípulo, a extensão dos conhecimentos e/ou das pretensões de Faris nos
permite ter uma ideia aproximada do empenho e do esforço com que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 255
5
As inúmeras entidades culturais e literárias às quais Faris Michaele esteve vinculado são
também exemplares desta dedicação. Seguem algumas delas: Academia Paranaense de
Letras (Curitiba), Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense (Curitiba),
Academia de Letras José de Alencar (Curitiba), Centro de Letras do Paraná (Curitiba),
Centro do Professorado Paulista (São Paulo), Instituto Hans Staden (São Paulo), Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (São Paulo), Casa da Cultura (Limeira - São Paulo),
Casa de Euclides (S. José do Rio Pardo), Instituto Histórico de Paranaguá, (Paranaguá),
Instituto Histórico de Alagoas (Alagoas), Academia Belo-Horizontina de Letras (Belo
Horizonte), Casa de Euclides (Natal), Associação Passo-Fundense de Letras (Passo Fundo),
Academia Riograndense de Letras (Porto Alegre), Academia Piracicabana de Letras
(Piracicaba), Academia Brasileira de Filologia (Rio de Janeiro), Academia de Letras de
Uruguaiana (Rio Grande do Sul), União dos Trovadores do Brasil (Rio de Janeiro), Centro
Cultural Humberto de Campos (Espírito Santo), Academie Ansaldi (Paris), American
International Academy (Nova York), International Council of Museums (Londres),
Academia de Cultura Guarani (Assunção), Instituto de História, Etnologia y Folclore
(Tucumán - Argentina), Casa de Cultura (Lima), Faro dei Titánici (Nápoles), Accademia
Letteraria Scientífica Internazionale (Nápoles), Accademia di Paestum (Salerno), Accademia
dei Magnati ed Autori (Roma), Accademia dei Magnati Bibliófili (Nápoles), Unión Cultural
Americana (Buenos Aires), Instituto de Cultura Americana (La Plata), Accademia Letteraria
Araldica Scientífica (Treviso), Instituto e Biblioteca Panamericana (Buenos Aires), Órden
de los Insignidos de América (Buenos Aires), Asociación de los Escritores de la Provincia
de Buenos Aires (La Plata), Legión Espiritual Americana (La Plata), Confraternité
Universelle Balzacienne (Paris), Asociación Panamericana de Intercambio Cultural (La
Paz), Grupo Americanista de Intelectuales y Artistas (Montevidéu), Centro Cultural de
Filgueiras (Filgueiras - Portugal), Asociación de los Derechos del Negro (Buenos Aires),
Instituto Argentino de Críticos Literarios (Buenos Aires), Academia Universal de
Humanidad (Buenos Aires), Institut Nord-Africain d’Etudes Metapsychiques (Argel-
Argélia), Sociedad Naturalista Colombiana (Medelin), Centro Literario Filosófico “Arca del
Sur” (Montevidéu), Academia Andronosófica (San Marino - Mônaco). (MICHAELE, 1983,
p. 298-299; DITZEL, 1998, p. 175-178; WANKE, 1999, p. 110-112).
256 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Deste modo, todo o saber acumulado por Faris só poderia mesmo ter
sido adquirido “através de uma insaciável fome de livros” (WANKE, 1983,
s/p). Assim, seu interesse pela literatura, pelas línguas e pelas diversas áreas do
conhecimento humano não poderia ser explicado apenas em termos
profissionais e/ou utilitaristas, pois envolvia também um investimento pessoal
e material que seriam efetivamente muito grandes. Como pudemos observar
nos exemplos acima, Faris e muitos outros de seus contemporâneos tiveram
suas vidas de tal forma absorvidas pelas lides intelectuais que para nós até se
torna difícil assimilar ou materializar no presente. É, portanto, a esse tipo
específico de postura ou comportamento que viemos até aqui nos referindo
ao falar em “entusiasmo intelectual”.
Evidentemente, esse entusiasmo não se encerrava pura e simplesmente
nesse clima de profunda imersão subjetiva visto acima. Como já foi
devidamente mencionado, Faris encontrava sua sustentação e sua razão de ser
em algumas ideias que já haviam sido transformadas em verdadeiras
“profissões de fé” da intelectualidade do período. Assim, a busca pelo
conhecimento que animava grande parte dos intelectuais, nesse momento,
combinava bem com exortações políticas em favor da educação e da
instrução, bem como com manifestações simpáticas a muitos outros
incrementos na esfera cultural. O caso de Faris Michaele é novamente
exemplar nesse sentido, pois seu nome esteve vinculado ao surgimento de
várias instituições importantes da cidade de Ponta Grossa. Faris participou
ativamente da instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da
Faculdade de Direito de Ponta Grossa, além de ter fundado outros órgãos na
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 257
6
“A associação de livros com seus leitores é diferente de qualquer outra entre objetos e
seus usuários. Ferramentas, móveis, roupas, tudo tem uma função simbólica, mas os livros
infligem a seus leitores um simbolismo muito mais complexo do que o de um mero
utensílio. A simples posse de livros implica uma posição social e uma certa riqueza
intelectual”. (MANGUEL, 1997, p. 242)
258 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
impressa –pareciam ainda muito próximas dos termos em que eram pensadas
em fins do século XIX, quando
7
Ao começar a circular em dezembro de 1902, o periódico O Arauto apresentava-se
justamente discorrendo sobre as maravilhas da tipografia: “É com effeito a esta engenhosa
invenção que se deve principalmente a diffusão das luzes, dos progressos das ciências e das
artes e de uma multidão de descobertas que sem ella, teriam sido perdidas para o gênero
humano ou desterradas para o seio de um pequeno número de indivíduos; em uma palavra
a ella se deve o alto gráo de civilização a que chegaram a maior parte das nações modernas
[...]”. (MARTINS, 1908, p. 80 apud BERBERI, 1998, p. 69).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 259
8
Doravante CCEC.
262 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
9
Os dados e as informações sobre a documentação do CCEC foram extraídos de Gomes e
Sacchelli (2001, p.109-116).
266 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Ano Quantidade
1948 18
1949 101
1950 60
1951 81
1952 99
1953 78
1954 46
1955 31
1956 20
10
Os números relativos ao acervo epistolar do CCEC foram retirados de Gomes (1997, p.
86-87).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 267
1957 34
1958 27
1959 19
1960 04
1962 01
1964 01
1966 01
1967 05
Década de 70 21
Década de 80 10
Sem data 43
Fonte: GOMES, 1997, p. 87.
O que ele afinal desejava era algo que, talvez, faça pouco sentido nos
dias de hoje: “requero a concessão de ir, de quando em vez”, diz ele,
“mergulhar a concha de meu espírito sequioso na abundante messe que aí
amealhou o trabalho incessante dos espíritos de escol de que se iluminou, cuja
cintilação me adivinhou a experiência do primeiro trato” (Sanders... ao
CCEC..., 30 de outubro de 1950).
Um ano antes, o poeta, advogado e professor Augusto Faria Rocha já
evocava um argumento semelhante ao comentar sua admissão junto ao
agrupamento ponta-grossense:
Mais uma vez, a defesa aberta que o autor da missiva faz ao papel ou
função do intelectual se mostra bastante afinada com os exemplos que viemos
discutindo até aqui. Em todas as cartas citadas, o que salta à vista é, sem
dúvida, a maneira exaltada com a qual se tratavam os afazeres, os assuntos e as
funções intelectuais. Para além das justificativas práticas, patrióticas,
educacionais ou civilizatórias, outra forma de se mensurar a dedicação com
que estas pessoas vivenciaram tais questões pode ser encontrada na própria
equação de seu dia a dia. Afinal de contas, o “entusiasmo pela causa” deveria
mesmo ter um papel de destaque para indivíduos que tinham de conciliar o
cotidiano do trabalho, os compromissos familiares da vida privada, entre
outras diversas atividades simultâneas.11 É o que deixa entrever, por exemplo,
a confissão de Raimundo Maranhão Ayres a Faris Michaele, nos idos de 1954:
11
Outro aspecto deste diletantismo característico refere-se à própria questão financeira. No
caso do CCEC, por exemplo, muitas vezes, era o seu presidente quem arcava com os
gastos, como apontou Eno Wanke: “E quem pagava as despesas de manutenção, as de
limpeza, o aluguel, o salário da Secretária, a compra de livros, a edição do jornal Tapejara? É
claro que Faris. É verdade que havia, então, uma verba do governo Federal [...] e também
outra da Prefeitura – cujo prefeito era sempre euclidiano. Mas, evidentemente, não cobria
todas as despesas. Faris, sem dúvida, tirava dinheiro de seu magro salário de professor para
completar as despesas. Ele, discreto, jamais mencionou o assunto, mas acredito que esta
seria a maior parte delas. E a contribuição dos sócios? Não me lembro de ter pago sequer
uma mensalidade do CCEC, que jamais me foi cobrada – e que passei em brancas nuvens
nos dois anos em que o freqüentei tão assiduamente. Só me lembro de ter doado um bom
número de livros para a biblioteca, isso sim. E vi, é claro, Faris também fazer isso com
muita freqüência”. (WANKE, 1999, p. 101).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 273
perderam seu vigor e pujança. O legado defasado que hoje recebemos, parece
antes inclinado a uma atitude derrisória e irrefletida do que admirada e,
consequentemente, aberta a indagações. Como afirmou acertadamente Walter
Benjamin, “somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente
do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o
passado é citável, em cada um dos seus momentos” (BENJAMIN, 1987,
p.223).
A esta altura, no entanto, até mesmo o menos cético dos
leitores poderia, com razão, objetar: Não seria possível pensar e associar
declarações como as veiculadas pelas cartas acima a um tipo qualquer de
fórmula ligada à escrita epistolar? E esta fórmula, por sua vez, não explicaria o
resto, dado que os argumentos seriam então “lugar comum”? Ora, é
exatamente aí que o problema levantado encontra a sua razão de ser. Como
pudemos observar, alguns remetentes não limitavam suas cartas a um simples
exercício de gratidão descolorida, parecendo, muitas vezes, se utilizar da
ocasião para reforçar ainda mais os laços identitários que mantinham com o
grupo. E, assim, ao exteriorizarem seus anseios, seus pensamentos e suas
crenças mais arraigadas, intencionalmente ou não acabavam vinculando-as a
formulações que tinham ampla circulação no período em questão. Se
prestarmos certa atenção, por exemplo, aos termos, ideias, palavras e
evocações que marcam indelevelmente um significativo número de
correspondências, haveremos de concordar que, embora possam, certamente,
constituir uma fórmula, eles são índices unívocos da existência de um mundo
cultural e conceitual bastante distinto do nosso. Além disso, para a maioria
dos missivistas estudados o que estava em jogo neste empenho entusiástico
pelas lides literárias situava-se muito além do prazer individual. Na mais
remota das hipóteses e sem a menor dúvida, tais motivos devem ter ocupado
tempo e espaço consideráveis nas vidas dessas pessoas, devem ter mobilizado
276 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências
Fontes
Bibliografia
ensaios sobre identidades - séculos XVI a XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2004. p. 143-162.
DITZEL, C. de H. M. O arraial do Pitangui: o Centro Cultural Euclides da
Cunha de Ponta Grossa. In: ______; SAHR, C. L. L. (Orgs.). Espaço e Cultura:
Ponta Grossa e os Campos Gerais. Ponta Grossa: UEPG, 2001, pp. 212-227.
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello. O arraial e o fogo da cultura: os
euclidianos pontagrossenses. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 1998.
FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M.
Microfísica do poder. 21ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005. p. 15-37.
GOMES, J. Maria Loyola de Oliveira. Instrumento de Pesquisa para a História
Local. 1997. Monografia (Especialização em História do Paraná) –
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 1997.
GOMES, J. M. L. de O.; SACCHELLI, M. J.. Laboratório de Pesquisa em
História – Universidade Estadual de Ponta Grossa. In: LIMA, E. de; ARIAS
NETO, J. M.; ALMEIDA, M. de (Orgs.). Violência e direitos: 500 anos de
lutas; Anais do VII Encontro Regional de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos,
2001, p. 109-116.
LEANDRO, J. A. Palco e tela em Castro: teatro, cinema e modernidade – 1896-
1929. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999.
LOPES, I. C. Os diletantes e as lides do espírito: um estudo sobre o entusiasmo
intelectual nas cartas do Centro Cultural Euclides da Cunha, de Ponta Grossa
(1948-1959). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2011.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 242.
MICHAELE, F. A. S. Cepa esquecida: brasileiros ilustres de sangue indígena.
Ponta Grossa: Gráfica Planeta, 1983.
RIOUX, J.-P.; SIRINELLI, J.-F. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa,
1998.
SILVA, I. B. M. da. Encontro de trajetórias e de múltiplas temporalidades: a
prática epistolar dos sócios fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu
(1927- 1937). In: Anais do III Simpósio Nacional de História Cultural – Mundos da
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 279
*
Mestre em História /UNESP/Assis/ Orientadora: Profª. Drª. Tania Regina de Luca.
1
As reflexões aqui apresentadas compõem o primeiro capítulo da dissertação de mestrado
A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944), desenvolvida na Universidade
Estadual Paulista (UNESP/Assis), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).
282 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Em FERRARI (2011), consta a lista de todas as obras escritas por Joel Silveira.
3
A partir dos anos 1960, muitos intelectuais brasileiros dedicaram-se ao registro de suas
memórias como Paulo Duarte, Érico Veríssimo, Pedro Nava, Nelson Palma Travassos,
Vivaldo Coaracy, Aureliano Leite, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia,
Cândido Motta Filho, Fernando Azevedo, Nelson Werneck Sodré e Gilberto Freyre
(ZIOLI, 2010, p. 117-118).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 283
6
As entrevistas originaram o livro de memórias de Lacerda, Depoimento, no prefácio da
obra, Ruy Mesquita afirmou que Lacerda encabeçava a lista dos que seriam entrevistados
no projeto (apud LACERDA, 1977, p. 11).
286 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
7
Sobre o processo de produção das memórias de Wainer, ver Rouchou (2006, p. 346-362).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 287
patrão voltou do exílio e reabriu Diretrizes, como jornal diário. Wainer teria
convidado Silveira para a nova empreitada e o induzido a abandonar o
emprego nos Associados, proposta que Silveira aceitou. Nas memórias, Joel
Silveira lembrou este fato como “Rasteira do Samuel”, pois o patrão o havia
enganado. Silveira afirmou que Wainer não lhe pagava em dia, tampouco os
valores prometidos, e esquivava-se quando possível: “Samuel tirava o corpo
fora e, diga-se de passagem que tirar o corpo fora era coisa que ele fazia com
rara maestria” (SILVEIRA, 2000, p. 125). Sobre a experiência, Silveira assim
registrou:
Fiquei lá apenas dois meses. Fiz umas reportagens sem graça, tendo
como fotógrafo o Ibrahim Sued. Da lista de matérias que havia
entregue a Samuel, logo na primeira semana, umas duas foram
aprovadas. Eu sentia que o chão começava a me faltar, as coisas
continuavam nebulosas, e vi logo que havia entrado de cara numa
aventura quando, no final do mês, em vez do salário combinado
(menos do que eu recebia nos “Associados”), me deram um “vale”,
com promessa de pagamento do resto na próxima semana, o que
não aconteceu. E percebi mais: que Samuel passou a me evitar.
Nunca tinha tempo, estava sempre tirando e botando o paletó; ou
então trancado na sua sala em conversa com cavalheiros para mim
desconhecidos e que jornalistas não eram. Bem vestidos demais
para serem jornalistas. (SILVEIRA, 2000, p. 125).
governo, época em que circulou o jornal Última hora, de Wainer. Souza teria se
ressentido, pois não foi ao menos mencionado na autobiografia de Wainer,
por desavenças pessoais. Sobre Minha razão de viver, Souza vaticinou que a obra
foi:
9
Ao analisar o caso de Monteiro Lobato em um contexto muito diverso, Tania Regina de
Luca constatou que o escritor, já no fim de sua vida, reuniu parte de sua produção epistolar
no livro A barca de Gleyre, como último instrumento de poder e autorrepresentação (DE
LUCA, 2004).
290 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
testemunha da história
10
Outros jornalistas seguiram o mesmo caminho tal qual Rubem Braga, pelo Diário Carioca,
Egydio Squeff, por O Globo e Raul Brandão pelo Correio da Manhã. No entanto, Silveira era
do grupo jornalístico mais poderoso na época, os Associados, e por isto seus textos sobre a
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 291
pouco mais de vinte anos. Desde seu retorno da Itália, em 1945, o autor
passou a publicar em livro suas impressões e crônicas sobre a guerra, com
Histórias de pracinhas (Editora Companhia da Leitura). Tais lembranças foram
reproduzidas em outros livros e textos e entrevistas que Silveira concedeu. A
fama como correspondente de guerra teve origem na construção desta
autoimagem.
Vale lembrar que a memória tem caráter seletivo e as lembranças mais
recorrentes são as que têm maior significado para o autobiografado. Em
entrevista concedida em setembro de 1978, Joel Silveira foi questionado sobre
a importância da FEB em sua atuação profissional. O jornalista respondeu que
a cobertura da guerra foi a experiência mais marcante em sua vida. Além
disso, em uma hierarquia de assuntos, Silveira destacou a guerra como
primeiro lugar, pois considerava a notícia mais importante na vida de um
jornalista:
guerra chegavam mais rápido ao Brasil. Desta forma, o jornalista foi o correspondente de
guerra mais destacado e, assim, foi aclamado quando retornou ao Brasil.
292 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
11
A referência ao animal, dromedário, relaciona-se à imagem de Silveira enquanto figura
lendária entre os jornalistas.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 293
Esta teria sido a segunda guerra da FEB a qual Silveira fez referência no
título do livro. Vale lembrar que, após o golpe de 1964, os intelectuais
derrotados publicaram suas memórias e autobiografias como forma de
resistência. Esta atividade mobilizou homens de letras de diversas orientações
ideológicas: comunistas, liberais e mesmo aqueles que inicialmente apoiaram a
tomada do poder pelos militares, como Carlos Lacerda.12. Por outro lado,
comemoravam-se vinte anos do fim do conflito mundial, o que também
tornava oportuna a publicação de uma reorganização de suas crônicas de
guerra.
A imagem de Joel Silveira como correspondente de guerra também foi
apropriada pelas editoras que publicaram suas obras a respeito do tema, em
momentos oportunos. Este foi o caso de 2ª Guerra – momentos críticos editado
pela Mauad, justamente em 1995, quando se comemorava cinquenta anos do
fim do evento. Situação semelhante aconteceu com o último livro de Joel
Silveira, O inverno da Guerra, publicado pela Objetiva, em 2004, quando o final
da guerra estava às vésperas de completar sessenta anos (SILVEIRA, 2004).
Joel Silveira teve êxito na construção de sua autoimagem, pois foi como
correspondente de guerra que seu nome passou para a história: “Jornalista
consagrado, com mais de cinquenta anos de militância na imprensa brasileira,
onde ocupou os mais diferentes cargos, de repórter setorista a correspondente
de guerra” (apud SILVEIRA, 1991, s/p). Na ocasião da morte de Silveira, em
agosto de 2007, Alberto Dines percebeu a cristalização desta imagem em
12
Em seu estudo sobre a obra memorialística de Paulo Duarte, Miguel Zioli constatou que
o intelectual, perseguido e exilado durante a Era Vargas, publicou livros sobre esta
experiência como oposicionista. Durante a ditadura instaurada em 1964, a situação não foi
diferente. Paulo Duarte, que compunha o corpo docente da Universidade de São Paulo
(USP) foi perseguido e teve sua aposentadoria compulsória em 1968 com o AI-5. O
projeto memorativo de Duarte iniciou-se antes da interrupção de suas atividades
profissionais, mas foi, sobretudo, após esta data, quando o jornalista perdia espaço na cena
política e intelectual, que a escrita autorreferencial tornou-se tarefa de primeira ordem
(ZIOLI, 2010).
294 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
relação ao jornalista, pois era a única informação que circulava a seu respeito
(DINES, 2007).
De fato, Dines tinha razão, conforme se percebeu nas notícias sobre a
morte do autor: “Um dos maiores destaques de sua carreira [de Joel] foi a
cobertura que realizou da Segunda Guerra Mundial na Itália, junto à FEB
(Força Expedicionária Brasileira), como correspondente de guerra dos Diários
Associados.”13 Para Dines, tratou-se de “necrológios apressados”, pois a
atuação de Silveira na guerra não foi o trabalho mais importante do jornalista.
Os correspondentes eram controlados pelos militares e não tinham autonomia
na transmissão das notícias:
13
Jornalista e escritor Joel Silveira morre aos 88 anos no Rio. Folha de S. Paulo. (on-line). 15
ago.2007.Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u320190.shtml.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 295
14
A entrevista fez parte de um projeto do jornal Folha de S. Paulo, intitulado “Jornalistas
contam a história”, no qual se realizaram entrevistas com intelectuais que atuaram nos anos
1930 e 1940, ou seja, durante a Era Vargas. Entre os entrevistados estavam Joel Silveira,
Barreto Leite Filho, Paulo Mota Lima, Raimundo Magalhães Júnior, Paulo Duarte e
Hermínio Sachetta. As entrevistas estão disponíveis no site
http://almanaque.folha.uol.com.br/memória_6.htm. Acesso em 12/01/10.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 297
da revista, por conta de uma entrevista que teria despertado a atenção dos
censores, reforçando sua imagem como opositor do Estado Novo.
Joel Silveira repetiu esta informação equivocada em outras
oportunidades. O dado também se reproduziu em verbetes de dicionários e
enciclopédias15 A ideia de que a revista Diretrizes teria deixado de circular por
conta desta entrevista que Silveira levou Lobato a cristalizar-se de tal forma
que se reproduziu, até mesmo, em um estudo feito sobre suas reportagens no
periódico (NEGRI, 2001, p. 35). Para Philippe Artières, nestes relatos
autobiográficos, “manipula-se, rasura-se e corrige-se” não apenas para legar a
maneira como se quer ser representado, mas também para construir uma
autoimagem para si mesmo:
15
Ver por exemplo o caso de Morais (2004, p. 423); Morais (2003, p. 200). O catálogo A
revista no Brasil (2000, p. 195), também incorreu no erro, além do verbete “Joel Silveira”
presente em, Abreu (2001, p. 5459). Silveira repetiu a informação em entrevista presente
em Molica & Moraes Neto (2006, p. 131) e em Silveira (2001, p. 82).
16
Marieta de Moraes Ferreira (2006) estudou as apropriações feitas da imagem de Vargas e
de seus governos após a morte do ditador. A autora percebeu que, na época da ditadura
militar, o Estado Novo foi lembrado por alguns grupos de oposição que estabeleceram
relações entre os dois regimes.
298 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
Introdução
E
ste texto tem como fonte e objeto de reflexão o jornal Meio-Dia,
que circulou durante os anos de 1939 a 1942, sob direção de
Joaquim Inojosa, expoente do modernismo pernambucano. O
periódico tornou-se notório por apoiar causas defendidas pela Alemanha
nazista, em um contexto no qual a maioria dos órgãos da grande imprensa,
então amordaçada pelo duplo controle do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) e do Conselho Nacional de Imprensa, apoiava
incondicionalmente a causa aliada. Por meio da análise de seus editoriais e
artigos de seu fundador, foi possível analisar uma ampla gama de
representações não apenas a respeito da Alemanha, mas também em relação a
URSS, França, EUA e a Inglaterra, o país mais atacado nos textos veiculados.
Antes de abordar a trajetória do jornal, é necessária sua inserção no contexto
da imprensa brasileira dos anos 1930 e 1940.
Em 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder, estava a imprensa
brasileira em franco processo de expansão (BAHIA, 1967, p. 63). Não apenas
boa parte dos jornais passou a contar com serviço telegráfico efetivo de
agências internacionais – como Havas e United Press –, como também se valia
de novas técnicas de impressão, via a aquisição das linotipos e de outras
novidades no campo da impressão, e do estabelecimento de departamentos de
*
Mestrando em História/UNESP/Assis. Orientadora: Profª. Drª.Tania Regina de Luca.
304 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
A história desse importante órgão da imprensa brasileira foi documentada em
ANDRADE, Jeferson Ribeiro de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da
Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
2
Mais informações sobre os periódicos acima citados podem ser encontradas em SODRÉ,
Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999; e também em
RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50. Tese
(Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação, UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.
3
A trajetória de O Estado de S. Paulo foi analisada no pioneiro estudo de Maria Helena
Rolim Capelato e Maria Lígia Prado, o qual, com o passar dos anos, também se tornou uma
obra de referência sobre a imprensa brasileira. Ver CAPELATO, Maria Helena Rolim;
PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino: Imprensa e ideologia no jornal “O Estado de S.
Paulo”. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 305
4
A atuação do DIP e sua trajetória podem ser vistos em ARAÚJO, Rejane. “Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP)”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (Coord.). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001, p. 1830-1833.
306 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
5
Fernando Morais afirmou que a maior parte do papel consumido pelo Brasil vinha da
Finlândia, a qual após a Guerra de Inverno com a Rússia, passou a restringir suas
exportações. A alternativa escolhida foi importar papel do Canadá, cuja produção era
insuficiente, o que desencadeou uma alta nos preços. Isso fez com que muitos periódicos,
durante a guerra, tivessem que diminuir o número de páginas. Cf. MORAIS, Fernando.
Chatô: O rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 427.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 307
6
PEIXOTO JÚNIOR, José Carlos. A ascensão do nazismo pela ótica do Diário de Notícias da
Bahia (1935-1941): um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA, Salvador, 2003.
7
Para um estudo da atuação da Gazeta de Notícias durante o primeiro período varguista e o
início do segundo conflito mundial, ver: GAK, Igor Silva. Os fins e seus meios: diplomacia e
propaganda nazista no Brasil (1938-1942). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, UFF, Niterói, 2006.
8
Vale lembrar que o Meio-Dia é citado em uma delas, a de Igor Silva Gak sobre os jornais
Gazeta de Notícias e Boletim Mercantil. (Cf. GAK, 2006)
308 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
9
No seu site oficial, o jornalista esclarece que nasceu no Recife em 13 de julho de 1956. De
1975 a 1980 trabalhou no Diário de Pernambuco e na sucursal nordeste de O Estado de S.
Paulo. Depois de um breve período vivendo na França, voltou ao Brasil e começou a
trabalhar na Rede Globo Nordeste. Na Rede Globo do Rio de Janeiro, desde 1985, foi
editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, bem como correspondente da
Globo News e do jornal O Globo, em Londres. Foi, ainda, repórter e editor-chefe do
programa Fantástico em duas ocasiões. Mais informações sobre o autor estão na seção
“Quem é” de seu website. Disponível em: <http://www.geneton.com.br/quem/>. Acesso
em: 31 jan. 2010. O jornalista possui um blog no portal de notícias G1. Acessar MORAES
NETO, Geneton. Dossiê geral: o blog das confissões. Contatos imediatos de um repórter
em busca de segredos dos anônimos e famosos. Disponível em: <
http://colunas.g1.com.br/geneton/>. Acesso em: 31 jan. 2010. Vale acrescentar ainda que
o autor, atualmente, apresenta o programa Globo News Dossiê aos domingos. A página do
programa está disponível em: <http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,JOR337-
17665,00.html>. Acesso em: 31 jan. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 309
12
Embora interesse aqui seja, particularmente, a atuação de Joaquim Inojosa como
jornalista durante as décadas de 1930 e 1940, são necessárias algumas considerações gerais
sobre sua vida. O escritor, advogado e jornalista nasceu em Pernambuco, no município de
Timbaúba, hoje São Vicente Férrer, em 27 de março de 1901. Os primeiros estudos foram
feitos em sua cidade natal bem como no Recife, onde cursou a faculdade de Direito,
exercendo, posteriormente, a profissão de advogado e promotor público. Ligou-se aos
expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922: Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Menotti Del Picchia, entre outros, e ainda manteve correspondência e contato com Manuel
Bandeira, Câmara Cascudo, Austregésilo de Athayde, etc, como se depreende da
observação da ficha catalográfica de seu arquivo pessoal, o qual pertence, na atualidade, à
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Também em seus livros o escritor
pernambucano fez sempre menção a suas epístolas, além de citá-las quando necessário.
Inojosa teve papel importante na divulgação das novas propostas estéticas em
Pernambuco. Escreveu o artigo “Que é futurismo”, publicado no jornal A Tarde, de Recife,
em novembro de 1922, de acordo com informação colhida no artigo “O estopim”,
publicado em O Jornal, em 05 de novembro de 1972, presente em INOJOSA, Joaquim. Os
Andrades e outros aspectos do modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Brasília: INL, 1975, p. 147. Em 1924, lançou o livro A arte moderna, considerado um apelo
para a união do Norte e Nordeste do Brasil ao movimento modernista. Ao final de sua
experiência jornalística com o Meio-Dia se afastou da imprensa, voltando à atividade
jornalística apenas em 1948, com o semanário A Nação, órgão de apoio ao Marechal Eurico
Gaspar Dutra, então presidente da República. Em 1965 reeditou, por breve período, o
Meio-Dia, a fim de garantir a posse da chancela e, em julho de 1968, voltou a colaborar em
O Jornal, no Jornal do Commercio e, ainda, no famoso Suplemento Literário de O Estado de S.
Paulo. Essas informações factuais foram retiradas do livro de memórias INOJOSA,
Joaquim. 60 Anos de Jornalismo (1917-1977). Rio de Janeiro: Meio-Dia, 1978. Por fim,
Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa afirmaram que o maior feito polêmico e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 311
Conclusões
Referências
A
ssim iniciava mais uma edição de um dos periódicos anarquistas
mais conhecidos do Rio de Janeiro, em fins do tumultuado ano de
1919, que, assim como os anos imediatamente anteriores, foram
repletos de lutas e conflitos sociais não só no Brasil como em várias partes do
mundo. Nas folhas de Spártacus colaboravam os mais importantes e
*
Mestrando em História/UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador Dr. Sérgio
Augusto Queiroz Norte.
1
José Oiticica, no artigo “A revolução russa”, publicado no jornal operário anarquista
Spártacus, de 08 de novembro de 1919.
324 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
A convicção anarquista de José Oiticica e sua polêmica com Astrojildo Pereira, por este
último ter se convertido ao comunismo, pode ser confirmada em depoimento transcrito na
obra: BANDEIRA, Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A. T. O Ano Vermelho: a
revolução russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1967, p. 279-281.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 325
3
O anarco-sindicalismo foi uma corrente do anarquismo que ganhou impulso na França da
segunda metade do século XIX. Uma tendência que considerava o sindicato revolucionário
como o meio e o fim da ação revolucionária. Por meio dos sindicatos os trabalhadores
levariam adiante a luta contra o capitalismo e precipitaria o seu fim com a greve geral e,
assim, os sindicatos tornar-se-iam a estrutura básica da nova sociedade onde a solidariedade
dos trabalhadores alcançaria uma forma concreta. Ver: WOODCOCK, George. História
das Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM,
2006. v. 2: O movimento, p. 36-38.
330 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
Uma leitura heterodoxa do marxismo é apresentada pelo ativista Makhaïski em que o
socialismo científico, em “A ciência socialista, nova religião dos intelectuais”, tal como foi
construído no século XIX, acaba por deixar invioláveis os ganhos dos “colarinhos
brancos”, enquanto salários dos trabalhadores intelectuais, contribuindo para o progresso
burguês. E o anarquismo também é criticado por fundamentar um positivismo rigoroso ao
praticar raciocínios científicos baseados nas ciências naturais. Ver obra: TRAGTENBERG,
Maurício. (Org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 96-108.
E os conteúdos marxistas dos bolcheviques e dos outros socialistas na Rússia são descritos
no livro: FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. Trad. Maria P. V. Resende. São
Paulo. Editora Perspectiva, 1974.
5
As indicações do caráter socialista, marxista e popular das lutas dos operários russos
daquela época são encontradas na obra: HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa.
Trad. Geir Campos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 18 e 48
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 331
jornais anarquistas aqui no Brasil, a Rússia, assim como o Brasil, também era
um país que tinha iniciado o seu desenvolvimento industrial e urbano há
poucas décadas. E quanto às antigas relações sociais e de trabalho, a Rússia,
assim como o Brasil, abolira um sistema há não muito tempo – a emancipação
dos servos, o fim das obrigações e deveres feudais dos camponeses, só ocorre
na Rússia na década de 60 do século XIX.
Trata-se de uma época muito intensa, de fortes conflitos sociais no
Brasil e no mundo, muitas greves, agitações e até insurreições operárias
ocorreram ao longo dos anos de 1917, 1918 e 1919 aqui no Brasil6. Agitações
que influenciaram esta produção jornalística, a redação era composta por
intelectuais anarquistas e operários, e por pessoas que eram as duas coisas.
Periódicos eram sustentados financeiramente pelos próprios militantes e
associações operárias, e sofriam constantes privações e dificuldades – recursos
escassos, perseguição policial, estado de sítio, censura e outras violências. Por
isso, poucas destas folhas anarquistas conseguiam ser diários – e ainda por
curto período de tempo –, muitos eram semanais, quinzenais e ou ainda
mensais; muitos tiveram curta duração não passando de alguns números.
Tais condições impuseram a necessidade de selecionar diversos títulos,
contudo, a maior parte é das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores
cidades da época e que concentravam a maior parte do movimento operário,
entretanto, um jornal de Maceió também é selecionado, devido à sua
importância, pois se trata de A Semana Social. Este jornal foi conduzido por
Antonio Bernardo Canellas, que foi anarquista e, depois, convertido ao
comunismo, foi o primeiro brasileiro a conhecer pessoalmente a Rússia
Soviética como representante do PCB (ele também foi um dos fundadores do
6
Há obras significativas a respeito destes anos conturbados aqui no Brasil, além do livro já
citado de Boris Fausto: LOPREATO, Christina da Silva Roquette. A Semana Trágica: a
greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Museu da Imigração, 1997; ver também:
ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Dois Pontos Editora, 1986.
332 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
7
Ver obra: SALLES, Iza. Um cadáver ao sol: a história do operário brasileiro que desfiou
Moscou e o PCB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
8
Exemplos desta cisão ideológica entre os anarquistas e os comunistas devido à revolução
russa na imprensa libertária do Brasil podem ser verificados, entre outros, no jornal
operário paulista A Plebe, como os artigos: “O maximalismo e os anarquistas”
(maximalistas é como eram chamados os bolcheviques, na época, aqui no Brasil), e “O
terror bolchevique na Rússia”, respectivamente, A Plebe, 06 de novembro de 1920; A
Plebe, 04 de dezembro de 1920.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 333
11
Os trechos transcritos de Astrojildo são respectivamente de: Crônica Subversiva, 1º de
junho de 1918; Crônica Subversiva, 29 de junho de 1918.
336 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
14
Ver: NASCIMENTO, Rogério H. Z. Florentino de Carvalho: pensamento social de
uma anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000
15
“Definindo princípios: o syndicalismo não é marxista”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 339
16
E consultar também: A Plebe, 15 de abril de 1922
340 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Então, além dos conflitos físicos que realmente ocorreram entre as duas
tendências há de se considerar ainda os efeitos das estratégias usadas pelos
comunistas, que os colocaram, naquela conjuntura, numa certa vantagem. Mas
isso certamente também não pode ser posto como um argumento final para
desqualificar o anarquismo, enquanto um conjunto de práticas e ideias que
contribuíram para a luta do movimento operário, não é apenas uma questão
de que a doutrina se tornou ultrapassada:
17
Ver, respectivamente: MAKHNO, Nestor; BERKMAN, Alexandre; SKIRDA,
Alexandre. Nestor Makhno e a Revolução Social na Ucrânia. Trad. Plínio Augusto
Coelho. São Paulo: Imaginário, 2001. ARVON, Henri. A Revolta de Kronstadt. Trad.
Elvira Serapico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 343
Referências:
Introdução
O
discurso antagônico em relação aos demais países americanos foi
uma marca do período monárquico brasileiro. Naquele período, a
defesa do regime político e a construção da identidade nacional
foram responsáveis pela formação de uma imagem de superioridade do Brasil
frente às repúblicas do continente americano. Neste sentido, polarização,
civilização e barbárie representando, respectivamente, Brasil e o restante da
América, fundamentaram os discursos brasileiros sobre os demais países do
continente. Sobre este aspecto é importante destacar a atuação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Fundado em 1838, o IHGB estava
intimamente ligado à monarquia, cujos elos se explicitavam com a constatação
de que o Império contribuía com doações que perfaziam 75% de seu
orçamento e de que o imperador D. Pedro II foi seu assíduo frequentador
entre 1849 e 1889. Desse modo, a produção historiográfica do século XIX,
vinculada ao Instituto, contribuiu muito para a construção negativa do
imaginário nacional acerca das repúblicas do continente. Esta percepção –
*
Mestranda em História/UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired.
348 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
sempre renovada, como por exemplo, na luta contra Juan Manuel de Rosas e
na Guerra do Paraguai – chegou aos manuais e teses do Colégio Pedro II e
serviu como formadora de opinião para a maioria do público letrado
brasileiro, o que favoreceu para o afastamento do país em relação à “outra”
América (AZEVEDO, 2000). Mesmo em período de tranquilidade interna, os
exemplos “perniciosos” vindos de fora, especialmente do Prata, não eram
desprezados, e constantemente alardeava-se sobre “os perigos da anarquia que
ameaçavam a fronteira sul do Império” (AZEVEDO, 2000).
No entanto, a crise do regime monárquico brasileiro acarretou a revisão
de alguns argumentos utilizados na legitimação do regime político. Assim,
ater-nos-emos às formulações relativas às repúblicas americanas. O Manifesto
Republicano de 1870, embora evitasse o problema da abolição – essência da
monarquia – e não se aprofundasse no estudo da realidade econômica e social
do Brasil, atacava o exotismo da monarquia no continente. Naquele período, a
monarquia, “planta exótica na América” (MORENO, 2000, p.255), sofria
críticas políticas, que em última análise, contrariavam um aspecto fundamental
da identidade nacional durante o regime monárquico, pois refutavam o
discurso difundido sobre a superioridade brasileira frente às repúblicas
americanas.
Destacamos, contudo, que as propostas republicanas relativas à política
internacional brasileira baseavam-se em um idealismo sobre as questões
internacionais, restringindo a análise apenas à organização política do Brasil e
afirmando que o fato do Brasil pertencer à América constituía-se em razão
suficiente para se adotar uma política francamente americana. Segundo
Clodoaldo Bueno (1995), este romantismo apoiava-se na falta de
conhecimento do intrincado jogo de interesses inerentes ao sistema
internacional e no desconhecimento das dificuldades específicas existentes no
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 349
contexto sub-regional, e por este motivo esta política não prosperou por
muito tempo após a proclamação da República.
Entretanto, no mesmo período foram fundados inúmeros jornais
republicanos que deram continuidade à discussão levantada pelo Manifesto.
Neste sentido, destacou-se o jornal A Província de São Paulo, objeto de estudo
deste artigo. Como veremos a seguir, as diretrizes assumidas pelo referido
jornal, desde sua fundação, no ano de 1875, foram responsáveis por uma
construção singular deste periódico acerca de Estados Unidos e Argentina,
nos anos finais do Império, uma vez que não se apoiava nas imagens pré-
concebidas acerca destes países.
1
Referência ao artigo apresentado na seção Crônica Política, em 25 de julho de 1876.
354 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Título do editorial de 15/01/1884, referindo-se aos dados do, até então, último
recenseamento da Confederação Argentina.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 361
liderada por López Jordan. O fato ganhou destaque nas folhas do periódico e
a derrota do caudilho foi relatada dessa forma:
Conclusão
Os anos finais da monarquia no Brasil propiciaram um questionamento
acerca da política nacional em diversos âmbitos, inclusive a respeito das
relações interamericanas, vistas até então com muitas desconfianças. A
historiografia apresenta os primeiros aspectos de uma aproximação brasileira
com os demais países americanos a partir da proclamação da república,
quando se iniciou o paradigma da interação. No tocante à política de Estado,
certamente o discurso de aproximação teve que esperar a ascensão dos
republicanos ao poder em 1889, com seu idealismo a respeito das questões
internacionais. No entanto, a atuação destes mesmos republicanos, que
tiveram no jornal A Província de São Paulo um de seus principais divulgadores,
apresentou a uma parcela dos brasileiros um novo olhar às repúblicas do
continente desde o ano de 1875, e que contrariavam aspectos inerentes à
própria identidade nacional, uma vez que rechaçavam a superioridade do
império frente aos países vizinhos. A principal motivação dos representantes
do jornal centrou-se na apresentação do modelo político e econômico que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 367
almejava para o Brasil: uma república federativa e liberal, cujo modelo maior
eram os Estados Unidos. No entanto, outra marca do pensamento político
dos representantes do jornal, o cientificismo manifesto no confronto entre
latinos e anglo-saxões, levou a Argentina – uma nação que, no tocante à filiação
latina, se assemelhava muito com o Brasil – a ter seu exemplo mais
insistentemente veiculado pelo jornal. As críticas referentes à política nacional
eram sempre respaldadas pelos exemplos destes dois países, que apresentavam
ao Brasil a solução para os “males do império”.
Referências:
Fontes
Bibliográficas
O
período que compreende ao último quartel do séc. XIX e às
primeiras décadas do séc. XX tem como característica principal a
mudança e a necessidade de formação de um novo panorama
político e social. Os progressos materiais se consolidarão, sem, no entanto,
significar grandes mudanças nos costumes e nas condições econômicas da
população. Entendemos que a situação que se colocava no país, naquele
momento, era reflexo da ambição por parte da elite agrário-exportadora, que
apesar das disputas internas pelo poder, estava de acordo no que dizia respeito
ao desenvolvimento científico, e estimulava a incorporação de novos métodos
às profissões técnicas, tendo em vista o desenvolvimento e aprimoramento
dos cursos. Essa categoria incentivará o surgimento de novas profissões
ligadas à ciência, assim como a implementação de novos institutos e a criação
de universidades.
Minas Gerais era importante Estado no cenário político e econômico,
ficando atrás de São Paulo e Rio de Janeiro e, no entanto, não possuía uma
escola de minas, sendo assim prejudicado no cenário que tendia à expansão do
ensino (TURAZZI, 1989). A convite do Imperador, Gorceix é contratado
para organizar a nova escola, ficando responsável, inclusive, pela escolha do
local, optando pela cidade de Ouro Preto, por se encontrar perto das minas e
onde seria possível o desenvolvimento de um ensino prático. O objetivo da
*
Mestranda em História/UNESP/Assis/Bolsista: CNPq. Orientador: Dr. Eduardo
Romero de Oliveira.
372 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
implantação de uma base técnica em São Paulo, e dos interesses das elites
nacionais em igualar-se aos países civilizados, partindo da valorização da
ciência em nome do progresso:
[...] voltemos a atenção para esta terra que será o theatro dos
nossos destinos, consideremos agora a vastidão do nosso território,
a feracidade do nosso solo, a extensão e capacidade dos nossos
rios, a grandeza das nossas mattas, tão ricas e tão várias... [...] e em
contra-posição carecemos de meios aperfeiçoados de locomoção,
multiplicados e amplos retalhando o nosso território, transpondo
os nossos rios e encurtanto as distâncias entre os centros que
produzem e os que consomem e promovendo o equilíbrio da
economia nacional. E foi para isso que se creou a Escola
Polytechnica de S. Paulo. Satisfacção de uma necessidade inadiável
é Ella um dos fructos bons da federação sem a qual nada teríamos
ainda conseguido; é Ella uma das manifestações da pujança deste
Estado. [...] Assim é que Ella a preparará para sustentar os foros de
independencia deste Estado e a forma de democracia de governo
que felizmente nos rege (SOUZA, 1894, p.9) 1.
1
Sessão de Inauguração da Escola Polytechnica. Palavra do sr. Dr. Bernardino de
Campos - Presidente do Estado - pela Casa Mercúrio - Souza, Sampaio & Leite. Typografia
a vapor Viuva Martha Wienke. São Paulo, 1894.
376 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
São Paulo (Estado). Câmara dos Deputados. Annaes da sessão Ordinária de 1892. S.L.P,
1893.
3
Discussão sobre o projeto n. 9 apresentado pelo Sr. Paula Souza em 20 de abril de 1893 e
debatido pelo Sr. Gabriel Prestes (art. n.01). Documento n. 4.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 377
4
Tréplica feita pelo Sr. Paula Souza durante a discussão sobre o projeto n. 9 apresentado
pelo mesmo em 20 de abril de 1892 e debatido pelo Sr. Gabriel Prestes. São Paulo
(Estado). Câmara dos Deputados. Annaes da sessão Ordinária de 1892. S.L.p, 1893.
378 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
7
Sessão de Inauguração da Escola Polytechnica. Palavra do sr. Dr. João Monteiro,
vice-diretor da Faculdade de Direito. Pela Casa Mercúrio - Souza, Sampaio & Leite.
Typografia a vapor Viuva Martha Wienke. São Paulo, 1894.
380 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referência
Fonte
Bibliografia
N
o ano de 1953, Ray Douglas Bradbury lançou seu romance
Fahrenheit 451, obra de ficção científica na qual fora descrita uma
sociedade futurista, na qual os livros haviam sido proscritos. O
simples fato de possuir obras literárias era considerado um crime. As casas,
por sua vez, seriam à prova de combustão e os bombeiros, sem função vital
nesta sociedade, seriam encarregados de queimar os livros. Ao debruçarmo-
nos sobre a sociedade brasileira no período compreendido, principalmente,
entre 1964-1985, podemos perceber a presença de autoridades do governo
federal com encargo figurativamente semelhante ao dos supracitados
bombeiros, a saber, censurar. É fundamental deixar claro que esta analogia é
sobremaneira figurativa, e que as funções são obviamente diferentes. No
entanto, em nossa pesquisa de mestrado, objetivamos perceber como a grande
imprensa brasileira atuou entre 1974 e 1976, buscando alternativas ao
cerceamento imposto pelo regime militar, que estava em um processo de
abrandamento, mas ainda vigorava. Objetivamos tal análise por meio da
cobertura dispensada pela grande imprensa brasileira do eixo Rio-São Paulo à
*
Mestrando em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
390 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
“não iremos publicar, mas o governo precisa saber”, em uma clara alusão ao
alinhamento necessário com órgãos do regime militar.
Para entendermos estes ocorridos, faz-se necessário o entendimento
dos fatos inerentes ao 25 de abril de 1974 e seus posteriores desdobramentos.
Para tal expediente, fazemos uso de algumas referências bibliográficas, entre
as quais se destaca o belo livro do historiador Lincoln Secco, que retrata os
motivos que levaram ao desencadeamento do processo revolucionário militar
contra a ditadura salazarista. O livro de autoria de Lincoln Secco (2004) torna-
se fundamental, na medida em que sua análise privilegia a grande duração do
acontecimento histórico, oferecendo, assim, um panorama das bases históricas
que convergiram no acontecimento político português de 1974. Secco esmiúça
o contexto histórico deste fato, fazendo-se como leitura obrigatória para o
conhecimento de episódio de tal importância na breve história do século XX.
Algumas outras obras sobre o contexto histórico português são denotadas,
como o livro de Francisco Carlos Palomanes Martinho, A Bem da Nação, o
qual, ainda que o autor trabalhe com um período diverso do que pretendemos
abordar, nos demonstra um excelente panorama do que foi o governo
ditatorial de Salazar.
Assim como a obra de Secco suscita a análise dos acontecimentos
prévios para compreensão da Revolução dos Cravos, a de Kenneth Maxwell
(1999) também o faz. Contudo, este autor utiliza a análise da revolução para
compreender os caminhos que a então nascente democracia portuguesa
tomara. Para tanto, elabora um panorama do agitado campo político
português ao longo dos séculos, e denota as particularidades da Revolução
Portuguesa de 1974-76, considerando-a como fator determinante para a
transição à democracia lusitana. Sua contribuição mais importante talvez seja
um ensaio bibliográfico que finaliza a obra, no qual há referenciais sobre
fontes e obras fundamentais para o estudo do tema. Com o panorama
392 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
reforçada mais pela boa vontade de empresários portugueses do que pela ação
da JSN.
A edição nº 298 da Veja, lançada em 22 de maio de 1974, é a primeira
após a Revolução dos Cravos, em que o tema não se encontra presente logo
na capa. Ainda, assim, o tema português preenche quase duas páginas da
editoria internacional, e segue contando com a presença de um enviado
especial ao território lusitano. O mote lusitano está publicado na Veja no
painel internacional e ainda em uma carta de um leitor, a primeira que
encontramos publicada sobre o assunto que fora sobremaneira abordado pelo
periódico. O leitor Gabriel Santiago faz saber que:
Referências
Vanessa ZANDONADE*
Introdução
A
relação entre mídia e política perpassa por situações de disputa de
poder constante. Tal fato é verificado na historiografia brasileira desde
o surgimento dos primeiros veículos de comunicação até a sua
expansão e abrangência com maior influência social, nos períodos seguintes.
Neste aspecto, das vertentes que podem ser objeto de estudo desta disputa entre
os dois campos no Brasil contemporâneo encontra-se, já na década de 1990, a
ação de lideranças de comunidades organizadas em torno da obtenção do direito
de se comunicar e produzir as suas próprias informações valendo-se de veículos
comunitários. Lideranças do bairro-favela de São Paulo, denominado Heliópolis,
reivindicaram o direito de possuir um veículo de comunicação desde a
implantação da Lei da Radiodifusão Comunitária, em 1998, e conquistaram este
direito somente em 2008.
A ausência da publicação de editais para a cidade de São Paulo, que daria
início ao processo de regularização e concessão das rádios comunitárias na
cidade, bem como a existência de jogos de interesses políticos, entre outros,
interferiram na possibilidade de uma haver uma rádio comunitária oficializada no
*
Mestranda em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
404 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Comunicação comunitária
[...] essa comunicação não chega a ser uma força predominante, mas
desempenha um papel importante da democratização da informação e
da cidadania, tanto no sentido da ampliação do número de canais de
informação e na inclusão de novos emissores, como no fato de se
constituir em processo educativo, não só pelos conteúdos emitidos,
mas pelo envolvimento direto das pessoas no fazer comunicacional e
nos próprios movimentos sociais. (PERUZZO, 2004, p.51).
1
O termo popular ou comunitário está inserido em uma tênue separação de definições da
comunicação caracterizada como emancipadora, envolvidos em uma ampla discussão
conceitual. Enquanto o popular é desenvolvido por grupos politizados e suas mensagens
buscam uma tomada de posição frente aos fatos políticos, além de se opor aos grandes
veículos de comunicação de massa, o comunitário se caracteriza por uma comunicação feita
pela comunidade e para a comunidade, não necessariamente contendo posturas políticas no
sentido partidário e ideológico da palavra.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 407
2
Intervozes, Revista. Concessões de rádio e TV: onde a democracia ainda não chegou.
Novembro de 2007. Caderno Especial. Durante o governo Figueiredo, entre 1979 e 1985, 634
canais de radiodifusão foram concedidos, divididos em 295 autorizações para rádios e 40
permissões de funcionamento a emissoras de TV.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 409
3
O processo de criação da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de
Comunicação pode ser verificado com detalhes em PEREIRA, Moacir. A democratização da
comunicação: o direito à informação na Constituinte. São Paulo: Global, 1987.
410 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Paulo, podem ser considerados como uma amostra das dificuldades da efetivação
do processo de democratização das comunicações no país.
Conclusão
Referência:
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutenberg à internet. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CAPPARELLI, S. Comunicação de massa sem massa. 3ª ed. São Paulo: Summus,
1986.
COGO, D. M. No ar… uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998.
DANTAS, H. Direitos políticos e participação popular: entre o desejo e a cultura
política nacional. In: PRAÇA, S.; DINIZ, S. (Orgs.). Vinte anos de Constituição. São
Paulo: Paulus, 2008. p. 227-246.
FERREIRA, M. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro,
p.314-332, dez. 2002.
FESTA, R.; SILVA, C. E. L. da. Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Edições Paulinas, 1986.
FIGUEIREDO, F.; GIGLIO, I. Políticas públicas de comunicação. In: PRAÇA,
S.; DINIZ, S. (Orgs.). Vinte anos de Constituição. São Paulo: Paulus, 2008. p.201-
226.
FISCHER, D. O direito de comunicar: expressão, informação e liberdade. Trad: Luiz
Roberto S. Seabra Malta. São Paulo: Brasiliense, 1982.
GIMÉNEZ, G. Notas para uma teoria da comunicação popular. Cadernos CEAS,
Salvador, n. 61, p.57-61, maio-jun. 1979.
INTERVOZES, I. Concessões de rádios e TV: onde a democracia ainda não chegou.
São Paulo, nov. 2007.
JEANNENEY, J-N. Uma história da comunicação social. Lisboa: Terramar, 1996.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 415
A
criação da TV Cultura por Assis Chateaubriand pode ser tomada
como uma antecipação por parte do empresário à concorrência
num quadro de possível crescimento do debate e das demandas do
uso do meio com propósitos cultural-educativos, inclusive dentro da órbita do
Estado.
Assim, dois dias após as comemorações de dez anos da inauguração da
primeira emissora de televisão do Brasil, foi inaugurada, no dia 20 de
setembro de 1960, a TV Cultura, canal 2, quinta emissora paulista e segunda
dos Diários e Emissoras Associados em São Paulo. O logotipo desta nova
emissora era “Cultura 2”, com o indiozinho, símbolo das Associadas,
localizado na letra “C”. Assis Chateaubriand nutria uma verdadeira paixão
pelos índios brasileiros, batizando várias de suas emissoras com nomes
indígenas, inclusive apelidando todo seu condomínio comunicacional de
“Taba Associada”. “Uma nova emissora associada a serviço do Brasil e
voltada para São Paulo”, “a mais paulista das emissoras de televisão”, “a
primeira em seu receptor” e “a caçula das Associadas” foram alguns dos
epítetos atribuídos à TV Cultura contidos em propagandas no dia da estreia
Mestrando em História /UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Áureo
Busetto.
418 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 set. 1960. 1ª Seção, p. 6.
2
Diário de S. Paulo, São Paulo, 16 out., 4 nov. e 25 dez. 1958; 21 e 23 abr., 14 maio e 11 jun.
1959.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 419
3
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 e 30 mar. 1960; 22 jun. 1960; 5 e 12 jul. 1960.
420 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
Diário de S. Paulo, São Paulo, 23 jul. 1960. 1ª Seção, p. 9.
5
Diário de S. Paulo, São Paulo, 5, 16 e 26 jul.; 1 e 14 set. 1960.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 421
9
Diário de S. Paulo, São Paulo, 22 e 28 set. 1960.
10
Segundo consulta às grades de programação de TV Cultura de São Paulo, publicadas
diariamente nos periódicos O Estado de S. Paulo e Diário de S. Paulo entre 21 setembro a 31
de dezembro de 1960.
11
Diário de S. Paulo, São Paulo, 12 out. 1960. 1ª Seção, p. 8.
424 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
12
Segundo consulta às grades de programação das emissoras paulistas, publicadas
diariamente nos periódicos O Estado de S. Paulo e Diário de S. Paulo entre 1 fevereiro a 31 de
dezembro de 1961.
13
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 abr. 1961, p. 17.
14
Diário de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 1961. 1ª Seção p. 6.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 425
15
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1 ago. 1963; Diário Oficial do Estado de São Paulo, São
Paulo, 1° ago. 1963, p. 1°.
16
Diário de S. Paulo, São Paulo, 3 mar. 1964. 1ª Seção, p. 9.
17
Diário de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1961. 1ª Seção, p. 9.
426 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
18
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 set. e 3 out. 1963.
19
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 out. 1964. 2ª Seção, p. 4.
20
Diário de S. Paulo, São Paulo, 23 set. 1964. 2ª Seção, p. 1.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 427
21
Diário de S. Paulo, São Paulo, 29 ago. 1964. 2ª Seção, p. 4.
22
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 abr. 1965, p. 21.
23
Diário de S. Paulo, São Paulo, 5 e 7 maio 1965.
428 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
24
Diário de S. Paulo, São Paulo, 21 maio e 12 out. 1966.
25
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 1966. 2ª Seção, p. 7.
26
Diário de S. Paulo, São Paulo, 6 maio 1966. 2ª Seção, p. 7.
27
Diário de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 1966. 2ª Seção, p. 7.
28
Diário de S. Paulo, 22 jan. 1967. 4ª Seção, p. 8.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 429
Pois, este, já no início da década de 1960, dava mostras de sua enorme crise
financeira. A emissora foi criada em um momento em que os veículos de
comunicação pertencentes aos Diários e Emissoras Associados agonizavam
diante de dívidas fiscais e previdenciárias, o que levou o condomínio a uma
grande recessão interna. Somando-se a isso, enfrentavam a concorrência de
um bolo publicitário cada vez mais dividido entre novas ou renovadas cadeias
de mídia. Como afirmou Rondini (1996, p. 25), além de sofrer das mesmas
debilidades que afetavam todo o grupo, a Cultura desenvolveu-se à sombra da
TV Tupi paulista. Sendo ambas emissoras Associadas, a Cultura era voltada
estritamente a um público regional e com pretensões menores que a Tupi.
Apesar dos investimentos em reestruturações tecnológicas, a atuação da
emissora barrava no fato de ser a segunda do condomínio comunicacional em
orçamento e projetos.
Somando-se as dificuldades dos Diários Associados e,
consequentemente, da TV Cultura, o Decreto-Lei nº 236, de 1967, em seu
artigo 12, estabeleceu, por razões de políticas públicas relativas à prevenção do
monopólio dos serviços de radiodifusão de som e imagem, que proprietários
privados ficariam limitados a um máximo de 10 concessões em todo território
nacional. O Regulamento dos Serviços de Radiodifusão definiu que um
concessionário poderia somente participar de uma emissora de televisão, em
um único mercado (JAMBEIRO, 2002, p. 63). Tal Decreto-Lei representou
um duro golpe contra as Emissoras Associadas, que, naquele momento, se
constituíam em 18 estações de televisão, e deveriam se adequar ao novo limite
máximo de 10. A Cultura, muito provavelmente, não fosse uma das 10
emissoras escolhidas para continuar sob a posse dos Diários Associados,
buscando este se adequar à nova legislação. Ademais, a regra legal que impedia
a um mesmo grupo ter a posse de mais de uma emissora de televisão na
mesma localidade agravava a situação da Cultura. Pois, a TV Tupi e a TV
430 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências
Fontes
Bibliográficas
Introdução
E
ste texto tem o objetivo de historiar as principais ações e os
debates empreendidos pelos agentes dos campos político,
educacional e televisivo em matéria de teleducação no Brasil
durante o regime militar (1964-1985).1 Refletir acerca da interface entre esses
campos é de suma importância para a compreensão do significado das
medidas tomadas durante os governos militares, seja por agentes
governamentais, seja por agentes televisivos, que alteraram decisivamente o
espaço que a educação ocupou na TV brasileira. Desse modo, nossa análise
busca historiar o período com base em uma perspectiva socio-histórica,
tributária da sociologia da prática de Pierre Bourdieu, que nos permita
compreender com densidade histórica o significado das práticas desenvolvidas
pelos agentes envolvidos com a teleducação ao longo do regime militar no
Brasil.
Pretendemos, por meio de nossa análise, demonstrar como as ações
desenvolvidas pelos governos militares – desde a criação de órgãos de
regulamentação, passando pelas TVs educativas – não conseguiram atingir os
*
Mestrando UNESP/Assis/Bolsista: CAPES. Orientador: Dr. Áureo Busetto.
1
Uma versão preliminar desse texto foi apresentada no XII Encontro Regional da Anpuh-
PR - Regiões: Imigrações, Identidades. Realizado entre os dias 10 e 12 de outubro de 2010, em
Irati-PR.
434 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Os modelos televisivos
Conclusão
própria televisão. A única exceção foi o Telecurso, que logo após o seu
surgimento, em 1978, prosseguiu e se tornou o paradigma de teleducação no
Brasil, o que é exemplificado nos seus mais de 30 anos de existência,
demonstrando a perspicácia de seu idealizador Roberto Marinho em situação
de relação e concorrência com os outros agentes do campo televisivo.
Referências:
Introdução
E
xistem muitas maneiras de se contar a história do regime militar
brasileiro, e o acesso a novas fontes transforma a produção
acadêmica do período, marcada, por muito tempo, pelo
memorialismo e pela escassez de fontes primárias (FICO, 2009).
Atualmente, a pesquisa histórica direcionada para o período ampliou e
diversificou para as mais variadas vertentes, tais como, a análise por meio da
crônica política, a repressão, os movimentos ligados à igreja católica, a
sistematização da tortura, os ciclos econômicos, a sucessão dos generais
militares e os meandros da aliança civil-militar.
Existe, ainda, o caso deste trabalho, que pretende examinar a ditadura
militar brasileira voltando os métodos de análise para a propaganda
“comercial”, na televisão, durante os anos de 1969-1977.
Todas as vertentes de pesquisa vêm “[...] transformando aos poucos o
padrão da literatura existente” (FICO, 2009, p.169), seja por meio de novas
análises sobre fontes “antigas” seja por meio da análise de “novas” fontes para
a pesquisa.
*
Mestrado em História /UEM/Bolsista: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Reginaldo
Benedito Dias.
450 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Cabe ainda uma ressalva, como assinala Fico (2009), o interesse pelo
período não é novo, ao contrário, começou desde o momento do golpe com a
tentativa de responder o porquê, tanto o presidente quanto a esquerda que se
dizia articulada, não resistiram ao golpe e o país mergulhou em uma ditadura
por muitos anos.
Carlos Heitor Cony e Marcio Moreira Alves foram os primeiros a
apontar os “excessos” do regime. O primeiro reuniu suas crônicas em um
livro chamado O ato e o fato, em sua noite de autógrafos, junho de 1964, o
lançamento se transformou em uma verdadeira manifestação política,
tamanho o sucesso de público e vendas. O segundo, ao fazer uma excursão
pelo Nordeste, reuniu matérias sobre os casos de tortura, o que obrigou
Ernesto Geisel (futuro Presidente), então chefe da Casa Militar, a apurar as
denúncias sobre as torturas, no retorno:
[...] também pode ser contada como sendo a história da luta pela
constituição da memória correta, na qual versões algo romantizadas
dos remanescentes da assim chamada “luta armada” [...] se
confrontam com o verdadeiro “acordo implícito” sobre certos
temas (tortura principalmente) que se verifica nos depoimentos
militares. (FICO, 2009, p. 171).
1
Adotou-se o adjetivo “comercial” para deixar claro a diferença entre as propagandas
oficiais que veicularam no período.
454 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
grandes perspectivas para o Brasil. O Estado agora passa a ter um novo tipo
de legitimidade, baseada na eficiência do modelo econômico.
O terceiro momento, que começa nos anos de 1975 e se estende até
1980, é o período de desaceleração do crescimento e o início de uma crise,
interna e externa. Mesmo com uma recuperação em 1976, o modelo
econômico não conseguiu se sustentar e nem produzir muitos frutos.
Os anos do milagre brasileiro são marcados por dois momentos
diferentes, ou seja, ao mesmo tempo em que o Brasil vivia o auge do seu
otimismo, do sentimento de que faltaria pouco para o país entrar no seleto
grupo de nações do dito “primeiro mundo”, havia movimentos de
contestação do regime vindos de diversos setores da sociedade, como
estudantes, alguns sindicatos e a guerrilha.
O auge da expansão econômica no período militar pode ser estudado
sobre vários prismas, no presente estudo tentar-se-á entender como ele foi
visto pelas classes médias e como estas se aproveitaram dos seus benefícios.
É evidente que não se pode traçar um panorama de como todas as
pessoas desse extrato social sentiram as consequências do milagre, porém
pretende-se mostrar como ele afetou o mercado interno, favorecendo o
desenvolvimento mais rápido de agências de publicidade e do avanço da
propaganda.
Sendo assim, discorrer-se-á sobre as medidas empreitadas pelo “novo
ministro” Delfim Neto e as consequências, dentro do mercado interno
brasileiro, com a propagação e popularização de produtos, muitos ainda tidos
como artigos de luxo.
As principais medidas empreendidas por Delfim foram: O aumento do
crédito privado, ou seja, um estímulo à demanda pelo afrouxamento do
crédito (ao contrário da política até então praticada), utilização da capacidade
ociosa da indústria, o controle dos preços (exercido por meio de um decreto
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 457
2
Evidentemente quando se discorre sobre o apoio social que a ditadura angariou com o
surto econômico, não se pode englobar a sociedade como um todo. Existe uma bibliografia
vasta que abarca os movimentos sociais, os partidos de esquerda e as guerrilhas que fizeram
uma ampla oposição ao regime, porém, este heroico combate ao regime não é o foco do
presente estudo, o qual está voltado para o apoio social que a ditadura recebeu, que se não
foi total, foi significativo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 465
Por todo aquele período, diversos setores da sociedade civil, por todo o
país, fizeram parte dos festejos de comemoração:
A propaganda brasileira
3
Anúncios retirados de MARCONDES, Pyr. 200 anos de propaganda no Brasil: do reclame ao
cyber anúncio. São Paulo: Meio & Mensagem, 1995. p. 55.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 471
4
A partir de agora, a referência no texto, de tal depoimento, será feita da seguinte maneira:
RD/CPDOC.
472 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
5
Dados retirados de: Maria Arminda do Nascimento Arruda. A embalagem do sistema: a
publicidade no capitalismo brasileiro. 2ª ed. Bauru: Edusc, 2004. Salvo por indicação, os
números referentes à propaganda, durante os anos 1970-1975, provêm daquele estudo.
474 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
À beira do abismo
À beira do abismo... para aí construir uma das grandes nações do
mundo: quinta em território, oitava em população, décima em
produto nacional bruto – e ampliar-se em petróleo, aço, energia
elétrica, celulose, num ritmo de vida que é estímulo e certeza.
À beira do abismo... para aí erguer, em dois decênios, a maior
nação industrial dos trópicos, o parque manufatureiro que é
tratores e turbinas, caminhões, automóveis, refrigeradores, navios –
a produção de um nível melhor para todos.
À beira do abismo... para aí edificar duas das maiores cidades do
globo... para aí criar a maior nação latina e católica de nossos
tempos – a mais expressiva cultura moderna do continente.
À beira do abismo... porque dessas alturas onde plantamos nossa
bandeira, se descortina melhor o panorama do futuro, e o abismo
se transforma em brancura de edifícios, várzeas produtivas,
montanhas de cimento, por onde trilharemos novos caminhos,
encontrando sempre, como até hoje, como tantas vezes no
passado, a porta que conduz à segurança, ao progresso, à paz! 6
(CADENA, 2001, p.166).
6
Nélson Varón Cadena. Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições Referência,
2001, p. 166.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 479
7
Dados de Nelson Varón Cadena: Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições
Referência, 2001.
482 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências
ALVES, M. H. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: Edusc, 2005.
A GRANDE CAMPANHA. Veja. nº 402, p.29, mai/1976.
ARRUDA, M. A. do N. A embalagem do sistema: a publicidade no capitalismo
brasileiro. 2ª ed. Bauru: Edusc, 2004.
BRANCO, R. C.; MARTENSEN, R. L.; REIS, F. (Orgs.). História da
propaganda no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz, 1990.
BRANCO, C. C. Os militares no poder: Castelo Branco. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1977.
BRANCO, C. C. Os militares no poder: o ato 5. Rio de janeiro: Nova Fronteira,
1978.
BRANCO, C. C. Os militares no poder: o baile das solteironas. Rio de Janeiro, 1979.
BUSETO, A. Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar: um
episódio sobre a relação regime militar e televisão. In: KUSHNIR, B. (Org.).
Maços na gaveta: reflexões sobre a mídia. Niterói: EDUFF, 2009.
CADENA, N. V. Brasil – 100 anos de propaganda. São Paulo: Edições
Referência, 2001.
CAPARELLI, S. Televisão e capitalismo no Brasil. Porto Alegre: L&PM, 1982.
CASTRO, C.; D´ARAUJO, M. (Orgs.). Dossiê Geisel, Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2002.
CORDEIRO, J. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o
governo Médici. Revista Estudos Históricos, América do Norte, Vol. 22, n. 43
(2009).
COSTA, A. H. da; KEHL, M. R.; SIMÕES, I. F. Um país no ar: História da TV
brasileira em três canais. São Paulo: Editoria Brasiliense S.A., 1986.
D’ARAÚJO, M. C.; SOARES, G. A. D.; CASTRO, C. (Orgs.). Visões do golpe:
a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Delume Dumará, 1995.
D’ARAÚJO, M. C; SOARES, G. A. D.; CASTRO, C. (Orgs.). Os anos de
chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Delume Dumará,
1994b.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 483
A criação
O
s questionamentos acerca das instituições ligadas ao patrimônio
permeiam diversos debates na História Política e têm aberto uma
série de possibilidades de pesquisa. São destacadas as pesquisas
que versam sobre o patrimônio cultural e a sua formação no interior dos
organismos que o direcionam em vários aspectos, entre eles o da preservação.
Entre os setores da cultura sobressai o cinema que ganhou novo destaque no
Brasil na década de 1990 e foi alvo de inúmeros dispositivos legais e
mecanismos de fomento nas últimas duas décadas. A criação da Agência
Nacional de Cinema (ANCINE) é um dos mais fortes indícios dessa retomada
e, ao mesmo tempo, de determinadas alterações nos padrões de fomento e
controle da atividade. O objetivo deste trabalho é questionar a criação da
ANCINE, em 2001, analisando o contexto em que ela foi criada, além das
mudanças e permanências que a instituição provocou ou não no setor.
A ANCINE é a responsável pela regulamentação, fiscalização e
fomento da indústria cinematográfica nacional. A Agência foi criada no ano
de 2001, durante o mandato do, então, presidente Fernando Henrique
Cardoso, no momento em que o Brasil passava por algumas mudanças no
aparelho administrativo do Estado em função, sobretudo, das sucessivas
privatizações de setores estratégicos da economia nacional, tais como os de
*
Mestrando em História /UNESP/Assis. Orientadora: Drª Célia Reis Camargo
486 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Estado e Governo
1
As informações acerca de tais gestões do MEC podem ser encontradas em MICELI, 1984, p. 54-83.
490 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
A ideologia Cultural pode ou não consolidar uma elitização da cultura brasileira, e a
alocação desigual dos recursos para preservação pode aumentar desníveis regionais
e/ou favorecer determinados grupos sociais.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 491
E mais:
494 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Algumas Considerações
Referências:
Fontes:
Bibliográficas:
O
campo da saúde mental vem se constituindo em um novo
paradigma, especialmente a partir do acúmulo de conhecimento
advindo das novas práticas de produção de cuidado: a Atenção
Psicossocial. Este novo paradigma designa um conjunto de novas experiências
na saúde mental, agregando ao seu objeto aspectos psíquicos e sociais,
acrescentando críticas radicais às práticas psiquiátricas tradicionais e
apresentando a interdisciplinaridade como exigência, ao propor em seus
fundamentos a horizontalização das relações intrainstitucionais. A este
paradigma são acrescentadas contribuições de movimentos de crítica mais
radical à Psiquiatria, como a Antipsiquiatria, a Psiquiatria Democrática e
alguns aspectos originários da Psicoterapia Institucional, que aspiraram para
este campo de saber outra lógica, outra fundamentação teórico-técnica e outra
ética, visando à transformação da prática psiquiátrica e a negação do Modo
Manicomial (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2001).
Entre as características deste novo paradigma, destacam-se quatro
dimensões fundamentais que compõem a sua complexidade: a epistemológica,
a técnico-assistencial, a jurídico-política e a sociocultural (YASUI, 2006;
*
Mestrado em Psicologia /UNESP/Assis/Bolsista; CAPES/CNPq. Orientador: Dr. Silvio
Yasui
504 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
A saber, dimensão entendida “como a constituição de uma rede de novos serviços, como
espaços de trocas, de sociabilidade e de subjetivação, a partir e simultaneamente à
desconstrução dos conceitos que sustentam a prática psiquiátrica e a reconstrução de novos
conceitos.” (AMARANTE 1999, 2003 apud YASUI, 2006).
2
http://www.saude.mg.gov.br/atos_normativos/legislacao-sanitaria/estabelecimentos-de-
saude/saude-mental/PORTARIA_224.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2008.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 505
3
Para mais informações sobre essas rupturas, ver Yasui (2006) e Amarante (2003).
4
A experiência do grupo Harmonia Enlouquece, que fez participações até mesmo em uma
novela do horário nobre da Rede Globo de Televisão, é abordada por Calicchio (2007).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 507
5
Uma cópia do questionário se encontra em anexo.
508 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
secundários no projeto que se fazem serem vistos, e que são inclusos em cada
“gestão” do projeto. Em 2003, por exemplo:
Foi somente em 2007 que a banda foi capaz, com o preparo de seis
meses de antecedência, fazer a viagem para Buenos Aires, graças à insistência
512 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
passou a ser composta por uma grande quantidade de músicos, o que auxiliou
na qualidade musical que há tanto tempo se almejava.
Um deles, inclusive, deu continuação ao sonho de elaborar um
repertório próprio, utilizando as letras compostas por um dos vocalistas da
banda, um dos usuários do sistema de saúde mental. Daí nasceram as três
músicas originais da banda: Comprimido, Professor e Psicologia.
Foi também nesse último período que a Faculdade de Ciências e Letras
de Assis recebeu a visita da banda Harmonia Enlouquece, que se apresentou
na Faculdade, juntamente com a banda LOKONABOA:
Certa vez, no CAPS, chamei uma usuária que estava em surto, não
falando nada com nada. Ela sentou num corredor próximo de onde
a banda estava tocando, parecia que não queria ser vista pelos
outros, não pegou nenhum instrumento, apesar da minha
insistência. Perguntei se ela iria ficar bem ali, sozinha, ela
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 515
respondeu que sim. Poucos minutos depois fui ver como ela
estava. Ainda estava lá, cantando baixinho. Ao conversar com ela,
sua lucidez havia retornado. (Estagiário 3 - informação verbal).
acadêmicos em geral, seja para quesitos documentais, para que, num futuro, a
história deste projeto não se perca para sempre.
E por falar em história, cabe acompanhar Foucault, num exercício de
imaginação, que leva a um futuro distante, onde o desaparecimento da loucura
não seja mais um fato em processo, ou mesmo recente, mas um sonho
concretizado:
[...] entre as mãos das culturas historiadoras não restará mais nada a
não ser as medidas codificadas da internação, as técnicas da
medicina e, do outro lado, a inclusão repentina, irruptiva, em nossa
linguagem, da fala dos excluídos. (FOUCAULT, 2006, p. 211).
Referências
DREYFUS, H., RABINOW, P. Michel Foucault uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU/PUC Rio,
1996.
______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martin Fontes, 1999.
______. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
______. Sobre a arqueologia das ciências, resposta ao circulo de
epistemologia. In: MOTTA, M. B. (Org.). Foucault Arqueologia das ciências e
história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.
82-118.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34,
1992.
IORI-GARCIA, G. Z. et al. A estratégia genealógica e a produção de
saber/poder/verdade nas práticas de saúde. In: CONSTANTINO, E. P.
(Org.). Percursos da pesquisa qualitativa em psicologia. São Paulo: Arte & Ciência,
2007. p. 79-102.
LIMA, E. A. Clínica e Criação: um estudo sobre o lugar das atividades nas
práticas em saúde mental. 1997. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica)
- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.
PELBART, P. P. A nau do tempo rei: 7 ensaios sobre o Tempo da Loucura. Rio
de Janeiro: Imago, 1993.
______. Da clausura do fora ao fora da Clausura: Loucura e Desrazão, São Paulo:
Editora Brasiliense, 1989.
SANTOS, B. S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na
transição paradigmática. Volume 1: A crítica da razão indolente – contra o
desperdício da experiência. São Paulo, Cortez, 2000. v. 1.
VEYNE, P. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília:
Ed. Universidade de Brasília, 1995.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 519
Anexo
Questionário da pesquisa
O roteiro de entrevista que se segue consiste em quatro partes,
separadas para facilitar a organização das respostas pelo pesquisador.
Não é importante, de forma alguma, que sejam respondidas em escrita
formal ou sejam levantadas questões teóricas de campo algum do saber. Sinta-
se livre para escrever conforme melhor entender e não se importe com
quantidade mínima/máxima de linhas, páginas ou afins.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi encaminhado a
você juntamente com esse roteiro, e é importante enviá-lo de volta ao
pesquisador devidamente assinado, juntamente com a entrevista, para
possibilitar a utilização do material da entrevista na elaboração da dissertação
sobre a banda Lokonaboa.
O pesquisador, desde já agradece sua colaboração e se compromete a
mantê-lo informado sobre o andamento da pesquisa.
I. Histórico
1. Quais anos em que participou do projeto?
2. Conte como foi sua participação na banda Lokonaboa e/ou na oficina de
música (quando entrou, quais os objetivos na época, principais angústias...)
3. De quais apresentações você se lembra? Como foram?
4. Você se lembra de quais usuários participavam? De quantos participavam?
II. Terapêutica/Clínica
1. Como é/era a relação com os usuários da banda?
520 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2. Para você, qual o sentido que a banda fazia para esses usuários?
IV. Outros
1. Acredita que há algo mais a ser dito? Algo que não foi contemplado nas
questões acima?
Carnavais Cariocas: entre a teoria e a prática
E
ste texto tem por objetivo pensar a produção historiográfica
referente ao carnaval, e mais precisamente o carnaval carioca. Sabe-
se, de antemão, que a produção sobre o tema, em certos períodos,
ainda é escassa, tendo em vista o privilégio de abordagens políticas e
econômicas comparado às manifestações culturais para perfazer o percurso
histórico social. Nesse sentido, outros temas são alçados para a reconstrução
do passado a partir do viés cultural, incluindo manifestações culturais diversas,
que exprimiam sentido e condição de grupos sociais variados. Assim, o
carnaval como tema de estudo, faz parte desse movimento. Dimensionar a
produção referente a esse tema é tarefa útil e obrigatória para que se pese o
avanço dos estudos culturais.
O alargamento da concepção de fonte histórica, propiciado pela Nova
História Cultural, traz à tona indivíduos e manifestações até então alijados
desse processo, tendo em vista a preferência que era concedida às questões, já
assinaladas, como via para se entender o passado.
*
Mestrando em História/UNESP/Assis/ Bolsista CAPES/Orientadora: Prof. Dr. Zélia
Lopes da Silva.
522 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
A História deixa de ser global e passa a ser serial, o tempo único cede
lugar a temporalidades heterogêneas. A seriação dos fatos pertencentes a
conjuntos homogêneos pode medir as flutuações do objeto aferido dentro de
sua própria temporalidade.
A história serial privilegia as descontinuidades, busca nas margens do
social o contorno do real. O louco, a criança, o corpo e o sexo ganham foco
nesse rol de novos objetos que perfazem a realidade descontínua (DOSSE,
1992, p.185).
A abertura histórica a outras ciências sociais além de ser uma defesa
aberta da História como ciência, perpassa a influência da modernidade e suas
técnicas como influenciadora dessa modificação,
povo, pois abarca tudo que existe; e também ambivalente, porque opõe
popular/erudito.
As formas e as imagens da festa popular na obra de Rabelais podem ser
vistas por meio do seguinte exemplo:
Por meio das injúrias, dos golpes, o soberano – escolhido pelo povo – é
destronado. Nos rituais de destronamento/injuriação, o chicaneiro é, ao
mesmo tempo, o representante da velha e da nova ordem. Mata-se, espanca-se
o antigo para que o novo renasça a partir daquele mesmo (BAKHTIN, 1993,
p. 174-5). Tudo isso se faz rindo e para rir. O destronamento do velho poder,
do velho mundo, da antiga verdade morre e dele mesmo brota o novo,
materializado na figura do chicaneiro.
Mesmo que passageiro, o carnaval enraíza-se no âmbito ideológico dos
anseios e da busca por um futuro díspar do presente,
nesses dias de festa sob a tutela das Grandes Sociedades e, por consequência,
o modelo europeu (CUNHA, 2001, p. 86-89).
Posteriormente, na interpretação de Maria Isaura Pereira de Queiroz,
graças ao crescimento industrial e demográfico e à remuneração da mão-de-
obra negra e imigrante, surge, no início do século XX, o “pequeno carnaval”
(QUEIROZ, 1992, p. 64). Composto por habitantes dos morros e das regiões
periféricas, que propunham uma nova maneira de festejar, despretensiosa no
que tange aos estatutos e outras formas representativas de desfile, como a
grandiosidade dos carros alegóricos das Grandes Sociedades.
Em um breve histórico, Queiroz pontua o avanço do carnaval popular,
ou pequeno carnaval, inserido numa proposta de valorização da cultura
nacional. Em 1936, Vargas legaliza as Escolas de Samba, inserindo-as no
calendário festivo oficial. Com algumas exigências que incidiam no programa
de desfiles das Escolas, tais como a proibição de propaganda reivindicadora e
alusão comercial. Em meio às “orientações” propostas pelo poder público, as
alusões a temas ligados à história do país, suas riquezas e à possibilidade de
progresso e modernidade por meio dos mesmos, ganhavam destaque
(QUEIROZ, 1992, p. 94).
Segundo Maria Clementina Pereira Cunha (2001, p. 192), Queiroz
monta uma sucessão das formas de brincar o carnaval, vista como separadas,
deixando de contemplar a convivência de ambas nos espaços que a folia
ocupava nesses dias, bem como as representações interiores e exteriores e suas
possíveis trocas. Ou seja, não determina, por exemplo, como os ranchos e
cordões enxergavam-se.
Rachel Soihet ao discutir o trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz
considera que este “soa como uma arriscada generalização”, pelo fato desta
não considerar as particularidades referentes a determinados eventos atendo-
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 531
[...] uma história social da cultura que o faça retornar ao leito dos
conflitos, da mudança e do movimento próprios à história; chegar
perto de tensões e diálogos entre sujeitos que nem sempre estão
reconciliados sob o reinado de Momo. (CUNHA, 2001, p. 16).
2
A autora, tal qual Soihet, no trecho que segue, critica as análises que instauram uma
posição contra uma “[...] infância colonial do entrudo, seguida pela adolescência enfatuada
e esnobe dos préstitos venezianos de oligarcas afrancesados, por fim substituídos pela
maturidade original e cadenciada das escolas de samba que celebram e exprimem a imagem
que nos reconcilia, acima da diversidade e das profundas desigualdades entre brasileiros.”
(SOIHET, 2001, p.15).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 537
Referências:
SILVA, Zélia Lopes. Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo:
metamorfoses de uma festa (1923-1938). São Paulo: Editora Unesp; Londrina:
Eduel, 2008
SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia - algumas
abordagens. Revista Tempo, nº 07. Terra e Trabalho. s/ano. Recebido para
publicação em jun. 1998a.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Estudos sobre o carnaval carioca da
Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas, 1998b.
Festa: um dia de exceção
O
ensaio foi o gênero literário que, em determinado momento da
história intelectual da América Latina (aqui nos focamos na
primeira metade do século XX), permitiu a comunicação e a
coexistência com outros tipos de produção e de tendências, como por
exemplo, as relacionadas ao nacionalismo como defesa e reivindicação da
identidade, e com as escolas psicológicas que exerciam evidente influência
sobre as questões da busca por um caráter nacional. Essa confluência de
temas e tendências diversas, como a psicológica, a filosófica e a social,
proporcionou discussões que configuram um estilo de pensamento e de
realização de ideias bastante enriquecedor para o pensamento latino-
americano, indicando um salto qualitativo em suas produções (DEVÉS
VALDÉS, 2000, p. 9-10).
Nesse sentido, encontramos na produção ensaística da América Latina
uma extensa série de “radiografias” acerca das várias culturas nacionais, como
Radiografia de la pampa (1937), do argentino Ezequiel Martinez Estrada, Casa
Grande e Senzala (1933), do brasileiro Gilberto Freyre, Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana (1928), do peruano José Carlos Mariátegui,
entre outros. A obra de Octavio Paz, apesar de publicada no ano de 1949,
quando já havia passado, então, o auge dos ensaios identitários, pertence ainda
*
Mestre em História /UNESP/Assis. Orientador: Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa.
550 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
a esse grupo, figurando como uma das mais importantes, tanto dentro da
produção pazeana, como para as discussões sobre a identidade nacional na
América Latina. Essa importância é marcada tanto pelo estilo ensaístico de
Paz, como pela maneira como este elaborou as discussões sobre identidade
em seu tempo.
De maneira geral, em O labirinto da solidão, Paz escreveu – nos nove
ensaios que compõem a obra – sobre temas variados que, segundo ele,
ajudavam na busca pelo entendimento do que viria a ser o mexicano no
mundo, suas relações entre si e com os outros homens, no advento da
modernidade da segunda metade do século XX, utilizando para isso
instrumentos vindos da psicanálise, da antropologia e dos estudos
sociológicos sobre as religiões e mitologias. Vinte e cinco anos depois da
primeira edição de O labirinto, em entrevista ao jornalista francês Claude Fell,
Paz afirmou que seu livro de 1950 havia surgido como tentativa de resposta
pessoal à situação cultural de seu tempo (PAZ, 2001, p. 269).
Quando vislumbramos a estrutura geral do livro, percebemos uma
organização que conduz do particular (o mexicano e o México), para o geral
(o mexicano e o México no mundo). Notamos que essa é uma estratégia do
livro, presente em todos os ensaios: caminhar do particular para o geral,
dando-se, assim, o que Paz chamou de “ritmo” para a história. No entanto,
ressaltamos que esse movimento que tentamos estruturar, não está dado, não
é evidente. Esse ritmo surge do manejo da linguagem que o ensaio
proporciona por meio de sua descontinuidade, de sua experimentação, de
certa flexibilidade na composição, que, segundo Santí (1997), Paz já usa com
propriedade, apesar de ser seu primeiro grande exercício ensaístico.
Podemos então destacar um padrão dialético na composição interna
dos ensaios de El laberinto, assim como na relação externa entre os ensaios, na
composição total do livro. Esse padrão que integra os textos permite,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 551
também, que estes sejam tratados separadamente, como é o caso deste artigo,
em que pretendemos abordar mais detidamente o terceiro ensaio, “Todos os
Santos, Dia de Finados”, no qual Paz trata de questões culturais do México
com relação às festas religiosas e cívicas, entendidas como explosões de
vitalidade, de necessidade de encontro com o outro, de comunhão com o
semelhante, e, seguindo o ritmo dialético de sua escrita, a cultura mexicana da
morte, hermética para o mexicano moderno, já esvaziada do sentido
transcendente que tinha tanto para o ancestral asteca quanto para o
colonizador cristão, mas que ainda participa de seu cotidiano, mesmo que para
demonstrar sua indiferença a ela.
Logo no título escolhido por Paz já encontramos duas imagens
marcantes que percorrem todo o livro: o labirinto e a solidão. Essas imagens
são imprescindíveis para todos os ensaios, tanto que foram escolhidas
justamente para dar unidade ao livro, como ressalta Paz em carta ao poeta e
amigo Alfonso Reyes (STANTON, 1998, p. 96), porque remetem à questão
da orfandade. Segundo Paz, o mexicano seria um ser que se sente isolado em
meio à racionalidade do mundo moderno, apartado de sua origem mítica pela
brutalidade da Conquista espanhola. Assim, suas atitudes diante do outro são
sempre de reserva, de desconfiança e submissão. Em todos os ensaios de El
laberinto, Paz tenta demonstrar o sentimento de orfandade do mexicano, e,
portanto, sua busca pela comunhão com os outros homens e com o mundo
moderno.
Assim, a abordagem desse sentimento de orfandade, presente no
terceiro ensaio “Todos os Santos, Dia de Finados”, é perpassada pelos
significados que Paz atribui à figura e significado mítico do labirinto e ao
sentimento de solidão.
Dentre as formas possíveis da figura do labirinto, conforme nos aponta
Umberto Eco (1989, p. 23-48), Paz escolheu o labirinto clássico, identificado
552 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
como aquele que possui uma só saída, por isso, não existe engano possível em
seu trajeto. Ainda segundo Eco, se fosse possível desenrolar os traçados do
labirinto clássico, este se converteria no próprio fio de Ariadne: o fio condutor
da história.
Assim, temos o uso do mito aliado à história, interferindo também no
entendimento do tempo na obra pazeana. Segundo Aguilar Mora (1978), a
relação entre história e mito está presente na obra de Paz “La divina pareja”,
na qual as divisões temporais (passado – presente – futuro) são trabalhadas de
forma concomitante. Os acontecimentos desde a Conquista, os passados
indígena e espanhol até o momento em que escreve, a primeira metade do
século XX, são pensados e trabalhados nos ensaios de forma que não se
excluem, não se sobrepõem. Eles surgem integrados entre si no presente. O
passado não está excluído do presente, mas oculto nele.
Aguilar Mora (1978) assinala que essa integração dos tempos é uma
característica historicista, porque por meio dessa concepção aponta-se uma
única raiz mítica, de tradição como elemento imutável, como uma “entidade”
imóvel que espera uma “reencorporação”: “el historicismo con su “presente”
nos revela que está ahí, en el lugar lejano en donde el origen es origen.”
(AGUILAR MORA, 1978, p. 29-30). A interpretação que Paz faz das festas e
da morte, como veremos adiante, está inteiramente imbuída dessa ideia de
tempo fora do tempo, de tempo ideal.
Já a solidão surge com duplo significado: possibilidade de ruptura com
o mundo e tentativa de criar outro. A solidão apresenta-se como momento de
retiro, de expiação para a criação de outro lugar, de um novo ser. Dessa
forma, ela é a consequência da perda de um centro, de uma origem, sendo
ainda aliada ao sentimento de orfandade.
Esse sentimento surge em relação a questões importantes para se
entender o livro como a busca por uma idade primordial, uma “Idade de
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 553
1
Logo no início de seu livro Mito e realidade, Eliade (1998) relata sobre uma diferença
sensível na maneira dos eruditos ocidentais estudarem os mitos, contrastando da
perspectiva adotada no século XIX, por exemplo, que tratavam os mitos com a acepção
igual a de termos como “fábulas”, “invenção”, “ficção”. Numa nova perspectiva, os mitos
passam a ser entendidos como nas sociedades arcaicas, como “histórias verdadeiras”,
preciosas por seu caráter sagrado, exemplar e significativo.
556 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
idêntico, do retorno ao que identifica, de que existiria uma origem para a qual
seria possível o regresso: um começo para o tempo. Segundo Deleuze (1976):
Al morir
la aguja del instantero
recorrerá su cuadrante
todo cabrá en un instante
...
y será posible acaso
vivir, después de haber muerto.
2
Xavier Villaurrutia (1903-1950). Poeta e dramaturgo mexicano. Colaborou com a revista
Contemporáneos, e foi fundador do teatro experimental no México. Ficou conhecido por seus
dramas teatrais curtos, Autos Profanos. Em 1941, escreve sua peça Invitación a la Muerte.
3
José Gorostiza (1901-1973). Poeta mexicano também pertencente aos Contemporáneos.
Publicou Muerte sin fin em 1939.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 559
Para a análise mitológica que fez, Paz valeu-se de autores como Mircea
Eliade, Lucien Lévy-Bruhl4 e Roger Caillois. A revalorização positiva dos
mitos e de seus necessários ritos na sociedade moderna Paz encontrou no
livro de Caillois, El mito y el hombre (1939). Segundo sua leitura deste livro, o
herói moderno seria aquele capaz de nos revelar o que somos e o que
queremos, o que guardamos de mais íntimo, secreto, instintivo. E iria além:
não só nos outorgaria um conhecimento de nós mesmos, assinalaria a conduta
a ser tomada e revelaria o destino: o mito teria a força de ser uma fonte de
sentido, de identidade (SANTÍ, 1997, p. 167-220).
Segundo Santí (1997), a influência de El laberinto na literatura e no
pensamento do século XX foi extensa. Essa influência estaria presente em
obras importantes da literatura da América Latina, como em Pedro Páramo
(1955) de Juan Rulfo, La muerte de Artemio Cruz (1965) de Carlos Fuentes e
Cien años de soledad (1967) de Gabriel Garcia Márquez.
Voltando a já citada entrevista a Claude Fell, Paz afirma que El laberinto
de la soledad foi uma tentativa de descobrir e compreender certos mitos. Ao
mesmo tempo, e uma vez que se trata de uma obra de literatura, se converteu
ele mesmo, em um mito (PAZ, 2001, p. 241-260).
Referências:
AGUILAR MORA, J. La divina pareja. Historia y mito em Octavio Paz.
México: Ediciones Era, 1978.
4
Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939). Filósofo francês. Sob a influência da sociologia de Émile
Durkhein, procurou elaborar uma ciência dos costumes.
560 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
ALMEIDA, L. F. de. Tempo e otredad nos ensaios de Octavio Paz. São Paulo:
Annablume, 1997.
BRADING. D. A. Octavio Paz y la poética de la historia mexicana. México: FCE,
2002.
DELEUZE, G. Primeiro aspecto do eterno retorno: como doutrina
cosmológica e física. In: DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Tradução de
Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio,
1976. p. 38-40.
ECO, U. A linha e o Labirinto: as estruturas do pensamento latino. DUBY,
G. (Dir.). A civilização Latina. Dos tempos antigos ao mundo moderno.
Tradução de Isabel St. Aubyn. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. p. 23-
48.
ELIADE, M. A provação do Labirinto. Diálogos com Claude – Henri Rocquet.
Tradução de Luís Felipe Bragança Teixeira. Portugal: Publicações Dom
Quixote, 1987.
______. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
______. Mito do Eterno Retorno. Tradução de José Antonio Ceschin. São Paulo:
Mercuryo, 1992.
FRANCO, J. Historia de la literatura hispanoamericana. A partir de la independência.
Barcelona: Ediciones Ariel, 2002.
MACIEL, E.; ÁVILA, M.; OLIVEIRA, P. M. (Orgs.). América em movimento.
Ensaios sobre literatura latino – americana do século XX. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1999.
MONSIVÁIS, C. Notas sobre la cultura mexicana en el siglo XX. In: Historia
General de México. Vol. 2. México: El Colégio de México, 1993. p. 1375-1548.
PAZ, O. El laberinto de la soledad. 2ª edición revisada y aumentada. México/
Buenos Aires: FCE. 1959.
______. O labirinto da solidão e Post.Scriptum. Tradução de Eliane Zagury. Rio de
Janeiro: Paz e Terra: 2006.
______. El pelegrino en su patria. História y política en México. Obras
Completas. Edición del autor. Vol. 8. México: FCE. 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 561
A
Igreja Presbiteriana chegou ao Brasil em 1859, com o jovem
missionário americano Ashbel Green Simonton e, desde então,
encontramos pequenos grupos de mulheres presbiterianas ligadas
ao trabalho missionário. A Igreja crescia e se organizava, e juntamente com ela
o trabalho feminino também se destacava. Não demorou muito para que
fossem iniciadas as atividades desenvolvidas pela Sociedade auxiliadora da
Igreja Presbyteriana de S. Paulo, criada com o objetivo de realizar estudos
bíblicos e arrecadar fundos para auxiliar os necessitados e a Igreja. As
missionárias presbiterianas já participavam ativamente na sociedade americana
como educadoras e, no Brasil, de certa forma, influenciaram na modernização
do sistema educacional.
Porém, o Primeiro Manual do Trabalho Feminino só começou a ser
preparado em 1935, pela Comissão Permanente, e só foi publicado pela Casa
Editora Presbiteriana em 1937. Em todo o Brasil, o trabalho presbiteriano
feminino foi uniformizado. O Jornal Imprensa Evangélica, de fevereiro de 1880,
noticia a criação da sociedade de mulheres presbiterianas cujo objetivo era
auxiliar no trabalho missionário. Estas mulheres realizavam eventos como
bazares, para ajudar na renda da igreja e nos projetos assistidos, como lemos
abaixo:
*
Mestrado em História/UNESP/Assis. Bolsista: CNPq. Orientador: Prof. Dr. José Carlos
Barreiro.
564 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Noticiario
Sociedade auxiliadora da Igreja Presbyteriana de S. Paulo – É
este o titulo de uma associação feminina creada em S. Paulo, por
distinctas senhoras christãs, com o fim de auxiliarem os trabalhos
evangelicos nesta cidade por meio de suas contribuições.
Não deixa de ser curiosa a fonte de suas rendas.
Reunem-se há mezes, duas vezes por mez, e por duas horas mais
ou menos trabalham em commum: fazem rendas, cosem, etc.
O resultado de tão methodico trabalho tem dado os mais
inexperados quão satisfactorios resultados.
Agora exibiram no Rink um rico e variado bazar de prendas,
convidaram o publico, que acudiu ao chamado com a sua natural
bondade.
A boa escolha das prendas com o aprimorado da execução,
influiram para o bom êxito.
O producto liquido da venda, como foi annunciado, tem dois fins
de maxima importancia social: 10 por cento para o hospital dos
lázaros, e o resto para edificação de uma casa para o culto christão.
Não devemos deixar em segredo que distinctas senhoras
americanas residentes nos Estados-Unidos muito concorreram para
este fim.
Nossos parabens ao bello sexo. (SOCIEDADE
AUXILIADORA..., 1880, p.45)
[...] como não se interrogar sobre o novo lugar das mulheres e suas
relações com os homens quando nosso meio século mudou mais a
condição feminina do que todos os milênios anteriores? As
mulheres eram “escravas” da procriação, libertaram-se dessa
servidão imemorial. Sonhavam ser mães no lar, agora querem
exercer uma atividade profissional. Estavam sujeitas a uma moral
severa, hoje a liberdade sexual ganhou direito de cidadania.
(LIPOVESTSKY, 2000, p.136)
Segundo Louise Tilly, ainda que definidas pelo sexo, as mulheres são
algo mais do que uma categoria biológica; elas existem socialmente e
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 567
precisava se ausentar para visitar outras igrejas, a sua esposa poderia tornar-se
um guia espiritual temporário. Teóloga autodidata, ela reconfortava,
aconselhava, explicava a Bíblia, dirigia reuniões de oração. As mulheres eram
socialmente engajadas, não apenas na educação, organizaram-se num
movimento antiescravagista e combatiam a prostituição, que segundo elas,
estava diretamente relacionada com a negligenciada educação, os insuficientes
salários e a ausência de certos direitos civis das mulheres, um conjunto de
“iniquidades sociais” comuns ao período. (DUBY; PERROT, 1991, p.242,
247, 251).
Em 1870, fundou-se, em São Paulo, a modesta Escola Americana,
marco inicial do que é hoje a Universidade Mackenzie, na sala de jantar da
residência do missionário George Chamberlain. Uma escola para abrigar as
meninas protestantes que sofriam constrangimento nas escolas por causa da
convicção religiosa. No discurso inaugural do prédio da Consolação, em
expansão da Escola Americana, Chamberlain diz:
[...] desde que uma senhora americana recebeu na escola, por uma
hora cada dia, umas poucas meninas brasileiras ensinando-as a ler e
lendo a elas as palavras do mestre vindo de Deus [...] a Escola
Americana estava em gérmen naquele pequeno ajuntamento de
meninas por uma hora diariamente. (GARCEZ, 1970 p.55)
1
MATOS, A. Para Memória Sua: a participação da Mulher nos Primórdios do
Presbiterianismo no Brasil. Disponível em:
<old.thirdmill.org/files/portugueses/60469~9_18_01_4-21-
27_PM~para_memoria_sua.htm>. Acesso em: 07 ago. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 573
outros lugares. Após cerca de 20 anos dedicados ao Brasil, Nannie voltou para
os Estados Unidos, onde faleceu em 1910.
A terceira educadora da Igreja do Sul a vir para Campinas, Charlotte
Kemper (1837-1927), era neta de um coronel do exército prussiano emigrado
para a Virgínia, onde Charlotte nasceu, em 21 de agosto de 1837. Lotty, como
era conhecida, recebeu sólida educação em seu estado natal, sendo o seu pai
diretor da Universidade da Virgínia. Segundo Syldenstricker, Kemper tinha o
temperamento um tanto introvertido, mas era dotada de uma inteligência
excepcional. Em 1882, aos 45 anos de idade, enquanto lecionava no Mary
Baldwin College, viu realizar-se o sonho de ser missionária educadora. Em
resposta a um apelo do Rev. Edward Lane, decidiu vir ao Brasil com ele e sua
família para substituir Nannie Henderson, que se achava doente. Dirigiu a
escola de moças e foi a superintendente de compras, além de lecionar o que
fosse preciso. Diz-se que D. Pedro II, em visita a Campinas, manifestou
grande admiração por seu raro talento (SYLDENSTRICKER, 1941, p. 44).
Em dezembro de 1889, após um período de férias nos Estados Unidos,
Charlotte regressou ao Brasil com o Dr. Lane e Mary Dascomb. Do grupo
também fazia parte um novo missionário, Samuel Rhea Gammon (1865-
1928). Charlotte o orientou no estudo da língua, foi revisora de seus sermões e
artigos e, daí em diante, sempre esteve associada com ele na obra educacional.
No final de 1892, por causa da febre amarela que assolava Campinas e que
naquele ano ceifara a vida do Rev. Lane, o Colégio Internacional foi
transferido para Lavras, em Minas Gerais, vindo a tornar-se, mais tarde, no
Instituto Gammon. Em Lavras, Charlotte passou o restante da sua vida. Além
de ser a tesoureira da Missão Sul e dirigir a nova escola, Charlotte gastava
muito tempo em visitação e no trabalho evangelístico. Passou a ser conhecida
do pessoal da missão como “Aunt Lotty” (tia Carlota), tamanha a sua
bondade e solicitude – a “velhinha que andava depressa” sempre tinha
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 575
palavras de carinho e incentivo para cada um. Sua bondade para com os
candidatos ao ministério era proverbial e foram muitos os futuros líderes da
igreja que passaram por suas mãos. Colaborou decisivamente com a escola,
cada vez mais conceituada, e com a igreja, muitas vezes em meio a
perseguições. Também era conhecida por sua versatilidade e grande cultura.
Conhecia a fundo o latim, bem como o grego e o hebraico. Como
passatempo, gostava de ler os clássicos latinos, resolver problemas de
trigonometria e fazer cálculos. A história antiga e moderna era outra de suas
especialidades. Foi considerada, por muitos, a mulher mais culta do Brasil.
Quando a falta da vista começou a impedir-lhe de ensinar, passou a gastar
grande parte do tempo em visitas. Charlotte faleceu aos 90 anos, em 15 de
maio de 1927 (SYLDENSTRICKER, 1941, p. 64).
Kate E. Bias, outra missionária, chegou a Campinas em 1888 para
assistir Charlotte Kemper na escola de meninas. Em 1891, casou-se com um
novo missionário, Rev. Frank A. Cowan, que chegara dois anos antes para
ajudar o Rev. John Boyle no Triângulo Mineiro e sul de Goiás. O casal foi
residir em Bagagem, hoje Estrela do Sul, mas logo o Rev. Cowan contraiu
tuberculose. Agravando-se o seu estado, o Rev. Gammon o levou até Lavras,
onde ele faleceu em maio de 1894.
Kate, ou Catarina, como era conhecida dos brasileiros, poderia ter
desistido de tudo e voltado para a sua terra. Porém, decidiu, corajosamente,
continuar a obra do seu falecido esposo. Regressou a Bagagem e a Araguari,
onde fundou uma escola evangélica. Um de seus alunos foi o futuro pastor e
professor do seminário Jorge Thompson Goulart. Como uma verdadeira
missionária equestre, Catarina cortou centenas de quilômetros no Triângulo
Mineiro. Mais tarde, cooperou eficazmente com o Rev. Aníbal Nora, em Alto
Jequitibá, fez breve estágio em Lavras e foi residir em Piumhi, onde, no dizer
576 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
aqui terminaram seus dias. Vale observar que, além destas educadoras e
evangelistas oficiais, havia também nas igrejas mulheres brasileiras humildes
que voluntariamente serviam a causa de Cristo. Júlio A. Ferreira refere-se a
Vitória Maria de Jesus, uma das primeiras participantes da Igreja do Rio na
época de Simonton, que se ocupava da visitação aos lares com objetivos
evangelísticos (FERREIRA, 1992, p. 164).
Também é importante destacar, em um estudo como este, a presença
feminina nas primeiras congregações presbiterianas estabelecidas no Brasil.
Émile Léonard aponta que, desde o seu início, as comunidades protestantes
brasileiras foram bastante diversificadas em sua composição social, e observa:
“No Brasil... eram famílias inteiras, quase que tribos, dir-se-ia, que aceitavam o
protestantismo, e em todas as classes sociais.” (LEONARD, 2002, p. 87) Mais
adiante, acrescenta:
Referências
Introdução
A
execução de políticas preservacionistas, quase sempre é estudada no
âmbito do poder público federal e, com frequência mínima, nas
esferas estadual e municipal. O que, de certo modo, reflete as práticas
locais – quando existem – de reproduzir as fórmulas federais, aplicadas “de cima
para baixo”, sem considerar suas próprias particularidades e necessidades.
Portanto, este texto tem por finalidade a apresentação e a discussão de algumas
considerações acerca das mudanças e permanências da política de preservação do
patrimônio no Oeste Paulista, com base na análise da atuação do Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo).
Para uma melhor análise das políticas estaduais de preservação do
patrimônio, foram delimitados dois períodos distintos, a saber: Primeiras Tentativas
*
Doutorando em História /PUC/São Paulo/Bolsista: CNPq. Orientadora: Profª. Drª. Olga
Brites.
588 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Embora não tenha sido esse edifício dos primeiros a ser edificado em
Tupã, essa circunstância não tira do solar a sua condição histórica de
casa de fundador, pois foi a primeira e única casa residencial por ele
construída para seu uso na cidade que havia fundado [...]. A única
maneira válida de se preservar o magnífico patrimônio, erigindo em
bem histórico de interesse estadual, pela trasladação dos episódios de
significação municipal e estadual que neles se deram, é o tombamento
do imóvel na forma da proposta inicial, [...]. (Processo n. 11.101/69, p.
49)
Cemitério Japonês
2
Mas o processo de estudo de tombamento já havia se iniciado com o parecer da conselheira Maria Ângela
D’Incao acatado pelo Egrégio Colegiado em 08/05/1989. A decisão judicial é de 29/01/1990.
3
O Decreto n. 13.426 de 16/03/1979 define em 300 metros a área envoltória dos bens tombados. Coleção de
Leis e Decretos do Estado de São Paulo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 601
Considerações finais
Referências:
Fontes
Bibliografia
Thais Jeronimo SVICERO
Introdução
E
ste trabalho pretende apresentar algumas indagações que permeiam
a pesquisa em pleno desenvolvimento sobre o arquivo pessoal do
escritor João Antônio (1937-1996) que se encontra depositado na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de
Ciências e Letras de Assis/UNESP.
É oportuno observar que as séries documentais de um arquivo pessoal
fornecem ao pesquisador a possibilidade de conhecer aspectos da vida
intelectual e pessoal de seu titular. Porém, algumas informações presentes
nestes arquivos podem ser organizadas e apresentadas pelo próprio titular, da
forma desejada, para que os futuros pesquisadores as vejam.
Em relação ao arquivo pessoal do escritor João Antônio, pode-se
perceber um possível projeto autobiográfico por meio do acúmulo e da
organização de determinados documentos por ele próprio, na intenção de
Mestranda em História /UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientadora: Drª. Célia Reis
Camargo.
606 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005), apresenta a seguinte definição de
arquivo privado: “Arquivo de entidade coletiva de direito privado, família ou pessoa.
Também chamado arquivo particular”.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 607
2
Segundo os autores, o evento “é a única forma de reter o fluxo do tempo que escorre por
entre nossas mãos, transformando em algo que pode ser descrito, narrado, reproduzido,
rememorado, mas o seu reconhecimento é ele próprio uma operação da memória”.
608 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Ainda segundo esse mesmo autor, dois fatores são responsáveis pelo
aumento do uso dos arquivos pessoais, primeiro, a história cultural e o
aumento dos trabalhos relacionados aos intelectuais e, segundo, o interesse
por fontes menos seriais e mais qualitativas, impulsionada pela micro-história
e pela antropologia histórica.
Por mais que ao autor se trate excepcionalmente do caso francês, esse
interesse parece fluir também no Brasil. Ângela de Castro Gomes (1998,
p.124) ressalta que as instituições ligadas à guarda de arquivos privados
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 609
3
O uso do termo acervo em vez de arquivo vem do artigo de Maria da Glória Bordini. A
autora, ao escolher denominar o acervo de Érico Veríssimo, explica que a opção pelo
termo acervo denomina um trabalho mais amplo, que não conserva simplesmente sua
ordem e a catalogação, mas sim a obra e a imagem do escritor, enquanto o termo arquivo
sugere apenas imobilização e simples classificação (BORDINI, 2003, p. 131). Essa
observação torna-se pertinente nesse texto, pois nas leituras feitas sobre os estudos dos
arquivos pessoais de escritores pelos estudiosos da literatura, percebe-se um uso mais
recorrente do termo acervo, em detrimento do termo arquivo.
614 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
4
O termo “paraliterário” foi utilizado para denominar o material presente nesses acervos
que colaboram com a análise dos bastidores da criação, antes do resultado final da obra
entregue ao público (MIRANDA, 2003, p.12).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 615
história literária passam a ser revistas. Para Maria Zilda Ferreira Cury (1995, p.
53) a crítica literária na contemporaneidade, se redefine por uma nova
disposição, assimilando o lugar de seu sujeito e suas diferentes mediações. De
todos os ramos da crítica literária, a chamada crítica genética, iniciada na
França nos anos 1960, voltada para a gênese do texto e de seus processos de
criação, talvez seja a que mais aponte para o remanejamento da história
literária.
A Crítica genética pode ser definida da seguinte maneira: “[...] é uma
investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção acompanhando
seu planejamento, execução e crescimento [...]” (SALLES, 2007. p. 12). Não
sendo mais uma interpretação do produto considerado final, aquele entregue
ao público, mas a do processo responsável pela geração da obra. Assim, os
documentos presentes nos arquivos pessoais dos escritores, fornecem
detalhes, muitas vezes, escondidos nesse material.
Os estudos baseados nesse tipo acervo pelos estudiosos da literatura,
publicados no Brasil, são recentes, porém, de grande colaboração ao trabalho
direto com o material presente nesses arquivos particulares. Portanto,
considera-se pertinente realizar, aqui, um pequeno levantamento de algumas
colaborações que contribuem para a difusão da pesquisa que utiliza esse tipo
de fonte.
Dessa forma, a Revista Letras de Hoje, v.29, nº 1, 1994, publicada pela
PUCRS com os Anais do “1º Encontro de Acervos Literários” traz uma
importante reflexão sobre os métodos de trabalho nos arquivos de escritores
com exemplos de diversos arquivos presentes nos mais variados projetos e
instituições. Os textos contidos nessa revista esclarecem alguns
questionamentos e contribuem para a preservação desse patrimônio
documental.
616 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
São Paulo para trabalhar na revista Realidade. Porém, foi no Rio de Janeiro que
o escritor passou a maior parte de sua vida.
A produção literária de João Antônio sempre correu paralela às
atividades que desenvolvia na imprensa e à busca constante pelo
reconhecimento de suas obras. Na década de 1970, depois de 12 anos sem
novas publicações, João Antônio voltou à literatura com mais três obras
publicadas: Leão-de-chácara; Casa de loucos e Malhação do Judas carioca.
Nos anos de 1980, mais duas obras foram publicadas: Dedo-duro e
Abraçado ao meu rancor. Esta última rendeu ao autor mais cinco prêmios. A
década de 1990 não registra novidades significativas em sua produção, exceto
mais um prêmio Jabuti, em 1993, pela coletânea Guardador.
Em outubro de 1996, no Rio de Janeiro, morre João Antônio, só e de
forma emblemática, pois mais de 20 dias se passaram até que seu corpo fosse
encontrado em seu apartamento.
João Antônio sempre procurou fazer uma literatura que se tornasse
próxima à realidade tanto em suas obras literárias quanto em sua atuação
como jornalista. Sua participação na imprensa brasileira pode ser vista em
periódicos de grande circulação como Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, O
Estado de S. Paulo, além de jornais da chamada imprensa alternativa como, por
exemplo, Nicolau e O Pasquim. Dessa forma, seus textos são caracterizados
pela defesa das personagens marginalizadas da sociedade.
Portanto, pela sua vasta contribuição a imprensa e literatura brasileiras,
seu acervo torna-se um inesgotável manancial para o desenvolvimento de
pesquisas históricas e literárias. Sob esse aspecto, é perceptível a importância
de João Antônio no cenário da escrita brasileira.
622 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
autobiográfico
5
Dados referentes à destinação do acervo após a morte de João Antônio foram fornecidos
pela Dra. Tania Celestino de Macêdo, em entrevista realizada em julho de 2008, com a
finalidade de esclarecer aspectos essenciais do mesmo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 623
herdarão minhas cartas. Tomara fiquem ricos” 6. Mais uma vez, pode-se
verificar, aqui, essa preocupação futura com seus documentos.
Além das séries documentais já referenciadas, o cuidado de João
Antônio relacionado ao acervo pode ser percebido, também, em sua biblioteca
pessoal, em meio a obras de diversos autores nacionais e internacionais de sua
preferência, como: Graciliano Ramos, Lima Barreto, Machado de Assis,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Luís da Câmara Cascudo, Caio
Prado Júnior, Karl Marx, George Lukács, Tolstoi, Búnin, Gorki, Tchecov,
Lênin, Dostoievski, Walter Benjamin, entre outros. Nelas, o escritor revela seu
apreço, pois as anotações de seu interesse foram feitas em papéis colocados
no meio desses livros ou na marginalia, para assim, não danificá-los, além de
encapar os que já estariam danificados com a ação do tempo.
Pelo exposto, essas séries documentais constituem indícios claros do
intuito de preservação de João Antônio. No entanto, há no acervo outras
séries que não se encontram organizadas devido às circunstâncias de sua
morte e à apressada retirada desse acervo do apartamento do escritor e a vinda
para a Universidade.
Enfim, foi por meio da preservação e do cuidado com o conjunto de
seus documentos pessoais, que o escritor legou ao pesquisador a possibilidade
de conhecer sua luta constante (para João Antônio, talvez, não conquistada
em vida) pelo reconhecimento de um lugar fundamental no cenário literário
nacional. A análise mais aprofundada do acervo pode esclarecer diversas
questões relacionadas ao processo de acumulação dos documentos e sua
“organização”, por isso os estudos dedicados a esse tema são de extrema
importância para, talvez, de alguma maneira, esclarecer as possibilidades da
formação desse arquivo pessoal.
6
Carta datada de 10 de junho de 1981 e publicada em: SEVERIANO, Mylton. Paixão de
João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.184.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 625
Referências:
A
nalisar a construção da memória de Santo Dias significa dialogar
com parte da memória do movimento sindical e social brasileiro e
sua importância no processo de redemocratização do Brasil. A
manutenção e as agregações de elementos sobre esse personagem também
refletem anseios políticos, enfim, propostas de novas lutas dentro dos
dinamismos e das inquietações presentes na sociedade. Propor uma
abordagem sobre a memória do operário Santo Dias da Silva é, além disso,
trazer para a atualidade questões que nortearam sua luta e também inquietam
aqueles que se encontram nas “fileiras” da luta contra a desigualdade, a
exclusão e a exploração, ainda tão presentes na sociedade brasileira atual.
Pode-se, por meio dos fragmentos de registros de sua vida simples,
encontrar peculiaridades e sutilezas do seu cotidiano que, mesmo pequenas,
revelam aspectos brutais e desumanos que encontraram eco em grande parte
da vida dos trabalhadores brasileiros.
Para a “construção” da memória de Santo Dias, é necessário, também,
partir da experiência biográfica, levando em consideração suas convicções
*
Mestrado em História/UNESP/Assis. Orientador: Dr. Wilton Carlos Lima da Silva.
630 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
[...] Estuda-se através de uma vida com vistas a enxergar mais longe,
mais profundo, mais densamente, de maneira mais complexa, ou
porque o estudo desta vida permite enxergar a vida social em sua
dinamicidade própria, não excluindo os seus aspectos caóticos e
contraditórios [...] (BARROS, 2004, p.191).
632 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
O passado não está pronto. Ele ainda está por fazer e articula-se no
presente, ou melhor na presença, onde elaboramos a mentira e a
transformamos em discurso [...]. (PENA, 2004, p. 23).
Inconformado com sua situação profissional e financeira, parte para São Paulo
em 1962, para tentar uma vida melhor, tendo morado com conhecidos de sua
família por certo tempo. Em uma entrevista a Paulo Nosella o operário Santo
Dias relata a opção de partir para São Paulo em busca de trabalho:
[...] Ana espero que seja feliz ai em Viradouro, mesmo eu não podendo
ir ai no carnaval, queira me desculpar porque foi tratado tudo certo
para passarmos o carnaval juntos, mas infelizmente não posso, tenho
que trabalhar no domingo [...]. (CORRESPONDÊNCIA...,)1.
1
Correspondências de Santo Dias. Coleção Santo Dias. Centro de Estudos, Documentação e Memória
(CEDEM) da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 635
2
O Movimento Custo de Vida surge (porém não com esse nome) a partir de clubes de mães
na zona de M`Boi Mirim, na região sul de São Paulo (MOISES, 1982, p.76).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 637
Santo Dias participou, foi romper com essa estrutura de poder e organizar os
trabalhadores a partir do “chão da fábrica”. As organizações de bairro, as
CEBs e a Pastoral Operária foram essenciais nessa luta.
3
A crise do petróleo e o arrefecimento econômico mundial vinham levantar o “véu de
euforia” que o milagre produzira (MENDONÇA, 1998).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 639
Referências
Fontes
Arquidiocese de São Paulo. Brasil: tortura nunca mais. Pref. de D. Paulo Evaristo
Arns. Petrópolis (RJ): Vozes, 1985.
Coleção Santo Dias. Centro de Estudos, Documentação e Memória (CEDEM)
da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).
Bibliografia
644 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
O
autor italiano Ítalo Calvino, em seu célebre livro As cidades invisíveis
(do qual o trecho supracitado foi retirado), procura, por meio do
romance, narrar a história de cidades que existem – ou existiram –
tanto na materialidade quanto na memória de seus habitantes e/ou seus
apaixonados. Dessa forma, Calvino empreende o entrecruzamento das cidades
com diferentes conceitos como: a memória; os nomes; os mortos etc. Já o
presente texto – fruto de comunicação oral – leva em conta a obra de Calvino e
tem por objetivo maior refletir sobre as interfaces de gênero, memória e espaço
urbano, pensando as possibilidades de se relacionar tais conceitos. Começaremos
refletindo sobre o espaço urbano – as cidades.
As cidades povoam os imaginários, adoradas, cidades de maravilhas,
cidades da infância, cidades de amores, cidades de dramas e dores; de algum
modo, elas fazem parte das histórias de vida e, ao mesmo tempo, gozam de
*
Mestrado em História/Unesp/Assis. Orientadora: Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva.
648 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
Matéria da ONU publicada em 19/04/2007, no site em português da referida organização.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 649
[...] Todas as cidades são, entre outras coisas, uma projeção dos
imaginários sociais no espaço. A sua organização espacial atribui um
lugar privilegiado ao poder explorando a carga simbólica das formas
[...]. A arquitetura traduz eficazmente, na sua linguagem própria, o
prestígio que rodeia um poder, utilizando para isso a escala
monumental, os materiais “nobres” etc. (BACZKO, 1982, p.313).
2
Utilizamos o conceito de representação enquanto um conjunto de práticas discursivas,
construídas e/ou construidoras de um determinado universo simbólico, compartilhado por
sujeitos de um grupo ou coletividade (CASTRO, 1994, p.24).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 651
monumentos são erguidos a todos os cidadãos? Não, não o são. Não haveria
espaço urbano suficiente para isso. Nem seria possível lembrarmos de todos os
cidadãos homenageados. A memória é seletiva, já nos dizia Maurice Halbwachs.
Da mesma maneira são os monumentos, integram o que se chama de memória
oficial ou memória-enquadrada. E a memória necessita dos seus suportes – sejam
eles materiais ou não – pois, desta forma, ela é construída, destruída ou
reconstruída de acordo com o presente. A memória está diretamente ligada ao
presente, mais que ao passado. Lembrando o caráter artificial – no sentido de
construção da memória – Le Goff expõe que:
3
Ver mais em Adum (1997) e Arias Neto (1993).
658 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
DIMENSÕES DA POLÍTICA
Ideias em movimento. Por uma história
conectada do movimento operário mexicano e
brasileiro no período de expansão Comunista.
México e Brasil
U
ma das maiores imagens políticas do século XX foi a do operário
revolucionário como força social e representativa de alternativa do
status quo para o sistema capitalista. Muitas características dessa
imagem desestabilizadora foram construídas após os eventos dramáticos da
Comuna de Paris de 1871 e dos conceitos oriundos do Manifesto do Partido
Comunista, publicado em Londres entre fevereiro e março de 1848 por Karl
Marx e Friedrich Engels. O Manifestou impôs um papel de ator social ao
*
Doutorando em História/ UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP/Orientador: Dr. Carlos
Alberto Sampaio Barbosa.
664 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
organização proletária a ser seguida, não apenas pelos operários das Américas,
como em escala global.
Os estudos clássicos sobre o PCM e sobre o PCB, em diversos
momentos, se valeram da estrutura da IC para explicar os deslizes de seus
partidários em seus países. O caso do México é emblemático dessa afirmação.
Além das ressalvas direcionadas às próprias ações do PCM, alguns
historiadores de tendência trotskistas mexicanos o utilizaram como exemplo
das resoluções elaboradas por Trotsky sobre os defeitos da direção
revolucionária soviética após a sua derrota na disputa contra Stálin, que se
seguiu da morte de Lênin. Como demonstrado por Peláez:
Referência
A
formação e o desenvolvimento da atividade policial especializada na
fiscalização do uso de recursos naturais, a partir de 14 de dezembro de
1949 no Estado de São Paulo, relacionam-se às condições
sociopolíticas e econômicas que marcaram o Brasil e, particularmente, São Paulo,
nos anos que antecederam a data referenciada. O percurso se inicia na década de
1930, em face da mudança de uma sociedade de ocupação e economia rurais para
uma concentração urbana e um modo de produção industrial, com os efeitos da
ocupação e da industrialização ligados à degradação ambiental, passando pela
criação de estruturas para atender a uma demanda crescente de proteção de
direitos.
1
Até 1980, informações constantes no trabalho: GRITTI, Euzébio Carlos. Resumo histórico do 1º
Batalhão de Polícia Florestal e de Mananciais. Pesquisa documental realizada em 28/04/80. São
Paulo. PMESP. /datilografado/. Após 1980, informações obtidas diretamente no comando do
órgão policial, em São Paulo, capital.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 683
2
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p.18: “Assim, para Weber, no resumo de Bendix, ‘a ordem legal, a
burocracia, a jurisdição compulsória sobre um território e a monopolização do uso da força
são as características essenciais do Estado moderno’. Não muito distinta é a caracterização feita
por Immanuel Wallerstein: ‘Como se fortaleceram os reis, que eram os administradores da
máquina estatal no século XVI? Usaram quatro mecanismos principais: burocratização, a
monopolização da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da população dos
súditos’”.
684 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. In: Constituições do Brasil.
São Paulo: Livraria Cristo Rei Editora, 1944.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 689
4
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. In: Constituições do Brasil.
São Paulo: Livraria Cristo Rei Editora, 1944.
692 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
ocasião do seu estudo, em 1949, a ausência do poder público – que teve como
consequência a atuação do poder privado – estava já muito reduzida no interior
dos estados federados e cita a melhoria dos serviços prestados pela polícia como
um fator que favoreceu essas mudanças junto à diminuição da influência dos
“coronéis”, com sua já perceptível decadência no final da década em um cenário
de industrialização e de concentração urbana:
por meio de seus integrantes destacados, junto a essa pasta então denominada
Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio:
6. Considerações finais
5Em 10 de janeiro de 1948, com a edição do Decreto Estadual nº 17.868, foi instituída, em
São Paulo, a “Polícia Rodoviária”, com o efetivo inicial de 60 homens.
702 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referência
N
os últimos anos, os estudos sobre a História Político-Militar do
Brasil têm passado por algumas mudanças. O maior acesso às
fontes e o aumento significativo de pesquisadores – composto de
civis e militares, que se dedicam aos estudos neste campo –, despertaram
interesses, resultando em uma ampliação historiográfica sobre as Forças
Armadas e sua participação na História do país. O debate acerca do tema vem
crescendo em sua variação temática mudando os aspectos teóricos e
metodológicos, com ganhos recíprocos, em vez de se ocuparem apenas com a
intervenção militar na política, a instituição militar é estudada como um todo,
sem prejuízo de suas relações com a sociedade civil.
Um dos tópicos que tem atraído a atenção dos pesquisadores é a Força
Expedicionária Brasileira (FEB). As novidades nesse campo de estudos
despertaram o interesse desses novos pesquisadores que, se utilizando de
novas abordagens, vêm ampliando os campos de pesquisa nessa temática. A
memória, a reintegração social dos veteranos de guerra e as associações de ex-
combatentes (com seus conflitos ideológicos), têm sido algumas dessas
*
Mestrado em História Social - UEL/Londrina. Orientador: Prof. Dr. Francisco César
Alves Ferraz.
706 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
combatentes brasileiros junto das autoridades. Fora desse espaço social, não
haveria possibilidade de pressão, pois os veteranos encontravam-se
espalhados pelo território nacional, principalmente pelo interior. Portanto,
agrupar-se foi a melhor saída que os ex-combatentes encontraram para
reivindicar por sua situação e direitos; além do que, as associações também
lutariam para preservar a memória da FEB (organizando comemorações,
desfiles, cerimônias cívicas, publicação de livros e jornais, a fim de divulgar a
memória dos veteranos).
Essas associações, de início, agregaram ex-combatentes de diferentes
localidades e com diferentes ideologias políticas. Segundo seu primeiro
estatuto, elaborado e aprovado em novembro de 1946, na 1ª Convenção
Nacional da AECB, o intuito da associação girava em torno de promover a
integração social entre os companheiros de combate na Itália, representando e
defendendo os interesses coletivos da FEB perante os governantes, além de
cuidar das questões relativas à memória dos ex-combatentes; oferecendo, na
medida do possível, ajuda jurídica e social; ficando proibida nas associações
qualquer ação política atrelada a algum partido político. Ficou também
decidido, nessa Convenção, que as associações se organizariam de maneira
colegiada, tendo seus representantes eleitos em chapas, que seriam
apresentadas e votadas em assembleias gerais, para períodos estabelecidos em
seu estatuto. As várias sedes da AECB, em todo o Brasil, eram orientadas por
um Conselho Nacional, órgão centralizador, composto por delegados
escolhidos por votação, realizadas nas Convenções Nacionais (ocorridas de
dois em dois anos), nas quais todas as seções poderiam votar. Nessas
Convenções Nacionais também eram discutidas as principais pautas, que se
aprovadas, constituiriam as práticas de todas as seções do país.
A adesão dos ex-combatentes da FEB, às associações ocorreu nos
primeiros anos de funcionamento dessas, somando mais da metade dos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 711
1
Apresentado ao plenário da 2ª Convenção Nacional. São Paulo, 16 de novembro de 1948,
em Ex-Combatente.
712 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Entrevista com Raimundo Paschoal Barbosa, 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 713
3
Mensagem do Marechal Mascarenhas de Moraes aos Expedicionários Brasileiros. Rio de
Janeiro, 11 abril 1949. Arquivo do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra
Mundial (doravante AMNMSGM). Rio de Janeiro. Segundo informação constante no
documento, esta mensagem foi publicada em vários jornais do país.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 717
Ao que concerne a este episódio, ao ter seu evento cancelado por “falta
de local”, uma vez que o teatro tinha sido negado, as lideranças dos ex-
combatentes dividiram-se para protestar na Câmara Municipal, na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal, destacado para protestar no senado, Pithan e
Silva, se desentendeu com Magalhães Barata, pois este último se aproximou
dos veteranos e lhes disse: “Vocês, ex-combatentes da FEB, não passam de
um bando de comunistas disfarçados. Não contem com meu apoio”. Então,
teria respondido Pithan e Silva que os expedicionários não necessitavam “do
apoio de uma barata suja que somente havia tomado conhecimento da guerra
através da Hora do Brasil”; os envolvidos chegaram às “vias de fato”.
Apesar de toda essa confusão, o evento aconteceu, mas poucos
políticos e autoridades das Forças Armadas prestigiaram, mesmo sendo
convidados; a única exceção foi o deputado do PCB Maurício Grabois,
contribuindo para aumentar a desconfiança dos anticomunistas. A tensão
entre os lados era tamanha, que algumas associações, como a de Curitiba, se
recusaram a filiar-se ao Conselho Nacional e participar das Convenções
enquanto os comunistas estivessem exercendo poder na EACB, no âmbito
externo, as pressões aumentavam cada vez mais, atrelando os ex-combatentes
com o comunismo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 719
4
Entrevista com Jacob Gorender (FERRAZ, 2003).
722 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
5
Entrevista com Boris Schnaiderman, 2001.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 723
Considerações Finais
Referência:
Fontes Orais
Fontes Impressas
LACERDA, Pedro Paulo Sampaio de. Direitos, e não favores. Jornal Ex-
Combatente. Rio de Janeiro, Ano 2, Nº 14, fev.1948, p.1.
MORAES, João Quartim de. A esquerda militar no Brasil. São Paulo: Expressão
Popular/ São Paulo: Siciliano, 1994 (vol. 2) e 2005 (2ed. vol. 1).
RELATÓRIO DO CONSELHO NACIONAL DAS ASSOCIAÇÕES DE
EX-COMBATENTES DO BRASIL. Rio de Janeiro, Ano 3, Nº 25, nov.1948,
p.3
SALOMÃO, Malina. Sobre a Convenção Nacional. Ex-Combatente. Rio de
Janeiro, Ano II, Nº 24, out. 1948, p.4.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
Oposição armada aos governos militares
brasileiros (1964-1985): a trajetória do Movimento
Comunista Revolucionário (MCR)
Introdução
D
urante os governos militares brasileiros (1964-1985), a oposição
ao regime se deu de diversas maneiras, entre elas as
fundamentadas numa resistência que agia por meio da luta
armada, composta por um grande número de organizações guerrilheiras.
Entre esses grupos armados destacamos o autodenominado Movimento
Comunista Revolucionário (MCR), fundado na cidade de Porto Alegre, capital
do Rio Grande do Sul. Tal organização tinha o intuito de se opor militarmente
ao governo, apropriando-se da concepção de guerrilha rural, ou seja, do
ideário de forma de luta realizado pelos revolucionários em Cuba, em 1959.
No entanto, sua área de atuação concentrou-se no espaço citadino de Porto
Alegre. A proposta deles partiu daquela apropriação de guerrilha rural;
entretanto, os membros do MCR têm suas origens no meio urbano,
composto, em sua maioria, de estudantes universitários, portanto, sem contato
e intimidade alguma com o espaço rural. Sobre o assunto, informamos que,
com exceção do Partido Comunista do Brasil (PC do B) que efetuou a famosa
*
Mestrando em História /UNESP/ Franca /Bolsista: CAPES. Orientadora: Drª. Márcia
Pereira da Silva.
728 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Identidade
1
Os volumes do processo que envolveu os membros do MCR estão arquivados no
Supremo Tribunal Militar em Brasília/DF e disponíveis para pesquisa por todos que
conseguirem autorização do general que preside o órgão. Desde que autorizado, o
pesquisador pode reproduzir a documentação. Assim, uma cópia de todo o processo
encontra-se no arquivo pessoal da Profª Drª Márcia Pereira da Silva (nossa orientadora),
adquirido por ocasião da confecção do projeto para a tese de doutoramento e não utilizado.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 737
dos inquéritos), ou seja, são nesses cinco volumes que encontramos a parte
predominantemente judiciária do processo. No conjunto, as peças do
processo, apesar de autoria do governo, revelam muito mais sobre o cotidiano
das esquerdas do que sobre a história da direita no Brasil.
Convém salientar que na análise do processo-crime não nos
preocupamos com os aspectos formais e/ou legais presentes, principalmente,
nesses cinco volumes de apelação (já que o objeto deste estudo não é a
aplicação da Justiça Militar), mas com os detalhes sobre as atividades armadas
e urbanas efetivadas pelo grupo. Tais atividades foram descritas no primeiro
volume do processo com riqueza de detalhes, já que o interrogatório baseava-
se mais nas informações que os órgãos de repressão já tinham dos militantes
do que no próprio testemunho de cada um deles colhido por ocasião da
formalização do documento. Muitos já tinham sido torturados e
“interrogados” antes da abertura oficial do processo. A verdade é que os
oficiais da repressão reuniam tudo o que já sabiam sobre a organização, com
uma ou outra informação colhida no momento, redigiam as declarações e
forçavam a assinatura.
Construídos ou não pelos denunciados, as falas registradas no
documento revelam detalhes do cotidiano da esquerda em movimentos
armados e urbanos de oposição à ditadura militar.
O Movimento Comunista Revolucionário foi idealizado e fundado no
ano de 1970, em Porto Alegre, por Antônio Pinheiro Sales, o “Ferreira”
(codinome usado para realizar as ações expropriatórias)2. Antônio Sales era
professor, formado em Sociologia, e cursava o 4º ano de Direito. Ele militava
no Partido Operário Comunista (POC) (organização clandestina armada)
sendo que, no final de 1969, foi expulso do POC por divergências
administrativas, junto com seu amigo Paulo Walter Radtke, o “Matias”. Paulo
2
A partir deste momento, todos os nomes próprios que estiverem entre aspas, são
codinomes que os guerrilheiros usavam para praticar as ações revolucionárias nas cidades.
738 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
5
O papel de gelatina é utilizado na técnica impressão de foto criada por Peter Mawsdley
em 1973. Este papel consiste numa camada adesiva de gelatina transparente que fixa os sais
de prata no papel.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 745
Fumos Santa Cruz também foi coordenado e liderado por Antônio Pinheiro
Sales.
O outro grupo que no mesmo dia (13 de agosto de 1970) fez a
expropriação da Fábrica de Cigarros Flórida obteve êxito acima do esperado.
Compuseram esta facção os seguintes guerrilheiros: o comandante da
operação, “Braga”; o único do MCR, “Matias”; o “Joaquim” e os ainda não
mencionados Antônio Carlos de Araújo Chagas, o “Beto” e Carlos Alberto
Tejera de Ré, o “Danilo”. O carro utilizado para esta operação foi o já
referido “cancheiro” e as armas, as mesmas que o outro grupo utilizou na
Companhia de Fumos Santa Cruz.
No momento em que chegaram à Fábrica de Cigarros Flórida, os
militantes armados conseguiram, rapidamente, render todos os funcionários e
expropriar do caixa da empresa uma quantia relativamente alta, e não levaram
os pertences dos trabalhadores da fábrica. O dinheiro obtido neste assalto
ficou apenas para a VPR, que manteve o apoio necessário para a manutenção
e crescimento do MCR.
A terceira operação em que o MCR esteve envolvido ocorreu no dia 29
de agosto de 1970. Nesta, a organização comandada por “Ferreira”
incorporou um novo militante: José Angeli Sobrinho, o “Meirelles”.
Este assalto foi realizado na Firma Oficina Precisão, mais conhecida
por Caça e Pesca. Havia três pessoas na loja: dois proprietários (um casal) e
uma faxineira. Todos foram rendidos e amarrados com cordas pelos militantes
armados. A operação durou poucos minutos e os guerrilheiros conseguiram
obter nove revólveres calibre 23; três espingardas; uma carabina (arma
semelhante a uma espingarda, mas com comprimento reduzido e usada como
arma de caça) e dez mil e cem cartuchos calibre 38 e 32. No assalto, utilizaram
pistolas, revólveres e dois automóveis, o famoso “cancheiro” e o outro
Volkswagen do militante “Bruno”. Participaram desta expropriação, além de
746 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
esconder a face. Podemos apontar, sem delongas, que tudo o que foi
planejado foi executado. Mas “Breno”, no momento da fuga, quando foi subir
num dos veículos já em movimento, caiu (literalmente) ferindo a perna direita
com estiramento do nervo ciático. Ele foi levado para um aparelho do MCR e
medicado pelo militante da mesma organização chamado Brilo Kan-Iti Suzuki,
o “Salvador”, que não tinha conhecimento nenhum de Medicina. Nota-se que
o MCR julgou necessário, no momento, fazer crer aos membros da VPR que
tinham um esquema médico necessário para situações extremas.
Os panfletos elaborados para a ação foram distribuídos sem qualquer
tipo de problema. Os militantes utilizaram três automóveis para a retirada: o
“cancheiro”, um Volkswagen adquirido algumas semanas antes e um táxi que
estava em frente ao Hospital.
Apesar do sucesso desta operação, dois dias depois, praticamente todos
os militantes do MCR foram presos. A maioria deles “caiu” (detida) em
flagrante “cobrindo pontos” (os pontos eram locais públicos de encontro dos
militantes), e nestas ocasiões foram apreendidas pelo DOPS gaúcho e levadas
quantias em dinheiro que foram angariadas nos assaltos; armas que os
guerrilheiros portavam no momento, documentos de identidade falsos e
outros documentos relativos à organização.
Após a prisão dos integrantes do MCR, com exceção de “Prisco” e
“Lídio”, tendo os membros detidos confessado (provavelmente sob tortura)
tudo o que sabiam, os órgãos da repressão desmantelaram os aparelhos, sendo
no total de três.
No primeiro deles, na época o principal, foram encontrados e
apreendidos os seguintes itens: alta quantia do assalto ao Hospital Nossa
Senhora da Conceição e do Banco Itaú América; várias armas, inclusive
submetralhadoras; farta munição de diversos calibres; documentos falsos e
documentos relativos à organização. Num segundo aparelho, já praticamente
750 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
6
Introduzimos uma citação longa, porém imprescindível para a compreensão de como o
guerrilheiro urbano foi qualificado, em detalhes, por Marighella.
752 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Considerações Finais
Referências
Fontes
Bibliografia
AFFONSO, A. Raízes do Golpe. São Paulo: Marco Zero, 1998.
AGUIAR, R. A. R. Os Militares e a Constituinte. Poder Civil e Poder Militar na
Constituição. São Paulo: Alfa Omega, 1986.
758 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
CALEIRO, Regina Célia Lima. História e crime. Quando a mulher é a ré. Franca
1890-1940. Franca, São Paulo: UNESP, 1998. 149p. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de História, Direito e
Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”,
Franca, São Paulo, 1998.
COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
D’ARAUJO, M. C.; CASTRO, C.; SOARES, G. A. Os anos de chumbo - a
memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
DREIFUSS, R. A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe
de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
GABEIRA, F. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
GRINBERG, K. A História nos porões dos Arquivos Judiciários. In: LUCA,
Tania Regina de; PINKSY C. B. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2009. p. 118-139.
FERNANDES JUNIOR, O. de. O baú do guerrilheiro. Rio de Janeiro: Record,
2004.
FICO, C. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e
polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GORENDER, J. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.
KLEIN, L.; FIGUEIREDO, M. F. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1978.
KUSHNIR, B. Cães de Guarda - jornalistas e censores. Do A.I à Constituição de
1988. São Paulo: Boi Tempo, 2004.
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. São Paulo: Educ, 1998.
MAFFESOLI, M. A violência totalitária. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MARIGHELLA, C. Manual do Guerrilheiro Urbano. Sabotagem, 2003.
Disponível em:
<http://www.midiaindependente.org/media/2008/06/422822.pdf>. Último
acesso em: 05/10/2010.
760 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Rodrigo PEZZONIA**
C
om a edição do AI-5, e o consequente recrudescimento da repressão
promovida pelo regime militar, uma “nova geração” de exilados se
constitui em fins da década de 1960. Nos países de destino, grupos
se formam como o intuito de acolher, organizar e congregar forças para
ultrapassar os obstáculos (em grande medida, emocionais) que o degredo
carrega, além, e principalmente, de denunciar as agruras cometidas pelo
regime que os desterrara. Este artigo tem como objetivo central, valendo-se
dos depoimentos de alguns dos seus quadros militantes, tratar da relevância
do grupo DEBATE, e de seu meio de divulgação, a revista Debate: Problemas da
Revolução Brasileira, um importante veículo de informação, debate de ideias,
além de órgão de confluência enquanto coletivo de parte dos exilados
brasileiros, principalmente para os que se encontravam na França na primeira
metade da década de 1970.
Exílios e Exilados
familiar, e que, além de tudo, poderia dar subsídios para continuar sua
resistência no degredo, ou seja, sua produção intelectual.
Os coletivos, ainda no que diz respeito ao exílio, têm a qualificação de
amenizar a dor da permanência em terras estrangeiras. Além das atividades de
convivência e cultura que estes proporcionam, a ênfase na necessidade de
estudo e especialização é muito forte, sobretudo para se entender os motivos
pelos quais estão sofrendo o degredo, e discutir as maneiras para transpor as
dificuldades que o degredo acarreta – aqui se remete diretamente aos objetivos
do grupo DEBATE.
Quanto à continuação da militância, estes grupos teriam como metas,
além de discutir e entender a conjuntura brasileira, tentar intervir e servir
como órgão de denúncia das ações cometidas pelo regime militar. Aqui vale
lembrar que a revista é significativa em pelo menos dois pontos deste
processo. Além de ser o órgão divulgador das denúncias, também é a vitrine
para aquilo que se produz em seu meio interno, os grupos de estudo. Os
grupos e a imprensa exilada, por muitas vezes, davam até mesmo a sensação
de aproximação entre os brasileiros, tanto que Moacir Palmeira teria dito que a
revista DEBATE “Foi das melhores coisas que vieram atenuar a aridez do
exílio.”1
Jean François Sirinelli, e que, por sua vez, se apoia em Jean Luchaire – para o
caso específico do presente artigo, diz respeito à existência de uma primeira
geração de exilados que, temporalmente, se situaria no período do golpe, em
1964, e que politicamente teria como característica a identificação com “[...] o
projeto da reforma de base, ligados a sindicatos e partidos políticos legais,
como o PTB, ou ilegais como o PCB.”, e que, “Quando foram para o exílio, já
eram, na maior parte, homens maduros definidos profissionalmente”
(ROLLEMBERG, 1999, p.50). Além disso, em grande medida, estariam
engajados em um sistema de luta legal (na medida do possível) e pacífico
contra o regime militar. Já a segunda geração, diferente da primeira, teria
como características a pouca idade dos exilados, o pertencimento ao
movimento estudantil, e a sua atuação em estreita ligação com os meios
armados de resistência.
Por fim, poderia ser colocado mais um ponto que teria importância no
que concerne à trajetória dos exilados, a saber: o exílio dentro do exílio, que se
caracteriza pelo êxodo de exilados para terras europeias, principalmente
francesas, após o golpe que derruba Salvador Allende em 1973.
Ao se referir estritamente ao exílio dos intelectuais, acredita-se que este
esquema também possa ser usado. A primeira geração exilou-se com o golpe,
no ano de 1964, em que se registrou como maior contingência de exilados os
pensadores brasileiros renomados no país, e um tanto quanto conhecidos no
exterior. No segundo momento, com o avanço da violência do regime a partir
do AI-5, tem-se um novo fluxo de degredados, que são, em sua maioria,
aqueles jovens estudantes secundaristas e universitários já citados, que estão
cada vez mais ligados às organizações de esquerda, e que começam a se
refugiar em países europeus e da América Latina, principalmente no Chile.
Fora do país, iniciam ou desenvolvem suas carreiras acadêmico-intelectuais,
tendo grande importância em seu retorno pós-anistia na luta pela conquista da
democracia. Assim, usando a definição de intelectual exilado de Helenice Silva
“o intelectual exilado é não só o produtor e difusor do conhecimento que se
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 767
2
A influência do exílio nas culturas políticas brasileiras pós-anistia é o principal objeto de
nossa pesquisa de doutorado em andamento.
768 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes, em 30/04/2010.
4
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
770 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Para mim o que foi muito importante, foi um fator familiar, minha
irmã freqüentou desde 1966/67, o famoso cursinho do Grêmio, do
qual você já deve ter ouvido falar, e que é quase uma instituição.
Por lá ela conheceu Samuel Iavelberg. Minha irmã eu me lembro
que fazia trabalho em favela desde os 15 anos de idade. De vez em
quando eu ia com ela. Eu tenho a lembrança de distribuir alimentos
com a marca da Aliança para o Progresso no saco de alimento para as
populações pobres de favela, até então não tinha nada de esquerda
isso, mas quando ela vai para o cursinho no Grêmio, essas coisas, aí
então começa a namorar o Samuel Iavelberg (Irmão da Iara
Iavelberg, não é?) e, claro, aí passa a haver uma influência muito
grande. Ela se liga [...] Ela entra na VPR [...]. (Informação Verbal)6.
5
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes em, 25/04/2010.
6
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010
7
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 771
8
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
772 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Ricardo ainda ficaria preso por cinco dias, e seu pai por quinze. Depois
disso, Ricardo Abromavay, sem saber, segue para o exílio. Em seu
depoimento, ele explica o porquê desse “sem saber”:
Eu fui logo que eu saí da prisão, esses cinco dias que eu passei, e
meu pai quinze, logo que eu sa eu fui para Paris, legalmente, tudo
certinho porque eu não tinha nenhum problema. Fui de férias, ia
voltar, e quando eu estou em Paris... na verdade eu fui fazer uma
viagem de férias, ir para Amsterdã... Na volta meu irmão fala:
“Olha, a mãe ligou e disse para te dar um recado, o recado é que o
Marcelo não pode voltar.” Eu recebi o recado e, sabe tava num
clima de férias, moleque e tal. E eu lembro até hoje, Rodrigo. Eu
estava no Boulevard Saint-Michel, descendo o Boulevard Saint-
9
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
10
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 773
Michel, quando de repente cai a ficha, Marcelo era eu. (risos) Puta
merda! Que porra que aconteceu?! (risos) Aí eu me vi com 16 anos,
meio herói, sobretudo porque havia um lado meio [...] um lado
heróico, entende? Muito voltado para aquela coisa do homem
novo, etc. [...]. (Informação Verbal)11.
11
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay em 25/05/2010
774 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
12
Sobre “Nova Esquerda” ver: ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A Utopia
Fragmentada: As novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
13
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 775
14
Entrevista cedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
776 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
ao grupo, como relata Maria Lygia Quartim de Moraes ao falar dos militantes
do DEBATE:
O João foi muito importante [...] Para você ver, a gente era tão
doidão, que a minha primeira reação a isso [exílio] foi: Ah não,
vamos voltar para o Brasil e ir para a clandestinidade, e tal. Entrar
para a classe operária, trabalhar em fábrica, sei lá, esse tipo de
coisas. E aí começa a importância do João. João disse assim: “De
jeito nenhum!” [...] Então a Lia [Zatz] chega, e nós dois (e ainda
mais o namorado da Lia que estava na clandestinidade), nós ainda
estávamos, como jovens que éramos, muito ligados a idéia de que a
guerrilha iria dar certo, etc, etc. O João foi muito importante para
mostrar para a gente que, enfim, que aquilo era um equívoco, e que
não era por aí. Ele foi fundamental no começo de nossa formação
política. Então, Lia e eu fomos, por influência do João, que disse:
“Não, vocês tem que ir para a escola estudar e pronto!” E, tanto a
Lia quanto eu entramos em um colégio francês, começamos a
cursar em setembro de 70. (Informação Verbal)16
15
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim de Moraes, em 30/04/2010.
16
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 777
era intrínseco à parte dos exilados, com particular intensidade nos mais
jovens, como o próprio João Quartim relembrou:
17
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
18
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes em 15/01/2010.
19
A DEBATE serviu de remédio à desordem e a dispersão. Ela propunha em primeiro
lugar o agrupamento, seguidamente o esforço intelectual, a confiança nas nossas próprias
forças, as quais, naturalmente, eram extremamente limitadas, sobretudo no inicio, ou seja,
entre dezembro de 1969 e fevereiro de 1970, quando o primeiro número saiu. Depoimento
de Quartim de Moraes.
778 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
20
LÖWY, Michael. Questões DEBATE. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por:
Rodrigo Pezzonia. Em: 14 mar. 2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 779
21
Gosto de pensar que o conteúdo excedia a forma, porque era terrível de ver: papel ruim,
máquina de escrever medíocre [...]
22
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010
23
Entrevista concedida por Eduardo Abramovay em 21/01/2011.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 781
24
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
782 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Ah não, mas essa preocupação não existia [...] Zero [...] Nada, nada,
nada! Nada, porque a França era solidária. Para você ter uma idéia,
em 1974, nós tivemos um encontro de denúncia à ditadura no
Brasil. No lugar onde trabalhava Aluizio Nunes Ferreira, que não
era do DEBATE, tinha sido da ALN, e fazia parte de todas as
discussões, que era do grupo de estudos do Capital (Aluizio Nunes
Ferreira é um cara que conhece bem o Capital), e nesse encontro
Miterrand foi, por exemplo. Então em nenhum momento a gente
25
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
26
LÖWY, Michael. Questões DEBATE. Mensagem recebida por: <Rodrigo Pezzonia>.
Em: 14 mar. 2010.
27
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 783
28
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
29
Entrevista concedida por Ricardo Abramovay, em 25/05/2010.
30
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
784 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
31
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
32
Entrevista concedida por João Quartim de Moraes, em 15/01/2010.
786 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
33
No laudo pericial, datado de 19 de novembro de 1971, os peritos Lamartine Bizzarro
Mendes e Ernesto Perello, atestam os negativos não serem de microfilmes, e sim
microfotografias, ou seja, “negativos obtidos com máquina fotográfica conhecida no
comércio” e que podem ser “copiados sem a necessidade de aparelhamento especializado”.
Assim, negativos fotográficos comuns. BNM, 373.
34
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/126023/decreto-lei-898-69. Acesso em:
10/06/2010.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 787
***
35
“Quando a tentativa não constitui por si só crime, é punida com a pena combinada a
este, reduzido de um a dois terços.”
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/126023/decreto-lei-898-69. Acesso em:
10/06/2010.
788 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
Fontes
DEBATE. Apresentação. Paris - Fr. N° 1, Fev. 1970.
Bibliográficas
36
Projeto Brasil Nunca Mais; Tomo III – Perfil dos Atingidos, p. 103.
37
Alguns exilados voltam já na primeira brecha na abertura do governo Geisel, em 1974.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 789
Introdução
N
o presente trabalho objetivamos fazer uma articulação entre as
características da sociedade brasileira entre os anos de 1945 e
1964, marcada por intensas transformações econômicas e sociais,
e os reflexos destas no pensamento jurídico-penal do período. Nossa intenção
é, justamente, tentar analisar como as transformações sociais influenciaram na
constituição de um pensamento jurídico com base no qual determinados
segmentos sociais foram considerados mais propensos ao crime devido ao seu
não-ajustamento à sociedade pretensamente moderna que se configurava.
Para essa análise, remetemo-nos, primeiramente, à obra já clássica de
Georg Rusche e Otto Kirchheimer, Punição e Estrutura Social, publicada pela
primeira vez em 1939, na qual os autores, pioneiramente, afirmaram que as
práticas jurídico-penais não podem ser analisadas sem se levar em
consideração a realidade histórica na qual ocorre o processo de movimentação
das normas jurídicas. Também Michel Foucault, algumas décadas depois, ao
lançar a obra Vigiar e Punir, em 1969, reafirmou a importância de se analisar os
*
Mestranda em História/PPH-UEM/Bolsista: CAPES. Orientador: Dr. Rivail Carvalho
Rolim.
792 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
O autor citou edições do jornal Correio Paulistano, publicadas no ano de 1946, nos quais
noticiava-se ataques a estabelecimentos comerciais empreendidos por indivíduos isolados
ou por grupos de pessoas, bem como de protestos populares contra o aumento do preço
dos alimentos.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 795
toda parte. Éramos capazes de produzir quase tudo. As indústrias pesadas, tais
como a Companhia Siderúrgica Nacional – na Cosipa, na Usiminas, na
Acesita, em Tubarão, fabricavam o aço. Os derivados do petróleo se tornam
mais acessíveis e baratos: o óleo diesel, a gasolina, o óleo combustível, o
plástico, os produtos de limpeza e a fibra sintética. Do mesmo modo, a
engenharia brasileira estava avançada e era capaz de produzir as gigantescas
hidroelétricas. As indústrias do alumínio, do cimento, do vidro e do papel
cresceram, tal como as indústrias de alimentos, têxtil, de confecções, calçados,
bebidas, móveis e farmacêutica. Além disso, o sistema rodoviário foi
desenhado, ligando as diversas regiões do país.
As cidades modernizavam-se rapidamente com o surgimento de
arranha-céus construídos com tecnologia nacional, equipados com elevadores,
feitos de aço de primeira categoria, fibras de vidro. A indústria
automobilística, implantada pelo governo de Juscelino Kubitschek, nesse
momento produzia não apenas caminhões pesados, caminhões médios, mas
também caminhonetes, ônibus, tratores e utilitários de passeio.
Nas cidades espalhadas por todo o Brasil ocorreu o processo de
“implantação das redes de água e esgoto, construção de grandes avenidas,
edificação de uma arquitetura moderna, ruas pavimentadas e iluminadas”
(ROLIM, 2006, p. 180). Essas transformações em busca da modernidade
criaram um otimismo nas elites brasileiras, que manifestavam a crença de que
o Brasil poderia, em pouco tempo, ingressar no “Primeiro Mundo”. De
acordo com Mello e Novais, entre os anos de 1950 e 1979, havia a sensação
de que faltava pouco para o Brasil se tornar uma nação moderna.
4
Sobre as vilas operárias em São Paulo, a socióloga Eva Alterman Blay possui vasta
produção bibliográfica, sendo, talvez, a obra mais significativa: BLAY, Eva Alterman. Eu
não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 807
Assim, de acordo com a lei, o único meio de acabar com as favelas era
das casas aos favelados e impedir que eles fossem despejados. Isso também
obrigava os proprietários dos terrenos baldios a cuidarem para que não
fossem construídos barracos nesses locais.
Para Meuren, a questão das favelas era social, devendo ser combatida,
mas sem provocar outros problemas. Algumas medidas deveriam ser tomadas
para remediar a situação como um todo: elevar o padrão de vida dos
trabalhadores; realizar adequada política de urbanização das zonas residenciais
ou industriais da cidade; retirar as vantagens da exploração econômica das
favelas. Os moradores das favelas não poderiam ter, simplesmente, seus
barracos destruídos e irem parar nas ruas sem lugar para morar, mas sim
814 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Nesse sentido, foi criada uma instituição para atender aos problemas e
necessidades de moradia: o Banco Nacional de Habitação (BNH), que
ofereceria recursos técnicos e financeiros aos moradores das favelas para que
os mesmos adquirissem moradias novas, construídas em conjuntos
habitacionais afastados do local onde moravam.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 815
5
Esse mesmo artigo foi publicado, também, na Revista Forense, v. 154, jul./ago. 1954.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 817
Considerações finais
Referência:
Fontes
Bibliografia:
E
sta pesquisa analisa o movimento da industrialização em São Paulo
partindo das ideias e ações dos envolvidos na sua defesa face à política
econômica e dos setores contrários. Até as duas últimas décadas do
século XIX não houvera, no Brasil, um movimento organizado pela própria
indústria para lutar pelos seus interesses. Essa situação começa a mudar com a
crise de meados da década de 1870 e a intensificação da concorrência externa. A
reação foi iniciada pelos fabricantes de chapéus do Rio de Janeiro que,
mobilizados contra tal situação, conseguiram o apoio e a participação de outros
setores manufatureiros. Em relação a São Paulo, o setor manufatureiro paulista,
ainda em fase incipiente, a partir da segunda década do século XX, já começa a
ter expressão defendendo os seus interesses no Parlamento e na imprensa.
Carlos M. Pelaez (1971), analisando a evolução econômica desde o século
XIX até meados do seguinte, do Brasil e demais países conhecidos como de
colonização recente, como foram os Estados Unidos da América do Norte,
Canadá, Austrália, África do Sul e outros, observa que todos eles começaram
dedicando-se à produção de produtos primários e que, com a entrada de capital e
*
Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP.
828 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL. Relatório apresentado à Assembleia Geral, sessão de 10 de junho
de 1882, pela Diretoria. p. 28, In: LUZ, Nicia V. A. A luta pela industrialização do Brasil. 2 ª ed.
São Paulo: Alfa-ômega, 1975, p. 56-57.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 833
Para desenvolver a indústria, porém, era necessário que o Estado lhe desse
proteção, já que sendo o Brasil um país novo, a atividade industrial ainda era
muito embrionária. Fundamentava a atuação protecionista do Estado nos
seguintes termos: a) Dotar o país de indústrias necessárias ou lucrativas, que de
outra sorte seriam sufocadas logo ao nascer; b) Assegurar, por esse meio,
trabalho e bem estar à população operária do país; c) Tornar-se independente do
estrangeiro, dispensando-se de comprar-lhe produtos, a respeito dos quais, é de
supor, aquele acabaria por adquirir o monopólio, depois de haver arruinado a
indústria nacional (CAVALCANTI, 1896, p.220). Para alcançar tais objetivos,
defendia, ao igual que Felício dos Santos, um protecionista baseado nas
circunstâncias e levando em conta o estágio industrial dos diferentes países, e
rejeitava todo sistema preconcebido. Incluía nessa proteção, além das tarifas
alfandegárias, medidas de auxílio direto, como empréstimos feitos pelo Estado e
até emissões de papel-moeda.
As ideias de Serzedelo Correa (1980, p.27-30) coincidiam em vários pontos
com as dos outros nacionalistas que o precederam, como o grau de
protecionismo defendido, as justificativas a favor do mesmo, a recusa a todo
sistema, a priori. O que o diferenciava era sua visão de conjunto do problema
econômico brasileiro que, para ele, consistia em desenvolver de modo harmônico
as suas forças produtivas, por meio de uma política de proteção razoável tanto da
indústria quanto da agricultura, a fim de garantir a independência nacional e
aumentar o trabalho no seio do vasto país. Defendia para esse desenvolvimento
harmônico, não apenas uma política de moderada proteção alfandegária, mas
enquadrava esse protecionismo num conjunto de medidas que abrangiam o setor
monetário, como o saneamento da moeda; o fiscal, recomendando maior
eficiência na arrecadação; o bancário pela organização do crédito; o
838 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
O Industrial. Manifesto da Associação Industrial, Órgão da Associação Industrial, 21 de maio
de 1881.
840 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
política será apenas uma ilusão – afirmavam – enquanto o Brasil for uma nação
produtora de matérias-primas,
3
Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Sr. Presidente da República dos Estados
Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, Joaquim Murtinho, 1901.
In: LUZ, N. Vilela, Opus Cit., p.86.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 843
4
“Tarifas sobre manufaturas de algodão”. O Jornal, Associação Comercial de São Paulo, 1 de
janeiro de 1929.
848 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
Fontes
Bibliografia
CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec,
1990.
CARONE, E. O pensamento Industrial no Brasil (1880-1945). Rio de Janeiro/São
Paulo: Difel, 1977.
CAVALCANTI, A. Elementos de Finança. Rio de Janeiro: [s.l.], 1896.
______. Resenha Financeira do Ex-Império. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1890.
CORREIA, S. O Problema Econômico no Brasil (1903). Brasília. Senado Federal; Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.
FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. 18ª ed. São Paulo. Ed. Nacional,
1982.
LUZ, N. V. A Luta pela Industrialização no Brasil: 1808-1930. 2ª ed. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1975.
PELAEZ, C. M. Conseqüências econômicas da ortodoxia monetária, cambial e
fiscal no Brasil entre 1889 e 1945. Revista Brasileira de Economia, v. 25, n. 3, jul./set.
1971.
SUZIGAN, W. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. Nova Edição. São
Paulo, Hucitec/Ed. Unicamp, 2000.
STEIN, S. J. Origem e Evolução da Indústria Têxtil no Brasil – 1850/1950. Rio de
Janeiro, 1979.
VEIGA MIRANDA. Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados,
Sessão de 10 de setembro de 1919.
Terrorismo e a agenda/pressão política dos Estados
Unidos: o caso da tríplice fronteira
O
s atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da
América (EUA), provocaram alterações na agenda de segurança do
país, com implicações tanto na configuração interna do aparato de
segurança e defesa, como nas suas relações externas. Os norte-americanos
passaram a pressionar os Estados onde poderia haver alguma conexão com o
terrorismo internacional. No bojo do que poderíamos chamar de histeria em
relação ao perigo do terrorismo, os EUA pressionaram os governos da
Argentina, Brasil e Paraguai por conta da possibilidade de haver pessoas com
conexões a grupos terroristas internacionais atuando na região da tríplice
fronteira (Puerto Iguazu – Foz do Iguaçu – Ciudad del Este). O presente
trabalho apresenta uma leitura da pressão política exercida pelos EUA em relação
a essa região, a partir das notícias veiculadas na imprensa brasileira logo após os
atentados.
Introdução
854 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
*
Doutor em História /UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. Clodoaldo Bueno
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 855
1
Resoluções disponíveis em http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html. Acesso em:
12 ago. 2009.
856 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
Já ratificada por 24 membros. Disponível em http://www.oas.org/juridico/english/sigs/a-
66.html. Acesso em 15 jul. 2009.
3
O grupo passou a se reunir, quinzenalmente, desde 2001 para trocar e analisar informações
relativas à possível atuação terrorista na sub-região.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 857
4
Um dos exemplos foi o ataque a Líbia em 15 de abril de 1986 após descoberta a ligação do
governo de Kadafi com o atentado na discoteca la Belle em Berlim que matou um soldado
norte-americano e deixou outros 79 feridos. AMARAL, Arthur Bernardes do. A tríplice
fronteira e a guerra ao terror. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 106–107.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 859
5
O atentado teve um saldo de 6 mortos e mais de mil feridos.
860 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
sua política externa e, entre uma série de ações, se engajou no sentido de que os
Estados do sistema internacional adotassem medidas para o combate ao
terrorismo. O engajamento foi maior em relação àqueles que pudessem ter em
seu território áreas que facilitassem a ligação de pessoas com os grupos
terroristas. É assim que, regiões que abrigavam uma considerável comunidade
árabe palestina e que, pelas suas características, facilitassem o movimento, tanto
de dinheiro como de pessoas e materiais, ganharam importância para os norte-
americanos.
Foi nesse contexto político que a tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e
Paraguai, foi uma das que ganhou destaque no noticiário nacional e internacional
por conta de uma série de posicionamentos e propostas dos EUA para a região.
6
Sobre o conceito de segurança multidimensional ver: VILLA, Rafael Antonio Duarte. Da crise
do realismo à segurança global multidimensional. São Paulo: Annablume, 1999.
862 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
das Relações Exteriores Celso Lafer se apressou em assegurar que não havia
qualquer informação sobre ramificações de redes terroristas no Brasil (AMARAL,
2010, p.168).
Nas discussões no âmbito da Organização dos Estados Americanos
(OEA) nas semanas seguintes, sobre o envolvimento dos países latino-
americanos em uma guerra antiterrorista junto com os Estados Unidos, a
Argentina e o Paraguai teriam evocado apoio militar, possibilidade descartada
pelo Brasil. A matéria da Folha relatava que o diretor de Comunicação da
Delegação de Assistência Israelense Argentina (Daia), Adolfo Neuberger
lamentava que os países membros da OEA não tinham, até então, utilizado esses
instrumentos para combater as chamadas “células adormecidas” do terrorismo na
tríplice fronteira. Dizia, também, que o Secretário Geral do Itamaraty havia
afirmado que a questão daquela região nunca fora objeto de discussão
diplomática no Ministério das Relações Exteriores (OEA DISUTE..., 2001).
Em 19 de setembro, o encarregado de negócios da embaixada dos Estados
Unidos no Brasil, Cristobal Orozco, afirmou que, no Brasil, não havia sido
detectada qualquer pista sobre terroristas responsáveis pelos ataques a
Washington e Nova York. A mesma matéria asseverava que o Ministro da
Defesa, Geraldo Quintão, havia declarado na Comissão de Relações Exteriores e
Defesa Nacional do Senado que os órgãos de inteligência do governo estavam
atentos a toda e qualquer informação em relação à possibilidade de terroristas
terem passado pelo Brasil (EUA NÃO..., 2001).
O governo paraguaio se apressou em dar uma resposta aos norte-
americanos e prendeu 17 pessoas de origem árabe em uma operação
desencadeada em Cuidad del Este e Encarnación (PARAGUAI PRENDE...,
2001). No final daquele mês, 13 das 17 pessoas detidas por porte de documentos
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 865
7
BRASIL. Câmara dos Deputados. CREDN. Audiência Pública n. 001079/01. Depoimento
do Ministro de Relações Exteriores Celso Lafer. Brasília, 4 out. 2001.
866 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
tríplice fronteira. A mesma matéria afirmava que o Brasil investigava seis pessoas
por suspeita de envolvimento com terrorismo por meio da força antiterror da PF
e apoiada pela polícia federal americana (FBI) (BRASIL..., 2001).
No dia seguinte, matéria da Folha informava sobre a criação do grupo
especializado em terrorismo internacional, o Grupo de Trabalho Permanente
(GTP), para coordenar todas as ações conjuntas a serem desenvolvidas na região,
principalmente na fronteira do Brasil, Uruguai e Argentina, onde autoridades
internacionais suspeitavam da existência de células terroristas ou mesmo pessoas
que financiariam a ação de grupos extremistas pelo mundo (MERCOSUL...,
2001). Outra matéria afirmava, com base em informação prestada pelo
Subsecretário Antiterrorismo do Departamento de Estado, Steven Monblatt, que
os EUA acreditavam na existência de focos terroristas na área que, por meio do
contrabando e do uso de instituições de caridade de fachada, arrecadavam
recursos e os enviavam para grupos estrangeiros. No entanto, o mesmo
Subsecretário afirmava ser ainda “nebuloso” o vínculo entre o terrorismo e o
contrabando na região. Monblatt fez tal afirmação após reunião na OEA, em que
fora enviado pelo Secretário de Estado, Colin Powell, para pedir aos países
latino-americanos maior controle nas fronteiras (AITH, 2001).
Em meados de outubro, a Folha declarou que o coordenador da agência de
contraterrorismo do Departamento de Estado dos EUA, Francis Taylor, havia
reiterado a preocupação da Casa Branca com a suposta atividade de grupos
fundamentalistas islâmicos na tríplice fronteira. “Os terroristas que atuam na
tríplice fronteira nos preocupam. Por isso, queremos trabalhar com os governos
(de Buenos Aires, Brasília e Assunção) para interromper as operações” desses
grupos, disse ele (EUA PREOCUPADOS..., 2001).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 867
No final daquele mês o jornal O Globo noticiou que tanto o FBI como a
CIA teriam descoberto “indícios” da atividade do grupo terrorista, dirigido pelo
milionário suadita acusado de ordenar os ataques terroristas de 11 de setembro,
em Nova Iorque e Washington. O chanceler paraguaio José Moreno Rafinelli se
apressou em afirmar não ter informações de que a organização Al Qaeda tivesse
uma base logística na tríplice fronteira (PARAGUAI DESCONHECE..., 2001).
No início de novembro, o presidente paraguaio Luis González Macchi
negou a existência de atividades terroristas no local, afirmando que, em vez disso,
a região seria vítima de um “terrorismo verbal” por parte dos Estados Unidos e
que, segundo os prefeitos de Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e de Puerto Iguazú,
a área apresentaria um alto índice de delinquência e criminalidade, mas não havia
ali terrorismo (TRÍPLICE FRONTEIRA..., 2001).
No discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o
presidente Fernando Henrique Cardoso desaconselhou as ações unilaterais e,
numa conversa com Bush, informou que o Brasil considerava o trabalho de
construção da coalizão contra o terrorismo que os EUA estavam conduzindo
como uma expressão de uma preocupação saudável de Washington com o
multilateralismo.
A mesma matéria do jornal O Estado de S. Paulo apresentou que as suspeitas
norte-americanas sobre atividades de financiamento da rede terrorista Al Qaeda
por membros da comunidade árabe que vivia na região da tríplice fronteira não
haviam sido tratadas diretamente pelos dois presidentes, mas que Fernando
Henrique fora acompanhado pelo então Ministro-Chefe do Gabinete de
Segurança Institucional, que manteve reuniões com representantes dos serviços
de inteligência dos EUA. O Ministro disse, em entrevista, que “O Brasil não tem
nenhum interesse em negar por negar que haja terrorismo no País, mas não
868 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
temos nenhum indício que nos permita afirmar que há bases ou células terroristas
naquela região e consideramos tal possibilidade remota” e que era sabido “que ali
se faz contrabando e lavagem de dinheiro e existe a possibilidade de que dinheiro
que as pessoas remetem para o exterior possam ser usado para esse fim, mas os
rastreamentos que fizemos e continuamos a fazer não nos permite afirmar isso”
(FHC DESACONSELHA..., 2001).
Em novembro, a rede de notícias CNN divulgou, em seu site, uma notícia
a respeito de uma casa em Cabul que possuiria um quadro grande na parede com
a paisagem das Cataratas do Iguaçu que chamou a atenção da repórter “diante
das crescentes suspeitas de que a região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai
e Argentina concentra atividades terroristas” (IMAGENS DAS..., 2001).
Posteriormente, comprovou-se que não se tratava das cataratas na referida foto.
Naquele mesmo mês, ainda que não tivesse provas concretas da existência
de células terroristas na região, o governo brasileiro decidiu reforçar o
policiamento na tríplice fronteira, criando um núcleo de Polícia Marítima em Foz
do Iguaçu com o objetivo de auxiliar na segurança da área, “considerada um dos
pontos de maior vulnerabilidade do País e uma das grandes preocupações do
governo norte-americano” (BRASIL REFORÇA..., 2001) e a Usina de Itaipu
adotou um rígido controle de turistas (ITAIPU ESTÁ..., 2001, p.5).
Enquanto isso, O Estado de S. Paulo apontava a preocupação da OEA com
as atividades ilícitas na região, sobretudo com o contrabando no lado paraguaio
(TRÍPLICE FRONTEIRA PREOCUPA..., 2001). No final de 2001, foi
anunciada, ainda, a visita de uma delegação de congressistas americanos na zona
da tríplice fronteira (DELEGAÇÃO DOS..., 2001).
As notícias sobre o tema prosseguiram em 2002. Em maio, o Estadão
noticiou que o Departamento de Estado dos EUA afirmou, por meio do
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 869
Conclusão
8
As zonas de risco incluíram a Venezuela, o Chile e o Suriname, em decorrência de sua
expressiva população muçulmana. (CUNHA, 2009, p. 78).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 871
Referências:
E
ste artigo tem por objetivo avaliar o papel da metrópole no
processo de dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo,
durante o governo do capitão-general Rodrigo César de Menezes.
A relevância dessa conjuntura espaço-temporal para a compreensão do objeto
proposto está relacionada aos significativos descobrimentos auríferos,
realizados por sertanistas paulistas, no interior do continente, e à posterior
incorporação dessas “novas” regiões aos domínios portugueses na América.
Trata-se, portanto, de uma exposição sobre a ação metropolitana na expansão
dos domínios portugueses na América em princípios do século XVIII, tema
este tradicionalmente tributário da história das bandeiras paulistas.
Rodrigo César de Menezes tomou posse do cargo de governador da
capitania de São Paulo em 6 de setembro de 1721, perante o Senado da
Câmara de São Paulo, no qual permaneceu até 1728. Era membro de uma
família da qual saíram importantes autoridades do vasto Império português.
*
Mestrando em História/UNESP/Assis/ Bolsista: FAPESP. Orientador: Dr. Claudinei
Magno Magre Mendes.
880 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Seu pai, Luís César de Menezes, fora governador do Rio de Janeiro, de Angola
e, posteriormente, governador-geral do Brasil. Durante o período em que
esteve encarregado do governo da capitania de São Paulo, seu irmão mais
velho, Vasco Fernandes César de Menezes, primeiro Conde de Sabugosa,
ocupava o cargo de vice-rei do Brasil, com o qual trocou abundante
correspondência.1 É importante mencionar, também, que após o término de
seu serviço na capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes foi
governador de Angola de 1732 a 1738, ano em que faleceu, em sua viagem de
volta para o Rio de Janeiro.
Há algumas razões que fazem do governo de Rodrigo César de
Menezes um objeto de estudo importante para a compreensão do papel da
metrópole na expansão dos domínios portugueses aos sertões longínquos da
América. Em primeiro lugar, devemos esclarecer que Rodrigo César foi o
primeiro governador da capitania de São Paulo após o desmembramento de
Minas Gerais, em 1720, por recomendações do Conselho Ultramarino. Essa
reorganização administrativa esteve diretamente vinculada ao descobrimento
das minas do Cuiabá, ocorrido em torno de 1718, por sertanistas paulistas
comandados por Pascoal Moreira Cabral, os quais encontraram o precioso
metal na região mais central da América do Sul e, portanto, muito além do
meridiano proposto pelo Tratado de Tordesilhas (1494). Como sabemos, essa
linha imaginária deveria delimitar as possessões portuguesas e castelhanas na
América, muito embora na prática não fosse respeitada, tanto pela sua
caducidade como pela dificuldade em reconhecer sua exata localização. Assim,
a nomeação de Rodrigo César de Menezes ao cargo de governador da nova
1
Para informações biográficas e genealógicas sobre Rodrigo César de Menezes, cf. LUIS,
Washington. Capitania de São Paulo: governo de Rodrigo Cezar de Menezes. São Paulo:
Typ. Casa Garrauz, 1918; SOUZA, Laura de Mello e. “Morrer em colônias: Rodrigo César
de Menezes, entre o mar e o sertão”. In: SOUZA, L. de M. O sol e a sombra: política e
administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia de Letras,
2006. p. 284-326.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 881
como para os colonos, sobretudo nos sertões auríferos de Cuiabá e Goiás, que
iam sendo revelados. Por esse motivo, era conveniente que a monarquia
portuguesa dilatasse o seu domínio e governança a regiões tão distantes
quanto promissoras. Vivia-se um momento de grandes expectativas quanto às
explorações auríferas na América portuguesa, e era mister que a Coroa
portuguesa assegurasse a governabilidade e a defesa da sua colônia. De acordo
com a nossa hipótese inicial, o que garantiu a incorporação das regiões das
minas de Cuiabá e Goiás ao Império português, concomitantemente e em
harmonia expansão bandeirante paulista, foi a ação do próprio Estado
metropolitano em busca de interesses definidos, cuja realização culminou na
dilatação territorial da América portuguesa. Sendo assim, supomos que a
Coroa portuguesa não entregou a tarefa de ocupação desses espaços
exclusivamente à iniciativa privada, mas que o processo de dilatação das
fronteiras da capitania de São Paulo, no período analisado, ocorreu como
resultado, em grande medida, de uma política de ocupação idealizada e
praticada pela metrópole.
No entanto, privilegiaremos, neste artigo, o processo de incorporação
das minas de Cuiabá aos domínios lusitanos, em detrimento da ação da
metrópole sobre os sertões de Goiás. Esse aparente desequilíbrio pode ser
explicado pelo fato de que o grande assunto de toda a documentação
referente ao governo de Rodrigo César de Menezes na capitania de São Paulo
são as minas de Cuiabá. Enquanto estas se encontravam em crescente
processo de exploração, Goiás ainda estava em fase de descobrimento e as
demais regiões eram relativamente ofuscadas diante da proeminente riqueza
que se vislumbrava nos sertões cuiabanos. Desse modo, centralizaremos nossa
análise em avaliar o papel da metrópole na incorporação das minas de Cuiabá
ao domínio efetivo da Coroa lusitana.2
2
Para uma perspectiva socioeconômica da formação da fronteira oeste da América
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 883
portuguesa, a partir do descobrimento das minas de Cuiabá, cf. VOLPATO, Luiza Rios
Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do
Brasil, 1719-1819. São Paulo, HUCITEC; Brasília, INL, 1987.
884 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
3
Entre os historiadores das três primeiras décadas do século XX responsáveis pela
heroificação do bandeirante como construtor do território nacional, privilegiaremos em
nossa análise Affonso de E. Taunay e Basílio de Magalhães. Embora outros importantes
estudiosos – como Alfredo Ellis Junior, Paulo Prado, José de Alcântara Machado, Azevedo
Marques – tenham sido tão importantes quanto eles para a construção do símbolo
bandeirante, o trabalho daqueles primeiros tem mais proximidade com o tema ora em foco:
a expansão territorial do Brasil. Além deles, Washington Luís e Sérgio Buarque de Holanda
também encontrarão neste artigo especial atenção: o primeiro por trabalhar, na mesma
perspectiva dos demais, especificamente o governo de Rodrigo César de Menezes; e o
segundo por ser historiador muito consagrado, que cristalizou importantes imagens sobre
nossa história colonial, conservando, porém, alguma influência da heroificação em torno
do bandeirismo paulista. Sobre o surgimento do símbolo bandeirante, cf. ABUD, Katia
Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo
paulista, o bandeirante. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1986.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 885
4
cf. LIPPI, L. A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos. vol. V (suplemento), 195-215 julho 1998;
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados instituições, invenção
histórica (1870-1840). São Paulo: UNESP, 2002.
886 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
6
“Registro de uma carta escrita ao Vice-Rei do Estado” In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 19-24.
894 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
7
“Registro de uma carta escrita ao Vice-Rei do Estado”. In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896. p. 20-21.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 895
10
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 35.
898 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
11
“Registro do regimento que levou para as novas minas de Cuiabá o mestre de campo
regente João Leme da Silva”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XII. São
Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1901, p. 99.
12
“Registro do regimento que levou o Capitão Bartolomeu Bueno da Silva, cabo da tropa
que foi ao sertão a descobrir minas de ouro e pedras preciosas”. In: Arquivo do Estado de
São Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e
Costumes de São Paulo, v. XII. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1901, p. 53.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 899
Não tem sido pequena felicidade chegar a por as coisas nos termos
em que estão, depois de achar tudo desordenado, parecendo não
aproveitaria remédio algum, porque o ânimo destes homens estava
bastantemente empedernido, concorrendo o seu avesso gênio para
lho fazer endurecer mais, e os que se acham no novo
13
“Registro de outra carta para o dito Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São
Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 25.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 901
14
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 35-36.
15
Por esse motivo, em vez da expressão “doação de sesmarias”, optamos por “concessão
de sesmarias”, pois o primeiro conceito sugere irremediavelmente a conotação de
propriedade privada, enquanto o termo “concessão” apresenta as sesmarias como mercês
oferecidas pela monarquia portuguesa – legítima possuidora das terras – condicionadas por
inúmeros deveres dos suplicantes, expressos um a um nas cartas emitidas. cf. Arquivo do
Estado de São Paulo. Sesmarias (1720 – 1736), v. III. Edição do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, 1937.
902 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
16
“Registro de uma carta escrita ao Excelentíssimo Senhor Vice-Rei do Estado”. In:
Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de Documentos Interessantes
para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São Paulo: Typographia Aurora, 1896,
p. 211.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 903
era tributada pela metrópole. Deste modo, o regime sesmarial era estruturado
com base em uma relação de serviços e recompensas entre os proprietários e a
metrópole.
O funcionamento do regime sesmarial, enquanto subsidiário da política
de mercês, pode ser entendido como reflexo da estratégia metropolitana de
utilizar o trabalho de particulares para a realização do “serviço real”. Tanto o
abastecimento interno quanto os descobrimentos auríferos eram efetuados
dentro de um sistema de serviços e recompensas, sem que a metrópole
precisasse investir significativamente o seu erário para colocá-lo em
funcionamento. Os colonos pediam sesmarias em áreas estratégicas, visando
realizar o lucrativo comércio com as regiões mineradoras, e a metrópole fazia
a mercê, se a solicitação estivesse de conformidade com seus propósitos. Os
descobridores deviam partir para os sertões por conta própria, assim como os
sesmeiros deviam cultivar as terras com seus próprios cabedais. Dessa
maneira, a fórmula da política de mercês, apresentada por Rodrigo César de
Menezes na já citada carta ao Vice-Rei, cumpria-se cabalmente: “[…] não
despendendo nada da sua real fazenda, será aquele o caminho de aumentá-la
muito”17. As sesmarias, enquanto mercês, devem ser compreendidas em dois
níveis distintos e hierárquicos. Em primeiro lugar, como já foi dito, essas
terras eram concedidas como recompensas pelo simples serviço de cultivá-las;
bastava que o suplicante possuísse recursos para fazê-lo, principalmente a
posse de escravatura. Havia, entretanto, casos especiais, nos quais as sesmarias
eram concedidas pela realização de outros serviços prestados, como os
descobrimentos de minas preciosas, a abertura de caminhos, a cobrança dos
dízimos e quaisquer outros que proporcionassem direta ou indiretamente o
aumento do erário régio. Nesses casos, as terras poderiam ser melhor
17
“Para o Senhor Vice-Rei”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 37.
904 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
18
“Registro de uma carta de data de terra de sesmaria, de légua e meia em quadra, de Luiz
Rodrigues Vilares, do sítio Camapuã”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Sesmarias
(1720 – 1736). vol. III. Edição do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1937, p.
169.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 905
19
“Registro de uma carta que se escreveu ao general do Rio de Janeiro sobre a abertura do
novo caminho”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação Oficial de
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. XX. São
Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 153.
906 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
20
“Carta régia participando que o rei de Portugal não concorda com as medidas propostas
para a defesa do porto de Santos”. In: Arquivo do Estado de São Paulo. Publicação
Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v.
XVIII. São Paulo: Typographia Aurora, 1896, p. 144-145.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 907
Referências:
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 909
Introdução
A
s filosofias da história foram combatidas com veemência por
historiadores desde o início do século XX. Destacamos dois
resultados destes “combates” intelectuais (e também acadêmicos) para
a relação entre filosofia e história. Em primeiro lugar, o fortalecimento da
interdisciplinaridade na pesquisa histórica, que passou a pautar sua metodologia
não em modelos definidos, mas na apropriação de conceitos. Em segundo lugar,
o diálogo entre história e filosofia tornou-se árido, cercado por incertezas e
desconfianças. No entanto, alguns trabalhos recentes propõem novas
perspectivas a este distanciamento. Pretendemos analisar, de forma tópica, duas
abordagens inovadoras que articulam filosofia e história: a perspectiva
genealógica derivada das pesquisas de Michel Foucault e a leitura hermenêutica
de Paul Ricoeur, buscando mapear as possibilidades que ambos os sistemas
abrem ao território do historiador. Um diálogo problemático em vias de
*
Doutorando em História/UNESP/Assis/Bolsista: FAPESP. Orientador: Prof. Dr. Hélio
Rebelo Cardoso Jr.
914 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
No entanto, esta verdadeira explosão da teoria da história não se limita a este debate aqui
levantado, temos como exemplo de outras formas de teorização, as relações entre história e
pós-modernidade (em especial quanto à questão narrativa) em Keith Jenkins, a história dos
conceitos e o resgate dos projetos de futuro passado com Reinhardt Kosseleck, ou ainda a
elaboração de uma meta-história com Jorn Rüsen.
916 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
uma batalha, um evento grandioso que daria sentido à história, mas a emergência
de uma ruptura, de uma singularidade.
recusa a existência de uma essência como origem histórica estável posto que esta é
um campo de forças marcado pela heterogeneidade da luta. Dessa forma, a
genealogia não representa a busca de uma origem, de um espírito perfeito,
olvidando os fatos, os erros, mas demorar-se nas meticulosidades, nos acasos de
um começo. Pensemos em Vigiar e punir. Para analisar a emergência do poder
disciplinar e da prisão como forma universal de punição Foucault produziu um
recorte temporal preciso entre 1791 e 1840, sem recuar ad-infinitum. Desta forma,
observamos que, ao recusar o “mito de origem” como definiria Bloch, Foucault
produziu uma história-problema que deve seguir algumas regras: “Escolha do
material em função dos dados do problema: focalização da análise sobre os
elementos suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento das relações que permitem
essa solução” (FOUCAULT, 2006, p. 326).
Le Goff, inclusive, vai além e atribui a Bloch os fundamentos da
genealogia “Sem que a palavra existisse em Marc Bloch, mas a idéia ali estava, é a
genealogia” (LE GOFF, 2003, p. 203). Um pequeno parágrafo deve ser aberto
neste ponto. As conexões encontradas entre o pensamento genealógico de
Foucault e a história praticada pelos autores ligados aos Annales não deve ser
menosprezada, afinal tanto na introdução da Arqueologia do saber quanto no
argumento geral da Ordem do discurso, Foucault faz questão de traçar um paralelo
entre sua empreitada e a dos historiadores de ofício (que podemos identificar
como os ligados aos Annales) e de como ambas se afastam de certa história
tradicional. As aproximações entre Foucault e os assim chamados pais fundadores
dos Annales, March Bloch e Lucien Febvre, não são inconsequentes e, certamente,
necessitam de uma análise mais específica2.
2
Além do texto citado de Le Goff, podemos arrolar nesta perspectiva os comentários de
autores como Peter Burke, Roger Chartier e François Dosse, que também reforçam essa
ligação o projeto de Foucault e o dos autores dos Annales.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 919
Essa crueza está contida nos documentos oficiais, nas sentenças, nas leis,
discursos de ação, de sangue.
Não é à toa que os (anti-)heróis de Foucault, em sua genealogia, foram os
homens infames. Não infames por terem construído sobre si uma “má reputação”,
mas vidas obliteradas pelo poder e esquecidas pelo tempo, anônimas. Sobre elas,
encontramos a irônica risada de Foucault, ao afirmar que,
Foucault afirmou que A vida dos homens infames não serviria ao historiador
de ofício, estaria mais para uma coleção dispersa de existências. Mas ao coletar
existências alerta-nos para as infinitas possibilidades de existência, de modos de
um indivíduo constituir-se enquanto sujeito. Enfim, “Esses discursos realmente
atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas
nessas palavras” (FOUCAULT, 2006, p. 207).
histórica
o mundo do leitor. A leitura, sob tal ótica, não deve ser considerada uma ação
passiva, na qual o leitor simplesmente aceita as teses do autor, mas uma operação
ativa, na qual cada leitor estabelece um entendimento particular do texto. Essa
postura ativa do leitor permite a Ricoeur contornar o caráter vicioso que a
circularidade hermenêutica poderia abarcar, pois não reduz a análise do texto a
compreender apenas os elementos da própria obra e/ou de seu autor, mas
também abarca a forma sob a qual o leitor refaz, distorce esse texto a partir de
sua própria pré-compreensão. Ricoeur afirmou:
Genealogia e Hermenêutica
3
Sobre a dura experiência de memória e perdão, Ricoeur dedica o belo epílogo de seu livro A
memória, a história, o esquecimento, onde afirma que “Minha tese, aqui, é que existe uma assimetria
significativa entre o poder perdoar e o poder prometer, como o comprova a impossibilidade de
autênticas instituições políticas do perdão” (RICOEUR, 2007, p. 466).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 929
Conclusão
Referências
DOSSE, François. A história à prova do tempo. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005a.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005b.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006.
RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social -
Rev. Sociologia da USP, S. Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 67-82, 1995.
RAGO, Margareth; RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas:
Papirus, 1994.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007.
Aproximações entre Thompson e Foucault na
historiografia brasileira dos anos 80:
alguns apontamentos
N
a década de 1980 ocorreram mudanças significativas na produção
historiográfica brasileira. Diversos intelectuais perceberam e
diagnosticaram essas mudanças como resultantes, sobretudo, do
fim do regime militar e da abertura política, do crescimento das instituições de
produção historiográfica e da introdução de novas reflexões teórico-
metodológicas. Entre essas reflexões, que “movimentaram” a historiografia
brasileira do período, se destacam as de Edward Palmer Thompson e de
Michel Foucault. Nossa intenção é indicar de que modo uma parte da
historiografia brasileira da década de 1980 aproximou alguns elementos do
pensamento desses autores, criando debates acalorados; bem como discutir os
desdobramentos teóricos da aproximação de autores oriundos de vertentes
bastante distintas.
Em artigos publicados em 1994, Emília Viotti da Costa e Zélia Lopes
da Silva assinalam as mudanças ocorridas na produção historiográfica
brasileira a partir de 1980. Costa, em seu ensaio denominado “A dialética
invertida: 1960-1980”, discute o deslocamento das análises historiográficas de
*
Doutorando em História /UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso
Junior.
932 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
933
934 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
Na introdução de A Arqueologia do Saber, Foucault discute com atenção a “história
contínua” (clássica) e a história descontínua (genealógica). A primeira busca apagar os
“acidentes”, suprimir as descontinuidades em favor de um sentido lógico e único, uma
continuidade que progride. A segunda utiliza a descontinuidade como conceito operatório,
esta é, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa (Cf. FOUCAULT, 2004, p.3-
20).
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 935
935
936 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
937
938 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
939
940 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Contudo, como assinala Paul Veyne (1998, p.251), Foucault não fala de
um mundo diferente do apresentado pelo historiador. Apenas busca descrever
todo o “relevo”, todos os contornos, por mais pontiagudos que sejam, desse
mesmo mundo descrito pelos historiadores de forma “plana”, completamente
coerente e com sentido único.
Isso remete à segunda grande dificuldade, a “noção de
descontinuidade”, pois, para Foucault, a história não é contínua, não existe
uma origem da qual evoluímos (progredimos) até a excelência. A história é
repleta de rupturas, por isto, pode ser dividida em “epistemes”. Cada episteme
organiza de modo completamente diferente os saberes, permite que algumas
coisas sejam enunciadas, vistas e praticadas e outras não; ainda, as epistemes
não podem ser hierarquizadas em uma cronologia de progresso ou evolutiva,
são simplesmente singulares. Destarte:
941
942 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Daí, não é difícil imaginar, que entre as referências teóricas da autora estejam
Foucault e Thompson:
943
944 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
945
946 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
947
948 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
949
950 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Segundo Margareth Rago (Cf. RAGO, 1993; 1995, passim), por volta
de 1980 ocorreu, entre os historiadores brasileiros, uma leitura indireta de
Foucault, filtrada principalmente pelas análises do filósofo Roberto Machado.
Isto gerou uma inversão do percurso teórico-prático dos estudos de Foucault:
Isso não significa que essas “mixórdias” não possam produzir reflexões
ou resultados relevantes como, por exemplo, a de Thompson com Foucault
na obra Do cabaré ao lar (1985), de Rago, alvo de uma autocrítica:
Eu, por exemplo, queria mostrar que o anarquismo era uma força,
que os libertários sabiam se formular a despeito dos intelectuais
orgânicos. Mas isso era muito contraditório porque, ao mesmo
tempo em que trabalhava com a tendência de dar voz aos
‘vencidos’ e retirar os pobres do silêncio, mostrando sua
racionalidade, ao contrário do que o discurso liberal afirmava,
utilizava Foucault, que dissolvia o sujeito e o mostrava como efeito
das redes de relações e da formação de saberes. Então a questão
ficou muito complicada porque, pelo lado do filósofo, minimizava-
se a ação do sujeito e descartava-se a importância da sua ação
racional e consciente, e pelo lado de Thompson fazia-se o
contrário, mostravam-se os homens agindo e fazendo a sua história
o despeito das estruturas. (RAGO, 1993, p.133-134).
951
952 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
953
954 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências
HUNT, L. A nova história cultural. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
JOANILHO, A. L. Michel Foucault e a pesquisa histórica: Questões de
método. In DENIPOTI, C.; JOANILHO, A. L. (Orgs.). Leituras em História.
Curitiba: Aos quatro ventos, 2003. p.15-25.
LE GOFF, J. A nova história. Lisboa: Edições 70, 1991.
LOPES, M. B. Práticas médico-sanitárias e remodelação urbana na cidade do Rio de
Janeiro 1890/1920. 1988. Dissertação (Mestrado em Historia) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
1988.
MARONI, A. A estratégia da recusa: Análise das greves de maio/78. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
MORAES, J. G. V. de; REGO, J. M. (Orgs.). Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002.
NICOLAZZI, F. A narrativa da experiência em Foucault e Thompson. Revista
Anos 90. Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.101-138, jan./dez. 2004. Disponível
em:
<http://www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/viewFile/6353/3804>.
Acesso em: 10 set. 2010.
RAGO, L. M. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
______. As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia brasileira
contemporânea. Anos 90, Rio Grande do Sul, PPGH-UFRGS, v. 1, n. 1,
p.121-143, 1993.
____________________. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.
Tempo Social, São Paulo, USP, v. 7, n.1-2, p. 67-82, 1995.
ROCHA, A. E. Dialéctica e Ideologia em Althusser. Revista Portuguesa de
Filosofia, Braga, Tomo XXXII-3/4, p. 1-20, 1976.
SAES, D. Marxismo e história. Crítica Marxista. Campinas, n. 1, 1994.
Disponível em:
<http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/numante.html> Acesso
em: 01 jun. 2007.
955
956 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
O
presente trabalho visa discutir a mediação do conhecimento com
base na ótica benjaminiana, tendo em vista as reflexões deste
autor no ensaio As doutrinas da Semelhança (1933).
Um estudo desta natureza vai ao encontro de um questionamento às
formas de tramitação do saber que, no mais das vezes, têm priorizado a escrita
em detrimento dos demais veículos de transmissão de conhecimento:
oralidade, dança, música, astrologia, arquitetura, cerimônias, entre outras
práticas bastante difundidas em cosmogonias de povos não europeus.
Para acalentar tal debate são trazidos à discussão autores cujos estudos
nos permitem uma reflexão acerca da mediação do conhecimento no
ocidente. Daí ser pertinente a recorrência aos teóricos Michel Foucault, Esiaba
Irobi, Hampâté Bâ, Maria Antonacci, Abdou Raberry, como forma de
questionarmos a racionalidade instrumental que, sob a rubrica do
cartesianismo, tem colocado, às margens, visões de mundo de povos
africanos, asiáticos, ameríndios e diaspóricos.
São bem significativos o vigor e o ímpeto do pensamento de Walter
Benjamin, quer por sua coerência analítica, quer pela relevância social e
científica de sua produção intelectual que, aliás, perpassa seu tempo e espaço.
Tanto é verdade que, nos últimos anos, são inúmeros os trabalhos que têm
*
Mestrado em História/PUC/SP/Bolsista: CNPq. Orientadora: Drª. Maria Antonieta
Antonacci.
958 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
1
A este respeito é esclarecedor o artigo Notas sobre Siegfried Kracauer, Walter Benjamin e a Paris
do Segundo Império – pontos de contato, de Carlos Eduardo Jordão Machado, em que são
discutidas as afinidades estético-teóricas de Benjamin e Kracauer, ao se analisar a Paris da
segunda metade do século XIX.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 959
9
960 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Daí ser fácil presumir que por meio das classificações arbitrárias e
taxonomias imperativas, entre outras formas estanques e engessadas de se
apreender o mundo e tudo que nele habita,3 as potências europeias fizeram
“bom uso” da semelhança para esquadrinhar e classificar seres vivos e objetos
inanimados, transformando o mundo e o cosmo numa grande prosa passível
3
A este respeito é esclarecedora a observação de Sérgio Buarque de Holanda que, ao
analisar o pensamento cartesiano, assinalou o seguinte: “Descartes [...] tinha em mira dar
motivos racionais e mecânicos para fenômenos supostamente ocultos”. (HOLANDA,
2000, p.19).
9
962 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
de ser lida e narrada. Claro está que a forma escolhida para transmitir este
saber foi o letramento tipográfico, ou seja, a palavra escrita por meio do seu
suporte impresso. Isto foi ainda mais fomentado a partir do desenvolvimento
da imprensa e das novas demandas aventadas pela Revolução Industrial.
Desta feita, os objetos e todos os demais seres deveriam caber dentro
de um signo correspondente, o significante e o significado do qual nos fala
Ferdinand Saussure,4 sugerindo-nos uma imagem acústica do objeto
representado que nos remete, de imediato, ao próprio objeto. Doravante, tudo
deveria ser sistematizado de forma enciclopédica, por meio de gramáticas
específicas (FOUCAULT, 1999, p.52). É interessante notar, neste processo, a
perda, em termos de influência e importância, das línguas vernáculas e o
aparecimento dos idiomas modernos, assim como, ao longo dos séculos
posteriores, a estandardização destas línguas em vista do florescimento dos
Estados Nacionais.
Evidentemente, no que diz respeito à validade do conhecimento, a
oralidade e os demais veículos e simbolismos foram gradativamente
escamoteados. Tal como assinalou Foucault (1999, p.53), a respeito deste
processo: “De agora em diante, a linguagem tem por natureza primeira ser
escrita, os sons da voz formam apenas sua tradução transitória e precária”. Por
essas vias, as culturas de tradições orais foram gradativamente minimizadas e
subvencionadas, criando-se uma espécie de racialização das culturas afro,
indígenas e nativas. Ora, pois, o porquê de se recorrer à memória e ao saber
popular, se todo o conhecimento do mundo poderia ser catalogado,
classificado e registrado numa enciclopédia?
Se é verdade que as culturas orais foram, em termos de importância,
minimizadas pelas potências europeias, também é verdade que tais culturas
4
Ferdinand Saussure (1857 - 1913), linguista e filósofo suíço cujas elaborações teóricas
propiciaram o desenvolvimento da linguística, enquanto ciência, dando grandes
contribuições ao estruturalismo.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 963
5
Para maior aprofundamento no pensamento de Hampâthé Ba é esclarecedor o trabalho
de MACHADO, Fernanda Murad. Construction d’un Univers Fabuleux: L’écrivain et lecteur dans
l’ouvre d’Amadou Hampâté Bâ. Tese (Doutorado), Paris IV, Sorbonne, 2010.
9
964 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
insistiu Foucault, por outro lado, por meio de uma “doutrina das semelhanças”
outras formas de conhecimento foram transmitidas. Desnecessário dizer,
também, que anos antes de Foucault escrever suas As Palavras e as Coisas,
Benjamin já estava atento a isto. Vejamos a seguinte passagem:
9
966 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
9
968 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Referências:
6
Termo cunhado pelo geógrafo brasileiro Milton Santos.
7
Não se pode perder de vista que é justamente neste período do entreguerras, mais
especificamente no ano de 1933, que se dá a ascensão de Hitler na Alemanha.
9
970 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
Introdução
R
eferência ainda hoje para boa parte dos pesquisadores brasileiros
debruçados sobre os temas cubanos, Da Guerrilha ao Socialismo: a
Revolução Cubana, de autoria do sociólogo Florestan Fernandes,
tornou-se um marco do estudo sobre Cuba. Passados mais de trinta anos de
seu lançamento editorial, a vitalidade analítica dessa obra encontra ressonância
em quase todas as pesquisas sobre a Ilha encampadas no Brasil. No presente
texto, buscou-se apresentar a conjuntura histórica em que a obra fora gestada,
os debates e os desafios que a moldaram, discutir algumas das aproximações e
rupturas teórico-metodológicas latentes entre a referida obra e outros escritos
produzidos no Brasil sobre a Revolução Cubana e seus desdobramentos à
mesma época ou em período anterior.
A ideia de levar a cabo um trabalho desta envergadura floresceu durante
o transcurso da disciplina de História & Cultura, ministrada no primeiro
semestre de 2010 aos discentes do Programa de Pós-graduação do
Departamento de História da UNESP/Campus de Assis pelos professores
Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa e Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso
Júnior. A fim de corresponder às profícuas reflexões propostas pelo curso,
*
Mestrando em História UNESP/Assis/Bolsista CAPES. Orientador: Dr. Carlos Alberto
Sampaio Barbosa.
972 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
que versou a respeito das contribuições advindas das vertentes marxistas para
o saber-fazer História, como trabalho de conclusão, aceitei o desafio de tatear
um campo do qual não sou especialista.
1
Utiliza-se, aqui, a acepção da Física, para quem a indução de campo designa a magnitude
fundamental preexistente entre polos. No caso, entre a esquerda latino-americana e a
Revolução Cubana.
974 ZÉLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
2
A partir da Crise do Petróleo de 1973, a Ditadura Militar brasileira sofreu profundos
golpes que tornaram sua continuidade longo prazo inviável. O progressivo esgotamento do
Milagre Econômico que sustentava o regime acionou, por parte do próprio governo militar,
vários dispositivos distensores, entre os quais aquele que, a partir de 1975, promoveu o
paulatino enfraquecimento da censura e da repressão, culminando no abrandamento da Lei
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 975
querela apresentam nuances mais complexas que não cabe aqui enunciar, haja
vista que excelentes trabalhos já foram produzidos e publicados por
especialistas na vida e obra do sociólogo, entre os quais, o de Lidiane Soares
Rodrigues (2010), cuja utilidade e riqueza de detalhes cobrem e suportam as
lacunas biográficas pendentes nestas páginas. Contudo, podemos auferir em
linhas gerais que duas foram as causas que concorreram para esse afastamento
compulsório de Florestan Fernandes da USP: o acentuamento da repressão e
da censura pelo Regime Militar a partir de dezembro de 1968 com o AI-5,
sobrepesando no universo acadêmico; e, ao próprio engajamento do
sociólogo, que ao longo da vida sempre atuou como fiel defensor da
autonomia do ensino, porquanto, das universidades, e, da legitimidade do
exercício intelectual mesmo antes do golpe de 1964. Sobre essa conjugação,
atenta-se para o fato de que:
Uma vez órfão de um nicho, do qual foi, a seu modo, o pater, o sociólogo
partiu para o exterior, onde atuou como professor na Universidade de
Toronto, até 1972 (RODRIGUES, 2010, p. 19-20). Retorna ao Brasil no
mesmo ano. Voltando a lecionar em 1976, primeiro no Sedes Sapientae, e,
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 977
educação como uma matriz libertadora jamais fora negado pelo autor. Tanto
assim que, na Nota Explicativa do livro em questão, Florestan esclarece que:
Inaugurar uma nova etapa do pensar sobre Cuba no Brasil não significa
que se possa afirmar que a obra de Florestan Fernandes fora a primeira
concebida por um brasileiro a lançar um olhar mais “científico” sobre Cuba e
a Revolução Cubana. Na verdade, deve-se recordar que ainda no início da
primeira metade da década de setenta uma acadêmica brasileira já se
aventurava com maestria análoga nas turbulentas águas que naquele período
colocavam a toda prova qualquer tentativa em suportar uma explicação mais
científica e menos ideológica sobre o processo revolucionário cubano e seus
desdobramentos. Trata-se da cientista política Vânia Bambirra e de seu
magistral livro A Revolução Cubana - uma Reinterpretação, que, datado de 1975,
ainda hoje é reconhecido em boa parte da América Latina como um dos
melhores aportes interpretativos já realizados por um acadêmico brasileiro
sobre Cuba e a Revolução. Todavia, ao contrário do que ocorreu com Da
Guerrilha ao Socialismo, o livro de Bambirra não logrou no cenário brasileiro do
período o mesmo patamar de reconhecimento que a obra de Florestan
Fernandes. Fato que emana seus reflexos até os dias atuais, haja vista a
dificuldade que ainda se apresenta aos pesquisadores em encontrar tal obra,
mesmo em bibliotecas mais especializadas.4 Uma explicação plausível para
essa tímida difusão da obra de Bambirra no Brasil, e, por conseguinte, de seu
tardio e restrito reconhecimento pelos leitores brasileiros decorre das
circunstâncias que marcaram sua publicação. Em virtude do exílio da autora, o
livro não fora publicado no Brasil, mas em Portugal, o que de certo modo
dificultou a penetração e difusão do mesmo por essas bandas, ainda mais num
período em que o mercado editorial brasileiro tinha que seguir à risca os
ditames do Estado. Mas, se os livros de Bambirra e Fernandes percorrerem
4
A Biblioteca da UNESP do Campus Experimental do Litoral Paulista guarda em seu
acervo um exemplar do referido livro.
ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 981
Considerações Finais
Referências