I
I.1. Equações lineares
Equações lineares são equações de termos com certas incógnitas formados utilizando apenas
produtos com constantes reais e somas finitas. Exemplos de equações lineares são
3x + 7 = 9y, 3(x − y + z) = 2x + 8z + 1, 2x1 − 9x2 + x3 = 0;
mas as equações
2
p 4
x = 1, 1 + xy = 4, x1 3− = x2
x1
não são lineares. Tipicamente apresentamos uma equação linear na forma normal onde o
primeiro termo é uma soma de parcelas da forma “constante · incógnita” e o segundo termo
é uma constante real. Portanto, as três equações lineares acima escrevem-se como
3x − 9y = −7, x − y − 7z = 1, 2x1 − 9x2 + x3 = 0.
De forma geral, uma equação linear de n incógnitas é dada por uma sequência de n
incógnitas (aqui consideramos tipicamente x1 , . . . , xn ou x, y, z no caso de três incógnitas), uma
lista de números reais a1 , a2 , . . . , an (os coeficientes da equação) e um número real b (o termo
independente); esta informação organiza-se na forma
a1 x1 + · · · + an xn = b.
Uma sequência (s1 , . . . , sn ) ∈ Rn de n números reais é solução desta equação quando
a1 s1 + · · · + an sn = b;
e dizemos que (s1 , . . . , sn ) satisfaz a equação.
x1 + x2 + x3 = 1
0x = 0
na incógnita x.
Observa-se que uma equação linear pode ter ou nenhuma solução, ou exatamente uma
solução, ou várias soluções; e no último caso tem uma infinidade de soluções. Porém, aqui
é importante “não esquecer nenhuma incógnita”: algumas podem ser invisı́veis na equação. Por
exemplo, ambas as equações
0x = 0 e 0x + 0y = 0
3x = 6 e 3x + 0y = 6
escrevem-se ambas como 3x = 6 onde a incógnita y não é visı́vel na segunda equação. Assim, a
equação
3x = 6
tem a solução única x = 2 se consideramos esta equação na incógnita x. Se consideramos esta
equação nas incógnitas x e y, então cada valor y ∈ R completa x = 2 para uma solução; ou seja,
neste caso o conjunto das soluções é
{(2, y) | y ∈ R}.
Motivado por estas considerações, diz-se que a incógnita xj (com 1 ≤ j ≤ n) de uma equação
linear
a1 x1 + · · · + an xn = b
nas incógnitas x1 , . . . xn é visı́vel quando aj 6= 0. No caso de aj = 0 diz-se que xj é invisı́vel ;
intuitivamente, as incógnitas invisı́veis podem tomar qualquer valor. Para representar da forma
sistemática todas as soluções de uma equação linear, pode-se utilizar o seguinte procedimento:
• Se a equação tem mais do que uma incógnita e pelo menos uma incógnita é visı́vel:
Escolhe-se uma das incógnitas visı́veis. Para sermos sistemáticos, aqui e no
futuro vamos sempre escolher a incógnita visı́vel xj com o menor ı́ndice. Refere-
se esta incógnita como a primeira incógnita visı́vel da equação. Note-se que
a1 = a2 = · · · = aj−1 = 0. Atribuem-se valores genéricos a todas as restantes
incógnitas e calcula-se:
b − aj+1 xj+1 − · · · − an xn
xj = .
aj
Assim, as soluções desta equação são dadas por
(x1 , x2 , . . . , xj−1 , xj , xj+1 , . . . , xn )
com
b − aj+1 xj+1 − · · · − an xn
xj =
aj
e
x1 , x2 , . . . , xj−1 , xj+1 , . . . , xn ∈ R.
• Se a equação tem apenas uma incógnita, x1 , que é visı́vel:
Calcula-se x1 = ab1 , sendo esta a única solução do sistema.
Procedimento I.1.2
Cada escolha particular de valores para x1 , x3 , x4 , x5 produz uma solução particular da equação.
Por exemplo, x1 = x3 = x4 = x5 = 0 dá a solução (0, 3, 0, 0, 0), e considerando x1 = −1,x3 = 0,
x4 = 1 e x5 = 2 obtém-se a solução (−1, 4, 0, 1, 2).
com incógnitas x1 , x2 e x3 . Verifica-se que, por exemplo, (−2, 1, 1) e (1, 0, 2) são ambas soluções
deste sistema. Por outro lado, (0, 0, 1) é solução da primeira equação mas não da segunda; logo
não é solução do sistema.
É importante salientar que ambas as equações acima são equações com incógnitas x1 , x2 e
x3 , embora x1 não seja visı́vel na segunda equação. Como consequência, (1, 1) não é solução
desta equação mas (1, 1, 1) é; de facto, qualquer escolha x1 ∈ R completa o par (1, 1) para uma
solução (x1 , 1, 1) da equação x2 + x3 = 2 com incógnitas x1 , x2 e x3 .
Exemplos I.2.2. Como ilustração, no que se segue consideramos os seguintes dois sistemas com
incógnitas x1 , x2 e x3 :
x1 + 2x2 − x3 = −1,
x1 + 2x2 − x3 = −1,
(A) 2x1 − x2 + x3 = 4, e (B) x2 + x3 = 2,
−x − x + 2x = 3; 8x = 16.
1 2 3 3
Exemplo I.2.3. Consideremos o sistema (B) do Exemplo I.2.2. Como ponto de partida na
resolução do sistema, reescrevemos o sistema na forma
x1 = −1 − 2x2 + x3 ,
x2 = 2 − x3 ,
x = 2.
3
Começando com a última equação, substituı́mos os valores das incógnitas em todas as equações
acima; assim obtém-se
x3 = 2, x2 = 2 − 2 = 0 e x1 = −1 − 2 · 0 + 2 = 1.
Intuitivamente, o sistema (B) dos Exemplos I.2.2 é (mais) fácil de resolver porque a incógnita
x1 não aparece na segunda equação e as incógnitas x1 e x2 não aparecem na terceira equação.
No que se segue vamos primeiro estudar estes tipos de sistemas, e na próxima secção veremos
como transformar um sistema num tal “sistema fácil” sem alterar o conjunto das soluções. Para
começar, descrevemos rigorosamente o significado de “sistema fácil”.
Capı́tulo I. Sistemas de equações lineares 11
Intuitivamente, num sistema em escada cada equação “começa mais tarde”, um facto que
simplifica a resolução do sistema. Com esta nomenclatura, o sistema (B) dos Exemplos I.2.2
é escalonado mas o sistema (A) não é. Note-se também que, num sistema em escada, todas
as equações onde nenhuma incógnita é visı́vel estão atrás das equações onde pelo menos uma
incógnita é visı́vel.
Como foi feito no Exemplo I.2.3, um sistema escalonado pode-se resolver resolvendo sucessi-
vamente as equações, começando pela última. Contudo, o procedimento pode ser mais complexo
se escolhas arbitrárias de valores são envolvidas.
Desde modo, as equações acima expressam cada das incógnitas x1 e x3 em função das incógnitas
x2 , x4 e x5 . Portanto, as soluções do sistema obtém-se
• escolhendo valores para x2 , x4 e x5 , e
• calculando depois os valores de x1 e x3 .
Em conclusão, o conjunto das soluções do sistema é
{(−4 − 2x2 − 3x5 , x2 , 1 − x4 , x4 , x5 ) | x2 , x4 , x5 ∈ R}.
Cada escolha concreta de valores para x2 , x4 e x5 produz uma solução do sistema. Por exemplo,
a escolha x2 = x4 = x5 = 0 dá a solução (−4, 0, 1, 0, 0), e considerando x2 = 1, x4 = 0 e x5 = −1
obtém-se a solução (−3, 1, 1, 0, −1).
Salientamos mais uma vez que é importante indicar claramente quais são as incógnitas de
um sistema. O sistema do exemplo acima pode também ser considerado nas seis incógnitas
x0 , x1 , . . . , x5 . Neste caso, o mesmo procedimento não produz nenhum valor para a incógnita
x0 ! Como x0 não é visı́vel no sistema, podemos atribuir qualquer valor a x0 . Para termos um
procedimento sistemático, observamos que em cada equação determinamos a primeira incógnita
visı́vel em função das incógnitas seguintes; portanto, as incógnitas com valores genéricos na
solução são precisamente aquelas que não ocorrem em nenhuma das equações como primeira
incógnita visı́vel. Estas incógnitas dizem-se livres, as restantes dizem-se determinadas. No
Exemplo I.2.6, as incógnitas x1 e x3 são determinadas porque x1 é a primeira incógnita visı́vel
da primeira equação e x3 é a primeira incógnita visı́vel da segunda equação. Por outro lado, as
incógnitas x2 , x4 e x5 são livres; de facto, são precisamente estas incógnitas que recebem valores
arbitrárias na solução apresentada no Exemplo I.2.6.
Descrevemos agora um procedimento para determinar todas as soluções de um sistema em
escada com as incógnitas x1 , . . . , xn .
• Se o sistema tem uma equação da forma 0 = bi com bi 6= 0, então o sistema não tem
nenhuma solução e o procedimento acaba aqui.
• Caso contrário, apagam-se todas as equações da forma 0 = 0; ou seja, consideramos
apenas aquelas equações onde pelo menos uma incógnita é visı́vel.
• Começando pela última equação, em cada equação determina-se a primeira incógnita
visı́vel desta equação em função das incógnitas de ı́ndice superior, substituindo
sempre as incógnitas já determinadas.
• As incógnitas livres são precisamente aqueles incógnitas que em nenhuma equação
aparecem como a primeira incógnita visı́vel.
Procedimento I.2.7
Em algumas situações não será necessário obter as soluções de um sistema mas sim responder
a perguntas como
• Existem soluções?
• Se sim, quantas?
Assim, diz-se que um sistema de equações lineares é impossı́vel quando não existe uma
solução, e diz-se que o sistema é possı́vel quando existe pelo menos uma solução. Além disso,
Capı́tulo I. Sistemas de equações lineares 13
diz-se que o sistema é possı́vel e determinado quando tem exatamente uma solução e possı́vel
e indeterminado quando tem mais do que uma solução. Neste caso, define-se o grau de
indeterminação como o número de variáveis livres. Um sistema possı́vel e indeterminado com
grau de indeterminação 1 (2) diz-se simplesmente (duplamente) indeterminado.
Analisando o procedimento para resolver um sistema, obtém-se imediatamente o seguinte
resultado.
Em particular, todo o sistema de equações lineares em escada em que cada equação tem
incógnitas visı́veis é possı́vel. Salientamos que o teorema acima só se aplica aos sistemas escalon-
ados. Além disso, apenas num sistema escalonado se fala de incógnitas livres e determinadas.
de equações lineares num sistema escalonado de modo tal que ambos os sistemas tem as mesmas
soluções. Assim podemos obter as soluções do sistema (I.3.i) resolvendo um sistema em es-
cada. Em geral, dois sistemas de equações lineares dizem-se equivalentes quando têm o mesmo
conjunto de soluções.
Capı́tulo I. Sistemas de equações lineares 15
Nota I.3.1. A partir do sistema (I.3.i) obtém-se um sistema equivalente se se aplicar uma das
seguintes operações:
(1). troca de duas equações,
(2). multiplicação de uma equação por um número real diferente do zero,
(3). adição de um múltiplo de uma equação a uma outra equação.
Note-se que o segundo sistema do exemplo acima é escalonado, o que nos permite clas-
sificá-lo logo como possı́vel e indeterminado. Portanto, também o primeiro sistema é possı́vel e
indeterminado.
De facto, veremos nesta secção que as operações da Nota I.3.1 permitem transformar cada
sistema num sistema em escada equivalente; contudo, a manipulação de sistemas é mais simples
se organizamos a informação pertinente da forma mais sucinta. Como “os nomes das incógnitas”
são irrelevantes, temos toda a informação sobre o sistema (I.3.i) necessária para resolver ou
classificar o sistema se soubermos
• o número n de incógnitas e o número m das equações, e
• os coeficientes ai,j e os segundos membros bi .
Por exemplo, o sistema
2x − 7y + 3z = 2
x+y =1
−x − 4y + 7z = −3
nas incógnitas x, y e z pode ser descrito por um quadro com 3 linhas e 4 colunas:
2 −7 3 2
1 1 0 1 .
−1 −4 7 −3
Em geral, um quadro deste tipo denomina-se matriz. Mais concretamente, uma matriz consiste
em:
• um tipo m × n com números naturais m e n, e
• a cada par (i, j) com 1 ≤ i ≤ m e 1 ≤ j ≤ n está associado um número ai,j ∈ R.
De forma mais legı́vel, representa-se uma matriz A como
a1,1 . . . a1,n
..
A= .
ou, simplesmente, A = [ai,j ],
am,1 . . . am,n
é a coluna dos segundos membros. Com esta notação, denota-se a matriz do sistema por A | b.
Vice versa, cada matriz do tipo m × (n + 1) com n, m ∈ N pode ser interpretada como
um sistema de n incógnitas e m equações lineares: escolhem-se n incógnitas (por exemplo, x1 ,
. . . , xn ), a última coluna da matriz fornece os segundos membros das equações e os restantes
elementos são os coeficientes.
Procedimento I.3.5
Exemplos I.3.6. (1). Consideremos a matriz aumentada em escada de um sistema nas incógnitas
x, y e z,
1 −1 3 1
0 2 −1 4
0 0 3 1
0 0 0 5
A última linha desta matriz tem o pivô 5 na última coluna (i.e., na coluna correspondente
aos termos independentes) representando assim a equação 0 = 5, o que torna o sistema
18 I.3. Utilizando a linguagem de matrizes
correspondente
x − y + 3z = 1,
2y − z = −4,
4z = 1
0=5
impossı́vel.
(2). A matriz aumentada em escada
1 −1 3 5
A | b = 0 2 1 4
0 0 −1 2
corresponde a um sistema nas incógnitas x, y e z que é possı́vel pois não tem nenhum
pivô na última coluna. Além disso, como todas as colunas de A têm pivô, as incógnitas do
sistema são todas determinadas. Assim, o sistema correspondente a A | b,
x − y + 3z = 5,
2y + z = 4,
−z = 2
0=5
é equivalente a
x = 5 + y − 3z,
y = 1 (4 − z),
2
z = −2
0=5
0 0 0 2 4
Este sistema é possı́vel pois A | b naõ tem nenhum pivô na última coluna. As colunas 1, 3
e 4 da matriz A são as colunas com pivô correspondentes às incógnitas determinadas x, y
e w. A coluna 2 não tem pivô, pelo que a incógnita y é livre. Assim o sistema e possı́vel e
simplesmente indeterminado.
Lema I.3.8. Seja A uma matriz do tipo n × m, cuja primeira coluna é não nula, e onde o
primeiro elemento ai,1 da linha i é diferente do zero. Então, existe uma redução A B onde
todos os elementos da primeiro coluna de A fora da linha i são iguais ao zero.
0 − ... −
.
..
0 − . . . −
A ? − . . . −
0 − . . . −
.
.
.
0 − ... −
A redução descrita no lema anterior obtém-se realizando as seguintes operações: para cada
a
j ∈ {1, 2, . . . , n} \ {i}, adiciona-se à linha j a linha i multiplicada por − aj1
i1
. Note-se que no caso
da primeira coluna de uma matriz ser nula, o lema anterior aplica-se à primeira coluna não nula
da matriz.
A escalonação de uma matriz não nula A pode ser feita realizando sucessivamente o proced-
imento seguinte:
• reduz-se A a uma matriz A0 cuja primeira coluna não nula tem um só elemento não nulo
na linha i;
• trocam-se as linhas 1 e i de A0 , obtendo-se uma nova matriz A00 ;
• considera-se a matriz A1 obtida da matriz A00 por eliminação da primeira linha; e repita-
se o procedimento com a matriz A1 até a última linha.
Em conclusão:
1
Johann Carl Friedrich Gauß (1777 – 1855), matemático alemão.
20 I.3. Utilizando a linguagem de matrizes
2 2 1 0 2
Procedendo à escalonação de A | b, adicionando à linha 3 a linha 2 multiplicada por −2 e,
posteriormente, adicionando novamente à linha 3 a linha 2 multiplicada por 3:
1 1 −1 1 1 1 1 −1 1 1 1 1 −1 1 1
A | b = 0 0 −1 2 3 0 0 −1 2 3 0 0 −1 2 3
2 2 1 0 2 0 0 3 −2 −1 0 0 0 4 8
obtemos o sistema em escada
x+y−z+w =1
−z + 2w = 3
4w = 8
equivalente ao sistema dado. Continuamos este exemplo no Exemplo I.3.12
Para determinar a solução de um sistema, por vezes é útil reduzir a matriz do sistema ainda
mais de modo que cada pivô seja igual a 1 e cada um dos restantes elementos de uma coluna
com pivô seja igual a 0.
1 0 − ... 0 − ... −
0 1 − . . . 0 − . . . −
..
.
0 0 . . . 0 1 − . . . −
..
.
Esta matriz diz-se em escada reduzida. Uma tal redução é sempre possı́vel aplicando as
operações elementares.
0 0 0 4 8
Procedendo à redução desta matriz a uma matriz em escada reduzida,
1 1 −1 1 1 1 1 −1 1 1 1 1 0 −1 −2 1 1 0 0 0
0 0 −1 2 3 0 0 1 −2 −3 0 0 1 −2 −3 0 0 1 0 1 ,
0 0 0 4 8 0 0 0 1 2 0 0 0 1 2 0 0 0 1 2
obtemos os sistemas equivalentes
x + y = 0
x = −y
z = 1 ⇐⇒ z=1
w=2 w = 2
Capı́tulo I. Sistemas de equações lineares 21
Procedimento I.3.13
Definição I.3.14. Ao número de pivôs de uma matriz em escada obtida a partir de uma
matriz A aplicando um número finito de operações elementares diz-se caracterı́stica de A e
representa-se por car(A).
Nota I.3.15. Além disso, a matriz em escada reduzida obtida a partir de uma matriz A é única.
Teorema I.3.16. Dado um sistema (I.3.i) com a matriz correspondente A | b e a matriz dos
coeficientes
a1,1 · · · a1,n
. ..
A= ..
. ,
am,1 · · · am,n
tem-se que
• o sistema (I.3.i) é impossı́vel se e só se car(A) < car(A | b).
22 I.3. Utilizando a linguagem de matrizes