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André Bueno
Dulceli Estacheski
Everton Crema
FUTURO EM CONSTRUÇÃO
Reflexões sobre a Aprendizagem Histórica
3
BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA,
Everton [orgs.] Futuro em construção: reflexões sobre a
aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória:
Sobre Ontens Ebook, 2016.
ISBN: 978-85-65996-38-9
Disponível em: www.revistasobreontens.blogspot.com.br
4
Índice
Prefácio
7
Bios
131
5
6
Prefácio
7
Diversos, porém unidos, os ensaios trazem a questão
crucial: o que faremos adiante?
8
A volta dos Discos voadores e
o Ensino de História no Brasil
André Bueno
9
Brasil.1 A notícia, comemorada pelos ‘ufólogos’, foi bastante
criticada por alguns setores da intelectualidade brasileira, que
contestaram o fato da mesma Aeronáutica não liberar documentos
sobre os desaparecidos durante o período militar [1964-85]. Por
causa disso, esses intelectuais não levaram a sério o ato da
Aeronáutica, que por seu turno, não costuma levar a sério
também os intelectuais e os ufólogos; ufólogos esses que, em geral,
não são levados a sério por quase ninguém, mas que se
preocupam, sim, com desaparecidos – aqueles abduzidos pelos
Et’s, e não pelas forças armadas ou por guerrilheiros de esquerda.
Esse debate foi eclipsado pelas tensões eleitorais desse ano
[2014], mas podemos dizer que ele faz parte de um conjunto
maior de problemas históricos e intelectuais. Não faz muito
tempo também, o canal de Tv History Channel começou a
promover o programa ‘Alienígenas no Passado’ 2 [desde 2010],
que tenta a todo custo provar as diversas interferências
extraterrestres no curso da história da humanidade. Embora a
maior parte das inferências feitas possa ser refutada com o auxílio
de bons manuais de história, ou com a consulta de especialistas
nas áreas das ciências, o programa tem atingido bons níveis de
audiência [já está na sétima temporada], revelando um profundo
desconhecimento do público sobre os problemas tratados. A
insistência desse tema já valeria a perda, por parte do canal, do
título de ‘History Channel’, mas ele revela o distanciamento que
uma parte substancial da sociedade mantém sobre o que significa
o estudo da história como uma ciência. O público geral parece
1
http://www.ufo.com.br/noticias/governo-brasileiro-libera-um-dos-mais-
importantes-documentos-secretos-sobre-ufos-ate-agora
2
http://www.seuhistory.com/programas/alienigenas-do-passado
10
não se interessar mais pela história, essencialmente politizada, que
tem sido imposta constantemente nas escolas. Que se entenda: em
minha opinião pessoal, o ensino de história deveria fomentar,
justamente, a construção dessa consciência crítica, que tanto
precisamos para uma sociedade saudável e autônoma. Todavia,
algo está acontecendo de errado no ensino de história.
Tivemos durante décadas um ensino superficial, baseado
em heróis, batalhas, efemérides e elementos cívicos basilares, mas
em geral, superficiais. A virada desse ensino, após o fim do regime
militar, buscou uma politização necessária, que embarcou nas
lutas de classes, regimes produtivos, escravidões, consciência
social, etc. Aparentemente, porém, isso também não deu
certo. Nossos alunos saem da escola sem serem empreendedores
decididos ou revolucionários idealistas. Vivemos, ainda, numa
sociedade racista, machista, preconceituosa, que está se
envolvendo em um processo de radicalismo religioso preocupante.
Tal fator é notável; se uma grande parte da sociedade parece não
acreditar em alienígenas, porque os exclui de um plano divino que
transformou o planeta Terra no único lugar habitável do
universo, a outra metade não apenas parece acreditar neles como,
ainda por cima, os vê pululando em eventos históricos do
passado.
Isso se deve a uma desconsideração generalizada sobre o
campo da história em nosso país. Ela tem sido mal ensinada, por
profissionais com sérios problemas de qualificação, amarrados por
orientações de cunho ideológico e planejamentos educacionais
fracos e cheios de deficiências estruturais. Isso tem tornando a
história chata e desinteressante. As imensas lacunas causadas por
esse ensino problemático deixam abertas as portas para o
aparecimento de teorias esdrúxulas, como as do History Channel,
11
que parecem ser absolutamente plausíveis para aqueles que
desconhecem um curso de história bem feito nos níveis básicos da
educação.
Não é meu intuito afirmar a inexistência de alienígenas;
mas até termos provas definitivas de sua existência, trabalhamos
num campo de pura especulação, que deve ser lido com cuidado,
e para o qual possuímos poucos especialistas sérios. Chamo
atenção para o fato de que eventos históricos simples, que podem
ser razoavelmente bem explicados pela arqueologia, pela história,
pela engenharia ou medicina, transformam-se em episódios
obscuros, de desinformação completa, devido a esse tipo de
desconhecimento sobre o passado. Esse é o meu foco, aqui.
Assim, temos uma equação macabra: um ensino
desinteressante, superficialmente crítico, dirigido por políticas
públicas problemáticas, torna o campo da história um grande
aborrecimento para a maior parte do público. Quando esse se
interessa pela história, busca na literatura histórica aquilo que lhe
parece atraente, diferente, alternativo. Eis porque livros cheios de
fofocas históricas, escândalos ou guerras, por exemplo, vendem
aos cântaros. São as lacunas desse ensino. E deveríamos, então,
ensinar essas coisas na escola? Claro que não. O que me preocupa,
nesse caso, é a ausência de um instrumental crítico histórico, que
permita a alguém duvidar, pôr em questão esse tipo de leitura. Os
extraterrestres entram nesse mesmo tipo de buraco. Nosso
desconhecimento básico em ciências e história cria esse abismo,
que propicia o aparecimento das teorias mais estapafúrdias para
explicar o passado da humanidade. É o que torna ‘absolutamente
interessante’ descobrir o que os documentos da Aeronáutica
trazem sobre OVNI’s; por outro lado, faz parecer, para muitos,
12
uma ‘grande chateação’ querer saber algo mais sobre os
desaparecidos do período militar.
Desta forma, podemos dizer que o ensino de história tem
um longo desafio pela frente: ele terá que ser capaz de se
reinventar, de propiciar a criação de uma consciência histórica e
de um conjunto de ferramentas que permitam, ao indivíduo,
analisar os eventos históricos, desconstruí-los e não aceitá-los
tacitamente. Porém, no caso dos Et’s, o que fazer com eles, se eles
não fazem parte [ou ao menos, não deveriam] da história
humana? Precisamos, então, detalhar um pouco mais esse
problema, e partir em busca de propostas.
13
além de nosso conhecimento imediato. Pode parecer estranho
invocar aqui o conceito de Schmitt, mas se repararmos bem, ele é
perfeito para explicar o vasto conjunto de mitos e lendas que
foram introduzidos ou criados no Brasil ao longo dos séculos. O
que caracteriza o que chamamos de criaturas do nosso folclore
[Saci, Mula sem cabeça, Lobisomem, Boitatá, Curupira, etc.]
pertence ao ‘Maravilhoso’, já que não se possuía uma explicação
direta sobre elas no âmbito religioso [exemplo: em que momento
da criação divina, por exemplo, teriam surgido os lobisomens?],
mas eram ‘reais’ no âmbito popular. Por isso, não raro, os
especialistas religiosos e sacerdotes classificavam como ‘crendices’
tais criaturas e crenças, desprezando-as categoricamente. Entre o
povo em geral, porém, tais crendices eram amplamente
difundidas até algum tempo atrás. É o advento da modernidade,
da evolução dos meios de comunicação e de informação que iria
enfraquecer tremendamente a existências desses mitos
maravilhosos. Os fragmentos de ciência paulatinamente inseridos
e divulgados na mídia [‘novas descobertas científicas’, alertas sobre
questões mundiais, de saúde, etc] foram paulatinamente
esvaziando as possibilidades desses seres fantásticos.
No entanto, não podemos esquecer que somos herdeiros
diretos da cultura portuguesa, talhada no medievo europeu, que
nos legou essa estrutura mental – Mirabiliae Miracula – de sacis e
curupiras por um lado, mas que consolidou Nossa Senhora de
Aparecida por outro. Enquanto permanecerem lacunas em nossos
conhecimentos históricos e científicos, ambos os conceitos atuam
preenchendo nossas ausências, nossos anseios, nossas dúvidas.
Por isso, os retalhos de ciência que a população absorveu
nos últimos tempos pela mídia fez sumir nossos sacis, tornando-os
improváveis, mas acabou o substituindo pelas ficções cientificas,
14
amplamente exploradas pela mesma mídia, de extraterrestres,
naves voadoras, conspirações alienígenas, entre outras. O
‘Maravilhoso’ se revela novamente, absorvendo o inexplicável ser
de outro planeta, e transformando-o numa espécie de crença. Ele
é algo que ‘existe’, mas ninguém sabe ao certo como, porque ou
qual sua inserção numa lógica universal [e no caso do Brasil,
ainda, essencialmente cristã].
Em um texto anterior, ‘História e Realismo Fantástico:
uma questão de ensino’3, eu apresentei um levantamento
bibliográfico das obras que fomentaram, no século 20, a criação
desses mitos extraterrestres, e de como eles operavam no nível do
discurso, dentro de suas próprias especificidades. Porém,
precisamos esmiuçar as razões pelas quais cedemos a esses
discursos. Como vimos, essas reminiscências medievais ainda
operam em nossa mentalidade, buscando articular uma existência
imaginária no âmbito do senso comum. Porém, sabemos que o
senso comum é uma condição inalienável do mundo – e no atual
estágio de nossos conhecimentos técnicos, sua amplitude é ainda
maior. Atualmente, podemos colecionar pedaços de informações e
ideias de vários campos de conhecimento e organizá-los em frágeis
teias de ‘coerência’, supondo uma certa cientificidade sobre eles –
como se dá, no caso, em relação aos extraterrestres na história.
As explicações dadas pelos supostos especialistas do
History Channel ou por Eric Von Danikken, o ‘apóstolo’ dos
UFO’s históricos, empregam, todas elas, informações ou teorias
importadas das ciências. Ainda que usadas de modo
absolutamente superficial e muitas vezes equivocado, elas parecem
3
http://sinografia.blogspot.com.br/2014/01/historia-e-realismo-fantastico-
uma.html
15
conferir sentido ao que se propõe – e justificam o injustificável.
Assim, os alienígenas penetram o campo do Maravilhoso em
nossa mente: podemos especular sobre eles, ‘vê-los’, imaginá-los,
mas não sabemos ao certo suas razões, suas origens ou seu papel
no cosmo.
16
baseiam em evidência insuficiente ou porque ignoram
pistas que apontam para outro caminho. Fervilham de
credulidade. Com a cooperação desinformada (e
frequentemente com a conivência cínica) dos jornais,
revistas, editoras, rádio, televisão, produtoras de filmes
e outros órgãos afins, essas ideias se tornam acessíveis
em toda parte. Muito mais difíceis de encontrar [...],
são as descobertas alternativas, mais desafiadoras e até
mais deslumbrantes da ciência. A pseudociência é mais
fácil de ser inventada que a ciência, porque os
confrontos perturbadores com a realidade - quando
não podemos controlar o resultado da comparação -
são evitados mais facilmente. Os padrões de
argumentação, o que passa por evidência, são muito
menos rigorosos. Em parte por essas mesmas razões, é
muito mais fácil apresentar a pseudociência ao público
em geral do que a ciência. Mas isso não é o suficiente
para explicar a sua popularidade. [Sagan, 1997, p.21]
17
satisfazer. Nutre as fantasias sobre poderes pessoais que
não temos e desejamos ter (como aqueles atribuídos
aos super-heróis das histórias de quadrinhos modernas
e, no passado, aos deuses). Em algumas de suas
manifestações, oferece satisfação para a fome espiritual,
curas para as doenças, promessas de que a morte não é
o fim. Renova nossa confiança na centralidade e
importância cósmica do homem. Concede que
estamos presos, ligados ao Universo. Às vezes parece
uma parada no meio do caminho entre a antiga
religião e a nova ciência, inspirando desconfiança em
ambas. [idem, p.22]
18
intelectuais com as respostas simples e atraentes dessas
pseudociências, que formam o chamado Realismo Fantástico.
Por causa disso, não é difícil encontrar professores de
história que, tendo parcos conhecimentos sobre história antiga
[que consideravam inútil, chata ou distante], admitem as teorias
mais surpreendentes para explicar o passado - tão somente porque
parecem coerentes perante o seu desconhecimento. Por exemplo:
diante da clássica pergunta ‘como foram feitas as pirâmides?’,
reagem de modo embaraçoso. Poucos sabem, e outros poucos
admitem simplesmente que não sabem [e talvez ‘não sabe, não
quer saber, e tem raiva de quem sabe!’]. Alguns admitem que os
egípcios as fizeram – não sabem como ao certo, mas como a Terra
seria o único mundo habitado na criação divina, é impossível
alguém de fora tê-las feito. Essa resposta tacanha, embora
‘correta’, é totalmente privada de cientificidade, posto que se calca
numa religiosidade restrita. Assim, caímos em outro extremo: de
que os antigos eram incapazes de construí-las, que eram limitados,
que eram ‘primitivos’, e por fim, que somente uma inteligência
superior [tal como se julga que só exista agora!] foi responsável
pela sua construção – e logo, seria alienígena. O preconceito
contra os estudos clássicos atinge aí seu ápice: transfere-se aos
antigos uma total incapacidade de pensar, criar ou imaginar
tecnologias. Tal incapacidade é, justamente, daquele que a
transfere: mas ele não consegue se perceber ignorante ou incapaz
de utilizar as ferramentas da pesquisa histórica para solucionar o
problema, e adota a solução mais fácil. A pseudociência, do
Realismo Fantástico, surge para suprir suas lacunas ‘científicas’, e
alimentar ainda mais o seu preconceito contra o que não conhece
bem. É no mínimo irônico que, na mais das vezes, esse que rejeita
a história antiga e medieval comporta-se com, de fato, como um
19
popular antigo ou medievo – e vive num ‘mundo assombrado por
demônios’, como disse Sagan.
20
promovem – ou ao menos, que aceitam abrigar - grupos de
pesquisa nessa área.
Ora, se há uma orientação generalizada nesse sentido,
partindo de uma ideia de ‘cultura’ que é essencialmente
excludente, então, é mais do que compreensível a manutenção
dessa lacuna na formação dos docentes. Embora temáticas
totalmente atuais tenham seu fundamento na antiguidade ou no
medievo – a república, o embate religioso, a renovação das
mitologias fantásticas – tais temas são tratados como se tivessem
surgido há menos de seis meses atrás. Novamente, é esse cenário
que proporciona situações inusitadas no século 21, tais como o
profissional que reza confessionalmente em sala de aula - e que é
refutado por alguém que, desconhecendo igualmente história,
clama pela alternativa ET como resposta.
Essa situação nos revela, claramente, a primeira das
ausências – ou deficiências – que precisamos investigar.
No excelente artigo de Miranda & de Luca [2004]4, observamos a
problemática estruturação de nossos livros didáticos de história –
o primeiro [e na maior parte das vezes, o último] contato que a
maior parte dos estudantes terá com o tema. Há uma ênfase
muito grande em narrativas episódicas, e seguem-se em, em
muitos casos, a ordenação cronológica e contextual tradicional.
Podemos adicionar, a essa análise, o fato de que a história antiga e
a história medieval [seguindo a estrutura eurocêntrica de fases
históricas] continuam sendo passadas de forma brevíssima na
maior parte desses livros. Ignora-se quase por completo a Ásia; a
4
Veja o link: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
01882004000200006&script=sci_arttext
21
história africana tem conquistado espaço e literatura própria, mas
que não penetra diretamente nessas narrativas.
Assim, como os livros são fracos e falhos, e como a maior
parte dos leitores brasileiros não se interessa muito pela literatura
histórica, não é incomum que os poucos livros de sucesso,
classificados como ‘históricos’, não sejam feitos por historiadores.
Apenas para citar: as obras de Eduardo Bueno, Laurentino Gomes
e Leandro Narloch foram sucessos de venda entre o público
comum. Christian Jacques, egiptólogo que escreveu um romance
histórico sobre Ramsés, é outro desses casos. Isso reflete
diretamente o fato, no Brasil, de que a história, em sua base, é
feita de forma deficiente [e absolutamente pouco atrativa]. Outro
exemplo cabal disso é a coleção Nova História Crítica, feita por
Mário Schmidt. Provavelmente o livro didático mais difundindo
no país, ele contém erros grosseiros de conteúdo, e juízos de valor
bastante problemáticos. A coleção tem sido criticada pelos
próprios historiadores5, e apesar do Ministério da Educação
desaconselhar seu uso [após passarem anos indicando-a como
adequada], ela continua sendo usada em várias escolas do país. A
questão importante é que Mário Schmidt não é formado em
História; e como os outros autores, é graças justamente a uma
escrita mais atraente e menos compromissada com a ciência
histórica que seus livros alcançam sucesso – sendo usados por
historiadores preguiçosos, mal formados, e inábeis no uso dos
instrumentos de pesquisa histórica [pois afinal, uma leitura crítica
capacitada sobre os mesmos apontaria rapidamente essas falhas].
No entanto, o escopo da crítica histórica se perde, na medida em
5
Veja o link: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/livro-
didatico
22
que os principais detratores da coleção não são, também,
historiadores, o que nos permite supor até onde a ingerência
política e midiática se envolve no tema.
Esse abismo, que aborda de maneira ainda mais superficial
a história antiga, deixa abertas as portas para a especulação. Sobre
ela, projetam-se os anseios do senso comum. O espaço da história
antiga é coberto pelas visões religiosas, ou pelos aventureiros do
Realismo Fantástico. A dificuldade e a escassez de classicistas dão
margem à difusão dessas concepções capciosas e pseudocientíficas.
Além disso, muitas vezes a produção acadêmica está distante do
grande público, e é escrita para poucos. Apenas alguns manuais
foram produzidos buscando aproximar-se do público mais
comum, já que o professor universitário que se preocupa com a
vulgarização histórica é mal visto. Ele tende a ser considerado por
seus pares como ‘menos qualificado’, já que seu foco exigiria
‘menos erudição’. Pois é justamente erudição, poder de síntese, e
escrita interessante que constituem talentos raros na academia. A
combinação deles é mais difícil ainda de ser vista. Desse modo,
abre-se então espaço para pseudo-cientistas de narrativa
envolvente, que convencem o leitor de que seus livros o tornam
alguém ‘com um conhecimento singular, especial, que poucos o
sabem’.
A situação fica tanto mais complicada quando
constatamos um segundo ponto importante nessas ausências; a
quase inexistência do ensino de história das ciências e história da
arte. Ambas as áreas, que poderiam solucionar a maior parte dos
‘enigmas fantásticos’ ainda no ensino médio, caem simplesmente
no umbral do ensino histórico. Nem bem são lecionadas em
outras áreas [ciências ou artes], nem são abordadas por
historiadores. Aqui, delineia-se uma equação sinistra: temos um
23
ensino deficiente de história antiga e medieval nas escolas +
ausência de história das ciências e artes + despreparo no
instrumental de pesquisa histórica... Não é preciso continuar para
ver que qualquer livro que ofereça uma versão mais curiosa,
exótica alternativa da história será vista, como certeza, de modo
fascinante pelo leitor comum.
Haja visto que temos mesmo poucos títulos para resolver
essa questão. Uma coleção bastante interessante e enriquecedora
é A História ilustrada da Ciência de Cambridge, publicada por
Colin Ronan [Zahar, 1997]. São quatro volumes, que cobrem a
história das ciências desde o mundo antigo até a época mais
recente. O livro de Ronan tem ainda a vantagem de quebrar a
ideia, muito comum, de que as ciências são acumulativas. O senso
comum tende a acreditar que as ciências vêm acumulando
conhecimento desde a antiguidade, numa evolução contínua. Isso
torna inaceitável, por consequência, a ideia de que os antigos
pudessem conhecer técnicas capazes de construir palácios, templos
e pirâmides. Não se admite, por exemplo, que conhecimentos
científicos tenham se perdido, ou ainda, que certas teorias não
tenham sido desenvolvidas em função do contexto de época. Isso
abre a brecha para a alternativa ET, que não pode ser comprovada
arqueologicamente, mas também [ao menos seus defensores assim
o acreditam, numa inversão completa do paradigma científico],
não pode ser ‘refutada por ausência de provas’! É justamente a
ausência de provas que refuta uma teoria vaga. Mas para o senso
comum, não. Do mesmo modo, a complexidade da explicação
dada pela história da ciência tende a afastar o leitor despreparado,
que crê estar sendo ‘ludibriado’ por uma grande quantidade de
informações. A leitura de livros como o de Ronan ajudaria
bastante a desfazer esses equívocos. Todavia, nem mesmo a
24
história das ciências é uma área muito divulgada em nosso meio
histórico, cabendo a outros campos científicos a sua construção
conceitual.
O mesmo pode ser dito sobre a história da arte. Embora
os historiadores se aventurem, ocasionalmente, no campo das
imagens, as limitações de seu emprego no ensino básico e mesmo
na formação acadêmica, deixa margem à promoção de concepções
errôneas. Um exemplo clássico são os códigos de representação
imagética. Egípcios, por exemplo, usavam proporções de tamanho
diferentes para indicar o faraó, nobres e populares em seus murais.
Indianos representavam seus deuses com vários braços, o que
significava a extensão de seu poder. Mas os leitores do realismo
fantástico leem isso ao ‘pé da letra’, supondo que tais diferenças
marcam, na verdade, seres diferentes dos humanos. Por analogia,
seria como acreditar na existência de bichos falantes, por causa das
atuais propagandas de ração. Há uma desconexão absoluta com o
sentido de passado, incapaz de conceber a ideia de representação
simbólica no mundo antigo. O problema acentua-se na medida
em que concepções ingênuas, tais como as de que ‘antigamente se
mentia menos’, são usadas como cerne da dúvida. É
impressionante, pois, o que o desconhecimento pode causar.
Junte-se a isso o próprio desconhecimento do Realismo
Fantástico sobre suas ‘fontes históricas’. O mito do ‘disco voador’
é muito mais recente do que se imagina. Em julho de 1943, a
revista americana Amazing Stories publicou um conto sobre novas
máquinas voadoras nazistas, que ameaçavam as missões de
bombardeiros americanos. A ilustração mostrava um ‘disco
voador’, arcaicamente armado de metralhadoras.
25
A ilustração do primeiro Disco Voador, tal conhecemos.
Amazing Stories, Julho, 1943.
26
'extraterrestre' aparecia novamente. A par de nossa especulação,
de lá pra cá, as teorias ficaram cada vez mais ‘complexas’ e sutis, e
a versão ET sobrepujou os discos voadores do Eixo – a mente do
realismo fantástico é implacável, e sempre opta pelo mais
misterioso e fascinante, já que não pode ser provado...**
27
Conclusões
28
antigo, no medievo, no asiático, no africano – escondem-se ainda
maravilhas, ao nosso conhecimento comum, que por si só revelam
o que ainda existe de realmente fantástico em nosso mundo, sem
as interferências alienígenas ou hierofânicas. Se as ciências e a arte
puderem, ainda, nos encaminhar para uma tradução dos
símbolos, meios e sentidos de outras formas de compreender o
mundo, isso por si só fomentará a criação de uma consciência
histórica bem diversa daquela que conhecemos hoje, e que
possibilitará uma formação enriquecedora, crítica e aberta aos
desafios de uma verdadeira investigação do mundo.
E então, somente então... Poderemos saber também se
algum extraterrestre já passou por aqui. Mas falta de tudo pra isso!
Anotações
29
espacial cheio de máquinas voadoras. Havia uma substancial
literatura de ficção em andamento.
Referências
30
Formação Docente para o Ensino de História:
Um relato de experiência
31
afeta a concepção das pessoas. Salários baixos e estruturas
precárias de trabalho seriam os maiores desabonadores da
docência. Tais afirmativas sugerem que teríamos em nossos cursos
pessoas descompromissadas com a área de formação, buscando
apenas um diploma de nível superior. Sugere que o futuro da
Educação no país seria ainda mais desolador que o presente, já
que as aulas seriam ministradas por quem não tem o menor
interesse em ensinar para crianças, adolescentes e jovens que
também são acusados de desinteressados em aprender.
Ao concluir minha graduação em História em 2005
escrevi em meu trabalho final de estágio supervisionado que
gostaria muito de ser professora, pois minhas práticas de estágio
haviam confirmado o encantamento pela prática docente e as
aulas do curso reafirmaram o encantamento pela disciplina de
História. Ensinar e perceber a aprendizagem de alunos e alunas
era e é enriquecedor. Estudar constantemente, aprender mais para
ensinar melhor, superar-se para demonstrar a alunas e alunos que
também podem fazer escolhas melhores para suas vidas a partir da
construção de saberes, do conhecimento que é a única coisa que
ninguém nos pode roubar, são anseios que me acompanham
desde então.
Diferentes foram os espaços de atuação profissional. Do
trabalho como bolsita recém-formada no Projeto ‘Contando
nossa História, construindo cidadania’ 6 do curso de História que
ensinava a história de União da Vitória para crianças da rede
municipal nos locais históricos do município até a docência no
6
Projeto que integrava o Subprograma Apoio às licenciaturas do Programa
Universidade Sem Fronteiras da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior do Paraná.
32
próprio curso de História, passei por diferentes escolas: da
periferia, da área central da cidade, escola do campo, instituições
públicas e particulares. Vivi os dilemas da profissão: falta de
estrutura, indisciplina estudantil, carga horária extrema com
pouco tempo para preparação das aulas. Fins de semana e feriados
utilizados para correção de trabalhos e provas, para pesquisa e
estudo. Mas como salienta Seffner
33
longo destes anos em que leciono no curso, desde 2007, um
desencanto tão grande de discentes em relação à docência para
que a sociedade aponte esse dilema. Uma pesquisa realizada com
68 estudantes das quatro turmas do curso de História no mês de
setembro de 2013 revelou que em relação ao interesse das pessoas
que fazem o vestibular para o curso de História na profissão de
docência, a maioria ingressa no curso com interesse em atuar na
área após a formação, como demonstra o gráfico abaixo:
34
profissão docente ao longo do curso de História, demonstrados
no gráfico a seguir:
35
percepção de que “pode ser bom” ensinar o que sabe. Entre
aqueles e aquelas que mantiveram positivamente sua opinião
também foi apontado como motivo o exemplo de docentes do
curso como reforço positivo, a afinidade com o curso e o gosto
pela disciplina em si.
No segundo ano do curso encontramos maior diversidade
de posicionamentos, há um equilíbrio numérico maior entre
discentes que mantêm ou alteraram suas posições iniciais em
relação à docência. Entende-se que em partes isso é reflexo da
inserção da primeira disciplina voltada diretamente ao ensino e
aprendizagem da História, Didática da História, que explora de
forma mais efetiva o debate sobre a docência. É um momento do
curso em que estudantes passam a refletir mais sistematicamente
sobre a profissão, revelando com mais clareza suas dúvidas em
relação a ela.
A indecisão apontada por um estudante na pesquisa em
relação a ser ou não professor após a formação foi justificada pela
diferença que vê na História como disciplina escolar e seu estudo
na academia. Para ele “ser professor é algo complexo” e se revela
na tarefa de “auxiliar o aluno na formação de uma consciência
histórica”. Há nestas respostas uma superação da ideia de
professor ou professora de História como profissional que se
preocupa apenas com os conteúdos da disciplina, com o domínio
do saber histórico, não retirando, evidentemente, a importância
desse saber para a docência. A complexidade de “ser professor ou
professora” estaria na preocupação com a aprendizagem histórica
dos alunos e alunas e não apenas com o ensino do conteúdo.
Para Rüsen não é válida a concepção de ensino como
“ferramenta que transporta conhecimento histórico dos
recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as cabeças vazias
36
dos alunos” (Rüsen, 2010, p. 23). Para o autor a educação
histórica é um processo intencional e organizado de formação de
identidade. O passado rememorado ajuda a entender o presente e
perspectivar o futuro. A História, portanto, como disciplina a ser
ensinada e aprendida precisa orientar para a vida. Nesse sentido,
ensinar História não se pauta apenas na transposição didática de
conteúdos. Mas preocupa-se com o desenvolvimento da
consciência histórica de estudantes, cuja função é ajudar “a
compreender a realidade passada para compreender a realidade
presente” (Rüsen, 2010, p. 56).
Entre as justificativas para a permanência da intenção de
atuar na docência após a graduação e para a mudança positiva de
opinião em relação a isso entre estudantes do segundo ano do
curso está a compreensão da relevância da História como
disciplina que auxilia na leitura de mundo e na capacidade dos
sujeitos de agirem no mundo a partir da compreensão das
realidades passada e presente. O estímulo de docentes do curso e
os conteúdos históricos por eles trabalhados são também
apontados como motivadores do interesse despertado para a
docência. Entre três estudantes que mudaram negativamente de
opinião encontramos respostas semelhantes entre si que revelam
que o entendimento do papel docente, que é “bem mais que
contar historinhas”, leva a refletir sobre a própria capacidade de
assumir ou não tal tarefa. O que entendemos como ponto
positivo para um curso de licenciatura em sua responsabilidade
por formar profissionais conscientes.
37
atuar na área de formação após a graduação por já ter uma
formação em jornalismo e seu interesse no curso de História era
justamente ampliar seus conhecimentos para atuar em sua área.
Os demais alunos e alunas justificaram a manutenção da intenção
inicial ao ingressarem no curso pelo interesse na profissão e a
mudança positiva em relação à profissão pela vontade de ensinar,
por gostar da sala de aula, por influência de familiares, pela
compreensão da importância da disciplina e pelo papel do
professor ou professora de História de criar possibilidades para
“que os alunos se questionem e se posicionem na sociedade”.
O terceiro ano do curso marca o início dos estágios no
ensino fundamental e médio para estudantes de licenciatura. E
esta experiência de sala de aula foi apontada por diferentes pessoas
como razão para confirmarem seu interesse na docência ou
despertarem seu interesse por ela. A “boa experiência com os
estágios” e a percepção de “um pouco do dia a dia em sala de
aula” fez com que estudantes mudassem de perspectiva em relação
à profissão. E entre aqueles e aquelas que já tinham o objetivo de
lecionar destacamos as seguintes afirmações sobre o estágio: “me
confirmou o meu interesse para dar aula, pois percebi que me
realizei”, “quando fiz o estágio em sala de aula, percebi que é isso
que eu quero para mim, pois me sinto bem ensinando”. Esta
realização pessoal proporcionada pelo ato de ensinar é ainda mais
significativa quando aliada à experiência de percepção da
aprendizagem de seus alunos e alunas, como demonstra o seguinte
relato: “por mais que não seja fácil trabalhar em sala de aula, por
mais que nem todos os alunos sejam interessados, quando você
gosta, quando um aluno aprende, se interessa, você se sente
realizado”. Não se tratam, portanto, de escolhas inconscientes, já
que mesmo compreendendo e vivenciando um pouco das
38
dificuldades do dia a dia em sala de aula, foi justamente esta
experiência que proporcionou a convicção em relação à profissão.
As repostas de estudantes do quarto e último ano do curso
não seguem esta harmonia de interesses encontrada no terceiro
ano. As pessoas entrevistadas demonstraram-se muito diferentes
em seus interesses, três delas que ingressaram no curso sem o
intuito de atuar na profissão após a graduação, mantiveram sua
posição devido às dificuldades que a docência apresenta que vão
desde a dificuldade de vagas para docentes até a postura de
professores que apenas reclamam da profissão ou são incoerentes
entre discurso e prática. Infelizmente este olhar pautado nas
carências do ensino, desprovido de capacidade de perspectivar um
futuro diferente e agir para sua construção é ainda recorrente
entre docentes. E as mazelas reais da educação no Brasil
desmotivam muitas pessoas a atuar na área.
A única mudança negativa de opinião em relação à prática
docente apresentada nesta turma foi justificada pela dificuldade
encontrada na prática de sala de aula, ao substituir docentes na
educação básica e perceber a própria falta de domínio de turma, o
que conduziu a opção por outra profissão. Esta postura é também
demonstração de maturidade acadêmica e de responsabilidade
frente à educação básica.
A maioria dos alunos e alunas não apenas ingressaram no
curso para tornarem-se professores, mas mantiveram sua posição
inicial no decorrer do curso. Isto foi motivado, segundo os relatos,
por incentivos e qualidade de docentes do curso, pela
compreensão da importância da disciplina para a educação básica
ao proporcionar o entendimento da realidade movendo os alunos
39
e alunas a questionarem e agirem no mundo e pela participação
em projetos, como o PIBID7 e as experiências de estágio.
Entre aqueles e aquelas que mudaram positivamente de
opinião em relação à docência as justificativas para tal postura se
referem aos conhecimentos adquiridos no decorrer do curso,
tanto os conteúdos próprios das disciplinas específicas quanto os
saberes em relação ao ensino e à aprendizagem histórica. Um dos
relatos destaca que “a primeira coisa” que fez mudar de opinião
“foi o contato com a sala de aula, perceber a realidade fez desertar
a vontade de estar lá. Após isso, perceber que podemos ajudar um
aluno a se ‘preparar’ para o mundo é fascinante, receber um olhar
de gratidão de nossos alunos é o que nos faz continuar”. Tal relato
faz recordar a menção anterior feita ao professor de ensino médio
que me inspirou a ser professora. Querer que os alunos e alunas
aprendam e alegrar-se com isso demonstra a postura de quem
entende o sentido da docência.
Vemos, portanto, resultados bastante positivos no
entusiasmo de alunos e alunas do curso de História da
UNESPAR/FAFIUV para a atuação na educação básica e também
no ensino superior. O que não pode ser motivo apenas de euforia,
mas sim de despertar para a responsabilidade frente a tal questão.
Oliveira (2012) ao discorrer sobre a dicotomia da formação
específica versus a formação pedagógica nos cursos de licenciatura
em História destaca a carência de produções escritas a este
respeito e apresenta o que ela chama de duas dimensões da
produção do conhecimento histórico: o ensino e a pesquisa. Para
a autora as tarefas para quem deseja atuar como profissional de
História consistem na pesquisa, na escrita histórica, na
7
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – CAPES.
40
preservação, organização e sociabilidade de fontes, nas políticas de
musealização, nas construções de expectativas de aprendizagem e
concepção do trabalho docente para além da sala de aula com
atividades de planejamento, formação continuada, avaliação
escolar. Para capacitar estudantes para atuarem em todas essas
diferentes ações é preciso um empenho contínuo de docentes e
discentes, que são os sujeitos da formação universitária.
Professores e professoras com capacitação adequada com alunos e
alunas que não se sentem responsáveis pela própria formação
podem gerar uma formação tão inadequada quanto aquela
proporcionada por discentes aplicados que possuem docentes cuja
competência é questionável. Da mesma forma que entendemos
que o papel do professor ou professora de História na educação
básica é proporcionar possibilidades aos alunos e alunas para
desenvolverem sua capacidade de pensar historicamente, mas o
pensamento em si depende do sujeito que pensa e não de quem o
estimula a pensar, na formação docente a via é a mesma. Os
professores e professoras do ensino superior precisam criar as
possibilidades para uma boa formação enquanto cabe aos
acadêmicos e acadêmicas dedicarem-se a elas.
E o que tem feito o curso de História para cumprir a parte
que lhe cabe na formação eficaz de profissionais em História? Em
2002, ano de meu ingresso no curso, implantou-se uma nova
matriz que inseriu no curso de História a disciplina de
monografia. Anteriormente era exigida de estudantes a produção
de um trabalho final para a conclusão de curso que era composto
de uma pesquisa em relação a determinado tema histórico
acompanhada do relato de experiência do ensino de tal temática
na educação básica. A inserção da produção monográfica no
terceiro ano do curso e para além dela, a produção do trabalho
41
final de estágio supervisionado no quarto ano do curso visava a
possibilidade de ampliação da capacidade de pesquisa, escrita e
ensino da História.
A pesquisa, embora fosse antes também desenvolvida, não
era voltada para a escrita de uma monografia e a alteração fez com
que uma preocupação maior em torno dela se desenvolvesse entre
estudantes. O lado positivo disso se revelou no aumento de
procura posterior à graduação pela continuidade da vida
acadêmica em cursos de especialização e mestrado em História.
Por outro lado, a parte do curso destinada à formação docente era
composta por disciplinas vinculadas à área de Educação tanto em
relação aos conteúdos quanto aos docentes que nelas atuavam. E
tal realidade fazia ressaltar o que Oliveira (2012) chama de
dicotomia da formação específica versus formação pedagógica,
mencionada anteriormente.
A pesquisa representava a produção do conhecimento
histórico que encantava estudantes do curso. A área de ensino
significava uma área oposta e aparentemente menos importante
ou interessante. Enquanto escrever sobre os resultados de suas
pesquisas era uma tarefa prazerosa, refletir sobre o ensino era
enfadonho porque as discussões existentes eram tão distantes da
área de conhecimento própria e parecia tão difícil relacionar a
teoria e o conhecimento histórico com as reflexões sobre o ensino
e a aprendizagem escolar. Afirmo tais questões pela experiência
vivenciada no curso, por colegas e por mim mesma. Muito
embora, meu interesse inicial e constante no curso era de tornar-
me professora, o curso gerou em mim maior gosto pela pesquisa.
Com o interesse e o compromisso com a pesquisa
histórica ampliado no curso a preocupação seguinte foi
direcionada para os rumos que a formação para a licenciatura
42
deveria tomar. E a matriz curricular foi rediscutida e alterada em
2011, sendo suprimidas as disciplinas de Estrutura e
Funcionamento de Ensino, Psicologia da Educação e Didática
que eram organizadas e ministradas por profissionais da área de
Educação e inserida a disciplina de Didática da História.
A didática pensada a partir da Pedagogia refere-se ao
conjunto de doutrinas, princípios e métodos da educação. Por
método entende-se o traçado das metas/etapas de ensino e a
técnica seriam os procedimentos, os recursos empregados para
atingi-las. Pela etimologia da palavra didática significa arte ou
técnica de ensinar. Mas e a didática da História? Para Cardoso
(2008, p. 154) “No Brasil a Didática da História é
frequentemente entendida como um tema subordinado à área de
Educação, sem vínculos com a atuação do pesquisador da área de
História. Essa concepção se fundamenta na crença de que o papel
da didática é adaptar ao contexto escolar o conhecimento criado
pelos historiadores.” O autor, porém argumenta que a Didática da
História não pode ser vista como um mero facilitador da
aprendizagem e deveria ser pensada a partir da própria História.
Tal percepção tem sido constantemente refletida por
diferentes pesquisadores e pesquisadoras do ensino de História.
Maria Auxiliadora Schmidt é uma delas. A autora apresenta a
ideia de cognição histórica situada, que seria a aprendizagem
histórica a partir da própria ciência da História (Schmidt, 2009).
Tais reflexões, segundo a autora surgiram da constatação dos
indicativos de desinteresse de crianças e adolescentes pelo
conhecimento histórico escolar e dos insucessos escolares em
relação a aprendizagens históricas significativas. Nessa perspectiva
a didática da história se ocuparia tanto da pesquisa histórica
43
(método, objeto, teoria), como das operações do aprender e do
ensinar História e da consciência histórica da sociedade.
Os estudos de Schmidt (2009) e também de Barca (2011,
p. 1) que reforça a ideia de que a aprendizagem histórica deve
suplantar a simples recepção de informações históricas e equipar
estudantes com estratégias cognitivas que lhes permitam orientar-
se pessoal e socialmente ao saber cruzar tais informações, “ler os
implícitos e o que é explicitamente negado”, questionar,
investigar, se pautam no pensamento de Rüsen (2001) que aponta
a razão como força motora do pensamento histórico e reforça que
é racional todo o pensamento que se expressa pela argumentação.
Para o autor, há um engano na concepção de didática da história
como disciplina que faz a mediação entre a história como
disciplina acadêmica e a educação escolar, pois nessa concepção
não há conexão com o trabalho do historiador e a didática da
história seria entendida, como já mencionado anteriormente,
como mero instrumento de transmissão de conteúdos históricos,
construídos pela pesquisa acadêmica, para alunas e alunos que
nada sabem (Rüsen, 2010, p. 23).
Para Rüsen (2012) a didática da história lida com três
fatores fundamentais para a aprendizagem histórica. Primeiro com
a consciência histórica dos indivíduos, que nasce na vida prática,
das experiências na realidade social, no tempo e espaço em que os
sujeitos estão inseridos. Segundo, com a historiografia que se
ocupa do modo com que a história é criticamente escrita. E
terceiro, com o ensino da história, especialmente no âmbito
escolar. O autor lembra que embora o ensino de História tenha
sido considerado um tema de menor valor para muitos
historiadores/as por um determinado tempo, relegado apenas a
profissionais da Educação, essa realidade tem mudado e
44
historiadores/as tem sido “confrontados com o desafio do papel
legitimador da história na vida cultural e na educação” (Rüsen,
2010, p. 29). A Didática da história, por um tempo vista como
auxiliar da didática geral, vista como disciplina pedagógica, fato
que foi “exacerbado pela tradicional mentalidade estreita de
muitos historiadores profissionais que excluíam todas as questões
de função prática da história de uma autorreflexão histórica séria”
(Rüsen, 2010, p. 31) é novamente entendida como propiciadora
da análise de todas as formas e funções do raciocínio e
conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Ela se ocupa da
metodologia de instrução na sala de aula; das funções e usos da
história na vida pública; das metas para educação histórica nas
escolas; da análise geral da natureza, função e importância da
consciência histórica.
Para o autor, a educação histórica é um “processo
intencional e organizado de formação de identidade que
rememora o passado para poder entender o presente e antecipar o
futuro” (Rüsen, 2010, p. 38). Nesse sentido, como afirma Barca
(2011, p. 1) “Aprender a pensar historicamente (o que exige
compreensão contextualizada e uso adequado da evidência) deverá
ser a meta essencial para a aprendizagem da História na era da
globalização”.
Dentro deste contexto, refletir sobre a formação docente
em História ganha um novo sentido, pois o foco de atenção
supera a preocupação com reflexões sobre o ‘como ensinar’ de
forma mais dinâmica, o que muitas vezes se pauta apenas em um
interesse por parte de docentes já graduados e docentes em
formação em tornar sua aula mais atrativa ou simplesmente
ocupar o tempo em sala de aula de uma forma que mantenha os
alunos e alunas envolvidos nas atividades propostas, avançando
45
para o empenho real em propiciar oportunidades de
desenvolvimento do pensamento histórico de estudantes.
O uso de diferentes linguagens para o ensino de História,
como as apresentadas por Fonseca (2003) em sua obra ‘Didática e
prática de ensino de História’, como o cinema, a música, jornais,
poemas e outros documentos escritos, bem como imagens,
fotografias, objetos de museu e arquitetura histórica, como aponta
Bittencourt (2004) é entendido como instrumento de
investigação histórica em sala de aula ou aulas de campo e não
apenas como recursos dinamizadores das aulas. Mais do que
trabalhar conteúdos de forma atrativa aos alunos e alunas com o
uso de diferentes tecnologias ou linguagens de ensino, docentes de
História devem estimular estudantes a analisarem diferentes fontes
para construírem suas narrativas históricas. Ao invés de apenas
receberem informações sobre o passado, estudantes precisam ser
estimulados a desenvolver sua capacidade de pensar
historicamente.
Ao assumir esta perspectiva de formação com a disciplina
Didática da História, o curso de História da UNESPAR/FAFIUV
tem encontrado resultados positivos em relação ao entendimento
de discentes sobre a função da disciplina de História e também do
papel de docentes de História no ensino fundamental e médio. As
respostas às perguntas sobre a importância da disciplina de
História na educação básica e sobre o papel do professor ou
professora de História na pesquisa realizada com 68 alunos e
alunas do curso revelaram um entendimento geral de que
aprender história é mais do que apenas adquirir informações a
respeito do passado, é ter a capacidade de questionar esse passado
à luz das experiências presentes e encontrar respostas que
permitam não apenas a compreensão de si mesmos e do mundo,
46
mas também que direcionem a ação no mundo. Desta forma, não
cabe ao professor ou professora apenas a tarefa de ‘transmitir’
saberes, mas de proporcionar a estudantes as oportunidades para
sua construção.
47
uma narrativa histórica. Por outro lado, trazer para a História a
reflexão sobre a didática da História pautada em sua ciência de
referência permitiu que o entendimento e o encantamento gerado
pela pesquisa estimulassem o interesse pelo ensino. Se antes as
duas áreas pareciam dicotômicas, agora dialogam, pois o método
da História é pensado também como metodologia para o ensino
de História.
O interesse pela licenciatura manifestado pela maioria dos
alunos e alunas que integram o curso de História da FAFIUV,
como demonstrou a pesquisa realizada com 68 discentes, gera
uma preocupação sempre crescente em relação à qualidade da
formação docente. Embora a exigência de dois trabalhos de peso,
a monografia e o trabalho final de estágio supervisionado,
demandem tempo e dedicação de estudantes, compreende-se que
o esforço é necessário para que não apenas capacitem-se a
produzir narrativas históricas voltadas para a academia, com o
texto monográfico, mas que exercitem sua competência narrativa
para a produção de materiais didáticos a serem utilizados nas
escolas de educação básica, o que fazem em seus planejamentos de
estágio, bem como reflexões sobre o ensino que pautarão sua ação
quando graduados, função do trabalho final de estágio
supervisionado.
A licenciatura em História está muito longe de ser uma
área de desencanto, procurada apenas por pessoas que não tem
condições de ingressar em outros cursos. As mazelas da educação
preocupam, mas não destroem o interesse pelo ensino. Ao
contrário, reforçam o compromisso com a qualidade da formação
docente.
48
Referências
49
RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história, os fundamentos
da ciência histórica. Brasília, DF: UNB, 2001.
SCHIMDT, M. A. Cognição história situada: que aprendizagem
é essa? In: SCHMIDT, M. A.; BARCA, I. (orgs.). Aprender
História: perspectivas da educação histórica. Ijuí: UNIJUÍ, 2009.
50
O Tempo dos Quadrinhos
Elipse Temporal
51
(1975, p. 41), cada hiato que separa a cercadura dos requadros
praticamente representam uma elipse. Este corte, em si, já impõe
ao leitor uma leitura de imagens “ocultas ou subentendidas pela
narrativa”. Por outro lado, pode-se obter também interessantes
surpresas temáticas com grande eficácia. Na sequência a seguir,
cabe ao leitor compreender o caminho entre o quintal da casa
onde estavam as personagens e o interior da residência, bem como
imaginar o trajeto e suas peculiaridades.
52
chamada de artes sequencial, uma vez que não constitui
sequência. Duas imagens constituem uma narrativa, desde que
sejam colocadas como uma sucessão, ou que o leitor as entenda
assim. Nas histórias em quadrinhos, o leitor constrói e confirma a
narrativa que faz sentido na história. A elipse de tempo aceitável
entre duas imagens é explicitada pela capacidade ou não dessas
imagens representarem uma continuidade. As transições são
possíveis porque o leitor está acostumado a ler o corpo do texto
como narrativa.
O leitor procura, então, juntar ambos os quadros para
formar uma linearidade. Para McCloud (2005), esta busca para
“fechar” a narrativa, ou para “completá-la” vem da incapacidade
humana de perceber toda a “realidade” existente. Assim, os seres
humanos têm que completar as lacunas existentes, observar
apenas as partes perceber o todo, ainda que haja uma percepção
gestáltica existente pela própria diagramação da página ou
desenhos da tira. McCloud (2005) chama este processo de
conclusão. A conclusão é, naturalmente, oriunda não só do
processo mecânico da leitura, mas principalmente do processo
cultural da leitura e apreensão da realidade existente. Os hábitos e
modos de leitura são diversos nas diversas localidades do mundo
ou, como salienta Munari (1968), são tantos quantos são os
habitantes do planeta. A tentativa de compreensão será única para
cada um dos leitores. Há, no leitor, além da função de receptor,
de consumidor, a função de co-criador da obra. Para Chartier
(1999) o leitor é produtor da obra e, portanto, cada obra tem
dinâmica diferenciada de acordo com quem a lê. O texto lido não
tem apenas o sentido que o autor tentou passar. Todo leitor tem a
liberdade de subverter aquilo que o escritor parece lhe impor. As
restrições do leitor estão associadas muito mais às próprias regras
53
da sua cultura do que as regras impostas pelo livro em si. Nos
quadrinhos e, principalmente nas tirinhas, estas regras parecem
ser ainda mais flexíveis. O tempo de leitura, tempo de reflexão e o
resultado obtido na leitura da sarjeta é próprio de cada leitor.
A sarjeta é a responsável pela essência dos quadrinhos. É
na sarjeta que a imaginação humana capta duas imagens distintas
e as transforma em uma única idéia. O leitor vale-se de seu
repertório para concluir algo que não está nem desenhado e nem
escrito, algo que está ausente, que permanece apenas no vácuo da
sarjeta, como a capacidade do leitor de perceber que a personagem
está ficando com sono, e que o último quadrinho representa o
sonho dela. Os indicadores para esta percepção são, de certa
forma, sutis, e o que deixa explícito o sono da personagem é
justamente a experiência do leitor.
54
maior no movimento de virada de página do que no movimento
de passar os olhos de um quadrinho à outro. Eisner (2001) diz
que o artista deve ter cuidado ao fazer a transição das páginas,
uma vez que este parece ser o momento onde o leitor pode
abandonar o título. Para o autor, sempre é necessário colocar um
elemento de suspense ao final de cada página, justamente para
que o movimento conseguido por meio da elipse não se perca
com o folhear da página.
Já Quella-Guyot (1994), afirma que a arte do quadrinista
é a arte da ruptura, da descontinuidade, é a arte de fazer o leitor
acreditar que existe uma continuidade, mesmo que esta não esteja
visualmente representada. O autor da obra de quadrinhos precisa
criar um elo com seu leitor em que ele concorde e participe
ativamente da leitura do quadrinho. Quella-Guyot (1994 p.37)
afirma “inúmeros autores se divertem com frequência ao se referir
ao fato de leitores lhes falarem de imagens que eles nunca
desenharam; o que não causa espanto, pois elas nascem da
imaginação do leitor”, como na tira 711 de 20 de fevereiro de
2006, onde Dahmer não desenha o massacre das crianças, mas faz
com que o leitor possivelmente o imagine, ao mesmo tempo que
pode imaginar todas as crianças mortas e apenas uma em pé.
55
Para o autor de quadrinhos, criar a elipse não é apenas escolher o
que não se vai mostrar entre um requadro e outro, mas também,
como afirma Quella-Guyot (1994), o que vai negligenciar “ao
redor” da cena desenhada, ou seja, o que está fora do campo de
visão do leitor, tal qual no cinema, com o fora de cena, ou mesmo
na literatura, ou até na discurso oral, quando o autor decide
omitir certas informações para obter melhor narrativa. O recurso
de esconder ou mostrar determinada questão da história não é, de
forma alguma, exclusivo das histórias em quadrinhos, e Beronä
(2002) afirma que em qualquer tipo de narrativa a omissão tem
um papel crucial na história contada. Para o autor, a história não
existe e não pode existir sem narrador E plateia. Narrativa é uma
troca social que é comprometida se um dos lados é esquecido no
momento de sua formulação.
O tamanho da sarjeta, entretanto, não importa muito.
Saraceni (2003) afirma que o que realmente importa é a sarjeta
existir, é a ausência de elementos entre um quadrinho e outro, a
divisão entre os requadros. Prova-se verdade esta afirmação
quando percebemos histórias em quadrinhos onde apenas um
risco separa um requadro do outro, como a tira de Benett,
publicada em 09 de março de 2009 e que não possui nada além
de uma linha separando um quadrinho do outro, como vemos a
seguir:
56
Figura 4. Fonte: GAZETA DO POVO Online in:
<http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/charges/index.phtml?foffset=188&offs
et=160&ch=Benett>
Figura 5. Cimentando
Fonte: ARAGONÉS, Sergio. Best of. USA: E.C. Comics. 2010. p. 38
57
seu website no espaço entre os requadros. Como o arquivo digital
da tira é um elemento apenas, uma só imagem, ainda que
composta pelos vários requadros, torna-se interessante para o
autor no momento em que estas tiras são inseridas em outros
contextos, outros websites ou publicadas. Assim o leitor sempre
pode conhecer o endereço virtual das tiras que está lendo, como
vemos na tira 521, de 21 de março de 2005:
58
McCloud (2005), porém, percebe que dificilmente haverá
uma sequência entre quadros sem nenhuma ligação entre eles.
Isto porque, mesmo que o escritor deseje algo sem conexão, a
mente leitora vai tentar ligar os quadros, com resultados variáveis.
Devemos lembrar que os elementos omitidos de uma obra são tão
partes dela quanto os elementos explícitos. Nos dois quadros a
seguir, extraídos da história de Schaal intitulada Opus I, não há
aparente conexão entre as imagens. O que gera a conexão que faz
com que o leitor entenda a relação entre os quadros é o próprio
leitor. O autor, porém, utiliza esta conexão da mente do leitor
com intuito de gerar um final surpreendente. Neste caso, embora
pareça que as personagens estão assistindo a um telejornal, e que a
guerra nuclear havia sido deflagrada, na verdade era apenas um
filme.
Figura 6. Apocalipse.
Fonte: Schaal. Opus I in: Aventura e Ficção 1. São Paulo: Editora Abril, 1986.
p.48
59
mudança da transição espacial, recurso que o escritor utiliza para
mover o leitor de um ponto da história para outro ponto no
espaço. Há várias formas disto ocorrer, tais como a mudança de
plano que revela uma nova imagem com legendas do tipo
"enquanto isso...", como podemos perceber nos quadrinhos de
Goscinny e Uderzo. Aqui o leitor é remetido de um cenário (o
acampamento romano) a outro (a vila dos irredutíveis gauleses). A
forma encontrada pelos autores de explicitar isto ao leitor é com o
recordatório acima do segundo quadrinho.
60
Figura 8. Antes da entrada.
Fonte: MILLAR, Mark & McNIVEN, Steven. Guerra Civil. São Paulo:
Panini, 2007. p. 5.
61
Figura 9. Espiando.
Fonte: MILLAR, Mark & McNIVEN, Steven. Guerra Civil. São Paulo:
Panini, 2007. p. 6.
62
Há também a montagem alternada entre planos temporais
simultâneos, unificados especialmente pelo balão que contém o
mesmo discurso personagens diferentes, como no caso das
televisões diferentes, em casas diferentes, mas com o mesmo
balão, mostrando a distância espacial entre as casas.
63
Figura 12. Discussão.
Fonte: JOHNS, Geoff & JIMENEZ, Phil. Crise Infinita 1. São Paulo: Panini,
2006. p. 30.
64
Figura 13. Mais tarde...
Fonte: DISNEY. Almanaque do Superpato. São Paulo: Abril, 1982. p.10
65
Salienta-se também os planos que indicam uma ação paralela à
temática principal de uma dada história ou ainda o corte que
marca a passagem de uma realidade concreta para uma realidade
abstrata na história, como no corte providenciado pela porta que
vai aos poucos fechando a personagem antagonista, indicando um
tempo não real, mas psicológico às duas personagens envolvidas.
66
que a imposta ou imaginada pelo artista, que no máximo pode
sugerir a maneira pela qual esta leitura se produzirá.
Outra questão não levantada por McCloud (2005) são as
histórias quadrinho de apenas um quadro. Nestas a elipse é ainda
maior, uma vez que é necessário que o leitor compreenda a
história sem um prévio conhecimento do acontecido, apenas com
as indicações fornecidas pelo desenhista. Neste caso, o processo de
criação do leitor é ainda maior, provavelmente gerando maior
quantidade de interpretações. Para Carrier (2000), o leitor
interpreta o que conhece, daí a popularidade da charge e da
caricatura. O exagero e a sequência narrativa imaginada é o que
conduz à comicidade ou ao entendimento da trama estabelecida
naquele mínimo espaço temporal. Neste tipo de narrativa, o
repertório do leitor é mais exigido que nas narrativas compostas
de vários quadros. Na tira a seguir, apenas com prévio
conhecimento da filosofia cristã se é capaz de compreender a
piada.
67
Figura 16. Deus e Jesus.
Fonte: SIEBER, Alan. Últimas Palavras. São Paulo: Opera Graphica, 2001.
p.13
68
Figura 17. Titanic
Fonte: SIEBER, Alan. Últimas Palavras. São Paulo: Opera Graphica, 2001.
p.18
69
Referências
70
Outras Vozes:
Homofobia e Afetos Políticos na Educação
Celso Kraemer
Carla Fernanda da Silva
Cristiane Theiss Lopes
71
homoafetividade e proporcionando um debate relevante e
essencial para a conquista de direitos civis.
No interior do debate sobre a homoafetividade, um grupo
de pessoas ligadas à Universidade Regional de Blumenau (FURB)
vem se aplicando ao estudo de temáticas relativas à questão de
gênero e suas implicações sobre as pessoas e a sociedade. O
presente artigo é parte do projeto de pesquisa ‘Outras Vozes:
Análise de Narrativas Homoafetivas Femininas em Blumenau’,
projeto financiado pelo CNPq, em parceria com a Universidade
Regional de Blumenau, com duração de dois anos, estando na
fase final de seu desenvolvimento.
O viés metodológico da pesquisa é a história oral. Com ele
se delineia a possibilidade de restituir dignidade às vozes que a
história às vezes silencia. Assim, busca mostrar e problematizar,
nos modos de subjetividades, como as mulheres homossexuais
têm superado o preconceito de si, dos outros, para si e para os
outros. A análise delineia a cartografia de uma sociedade selada na
regulamentação da sexualidade.
O período histórico abrangido é de quatro décadas, vai de
1970 ao tempo presente, na região de Blumenau. Ao total, doze
entrevistas foram realizadas, no ano de 2011 e 2012, com
mulheres homossexuais; seis delas com casais e seis com mulheres
solteiras. A faixa etária das entrevistadas situa-se entre 17 e 46
anos.
Do ponto de vista teórico, os dados coletados nas
entrevistas são discutidos sob a perspectiva dos estudos de
Gênero, compreendendo um olhar interdisciplinar, na
colaboração da filosofia (Celso), da história (Carla) e da educação
(Cristiane). O objetivo central da proposta é constituir condições
para narrativas de vida deslocadas da normatividade
72
convencionada pela tradição historiográfica, erigida na
heterossexualidade. Ouvir a voz de pessoas comuns, restituir-lhe
sua autoria, prestar atenção nas experiências singulares que se
apresentam em seus relatos, discutir o significado das dores,
alegrias, preconceitos e conquistas destas pessoas efetiva um
âmbito de trabalho intelectual atento para o presente, com suas
ambiguidades e devires.
Embora cientes de que o resultado do trabalho de
pesquisa e escrita extrapola e modifica as intenções de seus
autores, destacamos como objetivos específicos do artigo: discutir
as categorias públicas “mulher”, “homossexual” e “feminino”;
problematizar o preconceito, a fim de obter um olhar múltiplo e
questionador do engendramento que prolifera o ódio, insultos e
injúrias pela constituição da homofobia; produzir conhecimento e
discutir a questão das homoafetividades femininas, ao deslocar
“verdades” estabelecidas tanto em nível local (Blumenau), quanto
em espaços mais abrangentes.
Afetos e afetividades, sexualidade e gênero, sujeito e
subjetividade não são, segundo o pressuposto desta pesquisa, entes
“naturais”, aguardando para serem descobertos, estudados e
conhecidos pelo trabalho intelectual. Eles são conceitos
construídos historicamente, resultantes da trama social, dos
confrontos, conflitos, disputas, mas também das alianças,
amizades e parcerias. Mas não são conceitos abstratos e
indiferentes ao acontecimento social. São, ao contrário,
dispositivos estratégicos de poder. É no seu meandro que se
desenrola boa parte da constituição de nós mesmos. O modo
como estes conceitos são definidos e praticados sofre, por um
lado, a interveniência do debate e das disputas públicas sobre eles
e, por outro lado, tem efeitos práticos sobre como vivemos, nos
73
conduzimos, amamos, sofremos, nos governamos e somos
governados. Assim, o presente trabalho não é neutro ou passivo;
insere-se ativamente nas tramas e disputas do presente. (Kraemer;
Silva; Lopes, 2012)
74
amizades no bairro ou rua, ou mesmo o convívio entre parentes,
primos e etc.:
75
não se ‘enquadra’ nos padrões estabelecidos, conforme o
testemunho de Laura ao relacionar infância e homossexualidade:
8
Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. TITULO III.
76
obrigatória na vida de toda pessoa, na infância e adolescência,
caso alguma criança não frequente a escola o responsável pode até
ser preso. Desta forma é perceptível a importância desta
instituição e o fato de se tornar marcante na vida das pessoas.
A necessidade e imposição de escolarização, faz-nos
questionar o seu papel como instituição disciplinadora e
normatizadora. Importante lembrar que, dentro da sociedade, a
escola não é neutra. Ela é construtora de conhecimentos de si, dos
outros e do mundo social. Ao vivenciar as experiências cotidianas
de socialização que a escola proporciona, constituem-se na criança
os saberes básicos, suas referências de mundo social, político,
afetivo, linguístico, ético, sobre os quais se pautam sua conduta e
decisões futuras. É nesse sentido que a escola atua diversos
dispositivos de poder, constituintes de formas específicas de
governabilidade das condutas. A escola produz e reproduz práticas
e discursos assumidos como verdades, o que a torna, além de uma
instituição de educação, também um espaço político. Quem não
se lembra do tempo de escola?
Nesse contexto, a escola tem uma função social para além
do transmitir saberes e informações, ela educa, disciplina,
normatiza e normaliza. Torna o sujeito, naquilo que se
compreende como apto a viver em sociedade, ou seja, uma
instituição “civilizadora”.
77
legitimando relações de poder, hierarquias e processos
de acumulação. (Junqueira, 2009)
78
importante do que a compreensão de questões íntimas.
(...) tudo isso faz com que as questões da sexualidade
sejam relegadas ao espaço das respostas certas ou
erradas. (Britzman, 2000)
79
As questões que se colocam à escola, se levarmos em conta o
ponto de vista das pessoas que não se enquadram no estereótipo
heterossexual instituído pela moral oficial, são relevantes. Todas
as pessoas são atingidas pelo tema da sexualidade, em qualquer
idade, mas na infância e na adolescência a vulnerabilidade é ainda
maior. As violências originadas pela homofobia resultam de
processos educacionais estereotipados. Não adianta lamentar a
agressão praticada por indivíduos ou grupos a pessoas com
sexualidades diversas. É necessário trazer a discussão para a
própria experiência, para o interior dos espaços educacionais,
provocar o debate e a reflexão. Na escola, até o presente
momento, o enfrentamento da homoafetividade, a superação dos
preconceitos e das agressões está pesando exclusivamente sobre as
vítimas.
80
pesquisa, no Brasil, 87% da comunidade escolar – sejam alunos,
pais, professores ou servidores – têm preconceito contra
homossexuais.
81
lugar do conhecimento mantém, com relação à
sexualidade, como lugar do desconhecimento e da
ignorância (Louro,1999).
82
diferença e a igualdade civil, não é orientar para uma opção
sexual, e sim lutar contra o preconceito estabelecido na sociedade.
A partir de uma série de equívocos, preconceitos e moralismos
relega-se a discussão da sexualidade para a vida privada,
83
completam mutuamente: mutismos que, de tanto
calar-se, impõe o silencio. Censura. (Foucault, 1999)
84
preconceito.” Outra ainda afirmou: “Conheço muitas mulheres
que só viraram isso porque tiveram alguma decepção com
marido, que traía, tratava mal e, aí ficou assim.” (Grifo nosso)
A convicção sobre o isso (doença, desvio, decepção
amorosa, coisa a ser tratada) relativo à homoafetividade, vindo de
profissionais graduadas em universidades conceituadas é chocante.
O preconceito e a desinformação, aliados ao moralismo que
silencia qualquer discussão acaba reafirmando o discurso
heteronormativo. Nesses momentos percebe-se que a homofobia é
o medo de que a identidade homossexual seja reconhecida; ela se
manifesta, entre outros aspectos, pela angústia de ver desaparecer
a fronteira e a hierarquia da ordem heterossexual. (Borrilho,
2010)
Nessas falas é perceptível a falta de preparo dos professores
para lidar com a discussão da sexualidade. É visível a necessidade
de grupos de discussões, orientados por pesquisadores da área,
junto à Rede de Ensino de Blumenau, pois com esse
desconhecimento de políticas e programas de combate ao
preconceito, dificulta o reconhecimento da homofobia presente
no cotidiano escolar. E evidencia a necessidade do chamado kit
anti-homofobia e outras políticas já existentes, porém que ainda
não tiveram alcance a todo país onde possibilite debates, tanto
entre os alunos e professores quanto com os próprios professores
entre si, assim realizando o que é proposto no PCN vol.10, que
aborda a Orientação Sexual como um tema transversal, que deve
estar presente no currículo escolar. Ao tratar a sexualidade o
documento denuncia a atitude comum da escola em ocultar e
reprimir as questões que se referem à sexualidade e em atribuir
tais discussões exclusivamente ao espaço familiar, ou seja, que o
assunto se refere ao campo privado. O documento traz que essa
85
discussão também deve ser realizada no espaço escolar definindo
assim questões de gênero e construção sociocultural do que é ser
homem e mulher, e mostra também o papel do professor nessa
construção.
86
ao feminino, posicionando-se contra discriminações a eles
associadas.” (Brasil, 2000, p. 133)
Abordando assim, outra forma de se pensar as relações
afetivas e a sexualidade que não seja apenas a heterossexual. É
“ingenuidade” pensar que ao se debater, ou mesmo orientar, sobre
a sexualidade na escola, as discussões ficam apenas na sala de aula,
é perceptível que se envolve também a comunidade (de forma
indireta ou direta), que são as famílias desses alunos, que em
muitos casos convivem com o preconceito dentro de casa.
Educação e Família
87
isso se tornam conhecido a todo indivíduo não só pela escola mais
por outras instituições importantes como a família, por exemplo.
A família, é um conceito também bastante amplo onde,
hoje não se cabe mais dizer que é constituída por pessoas do
mesmo sangue. As famílias atualmente podem ser constituídas de
diferentes maneiras, quebrando antigos padrões sociais ainda com
um pouco de resistência ao olhar de alguns, mas já são aceitas. É
no lar familiar que se tem contado pela primeira vez com a
cultura, esta que varia de regiões, tradições e costumes. É na
família que você recebe a primeira educação e esta lhe insere na
sociedade que em conjunto com outros fatores constrói por assim
dizer sua subjetividade. E assim é mutável vista que é, produtora e
produto de seu tempo e cultura. É no seio familiar que se tem os
primeiros contatos com a cultura e se aprende como se portar em
sociedade. “Olha, eu desde pequenininha, assim, eu sempre fui
bem feminina, meiguinha, aquelas coisas, então a minha mãe
sempre teve aquelas coisas de sonho de a menina que vai casar, ter
filhos, não sei, tudo bem, não que não role, mas aquela coisa
tradicionalzinha, assim, sempre teve (Samara, Redatora
Publicidade, 21 anos) È na família também que experimentamos
as relações de afeto e segurança. Porém nesse ultimo não se pode
pensar “inocentemente”, pois é na família também que
encontramos a fonte de muitos preconceitos e violências que
muitas vezes são silenciados.
88
contribuíram com certeza pra todo o meu processo de
me achar inferior, de insegurança, de medo, e eu
acredito que até hoje” (Virgínia, Assistente Social, 34
anos)
89
ateísmo. É importante lembrar que a igreja também é um
dispositivo de poder que cria discursos de verdade, assim como o
Estado organiza e trabalha na construção dos sujeitos que dela
participa. “Minha mãe: Ah, isso não á natural, isso não está na
bíblia e o homem foi feito pra mulher e a mulher pro homem, se
não for, não "encaixa". (Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos)
Os professores muitas vezes se mostram contra as
discussões em sala quando o assunto é sobre homossexualidade,
tendo uma postura de não alteridade, onde muitos ainda têm na
religião a única base de argumento para essas questões, mesmo
sabendo que o estado é laico e a escola sendo ela publica não deve
favorecer nenhuma religião.
É necessário o professor ter essa consciência e refletir sobre
sua prática de maneira a entender que sua ação pedagógica não é
neutra, mas sim política, que suas ações têm influencia na
construção do conhecimento dos alunos assim como também a
dele mesmo e nesse ato de ensinar e aprender é necessário um
estudo contínuo que busque sempre praticas que estejam de
acordo com o que é proposto nos documentos oficiais e leis
educacionais que tem como objetivo o combate ao preconceito
seja ele qual for.
Essa relação entre a religião e a prática pedagógica ainda é
muito forte na realidade escolar. Sabemos que isso vem desde
jesuítas e permanece até hoje. Muito se vem discutindo, são vastas
as teorias e praticas que transcendem essa maneira de pensar a
escola e o ensino, porém se tem esse “vício” de misturar política
com crença religiosa que faz com que não se cumpra o que é
discutido e pensado de maneira democrática e laica pelo Estado.
Centenas de escolas públicas em pelo menos 11 Estados do Brasil
não seguem os preceitos do caráter laico do Estado e impõem o
90
ensino religioso, alerta a Organização das Nações Unidas. (Chade,
2011), vale ressaltar que entre os 11 estados, está o de Santa
Catarina. Segundo a relatora da ONU que preparou o
documento, Farida Shaheed “alerta que intolerância religiosa e
racismo "persistem" na sociedade brasileira” e também para
Shaheed:
91
gostar? Se eu tiver gostando, eu não estou matando,
não estou fazendo nada, então beleza...a pessoas
acham do jeito que quiser e eu vivo do jeito que quiser.
Pra mim, eu acho normal. (Andressa, Assistente Social,
34 anos)
92
economia. Como lembra Reich, “é por isso que o Estado
autoritário tem o maior interesse na família autoritária; ela
transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologia do
Estado são moldadas” (Reich,2001 p.28) Assim, completa, “a
família é o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança
deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o
ajustamento geral que será exigido dela mais tarde”. (Idem, p.29)
A família impõem certos papéis onde não é necessária a
fala, pois é em ações tidas como atos “naturais” que se mostra o
que é “certo” e “errado”. Papéis este que legitima o binarismo do
gênero e tem como a única sexualidade possível a heterossexual.
Meninos são vestidos de azul e meninas de rosa, não só roupas,
mas decorações e brinquedos, há todo um comércio para
contribuir e manter a heteronormatividade.
Esse discurso heteronormativo, onde se tem uma
dicotomia do genero, homem/mulher, menino/menina, ja de
muito cedo é apresentada as crianças como uma verdade. Assim as
enunciações limita as possibilidade, cria indentidades que se
mostram e localizam. Assim “todo o sitema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropiação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”
(Foucault, 1971, p. 44). Nessa relações muitas vezes esta presente
a injuria, esta que “molda as relações com os outros e com o
mundo. E por conseguinte, molda a personalidade, a
subjetividade, o próprio ser de um indivíduo” (Eribon, 2008)
nessa relação se tem uma forma de violência que atua no
disciplinamento e molda o corpo do sujeito. “Minha mãe
mandava, ficava mandando andar com o livro na cabeça porque
ela ficava preocupada com o jeito que eu andava, sabe, meu pai
ficava brigando comigo ‘Seja mais feminina!’” (Cláudia,
93
Musicista/Professora de Música, 29 anos) Essa fala da entrevista
mostra claramente que “ao classificar os sujeitos, toda a sociedade
estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar
identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas,
também distingue e discrimina” (Louro, 2000 p. 6).
Então, a família tendo uma concepção de gênero
produzido dentro de uma lógica dicotômica implica em uma ideia
singular de masculinidade e feminilidade, e supõe ignorar ou
negar todos os sujeitos sociais que não se “enquadram” em uma
dessas formas (Louro, 1997) “Daí... cresci, aquela pressão: Ah, tu
nunca teve um namorado? Tu nunca teve namorado?”(Aline,
Estudante/Bolsista, 17 anos). Só que essa pressão tem efeito nos
corpos dos sujeitos a que se obrigam a tentar se enquadrar nesses
padrões estabelecidos “depois na minha adolescência, com quinze,
dezesseis, eu lembro que eu tinha a coisa de querer manter um
casamento, de querer casar, namorei alguns meninos... tinha
atração sexual, tinha desejo sexual pelos meninos também, mas na
minha mente, passava a ideia de viver com meninas.” (Laura,
Pedagoga, 34 anos)
Nesse caso se percebe a violência “travestida” onde não é
física nem verbal, mas como uma relação que produz no corpo da
entrevistada sensações que implicam em seus atos, no caso
permanecer em silêncio. Mas podemos perceber em outro caso
que quando não reprimido, não silenciado suas intenções,
também pode haver violência como é o caso da Daiane; “minha
irmã me apoiou muito, minha mãe, mais ou menos, até na época
quando eu falei pra ela, levei um baita de um tapa no meio da
cara.” (Paloma, Empresária, 24 anos) Alem da violência física, há
também a verbal que usa argumentos que colocam o homossexual
como uma categoria inferior, de forma preconceituosa, com
94
relação a outros preconceitos “É, o meu pai, pra ele era pra eu
casar, ele prefere que eu casasse com um traficante, morasse na
favela, tivesse dez filhos, fosse ver meu marido na cadeia, mas que
não fosse lésbica” (Paloma, Empresária, 24 anos) Ou seja não
importa a situação que a filha esteja, mas a mesma deve estar na
norma heterossexual.
Assim o “desviante” é trazido para a ordem familiar
heterossexual vista ai o preconceito, a homofobia. Para Daniel
Borrillo, “a homofobia é o medo de que a valorização dessa
identidade seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros
aspectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a
hierarquia da ordem heterossexual” (Borrillo, 2010 p. 17). Porem
como ele mesmo coloca, é uma “verdadeira alienação dos
heterossexuais” que exprimi-se no cotidiano, insultos e injurias,
algo consensual, tido como senso comum e que já é familiarizado.
(Borrillo, 2010). Em uma de suas falas Aline relata: “o resto da
minha família, não sabe, porque eu tenho medo da reação deles, a
família da minha mãe se souber, [faz sinal de cortar o pescoço] eu
estou ferrada, literalmente... Eles são homofóbicos, bem
homofóbicos (Aline, Estudante/Bolsista, 17 anos).
95
como realidade possível. A instituição escolar, ao identificar os
sujeitos pela classe social, etnia e sexo, historicamente tem
contribuído para (re)produzir e hierarquizar as pessoas, fazendo
do diferente um desigual, um inferior. Essa tradição deixa à
margem aqueles que não estão em conformidade com a norma
hegemônica. Desta forma, não contempla a inclusão da
diversidade sexual, proposta na atualidade. (Santos; Ramos;
Timm; Cabral; Lobo, 2008)
A ausência de discussão sobre a diversidade também se faz na
Universidade. No curso de Pedagogia, onde se formam todas as
professoras e os professores para trabalhar nos primeiros anos
escolares com todas as crianças, não se tem uma disciplina, tópico
de ementa ou um espaço adequado para se discutir, pesquisar e
socializar informações acerca da sexualidade, da homoafetividade,
propiciando o debate sobre a diversidade. Quando o tema é
proposto, por iniciativa pessoal de alguma professora ou professor,
ou mesmo por algum colega de turma, predomina o silêncio sobre
o assunto, denotando, mais uma vez a censura velada. Silêncio
travestido em uma suposta prática do ‘politicamente correto’:
96
Esse “incômodo” que é causado pelo diferente, muitas vezes o
coloca como uma representação do errado. Na relação com outro
tenta se justificar essa diferença colocando como base um padrão,
sendo esse o heterossexual.
Ao professor cabe conhecer e reconhecer a diversidade. É
seu papel educar para a diminuição da agressão, da violência
praticada cotidianamente sobre o diferente. Mas esse não é um
papel só dele; envolve a todos que trabalham e participam do
ambiente escolar. Infelizmente, a escola continua sendo apenas o
espaço da heteronormatividade. Segundo Louro (2000),
97
Muitas vezes, os pais desejam que a escola seja uma extensão de
seus preconceitos, que vá ao encontro do que eles desejam e
transmitem para seus filhos em casa. Nas falas dos alunos é visível.
Um exemplo disso é o caso de uma professora de um Centro de
Educação Infantil público de Blumenau que relatou a seguinte
conversa com sua aluna de três anos:
98
O corpo heterossexual, desejado, visto como normal e
disciplinado, serve como referência e como padrão para a
educação. Assim, a partir do padrão, se desqualifica aqueles que
não se enquadram. “Criando assim divisões e atribuindo rótulos
que levam a fixar identidades. Definindo separa, e de formas sutis
ou violentas, também distingue e descrimina”. (Louro, 2000 p.
11)
99
padronização, onde não há espaço para o diferente, espaço negado
à aquele que não está dentro do padrão.
Na escola e na universidade, enquanto produtoras de
conhecimentos e saberes, se faz necessário promover discussões e
questionamentos sobre a diversidade. Não é mais aceitável um
discurso pautado na lógica da heteronormatividade afetiva, que
homogeniza. Se faz necessário investir na compreensão da
diversidade, novas formas de governamentalidade das condutas.
Nessa lógica se vai além do hetero e do homo, pensa-se a partir de
identidades múltiplas que transcendem a dicotomia de
homem/mulher, feminino/masculino. Entende-se que a educação
é o meio para se trabalhar a questão da aceitação, combatendo a
intolerância às múltiplas diversidades, sendo uma delas a de
gênero. Deste modo se pode positivar as relações na diversidade.
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100
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Entrevistas
103
história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele
Lessa; Blumenau, 27 de fevereiro de 2011.
104
Rafaela (Autônoma, 42 anos) (pseudônimo/sigilo). Entrevista em
história oral para a pesquisa: Outras Vozes, concedida à Fabiele
Lessa; Blumenau, 16 de abril de 2011.
105
106
As Diretrizes Curriculares Paranaenses da Educação
Básica em História: um Balanço Educacional
Necessário [2004-2014]
Everton Crema
107
necessário balanço da implementação das Diretrizes Curriculares
em história. Buscamos investigar como o documento orientador
transformou o ‘pensar e o fazer’ do professor de história, na sala
de aula e as condições de ensino decorrente desse processo.
Precisamos compreender historicamente o contexto de mudança
no ensino de história, o lugar do professor, do aluno e da escola, e
as condições objetivas de participação/resistência possíveis para
uma ‘educação histórica’.
O Balanço
108
desmobilização social e privatização dos espaços públicos. O
resultado prático desse processo foi à fragilização das políticas
educacionais paranaenses, que almejavam uma reforma e
valorização educacional nos anos pós-ditadura. A sucessão política
recolocou a questão educacional em debate.
109
sobrepondo-se a isso ainda podemos perceber seu caráter
prescritivo, e a ausência de diálogos com o professorado,
problemas de um modelo nacional que desconsiderava a cultura e
história regional. O processo de reformulação curricular das
escolas públicas do Paraná construiu-se em seis fases, descritas
aqui sucintamente:
110
Na elaboração das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do
Estado do Paraná foram construídos grupos de trabalho das
disciplinas especificas, congregando professores da área de
conhecimento especifico, representantes da SEED – Secretaria de
Estado da Educação e NREs – Núcleos Regionais de Educação, a
ideia defendia que “o coletivo da escola possa, com subsídios e
autonomia construída, produzir sua proposta educacional.”
(Paraná, 2006, p. 4)
Desse esforço, originaram-se especificamente as Diretrizes
Curriculares da Educação Básica em História, apresentadas
definitivamente em 2008, apesar de diversos problemas, limites e
criticas, à sua construção e implementação, entendemos que as
Diretrizes Curriculares da Educação Básica em História,
alcançaram um significativo avanço educacional e, sobretudo
definiram de forma inequívoca o tipo de educação e o perfil do
aluno que frequenta e depende da escola publica, como meio de
transformação da própria realidade. “Um sujeito é fruto de seu
tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é,
também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo
como o compreende e como dele lhe é possível participar”
(Paraná, 2008, p. 8).
Ou seja, as Diretrizes Curriculares em História são um
documento fundante e orientador das práticas e saberes de
professores e alunos, pois a conformação do modelo educacional
interfere e orienta diretamente o cotidiano escolar, ao mesmo
tempo em que dele é reflexo. Ao mesmo tempo, a escola deve ser
percebida como espaço de continuado confronto e diálogo, entre
os conhecimentos sistematizados e os conhecimentos do cotidiano
popular: “As propostas curriculares e conteúdos escolares estão
intimamente organizados a partir desse processo, ao serem
111
fundamentados por conceitos que dialogam disciplinarmente com
as experiências e saberes sociais de uma comunidade
historicamente situada” (Paraná, 2008, p. 30).
O professor, ao pensar a prática de ensino, deve ter em
mente os sujeitos e os fundamentos teóricos da educação, as
dimensões e formas de conhecimento e os fundamentos teóricos
metodológicos da disciplina que leciona. Deve ainda dominar os
procedimentos do pensamento histórico, bem como conhecer em
nível suficiente os teóricos e correntes historiográficas que
sustentam a formação do conhecimento histórico. Para o aluno, a
construção do conhecimento histórico mediado pela realidade
social e cultural, passa pelo formato educativo e pelas ciências de
referência, não diferindo nesse processo os princípios
epistemológicos e cognitivos.
A necessidade de ponderar
112
Existe uma forte crítica ao distanciamento da produção
historiográfica da educação básica na disciplina de História, fruto
de uma hierarquização de saberes e de uma incompreensão da
relação da produção histórica com o ensino. Devemos olhar para
o processo de construção das Diretrizes Curriculares como
ruptura e superação de modelos anteriores, em seus diversos
níveis. Para Schmidt, (2009) a criação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998) partiu do problema do fracasso e
repetência escolar, para propor um novo projeto de ensino em
nível nacional. Desconsideraram totalmente o contexto histórico-
social e as potencialidades da educação, como um poderoso
processo de mudança social e autonomia política. Apresentaram
um modelo educacional sem um debate sobre educação, seu
significado e objeto social, e a preocupação com a repetência
sistematizou o debate de forma pontual e interventiva, focada
numa ‘profilaxia social’.
Se pensarmos em termos comparativos, os diferentes
projetos educacionais, contextualizados, sejam os Parâmetros
Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares do Estado do
Paraná, percebemos concepções de modelos teórico-
metodológicos distintos. Precisamos ter em mente que suas
concepções de ensino se materializaram em programas de ensino e
processos de aprendizagem postos ‘no chão da sala de aula’ e a
comparação entre os modelos citados somente adquire significado
quando podemos perceber os resultados reais de suas
implementações. Também precisamos perceber que a definição de
‘sucesso escolar’ é muito difusa e em geral reflete seu modelo
educacional. Em termos de documento, como proposta de
transformação as Diretrizes Curriculares da Rede Pública de
113
Educação Básica do Estado do Paraná, inova sobre diversos
aspectos quando é pensada e construída socialmente:
114
seja, o aprender ‘história’ deve passar pelo ensinar história,
historicamente, desde que compreendida a relação com a ciência
histórica:
115
‘Nova História Cultural’ e ‘Nova Esquerda Inglesa’, mediaram os
interesses dos educadores, e da política governamental contida no
documento, adequando ao projeto curricular à importância e
significância desses referenciais dentro do campo da história. De
forma geral a análise e balanço dos resultados das Diretrizes
Curriculares de História para a educação básica paranaense se
apresenta de forma urgente para a investigação do campo
educacional, e se enquadra a linha de pesquisa cultura, escola e
ensino.
Questões
116
integração mediada, sobretudo, se pensarmos o campo
educacional e os papéis dos ‘sujeitos sociais’ inseridos. Entretanto
a ‘mediação’ não deve ser aqui entendida como simetria, pois as
relações de interseção entre esses universos, frequentemente, por
vezes se constroem assimétricas e desproporcionais. O desejável
seria uma aproximação de resultado entre a teoria e prática,
currículo e ensino, por vezes tão próximos, por vezes tão distantes:
117
de uma teoria ou corrente histórica, visto que o surgimento de
variações explicativas não demonstra o fortalecimento de uma
teoria ou corrente, mas sim seu esvaziamento, sobretudo, porque
a variedade interpretativa aponta os limites, fragilidades e
inadequações do pensamento histórico contextualizado e a
tentativa de superá-los. Segundo Rüsen, surge dessa necessidade
de superação, uma crítica de sentido entendida como um novo
paradigma. Nas palavras do autor:
118
Os significados do que é “aprender História” têm
acompanhado e fundamentado os processos de
produção da História enquanto disciplina escolar no
Brasil. Nesse sentido diferentes abordagens da
aprendizagem histórica têm servido de referência para
questões, como propostas curriculares e manuais
didáticos destinados à formação de alunos e
professores. (Schmidt, 2009, p. 21)
119
colocaram em questão a habilidade de cientistas, estadistas e
professores de escapar aos preconceitos políticos e raciais.”
(Appleby; Hunt; Jacob, 2011, p. 365). A inflexão do campo
histórico foi em direção das ‘mentalidades’, entendidas em relação
“aos modos de pensar e de se comportar dos sujeitos em
determinadas épocas e locais. A mentalidade geralmente se
articulava a uma temporalidade de longa duração em relação aos
acontecimentos.” (Paraná, 2008, p. 49).
O surgimento da mentalidade e da longa duração, somada
a perspectiva de fragmentação pela escolha de novos objetos,
deslocou o fazer história. Segundo Novais, (2013) ao invés de
estudar Estados, estruturas, produção, consumo e poder, a
história passou a estudar os modos de sentir, os amores e os
humores, conceitos e objetos tradicionais na pesquisa histórica
foram abandonados.
Dessa maneira, os fundamentos teórico-metodológicos da
Nova História vêm de encontro e sustentam às perspectivas dos
conteúdos estruturantes, conteúdos básicos e das expectativas da
aprendizagem do Caderno de Expectativas de Aprendizagem da
Diretriz Curricular de História, além disso, a noção de fonte foi
qualitativamente ampliada, ao mesmo tempo em que recortes
regionalizados permitiram o desenvolvimento da história regional
e local. De outro lado, a crítica que se faz a Nova História pontua
a desvalorização da ação política dos sujeitos históricos,
desconsiderando suas condições objetivas de ação/produção, em
detrimento das estruturas mentais, construindo compreensões
históricas fragmentadas, distantes do sujeito em sua
individualidade e contexto histórico. Essa fragmentação do campo
histórico reside na crítica de François Dosse (1992), de uma
‘História em migalhas’:
120
A História se tornou um show permanente, em que
produções altamente impregnadas de fantasmagoria se
sucedem umas após as outras, numa cadência
acelerada, e em vedetes de estilo mais coruscante
incorrerem no risco de se desgastar dentro de poucos
anos. (Martin; Bourdé, 2013, p. 62)
121
permitindo a escrita de uma historiografia renovada e
comprometida teórica e conceitualmente. Uma ‘história das
práticas’ ou, segundo Chartier (1990, p. 19):
122
feita na cabeça e bem pode assentar-se no papel
durante alguns momentos. Mas não passa de uma idéia
na cabeça. Quando procedemos ao exame de uma
sociedade real, seja qual for, rapidamente descobrimos
(ou pelo menos deveríamos descobrir) a inutilidade de
se esboçar a respeito de uma divisão assim.”
(Thompson, 2001, p. 254-255)
123
numa visão fechada e categorizada, mas sim, dentro de um
processo social real, onde homens e as mulheres vivem e lutam,
construindo a percepção dos espaços e lugares sociais, que podem
e desejam ocupar. “Um sujeito é fruto do seu tempo histórico,
das relações sociais em que está inserido, mas, é também, um ser
singular, que atua no mundo a partir do modo que o compreende
e como dele lhe é possível participar.” (Paraná, 2008, p. 14)
124
significa reconhecer que se realiza algo mais do que
uma compreensão automática e imediata e que este
algo mais m deve ser pensado como operação
metódica. Segundo, porque reconhecer a operação
hermenêutica nos abre a análise da tradição
hermenêutica. A análise desta tradição nos possibilita
definir como devemos proceder durante um esforço de
compreensão das ideias do outro, evitando assim
cairmos em equívocos já superados. (Saddi In Barca,
2011, p. 124)
125
Outro aspecto relevante da construção do conhecimento
histórico é a ‘consciência histórica’; segundo Rüsen (2001, p.
59) “A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo
homem para tornar suas intenções de agir conformes com a
experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de
interpretações das experiências do tempo”. Segundo Husbands
(2003 In Schmidt, 2009) a importância da narrativa é diversa
para historiadores e alunos. Para os alunos as narrativas históricas
criam novas compreensões históricas individuais, já para os
historiadores as narrativas, os permitem criar novos
conhecimentos históricos. Portanto a construção de narrativas
históricas na sala de aula evidencia a experiência histórica do
aluno, ao mesmo tempo em que permite uma polissemia
narrativa, onde a validade do conhecimento histórico é mediado
pela narratividade construída. Por último, e também de forma
sucinta, a ‘Matriz Disciplinar’ de Rüsen representa:
126
conhecimento histórico, sendo respectivamente as carências de
orientação da vida pratica, e funções de orientação cultural. Já os
fatores especializados da ciência histórica se apresentam em
perspectivas de interpretação, métodos e regras da pesquisa
empírica e as formas de apresentação. Na inter-relação dos
campos existe a possibilidade de se analisar a constituição histórica
de sentido, baseado na coerência dos fatores e das dimensões
apresentadas. Para Rüsen (2001) a Matriz Disciplinar analisa os
processos cognitivos da história, o quadro teórico referencial das
práticas do pensamento histórico e as representações
historiográficas, numa ‘mediação’ entre a ciência de referência, a
vida prática e as formas de compreensão da história.
O projeto de pesquisa buscou apresentar sua adequação a
linha de pesquisa e o debate teórico metodológico, que envolve a
‘educação histórica’ e as Diretrizes Curriculares de História do
Paraná. Sobretudo, a necessidade investigativa premente, sobre o
tipo de ‘educação histórica’ que temos e qual a ‘educação
histórica’ queremos.
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127
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UMA PRODUÇÃO:
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