1 PB

Você também pode gostar

Você está na página 1de 16

Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.

IDENTIDADES NEGRAS EM
MOVIMENTO:
ENTRE PASSAGENS E
ENCRUZILHADAS

BLACK IDENTITIES IN MOTION:


BETWEEN CROSSROADS AND
PATHWAYS

Renata de Lima Silva1


José Luiz Cirqueira Falcão2

1
Renata de Lima Silva possui graduação em Dança, Resumo: A temática da afirmação da identidade negra
pela Universidade Estadual de Campinas (2001), mes- vem sendo debatida no Brasil, com maior consistên-
trado em Artes (2004) e doutorado em Artes (2010), cia, a partir da década de 1970. Embora essa afirmação,
também pela Unicamp, e pós-doutorado, pelo Instituto referenciada por discursos político-ideológicos, tenha
de Artes da Unesp (2011). É professora adjunta do cur- sido importante para a ampliação de direitos e para a
so de licenciatura em Dança da Universidade Federal de adoção de políticas públicas para a população negra,
Goiás. Líder do grupo de pesquisa Núcleo de Investiga- neste artigo, essa temática é analisada a partir de sua
ção e Pesquisa Cênica Coletivo 22. Treinel de Capoeira relação orgânica com o corpo, nas manifestações de
do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô. Dança Afro, de Congada e de Hip Hop. Podemos veri-
2
José Luiz Cirqueira Falcão possui graduação em ficar que, para além de um discurso político-ideológico
Educação Física, pela Universidade Católica de Brasília singular, a identidade negra se afirma, diversamente, via
(1982), mestrado em Educação Física, pela Universi- performances culturais, seja pela exaltação mítica do
dade Federal do Rio de Janeiro (1994) e doutorado em continente africano, no caso da Dança Afro; pelo can-
Educação, pela Universidade Federal da Bahia (2004). to de lamento e devoção aos santos católicos, no caso
Atualmente, é professor associado II da Universidade do Congado e pelas técnicas modernas de comunicação
Federal de Goiás. Tem experiência na área de Educa- dessacralizadas do movimento Hip Hop.
ção Física, com ênfase em capoeira, lutas e prática ped-
agógica, atuando principalmente nos seguintes temas: Palavras-chave: Identidade negra. Corpo. Performan-
capoeira, educação física, educação, cultura e sociedade. ce.
Mestre de capoeira do grupo Beribazu.
98
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Abstract: The assertion of Black identity has been in populares afro-brasileiras, especialmente aquelas
discussion in Brazil with greater consistency since the em que é comum se cantar e dançar para rezar e,
1970’s. Although these affirmations referenced by lar- ainda, intersecionam a temática da devoção, presen-
ger political and ideological discourses have been im- te no Congado, por exemplo, com a noção de “va-
portant for the expansion of rights and the adoption diação”, própria do samba de roda e da capoeira.
of public policies for the Black population, this article
Tecer algumas reflexões e argumentos sobre
analyzes the issue from its organic relationship with the
body, and the manifestations of the African dances of processos identitários, edificados no contexto de
Congada and Hip Hop. We can see that, beyond a sin- manifestações típicas da cultura afro-brasileira,
gular political-ideological discourse that Black identity frente a uma plateia de negros e negras empode-
is claimed in a diversified way via cultures performan- rados e autoconfiantes, na “Roma Negra”,4 foi um
ces, either by the mythical exaltation of the African grande desafio, já que aquele espaço e acontecimen-
continent in the case of African dance; the mournful to expressavam uma identidade negra substancial-
singing and devotion to Catholic saints in the case of mente diferente daquela que seria apresentada na
Congada; and the modern techniques of communica- comunicação, a partir da experiência com o Conga-
tion desecrated in the Hip Hop movement. do mineiro e goiano, que, por sua vez, fez parte do
processo de criação do videodança Passagem.
Keywords: Black Identity. Body. Performance.
Cumpre notar, de antemão, que, numa constan-
te tensão entre o imanente e o transcendente, e de
Introdução uma forma bem peculiar, cultuando ancestrais, sa-
cralizando o cotidiano, organizando-se em comu-
O presente artigo, escrito a quatro mãos, desdo- nidades e linhagens, determinados segmentos ne-
bra-se a partir da comunicação Passagem – entre devo- gro-africanos consolidaram processos identitários
ções e vadiagens, apresentada por um dos autores no bem distintos daqueles referenciados pela cultura
Colóquio Internacional de Arte Negra: Corpo, Performance europeia e norte-americana. Essas construções
e Ancestralidade, realizado entre 13 e 15 de outubro identitárias nem sempre têm sido compreendidas
de 2014, em Salvador/BA. Antes de adentrarmos pelos pesquisadores ocidentais que, segundo Luz
propriamente o tema que trataremos neste escrito, (2000, p. 92), “visualizam o processo social africa-
consideramos pertinente apresentar o contexto em no através dos cânones positivistas da ciência eu-
que o mesmo foi construído. ropeia, sobredeterminada pelos enquadramentos
A comunicação no evento citado gravitou em evolucionistas e etnocêntricos do contexto históri-
torno da exibição do videodança Passagem, produ- co colonial ou neocolonial”.
zido pelo Núcleo Coletivo 22.3 As reflexões arrola- Apesar da comunicação em questão ter sido
das acerca do processo de criação deste trabalho se adequada ao contexto do Colóquio, por tratar da
circunscreveram em torno da construção de pro- identidade negra que se expressa nas passagens e
cessos identitários em manifestações das culturas encruzilhadas das manifestações oriundas da cul-
tura afro-brasileira, para o escopo deste artigo que-
remos expandir e problematizar a discussão sobre
3
O Núcleo Coletivo 22 é uma companhia de artes que a identidade negra, em termos de pluralidade, bus-
envolve artistas-pesquisadores da cidade de Goiânia e cando compreender a relação corpo e identidade
de São Paulo, onde o grupo foi criado, em 2001. A par- negra, que ora se apresenta, de maneira homogê-
tir de 2010, o grupo vinculou-se à Universidade Federal
de Goiás, transformando-se em grupo de pesquisa, de
produção artística e de extensão. Entre as produções 4
Expressão originalmente utilizada pela sacerdotisa
do grupo, destaca-se o vídeo-dança Passagem, em que Mãe Aninha, a Iya Oba Biyi, fundadora da comunidade-
um jogo cênico é construído a partir do diálogo entre terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, para se referir a Salvador,
canto, percussão, dança e natureza, metaforizando o a cidade mais negra fora do continente africano, se-
tempo e as tradições afro-brasileiras. Como grupo de gundo a antropóloga Ruth Landes, que esteve na Bahia,
pesquisa, está cadastrado na plataforma do diretório de na década de 1930, e escreveu o clássico “A cidade das
grupos de pesquisa do CNPq. mulheres”. Para saber mais, ver Landes (2002).
99
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

nea, à medida que condensa um discurso político e Se, por um lado, podemos compreender a cultu-
ideológico e, ora heterogênea, quando essa identi- ra como os contornos do agir humano, por outro,
dade se corporifica em diversos padrões estéticos, é preciso reconhecer que tais contornos tornam a
como podemos observar nas experiências da Dan- modelar corpos, no entanto, em diferentes formas/
ça Afro, dos Congados e do Hip Hop. fôrmas. Talvez a palavra “fôrma” seja demasiada-
mente dura para exprimir a complexidade do agir
As Questões da Identidade da cultura frente às subjetividades, territorialidades
e circunstâncias históricas. Por isso, sugerimos,
Afinal, o que é identidade? Como se configuram aqui, a compreensão da ideia de forma/fôrma, não
as identidades nas manifestações culturais afro-bra- com algo que enquadra, mas sim como o desenho
sileiras? Como as identidades de um mesmo mani- do agir do corpo, no tempo e espaço.
festo se distinguem entre si? O que define a identida- A partir dessa perspectiva, olharemos para a
de, no contexto das performances culturais? Quais cultura como se olha para uma obra de arte, enca-
são as formas/fôrmas presumidas a partir das quais rando-a, como fez Oliveira (2007, p. 247):
uma identidade é marcada como distinta? Como as
fronteiras identitárias são constituídas, mantidas ou A cultura é o relacionamento das singularidades
dissipadas, no contexto da cultura negra? Como os no plano da imanência. O tecido do mundo é
vários segmentos estão representados em diferentes tangível através da memória. Os fios do tecido
discursos da identidade? A identidade diferencia-se são lembranças e as lembranças são matérias
fluídicas que podem ser modeladas de diversas
lateral ou hierarquicamente? A ideia de identidade
maneiras a partir de variados matizes.
negra pode ser concebida nos termos de identifica-
ções? As identidades construídas a partir das perfor-
E ainda, se levarmos a cabo as ideias do referido
mances culturais englobam as identidades políticas e
autor, ao argumentar que “cultura se movimenta
ideológicas ou são englobadas por estas?
no corpo” e que o “corpo é o movimento da cultu-
Essas questões servem de balizas para analisar-
ra” (OLIVEIRA, 2007, p. 288), compreenderemos
mos a problemática da/s identidade/identificações.
forma/fôrma como elementos estruturantes do
Ao tratarmos a questão da identidade como uma ca-
conceito de identidade.
tegoria analítica potencializada pela centralidade do
Frequentemente, o conceito de identidade é
corpo, esperamos contribuir para um melhor enten-
questionado por sua rigidez. Talvez por isso iden-
dimento desse complexo e contraditório conceito.
tificação possa se apresentar de forma menos
O fenômeno da identidade como aquilo que
comprometedora, considerando que o indivíduo-
qualifica, define ou caracteriza um sujeito, pode ser
-sujeito é atravessado por muitas identificações e
compreendido de diferentes perspectivas: do indi-
não está dotado de uma identidade como sendo
víduo, da cultura, do social, da nacionalidade. No
algo uno, acabado, coerente, coeso, linear, integral,
caso deste artigo, pelo fato de estarmos envolvidos
único, original e estável. Os processos de identifi-
e interessados nos fenômenos das performances
cação são sempre eivados de conflitos, ambivalên-
culturais, analisamos o tema da identidade a partir
cias, conformismos e resistências.
do corpo, considerando a corporeidade humana
Nesse sentido, Stuart Hall (2001, p. 13) destaca
como agenciadora social e cultural. Segundo Le
que:
Breton (2007, p. 8):
a identidade plenamente unificada, completa,
[...] pela corporeidade, o homem faz do mundo
segura e coerente é uma fantasia. Ao invés dis-
a extensão de sua experiência; transformando-o
so, à medida em que os sistemas de significação
em tramas familiares e coerentes, disponíveis à
cultural se multiplicam, somos confrontados por
ação e permeáveis à compreensão. Emissor ou
uma multiplicidade desconcertante e cambiante
receptor, o corpo produz sentidos continuamen-
de identidades possíveis, com cada uma das quais
te e assim insere o homem, de forma ativa, no
poderíamos nos identificar – ao menos tempora-
interior de dado espaço social e cultural.
riamente.
100
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Para Denys Cuche, a natureza, no homem, é certo número de critérios determinantes, conside-
inteiramente interpretada pela cultura. Só que ela rados objetivos, como a origem comum, a língua e
não pode ser manipulada como “um instrumento o território comum. Tais concepções são bastante
vulgar, pois ela está relacionada a processos extre- questionadas pelos que defendem uma abordagem
mamente complexos e, na maior parte das vezes, subjetivista de identidade. Para os defensores dessa
inconscientes” (2002, p. 15). Em suas formulações, última perspectiva, a identidade não pode ser re-
o que mais nos chama a atenção em relação ao con- duzida a sua dimensão atributiva. Ela não passa de
ceito de cultura é sua estreita relação com o con- um sentimento de identificação ou de vinculação a
ceito de identidade, tão polissêmico quanto aquele. uma coletividade imaginária, em maior ou menor
Sinteticamente, para Cuche (2002), existem duas grau. Sendo assim, nessa perspectiva, o importante
abordagens ou concepções que tratam da identida- são as representações que os indivíduos constroem
de, no campo das Ciências Sociais. As concepções da realidade social e de suas divisões.
“objetivistas” e as “subjetivistas”. Os signatários da A rigor, o ponto de vista dos subjetivistas, leva-
concepção objetivista defendem que a identidade do ao extremo, tem como consequência a redução
de um indivíduo é a herança cultural recebida do da identidade a uma questão de escolha individual
seu grupo original, como uma espécie de “segunda arbitrária em que cada um seria livre para escolher
natureza” da qual ele não pode escapar. Em suas suas identificações. Isso pode ser analisado como
palavras, corresponde à “origem, as raízes, segun- uma elaboração puramente fantasiosa, criada pela
do a imagem comum, isto é, aquilo que definiria o imaginação de alguns ideólogos que manipulam as
indivíduo de maneira autêntica” (CUCHE, 2002, p. massas crédulas em busca de objetivos nem sem-
178). Nesse caso, a identidade seria preexistente ao pre confessáveis.
indivíduo que não teria alternativa senão aderir a Para Cuche (2002), essa visão subjetivista tem o
ela, sob o risco de se tornar um marginal, um “de- mérito de considerar o caráter variável das identi-
senraizado”. dades, apesar de ter a tendência de enfatizar exces-
Entre outros problemas, essa formulação pode sivamente seu aspecto efêmero. Essa perspectiva
levar à “racialização” dos indivíduos, pois, para se torna fragilizada, portanto, pelo fato das identi-
algumas teses radicais, a identidade está pratica- dades serem relativamente estáveis.
mente inscrita no patrimônio genético do indiví- Adotar uma abordagem puramente objetivista
duo. Essa concepção objetivista pode se desdobrar ou puramente subjetivista para tratar a questão da
numa abordagem culturalista, em que a ênfase não identidade pode desencadear conflitos incontorná-
é colocada na herança biológica, mas na herança veis. Nesse sentido, Cuche (2002) propõe a abor-
cultural. Nesse caso, o indivíduo é levado a interio- dagem “relacional e situacional de identidade” e
rizar os modelos culturais que lhes são impostos defende ainda que não existe uma identidade em
até o ponto de se identificar com o seu grupo de si, nem mesmo unicamente para si. A identidade é
origem. Para tal, são arbitradas determinadas “in- sempre relacional, daí sugere ser preferível utilizar
variantes culturais” que permitem definir a essên- o termo identificação.
cia do grupo, ou seja, sua identidade “essencial”, A identificação pode funcionar como afirmação
praticamente invariável (CUCHE, 2002). Outra ou como imposição da identidade. A identidade é
variante da concepção objetivista de identidade é sempre uma concessão, uma negociação entre uma
chamada de “primordialista”. Nesse caso, consi- autoidentidade e uma heteroidentidade, ou uma
dera-se que a identidade etnocultural é primordial exoidentidade definida pelos outros (SINSON
porque a vinculação ao grupo étnico é a primeira e apud CUCHE, 2002).
a mais fundamental de todas as vinculações sociais. Se a cultura depende em grande parte dos pro-
É no grupo étnico onde se partilham as emoções cessos inconscientes, a identidade remete a uma
e as solidariedades mais profundas e mais estrutu- norma de vinculação, necessariamente consciente,
rantes. baseada em oposições simbólicas. Nesse sentido,
Essas concepções objetivistas de identidade têm Cuche (2002) adverte que o papel do intelectual
um traço comum. Tratam as identidades a partir de não é fazer a defesa das identidades.
101
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Não é a sociologia ou a antropologia, nem a his- mecanismos, estratégias, vertentes, lideranças, mé-
tória ou outra disciplina que deverá dizer qual todos, sistemas hierárquicos e códigos de conduta,
seria a definição exata da identidade bretã ou da fazendo com que cada segmento edifique simulta-
identidade kabyla, por exemplo. Não é a sociolo- neamente suas formas próprias de identificação e
gia que deve se pronunciar sobre o caráter autên- de distinção.
tico ou abusivo de tal identidade particular. Não
O conceito de identidade, aqui esmiuçado a par-
é o cientista que deve fazer ‘controle de identi-
dades’. O papel do cientista é outro. Ele tem o tir de passagens e encruzilhadas experienciadas no
dever de explicar os processos de identificação plano das performances culturais, não ignora com-
sem julgá-los. (CUCHE, 2002, p. 187) ponentes incomensuráveis e intraduzíveis do fazer
cultural. Aos sujeitos deve ser garantido o “direito
Convictos da impossibilidade de responder à opacidade” (GLISSANT, 2005, p. 85), ou seja, a
satisfatoriamente a todas as questões levantadas, impossibilidade de assimilar o outro, em todas as
buscamos analisar o conceito de identidade a partir suas dimensões, para viver e construir com ele.
de sua articulação/aproximação a alguns conceitos Manuel Castells (1999) problematiza o conceito
correlatos, como é o caso da construção igualda- de identidade a partir de uma sistematização di-
de/diferença. dática acerca das diferentes formas de construção
Avtar Brah, professora de Sociologia da Univer- de processos identitários. Para ele, a diversidade
sidade de Londres, em seu clássico artigo: Diferen- de construções identitárias não elimina o vigor da
ça, diversidade, diferenciação, problematizou a te- identidade, à medida que as identidades se desen-
mática da diversidade, a partir da categoria “negro” volvem em contextos marcados por relações de po-
(black). Sem fazer uma distinção entre os níveis ma- der, pela história de cada grupo e pela simbologia
cro e micro de análise, a referida autora pontuou construída a partir de suas relações significativas.
como as questões da “diferença” foram enquadra- A partir dessa perspectiva, Castells (1999) dis-
das na teoria e na prática feminista, durante as dé- tingue três tipos de identidade: a identidade legiti-
cadas de 1970 e 1980, tendo como foco principal o madora, cujas bases estão vinculadas às instituições
debate britânico, sugerindo, ao final, quatro manei- dominantes; a identidade de resistência, cujas bases
ras de conceituar a diferença: “diferença como ex- são geradas por sujeitos em situações desvaloriza-
periência, diferença como relação social, diferença das ou discriminadas, e a identidade de projeto,
como subjetividade e diferença como identidade” cujas bases são produzidas por sujeitos que se uti-
(BRAH, 2006, p. 359), e apresentando um novo lizam de capital cultural para construir ou redefinir
quadro para a análise dessa categoria. posições, conceitos e ações, na sociedade.
O cotejo dos argumentos levantados por Brah Podemos depreender, a partir da classificação
(2006) com o conceito de identidade, aqui poten- formulada por Castells (1999), que os processos
cializado pela dimensão da corporeidade e das identitários construídos no campo da cultura ne-
performances corporais, nos leva a constatar sua gra, embora fragmentados e circunstanciais, por
estreita relação com o corpo e a práticas corpo- força do jogo político, se materializam, principal-
rais. Nesse sentido, além de um discurso político- mente, na lógica da identidade de projeto e de re-
-ideológico, a identidade se constrói, também, no sistência, sem negar, evidentemente, que, em suas
fazer corporal. Esse fazer, por sua vez, se insere dinâmicas, acontecem interações.
numa trama complexa de afirmações, disputas, dis- Se analisarmos cada manifestação da cultura ne-
tinções, oposições, fronteiras, controvérsias, mitos, gra em particular, a partir de suas dimensões per-
agenciamentos, tensões, conflitos e conveniências formáticas e gestuais, poderemos caracterizar cada
que, dinamicamente, vão edificando processos de uma dessas práticas como “unidades englobantes”
identificação, ainda que transitórios e fluídicos. (TRAVASSOS, 1999), cujos símbolos identifica-
A complexa e abrangente rede que hoje com- dores são construídos e reconstruídos indefini-
preende as performances culturais de origem ne- damente, a partir de alguns elementos consensu-
gra se consolidou e se afirmou na diversidade de almente aceitos por seus integrantes, que elegem
e inventam, frequentemente por contraposição,
102
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

tendo em vista a afirmação de sua identidade. Para blemática no contexto das manifestações culturais
isso, servem-se da memória e de outros aspectos de origem popular.
da vida cotidiana e terminam construindo peque- As construções e afirmações identitárias, embo-
nos mundos irmanados por identidades de proje- ra descentralizadas e deslocadas, na perspectiva de
tos que opõem e contrastam os “nós” em relação Hall (2001), no contexto das manifestações cultu-
aos “outros”. rais populares parecem de forma insistente e resis-
É importante destacar que essas identidades, tente, girando em torno de interesses culturais es-
construídas via performances culturais e consoli- pecíficos, a partir, por exemplo, da constituição de
dadas como projetos, se alimentam também de ele- grupos empenhados em criar, recuperar ou mesmo
mentos difusos, míticos e por vezes mistificadores, reconstruir suas raízes culturais, num processo de
mas não menos importantes. Nesse contexto, Oli- reconstituição de seu passado e de suas tradições.
veira (2007, p. 288), ao lançar o olhar para a cultura Nos tempos atuais, temos verificado um consi-
africana e da diáspora, enfatiza que o corpo “é o derável processo de revitalização de manifestações
território da vertigem, do mistério e do segredo. culturais brasileiras de origem popular, como a Ca-
Nele sobrevive magia e mito”. poeira, os Blocos Afro, o Bumba meu Boi, a Con-
Por esta via de raciocínio, a chamada “crise de gada, o Maracatu, os Reisados, o Samba de roda, o
identidade”, presente também na cultura negra, está Tambor de Crioula, o Cavalo-Marinho, o Coco de
abalando os quadros de referência que davam uma Roda e a Embolada, o Jongo, entre tantas outras.
ancoragem estável no mundo social. “Há sempre Essa revitalização de manifestações culturais de
uma qualidade fugidia e contingente na identida- origem popular, segundo Abib (2004, p. 40), vem
de” (MCLAREN, 2000, p. 22). As velhas identida- acontecendo em todo o mundo, “deixando perple-
des, com relações compactas, “que por tanto tem- xos aqueles que já alardeavam a configuração de
po estabilizaram o mundo social, estão em declínio, uma cultura única, globalizada, moderna, homo-
fazendo surgir novas identidades e fragmentando gênea e padronizada como efeitos inevitáveis do
o ser humano contemporâneo até aqui visto como processo de globalização”. Como exemplo, Abib
um sujeito unificado” (HALL, 2001, p. 7). (2004) cita os movimentos reivindicatórios de
O conjunto de características que definem a identidade indígena, verificados em vários países
identidade de um grupo social é inseparável daque- da América, ou o interesse cada vez mais acentu-
las características que o fazem diferente dos outros ado pela chamada “música étnica”, que afirma e
grupos. Portanto, aquilo que um grupo efetiva- realça as origens de vários grupos étnicos, questio-
mente é está irremediavelmente vinculado àquilo nando uma identidade nacional homogeneizadora,
que ele não é. Ou seja, identidade e diferença são forjada artificialmente em vários países do mundo.
processos inseparáveis. Silva (1999, p. 47) destaca Esse processo é mais uma faceta da própria
que “aquilo que um grupo tem em comum é re- globalização, podendo ser melhor compreendido a
sultado de um processo de criação de símbolos, de partir do conceito de “cultura internacional-popu-
imagens, de memórias, de narrativas, de mitos que lar”, formulado por Renato Ortiz (2003), a partir
‘cimentam’ a unidade de um grupo, que definem de suas observações e reflexões relacionadas aos
sua identidade”. Esses processos incidem no corpo processos de mundialização da cultura, intensifica-
e, a despeito de não estarem impressos nos genes, dos nas últimas décadas.
“naturalizam” aquilo que se é e “exotizam” aquilo Para Ortiz (2003), ao processo de globalização
que se vê. econômica articula-se um virtuoso e diversificado
As relações de poder conferem aos processos processo de mundialização cultural. Entretanto, se
identitários um caráter ativo e produtivo. Sendo é correto dizer, sem maiores problemas, que exis-
assim, a construção de identidades se efetiva por te um mercado global, definido pelo capitalismo,
meio de um jogo político complexo que vai hie- assim como uma tecnologia global, a mesma, em
rarquizando, deslocando e definindo processos qualquer lugar, é certamente pouco convincente
identitários, numa trama cada vez mais complexa, e falarmos de uma “cultura global” com as mesmas
esse movimento pode ser verificado de forma em- características.
103
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Até bem pouco tempo, o único meio de per- contextuais vividas cotidianamente pelos diferen-
petuar determinadas manifestações culturais era a tes sujeitos e grupos.
oralidade, ou seja, as tradições eram passadas de Afirmar que existe uma incoerência na noção
boca a ouvido. O advento das novas tecnologias de identidade; que a África é reinventada no Bra-
de informação e comunicação potencializaram o sil e que a identidade negra é plural, pode sugerir
importante papel de divulgação cultural. Sem elas, a ideia de descaracterização. No entanto, parado-
algumas manifestações culturais poderiam se tor- xalmente, esses pressupostos não perturbam, não
nar apenas uma lembrança de um passado longín- enfraquecem e nem conduzem as práticas culturais
quo, uma vez que os seus mecanismos originais de à perda de sua identidade.
transmissão se tornaram muito frágeis diante dos Concebemos aqui identidade negra como sinô-
novos aparatos tecnológicos. nimo de negritude, conceito este que opera, sobre-
Nesse movimento cultural, grupos específicos tudo, a partir de um discurso de afirmação étnico-
arregimentam e compartilham memórias específi- -racial, que engloba aspectos políticos, ideológicos
cas em tempos/espaços específicos para constru- e culturais.
írem e afirmarem processos identitários significa-
tivos e consistentes, não excluindo, obviamente, a No terreno político, negritude serve de subsídio
possibilidade de se inserirem em vários outros pro- para a ação do movimento negro organizado. No
cessos semelhantes de identificação. Em consonân- campo ideológico, negritude pode ser entendida
cia com Abib (2004), verificamos um engajamento como processo de aquisição de uma consciência
racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendên-
e até mesmo uma militância, por parte dos sujeitos
cia de valorização de toda manifestação cultural
envolvidos em processos de afirmação identitária,
de matriz africana. (DOMINGUES, 2005, p. 26)
como podemos verificar, a seguir, na construção
do conceito de identidade negra no Brasil.
Em linhas gerais, a ideia de negritude materia-
liza-se no ato e efeito de assumir-se negro e de ter
Negras Identidades
a consciência de uma identidade, história e cultura
específicas. Conforme afirma Domingues (2005, p.
O debate sobre a questão da pessoa negra e seus
31), o processo histórico de construção da ideia de
processos de construção identitária perpassa inevi-
negritude baseou-se na tríade: identidade, fidelida-
tavelmente pelo fato das identidades dominantes
de e solidariedade.
operarem como uma norma invisível que regula
todas as outras, mas não lhes retira a importância, A identidade consiste em ter orgulho da con-
especialmente em contextos e movimentos bem dição racial, expressando-se, por exemplo, na
demarcados por jogos de poderes. atitude de proferir com altivez: sou negro! A fi-
Silva (1999, p. 49) destaca que: delidade é a relação de vínculo indelével com a
terra-mãe, com a herança ancestral africana. A
Numa sociedade em que o regime dominante de solidariedade é o sentimento que une, involunta-
representação privilegia a cor branca, a desones- riamente, todos os ‘irmãos de cor’ do mundo; é
tidade de uma pessoa branca é apenas isso: a de- o sentimento de solidariedade e de preservação
sonestidade de uma pessoa ‘normal’. Em troca, de uma identidade comum.
a desonestidade de uma pessoa negra só pode
representar a inclinação natural de todas as pes- Esse discurso de identidade negra, por seu ca-
soas negras à desonestidade. ráter totalizante, tende a uma concepção de iden-
tidade homogeneizadora. Ao passo que, para pen-
Por seu turno, as manifestações culturais de sar a identidade negra em termos de pluralidade, é
origem negra no Brasil afirmam-se na criação de pertinente considerar o que já alertou Ney Lopes,
símbolos, gestos, imagens, memórias, narrativas e em sua referenciada obra Bantos, Malês e Identidade
mitos que reivindicam a ancestralidade africana, Negra, sobre o equívoco histórico da desvaloriza-
reinventando a África a partir das experiências ção da matriz cultural banto frente à jeje-nagô e,
104
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

evidentemente, de ambas frente aos padrões cul- terminista e criterioso para esses fenômenos, isto é,
turais europeus. A concepção de que os bantos por meio de um estudo da performance.
seriam frágeis, “sem estrutura, um amontoado de Para Schechner (2002), a performance pode ser
crendices e superstições, com suas bases empresta- compreendida através da concepções de Ser, Fazer,
das à teogonia nagô e facilmente engolidos pelo ca- Mostrar-se fazendo e Explicar ações demonstra-
tolicismo” (LOPES, 2006, p. 208), parece ter tido das, pois, na concepção do autor, Ser é a existência
impacto no discurso ideológico da negritude, que em si mesma. Fazer é atividade de tudo que existe.
tendeu a valorizar o Candomblé keto, na tentativa Mostrar-se fazendo é performar: apontar, subli-
de banir as manifestações sincréticas. nhar e demonstrar a ação. Explicar ações demons-
Conforme destaca Martins (2002), as perfor- tradas é o trabalho dos Estudos da Performance.
mances afro-brasileiras apresentam um complexo
espaço de investigação, conhecimento e fruição. Performances afirmam identidades, curvam o
Para esse autor: tempo, remodelam e adornam corpos, contam
histórias. Performances artísticas, rituais ou co-
[...] as construções identitárias se afirmam e tidianas – são feitas de comportamentos dupla-
constantemente se reinventam, via gestualidade, mente exercidos, comportamentos restaurados,
ritualidade e processos de criação, dramatizando ações performadas que as pessoas treinam para
e pulverizando as velhas identidades construídas desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. Está
via discursos político-ideológicos. Como mani- claro que fazer arte exige treino e esforço cons-
festações de encruzilhadas, agenciam, a partir da ciente. Mas a vida cotidiana também envolve
memória e da criação, corporeidades que anun- anos de treinamento e aprendizado de parcelas
ciam e enaltecem a diversidade das identidades específicas de comportamento, e requer a des-
negras tecidas nas práticas corporais que se mo- cobertas de como ajustar e exercer as ações de
vimentam na vida cotidiana. (MARTINS, 2002, uma vida em relação às circunstâncias pessoais e
p. 71) comunitárias. (SCHECHNER, 2002, p. 27)

Para analisar “essas corporeidades que anunciam Retomando a experiência vivida no Colóquio In-
e enaltecem a diversidade das identidades negras”, ternacional de Arte Negra: Corpo, Performance e Ances-
podemos ponderar se os discursos político-ideoló- tralidade, podemos questionar: como se deu o pro-
gicos foram suficientes e eficazes nesse processo cesso de construção da identidade daqueles negros
de afirmação. Se na Dança Afro, o discurso basea- e negras que coloriam, com altivez, cabelos ador-
do na tríade identidade, fidelidade e solidariedade, nados e roupas estampadas, a plateia do evento?
foi uma importante base para a constituição desse Seguramente estavam ali, prontos para intervir em
movimento, como arte negra que se alimenta dire- qualquer comunicação que julgassem inadequada,
tamente do terreiro, por intermédio da dança dos como se dissessem antes mesmo de abrir a boca
orixás, nas congadas, conforme veremos a seguir, para qualquer discurso verbal: “nada de nós, sem
esse discurso não surtiu efeito, pois, embora o cris- nós”.
tianismo tenha sido imposto de maneira truculen- Embora tenhamos notícias da existência de Ir-
ta, ele foi incorporado e transformado pelo povo mandades Negras, desde o século XVII, foi a par-
banto, que não aceitou passivamente os dogmas tir dos anos de 1970, que uma ideia de identidade
cristãos. Na visão de Lopes (2006, p. 206), “o que negra fez parte de um amplo processo de tomada
ele fez foi colocar essa religião ao seu jeito, ao seu de consciência racial do negro no Brasil. Esse mo-
modo, dando a ela coloridos e nuances que a trans- vimento teve um impacto forte no plano cultural,
formaram num catolicismo todo peculiar, permea- vetorizando a valorização dos símbolos culturais
do de práticas da religião tradicional negro-africana afro-brasileiros.
e do culto banto aos antepassados”. Podemos citar a cidade de Salvador como um
A pluralidade da identidade negra que se pode grande expoente desse movimento, a partir no re-
perceber, ao se observar a Dança Afro em relação à nascimento dos blocos afro.
Congada, é apreendida a partir de um olhar não de-
105
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Expandiam-se os chamados ‘afoxés’ e ‘blocos tiremos uma identidade negra, juvenil, urbana e
afros’, organizações formadas principalmen- moderna, atada à lógica do internacional-popular
te pela juventude negromestiça [...] ostentando (ORTIZ, 2003).
nomes africanos e carreando levas de pessoas
cobertas de batas (abadas) e búzios, ao som de A Relação Corpo - Identidade na Dança Afro
cantos que remetiam à culturas negras, especial-
mente ao repertório iorubano, que se converteu
numa espécie de código central de nossas ma- Que Dança É Afro? Afro Seria Tudo O Que Se
nifestações simbólicas de raízes negroafricanas. Dança No Continente Africano? Dança Afro seria
(RISÉRIO, 1995, p. 91) a dança dos africanos em qualquer lugar do plane-
ta? E as danças da diáspora africana, são “Afro”
Tanto os referenciais fornecidos pelos movi- também? Seria uma dança identificada como as
mentos negros norte-americanos como um novo questões da negritude? Ou seria qualquer dança
olhar para África, a partir da libertação dos últimos feita por pessoas afrodescendentes? Responder es-
focos de dominação branca, conforme aponta Ri- sas questões, talvez fosse um interessante caminho
sério (1995), foram fundamentais para a constru- para mapear discussões e estudos sobre as danças
ção da identidade negra no Brasil, que se constrói de matrizes africanas. No entanto, para o escopo
a partir do apelo à “apropriação”, seja do próprio deste artigo, procuraremos problematizar, identifi-
passado, seja do presente e passado africano, seja car e caracterizar o que dentro do território brasi-
da realidade norte-americana. Quilombo, Zumbi, leiro é chamado de Dança Afro e como o corpo
Malcon X, Funk, Candomblé, Dança Afro e Ca- contribui para a construção da identidade dessa
poeira são alguns símbolos que recebem destaque manifestação cultural.
nesse período. Talvez o melhor lugar para começar a proble-
Seria a identidade afro-brasileira uma invenção matizar a Dança Afro seja o próprio continente
soteropolitana? Sem dúvida, a Roma Negra contri- africano, com sua imensa diversidade de danças.
buiu de forma significativa para o processo de afir- No entanto, o que aqui nos interessa não é a dan-
mação do negro no país, influenciando inclusive ça feita no continente africano propriamente dito,
outros Estados. Entretanto, um olhar mais atento mas sim identificar e caracterizar a manifestação da
para as especificidades do lócus que aqui elegemos diáspora africana no Brasil, que passou a ser con-
para pensar a pluralidade da identidade negra, é vencionalmente denominada de Dança Afro.
possível perceber diferentes nuanças na constitui- Na abordagem de Ferraz, a Dança Afro poderia
ção dos grupos e das manifestações negras. ser entendida como:
Ao mesmo tempo em que o discurso político que
gira em torno da construção ideológica da identida- [...] toda prática que se instiga, seja na diversidade
de negra se torna importante, no sentido de garantir das danças encontradas no continente africano,
seja nas expressões derivadas dos povos da diás-
visibilidade e de reivindicar direitos e políticas públi-
pora, dispersos pelo mundo. Ela não é monopó-
cas, do ponto de vista do estudo das performances lio dos africanos da África. É produto de todos
culturais, é imprescindível reconhecer a complexida- os artistas que criam a partir de suas experiências
de estética com que a cultura negra foi assimilada, e vivências como afrodescendentes, mas também
disseminada e é constantemente atualizada. se inspiram numa ideia de negritude, seja porque
Na tentativa de fazer esse exercício, abordare- atualizam ancestralidades revivendo sentidos de
mos algumas performances afro-brasileiras, obser- pertencimento ou recriam simbologias da cultu-
vando a relação corpo – identidade. No caso da ra afro-brasileira construindo com o corpo ima-
Dança Afro, apresentaremos um breve panorama gens, movimentos e fragmentos de dinâmica a
histórico para enfatizar sua relação com a Dança ela associados. Resultado de uma linguagem ar-
dos Orixás e com o Candomblé. Já na Congada, tística que se articula politicamente, esta dança
incita-nos a colocar o aspecto das práticas estéti-
ressaltaremos como tal relação opera a partir da
cas para além dos contornos geográficos e, con-
religiosidade cristã. No caso do Hip Hop, discu- traditoriamente, étnico-raciais. (2012, p. 35-36)
106
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Nessa concepção, um tanto quanto abrangen- As primeiras referências a que tivemos acesso
te, o que se convencionou chamar de Dança Afro, sobre o que se convencionou chamar de Dança
não se diferenciaria, numa primeira instância, das Afro remetem-nos à bailarina, professora e coreó-
danças populares e ritualísticas de matriz africana, grafa Mercedes Baptista (1921-2014), no Rio de Ja-
como, por exemplo, o jongo, o batuque, o tambor neiro. Mercedes Baptista começou a sua formação
de crioula, a dança dos orixás etc. com Eros Volúsia (1914-2003), que já apresentava
Embora exista certa tendência de se classificar interesse pela cultura popular brasileira e, por in-
como Dança Afro tudo aquilo que esteja vincula- termédio da Escola de Dança do Teatro Municipal
do a um tambor tocando e a um remexer de qua- do Rio de Janeiro, teve contato com o balé clássico
dris, seja por pré-conceito ou pós-conceito (para e se tornou a primeira bailarina negra do corpo de
afirmar a negritude), aqui trataremos Dança Afro baile do referido Teatro.
como uma performance cultural que se projetou No entanto, foram as relações que manteve
no território brasileiro, sobretudo a partir do Rio com o Teatro Experimental do Negro,5 liderado
de Janeiro, Salvador e depois São Paulo e Belo Ho- por Abdias do Nascimento, que Mercedes Bap-
rizonte, e que, por vezes, também é chamada de tista teve contato com Khatarine Dunham (1909-
Dança Afro-brasileira ou Dança Negra Contem- 2006),6 bailarina, coreógrafa e antropóloga norte-
porânea, entre outras definições. -americana, com interesse nas danças da diáspora
A primeira definição de Dança Afro constrói-se africana, sobretudo nas caribenhas, primeira ideali-
por contraposição às danças populares de matriz zadora de uma proposta de dança moderna negra,
africana, como Jongo, Batuque, Samba de Roda, no continente americano.
Tambor de Crioula e outras manifestações estrutu- Após estagiar com Dhunam, nos Estados Uni-
radas ritualisticamente. Dança Afro seria, portanto, dos, Mercedes Baptista retorna ao Brasil e começa
uma performance artístico-cultural atada à concep- a desenvolver seu estilo pessoal e sua proposta de
ção moderna de dança, ligada à lógica do espetáculo trabalho, que consistia na fusão entre as técnicas de
e da aula de dança, estruturada em um modelo simi- dança clássica, moderna (incluindo a técnica Du-
lar ao de técnicas da dança moderna norte-america- nham) e elementos do samba e dos rituais religio-
na e/ou altamente influenciada por aquelas. sos afro-brasileiros.
Manifestações de Danças Populares, como as A cidade de Salvador também se transformou
citadas acima, estruturam-se na intersecção entre o em um grande expoente dessa Dança Afro. Segun-
jogo, performance e ritual, e têm a função de forjar do Ferraz (2012), na década de 1960, a Dança Afro
e fortalecer a identidade de uma comunidade, seja na Bahia ganhava visibilidade e repercussão, por
na forma/fôrma de se relacionar com o sagrado, intermédio de grupos folclóricos e para-folclóri-
seja simplesmente, na fôrma/forma de diversão e cos, dentre eles o Olodumaré, dirigido por Domin-
entretenimento. Essas manifestações são constru- gos Campos e o Grupo Viva-Bahia, dirigido por
ções da comunidade para a própria comunidade, Emília Biancardi. Esses grupos, preocupados com
ao passo que a Dança Afro é uma construção pre- o reaproveitamento estético das manifestações cul-
ponderantemente executada para ser vista como es- turais afro-brasileiras, reelaboravam performances
petáculo, inserida no contexto da dança cênica, ou culturais populares, mesclando técnicas de dança
sistematizada em forma de aulas, oficinas e cursos.
Nos tempos hodiernos, é possível inscrever-se
num curso ou assistir um espetáculo de Danças Po-
5
O Teatro Experimental do Negro (TEN), criado a
partir de 1944, no Rio de Janeiro, teve como principal
pulares. Mas este não é o princípio da estruturação
protagonista Abdias do Nascimento, e buscou trabalhar
dessas performances culturais, e sim as implicações
pela valorização social do negro, no Brasil, por meio da
de fenômenos que agem sobre a cultura popular, educação, da cultura e da arte.
tais como o processo crescente de urbanização, o 6
Katherine Dunham fundou o The Katherine Dun-
turismo, a apropriação da cultura popular pela clas- ham School of Arts and Research (K.D.S.A.R.), em Chi-
se média e até mesmo as políticas de salvaguarda cago, Estados Unidos da América, em 1931, tornando-
dessas manifestações. se a primeira referência da dança negra, naquele país.
107
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

moderna e clássica com as danças de festejos e ri- cultural dos antigos escravizados africanos e de seus
tuais populares. descendentes. O processo de reafricanização das
Outro grande mestre que ajudou na formação de manifestações culturais populares, verificado espe-
inúmeros coreógrafos dessa Dança Afro-brasileira cialmente na Bahia, sobretudo na década de 1970,
foi Clyde Morgan, um norte-americano com expe- deu força e projeção ao Candomblé, sobretudo o da
riência em danças modernas e africanas, que veio nação keto. Como vimos anteriormente, o processo
para o Brasil, na década de 1970. Tendo se estabele- de construção da negritude passou pela busca e a
cido na cidade de Salvador, Clyde Morgan integrou apropriação de referências e o Candomblé, sem dú-
o corpo docente da Escola de Dança da UFBA e vida, foi uma delas. Aqui vale ratificar que a matriz
dirigiu o Grupo de Dança Contemporânea, da mes- iorubana, também chamada de keto ou nagô, foi,
ma instituição, por sete anos, onde desenvolveu um por diversas razões, priorizada nesse processo.
trabalho mesclando influências das matrizes africa- Nesse período, o movimento de reafricanização
nas, dança moderna e contemporânea. da cultura negro-brasileira sugere uma “ruptura
Esse breve histórico nos permite localizar a radical com a complexa e centenária realidade do
Dança Afro nessa zona de confluência entre a dan- sincretismo religioso” (RISÉRIO, 1995, p.99), que,
ça espetacular e a cultura afro-brasileira. De um por sua vez, sobre esse assunto, faz a seguinte ob-
lado, a dança pensada para o espaço do palco, e servação:
baseada em princípios técnicos da dança clássica
ou dança moderna norte-americana, e, de outro, as Difícil dizer com exatidão como e quando come-
danças de rodas, festas e rituais religiosos. çou o processo, mas suas raízes são remotas. Os
Esse território híbrido, que mescla dança moder- escravos trazidos da África para o Brasil foram
na e/ou contemporânea com a cultura negro-brasi- impedidos de professar sua fé e introduzidos
compulsoriamente no Catolicismo. Mas logra-
leira, fez-se e faz-se em um espaço-tempo de cria-
ram disfarçar suas religiões originais, utilizando
ção, não podendo ser definida como uma técnica ou
os santos da Igreja para, sob uma fachada cató-
forma homogênea. A Dança Afro seria então um lica, realizar seus próprios ritos. O sincretismo
movimento cultural que agrega diferentes possibi- é fruto, portanto, de uma violência cultural. Da
lidades de expressão artística. É dessa forma que a imposição de uma cultura dominante. [...]Hoje,
Dança de Mercedes Baptista se diferencia da Dan- quando não é mais possível reconhecer uma im-
ça Afro de Clyde Morgan, embora ambas tenham posição religiosa, são inúmeras as pessoas que já
elementos aproximados, tais como a presença mar- nascem sincréticas. Pessoas que levam uma exis-
cante do ritmo percussivo, uma preocupação com as tência religiosa sincera, dedicada tanto aos santos
linhas e formas de movimento, o uso predominante católicos quanto aos orixás. As crenças parecem
da flexão de joelhos, o uso acentuado da articulação existir simultânea e separadamente, o que levou
o historiador Cid Teixeira a comparar o caso ao
pélvica e o interesse pelas danças dos orixás.
fenômeno do bilinguismo. Mas também há mo-
Este último elemento, a dança dos orixás, prin-
mentos em que é impossível distingui-las, como
cipal fonte de pesquisa da Dança Afro em questão, no culto baiano a Senhor do Bonfim, sobre o
merece destaque. Os orixás, nkises e voduns, como qual ninguém sabe dizer exatamente onde co-
são chamados, respectivamente, nas nações keto, meça Cristo ou termina Oxalá: é como se fosse
banto e jeje dos candomblés, no Brasil, são deuses a mistura de um messias negro com um orixá
africanos que correspondem a pontos de força da da Palestina, fundidos e refundidos nos trópicos
natureza. Seus arquétipos são constituídos a partir brasileiros. (RISÉRIO, 1995, p. 100)
de um conjunto de mitos que os caracterizam. Es-
ses mitos são difundidos a partir da oralidade, mas Para o referido autor, o dualismo ou o exercício
também da corporeidade, isto é, do corpo que, em de diferentes cultos, por uma mesma pessoa, não
estado de transe, incorpora o orixá e o expressa é visto no Brasil como algo estranho ou uma ano-
por meio da gestualidade. malia. Acrescenta, ainda, que o antissincretismo é
Segundo Prandi (1997), até 1930, as religiões muito mais uma exigência dos intelectuais, do que
afro-brasileiras eram reminiscências e patrimônio uma postura popular.
108
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Não foi por acaso que a investida do Candomblé sica e da dança moderna, encontrando nestas um
contra o sincretismo se deu no momento em que ponto de apoio para a sua legitimação, no campo
a religião dos orixás se firmou no mundo da es- da arte.
crita. Mas a bi ou tri-religiosidade brasileira não Apesar desse suporte ter sido necessário, a Dan-
se abalou. Prosseguem as crenças paralelas, aqui ça Afro no Brasil conseguiu imprimir em sua lin-
e ali apresentando pontos de contato e mesmo
guagem uma identidade cultural negra mais expres-
de intercruzamento. O que ficou de positivo, da
tomada de posição do Candomblé, deve ser vis- siva do que podemos observar em movimentos de
to no espaço da ‘territorialização’, da delimitação dança negra norte-americana, que realçam as for-
nítida de um campo religioso, que pela primeira mas/fôrmas das danças clássicas e modernas, com
vez se assumia publicamente com tal intensida- o uso excessivo de pontas de pés, développé, cambré.
de, na história das religiões no Brasil. (RISÉRIO,
1995 p. 101) A Relação Corpo - Identidade na Congada

O processo de “territorialização” do Candom- A despeito do movimento de reafricanização


blé e a sua apropriação na construção da identida- do Candomblé ter influenciado significativamente
de negra fez com que a dança dos orixás e a dança o discurso de afirmação da identidade negra, em
para os orixás (que se faz nos terreiros, não neces- outros espaços, isso não ocorreu da mesma forma,
sariamente em situação de transe) se tornassem im- como foi o caso dos congados, mineiro, goiano e
portantes referências para a arte e a cultura negras. paulista, que, por sua vez, não se desvincularam da
A gestualidade que se expressa no corpo a partir fé e da tradição católica.
da mitologia dos orixás é um complexo arsenal de As Congadas, conforme esclarece Ratts (2013),
movimentos que são reelaborados nos afoxés, blo- seriam a parte mais conhecida das Festas do Rosá-
cos afros e Dança Afro e codificados pela episte- rio e dos Reinados negros, que homenageiam Nos-
mologia e técnicas das danças cênicas. sa Senhora do Rosário, entre outros santos, e giram
Os orixás são deuses e deusas que dançam e, em torno da coroação de reis e rainhas negros. O
ao mesmo tempo, são louvados com dança, dentre autor define que:
outros procedimentos (canto, oferendas, banhos
etc.). Sua dança constitui-se num jogo afinado com [...] as Festas do Rosário, Reinados e Congadas
ritmos e variações rítmicas específicas, oferecendo são uma expressão cultural, religiosa e política,
para a dança cênica subsídios de ordem técnica, po- negra e popular, que conta com praticantes de
ética e formal. O uso acentuado das escápulas e da outros pertencimentos raciais e de classe e que
flexão dos joelhos; o gingar de ombros; a pontencia- se realiza em bairros habitados por significativo
contingente de pessoas negras e das classes tra-
lidade e a entrega do corpo, sugerida pelo transe; a
balhadoras. (RATTS, 2013, p. 22)
densidade e a introspecção dos orixás mais velhos;
a agilidade e a destreza dos caçadores e guerreiros;
Os congados estabelecem-se em meio à en-
a leveza e a sedução das deusas; o devir animal e de
cruzilhada afro-brasileira, na confluência entre o
elementos da natureza e a mimese da manipulação
catolicismo e a cultura africana de matriz banto,
de objetos, como o facão, o espelho, o arco e a
fazendo referência a santos como Nossa Senhora
flecha, são alguns elementos da dança dos orixás
do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Nossa
frequentemente traduzidos para a Dança Afro, em
Senhora das Mercês. Segundo Martins (2002, p. 67-
diferentes abordagens.
68), a Congada:
Podemos inferir que a identidade negra do cor-
po que dança a Dança Afro é construída em sin- [...] processa-se por meio de performances ritu-
tonia com o discurso ideológico da negritude, já ais de estilo africano, em sua simbologia metafí-
que o Candomblé foi/é uma de suas principais re- sica, convenções, coreografias, estrutura, valores,
ferências. Contraditoriamente, alimenta-se de refe- concepções estéticas e na própria cosmovisão
rências epistemológicas e técnicas de danças tidas que os instauram. [...] Performados por meio de
como hegemônicas, como é o caso da dança clás- uma estrutura simbólica e litúrgica complexa, os
109
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

ritos incluem a participação de grupos distintos, rujos, Catopés (ou Catupés), Vilões e Caboclos.
denominados guardas, e a instalação de um im- Os cantos entoados tanto falam da repressão
pério negro, no âmbito do qual autos e danças vivenciada pelos negros escravizados, quanto do
dramáticas, coroação de reis e rainhas, embaixa- apoio espiritual que esses puderam encontrar nos
das, atos litúrgicos, cerimoniais e cênicos criam braços de Nossa Senhora, como também cantam
uma performance mitopoética, que reinterpreta
com alegria a fé cristã. A dança do Congo, por
as travessias dos negros da África às Américas.
exemplo, pode ser um pouco mais saltitada, mas
sem complexas evoluções, enquanto a dança do
Segundo Dias (2001), as irmandades negras e
Moçambique, que tão bem se acomoda no corpo
a organização dos reis do Congo aparecem nos
dos mais velhos, tem uma relação muito forte com
discurso de cronistas do período colonial, de for-
a terra, a ponto dos ombros se curvarem em sua di-
ma bem mais branda do que nas referências aos
reção. Mais do que agilidade e destreza, a Congada
batuques, julgados indecentes. Os festejos de ne-
exige do corpo resistência física para horas e horas
gros em louvor a santos católicos eram aceitos e
de dança, cantoria e reza. O canto é reza, a reza é
também vistos como uma forma de amenizar as
dança e o corpo canta, pois voz é movimento.
inclinações dos escravizados às revoltas.
Pudemos verificar, portanto, que no contexto
As coroações que a festa celebra é fruto dos en-
da Congada a identidade negra não passa necessa-
contros e “desencontros” entre escravizados afri-
riamente pela negação da fé católica, muito embora
canos e a cultura portuguesa e representam uma
seja possível observar que símbolos das religiões
forma possível e aceitável de organização comuni-
afro-brasileiras sejam frequentemente citados ou
tária negra, desde o século XVI. Se, em princípio, a
utilizados em meio aos festejos. Um número gran-
devoção dos negros aos santos católicos eram for-
de de negros e negras de todas as idades se reco-
mas de mascarar suas crenças a deuses e ancestrais
nhece como pertencente a uma Irmandade Negra
africanos, com o passar de anos e séculos, essa se
e tem, no canto e na dança, o ponto máximo de
tornou uma devoção sincera, de grande comoção,
celebração e manutenção dessa identidade.
em termos da quantidade de pessoas que essas fes-
tas conseguem aglutinar e da intensidade que arre-
A Relação Corpo - Identidade no Hip Hop
bata o corpo dos congadeiros.

No meio de um terreiro de uma capela, nas bor- Desde meados dos anos de 1970, como vimos
das de uma metrópole brasileira, os sons dos anteriormente, as ações políticas e culturais dos
tambores ritmam o movimento coreográfico movimentos negros norte-americanos influenciam
das danças e os corpos negros voleiam em torno a juventude negra brasileira. Um ponto alto desse
do mastro que devagar ergue-se levando em sua fenômeno talvez tenha sido a massiva adesão ao
haste o estandarte de Nossa Senhora do Rosário, movimento Hip Hop, sobretudo a partir dos anos
que também é undamba berê berê, a senhora das de 1990, quando a voz do rap ecoou forte nas pe-
águas, rainha da terra e do ar. Velas e luminárias riferias.
brilham aos pés de tronco fincado no chão, clare- O Hip Hop é, em princípio, uma combinação
ando o caminho de todos os antepassados ao en- de movimentos – negro, social, juvenil e cultural
contro dos rituais de Congado, que os celebram.
–, que surgem no final dos anos de 1970, nos bair-
(MARTINS, 2002 p. 72)
ros pobres de Nova Iorque, chegando ao Brasil, no
início dos anos de 1980, diretamente para as peri-
As congadas de Minas Gerais, Goiás e São Pau-
ferias dos grandes centros urbanos, especialmente
lo, sem dúvida, guardam entre si particularidades
São Paulo, onde incorpora inúmeras características
que as distinguem e que podem, também, ser ob-
nacionais, sem abandonar o caráter de denúncia,
servadas entre irmandades de um mesmo Estado
crítica e questionamento das causas e consequên-
ou cidade. No entanto, de forma geral, podemos
cias das injustiças sociais, como apontou Guima-
dizer que as guardas da Congada se organizam en-
rães (1998). Além de aglutinar o rap, DJ, grafite e
tre Congos, Moçambiques (ou Maçambiques), Ma-
break, o movimento Hip Hop define-se pelo modo
110
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

particular de mobilizar a juventude negra, no con- Esses encontros são tentativas de construir es-
texto urbano. paços sociais de lazer e identificação que, por sua
Acompanhando a agitação política do movi- vez, definem simbolicamente os limites de seu
mento negro nos EUA, a música também se trans- território, no contexto da sociedade urbana. A
formava, refletindo a identidade do negro norte- identificação com o rap, o grafite e o break dá-se,
-americano por meio de ritmos como o soul e o também, pela ocupação comum de um espaço de-
funk, que fertilizaram o solo musical de onde bro- finido como marginal pela sociedade.
taria o rap. As denúncias que carregam as palavras canta-
No Brasil, o apego ao rap pela juventude negra das do rap também são expressas nos corpos dos
é a projeção de uma identidade marcada pela mar- autores e atores do Movimento Hip Hop, em que
ginalização social, embora, rapidamente tenha con- o movimento corporal é signo do questionamento
quistado um público maior, de diversos segmentos da realidade vivida por eles. O corpo dos b.boys e
sociais, especialmente depois do sucesso do grupo b.girls, dos rappers e djs, dos grafiteiros e de todos
paulistano Racionais Mc’s e do rapper carioca D2. os participantes do Hip Hop, em geral, é a própria
Mesmo sendo um estilo de música mediado possibilidade de afirmação de identidade cultural
pela indústria cultural, o rap não se reduz a um por meio de gestos (vocais e corporais).
mecanismo habitual da sociedade de consumo ou O Hip Hop é marginal e se orgulha muito disso,
mercado jovem. A fala cadenciada com correspon- não sendo à toa que assume o posto de “voz da
dente base musical transforma a palavra cantada periferia”. Nós até iríamos mais longe: “o corpo da
em uma grande potência de comunicação poética periferia”. Se o corpo acaba por ser um território
e ideológica que denuncia a desigualdade étnico- atravessado pela cultura, podemos afirmar que a
-racial, a exclusão social, a violência e as drogas, periferia é atravessada pelo Hip Hop. E esta peri-
combinando, em síntese, a condição de ser negro, feria não é somente constituída de casas, barracos,
jovem e excluído. ruas, muros e asfalto. Esta periferia é gente e gente
Por sua vez, no break, a dança de rua, o corpo é corpo.
que dança se assume como desafiador de si pró-
prio, exigindo muito treinamento. A qualidade es- A experiência do corpo como uma linguagem de
tética abordada nesse estilo sugere frequentemente códigos específicos retirados da periferia revela
um corpo-máquina, moldado a partir de movimen- princípios próprios na compreensão da juventu-
tos robóticos e uma movimentação que fragmenta de em questão, que produz uma nova forma de
comunicação e daí a expressão cultural denomi-
o corpo, revelando uma forma peculiar de apro-
nada ‘vozes dos excluídos’. Ou seja, na Cultura
priação do espaço urbano e do fazer coletivo, ca-
Rap – aqui representada não só pela significação
paz de agregar jovens em torno de uma identidade dada por essa sigla norte-americana Rhythm and
comum (SPOSITO, 1994). Poetry, que revelaria apenas um gênero musical,
Logo no início dos anos de 1990, os rappers en- mas a sua conexão em rede contribuída por ou-
fatizaram que o desenvolvimento de uma “consci- tras linguagens artísticas, arregimentando assim
ência negra” era a estratégia para a afirmação social a uma cultura mais amplificada, onde a palavra
do negro no Brasil. Esse pensamento incidiu na Ritmo encaixa-se enquanto movimento, suingue,
autoidentificação dos envolvidos com o Hip Hop, gesto, toque e aquilo que indica ao hip (quadril)
como negros, bem como em ações e sociais. e ao hop (saltar, pular) e poesia, enquanto no
No Hip Hop, por intermédio de códigos cul- discurso: letra, voz, mensagem, informação – a
ideia da própria movimentação dada pelo corpo,
turais, como a forma de se cumprimentar, o jeito
surge como um novo discurso atribuído a uma
de falar, as expressões utilizadas, as danças, as ves-
maioria de jovens pobres, das grandes metrópo-
timentas, o jeito de caminhar e o comportamen- les, que não têm a visibilidade de seus problemas
to, de modo geral, sujeitos individuais tornam-se sociais observados por setores políticos. (ROSA,
parte desse movimento, construindo processos de 2003 p. 64)
identificação entre si, que acontecem, fundamen-
talmente, através do encontro.
111
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

Assim, a ideia de marginalidade, advinda do fa- corpo, olhando-se para o passado histórico e míti-
tor urbanidade, revela-se no discurso corporal dos co do continente africano, como é o caso da Dança
agentes do Hip Hop, seja por meio da gestualidade Afro; no cantar das dores da escravidão, na alegria
ou por intermédio do processo intelectivo de com- da libertação e na devoção aos santos, como é o
posição de letras de rap que, por sua vez, relatam a caso do Congado e, por fim, nas vias dessacraliza-
situação vivida na periferia. das e altamente revestidas de técnicas modernas de
comunicação, como podemos observar no movi-
Estes corpos de rua que dançam nos bailes, no mento Hip Hop.
chão das padarias, dos supermercados e da pre- A ideia de identidade negra no singular
feitura, fazem mais do que desafiar as tentativas refere-se a um discurso político-ideológico con-
de disciplina e de controle das ações corporais ceitual, que tem sido importante para a ampliação
que lhes são impostas pela sociedade. Eles dão
de direitos e a adoção de políticas públicas para a
um sinal sensível da possibilidade de uma exis-
população negra, entretanto, quando olhamos para
tência física fora dos padrões normais; são iden-
tidades corporais na rua e não em nenhum outro as performances culturais, nas encruzilhadas afro-
espaço educativo. (VILELA, 1998 p. 3) -brasileiras, vemos as práticas englobarem os dis-
cursos político-ideológicos e, em passagens que se
Esta atitude materializada no corpo e em torno complementam e, por vezes, também se opõem,
do corpo, cria nos sujeitos do Hip Hop uma identi- os processos de construções identitárias negras se
ficação própria e uma comunidade particularizada, diversificam.
que é facilmente detectada. A corporeidade produzi- Talvez, entre a ideia de identidade e de identifi-
da por esse discurso produz e reflete uma dança que cações, a marca mais fundamental da Dança Afro,
representa um corpo supostamente marcado pela do Congado e do Hip Hop, seja a possibilidade de
violência, fragmentado e simulado (ROSA, 2003). pensarmos a identidade como pluralidade, ou me-
Em síntese, o Hip Hop reinventou uma iden- lhor, como diversidade, pois não se trata apenas de
tidade negra, que não necessariamente buscou a uma porção do mesmo e sim de uma variedade,
África como principal referência e muito menos a isto é, que possui diferentes formas/fôrmas, mas
religiosidade, seja proveniente do Candomblé ou que, no entanto, é feita da mesma substância, a di-
do catolicismo, embora esses temas sejam frequen- áspora africana em passagens pelas encruzilhadas
temente abordados, sobretudo nas letras de rap. A criativas da cultura brasileira.
negritude do Hip Hop assume-se de forma globa-
lizada e moderna, atravessada pela cidade, numa Referências
atitude de enfrentamento e destemor que gera no
corpo uma malandragem que ginga no bit do bre- ABIB, P. R. J. Capoeira Angola: cultura popular e o
ak, sem o som melodioso do berimbau. jogo dos saberes na roda. 2004. 173 f. Tese (Dou-
torado em Educação) – Faculdade de Educação,
Considerações Finais Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, 2004.
Procuramos evidenciar que, se por um lado, o BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação.
discurso ideológico da identidade negra, produzi- Cadernos Pagu, n. 26, Campinas, Unicamp, p. 329-
do a partir dos anos de 1970, oferecia, em certa 376, jan./jun. 2006. Disponível em: <http://www.
medida, formas/fôrmas de ser e estar negro, nas scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf>. Acesso em:
performances culturais, como no caso da Dança 15 mai. 2015.
Afro, do Congado e do Hip Hop, o caráter ritualís- CASTELLS, M. O poder da identidade. Tradução de
tico e criativo dessas práticas vem sistematicamen- Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Editora Paz
te questionando e reconfigurando esse discurso. e Terra, 1999.
Pudemos verificar que a afirmação da negritude CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. 2.
se constrói por diferentes vias. Ela se afirma no Ed. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2002.
DIAS, P. A outra festa negra. In: JANCSÓ, István;
112
Repertório, Salvador, nº 24, p.98-113, 2015.1

KANTOR, Íris. (Org.). Festa: cultura e sociabili- vários olhares: irmandades, congadas e a universi-
dade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec; dade. In: SILVA, R. L.; FALCÃO, J. L. C. (Orgs.).
Edusp; Fapesp; Imprensa Oficial, 2001. p. 859 - Corpopular – Intersecções Culturais. Goiânia: PUC
888. Editora, 2013. p. 22-37.
DOMINGUES, P. Movimento da negritude: uma RISÉRIO. A. Carnaval: as cores da mudança. Re-
breve reconstrução histórica. Mediações – Revista de vista Afroasia, Salvador, n. 16, p. 90-106, set. 1995.
Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n. 1, p. 25-40, jan./ ROSA, C. O corpo performático na Cultura Rap. In:
jun. 2005. CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA
FERRAZ. F. M. C. O fazer saber das danças afro: in- DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNI-
vestigando matrizes negras em movimento. 2012. CAS, 3., 2003, Florianópolis. Anais... Florianópolis:
291 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto ABRACE, 2003. p. 1-5.
de Artes, Universidade Paulista de São Paulo (IA/ SCHECHNER R. O que é Performance. Revis-
UNESP-SP), São Paulo, 2012. ta O Percevejo, Tradução de Dandara, RJ, UNIRIO,
GLISSANT, E. Introdução a uma poética da diversidade. ano 11, n. 12, p. 25-50, 2002.
Juiz de Fora: UFJF, 2005. SILVA, T. T. O currículo como fetiche: a poética e a
GUIMARÃES, M. E. A. Do samba ao rap: a músi- política do texto curricular. Belo Horizonte: Au-
ca negra no Brasil. 1998. 271 f. Tese (Doutorado têntica, 1999.
em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências SPOSITO, M. P. A sociabilidade juvenil e a rua:
Humanas, Universidade Estadual de Campinas novos conflitos e ação coletiva na cidade. Revista
(IFCH/UNICAMP) Campinas, SP, 1998. Tempo Social de Sociologia da USP, v. 5, n. 1-2, 1994.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 5. TRAVASSOS, S. D. Negros de todas as cores: ca-
ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. poeira e mobilidade social. In: BACELAR, J.; CA-
LANDES, R. A cidade das mulheres. Tradução de ROSO, C. (Orgs.). Brasil: um país de negros? Rio de
Maria Lúcia do Eirado Silva; revisão e notas de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 1999. p. 261-271.
Édson Carneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da VILELA, L. F. O corpo que dança: os jovens e suas
UFRJ, 2002. tribos urbanas. 1998. 248 f. Dissertação de Mes-
LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Tradução de trado. Universidade Estadual de Campinas, FEF/
Sônia M. S. Fhurmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. Unicamp, Campinas, SP, 1998.
LOPES, Ney. Bantos, malês e identidade negra. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
LUZ, M. A. Agadá: dinâmica da civilização africa-
no-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2000.
MARTINS, L. M. Performance do Tempo Espi-
ralar. In: RAVETTI, G; ARBEX, M. (Orgs.). Per-
formance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e
textuais. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2002. p.
69 - 92.
MCLAREN. P. Multiculturalismo revolucionário. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
OLIVEIRA, E. D. Filosofia da ancestralidade: corpo
de mito na filosofia da educação brasileira. Curiti-
ba: Editora Gráfica Popular, 2007.
ORTIZ, R. Uma cultura internacional-popular. In:
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasi-
liense, 2003. p. 105-145.
PRANDI, R. Deuses africanos no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 1997.
RATTS, A. Uma roda de conversa, um cortejo e
113

Você também pode gostar