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Artigo: Fernando Serapião – Revista Projeto Design na Edição 292

Vista do avesso, casa de Le Corbusier é contextualista

A casa Curutchet, única obra individual de Le Corbusier


construída na América Latina, está completando 50 anos.
Situada em La Plata, Argentina, a residência, como grande
parte do trabalho do arquiteto franco-suíço, é um projeto
instigante

Sem deixar de lado todos os conceitos por ele preconizados (como, por exemplo, o Modulor ou os cinco

pontos da arquitetura), a obra, ao contextualizar-se com as edificações vizinhas, quebrou um dos grandes

mitos que cercam a arquitetura moderna.

A casa Curutchet é uma obra contextualista. No entanto, essa análise evidente pouco foi abordada (1), talvez

porque, entre os diversos mitos que o movimento moderno produziu, não se enquadra a contextualização.

Muito pelo contrário: quando se pensa em moderno, logo vem à mente, pela própria definição do movimento,

algo implantado com absoluta independência do entorno.

É lógico que essa generalização pode empobrecer a análise. O movimento moderno, de tão variado e

extenso, possui diversas realidades, muitas vezes contraditórias entre si. Mies van der Rohe, por exemplo,

talvez fosse muito mais anticontextualista que Corbusier, que, em diversos projetos, demonstra refinada

sensibilidade de compreensão do sítio.

Além disso, ele possui impressionante capacidade de perceber a potencialidade de materiais locais, como,

no caso do Brasil, o azulejo e as pedras.

Por outro lado, as relações da obra com a natureza (o mimetismo das casas de Wright) ou com a história

(como Lucio Costa ou mesmo Niemeyer em Ouro Preto) não podem ser consideradas contextuais? Enfim,

embora não fosse uma bandeira moderna, o contextualismo sensibilizou, em muitos casos, os arquitetos da

época.

A CASA-CONSULTÓRIO

Com sua fama de arquiteto vanguardista, Corbusier atraiu alguns clientes esclarecidos mundo afora. Entre

eles, Pedro Curutchet (2), um médico-cirurgião argentino, que se tornou proprietário da única casa com

desenho do mestre franco-suíço construída nas Américas. Por intermédio de sua irmã, que viajava com

frequência a Paris, o argentino solicitou o projeto da casa ao arquiteto em 1948.

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Apesar do pequeno porte e do excesso de trabalho naquele período (estava desenvolvendo a Unidade de

Habitação de Marselha), Le Corbusier aceitou o encargo: estabeleceu o preço e, assim que foi pago, iniciou

os desenhos. Logo solicitou, além do programa, informações complementares sobre o entorno.

Ou seja, apesar da delicadeza da implantação, Corbusier nunca esteve no terreno, nem antes, nem depois

da obra. Para desespero dos professores de arquitetura, o projeto foi realizado apenas com o levantamento

de fotos e dados fornecido pelo proprietário. O arquiteto visitou La Plata apenas uma vez, 20 anos antes de

desenhar a casa.

O programa era complexo (residência unifamiliar e consultório) e o terreno, diminuto: apenas 180 metros

quadrados. No entanto, o sítio era interessantíssimo: em frente a um parque urbano, um dos maiores da

cidade, cujo traçado (misto de cidade-jardim com típico tabuleiro da ocupação ibero-americana rasgado por

diagonais - nota 3) já vale uma visita. Mesmo não sendo um lote ideal, o projetista percebeu a potencialidade

dele, apesar de, por carta, mencionar os “defeitos do terreno” (4).

Ele propôs uma construção em dois volumes sobre pilotis: na frente, o consultório; no fundo, a casa

propriamente dita. Entre eles, um pequeno pátio, onde, apesar do tamanho, cresceu um grande álamo, já

previsto pelo arquiteto. Na laje de cobertura do consultório situa-se um terraço-jardim, na mesma cota do

piso da sala/cozinha. Os dormitórios estão um piso acima da sala.

A circulação principal (pilotis-casa; casa-consultório) desenvolve-se através de rampa, constituindo uma

impressionante promenade architecturale em tão pequeno lote.

A conturbada construção - que contou com a colaboração de Amancio Williams (um dos mais destacados

discípulos argentinos de Corbusier e autor da célebre casa-ponte, de 1943) e de Simón Ungar - não afetou

a qualidade do projeto. A casa ficou pronta em 1954.

AMARRADO COM O ENTORNO

Ao lado da casa-consultório, havia duas construções. À direita de quem a olha da rua, situa-se uma

moradia do início do século 20, eclética, implantada no alinhamento da rua, com dois pisos, cada qual com

imenso pé-direito.

Ela segue o modelo “construtor italiano”, muito comum na época, e está colada à divisa da casa Curutchet.

À esquerda está outra residência, esta protomodernista, com um volume frontal curvo correspondente a um

quarto de cilindro.
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O segundo vizinho também possui dois pavimentos, mas bem mais baixos do que os da construção eclética.

Está recuado em relação ao alinhamento, mas também encostado na divisa do terreno de Curutchet.

Corbusier parece criar uma volumetria de transição entre as construções vizinhas. E diversos elementos

alimentam essa hipótese. Para começar, partindo do alinhamento da casa eclética, ele traça uma grelha de

brises que possui curiosas relações com os ornamentos do vizinho.

A grelha flutua em balanço e se coloca na frente do volume do consultório (que é fechado por caixilhos de

madeira e vidro) e do terraço-jardim (aberto). A altura do peitoril do terraço-jardim relaciona-se com o balcão

da construção vizinha.

O esboço de uma perspectiva inacabada (5) feita pelo escritório francês revela o conhecimento de elementos

ecléticos, o que leva a crer na relação proposital entre balcão e peitoril.

O portão de entrada, inserido em um pórtico solto sobre pilotis, parece relacionar a porta de entrada da casa

eclética, no alinhamento, e a porta da residência protomodernista, recuada. Em última instância, na casa-

consultório, não é uma coisa nem outra: é uma porta dentro do vazio.

A volumetria como um todo parece ter esse mesmo caráter: não está na frente (no alinhamento) nem atrás

(recuada), mas nas duas posições. O volume frontal alinha-se com a casa eclética, enquanto o do fundo se

aproxima da protomodernista. A casa Curutchet tem como vizinhos um bloco hermético e outro recuado e

recortado, que deixa um vazio na frente.

O Corvo e sua equipe propõem um volume permeável, uma transição, por meio da composição de cheios

(o consultório) e vazios (pilotis e terraço-jardim coberto). Corbusier também estabelece, com a altura da

construção, relações de boa vizinhança.

Para aproximar-se da cota da edificação eclética, ele cria uma laje solta (no mesmo nível do gabarito do

volume de trás, ou seja, da laje de cobertura dos dormitórios) que cobre parcialmente o terraço-jardim. Essa

mesma laje traduz um equilíbrio entre as três casas. Em contrapartida, a altura do volume da grelha de

brises aproxima-se do gabarito da construção protomoderna.

No entanto, o que o mestre moderno parece fazer não é um contextualismo que rouba texturas e informações

do entorno para se mimetizar: ele apenas conforma a volumetria a uma situação preexistente. E o faz sem

que a obra em si perca a independência enquanto objeto isolado.

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Em um extremo hipotético, se as edificações vizinhas fossem demolidas, a casa perderia a condição

contextual, mas não sofreria nenhuma baixa em relação aos preceitos corbusierianos. Mesmo porque, em

nenhum momento Le Corbusier cita, na carta (4) em que descreve o projeto ao cliente, a relação volumétrica

com o entorno.

Em dois pontos da missiva ele se aproxima da questão. O primeiro é quando afirma que “a construção é

extremamente clara e não perturbará o lugar”. E ele continua: “A construção Curutchet é independente dos

muros vizinhos, para assegurar solidez à obra e evitar perturbações das casas vizinhas e garantir a

segurança da construção”. Esses são os únicos trechos em que os vizinhos são mencionados.

Ao contrário dos contextualistas de agora, cuja argumentação é focada quase que exclusivamente nesse

tema, Corbusier demonstra não estar preocupado com a questão na mesma intensidade com que é

abordada atualmente.

Assim, se poderia supor que a adequação volumétrica é uma coincidência. No entanto, um perspectiva (4)

de Le Corbusier, datada de 1949 (e que fez parte do pacote de pranchas entregue ao cliente), traça a silhueta

exata das construções vizinhas, deixando claro o conhecimento do sítio. Se não fosse importante, esse dado

não faria parte do desenho.

OUTRO EXEMPLO

Outro projeto é pertinente para exemplificar a abordagem contextual corbusieriana: a casa Planeix, de

1928. A solução, apesar de não chegar a resultado tão brilhante, possui o mesmo refinado toque

contextualista da residência argentina.

O criador do plano Voison, que arrasava parte da Paris histórica, foi capaz de construir, na mesma cidade e

na mesma década, uma casa que se conforma aos volumes lindeiros. O vizinho à direita de quem olha a

partir da rua é um prédio residencial de vários pavimentos, implantado no alinhamento.

À esquerda, há uma seqüência de sobrados geminados, recuados pouco mais de um metro em relação ao

alinhamento. Mais uma vez, sem perder a independência da proposta (também de caráter puramente

corbusieriano, embora a casa de Paris esteja ligada ao purismo dos anos 1920), cria-se um volume de

transição entre os laterais.

A casa possui altura intermediária, entre os sobrados e o prédio. Ela está recuada, no mesmo alinhamento

dos sobrados, mas um volume saliente brota, em balanço, do meio do corpo principal, alinhando-se ao
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prédio. Para fortalecer essa relação, o gradil da casa Planeix segue o gradil das residências geminadas - só

que, em vez de aço fundido, Corbusier utilizou vidro aramado.

Essa análise gera uma pergunta: por que criar relações, em ambos os casos, com construções vizinhas tão

desprezíveis do ponto de vista histórico ou arquitetônico? O fato é que o instigante exercício de compreensão

do entorno da casa Curutchet beneficiou-se da feliz coincidência de avizinhar-se a uma obra eclética e outra

protomodernista.

Ao costurar os volumes, Corbusier dá uma resposta brilhante e afirma que sua obra é uma continuidade

histórica e não está limitada a cinco pontos. Com isso, podemos considerar a edificação em La Plata uma

casa-manifesto. Mesmo que seja ao avesso.

Isso porque a casa-consultório, que atualmente é patrimônio cultural da Argentina e abriga parte do colégio

de arquitetos locais (6), contém muito mais do que características corbusierianas como a promenade

architecturale, os cinco pontos ou o Modulor.

Sem contar o fato de estar localizada em um país periférico e por isso representar o esforço propagandístico

de Corbusier. Ao mesclar multifuncionalidade e contextualismo, a casa transforma-se em paradigma

contemporâneo.

NOTAS:

1 Desconheço análise sobre os aspectos contextualistas da casa Curutchet. No entanto, partilham de opiniões semelhantes às minhas os

arquitetos Luigi Snozzi, da Suíça, e o argentino Ruben Pesci, com quem, em ocasiões diferentes, troquei idéias sobre a casa de La Plata.

2 Leia entrevista com Pedro Curutchet, realizada por Daniel Cassoy, em PROJETO 102, outubro de 1989.

3 La Plata: ciudad patrimonio, Ruben Pesci, Fundo Editorial Cepa, La Plata, 2003.

4 Essa carta foi reproduzida em número especial sobre a casa Curutchet na Revista 3, número 8, Buenos Aires, 1996.

5 Alejandro Lapunzina, Le Corbusier´s maison Curutchet, Princeton Architectural Press, Nova York, 1997.

6 Atualmente, a casa pode ser visitada: Boulevard 53 nº 320, La Plata, Argentina. Informações: (005421) 421-8032 ou www.capba.org.ar.

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