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Sem deixar de lado todos os conceitos por ele preconizados (como, por exemplo, o Modulor ou os cinco
pontos da arquitetura), a obra, ao contextualizar-se com as edificações vizinhas, quebrou um dos grandes
A casa Curutchet é uma obra contextualista. No entanto, essa análise evidente pouco foi abordada (1), talvez
porque, entre os diversos mitos que o movimento moderno produziu, não se enquadra a contextualização.
Muito pelo contrário: quando se pensa em moderno, logo vem à mente, pela própria definição do movimento,
É lógico que essa generalização pode empobrecer a análise. O movimento moderno, de tão variado e
extenso, possui diversas realidades, muitas vezes contraditórias entre si. Mies van der Rohe, por exemplo,
talvez fosse muito mais anticontextualista que Corbusier, que, em diversos projetos, demonstra refinada
Além disso, ele possui impressionante capacidade de perceber a potencialidade de materiais locais, como,
Por outro lado, as relações da obra com a natureza (o mimetismo das casas de Wright) ou com a história
(como Lucio Costa ou mesmo Niemeyer em Ouro Preto) não podem ser consideradas contextuais? Enfim,
embora não fosse uma bandeira moderna, o contextualismo sensibilizou, em muitos casos, os arquitetos da
época.
A CASA-CONSULTÓRIO
Com sua fama de arquiteto vanguardista, Corbusier atraiu alguns clientes esclarecidos mundo afora. Entre
eles, Pedro Curutchet (2), um médico-cirurgião argentino, que se tornou proprietário da única casa com
desenho do mestre franco-suíço construída nas Américas. Por intermédio de sua irmã, que viajava com
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Apesar do pequeno porte e do excesso de trabalho naquele período (estava desenvolvendo a Unidade de
Habitação de Marselha), Le Corbusier aceitou o encargo: estabeleceu o preço e, assim que foi pago, iniciou
Ou seja, apesar da delicadeza da implantação, Corbusier nunca esteve no terreno, nem antes, nem depois
da obra. Para desespero dos professores de arquitetura, o projeto foi realizado apenas com o levantamento
de fotos e dados fornecido pelo proprietário. O arquiteto visitou La Plata apenas uma vez, 20 anos antes de
desenhar a casa.
O programa era complexo (residência unifamiliar e consultório) e o terreno, diminuto: apenas 180 metros
quadrados. No entanto, o sítio era interessantíssimo: em frente a um parque urbano, um dos maiores da
cidade, cujo traçado (misto de cidade-jardim com típico tabuleiro da ocupação ibero-americana rasgado por
diagonais - nota 3) já vale uma visita. Mesmo não sendo um lote ideal, o projetista percebeu a potencialidade
Ele propôs uma construção em dois volumes sobre pilotis: na frente, o consultório; no fundo, a casa
propriamente dita. Entre eles, um pequeno pátio, onde, apesar do tamanho, cresceu um grande álamo, já
previsto pelo arquiteto. Na laje de cobertura do consultório situa-se um terraço-jardim, na mesma cota do
A conturbada construção - que contou com a colaboração de Amancio Williams (um dos mais destacados
discípulos argentinos de Corbusier e autor da célebre casa-ponte, de 1943) e de Simón Ungar - não afetou
Ao lado da casa-consultório, havia duas construções. À direita de quem a olha da rua, situa-se uma
moradia do início do século 20, eclética, implantada no alinhamento da rua, com dois pisos, cada qual com
imenso pé-direito.
Ela segue o modelo “construtor italiano”, muito comum na época, e está colada à divisa da casa Curutchet.
À esquerda está outra residência, esta protomodernista, com um volume frontal curvo correspondente a um
quarto de cilindro.
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O segundo vizinho também possui dois pavimentos, mas bem mais baixos do que os da construção eclética.
Está recuado em relação ao alinhamento, mas também encostado na divisa do terreno de Curutchet.
Corbusier parece criar uma volumetria de transição entre as construções vizinhas. E diversos elementos
alimentam essa hipótese. Para começar, partindo do alinhamento da casa eclética, ele traça uma grelha de
A grelha flutua em balanço e se coloca na frente do volume do consultório (que é fechado por caixilhos de
madeira e vidro) e do terraço-jardim (aberto). A altura do peitoril do terraço-jardim relaciona-se com o balcão
da construção vizinha.
O esboço de uma perspectiva inacabada (5) feita pelo escritório francês revela o conhecimento de elementos
O portão de entrada, inserido em um pórtico solto sobre pilotis, parece relacionar a porta de entrada da casa
consultório, não é uma coisa nem outra: é uma porta dentro do vazio.
A volumetria como um todo parece ter esse mesmo caráter: não está na frente (no alinhamento) nem atrás
(recuada), mas nas duas posições. O volume frontal alinha-se com a casa eclética, enquanto o do fundo se
aproxima da protomodernista. A casa Curutchet tem como vizinhos um bloco hermético e outro recuado e
O Corvo e sua equipe propõem um volume permeável, uma transição, por meio da composição de cheios
(o consultório) e vazios (pilotis e terraço-jardim coberto). Corbusier também estabelece, com a altura da
Para aproximar-se da cota da edificação eclética, ele cria uma laje solta (no mesmo nível do gabarito do
volume de trás, ou seja, da laje de cobertura dos dormitórios) que cobre parcialmente o terraço-jardim. Essa
mesma laje traduz um equilíbrio entre as três casas. Em contrapartida, a altura do volume da grelha de
No entanto, o que o mestre moderno parece fazer não é um contextualismo que rouba texturas e informações
do entorno para se mimetizar: ele apenas conforma a volumetria a uma situação preexistente. E o faz sem
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Em um extremo hipotético, se as edificações vizinhas fossem demolidas, a casa perderia a condição
contextual, mas não sofreria nenhuma baixa em relação aos preceitos corbusierianos. Mesmo porque, em
nenhum momento Le Corbusier cita, na carta (4) em que descreve o projeto ao cliente, a relação volumétrica
com o entorno.
Em dois pontos da missiva ele se aproxima da questão. O primeiro é quando afirma que “a construção é
extremamente clara e não perturbará o lugar”. E ele continua: “A construção Curutchet é independente dos
muros vizinhos, para assegurar solidez à obra e evitar perturbações das casas vizinhas e garantir a
segurança da construção”. Esses são os únicos trechos em que os vizinhos são mencionados.
Ao contrário dos contextualistas de agora, cuja argumentação é focada quase que exclusivamente nesse
tema, Corbusier demonstra não estar preocupado com a questão na mesma intensidade com que é
abordada atualmente.
Assim, se poderia supor que a adequação volumétrica é uma coincidência. No entanto, um perspectiva (4)
de Le Corbusier, datada de 1949 (e que fez parte do pacote de pranchas entregue ao cliente), traça a silhueta
exata das construções vizinhas, deixando claro o conhecimento do sítio. Se não fosse importante, esse dado
OUTRO EXEMPLO
Outro projeto é pertinente para exemplificar a abordagem contextual corbusieriana: a casa Planeix, de
1928. A solução, apesar de não chegar a resultado tão brilhante, possui o mesmo refinado toque
O criador do plano Voison, que arrasava parte da Paris histórica, foi capaz de construir, na mesma cidade e
na mesma década, uma casa que se conforma aos volumes lindeiros. O vizinho à direita de quem olha a
À esquerda, há uma seqüência de sobrados geminados, recuados pouco mais de um metro em relação ao
alinhamento. Mais uma vez, sem perder a independência da proposta (também de caráter puramente
corbusieriano, embora a casa de Paris esteja ligada ao purismo dos anos 1920), cria-se um volume de
A casa possui altura intermediária, entre os sobrados e o prédio. Ela está recuada, no mesmo alinhamento
dos sobrados, mas um volume saliente brota, em balanço, do meio do corpo principal, alinhando-se ao
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prédio. Para fortalecer essa relação, o gradil da casa Planeix segue o gradil das residências geminadas - só
Essa análise gera uma pergunta: por que criar relações, em ambos os casos, com construções vizinhas tão
desprezíveis do ponto de vista histórico ou arquitetônico? O fato é que o instigante exercício de compreensão
do entorno da casa Curutchet beneficiou-se da feliz coincidência de avizinhar-se a uma obra eclética e outra
protomodernista.
Ao costurar os volumes, Corbusier dá uma resposta brilhante e afirma que sua obra é uma continuidade
histórica e não está limitada a cinco pontos. Com isso, podemos considerar a edificação em La Plata uma
Isso porque a casa-consultório, que atualmente é patrimônio cultural da Argentina e abriga parte do colégio
de arquitetos locais (6), contém muito mais do que características corbusierianas como a promenade
Sem contar o fato de estar localizada em um país periférico e por isso representar o esforço propagandístico
contemporâneo.
NOTAS:
1 Desconheço análise sobre os aspectos contextualistas da casa Curutchet. No entanto, partilham de opiniões semelhantes às minhas os
arquitetos Luigi Snozzi, da Suíça, e o argentino Ruben Pesci, com quem, em ocasiões diferentes, troquei idéias sobre a casa de La Plata.
2 Leia entrevista com Pedro Curutchet, realizada por Daniel Cassoy, em PROJETO 102, outubro de 1989.
3 La Plata: ciudad patrimonio, Ruben Pesci, Fundo Editorial Cepa, La Plata, 2003.
4 Essa carta foi reproduzida em número especial sobre a casa Curutchet na Revista 3, número 8, Buenos Aires, 1996.
5 Alejandro Lapunzina, Le Corbusier´s maison Curutchet, Princeton Architectural Press, Nova York, 1997.
6 Atualmente, a casa pode ser visitada: Boulevard 53 nº 320, La Plata, Argentina. Informações: (005421) 421-8032 ou www.capba.org.ar.
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