Você está na página 1de 6

A GRELHA ESTRUTURAL COMO ELEMENTO EXPRESSIVO E REFERÊNCIA FORMAL

A grelha ou retícula estrutural é um dos temas mais interessantes relacionados


com o aspecto formal/compositivo da arquitetura dos últimos 150 anos. Embora
retículas estejam presentes nas villas de Palladio, subjacentes às suas plantas,
como nos mostrou Wittkower1, nas fachadas dos palácios renascentistas2, e como
suporte gráfico sobre o qual dispor os elementos de arquitetura, a partir do ensino
de Durand, é apenas nas primeiras décadas do século vinte que aparece a
grelha estrutural em três dimensões, que viria a adquirir um valor equivalente às
ordens para a arquitetura greco-romana e para o Renascimento. A adoção da
grelha estrutural como elemento expressivo contradiz as explicações “oficiais" no
sentido de que a arquitetura moderna era desprovida de conteúdo iconográfico,
sendo o resultado lógico de aspectos funcionais e tecnológicos e expressão
direta de um propósito social.

As primeiras manifestações da grelha estrutural em Chicago não sugeriam que


pudesse se tornar um elemento expressivo, pois era uma solução que permitia a
reconstrução rápida do setor comercial após o terremoto e permanecia
encoberta pela alvenaria que definia a aparência dos edifícios, ainda que em
alguns casos já aparecessem aberturas maiores do que era possível antes. No
início, a aparência não era congruente com a construção, já que elementos de
origem histórica eram aplicados à estrutura metálica. Na arquitetura de Holabird
& Roche, a estrutura resistente começa a aparecer sem mediação, embora o
passado persista na base e no coroamento. A passagem do sistema de paredes
portantes ao sistema reticular abriu um novo período na história da construção
pois a arquitetura anterior tinha na parede a base do seu sistema construtivo.

1. Reliance Bldg, Chicago, Burnham & Root; 2. Brooks Blog, Chicago, Holabird & Roche; 3. Rua Franklin 14bis,
Paris, Auguste Perret

1Rudolph Wittkower, Principles of Palladian Architecture, em Architectural Principles in the Age of Humanism,
New York, w. w. Norton & Company, 1971

2 Os palácios Rucellai em Florença, de Leon Battista Alberi, e Piccolomini em Pienza, de Bernardo Rosselino,
apresentam fachadas organizadas com elementos bidimensionais que sugerem o que viria a ser uma
realidade tridimensional mais de cinco séculos mais tarde.
Quase ao mesmo tempo em que a grelha estrutural de aço era desenvolvida em
Chicago, seu equivalente em concreto armado aparecia na França pela mão
de Auguste Perret, especialmente no edifício residencial da Rue Franklin, no qual
os elementos mais aparentes da grelha –pilares e vigas– eram destacados pelo
revestimento cerâmico. Perret foi um dos primeiros a separar estrutura e
fechamento do ponto de vista da resistência, mas no que se refere à sua posição
no espaço a estrutura continuou vinculada à divisão espacial, PARTICULARMENTE
no que se refere à arquitetura residencial.

A teorização da grelha estrutural acontece em 1915, quando Le Corbusier cria e


divulga o sistema Dom-ino, o qual transcendeu suas implicações técnicas e teve
papel decisivo no desenvolvimento do sistema formal de uma parte da
arquitetura moderna, pelo menos daquela variante chamada Estilo Internacional,
e de sua assimilação fora da Europa. Sua essência estabelece uma dialética
entre dois sistemas antagônicos: o primeiro é estrutural e genérico –no sentido de
não ser afetado pelas demandas do edifício específico–, o segundo é específico
e não-estrutural, cujo papel é definir e envolver os volumes requeridos pelo
programa. Essa essência é revelada na terceira das Quatro Composições de Le
Corbusier, na qual a estrutura Dom-ino é usada como um marco de referência
geometricamente bem definido para o sistema de paredes não portantes e de
forma livre que definem os espaços interiores.

4. Esquema Dom-ino, Le Corbusier, 1915; 5. Le Corbusier, a terceira composição

Essa relação dialética, presente na maioria dos seus projetos do período entre-
guerras –casas La Roche-Jeanneret, Cook, Stuttgart, Stein e Savoie–, também está
presente na obra européia de Mies van der Rohe, especialmente no Pavilhão de
Barcelona e na casa Tugendhat, onde a regularidade da grelha de pilares
contrasta com os planos e superfícies curvas que modulam o espaço contínuo.

No entanto, até esse momento a grelha estrutural não aparece na sua


totalidade. Na maioria dos projetos mencionados vê-se principalmente os pilares
e as lajes mas não as vigas, que permanecem ocultas no interior de lajes planas.
Difícil saber a razão disso; talvez tenha a ver com a tendência de tratar as lajes
como planos horizontais ininterruptos para não compartimentar o espaço interior
e dificultar a leitura da planta livre.3

3Em relação a este tema, ver Colin Rowe, Neo-‘Classicism' and Modern Architecture, em The Mathematics of
The Ideal Villa and Other Essays, Cambridge, MIT Press, 1976.
No famoso concurso para a sede do jornal Chicago Tribune a grelha como
elemento expressivo fez sua aparição pela mão de três arquitetos europeus:
Ludwig Hilberseimer, Walter Gropius e Max Staut. Nesses projetos começa a
revelar-se uma das características mais positivas da grelha tridimensional: a de
servir como modulação e sistema de referência. Além disso, a grelha permite
converter, sem mediação, a forma construtiva em arquitetura, assim como
estabelecer uma ordem formal que enfatiza a altura dos andares e a posição das
lajes. Os três projetos revelam uma interpretação diferente do Dom-ino e sugerem
um enorme potencial para a construção formal, como veremos a seguir. Grelhas
desse tipo têm potencial de dar unidade ao edifício e transmitem informação
sobre o tamanho absoluto do objeto, pois cada módulo geralmente representa
um pavimento, além de servir como referência para explorações tridimensionais
dos elementos de fachada.

The Chicago Tribune Competition. 6. Ludwig Hilbersheimer; 7. Walter Gropius; 8. Max Taut

Todas essas características estão presentes na obra de Giuseppe Terragni,


especialmente na Casa del Fascio (Como, 1932), talvez a primeira obra
construída a explorar a grelha estrutural como elemento expressivo, tanto no
exterior como no interior do edifício. Em cada fachada a grelha é manipulada de
modo diferente, relacionando-a com superfícies em planos diferentes e aberturas
de vários tamanhos, sem nunca obscurecer a referência.4 Terragni é apenas um

4 Essa complexidade é explorada por Peter Eisenman no livro Giuseppe Terragni. Transformations,
Decompositions, Critiques, New York, The Monacelli Press, 2003, totalmente dedicado à análise de dois
edifícios: a Casa del Fascio e a Casa Giuliani-Frigerio.
de um grupo de arquitetos italianos que exploraram a grelha estrutural como
referência formal, o qual incluía também Pietro Lingeri e Ignazio Gardella.

Se no início a arquitetura moderna estava íntimamente ligada a conteúdos


sociais e até revolucionários, em outros lugares –Estados Unidos e Japão vem logo
à mente– ela foi recebida e desenvolvida como um estilo. É no período do
segundo pós-guerra que o desenvolvimento e uso da grelha tridimensional ganha
impulso, principalmente na costa leste dos EUA. Se poderia dizer que a
exploração de Louis Kahn com a grelha inicia nas casas Adler e De Vore, de
1954-55. Nelas o ponto de partida é claramente uma retícula gráfica composta
por módulos quadrados que vai sendo paulatinamente decomposta e que, ao
final do processo, não constitui um volume compacto nem regular. E mais, os
módulos quadrados se tornam independentes, desalinhados e não mais
compartilham suportes verticais. Todas essas transformações fazem com que a
grelha estrutural perca o seu aspecto unitário e seu papel de referência.

9. Casa del Fascio, Como, Giuseppe Terragni; 10 e 11. Casas Adler e De Vore, Louis Kahn

Quase ao mesmo tempo (1954-63) John Hejduk desenvolveu uma série de sete
projetos de casa, as chamadas “Texas Houses”, concomitantes com a invenção e
exploração acadêmica do famoso exercício da grelha dos 9 quadrados.5 Nessas
casas Hejduk usa uma grelha tridimensional composta por nove módulos
quadrados que servem como uma estratégia compositiva que permite
investigações espaciais tais como figura vs fundo, simetria vs assimetria, massa vs
vazio, linha vs plano, etc. Na maioria dos casos a grelha define um exterior
compacto de base retangular ou quadrada –com exceção da número 1, que
lembra a Villa Rotonda pelas adições aos quatro lados da planta, dando-lhe uma
configuração cruciforme– o qual sempre revela a estrutura de pilares, vigas e
lajes, mesmo quando as fachadas são planas e não existem espaços
intermediários, como é mais comum.

Louis Kahn voltaria a utilizar a grelha estrutural num dos seus edifícios mais
conhecidos, o Centro de Arte e Estudos Britânicos da Universidade Yale, neste
caso de maneira integral, fazendo com que fosse o elemento que distingue e
caracteriza o edifício. A grelha organiza a fachada e o interior do edifício –a
distribuição espacial segue as direções da grelha– e é a referência para uma

5 Hejduk foi um dos integrantes do grupo conhecido como Texas Rangers, que se formou na Universidade do
Texas, em Austin, a partir de 1954 e sentou as bases de um ensino de arquitetura oposto ao da Bauhaus e que
influenciou escolas em muitas partes do mundo e é ainda vigente. Ver Alexander Caragonne, The Texas
Rangers: Notes from the Architectural Underground, Cambridge, MIT Press, 1995.
série de manipulações sutis dos elementos de fechamento dos espaços –por
exemplo, a relação dos painéis de fachada com os pilares– e das sugestões sobre
o que acontece no interior do edifício: a supressão de algumas vigas revela
espaços de dupla altura no interior da biblioteca.6 Este edifício seria a referência
para vários outros que empregaram a grelha estrutural de modo muito similar,
especialmente o Auditori de Barcelona, de Rafael Moneo (1986) e a sede da
Prefeitura de Benissa, de Helio Piñón (Alicante, 2005).

12. Texas House 2, John Hejduk; 13. Centro de Arte de Yale, Louis Kahn; 14. Prefeitura de Benissa, Alicante,
Helio Piñón

Caso faltassem exemplos de que a arquitetura moderna passou a ser recebida


como um estilo bastaria examinar a produção contida no livro Five Architects7
para encontrar vários modos de manipular a herança formal moderna,
principalmente a grelha estrutural. Os dois casos mais salientes são os de Michael
Graves e Peter Eisenman. Antes de abraçar o historicismo Graves experimentou
vários modos de interpretar os elementos da arquitetura de Le Corbusier, não
apenas a grelha mas também a noção de transparência decorrente de
disposição de planos paralelos em sucessão. Em projetos como a ampliação
Benacerraf (Princeton, 1969) e as casas Hanselman (Fort Wayne, 1967) e
Snyderman (Fort Wayne, 1972), Graves vai fragmentando a grelha estrutural até
que ela é quase irreconhecível sob uma grande quantidade de adições e
subtrações coloridas cujo referente é também Le Corbusier.

15. Casa Snyderman, Michael Graves; 16 e 17. House II, Peter Eisenman

6Para uma análise detalhada deste edifício ver Edson Mahfuz, Centro de Arte y Estudos Británicos de Yale,
Louis Kahn, em Summa 149.

7 Five Architects: Eisenman, Graves, Gwathmey, Hejduk, Meier, New York, Oxford University Press, 1975.
A referência principal de Eisenman na fase inicial da sua carreira é a obra de
Terragni, à qual submete a uma série de complexas transformações que seriam o
significado de uma arquitetura não relacionada a nada que estivesse fora dela.
Nas casas I, II e III a presença da grelha é o elemento estabilizador que dá sentido
à operações formais de complexidade cada vez maior.

A arquitetura de Tadao Ando parece ter como um dos seus objetivos conferir
ordem visível ao espaço que nos circunda. Essa ordem requer geometria e
relações claras entre os espaços. Com este fim Ando desenvolveu um repertório
formal composto de retângulos, círculos e cones –completos ou parciais– os quais
de modo isolado ou em combinação resolvem todos os seus projetos. Mas o
elemento que lhes confere unidade é, frequentemente, uma grelha
tridimensional. Essas grelhas muito raramente constituem o volume total do
edifício, como é o caso do Centro de Arte Britânico de Kahn em Yale. Isso só
acontece no edifício Festival (Okinawa, 1980). Em geral a estratégia compositiva
é a da adição de blocos em torno a um volume claramente definido por uma
grelha em concreto armado em que pilares e vigas tem dimensões iguais ou
muito parecidas. Isso acontece nas casas Hirabayashi (Osaka, 1975), Matsumoto
(Wakayama, 1978) e Koshino (Hyogo, 1979). A importância da grelha como
gerador da forma para Ando fica clara em duas situações: na exposição das
grelhas na cobertura dos edifícios e nos vários casos em que o exterior é definido
por paredes portantes e a grelha aparece no interior como um elemento isento
que organiza o espaço. Tal é o caso da sede da Companhia Tayo (Osaka, 1984).

18. Edifício Festival, Okinawa, Tadao Ando; 19. Casa Matsumoto, Wakayama, Tadao Ando; 20. Casa Fuku,
Wakayama, Tadao Ando

Embora este texto apresente uma breve genealogia da grelha estrutural


moderna, o mais importante é que se trata de um material de projeto de grande
utilidade e cujo desenvolvimento não parece estar esgotado, a julgar pela
frequência com que tem sido empregado nas mais variadas situações.

Edson Mahfuz, Arq. Ph.D.


__________________________________
Professor Titular, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre RS Brasi

Você também pode gostar