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MAURICE BLANCHOT

A ESCRITURA DO DESASTRE
 O desastre arruína tudo deixando tudo no estado. Não atinge esse ou aquele, « eu»

não estou sob sua ameaça. É na medida em que, poupado, deixado de lado, o

desastre me ameaça que ele ameaça em mim o que está fora de mim, um outro que

não eu que devém passivamente outro. Não há alcance do desastre. Fora de alcance

está aquele que o desastre ameaça, não se saberia dizer se é de perto ou de longe – o

infinito da ameaça de uma certa maneira rompeu todo limite. Estamos à beira do

desastre sem que possamos situá-lo no porvir: ele é, antes, sempre já passado, e, no

entanto, estamos à beira ou sob a ameaça, todas as formulações que implicariam o

porvir se o desastre não fosse o que não vem, o que impediu toda vinda. Pensar o

desastre (se é possível, e não é possível na medida em que pressentimos que o

desastre é o pensamento) é não ter mais porvir para o pensar.

O desastre é separado, aquilo que há de mais separado.

Quando o desastre sobrevém, ele não vem. O desastre é sua iminência, mas, pois que

o futuro, tal qual o concebemos na ordem do tempo vivido, pertence ao desastre, o

desastre sempre já o retirou ou dissuadiu; não há porvir para o desastre, como não há

tempo nem espaço em que ele se cumpra.

 Ele não crê no desastre, não se pode crer no desastre, que se viva ou que se

morra. Nenhuma fé que esteja à sua medida, e ao mesmo tempo uma espécie de


N. t. Usaremos em itálico o “se” toda vez que ele tiver a função de pronome apassivador
ou índice de indeterminação do sujeito, a fim de diferenciá-lo de sua função de pronome
reflexivo.
desinteresse, desinteressado do desastre. Noite, noite branca - assim o desastre,

essa noite à qual a obscuridade falta, sem que a luz a clareie.

 O círculo, desenrolado sobre uma reta rigorosamente prolongada, reforma um

círculo eternamente privado de centro.

 A « falsa» unidade, o simulacro de unidade a comprometem mais que sua

colocação em causa direta que no resto não é possível.

 Escrever seria, no livro, devir legível para cada um, e, para si mesmo,

indecifrável? (Jabès não nos disse quase isso?)

 Se o desastre significa estar separado da estrela (o declínio que marca o extravio

quando se interrompeu a relação com o acaso de cima), ele indica a queda sob a

necessidade desastrosa. A lei seria o desastre, a lei suprema ou extrema, o excessivo

da lei não codificável: aquilo a que somos destinados sem ser concernidos? O

desastre não tem olhos para nós, ele é o ilimitado sem olhar, o que não pode se

medir em termo de fracasso nem como a perda pura e simples.

Nada é suficiente ao desastre; o que quer dizer que, da mesma maneira que a

destruição em sua pureza de ruína não lhe convém, da mesma maneira a idéia de

totalidade não saberia marcar seus limites: todas as coisas atingidas e destruídas, os

deuses e os homens reconduzidos à ausência, o Nada no lugar de tudo, é demasiado


e demasiado pouco. O desastre não é maiúsculo, talvez ele torne a morte vã; ele não

se superpõe, sempre suprindo a ele, ao espaçamento do morrer. Morrer nos dá às

vezes (com erro, sem dúvida) o sentimento de que, se nós morrêssemos,

escaparíamos ao desastre, e não de nos abandonarmos a ele – donde a ilusão de que

o suicídio libera (mas a consciência da ilusão não a dissipa, não nos deixa nos

desviar dela). O desastre do qual seria preciso atenuar – reforçando-a - a cor negra,

nos expõe a uma certa ideia da passividade. Somos passivos em relação ao desastre,

mas o desastre talvez seja a passividade, nisso passado e sempre passado.

 O desastre toma cuidado com tudo.

 O desastre: não o pensamento devindo louco, nem talvez mesmo o pensamento

enquanto porta sempre sua loucura.

 O desastre, tirando-nos esse refúgio que é o pensamento da morte, dissuadindo-

nos do catastrófico ou do trágico, desinteressando-nos de todo querer como de todo

movimento interior, não nos permite muito menos jogar com essa questão: o que tu

fizeste para o conhecimento do desastre?

O desastre está do lado do esquecimento; o esquecimento sem memória, a retração

imóvel do que não foi traçado – o imemorial talvez; lembrar-se por esquecimento, o

fora novamente.
« Será que tu sofreste para o conhecimento? » Isso nos é perguntado por

Nietzsche, com a condição de que não nos equivoquemos sobre a palavra

sofrimento: o submetimento, o « passo » do totalmente passivo em retração em

relação a toda visão, todo conhecer. A menos que o conhecimento não nos porte,

não nos deporte, sendo conhecimento não do desastre, mas como desastre e por

desastre, golpeados por esse conhecimento, entretanto não tocados, face a face com

a ignorância do desconhecido, assim esquecendo sem cessar.

 O desastre, preocupação do ínfimo, soberania do acidental. Isso nos faz

reconhecer que o esquecimento não é negativo ou que o negativo não vem após a

afirmação (afirmação negada), mas está em proporção com o que há de mais antigo,

o que viria do fundo das idades sem jamais ter sido dado.

 É verdade que, em relação ao desastre, se morre demasiado tarde. Mas isso não

nos dissuade de morrer; isso nos convida, escapando ao tempo em que é sempre

demasiado tarde, a suportar a morte inoportuna, sem relação com nada senão o

desastre como retorno.

 Jamais decepcionado, não por falta de decepção, mas a decepção sendo sempre

insuficiente.
 Não direi que o desastre é absoluto; ao contrário, ele desorienta o absoluto, vai e

vem, descorcerto nômade, no entanto com a subitidade insensível mas intensa do

fora, como uma resolução irresistível ou imprevista - que nos viria do além da

decisão.

Ler, escrever, como se vive sob a sobrevigilância do desastre: exposto à

passividade fora da paixão. A exaltação do esquecimento.

Não és tu que falarás; deixa o desastre falar em ti, que seja por esquecimento ou por

silêncio.

 O desastre já ultrapassou o perigo, mesmo quando estamos sob a ameaça de -. O

traço do desastre é que não se está nele jamais senão sob sua ameaça e, como tal,

ultrapassagem ao perigo.

 Pensar seria nomear (chamar) o desastre como pensamento dissimulado.

Não sei como cheguei a este ponto, mas pode ser que nele chego ao pensamento que

conduz a se manter à distância do pensamento; pois ele dá isso: a distância. Mas ir à

ponta do pensamento (sob a espécie desse pensamento da ponta, da beira), não é

possível somente mudando de pensamento? Daí essa injunção: não mudes de

pensamento; repete-o, se o puderes.


 O desastre é o dom, ele 1 dá o desastre: é como se ele passasse além do ser e do

não-ser. Ele não é advento (o próprio do que chega) – isso não chega, de sorte que

eu, nem por isso, chego mesmo a esse pensamento, exceto sem saber, sem a

apropriação de um saber. Ou então, ele é advento do que não chega, do que viria

sem chegada, fora do ser, e como que por deriva? O desastre póstumo?

 Não pensar: isso, sem retenção, com excesso, na fuga pânica do pensamento.

 Ele dizia para si mesmo: tu não te matarás, teu suicídio te precede. Ou então: ele

morre inapto a morrer.

 O espaço sem limite de um sol que testemunharia não para o dia, mas para a noite

liberada de estrelas, noite múltipla.

 «Conhece qual ritmo mantém os homens» (Arquilóquio). Ritmo ou linguagem.

Prometeu: «Neste ritmo, sou tomado». Configuração cambiante. O que resulta do

ritmo? O perigo do enigma do ritmo.

 »A menos que não exista no espírito de quem quer que tenha sonhado os

humanos, até a si, nada senão um cômputo exato de puros motivos rítmicos do ser,

que dele são os reconhecíveis signos? » (Mallarmé.)

1
Es gibt.
 O desastre não é sombrio; ele liberaria de tudo se pudesse ter relação com alguém,

ir-se-ia conhecê-lo em termo de linguagem e ao termo de uma linguagem por um

gaio saber. Mas o desastre é desconhecido, o nome desconhecido para aquilo que no

pensamento mesmo nos dissuade de ser pensado, distanciando-nos pela

proximidade. Só para se expor ao pensamento do desastre que desfaz a solidão e

desborda toda espécie de pensamento, como a afirmação intensa, silenciosa e

desastrosa do fora.

 Uma repetição não religiosa, sem lamento nem nostalgia, retorno não desejado; o

desastre não seria então repetição, afirmação da singularidade do extremo? O

desastre ou o inverificável, o impróprio.

 Não há solidão se esta não desfaz a solidão para expor o só ao fora múltiplo.

 O esquecimento imóvel (memória do imemorável): nisso se des-creve o desastre

sem desolação, na passividade de um deixar-ir que não renuncia, não anuncia, senão

o impróprio retorno. O desastre, nós o conhecemos talvez sob outros nomes talvez

jocosos, declinando todas as palavras, como se pudesse haver para as palavras um

todo.
 A calma, a queimadura do holocausto, a nadificação de meio-dia - a calma do

desastre.

 Ele não está excluído, mas como alguém que não entraria mais em nenhuma

parte.

 Penetrado pela passiva doçura, assim ele tem como que um pressentimento –

lembrança do desastre que seria a mais doce imprevisão. Não somos

contemporâneos do desastre: está aí a sua diferença, e essa diferença é a sua ameaça

fraterna. O desastre seria de mais, em demasia, excesso que não se marca senão em

impura perda.

 Na medida em que o desastre é pensamento, ele é pensamento não desastroso,

pensamento do fora. Não temos acesso ao fora, mas o fora sempre já nos tocou na

cabeça, sendo o que se precipita.

O desastre, o que se desestende, a desestendida sem a obrigação rigorosa de uma

destruição, o desastre revém, ele seria sempre o desastre de depois do desastre,

retorno silencioso, não assolador, por onde ele se dissimula. A dissimulação, efeito

de desastre.
 «Mas não há, aos meus olhos, grandeza senão na doçura» (S.W2.) Direi antes:

nada de extremo senão pela doçura. A loucura por excesso de doçura, a loucura

doce.

Pensar, apagar-se: o desastre da doçura.

 «A única explosão é um livro» (Mallarmé).

 O desastre inexperimentado, aquilo que se subtrai a toda possibilidade de

experiência - limite da escritura. É preciso repetir: o desastre des-creve. O que não

significa que o desastre, como força de escritura, se exclua dela, seja fora de

escritura, um fora-do-texto.

 É o desastre obscuro que porta a luz.

 O horror – o honor - do nome que arrisca sempre a devir sobre-nome, retomado

de maneira vã pelo movimento do anônimo: o fato de ser identificado, unificado,

fixado, parado num presente. O comentador - crítica, elogio - diz: é isso que tu és,

que tu pensas; o pensamento de escritura, sempre dissuadido, esperado pelo desastre,

eis que ele é tornado visível no nome, sobrenomeado, e como que salvo, no entanto,

entregue ao elogio ou ou à crítica (é o mesmo), quer dizer, prometido a uma

sobrevida. As covas dos nomes, as cabeças jamais vazias.

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Simone Weil.
 O fragmentário, mais que a instabilidade (a não-fixação), promete a descorcerto, o

desarranjo.

 Schleiemacher: produzindo uma obra, renuncio a me produzir e a me formular a

mim mesmo, cumprindo-me em alguma coisa exterior e inscrevendo-me na

continuidade anônima da humanidade – donde a relação obra de arte e encontro com

a morte: nos dois casos, nós nos aproximamos de um limiar perigoso, de um ponto

crucial onde nós somos bruscamente revirados. Da mesma maneira, Friedrich

Schlegel: aspiração a se dissolver na morte: «O humano é por toda parte o mais alto,

e mesmo mais alto que o divino». Passagem ao limite. Resta possível que, desde que

escrevemos e por tão pouco que escrevamos – o pouco é somente em demasia -, nós

saibamos que nos aproximamos do limite – o limiar perigoso - onde a reviravolta

está em jogo.

Para Novalis, o espírito não é agitação, inquietude, mas repouso (o ponto neutro sem

contradição), força da gravidade, densidade, Deus sendo «de um metal infinitamente

compacto, o mais denso e o mais corpóreo de todos os seres». «O artista em

imortalidade» deve trabalhar para o cumprimento do zero onde alma e corpo devêm

mutuamente insensíveis. A apatia, dizia Sade.

 A lassidão diante das palavras é também o desejo das palavras espaçadas,

rompidas em seu poder que é sentido, e em sua composição que é sintaxe ou


continuidade do sistema (com a condição de que o sistema tenha sido em alguma

sorte previamente acabado, e o presente, cumprido). A loucura que não é jamais de

agora, mas o prazo da não-razão, o «ele será louco amanhã», loucura da qual não se

sabe se servir para aumentar, adensar ou aliviar seu pensamento.

 A prosa tagarela: o balbucio da criança, e, no entanto, o homem que baba, o

idiota, o homem das lágrimas, que não se retém mais, que se relaxa, sem palavras

ele também, desnudado de poder, mas mesmo assim mais próximo da palavra que

corre e escorre, do que da escritura que se retém, mesmo que fosse para além da

maestria. Nesse sentido, não há silêncio senão escrito, reserva dilacerada, entalhe

que torna impossível o detalhe.

 Poder = chefe de grupo, ele deriva do dominador. Macht é o meio, a máquina, o

funcionamento do possível. A máquina delirante e desejante ensaia em vão fazer

funcionar o não-funcionamento; o não-poder não delira, ele tem sempre já saído do

sulco, da sulcagem, pertencendo ao fora. Não é suficiente dizer (para dizer o não-

poder): tem-se o poder, com a condição de não fazer uso dele, pois essa é a definição

da divindade; a abstenção, o distanciamento da manutenção, não é suficiente, se ela

não pressente que é, de antemão, sinal do desastre. Só o desastre mantém à distância

a maestria. Anelo (por exemplo) um psicanalista a quem o desastre faria sinal. Poder


N. t. Palavra alemã que significa “poder” na expressão nietzschiniana “Will der Macht”
(Vontade de poder). Etimologicamente, Macht deriva do verbo “machen” (fazer).
sobre o imaginário, com a condição de entender o imaginário como o que se esquiva

ao poder. A repetição como não-poder.

 Temos constantemente necessidade de dizer (de pensar): chegou-me aí alguma

coisa (de muito importante), o que quer dizer ao mesmo tempo, isso não saberia ser

da ordem do que chega, nem da ordem do que importa, mas, antes, exporta e

deporta. A repetição.

 Entre certos « selvagens » (sociedade sem estado), o chefe deve provar sua

dominação sobre as palavras: nenhum silêncio. Ao mesmo tempo, a palavra do

chefe não é dita para ser escutada – ninguém presta atenção à palavra do chefe, ou

antes, finge-se a desatenção; e o chefe, efetivamente, não diz nada, repetindo como

que a celebração das normas de vida tradicionais. A qual demanda da sociedade

primitiva responde essa palavra vazia que emana do lugar aparente do poder? Vazio,

o discurso do chefe o é justamente porque é separado do poder – é a sociedade ela

mesma que é o lugar do poder. O chefe deve se mover no elemento da palavra, quer

dizer, no oposto da violência. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de

palavra vazia (não vazia, tradicional, de transmissão) que ele deve à tribo, é a dívida

infinita, a garantia que interdita ao homem de palavra devir homem de poder.


 Há questão, e, entretanto, nenhuma dúvida; há questão, mas nenhum desejo de

resposta; há questão, e nada que possa ser dito, mas somente a dizer.

Questionamento, colocação em causa que ultrapassa toda possibilidade de questão.

 Aquele que critica ou repele o jogo, já entrou no jogo.

 Como se pode pretender: « O que tu não sabes de maneira alguma, de maneira

alguma saberia te atormentar? » Não sou o centro daquilo que ignoro, e o tormento

tem seu saber próprio que recobre minha ignorância.

 O desejo: faça com que tudo seja mais que tudo e permaneça o tudo.

 Escrever pode ter ao menos esse sentido: usar os erros. Falar os propaga, os

dissemina fazendo crer numa verdade.

Ler: não escrever; escrever na interdição de ler.

Escrever: recusar escrever - escrever por recusa, de sorte que seja suficiente que se

lhe peça algumas palavras para que uma espécie de exclusão se pronuncie, como se

se o obrigasse a sobreviver, a se prestar à vida para continuar a morrer. Escrever por

ausência.

 Solidão sem consolação. O desastre imóvel que, no entanto, se aproxima.


 Como poderia haver um dever de viver? A questão mais séria: o desejo de morrer

seria demasiado forte para se satisfazer com minha morte como com aquilo que o

esgotaria, e ele significa paradoxalmente: que os outros vivam sem que a vida lhes

seja uma obrigação. O desejo de morrer libera do dever de viver, quer dizer, tem

esse efeito de que se vive sem obrigação (mas não sem responsabilidade, a

responsabilidade estando além da vida).

 A angústia de ler: é que todo texto, por tão importante, tão agradável e tão

interessante que seja (e quanto mais ele dá a impressão de sê-lo), é vazio – não

existe no fundo; é preciso transpor um abismo, e se não se salta, não se compreende.

 O « misticismo» de Wittgenstein, no fora de sua confiança na unidade, viria do

fato de que ele crê que se pode mostrar lá onde não se poderia falar. Mas, sem

linguagem, nada se mostra. E calar-se é ainda falar. O silêncio é impossível. Eis

porque nós o desejamos. Escritura (ou Dizer) precedendo todo fenômeno, toda

manifestação ou monstração: todo aparecer.

 Não escrever – que longo caminho antes de chegar a tal ponto, e isso não é jamais

seguro, não é nem uma recompensa nem um castigo, é preciso somente escrever na

incerteza e na necessidade. Não escrever, efeito de escritura; como uma marca da

passividade, um recurso da desgraça. Quantos esforços para não escrever, para que,
escrevendo, eu não escreva, apesar de tudo - e finalmente eu cesse de escrever, no

momento último da concessão; não no desespero, mas como o inesperado: o favor

do desastre. O desejo não satisfeito e sem satisfação e, entretanto, sem negativo.

Nada de negativo em « não escrever », a intensidade sem maestria, sem soberania, a

obsessão do totalmente passivo.

 Desfalecer sem falta: marca da passividade.

 Querer escrever, que absurdo: escrever é a decadência do querer, como a perda do

poder, a queda da cadência, o desastre ainda.

 Não escrever: a negligência, a incúria não são suficientes para isso; a intensidade

de um desejo fora da soberania talvez - uma relação de submersão com o fora. A

passividade que permite se manter na familiaridade do desastre.

Ele põe toda sua energia para não escrever, para que, escrevendo, escreva por

desfalecimento, na intensidade do desfalecimento.

 O não-manifesto da angústia. Angustiado, tu não o serias.

 O desastre é aquilo que não se pode acolher, salvo como a iminência que gratifica,

a espera do não-poder.
 Que as palavras cessem de ser armas, meios de ação, possibilidades de salvação.

Reportar-se ao desconcerto.

Quando escrever, não escrever, é sem importância, então a escritura muda – que ela

tenha lugar ou não, é a escritura do desastre.

 Não confiemos no fracasso: seria ter a nostalgia do êxito.

 Para além da seriedade, há o jogo, mas para além do jogo, procurando aquilo que

engana o adversário: o gratuito, ao qual não se pode se esquivar, o casual sob o qual

tombo, sempre já tombado.

Ele passa dias e noites no silêncio. É a palavra, isso.

 Destacado de tudo, inclusive de seu destacamento.

 Um engodo do eu [moi]: sacrificar o eu [moi] empírico para preservar um eu [Je]

transcendental ou formal, nadificar-se para salvar sua alma (ou o saber, estando

compreendido nisso o não-saber).

 Não escrever não deveria reenviar a um «não querer escrever», nem também,

embora isso seja mais ambíguo, a um «Eu não posso escrever» que na verdade

marca ainda, de uma maneira nostálgica, a relação de um « eu [je]» com a potência


sob a forma de sua perda. Não escrever sem poder, o que supõe a passagem pela

escritura.

 Onde há o menos de poder? Na palavra, na escritura? Quando eu vivo, quando eu

morro? Ou então, quando morrer não me deixa morrer.

 É uma preocupação ética o que te distancia do poder? O poder liga, o não-poder

desliga. Às vezes o não-poder é portado pela intensidade do indesejável.

 Sem certeza, ele não duvida; ele não tem o apoio da duvida.

 O pensamento do desastre, se não extingue o pensamento, nos torna

despreocupados a respeito das sequências que pode ter para nossa vida esse

pensamento mesmo, ele afasta toda idéia de fracasso e de êxito, toma o lugar do

silêncio ordinário, aquele ao qual falta a palavra, por um silêncio à parte, no

intervalo, onde é o outro que se anuncia se calando.

 Retiramento e não desenvolvimento. Tal seria a arte, à maneira do Deus de Isaac

Luria que não cria senão se excluindo.

 Escrever é evidentemente sem importância, não importa escrever. É a partir daí

que a relação com a escritura se decide.


 A questão que repousa sobre o desastre já lhe pertence: ela não é interrogação, é

prisma, demanda, chamada de socorro; o desastre chama pelo desastre para que a

idéia de salvação, de redenção, não se afirme ainda, causando pavores destroçantes,

mantendo o medo.

O desastre: contratempo.

 É o outro que me expõe à «unidade», fazendo-me crer numa singularidade

insubstituível, como se eu não devesse faltar a ela, sempre me retirando daquilo que

me tornaria único: não sou indispensável, não importa quem seja, em mim, chamado

pelo outro como aquele que lhe deve socorro – o não-único, o sempre substituído. O

outro é, ele também, sempre outro, entretanto se prestando a um, outro que não é

nem este nem aquele e, todavia, a cada vez, o só, a quem devo tudo, inclusive a

perda de mim [moi].

A responsabilidade da qual sou encarregado não é a minha e faz que eu não seja

mais «eu» [moi].

 « Sê paciente ». Palavra simples. Ela exigia muito. A paciência já me retirou não

somente de minha parte voluntária, mas de meu poder de ser paciente: se eu posso

ser paciente, é que a paciência não usou em mim esse eu [moi] onde eu me retenho.

A paciência me abre de uma parte a outra até a uma passividade que é o «passo do

totalmente passivo», que abandonou, portanto, o nível de vida onde passivo seria
somente oposto a ativo: da mesma maneira que tombamos no fora da inércia (a coisa

inerte que padece sem reagir, com seu corolário, a espontaneidade viva, atividade

puramente autônoma). «Sê paciente». Quem diz isso? Ninguém que possa dizê-lo e

ninguém que possa entendê-lo. A paciência não se recomenda nem se ordena: é a

passividade do morrer pela qual um eu [moi] que não é mais eu [moi] responde pelo

ilimitado do desastre, isso de que nenhum presente se lembra.

 Pela paciência, tomo a cargo a relação ao Outro do desastre que não me permite

assumi-lo, nem mesmo permanecer eu [moi] para sofrê-lo. Pela paciência se

interrompe toda relação de mim [moi] com um eu [moi] paciente.

 Desde que o silêncio iminente do desastre imemorial o fizera, anônimo e sem eu

[moi], se perder na outra noite em que precisamente a noite opressora, vazia, para

sempre dispersada, despedaçada, estrangeira, o separava e o separava para que a

relação com o outro o assediasse com sua ausência, com seu infinito longínquo, era

preciso que a paixão da paciência, a passividade de um tempo sem presente -

ausente, a ausência de tempo – fosse sua só identidade, restrita a uma singularidade

temporária.

 Se há relação entre escritura e passividade, é que uma e a outra supõem o

apagamento, a extenuação do sujeito: supõem uma mudança de tempo: supõem que

entre ser e não ser alguma coisa que não se cumpre, chega, entretanto, como tendo
desde sempre já sobrevindo - o desobramento do neutro, a ruptura silenciosa do

fragmentário.

 A passividade: não podemos evocá-la senão por uma linguagem que se subverta a

si mesma. Outrora, eu chamava pelo sofrimento: sofrimento tal como eu não podia

sofrê-lo, de sorte que, nesse não-poder, o eu [moi] excluído da maestria e de seu

estatuto de sujeito em primeira pessoa, destituído, dessituado e até mesmo

desobrigado, pudesse se perder como eu [moi] capaz de sofrer; há sofrimento,

haveria sofrimento, não há mais « eu [je] » sofrente, e o sofrimento não se apresenta,

não é portado (menos ainda vivido) no presente, é sem presente, como é sem

começo nem fim: o tempo radicalmente mudou de sentido. O tempo sem presente, o

eu [moi] sem eu [moi], nada do qual se possa dizer que a experiência - uma forma

de conhecimento - o revelaria ou o dissimularia.

Mas a palavra sofrimento é por demais equívoca. O equívoco não será jamais

dissipado, já que, falando da passividade, nós a fazemos aparecer, mesmo que seja

na noite em que a dispersão a marca e a demarca. É-nos muito difícil - e tanto

quanto mais importante - falar da passividade, pois ela não pertence ao mundo e não

conhecemos nada que seria totalmente passivo (conhecendo-o, nós o

transformaríamos inevitavelmente). A passividade oposta à atividade, eis o campo

sempre restrito de nossas reflexões. O submeter-se, o submetimento - para formar

essa palavra que não é senão um duplo de subitamente, a mesma palavra esmagada

-, a imobilidade inerte de certos estados, ditos de psicose, o padecer da paixão, a


obediência servil, a receptividade noturna que a espera mística supõe, o

despojamento portanto, o arrancamento de si a si mesmo, o destacamento pelo qual

se se destaca, inclusive do destacamento, ou então, a queda (sem iniciativa nem

consentimento) para fora de si - todas essas situações, mesmo se algumas estão no

limite do cognoscível e designam uma face oculta da humanidade, não nos falam

quase em nada daquilo que buscamos entender deixando se pronunciar essa palavra

desconsiderada: passividade.

 Há a passividade que é quietude passiva (figurada talvez por aquilo que sabemos

do ascetismo); também a passividade que está além da inquietude, sempre retendo

aquilo que há de passivo no movimento fervoroso, desigual-igual, sem parada, do

erro sem meta, sem fim, sem iniciativa.

 O discurso sobre a passividade a trai necessariamente, mas pode retomar alguns

dos traços pelos quais ele é infiel: não somente o discurso é ativo, ele se projeta, se

desenvolve segundo as regras que lhe asseguram uma certa coerência; não somente

ele é sintético, respondendo a uma certa unidade de palavra respondendo a um

tempo que, sempre memória de si mesmo, se retém num conjunto sincrônico -

atividade, desenvovimento, coerência, unidade, presença de conjunto, todos

caracteres que não podem se dizer da passividade, mas há mais: o discurso sobre a

passividade a faz aparecer, a apresenta e a representa, enquanto que, talvez (talvez),

a passividade seja essa parte «inumana» do homem que, destituído do poder,


afastado da unidade, não saberia dar lugar a nada que apareça ou se mostre, não se

assinalando ou se indicando e, assim, pela dispersão e pela defecção, caindo sempre

debaixo daquilo que se pode anunciar dela, mesmo que seja a título provisório.

De onde resulta que, se nos sentimos impelidos a dizer alguma coisa da passividade,

é na medida em que isso importa ao homem sem fazê-lo passar do lado do

importante, na medida também em que a passividade, escapando ao nosso poder de

falar dela bem como ao nosso poder de fazer-lhe a prova (de prová-la), se põe ou se

depõe como aquilo que interromperia nossa razão, nossa palavra, nossa experiência.

 O que é estranho, é que a passividade não é jamais bastante passiva: é nisso que

se pode falar de um infinito; talvez somente porque a passividade se esquiva a toda

formulação, mas parece que há nela como que uma exigência que a chamaria para

sempre chegar aquém dela mesma - não passividade, mas exigência da passividade,

movimento do passado em direção ao inultrapassável.

Passividade, paixão, passado, pas (ao mesmo tempo negação e rastro ou movimento

da marcha), esse jogo semântico nos dá um deslizamento de sentido, mas nada a que

possamos nos ligar como a uma resposta que nos contentaria.

 A recusa, diz-se, é o primeiro grau da passividade - mas se ela é deliberada e

voluntária, se exprime uma decisão, mesmo que negativa, ela não permite ainda

contrastar com o poder de consciência, permanecendo no melhor um eu [moi] que

recusa. É verdade que a recusa tende ao absoluto, a uma espécie de incondicional: é


o nó da recusa que se torna sensível pelo inexorável «Eu preferiria não (fazê-lo)» de

Bartleby o escrivão, uma abstenção que não teve que ser decidida, que precede toda

decisão e que é mais que uma denegação, mas, antes, uma abdicação, a renunciação

(jamais pronunciada, jamais esclarecida) a nada dizer – a autoridade de um dizer -

ou ainda, a abnegação recebida como o abandono do eu [moi], o desleixamento da

identidade, a recusa de si que não se crispa sobre a recusa, mas abre ao

desfalecimento, à perda do ser, ao pensamento «Eu não o farei», teria ainda

significado uma determinação enérgica, chamando uma contradição enérgica. « Eu

preferiria não...» pertence ao infinito da paciência, não deixando brecha à

intervenção dialética: caímos para fora do ser, no campo do fora onde, imóveis,

marchando com um passo igual e lento, vão e vêm os homens destruídos.

 A passividade é sem medida: é que ela desborda o ser, o ser na ponta de ser - a

passividade de um passado já escorrido que jamais foi: o desastre entendido,

subentendido não como um evento do passado, mas como o passado imemorial (Le

Très-Haut) que revém dispersando pelo retorno o tempo presente em que ele seria

vivido como revindo.

 A passividade: podemos evocar situações de passividade, a desgraça, o

esmagamento final do estado concentracionário, a servidão do escravo sem mestre,

caído abaixo da necessidade, o morrer como a desatenção à saída mortal. Em todos


N. t. Referência ao romance Le Très-Haut, do próprio Maurice Blanchot.
esses casos, reconhecemos, mesmo que seja de um saber falsificante, aproximativo,

traços comuns: o anonimato, a perda de si, a perda de toda soberania, mas também

de toda subordinação, a perda da residência, o erro sem lugar, a impossibilidade da

presença, a dispersão (a separação).

 Na relação de mim [moi] (o mesmo) com Outrem, Outrem é o longínquo, o

estrangeiro, mas se eu inverto a relação, Outrem se relaciona comigo [moi] como se

eu fosse o Outro e me faz então sair de minha identidade, pressionando-me até o

esmagamento, retirando-me, sob a pressão do totalmente próximo, do privilégio de

ser em primeira pessoa e, arrancado a mim mesmo, deixando uma passividade

privada de si (a alteridade mesma, o outro sem unidade), o inassujeitado, ou o

paciente.

 Na paciência da passividade, sou aquele que qualquer um pode substituir, o não-

indispensável por definição e que, todavia, não pode se dispensar de responder por e

para aquilo que ele não é: uma singularidade de empréstimo e de encontro – a do

refém de fato (como fala Levinas), que é a garantia não consentidora, não escolhida,

de uma promessa que ele não fez, o insubstituível que não detém seu lugar. É pelo

outro que eu sou o mesmo, o outro que sempre me retirou de mim mesmo O Outro,

se ele recorre a mim [moi], é como a alguém que não é eu [moi], o primeiro a vir ou

o último dos homens, em nada o único que eu gostaria de ser; é nisso que ele me

designa à passividade, dirigindo-se em mim [moi] ao morrer mesmo.


(A responsabilidade de que estou encarregado não é a minha e faz com que eu não

seja eu [moi].)

 Se, na paciência da passividade, o eu [moi] sai do eu [moi] de tal sorte que, nesse

fora, lá onde falta o ser sem que se designe o não-ser, o tempo da paciência, tempo

da ausência de tempo, ou tempo do retorno sem presença, tempo do morrer, não tem

mais suporte, não encontra mais alguém para portá-lo, suportá-lo, por qual

linguagem outra que fragmentária, aquela do estilhaçamento, da dispersão infinita, o

tempo pode ser marcado, sem que essa marca o torne presente, o proponha a uma

palavra de nominação? Mas o fragmentário do qual não há experiência nos escapa

também. O silêncio não ocupa o lugar dele, provavelmente só a reticência daquilo

que não sabe mais se calar, não sabendo mais falar.

 A morte do Outro: uma morte dupla, pois o Outro é já a morte e pesa sobre mim

como a obsessão da morte.

 Na relação de mim [moi] a Outrem, Outrem é aquilo que eu não posso atingir, o

Separado, o Altíssimo, aquilo que escapa a meu poder e assim o sem-poder, o

estrangeiro e o desmunido. Mas, na relação de Outrem a mim [moi], tudo parece se

revirar: o longínquo devém o próximo, essa proximidade devém a obsessão que me

lesa, pesa sobre mim [moi], me separa de mim [moi], como se a separação (que

mensurava a transcendência de mim [moi] a Outrem) fizesse sua obra em mim


mesmo, me desidentificando, me abandonando a uma passividade, sem iniciativa e

sem presente. E então outrem devém, antes, o Pressionante, o Sobre-eminente, até

mesmo o Perseguidor, aquele que me oprime, me constrange, me desfaz, aquele que

me obriga não menos do que ele não me contraria ao me fazer responder por seus

crimes, ao me encarregar de uma responsabilidade sem medida que não saberia ser a

minha, já que ela iria até a «substituição». De tal sorte que, segundo essa visão, a

relação de Outrem a mim tenderia a aparecer como sadomasoquista, se ela não nos

fizesse tombar prematuramente para fora do mundo - do ser – onde somente normal

e anomalia têm um sentido.

Resta que, segundo a designação de Levinas, o outro tomando o lugar do

Mesmo, como o Mesmo substitui o Outro por si, é em mim doravante - um eu [moi]

sem mim [moi] - que os traços da transcendência (de uma transdescendência) se

marcam, o que conduz a essa alta contradição, a esse paradoxo de um alto sentido: é

que lá onde a passividade me descobre e me destrói, ao mesmo tempo estou forçado

a uma responsabilidade que não somente me excede mas que não posso exercer, já

que não posso nada e não existo mais como eu [moi]. É essa passividade

responsável que seria Dizer, porque, antes de todo dito, e fora do ser (no ser há

passividade e há atividade, em simples oposição e correlação, inércia e dinamismo,

involuntário e voluntário), o Dizer dá e dá resposta, respondendo ao impossível e

pelo impossível.

Mas o paradoxo não suspende uma ambiguidade: se eu [moi] sem mim [moi]

estou à prova (sem prová-la) da passividade mais passiva quando outrem me esmaga
até à alienação radical, é a outrem que tenho ainda relação, não é, antes, ao « eu

[je] » do mestre, ao absoluto da potência egoísta, ao dominador que predomina e que

maneja a força até à perseguição inquisitorial? Dito de outro modo, a perseguição

que me abre à mais longa paciência e que é em mim a paixão anônima, eu não devo

somente responder por isso me encarregando disso fora de meu consentimento, mas

devo também responder a ela pela recusa, pela resistência e pelo combate, revindo

ao saber (revindo, se for possível – pois pode ser que não haja retorno), ao eu [moi]

que sabe, e que sabe que está exposto, não a Outrem, mas ao « Eu [Je] » adverso, à

Onipotência egoísta, a Vontade assassina. Naturalmente, por aí, esta me atrai em seu

jogo e me faz seu cúmplice, mas é porque é sempre preciso que haja ao menos duas

linguagens ou duas exigências, uma dialética, a outra não dialética, uma onde a

negatividade é a tarefa, a outra onde o neutro contrasta com o ser e o não-ser, do

mesmo modo que seria preciso à vez ser o sujeito livre e falante e desaparecer como

o paciente-passivo que atravessa o morrer e que não se mostra.

 A fraqueza é o choramento sem lágrimas, o murmúrio da voz queixosa ou o

rumor daquilo que fala sem palavras, o esgotamento, o exaurimento da aparência. A

fraqueza se esquiva a toda violência que não pode nada (mesmo que ela fosse a

soberania opressiva) sobre a passividade do morrer.

 Nós falamos sobre uma perda de palavra - um desastre iminente e imemorial -, da

mesma maneira que não dizemos nada senão na medida em que podemos fazer
entender previamente que nós o desdizemos, por uma espécie de prolepse, não para

finalmente não dizer nada, mas para que o falar não pare na palavra, dita ou a dizer

ou a desdizer: deixando pressentir que alguma coisa se diz, não se dizendo: a perda

de palavra, o choramento sem lágrimas, a rendição que a invisível passividade do

morrer anuncia - sem cumpri-la – a fraqueza humana.

 Que outrem não tenha outro sentido que o recurso infinito que eu lhe devo, que

ele seja o apelo por socorro sem termo ao qual nenhum outro que eu [moi] saberia

responder, não me torna insubstituível, menos ainda o único, mas me faz

desaparecer no movimento infinito de serviço onde não sou senão um singular

temporário, um simulacro de unidade: não posso tirar nenhuma justificação (nem

para valer nem para ser) de uma exigência que não se dirige a uma particularidade,

não pede nada à minha decisão e me excede de todas as maneiras até me

desindividualizar.

 A interrupção do incessante é o próprio da escritura fragmentária: a interrupção

tendo em alguma maneira o mesmo sentido que aquilo que não cessa, ambos efeito

da passividade; lá onde não reina o poder, nem a iniciativa, nem o inicial de uma

decisão, o morrer é o viver, a passividade da vida, escapada a si mesma, confundida

com o desastre de um tempo sem presente e que nós suportamos esperando, espera

de uma desgraça não por vir, mas sempre já sobrevinda e que não pode se

apresentar: nesse sentido, futuro, passado são votados à indiferença, já que um e


outro sem presente. Daí que os homens destruídos (destruídos sem destruicão) sejam

como que sem aparência, invisíveis mesmo quando os vemos, e que se eles falam, é

pela voz dos outros, uma voz sempre outra que de alguma maneira os acusa, os põe

em causa, obrigando-os a responder por uma desgraça silenciosa que eles portam

sem consciência.

 É como se ele dissesse: «Que possa a felicidade vir para todos, com a condição de

que, por esse anelo, eu seja excluído dela».

 Se Outrem não é meu inimigo (como ele o é às vezes em Hegel - mas um inimigo

benevolente – e, sobretudo, em Sartre em sua primeira filosofia), como ele pode

devir aquele que me arranca à minha identidade e cuja pressão em qualquer espécie

de posição – aquela do próximo - me fere, me fatiga, me persegue me atormentando

de tal sorte que eu [moi] sem mim [moi] devenha responsável desse tormento, dessa

lassidão que me destitui, a responsabilidade sendo o extremo do submetimento:

aquilo pelo qual é preciso que eu responda, enquanto estou sem resposta e estou sem

mim [moi], salvo por empréstimo e por simulacro ou pelo « lugar-tenente» do

mesmo: o lugar-tenente canônico. A responsabilidade seria a culpabilidade inocente,

o golpe desde sempre recebido que me torna tanto mais sensível a todos os golpes. É

o traumatismo da criação ou do nascimento. Se a criatura é «aquele que deve sua

situação ao favor do outro», eu sou criado responsável, de uma responsabilidade

anterior ao meu nascimento, assim como ela é exterior ao meu consentimento, à


minha liberdade, nascido, por um favor que se acha ser uma predestinação, à

desgraça de outrem, que é a desgraça de todos. Outrem, diz Levinas, é

constrangedor, mas não é de novo a perspectiva sartriana: a náusea que nos dá, não a

falta de ser, mas o demasiado de ser, um excedente do qual eu gostaria de me

desinvestir, mas do qual eu não saberia me desinteressar, pois, até no desinteresse, é

ainda o outro que me vota a ocupar seu lugar, a não ser mais do que seu lugar-

tenente?

 Eis aqui talvez uma resposta. Se Outrem me põe em questão até me desnudar de

mim, é porque ele mesmo é o absoluto desnudamento, a suplicação que desconfessa

o eu [moi] em mim [moi] até o suplício.

 O não-concernente (nesse sentido de que um [moi] e o outro não podem ocupar

juntos o mesmo espaço, nem se reunir num mesmo tempo: ser contemporâneos), é

de saída outrem para mim [moi], depois também eu [moi] como outro do que eu

[moi], isso que em mim [moi] não coincide comigo [moi], minha eterna ausência, o

que nenhuma consciência pode readquirir, que não tem nem efeito nem eficácia e

que é o tempo passivo, o morrer que me é, ainda que sem partilha, comum com

todos.

 Outrem, não posso acolhê-lo, mesmo que fosse por uma aceitação infinita. Tal é o

traço novo e difícil da intriga. Outrem, como próximo, é a relação que eu não posso
suster e cuja aproximação é a morte mesma, a vizinhança mortal (quem vê Deus

morre: é que «morrer» é uma maneira de ver o invisível, uma maneira de dizer o

indizível – a indiscrição em que Deus, devindo em alguma maneira e

necessariamente deus sem verdade, se renderia à passividade).

 Se não posso acolher o Outro na intimação que exerço até me extenuar, é então

pela só fraqueza desajeitada (o «apesar de tudo» infeliz, minha parte de derrisão e de

loucura) que sou chamada a entrar nessa relação outra, com meu eu [moi]

gangrenado e roído, alienado de uma parte à outra (assim, é por entre os leprosos e

os mendigos sob as fortalezas de Roma que os judeus dos primeiros séculos

pensavam descobrir o Messias).

 Enquanto o outrem for o longínquo (o rosto que vem do absolutamente longínquo

e dele porta o rastro, rastro de eternidade, de imemorial passado), só a relação ao

qual me ordena o outrem do rosto, no rastro do ausente, é para-além do ser – aquilo

que não é então o si mesmo ou a ipseidade (Levinas escreve: « para além do ser,

está uma Terceira pessoa que não se define pelo si mesmo»). Mas quando outrem

não é mais o longínquo, mas o próximo que pesa sobre mim [moi] até me abrir à

radical passividade do si, a subjetividade enquanto exposição ferida, acusada e

perseguida, enquanto sensibilidade abandonada à diferença, tomba por seu turno

para fora do ser, significa o para-além do ser, no dom mesmo - a doação de signo -

que seu sacrifício desmedido entrega a outrem: ela é, ao mesmo título que outrem e
que o rosto, o enigma que desarranja a ordem e contrasta com o ser: a exceção do

extraordinário, a colocação para fora do fenômeno, para fora da experiência.

 A passividade e a questão: a passividade talvez esteja na ponta da questão, mas

ela lhe pertence ainda? O desastre pode ser interrogado? Onde encontrar a

linguagem em que resposta, questão, afirmação, negação, intervêm talvez, mas são

sem efeito? Onde está o dizer que escapa a toda marca, aquela da predição, assim

como aquela da interdição?

 Quando Levinas define a linguagem como contato, ele a define como

imediatidade, e isso é denso de conseqüências; pois a imediatidade é a absoluta

presença, isso que abala tudo e inverte tudo, o infinito sem abordagem, sem

ausência, e não mais uma exigência, mas o rapto de uma fusão mística. A

imediatidade não é somente o afastamento de toda mediação, mas o imediato é o

infinito da presença do qual não se pode mais falar, já que a relação ela mesma – que

ela seja ética ou ontológica – de um só golpe queimou numa noite sem trevas: não

há mais termos, não há mais relação, não há mais para além - Deus mesmo se

nadificou nisso.

Ou então seria preciso poder entender o imediato no passado. Aquilo que torna o

paradoxo quase insustentável. É assim que nós poderíamos falar de desastre. O

imediato, nós não podemos pensar nele mais do que não podemos pensar num

passado absolutamente passivo cuja paciência em nós face a uma desgraça


esquecida seria a marca, o prolongamento inconsciente. Quando somos pacientes, é

sempre por relação a uma desgraça infinita que não nos atinge no presente, mas ao

nos reportar a um passado sem memória. Desgraça de outrem e outrem como

desgraça.

 Responsabilidade: essa palavra banal, essa noção cuja moral mais fácil (a moral

política) nos faz um dever, é preciso tentar entender como Levinas a renovou, a

abriu até fazê-la significar (para além de todo sentido) a responsabilidade de uma

filosofia outra (que permanece, entretanto, em muitos aspectos, a filosofia eterna 1).

Responsável: isso qualifica, em geral, prosaica e burguesamente, um homem

maduro, lúcido e consciente, que age com medida, dá-se conta de todos os

elementos da situação, calcula e decide, o homem de ação e de êxito. Mas eis que a

responsabilidade – responsabilidade de mim [moi] por outrem, por todos, sem

reciprocidade - se desloca, não pertence mais à consciência, não é a colocação em

obra de uma reflexão agente, não é mesmo um dever que se imporia do fora e do

dentro. Minha responsabilidade por Outrem supõe um abalo tal que ele não pode se

marcar senão por uma mudança de estatuto de « eu [moi] », uma mudança de tempo

e talvez uma mudança de linguagem. Responsabilidade que me retira da minha


1
Nota mais tardia. Que não haja demasiado equívoco: a « filosofia eterna», na medida em
que não há ruptura de aparência com a linguagem dita « grega» em que se guarda a
exigência de universalidade; mas o que se enuncia, ou antes, se anuncia com Levinas, é
uma excedente, um para-além do universal, uma singularidade que se pode dizer judia e
que espera ser ainda pensada. Nisso profética. O judaísmo como o que ultrapassa o
pensamento de sempre por ter sido sempre já pensado, mas porta, entretanto, a
responsabilidade do pensamento por vir, eis o que nos dá a filosofia outra de Levinas, carga
e esperança, carga da esperança.
ordem - talvez de toda ordem - e, afastando-me de mim [moi] (mesmo que eu [moi]

seja o mestre, o poder, o sujeito livre e falante), descobrindo o outro no lugar de

mim [moi], me dá a responder pela ausência, pela passividade, quer dizer, pela

impossibilidade de ser responsável, à qual essa responsabilidade sem medida sempre

já me votou me devotando e me desviando. Mas paradoxo que não deixa nada

intacto, muito menos a subjetividade do que o sujeito, o indivíduo do que a pessoa.

Pois se, da responsabilidade, não posso falar senão a separando de todas as formas

da consciência-presente (vontade, resolução, interesse, luz, ação reflexiva, mas

talvez também o não-voluntário, o inconsentido, o gratuito, o inagente, o obscuro

que releva da consciência-inconsciência), se ela se enraíza lá onde não há mais

fundamento, onde nenhuma raiz pode se fixar, se portanto ela atravessa toda base e

não pode ser tomada a cargo por nada de individual, como, de modo outro que

como resposta ao impossível, por uma relação que me interdita de me pôr a mim

mesmo, mas somente de me pôr como sempre já suposto (aquilo que me entrega ao

totalmente passivo), sustentaremos o enigma daquilo que se anuncia, nesse vocábulo

do qual a linguagem da moral ordinária faz o uso mais facil ao colocá-lo ao serviço

da ordem? Se a responsabilidade é tal que ela retira o eu [moi] do eu [moi], o

singular do individual, o subjetivo do sujeito, a não-consciência de todo consciente e

inconsciente, para me expor à passividade sem nome, ao ponto em que é através da

passividade somente que devo responder à exigência infinita, então posso

certamente chamá-la de responsabilidade, mas por abuso e, também justamente, por

seu contrário e simplesmente sabendo que o fato de se reconhecer responsável de


Deus não é senão um meio metafórico de anular a responsabilidade (a obrigação de

ser desobrigado), do mesmo modo que, declarado responsável do morrer (de todo

morrer), não posso mais chamar por nenhuma ética, nenhuma experiência, nenhuma

prática, qualquer que seja - salvo aquela de um contra-viver, quer dizer, de uma não-

prática, quer dizer (talvez) de uma palavra de escritura.

Resta que, contrastando com a nossa razão e sem, todavia, nos entregar às

facilidades de um irracional, essa palavra responsabilidade vem como que de uma

linguagem desconhecida que nós não falamos senão a contragosto, a contra-vida e

numa injustificação semelhante àquela em que estamos em relação a toda morte, a

morte do Outro como a nossa sempre imprópria. Seria, pois, preciso justamente se

virar em direção a uma língua jamais escrita, mas sempre a prescrever, para que essa

palavra incompreensível seja entendida em sa densidade desastrosa e nos

convidando a nos virar em direção ao desastre sem compreendê-lo, nem suportá-lo.

Daí que ela seja ela mesma desastrosa, a responsabilidade que jamais alivia Outrem

(nem me alivia dele), e nos torna mudos da palavra que nós lhe devemos.

Resta ainda que a proximidade do mais longínquo, a pressão do mais leve, o

contacto daquilo que não atinge, é pela amizade que posso responder a eles, uma

amizade sem partilha, bem como sem reciprocidade, amizade para aquilo que passou

sem deixar rastros, resposta da passividade à não-presença do desconhecido.

 A passividade é uma tarefa - isso na linguagem outra, aquela da exigência não

dialética -, da mesma maneira que a negatividade é uma tarefa: isso quando a


dialética nos propõe o cumprimento de todos os possíveis, por pouco que saibamos

(cooperando nisso pelo poder e pela maestria no mundo) deixar o tempo tomar todo

o seu tempo. A necessidade de viver e de morrer dessa dupla palavra e na

ambiguidade de um tempo sem presente e de uma história capaz de esgotar (a fim de

aceder ao contentamento da presença) todas as possibilidades do tempo: eis a

decisão irreparável, a loucura inevitável, que não é o conteúdo do pensamento, pois

o pensamento não a contém, não mais do que nem a consciência nem a

inconsciência lhe tiram um estatuto para determiná-la. Donde a tentação de fazer

apelo à ética com sua função conciliadora (justiça e responsabilidade), mas quando a

ética por seu turno devém louca, como ela deve ser, o que ela nos traz senão um

salvo-conduto que não deixa à nossa conduta nenhum direito, nenhum lugar, nem

nenhuma salvação: somente a aturação da dupla paciência, pois ela é dupla, ela

também, paciência mundana, paciência imunda.

 O uso da palavra subjetividade é tão enigmático quanto o uso da palavra

responsabilidade - e mais contestável, pois é uma designação que é como que

escolhida para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade, senão a

fim de descer ao fundo do sujeito, sem perder o privilégio que este encarna, essa

presença privada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha? Mas

se a pretensa «subjetividade» é o outro no lugar de mim [moi], ela não é mais

subjetiva que objetiva, o outro é sem interioridade, o anônimo é seu nome, o fora seu

pensamento, o não-concernente seu alcance e o retorno seu tempo, do mesmo modo


que a neutralidade e a passividade de morrer seriam sua vida, se esta é o que é

necessário acolher pelo dom do extremo, dom daquilo que (no corpo e pelo corpo) é

o não-pertencimento.

 Passividade não é simples recepção, não mais do que ela não seria a informe e a

inerte matéria pronta para toda forma - passivas, as impelidas de morrer (o morrer,

silenciosa intensidade; aquilo que não se deixa acolher, aquilo que se inscreve sem

palavra, o corpo no passado, corpo de ninguém, o corpo do intervalo: suspensão do

ser, síncope como recorte do tempo e que não podemos evocar senão como a

história selvagem, inenarrável, não tendo sentido presente). Passivo: o não-relato,

aquilo que escapa à citação e que a lembrança não relembraria – o esquecimento

como pensamento, quer dizer, aquilo que não saberia ser esquecido porque sempre

já tombado para fora da memória.

 Chamo de desastre o que não tem o último por limite: aquilo que arrasta o último

no desastre.

 O desastre não me põe em questão, mas levanta a questão, a faz desaparecer,

como se com ela « eu» [je] desaparecesse no desastre sem aparência. O fato de

desaparecer não é precisamente um fato, um evento, isso não chega, não somente

porque – trata-se da suposição mesma – não há « eu» [je] para sofrer-lhe a


experiência, mas porque não seria possível haver uma experiência disso, se o

desastre tem sempre lugar após ter tido lugar.

 Quando o outro se relaciona a mim [moi] de tal modo que o desconhecido em

mim [moi] lhe responda em meu lugar, essa resposta é a amizade imemorial que não

se deixa escolher, não se deixa viver no atual: a parte oferecida da passividade sem

sujeito, o morrer fora de si, o corpo que não pertence a ninguém, no sofrimento, no

gozo não narcísicos.

 A amizade não é um dom, uma promessa, a generosidade genérica. Relação

incomensurável de um com o outro, ela é o fora religado em sua ruptura e em sua

inacessibilidade. O desejo, puro desejo impuro, é a chamada a transpor a distância,

chamada a morrer em comum pela separação.

A morte, num só golpe, impotente, se a amizade é a resposta que não se pode

entender e fazer entender senão morrendo incessantemente.

 Guardar o silêncio. O silêncio não se guarda, ele é sem resguardo para a obra que

pretenderia guardá-lo - é a exigência de uma espera que não tem nada a esperar, de

uma linguagem que, supondo-se totalidade de discurso, se dispensaria de um golpe

só, se desuniria, se fragmentaria sem fim.


 Como ter relação com o passado passivo, relação que, ela mesma, não saberia se

apresentar na luz de uma consciência (nem se ausentar da obscuridade de uma

inconsciência)?

 O renunciamento ao eu-sujeito [moi-sujet] não é um renunciamento voluntário,

portanto não mais uma abdicação involuntária; quando o sujeito se faz ausência, a

ausência de sujeito ou o morrer como sujeito subverte toda a frase da existência, faz

o tempo sair de sua ordem, abre a vida à sua passividade, expondo-a ao

desconhecido da amizade que jamais se declara.

 A fraqueza não saberia ser humana mesmo se é no homem a parte inumana, a

gravidade do não-poder, a leveza despreocupada da amizade que não pesa, não

pensa - o não-pensamento pensante, essa reserva do pensamento que não se deixa

pensar.

A passividade não consente, não recusa: nem sim nem não, sem grado, só lhe

conviria o ilimitado do neutro, a paciência inamestrada que atura o tempo sem lhe

resistir. A condição passiva é uma incondição: é um incondicional que nenhuma

proteção mantém sob abrigo, que não atinge destruição, fora de submissão assim

como sem iniciativa - com ela, nada começa, lá onde nós entendemos a palavra

sempre já falada (muda) do recomeço, nós nos aproximamos da noite sem trevas. É

o irredutível-incompatível, o que não é compatível com a humanidade (o gênero

humano). A fraqueza humana que mesmo a desgraça não divulga, o que nos transe
pelo fato de que a cada instante pertencemos ao passado imemorial de nossa morte -

por aí indestrutíveis enquanto sempre e infinitamente destruídos. O infinito de nossa

destruição é a medida da passividade.

 Levinas fala da subjetividade do sujeito; se se quer manter essa palavra – por quê?

Mas por que não? -, seria preciso talvez falar de uma subjetividade sem sujeito, o

local ferido, o machucado do corpo morrendo já morto do qual ninguém saberia ser

proprietário ou dizer: eu [moi], meu corpo, isso que anima o só desejo mortal:

desejo de morrer, desejo que passa pelo morrer impróprio sem nele passar além de si

mesmo.

A solidão ou a não-interioridade, a exposição ao fora, a dispersão fora de

encerramento, a impossibilidade de se manter firme, fechado – o homem privado de

gênero, o suplente que não é suplemento de nada.

 Responder: há a resposta à questão -, a resposta que torna a questão possível -,

aquela que a redobra, a faz durar e não a apazigua, ao contrário lhe concede um

novo esplendor, lhe assegura um corte -, há a resposta interrogativa; enfim, à

distância do absoluto, haveria essa resposta sem interrogação à qual nenhuma

questão convirá, resposta da qual não sabemos que fazer, se só pode recebê-la a

amizade que a dá.


O enigma (o segredo) é precisamente a ausência de questão - lá onde não há mesmo

o lugar para introduzir uma questão, sem que, entretanto, essa ausência faça

resposta. (A palavra críptica)

 A paciência do conceito: de saída renunciar ao começo, saber que o Saber não é

jamais jovem, mas sempre além da idade, de uma senescência que não pertence à

velhice; em seguida, que não é preciso findar demasiado rápido, que o fim é sempre

prematuro, que ele é a pressa do Finito no qual uma vez por todas se quer se confiar

sem pressentir que o Finito não é senão o redobramento do infinito.

 Não responder ou não receber resposta é a regra: isso não é suficiente para deter

as questões. Mas, quando a resposta é ausência de resposta, a questão, por seu turno,

devém a ausência de questão (a questão mortificada), a palavra passa, faz retorno a

um passado que jamais falou, passado de toda palavra. É nisso que o desastre,

embora nomeado, não figura na linguagem.

 Bonaventura: « Em várias ocasiões, expulsaram-me das igrejas porque lá eu ria, e

dos lupanares porque eu queria rezar lá». O suicídio: « Não deixo nada para trás de

mim, e é cheio de desafios que parto a teu encontro, Deus - ou Nada». « A Vida não

é senão a camisa xadrez que o Nada usa... Tudo é nada... Por essa parada do Tempo,

os loucos entendem a eternidade, mas em verdade é o Nada perfeito, e a morte

absoluta, já que, ao contrário, a vida não nasce senão de uma morte ininterrompida
(se nós resolvêssemos tomar essas ideias até o fundo, isso nos levaria prontamente

para entre os loucos, mas, quanto a mim, não as tomo senão em polichinelo..). »

Fichter: « Na natureza, toda morte é ao mesmo tempo nascimento, e é na morte

precisamente que a vida chega a seu apogeu», e Novalis: «Uma ligação concluída

para a morte é uma núpcia que nos concede uma companheira para a noite»; mas

Bonaventura não encara jamais a morte como a relação com uma esperança de

transcendência: « Deus seja louvado! Há uma morte, e, depois, não há eternidade».

 A paciência é a urgência extrema: não tenho mais o tempo, diz a paciência (ou o

tempo que lhe é deixado é ausência de tempo, tempo de antes do começo - tempo do

não-aparecimento em que se morre não fenomenalmente, no desconhecimento de

todos e de si mesmo, sem frases, sem deixar rastros e, portanto, sem morrer:

pacientemente).

 Bonaventura: « Eu me vi só comigo mesmo no Nada... Com o Tempo, toda

diversidade desaparecera, e não reinava mais nada senão um imenso e apavorante

tédio, vazio para todo sempre. Fora de mim, tentei me tornar Nada, mas eu

permanecia, e me sentia imortal».

 A afirmação, frequentemente mal citada ou facilmente traduzida, de Novalis: o

verdadeiro ato filosofico é o levar à morte de si mesmo (o morrer de si, si como

morrer, Selbsttötung e não Selbstmord, o movimento mortal do mesmo ao outro). O


suicídio como movimento mortal do mesmo não pode jamais ser projetado, porque o

evento do suicídio se cumpre no interior de um círculo no intervalo de todo projeto,

talvez de todo pensamento ou de toda verdade – assim ele é sentido como

inverificável, até mesmo incognoscível, e toda razão que se dá dele, por tão justa

que ela seja, parece sem conveniência. Matar-se é se estabelecer no espaço interdito

a todos, quer dizer, a si mesmo: a clandestinidade, o não fenomenal da relação

humana é a essência do «suicídio» sempre escondido, menos porque a morte está

nela em jogo do que porque morrer - a passividade mesma – nela devém ação e se

mostra no ato de se esquivar, fora do fenômeno. Quem é tentado pelo suicídio é

tentado pelo invisível, secreto sem rosto.

Há razões para se dar a morte e o ato do suicídio não é desrazoável, mas ele encerra

aquele que crê cumpri-lo num espaço definitivamente subtraído à razão (bem como

a seu avesso, o irracional) alheio ao querer e talvez ao desejo, de sorte que aquele

que se mata, mesmo se busca o espetáculo, escapa a toda manifestação, entra numa

zona de «opacidade maléfica» (diz Baudelaire) onde, toda relação consigo mesmo

como com o outro sendo rompida, reina a irrelação, a diferença paradoxal, definitiva

e solene. Isso se passa antes de toda decisão livre, sem necessidade e como que por

acaso: no entanto, sob uma pressão tal que não há nada de bastante passivo em si

para conter (e mesmo sofrer) a atração disso.

 Do pensamento, é preciso dizer de saída que ele é a impossibilidade de se deter

em nada de definido, portanto, de pensar nada de determinado e que assim ele é a


neutralização permanente de todo pensamento presente, ao mesmo tempo que a

repudiação de toda ausência de pensamento. A oscilação (a igualdade paradoxal) é o

risco do pensamento entregue a essa dupla exigência e que ignora que ele precisa ser

soberanamente paciente, quer dizer, passivo fora de toda soberanidade.

 A paciência, perseverança retardada.

 Não pensamento passivo, mas eu chamaria por um passivo de pensamento, por

um sempre já passado do pensamento, aquilo que, no pensamento, não saberia se

tornar presente, entrar em presença, ainda menos se deixar representar ou se

constituir em fundo para uma representação. Passivo do qual nada de outro pode ser

dito, senão que ele interdita toda presença de pensamento, todo poder de conduzir o

pensamento até à presença (até ao ser), sem, entretanto, confinar o pensamento em

uma reserva, uma retração para fora da presença, mas deixando-a em proximidade -

proximidade de distanciamento – com o outro, o pensamento do outro, o outro como

pensamento.

 Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre, ruína de palavra,

desfalecimento pela escritura, rumor que murmura... o que resta sem resto (o

fragmentário).
 O passivo não tem que ter lugar, mas, implicado na virada que, afastando-se da

volta, se faz por meio dela rodeio, ele é o tormento do tempo que, tendo sempre já

passado, vem como retorno sem presente, vindo sem advir na paciência da época,

época inenarrável, destinada à intermitência de uma linguagem descarregada de

palavra, desapropriada, e que é a parada silenciosa daquilo a que sem obrigação é

preciso, entretanto, responder. Responsabilidade de uma escritura que se marca se

demarcando, quer dizer talvez – no limite – se apagando (tão logo como em longo

tempo – é preciso todo o tempo para isso), na medida em que ela parece deixar

rastros eternos ou ociosos.

 Fragmento: além de toda fratura, de todo estilhaço, a paciência de pura

impaciência, o pouco a pouco do subitamente.

 O outro não está em relação senão com o outro: ele se repete sem que essa

repetição seja repetição de um mesmo, redobrando-se desdobrando-se ao infinito,

afirmando, fora de todo futuro, presente, passado (e por aí o negando), um tempo

que sempre já fez seu tempo. O Outro não saberia aceitar se afirmar como Todo

Outro, pois que a alteridade não o deixa em repouso, trabalhando-o de uma maneira

improdutiva, deslocando-o de um nada, de um todo, fora de toda medida, de tal sorte

que, escapando ao reconhecimento da lei como a uma qualquer nominação,

nominação, desejo sem desejante nem desejado, ele marca o segredo - a separação -
do morrer em jogo em todo vivente como aquilo que o afasta (sem cessar, pouco a

pouco e cada vez num só golpe) de si como idêntico, como simples e devir vivente.

 O que sobre Platão nos ensina Platão no mito da caverna, é que os homens em

geral são privados do poder ou do direito de virar ou de se revirar.

 Trocar ideias não somente seria se desviar de dizer aquilo que é pela palavra - o

presente de uma presença -, mas é, mantendo a palavra fora de toda unidade, mesmo

que seja a unidade daquilo que é, desviá-la dela mesma deixando-a diferir,

respondendo por meio de um sempre já a um jamais ainda.

 Na caverna de Platão, nenhuma palavra para significar a morte, nenhum sonho ou

nenhuma imagem para fazer pressentir a infigurabilidade da morte. Na caverna a

morte está em excesso, em esquecimento, sobrevindo do fora na boca do filósofo

como o que o reduz previamente ao silêncio ou para perdê-lo na derrisão de um

semblante de imortalidade, perpetuação de sombra. A morte não é nomeada senão

como necessidade de matar aqueles que, tendo se liberado, tendo tido acesso à luz,

revêm e revelam, desarranjando a ordem, perturbando a tranquilidade do abrigo,

assim desabrigando. A morte é o ato de matar. E o filósofo é aquele que sofre a

violência suprema, mas a chama também, porque a verdade que ele porta e diz pelo

retorno é uma forma de violência.


 A morte irônica: a de Sócrates talvez carregando-se a si mesma para a morte e

assim a tornando tão discreta quanto irreal. E se a «possibilidade » da escritura está

ligada à «possibilidade» da ironia, nós compreendemos por que uma e outra são

sempre decepcionantes, não podendo ser reivindicadas, excluindo toda maestria (cf.

Sylviane Agacinski).

 Do sonho não saberíamos nos lembrar; se ele vem a nós - mas de qual vinda?

Através de qual noite? – não é senão pelo esquecimento, um esquecimento que não é

somente de censura ou de recalque. Sonhando sem memória, de uma maneira tal que

todo sonho temporário seria um fragmento de resposta a um morrer imemorial

riscado pela repetição do desejo.

Não há cessação, não há interrupção entre sonho e despertar. Nesse sentido, é

possível dizer: jamais, sonhador, tu podes te despertar (nem, ao resto, te deixar

assim chamar, interpelar).

 O sonho é sem fim, a vigília sem começo, nem um nem a outra voltam a se unir.

Só a palavra dialética os põe em relação em vista de uma verdade.

 Pensando de forma outra do que ele pensa, de tal sorte que o Outro venha ao

pensamento como abordagem e resposta.

 O escritor, sua biografia: morreu, viveu e morreu.


 Se o livro pudesse por uma primeira vez verdadeiramente estrear, ele teria por

uma derradeira vez desde muito tempo adquirido o fim.

 O que nos faz recear e desejar o novo, é que o novo combate contra a verdade

(estabelecida), combate dos mais antigos em que sempre pode se decidir alguma

coisa de mais justo.

 Antes que ele esteja lá, ninguém o espera: quando está lá, ninguém o reconhece:

é que ele não está lá, o desastre que já desviou a palavra estar, cumprindo-se

enquanto ele não começou: rosa desabrochada em botão.

 Quando tudo se obscureceu, reina o aclaramento sem luz que certas palavras

anunciam.

 Louvando a vida sem a qual não seria dado viver segundo o movimento de

morrer.

 O traço do desastre: o triunfo, a glória não lhe são opostos, muito menos lhe

pertencem, apesar do lugar comum que prevê no auge já o declínio; ele não tem

contrario e não é o Simples. (Daí que nada lhe seja mais estrangeiro do que a

dialética, mesmo que ela fosse reduzida a seu momento destruidor).


 Ele nos interroga: o que fazemos, como vivemos, quais são nossos amigos. Ele é

discreto, como se suas questões não questionassem. E quando, por nossa vez, lhe

perguntamos o que ele faz, ele sorri, se levanta, e é como se ele jamais tivesse

estado presente. As coisas seguem seu curso. Ele não nos desarranja.

 A inexperiência de morrer, isso quer dizer também: o mau-jeito em morrer,

morrendo como alguém que não aprendeu ou que faltou às aulas.

 O inusitado, o novo, porque ele não pode tomar lugar na história, é também aquilo

que há de mais antigo, alguma coisa de não histórico ao qual somos chamados a

responder como se fosse o impossível, o invisível, aquilo que desde sempre tem

desaparecido sob os escombros.

 Como saberíamos que somos precursores, se a mensagem que deveria fazer de

nós mensageiros, nos precede em uma eternidade, nos votando a ser eternos

retardatários? Somos precursores, correndo para fora de nós, adiante de nós; quando

chegamos, nosso tempo é já passado, o curso, interrompido.

 Se a citação, em sua força morselar, destrói de antemão o texto ao qual ela não é

somente arrancada, mas que ela exalta até não ser senão arrancamento: o fragmento

sem texto nem contexto é radicalmente incitável.


 Por que todas as desgraças, finitas, infinitas, pessoais, impessoais, de agora, de

sempre, tinham por subentendido, relembrando-a sem cessar, a desgraça

historicamente datada, no entanto sem data, de um país já tão reduzido que parecia

quase apagado do mapa e cuja história, entretanto, desbordava a história do

mundo? Por quê?

 Ele escreve – ele escreve? - não porque os livros dos outros o deixariam

insatisfeito (ao contrário, todos eles lhe agradam), mas porque são livros e que no

escrever não se encontra seu contento.

 Escrever para que o negativo e o neutro, em sua diferença sempre recoberta, na

mais perigosa das proximidades, se relembrem um ao outro sua especificidade, um

trabalhando, o outro desobrando.

 O hoje é pobre; essa pobreza que lhe seria essencial, se ela não estivesse nesse tal

ponto extremo que ela está tão desnudada de essência, lhe permite não chegar a uma

presença, nem se atardar no novo ou no antigo de um agora.

 Escreve para não somente destruir, para não somente conservar, para não

transmitir, escreve sob a atração do impossível real, essa parte de desastre onde

soçobra, salva e intacta, toda realidade.


 Confiança na linguagem: ela se situa na linguagem - desfiança da linguagem: é

ainda a linguagem que se desfiaria de si mesma, encontrando em seu espaço os

princípios inabaláveis de uma crítica. De onde o recurso à etimologia (ou sua

recusação); de onde o apelo aos divertimentos anagramáticos, às transposições

acrobáticas destinados a multiplicar as palavras ao infinito sob pretexto de

corrompê-las, mas em vão - tudo isso justificado com a condição de usá-los

(recursos e recusação) à vez, no mesmo tempo, sem neles crer e sem parada. O

desconhecido da linguagem permanece desconhecido.

A confiança-desfiança na linguagem é já fetichismo, escolhendo tal palavra para

com ela jogar no gozo e no mal-estar da perversão que supõe sempre, dissimulado,

um bom uso. Escrever, desvio que afastaria o direito a uma linguagem, mesma que

fosse ela pervertida, anagramatizada - desvio da escritura, que sempre des-creve,

amizade para o desconhecido mal vindo, « real » escapando a toda monstração, a

toda possível palavra.

Escritor apesar de si mesmo: não se trata de escrever apesar de ou contra si numa

relação de contradição, até de incompatibilidade a si, ou à vida, ou à escritura (isso é

a biografia da anedota), mas numa outra relação da qual o outro se afastou e sempre

nos afastou até no movimento de atração - donde os nomes vãos de real, de glória ou

de desastre pelos quais aquilo que se separa da linguagem se consagra a eles ou

tomba, talvez por perda de paciência. Pois poderia ser que todo nome - e

precisamente o derradeiro, o impronunciável – fosse ainda um efeito de impaciência.


 A luz lampeja - lampejo, o que, na claridade, se clama e não clareia (a dispersão

que ressoa ou vibra até o deslumbramento). Lampejo, a retumbância destroçante de

uma linguagem sem entendimento.

 Morrer sem meta: por aí (esse movimento de imobilidade), o pensamento

tombaria para fora de toda teleologia e talvez para fora de seu sítio. Pensar sem meta

assim como se morre, é o que parece que impõe, em termos não de gratuidade, mas

de responsabilidade, a paciência em sua perseverança inocente – de onde o pisar do

desconhecido sem linguagem, lá em nossa porta, sobre a soleira.

Pensar como se morre: sem meta, sem poder, sem unidade e precisamente sem

«como» - de onde a nadificação da formulação desde que ela é pensamento, quer

dizer, pensamento de cada lado, em desequilíbrio, em excesso de sentido e em

excesso sobre o sentido - saída, fora.

Pensar como morrer exclui o «como» do pensamento, de modo que, mesmo se o

suprimimos por simplificação paratática, escrevendo pensar: morrer, ele forma

enigma até em sua ausência, espaço quase intransponível; a irrelação de pensar e de

morrer é também a forma de suas relações, não que pensar procede em direção a

morrer, procedendo em direção a seu outro, mas muito menos em direção a seu

mesmo. É daí que « como » toma seu arrebatamento nem outro nem mesmo.

Há uma espécie de declínio de ascendência entre pensar e morrer: quanto mais

pensamos na ausência de pensamento (determinado), mais nos elevamos, de marcha


em marcha, rumo ao precipício, a queda a pique, a expiração pela cabeça. Pensar

não é senão ascensão ou declínio, mas não tem pensamento determinado para parar e

se retornar em direção a si – daí sua vertigem que é, entretanto, igualdade, como

morrer é sempre igual, sempre tábua (letal).

 Se o espírito é o que há de sempre ativo, a paciência é já o não-espírito, o corpo

em sua passividade sofrente, cadavérica, exposta ou superficial, o grito sob a

palavra, o não-espiritual do escrito: nesse sentido a vida mesma, como sombra da

vida, o dom ou despesa vivente até morrer.

 « Já » ou « sempre já » é a marca do desastre, o fora da história histórica: o que

nós - quem não é nós? – sofreremos antes de tê-lo sofrido, o transe como o passivo

do passo [pas] além. O desastre é a impropriedade de seu nome, e a desaparição do

nome próprio (Derrida), nem nome (nem verbo, mas um resto que riscaria de

invisibilidade e de ilegibilidade tudo o que se mostra e tudo o que se diz: um resto

sem resultado nem réliquo - a paciência ainda, o passivo, quando se detém o

Aufhebung devindo o inoperável. Hegel: «Inocência somente é o não-fazer (a

ausência de operação)».

 O desastre é esse tempo em que não se pode mais pôr em jogo, por desejo, astúcia

ou violência, a vida que se busca, por esse jogo, manter ainda, tempo em que o
negativo se cala e aos homens sucedeu a infinita calma (a efervescência) que não se

encarna e não se torna inteligível.

 Eles não pensam na morte, não tendo relação senão com ela.

 Uma leitura daquilo que foi escrito: aquele que amestra a morte (a vida-finita),

desencadeia o infinito do morrer.

 A passividade da linguagem: caso se se sirva, falseando-a um pouco, da

linguagem hegeliana, pode-se afirmar que o conceito é a morte, o fim da vida natural

e espiritual, e que morrer é o obscuro da vida, esse além da vida, sem agir, sem

fazer, sem ser, a vida sem morte que é então o perecível mesmo, o eternamente

perecível que nos transe, enquanto, interminavelmente, findamos de falar, falando

como depois do termo, escutando sem falar o eco daquilo que sempre já passou,

passando entretanto: a passagem.

 O outro é sempre outrem, e outrem é sempre seu outro, liberado de toda

propriedade, de todo sentido próprio, assim além de toda marca de verdade e de

todo sinal de luz.

 Morrer é, falando absolutamente, a iminência incessante pela qual, entretanto, a

vida dura desejando. Iminência daquilo que sempre já se passou.


 O sofrimento sofre por ser inocente - assim ele busca devir culpado para se

aliviar. Mas a passividade nele se esquiva a toda falta: passivo fora de falha,

sofrimento salvo do pensamento da salvação.

 Não há desastre senão porque o desastre incessantemente falta a si mesmo. Fim da

natureza, fim da cultura.

 Perigo de que o desastre tome sentido em lugar de tomar corpo.

 Escrever, «formar» no informal um sentido ausente. Sentido ausente (não

ausência de sentido, nem sentido que faltaria ou potencial ou latente). Escrever

talvez seja trazer à superfície alguma coisa como sentido ausente, acolher o impulso

passivo que não é ainda o pensamento, sendo já o desastre do pensamento. Sua

paciência. Entre ele e o outro, haveria o contato, a desligação de sentido ausente – a

amizade. Um sentido ausente manteria «a afirmação» do impulso para além da

perda; o impulso de morrer arrastando consigo a perda, a perda perdida. Sentido que

não passa pelo ser, por baixo do sentido - suspiro do sentido, sentido expirado. De

onde a dificuldade de um comentário de escritura; pois o comentário significa e

produz significação, não podendo suportar um sentido ausente.


 Desejo da escritura, escritura do desejo. Desejo do saber, saber do desejo. Não

acreditemos que tenhamos dito alguma coisa por essas reversões. Desejo, escritura

não permanecem no lugar, passam um acima do outro: esses não são jogos de

palavras, pois o desejo é sempre desejo de morrer, não um anelo. Entretanto, em

relação com Wunsch, também não-desejo, potência impotente que atravessa o

escrever, como o escrever é a dilaceração desejada, não desejada, sofrendo bem até a

impaciência. Desejo que morre, desejo de morrer, vivemos isso juntos, sem

coincidência, na obscuridade do prazo.

 Fazer vigília sobre o sentido ausente.

 Confirma-se – na e pela incerteza - que todo fragmento não está em relação com o

fragmentário. O fragmentário, «potência» do desastre do qual não há experiência, e

a intensidade desastrosa, fora de prazer, fora de gozo, se marca, quer dizer demarca:

o fragmento seria essa marca, sempre ameaçada por algum êxito. Não seria possível

haver fragmento com êxito, satisfeito ou indicando a saída, a cessação do erro,

mesmo que fosse apenas porque todo fragmento, mesmo único, se repete, se desfaz

pela repetição.

Relembremo-nos. Repetição: repetição não religiosa, sem lamento nem nostalgia,

retorno não desejado. Repetição: repetição do extremo, desmoronamento geral,

destruição do presente.
 O saber não se afina nem se alivia senão nos confins, quando a verdade não

constitui mais a instância à qual seria preciso que ele se submetesse finalmente. O

não-verdadeiro que não é o falso, atrai o saber para fora do sistema, no espaço de

uma deriva em que as palavras-chave não dominam mais, em que a repetição não é

um operador de sentidos (mas o desmoronamento do extremo), em que o saber, sem

passar ao não-saber, não depende mais dele mesmo, não resulta nem produz um

resultado, mas muda imperceptivelmente, apagando-se: não mais saber, mas efeito

de saber.

No saber que sempre deve se liberar do saber, não há saber anterior, ele não se

sucede a si mesmo, não há, pois, muito menos uma presença de saber. Não apliques

um saber, não o repitas. Fim da teoria que detém e organiza o saber. Espaço aberto à

« teoria fictícia », lá onde a teoria, pela ficção, entra em perigo de morte. Vocês,

teóricos, saibam que vocês são mortais e que a teoria é já a morte em vocês. Saibam-

no, conheçam seu companheiro. Talvez seja verdade que «sem teorização, vocês

não dariam um passo adiante», mas esse passo é um passo a mais em direção ao

abismo de verdade. De lá sobe o rumor silencioso, a intensidade tácita.

Quando cessa a dominação da verdade, quer dizer, quando a referência à alternância

verdadeiro-falso (inclusive a sua coincidência) não se impõe mais, mesmo que fosse

como o trabalho da palavra por vir, o saber continua a se buscar e a buscar se

inscrever, mas num outro espaço onde não há mais direção. Quando o saber não é

mais um saber de verdade, é então de saber que se trata: um saber que queima o

pensamento, como um saber de infinita paciência.


 Quando Kafka deixa entender a um amigo que ele escreve porque, de outra forma,

ele deviria louco, ele sabe que escrever é já loucura, é a sua loucura, espécie de

vigília fora de consciência, insônia. Loucura contra loucura: mas Kafka crê que

amestra uma abandonando-se a ela; a outra lhe causa medo, é o seu medo, passa

através dele, o dilacera, o exalta, como se fosse preciso que ele se submetesse a toda

a potência de uma continuidade sem parada, tensão no limite do não-suportável das

quais ele fala com pavor e não sem um sentimento de glória. É que a glória é o

desastre.

 Aceitar essa distinção: « é preciso [il faut] » e não « tu deves [tu dois] » - talvez

porque a segunda fórmula se dirija a um tu [toi] e a primeira seja uma afirmação

fora da lei, sem legalidade, uma necessidade não necessária; assim mesmo uma

afirmação? Uma violência? Busco um «é preciso [il faut]» passivo, usado pela

paciência.

 Mas alguma coisa me força a essa aventura antiga, infinita e fora de sentido,

enquanto que, no coração do desastre, eu continuo a procurá-lo como aquilo que

não vem, a esperá-lo, ao passo que ele é a paciência de minha espera.

 Cada um, suponhamo-lo, teria sua loucura privada. O saber sem verdade seria o

trabalho ou a escuta de uma singularidade intensa, análogo a essa loucura


« privada », tudo o que é privado sendo loucura pelo menos na medida em que nós

buscamos, por ela, comunicar.

 Se o dilema é: delirar ou morrer; a resposta não faltará e o delírio será mortal.

 Em seu sonho, nada, nada senão o desejo de sonhar.

 Quando digo, na sequência de Nietzsche: « il3 faut [é preciso]» - com o jogo entre

« falloir » [ser preciso] e « faillir » [falhar, fracassar] -, digo também: [ele] falta,

[ele] tomba, [ele] engana, é o começo da queda, a lei comanda tombando, e, por aí,

se salva ainda como lei.

 Ele pode ler um livro, um escrito, um texto – passo sempre, não [pas] sempre, e

ele o pode? – porque ele guarda, perdendo-a, uma certa relação com escrever. O que

não quer dizer que ele lê o mais prazerosamente possível aquilo que lhe daria

vontade de escrever - escrever sem desejo pertence à paciência, a passividade da

escritura -, mas, antes, aquilo que fulmina a escritura, faz arroxear sua violência

destruindo-a ou, mais simplesmente, mais misteriosamente, está em relação com o

passivo imemorial, o anonimato, a discrição absoluta, a fraqueza humana.

3
O Il neutro.

N. t. Neste trecho Blanchot joga com dois sentidos de “pas” em francês: negação e passo.
 Jamais tentar tornar a escritura impegável [imprenable]: exposta a todos os

ventos de um comentário redutor, sempre já pega e retida, ou rejeitada.

 O desígnio da lei: que os prisioneiros construam eles mesmos sua prisão. É o

momento do conceito, a marca do sistema.

 No sistema hegeliano (quer dizer, em todo sistema), a morte está constantemente

à obra, e nada morre nele, não pode morrer nele. O que resta após o sistema, réliquo

sem resto: o impulso de morrer em sua novidade repetitiva.

 A palavra «corpo», seu perigo, quão facilmente dá a ilusão de que se se mantém

já fora do sentido sem contaminação com consciência inconsciência. Retorno

insidioso do natural da Natureza. O corpo é sem pertencimento, mortal imortal,

irreal, imaginário, fragmentário. A paciência do corpo é já e ainda o pensamento.

 Dizer: eu amo Sade, é não ter relação alguma com Sade. Sade não pode ser amado

nem suportado; aquilo que ele escreve nos desviando absolutamente nos atraindo

absolutamente: atração do desvio.

Nós o destruímos, liberamos a estrela – sem raio daqui em diante: ele roda obscuro,

o astro do desastre, desaparecido, como ele o anelava, na tumba sem nome do seu

renome.
Mas é bem verdadeiro que há uma ironia de Sade (poder de dissolução); aquele que

não a pressente, lê um autor qualquer em sistema; nada que nisso possa ser dito

sério, ou seu sério é a derrisão do sério como a paixão nele passa pelo momento de

frieza, de segredo, de neutralidade, a apatia, a passividade infinita. É a grande ironia

– não socrática: a ignorância fingida -, mas a saturação da inconveniência (quando

mais nada convém), a grande dissimulação lá onde tudo é/está dito, tudo é/está

redito e finalmente calado.

 Jamais ou então ou então, lógica simples, nem todos os dois juntos que acabam

sempre por se afirmar dialeticamente ou convulsivamente (contrariedade sem risco);

toda dualidade, todo binarismo (oposição ou compossibilidade, mesmo que fosse

com in-compossível) atraem o pensamento na comodidade das trocas: as contas se

farão. Eros Tanatos: duas potências ainda; Um domina. A divisão não é suficiente,

dialética não-cumprida. Não há aí a pulsão da morte, as impelidas de morte são

arrancamentos à unidade, multitudes desvairadas.

 Revenho sobre o fragmento: não sendo jamais único, ele não tem, entretanto,

limite externo - o fora em direção ao qual ele tomba não é seu límen, e ao mesmo

tempo nenhuma limitação interna (não é o ouriço, fechado sobre si); no entanto,

alguma coisa de estrito, não por causa de sua brevidade (ele pode se prolongar como

a agonia), mas pelo apertamento, o estrangulamento até a ruptura: malhas sempre


saltaram (elas não faltam). Nenhum rastro [pas] de plenitude, nenhum rastro [pas]

de vazio.

 A escritura é já (ainda) violência: aquilo que há de ruptura, quebra,

despedaçamento, o dilaceramento do dilacerado em cada fragmento, singularidade

aguda, ponta acerada. E, no entanto, esse combate é debate para a paciência. O nome

se usa, o fragmento se fragmenta, se desprende do seu leito. A passividade passa em

paciência, lance de aposta que soçobra.

 Soçobrar, desejo da queda, desejo que é o impulso e a atração da queda, e se cai

sempre vários, queda múltipla, cada um se retém a um outro que é si e é a dissolução

- a dispersão - de si, e essa retenção é a própria precipitação, a fuga pânica, a morte

para fora da morte.

 Não se saberia «ler» Hegel, salvo a não lê-lo. Lê-lo, não lê-lo, compreendê-lo,

desconhecê- lo, recusá-lo, isso cai sob a decisão de Hegel ou isso não tem lugar. Só

a intensidade desse não-lugar, na impossibilidade de que haja uma, nos dispõe para

uma morte - morte de leitura, morte de escritura - que deixa Hegel vivente, na

impostura do Sentido acabado. (Hegel é o impostor, é aquilo que o torna invencível,

louco por sua seriedade, falsário de Verdade: «escondendo o jogo» até devir, sem

saber, mestre da ironia - Sylviane Agacinski.)


 O que é que claudica no sistema, o que é que manca? A questão é imeditamente

mancante e não faz questão. O que desborda o sistema, é a impossibilidade de seu

fracasso, bem como a impossibilidade do êxito: finalmente não se pode dizer nada

disso, e há uma maneira de se calar (o silêncio lacunar da escritura) que pára o

sistema, deixando-o desobrado, entregue à seriedade da ironia.

 O Saber no repouso; qualquer que seja a inconveniência desses termos, nós não

podemos deixar a escritura fragmentária escrever a não ser se a linguagem, tendo

esgotado seu poder de negação, sua potência de afirmação, retenha ou porte o Saber

no repouso. Escritura para fora da linguagem, nada de outro talvez do que o fim

(sem fim) do saber, fim dos mitos, erosão da utopia, rigor da paciência apertada.

 O nome desconhecido, fora de nominação:

O holocausto, evento absoluto da história, historicamente datado, essa queima-total

onde toda a história se abrasou, onde o movimento do Sentido se abismou, onde o

dom, sem perdão, sem consentimento, se arruinou sem dar lugar a nada que possa

se afirmar, se negar, dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se

doar. Como guardá-lo, mesmo que seja no pensamento, como fazer do pensamento

aquilo que guardaria o holocausto onde tudo se perdeu, inclusive o pensamento

guardião?

Na intensidade mortal, o silêncio fugindo do grito inumerável.


 Haveria na morte alguma coisa mais forte do que a morte: é o morrer mesmo – a

intensidade do morrer, o impulso do impossível indesejável até no desejado. A

morte é poder e mesmo potência – portanto limitada -, ela fixa um termo, ela adia,

no sentido em que ela assinala para um dia dito, por acaso e necessário, ao mesmo

tempo que reenvia a um dia não designado. Mas o morrer é não-poder, ele arranca

ao presente, é sempre transposição do limiar, exclui todo termo, todo fim, não libera

nem abriga. Na morte, pode-se ilusoriamente se refugiar, a tumba marca a parada da

queda, o mortuário é a saída no impasse. Morrer é o fugente que arrasta

indefinidamente, impassível e intensivamente na fuga.

 O desapontamento do desastre: não respondendo a espera, não deixando se fazer o

ponto, a ponta de acordo, fora de toda orientação, mesmo que seja como

desorientação ou simples extravio.

 O desejo permanece em relação com o longínquo do astro, pedindo ao céu,

apelando ao universo. Nesse sentido, o desastre desviaria do desejo sob a atração

intensa do impossível indesejável.

 Lucidez, raio da estrela, resposta ao dia que questiona, sono quando a noite vem.

« Mas quem se esconderá diante daquilo que jamais se deita? » A vigília é sem

começo nem fim. Fazer a vigília está no neutro. « Eu [Je] » não faço vigília: vela-se,

a noite vela, sempre e incessantemente, escavando a noite até a outra noite em que
não poderia ser questão de dormir. Não se vela senão a noite. A noite é estrangeira à

vigilância que se exerce, se cumpre e porta a razão lúcida em direção àquilo que ela

deve manter em reflexão, quer dizer, na guarda da identidade. A vigília é estranheza;

ela não se desvela, como se ela saísse de um sono que a precederia, sendo ao

mesmo tempo despertar, retorno constante e instante à imobilidade da vigília. Isso

vela: sem espreitar nem espiar. O desastre vela. Quando há vigília, lá onde a

consciência adormecida se abrindo em inconsciência deixa se jogar a luz do sonho,

aquilo que vela, o velar, ou a impossibilidade de dormir no seio do sono, não se

clareia em termos de sobreacréscimo de visibilidade, de brillance refletidora. Quem

vela? Precisamente, a questão é afastada [écartée] pela neutralidade da vigília:

ninguém vela. Velar não é o poder de velar em primeira pessoa, não é um poder,

mas o alcance do infinito sem poder, a exposição ao outra da noite, lá onde o

pensamento renuncia ao vigor da vigilância, à clarividência mundana, à maestria

perspicaz para se entregar à prorrogação ilimitada da insônia, a vigília que não vela,

a intensidade noturna.

 A decepção trabalharia no interior do desastre se este não se marcasse também

como o transe do fora onde queda e fuga são imobilidade - imobilidade de uma

movência. Decepção não deixa a exceção se repousar na altura, mas faz tombar sem

cessar para fora do apreensível e da capacidade (sem forma nem conteúdo). A

exceção escapa, a decepção esquiva. A consciência pode ser catastrófica sem cessar
de ser consciência, ela não se revira, mas acolhe a reversão. Só o retorno que arranca

ao presente, desviaria do consciente-inconsciente.

 Na noite, a insônia é dis-cussão, não um trabalho de argumentos se confrontando

com argumentos, mas o extremo tremor sem pensamentos, o abalo rompido até à

calma (as exegeses que vão e vêm em «O Castelo», relato da insônia).

 Doar não é doar alguma coisa, nem mesmo se doar, pois então doar seria guardar

e salvaguardar, se aquilo que se doá tem por traço que ninguém pode tomá-lo de

vocês, retomá-lo de vocês e retirá-lo de vocês, auge do egoísmo, artimanha da

possessão. O dom não sendo o poder de uma liberdade, nem o exercício sublime de

um sujeito livre, não haveria dom senão daquilo que não se tem, sob a imposição e

para além da imposição, na súplica de um suplício infinito, lá onde não há nada,

exceto, fora do mundo, a atração e a pressão do outro: dom do desastre, daquilo que

não se saberia pedir nem doar. Dom do dom - que não o anula, sem doador nem

donatário, que faz com que nada se passe, nesse mundo da presença e sob o céu da

ausência aonde chegam as coisas, mesmo não chegando. Eis porque falar de perda,

de pura perda e em pura perda, parece, ainda que a palavra não seja jamais salva,

ainda uma facilidade.

 Alegria, dor, tenta só guardar delas a intensidade, a mais baixa ou a mais alta –

não importa -, sem intenção: então tu não vives em ti nem fora de ti nem perto das
coisas, mas o vivo da vida passa e te faz passar para fora do espaço sideral, no

tempo sem presença em que é em vão que tu te procurarias.

 Desejo, ainda relação ao astro - o grande desejo sideral, religioso e nostálgico,

pânico ou cósmico; daí que não possa haver desejo do desastre. Velar é sem desejo

de vigília, a intensidade noturna indesejável (o fora desejável).

Pela obsessão da preocupação, não somos chamados para fora de nós mesmos,

mas retidos no espaço da segurança, mesmo caminhando para o abandono.

O desastre; signo de sua abordagem sem aproximação: afastam-se as

preocupações para fazer lugar à solicitude. Die sorglose Nacht, a noite sem

preocupação, enquanto vela aquilo que não saberia desvelar. Mas a noite, a primeira

noite, se apressa ainda, noite que não rompe com o diurno, em que mesmo se não

se dorme, exposto ao sono, se permanece em relação com o ser-no-mundo, na

posição somente frustrada do repouso.

Se eu digo: o desastre vela, não é para dar um sujeito à vigília, é para dizer: a vigília

não se passa sob um céu sideral.

 A experiência, na medida em que não é um evento vivido e não põe em jogo o

presente da presença, é já não-experiência (sem que a negação a prive do perigo

daquilo que se passa, sempre ultrapassado), excesso dela mesma onde, por mais

afirmativa que seja, ela não tem lugar, incapaz de se pousar e repousar no instante

(mesmo que ele fosse móbil) ou de se dar em algum ponto de incandescência do


qual ela não marca senão a exclusão. Nós sentimos que não seria possível haver

experiência do desastre; nós a entenderíamos como experiência-limite. Eis aí um de

seus traços: o desastre destitui toda experiência, lhe retira a autoridade, vela somente

quando a noite vela e não vigia.

 Que não seja questão de Nada, jamais, para Ninguém.

 O vivo da vida seria o avivamento que não se contenta da presença vivente, que

consume aquilo que é presente até na isenção, a exemplaridade sem exemplo da não-

presença ou da não-vida, a ausência em sua vivacidade, sempre revindo sem vinda.

 O silêncio talvez seja uma palavra, uma palavra paradoxal, o mutismo da palavra

(conformemente ao jogo da etimologia), mas sentimos, pois, que ele passa pelo

grito, o grito sem voz, que contrasta com toda palavra, que não se endereça a

ninguém e que ninguém recolhe, o grito que tomba em berro. O grito, assim como a

escritura (do mesmo modo que o vivo teria sempre já excedido a vida), tende a

exceder toda linguagem, mesmo se ela se deixa retomar como efeito de língua, à vez

súbito (submetido) e paciente, a paciência do grito, aquilo que não pára em não-

sentido, ao mesmo tempo que permanece fora de sentido, um sentido infinitamente

suspendido, aberrado, decifrável-indecifrável.

 No trabalho do luto, não é a dor que trabalha: ela vela.


 Dor, talhando, despedaçando, pondo a vivo aquilo que não saberia mais ser

vivido, mesmo numa lembrança.

 O desastre não faz desaparecer o pensamento mas sim algo do pensamento,

questões e problemas, afirmação e negação, silêncio e palavra, signo e insígnia.

Então na noite sem trevas, privada de céu, densa da ausência de mundo, em retração

de todo presente dela mesma, o pensamento vela. O que sei, de um saber

contornado, conturbado e adjacente - sem relação de verdade -, é que uma tal

vigília não permite nem despertar nem sono, que ela deixe o pensamento fora de

segredo, privado de toda intimidade, corpo de ausência, exposto a passar, sem si sem

que cesse o incessante, a troca do vivo sem vida e do morrer sem morte, lá onde a

intensidade mais baixa não levanta a espera, não põe fim à prorrogação infinita.

Como se a vigília docemente passivamente nos deixasse descer a escadaria perpétua.

 A palavra, quase privada de sentido, é ruidosa. O sentido é silêncio limitado (a

palavra é relativamente silenciosa, na medida em que ela porta aquilo em quê ela se

ausenta, o sentido já ausente pendendo para o assêmico).

 Se há um princípio de perseverança, um imperativo de obstinação em relação ao

qual a morte faria mistério, desviados do astro, desarranjados na certeza incerta da

ordem cósmica, não tendo mais situação ao olhar do universo, sem consentimento
nem aquiescência, a paciência do «totalmente passivo» sempre nos entregou (na

vida fora da vida) à interrupção de ser, ao impulso do morrer que nos fazem cair sob

a atração do desastre indesejável onde continuidade em todos os sentidos e

descontinuidade de todo sentido, dadas à vez, driblam a seriedade e a severidade

daquilo que persevera, como o uniforme do jogo mortal.

 Que aquilo que se escreve ressoe no silêncio, fazendo-o ressoar por muito tempo,

antes de retornar à paz imóvel onde vela ainda o enigma.

 Abstém-te de viver sob a salvaguarda do princípio de perseverança – o ser como

perseveração – de onde a morte mantém seu mistério.

 A escritura, sem se colocar por cima da arte, supõe que não se prefere a arte,

apaga a arte como ela, a escritura, se apaga.

 Não perdoes. O perdão acusa antes de perdoar; acusando, afirmando a culpa, ele a

torna irremissível, porta o golpe até a culpabilidade; assim, tudo devém irreparável,

dom e perdão cessando de ser possíveis.

Não perdoes senão à inocência.

Perdoa-me por te perdoar.

A só culpa seria de posição: é ser «Eu [Je]», enquanto o Mesmo do eu-mesmo [moi-

même] não lhe aporta a identidade, é somente canônico, a fim de permitir a relação
infinita do Mesmo ao Outro; de onde a tentação (a só tentação) de redevir sujeito,

em lugar de se expor à subjetividade sem sujeito, a nudez do espaço moribundo.

Não posso perdoar, o perdão vem de outrem, mas não sou muito menos perdoado,

se o perdão é o colocar em causa do eu [moi], a exigência de se doar, de se passar

sem si até o mais passivo, e se o perdão vem do outro, ele não faz senão vir, não há

jamais certeza de que ele possa chegar já que, no entanto, não lhe cabe ser um poder

de decisão (sacramental), mas sempre se reter no indeciso. Em O Processo, pode-se

crer que o levar à morte seja o perdão, o termo do interminável; só que não há fim,

já que Kafka deixa claro que a vergonha sobrevive, quer dizer, o infinito mesmo, a

derrisão da vida como para além da vida.

 A desatenção: há a desatenção que é a insensibilidade menosprezante; também há

a desatenção mais passiva que, para além do interesse e do cálculo, deixa outrem

outro, deixando fora da violência pela qual ele seria apreendido, compreendido,

açambarcado, identificado, reduzido ao mesmo. A desatenção não é então uma

atitude do eu [moi] mais atento a si do que ao outro - ela me distrai de todo eu

[moi], distração que desnuda o «Eu [Je]», o expõe à paixão do « totalmente

passivo», lá onde, os olhos abertos sem olhar, eu devenho a ausência infinita,

quando mesmo a desgraça que não suporta a vista e que a vista não suporta, se deixa

considerar, abordar e talvez apaziguar. Mas desatenção que permanece ambígua,

quer seja o extremo do menosprezo inaparente, quer seja o extremo da discrição

oferecida até o esfacelamento.


 O que é estranho na certeza cartesiana «eu penso, eu existo [je suis]», é que ela

não se afirmava senão falando e é que a palavra precisamente a fazia desaparecer,

suspendendo o ego do cogito, reenviando o pensamento ao anonimato sem sujeito, a

intimidade à exterioridade e substituindo a presença vivente (a existência do eu sou,

eu existo [je suis]) pela ausência intensa de um morrer indesejável e atraente. Logo

bastaria que o ego cogito se pronuncie para que ele cesse de se anunciar e para que o

indubitável, sem cair na dúvida e permanecendo não duvidoso, seja, intacto,

arruínado invisivelmente pelo silêncio que fissura a linguagem, é dela o escoamento

caudaloso e, perdendo-se nela [na linguagem], a transmuta em sua perda. Eis porque

pode-se dizer que Descartes jamais soube que ele falava e, muito menos, que ele

permanecia silencioso. É nesta condição que a bela verdade é preservada.

 Para Platão, segundo a dialética que lhe é própria e numa descoberta então

atordoante (aliás perigosa, pois não sem resto), o outro do outro é Mesmo; mas

como não entender no redobramento o repetitivo que descobre, esvazia,

desidentifica, retirando a alteridade (o poder alienante) ao outro, sem cessar de

deixá-lo outro, sempre mais outro (não majorado, mas excedido), pela consagração

do desvio e do retorno?

 Desatenção: a intensidade da desatenção, o longínquo que vela, o além da atenção

para que esta não se limite tornando somente atentos alguma coisa, até mesmo
alguém, até mesmo tudo, desatenção nem negativa nem positiva, mas excessiva,

quer dizer, sem intencionalidade, sans animadversão, sem o êxtase do tempo,

desatenção mortal à qual não temos a liberdade - o poder - de consentir, nem mesmo

de nos deixar ir (de nos doar ao nos abandonar), a paixão desatenta, atraente,

negligente que, enquanto o astro brilha, sob um céu disponível, sobre a terra que

porta, marca o impulso em direção ao e o inacesso do Fora eterno, quando a ordem

cósmica subsiste, mas como reino arrogante, impotente, abrogado, sob o lampejo

inaparente do espaço sideral, na claridade sem luz, lá onde a soberania suspensa,

ausente e sempre lá, remente sem fim a uma lei morta que, na queda mesmo,

recidiva como lei sem lei da morte: o outro da lei.

 Se a ruptura com o astro pudesse se cumprir à maneira de um evento, se

pudéssemos, mesmo que fosse pela violência de nosso espaço assassinado, sair da

ordem cósmica (o mundo) onde, qualquer que seja a desordem visível, o arranjo a

arrasta sempre, o pensamento do desastre, em sua iminência adiada, se ofereceria

ainda à descoberta de uma experiência pela qual não teríamos mais que nos deixar

retomar, no lugar de ser expostos àquilo que se esquiva numa fuga imóvel, no

intervalo do vivente e do morrente; fora de experiência, fora de fenômeno.

 Só o regime médio se deixa afirmar ou negar; mas não há mais lugar para

afirmação, negação, quando a tensão mais alta, a depressão mais baixa (aquilo que

volatiliza em incandescência o sempre honesto gozo – mesmo que fosse o mais


turvo, aquilo que na dor cai sob a dor - demasiado passivo para ser sofrido: sua

calma insuportável) rompem todas as relações que se deixariam significar -

apresentar ou ausentar – sem um dizer : desligadas então até o neutro do qual

nenhuma linguagem dispõe, embora não se separe delas, sem cessar de ser deslocada

nelas.

A intensidade não poderia ser dita alta ou baixa sem restabelecer a escala dos

valores e os princípios de uma medíocre moral. Que ela seja energia ou inércia, ela é

o extremo da diferença, o excesso sobre o ser (tal como o supõe a ontologia),

excesso que, absoluto desarranjamento, não admite mais regime, região, regra,

direção, ereção, insur-reição, nem muito menos o simples contrário destas palavras,

de sorte que ela destrói aquilo que ela indica, queimando o pensamento que a pensa

e exigindo nesta consumpção onde transcendência, imanência não são mais do que

figuras flamejantes extintas: emendas de escritura que a escritura sempre perdeu de

antemão, esta tanto excluindo o processo sem limite quanto parecendo incluir uma

fragmentação sem aparência que supõe, entretanto, ainda uma superfície contínua

sobre a qual ela se inscreveria, como ela supõe a experiência com a qual ela rompe -

assim se continuando pela descontinuidade, engodo do silêncio que, na ausência

mesma, sempre nos entregou ao desastre do retorno.

Intensidade: aquilo que atrai neste nome não é somente que ele escapa em geral a

uma conceitualização, é que ele se desliga em uma pluralidade de nomes, se

denominando tão logo eles se nomeiam e afastando tanto a potência que se exerce

quanto a intencionalidade que marca uma direção, o sinal e o sentido, o espaço que
se projeta e o tempo que se extasia, com esse embaraço de que ele parece uma

espécie de interioridade corporal - a vibrância vivente - pela qual se imprimem de

novo os insípidos ensinamentos da consciência-inconsciência. Daí que seria preciso

dizer que só a exterioridade, no seu intervalo absoluto, em sua desintensificação

infinita, devolve à intensidade de atração desastrosa que a impede de se deixar

traduzir em revelação, em acréscimo de saber, em crença, retornando-a em

pensamento, mas pensamento que se excede e não é mais que o tormento - a retorsão

- deste retorno.

 «Intensidade», essa palavra diferente à qual Klossowski nos conduziu para que a

palavra nos desconfesse, guardando-se justamente de fazer dela uma palavra-chave

ou palavra-reclame que bastaria simplesmente invocar para que seja aberta a brecha

por onde escorreria, se secaria o sentido, nos permitindo uma vez por todas escapar a

sua restrição (F. Schlegel: «o infinito de intensidade»).

 No fora silencioso - o silêncio do silêncio - que de nenhuma maneira teria relação

com uma linguagem, não vindo dela, mas tendo sempre já saído dela, vela aquilo

que não começou nem terá fim, essa noite em que outrem é substituído pelo outro,

aquele que Descartes tentou fixar sob os traços do Grande Contraditor, do Outrem

enganador que não tem somente por papel driblar a evidência - o manifesto da visão

- nem perseguir a obra da dúvida (a duplicidade, simples partilha do Uno em que

este continua a se preservar), mas abala o outro como outrem, com o quê desmorona
a possibilidade da ilusão e da seriedade, da enganação e do equívoco, da palavra

muda, como do mutismo falante, não deixando mais a zombaria dar um sinal,

mesmo se este não significa nada, ainda que, através do silêncio do silêncio – aquele

que não viria de uma linguagem (seu fora, entretanto) – transpasse, pelo repetitivo, a

derrisão do retorno desastroso (a morte embargada).

 Esses nomes, lugares da deslocação, os quatro ventos da ausência de espírito

soprando de nenhuma parte: o pensamento, quando este se deixa, pela escritura,

desligar até o fragmentário. Fora. Neutro. Desastre. Retorno. Nomes que certamente

não formam sistema e, naquilo que eles têm de abrupto à maneira de um nome

próprio não designando ninguém, deslizam para fora de todo sentido possível sem

que esse deslizamento faça sentido, deixando somente uma entreluz deslizante que

não clareia nada, nem mesmo esse fora-de-sentido cujo limite não se indica. Nomes

que, num campo devastado, assolado pela ausência que os precedeu e que eles

portariam em si mesmos se, vazios de toda interioridade, eles não se erguessem

exteriores a si mesmos (pedras de abismo petrificadas pelo infinito de sua queda),

parecem os restos, cada um, de uma linguagem outra, ao mesmo tempo desaparecida

e jamais pronunciada, que nós não saberíamos tentar restaurar sem reintroduzi-los

no mundo ou exaltá-los até um supra-mundo do qual, em sua solidão clandestina de

eternidade, eles não saberiam ser senão a instável interrupção, a invisível retirada.
 Sempre de retorno pelos caminhos do tempo, não avançaremos nem

retardaremos: tarde é cedo, próximo longe.

 Os fragmentos se escrevem como separações não cumpridas; aquilo que eles têm

de incompleto, de insuficiente, trabalho da decepção, é sua deriva, o índice de que,

nem unificáveis, nem consistentes, eles deixam se espaçarem marcas com as quais o

pensamento, ao declinar e se declinando, figura conjuntos furtivos que ficticiamente

abrem e fecham a ausência de conjunto, sem que, fascinado definitivamente, o

pensamento se detenha neles, sempre revezado pela vigília que não se interrompe.

Daí que não se possa dizer que haja intervalo, já os fragmentos, destinados em parte

ao branco que os separa, encontram nesse intervalo abismal não aquilo que os

termina, mas aquilo que os prolonga, ou os põe em espera daquilo que os

prolongará, já os prolongou, fazendo-os persistir através de seu inacabamento,

sempre prontos então a se deixar trabalhar pela razão infatigável, no lugar de

permanecer sendo a palavra decaída, posta à parte, o segredo sem segredo que

nenhuma elaboração saberia preencher.

 Lendo essas frases antigas: «A inspiração, essa palavra errante que não pode

tomar fim, é a longa noite da insônia, e é para se defender dela, desviando-se dela,

que o escritor vem a escrever verdadeiramente, atividade que o devolve ao mundo

onde ele pode dormir». E mais esta: «Lá onde eu sonho, isso vela, vigilância que é a

surpresa do sonho e onde vela de fato, num presente sem duração, uma presença sem
pessoa, a não-presença onde não advém jamais nenhum ser e cuja fórmula

gramatical seria «Ele[O Il Neutro]...» Por que esse lembrete? Por que, apesar do

que elas dizem sobre a vigília ininterrupta que persiste por trás do sonho, e sobre a

noite inspiradora da insônia, essas palavras parecem ter necessidade de ser

retomadas, repetidas, para escapar ao sentido que as anima e a fim de ser desviadas

de si mesmas, do discurso que as utiliza? Mas, retomadas, elas reintroduzem uma

segurança à qual se creria ter cessado de pertencer, elas têm um ar de verdade,

dizem alguma coisa, pretendem a uma coerência, dizem: tu pensaste isso há muito

tempo, és, portanto, autorizado a pensá-lo de novo, restaurando essa continuidade

razoável que faz os sistemas, fazendo jogar no passado uma função de garantia,

deixando isso devir ativo, citador, incitador e impedindo a invisível ruína que a

vigília perpétua, fora de consciência inconsciência, devolve ao neutro.

 Palavra de espera, silenciosa talvez, mas que não deixa à parte silêncio e dizer, e

que faz do silêncio já um dizer, que diz no silêncio já o dizer que o silêncio é. Pois o

silêncio mortal não se cala.

 A escritura fragmentária seria o próprio risco. Ela não reenvia a uma teoria, não

dá lugar a uma prática que seria definida pela interrupção. Interrompida, ela se

prossegue. Interrogando-se, ela não se arroga a questão, mas a suspende (sem

mantê-la) em não-resposta. Se ela pretende não ter seu tempo senão quando o todo -

ao menos idealmente – tivesse se cumprido, é, portanto, porque esse tempo não é


nunca seguro, ausência de tempo num sentido não privativo, anterior a todo passado-

presente, como posterior a toda possibilidade de uma recência por vir.

 Se, por entre todas as palavras, há uma palavra inautêntica, é justamente a palavra

«autêntica».

 A exigência fragmentária, exigência extrema, é antes de tudo tida

preguiçosamente como se detendo em fragmentos, rascunhos, estudos: preparações

ou rejeitos daquilo que não é ainda uma obra. Que ela atravesse, reverta, arruine a

obra porque esta - totalidade, perfeição, cumprimento - é a unidade que se complaz

em si mesma, eis o que pressente F. Schlegel, mas que por fim lhe escapa, sem que

se possa lhe rechaçar esse desconhecimento que ele nos ajudou, que ele nos ajuda

ainda a discernir no momento mesmo em que o partilhamos com ele. A exigência

fragmentária, ligada ao desastre. Que não haja, entretanto, quase nada de desastroso

nesse desastre, será, pois, preciso que aprendamos a pensá-lo sem talvez sabê-lo

jamais.

 A fragmentação, marca de uma coerência tanto mais firme quanto seria preciso

que ela se desfaça para se atingir, não por um sistema dispersado, nem pela

dispersão como sistema; mas o despedaçamento (o dilaceramento) daquilo que

jamais pré-existiu (real ou idealmente) como conjunto, nem muito menos poderá se

reagrupar em alguma presença de porvir que seja. O espaçamento de uma


temporalização que não se apreende - falaciosamente – senão como ausência de

tempo.

 O fragmento, enquanto fragmento, tende a dissolver a totalidade que ele supõe e

que ele carrega em direção à dissolução de onde ele não se forma (propriamente

falando), à qual ele se expõe para, desaparecendo, e, consigo, toda identidade, se

manter como energia de desaparecer, energia repetitiva, limite do infinito mortal -

ou obra da ausência de obra (para redizê-lo e calá-lo ao redizê-lo). Daí que a

impostura do Sistema - o Sistema elevado pela ironia a um absoluto de absoluto - é

maneira para o sistema de se impor ainda pelo discrédito do qual o credita a

exigência fragmentária.

 A exigência fragmentária faz sinal ao Sistema que ela dispensa (como ela

dispensa a princípio o eu [moi] autor) sem cessar de torná-lo presente, assim como,

na alternativa, o outro termo não pode totalmente esquecer o primeiro termo do qual

ele tem necessidade para substituí-lo por si. A crítica justa do Sistema não consiste

(como se se compraz nisso o mais frequentemente) em tomá-lo em erro ou a

interpretá-lo insuficientemente (isso acontece mesmo para Heidegger) mas em

torná-lo invencível, incriticável ou, como se diz, incontornável. Então, nada lhe

escapando por sua unidade onipresente e pelo reagrupamento de tudo, não resta mais

situação para a escritura fragmentária salvo a se retirar como o necessário

impossível: o que, portanto, se escreve através do tempo fora do tempo, numa


suspensão que, sem retenção, quebra o selo da unidade, precisamente não o

quebrando, mas deixando-o de lado sem que se possa sabê-lo. Assim, a escritura

fragmentária não pertenceria ao Uno do mesmo modo que ela, no entanto, se

afastaria da manifestação. E assim, ainda, ela não denunciaria menos o pensamento

como experiência (sob qualquer forma que se entenda essa palavra) do que o

pensamento como cumprimento de tudo.

 «Ter um sistema, eis o que é mortal para o espírito; não ter um, eis também o que

é mortal. De onde a necessidade de sustentar, perdendo-as, ao mesmo tempo as

duas exigências» (Fr. Schlegel).

 O que Schlegel diz da filosofia vale para a escritura: não se pode devir escritor

sem sê-lo jamais; desde que se é escritor, não se o é mais.

 Toda beleza é de detalhe, dizia em termos parecidos Valéry.

Mas isso seria verdadeiro se houvesse uma arte dos detalhes que não teria mais por

horizonte a arte de conjunto.

 O inconveniente (ou a vantagem) de todo ceticismo necessário é elevar cada vez

mais alto a barra da certeza ou da verdade ou da crença. Não se crê em nada por

necessidade de demasiado crer e porque se crê ainda demasiado quando não se crê

em nada.
 O quanto seria absurda essa questão endereçada ao escritor: tu és de parte em

parte escritor, quer dizer, em tudo que tu és, és tu mesmo escritura vivente e agente?

Seria imediatamente condená-lo à morte ou fazer ingenuamente seu elogio fúnebre.

 A exigência fragmentária nos chama a pressentir que não há ainda nada de

fragmentário, não propriamente falando, mas impropriamente falando.

 A afirmação passa sem prova, com a condição de não pretender provar nada.

 Busco aquele que diria não. Pois dizer não é dizer com o lampejo que o « não»

está destinado a preservar.

 O que chega através da escritura não é da ordem daquilo que chega. Mas então

quem te permite pretender que jamais chegaria alguma coisa como a escritura? Ou

então, a escritura não seria tal que ela não teria jamais necessidade de advir?

 Alguém (Clavel) escreveu de Sócrates que todos nós o matamos. Eis o que não é

de modo algum socrático. Sócrates não teria gostado de nos tornar culpados de nada,

nem mesmo responsáveis de um evento que sua ironia tinha de antemão tornado

insignificante, até mesmo benéfico, nos suplicando a não tomá-lo a sério. Mas, com

certeza, Sócrates não esquece senão uma coisa. É que mais ninguém depois dele
podia ser Sócrates, e que sua morte matou a ironia. E à ironia que seus juízes en

tinham todos dessa morte; é à ironia que nós outros, seus justos choradores,

continuamos todos a ter dela.

 O não-saber não é nada saber, nem mesmo o saber do « não », mas o que

dissimula toda ciência ou nesciência, seja o neutro enquanto não-manifestação.

 Uma «descoberta» que se reitera [on ressasse] devém a descoberta da reiteração

[ressassement].

 R. C. é em tal ponto poeta que a partir dele a poesia brilha como um feito, mas

que a partir desse feito da poesia todos os feitos devêm questão e mesmo questão

poética.

 O fervor pelo progresso infinito não é válido senão como fervor, pois que o

infinito é o fim mesmo de todo progresso.

 Hegel é certamente o inimigo mortal do cristianismo, mas na medida em que ele

é cristão, se, longe de se contentar com uma só Mediação (o Cristo), ele faz

mediação de tudo. Só o judaísmo é o pensamento que não mediatiza. E eis por que

Hegel, Marx são antijudaicos, para não dizer antissemitas.


N. t. René Char.
 O filósofo que escreveria como poeta visaria sua própria destruição. E mesmo

visando-a, ele não pode atingi-la. A poesia é questão para a filosofia que pretende

lhe dar uma resposta, e assim compreendê-la (sabê-la). A filosofia que põe tudo em

questão, tropeça na poesia que é a questão que lhe escapa.

 Quem escreve está em exílio da escritura: lá é sua pátria onde ele não é profeta.

 Aquele que não se interessa por si mesmo não é, no entanto, por isso,

desinteressado. Ele não começaria a sê-lo senão se nele o desinteresse por ele não o

tivesse sempre já aberto a outrem que passa todo interesse.

 Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para

se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar

sobreviver, mas por um suicídio perpétuo - morte total enquanto fragmentária.

Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro - outrem, leitor - que não

terá doravante por dever e por vida senão a inexistência de vocês.

 Num sentido, o «eu [moi]» não se perde porque ele não se pertence. Não existe,

pois, eu [moi] senão como não-pertencente a si, e, portanto, como sempre já

perdido.
 O salto mortal do escritor sem o qual ele não escreveria, é necessariamente uma

ilusão na medida em que, para se cumprir realmente, é preciso que ele não tenha

lugar.

 A supor que se possa escolarmente dizer: o Deus de Leibniz é porque é possível,

compreender-se-á que se pode dizer ao contrário: o real é real enquanto excluindo a

possibilidade, quer dizer, sendo impossível, do mesmo modo a morte, do mesmo

modo, e num título mais alto, a escritura do desastre.

 Só um eu [moi] finito (tendo por só destino a finitude) deve por isso vir a se

reconhecer, no outro, responsável do infinito.

 Não é senão enquanto infinito que eu sou limitado.

 Se, como o afirma etimologicamente Levinas, a religião é aquilo que liga,

mantém junto, então o que acontece com o não-laço que desune para além da

unidade, o que acontece com aquilo que escapa à sincronia do «se manter junto»

sem, entretanto, romper toda relação ou sem cessar, nessa ruptura ou nessa ausência

de relação, de abrir uma relação ainda? É preciso ser não-religioso para isso?

 Infinito-limitado, isto és tu?


Se tu escutas «a época», tu aprenderás que ela te diz em voz baixa, não para falar

em nome dela, mas para te calar em nome dela.

 Certamente Sócrates não escreve, mas, sob a voz, é pela escritura, entretanto, que

ele se dá aos outros como o sujeito perpétuo e perpetuamente destinado a morrer.

Ele não fala, ele questiona. Questionando, ele interrompe e se interrompe sem

cessar, dando forma ironicamente ao fragmentário e votando por sua morte a palavra

à obsessão da escritura, do mesmo modo que esta à só escritura testamentária (sem

assinatura, todavia).

 Entre as duas proposições falsamente interrogativas: por que há, antes, alguma

coisa ao invés de nada? E por que há, antes, o mal ao invés do bem?, eu não

reconheço essa diferença que se pretende nelas discernir, já que ambas são portadas

por um «há» que não é nem ser nem nada, nem bem nem mal e sem o qual tudo isso

desmorona ou já portanto desmoronou. Sobretudo o há, enquanto neutro, dribla a

questão que recai sobre ele: interrogado, ele absorve ironicamente a interrogação

que não saberia sobrepujá-lo. Mesmo se ele se deixa vencer, é porque a derrota é a

sua conveniência inconveniente, do mesmo modo que o mau infinito em sua

repetição perpétua o determina como verdadeiro na medida em que ele imita

(falsamente) a transcendência e, assim, lhe denuncia a ambiguidade essencial, a

impossibilidade, para esta, de ser mensurada pelo verdadeiro ou pelo justo.


 Morrer quer dizer: morto, tu já o és, num passado imemorial, de uma morte que

não foi a tua, que tu, portanto, não conheceste nem viveste, mas sob a ameaça da

qual tu te crês chamado a viver, esperando-a doravante do porvir, construindo um

porvir para torná-la enfim possível, como alguma coisa que terá lugar e pertencerá à

experiência.

Escrever não é mais pôr no futuro a morte sempre já passada, mas aceitar sofrê-la

sem torná-la presente e sem se tornar presente para ela, saber que ela teve lugar,

ainda que ela não tenha sido provada, e reconhecê-la no esquecimento que ela deixa

e cujos traços que se apagam, chamam a se excetuar da ordem cósmica, lá onde o

desastre torna o real impossível e o desejo indesejável.

Esta morte incerta, sempre anterior, atestação de um passado sem presente, não é

jamais individual, do mesmo modo que ela desborda o todo (aquilo que supõe o

advento do todo, seu cumprimento, o fim sem fim da dialética): fora do todo, fora do

tempo, ela não saberia ser explicada, assim como o pensa Winnicott, somente pelas

vicissitudes próprias à primeira infância, quando a criança, ainda privada de eu

[moi], sofre estados abalantes (as agonias primitivas) que ela não pode conhecer já

que ela não existe ainda, que se produziam, portanto, sem ter lugar, aquilo que

conduz mais tarde o adulto, numa lembrança sem lembrança, por seu eu [moi]

fissurado, a esperá-las (seja para desejá-las, seja para temê-las) de sua vida que se a

acaba ou desmorona. Ou antes, não é senão uma explicação, de resto

impressionante, uma aplicação fictícia destinada a individualizar aquilo que não


saberia sê-lo ou ainda a fornecer uma representação do irrepresentável, a deixar crer

que se poderá, com a ajuda da transferência, fixar no presente de uma lembrança

(quer dizer, numa experiência atual) a passividade do desconhecido imemorial,

operação de desvio talvez terapeuticamente útil, na medida em que, por um modo de

platonismo, àquele que vive na assombração de um desmoronamento iminente, ela

permite dizer: isso não terá lugar, isso já teve lugar, eu sei, eu me relembro – o que é

restaurar um saber de verdade e um tempo comum linear.

 Sem a prisão, saberíamos que estamos todos já na prisão.

 A morte impossível necessária: por que estas palavras - e a experiência

inexperienciada à qual elas se referem – escapam à compreensão? Por que este

confronto, esta recusa? Por que apagá-las fazendo delas uma ficção própria a um

autor? É bem natural. O pensamento não pode acolher aquilo que ele porta em si e

que o porta, exceto se ele o esquece. Eu falarei disso sobriamente, utilizando (talvez

as falsificando) observações fortes de Serge Leclaire. Conforme este, não se vive e

não se fala senão matando o infans em si (em outrem também), mas o que é o

infans? Evidentemente, aquilo que ainda não começou a falar e jamais falará, mas,

mais ainda, a criança maravilhosa (terrificante) que fomos nos sonhos e nos desejos

daqueles que nos fizeram e nos viram nascer (pais, toda a sociedade). Esta criança,

onde ela está? Segundo o vocabulário psicanalítico (do qual, creio, só podem utilizar

aqueles que exercem a psicanálise, quer dizer, para quem ela é risco, perigo
extremo, questionamento cotidiano – se não ela é só a linguagem cômoda de uma

cultura estabelecida), haveria lugar para identificá-la na «representação narcísica

primária», o que quer dizer que ela tem estatuto de representante para sempre

inconsciente, e, por conseguinte, para sempre indelével. De onde a dificuldade

propriamente falando «louca»: para não permanecer nos limbos do infans e do

aquém do desejo, trata-se de destruir o indestrutível e mesmo de pôr fim (não de um

só golpe, mas constantemente) àquilo a que não se tem, jamais se teve, nem se terá

acesso – ou seja, a morte impossível necessária. E, de novo, nós não vivemos e não

falamos (mas com que espécie de palavra?) senão porque a morte já teve lugar,

evento insituado, insituável que, para não se tornar mudo por isso no falar mesmo,

nós confiamos ao trabalho do conceito (a negatividade) ou ainda ao trabalho

psicanalítico ao qual não é possível senão que ele não tenha levantado “a confusão

ordinária” entre esta primeira morte que seria o cumprimento incessante e a segunda

morte chamada, por uma simplificação fácil, «orgânica» (como se a primeira não o

fosse).

Mas aqui nós interrogamos o encaminhamento de Hegel e nos relembramos dele: a

confusão – aquilo que vocês nomeiam confusão – jamais pode ser dissipada de outro

modo senão por um passe de mágica, o ardil dito (comodamente), idealista -

naturalmente de uma grande importância significativa? Sim, relembremo-nos do

todo primeiro Hegel. Ele também, antes mesmo daquilo que se chama sua primeira

filosofia, pensou que as duas mortes não eram dissociáveis e que só o fato de

afrontar a morte, não somente de lhe fazer frente ou de se expor a seu perigo (o que
é o traço da coragem heróica), mas de entrar em seu espaço, de sofrê-la como morte

infinita e, também, morte bem simplesmente, «morte natural», podia fundar a

soberania e a maestria: o espírito em suas prerrogativas. Resultava disso talvez

absurdamente que aquilo que punha em abalo a dialética, a experiência

inexperimentável da morte, o detinha tão-logo, parada da qual todo o processo

ulterior guardou um tipo de lembrança, como de uma aporia com a qual seria sempre

preciso contar. Eu não entrarei no detalhe da maneira com a qual, desde a primeira

filosofia, por um enriquecimento prodigioso do pensamento, a dificuldade foi

superada. Isso é bem conhecido. Resta que se a morte, o assassinato, o suicídio são

postos em obra e que se a morte se amortiza ela mesma, tornando-se potência

impotente, mais tarde negatividade, há, a cada vez que se avança com ajuda da

morte possível, a necessidade de não passar além da morte sem frases, a morte sem

nome, fora de conceito, a impossibilidade mesma.

Acrescentarei uma observação, uma interrogação: a criança de Serge Leclaire, o

infans glorioso, terrificante, tirânico, que não se pode matar na medida em que não

se alcança uma vida e uma palavra senão cessando de enviá-la à morte, não seria

precisamente a criança de Winnicott, aquela que, antes de viver, soçobrou no

morrer, a criança morta que nenhum saber, nenhuma experiência saberiam fixar no

passado definitivo de sua história? Tão gloriosa, terrificante, tirânica porque, em

nosso desconhecimento (mesmo e, sobretudo, quando nós fazemos semblant de

sabê-lo e de dizê-lo, como aqui), sempre já morta. Aquilo que nós nos esforçaremos

para matar, é, justamente, a criança morta, não somente aquela que teria por função
carregar a morte na vida e se manter nela, mas aquela para quem a «confusão» das

duas mortes não pode não se produzir e que, por aí, não nos autoriza nunca a

«erguê-la», golpeando de inanidade o Aufhebung e tornando vã toda refutação do

suicídio.

Ressalto que Serge Leclaire e Winnicott se esforçam, quase da mesma maneira, em

nos desviar do suicídio mostrando que este não é uma solução. Nada de mais justo.

Se a morte é a paciência infinita daquilo que não se cumpre jamais uma vez por

todas, o curto-circuito do suicídio frustra necessariamente a morte transformando

«ilusoriamente» em possibilidade ativa a passividade daquilo que não pode ter lugar

porque tendo sempre já tido lugar. Mas talvez seja preciso entender o suicídio de

outra forma.

É possível que o suicídio seja a maneira pela qual o inconsciente (a vigília em sua

vigilância não despertada) nos adverte que alguma coisa claudica na dialética, nos

relembrando que a criança sempre a matar é a criança já morta e que assim, no

suicídio – aquilo que nomeamos assim -, não se passa simplesmente nada; de onde o

sentimento de incredulidade, de pavor que ele nos fornece sempre, ao mesmo tempo

em que ele suscita o desejo de refutá-lo, quer dizer, de torná-lo real, quer dizer,

impossível. O «não se passa nada» do suicídio pode justamente receber a forma de

um evento numa história que, por aí, por este fim audacioso, resultado aparente de

uma iniciativa, toma uma feição individual: o que faz enigma, é que, precisamente

me matando, «eu» não «me» mato, mas, entregando de alguma maneira o ouro ao

inimigo, alguém (ou alguma coisa) se serve de um eu que desaparece - em figura de


Outro - para lhe revelar e revelar a todos aquilo que imediatamente escapa: a saber o

depois-do-golpe [après-coup] da morte, o passado imemorial da morte antiga. Não

há morte agora ou futura (de um presente por vir). O suicídio é talvez, é sem dúvida

uma estupidez, mas tem por lance tornar por um instante evidente – escondida – a

outra estupidez que é a morte dita orgânica ou natural, na medida em que esta aqui

pretende se dar por distinta, definitivamente posta à parte, a não confundir, podendo

ter lugar, mas não tendo lugar senão uma vez, assim a banalidade do único

impensável.

Mas qual seria a diferença entre a morte por suicídio e a morte não suicidária (se há

alguma)? É que a primeira, se confiando à dialética (totalmente fundada sobre a

possibilidade da morte, sobre o uso da morte como poder) é o oráculo obscuro que

nós não deciframos, graças ao qual, entretanto, pressentimos, esquecendo sem

cessar, que aquele que foi até o extremo do desejo de morte, invocando seu direito à

morte e exercendo sobre si mesmo um poder de morte - abrindo, assim como o disse

Heidegger, a possibilidade da impossibilidade - ou ainda, crendo se tornar mestre da

não-maestria, se deixa prender numa espécie de armadilha e se suspende

eternamente - um instante, evidentemente – aí onde, cessando de ser um sujeito,

perdendo sua liberdade obstinada, ele se choca, outro do que ele mesmo, com a

morte como com aquilo que não chega ou como com aquilo que se retorna

(desmentindo, à maneira de uma demência, a dialética fazendo-a resultar em algo)

na impossibilidade de toda possibilidade. O suicídio é num sentido uma

demonstração (daí seu traço arrogante, enfadado, indiscreto), e aquilo que ele
demonstra é o indemonstrável, a saber que, na morte, não se passa nada e que ela

mesma não passa (de onde a vaidade e a necessidade de seu caráter repetitivo). Mas

resta desta demonstração abortada que nós não morremos «naturalmente», da morte

sem frases e sem conceito (afirmação sempre a pôr em dúvida) senão se, por um

suicídio constante, inaparente e prévio, cumprido por ninguém, nós cheguemos

assim (bem entendido, este não é «nós») ao engodo do fim da história em que tudo

retorna à natureza (uma natureza suposta desnaturada), quando a morte, cessando de

ser uma morte sempre dupla, tendo como que esgotado a passividade infinita do

morrer, se reduz à simplicidade de alguma coisa de natural, mais insignificante e

mais desinteressante que o desmoronamento de um montículo de areia.

 «Mata-se uma criança». É deste título que é preciso no fim se lembrar naquilo que

ele tem de força indecisa. Não sou eu que teria que matar e sempre matar o infans

que fui como que em primeiro lugar e enquanto eu não era ainda, mas ao menos

sendo nos sonhos, nos desejos e no imaginário de alguns, depois de todos. Há morte

e assassínio (palavras que eu ponho no desafio de distinguir seriamente e que é

preciso, entretanto, separar); por esta morte e por este assassínio, é um «se»

impessoal, inativo e irresponsável, que tem que responder - e do mesmo modo que a

criança é uma criança, sempre indeterminada e sem relação com quem quer que seja.

Uma criança já morta vai morrendo, de uma morte assassina, criança da qual nós

não sabemos nada, mesmo se a qualificamos de maravilhosa, de terrificante, de

tirânica ou de indestrutível : exceto nisto em que a possibilidade de palavra e de


vida dependeria, pela morte e o assassínio, da relação de sigularidade que se

estabeleceria ficticiamente com um passado mudo, aquém da história, fora de

passado por conseguinte, do qual o infans eterno se faz figura, ao mesmo tempo que

ele se esquiva a isso. «Mata-se uma criança». Não nos enganemos sobre este

presente: significa que a operação não saberia ter lugar uma vez por todas, que ela

não se cumpre em nenhum momento privilegiado do tempo, que ela se opera

inoperável e que assim ela tende a não ser senão o tempo mesmo que destrói (apaga)

o tempo, apagamento ou destruição ou dom que sempre já se confessou na precessão

de um Dizer fora do dito, palavra de escritura por onde este apagamento, longe de se

apagar por seu turno, se perpetua sem termo até na interrupção que lhe constitui a

marca.

«Mata-se uma criança». Este passivo silencioso, esta eternidade morte e à qual é

preciso dar uma forma temporal de vida a fim de poder se separar dela por um

assassínio, este companheiro de ninguém que procuramos particularizar numa falta,

vivendo então de sua recusa, desejante deste não-desejo e falante por e contra sua

não-palavra, não há nada (saber ou não-saber) que possa nos advertir dela, mesmo se

em poucas palavras a mais simples das frases parece divulgá-lo (mata-se uma

criança), mas frase imediatamente arrancada de toda linguagem, uma vez que é para

fora de consciência e inconsciência que ela nos atrairia, a cada fez que nos seria

dado, outros do que nós mesmos e em relação de impossibilidade com o outro,

pronunciá-la, impronunciável.
 (Uma cena primitiva?) Vocês que vivem mais tarde, próximos de um coração que

não bate mais, suponham, suponham-no: a criança – ela teria sete anos, oito anos

talvez? – de pé, afastando a cortina e, através da vidraça, olhando. O que ela vê: o

jardim, as árvores de inverno, o muro de uma casa: enquanto ela vê, sem dúvida à

luz de uma criança, seu espaço de jogo, ela se cansa e lentamente olha para o alto

em direção ao céu ordinário, com as nuvens, a luz cinza, o dia opaco e sem

distância.

O que se passa em seguida: o céu, o mesmo céu, repentinamente aberto, negro

absolutamente e vazio absolutamente, revelando (como que pela vidraça quebrada)

uma tal ausência que tudo nela desde sempre e para sempre se perdeu, a ponto que

nela se afirme e se dissipe o saber vertiginoso de que nada é aquilo que há, e de

saída nada para-além". O inesperado dessa cena (seu traço interminável) é o

sentimento de felicidade que imediatamente submerge a criança, a alegria

devastadora da qual ela não poderá testemunhar senão pelas lágrimas, um

escoamento sem fim de lágrimas. Crê-se numa tristeza de criança, procura-se

consolá-la. A criança não diz nada. Ela viverá doravante no segredo. Não chorará

mais.

 Alguma coisa claudica na dialética, mas só o processo dialético, em sua exigência

inultrapassável, em seu cumprimento sempre mantido, nos dá a pensar naquilo que

dele se exclui, não por desfalecimento ou irreceptibilidade, mas no curso de seu

funcionamento e a fim de que este funcionamento possa se prosseguir


interminavelmente até seu termo. A história acabada, o mundo sabido e

transformado na unidade do Saber que se sabe a si mesmo, o que quer dizer que o

mundo para sempre deveio ou está morto, assim como o homem que dele foi a figura

passageira, do mesmo modo que o Sujeito cuja identidade sábia não é mais do que a

indiferença à vida, sua vacância imóvel: a partir daí onde nos é dado raramente,

mesmo que seja ativamente, e pelo jogo mais perigoso, nos portar, não somos de

maneira alguma livrados da dialética, mas esta se torna puro Discurso, aquilo que se

fala e não diz nada, o Livro como jogo e jogada do absoluto e da totalidade, o Livro

que se destrói se construindo, o trabalho do “Não” em suas formas múltiplas por trás

do qual leitura, escritura se mobilizam para o advento de um Sim único e ao mesmo

tempo sempre reiterado na circularidade em que não há mais afirmação primeira e

última.

Poderíamos imaginar que já estamos lá: de onde a preocupação e a prática-teórica da

linguagem por relação ao que parece que não haja Saber que não deva se

conjecturar. Como se a inversão que Marx propunha a respeito de Hegel: «passar da

linguagem à vida», se invertesse por seu turno, a vida acabada, quer dizer cumprida,

devolvendo a uma linguagem sem referência (por aí devindo ciência de si mesma e

modelo de toda ciência) a tarefa de dizer tudo se dizendo sem fim. O que pode, sob a

aparência de uma negação [désaveu] da dialética, conduzir a prolongá-la sob outras

formas, de modo que não se estaria jamais seguro de que a exigência dialética não

pretenda a sua própria renúncia para se renovar com aquilo que a põe fora de causa -

inefetiva. De onde segue, mas não segue talvez nada, nem mesmo este talvez,
mesmo que sejamos condenados a ser sempre salvos pela dialética da qual seria

preciso primeiro saber aquilo que autoriza a duvidar que ela possa ser, não direi

refutada (a possibilidade de uma refutação pertence a seu desenvolvimento), mas

somente recusada, e se a dúvida não consegue arruinar a recusa, porque não se

trataria então da recusa primeira – a recusa de começar, de filosofar, de entrar em

diálogo com Sócrates ou, de modo mais geral, a recusa de preferir à violência muda

a violência já falante: preferência ou decisão sem a qual, segundo Eric Weil, não

seria possível haver nem dialética, nem filosofia, nem saber. Ou antes, será que não

restaria alguma coisa desta recusa no processo dialético? Não persistiria nele ao

mesmo tempo se modificando até dar lugar àquilo que não se poderia chamar uma

exigência não dialética? Ou melhor, aquilo que claudica na dialética e no entanto a

faz funcionar poderia se separar dela e sob quais condições, a que preço? Que isso

deva custar caro, muito caro – sem dúvida a razão, em forma de logos, mas há uma

outra razão? -, é aquilo que se deixa pressentir e, outro pressentimento, se há limites

ao campo dialético, estes se deslocando sem cessar, é preciso perder a ingenuidade

de crer que se possa, uma vez por todas, exceder estes limites, designar zonas de

saber e de escritura que neles permaneceriam decididamente estrangeiras, mas de

novo ainda, pela recusa que a acompanha e a altera e a consolida, perguntemo-nos se

não é fazendo obstinadamente seu jogo que nos aconteceria de driblá-la ou de pô-la

em falta no fato de que ela não saberia desfalecer.

No lugar da recusa – que é sem lugar – invocada por Eric Weil, talvez seria

preciso, fora de todo misticismo, entender aquilo que não entendemos: a exigência
não exigente, desastrosa, do neutro, a efração do infinitamente passivo onde se

encontram, se desjuntando, o desejo indesejável, a pulsão do morrer imortal.

 Se se pronuncia o desastre, sentimos que não é uma palavra, um nome, e que não

há em geral nome separado, nominal, predominante, mas sempre toda uma frase

encabrestada ou simples em que o infinito da linguagem, em sua história não

acabada, em seu sistema não fechado, procura se deixar encarregar por um processo

de verbos, mas, ao mesmo tempo, na tensão jamais apaziguada entre nome e verbo,

a tombar como em parada para fora de linguagem sem, entretanto, cessar de

pertencer a ela.

Assim a paciência do desastre nos conduz a não esperar nada do «cósmico» e talvez

nada do mundo, ou, ao contrário, muito do mundo, se conseguirmos destacá-lo da

ideia de ordem, do arranjamento sobre o qual velaria sempre a lei; enquanto o

«desastre», ruptura sempre em ruptura, parece nos dizer: não há lei, interdito, depois

transgressão, mas transgressão sem interdito que termina por se congelar em Lei, em

Princípio do Sentido. A longa, a interminável frase do desastre: eis aquilo que

procura, formando enigma, se escrever, para nos afastar (mas não uma vez por

todas) da exigência unitária, esta necessariamente sempre em trabalho. O cósmico

seria a maneira pela qual o sagrado, encobrindo-se (voilant) como transcendência,

gostaria de se fazer imanente, a tentação, portanto, de se fundir com a ação do

universo e de se tornar assim indiferente às vicissitudes fatigantes do próximo (da

vizinhança), pequeno céu em que se sobrevive ou com o qual se morre


universalmente na serenidade estóica, «tudo» que nos abriga, ao mesmo tempo em

que nós nos dissolvemos nele, e que seria repouso natural, como se houvesse uma

natureza fora dos conceitos e dos nomes?

O desastre, ruptura com o astro, ruptura com toda forma de totalidade, sem,

entretanto, denegar a necessidade dialética de um cumprimento, profecia que não

anuncia nada além do que a recusa do profético com simples evento por vir, abrindo,

todavia, descobrindo a paciência da palavra velante, atingida pelo infinito sem

poder, isso que não se passa sob um céu sideral, mas aqui, um aqui em excesso

sobre toda presença. Aqui, onde, pois?

« Voz de ninguém, de novo».

 O teórico é necessário (por exemplo, as teorias da linguagem), necessário e inútil.

A razão trabalha para se usar a si mesma, organizando-se em sistema, à procura de

um saber positivo em que ela se pouse e se repouse e ao mesmo tempo se porta a

uma extremidade que forma parada e encerramento. Devemos passar por esse saber

e esquecê-lo. Mas o esquecimento não é secundário, o desfalecimento improvisado

daquilo que se constituiu em lembrança. O esquecimento é uma prática, a prática de

uma escritura que profetiza porque ela se cumpre renunciando a tudo: anunciar

talvez seja renunciar. O combate teórico, mesmo que seja contra uma forma de

violência, é sempre a violência de uma incompreensão; não nos deixemos deter pelo

traço parcial, simplificador, redutor, da compreensão mesma. Essa parcialidade é

própria do teórico: «a golpes de martelo», dizia Nietzsche. Mas o martelamento não


é somente o choque das armas; a razão martelante está à procura de seu derradeiro

confronto por onde não sabemos se começa, se toma fim o pensamento que se

prolonga, como um sonho feito de vigília. Por que o ceticismo, mesmo refutado, é

invencível? Levinas se pergunta isso. Sabia disso Hegel, que fez do ceticismo um

momento privilegiado do sistema. Era somente fazê-lo servir. A escritura, mesmo se

ela parece demasaido exposta para ser dita cética, supõe também que o ceticismo

deixa previamente e sempre de novo o lugar limpo, o que não pode ainda chegar

senão pela escritura.

 O ceticismo, nome que rasurou sua etimologia e toda etimologia, não é a dúvida

indubitável, não é a simples negação niilista: antes: a ironia. O ceticismo está em

relação com a refutação do ceticismo. Refuta-se o ceticismo, mesmo que seja só

vivendo, mas a morte não o confirma. O ceticismo é o retorno mesmo do refutado,

aquilo que faz anarquicamente irrupção, caprichosa e irregularmente, cada vez (e ao

mesmo tempo não cada vez) que a autoridade, a soberania da razão, até mesmo da

desrazão, nos impõem sua ordem ou se organizam definitivamente em sistema. O

ceticismo não destrói o sistema, ele não destrói nada, é uma espécie de alegria sem

riso, em todo caso sem zombaria, que de um golpe só nos desinteressa da afirmação,

da negação: assim neutro como toda linguagem. O desastre seria, também, esta parte

de alegria cética, sempre indisponível, e que faz passar o sério (da morte, por

exemplo) para além de todo sério, do mesmo modo que ela alivia o teórico não nos
deixando confiar nele. Chamo novamente por Levinas: «A linguagem é já

ceticismo».

 As tensões que se unificam não podem muito menos dar lugar a uma afirmação;

não se pode então dizer, como se, por aí, se se liberasse de toda dialética: afirmação

das tensões, mas, antes, paciência tendida, paciência até a impaciência. O contínuo o

descontínuo seriam o conflito hiperbólico que reencontraríamos sempre, após ter-

nos desfeito deles. A continuidade porta o descontínuo que, no entanto, a exclui. O

contínuo se impõe sob todas as formas, como se impõe o Mesmo, de onde o tempo

homogêneo, de onde a eternidade, de onde o logos que reagrupa, de onde a ordem

em que toda mudança é regrada, a felicidade de compreender, a lei sempre primeira.

Mas não basta, para romper o contínuo em sua continuidade, introduzir o

heterogêneo (a heteronomia) que deles depende, que forma compromisso com o

homogêneo, na medida em que a interação entre eles é uma forma de oposição

apaziguada que permite a vida, que inclui a morte (como quando se cita,

complacentemente e sem buscar aquilo que se decidia por ele por esta maneira

abrupta de dizer, Heráclito e as palavras «viver de morte, morrer de vida»): a

tradução aqui carrega aquilo que haveria para traduzir, mas não traduz, como

acontece quase sempre.

Há uma exigência de descontinuidade que não deveria nada ao contínuo, mesmo

que fosse como ruptura? Por que este tormento monótono que se escande na

escritura fragmentária e que assim chama pela paciência e não porque esta ajudaria
sarcasticamente a durar? Paciência sem duração, sem momentos, interrupção

indecisa sem ponto de interesse, lá onde isso velaria sempre sem que saibamos, no

desfalecimento tendido por uma identidade que põe a nu a subjetividade sem sujeito.

 O presente, se ele se exalta em instantes (aparecendo, desaparecendo), esquece

que ele não saberia ser contemporâneo de si mesmo. Essa não-contemporaneidade é

passagem sempre ultrapassada, o passivo que, fora do tempo, o desarranja como

forma pura e vazia onde tudo se ordenaria, se distribuiria seja igualmente, seja

desigualmente. O Tempo desarranjado, saído de seus gonzos, se deixa ainda atrair,

mesmo que seja através da experiência da fenda, numa coerência que se unifica e se

universaliza. Mas a experiência não-experimentada do desastre, retração do cósmico

que é demasiado fácil desmascarar como o desmoronamento (a falta de fundamento

onde se imobilizaria uma vez por todas, sem problemas nem questões, tudo aquilo

que temos que pensar), nos obriga a nos retirar do tempo como irreversível, sem que

o Retorno lhe assegure a reversibilidade.

 A fenda: fissão que seria constitutiva de mim [moi] ou se reconstituiria em mim

[moi], mas não um eu [moi] fendido.

 A crítica é quase sempre importante, mesmo que ela fosse parcial, travestidora.

Entretanto, quando ela devém imediatamente guerreira, é porque a impaciência

política a carregou sobre a paciência própria ao «poético». A escritura, em relação


de irregularidade consigo mesma, portanto com o todo outro, não sabe aquilo que

advirá politicamente dela: está aí sua intransitividade, esta necessidade de estar em

relação indireta com o político.

Este indireto, o desvio infinito que tentamos entender como retardo, prazo, incerteza

ou aléa (invenção também), nos torna infelizes. Gostaríamos de marchar, de uma

maneira direita, em direção ao alvo, a transformação social que está em nossa

potência de afirmar. Era outrora o voto do engajamento, é ainda aquele de uma

moral passional. Daí que nos arranjemos para nos reconhecer sempre divididos: um,

o sujeito livre, trabalhando para sua liberdade imaginária pela luta para a liberdade

de todos e nisso respondendo à exigência dialética; o outro que não é mais um, mas

sempre vários e, bem mais, em relação com a pluralidade sem unidade da qual

cerceamos, demasiado facilmente, por palavras negativas, ambivalentes, justapostas

(desaparecimento, separação, dispersão ou o sem-nome, sem-sujeito) a dificuldade

que ele nos traz de escapar a uma experiência presente e rumo à qual a palavra de

escritura momentaneamente, em sua extremidade suposta, diferença repetitiva,

paciente efração, se abre ou se oferece pela perplexidade mesma. Nós vivemos-

falamos dois; mas como o outro é sempre outro, não podemos nos consolar nem nos

reconfortar pela escolha binária, e a relação de um ao outro se desfaz sem cessar,

desfaz todo modelo e todo código, é, antes, a não-relação da qual não somos

encarregados.

É na primeira perspectiva que viver-escrever-falar se dá como homogêneo, como se

as vicissitudes, vicissitudes históricas, da relação comum-conflitual que estes verbos


portariam, unidos, separados, suscitassem um assunto comum, sempre em conflito,

lá onde é necessário agir quando a linguagem se faz ato, no tumulto da violência que

se desenvolve a partir dela e a domina também: tal é a lei do Mesmo. Não é preciso

se desviar disso nem muito menos parar nisso, e é então em direção a um tipo

totalmente outro de palavra, palavra de escritura, palavra do outro e sempre outra,

cuja exigência não se desenvolve, que, fora de tudo, fora de consciência e

inconsciência, por meio daquilo que vacila entre a vigília e despertar, nós nos

sabemos (não o sabendo) sempre já deportados.

Naturalmente, a separação, que parece tocar um e outro e dividi-los infinitamente,

pode por seu turno dar lugar a uma dialética, sem que, entretanto, a exigência outra,

aquela que não pede nada que se deixa sempre excluir, o esfacelamento

inesfacelável, possa se anular não entrando em linha de conta.

 A obra sempre já em ruína: é pela reverência, pelo que a prolonga, a mantém, a

consagra (a idolatria própria a um nome), que ela se congela ou se ajunta às boas

obras da cultura.

 E ainda uma palavra: não é preciso dar fim ao teórico na medida em que este seria

aquilo que não dá fim, na medida também em que todas as teorias, por mais

diferentes que sejam, se intercambiam sem cessar, distintas somente pela escritura

que as porta e escapa então às teorias que pretendem decidi-la?


 Admito (a título de ideia) que a idade de ouro seria a idade despótica em que a

felicidade natural, o tempo natural, a natureza então, são percebidos no

esquecimento da Soberania do Rei supremo que, único [seul] detentor de Verdade-

Justiça, sempre pôs boa ordem em tudo aquilo que é, coisas, vivos, humanos, de

modo que esta ordem à qual, que eles vivam, que eles morram, todos são submetidos

felizes, é aquilo que há de mais natural, já que a obediência rigorosa ao governo que

a assegura torna este único, invisível e certo. De onde resulta que todo retorno à

natureza corre o risco de ser retorno nostálgico à administração do único tirano ou

ainda que, se se lê bem uma tradição grega, não há natureza, e tudo é «político»

(Gilles Susong). Mesmo conforme Aristóteles, é a tirania de Pisístrato que, na

tradição dos camponeses atenienses, era tida como a idade de Cronos ou a idade de

ouro, como se a hierarquia mais dura, quando todos os valores são de um só lado, se

afirmam invisivelmente, incondicionalmente, fosse o equivalente de um engodo

feliz.

 O sofrimento de nosso tempo: «Um homem descarnado, a cabeça pendida, os

ombros curvados, sem pensamento, sem olhar». «Nossos olhares estavam virados

para o solo».

 Campos de concentração, campos de nadificação, figuras onde o invisível para

sempre se tornou visível. Todos os traços de uma civilização revelados ou postos a


nu («O trabalho liberta », « reabilitação pelo trabalho»). O trabalho, nas sociedades

em que ele é precisamente exaltado como o movimento materialista pelo qual o

trabalhador toma o poder, devém o extremo castigo em que não se trata mais de

exploração nem de mais-valia, mas o limite em que todo valor se desfez e o

«produtor», longe de reproduzir ao menos sua força de trabalho, não é mesmo mais

o reprodutor de sua vida, o trabalho cessando de ser sua maneira de viver e devindo

seu modo de morrer. Trabalho, morte: equivalentes. E o trabalho está em todo lugar,

em todo momento. Quando a opressão é absoluta, não há mais lazer, «tempo livre».

O sono está sob vigilância. O sentido do trabalho é, portanto, a destruição do

trabalho no e pelo trabalho. Mas se, como aconteceu em certos kommandos,

trabalhar consiste em carregar em passo de corrida pedras até tal lugar, empilhá-las,

depois levá-las novamente sempre correndo ao ponto de partida (Langbein em

Auschwitz; o mesmo episódio no Gulag, Soljenitsyne)? Então, o trabalho não pode

mais se destruir por qualquer sabotagem, se ele é já destinado a se anular a si

mesmo. No entanto, ele guarda um sentido: não somente destruir o trabalhador, mas,

mais imediatamente, ocupá-lo, fixá-lo, controlá-lo e, ao mesmo tempo, talvez lhe dar

consciência de que produzir e não produzir, é uma coisa só, é igualmente o trabalho,

mas, por aí, fazer tomar consciência deste nada, o trabalhador, que a sociedade que

se exprime pelo campo de trabalho é aquilo contra o que é preciso lutar, mesmo

morrendo, mesmo sobrevivendo (vivendo apesar de tudo, abaixo de tudo, para além

de tudo); sobrevida que é (também) morte imediata, aceitação imediata da morte em


N. t. Inscrições em campos nazistas.
sua recusa (eu não me mato, porque isso lhes daria muito prazer, eu me mato,

portanto, contra eles, permaneço em vida apesar deles).

 O saber que vai até aceitar o horrível para o saber, revela o horror do saber, as

camadas baixas do conhecimento, a cumplicidade discreta que o mantém em relação

com aquilo que há de mais insuportável no poder. Penso neste jovem detido de

Auschwitz (ele sofrera o pior, conduzira sua família ao crematório, enforcara-se;

salvo – como dizer: salvo? – no último instante, dispensaram-no do contato com os

cadáveres, mas quando os SS fuzilavam, ele devia manter a cabeça da vítima para

que se pudesse alojar mais facilmente uma bala na nuca). A quem lhe perguntava

como ele pudera suportar isso, ele teria respondido que ele «observava o

comportamento dos homens diante da morte». Não acreditarei nele. Assim como nos

escreveu Lewental de quem se encontrou as notas enterradas próximas a um

crematório: «A verdade foi sempre mais atroz, mais trágica que aquilo que se dirá

dela». Salvo no último instante, é no último instante que o jovem homem de quem

falo era cada vez obrigado a viver e a reviver, cada vez frustrado de sua morte,

trocando-a pela morte de todos. Sua resposta («eu observava o comportamento dos

homens...») não foi uma resposta, ele não podia responder. O que resta, é que,

forçado por uma questão impossível, ele não pôde encontrar o álibi que, na busca do

saber, na pretensa dignidade do saber: esta conveniência última na qual nós cremos

que ela nos seria concedida pelo conhecimento. E como, com efeito, aceitar não
conhecer? Lemos os livros sobre Auschwitz. O voto de todos, lá, o último voto:

saibam o que se passou, não esqueçam, e ao mesmo tempo jamais vocês saberão.

 Pode-se dizer: o horror domina em Auschwitz, o não-sentido, no Gulag? O horror

porque a exterminação sob todas as formas é o horizonte imediato, mortos-vivos,

párias, muçulmanos: tal é a verdade da vida. Entretanto, um certo número resiste; a

palavra política guarda um sentido; é preciso sobreviver para testemunhar, talvez

para vencer. No Gulag, até à morte de Stalin e à exceção aos oponentes políticos dos

quais os memorialistas falam pouco – demasiado pouco - (exceto Joseph Berger),

não há políticos: ninguém sabe por que está lá ; resistir não tem sentido, exceto para

si mesmo ou para a amizade, o que é raro; só os religiosos tem convicções firmes

capazes de dar significação à vida, à morte; a resistência será portanto espiritual. É

preciso esperar as revoltas vindas das profundezas, depois os dissidentes, os escritos

clandestinos, para que as perspectivas se abram, para que, dos escombros, as

palavras arruinadas se façam ouvir, atravessem o silêncio.

Seguramente, o não-sentido está em Auschwitz, o horror no Gulag. O insensato

em sua derrisão é representado (talvez) melhor pelo filho do Lagerführer

Schwarzhuber: com dez anos, ele vinha às vezes procurar seu pai no campo; um dia,

não o encontraram; imediatamente, seu pai pensou: ele foi recolhido por descuido e

lançado com os outros na câmara de gás; mas a criança somente se escondera e,

daquele momento em diante, lhe puseram no pescoço um cartaz para identificá-lo.

Outro signo é o desvanecimento de Himmler assistindo a execuções em massa. E a


consequência: como ele temia ter-se mostrado fraco, ele deu a ordem de multiplicá-

las, e foram inventadas as câmaras de gás, a morte humanizada do lado de fora, no

lado de dentro o horror em seu ponto extremo. Ou ainda, às vezes se organizam

concertos; a potência da música, por instantes, parece trazer o esquecimento e

perigosamente fazer desaparecer a distância entre vítimas e carrascos. Mas,

acrescenta Langbein, para os párias: nem esporte, nem cinema, nem música. Há um

limite onde o exercício de uma arte, qualquer que seja, torna-se um insulto à

desgraça. Não o esqueçamos.

 É preciso ainda meditar (mas isso é possível?) sobre isto: no campo, se a

necessidade, como o disse vivendo-a Robert Antelme, porta tudo, mantendo uma

relação infinita com a vida, mesmo que seja da maneira mais abjeta (mas não se trata

mais aqui de alto nem baixo), consagrando-a por um egoísmo sem ego, há também

este limite em que a necessidade não ajuda mais a viver, mas é agressão contra toda

a pessoa, suplício que desnuda, obsessão de todo o ser lá onde todo o ser se desfez.

Os olhos foscos, apagados, brilham imediatamente num clarão selvagem por um

pedaço de pão, «mesmo se subsiste a consciência de que se vai morrer dentro de

alguns instantes» e de que tanto faz se alimentar ou não. Este clarão, este lampejo

não iluminam nada de vivente. Entretanto, por este olhar que é um último olhar, o

pão nos é dado como pão: dom que, fora de razão, os valores exterminados, na

desolação niilista, toda ordem objetiva renunciada, mantém a chance frágil da vida

pela santificação do «comer» (nada de « sagrado», entendamo-lo bem), alguma


coisa que é dada sem partilha por aquele que disso morre («Grande é o comer», diz

Levinas, conforme uma palavra judia). Mas ao mesmo tempo a fascinação do olhar

moribundo em que se congela a faísca de vida, não deixa intacta a exigência da

necessidade, mesmo que fosse primitiva, não permitindo mais situar o comer (o pão)

na categoria do comestível. Neste momento extremo em que morrer se troca pela

vida do pão, muito menos para satisfazer uma necessidade, ainda menos para torná-

la desejável, a necessidade – trabalhosa – morre também como simples necessidade

e exalta, se glorifica, fazendo dela alguma coisa de inumano (retirada de toda

satisfação), a necessidade de pão tornada um absoluto vazio onde daquele momento

em diante não podemos senão nos perder a todos.

Mas o perigo (aqui) das palavras em sua insignificância teórica talvez seja

pretender evocar a nadificação onde tudo soçobra sempre, sem ouvir «calem-se»

dirigido àqueles que não conheceram senão de longe ou parcialmente a interrupção

da história. Entretanto, velar sobre a ausência desmesurada, é preciso, é preciso sem

cessar, porque aquilo que recomeçou a partir deste fim (Israel, nós todos), é marcado

por este fim com o qual não terminamos de, por ele, nos despertar.

 Se o esquecimento precede a memória ou talvez a funde ou não tem parte com

ela, esquecer não é somente uma falta, uma omissão, uma ausência, um vazio (a

partir do qual nós nos lembraríamos, mas que, no mesmo momento, sombra

anticipadora, riscaria a lembrança em sua possibilidade mesma, devolvendo o

memorial à sua fragilidade, a memória à perda de memória): o esquecimento, nem


negativo nem positivo, seria a exigência passiva que não acolhe nem retira o

passado, mas, designando nele aquilo que jamais teve lugar (como no por vir aquilo

que não saberá encontrar seu lugar num presente), reenvia a formas não históricas do

tempo, ao outro dos tempos, a sua indecisão eterna ou eternamente provisória, sem

destino, sem presença.

O esquecimento apagaria aquilo que jamais foi inscrito: rasura pela qual o não-

escrito parece ter deixado um traço que seria preciso obliterar, deslizamento que

vem por isso a construir para si um operador por onde o ele sem sujeito, liso e vão,

se gruda, se induta no abismo desdobrado do eu [je] evanescente, simulado,

imitação de nada, que se congelará no Eu [Moi] certo do qual toda ordem revém.

 Nós supomos que o esquecimento trabalha à maneira do negativo para se restaurar

em memória e memória vivente e revificada. É assim. Pode ser de outro modo. Mas

mesmo, se separamos ousadamente o esquecimento da lembrança, nós procuramos

ainda um efeito de esquecimento (efeito do qual o esquecimento não é a causa), uma

espécie de elaboração escondida e do escondido que se manteria no intervalo do

manifesto e que, se identificando com este intervalo mesmo (a não-identidade) e se

mantendo como não-manifesto, não serviria a nada além da manifestação; do mesmo

modo que o lethé termina tristemente, gloriosamente, em alethéia. O esquecimento

inoperante, para sempre desobrado, que não é nada e não faz nada (e que mesmo o

morrer não alcançaria novamente), eis aquilo que, se esquivando ao conhecimento


como ao desconhecimento, não nos deixa tranquilos, não nos inquietando, já que nós

o recobrimos com a inconsciência-consciência.

 O mito seria a radicalização de uma hipótese, a hipótese pela qual, passando ao

limite, o pensamento sempre envolveu aquilo que o dessimplifica, o desagrega, o

desfaz, destruindo em cheio a possibilidade de se manter, mesmo que fosse pelo

relato fabuloso (retorno ao dizer mesmo). Mas resta que a palavra mito protege, na

medida em que, sem rasurar a palavra verdade, ela se dá como não-verdadeira, o

inatual que não agirá, ao menos para aqueles (nós todos) que vivendo parecem não

reconhecer senão o poder ativo do presente. Do mesmo modo, a radicalização em

que o jogo etimológico parece nos prometer a segurança do enraízamento, dissimula

o arrancamento que a exigência do extremo (escatologia: sem ultimidade e sem

logos) tira de nós como desterrados, privados pela linguagem mesma da linguagem

entendida ainda como terra em que se enterraria a raiz germinal, a promessa de uma

vida em desenvolvimento.

 As palavras mais simples veiculam o incambiável, cambiando-se em torno dele

que não aparece.

A vida tão precária: jamais presença de vida, mas nossa eterna prece a outrem para

que ele viva enquanto morremos.


 Do «câncer» mítico ou hiperbólico: por que ele nos apavora por seu nome, como

se por aí o inominável se designasse? Ele pretende pôr em xeque o sistema de

código sob a autoridade do qual, vivendo e aceitando viver, estamos na segurança de

uma existência puramente formal, que obedece a um signo modelo conforme um

programa cujo processo seria de ponta a ponta normativo. O «câncer» simbolizaria

(e «realizaria») a recusa de responder: eis então uma célula que não entende a

ordem, se desenvolve fora da lei, de uma maneira que se diz anárquica – ela faz

mais: destrói a ideia de programa, tornando duvidosas a troca e a mensagem, a

possibilidade de reduzir tudo a simulações de signos. O câncer, sob este ponto de

vista, é um fenômeno político, uma das raras maneiras de deslocar o sistema, de

desarticular por proliferação e desordem a potência programante e significante

universal – tarefa outrora cumprida pela lepra, depois pela peste. Qualquer coisa que

não compreendemos neutraliza maliciosamente a autoridade de um saber-mestre.

Não é, portanto, pela simples morte no trabalho que o câncer seria uma ameaça

singular: é como desregramento mortal, desregramento mais ameaçador que o fato

de morrer e devolvendo a este seu traço de não se deixar contar nem entrar em linha

de conta, do mesmo modo que o suicídio desaparece das estatísticas em que se

pretende enumerá-lo. Se a célula dita cancerosa, se reproduzindo indefinidamente, é

eterna, aquele que dela morre pensa, e é essa a ironia de sua morte: «Eu morro de

minha eternidade».
 As palavras a afastar por causa de sua sobrecarga teórica: significante, simbólico,

texto, textual, depois ser, depois finalmente todas as palavras, o que não seria

suficiente, pois, as palavras não podendo ser constituídas em totalidade, o infinito

que as atravessa não saberia se deixar surpreender por uma operação de retração -

irredutível pela redução.

 Dando voz àquilo que é comum, não segundo o ser, mas através do outro que o

ser, que se anuncia desordenado, não escolhido, não acolhido, a impotência de

atração.

 Calma, sempre mais calma, a calma indesejável.

 Comum: nós partilhamos as cargas, cargas insuportáveis, fora de medida e fora de

parte. A comunidade não se imuniza, sempre passou além da troca mútua de onde

ela parece vir, vida do irreciproco, do introcável, daquilo que arruína a troca (a troca

tem sempre por lei o estável). Mudar supõe, por contraste, a não-mudança. Mas

mudar a partir do fora que exclui o mutável e o imutável e a relação que se introduz

subrepticiamente a partir de um e do outro.

 Resta o inominado em nome de que nós nos calamos.


 O dom, a prodigalidade, o consumação não deslocam senão momentaneamente o

sistema geral que a lei domina e que faz poucas diferenças entre útil e inútil: a

consumação devém o consumo; ao dom responde o contradom; o desperdício

pertence ao rigor da gestão de coisas que não funciona senão graças a um certo jogo,

que não é o signo de um fracasso, mas uma forma de gasto onde a usura se preserva

fazendo uma parte àquilo que aparentemente não serve. Não se pode então falar da

perda «pura e simples», ou antes, não se pode senão falar dela até o momento em

que a perda, sempre inapropriada e impura, retumba na linguagem como aquilo que

não se deixa jamais dizer, mas ressoa ao infinito se perdendo nele e tornando-o

atento à exigência de se perder – exigência por si mesma inexistente ou já perdida.

Nem o sol nem o universo nos ajudam, de outro modo senão por imagens, a

conceber um sistema de trocas marcado pela perda no ponto em que mais nada não

se manteria junto nele e em que o incambiável não se fixaria mais em termos

simbólicos. (Georges Bataille jamais pensou por muito tempo: «o sol não é senão a

morte»). O cósmico nos tranquiliza pelo arrepio desmesurado de uma ordem

soberana com a qual nós nos identificamos, mesmo que seja para além de nós

mesmos, na salvaguarda da unidade santa e real. Assim é com o ser e provavelmente

com toda ontologia. O pensamento do ser encerra de todas as maneiras, inclusive

aquilo que não se compreende nele, o ilimitado que se reconstitui sempre pelo

limite. A palavra do ser é palavra que assujeita, retorna ao ser, dizendo a

obediência, o obedecimento, a audiência soberana do ser em sua presença

escondida-manifesta. A recusa do ser é ainda assentimento, consentimento do ser à


recusa, à possibilidade recusada: nenhum desafio à lei pode se pronunciar nela de

outro modo do que no nome da lei que nela se confirma.

Abandona a esperança fútil de encontrares no ser apoio para a separação, a ruptura, a

revolta que poderiam se cumprir, se verificar. Pois é que tu ainda precisas da

verdade e de colocá-la acima do «erro», como tu queres distinguir a morte da vida e

a morte da morte, fiel ao absoluto de uma fé que não ousa se reconhecer vazia e que

se satisfaz com uma transcendência da qual o ser seria ainda a medida. Procura,

portanto, não procurando nada, aquilo que esgota o ser precisamente onde ele se

representa como inesgotável, o em vão do incessante, o repetitivo do interminável

por onde não há talvez mais lugar em distinguir entre ser e não ser, verdade e erro,

morte e vida, pois um remete ao outro, como o semelhante se agrava em semelhante,

quer dizer em não-igual: o sem parada do retorno, efeito da instabilidade desastrosa.

 O dom seria um ato de soberania pelo qual o «eu» que doa livremente e

gratuitamente desperdiçaria ou destruiria «bens»? O dom de soberania não é ainda

senão título de soberania, enriquecimento de glória e de prestígio, mesmo que seja

no dom heróico da vida. O dom é, antes, retração, subtração, arrancamento e, antes

de mais nada, suspensão de si. O dom seria a paixão passiva que não deixa o poder

de doar, mas, me depondo de mim mesmo, me obriga me desobrigando lá onde não

tenho mais, não sou mais, como se doar marcasse em sua proximidade a infinita

ruptura, a distância incomensurável da qual o outro é menos o termo do que a

inassinalável estranheza. É porque doar não é doar alguma coisa, mesmo


dispendiosamente, nem dispensar nem se despender, é antes doar aquilo que é

sempre tomado, quer dizer, talvez o tempo, meu tempo enquanto ele não for jamais

meu, do qual eu não disponho, os tempos para além de mim e de minha

particularidade de vida, o lapso de tempo, o viver e o morrer não na minha hora, mas

na hora de outrem, figura infigurável de um tempo sem presente e sempre revindo.

 O dom do tempo seria desacordo com aquilo que se acorda, perda (no tempo e

pelo tempo) da contemporaneidade, da sincronia, da «comunidade», isso que agrupa

e reagrupa: advento - que não advém - da irregularidade e da instabilidade?

Enquanto tudo vai, nada vai junto.

 A energia se dilapida como destruição das coisas ou colocação fora da coisa.

Admitamo-lo. Todavia, essa dilapidação, enquanto o desaparecimento da coisa, até

mesmo da ordem das coisas, busca por seu turno entrar em linha de conta, seja

reinvestindo-se como outra coisa, seja deixando-se dizer; por aí, por esse dizer que a

tematiza, ela devém considerável, reentra na ordem e se «consagra». Só a ordem

ganhou em sua perda.

 «A soberania não é NADA» (G. B.)

 Entre o homem de fé e o homem de saber, poucas diferenças: os dois se desviam

do alea destruidor, reconstituem instâncias de ordem, apelam a um invariante que


eles pregam ou teorizam – todos os dois, homens de arranjo e de unidade para quem

o outro e o mesmo se conjugam, falando, escrevendo, calculando, eternos

conservadores, conservadores de eternidade sempre em busca de alguma constância

e pronunciando a palavra ontológica com um fervor assegurado.

 «A poesia, senhoras e senhores: uma palavra de infinito, palavra da morte vã e

do só Nada» (Celan). Se a morte é vã, a palavra da morte também o é, inclusive

aquela que crê dizê-lo e decepciona ao dizê-lo.

Não contem com a morte, a de vocês, a morte universal, para fundar o que quer que

seja, nem mesmo a realidade desta morte tão incerta e tão irreal que ela se esvanece

sempre de antemão e que com ela se esvanece aquilo que a renuncia. As duas

formulações «Deus é morto», «o homem é morto», destinadas a soar ao léu para as

orelhas crédulas e que se inverteram comodamente ao benefício de toda crença,

mostram bem, mostram talvez que a transcendência – esta palavra, esta grande

palavra que deveria se arruinar e guarda entretanto um ar majestoso – a carrega

sempre, mesmo que seja sob uma forma negativa. A morte retoma por sua conta a

transcendência divina para sobrelevar a linguagem acima de todo nome. Que Deus

seja morto tem por sequência que a morte é de Deus; a partir do que a frase imitativa

«o homem é morto» não põe de maneira alguma em xeque a palavra homem

entendida como noção transitória, mas anuncia quer uma super-humanidade com

todos seus semblantes aventurosos, quer a denúncia da figura humana para que se
anuncie, de novo e em seu lugar, o absoluto divino que a morte importa, do mesmo

tempo que ela o transporta.

Daí que nós sejamos chamados a levar em conta aquilo que, ironicamente

(«senhoras, senhores»), Celan gostaria de nos dizer. Nós o podemos? Ressalto que

ele põe em relação, por uma relação de enigmática justaposição, a palavra o infinito,

a palavra a morte vã, esta redobrada pelo Nada como terminação decisiva: o nada

final que, no entanto, está sobre a mesma linha (sem precessão nem sucessão) do

que a palavra que vem do infinito, onde o infinito se dá, retine infinitamente.

Palavra de infinito, palavra de nada: isso vai junto? Junto mas sem acordo, sem

acordo mas sem discordância, pois há palavra de um e de outro, aquilo que deixaria

pensar que não haveria palavra poética se o entendimento infinito não se desse a

ouvir como o retinir estritamente delimitado da morte em seu vazio, proximidade de

ausência que seria o traço mesmo de todo doar. Assim, venho a esta suposição:

«Deus é morto», «o homem é morto», pela presunção daquilo que gostaria de se

alarmar aí fazendo do «ser-morto» uma possibilidade de Deus, como do «ser-morto»

uma possibilidade humana, são talvez somente o signo de uma linguagem ainda

demasiado potente, soberana em alguma maneira, que assim renuncia a falar

pobremente, de modo vão, no esquecimento, no desfalecimento, na indigência – a

extinção do sopro: únicas marcas de poesia. (Mas «únicas»? Esta palavra, em seu

desígnio de exclusão, falta à pobreza que não saberia se defender, e deve por seu

turno se extinguir).
 Pode-se duvidar de uma linguagem e de um pensamento que devem recorrer, sob

formas variadas, a determinantes de negação para introduzir questões até então

reservadas. Nós interrogamos o não-poder, mas não é a partir da potência? do

impossível mas como o extremo ou o jogo do possível? Nós nos prestamos ao

inconsciente sem conseguir separá-lo da consciência de outro modo do que

negativamente. Discorremos sobre o ateísmo, o que sempre foi uma maneira

privilegiada de falar de Deus. Em revanche, o infinito não se ganha senão sobre o

finito que, por isso, não termina de terminar e se prolonga sem fim pelo desvio

ambíguo da repetição. Mesmo o absoluto, como afirmação massiva e solitária, porta

a marca daquilo com que ele rompeu, sendo o rejeito da solução, o distanciar toda

ligação ou toda relação. Mas, enfim, aquilo que um discurso filosófico ou pós-

filosófico nos deu, acentuando o alethés grego, designado etimologicamente como

não-escondido, não-latente, deixa entender a primazia do escondido em relação ao

manifesto, do latente ao olhar do aberto, de modo que, caso se se recuse a pôr em

trabalho o negativo à maneira de Hegel, haveria nisso que se nomeará pela

sequência verdade, não o traço primeiro de tudo aquilo que se mostra em presença,

mas a privação já segunda de um dissimulado mais antigo, de um se retirar, se

subtrair que não o é por relação ao homem ou nele mesmo, que não é destinado à

divulgação, mas que é portado pela linguagem como o segredo silencioso desta. De

onde se concluirá que, ao interrogar de uma maneira necessariamente abusiva, o

saber «etimológico» de uma língua (que não é apesar de tudo senão um saber

particular), é também por abuso que se chega a privilegiar a palavra presença


entendida como ser, não que seja preciso dizer o contrário, a saber que presença

reenviaria a uma ausência sempre já recusada ou ainda que a presença, presença de

ser e como tal sempre verdadeira, não seria senão uma maneira de afastar a falta,

mais precisamente de faltar à falta, mas que talvez não haveria lugar para estabelecer

uma relação de subordinação ou qualquer relação que seja entre ausência e presença,

e que o «radical» de um termo, longe de ser o sentido primeiro, o sentido próprio,

não alcançaria a linguagem senão pelo jogo de pequenos signos não independentes e

por si mesmos mal determinados ou incertamente significativos, determinantes que

fazem jogar a indeterminação (ou indeterminantes que determinam) e arrastam

aquilo que gostaria de se dizer numa deriva geral onde não há mais nome que como

sentido pertença a si mesmo, mas não tem por centro senão a possibilidade de se

descentrar, de se declinar, se infletir, se exteriorizar, se denegar ou se repetir: no

limite se perder. (Pode-se ainda propor esta observação à reflexão, mesmo se a moda

se apodera dela para pôr em valor como índex cômodo aquilo que na linguagem não

se indica: a neutralização repetitiva).

 A etimologia ou um modo de pensar que se reclama ou se aprofunda com

pesquisas etimológicas, abre um espaço de questões que se parece deixar de lado,

atraído por pré-conceitos que não se quer ou não se pode reconhecer. A palavra

mesma etimologia reenvia por sua etimologia a uma afirmação que regula aquilo

sobre aquilo que se se interroga: saber do sentido «verdadeiro» das palavras (o que

se pode dizer do etymon?). Mas não podemos nos deixar prender a uma tal
proposição. O saber de erudição se distingue muito ou pouco das etimologias ditas

populares ou literárias - etimologias de afinidade e não mais somente de filiação: é

um saber estatisticamente provável, não somente dependente de pesquisas

fonológicas sempre a completar, mas dependente dos tropos da linguagem que, em

certas épocas, se impõem implicitamente (hoje, metonímia, metáfora; tudo gira em

torno dessas duas únicas figuras: «cães de faiença insubstituíveis», diz Gérard

Génette com uma útil ironia).

Por que a filiação nos impressiona? O sentido mais antigo de uma palavra na

mesma língua ou em línguas diferentes parece restaurar ou reavivar a significação

que a linguagem corrente utiliza usada ou em razão da usura. Com esse pensamento-

sorrateiro [arrière-pensée] de que o mais antigo está mais próximo da pura verdade

ou remete em memória aquilo que se perdeu. Ilusão fecunda ou não, mas ilusão.

Jean Paulhan mostrou que a etimologia não saberia constituir prova. Como

Benveniste e com ele, Paulhan mostrou que nós não remontamos necessariamente

pela etimologia a um sentido mais concreto, até mesmo mais «poético», já que

numerosos exemplos provam ou provariam que «o abstrato» se impõe de saída, do

mesmo modo que não se vai da motivação à imotivação. Para, assim, revir à

etimologia de alethéia à qual Heidegger se confia com uma perseverança admirável,

resta a saber por que, revelando o pensamento grego, ela – a etimologia de alethéia –

parece ignorada pelos gregos - e por que Platão, talvez por jogo, mas que seriedade

no jogo, tenha lido ale-théia, descobrindo um sentido que se pode traduzir por:

errância divina - o que não é também de pouca importância. A verdade (aquilo que
se nomeará comumente verdade) quereria dizer segundo essa etimologia: corrida

errante, extravio dos deuses; de onde segue que é a palavra «divino» - théia - que

ressoa de saída em alethéia e que o a privativo não funciona então de uma maneira

privilegiada, mesmo se se duvida que a palavra tão antiga, apeíron, tenha podido

não se decompor de modo outro do que pondo em valor a negação.

Resta que Heidegger, quando reconhece a língua privilegiada na língua grega capaz

da palavra alethéia, etimologicamente de uma significância tão decisiva, se conduz,

ambos tão pouco ingênuos, tão ingenuamente quanto Hegel transportado pela língua

alemã qualificada de especulativa porque ela porta a palavra Aufhebung. Pois foram

um e o outro, seja com a ajuda de uma etimologia suposta (provável), seja por uma

análise verbal, que criaram essas palavras, filosófica ou poéticamente: palavras de

aurora de onde segue um dia de pensamento à luz do qual momentaneamente não se

escapa. (Heidegger: «É o dote mais sublime que a língua dos gregos já recebeu ». E,

no entanto, ao se seguir Heidegger mesmo, a alethéia, tal como se a pensa sem

pensá-la, não pertence ainda à língua grega, pois não há língua e logos senão pela

alethéia que é liberada de todo olhar sobre a verdade e mesmo sobre o ser.

Entretanto, é preciso dizer também que ela «joga na totalidade da língua grega » e

que, se Heráclito não a encontra, não se expõe a ela, é por causa da predominância

nele e por ele do logos. Bloqueio em algum modo da a-lethéia pelo legein. Enfim,

há lugar para observar que, se alethéia se entende e se traduz por «desabrigo4»

(tradução momentaneamente escolhida por Beaufret e Janicaud), é então um

4
N. T: Em francês “Desabritement”.
movimento totalmente outro de pensamento, uma direção totalmente outra do que

aquela que a tradução mais frequente (o «não-velado», o «não-escondido», o

«desvelamento») nos propõe. O «desabrigo» pode se concluir desse fato de que a

palavra alemã Unverborgenheit reenvia a bergen: esconder, pôr em segurança,

confiar ao lugar protetor, abrigar. A alethéia como desabrigo reconduz à errância,

sentido que tinha previsto Platão (no Crátilo). De onde a precaução de não insistir

sobre a frase demasiado conhecida: «linguagem, casa do ser». Mesmo em Platão, o

mito da caverna é também o mito do abrigo: arrancar-se àquilo que abriga, desviar-

se dele, desabrigar-se, eis aqui uma das peripécias maiores que não é somente aquela

do conhecimento, mas justamente antes condição de uma «reviravolta de todo o

ser », como o diz ainda Platão – retorno brusco que nos põe em face à exigência da

virada. Que tal ou qual maneira de traduzir engaje a esse ponto o pensamento, pode-

se se assustar com isso, lamentar-se e concluir que a filosofia não é senão uma

questão de palavras. Nada a dizer contra isso, senão que é preciso sempre se

perguntar, como o sugeria Paulhan, por que uma palavra é sempre mais do que uma

palavra. E Valéry: «A tarefa filosófica a se cumprir seria de reenviar à história as

palavras da filosofia cumprida. » Mas revenhamos à questão mais instante: a parte

concedida ao saber frágil da etimologia não é excessiva, quer dizer, demasiado

fácil?).

Resta ainda que a etimologia, saber certo ou incerto, fixa a atenção sobre a palavra

como célula seminal da linguagem, nos reenviando ao antigo preconceito de que a

linguagem seria essencialmente feita de nomes, seria nomenclatura. (Valéry dizia jà


que um dos erros da filosofia é de se ater às palavras negligenciando as frases. «Ó,

filósofos, o que é preciso elucidar, não são as palavras… são as frases»). Mas muito

menos nada está decidido por aí. O privilégio concedido ao verbo que reduz o nome

a uma ação somente congelada, fixada, mesmo se ele constrange a opção cratiliana,

mesmo se ele torna mais difícil a criação etimológica, nos faz reencontrar os

mesmos problemas quase não modificados: frases, sequências de frases,

nascimentos de frases, frases evanescentes numa linguagem ou numa pluralidade de

linguagens; desde que escrevemos, arrastamos conosco estes problemas, pensando

sem pensar neles. A menor palavra, dizia já Humboldt, é toda a linguagem, todo o

gramatical de uma língua, que nela se supõe.

Resta enfim que o delírio sábio da etimologia está em relação com a vertigem

histórica. Toda a história de uma língua, sob a pressão de certas palavras, se abre e,

por esta analogia, quer se mistifica, quer se desmistifica – pensamos e falamos na

dependência de um passado ao qual pedimos contas ou que nos mantém não sem

prestígio em seu esquecimento. O escritor que joga, inventa ou, de uma maneira

mais esquiva, se assegura, pela etimologia, com um pensamento, é menos desfiante

do que exageradamente confiante na força criadora da linguagem que ele fala, vida

da linguagem, invenção popular, intimidade dialetal: sempre a linguagem como

morada, a linguagem habitável, nosso abrigo. E imediatamente nos sentimos

enraizados, puxando então esta raiz por um arrancamento que a exigência de

escritura detém, do mesmo modo que ela tende a nos arrancar a todo natural, a série
etimológica reconstituindo em uma espécie de natureza histórica o devir

linguageiro.

O outro perigo da etimologia não é somente sua relação implícita com uma

origem, o maravilhamento de recursos improváveis que ele nos descobre de uma

maneira sedutora, é que ela nos impõe sem poder justificá-la nem mesmo assim se

explicar com isso uma certa concepção de história – qual? Está longe de estar claro:

necessidade de uma proveniência, continuidade sucessiva, lógica de

homogeneidade, acaso se fazendo destino, as palavras tornadas o depósito sagrado

de todos os sentidos perdidos, latentes, cuja recolha é de agora em diante a tarefa

daquele que escreve em vista de um Dizer final ou de um contra-Dizer (acabamento,

cumprimento) – etimologia e escatologia teriam então parte ligada, começo e fim

supondo-se para assim chegar à presença de toda presença ou parusia. Mas a

seriedade etimológica que abandonou a seriedade científica, tem por

correspondência, ou compensação, as fantasias etimológicas, estas farsas que sempre

em certos momentos se deram livre curso e que, desde que a ciência da linguagem

impôs conquistas quase certas, não aparecem mais do que como uma pequena

loucura, um devaneio de língua, jogo de desejo, destinado a se libertar do saber

mesmo exigindo a miragem lexical ou ainda a mimar, para deles rir, os usos do

inconsciente – por fim, não se ri e não se se diverte, o que é também sem

importância. Salvo neste fato de que o ceticismo parece ganhar, mas o ceticismo

pede mais.
 Qual é a justificação da relação que estabelece Heidegger entre Ereignis - cujo

sentido corrente é «evento»-, Eraügnis, do qual ele o aproxima (por uma decisão

que o «Duden» - célebre dicionário alemão - legitima: Eraügnis, antiga palavra em

que a palavra olho, Auge, se deixa adivinhar, que chama, pois, pelo olhar, o ser nos

olharia; o que de novo relaciona ser e luz) e Ereignis se analisando de tal sorte que a

palavra eigen, «próprio», se destaca ao ponto que «o evento» devém aquilo que faz

advir ao nosso ser «o mais próprio» («Duden» recusa a relação etimológica entre

eigen, próprio, e Ereignis). Não é o arbitrário que aqui surpreende, é ao contrário o

trabalho mimético, o semblante da analogia, o apelo a um saber contestável, o qual

nos torna trapaceados por uma espécie de necessidade transhistórica. É verdade que

a exigência de uma «justificação» pode, por seu turno, aqui como alhures, ser

acolhida e rejeitada. Não há nada a justificar, isso não releva do justo ou do não-

justo, mas se dá como uma incitação a pensar e a interrogar. Heidegger diz: «Jamais

crer em nada, tudo tem necessidade da prova». Eis porque nós também nos

interrogamos, reconhecendo nessa prova um procedimento filológica e

filosoficamente oneroso.

 Admitamos que a palavra eigen, tal como a encobre misteriosamente Ereignis,

não indique nada que anunciaria «propriedade» e «apropriação», que ela é ilimitada,

na medida em que «ser» não é mais sua conveniência e não saberia se decidir a isso.

Mas por que eigen, «próprio» (como traduzi-lo de modo outro?) Ao invés de

«impróprio»? Por que esta palavra? Por que «presença» em sua afirmação teimosa
(paciente), que nos entrega ao repúdio da «ausência», do mesmo modo que, outrora,

em Sein und Zeit, a oposição entre «autenticidade» e «inautenticidade» - tradução

superficial - preparava de uma maneira ainda tradicional a questão mais enigmática

do «próprio» que finalemente nós não podemos acolher ao mesmo título que aquilo

que pemanece indecidido n’«a-propriação» (Derrida), nessa ausência de lugar e de

verdade sem a qual o dom da escritura, o dom do Dizer, dando tanto a vida quanto a

morte, tanto o ser quanto o não-ser, não seria mais essa despesa que desarranja todo

evento. «Impróprio» ou «a-propriação», ao passo que, no entanto, o «próprio» é

neles recebido ao mesmo tempo que recusado, é o apelo àquilo que nos obriga, por

isso, a não mais terminar e não saberia se reclamar uma verdade, mesmo que ela

fosse entendida como não-verdade. Assim a errância corre em vão sobre o seu erro.

(Não esqueçamos que, para Heidegger, o Ereignis tem também por traço sua

retração, designado pelo Enteignen - Enteignis - ou despropriação.)

 Nem ler, nem escrever, nem falar, é, no entanto, por aí que escapamos ao já dito,

ao Saber, ao entendimento, entrando no espaço desconhecido, espaço de angústia,

onde aquilo que é dado talvez não seja recebido por ninguém. Generosidade do

desastre. Nesse espaço a morte, a vida são sempre ultrapassadas.

 O dom de escrever é precisamente aquilo que a escritura recusa. Aquele que não

sabe mais escrever, que renuncia ao dom que recebeu, cuja linguagem não se deixa

reconhecer, está mais próximo da inexperiência não-provada, a ausência do


«próprio» que, mesmo sem estar, dá lugar ao advento. Quem louva o estilo, a

originalidade do estilo exalta somente o eu [moi] do escritor que recusou abandonar

tudo e ser abandonado de tudo. Em breve ele será notável; a notoriedade o entrega

ao poder: faltar-lhe-iam o apagamento, o desaparecimento.

Nem ler, nem escrever, nem falar, não é o mutismo, talvez seja o murmúrio inaudito:

estrondo e silêncio.

 «Só alcançou o fundo de si mesmo e reconheceu toda a profundidade da vida

aquele que um dia abandonou tudo e foi abandonado por tudo, para quem tudo

soçobrou e que se viu só com o infinito: é um grande passo que Platão comparou

com a morte» (Schelling, citado por Heidegger).

 Por que mais um livro ainda, lá onde o abalo da ruptura - uma das formas do

desastre - o devasta? É que a ordem do livro é necessária àquilo que lhe falta, à

ausência que se esquiva dele: da mesma maneira que o «próprio» da «apropriação »,

o evento onde copertencem o homem e o ser, se abisma no impróprio da escritura

que escapa à lei, ao rastro, assim como ao resultado de um sentido garantido. Mas o

impróprio não é somente a negação do «próprio», ele se desvia do próprio ao mesmo

tempo que se reporta a ele: ele o atrai no abissal, o mantém ao desabusá-lo. Próprio

ressoa ainda no impróprio: como a ausência de livro, o fora-de-livro faz entender

aquilo além do qual ele passa. Daí o apelo ao fragmentário e o recurso ao desastre,

se nós nos relembramos de que o desastre não é somente o desastroso.


 Por que mais livros ainda, senão para provar-lhes o fim tranquilo, tumultuoso que

só opera o «trabalho» da escritura, lá onde a dispersão do sujeito, a retirada do

múltiplo nos entregam a essa « tarefa do passamento » da qual fala M'Uzan, mas que

não saberia se contentar, como ele o sugere, de fazer viver a vida até o esgotamento

por uma renovação do desejo. Nisso reconheço, antes, a paixão, a paciência, a

extrema passividade que abre a vida ao morrer e que é sem evento - do mesmo modo

que a «biografia» já rasurada, que é vida e morrer de escritura (tal como Roger

Laporte nos propôs o nome solitário), não deixa nada chegar, não garante nada, nem

mesmo o fato de escrever – o que devolve ao segredo do neutro esse morto-

sobrevivente ao qual vocês prestam a designação estável, quase profissional, de

escritor.

 Ele escrevia, quer isso fosse possível ou não, mas não falava. Tal é o silêncio da

escritura.

 «Escrever é incessante, e, no entanto, o texto não avança senão deixando para trás

de si lacunas, buracos, rasgos e outras soluções de continuidade, mas as rupturas elas

mesmas são rapidamente reinscritas, pelo menos por muito tempo que...» (Roger

Laporte) – «Escrever... poderia constituir bem mais do que um gênero novo». Mas

«se Escrever exige e, no entanto, recusa toda escritura, toda tipografia, todo livro,

como escrever?»... «Não compreendo mais como pude por tanto tempo me
identificar com o projeto estético de criar um gênero novo». « Escrever não foi

riscado senão com um traço oblíquo: é preciso que eu dê o acabamento final ao

trabalho de destruição» (R. L.).

 «... salvar um texto de sua desgraça de livro» (Levinas).

 O que chegou não chegou - assim falava a paciência para que não fosse apressado

o fim.

 «Eu» morro antes de ter nascido.

 Materialismo: o «meu» seria talvez medíocre, sendo apropriação ou egoísmo; mas

o materialismo de outrem - sua fome, sua sede, seu desejo - é a verdade, a

importância do materialismo.

 Há uma leitura ativa, produtiva - produzindo texto e leitor, ela nos transporta.

Depois a leitura passiva que trai o texto, parecendo se submeter a ele, dando a ilusão

de que o texto existe objetivamente, plenamente, soberanamente: unitariamente.

Enfim, a leitura não mais passiva, mas de passividade, sem prazer, sem gozo,

escaparia tanto à compreensão quanto ao desejo: é como a veladura noturna, a

insônia «inspiradora» em que se ouviria o «Dizer» para além do tudo está dito e em

que se pronunciaria o testemunho da última testemunha.


 Última testemunha, fim da história, época, virada, crise – ou então, fim da

filosofia (metafísica).

Mesmo em Heidegger, ao longo de um seminário que parece autorizar com sua

presença, a questão da entrada no advento (Ereignis, com tudo o que esta palavra

aporta) implica falar do «fim da história do ser», nuançando-a com estas precauções:

« Há que se meditar se ainda é possível falar de ser e também de história do ser após

a entrada no advento, se é verdade ao menos que a história do ser é compreendida

como a história de doações nas quais o advento (Ereignis) se mantém em retração».

Mas é duvidoso que Heidegger se tenha reconhecido numa tal proposição cujo

mérito é a temeridade e cujo sentido é somente demasiado claro: as doações que são

as maneiras pelas quais o ser se dá ao se retirar (para se ater aos Gregos: logos em

Heráclito, Uno em Parmênides, ideia em Platão, energeia em Aristóteles e, último

avatar entre os modernos, Gestell – do qual Lacoue-Labarthe propõe este

equivalente: instalação), se interromperiam desde o instante em que o Ereignis, o

advento, advém, cessando de se deixar esquivar pelas «doações de sentidos» que ele

torna possíveis através de sua retração. Mas se uma decisão histórica (já que é

preciso se exprimir assim) se anuncia com a frase «o advento advém», fazendo-nos

advir a nosso (ser) «o mais próprio», seria preciso muita ingenuidade para não

pensar que a exigência de se retirar cessou, desde então. É antes o «se retirar» que

rege de uma maneira mais obscura, mais instante, pois o que se pode dizer do Eigen,

«nosso ser mais próprio»? Nós não o sabemos, a não ser que ele reenvia a Ereignis,
da mesma maneira que Ereignis o «encerra», ao mesmo tempo que o mostra por

uma análise verbal necessariamente grosseira. De novo, nada é dito quando tudo é

dito pelo mais prudente dos pensadores: exceto que se coloca a questão, com

Heidegger que não a coloca diretamente, do fim da história do ser – assim como

Hegel deixa a outros a formulação abrupta: «fim da história».

Por que escrever, entendido como mudança de época, entendido como a experiência

(a não-experiência) do desastre, implica cada vez as palavras inscritas na cabeça

deste «fragmento», que ele revoga entretanto? Que ele revoga, mesmo se aquilo que

nele se anuncia, se anuncia como um novo que sempre já teve lugar, mudança

radical da qual todo presente se exclui.

Quanto à afirmação da história, campo de uma dialética que seria outra que a

dialética hegeliana, dialética dita infinita, dialética do aqui-agora, história sem

progresso nem regresso (não circular), ela não pode muito menos renunciar a

exigências múltiplas cuja pressão se inscreve em forma de época. Escrever na

ignorância e na rejeição do horizonte filosófico, pontuado, agrupado ou dispersado

pelas palavras que delimitam este horizonte é necessariamente escrever na facilidade

da complacência (a literatura da elegância e do bom gosto). Hölderlin, Mallarmé e

tantos outros não nos permitem isso.

 Os postulados da etimologia: o infinito se constitui a partir do finito, como sua

negação-inserção (o infinito é o não-finito e também no finito), do mesmo modo que

o alethéia não se entenderia senão a partir de e em lethé. Mas nós podemos sempre
recusar esta decomposição lexical. Podemos sempre pôr e entrever que a exigência

do infinito ou como sentimento vago, ou como a priori de toda compreensão, ou

como um conjunto – supratotalidade – sempre em ultrapassamento, é necessária para

que recebamos a palavra e a ideia de finito (Descartes!): dito de outro modo, o

infinito da linguagem como conjunto infinito é, então, sempre pressuposto para que

a delimitação de uma só palavra e da palavra «finito» possa intervir.

É a experiência grega, tal como a reconstituímos, que privilegia o «limite» e que

confirma o antigo escândalo do encontro do irracional, quer dizer, com a não-

conveniência daquilo que, na mesura, não se mensura (o primeiro que divulgou a

incomensurabilidade da diagonal do quadrado, perece, afogado num naufrágio: é

que ele fizera o reencontro com uma morte totalmente outra, o não-lugar do sem

fronteiras, cf. Desanti). O uso do bom e do mau infinito devido a Hegel, pelos

únicos qualificativos de «bom» e de «mau», dá a pensar. O mau infinito, o etc. do

finito, é aquele cujo entendimento (que não é de nenhum modo mau) tem

necessidade, congelando, fixando, imobilizando um de seus momentos, enquanto a

verdade da razão suprime o finito: o infinito ou o finito suprimido, «levantado», é

«positivo», nesse sentido de que ele reintroduz o qualificativo e reconcilia qualidade

e quantum. Mas o que se pode dizer do mau infinito? Entregue ao repetitivo sem

retorno, ele não se choca com o sistema hegeliano, à maneira de um desastre? O que

leva a sugerir que o infinito se deixaria decidir como aquilo que é dado como

primeiro, dando lugar em seguida ao finito, este infinito imediato desarranjaria todo

o sistema, mas segundo a maneira que Hegel sempre previamente repeliu,


ironizando sobre o infinito noturno. Enfim, o apelo a um «infinito atual dado», nós

não podemos tirá-lo, mesmo que seja ingenuamente, do transfinito de Cantor.

Resta que estamos insidiosamente (inevitavelmente) submetidos a indicações

etimológicas que consideramos por provas e das quais tiramos decisões filosóficas

que nos trabalham em segredo. Tal é o perigo, até mesmo o abuso que põe em causa

muito mais do que o recurso à etimologia.

 Será que os gregos pensavam alethéia a partir de lethé? É duvidoso. E que nós

possamos substituí-los por nós, dizendo que eles eram, entretanto, regidos por esse

im-pensado, é um direito filosófico contra o qual não haveria nada a dizer, se nós

não o impuséssemos por um saber filológico que coloca a filosofia sob a

dependência de uma ciência determinada: o que contradiz as relações claramente

afirmadas por Heidegger entre pensamento e saber, todo saber tendo necessidade de

um «fundamento» que não lhe pertence e que o pensamento está destinado a lhe dar

retirando-o dele (postas à parte as matemáticas, dizem certos filósofos matemáticos).

 Ereignis, palavra «última» do pensamento, talvez não ponha em jogo senão o jogo

do idioma do desejo.

 Nietzsche: «Como se minha sobrevida fosse algo de necessário». Nietzsche visa a

imortalidade religiosa pessoal, duvidando que seja justo e importante desejar a


eternidade. Seria preciso ir mais longe. Mesmo o desejo de si como efêmero, no

instante jamais finito ou no instante imediatamente desaparecido, é ainda demasiado.

A vida sem nenhuma forma de sobrevida, na ausência de toda relação de

necessidade temporal, a vida sem presente, que a duração universal não rege (o

conceito de tempo), não mais do que ela se afirma na singularidade íntima de um

tempo vivido: eis aquilo que extrai de melhor maneira o tempo, pura diferença, o

lapso de tempo, o intervalo intransponível que, transposto, se ilimita pela

impossibilidade de toda transposição – impossível transpor como tendo sido sempre

já transposto. A transcendência do viver que não basta exprimir na vida mesma

como sobre-vida, ultrapassamento da vida; mas exigência de uma outra vida que

seja vida do outro, de onde tudo vem e para o qual, virados, nós não nos reviramos.

«Como se a sobrevida [sobre-vida] fosse necessária à vida»: o avivamento do viver,

sua vivacidade, sua retenção ao mesmo tempo que sua doação, recusam a simples

transcendência do projeto, presente de porvir, intencionalidade de uma consciência,

no lugar do ilimitado, queimadura inconsolável de onde se exclui todo acabamento,

todo cumprimento em uma presença. Espera infinita bem como inesperada.

Esquecimento, lembrança do imemorial, sem memória.

 «Que exista um esquecimento, a prova disso resta a fazer» (Nietzsche).

Precisamente, o esquecimento sem prova, improvável, vigilância que sempre

desvela.
 Nietzsche contra o super-homem: «Somos definitivamente efêmeros». «A

humanidade não pode aceder a uma ordem superior». Consideremos «a urna

funerária do último homem». Essa recusa de um homem para além do homem (em A

Aurora) vai de par com tudo o que Nietzsche diz contra o perigo que haveria em se

confiar à embriaguez e ao êxtase como à verdadeira vida na vida: do mesmo modo,

seu desgosto pelos «alucinados divagantes, os extáticos que procuram por instantes

de arrebatamento dos quais eles caem na angústia do espírito de vingança». A

embriaguez tem o erro de nos dar um sentimento de potência.

 A suspeita salutar a respeito da linguagem que Nietzsche nos fornece, apesar do

denunciamento ambíguo da «gramática», visa na maioria das vezes a parte

excessiva, não vigiada, feita às palavras isolada : «Em todo lugar onde os homens

colocavam uma palavra, eles acreditavam  ter feito uma descoberta... tinham

deflorado um problema». Mas isso é já muito? E quando ele acusa as «palavras

petrificadas, eternizadas», será que ele quer, assim, revir à linguagem como dialética

ou ainda a um movimento como de arrancamento, de desarranjamento ou de

exterminação que está à obra na palavra, aquilo que já Humboldt evocava

vaguamente nomeando de o dinamismo espiritual da linguagem, sua mediação

infinita. Hoje, os linguistas responderiam muito facilmente a Nietzsche. E, no

entanto, a suspeita, ao mesmo tempo que muda de forma, não é apaziguada. Outra

aflição de Nietzsche, formulada de uma maneira surpreendente: «Não teríamos

palavras senão para os estados extremos» - alegria, dor -, frustrando o dia cinza, o
inexperimentado, o abaixo da vida que é o devir do viver. Pode-se dizer o contrário:

que nós não temos palavras para o extremo; que o ofuscamento, a dor fazem

queimar todo vocábulo e o tornam mudo (paradoxo da etimologia: se o

«ofuscamento» [éblouissement] está em relação com o alemão blöde que significa

antes de tudo «frágil», depois « de vista fraca», nos admiramos pelo fato de que o

excesso de luz, aquela que cega, tenha que se dizer a partir de uma miopia, de um

déficit do olho – aquilo que atrai na etimologia é sua parte de desrazão mais do que

aquilo que ela explica, a forma de enigma que ela preserva ou redobra decifrando).

Mas Nietzsche não observa somente, como mais tarde Bergson, que as palavras não

convêm senão a uma análise grosseira, aquela do entendimento («extremo»

querendo dizer: aquilo que é evidente, caracterizado)? Lá ainda a suspeita não

suspeita bastante.

 Valéry: « O pensador está numa jaula e se move indefinidamente entre quatro

palavras». Isso dito pejorativamente não é pejorativo: a paciência repetitiva, a

perseverança infinita. E o mesmo Valéry – é o mesmo? – virá assim a afirmar de

passagem: « Pensar?... Pensar! é perder o fio». Comentário fácil: a surpresa, o

intervalo, a descontinuidade.

 As raízes, invenções dos gramáticos (Bopp) (dito de outro modo, ficção teórica,

mas a teoria linguageira não é mais fictícia do que não importa qual saber). Ou

então, diz Schlegel, «assim como o nome o exprime», « germe vivente sempre à obra
na linguagem». Assim como o nome o exprime: (o nome, aqui, «raiz»), esse apelo ao

nome mostra a petição de princípio, a circularidade da qual toda linguagem tira sua

fecundidade: a raiz tendo sido nomeada por analogia com o crescimento vegetal e

com a unidade suposta de um princípio germinativo escondido sob a terra, disso se

tira a ideia de que a raiz é o germe formador pelo qual as palavras, em línguas

diversas, recebem poder de desenvolvimento, enriquecimento criador. De novo, não-

crentes e crentes: eles todos tendo e não tendo razão. O escritor que, como

Heidegger, retorna à raiz de certas palavras ditas fundamentais e delas recebe uma

impulsão para variações de pensamentos e de palavras, torna «verdadeira» a

concepção segundo a qual há na raiz uma potência ao trabalho e que faz trabalhar.

 Que mesmo Humboldt, tão prudente, vá da analogia interna – no interior da

língua - («a autossignificação») à analogia externa – a imitação do mundo, das

coisas, do ser em geral (o real) pelas palavras em sua sonoridade que ele tinha

recusado, no entanto, distinguindo o momento articulatório do rumor auditivo,

mostra a tentação irresistível de «desnaturar» o processo de significação

naturalizando-o (contrariamente àquilo que sustentam comentadores

contemporâneos, Humboldt reconhece na sequência de similitudes verbais: wehen

[soprar5], Wind [vento], Wolke [nuvens], wirren [turvar], Wunsch [anelo], o reflexo

de «flutuações, turbulências, incertezas recebidas pelos sentidos – as impressões – e

devolvidas pelo W, contração do U surdo»). É verdade que Humboldt nuança esta

5
Em francês respectivamente souffler, vent, nuage, troubler, souhait.
ideia de imitação e não lhe presta uma importância decisiva. Mais decisiva é a

«transcendência» da linguagem nela mesma: é a língua que entra em ressonância

com a língua e se determina sem fim, ação interrompida, ininterrupta, a qual faz em

seguida «entrar a alma em ressonância consigo mesma ou com o objeto». «A língua

pode ser comparada a uma trama imensa na qual cada parte está religada a todas as

outras e onde todas estão no conjunto segundo uma coesão mais ou menos

reparável». Aquilo que Humboldt nomeará de o conjunto subjacente do sistema.

(Quando Humboldt escreve: «Que haja uma conexão estreita entre o elemento

fonético e sua significação, isso é incontestável, mas é raro que se possa apreender

disso sistematicamente a organização: não se pode na maioria das vezes senão ter

disso uma impressão difusa, e sua natureza profunda nos escapa», esta é uma

hesitação e uma linguagem ainda de precaução. Enfim, Humboldt usa a palavra

símbolo mais ou menos como Hegel: pelo símbolo é tornado legível ou mostrável o

irrepresentável: «o símbolo tem o poder de convidar e de forçar o espírito a

permanecer junto da representação daquilo que não se representa – o puro

transcendente. Alhures, Humboldt fala da «diferença irredutível entre o conceito e o

elemento fonético»).

 O que quer que diga Gérard Génette contrariamente talvez àquilo que ele mesmo

pensa, a recusa ascética de Hermógenes não é estéril, já que se lhe deve a

possibilidade de um saber linguístico e que nenhum escritor escreve se ele não o tem
em mente a fim de repelir, mesmo se ele cede a elas, todas as facilidades miméticas

e a fim de, por aí, vir a uma prática totalmente diferente.

 Por que a exigência do dom se afirma em nosso tempo em funções tão diferentes

e em pensamentos tão adversos e diversos quanto aquele de Georges Bataille,

Emmanuel Levinas, Heidegger? A questão vale ser posta sem que haja conveniência

e unidade de resposta. Que se evoque Nietzsche e Mauss para um, isso permite

somente reparar fixações de sentido (de designação) pelas quais se cristalizaram

problemas já instantes. A busca pelo outro – sob o termo da heterologia - precede,

em Bataille, aquilo que o dom» ou a despesa queria nomear - desarranjamento da

ordem, transgressão, restituição de uma economia mais geral que a gestão de coisas

(a utilidade)não dominaria; mas a perda impossível, ligada à ideia de sacrifício e à

experiência de momentos soberanos, não deixa se congelarem em um sistema as

tensões que dilaceram o pensamento e que a aspereza de uma linguagem sem

repouso sustenta. Com Levinas, a aproximação, talvez enganosa, talvez superficial

(porque o horizonte filosófico é diferente), vem da mesma palavra outro pela

transcendência de outrem: a relação infinita de um a outro obriga para além de toda

obrigação; o que conduz à ideia do dom que não é o ato gracioso de um sujeito livre,

mas um desinteressamento sofrido onde, para além de toda atividade e de toda

passividade, a responsabilidade paciente vai até a «substituição», o « um pelo

outro » onde o infinito se doa sem poder se trocar.


Não seria preciso se ater a interpretação demasiado fácil daquilo que se entende (e

se traduz) para Heidegger: «a história do ser é compreendida como a história de

doações nas quais o advento (Ereignis) se mantém em retração»; de onde a questão

simplista: «a entrada no advento significaria o fim da história do ser? » A palavra

« doação » é doada pela fórmula alemã do «há»: Es gibt: isso doa, isso, o «ele»,

sendo «sujeito» do Ereignis, o advento do mais próprio. Se se contenta em dizer: o

ser se doa enquanto o tempo se retira, nós não dizemos nada porque entendemos

«ser » em maneira do «ente» que doa, se doa e favorece. No entanto, Heidegger diz

firmemente: « Presença (ser) pertence à clareira – o aclaramento – do se retirar

(tempo). Clareira – aclaramento – do se retirar (tempo) traz consigo a presença

(ser)». Sem nada concluir, recebemos daí a doação sempre em relação com a

presença (o ser). «O advento advém » (presença de todas as presenças, parusia),

assim como «a palavra fala», é dom de palavra pronunciando a riqueza múltipla do

Mesmo que não é jamais o idêntico.

O que há de comum ou de próximo entre Bataille e Levinas, é o dom como

exigência inesgotável (infinita) do outro e de outrem indo até a perda impossível:

dom da interioridade. De que se afastam, em Heidegger, a retenção do Mesmo e a

experiência da presença, sem que, todavia, o « se doa » ou o «ele doa» possa, apesar

das precisões que fazem «o advento» intervir, aceitar qualquer sujeito explícito.

Quem doa? O que é que se doa? Questões sem conveniência que ressoam na

linguagem sem recolher outra resposta que a linguagem mesma, o dom da

linguagem.
De onde o perigoso pendor a sacralizar esta. O movimento espontâneo do

romantismo é de reportar aos tempos antigos, originários, o reconhecimento do

caráter religioso de toda palavra; A. W. von Schlegel: «A palavra foi no início um

culto, ela tornou-se uma ocupação». «A linguagem, casa do ser». Mas repitamos

com Levinas, ainda que ele privilegie o Dizer como dom de significância: «A

linguagem é já ceticismo». Escrever é desconfiar absolutamente - confiando

absolutamente na escritura - da escritura. Qualquer fundamento que se dê a este

duplo movimento que não é tão contraditório quanto sua formulação bastante

apertada o dá a ler, resta a regra de toda prática escrevente: o «se doar se retirar »

tem aí, não direi sua aplicação nem sua ilustração, termos pouco adequados, mas

aquilo que, através da dialética e fora da dialética, se justifica em se deixando dizer,

desde que haja dizer e pelo quê há dizer.

 Não nos deixemos demasiadamente tentar – ao mesmo tempo o acolhendo – por

aquilo que o saber afirma, tal como aquele de Leroi-Gourhan, descrevendo os

primeiros traços da escritura como séries de «pequenos entalhes» dispostos de

distância a distância (igualmente); aquilo que dá a pensar que está à obra por aí o

impulso repetitivo, quer dizer o ritmo. Arte e escritura, não distintas. Uma outra

afirmação: «Se existe um ponto sobre o qual tenhamos agora toda certeza, é que o

grafismo começa não na representação ingênua, mas no abstrato». Deixamos isso se

afirmar, com esta reserva: abstrato para nós, quer dizer, para nós, separação,

afastamento. Assim, voltamos à decisão maior que é sempre justo e necessário


contestar, com a condição de que não se cesse de pensá-la impensável; Todorov:

«Diacronicamente, não se saberia conceber a origem da linguagem sem pôr no ponto

de partida a ausência de objetos»; e Leroi-Gourhan: « Isso leva a fazer da linguagem

o instrumento da liberação em relação ao vivido». Reserva mantida no tema destas

formulações demasiado fáceis, pode-se dizer: tal é a exigência, na linguagem, do

processo de significação, exigência que não afasta somente o «objeto», «o vivido»,

mas o sentido mesmo na significação, por um movimento extremo que finalmente

escapa, ao mesmo tempo que permanece em obra. Só que a linguagem porta também

o símbolo em que simbolizante e simbolizado podem ser parte um do outro (isso dito

num vocabulário sempre aproximativo), onde o irrepresentável está presente na

representação que ele desborda, em todo caso ligado por uma certa relação

«motivada» de cultura (pensar-se-á imediatamente: natural), reintroduzindo entre

signo e «coisa» uma presença-ausência instável que a arte – e a arte como literatura

– mantém ou regenera (Cf. as observações de Todorov na Poética 21).

 Exemplo das ficções etimológicas. Ritmo: a tranquila e sem dúvida «faltosa»

etimologia nos reenviaria a sreu e rheô, escoar; de onde rhuthmos, fluxo e refluxo

daquilo que escoa (e ritma e rima 1). Mas ninguém decidirá então se é a escansão

repetitiva sempre já à obra que permitiu reconhecer o vai-e-vem dos fluxos ou se a

experiência privilegiada do espetáculo do mar só deu o sentimento, de modo outro,

1
Como se sabe de agora em diante e como está dito em L'Entretien infini [A Conversa
Infinita], segundo Benveniste, ritmo não deriva provavelmente de rheô, mas, por rhutmos,
de rhusmos que Benveniste fixa na expressão: «configuração cambiante, fluída».
desapercebido, da repetição. Os inúmeros fenômenos repetitivos (mesmo que fosse

apenas: inspiração-expiração, fort-da, dia-noite, etc.) fazem duvidar disso

evidentemente. Aqui ainda, a etimologia tradicional dá a ilusão de um exemplo

«concreto», do exemplar (e de um certo saber) ; nós evocamos os homens do mar, os

navegadores ousados, apavorados e encantados, amestrando o desconhecido mais

perigoso (essa inanidade marinha que os porta e os engole) pela observação de um

movimento regulado, de uma primeira legalidade: tudo vem do mar para essas

pessoas do mar, como tudo vem do céu para outros que reconhecem tal agrupamento

de astros e designam, na «configuração» mágica dos pontos de luz, esse ritmo

nascente que rege já toda sua linguagem e que eles falam (escrevem), antes de

nomeá-lo.

 Relembremo-nos de Hölderlin. «Tudo é ritmo», teria ele dito a Bettina conforme

um testemunho, o de Sinclair, que ela imagina talvez. Como entendê-lo? Não é o

cósmico numa totalidade já ordenada da qual caberia ao ritmo manter o

pertencimento. O ritmo não é segundo a natureza, segundo a linguagem ou mesmo

segundo a «arte» onde ele parece predominar. O ritmo não é a simples alternância

do Sim e do Não, do «se doar-se retirar », da presença-ausência, ou do viver-morrer,

do produzir-destruir. O ritmo, ao mesmo tempo que retira o múltiplo do qual a

unidade se esquiva, ao mesmo tempo que parece regulado e se impor segundo a

regra, ameaça esta entretanto, pois sempre ele a ultrapassa por um retorno brusco

que faz com que estando em jogo ou à obra na mesura, ele não se mensure no jogo e
na obra. O enigma do ritmo - dialético, não-dialético: não mais um do que o outro se

libera disso – é o extremo perigo. Que, falando, nós falemos para fazer sentido com

o ritmo e tornar sensível e significante o ritmo fora de sentido, eis o mistério que nos

atravessa e do qual nós não nos libertaremos ao reverenciá-lo como sagrado.

 «Os otimistas escrevem mal» (Valéry). Mas os pessimistas não escrevem.

 O atalho não permite alcançar de modo mais direto (mais rápido) um lugar, mas,

antes, perder o caminho que deveria conduzir até lá.

 Interrogar-nos demasiado abertamente sobre o ritmo é pôr em relação o ritmo e o

aberto e, de uma certa maneira, somente nos abrir ao ritmo ao nos assujeitar

obsessivamente a ele, tornado o Sujeito único que abre e escande o aberto segundo

uma cláusula. Ritmo não é Sujeito de outro modo senão que por abuso. «Tudo é

ritmo» não leva a dizer – o que seria demasiado e demasiado pouco dizer -: o ritmo é

a totalidade do todo, entretanto não, antes, um simples modo, como se disséssemos:

tudo aquilo que é, é segundo o ritmo – afirmação que seria preciso, entretanto,

atingir, pois essa relação do ser com o ritmo, relação inevitável, nos concederia não

pensar o ser sem pensar o ritmo que, ele mesmo, não é segundo o ser. Outra maneira

de se deixar questionar pela diferença.


 Melville-René Char: «O infinito desejante repentinamente recua». Melville, pelas

palavras inglesas, sugere um choque violento: a atração ardente infinita é o pavor

que repele. O absoluto desejante (o infinito que seria o infinito do desejo, em relação

com o desejo) não passa somente pelo «sem desejo», mas exige o espanto, retração

desmesurada através da atração desmesurada.

 Nós não repelimos a terra à qual de todas as maneiras pertencemos, mas não

fazemos dela um refúgio, nem mesmo para nela fazer uma estadia, uma obrigação

bela, «pois terrível é a terra». O desastre sempre retardatário, sono estrangulado,

poderia nos relembrar uma lembrança do imemorável, se houvesse uma lembrança

do imemorável.

 Se «a indiscrição em consideração ao indizível» (E. L.) talvez seja a tarefa, esta se

enuncia pela colocação em relação do mesmo prefixo repetido, «in», com a

ambiguidade que ele mantém do infinito. O indizível seria circunscrito pelo Dizer

elevado ao infinito: aquilo que escapa ao dizer, é não somente isso que é preciso

dizer, mas isso não escapa senão sob a marca e na retenção do Dizer. Do mesmo

modo, a indiscrição é faltar à reserva com a ajuda da reserva, mantendo-se nela,

faltando a ela.

 A «mudança radical», poder-se-ia indicá-la especificando-a dessa maneira: que,

daquilo que advém, todo presente se exclui. A mudança radical adviria ela mesma
sobre esse modo do não-presente que ela faz advir sem se confiar, no entanto, ao

porvir (previsível ou não) ou se retirar num passado (transmitido ou não).

 (Uma cena primitiva?) «Indiscrição, indizível, infinito, mudança radical, não há

entre aquilo que se chama por estas palavras, senão uma relação, ao menos uma

exigência de estranheza que as devolveria turno por turno – ou juntas – aplicáveis

àquilo que se nomeou uma cena? - Erroneamente, já que, escapando ao figurável,

como à ficção ; simplesmente para não falar delas assim como de um evento tendo

tido lugar num momento do tempo. – Uma cena: uma sombra, um fraco clarão, um

''quase'' com os traços do ''demasiado',' do excessivo em tudo. – O segredo ao qual

se fez alusão, é que não há nada de secreto, exceto para aqueles que se recusam à

confissão. – Indizível, entretanto, enquanto narrado, proferido: não o ''proferir''

mallarmeano (ainda que não se possa evitar passar por ele – lembro-me disso

ainda: ''eu profiro a palavra, para mergulhá-la de novo em sua inanidade''; é o

''para'', esta finalidade de nada demasiado estabelecida, que não permite se

suspender nisso), antes o dito que, sem remeter a um não-dito (como se tornou

costume pretendê-lo) ou a uma riqueza de palavras inesgotável, reserva o Dizer que

parece denunciá-lo, autorizá-lo, provocá-lo a um desdito – Dizer: poder de dizer?

Isso o altera imediatamente. O desfalecimento lhe conviria melhor. – Se a

conveniência não estivesse aqui fora de aposta: o dom do pouco, do pobre, na

ausência da perda jamais recebida. – Mas quem conta? – O relato. – O ante-

relato, ‘'a circunstância fulgurante'' pela qual a criança fulminada vê – ela tem o
espetáculo disso – o assassinato feliz de si mesma que lhe doa o silêncio da palavra.

– As lágrimas são de uma criança ainda. – Lágrimas de toda uma vida, de todas as

vidas, a dissolução absoluta que, alegria ou tristeza, o rosto pueril reergue para

nelas brilhar até a emoção sem signos. – Imediatamente interpretado de modo

banal. – A banalidade não tem erro, comentário de consolação onde a solidão se

recusa sem refúgio. – Eu volto a isso: as circunstâncias são do mundo: a árvore, o

muro, jardim de inverno, o espaço do jogo com o que o tédio; é, portanto, o tempo e

seu discurso, o narrável sem episódio ou puramente episódic ; até mesmo o céu, na

dimensão cósmica que ele supõe desde que se o nomeia – os astros, o universo –, é

o aclaramento do dia parcimonioso, mesmo que fosse o ''fiat lux'', distanciamento

que não distancia. - Todavia, o mesmo céu. . . – Precisamente – é necessário que

seja o mesmo. – Nada mudou. – Salvo o abalo de nada - Que rompe, pela quebra de

uma vidraça (por trás da qual se se assegura com uma transparência protegida), o

espaço finito-infinito do cosmos – a ordem ordinária – para substituir disso a

vertigem sábia do fora desertado, tal que negro e vazio, respondendo à

repentinidade da abertura e se dando absolutos, anunciando a revelação pela

ausência, a perda e o para o além dissipado. – Mas ''o para além'', embargado pela

decisão desta palavra esvaziada ''nada'' que não é ela mesma nada, é ao contrário

chamada na cena, desde que o movimento de abertura, desde que a revelação,

assim como a tensão do nada, do ser e do há intervêm e provocam o abalo

interminável.- Eu o concedo: ''nada é aquilo que há' 'interdito de se deixar dizer em

tranquila e simples negação (como se em seu lugar o eterno tradutor escrevesse:


''Não há nada'' . – Nenhuma negação, mas termos que pesam, estâncias justapostas

(sem vizinhança), suficiência fechada (fora de significação), cada um imóvel e

mudo, e assim usurpando sua relação em frase da qual seríamos bem embaraçados

de designar aquilo que gostaria de se dizer nela. – Embaraço é pouco: que tu

passes por esta frase aquilo que ela não pode conter senão estilhaçando. – De

minha parte, ouço o irrevogável do há que ser e nada, marulho vão, projetando,

reprojetando, traçando, apagando, rolam segundo o ritmo do anônimo ruído.

- Ouvir o sem-eco da voz: estranho entendimento. – entendimento do estranho, mas

não vamos mais longe. – Já tendo sido demasiado avante, voltando atrás. –

Voltando em direção à interpelação inicial que convida à suposição fictícia sem a

qual falar da criança que jamais falou, seria fazer passar na história, na

experiência ou no real ainda, a título de episódio ou novamente de cena imóvel,

aquilo que as arruinou (história, experiência, real) deixando-os intactos. – O efeito

generoso do desastre. – A senescência do rosto sem rugas. – O insulto maior da

poesia e da filosofia indistintas».

«A questão sempre suspensa: sendo morto deste ''poder-morrer'' que lhe doa

alegria e assolação, ele sobreviveu, ou antes, que quer dizer então sobreviver,

senão viver de uma aquiescência na recusa, no secamento da comoção, em retração

do interessamento por si, des-interessado, extenuado até à calma, não esperando

nada? – Por conseguinte, esperando e fazendo vigília já que de repente despertado

e, sabendo-o de agora em diante, jamais bastante despertado».


 Naturalmente, «desastre» pode se entender a partir da etimologia. Muitos

fragmentos portam aqui o rastro dela. Mas a etimologia não se mostra neles como

um saber preferencial ou mais original, assegurando sua maestria sobre aquilo que

então não é mais do que uma palavra. Ao contrário, é o indeterminado daquilo que

se escreve com essa palavra, que ultrapassa a etimologia e a arrasta no desastre.

 Que não haja espera do desastre, é na medida em que se pensa que a espera é

sempre espera de um esperado ou de um inesperado. Mas a espera, do mesmo modo

que ela não se reporta mais a um porvir do que a um passado acessível, é assim

também espera da espera, o que não nos fixa num presente, pois «eu» tenho sempre

já esperado aquilo que esperarei sempre: o não memorável, o desconhecido sem

presente dos quais não posso me lembrar mais do que não posso saber se não

esqueço o porvir, o porvir sendo minha relação com aquilo que, naquilo que chega,

não chega, e portanto não se apresenta, não se re-presenta. Eis porque é permitido

pelo movimento da escritura dizer: morto, tu o és já. E o que é o esquecimento? Não

mais do que uma privação do memorável na memória, ele não se reporta à

ignorância daquilo que haveria de presente no porvir. O esquecimento designa o

além do possível, o Outro inesquecível que, passado ou futuro, o esquecimento não

circunscreve: o passivo da paciência.


 Não há origem, se origem supõe uma presença original. Sempre passado, de ora e

já passado, algo que se passou sem ser presente, eis o imemorial que o esquecimento

nos dá, dizendo: todo começo é recomeço.

 É certo que se enfraquece o pensamento de Heidegger, quando se interpreta «o

ser-para-a-morte» pela busca de uma autenticidade pela morte. Visão de um

humanismo perseverante. Já o termo «autenticidade» não responde ao

«Eigentlichkeit» onde se anunciam as ambiguidades mais tardias da palavra eigen

que detém o Ereignis que não pode se pensar em relação a «ser». Entretanto, mesmo

se abandonamos a ilusão da «morte própria» de Rilke, resta que o morrer, nessa

perspectiva, não se separa do «pessoal», negligenciando aquilo que há de

«impessoal» na morte em relação a que é preciso dizer não «eu» morro, mas se

morre, morrendo sempre outro.

 Schelling: «A alma é o verdadeiro divino no homem, o impessoal... A alma é o

não-pessoal». Ou ainda: «na medida em que o espírito humano se reporta à alma

como alguma coisa de não-sendo, quer dizer, a algo do sem-entendimento, sua

essência mais profunda (enquanto separado da alma e de Deus), é a loucura. O

entendimento é loucura regrada. Os homens que não têm em si nenhuma loucura

são homens de entendimento vazio e estéril...» (trad. Courtine).


 Se é verdade que, para um certo Freud, «nosso inconsciente não saberia

representar para si nossa própria mortalidade», isso significa além do mais que

morrer é irrepresentável, não somente porque morrer é sem presente, mas porque

não tem lugar, mesmo que seja no tempo, na temporalidade do tempo. Do mesmo

modo que, se é preciso meditar sobre a interpretação de Pontalis: (o inconsciente)

«ignora o negativo porque ele é o negativo, que se opõe à suposta plena positividade

da vida», é necessário se relembrar de que o «negativo» ora está em obra, falando

com a palavra e assim se relacionando ao «ser», ora seria o não-trabalho do

desobramento, paciência que não é duração, pré-inscrição que sempre se apaga

como produção de sentido (sem ser in-sensato), e não se sofre a si mesmo «em nós»

senão como a morte de outrem ou a morte sempre outra, com a qual nós não

comunicamos, mas da qual, aquém da prova, nós nos provamos responsáveis.

Alguma relação, portanto, (na morte) com a violência e a agressividade. Aquilo que

a mima antes, figura infigurável, está, através da escritura mesma, o desligamento, a

ruptura, a fragmentação, mas sem encerramento, « processo que não tem outra

finalidade que de se cumprir [ou melhor de não se cumprir e à qual seu caráter de

repetição imprime a marca do pulsional» (Pontalis). Acrescentarei que todas as

figuras sociais atuais da pulsão da morte (ameaça atômica, etc.) não têm nada a ver

com aquilo que esta tem de infigurável e se reportam ainda mais ao primeiro sentido

do negativo (hegeliano), destruindo para construir talvez. Não a nada a fazer com a

morte que sempre teve lugar: Obra do desobramento, não-relação com um passado

(ou um porvir) sem presente. Assim o desastre estaria para além daquilo que nós
entendemos por morte ou por abismo, em todo caso minha morte, já que não há mais

lugar para ela, desaparecendo nela sem morrer (ou o contrário).

 Mortal, imortal: essa reversão tem um sentido?

 Lendo em R.B. [Roland Barthes] o que este não diz mas sugere, imagino que

para Werther o amor-paixão não é senão um desvio para morrer. Após a leitura de

Werther, não houve mais amantes, porém mais suicidas. E Goethe se desencarregou

sobre Werther da tentação de morrer, não de sua paixão, escrevendo não

absolutamente para não morrer, mas pelo movimento de uma morte que não lhe

pertencia mais. «Isso não pode senão terminar mal».

 O eu [moi] responsável de outrem, eu [moi] sem eu [moi], é a fragilidade mesma,

ao ponto de ser posto em questão de parte em parte enquanto eu [je], sem

identidade, responsável daquele a que ele não pode dar resposta, respondente que

não é questão, questão que se reporta a outrem sem muito menos esperar dele uma

resposta. O Outro não responde.

 Permaneço persuadido de que a paixão da etimologia esteja ligada a um certo

naturalismo, como à procura de um segredo original que uma primeira linguagem

portaria e cuja perda deixaria índices de língua a língua, índices que permitiriam de

reconstituí-lo. O que justifica a poucos custos a exigência de escrever e faria crer


que, pela escritura, o homem detém um segredo pessoal que ele poderia descobrir

inocentemente sem que o outro saiba, enquanto que, se há um segredo, ele está na

relação infinita de um a outro que a deriva do sentido dissimula porque um parece

manter nela sua necessidade até na morte.

Mas é verdade que a ideia de arbitrário em linguística é também criticável e tem,

sobretudo, um valor de ascese, nos afastando das soluções fáceis. (Talvez o

pensamento do arbitrário do signo suponha já a imagem implícita, dissimulada, de

um «mundo»).

 O desastre, experiência não-provada, desfaz – deixando-a intacta - a relação com

o mundo como presença ou ausência, sem, entretanto, nos liberar da obsessão da

qual ele nos encarrega: é que a irreciprocidade com o Outro (outrem) em direção à

qual ele nos orienta - questão imediata e infinita – não se passa no espaço sideral ao

qual ele seria subordinado, substituindo-o por uma heterogeneidade radical. O que

não quer dizer que nós nos desinteressemos dos terceiros que sofrem através de uma

ordem injusta, enquanto que nosso sofrimento seria sempre justificado – para além

da justiça – já que somos responsáveis por aquele que nos faria sofrer (outrem), não

que tenhamos que assumir o mal que ele nos faria sofrer, mas porque a paciência à

qual ele nos vota para além de todo passivo, nos reconduz em direção a um passado

sem presente. A pseudo-intransitividade da escritura tem relação com essa paciência

que nenhum complemento - vida ou morte - saberia completar.


 Naturalmente, a questão já posta se põe de novo: se a obsessão de outrem vai até a

perseguição, o morrer na vida mesma não seria fazer prova de uma espécie de

crueldade para com ele, torná-lo em algum modo cruel? Mas é esquecer que não

tenho que acolher, que assumir aquilo que nos seria feito. Através da passividade da

paciência, o eu [moi] não tem nada a sofrer, tendo perdido até o desaparecimento a

capacidade de um eu [moi] privilegiado sem cessar de ser responsável. Não há mais

nome, mas esse sem-nome não é o grosseiro anonimato, tal como o define

Kierkegaard («o anonimato, expressão suprema da abstração, da impessoalidade, da

ausência de escrúpulos e de responsabilidade, é uma das fontes profundas da

corrupção moderna»); há muitas confusões nessa frase, como se o anonimato fosse o

anonimato em exercício no mundo, por exemplo, o anonimato dito burocrático.

 O escritor, o insone do dia.

 Escrever, certamente, é renunciar a se levar pela mão ou a se chamar por nomes

próprios, e ao mesmo tempo é não renunciar, é anunciar, acolhendo – sem

reconhecê-lo – o ausente - ou, pelas palavras em sua ausência, estar em relação com

aquilo do qual não se pode se lembrar, testemunha do não-provado, respondendo

não somente ao vazio no sujeito, mas ao sujeito como vazio, seu desaparecimento na

iminência de uma morte que já teve lugar fora de todo lugar.


 Escrever e a perda; mas a perda sem dom (um dom sem contrapartida) arrisca

sempre ser uma perda apaziguante que traz a segurança. Eis porque não há sem

dúvida discurso amoroso, senão do amor em sua ausência, «vivido» na perda, no

envelhecimento, quer dizer na morte.

 Se a morte é o real, e se o real é o impossível, se se aproxima do pensamento da

impossibilidade da morte.

 Segundo o discípulo de Barl-Shem, o Rabbi Pinhas, nós devemos «amar mais» o

cruel e o odioso para compensar por nosso amor a falta de amor da qual ele é

responsável, a qual provoca uma «dilaceração» das potências do Amor que é preciso

reparar para ele. Mas que significam crueldade, ódio? Eles não são traços de Outrem

que é precisamente o desnudado, o abandonado, o desmunido. Na medida em que se

pode falar de ódio e de crueldade, é, no entanto, porque, por eles, o mal atinge

também terceiros, e então a justiça exige a recusa, a resistência e até a violência

destinada a repelir a violência.

 Eu gostaria de me contentar com uma só palavra, mantida pura e viva em sua

ausência, se, por ela, eu não tivesse que portar todo o infinito de todas as linguagens.
 «A menor nuance de antissemitismo manifestada por um grupo ou por um

indivíduo prova a natureza reacionária desse grupo ou desse indivíduo» (Lenin,

citado por Guillemin).

 Guardar o silêncio é o que, sem sabermos, todos nós queremos, escrevendo.

 Job: «Falei uma vez... não repetirei; / duas vezes... não acrescentarei nada». É o

que talvez signifique a repetição da escritura, repetindo o extremo ao qual não há

nada a acrescentar.

 O que diz por vezes Nietzsche dos judeus? «Da pequena comunidade judia

provém o princípio do amor: é uma alma mais apaixonada cuja brasa choca sob

humildade e pobreza: o que não é nem grego nem hindu nem mesmo germânico; o

hino à caridade que Paulo compôs não tem nada de cristão, é o jorrar judeu da eterna

chama, que é semita...» - « Cada sociedade tem tendência a degradar seus

adversários até a caricatura... Na ordem de valores aristocráticos romanos, o Judeu

era reduzido à caricatura... Platão torna-se em mim uma caricatura...» - « Esconder

sua inveja a respeito da inteligência mercantil dos Judeus sob fórmulas de

moralidade, eis o que é antissemita, vulgar, pesadamente canalha». Nietzsche

compreende muito bem que os Judeus tornam-se comerciantes porque não se lhes

permitiu qualquer outra atividade. De onde este anelo obscuro anunciando para os

Judeus um porvir novo: « Dar aos Judeus a coragem de qualidades novas, enquanto
eles passaram em novas condições de existência: assim como convém a meu próprio

instinto e nesta via não me deixei extraviar por uma oposição venenosa que

precisamente agora toma a frente». Isto entre muitas observações duvidosas, quando

Nietzsche não vê mais no cristianismo senão um judaísmo emancipado ou quando

ele toma emprestado, sem reflexão, sua linguagem dos costumes cristãos do tempo.

Mas se o antissemitismo se faz sistema, movimento organizado, ele o recusa

imediatamente com horror. Quem não sabe disso? (Que o pensamento de Nietzsche

seja perigoso, é verdade. Ele nos ensina isso antes de tudo: se nós pensamos, nada de

repouso).

 Nietzsche: «No “Antigo Testamento”' judeu, esse livro da justiça de Deus,

encontram-se homens, eventos e palavras de um estilo tão grandioso que a literatura

grega e a literatura hindu não oferecem nada de comparável. Fica-se tomado de

espanto e de respeito diante desses prodigiosos vestígios do que o homem foi

outrora e se se entregará a tristes reflexões ao tema da antiga Ásia e de sua pequena

península avançada, a Europa, que pretende encarnar em face dela os ''progressos do

homem''...» - «Ter posto ao lado do Antigo esse Novo Testamento, esse monumento

de um gosto rococó em todos os aspectos, para deles fazer juntos um só e mesmo

livro, a Bíblia, o Livro por excelência, eis talvez a maior das imprudências, o maior

dos ''pecados contra o espírito'' que a literatura moderna tenha sobre a consciência».

O que entende Nietzsche aqui? Ele fala de estilo, de gosto, de literatura, mas por aí

realça aquilo que portam tais palavras. E, eu o noto, a civilização grega não é nisso
menos atingida do que a cristã. Alhures, o cristianismo é louvado por ter sabido

manter o respeito pela Bíblia, mesmo que fosse interditando-lhe a leitura direta: “A

maneira pela qual se manteve até os nossos dias, no conjunto, o respeito pela Bíblia,

constitui talvez o melhor exemplo de disciplina e afinamento dos modos pelos quais

a Europa deve ao cristianismo: livros dessa profundidade, depositários de uma

significação última (sublinho), têm necessidade de ser protegidos pela tirania de uma

autoridade exterior a fim de se assegurar essa duração de vários milênios que é

indispensável para esgotar seu sentido e compreendê-lo até o fim ». O que é dito aí

julga nossos julgamentos sobre Nietzsche, sem, é verdade, nos aproximar do

judaísmo. Do mesmo modo, num outro livro quase nos mesmos termos: «O Antigo

Testamento é justamente outra coisa: Tire-se o chapéu diante do Antigo Testamento!

Aqui encontro grandes homens, uma paisagem heroica e uma coisa entre as raras do

mundo: a ingenuidade incomparável do coração robusto; bem mais, eu encontro um

povo».

 Não estando em busca nem do lugar, nem da fórmula.

 «A única explosão é um livro». Um livro: um livro em meio a outros, ou um livro

reenviando ao Liber único, último e essencial, ou mais justamente, o Livro

maiúsculo que é sempre não importa qual livro, já sem importância ou para além do

importante. «Explosão», um livro; aquilo que quer dizer que o livro não é o

reagrupamento laborioso de uma totalidade enfim obtida, mas tem por ser o
estilhaçamento ruídoso, silencioso, que sem ele não se produziria (não se afirmaria),

enquanto que, pertencendo ele mesmo ao ser estilhaçado, violentamente desbordado,

posto para fora de ser, ele se indica como sua própria violência de exclusão, a recusa

fulgurante do plausível: o fora em seu devir de estilhaço. É o morrer de um livro em

todos os livros que é o apelo ao qual é preciso responder: não tomando somente

reflexão sobre as circunstâncias de uma época, sobre a crise que se anuncia nela,

sobre o abalo que se prepara nela, grandes coisas, poucas coisas, mesmo se elas

exigem tudo de nós (como o dizia já Hölderlin, pronto para lançar sua pena sob a

mesa, a fim de ser tudo para a Revolução). Resposta que, no entanto, concerne ao

tempo, um outro tempo, um outro modo de temporalidade que não nos deixa mais

ser tranquilamente nossos contemporâneos. Mas resposta necessariamente

silenciosa, sem presunção, sempre já interceptada, privada de toda propriedade e

suficiência: tácita no fato de que ela não saberia ser senão o eco de uma palavra de

explosão. Talvez seria preciso citar, advertência sempre inédita, as palavras

vivificantes de um poeta muito próximo: «Escutem, prestem atenção: mesmo muito

afastados, livros amados, livros essencais começaram a estertorar»6 (René Char).

 (Uma cena primitiva?) O traço do narcisismo, entendido vulgarmente ou

sutilmente, é que, como do amor-próprio de La Rochefoucauld, é fácil denunciar o

efeito disso em tudo e em todo lugar; basta lhe dar uma forma adjetiva: o que é que

não seria narcísico? Todas as posições do ser e do não-ser. Mesmo quando ele se

6
No original: ....
renuncia até a devir negativo, com a parte de enigma que então o obscurece, ele não

cessa de ser passivamente ativo: a ascese, a retração absoluta e até ao vazio, se

deixam reconhecer como modos narcísicos, uma maneira bastante fraca para um

sujeito decepcionado, ou incerto de sua identidade, de se afirmar se anulando.

Contestação que não é negligenciável. Nós redescobrimos aí a vertigem ocidental

que reporta todos os valores ao Mesmo, e tanto mais se se trata de um «mesmo» mal

constituído, evanescente, perdido ao mesmo tempo que apreendido, quer dizer, tema

de predileção para alguns movimentos dialéticos.

As mitologias mostram bem que a versão de Ovídio, poeta inteligente, civilizado,

cuja concepção do narcisismo segue todos os movimentos narrativos, como se estes

detivessem o saber psicanalítico, modifica o mito para desenvolvê-lo tornando-o

mais acessível. Mas o traço do mito que Ovídio termina por esquecer é que Narciso,

pendido sobre a fonte, não se reconhece na imagem fluida que lhe reenviavam as

águas. Este, portanto, não é ele, seu «eu» talvez inexistente, que ele ama ou deseja,

mesmo que fosse em seu desconhecimento. E se ele não se reconhece, é porque

aquilo que ele vê é uma imagem, que a similitude de uma imagem não remete a

ninguém, tendo por caráter não se parecer com nada, mas ele se «apaixona» por ela,

porque a imagem – toda imagem – é atraente, atração do vazio mesmo e da morte

em seu engodo. O ensinamento do mito que, como todo mito virando fábula, é

educativo, seria que não é preciso se fiar à fascinação das imagens que não somente

enganam (de onde os fáceis comentários plotinianos), mas tornam todo amor

insensato, porque é preciso uma distância para que nasça o desejo de não se
satisfazer imediatamente – o que Ovídio, em seus acréscimos sutis, bem traduziu

fazendo Narciso dizer (como se Narciso pudesse falar, «se» falar, solilocar):

«possessão me fez sem possessão».

O que há de mítico neste mito: a morte está nele presente quase sem se nomear, pela

água, a fonte, o jogo floral de um encantamento límpido que não abre sobre o sem-

fundo apavorante do subterrâneo, mas que o mira perigosamente (loucamente) na

ilusão de uma proximidade de superfície. Narciso morre? Quase; tornado imagem,

ele se dissolve na dissolução imóvel do imaginário onde ele se dilui sem saber,

perdendo uma vida que ele não tem; pois, se se pode reter alguma coisa dos

comentadores antigos, sempre prontos a racionalizar, é que Narciso jamais começou

a viver, criança-deus (a história de Narciso, não a esqueçamos, é a história de deuses

ou semi-deuses), não se deixando tocar pelos outros, não falando, não se sabendo, já

que, segundo a ordem que ele teria recebido, ele deve permanecer desviado de si –

assim, muito próximo da criança maravilhosa, sempre já morta e entretanto

destinada a um morrer frágil, do qual Serge Leclaire nos falou.

Sim, mito frágil, mito da fragilidade onde no entre-dois tremente de uma consciência

que não se formou e de uma inconsciência que se deixa ver e assim faz do visível o

fascinante, nos é dado aprender uma das versões do imaginário segundo a qual o

homem – é isto o homem? -, se ele pode se fazer segundo a imagem, é mais

certamente exposto ao risco de se desfazer, segundo sua imagem, se abrindo então à

ilusão de uma similitude, talvez bela, talvez mortal, mas de uma morte evasiva que

está toda na repetição de um desconhecimento mudo. Certamente, o mito não diz


nada de tão manifesto. Os mitos gregos não dizem, em geral, nada, sedutores por um

saber oculto de oráculo que chama o jogo infinito de adivinhar. O que nós

chamamos de sentido, até mesmo de signo, lhes é estrangeiro: eles fazem signo, sem

significar, mostrando, esquivando, sempre límpidos, dizendo o mistério

transparente, o mistério da transparência. De sorte que todo comentário é denso,

tagarela e tanto quanto mais se ele se enuncia sobre o modo narrativo, a história

misteriosa se desenvolvendo, portanto, inteligentemente em episódios explicativos

que por seu turno implicam uma claridade fugidia. Se Ovídio, prolongando talvez

uma tradição, faz intervir na fábula de Narciso a sina que se pode dizer falando da

ninfa Eco, é justamente para nos levar a tentar redescobrir nela uma lição de

linguagem que nós acrescentamos só depois. Mas isto aqui permanece instrutivo: já

que é dito que Eco o ama não se deixando ver, é, portanto, com uma voz sem corpo,

condenada a sempre repetir a última palavra – e nada mais – que Narciso seria

chamado ao reencontro e a uma espécie de não-diálogo, linguagem que, longe de ser

a linguagem de onde o Outro deveria lhe vir, não é senão a aliteração mimética,

rimante, de um semblante de palavra. Narciso é suposto solitário, não porque ele é

demasiado presente a si mesmo, mas porque lhe falta, por decreto (tu não verias,

esta presença refletida – o si mesmo – a partir da qual uma relação vivente com a

vida outra poderia se ensaiar; ele é suposto silencioso, não tendo da palavra senão o

acordo repetitivo de uma voz que lhe diz o mesmo sem que ele possa atribuí-lo para

si e que é precisamente narcísico neste sentido de que ele não a ama, que ela não lhe

doa nada de outro a amar. Sina da criança da qual se crê que ela repete as últimas
palavras, enquanto ela pertence ao rumor crescente que é de encantamento e não de

linguagem; e sina também de apaixonados que se tocam pelas palavras, que estão

em contato com palavras e que podem se repetir sem fim, se maravilhar com o mais

banal, justamente porque sua língua é língua, e não linguagem, e porque eles se

miram um no outro, por uma reduplicação que vai da miragem à admiração.

O que toca neste mito provavelmente tardio, é, portanto, que nele retine novamente a

interdição de ver, tão constante na tradição grega que permanece, no entanto, o lugar

do visível, da presença já divina no fato de que ela surgia e em suas múltiplas

aparências. Sempre há alguma coisa para não ver, menos porque não é preciso olhar

tudo, mas porque, os deuses sendo essencialmente visíveis e sendo o visível, é a

visão que expõe ao perigo do sagrado, cada vez que o olhar, por sua arrogância

pronta a desfigurar e a possuir, não olha sobre o modo da retenção e da retração.

Sem mobilizar Tirésias que encena em demasia o papel do adivinho de serviço, e

muito menos encenar com as duas palavras de oráculo, como se elas fossem a

reversão premeditada uma da outra: «conhece-te a ti mesmo » e «ele viverá se ele

não se conhece», é preciso antes pensar que Narciso, vendo a imagem que ele não

reconhece, vê nela a parte divina, a parte não vivente de eternidade (pois a imagem é

incorruptível) que, sem que ele saiba, seria a sua, e que não tem o direito de olhar

sob pena de um desejo vão, de sorte que se pode dizer que ele morre (se ele morre)

por ser imortal, imortalidade de aparência que atesta a metamorfose em flor, flor

fúnebre ou flor de retórica.


 A exigência de um pensamento se rendendo ao múltiplo e procurando escapar a

majoração do Uno: «O múltiplo, é preciso fazê-lo não acrescentando sempre uma

dimensão superior, mas ao contrário o mais simplesmente, à força de sobriedade, ao

nível de dimensões das quais se dispõe, sempre n - 1; o uno faz parte do múltiplo

sendo sempre subtraído dele.» (Deleuze-Guattari). De onde se poderia concluir que

o uno não é mais então uno, mas a parte de subtração pela qual o múltiplo se

constrói se multiplicando sem que todavia a unidade se inscreva nela como falta; é o

ponto mais difícil, e não se trata então de um modelo normativo, sob a guarda de um

saber particular que se prescreve?

O múltiplo é ambíguo, de uma ambiguidade, antes de tudo, fácil de determinar, já

que há o múltiplo, o variado, o cambiante ou o diverso dos quais, pelas condutas

conjuntas da razão dialética ou prática, até mesmo pelo apelo da reconciliação

mítica, se forma a totalidade unitária que os preserva alterando-os como meios ou

momentos mediadores ou, misticamente, lançando-os no grande fogo da

consumação ou da confusão. Mas, então, múltiplo, coisas variadas ou separadas,

caindo sob a fascinação do Uno, não lhe serviram senão de elo, ou de figuras

sensíveis, ou de nomes de empréstimo, aproximação daquilo que não saberia de

outro modo ser próximo: espera e recurso do cumprimento no uni-verso a acabar ou

a fingir. Do uno, sujeito (mesmo que fosse sujeito fissurado, sempre duplo, em vão

desejante) ao uno universal ou supremo, o múltiplo, o dissociado, o diferente não

terão sido senão passagem: reflexos da Presença maiúscula que, mesmo não

portando nome, se consagra na soberana altura. Mistura ousada de uma dialética e


de um remontamento (místico) pela esperança de salvação. Não é preciso depreciar

tais condutas, porque a aposta delas é importante, visada quase (até hoje ou ontem)

de toda moral e de todo saber.

Resta que a lei do Uno e seu primado glorioso, inexorável-inacessível, excluem o

múltiplo como múltiplo, reconduzindo, mesmo que fosse por desvios, o outro em

direção ao mesmo, e substituindo a diferença pelo diferente, sem deixar esta vir em

questão, tanto é potente e necessária a organização da palavra respondendo à ordem

de um universo habitável (onde nos é dada a promessa de que tudo será – é portanto

já – presente, em participação na Presença apreensível-inapreensível). Mas esta

soberania do Mesmo e do Uno, majestosa ou simples (que ela esteja próxima ou por

esperar), dominando tudo de antemão e reinando sobre todo ser, arrastando em sua

orbe todo aparecer bem como todo essência, tudo o que se diz e tudo que está para

dizer, formulações, ficções, questões, respostas, proposições de verdade e de erro,

afirmações, negações, imagens, símbolos, palavras de vida e de morte, marca

precisamente que é no fora da soberania do Uno e do Todo, no fora do Universo

como de seu além e quando tudo está cumprido, a morte enfim advinda em forma de

vida contente, que, de uma maneira então mais instante, a exigência sem direito do

outro (o múltiplo, o desnudado, o esparso) se doa como aquilo que sempre escapou

ao cumprimento, e assim, para o pensamento satisfeito, adormecido por ser acabado,

se afirma (afirmação como vazio) a obsessão velante e incessante de outrem (na

não-presença) que ela não sabe no entanto reconhecer, sabendo somente que esta lhe
revém, desastre noturno, a fim de assinalá-la a uma perpetuidade desunida,

premissas talvez de uma escritura, sua revolução em todo caso enquanto extinta.

 A atração do simples é que ele é o dom - jamais doado – do Uno: o conjunto que

nós não conhecemos senão como desdobrado e cujo redobrar esquiva a infinita

riqueza do «uma só vez» que nele se suplicia. De modo que estamos sempre

autorizados a dizer: o simples não é simples, sem que sejamos, por essa fórmula,

conduzidos a nada mais do que salvaguardar a inacessibilidade do Uno, sua retirada

do ser, sua fascinante transcendência. O complexo permanece sendo a

encabrestamento mais ou menos hierarquizado que se oferece à análise para nela se

decompor ao mesmo tempo que mantém seu ser-junto [être-ensemble]. E o

múltiplo pode também se reduzir facilmente na medida em que ele se constroi pelo

número até o mais: isso enquanto a unidade lhe for o agente constitutivo, em

participação com o Uno imóvel. Mas múltiplo como múltiplo nos reenvia à Als-

Struktur, a estrutura do como. Pluralidade então subtraída à unidade e de onde a

unidade sempre se subtrai, relação do outro, pelo outro que não se unifica: ou ainda

diferença estrangeira ao diferente, fragmentária sem fragmentos, esse resto a

escrever que, à maneira do desastre, sempre precedeu - arruinando-o - todo começo

de escritura e de palavra. (Entretanto, a estrutura do como - múltiplo enquanto

múltiplo, como tal ou em si - tende a reestabelecer a identidade do não-idêntico, a

unidade do não-uno, desfazendo a desligação e a estabilizando numa forma; o


pensamento do múltiplo é de novo diferido, em relação por aí com a impertinência

da diferença que não se deixa pensar).

 «A soberania não é NADA». Assim pronunciada a palavra nada não implica

somente a soberania em sua ruína, pois a ruína soberana poderia ser ainda uma

maneira para a Soberania de se afirmar realçando o nada maiúsculo. A soberania,

segundo o esquema da negatividade sempre à espreita, se projetaria então

absolutamente naquilo que tenderia a negá-la absolutamente. Mas poderia ser que o

nada não esteja aqui ao trabalho e, sob sua forma extravagante e cortada, esquiva

somente aquilo que se esquiva naquilo que não pode ser nomeado, o neutro, o neutro

sempre se neutralizando e ao qual não há nada de soberano que, de antemão, não se

tenha já rendido: seja na negligência do Uno, seja pela escansão negativa do outro,

negação que não nega nem afirma, e, através da erosão infinita da repetição, deixa o

Outro se marcar e se demarcar e se remarcar como aquilo que não tem relação com

aquilo que vem em presença, nem também com aquilo que se ausenta dele.

 «Mas não, sempre

Num projetar da asa do impossível

Tu te despertas, com um grito,

Do lugar, que é apenas um sonho...7» (Yves Bonnefoy)

7
Em francês:
 Uma frase isolada, aforística, não fragmentária, tende a ressoar como uma palavra

de oráculo que teria a auto-suficiência de uma significação por si só completa. Se se

isola essa frase de Wittgenstein que eu cito de memória (a lembrança singulariza):

«A filosofia seria o combate contra o encantamento, (o arrebatamento) da razão

pelos meios da linguagem», ela impacta com uma espécie de evidência: seria preciso

alcançar uma razão «pura» preservando-a da fascinação de uma certa linguagem –

«literária» sem dúvida, até mesmo «filosófica». Mas como conduzir o combate? De

novo por meios de linguagem, e desde que se renunciou à esperança do Tractatus, é,

pois, de uma luta da linguagem contra si mesma que seria questão: o que restauraria

as necessidades da dialética, a menos que não se esteja à procura de uma espécie de

linguagem justa ou verdadeira da qual uma razão simples, silenciosa, decidiria,

razão ideal, tão logo posta em acusação como portando uma violência esquivada,

mestra de julgamento, autoridade de saber e de poder que reduz a linguagem a não

ser senão um meio neutro através do qual o dizer verdade se transmitiria sem se

deformar. Como se, precisamente, a razão falasse sem falar, aquilo que no rigor

pode se afirmar, mas num sentido não estritamente razoável, de onde as contradições

que tão logo param. Mesmo se nós pressentimos que o neutro está em jogo no

infinito da linguagem, ele não tem a propriedade de dar a este uma neutralidade,

sendo inapreensível, exceto ao infinito, e desde que se o apreende, sempre pronto

como questão negativa a cair seja em direção ao Uno, seja em direção ao Outro que

ele retém repetitivamente por um movimento de retração: em relação, portanto, com

o infinito da linguagem que nenhuma totalidade saberia enclausurar e que, se ele se


afirma, é fora da afirmação como da negação de que o saber e o uso nos dão a

conhecer. De onde a obrigação de não falar sobre a linguagem sem saber que se se

limita então ao limitado de um saber, mas a partir da linguagem que não é

precisamente um ponto de partida, a não ser como a exigência indizível que, no

entanto, lhe pertence.

Resta que a frase de Wittgenstein não se apaga, dizendo talvez, como creio que

alguém o disse, que a grande audácia do pensamento é a audácia de ser sóbrio, de

não se deixar embriagar pelo patético, pelo encantamento do profundo, pelo

enfeitiçamento do essencial – aquilo que é importante, mas com a condição de reter

então o outro perigo: a tentação do rigor da ordem, de sorte que a filosofia seria

também o combate da razão contra o razoável.

 «O azul do céu» é aquilo que melhor diz o vazio do céu: o desastre como

retração para fora do abrigo sideral e recusa de uma natureza sagrada.

 Confiando na linguagem entendida como o desafio provocante que nos foi

confiado da mesma maneira que nós lhe fomos confiados.

 Guardar o segredo é evidentemente dizê-lo como não-segredo, no fato de que ele

não é legível.
 A frase isolada, aforística, atrai porque ela afirma definitivamente, como se mais

nada falasse em torno dela, no fora dela. A frase alusiva, isolada também, dizendo,

não dizendo, apagando aquilo que ela diz ao mesmo tempo que ela o diz, faz da

ambiguidade um valor. «Suponhamos que eu não tenha dito nada». A primeira é

normativa. A segunda crê escapar à ilusão do verdadeiro, mas se prende à ilusão

mesma como verdadeiro, crê que aquilo que foi escrito pode se reter. A exigência do

fragmentário é exposição a esses dois tipos de risco: a brevidade não a satisfaz; em

margem ou em retração de um discurso suposto acabado, ela a reitera por cacos e, na

miragem do retorno, não sabe se ela não dá uma nova segurança àquilo que ela

extrai dele. Ouçamos essa advertência: «É preciso temer que, como a elipse, o

fragmento, o ''eu não digo quase nada e o retiro imediatamente'' potencializa a

maestria de todo o discurso retido, arrazoando de antemão todas as continuidades e

todos os suplementos por vir» (Jacques Derrida).

 A questão sempre a questionar: «O múltiplo se conduz a dois?» Uma resposta:

quem diz dois não faz senão repetir Uno (ou a unidade dual), a menos que o

segundo termo, enquanto o Outro, não seja o infinitamente múltiplo ou que a

repetição do Uno não o mantenha senão para dissipá-lo (talvez ficticiamente). Não

há, portanto, dois discursos: há o discurso e haveria o dis-curso do qual não

«sabemos» quase nada, senão que ele escapa ao sistema, à ordem, à possibilidade,

inclusive à possibilidade de palavra, e que talvez a escritura o ponha em jogo lá onde

a totalidade se deixou excedida.


 A água onde Narciso vê aquilo que ele não deve ver, não é o espelho capaz de

uma imagem distinta e definida. Aquilo que ele vê, é no visível o invisível, na figura

o infigurável, o desconhecido instável de uma representação sem presença, a

representação que não reenvia a um modelo: o anônimo que o nome que ele não tem

poderia só manter à distância. É a loucura e a morte (mas para nós, nós que

nomeamos Narciso, o estabelecemos como Mesmo desdobrado, quer dizer, sem que

ele saiba - e o sabendo – encobrindo o Outro no mesmo, a morte no vivente: a

essência talvez do segredo – cisão que não é, por isso, uma cisão -, aquilo que lhe

daria um eu [moi] dividido sem eu [je], ao mesmo tempo que o priva de toda relação

com outrem). O escoamento caudaloso de fonte, à vez, deixou ver algo de claro, a

imagem atraente de alguém e, embaralhando-a limpidamente, impede a fixidez

estável de um visível puro (do qual se poderia apropriar) e arrasta tudo – aquele que

é chamado a ver e aquilo que ele acreditaria ver – numa confusão de desejo e de

medo (termos que escondem o escondido, uma morte que não seria por isso uma

morte). Se Lacoue-Labarthe, em reflexões muito preciosas, nos relembra aquilo que

teria dito Schlegel: «Todos os poetas são Narciso», não é preciso se contentar de

reencontrar aí superficialmente a marca do romantismo para o qual a criação - a

poesia - seria subjetividade absoluta, o poeta se fazendo sujeito vivendo no poema

que o reflete, do mesmo modo que ele é poeta transformando sua vida de tal maneira

que ele a poetiza encarnando nela sua pura subjetividade, é preciso, sem dúvida,

entendê-lo ainda de modo outro: é que no poema onde ele se escreve, ele não se
reconhece, é que no poema ele não toma consciência de si mesmo, rejeitado dessa

esperança fácil de um certo humanismo segundo o qual, escrevendo ou «criando»,

ele transformaria em maior consciência a parte de experiência obscura que ele

sofreria: ao contrário, rejeitado, excluído daquilo que se escreve e sem mesmo estar

presente nele pela não-presença de sua morte mesma, é preciso que ele renuncie a

toda relação de si (vivente e morrente) com aquilo que pertence doravante ao Outro

ou permanecerá sem pertencimento. O poeta é Narciso, na medida em que Narciso é

anti-Narciso: aquilo que, desviado de si, portando e suportando o desvio, morrendo

de não se re-conhecer, deixa o rastro daquilo que não teve lugar.

 As palavras de Ovídio a reter sobre Narciso: «ele perece por seus olhos » (vendo-

se como deus – o que relembra: quem vê Deus morre) e «desgraçado, porque tu não

eras o outro, porque tu eras o outro». Por que desgraçado? A desgraça reenvia à

ausência de filiação, como de fecundidade, órfão estéril, a imagem da vicissitude

solitária. Outro sem ser outro. Isso permite os desenvolvimentos dialéticos ou, ao

contrário, mantém num rigor imóvel de onde a poesia não é excluída.

 Viver sem vivente, como morrer sem morte: escrever nos reenvia a essas

proposições enigmáticas.

 É a linguagem que seria «críptica», não somente em sua totalidade excedida e não

teorizável, mas como encobrindo bolsões, lugares cavernosos onde as palavras se


fazem coisas, o dentro fora, nesse sentido indecriptável, na medida em que o

deciframento é necessário para manter o segredo no segredo. O código não basta

mais. A tradução é infinita. E, no entanto, é preciso que encontremos a palavra-

chave que abre e não abre. Salva-se por aí alguma coisa que libera a perda e lhe

recusa o dom. «''Eu'' não salvo um foro interior senão ao pô-lo em ''mim'', à parte de

mim, fora» (Derrida). Frase de desenvolvimentos ilimitados. Mas quando o «eu

[moi]» - o outro do Eu [Je] – se apropria das palavras-coisas para nelas enterrar um

segredo e dele gozar sem gozo, no receio e na esperança de que ele seja comunicado

(partilhado com alguém outro na falta de uma parte), é com uma linguagem

petrificada que nós temos relação pela qual não pode mesmo mais se transmitir

aquilo que haveria do intransmissível. É talvez a isso que tenda «o idioma do

desejo», com suas motivações miméticas cuja soma é imotivada e que se oferecem

ao deciframento como o absoluto indecifrável. Certamente, o desejo de escrever que

a escritura transporta e que a porta, não permanece sendo o desejo em geral, mas se

refrata em uma multiplicidade de desejos escondidos ou destacados artificiosamente

cujos efeitos de não-arbitrário (anagrama, ritmo, rima interna, jogo mágico de letras)

fazem da linguagem mais «razoável» um processo contaminado, rico daquilo que ela

não pode dizer, impróprio àquilo que ele diz e enunciando no segredo (bem ou mal

guardado) a impropriedade inapreensível.

Escrever sem o desejar e sem o querer: o que é que se esconde aí naquilo que

não é o simples retorno do indesejável e do involuntário? É demasiado fácil

reconhecer nisso a paciência de escrever até sua passividade mais extrema (que
nenhuma escritura automática pôde satisfazer), como nisso se reconhece, no choque

que nisso se disjunta, o desejo de morrer, um extinguindo-se, despertando-se pelo

outro numa perpetuidade que parece enganar o tempo, pelo menos o muda, de tal

sorte que a instabilidade do desastre não possa se esgotar em declínio. ++

 «Guardar um segredo, na particularidade de uma coisa que não se diz, supõe

que se poderia dizê-lo. Não é nada de extraordinário: uma retenção antes

desagradável. - Mas se reporta já à questão do segredo em geral, ao fato (isto não é

um fato) de se perguntar se o segredo não está ligado ao caso de que haveria ainda

algo a dizer, quando tudo estaria dito: o Dizer (com sua maiúscula gloriosa)

sempre em excesso sobre o tudo está dito. - O não aparente do todo manifesto,

aquilo que se retira, se esquiva na exigência da tirada dos véus: a obscuridade do

clarão ou o erro da verdade mesma. - O não-saber após o saber absoluto que

precisamente não deixa mais pensar um «após». – Salvo sob o 'é preciso ('il faut)''

do retorno que ''dessignifica'' todo antes, como todo após, desligando-o do

presente, tornando-o inadaptável. - O segredo escapa, não é jamais limitado, ele se

ilimita. Aquilo que se esconde nele, é a necessidade de estar escondido. – Não há

nada de secreto, em lugar nenhum, eis o que ele diz sempre. – Não o dizendo, já

que, com as palavras ''há'' e ''nada'', o enigma continua a reger, impedindo a

instalação e o repouso. - O estratagema do segredo é ora se mostrar, se tornar tão

visível que ele não se vê (portanto é se apagar como segredo), ora deixar entender

que o segredo não é segredo senão lá onde falta todo segredo ou toda aparência de
segredo. - O segredo não está ligado a um “eu” [''je''], mas à curvatura do espaço

que não se saberia dizer inter-subjetiva, já que o eu [je] sujeito se reporta ao Outro

na medida em que o Outro não é sujeito, na desigualdade da diferença: sem

comunidade; o não-comum da comunicação. - ''Ele viverá doravante no segredo'':

essa frase constrangedora se elucida por aí? – É como se fosse dito que para ele a

morte se cumpriria na vida. – Deixemos ao silêncio essa frase que não quer talvez

dizer senão o silêncio».

 Interrogo essa afirmação que não se pode negligenciar nem tratar legalmente: «A

ética da revolta se opõe a todo discurso clássico do Soberano Bem, como a toda

pretensão moral ou imoral, no fato de que ela constroi, protege, administra, um lugar

vazio, deixando vir a nós uma outra história» (Guy Lardreau, Christian Jambet).

Uma primeira observação: a revolta, sim, como a exigência da virada em que o

tempo muda, o extremo da paciência estando em relação com o extremo da

responsabilidade. Mas não se pode então assimilar revolta e rebelião. A rebelião não

faz senão reintroduir a guerra, quer dizer, luta para a maestria e a dominação. O que

não quer dizer que não seria necessário lutar contra o mestre pelo meio de sua

maestria, mas que ao mesmo tempo, à vez, há lugar de fazer apelo sem socorro à

«distorsão infinitamente multiplicada», lá onde maestria e desejo, no reino absoluto

que eles exercem, se chocam sem que o saibam (precisamente porque eles sabem

tudo, não sabendo senão o tudo) com o outro múltiplo que jamais se resolve em um,

uno. E o que se pode dizer da outra história, se seu traço é não ser uma história, nem
no sentido de Historie, nem no sentido de Geschichte (que implica a ideia de

agrupamento), e também nesse fato de que nela nada advém de presente, que

nenhum evento ou advento a mensura ou a escande, que estrangeira à sucessão

sempre linear, mesmo quando esta está encabrestada, ziguezagueante tanto quanto

dialética, ela é projetamento de uma pluralidade que não é aquela do mundo ou do

número: história em demasia, história «secreta», separada, que supõe o fim da

história visível, enquanto ela se priva de toda ideia de começo e de fim: sempre em

relação com um desconhecido que exige a utopia do conhecer tudo, porque ele a

desborda – desconhecido que não se liga ao irracional para além da razão, nem

mesmo a um irracional da razão: talvez retorno a um outro sentido no trabalho

laborioso da « dessignificação». A outra história seria uma história fingida, o que

não quer dizer um puro nada], mas chamando sempre o vazio de um não-lugar, uma

falta onde ela falta a si mesma: incrível porque ela está em ausência em relação a

toda crença.

 Memorial: falar de Wittgenstein (por exemplo), é ir até alguém que não se

conhece, que - como filósofo – não queria sê-lo, não queria ser conhecido, do

mesmo modo que ensinou a contragosto, do mesmo modo que a maior parte do que

se publicou é uma publicação desviada. Daí - talvez - que tantas de suas

interrogações sejam fragmentárias, abram sobre o fragmentário. Não se pode fazer

dele um destruidor. Aquele que interroga vai sempre além, e a simplicidade de um

pensamento que abala, pertence sempre ao respeito do pensamento, na recusa do


patético. Se ele dá a impressão de estar no intervalo abismal da história da filosofia,

ele faz pressentir não somente que ele é um isolado – ninguém pode sê-lo -, mas que

há uma história não histórica daquilo que não se sabe nomear senão como

pensamento.

 Aquele que espera, precisamente não te espera. É assim que tu és, entretanto,

esperado, mas não a título vocativo: não chamado.

 Por que o Deus Uno? Por que Uno está de alguma maneira acima de Deus, do

Deus que tem um nome pronunciável? Uno não é evidentemente um número, «uno»

não se opõe a «vários»; o monoteísmo, o politeísmo, isso não faz a diferença. O

zero, também, não é um número, não mais que uma ausência de número, nem muito

menos um conceito. Talvez o «Uno» esteja destinado a preservar «Deus» de todo

qualificativo, a começar por «bom» e, sobretudo, «divino». O «Uno» é o que menos

autoriza a união, mesmo que fosse com o infinitamente longínquo, na mais forte

razão o remonte e a confusão místicos. O rigor e a impossibilidade do Uno sem

unidade não permitem mesmo lhe dar por visada a transcendência. O Uno não tem

horizonte, o horizonte por sentido. O Uno não é mesmo único, não mais do que ele

seria singular. Daquilo que subtrai o Uno a toda dialética, como a todo movimento

de pensamento, vem seu prestígio sobre o pensamento. Pensar é se encaminhar em

direção ao pensamento do Uno que rigorosamente escapa ao pensamento, ainda que,

em direção ao Uno, ele esteja virado, como a agulha em direção ao pólo que ela não
indica - virado? Antes: desviado. A severidade do Uno que não prescreve nada,

evoca o que há de imprescritível na Lei, superior a todas as prescrições, e que é tão

alta que não existe altura onde ela se revela. A Lei, pela autoridade acima de toda

justificação que se tende a lhe reconhecer (de sorte que não importa que ela seja

legítima ou ilegítima), abaixa já o Uno que, não sendo nem alto nem baixo, nem

único, nem secundário, admite todas as equivalências que o deixam intacto: o

Mesmo, o Simples, a Presença. Mas se pode muito bem também dizer que o Uno

requerer melhor ainda todas as noções de oposição que não lhe são adversas senão

para reconhecê-lo na transgressão mesma. Quando provamos a necessidade de

pensar com coerência ou quando estamos mal à vontade porque não unificamos

nosso saber, é somente por causa da unidade ordinária ou não seria por uma

reverência esquecida para o Uno sem referência, como se o sente muito bem cada

vez que se lhe encontram traduções, éticas ou não, como o Super-Ego, até o «eu[je]»

transcendental? O que se passaria se se pudesse fazer o Uno fracassar? Como fazer o

Uno fracassar? Talvez falando, por uma espécie de palavra. É sem dúvida o combate

do desastre. Foi de uma certa maneira o combate de Kafka, combatendo para o Uno

contra o Uno?

 Hölderlin: « De onde vem, pois, por entre os homens o desejo doentio de que não

haja senão um e que não haja senão algo de uno?»


 Combate da passividade, combate que se anula em extrema paciência e que o

neutro não tem êxito em indicar. Combate para não nomear o combate. Fora de

referência a matéria ou o inimaginável real, assim como é fora de referência o Uno -

o que não constitui nenhum dualismo, pois como fazer entrar numa conta, até na

diferença de um discurso aquilo que se dá ao mesmo tempo como sua incondição ou

sua prévia interrupção?

 O que Kafka nos dá, dom que não recebemos, é uma espécie de combate pela

literatura para a literatura, combate do qual ao mesmo tempo a finalidade escapa e

que é tão diferente daquilo que conhecemos sob esse nome ou sob outros nomes que

o desconhecido mesmo não é suficiente para torná-lo sensível para nós, já que ele

nos é tão familiar quanto estrangeiro. «Bartleby o escritor» pertence ao mesmo

combate, naquilo que não é a simplicidade de uma recusa.

 « Admitir a ação da literatura sobre os homens – esta talvez seja a última

sabedoria do Ocidente em que o povo da Bíblia se reconhecerá» (Levinas).

 É estranho que K., no fim do Castelo, tenha sido por certos comentadores

prometido à loucura. Desde o começo, ele está fora do debate razão-desrazão, na

medida em que tudo o que ele faz, é sem relação com o razoável, entretanto

absolutamente necessário, quer dizer, justo ou justificado. Do mesmo modo, não

parece possível que K. morra (condenado ou salvo: isso é quase sem importância),
não somente porque seu combate não se inscreve nos termos de viver e de morrer,

mas porque ele está demasiado cansado (seu cansaço, único traço que se acentua

com a narrativa) para poder morrer: para que o advento de sua morte não se mude

em inadvento interminável.

 O messianismo judeu (em certos comentadores) nos deixa pressentir a relação do

evento e do inadvento. Se o Messias está às portas de Roma em meio aos mendigos

e aos leprosos, pode-se crer que seu incógnito o protege ou impede sua vinda, mas

precisamente ele é reconhecido; alguém, pressionado pela obsessão da interrogação,

lhe pergunta: «Quando tu virás?» O fato de estar lá não é, pois, a vinda. Junto ao

Messias que está lá, deve sempre ressoar o apelo: «Vem, Vem». Sua presença não é

uma garantia. Futura ou passada (é dito, ao menos uma vez, que o Messias já veio),

sua vinda não corresponde a uma presença. O apelo também não basta; há condições

– o esforço dos homens, sua moralidade, seu arrepender-se - que são conhecidas; há

sempre outras que não são conhecidas. E se ele chega à questão: « Para quando a tua

vinda?», o Messias responde: «Para hoje», a resposta certamente é impressionnante:

é, pois, hoje. É agora e sempre agora. Não há que se esperar, ainda que seja como

que uma obrigação esperar. E quando é agora? Um agora que não pertence ao tempo

ordinário, que necessariamente o abala, não o mantém, o desestabiliza, sobretudo se

se lembra que esse «agora» fora de texto, de um relato de severa ficção, reenvia a

textos que o fazem de novo depender de condições realizáveis - irrealizáveis:

«Agora por pouco que tu me prestes atenção, ou se tu queres então escutar minha
voz». Enfim o Messias, contrariamente à hipóstase cristã, não tem nada de divino:

consolador, o justo dos justos, ele não está mesmo seguro de que ele seja uma

pessoa, alguém singular. Quando um comentador diz: esse talvez seja eu, ele não se

exalta por aí, cada um pode sê-lo, deve sê-lo, não o é; pois seria deslocado falar do

Messias em linguagem hegeliana: «a intimidade absoluta da exterioridade absoluta»,

tanto mais quanto o advento messiânico não significa ainda o fim da história, a

supressão de um tempo mais futuro que nenhuma profecia saberia anunciar, assim

como se pode lê-lo nesse texto misterioso: «Todos os profetas – não há exceção –

não profetizaram senão para o tempo messiânico [a epokhé?]. Quanto ao tempo

futuro, qual olho o viu fora de Ti, Senhor, que agirás para aquele que te é fiel e

permanece em espera» (Levinas e Scholem).

 Por que o cristianismo teve necessidade de um Messias que seja Deus? Não basta

dizer: por impaciência. Mas que nós divinizemos os personagens históricos, é, pois,

por um subterfúgio impaciente. E por que a ideia do Messias? Por que a necessidade

do acabamento na justiça? Por que não suportamos, não desejamos aquilo que é sem

fim? A esperança messiânica - esperança que é também pavor – se impõe, quando a

história não aparece politicamente senão como um tohu-bohu8 arbitrário, um

processo privado de sentido. Mas se a razão política devém por sua vez messiânica,

essa confusão que retira sua seriedade à procura de uma história razoável

(compreensível) como à exigência de um messianismo (cumprimento da

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Nota do tradutor: de uma palavra hebraica que significa "caos anterior à criação do mundo").
moralidade), dá testemunho somente de um tempo tão angustiante, tão perigoso, que

todo recurso parece justificado: pode-se tomar recuo quando tem lugar Auschwitz?

Como dizer: Auschwitz teve lugar?

 O julgamento final segundo a expressão alemã: o dia mais jovem, o dia para além

dos dias; não que o julgamento esteja reservado para o fim dos tempos; ao contrário,

a justiça não espera, ela está a cada instante por cumprir, render, meditar também

(aprender); cada ato justo (há isso?) faz do dia o último dia ou – como diz Kafka - o

realmente último, não se situando mais na seqüência ordinária dos dias, mas do

ordinário mais ordinário fazendo o extraordinário. Aquele que foi contemporâneo

dos campos é para sempre um sobrevivente: a morte não o fará morrer.

 A substituição da lei pelas regras parece, nos tempos modernos, uma tentativa não

somente para desmistificar o poder ligado ao interdito, mas para liberar o

pensamento do Uno propondo ao costume a multiplicidade das possibilidades não

ligadas da técnica. Mas sempre houve uma ambiguidade sob o nome de lei: sagrada,

soberana, ela reclama para si a natureza, exalta-se dos prestígios do sangue, ela não

é poder, mas onipotência – não há nada senão ela; aquilo contra o qual ela se exerce

não é nada: nenhuma humanidade, somente mitos, monstros, fascinações. A lei

judaica é santa e não sagrada: ela põe no lugar da natureza que ela não investe com a

magia do pecado, relações, decisões, mandamentos, quer dizer palavras que

obrigam; no lugar do étnico o ético; os ritos são religiosos; eles, entretanto, não
transformam o cotidiano em afetividade religiosa, buscam, antes, aliviá-lo do tempo

sem história ligando-o em prática, em serviço, numa rede meticulosa de

consentimento sob o dia feliz das lembranças, das antecipações históricas. Resta o

julgamento. Ele é reenviado àquilo que é o mais alto: Deus só julga; quer dizer, de

novo o Uno. O Uno que libera no fato de que não há céus onde ele possa reinar, nem

medida com que se medir, nem pensamento que possa rebaixá-lo a ser só pensável –

de onde a tentação de sua dissolução em ausência ou seu retorno na inexorabilidade

da Lei que se pratica menos do que ela faz tremer, que releva menos do estudo que

da leitura fascinada, reverencial. São Paulo quer nos franquear da Lei: a Lei entra no

drama do sagrado, da tragédia sagrada, da vida nascida da morte, inseparável dela.

 As leis - o prosaico das leis – liberam talvez da Lei substituindo a majestade

invisível do tempo pela imposição multiplicada do espaço; do mesmo modo, o

regulamentar suprime aquilo que o poder evoca, sempre primeiro, pelo nome de lei,

assim como os direitos que a dobram, mas estabelece o reino da técnica, a qual,

afirmação do puro saber, investe tudo, controla tudo, submete todo gesto à sua

gestão, de sorte que não há mais possibilidade de liberação, já que não se pode mais

falar de opressão. O processo de Kafka pode ser interpretado como um

encabrestamento dos três reinos (a Lei, as leis, as regras): interpretação entretanto

insuficiente, na medida em que seria preciso, para torná-la admissível, supor um

quarto reino que não releva dos três outros – aquele do domínio saliente da própria

literatura, ao passo que esta recusa esse ponto de vista privilegiado, ao mesmo
tempo que não se deixa depender de uma outra ordem ou de qualquer ordem que

seja (pura inteligibilidade) ao nome do qual se poderia simbolizá-la.

 Em Bartleby, o enigma vem da «pura» escritura que não pode ser senão cópia (re-

escritura), da passividade na qual essa atividade desaparece e que passa insensível e

repentinamente da passividade ordinária (a re-produção) ao além de todo passivo:

vida tão passiva, tendo a decência escondida do morrer, que ela não tem a morte por

saída, não faz da morte uma saída. Bartleby copia; escreve incessantemente e não

pode parar para se submeter àquilo que se assemelharia a um controle. Preferiria

não (fazer). Essa frase fala na intimidade de nossas noites: a preferência negativa, a

negação que apaga a preferência e se apaga nela, o neutro daquilo que não há nada a

fazer, a retenção, a doçura que não se pode dizer obstinada e que falta à obstinação

com essas poucas palavras; a linguagem se cala se perpetuando.

 Aprende a pensar com dor.

 O pensamento parece imediato (eu penso, eu existo [je suis]), e, no entanto, está

em proporção com o estudo; é preciso se levantar cedo para pensar, é preciso pensar

e jamais estar seguro de pensar; não estamos bastante desvelados: velar além da

vigília; a vigilância é a noite que vela. Dor, ela desune, mas não de uma maneira

visível (por uma deslocação ou uma disjunção que seria espetacular): de uma
maneira silenciosa, fazendo calar o ruído por trás das palavras. A dor perpétua,

perdida, esquecida. Ela não torna o pensamento doloroso. Não se deixa socorrer.

Sorriso pensativo da face não esfacelante que o céu a terra desaparecidos, o dia a

noite passados um no outro, deixam naquele que não olha mais e que, votado ao

retorno, jamais partirá.

 A palavra escrita; não vivemos mais nela, não que ela anuncie: «ontem foi o fim»,

mas ela é nosso desacordo, o dom da palavra precária.

 Partilhemos a eternidade para torná-la transitória.

 Aquilo que resta para dizer.

 Solidão que irradia, vazio do céu, morte diferida: desastre.

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