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filosofia da educação

texto 3

O CONHECIMENTO ESCOLAR
e a querela dos meios e dos fins da educação

No texto anterior, discutiu-se a natureza do conhecimento próprio a uma «teoria da

educação» – aquele que se constitui para fornecer orientação e lucidez às deliberações

requeridas pela prática educativa. A interrogação que motiva essas linhas tem ainda por objeto

o conhecimento, dessa vez entendido como um corpo de saberes que, acredita-se, devem ser

compartilhados por todos os cidadãos; e que é instituído como tal pela tradição, pelas leis de

ensino, por dirigentes e técnicos, pelos professores. Assim, no vasto e indeterminável conjunto

que se poderia chamar de conhecimento humano, o conceito a ser aqui examinado refere-se a

um seu subconjunto bastante específico – a tal ponto que, por vezes, tende a se isolar

inteiramente de seu contexto social de produção: o «conhecimento escolar».

Ora, se as reflexões dos textos 1 e 2 procedem, a análise a ser realizada se voltará, então,

não para o terreno das determinações objetivas, das regularidades observáveis que

caracterizam a ciência, para daí tentar deduzir logicamente o sentido e o conteúdo dessa noção,

mas para o terreno das criações humanas, do qual o conhecimento escolar retira todo o seu
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significado. Em outras palavras, em razão da natureza própria à educação, o presente exame

deverá nos guiar até o domínio das razões políticas, e não para o domínio natural (do qual o

homem participa, sem entretanto, fixar suas leis) ou para o domínio da técnica (inteiramente

fabricado pelo homem a partir dessas leis já dadas, ainda que, eventualmente, na tentativa de

superá-las).

Deve-se de fato à invenção, na modernidade, de uma instituição social específica,

encarregada de prover uma educação básica comum para todos – a Escola pública – a idéia e a

exigência de estabelecimento de conjunto definido e claro de conhecimentos associados a essa

educação.

A educação tem, sem dúvida, uma base natural, cuja força condicionante foi mais ou

menos colocada em relevo, segundo as distintas correntes filosóficas. Mas nenhuma delas pôde

negar que o ser humano nasce imperfeito ou, como diria Jean-Jacques Rousseau, perfectível. Há

educação porque sempre há, para o humano, um horizonte de perfectibilidade. Esse caráter

inacabado do ser humano levou muitos filósofos, inclusive o próprio Rousseau, a afirmar que a

liberdade humana é uma «lei natural». E, de fato, caracteriza a natureza humana o fato de que

ela não está inteiramente determinada: para ela, os condicionamentos naturais têm um limite,

podem ser desafiados ou mesmo redefinidos. Mas, por isso mesmo, a dimensão natural do

humano não é suficiente para justificar o que deve ser a educação, o que a tornou tal como a

conhecemos e os sentidos que para ela construímos.


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A educação tem, igualmente, uma dimensão técnica, e uma dimensão científica. A

dimensão científica diz respeito, quase que inteiramente, à base biológica de determinação da

existência humana. Por importante que seja, no entanto, ela não concerne à deliberação sobre

os fins da educação, mas às condições das quais se parte, que podem contribuir ou trazer

obstáculos para a ação educativa. A dimensão técnica, quanto a ela, dependendo totalmente

dos fins assinalados, tem ou deveria ter sua validade sempre limitada pelo contexto de

aplicação – que, no caso do humano, é a cada vez singular e permanentemente instável.

Tampouco, portanto, as dimensões técnica e científicas são suficientes para explicar

inteiramente e, muito menos ainda, apesar do que muitos já disseram, para produzir os sentidos

da educação.

Não sendo inteiramente determinadas por leis naturais e não podendo ser implicadas do

raciocínio científico ou das invenções técnicas, é preciso considerar, tanto a educação entendida

como atividade genérica, como a forma histórica que assume a partir da modernidade, a Escola

pública, como criações sociais. Eis o que implica o termo «criação»: não há, para aquilo a que se

refere, nenhuma «explicação», isso é, nada que determine a priori e exaustivamente seu

aparecimento.

Não se pode fazer da educação, tal como está instituída atualmente, uma simples

conseqüência de leis naturais, ou funcionais, ou científicas, ou sequer econômicas. Não há

explicação, porque não há como isolar o conjunto de causas diretamente responsáveis pela
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produção do fenômeno tal como ele é. Por isso, o conhecimento que podemos ter sobre elas é

elucidação – tarefa eminente da reflexão filosófica. E o(s) sentido(s) que podemos produzir para

elas é sempre o resultado de uma deliberação – tarefa eminentemente política.

Por essa razão, para examinar o conhecimento escolar é preciso elucidar um sentido que

nasce, na melhor perspectiva, de uma deliberação coletiva – de uma escolha social; e, na pior,

das imposições de sentido realizadas pelo poder dominante, quando este não é a própria

coletividade. Mas que, como dissemos, de forma geral é derivado da tradição e das escolhas dos

representantes públicos e dos «especialistas» em educação.

Do ponto de vista da aspiração democrática, a elucidação da educação só pode ter um

fim: a deliberação comum, de que o professor participa em situação privilegiada quando está

atuando, quando está na sala de aula. É este poder de deliberação – exercido, ou não, pela

sociedade, de forma geral, e exercido, ou não, pelo professor, de forma particular – que cria a

Escola, que cria o conhecimento escolar, como sentido comum e compartilhado pelos membros

da coletividade.

Mas é preciso acrescentar, ainda, alguns comentários sobre essa deliberação. Em seu

sentido total, ela não é apenas a decisão entre alternativas dadas, já instituídas, mas é a própria

criação das alternativas que se apresentam. Se a filosofia questiona: «o que é o conhecimento

escolar?», só a praxis pode decidir: «o que deve ser o conhecimento escolar?»


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O conhecimento escolar como cerne da atividade educativa: meio ou fim?

Havendo sido determinada a noção de conhecimento escolar, um novo esclarecimento

ainda resta a ser feito: também aqui, não se estará lidando com qualquer conhecimento

associado à escola: não se estará mencionando o conhecimento teórico sobre a escola, ou no

conhecimento técnico relativo à função de ensinar, que é sempre um saber-fazer.

Está aqui em questão o conhecimento como conjunto particular (posto que

especificamente escolar) de conhecimentos não particulares (posto que sociais) que são, a uma

só vez, veiculados pela escola e veículos de educação.

Sobre estes últimos tipos de conhecimento, é importante frisar que eles não são

produzidos na Escola, apesar do que se quis afirmar nos últimos anos, sob pretexto de valorizar

o professor e questionar a redução do ato de ensinar à mera repetição dos conteúdos. Não

restam dúvidas de que uma «mera repetição» é incompatível com a dignidade humana: mas

que sentido faz dizer que o professor, quando ensina uma idéia, quando explicita um raciocínio,

quando expõe, enfim, aquilo que conhece mas que não produziu está, forçosamente, limitando-

se a uma mera repetição? As máquinas realizam «meras» repetições, sucessivamente e sem

falhas: mas jamais o humano. Conhecer já é criar (é «imaginar», dizia Aristóteles), não se

conhece (pensa) sem criação: pensar, conhecer é, para o humano, criar sentido para si. Há, é

claro, uma grande diferença entre a criação do novo conhecimento (que é novo para a

sociedade, e não apenas para aquele que o recebe e o comunica) e a criação como atividade
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propriamente humana – que, aliás, pode servir tanto à produção do sublime quanto do

absolutamente trivial, do relevante para a humanidade assim como dos horrores que também a

caracterizam. A situação, portanto, que se busca prevenir não se origina da necessidade de o

professor «repetir» um conteúdo, mas do fato de ele não mais se preocupar em torná-lo,

primeiramente, seu; de ele não se ter realmente apropriado desse conteúdo.

O conhecimento escolar não é produzido na Escola, mas isso não quer dizer que a Escola

não produza saber: ela decerto produz, por meio da reflexão e das deliberações que a prática

requer do professor, um saber prático, o «saber-fazer» da Escola. Não faria sentido se fosse

diferente: uma Escola que veiculasse um saber inteiramente produzido em seu próprio interior

seria uma instituição fechada sobre si mesma, que não poderia ter por finalidade senão sua

perpetuação, e não a construção da sociedade – uma espécie de gueto, uma espécie de seita. É,

portanto, importante frisar a natureza social dos conhecimentos escolares: uma das mais

primordiais finalidades do modelo em que se baseia a educação escolar atual, a Escola pública,

sempre foi justamente a de fazer com que todos participassem de uma mesma cultura –

condição e exigência da vida comum.

Na medida em que reflete e delibera sobre essa tarefa, a Escola pode contribuir para

constituir o conhecimento escolar – não porque está habilitada a «produzir» conhecimentos

específicos de diferentes domínios, científicos, técnicos e, mesmo, sociais, o que evidentemente

não é o caso – mas porque é levada a uma participação ativa na definição desse conjunto
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particular, criando o significado, a abrangência e os limites do que ela passa a chamar de

conhecimento a ser comunicado aos alunos.

No contexto das sociedades modernas, essa tarefa é formalmente confiada aos homens

políticos e aos burocratas; mas, na prática, ela é cotidianamente reassumida pelos professores a

quem a sociedade confia a missão de educar seus filhos. Sobretudo para esses últimos, tal

responsabilidade implica na exigência de refletir e deliberar sobre o que deve ser o

conhecimento escolar, mas também sobre o que não deve ou sobre o que não pode ser esse

conhecimento. E depende, evidentemente, do próprio sentido que se atribui à educação.

Assim, quando nos debruçamos sobre a questão de saber se o conhecimento escolar é

meio ou é fim da educação, é antes de mais nada o embate pela produção do sentido do que é a

educação e a escola que se está travando. Meio ou fim, questão que deve ser entendida como

supondo, necessariamente: «qual é a finalidade da educação» e «o que vem a ser ensinar»?

Absolutamente essenciais, essas indagações descrevem uma interrogação tão antiga

quanto a educação, entendida como atividade intencional e refletida das sociedades.

Historicamente, essa reflexão essencial assumiu a forma de polêmicas específicas – como a da

filosofia contra a sofística e aquela que define, a partir da modernidade, pela oposição entre

educar e instruir.
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De forma que, ao fazer alusão a três momentos diferentes dessa trajetória, pretende-se

contribuir para a elucidação e para a livre e racional deliberação, pela sociedade e pelos

educadores, de nosso objeto: o «conhecimento escolar».

Platão: o conhecimento como conversão

Em Platão, a reflexão sobre a educação se deduz e se anuncia pela interrogação acerca do

conhecimento humano: seus objetos, suas condições, suas finalidades e suas limitações. É,

portanto, pelo tema do conhecimento que Platão nos introduz ao que é, por excelência, seu

pensamento educacional, claramente exposto em longas passagens da República e, mais

especificamente, em diálogos como Protágoras e Mênon.

O Protágoras, em particular, deve ser descrito como um diálogo inteiramente consagrado à

educação. E é, também, um texto bastante provocativo, em que Platão, encenando o confronto

de seu mestre com o famoso sofista, submete os dois personagens a um curioso e muito

filosófico jogo de troca-troca. A discussão gira em torno da possibilidade de se ensinar a virtude

– ou, em termos atuais, de se educar o homem e o cidadão. No início do texto, deparamo-nos

com um Sócrates que, paradoxalmente, sustenta que a virtude não pode ser ensinada, no que se

faz alvo de enfáticas objeções por parte de Protágoras. Ao final do texto, no entanto, produz-se

uma reviravolta, e o filósofo passa a afirmar a possibilidade de se ensinar, contra a qual o sofista

opõe, agora, uma negativa formal.


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O enigma pode, no entanto, ser desvendado, se levarmos em conta o profundo trabalho de

desconstrução conceitual a que Sócrates submete as afirmações daquele que era, talvez, o

maior sofista de sua época. Pois, ao longo do texto habilmente conduzido por Platão, torna-se

patente que Protágoras, mestre por profissão, é incapaz de dizer o que ensina e por que ensina.

Ora, o objeto do ensino socrático é muito claro: é a epistéme, a ciência que visa à verdade. Para ele, o

único conhecimento que se deve ensinar é aquele que tem por objeto não a dóxa, a opinião, a ilusão,

mas a Verdade, única, ontológica. Por isso ele ataca um modelo de educação que é generalizado em sua

época, que é baseado na dóxa e que se pretende ferramenta de construção política da cidade.

…segundo Protágoras, a virtude é ensinada, tal como as outras artes, e


este ensinamento existe sob mil formas nas poleis*; se a educação e as
leis fracassam na tarefa de corrigir certas naturezas más, isto é
facilmente explicável: em nenhum tipo de arte a educação é todo-
poderosa.1

Para Platão, porém, o verdadeiro conhecimento é todo-poderoso: ele é o responsável

por, nada mais, nada menos, do que a construção ética no espaço humano e no espaço político.

No Protágoras, a covardia, a ignorância, a injustiça, o desregramento, enfim, todos os vícios se

resumem, na verdade, em um só: a ignorância2. E, como a virtude – qualidade que define o

cidadão e o homem – depende do conhecimento exato e da inteligência rigorosa das coisas, o

problema já pode ser deslocado: não se trata tanto de definir se a virtude pode ou não ser

*
poleis é o plural de pólis
1
Alfred Croiset, Notice. Oeuvres Complètes, Paris : Belles Lettres, tomo III, pp. 3-15. Grifos nossos.
2
Platão, Protágoras, 355a-360e.
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aprendida, mas de que maneira e em que condições é possível conhecer. Pode-se, portanto, ler

o Protágoras como um feroz depoimento contra as pretensões de um tipo de educação do

humano e do cidadão que, longe de buscar o que deve ser, abdica da deliberação ética em

nome da estratégia: uma educação que, como querem os sofistas, se proclama a melhor

possível (dentro, diríamos, das circunstâncias dadas). Uma educação que, nascida do relativismo,

ao invés de se contrapor ao senso comum, o perfaz: como Protágoras afirma, o ensinamento da

virtude era dispensado ao jovem grego, desde a mais tenra idade, pela família, pelos

educadores profissionais e pela própria pólis3.

Para Platão, se a verdade não pode ser ensinada, no sentido «técnico» e pragmático que os

sofistas pretendem, por vezes, lhe atribuir, é por que supõe uma verdadeira conversão: o conhecimento

da verdade é «uma atitude e uma regra de vida»4, a adesão a um ideal radical. Na polêmica que

modernamente opõe educar e instruir, definida por Sócrates como oposição entre a educação como

técnica ou como filosofia, a posição de Platão não deixa espaço para dúvidas. O conhecimento que a

educação deve buscar tem o sentido mais pleno possível: implica, primeiramente, um rigor e uma

indagação constantes mas também, indissociavelmente, numa modificação profunda. Não é pura

técnica, é razão que interroga. Mas não é também qualquer razão, senão aquela que se interroga

continuamente, e que supõe a conformidade radical do desejo. Em suma, é paixão.

3
Protágoras, 325c
4
L. Robin, «Avant-propos» às Oeuvres complètes de Platão, vol. I. Paris: Gallimard. Cf., ainda, em Platão, o Fedro:
ensinar não é inculcar na alma idéias acabadas e vazias, mas fertilizar a alma.
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Conhecimento e auto-conhecimento: a crítica de Rousseau

Em que pese, no entanto, toda nossa admiração por Platão, não devemos manter ilusões

quanto às dimensões de seu ideal de conhecimento: como relembra Alexandre Koyré, o filósofo

ateniense jamais pretendeu que o conhecimento fosse acessível a todos5. E, com efeito, será

preciso esperar o momento das Luzes para que o acesso à filosofia e ao saber não somente se

transforme em projeto político, mas seja proclamado como necessidade universal – condição

para a existência da pólis, como já afirmava Protágoras6 e exigência da emancipação humana.

O ideário iluminista testemunha uma resistência bastante ilustrativa aos usos atuais das duas

noções, educar e instruir: de forma quase generalizada, a idéia da formação do cidadão remete àquela

da instrução da razão, como desenvolvimento de uma autonomia que, somente ela, dotará o indivíduo

das condições para gozar, de fato, das prerrogativas que, de direito, a cidadania legal passa a prever. As

tensões a que esta concepção está exposta decorrem, não de um sentido mais aligeirado ou reduzido da

educação, mas da convicção, ou não, de que é preciso, também, educarem-se os sentimentos (ou, no

dizer da época, «educar o ser sensível», suas paixões) de forma a garantir a adesão moral dos cidadãos

aos valores da revolução7. Para muitos, como, por exemplo, para Condorcet, a educação dos

sentimentos seria um recuo que igualaria os gloriosos tempos da Razão moderna, emancipada, a épocas

ultrapassadas, quando, por falta de uma instrução eficaz e generalizada, o povo era mantido em sua

ignorância, e não podia aceder aos argumentos das Luzes.

5
id., ibidem, p. 21.
6
Platão, Protágoras, 324e.
7
Cf., a este respeito, o excelente trabalho de B. Baczko, Une Éducation pour la démocratie. Textes e projets de
l’époque révolutionnaire. Paris: Garnier Frères, 1982.
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Ninguém desconhece que é desse projeto de racionalidade que se origina o verdadeiro

fetichismo da ciência e da técnica, em nome das quais o poder de «especialistas» (em política, em

economia, em ciência, etc.) pretende até hoje exercer seu domínio sobre a sociedade. Num primeiro

momento, porém, ele se identifica com a luta pela igualdade e pela justiça travada nas sucessivas

revoluções da modernidade. O conhecimento é o verdadeiro instrumento de criação democrática, de

construção de uma nova sociedade e de um novo homem. Ali onde falharam as leis, que não puderam

concorrer com as desigualdades de fato, historicamente instituídas, venceria a difusão do saber, capaz

de libertar o homem e a sociedade de seus vícios. Como Condorcet, os mais entusiastas previam,

inclusive, o desenvolvimento ilimitado do espírito humano – desenvolvimento da espécie, tomada como

um todo e de cada indivíduo, através do trabalho da Razão sobre a sucessão de gerações humanas.

É nesse contexto, e do alto das vantagens que nos concedem um olhar retrospectivo,

que vale a pena considerar a posição de Rousseau, que insiste em afirmar, quase que

solitariamente, que

A inteligência humana tem seus limites; e não só um homem não pode


tudo saber, ele não pode nem mesmo saber, inteiramente, o pouco que
sabem todos os homens.8

Contraposta ao ideário iluminista, a frase soa como um desafio direto, lançado contra a

crença irrestrita no progresso da razão e contra a inspiração enciclopedista. Mas ela visa, mais do

que isso, a adjetivar o próprio fruto do progresso, a propor uma adesão modulada – para não

dizer seletiva – a um conhecimento destituído de seu prestígio inabalável:

8
Rousseau, O Emílio ou da Educação, livro III (Paris: Ed. Gallimard, Oeuvres complètes, p. 213).
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Dentre os conhecimentos que nos são acessíveis, alguns são falsos,


outros inúteis, outros servem para alimentar o orgulho daqueles que os
detêm. Somente o pequeno número dos que contribuem, realmente,
para nosso bem-estar é digno das atenções de um homem sábio e, por
conseguinte, da criança que se pretende transformar em tal. Não se
trata de saber o que é, somente o que é útil9.

Em contraposição à radicalidade platônica, que nos oferece um modelo quase religioso

de amor ao conhecimento, Rousseau apresenta uma resposta não menos radical, na forma de

crítica à adesão indiscriminada ao saber. São, de fato, os alvos de seu discurso a impostura, a

falsidade, as injustiças e dominações que se estabelecem em nome da valorização exacerbada

do conhecimento. Extremista e polêmico, Rousseau persegue seus objetivos até o limite da

provocação mais extrema: para ele, não é tanto a natureza, mas a ação humana que se deve

regenerar através da educação. Por isso, face ao entusiasmo (quase platônico) que sua época

reservava ao conhecimento humano e suas possibilidades, Rousseau realiza uma reabilitação da

ignorância que, segundo ele, «jamais fez mal». Para o autor d´O Emílio, «…somente o erro é

funesto …nunca nos perdemos por aquilo que não se sabe, mas por aquilo que se crê saber»10.

Porém, cabe precisar: a ignorância de que nos fala Rousseau nada tem a ver, longe de lá,

com o conhecimento comum da sociedade. A ignorância que ele valoriza é, na verdade, uma

espécie de miragem, reflexo do que seria um hipotético homem natural, regido apenas pelos

instintos que vêm da natureza. O autor sabe perfeitamente bem, no entanto, que esse homem,

«se jamais existiu», está para sempre perdido. Em sociedade, o senso comum ou, como ele o

9
Id, ibid.
10
Id., ibid.
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denomina, a «opinião» definem o lado perigoso e nocivo do conhecimento. Rousseau sabia que

a ciência humana não era neutra: investia, portanto, contra a opinião, relativa ao desejo de

distinção, à vontade de amealhar reconhecimento e sobressair-se dentre os demais. Ao invés

disso, Rousseau sustentava a necessidade de uma educação dos sentidos, dos afetos, dos ideais.

Uma educação que não recusa os mitos, pelas crenças, os heróis, a emulação e a imitação dos

modelos que Platão tanto desprezava (Protágoras, 325 c). E isso por que, para ele, o saber

erudito, e não os sentimentos, era a raiz dos vícios sociais, da desigualdade, das disputas e

injustiças introduzidas no espírito humano com o advento da vida social. No entanto, Rousseau

também define a curiosidade como um instinto natural, motor do aperfeiçoamento do homem.

Curiosidade que poderíamos associar, sem grande infidelidade, acreditamos, à obra

rousseauniana, ao espírito de interrogação que obra contra o instituído e que conduz o homem

a buscar, através de sua própria experiência, suas descobertas: na natureza e, sobretudo, na sua

própria natureza, mas não, necessariamente, nos livros…

E é essa a chave para o enigma rousseauniano: em sua crítica contra os preconceitos e

contra as verdades estabelecidas, o autor, que considera que todos os males vêm da ação

humana, propõe uma nova versão, mais afirmativa, do constructo sui socrático. Na medida em

que todo o mal provém da dominação de uns sobre os outros, a liberdade é a capacidade

humana de se ter como auto-referência absoluta, em detrimento dos costumes, das pressões

sociais, da opinião de outrem. A verdadeira educação é aquela que prepara o indivíduo para
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essa liberdade, para um conhecimento e para uma deliberação ética que devem, a cada

momento, basear-se numa adesão interior a valores livremente eleitos.

O conhecimento que não é impostura é, em suma, auto-conhecimento. E a educação,

mais do que nunca, jamais poderá, neste contexto, ser confundida com treinamento, ou com

mera instrução.

Castoriadis: conhecimento, deliberação, autonomia

No pensamento de Cornelius Castoriadis, o conhecimento e, por conseqüência, o

conhecimento escolar ocupam um lugar de destaque, definindo o caráter autenticamente

democrático de uma sociedade. Pois, na medida em que, rompendo com o fechamento das

verdades instituídas, o conhecimento passa a significar uma «interrogação permanentemente

aberta», voltada para a integralidade das questões que interessam à existência humana, ele já

pode ser, ou antes, deve necessariamente ser assimilado à instituição da própria autonomia

humana, individual e coletiva.

Segundo Castoriadis, a sociedade e tudo que a compõe – valores, formas, necessidades,

afetos – são criações humanas, ou, mais precisamente, do «coletivo anônimo» que a constitui.

O ocultamento desse poder criador é, no entanto, quase uma constante na história das

sociedades, que julgam dever atribuir sua existência a razões extra-sociais e supra-humanas –

Deus, a História, a Economia, a tradição, a natureza humana. Eis o que dá origem à situação de
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heteronomia social: a abdicação, por parte dos indivíduos, de seu poder de deliberação coletiva

e de livre instituição de seus próprios valores e normas.

Mas, assim como as condições de sua heteronomia, os homens produzem sua própria

emancipação – como ocorreu, pela primeira vez, na Grécia dos séculos V e VI a. C. e, após um

longo interregno de tempo, na Revolução francesa. Esses dois momentos marcam a história da

humanidade com a emergência de uma novidade radical: um projeto de autonomia que

recebeu o nome de democracia.

Logo, é somente no contexto do projeto de autonomia individual e coletiva que o

conhecimento aparece como valor: para a filosofia, ele significa elucidação interminável que

tem por finalidade a participação social, sem jamais se substituir a ela; para essa participação

social, ele subsidia a atuação de todos os cidadãos nas deliberações que constituem seu destino

comum.

Não há democracia sem conhecimento: e, nas sociedades democráticas, cabe ao

conjunto de indivíduos determinar quais, exatamente, são os conhecimentos que, tornando-se

indispensáveis para a plena participação do total de indivíduos, não podem ser atribuídos de

forma exclusiva a alguns, especialistas ou elites, mas a que todos devem ter igual acesso.

Dessa forma, o conhecimento necessário à vida democrática constitui aquilo que,

juntamente com Aristóteles, Castoriadis chama o «domínio do participável»: os valores e bens

sociais que, devendo pertencer a todos, não podem ser apropriados por ninguém
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privativamente. Para Castoriadis, numa democracia, a atividade política é, antes de mais nada,

exatamente a atividade de «…criação do participável social e das condições, vias, meios,

assegurando a cada um o acesso a este participável.»11

Eis como a definição do conhecimento escolar não somente é uma questão

eminentemente política, mas está historicamente associada aos ideais democráticos. Se

«socializar os indivíduos é fazê-los participar do não-partilhável, do que não deve ser dividido,

privativamente, entre os membros da comunidade»12, numa sociedade em que esses limites são

redefinidos, as antigas formas de socialização também precisam sê-lo. Ao ampliar o conceito de

cidadania a todos os indivíduos, uma das primeiras tarefas da democracia moderna é garantir

que todos sejam socializados – exigência que dá origem ao projeto da Escola pública.

Assim, ao final desse curto trajeto, o conhecimento escolar já nos aparece sob uma nova

perspectiva, que nos permite ensaiar algumas tentativas de resposta à questão de defini-lo

como meio ou como fim da educação. O conhecimento escolar é meio, no sentido mais político

que pode assumir: instrumento de fabricação de uma unidade que não é ausência de conflitos e

divergências, mas igualdade de participação na criação e na gestão do espaço comum a todos.

11
Cornelius Castoriadis, «Valor, igualdade, justiça, política: de Marx a Aristóteles e de Aristóteles até nos» in
Encruzilhadas do Labirinto I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19987, p. 264-335.
12
Lílian do Valle, A Escola e a Nação. As origens do projeto pedagógico brasileiro. São Paulo: Letras & Letras, 1997,
p. 09-11.
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No entanto – e seria ilógico e absurdo parar aqui, e separar essa dimensão coletiva da

vida humana de sua manifestação subjetiva, privada, individual – se a democracia é, como

acreditamos, valor que transforma radicalmente a vida social, ela só pode ser, igualmente,

paixão que transforma não menos radicalmente os indivíduos que sob sua égide se constituem.

Paixão definida por um objeto propriamente indefinível: a interrogação e a criação

permanentes dos sentidos que habitam nossa própria existência, que nos fazem como somos,

capazes de sermos como somos e de ousarmos ser diferentes. E que, como lembra C.

Castoriadis, Sócrates já ilustrava:

«Se vós me dissésseis, Sócrates, nós te deixamos livre, à condição de que


abandones esta pesquisa e que não filosofes mais… eu vos diria… que
não deixarei de filosofar… a vida sem exame não é vivível (o de
anexetastos bios ou biôtos).» Sócrates morre sem dúvida em função de
muitos fatores e motivos, mas sobretudo porque o exame, a
interrogação, se transformaram em objetos de sua paixão, aquilo sem o
quê a vida não vale a pena ser vivida. Insistamos: Sócrates não fala de
verdade, ele sempre proclamou, ainda que ironicamente, que a única
coisa que sabia com certeza era que não sabia nada. Ele fala de exetasis,
exame, pesquisa… a paixão, fazendo que seu objeto valha a vida; e a
natureza deste objeto, não como posse, mas como busca e pesquisa,
atividade examinante.13

Assim, se o conhecimento escolar é meio, e dos mais preciosos, de justiça e de

autonomia social, ele também deve ser dito fim, ou deve ser visto como parte necessária dessa

finalidade maior, que é a autonomia individual, na qual todo projeto coletivo forçosamente se

13
Cornelius Castoriadis. «Paixão e conhecimento» in As Encruzilhadas do labirinto V. Feito e a ser Feito. Rio de
Janeiro: DPA, 2000. Castoriadis cita, n primeira frase, um trecho da Apologia de Sócrates, de Platão.
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apóia. Paixão que, definitivamente, é a experiência mais legítima que cabe aos professores

comunicar a seus alunos.


filosofia da educação

JOHN LOCKE

Sendo, portanto, meu propósito investigar a origem, certeza e extensão do


conhecimento humano, juntamente com as bases e graus da crença, opinião e
assentimento (…) imaginarei que não terei divagado… puder dar algum relato dos
meios pelos quais nosso entendimento alcança as noções das coisas que
possuímos, e puder estabelecer algumas medidas de certeza de nosso
conhecimento, ou as bases dessas persuasões [crenças] que são encontradas entre
os homens, tão variados, diferentes e inteiramente contraditórios. …[E já que
opiniões e crenças as mais díspares são, em diferentes partes do mundo, dadas
como seguras]…quem leva em conta as opiniões da humanidade, observa sua
posição e, ao mesmo tempo, considera o afeto e a devoção com os quais elas são
enlaçadas, tanto quanto a resolução e avidez por meio das quais elas são
mantidas, [essa pessoa que é o filósofo] tem talvez razão para suspeitar que não
há de modo algum tal coisa como a verdade, ou que a humanidade não tem meios
suficientes para ter sobre ela um conhecimento certo.

LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. V. I. Lisboa: Caloustre Gulbenkian, 1999.


pp. 21-23.

PLATÃO

Reflete comigo: existe ou não uma certa coisa de que todos os cidadãos
devem necessariamente participar, para que a existência de uma pólis
seja possível? Está aí, e em nenhum outro lugar, a solução para o
problema que tu levantaste [é possível ensinar a virtude?]. Se é verdade
que tal coisa existe, e se esta coisa é, não a arte do carpinteiro, ou do
fundidor, ou do oleiro, mas a justiça, a temperança, a conformidade à lei
divina,é tudo o que denomino, em uma palavra, a virtude própria ao
homem…[324e]

PLATÃO. Protágoras, 324 e.


filosofia da educação

ERNST CASSIRER

Não existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado e empolgado
pela idéia de progresso intelectual quanto o Século da Luzes. Equivocar-se-iam,
porém, sobre o sentido essencial dessa idéia, aqueles que tomassem «progresso»
num sentido quantitativo como uma simples extensão do saber, como um
progressus in indefinitum (…). A diversidade, a variedade das formas é tão-só o
desenvolvimento e o desdobramento de uma força criadora única, de natureza
homogênea. Quando o século XVIII quer designar essa força, sintetizar numa
palavra a sua natureza, recorre ao nome de «razão». A «razão» é o ponto de
encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos,
de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações (…). O século XVIII
está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e
idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a
cultura.
CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. pp. 22-23.

JEAN LE ROND D’ALEMBERT

Por pouco que se observe com olhos atentos o meio do século em que vivemos [XVIII], os
acontecimentos que nos perturbam ou, pelo menos, que nos ocupam, os nossos costumes,
nossas obras e até nossas conversas – sem dificuldade percebe-se que, em muitos aspectos,
houve uma notável mudança em nossas idéias; mudança esta que, pela rapidez, parece-nos
prometer uma outra ainda maior. É o momento de fixar o objeto, a natureza e os limites
dessa revolução, cujos inconvenientes e vantagens a posteridade conhecerá melhor do que
nós. (…) O nosso século é chamado o Século da filosofia por excelência (…). Não obstante, a
invenção e o uso de um novo método de filosofar, a espécie de entusiasmo que acompanha
as descobertas, uma certa elevação de idéias que em nós suscita o espetáculo do universo,
todas essas causas certamente excitaram uma viva fermentação nos espíritos (…). Uma nova
luz sobre alguns objetos, uma nova obscuridade sobre vários, foi o fruto ou a conseqüência
dessa efervescência…
D´ALEMBERT, J. Ensaio sobre os elementos de filosofia. 1 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. p. 4-5.
filosofia da educação

IMMANUEL KANT

O iluminismo [em alemão, Aufklärung: esclarecimento] é a saída do


homem de sua imaturidade de que ele próprio é responsável.
Imaturidade é a incapacidade de usar o próprio entendimento sem o
auxílio de outrem. Esta imaturidade é por responsabilidade própria não
quando sua causa é falta de entendimento, mas a falta de resolução e
coragem para usá-la sem o auxílio de outrem. Assim, a divisa do
Iluminismo deve ser: Sapere aude! [«Ouse saber!» – Horácio] Tenha a
coragem de usar seu próprio entendimento.

A preguiça e a covardia são as razões devido às quais uma expressiva


proporção de homens continua deliberadamente imatura para a vida,
embora a natureza já os tenha emancipado de qualquer influência
externa. Pelas mesmas razões é muito fácil para outros autodeclararem-
se seus guardiães. É tão conveniente ser imaturo! Se eu tenho um livro
para ter entendimento em meu lugar, um guia espiritual para ter
consciência por mim, um médico para decidir por mim a dieta que devo
seguir, e assim por diante, eu não preciso me esforçar para nada. Eu não
preciso pensar, quando posso simplemente pagar; outros empreenderão
por mim esta tarefa aborrecida.

KANT, I. O que é o Iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa:


Edições 70, 1995. pp. 11-12.
filosofia da educação

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

A inteligência humana tem seus limites. Não somente um homem não pode saber
tudo, como nem pode saber completamente o pouco que sabem os outros homens.
Já que a contraditória de uma proposição falsa é uma verdadeira, o número das
verdades é inesgotável, assim como o dos erros. Há, portanto, uma escolha das
coisas que devemos ensinar, assim como do tempo próprio para ensiná-las. Dos
conhecimentos que estão ao nosso alcance, uns são falsos, outros são inúteis e
outros servem para alimentar o orgulho de quem os tem. Os poucos que realmente
contribuem para nosso bem-estar são os únicos dignos das pesquisas de um
homem sábio e, portanto, de uma criança que queiramos tornar sábia. Não se trata
de saber o que existe, mas apenas o que é útil.

ROUSSEAU, J. Emílio. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 203.

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