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Preâmbulo
As presentes normas estabelecem as regras gerais da Fase Intermunicipal do Concurso Nacional de
Leitura (CNL) da Comunidade Intermunicipal do Oeste, organizada pelo município de Arruda dos
Vinhos ‐ Biblioteca Municipal Irene Lisboa, a ter lugar no dia 14 de abril de 2021, pelas 10:00, as
provas escritas (online), e no dia 16 de abril de 2021, pelas 10:00, as provas orais (online).
1. Objetivos
A fase intermunicipal do CNL destina‐se a apurar 2 alunos, por cada nível de ensino, para
participarem na fase final deste concurso.
2. Condições gerais de participação
A participação na Fase Intermunicipal do CNL está aberta a todos os alunos, de todos os níveis de
ensino, apurados pelas bibliotecas municipais da RIBO, da Comunidade Intermunicipal do Oeste, e
inscritos no Sistema de Informação do Plano Nacional de Leitura.
Todos os participantes deverão ter autorização expressa dos seus encarregados de educação e
deverão entregar na Biblioteca Municipal do concelho da sua residência uma declaração de
autorização para captação/difusão de imagens e captação/difusão de voz, até ao dia 19 de março.
3. Categorização dos concorrentes
Os concorrentes serão repartidos pelos quatro ciclos:
Alunos do 1.º ciclo do ensino básico (1.º, 2.º, 3.º e 4.º anos de escolaridade);
Alunos do 2.º ciclo do ensino básico (5.º e 6.º anos de escolaridade);
Alunos do 3.º ciclo de escolaridade (7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade);
Alunos do ensino secundário (10.º, 11.º e 12.º anos de escolaridade).
4. Obras selecionadas para as provas
4.1 As obras selecionadas para as provas escritas, nas diversas categorias são:
1.º ciclo: O Morcego bibliotecário, de Carmen Zita Ferreira (Trinta por uma linha);
2.º ciclo: Sem rede, de Margarida Fonseca Santos (Fábula);
3.º ciclo: O rapaz dos sapatos prateados, de Álvaro Magalhães (Asa);
Secundário: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (Saída de Emergência).
4.2 A componente de leitura da prova oral incidirá em excertos da obra literária da escritora Irene
Lisboa, natural do concelho de Arruda dos Vinhos (Anexo 1).
5. Apuramento dos finalistas
A Fase Intermunicipal do Concurso Nacional de Leitura da Comunidade Intermunicipal do Oeste é
constituída por duas etapas e os procedimentos são os mesmos para todas as categorias.
5.1 Provas escritas
As provas realizar‐se‐ão nas Bibliotecas Municipais ou nas Bibliotecas Escolares dos respetivos
concelhos.
Deverá ser assegurado um computador por candidato, com ligação à internet, devendo ser usado,
preferencialmente, o browser Google Chrome.
A prova terá início às 10:00 e terá a duração máxima de 40 minutos.
A prova consistirá num questionário automático do Google Forms e será constituída por 20
questões de escolha múltipla e uma de desenvolvimento, cuja extensão é compreendida entre 30
a 100 palavras (mínimo 30 e máximo 100), sobre o conteúdo do livro selecionado para cada nível
de ensino.
Após a conclusão da prova, o concorrente deverá submetê‐la e avisar o vigilante que terminou.
A prova tem caráter eliminatório. Em caso de empate, será tido em consideração o tempo de
realização da prova. Caso o empate se mantenha, será avaliada a resposta à pergunta de
desenvolvimento.
Os resultados serão publicados no website do município de Arruda dos Vinhos (https://www.cm‐
arruda.pt/) e na rede social Facebook do Centro Cultural do Morgado.
Apurar‐se‐ão, para a etapa seguinte, 5 concorrentes de cada nível de ensino (os que obtiverem a
melhor classificação), sendo estes denominados “alunos finalistas”.
5.2 Prova oral
As provas realizar‐se‐ão nas Bibliotecas Municipais ou nas Bibliotecas Escolares dos respetivos
concelhos.
As provas orais são realizadas através da plataforma zoom e têm início às 10:00.
Os concorrentes do 1.º ciclo são os primeiros a realizar a prova, seguindo‐se os do 2.º ciclo, os do
3.º ciclo e, finalmente, os do secundário.
Será enviado, atempadamente, aos concorrentes o convite/link de acesso à sessão.
Os concorrentes devem ter a câmara de vídeo ligada durante a prova e devem estar identificados
com o primeiro e último nome.
As provas serão transmitidas em direto através do Facebook do Município de Arruda dos Vinhos
A prova oral será constituída por duas componentes:
1) Prova de Leitura Expressiva ‐ Cada concorrente fará a leitura em voz alta de um dos textos
escolhidos aleatoriamente no momento, para o seu nível de ensino. O desempenho será avaliado
de acordo com os seguintes parâmetros: dicção, ritmo, expressividade.
2) Prova de Argumentação – Resposta, com a duração máxima de 2 minutos, a uma questão aberta
colocada pelo júri sobre a obra definida para o seu nível de ensino. O desempenho será avaliado, de
acordo com os seguintes parâmetros: fluência, expressividade, correção, argumentação e clareza.
Todos os concorrentes, acompanhantes e público são convidados a assistir online à realização da
Prova Pública.
6. Concorrentes Apurados
Serão apurados para a Fase Final do CNL os dois concorrentes de cada nível de ensino mais
pontuados, na Prova Pública.
7. Júri
O Júri é constituído por três elementos, que acompanharão todo o processo de avaliação dos
concorrentes nas provas escritas e orais.
Para a correção das provas escritas serão requisitados voluntários com formação superior.
Compete ao Júri realizar a prova de leitura expressiva e argumentação oral.
O Júri é soberano e das respetivas decisões não cabe recurso.
8. Prémios
Serão atribuídos prémios aos 2 alunos finalistas de cada nível de ensino.
Todos os alunos e escolas concorrentes terão direito a lembranças e a um Certificado de
Participação.
9. Dúvidas e Omissões
As dúvidas e omissões que se suscitarem na aplicação das disposições das presentes normas serão
resolvidas pelos elementos do Júri.
ANEXO 1
Excertos a sortear na Prova de Leitura Expressiva
Categoria: I Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto I
A PATA RAINHA
Uma pata saiu do seu charco e andava a esfregar o bico pelas ervas, quando dá com um
pedacinho de lata a luzir. Parece‐lhe coisa de muita valia e põe‐no na cabeça. Depois vai‐se
mostrar às outras patas.
Eu sou a rainha, eu sou a rainha! grasna ela. Mas logo achou mesquinho o charco e as
companheiras que tinha e resolveu ir correr mundo.
De coroazinha na cabeça foi andando, foi andando… até que que encontrou um cão.
Pareço‐te bem? perguntou‐lhe ela. Olha que estás em presença de uma rainha!
Muito bem, respondeu‐lhe imediatamente o cão.
Achas, achas? E tu gostarias de ser meu mordomo?
Decerto. Nem maior honra eu podia esperar!
O cão era coxo, o que o não impediu de seguir a pata. Demais a mais o andar desta era
vagaroso e solene. Puseram‐se ambos a caminho.
A pata, como rainha que se supunha, ou era, tratou logo de lançar tributos a todos os
bicos que encontrava e nunca mais se incomodou com a pitança. Galos, perus, galinhas e patos,
tudo vivia subordinado à senhora pata. E ela ociosa e regalada.
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: I Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto II
AI… AI… AI...
Enfim, consigo entrar no castelo, mas estou cansada. É dia de festa. Repicam sinos por
todos os lados; há muitos ecos… Vou de mirante para mirante, tudo me assombra; mas estremeço
ao ouvir a voz do vento, que nunca me larga. Ele que diz? Não sei, endoidece‐me. Vejo as portas
todas fechadas e atiro‐me de uma janela abaixo.
Perdeste‐me!
O meu grito que já conheço: perdeste‐me, perdeste‐me.
Na minha queda a bolsa que trazia à cinta abre‐se. Caem‐me as moedas e eu desperto à
luz de mil estrelas. Fico a vê‐las descer. Por fim apagam‐se e eu encosto‐me a uma parede.
Refulgente. É a Lua, oiço que dizem.
Truz, truz, truz.
Tirei as últimas flores que tinha na cabeça e fiz com elas um ramo.
Truz, truz, truz. Estou a bater à porta da Lua.
Abram à pobrezinha, tenham dó…
Descerra‐se uma porta redonda. Lá dentro cantam. O jacto de luz que me vem à cara é tão
intenso que eu fecho os olhos. De mãos para a frente vou andando. Mas sempre a dizer: tenham
dó…
Conduzem‐me, amparam‐me.
Que cantos! Que vozes!
Abro os olhos, mas de repente fecho‐os. É lá possível? Vou pela mão de um rei. Estou
tonta, estou perdida.
Salvaste‐me, adorada. É isto que ele me diz.
Como hei‐de eu levantar os olhos se do seu riso e da sua cara é que me vem toda aquela
luz?
Sou tão feliz! Ia eu a dizer, de contente, quando ele me aperta ao coração.
Nisto acordo.
Ai… ai… ai… que pena não ser mais um sonho!
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: I Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto III
FIGURITOS FIGURÕES
Estavam três figuritos do tamanho de um palmo ou, vá lá! De palmo e meio, a conversar.
Sentado cada um em sua abóbora, de perna cruzada.
Eu, eu cá… sinto‐me capaz de espantar os ratos todos de uma casa!
E então eu? De rebentar um cavalo, aqui onde me vêem!
E eu? Ora, ora, ora… de conquistar um trono!
Ao cabo de quantos dias? Pergunta o primeiro.
De três, responde o último.
Três, diz também o do meio.
O primeiro figurito, todo lépido, deixa a sua abóbora e desata a correr. Sai da horta, chega
à porta da caseira e, como a visse fechada, agacha‐se e entra pela gateira.
O segundo dirige‐se para a cavalariça, e o terceiro toma o rumo da estrada.
Mal o primeiro se vê debaixo de telha ciranda à busca de um poiso.
Acaba ele de se esconder atrás de um pote, entra a caseira com a filha. Vinham ambas a
conversar e diz a mãe para a rapariga: tu arrumas lá dentro que eu dou aqui uma volta. Esta
cozinha, esta cozinha! Temos de acautelar tudo, por via dos ratos!
O nosso figurão, sem tugir nem mugir, ouvia‐as e ria lá com os seus botões:
Os ratos, os ratos! Mal vocês sabem…
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: I Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto IV
A FILHA DA FEITICEIRA
Era uma vez uma feiticeira, que tinha uma filhinha.
Isto custa a crer, mas assim mesmo é que é: para a feiticeira não havia outro sol nem outra
lua, a sua filha eram os seus amores.
Todas as noites, quando tinha de sair para cumprir o fadário, dava um suspiro: Filha do
meu coração! e aproximava‐se da menina. Enfiava‐lhe o saquinho do sono pela cabeça e dizia
muito baixo, com toda a doçura: dorme, dorme, até eu voltar, meu amor, dorme.
Cavalgava depois uma vassoira velha, que era um frangalho de palma, e saía pela chaminé.
Nos ares, a voar já, bradava: por cima de toda a silva, por baixo de toda a oliva! E só no outro dia
voltava.
Isto se dava em todos os dias, ou por outra, em todas as noites.
Parte ela de uma vez, à desabalada por aqueles fraguedos fora, sempre aos brados: por
cima de toda a silva, por baixo de toda a oliva! Quando um mendigo, destes que andam de
saquitel e manta, lhe aporta ao casebre. Estava uma noite fria, começavam os lobos a uivar. O
mendigo, a tremer, levanta o trinco da porta, mete a cabeça…
Oh! Gente não há? diz ele. E é uma casa asseada. Poisa a um canto a farrapada que trazia,
a ela se encosta e adormece. Acordou, ainda mal luzia o buraco. Olha a uma banda, olha a outra,
vê um saquito novo poisado, muito bem cheio, agarra nele e parte.
A manhã cresce, tudo clareia.
Já o pobre ia longe e o vento lhe tinha desfeito as pegadas quando a feiticeira volta do seu
fado. Pelo costume, saía pela chaminé e entrava pela porta. Louca, a galope, chega e arreia logo
vassoira. Mas o coração dá‐lhe um baque. A porta do casebre encostada? Entra de repelão.
Menina! Chama. Ninguém lhe responde.
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: I Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto V
A FLAUTA MÁGICA
Um homem e uma mulher viviam sem cuidados no seu buraco.
Ele era ferreiro, trabalhava com gosto e ia amealhando o seu vintém. Ela, toda asseada,
toda mexida, trazia a casa que nem um espelho.
Mas começa o homem a notar que de manhã lhe aparecia feito o trabalho de véspera
encetado, e diz assim para a mulher:
Queres saber uma coisa? Ando cá com umas suspeitas…
Umas suspeitas, umas suspeitas! Umas suspeitas de quê, homem?
Não sei, ando intrigado. Aqui há coisa, a forja está enfeitiçada.
Deixa estar que eu hei‐de saber, responde‐lhe a mulher. E na noite seguinte levanta‐se,
atira com uma saia pelas costas, sem fazer bulha, e vai‐se pôr à espreita. Pelo buraco da fechadura
descobria a oficina toda.
A mulher esfregava e tornava a esfregar os olhos porque não podia crer no que via.
Martelos, tenazes e malhos tudo num virote. As ferraduras jogadas ao ar, os pregos
acessos, o fole sempre a resfolgar, a bigorna esbraseada… e no meio disto tudo uns diabinhos
vivos a ganir e aos saltos. Rebolavam‐se, guinchavam, faziam caretas… eram engraçados.
A mulherzinha, assarapantada, queria persignar‐se mas não era capaz, não atinava com a
testa. Quando voltou para a cama pôs‐se aos safanões ao marido, mas ele tinha sono e mandou‐a
dormir. No outro dia é que então desabafou com todo o espalhafato.
Precisamos de mandar benzer a casa, precisamos de mandar benzer a casa, dizia ela.
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: II Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto I
O VENTO
Diz‐se que um dia...o Sol e o Vento andavam a brincar às escondidas. O Vento empurrava as
nuvens, que tapavam a cara do Sol. O Sol esbraseava‐as, derretia‐as e tornava a luzir. O Vento
sossegava, mas sempre a resmungar. Nisto andavam…
E uma velhota, que muito bem entendia estes manejos do Vento e do Sol – do ladrão do Vento
e do macaco do Sol, como ela dizia – contou a seguinte história a um neto que tinha.
Mas antes de a contar, sentada à porta, com a cabeça do rapazito no regaço, a ver se ele
dormia, assim lhe disse: não te fies de um nem maldigas do outro! Sem eles que seria do mundo?
E para ver se chamava o sono ao neto, começou:
O Vento veio ao mundo num reino, num reino de que se perdeu o nome. Não sabias? E era
muito estimado, alegre, até bonito. Vivia com os pais. No palácio destes havia uma torre que
chegava ao céu.
Os primeiros passos do Vento foram dados nela, para cima e para baixo. E já eram pesados. Os
pais bem lhe recomendavam: cuidado, Vento” Este era o seu nome, que nunca perdeu. Ainda hoje
o tem. Cuidado, não te aleijes! Mas o Vento, que já era travesso, nunca sossegava e cada vez batia
mais com os pés. Foi crescendo e mostrando bem o que havia de vir a ser: turbulento, ambicioso e
brigão.
Um belo dia o Vento abandona os pais. E tal sumiço levou que a torre caiu e o reino se desfez
(tanto que já ninguém sabe onde eles ficaram) e o seu próprio rasto se perdeu.
Se perdeu, não digo bem, emendou a velha; porque por onde ele passava… É o Vento, é o
Vento, diziam todos. Ah! ladrão! Mas ele nunca tornava atrás. Parece que tinha de dar a volta ao
mundo; era o seu fado. Debulhava as espigas, torcia os ramos, quebrava as canas dos milhos,
encrespava as águas e chegou a derrubar à punhada as mais velhas árvores que havia. Rugia,
assobiava, era indomável.
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: II Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto II
MARIA‐A‐MACHA
Uma mulher tinha sete filhas.
Sete filhas!
Uma delas seria bruxa…
Mas não, nenhuma dava indícios disso. Só a mais nova, sem ser por artes, é que cresceu
tanto que parecia chegar ao céu.
Maria‐a‐Macha lhe chamaram. E a rapariga para não desdizer do apelido jogava o eixo
ribaldeixo, andava aos ninhos com os rapazes, mandava pedras, pintava o diabo.
Maria, quando tomarás tu assento? lhe dizia a mãe apoquentada.
Ainda é cedo, mãe, ainda é cedo! lhe respondia ela.
Maria‐a‐Macha foi crescendo, e tanto cresceu que levantando um braço tirava os figos que
eram postos a secar no telhado.
Não gostava de coser nem de arrumar a casa; romper o fato pelas silvas, às amoras,
moinar, dormir, era todo o seu regalo.
Maria‐a‐Macha não levava bons jeitos, mas como tinha muita força ninguém a contrariava.
Chegou a mulher. Entrava e saía sem nunca dar contas em casa, comia por sete e
estragava por dez.
A mãe ralava‐se: ai, que filha esta! meu Deus, que castigo o meu!
Ó minha mãe, disse‐lhe ela um dia.
Que é, filha?
Nada, não é nada…
Diz lá, filha, desafoga, anda.
Maria queria falar, mas sentia‐se embaraçada.
É que eu, sim, a mãe bem sabe…
Maria queria namorar, no fim de contas, ter o seu noivo, como as irmãs.
Eu sou muito feia, sim, vossemecê acha?…
Não, filha, nunca achei…
Bom, bom, não ponha mais na carta! era isso que eu queria saber.
Tanto fez e tanto andou Maria‐a‐Macha que se espalhou que ela queria namorar, ter um
noivo como as demais.
Irene Lisboa
In “ Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: II Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto III
OS PRÍNCIPES GÉMEOS
Havia um rei ‐ no tempo dos príncipes e dos reis – que tinha dois filhos gémeos.
Tempos tão esquecidos, quase ignorados! mas tão dilatados… capazes de ir de lés a lés da
nossa fantasia, de entrar em todas as cabeças, de abranger todas as idades, desde as mais remotas
até agora…
Pois nesse tempo vivia um rei em seu belo reino com a rainha e dois filhos gémeos que
tinha. Dois formosos mancebos, amorosos e inteligentes.
Ora o rei não sabia a qual deles havia de legar o trono e o ceptro. Lançar o caso à sorte dos
dados, por exemplo? Não lhe parecia bem.
Entrementes calhou montear‐se um javali nas matas reais. O rei e os dois filhos, que
tomavam parte na caçada, apartaram‐se sem premeditação. E o rei, subitamente iluminado, achou
azada a ocasião de fazer a sua escolha. Sacou da buzina de caça e soprou nela três vezes. Era um
sinal de apelo conhecido.
Ainda o eco da buzina ia de quebrada em quebrada e já os dois príncipes, cada um de seu
lado, acorriam ao chamamento do pai. Este, interdito, não soube que lhes explicar e mandou‐os
continuar a batida.
Os dois filhos riem e partem sem a menor sombra de suspeita.
Manda‐lhes depois o rei um belo bolo que trazia de merenda, mas incógnito, pela mão de
uma mendiga. Agora, sim, se havia de saber quem a sorte designaria.
Termina a caçada com muitas peripécias e algazarra, como era sempre o hábito e recolhe‐se
a real comitiva ao palácio. Houve um banquete, com muitas iguarias e, ao fim um dos príncipes
declara: mas bolo como o que recebemos das mãos de uma mendiga é que não há.
Qual de vós, qual de vós? apressa‐se o rei a perguntar.
Os irmãos entreolham‐se e logo respondem: ambos.
Irene Lisboa
In “ Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: II Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto IV
MINHA MÃE, QUE LINDAS TERRAS!
Tinham deitado um burro à margem, um burro velho. Que carga de ossos tão triste!
O seu dono, velho também, o senhor Joaquim, largou‐o para as bandas da ribeira. Foi‐se
embora e nem uma palavra lhe disse: Fica‐te! Triste! Qualquer coisa análoga, uma despedida. E o
burro ajoelhou, de trôpego. Depois levantou‐se e ainda afocinhou brandamente na erva fresca das
bordas. Era tarde. O tempo alisara. O céu, muito alto, estava todo azul. E o Tonito, da parte baixa
das regadas, despontou com as suas ovelhas e a meia dúzia de cabras. Cantava. Andava ansioso
por uma gaita de beiços, e por isso cantava, para as modas lhe não esquecerem.
Olha, não querem lá ver? é o burro do ti Joaquim! E arrumou‐lhe uma pedrita, por
brincadeira, a modo de se entreter. Pedrita que lhe acertou. E dali se pôs o burro a correr, a
correr… E o Tonito sem poder fechar a boca de espanto. Não querem lá ver o burro velho do ti
Joaquim? De longe lhe arruma outra pedra. E o burro mete‐se à água.
Esta agora? Não querem lá ver? Que é do burro do ti Joaquim?
Desaparecera.
O Tonito já não quer saber das ovelhas nem das cabras.
Eh! Ruço. Eh! Ruço. Este era o nome do burro.
Ia o rapaz doido pelas bordas do rio, com os olhos perdidos na água, quando vê dois
pombos brancos, dois pombos sem igual, a bater as asas todas molhadas e a subir para o ar. E dois
peixes mareados, sem igual também, a nadar contra a corrente, a subir e a levantar o cachão.
Ai, minha mãe do céu! E o Tonito volta para trás. Junta o gado, pega na capa e caminha
para a palheira.
A mãe chega‐se e pergunta‐lhe: então já tornaste?
Pois não havia de tornar? O burro do Ti Joaquim, o burro velho meteu‐se à água.
E daí?
E dele saíram, que eu vi, dois pombos a voar e dois peixes a nadar?
Estás tolo, rapaz?
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: II Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto V
JOANICO
Esta é a verdadeira história de Joanico. Deixem‐ma contar com vagar.
Joanico levou muito tempo a criar‐se.
Não sais da casca! lhe dizia a mãe.
Mas saiu. Tanto assim que entrou a falar e a fazer caretas. Crescer é que não crescia. Ficou
tão pequenino que aos dez anos parecia ter apenas cinco, ou ainda menos. Chegou aos vinte e
cobria‐o o ridículo.
Joanico era muito desajeitado.
Filho, que havemos de fazer de ti? perguntava‐lhe ora o pai, ora a mãe.
Ele nunca dava resposta. A sua vida era andar em casa e no campo sempre aos pulinhos.
Divertido era ele!
Ó mulher! tu sabes? diz um dia o pai para a mãe, sabes que ando a pensar cá numa coisa?
Pois não sei, homem! desembucha!
É que o nosso filho se anda a perder, e nós não temos outro.
Falas bem.
Ó mulher, e se nós comprássemos umas cabrinhas para o entreter?
Dizes bem. Mas ele também podia ir ao bonico.
É verdade! inda não me tinha lembrado!
Depois desta conversa passou Joanico a ter emprego. Ora apanhava bonico, ora guardava
as cabras. Como era alegre, cantava sempre, e também sabia dançar. Aquelas ribeiras retiniam
com a sua alegria. Cortava canas, fazia delas gaitas e todo o santo dia folgava.
Joanico era amorável e gostava de ajudar a mãe, mas sem ele mesmo querer só partia e
desperdiçava.
Joanico, está quieto! Joanico, vai‐te embora! era ela.
E lá se ia ele pela porta do quintal atrás das cabritas ou com a lata do bonico na mão.
Triste da minha vida! Queixava‐se ele. Tivesse eu outras mãos!
Irene Lisboa
In “Queres ouvir? Eu conto”
Categoria: III Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto I
A ESTRELA AZUL
Eu só tinha pai, que pouco a pouco se ia desinteressando de mim. O resto da gente da casa
eram umas mulheres más e vaidosas. Umas intrusas!
O meu tempo corria como o tempo corre… ao acaso. Nada me pertencia já. Bastarda a
casa, bastardos os ares respirados nela. Quantos anos teria eu então? Doze, treze, catorze. Até o
gosto de vestir perdi porque tudo me retiravam; de vestir e de andar limpa e bem pregada. Só a
imaginação me sustinha. A imaginação, digo: isto que aos jovens compensa de muitas faltas, da
ternura, das satisfações, dos desejos realizáveis, de pequenas e de grandes coisas.
Com essa imaginação, que ninguém me podia roubar, eu via fantásticas coisas e amava
outras não menos fantásticas, inatingíveis: as estrelas, os rouxinóis, os heróis das lendas, a água…
Amava‐os, perseguia‐os de sonhos e de pequenas efabulações.
À noite, noites quentes e noites frias, tinha muitos delírios sentimentais: considerava a lua
uma maravilha mortal, maravilha inigualável, e deixava‐me gelar de olhos fitos nela.
De dia corria as bordas da ribeira a ver os pássaros, os saltinhos da água e a descobrir
flores. Dessa idade me ficou a ideia da nobreza das violetas silvestres e da fragrância dos
junquilhos.
A gente do campo, mulheres e homens, que me sabiam desprezada, tinham certo respeito
pela minha pessoa, espreitavam‐me sem me insultar.
Assim, neste viver, eu compunha, ideava histórias coisas… e uma delas foi a da
estrela azul
………………………………………………………………………………………………………………………………………………………...
Ninguém me vê. Que é delas? Não sei. Deste lado, as luzes apagadas. Estará tudo lá em
baixo.
Que noite! Que noite! Que linda noite! Tudo calado no pátio, também. Saio, encosto a
porta da vidraça. Hoje não há luar. O jardim é pequeno e a mim só me apetece correr. O buxo já
está orvalhado, é frio. Mas que cheiro! Da baunilha e da lúcia‐lima…
Nada se ouve. As estrelas brilham, relampejam. Mais, cada vez mais. Vou andar pelo meio
do buxo de cabeça levantada. Só para as ver.
Pequeninas, ó minhas lindezas… Tu, princesa do Sião; tu, princesa do mar; tu, flor da vida;
tu, oiro a arder… tu, minha sem‐nome, primeira entre todas, amiga do meu coração… ó estrela
azul!
Irene Lisboa
In “ Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma”
Categoria: III Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto II
A MAÇÃ DE OIRO
Enfim, enfim… O cavaleiro chega debaixo da macieira apetecida e colhe a maçã de oiro.
A macieira estava carregadinha delas e todas eram de oiro, mas só uma de oiro maciço. E
foi àquela que ele lançou mão. Que sorte, que felicidade!
Nisto, o grande portão do pomar das macieiras, aberto de par em par, fechou‐se com
enorme estrondo. E os perseguidores do cavaleiro afortunado, que eram muitos, a cavalo
também, de lanças em riste e aos gritos, dão voltas inúteis e desesperadas.
O cavaleiro, defendido por muros altíssimos e em poder da maçã rara, desmonta‐se e
sossega. Quer sossegar, desprezar os inimigos, mas são tantos os brados, as ameaças e os insultos
que o sangue lhe referve. Afivela a couraça, de que já se tinha alijado, mede a lança, atira com a
maçã de oiro à terra e corre, lançando o seu pregão.
A maçã abre‐se instantaneamente ao meio e dá saída a tantos e tão belos guerreiros
armados e equipados, que os muros do pomar ficam guarnecidos deles numa extensão infinita.
E começa a batalha… Quem a comanda é o feliz guerreiro. Uma batalha dura e rápida.
Os vencidos, do lado de lá dos muros, fogem à doida e os vencedores, risonhos e
contentes, dispersam a seu bel‐prazer. O cavaleiro afortunado convida‐os então para uma vida de
armas, mas eles sorriem‐lhe e não aceitam.
Torna o senhor da maçã de oiro a ver‐se sozinho. Desarma‐se e limpa o suor. Como já era
a hora da sesta, adormece. Sonha então que aquele pomar ainda era maior que um quinto do
mundo e que lhe pertencia. Quando acorda, cheio de sede, estende o braço para a sua direita e
não faz mais que pegar na maçã de oiro, intacta. Tem receio de a tornar a arrojar no chão. Dá‐lhe
voltas sobre voltas, sempre indeciso, e torna a pô‐la a seu lado. Quem lhe há de ali aparecer, sem
ele esperar, vinda debaixo das macieiras carregadas? Uma donzela formosa. Traz os cabelos soltos
e dois cavalos à rédea, muito bem arreados.
Diz‐lhe ele: nobre donzela, onde ides?
Irene Lisboa
In “ Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma”
Categoria: III Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto III
A BAILARINA
Era uma vez uma bailarina, mas uma bailarina de papelão, daquelas que mexem
simultaneamente os braços e as pernas. Nunca se cansava, e era bonita, bonita a valer. Tinha saias
de papel frisado.
Um dia penduraram‐na numa parede.
O rapazito (como se chamava ele?) Gustavo, que costumava ir àquela casa, adorava‐a, mas
ninguém o sabia. Nem a tia mais velha nem a mais nova. Julgava‐o ele.
Entrava na sala, dizia duas palavras aos gatos de veludo que estavam, um de cada lado do
espelho, com belos olhos de contas de vidro a olhar para ele, dava mais uns passos e levantava o braço.
Anda cá tu, minha beleza! Tirava a bailarina do prego e zás‐que‐zás, zás‐que‐zás…
Ela dançava, levantava as pernas de lado, dava aos braços… Que tentação! Gustavo,
puxava‐lhe freneticamente pelo cordel. Dança, minha menina, dança! mais, mais, mais!
Gustavo foi crescendo e a bailarina sempre na parede. Coitadita, mas não se sabe como,
envelhecia… Desbotaram‐lhe as saias, encheu‐se de riscos. E esqueceu, tornou‐se esquecida. Nem
alegre nem triste, porém sempre de braços no ar e de pernas penduradas.
Lá veio um dia mais tarde em que Gustavo tornou a reparar nela. Já ele era um tamanhão.
Como a bailarina das tias o tinha entretido! E riu‐se desdenhoso. Antigamente tinha uma saia
cor‐de‐rosa. A carinha dela é que ainda era bonita. Até lhe lembrava a da bailarina do Salão Foz.
Que bailarina! Como ela dançava! Dava às pernas e aos braços quase como aquela.
Ele ia tornar a experimentar. Não estava ninguém, a porta encostada… tirou a boneca para
baixo e, como antigamente, sentou‐se no chão.
Já não tinha cordel para se puxar, bolas! Levantou‐lhe um braço, depois o outro. Juntou‐
lhe as mãos. A marota tinha graça! Como a outra… Mas a do Foz corria de cá para lá e dava umas
palmadas e umas gargalhadas que alegravam toda a gente. Quando ela se ria riam‐se todos. Havia
de ir tornar a vê‐la.
Irene Lisboa
In “ Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma”
Categoria: III Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto IV
AS MOIRAS
Este caso contava‐se na minha terra, terra de mar. Havia quem nele acreditasse.
A minha terra é banhada por um rio, a que ninguém dá nome, e pelo mar. Creio que já se
lhe não conhece a origem; é muito antiga. Tanto que as ruas velhas, quase todas elas o são,
cobertas de areia aos altos e aos baixos, quando sofrem conserto mostram buracas que antes
abriam para subterrâneos, caminhos escondidos, do tempo dos moiros, a que chamam fojos.
Mas não é dos moiros que ainda hoje lá se fala. É das moiras. Há tanta memória delas!
Ditos e receios… Até os pescadores quando traziam do mar os covos vazios se queixavam delas:
não fossem as moiras! Marfadas! Condenadas!
Quem vinha a desoras para o povo também espalhava medos:
À meia‐noite é que elas aparecem. Põem‐se a pentear e a cantar, têm uns cabelos muito
compridos! sentadas nas rochas… Vê‐las é a nossa perdição!
Mas vossemecê viu? Perguntavam.
Ninguém tinha visto, porém todos sabiam que era verdade. E que em certas ocasiões as
badaladas da meia‐noite soavam por toda a banda, por cima das alfarrobeiras e das amendoeiras, no
chão e no ar. Alguma estava para acontecer! E por culpa das moiras. À meia‐noite era certo… ah! lá
isso era! virem elas de corrida pelo rio abaixo até o mar. E até havia quem dissesse que ao dar do
meio‐dia era o mesmo. E acreditavam, mas ninguém vira. Sabia‐se apenas que elas eram muito belas
e que cantavam. Quem lhes quebrasse o encanto ficava a poder mais que um rei. Que elas ainda
possuíam riquezas fabulosas! Ou então… ficaria um seu escravo.
Isto era o que se dizia. Até de uma vez aparece um rapaz desconhecido a correr pela praia
fora, com os cabelos muito bastos e soltos, o olhar vago e a sorrir. Quem seria quem não seria…
Foi‐se juntando povo à roda dele e as perguntas a chover. Mas ele só dava as mãos, abanava a
cabeça e sorria. Por fim deixaram‐no fugir e ficaram murmurando: é um desgraçado.
Irene Lisboa
In “Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma”
Categoria: III Ciclo
Etapa: Leitura expressiva
Texto V
O CAIXÃO DE CRISTAL
Eu devia ser lançada ao mar num caixão de cristal, como rezam as histórias… e fui.
O mar baloiçava‐me.
Quem jamais teve esta sensação?
Baloiçava‐me. Eu ia estendida ao comprido e de olhos muito abertos, perfeitamente
imóvel. O meu caixão era cómodo. E foi correndo, seguindo. Lá muito longe, no mar alto, começou
a ser sacudido e perdeu de todo a calma. Entrou‐me o medo no coração e olhei para os lados.
Terríveis animais do mar se batiam à minha roda. Eu via eminentes espadas, medonhas, de água
viva, e sentia uma chocalhada azoadora.
Quem jamais teve esta sensação?
O mar até perdera a cor, aquele azul e aquele verde que nos encantam. Era baço e
sombrio, coberto de espuma suja e escamudo como um peixe. Mas não sei como tive um impulso
salvador e escapei‐me. Tornei a correr e a seguir livre de perigo. Pelo mar fora, sempre de olhos
abertos, um murmurinho muito doce me embalava.
Quem jamais teve esta sensação?
O meu caixão era de puro cristal, transparente. A todo o momento me parecia que o mar e
o céu se juntavam para me engolirem. Era uma ilusão, uma curiosa ilusão.
Cobras de água, muito longas e esguias, enlaçavam‐se no meu caixão. Eu não as temia.
Suportava‐lhes bem o olhar e sorria quando as via desfalecer. De outras vezes perseguiam‐me
cisnes monstros, de asas em canoa. Eram espíritos castigados, eu sabia‐o. Tanta coisa sabia, de ter
ouvido em terra, aos serões! E os saltos e cabriolas dos peixes, uns que voavam, outros que
mergulhavam, outros que deslizavam… uns em forma de leque, outros de palma, outros de fuso…
nem sei! Nada me cansava; tudo maravilhas!
Ai, quem jamais teve destas sensações?
Não sei como, uma corrente talvez, me trouxe para a costa. Choveram estrelas e eu entrei
a bordejar no meio delas. Mas a chuva de estrelas era do sol… raiara a manhã. Vi grandes rochas
entrando pelo mar dentro. O meu caixão evitava‐as. Passei ao rés de um castelo. Três donzelas de
luto estavam ao mirante. Choravam. Quis mandar‐lhes beijos. E elas viram‐me. Coitadas,
debruçaram‐se a acenar‐me, todas aflitas.
Irene Lisboa
In “ Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma”
Categoria: Ensino Secundário
Etapa: Leitura expressiva
TEXTO I
Hoje não posso dizer, como aqui há dias: anda um espírito comigo…
E a que pretexto o dizia? Não me lembro.
Mas esse espírito, que vive comigo e quase me é estranho, que me manda vibrar e pensar, que
é precioso e ordinário, efervescente e desanimado, esse espírito abandonou‐me hoje.
Há bocado ouvia sentada, como tantas vezes, o passar dos automóveis. Impressionava‐me
molemente aquele seu raspar violento, que lembra um sopro rijo contra o chão. Este passar dos
automóveis e este som são um sinal de época. O nosso tempo já não é caracterizado pelo apito
das fábricas, é‐o por esta correria dos automóveis.
O apito das fábricas é secante, vem do tempo dos romances realistas. É ainda a imagem de uma
vida moderna, dura, mas sem transportes nem furor. A própria melancolia do apito aborrece…
A passagem do automóvel já tem outro espírito. O automóvel vai e todo o ar corre como
ele, fica agitado por ele…
Comecei a dar por isto em Bruxelas. Solitária, ouvia aquele rumor dos carros em carreira e
achava que o mundo se atirava por caminhos que eu desconhecia. Com o sopro deles, repentino e
bufado contra o chão, tudo me parecia correr e desaparecer no meio de um alvoroço, de uma
pressa e de uma inconsciência que eu não tinha… e que invejava!
Aqui, continuo a ouvir o mesmo som. E não deixo de achar que nele se encerra toda uma
poesia nova.
Mas não é ver automóveis que mais me impressiona, é ouvi‐los. Ouvi‐los passar e saber
que os não acompanho, que entre mim e o que eles são ou representam há hiatos… Saber que o
mundo de hoje tem as qualidades daquele sopro, que tem a alma daquele varrer de estradas
rapidíssimo, ou o que quer que é, detido lá não se sabe onde…
Há certas horas da tarde em que os automóveis são mais consecutivos. Eles vão… e eu fico
para os ouvir e para os servir. Servi‐los com toda a minha imaginação de sedentária!
Irene Lisboa
In “Solidão”
Categoria: Ensino Secundário
Etapa: Leitura expressiva
TEXTO II
A Adelina tinha trabalhado em minha casa. Foi até curiosa a maneira de nós nos virmos a
conhecer. Eu tinha tomado uma beiroa para o serviço, uma rapariga que não me sabia fazer nada,
nem lavar os azulejos da cozinha e me dava caldo verde deslavado a todas as refeições. Por cima
disto ainda curtia pelos cantos do nariz comprido ou com suspiros as saudades de uma sobrinhita,
na realidade sua filha apanhadiça, que lhe tinha ficado lá na terra.
Ora, todo o tempo que eu passava fora de casa a minha Maria, assim se chamava ela, se
entretinha a estudar a rua e a vizinhança naturalmente para espairecer. Ninguém lhe podia levar a
mal. Mas as novidades mal encobertas que ela depois me dava dos enterros e das disputas das
mulheres do beco, do mariquinhas do criado do primeiro andar e outras, interessavam‐me tão
pouco e aborrecia‐me tanto achar sempre o trabalho por fazer que decidi restituí‐la à sua terra. De
mais a mais eu ia tomando o hábito de ralhar, coisa feia e incómoda...Em suma, no nosso segundo
mês de convivência ambas nos sentíamos um pouco fartas uma da outra. A mim nem as suas
conversas com o gato, como se ela o quisesse educar, me davam já vontade de rir. Um dia em que
decidi lavar os vidros do meu quarto é que o caldo se acabou de entornar...Eu explico:
Como ela me parecia sempre uma arara e não tinha força nenhuma nos braços subi eu ao
escadote. As janelas eram altas. A rapariga pegou num esfregão e pôs‐se a lavar distraidamente a
pedra da varanda. Molhava o chão e parava a olhar… Eu vi‐a de cima. Era a hora do carteiro andar
na sua ronda da manhã e de haver muitas entradas e saídas na tenda do Fortunas mesmo em
frente. As mulheres dos marítimos, que abundavam na rua, falavam da loja para fora, davam
gargalhadas ou ralhavam com os filhos; os moços da padaria voltavam com as gigas vazias. A
minha Maria gozava com todo este espetáculo. Mas quando viu o carteiro não quis saber de mais
nada; começou pst‐pst...e eu zanguei‐me. Vai ela larga o esfregão onde o tinha descansado,
levanta‐se e declara‐me que se vai embora. Pois que fosse!, disse‐lhe eu. E foi. Nunca mais ouvi
falar dela. Sim, creio que ouvi dizer que tinha voltado para a sua terra (…).
Depois daquele seu repente decisivo ao pé do escadote arrumou os seus trapitos, veio
despedir‐se de mim com ar sério e lá marchou com certeza para casa da tia. Ia sem saudades.
Irene Lisboa
In “Esta cidade”
Categoria: Ensino Secundário
Etapa: Leitura expressiva
TEXTO III
A ruína dos edifícios no campo não oferece o mínimo encanto; Helena notava‐o.
Por fim um lugarejo lá foi surdindo, separado em dois pela estrada. Também ali deviam
parar. Bateram ao portão de uma casa de muitas varandas, de uma grandeza rústica em
decadência. Entraram para a sala de espera, onde ao cabo de longo tempo lhes apareceram duas
damas enfeitadas. Eram as donas da casa e falavam com paixão da vida de Lisboa (…).
As damas palavrosas e perscrutadoras obrigavam Helena a pensar se parecia mais velha ou
mais nova do que realmente era.
Terminada a visita, as duas raparigas prosseguiram a sua viagem. A Páscoa tardia coincidia
como em certos anos acontece com os princípios de Verão.
Helena ia andando e cismando nas duas damas da casa velha. A companheira contou‐lhe a
vida delas. Eram as Fadistas (nome de família). Ainda tinham pai, que não aparecia a ninguém. No
seu tempo casara com uma lavradeira muito rica, feia e baixinha, de quem teve aquelas duas filhas
e dois filhos. O mais velho fora sempre um grande bêbado e veio a morrer doido. No fim de vida só
andava de casa para o Telhal e do Telhal para casa. O mais novo estragou a parte da herança
materna em poucos meses e depois casou com uma varina de Lisboa, que tinha muito oiro. As
irmãs nunca a receberam. Mas ele deu cabo do arranjo da mulher num abrir e fechar de olhos, e
ela teve de pedir o divórcio. Das irmãs, a mais velha desmanchou um casamento rico já depois de
pedida. O pai foi então ter com a mãe do noivo a ver se ela consertava as coisas, mas a mulher
negou‐se. Como o irmão e uma prima da rapariga já tinham enlouquecido, o pai teve medo e não
a obrigou a casar. O noivo era lavrador. Ficou tão desesperado no dia em que a rapariga o
desenganou que saiu de casa dela, encontrou na rua uma sua vizinha, uma pobre mulher
desprezível, já com anos e perguntou‐lhe: Ó Mariana, queres tu casar comigo? E com esta é que se
casou. Bem se ralou a Fadista! O que ela queria era vida em Lisboa e luxo. Naquela casa não havia
quem não esbanjasse. O pai em vida da mulher, que era quem lá tinha mão na lavoira, só se
importava com carros, cavalos e toiradas…
E assim conversando Helena e a companheira chegaram a Bucelas.
Irene Lisboa
In “Esta cidade”
Categoria: Ensino Secundário
Etapa: Leitura expressiva
TEXTO IV
Dia de excursão.
As mais novas aborreciam‐me. Um pouco…
Foi minha companheira a Edith, sempre tão tímida e tão delicada. E sempre vestida de
preto. A sua presença, o seu acanhamento de se manifestar e de nos contradizer, fazem‐me supor
a mim rude, ousada.
Mas que manhã! E que claridade!
Metemo‐nos por um bosque como só a minha fantasia criava antigamente para os contos
e para as lendas.
Estes pinheiros do Norte, sombrios e densos, sobem de um chão tão musgoso, tão fino,
tão crivadinho de flores! Mas a sua folhagem entremeia‐se com a dos arbustos mais tenros,
arbustos que a luz do Sol só parece trespassar e fazer empalidecer. E tanta violeta, já nos fins de
Maio! É enternecedor. Parece que nos olham, disse a Edith. É verdade. Têm um ar aberto,
pasmado. Flores de coração à mostra…
A impressão que eu tinha era de estar sentindo um prazer antigo. De quando o mundo
ainda era novo para mim… de quando toda a minha fantasia e o meu gozo de vida se abriam em
céus, em figuras de nuvens e de pássaros…
Descansámos. É destes lugares em que se descansa que geralmente nos ficam mais
lembranças.
Víamos as folhas tremer, fazer‐nos uma espécie de acenos sem bulha… Um bater tão leve
que parecia que era o sol que pesava nelas e não o vento.
Recomeçámos a marcha e tudo se agitou. Até o vento voltou. Por felicidade, nem vivalma!
Doce solidão… Uma tranquilidade! Uma limpidez! A pura alma da manhã. Uma real harmonia
preestabelecida. O espírito do bosque plasmava‐se subtilmente com o nosso. O bosque vivia… e
convidava‐nos à simplicidade, à virginização. Caminhávamos quase sorrindo. Não havia troncos
importunos, só braços e laços a desatar. Ouvia‐se um pássaro, outro…
Andámos perdidas, mas não nos inquietámos. Por fim sempre descortinámos o lago
redondinho, em cujas margens a nossa gente acampava. E a doce Edith cessou de repetir com os
seus olhos azuis muito juntos, ou muito agudos: c’est magnifique, c’est merveilleux.
Irene Lisboa
In “Solidão”
Categoria: Ensino Secundário
Etapa: Leitura expressiva
TEXTO V
Se não fui a todas as festas do sítio, como me tinha proposto para conhecer gente e
arraiais, não faltei pelo menos à da Senhora da Ajuda. É uma festa imemorial e das de maior
respeito. A riqueza desta Senhora anda de boca em boca. Conta‐se que até notas de conto lhe
pregam no manto. Dos cordões de ouro já nem se faz menção.
Mas para se poder ir à festa começa‐se por se andar em cata de burros.
Neste ano a festa calhou a um domingo. Mau dia. Toda a gente ia à vila ou à festa… Mas
enfim, prometidos uns quantos burros, ficou assente irmos até à Ajuda. A senhora Teodora, o
marido e a neta acompanhavam‐nos. A senhora Teodora ia pagar uma menina de cera à santa,
porque a neta lhe tinha escapado ainda não havia muito tempo de uma doença que nem nome
tinha!
Pobre Teodora...se ela resgatasse a sua própria vida a poder de cera nem uma loja de
cereeiro em peso lhe bastava.
A partida é às sete, tinha‐lhe eu dito. E creio que às seis já ela estava mais os seus dois nas
Pontes à nossa espera. Mas só partimos às nove. Uns burros faltaram, outros tiveram de ser ainda
arreados pelos donos, que andavam não se sabia por onde; nem todos se desembaraçaram, houve
o arranjo da merenda…
Partirem às sete o mais tardar, por via do calor! Tinham‐nos dito umas saloias.
E é longe? perguntava‐lhes eu.
Lá isso é, sempre é um bocadito… mas não passavam disto, não davam distâncias certas.
Bem, partimos. Os burros não chegaram para o rancho, mas a gente crescida revezava‐se
neles, e quem de vez em quando ia a pé acompanhava muito bem a andadura asinal.
A manhã estava lindíssima, calma e fresca. Os sítios que nós estávamos habituados a ver
cá de baixo ganhavam mais beleza vistos de perto: grandes encostas de vinhas, vales fundos e uma
grande largueza à nossa frente, descoberta de todas as voltas da má estrada(…).
Chegámos à Ajuda ainda não devia ser meio‐dia. É um lugar grande, dividido pela estrada.
Sai‐nos logo à frente uma rapariga toda galharda:
Venham para a minha corda! E pousava a mão confiada na arreata do burro mais
dianteiro. Era de Martim Afonso.
Irene Lisboa
In “Apontamentos”
Nota: Todos os excertos respeitam a grafia das várias publicações, anterior ao AO.