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Consultor Editorial Adir Moysés Luiz

Doutorem Cíências pela UFRJ Tradução


Waltensir Dutra
#Nicholas Humphrey
A evoluçao e a genese
da consciencia
#Do original:
A History of the Mind
"Tradução autorizada do idioma inglês da edição publicada por Simon & Schuster'
Copyright
O 1992 by Nicholas Humphrey
1994, Editora Campus Ltda.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12173.
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Editoração Eletrônica: Rio Texto
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Telefone: (021)221-5340 FAX (021)507-1991
20050-002 Rio de Janeiro RJ Brasil Endereço Telegráfico: CAMPUSIRIO
ISBN 85-7001-890-8
(Edir,bo original: ISBN 0-671-68644-5. Simon & Schuster, Simon & Schuster Buildi
ng, Rockefeller Center,
123O Avenue of the Americas, New York, NY, USA)
Ficha Catalográfica
CIP-Brasil. Cata logação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R.1
Humphrey, Nicholas
H912h Uma história da mente : a evolução e a gênese da consciência 1
Nicholas Hump
hrey ; tradução de Waltensir Outra. - Rio de Janeiro Campus, 1994.
Tradução de: A history of lhe mind Bibliografia.
índice ISBIN 85-7001-890-8
1. Consciência - História. 2. Corpo e mente - História.
3. Sentidos e sensações - História. 4. Psioologia genética. 1. Título.
94-0351
CDD - 128.2 CDLI - 159.922
94 95 96 97 98
5 4 3 2 1
#-9j í10
AGRADECIMENTOS
0253910O 3~-MON
enho motivos para agradecer a muitas pessoas a ajuda que me prestaram. Sou parti
cularmente grato a Peter Bieri, Ro-
Tbert van Gulick, Nicolas Grahek, Ray Jackendoff, Marcel Kinsbourne, Ayla Kohn,
Anthony Marcel, Jay Rosenberg, David Rosenthal e Eckart Scheerer.
Mas há alguém a quem devo muito mais do que a qualquer outra pessoa, e por isso seu
nome merece um destaque especial. Daniel Dennett tem sido o tipo de colega que
todos gostariam de ter e quase ninguém tem: patrono, mestre, crítico, companheiro
de
aventura e amigo.
Estimulou-me a começar este livro, deu-me uma base de onde partir, desfez minhas
dív
idas, levantou outras e fez uma crítica detalhada durante todo o seu preparo.
Sendo bem conhecida a sua posição em relação a uma série de questões que trato
aqui, e perdu
rando uma divergencia parcial de opiniões entre nós, ele pode ter pesado,
ocasionalmente, que tinha levado um estranho Para o ninho. Mais um motivo para a
gradecer-lhe.
Durante o preparo deste livro tive uma Bolsa de Visitante no Centro de Estudos C
ognitivos, de Dennett, no Departamento de Filosofia da Universidade Tufts, e pos
teriormente
fui membro do "Grupo Mente e Cérebro" do Centro de Pesquisa Interdisciplinar (ZiF)
da Universidade de Bielefeld. Numa época em que a GrãBretanha nos estava
transforma
ndo
a todos em ciganos acadêmicos, sou especialmente grato a essas universidades estra
ngeiras
#por me hospedarem. A Fundação Kapor (que colaborou com a bolsa em Tufts), Alec
Hors
ley, meus editores e a editora de texto Jenny Uglow também me proporcionaram
ajuda financeira e material, pela qual lhes sou grato.
#APRESENTAÇAO
O artigo indefinido tem os seus usos. Teria sido um erro chamar este livro de "A
História da Mente", mas posso
chamá-lo de Uma História", sem hesitação. E uma história parcial de um aspecto do
que cons
titui a mente humana: uma história evolucionária de como a consciência
sensorial surgiu no mundo e o que está fazendo nele. Mas a história evolucionária é
apar
te maior da história, e a consciência sensorial é a melhor parte da mente.
Não foram poucos-talvez seu númerotenha sido excessivo
- os livros sobre a mente, a consciência e a evolução, publicados nos últimos anos
(dois
deles, escritos por mim). E enquanto as prateleiras fazem barriga e os apetites

se saciam, devo explicar o que há de diferente neste volume.


É diferente porque é mais antiquado do que a maioria dos outros livros. Tem muito
po
uco a dizer sobre computadores, ou inteligência artificial, ou sobre a chamada
revolução cognitiva em psicologia. Mal se refere a todas as recentes descobertas
das
neurociências. Não menciona a teoria quântica, os fractais, ou os campos mórficos.
Não usa a sociobiologia. Na verdade, sob muitos aspectos é um livro que poderia ter
sido escrito há cem anos. M as não foi. Continua no fio cortante da teoria:
mas grande parte desse corte pode ser feito com uma simples pá.
E diferente por ser mais ambicioso do que a maioria dos outros livros. Pretende
não apenas definir o problema da consciência, mas resolvê-lo. Depois de décadas de
um otimismo injus-
#tificado e a subseqüente decepção, muitos cientistas e filósofos ainda acham que a
sua
tarefa primordial é identificar o vale que fica depois da próxima montanha,
onde o arco-íris se encontra com a terra. Mas já é tempo de começarmos a cavar em
busca
do pote de ouro.
É um livro diferente porque trata de coisas reais. Enquanto em Consciousness Regai
nedI e The Inner Eye2 procurei explicar a natureza da "visão consciente" dos nosso
s
sentimentos, aqui volto à natureza do sentimento como tal. Na verdade, neste livro
deixo totalmente de lado a minha posição anterior e passo a focalizar a
consciência
como uma sensação em estado natural. Quando um amigo perguntou a J. M. Keynes por
qu
e rejeitava com tanta facilidade suas idéias antigas, ele respondeu: "O que quer
que eu faça, quando percebo que estava errado?" No meu caso, creio que eu não
estava
tão errado, mas sim que em minhas obras anteriores coloquei-me em nível muito
elevado e deixei sem solução os problemas fundamentais.
Outros escritores que trataram da consciência concentraramse, como fiz antes, em f
aculdades mentais de segunda ordem "pensamentos sobre sentimentos" e "pensamento
s
sobre pensamentos". Essa tendência é facilmente explicável. As capacidades de alto
nível
, que envolvem o raciocínio abstrato, a linguagem, a auto-identidade, a
inteligência

social e assim por diante, são indícios de maturidade humana, ao passo que os
sentim
entos em estado natural ocorrem nos brutos e. nas crianças. As primeiras nos
impressionam e surpreendem mais do que.os segundos, parecem exigir mais trabalho
evolucionário e individual, são os pré-requisitos de uma mente adulta - e são
atraentes

para o teórico. Quando William Calvin, por exemplo, escreveu (em outro livro recen
te sobre a consciência): "Realmente quero dizer consciência no sentido de (...
) contemplar o passado e prever o futuro, planejar o que fazer amanhã, sentir cons
ternação ao ver desenrolar-se uma tragédia e narrar a história de nossa vida"3
OU quando Roger Penrose escreve (em mais outro livro) "é a capacidade de adivinhar
(ou'intuir') a verdade em contraposição à falsidade ( ...) que, em
circunstâncias
adequadas, constitui a marca da consciência"4 compreendo seu entusiasmo em explica
r essas notáveis capacidades humanas e lhes faço votos de sucesso. Mas primeiro
as coisas primeiras. A história de nossa vida é, em primeiro lugar, a história de
um e
u sentiente ou não será história nenhuma - e este é um livro sobre coisas
primeiras.
#Escrevi-o na forma de uma viagem de descoberta (que reproduz a maneira pela qua
l caminharam minhas reflexões). A linha de raciocínio, embora não desordenada, se
faz um pouco ao acaso
- aproveitando, de acordo com a necessidade, uma prova biológica aqui, um argument
o lógico ali, uma especulação pura onde nada mais bastaria.
Embora nenhum autor de uma teoria deva esconder-se atrás do adágio de que "a
viagem,
e não a chegada, é que importa", acredíto realmente que as chegadas têm muito
pouco significado sem as viagens. Em The HitchUer's Guide to the Galaxy5 a solução
p
ara o enigma da "vida, o universo e tudo" aparece como sendo "42". Talvez seja.
Mas quem se importa, se não houver explicação de como, ou por quê, a resposta é 42?
Em si
mesma, como um fato apenas, a resposta 42 é desinteressante.
Seria desinteressante a solução do problema da consciência? Embora eu mesmo
responda à p
ergunta, acho que se fosse apresentada apenas como fato, sim, ela seria desinter
essante
(talvez até mesmo devesse ser). Mas se fosse colocada num contexto evolucionário,
tu
do se modificaria.
NOTAS
1. Nicolas Humphrey, Consciousness Regained. Oxford, Oxford University Press,
1983.
2. Nicholas Humphrey, ne Inner Eye. Londres, Faber and Faber, 1986.
3. William Calvin, The Cerebral Symphony. Nova York, Bantam Books, 1990, p.
3.
4. Roger Penrose, A Mente Nova do Rei: Coniputadores, Mentes e as Leis da Física.
Rio de janeiro, Editora Campus. 1991, p. 457.
5. Douglas, Adams. The Hitchhiker's Guide to the Galaxy. Londres, Pan Books,
1978.
#SUMÁRIO
1. MENTE E CORPO ........................ 1 Introdução ao
prob
lema - a
evidente incomensurabilidade da mente e do cérebro - soluções e não-soluções
- uma tarefa sem esperanças? - o moinho de Leibniz - níveis de descrição - a
promessa do
funcionalismo.
2."TRABALHO INTRIGANTE": UM APARTE SOBRE
A LINGUAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A dificuldade de dizer "exatamente o que se quer" -como as palavras transmitem d
emais, ou muito pouco - falar da consciência.
3. O QUE ACONTECEU NA HISTóRIA: A VERSÃO SECRETA . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . .19 Um mundo sem fenômenos -a matéria vital e a
importância
dos limites corporais - "eu" e "não-eu" - o primado do afeto
- a evolução da sensibilidade - representações e planos de ação - "o que está
acontecendo co
go" em contraposição a glo que está acontecendo fora de mim" -signos
sensoriais e significados perceptuais -a linha dual da evolução mental.
4. A DUPLA FUNÇÃO DOS SENTIDOS . . . . . . . . . . .29 Thomas Reid e a
crucial distinção entre "sensação" e
19percepção" - Starbuck e os sentidos "íntimos" e
"definidores" -problemas com as palavras -o relacionamento dos dois modos de rep
resentação - canais seriais ou paralelos no cérebro?
#S. "O QUE VEMOS?" ....................... 37 À visão como
um
teste da distinção -o constrangimento
dos filósofos que deixam de apreciar isso - como a visão se desenvolveu a partir da
percepção cutânea - a pele transforma-se no olho - a pele contínua pele - a
persistência
da intimidade visual.
6. A COR É O TECLADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45 Reações
íntimas
ao "toque" da luz colorida nos seres humanos
- a estética da cor - reações exageradas na doença Manfred Clynes e as "reações
sênticas".
7. NO REINO DOS SENTIDOS . . . . . . . . . . . . . . . .49 A cultura
da sensação -preconceitos platônicos contra a intimidade sensorial - Reações
românticas
- A pintura impressionista - Karl e Cézanne e a subjetividade da beleza
- a sensação na "contemplação pura" - Aldous Huxley e a intensificação da sensação
com droga
e ampliam a consciência.
S. A VISÃO QUE VAI E VEM . . . . . . . . . . . . . . . . . .55 A possibili
dade de selecionar um ou outro canal -os macacos mostram indícios de oscilar entre
os modos interesse perceptual versus prazer sensorial - Roger Fry e uma distinção
pa
ralela na reação das pessoas à arte.
9. "DEVE PARECER ESTRANHO!" . . . . . . . . . . . . . .61 Por que gr
ande parte da filosofia mental deve ser guiada pela psicologia sensorial - tudo
o
que existe na mente estava primeiro nos sentidos - o que está em jogo numa teoria
da consciência - Locke, Wittgenstein e o "espectro invertido" Diderot e a necessid
ade
de dados experimentais reais.
10- NOVAS DISPOSIÇõES . . . . . . . . . . . . . . . . . . .67
Experimentos
para provar que a sensação e a percepção podem seguir caminhos próprios - visão
de cabeça-para-baixo: adaptação perceptual sem mudança sensorial - "visão da pele":
percepçã
visual com persistente sensação tátil.
#11. CEGUEIRA MENTAL E MENTALIDADE CEGA .... 75 Provas clínicas de canais sensoria
is e perceptuais paralelos
no cérebro - sensação sem percepção? - as agnosias visuais
- percepção sem sensação? - percepção subliminar ffvisão cega" depois de dano ao
córtex visu
12. MAIS SOBRE A VISÃO CEGA ............... 83 C
omo é a visão cega? - o caso de Helen, uma macaca que "sabia" o que existe lá fora
- paralelos humanos - visão
cega como percepção visual que nada tem a ver "comigo" - o papel da sensação na
percepção "c
onfrmadora".
13. UM FOGO NA MÃO: A ADAGA DA MENTE . . . . . 91
A diferença entre "apenas saber" e "sentir" - imaginação e memória - a espessura
sensorial das imagens - um caso hipotético de ouvir a si mesmo ouvir -
consideraçoes
evolucionárias - a nudez da imaginação caracteriza as imagens mentais da realidade
-viver no presente subjetivo da sensação -a situação de intermediário das imagens.
14. ELE ACHOU QUE VIU UM ELEFANTE . . . . . . . . . 9
9 Uma teoria das imagens mentais - a sensação como cópia, a percepção como raconto
- a necessidade de descobrir os erros perceptuais - "o eco que volta à origem" -on
de
ocorre a comparação? - prova de que envolve o canal sensorial - ilusões e
"regressão fen
omenal ao objeto real" uma hipótese específica -rivalidade sensorioperceptual
os sonhos como caso limítrofe -provas da neurofisiologia.
15. AQUI JAZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
"Ter consciência é essencialmente ter sensações" - sinto, portanto existo -
seguem-se
oito afirmações.
16. O QUE JAZ AQUI? UM CAPíTULO SOBRE
DEFINIÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
O que ,e significa "consciência" e por que a palavra é necessária -considerações
etimológica
s -consciência transitiva e intransitiva - o "ter sensações" como um
conceito
natural -
a visão do olho infantil - como a palavra "consciência" é aprendida - como é
realmente u
sada - consciência e afeto
- por que as teorias que não se ocupam da sensação deixam de lado o problema real.
#17. CINCO CARACTERSTICAS EM BUSCA DE UMA TEORIA ..........................
..... 131
O que é "ter sensações?" - cinco propriedades características que distinguem as
sensações da
s percepções -pertencente ao sujeito - ligada a um lugar particular do
corpo - tendo uma qualidade específica de modalidade - sendo entidades de tempo pr
esente, existentes - autocaracterizadoras em todos esses aspectos - como podem
esses aspectos das sensações relacionar-se com um mecanismo plausível no cérebro?
18. O PROBLEMA DA PROPRIEDADE (COM
AMURAS A BORESTE) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145
O que significa dizer que minhas sensações são "realmente minhas"? - o problema da
pro
priedade em geral - o primado da propriedade do próprio corpo - como a propriedade
corporal se origina da experiência do controle dos próprios membros - o "eu" como a
fonte da agência voluntária - evidências »corroborativas dos gêmeos siameses
e casos de paralisia - propriedade em geral como controle de facto - o "eu" como
autor de minhas próprias sensações? - a possibilidade de que as sensações sejam
uma forma de
atividade corporal que "eu" realizo.
19. A QUESTÃO DOS INDICATIVOS (COM
AMURAS A BOMBORDO) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157 Novas a
nalogias entre sensações e atívidades corporais -a natureza dos "indicativos" e um
forte argumento -a única forma de indicar o "aqui" e "agora" de um acontecimento é
c
riar uma perturbação física numa localização "relevante": daí a atividade sensorial
ter de fazer alguma coisa no lugar em que a sensação é experimentada.
20. PLUS ÇA CIL4NGE... . . . . . . .165
O pedigree evolucionário da atividade sensorial -como as representações sensoriais
com
eçaram
como respostas afetivas na superfície do corpo -o epitélio sensorial
também foi o epitélio responsivo -o 9aço sensorial" estendeu-se enquanto a resposta
co
ntinua a voltar-se para a superfície corporal todas as respostas sensoriais
humanas descendem do que foram originalmente "contorções de aceitação ou rejeição"
arnebiana
s.
#21. UMA PEQUENA MUSICA MENTAL ........... 169
O problema do que constitui a qualidade sensorial - como puderam essas "contorções"
(ou "sentimentos")
tornar-se subjacentes a toda a gama de sensações humanas? -
os sentimentos à superfície do corpo têm um "estilo adverbial" -a qualidade modal é
dete
rminada pela estrutura do epitélio, a qualidade submodal pela função da resposta
afetiva - uma analogia musical.
22. ENERGIAS NERVOSAS ESPECíFICAS? . . . . . . . . .175 Mais
sobre a qualidade sensorial -a teoria tradicional das '§energias nervosas
específic
as"
e por que não funciona enfatizando antes o produto do que o insumo -modos de ação
corp
oral agindo como uma analogia para modos de sentir - a possibilidade de uma
fenomenologia objetiva.
23. FUMAÇA SEM FOGO" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 "Só
as
coisas mentais são reais"? -evidências da participação da superfície corporal
real nas sensaçoes -membros fantasmas, o ponto cego visual - a necessidade de uma
teoria Mark-2 -um "modelo interior" como substituto do corpo real? -como esse mo
delo interior poderia ter evoluído no córtex através do curto-circuito do laço
sensorial
"sentimentos cerebrais" em oposição aos sentimentos $'corporais" -o que estão
fazendo
agora os sentimentos cerebrais?
24. TEMPO PRESENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .191
O que se deve entender pela afirmação de que "experimentar uma sensação é emitir
instruções
equadas para os
sentimentos"? - por que é preciso dizer mais sobre a natureza das "instruções" - as
in
struções são intencionais e devem ter um resultado previsto, mas uma série
de impulsos nervosos per se não pode prever nada - o "presente estendido" e como o
s resultados reais e previstos podem coincidir - os laços de retroalimentação
reverber
ativos
e sua evolução no cérebro - atividades sensoriais tornam-se a fenomenologia das
"instr
uções em si mesmas" do presente consciente.
25. HURRA! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 A t
eoria em exame -o sentimento consciente surge como
um tipo notável de ato intencional - um tipo de ato que cria
#seu próprio presente estendido fora do tempo físico e do qual o sujeito consciente
é
autor,
público e espectador, combinados num único.
26. HURRA! PELOS MODOS ANTIGOS . . . . . . . . . . .209 Embora te
nhamos agora a maioria dos ingredientes para uma teoria da consciência, a qualidad
e
sensorial corre o perigo de escapar -o que foi feito do "estilo adverbial" dos
sentimentos, depois que deixaram de ter relação com a atividade corporal real?
-recu
rso à idéia do conservantismo evolucionário - uma analogia arquitetônica
"esquenomorfos"
na evolução do design - o estilo modal de sentimentos como característica vestigial
-u
ma analogia com os roteiros - a questão da oscilação genética - a possibilidade
de que os estilos das sensações das diversas espécies possam diferir.
27. A MENTE FEITA CARNE . . . . . . . . . . . . . . . . . .219 A persp
ectiva maior - até que ponto a consciência se estende pela natureza? - pode um
objet
o
feito pelo homem ser
consciente? - que provas podemos ter da consciência em outras mentes? - como a con
sciência de outros animais se compara com a nossa? - quais os limites daquilo que
podemos conhecer?
28. ÁGUA E VINHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .235 Mas isso
é tudo? - o que mais querem as pessoas? - a plenitude metafísica - a situação
de uma teoria funcionalista da identidade - Kripke e as identidades contingentes
e necessárias -haverá um mundo possível no qual a teoria não seja válida? - se a
teoria realizou sua função, tem de ser válida.
29. O SER E O NADA Finis
íNDICE . . . . . . . .
.245
.249
#Senão me engano muito, não só separei totalmente as idéias de Tempo e Espaço
( .. ) com
o tenho confiança de que estou na iminência defazer mais
- ou seja, de ser capaz de desenvolver todos os cinco sentidos, isto é, deduzí-los
d
e um sentido e descrever seu crescimento, e as causas de sua díferença - e nesse
desenvolvimento resolver o processo da Vida e da Consciência.
Saniuel Coleridge Letter to Thomas Poole, 1801*
Samuel Coleridge (1801), citado por Richard Holmes, Coleridge. Londres, Hodder a
nd Stoughton, 1989, p. 300.
#Para Ayla
#Capítulo
MENTE E CORPO
Tudo que é interessante na natureza acontece nas áreas limítrofes: a superfície da
terra
, a membrana de uma célula, o
momento de catástrofe, o começo e o fim de uma vida. A primeira e a última página
de um
livro são as mais difíceis de escrever.
Estou começando este livro no dia 25 de dezembro, aniversário da morte de meu pai.
T
alvez o termine na epoca em que nascer o meu primeiro filho.
Quandomeu pai morreu,voltei de avião dos Estados Unidos para a Inglaterra, e chegu
ei em casa no dia seguinte. Ele estava deitado na sua cama, em nossa fazenda per
to
de Cambridge, proverbialmente adormecido. O agente funerário chegou e pediume que
lhe mostrasse o corpo. Era melhor, disse, que a família ficasse em outra sala enqu
anto
ele e seu auxiliar levavam "o corpo" para o andar de baixo. Esse "o corpo" foi u
m curioso alívio para mim. Meu
pai já não estava ali.
Durante setenta anos meu pai tinha sido um vaso da consciência, uma bolha de human
idade consciente encerrado na espuma escura da matéria insensata. Durante aquele
limitado período, tinha sido um sujeito para si mesmo, e um objeto para os demais.
Sua conciência era contida em si mesma. O que estava dentro de
#sua mente estava sempre fora da nossa. Ele tinha sido o centro de idéias. Tinha d
esfrutado o tempo presente das sensações em estado natural. Tinha sabido o que
era ser um homem. Mas então, por fim, rompeu-se o cálice dourado, a bolha explodiu.
A partir desse momento a distinção entre dentro/fora desapareceu, ou melhor,
já não havia mais o "dentro".
Em seu enterro lemos um trecho do The Pigrim's Progress de John Bunyan: "Quando
chegou o dia em que ele tinha de partir daqui, muitos o acompanharam até a margem,

e ao entrar no rio ele disse: 'Morte, onde está teu aguilhão?' E, ao afundar-se
aind
a mais, disse: 'Sepulcro, onde está tua vitóriaT E assim fez a travessia, e todas
as trombetas soaram para ele do outro lado."1
Pensei, ao mesmo tempo, em Cypress Crove de William Drummond: "Se dois peregrino
s, que andaram juntos algumas milhas, sentem dor no coração ao se apartarem, qual
não deve ser a dor da partida de dois amigos que se querem tanto, que nunca se des
entenderam, como o corpo e a alma?"2
Houve tentativas sérias, mesmo neste século, para se registrar a "partida da alma"
c
om medidas científicas. O dr. Duncan MacDougall escreveu novolume de 1907 doJoumal
of
theAmerican Societyfor Psychical Research que tinha colocado pacientes agonizant
es numa cama leve, montada numa balança cuidadosamente ajustada. Registrou súbitas
perdas de peso no momento da morte, que oscilaram entre três oitavos e metade de u
ma onça [1O e 14 gramas], em três pacientes diferentes. Ao realizar experimentos
semelhantes com cães agonizantes, não se observaram perdas de peso com a morte.3
Os resultados deMacDougall nãovoltaram a ser registrados. Quando ocorre a morte de
uma pessoa, não há necessidade de que um átomo sequer seja ganho ou perdido.
Apenas
os átomos de que essa pessoa era feita passaram a ser dispostos de outra maneira,
e nessa nova disposição deixam de constituir uma pessoa.
Há dois domingos, num serviço religioso no Harlem, ouvi um pregador negro fazer um
s
ermão sobre "Tomar o que énosso".
O problema é, disse ele, "se você é mesmo, ou se você não é?". Hamlet disse de
maneira difer
ente: "Ser ou não ser?". É uma pergunta que não admite meia resposta.
Ser você mesmo é como ser alguma coisa, ou não é. Uma pessoa é, ou não é. As
implicações des
stituem a matéria deste livro.
#Meu tema é grande, mas tenho de passar a primeira metade do livro delineando-o. E
, enquanto não o fizer, reluto em falar sobre seu tamanho ou peso. Quanto à sua
forma, porém, posso dizer imediatamente qual é: ele tem a forma do Problema
MenteCor
p?.
E o problema de explicar como surgem nos cérebros humanos os estados de
consciência.
Mais especificamente (e terei de ser mais específico no devido momento) é o
problema de explicar como os sentimentos subjetivos surgem nos cérebros humanos.
O vocabulário com o qual tenho de trabalhar talvez não seja muito adequado.
"Sentime
nto subjetivo"já é uma expressão demasiado vaga. É, porém, a mais usada, mesmo
nas discussões relativamente técnicas dos filósofos, para capturar o sentido do que
é ex
perimentar a consciência internamente. Exemplos de sentimentos subjetivos
são a percepção da cor vermelha de uma rosa, a sensação de um calafrio na espinha,
o gosto
do queijo Roquefort.
Todos nós experimentamos esses sentimentos na "privacidade" de nossa própria
consciênc
ia, ou assim parece. Sua "qualidade" nos é transparente, embora não seja algo
que possamos comunicar facilmente a outra pessoa; e como a qualidade é tão
important
e, e realmente é intrínseca ao sentimento, os filósofos por vezes se referem
aos sentimentos subjetivos simplesmente como "qualia". Ninguém duvida de que esses
sentimentos subjetivos tenham também aspectos quantitativos: eu poderia dizer-lhe
s,
por exemplo, que uma percepção do vermelho foi duas vezes mais forte do que outra.
M
as o que não lhes poderia dizer (se vocês já não soubessem) é onde reside a
qualidade
de vermelho.
Ora, esse é o problema, tal como surge de três fatos óbvios da vida humana:
O primeiro é o fato de que, quando mordominha língua, por exemplo, experimento o
sen
timento subjetivo de dor (e, para me lembrar do que ele significa, faço isso
neste momento). Essa experiência só existe para mim, e se eu tivesse de dizer-lhes
c
omo é, só poderia fazê-lo da maneira mais vaga e metafórica. A dor que sinto
está associada a um momento (este, agora), a um lugar (minha língua), a uma
intensid
ade (moderada) e a um
tom afetivo (desagradável), mas na maioria dos outros
aspectos parece situarse além da possibilidade de descrição física. Realmente,
minha
#dor, eu diria, não é parte do mundo objetivo, o mundo da matéria física. Em suma,
ela d
ificilmente pode`ser considerada como um acontecimento físico.
O segundo é o fato de que ao mesmo tempo em que mordo minha língua processos
correla
tos estão acontecendo em meu cérebro. Esses processos compreendem a atividade
de células nervosas. Em princípio (embora não na prática, é claro) eles poderiam
ser obser
vados por um cientista independente com acesso ao interior de minha cabeça.
E se ele tivesse de dizer a outro cientista em que consiste a minha dor cujas raíz
es estão no cérebro, verificaria que a linguagem objetiva da física e da química
é perfeitamente suficiente para isso. Para esse cientista, a minha dor baseada no
cérebro não pertenceria a outra esfera que não fosse ao mundo da matéria física.
Em suma, ela nada mais é do que um acontecimento físico.
O terceiro é o fato de que, até onde sabemos, o Fato 1 depende totalmente do Fato
2.
Em outras palavras, o sentimento subjetivo é provocado por processos cerebrais
(qualquer que seja o significado exato de "é provocado").
O problema é explicar como, por quê, e com que finalidade surgiu, para a mente não
físic
a, essa dependência do cérebro em que ela se encontra.
E um problema que, através dos séculos, tem provocado frustração, desespero e quase
pânico
nos filósofos. Há 35O anos Renê Descartes expressou seu sentimento de
desamparo: 'Tão sérias são as dúvidas nas quais fui lançado ( ... ) que não
posso afastá
as da mente nem vejo qualquer possibilidade de
resolvê-l. É como se
eu tivesse caído inesperadamente num redemoinho profundo, que me faz girar, de tal
modo que não posso ficar de pé no fundo, nem nadar até o alto.114
A solução encontrada por Descartes foi negar a implicação óbvia do Fato 3, e
escolher a hi
pótese do dualismo. Este afirma que o universo encerra dois tipos muito
diferentes de matéria, a mental (da qual são feitos os sentimentos subjetivos) e a
fís
ica (da qual são feitos os cérebros), e que elas existem num estado de
semidependência

mútua. Assim, poderia haver, em princípio, mentes sem cérebros e cérebros sem
mente. Se
e quando essas entidades distintas se encontram e interagem - e Descartes
reconhecia naturalmente que isso acontece -, tem de haver um aperto de mãos por so
bre essa divisão metafisica.
#O problema com o dualismo é que explica de mais e de menos, ao mesmo tempo, e pou
cos filósofos se sentiram à vontade com ele. Mais recentemente, eles adotaram
várias
formas de monismo, segundo o qual na realidade só existe um tipo de matéria, da
qual
são feitos, em última análise, tanto as mentes como os cérebros. E em sua forma
mais extremada - o fisicalismo -, o monismo pretende que os sentimentos subjetiv
os específicos são na verdade idênticos a processos cerebrais físicos específicos
(da mesma forma que um relâmpago é idêntico a uma descarga elétrica no ar).
Mas também são poucos os que se satisfazem com isso. Essa teoria significa, entre
ou
tras coisas, que só organismos vivos baseados no carbono, como nós (com cérebros
baseados no carbono), poderiam ter sentimentos conscientes mais ou menos como os
nossos. E os filósofos não gostam de negar consciência, antecipadamente, a outros
tipos de formas de vida com cérebros constituídos de maneira diferente. Pareceria
no
mínimo chauvinismo supor que, se criaturas humanóides se desenvolvessem num
planeta longínquo, usando elementos diferentes na sua formação, essas'pessoas não
teriam
nenhum dos sentimentos subjetivos que experimentamos - por mais inteligente
e sensato que fosse o seu comportamento. Poderiam não ter, e a verdade certamente
não é evidente por si mesma.
De qualquer modo, mesmo que os sentimentos subjetivos sejam naturalmente idênticos
aos estados físicos, esse "naturalmente" ainda clamaria por uma explicação. Se
simplesmente reconhecêssemos a identidade, nada teríamos feito para dissipar o
senti
mento de mistério que envolve tal circunstância. As analogias com o relâmpago
também não ajudariam. Pois, no caso dele, não há realmente mistério: qualquer
físico compete
nte poderia prever que uma descarga elétrica na atmosfera produziria,
em circunstâncias adequadas, o clarão e o estampido. Em contraste, ninguém poderia
seq
uer começar a prever que a atividade elétrica de um cérebro produzisse o sentimento
subjetivo do gosto do queijo.
Samuel Johnson escreve em Rasselas, em 1759: "A matéria só pode ser diferente da
matér
ia na forma, volume, densidade, movimento edireção do movimento: a qual destes,
pormaisvariados ou combinados que sejam, pode ser anexada a consciência? Ser redon
do ou quadrado, ser sólido ou fluido, ser grande ou peque-
#no, ser movimentado lenta ou rapidamente numa ou noutra direção, tudo isso é
igualmen
te estranho à natureza da cogitação."5 E para muitos intérpretes modernos,
persistem as mesmas ansiedades. O filósofo britânico Colin McGinn escreveu
recenteme
nte: "De alguma forma, sentimos, a água do cérebro físico
transformar-se no vinho
da consciência, mas nada sabemos da natureza dessa transformação. Transmissões
neurais p
arecem ser apenas o tipo de matéria inadequada para trazer ao mundo a consciência.
( ... )O problema mente-corpo é o problema de entender como se
processam os milagres.116
A conclusão infeliz de McGinn é a provável insolubilidade do problema: ou nãohá
realmente
solução, ou, se há, a inteligência humana será sempre demasiado limitada
para alcançá-la.
Alguns tipos de problemas são insolúveis em princípio. Não há solução, por exemplo,
para o p
blema de colocar o conteúdo de um litro num recipiente de meio litro,
ou de enfiar a mão esquerda na luva direita ou (como no caso) transformara água em
vinho. Se o problema mente-corpo fosse desse tipo, não haveria utilidade em
ocupar-se dele.
Mas, antes de estabelecermos tal analogia, devemos notar u ma diferença interessan
te entre os problemas de colocar um litro no meio litro e de dar consciência ao
cérebro: ou seja, nunca se colocou um litro num meio litro, mas a consciência
ocorre
permanentemente. Se a transformação da água do cérebro físico no vinho da
consciência
é um milagre, será um desses milagres cotidianos aos quais a palavra "milagre" por
d
efinição não deveria aplicar~se.
Assim sendo, ao apresentarmos o problema mente-corpo, devemos ter o cuidado de não
o tornar, sem nos dar conta disso, não apenas um problema difícil, mas também
aparentemente sem uma solução lógica.
Gottfried Leibniz, em sua Monadology, de 1714, imaginou alguém que caminhasse em v
olta de um cérebro, como um fiscal poderia fazer em torno de um moinho de farinha:

"Devemos confessar, além disso, que a percepção e aquilo que dela depende são
inexpliCávei
S pelas causas mecânicas, isto é, pelas figuras e movinientos. E, supondo
que fôssemos uma máquina construída para pensar, sentir e ter percepção, poderíamos
concebê-
como am-
#pliada e ao mesmo tempo preservando a mesma proporção, de modo que nela pudéssemos
en
trar como num moinho. Admitido isso, encontraríamos apenas, ao visitá-la, peças
que se movimentam mutuamente, mas nunca encontraríamos nada que explicasse a perce
pção.,,7
A metáfora é convincente, mas se refletirmos veremos que tem uma falha óbvia.
Leibniz
tomou o moinho para exemplificar o extremo da realidade física. Mas poderia
ter usado o mesmo exemplo para chegar aum efeitobastante diferente. Pois omoinho
não é simplesmente um objeto físico. Mais importante, é um moinho, uma máquina
para
moer grãos e proporcionar farinha para o pão; é um lugar que dá empregos; é uma
fonte de r
iqueza. De fato, o moleiro do rio Dee diz na canção: Tu vivo do meu moinho,
ele é para mim ao mesmo tempo pai, filho e mulher." Alguém que visitasse o moinho e
encontrasse apenas peças que se movimentam mutuamente também não poderia explicar
nenhuma dessas propriedades. Mas isso aconteceria por estar o visitante caindo n
a armadilha do bom senso, a de supor que a primeira impressão diz tudo: estaria us
ando
um nível errado de descrição.
Dei certa vez uma aula para a qual levei uma caixa com duas coisas dentro. Mexi
nelas com uma régua, rá-tá-tá, e pedi aos alunos que adivinhassem o que eram.
"Objetos
ocos." Deixei que dessem uma olhadela rápida. "Ossos." "Caveiras." Um objeto era m
enor do que o outro. "Caveiras de homem e de mulher." Retirando da caixa os obje
tos,
expliquei que eram caveiras de índios americanos roubadas de um túmulo. Tonha de
vol
ta na caixa." Expliquei que eram provavelmente marido e mulher, um jovem casal
que morreu junto e foi enterrado junto. Dei-lhes nomes e coloquei-as juntinhas,
Hiawatha e Minnehaha. "Que coisa horrível..."
A lição era que dois objetos ocos feitos principalmente de fosfato de cal também
podem
, em outro nível e descrição, ser as relíquias de dois amantes; além disso,
que o uso que se dá a esses objetos pode ser um entretenimento casual ou um grande
insulto. Diferentes níveis de descrição não precisam ter muita coisa em COMUM.
Ora, o que é válido para um moinho ou uma caveira é sem dúvida ainda maisválido
paraum mec
anismo funcional altamente evoluído como o cérebro. Em certo sentido, os
cérebros são
#objetos físicos que podem ser descritos simplificadamente em termos de suas parte
s materiais. Mas esta não é, decerto, a única forma de representá-los, nem é
necessariamen
te
a mais reveladora. O que pode ser necessário para se proporcionar uma melhor indic
ação de como surge a atividade mental é uma forma de representar o que os cérebros
fazem no decorrer do tempo, ao contrário do que são a cada momento.
Uma possibilidade, por exemplo, seria considerá-los como máquinas computadoras ou
mo
tores lógicos, de modo que as propriedades que para nós têm sejam não tanto
físicas,
mas matemáticas. Desse modo, o cérebro poderia ser caracterizado como um dipositivo
que recebe 'Informação" e a "processa" para produzir mais informação (ele
certamente
assim faz, se desejarmos dar-lhe essa descrição); e poderíamos dizer que o
importante é
a relação matemática entre o insumo e o produto. Nesse caso, os sentimentos
subjetivos específicos seriam idênticos não aos processos cerebrais físicos
específicos, e
sim às operações lógicas específicas realizadas.
A teoria de que os estados mentais em geral são apenas estados computacionais mate
maticamente definidos tornou-se conhecida como funcionalismo. Foi adotada com en
tusiasmo
por vários filósofos contemporâneos. William Lycan, por exemplo, escreveu num livro
re
cente que ela é "a única doutrina positiva em toda a filosofia pela qual estou
disposto (embora não tenha permissão para isso) a matar".8 Embora muitos outros
conc
ordem que pode haver uma equivalência entre estados computacionais e certos tipos
de processos mentais, eles estabelecem um limite nos processos mentais conscient
es e com mais firmeza ainda na experiencia consciente dos sentimentos subjetivos
.
E, certamen te, uma idéia estranha, a de que estados da consciência correspondem
mai
s a estados lógicos do que a estados materiais do cérebro. Parece especialmente
estranha quando compreendemos que, se a idéia estiver correta, esses mesmos estado
s lógicos podem existir numa maquina inanimada e que a maquina (qualquer que seja
a sua composição) teria portanto sentimentos conscientes.
Para alguns, é uma idéia estranha demais. Tornando a citar McCinn: "Não podemos
obter
o 'conteúdo qualitativo' da experiência consciente - ver o vermelho, sentir
dor etc. - das computações nosistema nervoso."9 Ou, citando RayJackendoff, autor
8
#de Consciousnessand theComputationalMind: Parece-metotalmente incoerente falar
de experiência consciente como um fluxo de informações ou falar dela como um
conjunto
de disparos neurais."10
Mas talvez apenas não saibamos ainda o bastante sobre a natureza daquilo que o sis
tema nervoso deve computar, e quando soubermos isso não nos parecerá um milagre
tão grande.
Bem, veremos... Mas não antes de termos uma idéia mais precisa do que é o lado
mental
do problema mente-corpo. E para isso será necessário que repensemos - ou reparemos
- pressupostos muito generalizados sobre para que servem as mentes. Embora meu o
bjetivo seja, realmente, explicar a "consciência" nos seres humanos sentientes, há
muito que dizer primeiro sobre o ser humano, e, antes disso, muito que dizer sob
re o ser sentiente.
NOTAS
1. John Bunyan (1678), ne Pilgrim's Progress, parte 2. Londres, Collins, 1910.
2. William Drummond of Hawthornden (1623), ne Cypress Grove, citado por John H
adfield. A Book of Beauty. Londres, Edward Hulton, 1952, p. 183.
3. Duncan MacDougall (1907), citado por James E. Alcock, Parapsychology: Scien
ce or Magic?. Oxford, Pergamon, 1981, p. 11.
4. Ren6 Descartes (1641), Meditations on First Philosophy. Second meditation,
24. Trad. de John Cottingham. Cambridge, Cambridge University Press,
1986.
5. Samuel Johnson (1759), 77te History ofRasselas, Prince ofAbyssinia, org. po
r J. P. Hardy. Oxford, Oxford University Press, 1988.
6. Colin McGinn, "Can We Solve the Mind-Body Problem?", in Mind 98 (1989), pp.
349-366.
7. Gottfried Leibniz (1714),Monadology, seqdo 17, citado por C. L. Hardin, Col
or or Philosophers. Indianapolis, Hackett, 1988, p. 134.
8. William Lycan, Consciousness. Cambridge, Massachusetts, NET Press, 1987, p.
37.
9. ColinMcGinn,"CouldaMachineBeConscious?",inMindwavesorg. por Colin Blakemore e
Susan Greenfield. Oxford, Blackwell, 1987, p. 287.
10. Ray Jackendoff, Consciousness and the Computational Mind. Cambridge, Massach
usetts, MIT Press, 1987, p, 18.
9
#Capítulo 2
"TRABALHO INTRIGANTE": UM APARTE SOBRE A
LINGUAGEM
Embora mal tenha começado, quero fazer uma pausa e tecer alguns comentários
profilátic
os sobre o uso das palavras. No
que já escrevi, e mais ainda no que Vou escrever, várias palavras-chave são
colocadas
entre aspas ou grifadas, um sinal certo de que elas não estão muito corretas.
Por vezes, como J. Alfred Prufrock lamenta no poema de T.S. Eliot, parece que:
É impossível dizer exatamente o que quero!
Mas é como se uma lanterna mágica lançasse os nervos em desenhos numa tela.'
Mas se é certo que nossos recursos lingüísticos para falar sobre a mente estão tão
mal des
envolvidos, isso poderia significar que há algo de seriamente errado com
toda essa empresa. Afinal de contas, os seres humanos vêm falando sobre essas ques
tões há muito, muito tempo. Se ainda é tão difícil encontrar as'palavras
11
#certas para descrever idéias aparentemente essenciais como a mente e a
consciência,
talvez isso queira dizer que tais idéias não são, afinal de contas, essenciais.
Há na filosofia do século XX uma forte tradição segundo a qual se, e quando, não
podemos d
izer
exatamente o que queremos, provavelmente não queremos dizer nada
que valha a pena ser dito. "Tudo que pode ser dito", escreveu Ludwig Wittgenstei
n, "pode ser dito com
clareza." Mas a situação não é realmente assim tão clara. O
colega de Wittgenstein em Cambridge, C. D. Broad, declarou que "a clareza nãobasta
". Quis dizer quefalar claramente não constitui uma garantia de dizer coisas sensa
tas
-que a clareza, embora necessária, não é suficiente. Mas talvez a clareza total
também não
seja necessária. Como todos nós sabemos, muitas coisas que os seres humanos
se dizem mutuamente não são ditas de maneira clara. E mesmo assim parece que
consegu
imos transn-útir a maior parte das coisas que queremos transmitir, na maioria
das vezes.
Não devemos adotar uma visão panglossiana da linguagem humana. A máxima do dr.
Panglos
s era que "Tudo é para o melhor, no melhor dos mundos possíveis". Ele sem dúvida
teria considerado que a nossa linguagem já é a melhor possível. Mas certamente
estaria
errado. Pois assim como a criança tem de adquirir vocabulário enquanto cresce,
o mesmo acontece com a cultura humana. E bem pode ser que em certas áreas de discu
rso a nossa cultura lingüística esteja ainda na infância.
Um exemplo revelador da imaturidade lingüística ocorre com Platão, que
aparentemente t
inha grande dificuldade em falar de números. Em A República, Sócrates discute
como os Guardiães do estado deviam organizar um programa de procriação para os
cidadãos:
"Por mais sábios que sejam os Governantes que treinastes para vossa cidade,
nem sempre poderão atinar, pela razão ou pelo concurso dos sentidos, com o momento
p
ropício ou contrário à propagação da vossa espécie. Esse momento lhes será oculto
e dia virá em que engendrarão e darão ao estado filhos concebidos e gerados em
época imp
rópria." Felizmente, diz Sócrates, tudo pode ser previsto pela aritmética:
"Para a criatura humana, o número [de gestação] é o primeiro no qual as
multiplicações da ra
iz e do quadrado (compreendendo três dimensões e quatro limites) de
números básicos, que tornam provável e improvável, e que aumentam e diminuem,
produzem u
m resultado final em termos totalmente proporcionaiS.112
12
#Se isso é grego para vocês, estão bem acompanhados, pois nem mesmo os
comentaristas
clássicos antigos puderam entender o que significava. Admite-se hoje, geralmente,
que o número em questão - "o número de Platão" - era 216; e 216 equivale a sete
meses, q
ue era o período mínimo de gestação, para os gregos (sendo a gestação normal
calculada como 216 + 3 x 4 x 5 = 276).
Ora, 216 é 6 ao cubo, e é também igual a 3 ao cubo + 4 ao cubo + 5 ao cubo. Era
essa p
ropriedade que Platão parecia estar querendo especificar. Embora ele deva ter
conhecido os números ao cubo -deva ter compreendido intuitivamente a sua
significação
matemática -, não dispunha de uma palavra para isso. E o melhor que podia fazer,
como sugerem os estudiosos, era empregar a desajeitada expressão "multiplicações da
ra
iz e do quadrado (compreendendo três dimensões e quatro limites)".
Pode parecer-nos hoje quase estranho quePlatão, logo ele, se tivesse perdido ao te
ntar expressar um conceito tão simples quanto "tomar a terceira potência". Qualquer
estudante moderno saberia fazê-lo. Mas, seja como for, é de presumir queninguém
alegar
ia que as dificuldades lingüísticas de Platão significavam que o "cubo" era
- ou é -uma idéia em relação à qual teria sido melhor não ter dito nada.
Para mim, a lição é que talvez nós mesmos estejamos agora na mesma posição em
relação à ling
que temos à nossa disposição para falar da mente e da consciência.
Nesta fase de nosso desenvolvimento cultural ainda há coisas que podemos perceber
intuitivamente e que ainda não temos como expressar em palavras.
O problema torna-se especialmente óbvio quando uma língua nacional tem recursos que
falta à outra. Há um ensaio famoso do filósofo Thomas Nagel, chamado "What Is
lt Like to Be a Bat?"3 Ç'Como é ser um morcego?"). Em francês, isso foi traduzido
(com
uma nota apologética dotradutor) como "Quel effet cela fait d'être une chave-
souriS
?"4
("Qual o efeito que tem ser um morcego'7). Como o objetivo do ensaio de Nagel é ar
gumentar precisamente que a experiência subjetiva de um morcego não pode ser
descrit
a
em termos de seus efeitos observáveis, parecehaver um perigo real de que sua mensa
gem não chegue totalmente aos leitores franceses. Mas quem terá dúvidas de que
os falantes franceses têm o conceito - se puder ser discutido - daquilo que em ing
lês se expressa como "what it's like to be..."? Ç'como é ser..."?).
13
#Este é um dos problemas coma linguagem. Mas há outro que é quase o oposto. Embora
por
vezes fiquemos à procura das palavras, em outras ocasiões elas nos vêm com
demasiada facilidade. O fato deuma palavra ou expressão existir em nossa linguagem
e estar disponível para uso não é garantia de um bom desempenho. Certas palavras
são, por assim dizer, impostoras: prometem muito mais do que cumprem (na verdade,
há quem diria que "como é ser..." é uma dessas expressões!).
Um dos exemplos mais conhecidos é a palavra "phIogiston" (flogisto), criada no
sécul
o XVIII para referir-se ao material hipotético, de massa negativa, que se acredita
va
ser liberado pelos corpos combustíveis ao serem queimados. Mas Poderíamos pensar
tam
bém em "elã vitaV, "magnetismo animal", "telepatia", para não falarmos de um
punhado de expressoes com pedigrees mais notáveis, como "Papai Noel", "o monstro d
o lago Ness" e "dissuasão nuclear".
George Eliot escreveu em seu diário, em 1856: "Nunca tive, antes, tanta vontade de
conhecer os nomes das coisas. Esse desejo é parte da tendência, que está
aumentando
em mim, de fugir de toda a vaguidão e inexatidão para a luz diurna das idéias vivas
e
distintas. O simples fato de dar o nome de um objeto tende a dar clareza à
concepção que dele temos."-' Mas o simples fato de que dar nome a alguma coisa
tende
a dar clareza ao conceito que dela temos pode ter também um efeito oposto. Quando

temos uma palavra para alguma coisa, é fácil supor que ipsofacto aquilo que recebe
o
nome é uma entidade distinta.
O Grande Roubo do Trem na Inglaterra, na década de 1960, constitui uma ilustração
cômica
disso. A polícia não tinha feito nenhum progresso na solução do crime. Por
fim o chefe da Scotland Yard convocou uma entrevista coletiva e anunciou, com ev
idente satisfação, que podia agora revelar que "havia um Cérebro por trás do
assalto".
Sua declaração provocou um comentário zorribeteiro do jornal francês Le Monde:
"Tout est
expliqué, Un Cerveau, c'est quelque cliose!" (Tudo está explicado. Um Cérebro
é alguma coisa!" Mas é claro que nada estava "expliqué", já que o "Cerveau" não era
mesmo
"quelque chose!". O fato de a Scotland Yard dar o nome de Cérebro não passou
de uma maneira cômoda de explicar sua incapacidade de pegar os ladrões.
14
#Tomados em conjunto, esses dois problemas com a linguagem acarretam um duplo ri
sco para as discussões sobre a mente: é provável a existência de certas áreas onde,
por assim dizer, as palavras são difíceis de achar, e outras onde cantam um canto
de
sereia. Um dos personagens de George Eliot, Mr. Tulliver, diz isso muito bem
em conversa com a mulher: "Não, não, Bessy... [o que eu disse] deve significar
também
verão; mas não importa - falar é um trabalho intrigante."6
Para ilustrarmos como é intrigante o trabalho de falar sobre a mente, examinemos
vár
ias declarações recentes sobre a "consciência".
"A consciência é a maior invenção na história da vida: permitiu que esta tivesse
conhecime
nto de si mesma." [Stephen Jay Gould (biólogo)1.7
"O conhecimento consciente é uma propriedade condicional do modelo da realidade em
sua forma tripartite. Podemos dizer que é o aspecto subjetivo da reapresentação
continuada de uma demonstração informacional temporariamente estabilizada dentro da
qual pode ocorrer o processamento multilateral de uma questão." Uohn Crook (etolog
ista)I.8
"Em todos os contextos nos quais tende a ser usada, o vocábulo 'consciência' e seus
cognatos são, para finalidades científicas, tanto inúteis quanto desnecessários."
[Kathleen Wilkes (filósofo)1.9
"A referência à consciência na ciência psicológica é exigida, legítima e
necessária. É exigi
que a consciência é um aspecto central (embora não o central) da
vida mental. É legítima porque há motivos razoáveis para se identificar a
consciência, com
o os há para se identificarem outros construtos psicológicos. É necessária
já que tem valor explicativo, e como há razões para se postular que tem condição
causal."
[Anthony Marcel (psicólogo)1.10
"Constato que não tenho nenhuma concepção clara do que as pessoas estão falando
quando m
encionam 'consciência' ou 'conhecimento fenomenal'." [Alan AlIport (psicólogo)1.11
A esses comentários acrescento o famoso trecho de William James, de 1904:
`Consciênc
ia'(...) é o nome de uma não-entidade, e não tem direito a um lugar entre os
princípios primeiros. Os que ainda se apegam a ela estão se apegando a um simples
ec
o, o leve rumor deixado pela 'alma' desaparecida no ar da filosofia. (
...) Parece-me que é chegada a hora de descartá-la aberta e universalmente.,,12
is
#James foi, na verdade, ainda mais longe. "A respiração% escreveu ele,
"movendo-se para fora, entre a glote e a narina, é, estou convencido, a essência a
p
artir
da qual os filósofos construíram a entidade que conhecem como consciência." O fato
de
que o homem que poucos anos antes tinha popularizado a idéia do "fluxo da
consciênci
a"
em seus Principles of Psychology se tenha tornado tão hostil à palavra mostra um
gra
u excepcional de desilusão.
james teria gostado, talvez, da observação de um estudante americano, noticiada em
núm
ero recente do The Boston Globe. Pediram ao rapaz que escrevesse uma composição
sobre os vácuos. "Osvácuos", dissecle, "sãonadas. Nós os mencionamos para que
saibam que
sabemos que eles estão aí.1113
Ele também poderia ter se divertido com o relato, feito na década de 1960, de um
inv
estigador do lago Ness, Maurice Burton. Tela minha própria experiência e pela
de outros observadores, há uma afirmação mais verídica do que outra: é que o
monstro do la
go Ness vem à superfície com surpreendente infreqüência.,,14
Depois de ter o monstro do lago Ness sido fotografado por uma câmara submarina, o
naturalista Sir Peter Scott disse na revista Nature que ele agora merecia um nom
e
científico: Nessiteras rhombopteryx - morador do Ness com barbatanas romboidais.15
Por um acaso infeliz, o nome era um anagrama de "monster hoax by Sir Peter S."
{embuste do monstro por Sir Peter S.).
Pode haver problemas ao se chamar a consciência por esse nome. Mas não devem ser
ins
uperáveis. Pois se há uma afirmação que, mesmo não sendo mais verídica do que
outra, ainda assim é verdadeira, é a de que a consciência vem à superfície com
surpreenden
tefreqüência.
NOTAS
1. T.S. Eliot (1917). "The Love Song of J. Alfred Prufrock", Collected Poeins
1909-1962. Londres, Faber and Faber, 1974.
2. Platão,ARepúblíca, livro 8,546.
3. Thomas Nagel, "What Is It Like to Bea Bat?", Philosophical Review 82 (1974).
4. Em TheMind's L Tradução francesa, Vues del'Esprit, org. por D. Hofstadter
Dennett
. Paris, InterEditions,
1985. e D.C.
16
#5. George Eliot, Joumal, 2O de julho de 1856, em George Eliot's Life as Related
in Her Letters and Joumals, org. por J. W. Croft. Edimburgo, 1885.
6. George Eliot (1871). The Mill on the Floss. Londres, Foho Society, 1986, p. 9
.
7. Stephen J. Gould, em conversa com Collin Tudge. BBC Radio 3, The Listener,
2O de setembro de 1984, p. 19.
8. John Crook, "The Nature of Conscious Awareness", ern Mindwaves, org. por Bl
akemore e Greenfield, p. 392.
9. Kathleen V. Wilkes, "-, Yishi, Duh, Urn, and Consciousness", ern Consciou&n
ess in Contemporary Science, org. por A. J. Marcel e E. Bisiach. Oxford, Clarend
on
Press, 1988, p. 38.
10. Anthony J. Marcel, "Phenomenal Experience and Functionalism", em ibid., p.
121.
11. Alan Allport, "What Concept of Consciousness?", ern ibid., p. 159.
12. William James, "Does 'Consciousness' Exist?" Joumal of Philosophy, Psycholo
gy and Scientific Method 1 (1904).
13. Citado ern The Boston Globe, 25 dejaneiro de 1988.
14. Maurice Burton, "The Loch Ness Monster: A Reappraisal", New Scientist (1960)
, pp. 773-75.
15. Peter Scott, citado em "Naming the Loch Ness Monster", Nature 258 (1975), pp
. 466-68.
17
#O QUE ACONTECEU
*
NA HISTORIA: A VERSAO SECRETA
Há varias maneiras de se pegar um peixe (mas não um monstro). Podemos arrastar a
red
e pelo rio, apanhando
tudo o que existe nele, mas dessa maneira pegamos também mato, rãs e sapatos
velhos.
Podemos colocar um verme num anzol ejogá-lo num lago quepareça adequado, mas
dessa maneira corremos o risco de escolher o lago errado, ou o dia em que os pei
xes não estão se alimentando. Ou (como me disse um velho escocês) podemos fazer-lhe
cócegas: caminhamos silenciosamente pela margem do rio até vermos o nosso peixe
para
do na água; abaixamo-nos e enfiamos a mão muito devagar sob abarriga dele, fazemos
cócegas e então (foi o que o escocês disse) o peixe simplesmente se deixa pegar.
Creio que a maneira de pegarmos a consciência é fazer-lhe cócegas. Isso quer dizer
que
temos de descobrir onde ela está, fazer uma aproximação lenta e então encantá-la
com nossas mãos.
A linha narrativa deste livro será uma história da vida mental. Por "história"
entendo
a história evolucionária, e em grande escala: desde a criação da Terra até
o aparecimento dos seres
19
#humanos modernos. E as razões para abrangermos uma escala temporal tão vasta são
duas
: primeiro, para fazermos as suposições preliminares sobre quando surgiram
a mente e a consciência; e segundo, para não fazermos suposições sobre a realidade
física
objetiva.
Suponhamos que adotássemos uma escala temporal relativamente menor, digamos apenas
o último milhão de anos. Enfrentaríamos então duas séries de fatos já existentes:
de um lado, os fenômenos da experiência subjetiva, e, do outro, os fenômenos do
mundo
material. O problema poderia ser, então, exatamente o que encontramos no capítulo
anterior, ou seja, que essas duas classes de fenômenos pareçam simplesmente não
combin
ar.
Se, porém, adotarmos a perspectiva maior, podemos entrar pelo andar térreo, por
assi
m dizer, antes que esses fenômenos existentes sequer fossem fenômenos. Talvez
possamos descobrir que as duas classes de fenômenos, em lugar de serem "dadas", co
nstituem em si mesmas criações históricas: a mão esquerda da experiência subjetiva
e a mão direita do mundo material terão uma mesma origem. Nesse caso, o problema
será
acompanhar os caminhos de evolução diferentes.
Tenho por certo que a mentehumana possui, realmente, uma história evolucionáría,
esten
dendo-se por protótipos não-humanos - macacos, répteis, vermes - até remontar
aos primeiros lampejos da vida na Terra. (Se, pelo contrário, os seres humanos for
am produto da criação divina, feitos de uma só vez, minha argumentação desabaria,
mas o mesmo aconteceria também com a filosofia natural, em geral.) Antes que a vid
a surgisse há quatro bilhões de anos, digamos, quando o planeta Terra foi formado,
presume-se que não houvesse mentes de nenhum tipo.
Segue-se que há quatro bilhões de anos o mundo era desconhecido e não
experimentado, não
vivido por um ser sentiente. Nada que nele existia tinha sido visto, ouvido,
tocado, cheirado, sido objeto de reflexão, representado ou descrito. Portanto, nad
a nele existia, naquela época, como um fenômeno para ninguém. Devo dizer que uso
a palavra "fenômeno" aqui no sentido antiqu ado: um "fenômeno" (do grego
phaínei,'apar
ecer, mostrar-se') é um acontecimento tal como se mostra a um observador, em
distinção do que pode consistir em si mesmo.
20
#Portanto, naquela fase da história do nosso planeta, os fenômenos que hoje
chamamos
de sentimentos subjetivos ainda não existiam: não tinha havido nenhuma sensação
de vermelho, nenhuma estocada de dor. Menos obviamente, embora igualmente verdad
eiro, os fenômenos que hoje chamamos de fenômenos do mundo material ainda não
existiam
:
nenhuma luz vermelha nem objetos nítidos, nem mesmo objetos com peso de dois quilo
s e meio ou 1,80m - ou pelo menos nada que tivesse sido pensado dessa maneira.
Não estou, com isso, fazendo nenhuma observação profunda: apenas que, antes que
algo p
udesse existir como um sentimento subjetivo ou um acontecimento físico, era
preciso haver alguém para quem esse algo fosse o que era, ou o que significava.
O leitor pode objetar que não consegue imaginar uma época em que nada existisse, em
qualquer forma fenomenal. Não havia vulcões, e tempestades de poeira, e luz das
estrelas, muito antes de haver qualquer vida na Terra? O sol não se levantava no l
este e se punha ri,o oeste? A água não corria morro abaixo, e a luz não era mais
rapida do que o som? A resposta é que, se o leitor estivesse lá, essa teria sido
rea
lmente a forma pela qual teria visto os fenômenos. Mas não estava, não havia
- naquela fase sem mentes da história - nada que representasse um vulcão, ou uma
tem
pestade de poeira, e assim por diante. Não estou dizendo que o mundo não tinha
substância, qualquer que fosse. Poderíamos dizer, talvez, que consistia em "matéria
mu
ndo". Mas as propriedades dessa matéria mundo ainda tinham de ser representadas
por uma mente.
Hoje, quatro bilhões de anos depois, a situação mudou drasticamente. Há hoje
bilhões de an
imais com mentes no planeta, e o mundo tornou-se amplamente experimentado,
vivido e conhecido.Em particular, os fenômenos, tanto dossentimentos subjetivos co
mo do mundo material passaram a existir como tal, para nós. Hoje podemos ir além
das nossas interações conhecidas e conceber a existência de fenômenos comparáveis
em parte
s do espaço onde nunca estivemos, e muito longe no passado e muito à frente
no futuro. Podemos imaginar o som de uma árvore que cai na floresta quando não há
ning
uém perto. Podemos até mesmo imaginar, talvez, o Big Bang original. Mas perdura
o fato de que, não importa como fosse o Big Bang, não havia nenhum bang fenomenal
no
momento em que ocorreu.
21
#Tendo fixado os dois extremos, a grande pergunta deve ser o que aconteceu no pe
ríodo entre eles.
Vou apenas delinear, aqui, uma possível versão da história, em vários atos. (E
embora, t
endo em vista o que acabei de dizer, deva haver algo de paradoxal no uso
de conceitos modernos para discutir o passado, esta visão terá de ser a visão
contempo
rânea de um olho mental.) Se pareço movimentar-me com absurda rapidez por episódios
passados, talvez por cenas inteiras, que merecem tratamento mais cuidadoso e det
alhado, só lhes posso pedir que, temporariamente, aceitem como verdade o que digo.
No caldo primevo, o acaso aproximou as primeiras moléculas de vida com capacidade
de gerar novas cópias de si mesmas.
O tempo passou e a evolução darwiniana começou a trabalhar, selecionando - e, com
isso
, ajudando a projetar - pacotes de matéria mundo com potencial ainda maior
de manter sua integridade e reproduzir-se. Primeiramente, havia apenas moléculas v
ivas complexas (como o ADN), depois células simples (como as bactérias ou amebas),
depois organismos multicelulares (como vermes, ou peixes, ou nós).
Os animais vivos tinham sua forma e substância próprias. Não só cada animal
individual e
ra um pacote limitado no espaço, como num sentido importante o conteúdo desse
pacote formava um todo. Embora o significado de "ter" e "pertencer" seja intuiti
vamente óbvio (o que nos mostra como continua sendo importante para as nossas vida
s
a idéia de "ter" nosso corpo), são conceitos elusivos, aos quais voltarei em outros
capítulos. No momento, porém, tudo o que quero dizer é que seja em nível de uma
ameba ou de um elefante, o animal era um todo auto-integrante e autoindividualiz
ante. E, ao contrário de outros objetos delimitados como um pingo de chuva, ou uma

pedra, ou a lua -, seus limites eram auto-impostos e mantidos ativamente. De um


lado da muralha limítrofe está o "eu", e do outro, o "não-eu"; e era a "minha
vida",
"minha forma", "minha substância" que estavam em risco.
Portanto os limites - e as estruturas físicas que os constituíam, membranas, peles
-
eram cruciais. Primeiro, continham a substância do animal em seu interior, e
deixavam de fora o resto do mundo. Segundo, em virtude de estarem localizadas na
superfície do animal, formavam uma fronteira: a fronteira onde o
22
#mundo exterior tinha impacto sobre o animal, e através da qual podiam ocorrer tro
cas de matéria, energia e informações.
A luz caía sobre o animal, os objetos se chocavam com ele, ondas de pressão se
fazia
m sentir sobre ele, coisas quimicas se prendiam nele... Alguns desses acontecime
ntos
eram, de modo geral, "uma coisa boa" para o animal, outros eram neutros, outros
eram maus. Qualquer animal que tivesse os meios de distinguir o bom do mau - apr
oximando-se
do bom, ou deixando que ele entrasse, evitando ou bloqueando o mau - teria, clar
amente, uma vantagem biológica. A seleção natural, portanto, provavelmente
funcionaria
no sentido da "sensibilidade".
Ser sensível teria de significar, para começarmos, nada mais complicado do que ser
c
apaz de reação local: em outras palavras, responder seletivamente no lugar onde
o estímulo da superfície ocorria. Tal como hoje poderíamos dizer que uma pessoa é
sensível
ao sol se reage à incidência da luz solar sobre seu pescoço com uma vermelhidão
no local, assim também os primeiros tipos de sensibilidade teriam provocado, por e
xemplo, a retração ou a inchação do local, ou a absorção pela pele.
Pouco tempo depois, porém, surgiram tipos mais sofisticados de sensibilidade. Os
órgão
s sensoriais tornaram-se mais discriminatórios em relação a diferentes tipos
de estímulos, e aumentou a escala de reações possíveis. Em lugar de, ou
simultaneamente
com, a reação local provocada pelo estímulo, as informações de uma parte
da pele passaram a ser transmitidas para outras partes e provaram reações nelas. E,
com o aparecimento de demoras na transmissão e a combinação de facilitação e
inibição, abriu-se o caminho para que as reações do animal se adaptassem melhor às
suas ne
cessidades - por exemplo, afastar-se nadando, em vez de apenas encolher-se
ante um estímulo daninho.
com o tempo, os diferentes estímulos passaram a provocar diferentes padrões de
ação. Pod
eríamos imaginar, tomando um exemplo hipotético, que um animal que vivia
numa lagoa nadasse para cima como reação a uma luz vermelha, e para baixo em reação
a um
a luz azul (tendendo, com isso, a ir mais fundo no meio do dia). Como as
informações sobre determinados estímulos passaram agora a ser preservadas e tomavam
a
forma de determinado padrão de ação, esse padrão passou a representar - ou
pelo menos a reproduzir simbolicamente - o estímulo.
A esse nível de sensibilidade e reatividade, porém, dificil-
23
#mente se poderia dizer que os acontecimentos ambientais tivessem adquirido muit
o "significado" para o animal. Mesmo assim, nessa fase alguma coisa sobre a cond
ição
do mundo estava mudando. Certos acontecimentos estavam sendo recebidos como bons
ou maus, como comestíveis ou não, como dotados de significação para o "eu". E a
razão para enfatizarmos o como, aqui, é ressaltar a diferença essencial entre, de
um l
ado, algo que era apenas bom ou mau, e, do outro lado, a reação que tinha o
animal para o qual era bom ou mau. Comparem-se, por exemplo, os efeitos da baixa
umidade sobre dois objetos delimitados: um tatuzinho e uma poça de água. O calor
é "mau" para os dois porque os resseca. Mas, enquanto a poça continua imóvel e
apenas
diminui de tamanho, o tatuzinho foge. Ambos reagem à baixa umidade, mas enquanto
a reação da poça é não-adaptativa e não tem qualquer implicação de significado, a
reação do
o tem um significado potencial: deixa implícito "aqui está uma
situação que não é muito do meu agrado".
"Agrado" é outro desses conceitos que quero explorar com mais detalhes adiante. Sa
ber se o animal gosta de ser estimulado, e quanto, é, creio eu, básico para a
questão
de saber o que representa para ele reagir ao estímulo. Há muitas dimensoes e graus
d
e agrado e desagrado, que correspondem aos muitos tipos diferentes de sensibilid
ade
e receptividade que evoluíram. Dentro desse rico espaço de reações afetivas deve
ter hav
ido um amplo espaço para a evolução das maneiras de experimentar o mundo,
que variaram em qualidade subjetiva.
Para começar, sensibilidade e receptividade estavam intimamente ligadas. Sob certo
s aspectos sempre estiveram e ainda estão. (Veja-se, por exemplo, que uma comichão
é alguma coisa que queremos coçar, ou que um objeto pesado é alguma coisa difícil
de lev
antarmos.) Mas à medida que os animais se tornaram cada vez mais complexos
na harmonização do seu comportamento com a situação ambiental, o lado sensorial e o
lado
receptivo do processo devem ter se separado parcialmente. Desenvolveu-se
sem demora um ponto central onde as representações -na forma de padrões de ação -
eram man
tidas em suspensão antes de serem postas em prática. Assim, os padrões
de ação tornaram-se planos de ação, e as representações passaram a ser
relativamente abstrat
as. Poderíamos dizer que o lugar em que eram armazenadas era o lugar
onde eram guardadas na mente.
24
#Mais do que qualquer outra, a palavra "mente" é muito difícil de ser definida de
ma
neira simples. Mesmo reconhecendo plenamente a circularidade, deixarei que a
palavra "mente" indique, no momento, a faculdade representativa que mencionei. E
m suma, os animais tinham, primeiro, "mentes", quando se tornaram capazes de arm
azenar
- e possivelmente lembrar e reformular representações, baseadas em ações, dos
efeitos do
estímulo ambiental sobre seus corpos. O substrato material da mente era
o tecido nervoso, que em organismos superiores se centrou num gânglio, ou cérebro.
D
evemos lembrar que até mesmo em animais como os seres humanos o tubo neural que
forma o cérebro durante o desenvolvimento embriológico vem de uma dobra da pele
para
dentro.
Poderíamos dizer que, quando os protótipos de mentes surgiram, alguns
acontecimentos
do mundo tinham adquirido a condição de fenômenos significativos. Pela primeira
vez na história
- na verdade a primeira vez desde o início do universo - certos acontecimentos, ou
seja, os que ocorriam nas superfícies de organismos vivos, tinham começado a
existi
r
como alguma coisa para alguém. Se me perdoam o jogo de palavras, esses acontecimen
tos tinham começado finalmente a ser "realidade" porque alguém lfrealmente" se
preocupava com o fato de que eram "reais" para seu bem-estar corporal.
Portanto, a fenomenologia das experiências sensoriais vem primeiro. Antes de haver
outros tipos de fenômenos, havia "sensações em estado natural" - gosto, cheiro,
cócegas, dores, sensação de calor, de luz, de som e assim por diante.
Pode ter acontecido, suponho, que nesse ponto a representação mental parou de
evolui
r. É perfeitamente concebível que em algum lugar, em outra galáxia onde a vida
está evoluindo em outro planeta, a representação mental só tenha ido até esse
ponto. Mesmo
na Terra, alguns animais primitivos não passaram dele, e pode corresponder
até mesmo à condição, por um breve tempo, de um recém-nascido. Mas a nossa
representação men
l não ficou, evidentemente, aí. Se tivesse ficado, ainda estaríamos
vivendo num mundo onde os fenômenos físicos objetivos eram desconhecidos.
25
#Desde o princípio, porém, havia Outro caminho para a evolução mental. De um lado,
comojá
vimos, os animais se beneficiaram com a capacidade de avaliar seu estado
atual do ser, e responder à pergunta sobre "o que está acontecendo comigo" "Como é
ter
uma luz vermelha sobre a minha pele?" Por outro lado, porém, certamente se
teriam beneficiado ainda mais se tivessem tido a capacidade de avaliar o estado
do mundo exterior: de responder a perguntas sobre "o que está acontecendo lá fora"
- por exemplo, "De onde vem a luz vermelha?. Mas as perguntas "O que está acontece
ndo comigo?" e "O que está acontecendo lá fora?" sempre foram de tipos muito
diferen
tes,
que sempre devem ter exigido respostas muito diferentes.
Imaginemos um raio de sol caindo sobre a pele de um animal parecido com uma ameb
a. A luz tem, imediatamente, implicações para a saúde corporal do animal, e por
isso
é representada como uma sensação subjetiva. Mas a luz também significa - como
sabemos ag
ora - um fato físico objetivo, ou seja, a existência do Sol. E, embora a
existência do Sol possa não ter muita importância para uma ameba, há outros animais
eout
ras áreas do mundo físico onde a capacidade de levar em conta o que existe
lá fora, além do meu corpo" poderia ter um importante valor para a sobrevivência.
Imag
inemos uma sombra que passasse por sobre a pele da ameba. Nesse caso, a capacida
de
de representar o fato objetivo da aproximação de um predador - se pudesse ser
alcançad
a pela ameba
- seria, evidentemente, de importância muito maior para a sobrevivência do animal
do
que a capacidade de representar o estímulo da superfície corpórea, como tal.
Mas como fazê-lo? Como interpretar o estímulo como um. "signo" de alguma outra
coisa
? Passar da representação do signo para uma representação do significado? Ao
final da primeira fase de evolução existiam orgãos sensoriais com ligações com um
processa
dor central, e a maioria das informaçõews necessárias sobre signos potenciais
era recebida como um "insumo". Mas o processamento subseqüente dessa informação,
levan
do a estados sensoriais subjetivos, tinha mais ligação com a qualidade do que
com a quantidade, com o presente transiente do que com a identidade permanente,
com a interioridade do que com a alteridade. Para que as mesmas informações
pudessem

agora ser usadas como representação do mundo exterior, era necessário que evoluísse
todo
um novo estilo de processamento, com ênfase menos
26
#no presente subjetivo e mais na permanência objetiva, menos na receptividade imed
iata e mais nas possibilidades futuras, menos no que representa para mim e mais
em como aquilo que "ele" significa se insere no quadro maior de um mundo exterio
r estável.
Resumindo: desenvolveram-se, em conseqüência disso, dois tipos distintos de
represen
tação mental, envolvendo estilos muito diferentes de processamento da informação.
Enquanto um caminho levava às propriedades em si dos sentimentos subjetivos e ao c
onhecimento do eu como primeira pessoa, a outra levava aos objetos intencionais
da cognição e ao conhecimento objetivo do mundo físico exterior. Quando a Terra foi
fo
rmada, nenhum desses tipos de fenômenos existia para alguém. Agora, ambos existem,
como tal, para nós. E é a evolução desses dois modos de representação que contribui
muito pa
ra explicar por que agora, hoje, temos essa evidente distância entre
duas classes de fenômenos: os sentimentos subjetivos em contraposição aos fenômenos
do m
undo material, a qualidade em contraposição à quantidade, o vinho em contraposição
à água. Como disse Picasso (num contexto muito diferente), "sendo a natureza e a
art
e duas coisas diferentes, não podem ser a mesma coisa";1 e, pela mesma razão,
sendo os sentimentos subjetivos e os fenômenos físicos dois tipos de representação
difer
entes, não podem ser o mesmo tipo de representação.
NOTA
1. Pablo Picasso, citado ern Aesthetics in the Modern World, org. por Harold
Osbome. Londres, Thames and Hudson, 1968, p. 24.
27
#Capítulo 4
A DUPLA FUNÇAO DOS SENTIDOS
Tendo começado com essa história evolucionária, é de esperar que eu desça logo a
grandes p
rofundidades. Mas
comovenhoharmonizandoanarrativa com os fatos con-
temporâneos, devo antes passar algum tempo examinando, com muito cuidado, quais são
esses fatos. Permitam-me, portanto, pular bem para a frente, para o que chamo
de condição de um ser humano vivo.
Aqui estou, sentado à minha mesa, junto de uma janela que dá para um jardim do
campo
, numa tarde de verão, com uma xícara de chá quente na mão, o som de um ribombar
distante nos ouvidos e uma formiga (ou alguma outra coisa) subindo pela minha pe
rna. A superfície do meu corpo está sendo bombardeada por estímulos ambientais. Num
nível, tal como a ameba primitiva interpreto esses estímulos como acontecimentos
que
afetam diretamente meu estado corporal. Alguns me agradam, outros não, e a
qualidade desse agrado e desagrado varia muito. Nesse nível, estou no centro do me
u mundo particular de sensações imediatas e diretas. Em outro nível, estou
interpretan
do
os mesmos estímulos superficiais como sinais do estado do mundo exterior: vejo flo
res abertas, ouço o trovão, sinto cheiro de lavanda, penso que
29
#é um fOrmiga, possod dizer pela altura do sol que horas são. Nesse
segundo nível, sou espectador de um mundo público (e não mais do meu mundo) de
fenômenos
físicos independentes.
Essa maneira de colocar as coisas poderia ser considerada COMO ... bem, como "um
a forma de dizer as coisas", sem nenhuma pretensão de captar a realidade metafísica
ou psicológica. Eu ressaltaria, portanto, que se trata de uma forma de ver as cois
as quevários autores destacados apresentaram antes de mim.
Thonia, Reid, líder da escola de filósofos escoceses, escreveu em seus 1 ,'ss(iys
o
n the Intellectual Powers of Man, de 1785: "Os
sentidos externos têm uma dupla
função: fazer-nos sentir e fazernos perceber. Proporcionam-nos uma gama
diversificad
a de sensações, algumas agradáveis, outras penosas, e outras indiferentes. o
Ao mesmo tempo, dão-nos uma concepção dos objetos externos e despertam
uma crença incrível na sua existência. Essa concepção dos objetos externos é obra
da natureza; o mesmo acontece com as sensações que o acompanham. A essa concepção e
essa
crença que a natureza produz por meio dos sentidos, chamamos percepção.
O sentimento que acompanha a percepção pode ser chamado de sensação. ( ,... )
Quando c
heiro uma rosa, há nessa
operação tanto sensação como percepção. O odor
agradável que sinto, consideradoem si mesmo, serarelação com qualquerobjeto
externo, é s
implesmente uma sensação. ( ... ) A percepção [em contrastel tem sempre
um objeto externo; e o objeto da minha percepção, nesse caso), é a qualidade da
rosa q
ue percebo pelo sentido do olfato."I
Sigrnund Freud escreveu sobre os dois princípios do funcionamento mental, o
príncípio
do "prazer" e o princípio da "realidade". E
mais recentemente o psiquiatra
ErnestSchachtel distinguiu enLre o que ele cham de modos "autocêntrico" e
"alocêntri
co" de perceber o
mundo: "As principais diferenças entre os modos de percepção
autocêntrico e alocêntrico são as que se seguem. No autocênirico há pouca, ou
nenhuma, obj
etificação; a ênfase recai sobre o como e o quê uma pessoa sente; há uma
estreita relação, que equivale a uma fusão, entre a qualidade sensorial e os
sentimentos de prazer,ou deSprazer, equempratica o atodepercepção reage
principalmente
a alguma coisa que o atinge.( ... ) No modo alocêntrico há a objetificação: a
ênfase recai
sobre ojeito que tem o objeto.,,2
Mais próximas das idéias que venho apresentando, porém,
30
#estão as reflexões de um obscuro psicólogo chamado E. D. Starbuck. Num artigo
intitul
ado "The Intimate Senses as Sources of Wisdorn" ("Os sentidos íntimos como
fontes de conhecimento"), publicado no Joumal of Religion em 1921, Starbuck disc
utiu a distinção entre processos sensoriais "íntimos" e "definidores". Assim sendo,
acho que devo citá-lo um pouco extensamente:
"Na medida em que um receptor discrimina qualidades em objetos e percebe suas re
lações, isso pode ser chamado de um sentido definidor. Como todos os sentidos
dispõem
de certo grau desse poder, será mais adequado falar de processos sensoriais defini
dores.( ... ) Alguns dos outros sentidos ocupam-se da interpretação dos objetos
e de suas qualidades imediatamente, sem defini-los ou enquadrá-los em ordens espac
iais e temporais. Suas qualidades são consideradas diretamente como agradáveis
ou indiferentes, como desejáveis ou indesejáveis, ou então adequadas ao bem-estar
do o
rganismo. Na medida em que o receptor transmite à consciência, direta ou
imediatamen
te,
qualidades de objetos juntamente com indicações da reação adequada, pode ser
designado c
omo um sentido íntimo. Ou ainda, como todos os sentidos têm, em grau maior
ou menor, essa propensão, será melhor falar de processos sensoriais íntimos.( ... )
Te
m havido uma dupla linha de desenvolvimento e evolução igualmente importante:
uma que se move rápido e vai longe na direção da descrição, análise científica,
manipulação
construção lógica e criação de sistemas. A outra linha obteve
igual sucesso ao interpretar seus objetos e seus significados de maneiras sutis
e habilidosas, e ao manter o indivíduo numa relação adequada com o seu mundo da
experiên
cia.(
... ) Como há mais de uma forma de interpretar o mundo exterior da experiência, a
ra
zão final disso pode ser a existência de mais de um tipo de realidade objetiva.,,3
Isso quer dizer que as duas categorias de experiência sensação e percepção,
representações a
ocêntricas e alocêntricas, sentimentos subjetivos e fenômenos físicos
- são modos alternativos, que essencialmente não coincidem, de interpretar o
signifi
cado de um estímulo ambiental que atinge o corpo. Assim, quando cheiro uma rosa,
a sensação dá a resposta à pergunta "O que está acontecendo comigo?", e a
percepção, a respo
a à pergunta "O que está acontecendo lá fora?".
31
#A distinção, porém, nem sempre é evidente na linguagem comum. Isso foi ressaltado
por R
eid: "A sensação, em si mesma, não significa nem concepção de, nem crença
em, qualquer objeto externo. Supõe um ser sentiente, e uma certa maneira na qual e
sse ser é afetado; mas não supõe mais do que isso. A percepção significa uma
convicção
imediata e uma crença em alguma coisa exterior - alguma coisa diferente tanto da m
ente que percebe comodo atodapercepção. Coisas de natureza tão diferente devem
ser distinguidas.( ... ) [Mas] a percepção e a sua correspondente sensação são
produzidas
ao mesmo tempo. Em nossa experiência nunca as encontramos separadas. Portanto,
somos levados a considerá-las como uma só coisa, dar-lhes um nome e confundir seus
d
iferentes atributos. Torna-se muito difícil separá-las no pensamento, ocupar-se
de uma em si mesma, e não atribuir-lhe nada qu e p erten ça à ou tra. 1,4
A palavra "doce", por exemplo, pode ser usada tanto para a sensação subjetiva que
te
nho quando o perfume de uma rosa me chega às narinas, e para o perfume sentido.
Da mesma forma, "vermelho" tanto pode ser usado para a sensação que tenho quando a
l
uz vinda das pétalas da rosa me atinge os olhos, como para a cor percebida dessas
pétalas, e "agudos" para a sensação que tenho quando seus espinhos me espetam a
pele,
e para a forma que percebo nesses espinhos.
Se nos fôssemos apegar ao que chamo visão panglossiana da liguagem, poderíamos ser
ten
tados a concluir que, como nosso vocabulário familiar junta sensações e percepções,
estas devem, para todos os intentos e propósitos, ser a mesma coisa. Basta, porém,
p
ensarmos em outros exemplos desse ajuntamento lingüístico para ver que tal
conclusão
seria apressada. Vejam-se, por exemplo, as palavras usadas para dar nome aos ani
mais de uma fazenda e/ou à carne que vem deles. Em francês, uma mesma palavra pode
servir para ambos, mouton para o carneiro e a carne de carneiro, boeuf para o bo
i e a carne de boi, porc para o porco e a carne de porco. Em inglês são geralmente
usadas duas palavras (conservando a palavra saxônica para o animal, e usando a do
francês normando para a carne): sheepImutton, bullocklbeef, pigIpork, e assim por
diante. E, mesmo assim, o inglês pode usar, por exemplo, palavras como lamb (ovelh
a) ou chicken (frango) nos dois sentidos.
Talveznão devêssemos rejeitar a possibilidade deque algum
32
#dia a lingua inglesa tenha diferentes palavras para descrever sensações e
percepções. N
o momento, porém, é como se ainda estivéssemos na fase anterior à conquista
normanda.
Tem havido muita discordância filosófica nessa área, centrada na linguagem, para
que e
u suponha que todos podem acompanhar esta análise sem maior argumentação. Mas
sua realidade e significação serão reforçadas nos próximos capítulos. No momento,
quero deix
ar de lado as dificuldades lingüísticas e voltarme para um problema importante
e perturbador, que também tem sido uma das principais câusas de discordância: a
relação ca
usal entre sensação e percepção, supondo-se que sejam distintas.
Há duas possibilidades óbvias. Uma é que a sensação e a percepção sejam processadas
independ
temente por canais paralelos da mente:
rosa - odor químico no nariz
sensação de estar sendo suavemente estimulado
percepção da rosa como dotada de cheiro doce
Ou mais geralmente:
objeto - estímulo na superfície corporal
sensação do que está acontecendo comigo
percepção do que está acontecendo lá fora
A outra (a teoria que sob certos aspectos poderia parecer muito mais plausível) se
ria que a sensação e a percepção seguem serialmente uma da outra:
33
#rosa - odor químico no nariz
sensação de estar sendo docemente estimulado
percepção da rosa como tendo cheiro doce
Ou mais geralmente:
objeto
estímulo na superfície corporal
sensação de que está acontecendo comigo
percepção do que está acontecendo lá fora
A visão que Reid tinha dessa questão era i nteressan temente ambígua. Num certo
ponto
dos seus Essays, ele insistiu que a percepção é "imediata" e "não dependente
do raciocínio", sendo "uma parte da constituição original da mente humana". Mas
depois
escreveu: "Observando que a agradável sensação é provocada quando a rosa está
perto, e cessa quando é afastada, sou levado pela minha natureza a concluir que há
a
lguma qualidade na rosa queprovoca essa sensação. Tal qualidade na rosa éoobjeto
percebido.( ... ) Todos os nomes que temos para cheiros, gostos, sons e para vário
s graus de calor e frio ( ... ) significam ao mesmo tempo uma sensação e uma
qualida
de
percebidas por meio daquela sensação [o grifo é meu]."5 com isso, é de presumir que
ele
estivesse deixando implícito que a percepção é secundária e derivada da sensação:
na verdade, que a percepção é uma "conclusão" baseada na sensação.
Se esta última teoria fosse correta, a argumentação que estou montando ficaria
evident
emente enfraquecida. Significaria que em lugar de haver dois canais de represent
ação
mental desenvolvidos independentemente haveria na realidade apenas um unico
- cujos produtos chegam à consciência numa forma, sensação, relativamente não-
processada,
por assim dizer, e numa forma, percepção processada. Se assim fosse, o
sentido dessa distinção entre essas duas categorias de experiência - e com ela a
disti
nção entre sentimentos subjetivos e fenômenos físicos - desaparecia.
34
#Portanto, a questão é: haverá uma maneira conclusiva de decidir qual esquema está
certo
, o paralelo ou o serial? E a resposta está no exame da possibilidade de
serem a sensação e a percepção "separadas". Pois será evidente que, enquanto o
esquema par
alelo permitir que a sensação e a percepção sigam caminhos próprios, o
esquema serial não o permitirá. Se a percepção é causalmente dependente da
sensação, qualque
modificação nesta teria um efeito direto sobre a primeira; e se houvesse
uma perturbação total, ou um colapso, na sensação, a percepção seria totalmente
eliminada.
Nos Capítulos 1O a 12 apresentarei provas que demonstram que sensação e percepção
podem se
guir caminhos separados, e realmente que a segunda pode ocorrer na total
ausência da primeira. Em outras palavras, provas de quehá realmente dois canais
sepa
rados na mente. Essa prova, porem, sera muito mais persuasiva se eu explorar
primeiro algumas outras questões.
Na história da psicologia, a controvérsia sobre se há um ou dois canais foi intensa
du
rante todo o século XIX. E teve um efeito desastroso, pois quando começaram
a surgir dúvidas se a percepção seria de fato serialmente dependente da sensação,
muitos p
sicólogos interessados nos processos sensoriais passaram a concentrar-se
totalmente na percepção, e deixaram de se ocupar da sensação como tal. com isso
deixaram
de se interessar pela "autocentricidade", "intimidade", "afeto" - e em última
análise por toda a área do "sentimento subjetivo".
Em 1623 William Drummond podia escrever: "Que doces contentamentos a alma desfru
ta pelos sentidos. Eles são as portas e janelas do seu conhecimento, os órgãos da
sua satisfação.,,6 Em
1785 Reid podia dizer: "Os sentidos têm uma dupla função: proporcionam-nos
sensações, algu
mas agradáveis, outras dolorosas e outras indiferentes.( ... )" Mas em
1905 Freud tinha razões para observar que "tudo o que se relaciona com o problema
do prazer edadorrelaciona-secom um dos pontos maisfracos da psicologia da atuali
dade"7
e isso não está muito longe da verdade, nem mesmo hoje.
As tapeçarias da Daine à Ia Licome (A Daina do UnICórnio), no Museu Cluny, em
Paris, t
ecidas no século XV, mostram os cinco sentidos, cada um caracterizado em termos
do prazer que propor-
35
#ciona: o paladar - o gosto das frutas; o olfato - o cheiro das flores; o
tat - a carícia de uma mão; a audição - o som da música; a visão - a vista da
beleza refleti
da
num espelho. Mas é improvável que um manual moderno de psicologia sensorial faça
mais
do que uma referência episódica ao fato de que as pessoas podem gostar ou não
gostar do que sentem. Como escreveu lorde Byron, "O grande objeto da vi
da é a sensação - sentir que existimos, mesmo na dor".8 E o excelente estudo de C.
L. Hardin, Color forPhz'losophers,9 relega qualquer menção da estética da cor a uma
no
ta de rodapé.
Essa tendência precisa ser reformulada. De fato, a menos e até quecoloquemoso
afetos
ensorial devolta ao estudo, estaremos tentando pescar a consciência num lago
vazio.
NOTAS
1. Thomas Reid (1785). Essays on the Intellectual Powers of Man. Ensaio 2, 17.
Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1969.
2. Ernest C. Schachtel, Metamorphosis. Londres, koutledge and Kegan Paul,
1963, p. 83.
3. E. D. Starbuck, "The Intimate Senses as Sources of Wisdom", in Joumal of Reli
gion 1 (1929), pp. 12945.
4. Thomas Reid, Essays on the Intellectual Powers of Man. Ensaio 2,16. S. Ibíd.
6. William Drummond of Hawthornden (1623). The Cypresse Grove, p. 183.
7. Sigmund Freud (1905). "Three Contributions to the Theory of Sex", Basic Wri
tings. Nova York, Random House, 1938, p. 605.
8. George Byron (1810), citado por M. Csaky - How Does It Feel?. Londres, Tham
es and Hudson, 1979.
9. Hardin, Colorfor Philosophers.
36
#Capítulo 5.
"
"OQUE VEMOS?"
Avisão é o sentido humano predominante; é o que mais tem sido estudado pelos
psicólogos
e sobre o qual os filósofos mais têm pensado; e é o sentido para o qual é
mais difícil
de estabelecer a distinção entre o papel íntimo da sensação e o papel definidor da
percepção
Podemos dizer que, ao tomaro sentido do olfatopara ilustrar seu argumento, Reid
estava simplificando. No caso do olfato, não é necessária muita argumentação para
mostrar que as sensações podem ser agradáveis ou desagradáveis. E, ainda nesse
caso, é rel
ativamente fácil reconhecer que a sensação está numa categoria diferente
da percepção. Considerando-se que o cheiro da rosa entra nas minhas narinas, minha
s
ensação de doçura está, é claro, relacionada com "o que está acontecendo comigo";
ao passo que, levando-se em conta que o cheiroemana da rosa, minha percepção dela
co
mo doce relaciona-se evidentemente com "o que está acontecendo lá fora". Além
disso, usamos na verdade o nariz de duas maneiras claramente diferentes, depende
ndo de estarmos interessados num sentimento subjetivo ou numa definição objetiva.
Quando queremos apreciar um cheiro, inalamos por bastante tempo, profundamente,
mas quando queremos descobrir que cheiro tem um objeto, damos algumas cheiradas
rápidas.
37
#com a visão, porém, a situação nunca é tão simples. O papel afetivo das sensações
visuais,
ra se possa dizer que existe, não é tão forte quanto o dos cheiros.
E também não é intuitivamente óbvio que a sensação visual e a percepção visual
sejam categor
diferentes de experiencias. E certo que eu poderia repetir a fórmula
acima e dizer que, considerando-se que a luz das petálas de uma rosa cai sobre min
ha retina, a sensação de vermelho que experimento está evidentemente relacionada
com o que acontece comigo, ao passo que, dado o fato de que a luz vem da rosa, n
-únha percepção das petálas como vermelhas está evidentemente relacionada com
oobjeto
externo. Mas eu não espero queo "evidentemente" tenha, aqui, muito poder de
convicção.
Além disso, seria exagerar um pouco se disséssemos quehá na realidade duas
maneiras de usar nossos olhos, uma passivamente receptiva, e a outra, ativamente
exploratória - pois sem dúvida não há nada equivalente a uma degustação visual,
distinta de uma cheiradela visual.
Talvez seja por essas razões que a vista tenha causado tanta ansiedade aos
filósofos
. Wittgenstein escreveu: "Achamos certas coisas sobre a visão intrigantes porque
não achamos toda a questão da visão suficientemente intrigante."1 Maurice Bowra, em
su
as Memories, conta a história de um professor de Oxford: "Num trimestre ele
deu um curso sobre'O que vemos?'. Começou cheio de esperanças, com a idéia de que
vemo
s cores [subjetivas], mas abandonou-a na terceira semana, e argumentou que
vemos coisas [coloridas objetivamentel. Mas isso também não deu certo, e no fim do
t
rimestre ele admitiu, pesaroso:'Diabos me levem se eu sei o que vemos'.',2 Pelo
menos para esse filósofo não pode ter sido óbvio o fato de que a resposta à sua
pergunta
era que a visão tem uma dupla função, proporcionando-nos ao mesmo tempo
informações sobre o que está acontecendo dentro dos nossos limites e informações
sobre o q
ue está acontecendo no mundo exterior.
A visão oferece, portanto, um desafio especial para o tipo de exposição que estou
apre
sentando. Também oferece uma oportunidade especial para fazer avançar minha
argumentação por um terreno novo.
Para começarmos esse avanço, devemos examinar como, na história evolucionária, o
sentido
da visão começou como um sentido de superfície cujo principal papel era
proporcionar informações específicas sobre o que poderia quase que ser chamado de
"che
iro" - ou "gosto", ou "toque" - da luz que chegava à pele.
38
#Os organismos mais primitivos não tinham, é claro, olhos (como também não tinham
narize
s). Como as amebas de hoje, eram provavelmente sensíveis à luz por toda
a superfície de seus corpos. E, além disso, não tinham "fotorreceptores"
especializado
s que fossem sensíveis apenas à luz: os mesmos receptores sensoriais poderiam
ter sido sensíveis não só à luz, mas também às altas concentrações de sal ou à
vibração mecâ
Os fotorreceptores não surgiram como um tipo de receptor totalmente novo. Eram sim
plesmente receptores não-específicos que evoluíram para serem relativamente mais
sensíveis à luz do que a outros tipos de estímulos. De fato, parece provável que em
muit
os casos se tenham desenvolvido a partir de "cÍlios sensoriais", ou seja,
estruturas semelhantes a pêlos que se projetam da superfície de uma célula e podem
ter
uma capacidade motora, movimentando o animal, ou podem ter uma capacidade
sensorial, detectando perturbações locais do ambiente. Dando a um cilio sensorial
um
pigmento fotossensível, ela pode
tornar-se especificamente excitável pela luz.
Até mesmo osbastonetes e cones nas retinas de nossos olhos mostram indícios de
terem
começado assim, na evolução - como cilios sensiveis principalmente ao toque.
A função dos fotorreceptores nos organismos mais antigos deve ter sido detectar o
níve
l geral de iluminação. Se o nível de luz fosse "bom", o animal poderia ficar
onde estava, e se fosse "mau", poderia afastar-se ate que as coisas melhorassem.
Mas sem um meio de saber de onde vinha a luz, teria sido necessário um longo temp
o
para atingir o estado desejado. E só quando os animais desenvolveram a capacidade
de comparar a iluminação local que caía sobre diferentes partes de sua superfície
corporal é que teriam sido capazes de se movimentar deliberadamente na direção
certa.
A minhoca, como a ameba, tem fotorreceptores por toda a superfície do corpo. As mi
nhocas não gostam de iluminação (correm os riscos dos perigos da luz
diurna, a
céu aberto). Se a luz de uma lanterna é projetada sobre uma minhoca no quintal, à
noit
e, elas fogem rapidamente. A minhoca compara o que está acontecendo com o lado
iluminado do seu corpo e o que está acontecendo com o lado escuro, e com base ness
a comparação pode orientar a sua fuga. A rã também tem fotorreceptores por toda
a pele (embora tenha adicionalmente olhos bem formados). Em contraste com as min
hocas, as rãs (sendo animais melhor
39
#adaptados à luz do dia do que à escuridão) gostam de iluminação
- e continuam a apreciá-la, mesmo quando não estão usando os olhos. Se uma rã, com
os ol
hos cobertos, for colocada numa caixa escura com umajanela de um lado, ela
sevirará para ficar de frente para a luz. Também ela está comparando um lado com o
out
ro.
Mas ainda é muito cedo na evolução, e talvez na nossa exposição, para perguntarmos
"O que
uma minhoca, ou uma rã com os olhos fechados, vêem?". Lembrando que o filósofo
de Bowra teve tantos problemas com "O que vemos?", talvez seja tolice começarmos a
fazer a mesma pergunta sobre as minhocas. Mas, em se tratando delas, talvez sej
a
mais fácil.
Creio que todos concordarão que a maneira pela qual a minhoca sente a luz não pode
s
er considerada como uma percepção visual. Mas será pelo menos defensável dizer
que ela a experimenta como uma sensação visual. Pois certamente haverá sentido em
dize
rmos - desde que deixemos de lado qualquer preocupação quanto à existência
ou não de consciência nas minhocas
- que o seu sistema nervoso percebe a luz como "algo que está acontecendo comigo",
e como algo "desagradável".
Para nós, seres humanos, é certamente difícil imaginar como seria ter uma
sensibilidad
e à luz por toda a pele. Não obstante, um dos nossos sentidos fundamentais
nos dá uma possível resposta. Se eu me colocar num lugar quente, posso imaginar que
estou sendo tocado pela luz, que ela me faz cócegas, me provoca dor, ao cair
sobre o meu corpo. Posso imaginar que tem um gosto ruim, ou um cheiro mau.
Neste caso, porém, se o paralelo é mais com o cheiro ou gosto do que com a visão,
por
que sugerir que a minhoca está a caminho de adquirir uma sensação visual? Quero
fazê-lo porque na teoria da evolução as reações dos animais primitivos ao "toque da
luz" têm
relação direta com nossa propria experiência visual.
O que aconteceu na evolução foi que os fotorreceptores na superfície do corpo se
junta
ram, formando pontos semelhantes a olhos. Até mesmo animais monocelulares têm,
por vezes, faixas especializadas, sensíveis à luz, onde o limite ao estímulo da luz
é mu
ito mais baixo; e a maioria dos animais multicelulares que não têm olhos
propriamente ditos têm uma ou mais faixas localizadas estrategicamente em suas sup
erfícies. Desenvolveram esses pon-
40
#tos semelhantes a olhos porque é mais eficiente comparar a iluminação em vários
pontos
específicos do que compará-la em extensas áreas do corpo.
Mas havia uma maneira melhor de descobrir a direção de uma fonte de luz, que era
tra
nsformarum únicoponto semelhante ao olho num "olho" autêntico, como um mecanismo
formador de imagens (Figura 1). Quando a luz de uma direção cai sobre uma faixa
plan
a de fotorreceptores, a faixa é iluminada por igual e não há como dizer de que
direção vem a luz. Mas, quando a faixa é transformada numa cavidade arredondada, a
luz
vinda de uma direção produz um gradiente de iluminação. E se a cavidade for
ainda mais transformada, tornando-se esférica, com uma estreita abertura na
superfíc
ie, ela se transforma numa espécie de estenopéia, uma espécie de máquina
fotográfica
na qual um buraquinho substitui a objetiva, e na qual a direção da luz está
precisamen
te correlacionada com a posição da imagem. Daí a encher o vazio no buraquinho
com uma gota translúcida e produzir uma câmara completa, com lentes, há apenas um
pass
o.
Faixa plana semelhante ao olho
Figura 1
41
#Olhos semelhantes a câmaras surgiram desde logo na evolução, e foram reinventados
vária
s vezes. Mas, apesar de suas propriedades formadoras de imagem, eu diria
que sua única atribuição importante continuou sendo a de avaliar o nível e direção
da ilumin
ação que chega â superfície do corpo. Assim, mesmo depois de desenvolvido
o olho, o sentido da visão tinha a princípio apenas uma única função, e não duas.
Quando, po
r exemplo, a imagem de um objeto brilhante atravessava a retina, a única
experiência do animal teria sido a de que um estímulo visual o "atingira", por
assim
dizer.
Mas a evolução não estava nisso. Uma vez inventado o olho formador de imagem, todo
um
novo mundo abriu-se potencialmenteà análiseperceptual. Objetosde formas diferentes,
porexemplo, projetam imagens de formas diferentes na retina; objetos a distâncias
diferentes projetam imagens de tamanhos diferentes; objetos de cores diferentes
projetam imagens de cores diferentes. Assim, o estímulo da luz tornou-se, em
princíp
io, uma fonte de informações sobre o mundo exterior.
Ao desenvolver um canal separado para a percepção visual, juntamente com o canal já
ex
istente para a sensação visual, os animais podiam aproveitar as propriedades
definidoras da luz, ao mesmo tempo em que conservavam seu interesse primordial n
ela, como um fato esclarecedor que afetava seus proprios corpos.
O resultado final, centenas de milhões de anos depois, foi a evolução de animais
com o
lhos e mentes, como a sua ou a minha: que, quando olhamos parauma rosa, temos
a experiência complexa e multifacetada que chamamos de "ver".
Poderíamos argumentar que em nosso caso a principal função da visão é atualmente a
percepção
e que o papel afetívo da sensação visual tornou-se relativamente menos
importante. É, porém, uma regra geral da evolução que os animais raramente esquecem
de t
odo a sua história. Nosso sangue preserva, hoje, a mesma concentração de
sais que havia nos oceanos dos quais nossos antepassados provieram originalmente
. Da mesma forma, nossa experiência da visão preserva, creio eu, lembranças da
época
em que a luz nos tocava tão de perto quanto o perfume da rosa entra pelas nossas n
arinas.
42
#Mas há uma outra regra geral da evolução, a de que à medida que o papel original
das es
truturas ou capacidades biológicas se torna menos importante, novos papéis
surgem para elas. Poderíamos, portanto, esperar que a sensação visual tenha passado
a
desempenhar um papel secundário na vida mental humana, para o qual não há qualquer
analogia nas minhocas.
Não obstante, seria um erro passar com demasiada rapidez ao exame daquilo que, além
do afeto, a sensação da visão está proporcionando aos seres humanos. Pois,
admitindo-se
que num nível um tanto primário as sensações visuais têm menos poder de nos
emocionar do q
ue as sensações de cheiro, gosto ou tato, seria difícil que tivéssemos
evoluído ao ponto de termos deixado de nos preocupar com a luz que entra em nossos
olhos. Podemos ja não ter fotorreceptores por todo o nosso corpo. Nossas retinas,

em
Í1 proporção ao total de nossa pele, podem ser muito pequenas. Mas
também - e creio que esse ponto não requer desenvolvimento -
o clitóris é muito pequeno, em proporção ao total da pele da
A
Imulher, e não obstante as sensações que ele produz podem afetar
todo o seu ser.
NOTAS
1. Ludwig Wittgenstein, Philosophícal Investigations, 2, 11, trad. de GE.M.
Anscombe. Oxford, BlackwelI, 1958.
2. MauriceBowra,Memaries.Oxford,OxfordUniversityPress,1987.
43
#V.-
#A COR E O TECLADO
Em quase todas as circunstâncias os seres humanos preferem a luz às trevas. Não é
por ac
aso que o deus sol, a luz do mundo, supera todas as outras divindades como
objeto de E
adoração humana. Não é por acaso que as pessoas se sentem iluminadas quando estão
felizes,
e têm pensamentos escuros quando estão tristes.
Quando, porém, o poeta Andrew Marvell quis encontrar o verdadeiro conforto, buscou
em seu jardim "um pensamento verde, numa sombra verde ".1
Não é a luz como tal, mas a cor, que tem a influência mais óbvia no estado de
espírito das
pessoas. Wassily Kandinsky disse: "A cor é um poder que influencia diretamente
a alma. A cor é o teclado, os olhos são os martelos, a alma é o piano com muitas
corda
s. O artista é a orquestra que toca, apertando uma tecla ou outrapara provocar
vibração na alma."2 Mesmo quando nenhum artista participa e a orquestra está
tocando u
ma única nota, a luz colorida pode afetar vigorosamente a condição humana.3
Constatou-se, por exemplo, que a luz vermelha produz sintomas psicológicos de exci
tação: a pressão sangüínea aumenta, a respiração e o ritmo cardíaco aumentam e
a resistência elétrica da pele diminui. Em contraste, a luz azul tem o efeito
oposto
: a
45
#pressão do sangue diminui levemente, o ritmo do coração e da respiração cai. Essas
reações
foram, quase certamente, aprendidas. com apenas 15 dias de idade,
os bebés que choram podem ser acalmados com mais facilidade pela luz azul do que p
ela vermelha.
As pessoas sentem-se subjetivamente melhor em aposentos vermelhos do que nos azu
is. W. E. Miles disse que num café as garçonetes descobriram que podiam tirar os
casacos quando as paredes azuis foram pintadas de laranja. Um estudo norueguês mos
trou que as pessoas colocam o termostato quatro pontos mais alto numa sala azul
do que numa sala vermelha, como se procu~ sassem uma compensação térmica para a
frieza
provocada visualmente.
O tempo passa subjetivamente mais depressa na luz vermelha do que na azul, de mo
do que as pessoas consideram, digamos, um minuto numa sala vermelha equivalente
a
um minuto e meio numa sala azul. Os tempos de reação de um grupo de estudantes
forar
n mais rápidos quando a iluminação da sala era vermelha do que quando era verde.
Um estudo numa fábrica mostrou que os trabalhadores passavam menos tempo nos banhe
iros quando estes estavam pintados de vermelho escuro.
Num livro sobre ColourforArchitecture4 torn Porter e Byron Mikellides contam que
"Michelangelo Antonioni, o diretor de cinema italiano, fez uma observação
interessa
nte
durante a realização doseu primeiro filme colorido, O deserto vermelho. Aofilmar
cen
as industriais numa fábrica, ele pintou a cantina de vermelho para evocar um
estado de espírito pedido como pano de fundo para o diálogo. Duas semanas depois
obs
ervou que os trabalhadores da fábrica se tinham tornado agressivos e haviam
começado

a brigar entre si. Quando a filmagem terminou, a cantina foi novamente pintada d
e verde-claro, a fim de restabelecer a paz e para que, como comentou Antonioni,o
s
olhos dos trabalhadores pudessem descansar'."
Além disso, "médicos e terapeutas que usam a arte observaram que pacientes
inclinado
s ao suicídio tendem a usar as tintas amarelas generosamente em seus quadros
- como, na verdade, fez Vincent Van Gogh. Em seu último quadro antes do suicídio,
Tr
igal com corvos, predominava o amarelo. ( ... ) O Instituto de Artes Contemporân
eas,
em Londres, descobriu à própria custa que o efeito estimulante do amarelo é tão
intenso
que pode incitar as
46
#crianças ao vandalismo. Durante uma exposição de brinquedos, distribuídos por
salas de
cores variadas, todos os que ficaram na sala amarela acabaram quebrados!"
Em certas condições patológicas, os efeitos da cor podem tornar-se ainda mais
acentuad
os. Kurt Goldstein descreveu uma paciente com uma doença do cerebelo: "Se usava
uma roupa vermelha, todos os seus sintomas aumentavam em grau intolerável. Ficava
tonta e caía. O verde ou o azul tinham o efeito oposto. Deixavam-na tranqüila,
seu equilíbrio melhorava de modo que ela parecia ser quase normal."-' Ele observou
ainda que, com essa mulher e outros pacientes com danos no cerebelo, olhar para

uma tela vermelha ou amarela provocava agitação dos braços longe do corpo, ao passo
qu
e o verde ou o azul fazia com que os aproximassem do corpo. L. Halpern descreveu

vários casos semelhantes. Num deles, "Quando um vidro vermelho era colocado em fre
nte ao olho esquerdo da paciente, todo o seu corpo começava a balançar
violentamente

( ... ) ao mesmo tempo que o seu braço direito descia e se afastava muito para a
direita. ( ... ) A paciente disse que, ao olhar para o vermelho, a respiração
tornav
a-se
difícil e apareciam palpitações e náusea. Em contraste com essas sensações
perturbadoras ( .
.. ) a paciente sentia-se subjetivamente muito bem quando o vidro era
azul.1f6 À luz vermelha, a sensibilidade à dor aumentava e os ruídos altos que
seriam
tolerados à luz azul tornavam-se insuportavelmente desagradáveis.
GoIdstein conclui: "O forte desvio dos braços ao estímulo vermelho corresponde à
exper
iência de ser perturbado, desequilibrado, anormalmente atraído para o mundo
exterior. E apenas uma outra expressão dos sentimentos de intromissão, agressão,
excit
ação, pelo vermelho. A diminuição do desvio com a iluminação verde corresponde
ao afastamento do mundo exterior e à retirada para a sua própria quietude, o seu
cen
tro."
Essas reações musculares são observáveis, de modo mais moderado, até mesmo em
pessoas sadi
as. O músico Manfred Clynes desenvolveu uma técnica para medir a emoção,
usando um medidor de pressão sensível -o "sentógrafo" - que registrava pequenos
movime
ntos expressivos do dedo de um paciente. Em seu livro Sentics: The Touch of
Emotions ele mostrou uma reaçao típica ao vermelho como sendo "uma reação forte
voltada
para fora", ao passo que "a calma do azul se reflete (... ) na ausência de
um impulso para fora".7 As formas dos sentogramas para o ver-
47
#melho e o azul são notavelmente semelhantes às encontradas por ele quando pediu
aos
pacientes que pensassem nos estados, respectivamente, de ódio e amizade.
Embora tenhamos de dizer que grande parte dessa pesquisa sobre a cor é relativamen
te de segunda ordem - refletindo a tendência moderna geral em psicologia contra
o estudo do afeto -, o quadro geral que surge é o de seres humanos como animais qu
e conservaram uma forte memória biológica da luz como um fato revelador. Podemos,
na verdade, não ser assim tão diferentes de nossos ancestrais distantes, que
sentiam
a luz com toda a sua pele - e deixavam passar as vibrações, se não até a alma,
pelo menos até os músculos e glândulas.
NOTAS
1. Andrew Marvell (1681) "The Garden", in The Metaphysical Poets, org. por Hele
n Gardner. Harmondsworth, Penguin, 1957.
2. Wassily Kandinsky, citado em Hozv Does It Feel?, org. por Csaky.
3. Ver resenhas em Patrick Trevor-Roper, The World Through Blunted Sight. Londr
es, Thames and Hudson, 1970; e em torn Porter e Byron Mikellides, orgs., Colourf
or
Archítecture. Londres, Studio Vista, 1976.
4. Porter e Mikellides, Colourfor Architecture.
5. Kurt Goldstein, "Some Experimental Observations Concerning the Influence of
Colors on the Function of the Organism", in Occupational Therapy 21 (1942), pp.
147-151.
6. L. Halpern, "Additional Contributions to the Sensorimotor Induction Syndrome
in Unilateral Disequilibrium. With Special Reference to the Effect of Colors",
in
Joumal of Nervous and Mental Diseases 123 (1956), pp. 334-350.
7. Manfred Clynes, Sentics: ne Touch of Emotions. Londres, Souvenir Press,
1977.
48
#NO REINO DOS SENTIDOS
Para Samuel Coleridge a experiência da visão tinha conotações evidentemente
eróticas:
Por vezes quando olho inten
samente para um objeto ou uma paisagem bonitos, parece que é como se eu estivesse à
beira de uma fruição ainda negada
- como se a Visão fosse um apetite; e mesmo como teria sentido um homem que, tendo
empregado toda a sua força muscular num ato de pular para a frente, é naquele
exato momento contido ele salta, e não obstante não sai do lugar."1
William Wordsworth, lembrando sua juventude, declarouse apaixonado pela forma e
pela cor:
... a alta rocha,
A montanha, e afloresta profunda e escura, Suas cores eformas, eram então para mim
Um anseio, um sentimento e um amor
Que prescindiam de um mais remoto estimulo Que vem do pensamento, e de qualquer
encanto Que dos olhos não víesse.2
49
#Escrevendo na década de 1790, no clima de idéias criado por Reid, Wordsworth
compre
endeu bem a distinção entre sensação e percepção. Não era a percepção que ele
desejava, não o "mais remoto estímulo que vem do pensamento", mas sim a sensação
pura da
luz, que nada continha "que dos olhos não viesse".
Em lugar de dizer, como fiz, que o papel essencial da sensação visual não é tão
óbvio quanto
o da sensação do olfato, talvez eu devesse ter dito que o papel definídor
da percepção visual é muito mais óbvio: e isso porque a visão é uma fonte tão
notável de inf
objetiva sobre o exterior, que a similaridade entre ela e os
sentidos inferiores tem sido ignorada com freqüência.
Platão distinguiu acentuadamente entre os sentidos "superiores" da visão e
audição, e o
s "inferiores" do olfato, paladar e tato, exaltando apenas os primeiros
como
caminhos do conhecimento racional: "Deus imaginou o dom da vista para nós a fim de
que pudéssemos observar os movimentos que foram descritos pela razão nos céus,
e aplícá-los aos movimentos da nossa própria mente.( ... ) E o mesmo se aplica à
voz e a
udição."3 Ele sabia que a visão e a audição também poderiam, como os outros
sentidos, provocar o que chamava de "prazer irracional", no plano da simples sen
sação. Mas deixar-se governar pela sensação deveria ser moralmente repulsivo às
pessoas
de bom gosto e virtude.
Quando as idéias gregas clássicas chegaram à Europa, em princípios do Renascimento,
esse
preconceito platônico foi lembrado. Boccaccio, por exemplo, escreveu que
Ciotto "trouxe de volta aquela arte que esteve enterrada durante séculos sob os er
ros dos que pintaram mais para o prazer dos olhos do ignorante do que para agrad
ar
ao intelecto do sábio.',4
Duzentos anos depois, as tapeçarias da Dama do Unicórnio em Cluny, ao retratar os
ci
nco sentidos, adotou a mesma posição moral. Os primeiros cinco quadros, como
eu já disse, celebram o prazer dos sentidos. Mas não mencionei que o sexto mostra a
Dama do Unicórnio recolocando um colar num cofrezinho e no toldo que a protegeestá
escrito "A mon seu] désir"-"A meu único desejo". Ela está dizendo, como boa
platônica, q
ue renunciará aos prazeres sedutores da sensação a fim de não perturbar sua
mente racional.5
so
#Mas, como escreveu o poeta romano Horácio, podemos expulsar a natureza com uma fo
rquilha, mas ela voltará sempre. Na arte e na poesia, o prazer que as pessoas tinh
am
com a sensação simplesmente ficou escondido, para voltar, com novos defensores, nos
séculos XVIII e XIX. Wordsworth, falando pelo movimento romântico inglês, mostrou
desprezo pelos que criticavam o gozo essencial dos sentidos.
Ânimo! ânimo! Amigo, e desanuvia tuafronte: or que toda essafaina e perturbação?
Animo! ânimo! Amigo, e deixa teus livros: Ou certamente te hás de enganar:
Um impulso de umaflaresta vernal Pode ensinar-te mais do homem, Do mal moral, co
mo do bem,
Do que todos osfilósofos.
O olho não pode deixar de ver: Não podemos calar o ouvido.
Nossos corpos sentem, onde quer que estejam, Contra ou com a nossa vontade.6
Na Inglaterra, o pintor William Turner e, mais tarde na França, os impressionistas
aceitaram o convite para não pintar "nada que dos olhos não viesse" e propuseram-
se

deliberadamente a alimentar Q,apetite pela sensação visual, criando quadros que não
só não
faziam concessões à percepção, como também em muitos casos funcionavam
contra ela. Nas últimas paisagens de Turner, por exemplo, o artista fez da própria
l
uz o tema de seus quadros, representando o banho de cores que lhe chegavam à
retina como pinceladas exageradas sobre a tela. Terra, mar, navios, gado, tudo t
inha perdido a definição - de modo que o que hoje percebemos ao olhar seus quadros
não é a imagem dos objetos externos, mas simplesmente a carícia da luz.
No mesmo espírito, Claude Monet pôde pintar mais de vinte quadros diferentes sobre
a
catedral de Rouen, vistos mais ou menos do mesmo ângulo, mas em diferentes
condições
de luz e atmosfera. O objeto da percepção, em cada quadro, continuou o mesmo (a
capa
cidade de "ver através" das imprecisões do estímu-
51
#lo é uma das grandes realizações da percepção); mas em cada caso a sensação era
maravilhosa
nte diferente.
John Constable acusou Turner de pintar "com vapor colorido";7 alguma outra pesso
a disse que suas paisagens eram "imagens de nada e muito parecidas". Mas Turner
e
Monet quase poderiam estar seguindo a sugestão de Immanuel Kant, na Crítica do
Juizo
: "Quando a questão é se uma coisa é bela, não queremos saber se alguma depende
da existência do objeto, mas apenas como o avaliamos na mera contemplação".8
Eliminand
o deliberadamente a existência do objeto, eles estavam ajudando o observador
a atingir um estado de contemplação visual.
Paul Cézanne acreditava que os seres humanos que se preocupam demais com a
"existênc
ia do objeto" podem deixar de experimentar totalmente as sensações. Observou,
sobre um agricultor que o levou até o mercado: Tle nunca tinha visto o que chamamo
s dever:nunca tinha visto Sai nte Vi ctoi re. Elesabeoque foi plantado ali, ao
longo da estrada, como será o tempo amanhã, se Sainte Victoire tem sua capa de
nuven
s ou não; (... ) mas que as árvores são verdes, e que esse verde é uma árvore,
que essa terra é vermelha e que esse cascalho e elevações são morros, realmente não
creio
que ele sinta isso."9
Assim como o provador de vinho pode deixar temporariamente de lado o seu prazer
com o estímulo gustativo, a fim de se concentrar naquilo de que é feito o vinho,
assim também alguém pode não notar a beleza da luz quando o que lhe interessa é,
totalme
nte, aquilo que está lá fora no mundo material.
Mas muitos de nós estamos, grande parte do tempo -pelas melhores razões biológicas
-,
na mesma situação do agricultor. Epara
limparas portas da percepção", como
disse William Blake, é preciso um tipo de distanciamento em relação à realidade que
não oc
orre facilmente. Wordsworth recomendou a passividade tranqüila. Outros,
em especial os místicos religiosos, usaram os exercícios contemplativos. Mais
rápido,
porém, e provavelmente mais eficiente (e sem dúvida mais capaz de perturbar
os racionalistas) é o uso das drogas psicodélicas.
Aldous HuxIey descreveu suas experiencias com a mescalina: "As impressões visuais
são muito intensificadas e o olho
52
#recupera parte da inocência perceptual da infância, quando o sensum, o dado
proveni
ente dos sentidos, ainda não estava imediata e automaticamente subordinado ao
conceito.( ... ) Os livros, por exemplo, com os quais as paredes do meu escritório
estão forradas. Como as flores, eles brilhavam, quando os olhava, com cores mais
vivas, com uma significação mais profunda. Livros vermelhos como rubis; livros cor
d
e esmeralda; livros encadernados de jade branco; livros de ágata; de água-marinha,
de topázio arnarelo.( ... ) Em momentos comuns, o olhose ocupa de problemas como O
nde? - Até onde? - Como se situa em relação ao quê? Na experiência da mescalina,
as questões implícitas às quais o olho responde são de outra ordem. Lugar e
distância deix
am de ter muito interesse. A mente realiza suas percepções em termos da
intensidade da existência.( ... ) Até esta manhã eu só conhecia a contemplação em
suas forma
s mais humildes, mais triviais.(... Mas agora conheço a contemplação
em seu auge."10
Para que não se desconfie do relato de alguém nesse estado de êxtase, eis uma
descrição co
mparável feita por uma mulher que tomou LSD: "Cerca de três quartos de
hora depois do início da experiência chegou de súbito uma qualidade de consciência
difer
ente. Nada se modificou de maneira definida, mas a sala transfigurou-se de
repente. Todos os objetos se destacavam no espaço, demaneira espantosa, epareciam
luminosos. Eu tinha consciência do espaço entre os ojetos, que era puro cristal
vibrador. Tudo era belo.(...) Eu disse 'E pungentemente adorável, mas não posso
expl
icar por quê. Há algo de divinamente comum em tudo, e, não obstante, é totalmente
diferente'."11
Ambos estão descrevendo a intensificação da sensação visual e a superação da
percepção: para
ente, uma experiência semimística realizada quando a faculdade
dada por Deus, de uma visão voltada para o exterior, é levada - por produtos
químicos
- a um lugar secundário.
NOTAS
1. Samuel Coleridge (1808). Anima Poetae, reproduzido em The Poetry of Earth,
org. por E.D.H. johnson, Londres, Collancz, 1966, p. 128.
2. William Wordsworth (1798), "Lines Composed a Few NEles Above Tintern Abbey",
in Selected Poems of William Wordsworth, org. por Roger Sharrock. Londres, Heine
mann,
1958.
53
#3. Platão, Tinieu, 47B, em Philosophies of Beauty, trad. e org. por E.F.Carritt
. Oxford, Clarendon Press, 1931.
4. Giovanni Boccaccio (1358). Decameron, citado por E.H. Gombrich, - Medztatio
ns on a Hobby Horse. Londres, Phaidon Press, 1963, p. 17.
5. Alain Erlande-Brandenburg, La Dame a la Licome. Paris, tditions de la R6uni
on des Mus6es Nationaux, 1978.
6. Wordsworth (1798), "The Tables Turned" e "Expostulation and Reply", em Sele
cted Poems, Sharrock.
7. John Constable, citado por Michael Middleton em Handbook of Western Paintin
g. Londres, Thames and Hudson, 1961.
8. Immanuel Kant (1970). The Critique ofjudgement. Livro 1, 2, ern Philosophie
s of Beauty, Carritt.
9. Paul Uzanne, em conversa com J. Gasquet, citado por Ernest G. Schactel em Met
amorphosis. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1963.
10. Aldous Huxley, The Doors of Perception. Nova York, Harper and Row, 1954, pp.
25,19, 20,41.
11. Citado em S. Cohen, Drugs of Hallucination: The Uses and Misuses of LSD. Lon
d res, Secker and Warburg, 1964, pp. 167-69.
54
#Capítulo
A VISAO QUE VAI E VEM
Imagine alguém escrevendo com uma pena na pele das suas costas, e compare a apreci
ação do estímulo táctil com a percep
ção do que está sendo escrito. Imagine ouvir a Sonata ao luar e compare o deleite
com
a música com a tentativa de descobrir se o pianista é Richter ou Serkin. Pergunte
a um provador profissional de vinhos se ele realmente gostou do tinto que acabou
de identificar como sendo um Lafite 1970, e ele muito provavelmente não será capaz
de dizer.
A percepção e a sensação envolvem, na verdade, tipos diferentes de atenção, ou
diferentes at
itudes mentais. Há alguns anos realizei uma série de experimentos com
resos, que proporcionaram uma inesperada demonstração de como esses símios podem
oscil
ar entre a sensação e a percepção.1 '
Os experimentos relacionavam-se, em primeiro lugar, com a investigação da reação
afetiva
dos macacos à luz colorida. Coloquei cada um deles numa câmara de prova
escura, com uma tela numa extremidade, sobre a qual podiam ser projetados dois s
lides alternativos. O macaco podia controlar a apresentação dos slides apertando
um botão, cada pressão produzindo um slide ou outro,
55
#em rigorosa alternância. Assim, quando ele gostava do que via, podia manter press
ionado o botão, mas, se queira mudar, soltava-o, e apertava novamente.
Para testar a "preferência de cor", deixei que os macacos escolhessem entre dois c
ampos de luz colorida, da mesma intensidade. O resultado foi que todos os oito
animais testados mostraram preferências acentuadas e coerentes. Quando podiam esco
lher entre, por exemplo, vermelho e azul, passavam três ou quatro vezes mais tempo

com o azul do que com o vermelho.A ordem de preferências no espectro era azul, ver
de, amarelo, laranja, vermelho. Quando cada uma das cores era separadamente conj
ugada
a um campo neutro e branco, o vermelho e o laranja eram as cores mais rejeitadas
, o azul e o verde as moderadamente atraentes.
Em outro experimento, em vez de dar aos macacos um botão para mudar a luz, deixei
que andassem de um lado para outro entre duas câmaras permanentemente iluminadaS.2

Mais uma vez, preferiram a câmara azul à vermelha. E se ambas fossem vermelhas, iam
rapidamente de um lado para outro, como se estivessem muito incomodados; se foss
em
ambas azuis, eles se acalmavam. A aversão à luz vermelha tornava-se ainda maior
quan
do a escolha era feita na presença de um ruído intenso e desagradável.3 No
conjunto,
esses macacos mostravam mais ou menos as mesmas reações dos pacientes humanos com
do
ença do cerebelo.
Ora, no contexto do que foi dito acima, a pergunta que se poderia fazer é: eram as
preferências dos macacos determinadas pela sensação ou pela percepção? Era a
experiência
subjetiva de ser mergulhado em luz vermelha que eles odiavam, ou era o fato obje
tivo de que tudo ficava colorido de vermelho? Como não havia nada de destaque para

que os macacos olhassem na câmara, e portanto muito pouca coisa para atrair as fac
uldades perceptuais, parecia altamente provável, desde o começo, que eram afetados
pela sensação do vermelho. Mas o que realmente me convenceu de que era isso mesmo
fo
i o que aconteceu quando havia alguma coisa para os macacos olharem.
Na situação em que podia mudar o slide apertando um botão, dei-lhes primeiro a
escolha
entre o campo branco e um "interessante" filmeem pretoebranco, mostrandoo
camundongo Mickey. Os macacos são animais curiosos, e não é surpresa que tenham
eviden
ciado acentuada preferência pelo filme. Mas em seguida eu
56
#o projetei através de um filtro vermelho, de modo que se tornou um filme em preto
e vermelho, onde tudo estava colorido com essa cor. O leitor poderá ter imaginado

que os dois fatores - o interesse pelo conteúdo pictórico e a aversão ao vermelho -


se
neutralizassem. Mas não, o resultado foi queagora a luzvermelha deixava de
ter qualquer efeito: os macacos estavam tão interessados em ver o filme como se fo
sse em preto e branco.
Para usarmos alguns números, podemos dizer que os resultados de determinado experi
mento com os macacos foram os seguintes: quando a escolha era entre campos verme
lho
e branco, simples, eles escolheram o campo vermelho 29 e 28% do tempo. Quando er
a entre o filme em branco e preto e um campo branco, a escolha foi de 84 e 86% d
o
tempo em favor do filme. Quando a opção era entre um filme preto e vermelho e um
cam
po branco, eles continuaram a escolher o filme em 83 e 86% do tempo.
Em outros testes usei rápidos filmes repetitivos de modo que os macacos acabavam
não
tendo nada de novo para olhar. Constatei que, quando o seu interesse pelo conteúd
o
pictórico desaparecia, então voltavam a preferir acentuadamente o campo branco. A
anál
ise matemática destes e de outros resultados mostrou que o comportamento dos
macacos podia ser bem coberto por uma teoria do fator dois, pela qual se supunha
que "interesse perceptual" e "prazer/ desprazer sensorial" eram variáveis totalme
nte
independentes, e a primeira superava a segunda.
Foi como se os macacos, como as pessoas, pudessem estar atentos seja à percepção ou
à se
nsação, mas não às duas, com facilidade. Como o agricultor de Cézanne, ou
o provador de vinhos, quando passavam para um modo peceptual - um modo alocêntrico
, ou definido - seu interesse na existência do objeto externo era predominante.
Mas quando voltavam a um modo sensorial -um modo autocêntrico ou íntimo -seus
sentim
entos sobre a cor da luz se evidenciavam.
Roger Fry, o pintor e crítico, registrou um duplo experimento, muito semelhante, s
obre a reação das pessoas aos quadros.4 Muitas das grandes telas, segundoFry, nos
atraem tanto em "nível dramático ou psicológico" - e com isso ele queria dizer seu
con
teúdo pictórico, a história que contavam - como em nível "plástico" - e com
isso queria dizer seu conteúdo estético determinado simplesmente pela disposição da
cor
e forma. Mas esses dois níveis competem freqüentemente, de modo que
"somos
obri-
57
#gados a focalizar os dois elementos separadamente.( ... ) O que de fato acontec
e é que transferimos constantemente nossa atenção de um para outro, para a frente
e para trás". Mas, quando a obra se torna familiar, os "elementos psicológicos
passa
rão a segundo plano, por assim dizer, e a qualidade plástica se destacará quase
sozinha".
Eu disse antes que no caso da visão não há um equivalente óbvio para o saborear, em
cont
raste com o provar. Mas na realidade, tanto Para as pessoas como para os
macacos, parece haver. E, além disso, no caso humano, a maneira pela qual "usamos
nossos olhos" está, pelo menos até certo ponto, sob nosso controle voluntário.
Determinadas coisas e circunstâncias que vemos podem levar-nos a um ou outro camin
ho, mas mesmo assim podemos ir contra a tendência, se quisermos. Quando estamos
diante do quadro que Monet pintou da catedral de Rouen, podemos, se quisermos, r
ejeitar o convite para nos deleitarmos com o estímulo visual e em lugar disso nos
concentrarmos no que podemos perceber do objeto externo; mas, quando estamos dia
nte da verdadeira catedral de Rouen, também podemos (precisamente porque Monet nos

ajudou nisso) rejeitar o apelo do objeto exterior e nos concentrar no estímulo que
chega aos nossos olhos.
Devo, porém, ter cautela na escolha de exemplos, ou criarei a impressão falsa de
que
não estou falando da experiência comum. A verdade é que podemos ver tudo, e
realmente vemos, dessas duas maneiras. O que é verdade em relação à catedral, é
exatamente
tão verdadeiro em relação ao lápis amarelo sobre a minha mesa. Posso representá-lo
como um lápis, ou como um raio de luz que chega à minha retina (e, se o aproximar
mu
ito de meus olhos, estarei sentindo o estímulo sobre a retina duas vezes, embora
não duvide nunca de que há apenas um lápis objetivo).
E preciso certa prática para mudar de modos visuais à vontade. Nem sempre é fácil,
como
disse Reid, "atribuir nada a um que pertence ao outro". Mas pode ser feito,
o que é bom, pois a argumentação dos próximos capítulos dependerá disso.
NOTAS
1. Nicholas Humphrey, "Interest and Pleasure: Two Detern-dnants of a Mon-
keys Visual Preferences", in Perception 1 (1972), pp. 395-416.
58
#2. Nicolas Humphrey e Graham Keeble,"Do Monkey's Subjective Clocks Run Faster
in Red Light Than in Blue?", in Perception 6 (1977), pp. 7-14; "Effects of Red L
ight
and Loud Noise on the Rate at Which Monkeys Sample Their Sensory Environment", i
n Perception 7 (1978), pp. 34348.
3. Nicholas Humphrey e Graham Keeble, 'Interactive Effects of Unpleasant Light
and Unpleasant Sound", in Nature 253 (1975), pp. 34647.
4. Roger Fry (1926). Transformations, cap. 1, ern Introductory Readings in Aest
hetics, org. por John Hospers. Londres, The Free Press, 1969.
59
#904 -
#Capítulo
"DEVE PARECER ESTRANHOP9
s próximos capítulos tratarão de questões relativamente técnicas, e antes de
iniciá-los devo
explicar por que devemos esclarecer problemas quepoderiam parecer mais
ade-
quados a um manual de psicologia sensorial.
John Locke escreveu em seu Essay ConcerningHuman Understanding. Taçamos com que al
guém examine seus próprios pensamentos, e busque exaustivamente em seu
entendimento,

e em seguida que me diga se todas as idéias originais que ali tem são diferentes
dos
objetos de seus sentidos, ou das operações de sua mente consideradas como objetos
de sua reflexão."1
Os sentidos, como Locke reconheceu, são quase que literalmente as portas e janelas
para a mente, através das quais passam todas as informações novas. Assim, não
pode haver em nossa cabeça pensamentos, idéias, concepções que não derivem
originalmente d
a nossa experiência dos estímulos superficiais que chegam aos nossos corpos.
Mas a questão de como, exatamente, pessoas ou animais interpretam esses estímulos
su
perficiais como tratam a informação no limite entre o "eu" e o "não-eu" tem sido,
e continua sendo, surpreendentemente controversa.
61
#A sensação e a percepção serão realmente diferentes, e como? Quando eu olho agora
para al
go colorido, ou cheiro uma rosa, ou sinto dor, há realmente, como Reid
(e eu) sustentamos, duas coisas em Processo, ou apenas uma? E se pudermos respon
der a essa pergunta em relação ao nosso próprio caso, então o que diremos dos
outros
animais? Que coisa é ser como um morcego, localizando pelo eco o seu caminho no es
paço? Ou um pombo, navegando pelo senso magnético? Ou um robô mecânico, com órgãos
sensoriais artificiais eum computador eletrônicocomo cérebro? Haverá animais ou
máquinas
que tenham sensação, mas não percepção (...) ou percepção, mas não sensação
(... ) ou percepção com sensação diferente? E se qualquer dessas hipóteses
ocorresse realm
ente, como saberíamos? Essas perguntas levam diretamente à evidente privacidade
da experiência individual e ao famoso problema das Outras Mentes. Minhas dores
serão
como as suas? Como posso saber se você sente alguma dor?
Se o peixe da consciência se oculta em algum lugar, é certamente nessa área do rio.
Ma
s a razão pela qual não foi pescado é, em parte, pelo menos, que os teóricos
se têm mostrado apressados d emais em supor que sabem a priori o que é a experiênci
a
sensorial. Como Bertrand Russell observou, de forma um tanto oblíqua, na Introduct
ion
to Mathematical Philosophy: "O método de'postular' o que desejamos tem muitas vant
agens: são as mesmas vantagens do ladrão sobre o trabalhador honesto."2
Um conhecido "experimento mental" pode ser usado para ilustrarmos o que está em jo
go:
O "ESPECTRO INVERTIDO"
Imaginemos um negativo colorido no qual os verdes são vermelhos, os azuis são
amarel
os, e assim por diante - a relva tem cor de sangue, tomates maduros parecem verd
es
e os malmequeres têm a cor das violetas. Suponhamos que há óculos que poderíamos
usar e
que produzem uma "inversão do espectro da cor" na luz que chega ao nosso
olho, de modo que as cores da imagem na retina fossem transformadas exatamente c
omo dissemos. Quais seriam as conseqüências a curto e longo prazo do uso desses
óculos
?
62
#Desde que aceitemos a diferença entre sensação e percepção, é óbvio o que deve
acontecer. Q
ndo colocarmos os óculos pela primeiravez, tanto a nossa sensaçãocomo
a nossa percepção serão modificadas: teremos a sensação de verde quando olharmos
para um t
omate maduro, e igualmente perceberemos a cor da sua superfície como verde
- de modo que o chamaremos de "verde" e poderíamos mesmo tomá-lo errôneamente por
um t
omate verde. Na verdade, se, como o poeta, quisermos "um pensamento verde em
uma sombra verde" deveríamos escolher uma sala vermelha em lugar de um jardim verd
e.
A longo prazo, porém, nossa experiência provavelmente se modificaria. Não há razão
para su
por que nossa sensação voltasse jamais a ser o que era, ja que quando a
luz vermelha atinge nossos óculos a luz que nos chega à retina não seria vermelha,
mas
sim verde, e a nossa avaliação de que alguma coisa verde nos está acontecendo
permaneceria sempre válida. Por outro lado. haveria razão em supor que a nossa
perce
pção acabaria voltando ao normal, pois sempre que percebêssemos erroneamente
as cores dos objetos externos poderíamos ser corrigidos pela realidade. Assim, enq
uanto a nossa sensação permaneceria transformada, nossa linguagem ejuízos objetivos
sobre objetos coloridos provavelmente voltariam, sem muita demora, ao que eram a
ntes. Notese, porém, que se a reação afetiva for determinada principalmente pela
sensação, continuaríamos preferindo uma sala vermelha a um jardim verde - só que
agora d
iríamos que buscamos "um pensamento vermelho em uma sombra vermelha".
O experimento da inversão de cores nunca foi feito, e as limitações práticas
provavelmen
te significam que nunca será. Mas as versões de experimento mental da situação
foram amplamente discutidas pelos filósofos. Locke deu início a isso, ao examinar a
possibilidade, não de que uma única pessoa pudesse usar óculos que invertessem
as cores, mas que os olhos das pessoas pudessem ter diferentes estruturas, de mo
do que, embora tendo sempre sensações diferentes da cor, elas crescessem e fizessem
juízos perceptuais corretos:
1 -
"Se pela estrutura diferente de nossos orgãos o mesmo objeto produzisse nas mentes
de vários homens diferentes idéias ao mesmo tempo, por exemplo, se a idéia que
uma violeta produz na mente de um homem através de seus olhos fosse a mesma produz
ida pelo malmequer em outro homem, e vice-versa ( ... ) ele seria
63
#capaz de distinguir regularmente as coisas de seu uso por essas aparências, e com
preender, e dar significado a essas distinções, marcadas pelos nomes azul e
amarelo,

como se as aparências, ou idéias na sua mente, recebidas dessas duas flores, fossem
exatamente iguais às idéias nas mentes de outros homenS."3
Tomando o caso de pessoas diferentes e não de uma pessoa só que sofre uma mudança,
Loc
ke pôde levantar a torturante possibilidade de que "isso nunca se tornasse
conhecido, porque a mente de um homem não poderia transferir-se para o corpo de ou
tro, para perceber quais aparências eram produzidas por esses órgãos".
Realmente, desde Locke os filósofos andaram por aí indagando em voz alta se não
ocorre
ria realmente que membros diferentes da espécie humana experimentassem as cores
de maneira diferente, sem que ninguém notasse. Wittgenstein escreveu nas Philosoph
ical Investígations: "Seria possível, assim - mas não verificável -, a suposição
de que um setor da humanidade tem uma sensação do vermelho, e outro setor tem
sensação d
iversa."4
Mas seria realmente possível que "isso nunca se tornasse conhecido" e que o
fenômeno
não fosse "verificável"? Somente, é claro, se fosse verdade que as sensações
da luz colorida não influem na maneira pela qual a pessoa se comporta. E eu argume
ntei nos capítulos anteriores que acontece o oposto: que as sensações têm
importância,
e que em particular há quase certamente uma ligação não-arbitrária entre sensação e
afeto.
O próprio Wittgenstein, numa fase inicial de sua carreira, também levantou a
possibi
lidade de que as reações afetivas trouxessem à luz a verdade. No trecho seguinte
ele examina o argumento segundo o qual uma única pessoa acorda e verifica que sua
experiência da cor mudou (exatamente como se lhe tivessem colocado, durante a noit
e,
óculos de inversão de cores, sem que o percebesse):
Examinemos essa hipótese: alguém diz'Não posso entender, vejo tudo que é vermelho
como s
e fosse azul, hoje e vice-versa'. Respondem'Deve parecer estranho!'. A pessoa
diz que sim e, por exemplo, continua, dizendo como a brasa viva parece fria e co
mo parece cálido o céu claro (azul). Creio que nos deveríamos inclinar, nessas ou
em circunstâncias semelhantes, a dizer que ele via vermelho quando nós víamos
azul."-5
Ora, se o que venho propondo é válido, o homem continuaria, quase certamente, a
faze
r esses juízos anômalos sobre o calor
64
#da luz azul e o frio da luz vermelha, mesmo depois que tivesse voltado a usar o
s nomes corretos das cores. De modo que, pelo menos nesse caso, a suposição de que
ele estava experimentando sensações diferentes jamais seria verificável para um
observ
ador de fora, mesmo que ele próprio esquecesse como foi a sua experiência.
No caso de alguém nascido com "olhos de cor invertida", não posso ver exatamente
por
que as mesmas consideraçoes não seriam válidas.
Reconheço que, com isso, continuamos dando voltas em torno da questão da qualidade
c
onsciente da experiência individual. E nenhuma ligação necessária foi ainda
estabelecida

entre ter uma sensação com um torn afetivo particular e ter uma sensação com um
sentimen
to consciente do como-é-ter-essa-sensação. Creio que tal ligação existe:
realmente, que ter sensações com as quais nos importamos é parte integral de ter
exper
iências das quais estamos conscientes. Mas primeiro é essencial estabelecer
a argumentação prévia de que vale a pena levar a sério a sensação.
E para isso devemos deixar os experimentos mentais e voltar ao mundo real. Denis
Diderot escreveu:
"Infelizmente é mais fácil e mais rápido consultarmos a nós mesmos do que
consultara nat
ureza.( ... ) Devemos distinguir dois tipos de filosofia, a experimental
e a baseada no raciocínio.( ... ) A filosofia baseada no raciocínio faz um
pronuncia
mento e pára. Disse ousadamente:'a luz não pode ser decomposta'; a ciência
experimenta
l
ouviu e ficou calada na sua presença durante séculos. Depois, de repente, produziu
o
prisma, e disse:'a luz pode ser decomposta'."6 Há, de fato, filósofos que
apostaria
m
o último vintém em que
a experiência sensorial não pode ser decomposta em sensação e percepção; e outros
que disser
am que evidentemente pode ser. Para resolver a questão é necessário o
equivalente do prisma experimental.
NOTAS
1. JohnLocke (1690).An EssayConcerníngHuman Understanding. Livro 2, capA,
5, org. por Peter H. Nidditch. Oxford, Clarendon Press, 1975.
2. Bertrand Russell, Introduction to MathemdicalPhilosophy. Londres, Allenand U
nwin, 1919, p. 71.
3. Locke. An Essay Concerning Human Undmtanding. Livro 2, cap. 32, 15.
4. Wittgenstein, Philosophical Investigations, 1, p. 272.
65
#5. Wittgenstein, "Notes for Lectures on'Private Experience'and'Sense Data'", or
g. por Rush Rhees, in The Philosophical Revietv 77 (1968), p. 284.
6. Denis Diderot (1754). On the Interpretation of Nature, em Diderot: " Selected
Writings, trad, dej. Stewartej. Kemp. Londres, Lawrence and Wishart, 1937.
66
#NOVAS, DISPOSIÇOES
"Tu és velho, pai William ", disse o jovem, "E teus cabelosficaram muito brancos.
Mas estás sempre de cabeça para baixo.. Achas que, na tua idade, é certo? "
"Em minha juventude", responde William aofilho, "Temi que pudessefazer mal ao cére
bro.
Mas agora que sei que não tenho nenhum, Eufaço isso com muitafreqüêncía. "1
ewis Carroll, em Alice no país das maravilhas, estava zombando de Robert Southey,
que em seu poema sobre o pai WilL,iam tinha ironizado William Wordsworth, o deca
no
da sensação. Carroll não sabia, mas estava também sugerindo um importante
experimento na
redisposição sensorial.
Como ponto de referencia para a discussão que se segue, quero repetir meu diagrama
que mostra como sensação e percepção estão presumivelmente relacionados, agora
adaptado especificamente à visão.
67
#objeto externo - luz na retina -<
sensação do que está acontecendo ao olho
percepção do que está acontecendo lá fora
VISAO DE CABEÇA PARA BAIXO
Tente olhar para o mundo com a cabeça entre as pernas. Se atentarpara a
sensaçãovisual
, será evidentequea imagem em sua retina ficou ao contrário: partes dela, que
antes pareciam estar mais perto do lado superior da sua órbita ocular, estão agora
m
ais perto do lado inferior, partes que estavam mais perto do lado direito estão
agora mais perto do lado esquerdo, e assim por diante. Se porém (o que provavelmen
te é mais natural) você atentar para a percepção, verá que tudo no mundo exterior
continua mais ou menos como antes: o teto ainda évísto acima do chão, o texto de um
li
vro ainda é lido da esquerda para a direita, e assim por diante. Você pode
verificar facilmente a continuada precisão da sua percepção, tentando apontar para
coi
sas no ambiente: verá que não enfrenta problemas - embora note que ao apontar
para um objeto cuja imagem parece estar mais próxima do lado superior do seu olho
você esteja agora apontando numa direção diferente de antes.
Não há nisso nada de surpreendente ou de controverso, apenas mostra que, embora
você d
ependa simplesmente da ímagem retiniana a fim de formar uma representação do
"que está acontecendo no olho", é capaz de - e na verdade, tem de -levar também em
con
ta a orientação da sua cabeça no espaço, a fim de formar uma representação
perceptual "daquilo que está acontecendo lá fora". Mas o experimento ainda ilustra
u
m fato importante, ou seja, que diferentes sensações visuais (uma imagem na posição
certa, ou de cabeça para baixo) pode na verdade estar associada à mesma percepção
(um mu
ndo ereto) - desde que o mecanismo perceptual do seu cérebro seja informado
sobre qual é a situação, para que possa fazer os ajustes necessários.
Suponhamos, porém, que ocorresse uma mudança na orientação da imagem retiniana sem
qualq
uer mudança na orientação da sua cabeça e, portanto, sem que o mecanismo
perceptual em
68
#seu cérebro seja informado. Em especial, suponhamos que você usasse "óculos que
coloc
assem a imagem de cabeça para baixo", de modo que, mesmo quando você permanecesse
ereto, sua imagem retiniana estaria permanentemente invertida. Nessa situação, o
mec
anismo perceptual não faria nenhuma adaptação para a transformação da imagem,
e dessa forma - pelo menos inicialmente - você veria a imagem de cabeça para baixo
(
como está), e o mundo exterior também de cabeça para baixo (como não está).
Portanto,
você estaria sujeito a cometer enganos perceptuais apontando para cima para um obj
eto quando devia apontar para baixo, dizendo "para cima" em lugar de "para baixo
",
e assim por diante.
Qual seria o efeito do uso desses óculos por muito tempo? A situação é análoga,
pelo menos
em princípio, ao experimento mental com a inversão de cores. Não há razão
para supor que sua sensação voltasse ao que era, já que sua avaliação da imagem
como tendo
sido invertida em sua retina continuaria perfeitamente correta. Por outro
lado, haveria razão para supor que a sua percepção acabaria sofrendo alguma forma
de r
eajuste, já que sempre que você apontasse na direção errada seria corrigido.
Dessa forma, poderíamos esperar que o mecanismo perceptual fosse na verdade "recal
ibrado" para levar em conta a nova situação, de modo a voltar a proporcionar-lhe
uma imagem válida da posição dos objetos no espaço.
Esse experimento com os óculos de inversão foi tentado na prática várias vezes nos
últimos
cem anos, com os pacientes usando os óculos até por um mês, continuamente.
Dados os problemas metodológicos de fazer com que as pessoas tratem de seus afazer
es cotidianos num mundo de cabeça para baixo, não causa surpresa que os resultados
dos diferentes estudos não tenham concordado totalmente. Houve problemas também na
i
nterpretação dos relatórios introspectivos das pessoas, quando disseram, por
exemplo, que a maneira pela qual "as coisas lhes pareciam" (percepção ou sensação?)
tinh
a mudado, ou não.
Não obstante, numa série de estudos realizados em Irinsbruck, na década de 1960, 1.
Ko
hler encontrou indícios claros de que, depois do uso pelo paciente de óculos
inversores por apenas duas semanas, pode haver um reajuste perceptual praticamen
te completo: a ponto de, por exemplo, a pessoa que está usando os óculos poder
andar

debicicleta ou pegar umabola, e relacionar-se


69
#em geral com o mundo exterior como se o estivesse vendo novamente na posição
certa.
Quando os óculos são retirados, o paciente passa a cometer erros de apontar
na direção contrária. Num experimento Kohler usou meios-óculos, de modo que a
imagem era
invertida quando o usuário olhava para cima, mas permanecia normal quando
olhava para baixo; verificou-se que o paciente também podia acostumar-se a isso, i
sto é, que podia aprender a fazer ajustes quanto à direção do seu olhar.2
Mas se a percepção se adapta, o que acontece com a sensação? Os resultados dos
estudos d
e Kohler e outros foram revistos por Robert Welch num livro sobre Perceptual
Modification3 onde ele procurou distinguir cuidadosamente entre as mudanças ocorri
das no que chama de nível "egocêntrico" (sensação) e no nível "ambiental"
(percepção).
Welch conclui que, mesmo quando o reajuste perceptual é completo, não há nenhum
ajuste
correspondente na sensação: a "introspecção crítica", como diz ele, mostra
que a imagem retiniana ainda continua a parecer errada se comparada com o que er
a antes. Da mesma forma, depois que os pacientes retiram os óculos, embora cometam
erros perceptuais, eles declaram que a sua experiência sensorial voltou a ser "fam
iliar".
Não parece haver dúvidas, portanto, de que a dissociação prevista entre sensação e
percepção
e ocorrer, não apenas nos experimentos mentais, mas na vida real.
Os exemplos seguintes mostram isso ainda mais vigorosamente.
VISAO CUTANEA
Levando-se em conta que a vida da retina humana começou, na evolução, como parte da
pe
le, talvez pudéssemos dizer que todos já temos a visão cutânea (e pela mesma
razão, o paladar cutâneo, o olfato cutâneo, a audição cutânea). Antes, apresentei a
metáfora
os seres humanos e outros animais que reagiam ao "toque da luz". Não
obstante, há evidentemente "pele" e "pele": a que foi transformada numa retina sen
sível à luz e a simples e velha. O bom senso mostra que ninguém jamais pôde ver
com a pele das costas.
Há dois problemas óbvios: o primeiro é que a pele das costas humanas não tem
receptores
de luz; o segundo, que mesmo que uma pessoa tivesse receptores de luz, ainda
assim lhe faltaria
70
#qualquer tipo de mecanismo formador de imagem -assim, tudo o que poderia detect
ar seria o nível geral de iluminação. Suponhamos, porém, que esses dois problemas
pudessem ser contornados. Suponhamos que uma lente artificial fosse usada para f
ormar a luz em imagem, e essa imagem fosse transformada num tipo de estímulo ao qu
al
a pele é sensível, como a vibração. Não será possível que a informação que chega à
pele seja
tante adequada para proporcionar - com a prática constante
- uma base para o reconhecimento do que a luz significa no mundo exterior? E mai
s, que isso funcionaria igualmente para os cegos e para os dotados de visão normal
?
cracatua Em fins da década de 1960, Paul Bach-y-Rita e seus colegas do Instituto S
mith Kettiewell realizaram algumas provas com um "aparelho de substituição
sensorial
"
baseado
exatamente nesse raciocínio.4 O que fizeram foi colocar no paciente uma pequena
câma
ra de TV presa à cabeça, e cuja imagem eletrônica, em lugar deir para uma tela
de TV, era enviada a uma matriz de vibradores em contato com a pele das costas.
Havia 40O vibradores numa matriz de 2O x 20, cobrindo uma área de pele de 64,5CM2.
Assim, cada ponto estimulado na pele representava uma pequena área da imagem capta
da pela câmara, mais ou menos como uma fotografia de jornal representa uma cena
pela disposição de pontos. O paciente podia dirigir a câmara movendo a cabeça, como
se e
stivesse movimentando os próprios olhos.
Os resultados superaram todas as expectativas. com umas poucas horas de treiname
nto, pacientes cegos aprenderam a reconliecervários objetos comuns, como um telefo
ne,
uma xícara e um cavalo de brinquedo. Desenvolveram rapidamente a capacidade de apo
ntar com precisão para objetos no espaço, e de julgar sua distância e seu tamanho
absoluto (independentemente da distância). Depois de cerca de trinta horas de trei
namento, eles eram capazes de complexos padrões de discriminação e alguns pacientes
aprenderam até mesmo a reconhecer o rosto de pessoas do laboratório. Bacli-y-Rita
ci
ta um paciente empenhado na exploração da cena visual
com a câmara: "Aquela
é a Betty; está usando o cabelo para baixo, hoje, e está sem óculos; tem a boca
aberta,
e está mexendo com a mão direita do lado esquerdo em direção à nuca."
O mais notável talvez tenham sido os indícios de percepção espacial. Usando as
informações d
a imagem sobre a perspectiva e a paralaxe, os pacientes cegos chegaram
a perceber objetos
71
#T
externos como localizados no mundo tridimensíonal estável. Não localizaram os
objetos
como se estivessem encostados em sua pele
- como nós, com visão normal, não localizamos os objetos como se estivessem sobre a
no
ssa retina - mas os percebemos imediatamente como estando no espaço.
Bach-y-Rita não hesita em dizer que seus pacientes cegos adquiriram a percepção
visual
.- "Se um paciente com olhos quenão enxergam pode perceber informações detalhadas
no espaço, localizá-las subjetivamente de maneira correta e reagir a elas de
maneira
comparável à reação de uma pessoa de visão normal, sintome justificado em aplicar
a pai avra 'visão'."
Eu concordaria com ele. Mas, e a sensação? Fiei à tendência da psicologia moderna,
Bach-
y-Rita tem muito pouco a dizer sobre a sensação. Mas apesar disso a questão
é óbvia e interessante: quando um cego vê com a pele das costas, experimenta
sensações vis
uais ou táteis? É de presumir que, nos primeiros minutos de uso do aparelho,
essa pessoa deva ter sensações táteis sensações de ser tocada - pois ainda não há
razão pela
l sua experiência deva ser diferente da nossa. Mas ao aprender a
interpretar o estímulo tátil como uma percepção visual, é concebível, pelo que
suponho, que
comece a ter sensações como se a luz estivesse chegando à sua retina,
em outras palavras, sensações vísuais de claro e escuro.
Conheço um filósofo inteligente cuja primeira manifestação ao tentar imaginar-se no
luga
r do paciente cego foi dizer: "Sim, é claro que as suas sensações seriam
visuais." Mas isso é certamente contra a intuição. Seja qual for a impressão que o
pacie
nte receba do estímulo perceptualmente, perdura o fato de que ele não está
sendo estimulado pela luz na sua retina, e sim pela vibração mecânica sobre a pele
das
suas costas. E na medida em que a sensação é uma representação "do que está
acontecendo comigo", não há qualquer razão pela qual a sua qualidade deva mudar
quando
"o que está acontecendo comigo" continua a ser o que era originalmente sentido
como um estímulo tátil.
Há, porém, outra possibilidade, a de que o paciente não tivesse qualquer sensação.
Poderia
estar tão absorvido pela tarefa de perceber o mundo exterior que passaria
totalmente para o modo perceptual e deixaria de lado a sua sensação.
Mas estou falando disso como se fosse um experimento mental, quandoo fato é que de
vemos ter a provadas pessoas reais,
72
#vivas. E, embora Bach-y-Rita fosse relativamente omisso quanto a essa questão, não
ficou totalmente calado. Em seu livro Sensory SubstitutWn, ele escreve: "Mesmo
durante o desempenho da tarefa (... ) o paciente pode perceber sensações puramente
tát
eis quando lhe pedem para concentrar-se nessas sensações." Mas, "a menos que
esse pedido seja especificamente feito, os pacientes não atentam para a sensação de
es
tímulo na pele das costas, embora ela possa ser lembrada e sentida retrospectivame
nte."
Assim, parece que a maior parte do tempo o paciente, na verdade, simplesmente não
toma conhecimento do que está acontecendo consigo; mas se, e quando, se lembra
de como é em nível de sensação, sua experiência é claramente tátil.
Temos, em suma, tems essas duas situações contrastantes: o caso da visão normal, e
o c
aso da visão cutânea:
Visão norinal
sensação visual do que está acontecendo comigo
objeto externo luz no olho luz na retina-<
Visão cutânea
objeto externo
luz na câmara de TV
vibração na pele
percepção visual do que está acontecendo lá fora
sensação tátil do que está acontecendo comigo
percepção visual do que está acontecendo lá fora
73
#A questão estA se complicando. E fica mais complicada ainda se examinarmos o que
poderia acontecer se houvesse um colapso seletivo na
sensação ou na percepão.
NOTAS
1. Lewis Carroll (1865). Alice's Adventures in Wonderland, cap. 5. Londres, Ch
ancellor Press, 1982.
2. Kohler, citado por Ronald H. Forgus em Perception, Nova York McGraw Hill, 1
966.
3. Robert B. Welch, Perceptual Modification. Nova York, Academic Press, 1978.
4. Paul Bach-y-Rita. Brain Mechanisms in Sensory Substitution. Londres, Academ
ic Press, 1972.
74
#CEGUEIRA MENTAL E MENTALIDADE CEGA
Alice no País das Maravílhas, tendo descido pelo buraco de coelho e bebido o
líquido d
o vidro rotulado BEBA-ME e comido o bolo da caixa rotulada COMA-ME, começou
a A
sentir vários sintomas estranhos. Num momento ela parecia estar diminuindo de tama
nho, no momento seguinte se abria como um telescópio. Encontrou uma chave dourada
e com ela abriu a porta de um jardim onde nada era o que parecia ser. Havia um g
ato Cheshire, que desapareceu deixando apenas o seu sorriso. "Bem! Vi muitas vez
es
um gato sem sorriso", pensou Alice, "mas um sorriso sem o gato! É a coisa mais cur
iosa que já vi na vida!".1
Posso apenas supor que Lewis Carroll estivesse prevendo meu argumento, outra vez
, e sugerindo a possibilidade de uma dissociação patológica entre a sensação e a
percepção. Um sorriso sem um gato - percepção sem sensação? - seria um fenômeno
realmente mu
o curioso. Mas primeiro examinemos o gato sem o sorriso.
75
#MA PERCEPÇAO1BOA SENSAÇAO
já temos amplos indícios de como a percepção pode dar as respostas erradas, embora
a sen
sação dê as certas. Quando uma pessoa coloca pela primeira vez os óculos
inversores, sua percepção torna-se muito errada (ela vê o mundo exterior de cabeça
para
baixo), e quando alguém experimenta pela primeira vez o aparelho da visão
cutânea, sua percepção está totalmente ausente (ainda não percebe o mundo), embora
em nenh
um dos casos sua sensação sofra problema. Em cada caso a percepção tem
de ser modificada pelo aprendizado. Mas, se a percepção pode ser adquirída ou
alterada
pela experiência, também deve ser muito provável que possa ser perturbada
por uma doença do cérebro.
A "cegueira mental", ou "agnosia visual", é de fato uma conseqüência bern
documentada
de dano ao córtex da associação, no cérebro. ("Agnosía", palavra criada por
Freud, significa literalmente "não-conhecimento", mas passou a significar especifi
camente a perda de algum aspecto da percepção, enquanto a sensação permanece
relativamen
te
incólume).
Um caso típico é decrito por Macdonald CritchIey: "Um velho de sessenta anos
acordou
incapaz de encontrar suas roupas, embora estivessem preparadas para ele, próximas
.
Logo que sua mulher as colocou nas suas mãos, ele as reconheceu, vestiu-se correta
mente e saiu. Nas ruas verificou que não podia reconhecer as pessoas -nem mesmo
sua filha. Podia ver as coisas, mas não sabia o que eram. (... ) Psicologicamente,
ele estava bem consciente e orientava-se de maneira normal. A Inteligência estava

muito acima da média." Nesse paciente "não havia perturbação mental e o tradicional
exam
e de raciocínio e fisiológico não revelou nenhuma anormalidade". Não obstante,
"de objetos grandes ele reconheceu apenas uma garrafa de vinho". O que aconteceu
foi que durante a noite elehavia tido um derrame menor, que afetara seu córtexpar
ietal.
Em conseqüência, suas faculdades perceptu ais superiores desapareceram, enquanto
sua
sensação permaneceu quase incólume.2
Nesse caso, a agnosia estendeu-se a muitos aspectos da percepção. Mas em outros ela
mostrou-se notavelmente específica.já se descreveram pacientes incapazes de
perceber

a forma, o movimento, a localização espacial ou a cor; ou incapazes de reconhecer


de
terminadas classes de objetos, como faces, legumes ou instru-
76
#mentos musicais. Mas eles dirão sempre que sua sensação é perfeitamente normal - e
que
nada lhes parece diferente do que era antes.
A "agnosia da cor" é uma dificuldade específica de reconhecer as cores dos objetos
e
xteriores. Examinei um caso desse tipo em Oxford há alguns anOS.3 A paciente
achava que via as cores como sempre tinha feito. Quando foi testada para daltoni
smo, com placas que mostravam uma figura colorida sobre um fundo de outra cor, e
la
provou ter uma sensibilidade normal à cor, e pôde separar perfeitamente bem os
disco
s coloridos em pilhas da mesma cor. Além disso, quando lhe perguntaram "De que
cor é a banana?" "( ... ) a caixa do correio?", e assim por diante, ela respondeu
sempre corretamente. Mas, quando lhe mostraram pedaços de papel colorido e lhe
pediram para dizer que cor via neles, cometeu erros estranhos: quando lhe mostra
ram um pedaço de papel azul, disse "vermelho"; de papel verde, disse "entre vermel
ho
e laranja"; de papel amarelo, disse: "azul." Não obstante, e repetindo, ela disse
que a qualidade de sua visão da cor não sofrera alteração, e realmente ela se
mostrava
surpresa por nos interessarmos por esse aspecto do seu caso.
Como é ser agnósico? Qualquer pessoa que tenha ouvido alguém falar uma língua
estrangeir
a, sem compreender o que significam os sons, tem, creio eu, uma idéia do
que é sofrer deuma "agnosia auditiva". A maioria das pessoasjá sofreu pelo menos de
uma passageira "agnosia visual de objeto", ocasião em que olhamos uma figura
de um enigma e somos incapazes, a princípio, de compreender o que representa; ou d
e uma "agnosia visual de profundidade", quando olhamos para um estereoscopio e
inicialmente não vemos a cena em três dimensões.
Quando alguém espera compreender alguma coisa e se vê incapaz disso, provavelmente
f
icará desorientado e aborrecido. Mas, afora isso, o que é muito interessante,
os próprios pacientes não consideram a sua experiência muito peculiar. E a verdade
cer
tamente é que ela não é assim tão peculiar. No que concerne ao paciente, ele
ainda pode "ver", apenas não vê muito bem; de fato, não é incomum que o paciente
acredit
e que seu único problema é necessitar de mudar de óculos.
As agnosías são fascinantes em si mesmas, e de grande interesse para os psicólogos
pre
ocupados com os mecanismos perceptuais. Mas eu ressaltaria que seria um erro
supor que a
77
#experiencia dos pacientes é totalmente diferente de qualquer coisa já conhecida de
nós mesmos. Digo isso porque quero contrastá-la agora com o oposto da agnosia,
quando a sensação falha enquanto a percepção permanece intacta.
AIA SENSAÇAO1BOA PERCEPÇAO
Se o esquema dos dois canais paralelos estiver certo, a possibilidade de a perce
pção continuar na ausência da sensação deve ser considerada. Mas, ao contrário das
agnosias, trata-se de uma condição para a qual a maioria das pessoas não dispõe de
model
o óbvio em sua própria experiência. Imagine-se ouvirmos alguém falar e descobrir
que compreendemos o que quer dizer, mas não temos consciência de que quaisquer sons
tenham chegado ao nosso ouvido; ou olharmos para um quadro e vermos o que repres
enta,
mas sem termos consciência de haver recebido qualquer imagem visual em nosso olho.
Na experiência comum, o mais próximo que a maioria das pessoas chegou dessa
condição é, pr
ovavelmente, a "percepção subliminar". O estímulo sensorial é chamado de
"subliminar" quando é demasiadorápido ou fraco para que oregistremos como um fato
se
nsorial; e a "percepção subliminar" é o que acontece quando, mesmo assim,
verificamos
que pelo menos percorremos metade do caminho necessário para dar uma interpretação
per
ceptual a esse estímulo.
Por exemplo, podemos estar caminhando pela rua e ouvir o pedaço de uma conversa, o
u perceber de relance alguma coisa com o canto do olho sem - pelo que sabemos -
ter consciência disso, apenas para constatar depois que temos na cabeça uma idéia
que
evidentemente não veio de lugar algum. James Alcock dá um belo exemplo disso,
da sua própria experiência: Tu estava de pé num cinema esperando para comprar
pipocas,
e recordava descuidadamente uma conversa que tive certa vez com o irmão de
um colega. (... ) Poucos momentos depois, voltei-me e lá estava o próprio homem, a
c
erca de dez metros. Lembro-me da sensação de choque que tive momentaneamente."4
Alcok nota que se não tivesse reanalisado a experiência poderia ter sido tentado a
a
tribuir a coincidência à percepção extra-sensorial. E realmente tais experiências
podem ser facilmente consideradas paranormais.
78
#A percepção subliminar não foi levada a sério durante muito tempo pelos
psicólogos, mas a
cumularam-se provas experimentais de que se trata de um fenômeno autêntico.
Na esfera visual a melhor prova veio de estudos de "subcepção". Se uma imagem é
projet
ada numa tela por cerca de um décimo de segundo, a pessoa a verá e será capaz
de mencionar alguns dos seus detalhes; mas se a mesma imagem for seguida imediat
amente de outra, mais duradoura, a pessoa (se as condições forem ajustadas com
propr
iedade)
deixará de ver a primeira imagem - como se nunca tivesse ocorrido. Mas a primeira
imagem ainda pode influenciar sua percepção da segunda. Por exemplo, num
experimento

de M. Eagle6 a segunda imagem era a face de um jovem não caracterizado, enquanto a


primeira era a imagem do mesmo jovem, brandindo uma faca ou carregando um bolo
de aniversário.Perguntava-se às pessoas o que achavam do caráter do homem que viam
na
segunda imagem. Mesmo quando os pacientes não tinham nenhuma idéia da ocorrência
da primeira imagem, julgavam a segunda de acordo com o caráter mostrado na primeir
a.
Resultados como esses significam que-em condições reconhecidamente planejadas - o
pr
ocessamento perceptual de alto nível pode realmente ocorrer apesar de o paciente
não ter consciência dorecebimento do estímulo e nada saiba sobreele, nonível da
sensação. Ma
s o fenômeno fica, é claro, muito aquém de um colapso total da sensação,
com a percepção relativamente nãoperturbada - do tipo que pode ser a condição
crônica de alg
uém com o inverso de uma agnosia, cujo canal sensorial foi totalmente
inutilizado devido a danos ao cérebro.
Pode ser proveitoso tentar imaginar, novamente, como seria.
O que lhe pareceria se - ao movimentar-se no mundo cotidiano
- você fosse capaz de responder a perguntas sobre "o que está acontecendo lá fora",
se
m ser capaz de responder a perguntas sobre "o que está acontecendo comigo?"
A primeira resposta, provavelmente, é que você se sentiria capaz de fazer um
julgame
nto adequado do mundo exterior, baseado nos estímulos na superfície do seu corpo,
sem ter consciência de que tal estímulo estava ocorrendo. Mas, em contraste com um
p
aciente agnósico, você certamente acharia que algo muito peculiar estava
acontecendo
.
Na verdade, você bem poderia alegar que, fossem quais fossem os julgamentos percep
tuais que estivesse fazendo, "ne-
79
#nhuma relação teriam com você" - e, por isso, você poderia relutar em fazê-los.
Em princípios da década de 1970, Lawrence Weiskrantz descobriu uma síndrome clínica
que
parece exemplificar exatamente essa condição.7 A "visão cega", como passou
a ser chamada, ocorre em certos seres humanos que sofreram danos graves no córtex
visual primário que fica na parte posterior do cérebro. Eles são "cegos" em grande
parte do campo visual: "cegos" no sentido de que não reconhecem que essa parte do
campo visual exista. Dizem não ter sensação de luz, ou trevas, ou cor, no campo
cego, tal como se a parte correspondente das suas retinas tivesse desaparecido e
o estímulo da luz simplesmente não as afetasse. Não obstante, certa faculdades
percep
tuais
ainda estão intactas. Se for possível convencer o paciente a ignorar o fato de que
n
o plano da sensação nada lhe está acontecendo, e a fazer suposições sobre o mundo
exterior, ele as faz surpreendentemente bem (embora não de maneira perfeita). Se l
he for pedido que apanhe um objeto, ele estenderá a mão na direção certa. Além
disso, se for testado com objetos de formas diferentes, sua mão tomará a forma
corre
ta para pegar o objeto (procure fazer isso, e notará como os seus dedos se modelam
ao objeto antes de chegar a ele). Se lhe for pedido que relate verbalmente que f
orma tem o objeto, elegeralmente falhará; mas se a escolha for limitada a, digamos
,
dizer O em contraposição a X, e lhe for pedido que adivinhe qual é, ele aprenderá
em pou
cas tentativas.
Eu disse que a visão cega "parece" exemplificar a condição de percepção sem
sensação porque
desejo exagerar o caso. Quando a visão cega foi descoberta, foi considerada
tão surpreendente que vários comentaristas (inclusive eu) se viram tentados a fazer
afirmações exageradas a seu respeito. Portanto, deixem-me agora respirar e dizer
o que realmente penso sobre ela no próximo capítulo.
NOTAS
1. Carroll, Alice's Adventures in Wonderland, cap. 6.
2. Macdonald Critchley, The PaietaI Lobes. Londres, Hafner, 1966, p. 2,89.
3. J.M. Oxbury, Susan M. Oxbury, N.K. Humphrey, Warieties of Colour Anomia", in
Braín 92 (1969), pp. 847-60.
80
#4. Alcock, Parapsychology: Science of Magic?, p. 86.
5. Aj. Marcel, "Conscious and Preconscious Perception: Experiments on Visual Ma
sking and Word Recognition", in Cognitive Psychology 15 (1983), pp.
197-237.
6. M. Eagle, "The Effects of Subliminal Stimuli of Aggressive Content Upon Cons
cious Cognition", in Joumal of Personality 27 (1959), pp. 578-600.
7. Lawrence Weiskrantz, Blindsight. Oxford, Clarendon Press, 1986.
81
#I
#MAIE SOBRE A VISAO CEGA
enho particular interesse pela visão cega, que descreverei. Antes que o fenômeno
fos
se descoberto em seres humanos, T
eu tinha constatado alguma coisa muito parecida numa macaca reso.1 Seu nome era
Helen e ela foi objeto de um estudo iniciado por Weiskrantz em Cambridge na década

de 1960. Como parte de sua pesquisa da cegueira cortical em seres humanos, Weisk
rantz realizou uma operação cirúrgica que retirou quase todo o córtex visual do
cérebro
da macaca. Em conseqüência, sua capacidade de visão normal foi totalmente destruída
(exc
eto, possivelmente, por um fragmento no canto direito superior extremo do
campo do seu olho direito). A princípio, essa macaca simplesmente desistiu de olha
r para as coisas, como se ela própria não tivesse motivos para acreditar que
pudesse
ver.
Na época eu era aluno do laboratório de Weiskrantz, e fiquei curioso sobre Helen.
Em
bora seu córtex visual tivesse sido removido, as áreas visuais inferiores de
seu cérebro ainda estavam intactas, e pareceu-me possível que ela pudesse ter uma
ca
pacidade residual de ver, da qual nem ela mesma tivesse consciência. Tomei conta
do seu caso e trabalhei com ela durante sete anos.
83
#Adulei-a e estimulei-a. Brinquei com ela e a levei para dar caminhadas nos camp
os perto do laboratório. Tentei de todas as maneiras
persuadi-l de que não estava
cega. E lentamente ela começou a usar de novo os olhos. Melhorou tanto nos anos se
guintes que por fim podia mover-se agilmente numa sala cheia de obstáculos e pegar
pequenas
groselhas no chão. Podia até mesmopegar uma mosca voando. Sua visão espacial em
três dim
ensões e sua capacidade de distinguir entre objetos de tamanhos e brilhos
diferentes tornaram-se quase perfeitas.
Não recuperou, porém, a capacidade de reconhecer formas ou cores, e sob outros
aspec
tos sua visão continuou bastante deficiente. Quando corria pela sala, ela geralmen
te
parecia tão confiante quanto qualquer macaco normal. Mas, à menor dificuldade,
perdi
a o controle: um barulho inesperado, ou mesmo a presença de uma pessoa desconhecid
a
na sala bastava para reduzi-la a um estado de confusão cega. Era como se, mesmo de
pois de todos aqueles anos, ela ainda estivesse insegura da sua capacidade - e
só conseguia ver quando não se esforçava muito para isso.
Eis como descrevi Helen em 1977: "Ela nunca recuperou o que nós -você e eu -
chamaríam
os de sensações da visão. Não estou sugerindo que Helen não acabou descobrindo
que afinal de contas podia usar os olhos para conseguir informações sobre o
ambiente
. Ela era uma macaca esperta e eu quase não tenho d úvidas de que, com o progresso
do treinamento, tenha começado a perceber que estava realmente recolhendo
informações
"visuais" de algum lugar - e que seus olhos tenham alguma coisa com isso. Mas
quero dizer que, mesmo que ela tenha chegado a perceber que podia usar os olhos
para conseguir informações visuais,já não sabia como tal informação lhe chegava:
se havia uma groselha ante seus olhos ela constatava que sabia a sua posição mas,
não
tendo sensação visual, já não a via como estando ali.( ... ) As informações
que obtinha com os olhos eram "puro conhecimento perceptual", para o qual não disp
unha de nenhuma prova confirmadora na forma de sensações visuais.
Helen'simplesmente
sabia'que havia uma groselha em determinada posição no chão.(...) 'Visão cega' era
o que
Helen me parecia ter.( ... ) O paciente humano acredita, o que não surpreende,
que está apenas 'supondo'. O que, afinal de
84
#contas, é uma'suposição'? O Chambers Dictionary define-a como §'um juízo ou
opinião sem pro
vas ou motivos suficientes."'2
Mas o problema é que isso só se harmoniza parcialmente com os fatos da visão cega
huma
na. Para começar, os pacientes humanos jamais recuperam a visão nas mesmas
proporções que a macaca recuperou. Embora possam ver muito melhor do que
"deveriam",
eles ainda assim não se saem muito bem. Vale a pena comparar o desempenho do
principal paciente de Weiskrantz, D.B., com o de um paciente cego que usava o ap
arelho da visão cutânea:D.B. nunca sequerse aproximou donível de competência
perceptual
obtido pelos pacientes cegos depois de algumas horas de prática com a visão
cutânea.
Mas a minha caracterização da visão cega como "puro conhecimento perceptual", de
modo
que o paciente "simplesmente sabe" o que está na frente dele, é contraditada
pela descrição que o paciente humano faz. Sem dúvida, o paciente diz não ter
sensações visua
is; mas - tal como no caso da percepção subliminar também alega que não
tem percepção. Nunca diz nada parecido como "Meu Deus, é estranho. Eu sei que há
alguma
coisa em forma de X ali, embora não possa
vê-la." O que ele diz é: Eu não
sei de nada - mas se v Oce me diz que viu devo acre
ditar no que diz." Em outras palavras, é como se o paciente só pudesse descobrir a
s
ua capacidade de segunda mão, o que dificilmente esperaríamos de uma "pura
percepção".
Talvez alguém esteja tendo puras percepções, mas não é o meu #leu1
Qual a sensação da visão cega? Eu disse que a percepção subliminar poderia
assemelhar-se à p
ercepção extra-sensorial (PES) etalveza experiência davisão ceganãoseja
diferente. Quem já participou de um experimento de telepatia usando os cartões
Zener
(que mostram um círculo, uma cruz, uma estrela etc.), cujo objetivo é adivinhar
que cartão está sendo transmitido telepaticamente por alguém em outra sala, sabe
como
essa situação é peculiar. Fechamos os olhos e deixamos que a mente fique em
branco, e sentimos que a idéia de uma determinada forma - não exatamente uma imagem
- entra em nossa mente e temos a necessidade de, por exemplo, dizer "cruz". Mas
se for um racionalista como eu, o leitor se sentirá um pouco ridículo, mas acabará
diz
endo que recebeu uma imagem da cruz - porque não está
85
#muito clara a maneira pela qual a informação lhe está chegando (e a verdade é que
não lhe
está chegando).
No caso da visão cega, porém, a informação chega: e se o paciente sente necessidade
de d
izer "cruz" é porque seus olhos estão realmente lhe dizendo que é uma cruz.
(Na realidade, o paciente raramente sente a necessidade de dizer "cruz" ao ver u
ma cruz; o que acontece, na minha interpretação dos fatos, é que ele sente a
necessida
de
de segurá-la da maneira adequada.) Mesmo assim, caracteristicamente ele não
acredita
na sua capacidade e também se sente um pouco ridículo. Alguns pacientes se
recusara
m
a cooperar em testes de visão cega exatamente por essa razão.
Eu disse, ainda há pouco, que não é isso o que esperaríamos da pura percepção. Mas
então o q
seria? O que alguém diria sobre ela, se a experimentasse? Talvez a
pura percepção, se ocorresse, jamais fosse reconhecida pelo que é: o paciente teria
se
mpre dúvidas quanto ao que estaria acontecendo e jamais se inclinaria a dizer
"Eu apenas sei que há alguma coisa ali" porque, na ausência da sensação, ele - o
"eu" -
não acharia que tinha qualquer envolvimento pessoal direto na questão de
saber.
Podemos usar uma alavanca imaginativa da maneira que se segue. Procure o leitor
olhar à volta da sala, depois feche os olhos. Naturalmente, a sensação visual
cessara,

pois nenhuma luz chega mais aos seus olhos. Mas pelo menos durante certo tempo o
conhecimento da sala, visualmente adquirido, persistirá. De fato, se logo depois
de fechar os olhos você estender a mão para um objeto, não só a estenderá na
direção certa,
mo a mão (sem que você pense nisso) tomará a forma adequada. Não se
trata de "simplesmente saber" onde está e que forma tem o objeto, pois tem, obviam
ente, idéia de como sabe. Sua habilidade não lhe parecerá estranha, de modo algum.
Mas imagine agora como seria se você mantivesse os olhos permanentemente fechados,
e constatasse que ainda sabe a posição e as formas dos objetos (conhecimento esse
constantemente atualizado), como se tivessefechado os olhos apenas um momento an
tes. Isso seria um caso autêntico de "puro conhecimento perceptual, não
proporcionad
o
pela sensação" -de "simplesmente saber". O leitor talvez ficasse então na mesma
situação d
a macaca Helen ou
86
#do paciente com visão cega. E isso provavelmente seria muito surpreendente mesmo.
Por que a primeira situação não é surpreendente, e a segunda é muito? A resposta
parece ev
idente, mas é reveladora. No primeiro caso o leitor confiaria nos seus
julgamentos perceptuais porque reconheceria seu próprio envolvimento imediato no p
rocesso de ver; mas, no segundo caso, não teria base para achar que estava tão
envolvido.
Assim, talvez a visão cega, afinal de contas, não passe de um caso de puro
conhecime
nto perceptual, apesar dos protestos do paciente de que ele- "eu" -não está vendo
absolutamente nada. Pois o que parece faltar claramente no caso da visão cega (ou
percepção subliminar, ou até mesmo a PES) é precisamente esse envolvimento do ego
geralmente proporcionado pela sensação. É possível que seja essa a razão pela qual
os maca
cos mostram mais recuperação do que as pessoas,já que eles provavelmente
têm um autoconceito menos desenvolvido e, portanto, talvez não sejam tão
perturbados p
ela falta de auto-envolvimento: o sentimento de estar sendo tolo provavelmente
não é experimentado pelos macacos.
Anthony Marcel, focalizando esse problema por um ângulo diferente, ressaltou exata
mente o mesmo papel da sensação na
1.ustificativa da ação voluntária. "As pessoas não iniciam por si mesmas ações
voluntárias q
envolvem algum segmento do ambiente a menos queestejam fenomenalmente
conscientes desse segmento do ambiente [isto é, a menos que tenham sensações].( ...
)
Na medida em que alguém presta atenção ao seu comportamento, as pessoas não
se permitem, normalmente, praticar ações que não tenham uma razão.n3
Marcel enfatiza, em particular, que uma pessoa com visão cega não tem essas razões
- e
detesta agir "absurdamente". "Vejam a situação seguinte, que deve ser tratada
como um experimento mental, pois não o realizamos de forma rigorosa. Se uma pessoa
com cegueira cortical e visão cega num hemicampo [metade de seu campo de visão]
estiver com muita sede e um copo de água for colocado de modo a se enquadrar em se
u campo devisão, não há dúvida de que estenderá a mão para ele e beberá, ou
perguntará
se pode beber. Mas suponhamos que o copo de água
87
#seja colocado de modo a ficar dentro do campo cego. Lembremos que pelo nosso tr
abalho sabemos que o objeto está muito bem descrito visualmente para ser identific
ado
e permitir que seja apanhado de maneira adequada. O que fará a pessoa? Fará a mesma
coisa que fez quando o estímulo estava em seu campo de visão perfeita? Ou estenderá
a mão sem saber por quê (até que estabeleça contato manual com o copo)? Ou não fará
nada? So
mos levados a concluir, aqui, que não fará nada - em parte, devido aos
casos contados por essas pessoas, e em parte à base de observações feitas."
A questão não é que alguém nessa situação não possa agir, mas sim que não age.
Durante toda
a vida (pelo menos, até sofrerodano) o paciente se acostumou atersuasações
em relação a objetos percebidos "sancionadas" pela ocorrência da sensaçãoe parece
que os v
elhos hábitos custam a morrer.
As pessoas podem, é claro, aprender por vezes que as coisas que antes lhes parecia
m absurdas são, afinal de contas, racionais. Provavelmente todos nós sofremos uma
reeducação dessas em relação àquelas portas de aeroportos que se abrem como num
passe de mág
ica quando nos aproximamos empurrando um carrinho-sem que exerçamos uma
"força racional". Poderia ocorrer igualmente que o paciente com visão cega
aprendess
e a confiar no conhecimento perceptual siinplíCl'ter - sem ter uma "evidência
sensorial racional". Mas o perigono caso doaeroporto é que algum dia podemos empur
rar o carrinho contra uma porta que não se abre, e haveria igualmente perigos reai
s
- de um tipo que estudaremos no próximo capítulo - de agir sem a aprovação da
sensação.
São águas incertas, com várias correntes cruzadas que precisam ser navegadas. Não
obstan
te, a argumentação está mostrando um novo papel para a sensação na economia
mental dos seres humanos. A sensação empresta um sentimento de aqui e agora, e do
eu
, à experiência do mundo, do qual a pura percepção, na ausência da sensação,
é destituída.
88
#NOTAS
1. Nicholas Humphrey, "Vision in a Monkey Without Striate Cortex: A Case Study"
, m Pti-ception 3 (1974), p. 241.
2. Nicholas Humphrey, "Nature's Psychologists", British Association for the Adv
ancement of Science Lister Lecture, 1977, reproduzido em Humphrey, Consciou5ness
Regained.
3. Anthony J. Marcel, "Phenomenal Experience and Functionalism", em Consciousne
ss in Contenipora?y Science, org. por Marcel e Bisiach, pp. 121-58.
#t :
- I i
#UM FOGO NA MÃO: A ADAGA DA MENTE
uando diziam a Aristóteles que alguém vinha falando mal dele pelas costas, sua
respo
sta tradicional era: Todem até me bater, desde que eu não esteja ali." Poderia
ter acres-
cQenta o: "Ou desde que eu 'simplesmente saiba' mas não sinta nada."
Devo agora trazer de volta ao quadro as reações afetivas e estender a discussão às
modal
idades sensoriais, além das visuais. Suponhamos que haja na lareira uma brasa
viva, e que eu
estenda a mão para ela. Quando meus dedos se aproximam do carvão, sinto uma
sensação de
queimadura, e minha percepção do carvão é que ele está quente. Quando afasto
a mão, a sensação (logo) se dissipa e meus dedos deixam de arder - embora eu ainda
sai
ba que a brasa está quente. Suponhamos que eu apenas olhepara ela. Sinto
queévermelh
a
aluzquechega aosmeusolhos, e percebo que o carvão está em brasa viva. Quando afasto
os olhos ou os fecho, a sensação visual desaparece e qualquer reação agradável
a essa sensação de vermelho vivo cessa - embora eu ainda saiba que o carvão está
vermelh
o.
Os dois casos, tato e visão, são paralelos. A queimadura dos
91
#meus dedos e a recepção da luz vermelha pelos meus olhos são fatos relacionados
comig
o, enquanto o calor e o vermelho da brasa são fatos sobre o carvão. Mas o caso
do tato mostra mais claramente como o prazer ou a dor está ligado com a presença da
sensação. Embora o conhecimento perceptual possa por vezes ter conotações afetivas,
provocadas por meio de associações secundárias com a sensação, esse conhecimento em
si mes
mo é afetivamente neutro.
Formulada assim, a questão é óbvia, e sua explicação também: ou seja, que
"simplesmente sabe
r" pode não ter influência imediata no bem-estar corporal da pessoa.
Torna-se, porém, se não menos óbvia, pelo menos mais interessante quando se
compreende
que o que é válido para o conhecimento do que está acontecendo em algum outro
lugar que não é a superfície do meu corpo é igualmente válido para o conhecimento
do que e
stá acontecendo em algum outro momen to que não éo presente. Realmente,
não há mais razão pela qual alguém deva sentir dor ou lembrar-se de que se queimou
numa
brasa há uma hora, do que deva sentir a mesma coisa ao saber que há uma brasa
viva a um metro de distância.
john Locke reconheceu isso. "O prazer ou a dor", escreveu ele no Essay, "que aco
mpanha a sensação real não acompanha a volta dessas idéias sem os objetos externos.
(
... ) Assim, a dor do calor ou do frio, quando sua idéia é revivida em nossa mente,
não nos causa nenhuma perturbação; mas essa dor, quando sentida, foi muito
perturbador
a."1
Também os poetas chamaram a atenção para a pobreza afetiva das imagens relembradas.
No
Ricardo III, de Shakespeare, quando Bolingbroke é exilado da Inglaterra, seus
amigos procuram consolá-lo dizendo que ele sempre pode encontrar um lenitivo na re
cordação ou no pensamento sobre dias mais felizes. Bolingbroke responde:
Ah, quem pode ter um fogo em sua mão Só de pensar no Cáucaso gelado?
Ou embotar o gume do apetite,
com a imagem abstrata de umfestIM? Ou despido na neve caminhar Pensando em como é
tórrido o verão?2
92
#Ah, não, diz ele, a memória ou o pensamento não nos consola quando os fatos do
estímulo
presente a isso se opõem tão cabalmente.
A expressão usada por Shakespeare, "imaginação abstrata", resume a idéia, e me leva
à obse
rvação mais geral que desejo fazer:
ou seja, que não só o puro conhecimento
perceptual, mas todas as outras "idéias não sentidas" (lembranças, pensamentos,
imagen
s etc.) são abstratas - abstratas precisamente porque lhes faltam as ricas
vestimentas da sensação. Não estamos dizendo que falta conteúdo a essas idéi as não
sentidas
, nem mesmo que elas têm um caráter totalmente não-sensorial. Mas afirmamos
que são muito deficientes da densidade qualitativa que a sensação proporciona, de
mane
ira típica.
Veja-se um exemplo que se tornou o favorito dos filósofos: a Ilvaca púrpura"
(Eu nunca vi uma Vaca Púrpura/e não espero ver nenhuma./Mesmo assim posso dizer,/
Pr
efiro
ver a ser uma.,,3). Procure imaginar uma vaca púrpura, o mais detalhadamente
possíve
l. É de presumir que você tenha uma idéia razoavelmente clara do lado para o
qual a vaca está voltada, se tem chifres, e talvez mesmo se tem um sino no pescoço
o
u um balde de leite debaixo das tetas. Além disso, você não terá dúvidas de que
se trata de uma imagem visual (a imagem de alguma coisa vista) e não de uma imagem
tátil ou olfativa. Mesmo assim, a cor púrpura da vaca púrpura imaginária será
quase certamente mais apagada, mais diáfana, mais imprecisa do que qualquer púrpura
que você já viu: imaginar uma vaca púrpura não é a mesma coisa que ter uma sensação
da cor púrpura (ou pelo menos uma sensação púrpura digna do nome).
Ou, mudando de modalidades, imagine que ouve uma voz mental na sua cabeça. Suponha
mos que você diga com os seus botões: "The rain in SpainfalIs mainly in theplain
".* Você provavelmente poderia dizer na voz de quem essas palavras imaginadas são
fa
ladas (mais provavelmente a sua própria voz, mas poderia ser,porexemplo, na deAudr
eyHepburn,
tal como você se recorda dela em My Fair Lady), poderia descrever a pronúncia
(inglês
requintado ou popular) e ser capaz de confirmar que as palavras ainda rimam
entre si. Não terá dúvidas de que a imagem é
.Frase usada em exercícios de dicção e que significa, literalmente, "A chuva na
Espanh
a cai principalmente na planície". (N. do T.)
93
#auditiva (a imagem de alguma coisa ouvida). Mas tal como aconteceu com a vaca púr
pura, os sons imaginados não terão a densidade de sons reais que chegam aos
ouvidos.
Comparem-se os sons swish, swish com a sua audição real (a razão da escolha desse
exem
plo se tornará evidente num momento). As duas experiências não são equivalentes,
presumivelmente. Não obstante, seria possível, pelo menos em princípio, imaginar
circu
nstâncias nas quais as duas experiência seriam equivalentes.
Apresentamos agora um caso autêntico.4 Em 1928 apareceu num hospital de Boston um
paciente que tinha nascido com um grande número de vasos sangüíneos anormais na
parte posterior do cérebro, na região do córtex visual. Para espanto dos médicos,
disse-
lhes que sempre que abria os olhos ouvia um som de swish, músh, como o barulho
do vento soprando nos seus ouvidos. Mas não era um barulho imaginário, eram sons
rea
is. E quando os médicos colocaram um estetoscópio na cabeça do paciente, também
puderam ouvir o swish, swish. O som começava, por exemplo, quando o homem se punha
a ler um jornal, e parava quando fechava os olhos.
A explicação era simples, embora incomum. Sempre que o córtex visual se torna ativo
ao
receber estímulos dos olhos, há em todas as pessoas - um aumento do fluxo
sangüíneo para essa parte do córtex (como se fosse para ajudá-lo a realizar o
trabalho e
xtra). Naquele paciente, porém, o aumento do fluxo sangüíneo ia para os vasos
anormais, e ao penetrar neles provocava um som audível. Portanto, o homem estava,
com efeito, "ouvindo-se ver".
Ora, à luz disso, poderia inventar um outro caso: o de um paciente que tivesse nas
cido com vasos sangüíneos igualmente anormais na região do córtex auditivo, em
lugar do córtex visual. Sempre que esse homem começasse a ouvir um som externo,
ouvi
ria o swish, swish do sangue entrando nos vasos no córtex auditivo (isto é, ouvir
o swish, swishjuntamente com o som externo original). Ele estaria, com efeito, "
ouvindo-se ouvir".
Chegamos agora ao experimento mental crucíal. Sabemos (como mostraremos no próximo
c
apítulo) que o córtex visual ou auditivo se torna ativo não só quando há um
estímulo
externo através dos olhos ou ouvidos, mas também quando o paciente simplesmente
ima&
ina uma visão ou um som. Assim, o paciente de Boston teria, presumivelmente,
ouvido o swish, swish mesmo
94
#se tivesse apenas imaginado que olhava para um jornal (embora isso nunca tenha
sido testado), e da mesma forma nosso novo paciente ouviria o som se apenas imgi
nasse
ouvir um som externo. Mas suponhamos entãoque osom queimaginava ouvir fosse swish
swish: ele estaria ouvindo, como som real, o próprio som que imaginava. Portanto
(talvez pela primeira vez na história humana) teríamos um homem cuja imagem
autogera
da de um som era acompanhada pela sensação completa do som chegando aos seus
ouvidos.
Esse caso é tão tolo que serve para mostrar que a situação desse paciente é
totalmente dif
erente da situação de pessoas normais.
O "sentimento" - ou antes, a falta dele - da imagem talvez lhe dê uma condição um
tant
o intrigante. Mas não há realmente muita coisa para intrigar. De fato, se pensarmos
biologicamente, seria sem dúvida muito mais intrigante se as pessoas experimentass
em geralmente sensações completas em associação com simples imagens, lembranças
ou pensamentos.
As sensações, como já vimos nos capítulos anteriores, têm um papel biológico bem
definido co
mo representações daquilo ltque está acontecendo comigo como ser materializado".
As sensações preparam a pessoa para a ação imediata a fim de aumentar, melhorar ou
fugir
da sua atual situação, ante o estímulo que chega à superfície de seu corpo
e evidentemente seria um erro, do ponto de vista biológico, que uma pessoa represe
ntasse uma imagem do que poderia estar lhe acontecendo - como se fosse em outro
momento, e como se estivesse em algum outro lugar - como uma sensação presente. Se
u
m ser humano pudesse - e portanto provavelmente o fizesse - segurar um fogo na
mão ao pensar no Cáucasogelado, ou matar a fome pela imaginação de um banquete, as
proba
bilidades são que acabaria morrendo de fome ou cheio de bolhas. É de presumir
que a seleção natural o eliminasse (e a qualquer outro fantasista semelhante)
dentro
de uma geração.
Há, portanto, excelentes razões evolucionárias pelas quais a imaginação deva ser
relativam
ente abstrata. É essencial que, quando e se uma pessoa forma imagens de
um estímulo não presente, essas imagens estejam caracterizadas como "não sendo
reais".
E a própria ausência de sensação pode realizar isso imediatamente: servindo,
por assim dizer, para colocar marcas de adver-
95
#tência em torno dessas imagens - a fim de indicar Isso não é o que poderia
parecer".
Mencionei o Bolingbroke de Shakespeare, mas e o Macbeth? Quando Macbeth tem a vi
são de um punhal, estende a mão para ele e segura apenas o ar:
Não serás tu sensível, fatal alucinação, Ao tato, como à visão? Ou serás apenas Um
punhal da
te, falsa criação
De um cérebro quejerve de calor?5
Para Macbeth a irrealidade da imagem é revelada quando deixa de obter a esperada i
nformação que lhe devia ser transmitida pela mão. Mas os versos de Shakespeare
poderiam descrever melhor ainda o caso habitual em que as imagens comuns mostram
logo ser criações do cérebro, pelo fato de serem ou não "sensíveis".
Em geral, quando uma pessoa duvida se aquilo que vê tem relação com o que está
fisicamen
te presente, pode sempre fazer a comprovação perguntando a si mesma: "Que
impressão dá no nível de sensação visual?" Se a resposta for "Não dá uma impressão
adequada"
m outras palavras, a pessoa não está experimentando as sensações
que era de esperar - pode ter certeza de que sua mente está delirando.
As exceções comprovam a regra. O último capítulo focalizou o caso da visão cega,
quando o
paciente não confia na informaçao válida proporcionada pelos seus olhos,
porque não as acha certas. Mais conhecidos são os casos em que pessoas comuns
realme
nte confiam em informações inválidas pela razão oposta. Nos sonhos, porexemplo,
as imagens são, para muitaspessoas, "sensíveis", isto é, são acompanhadas pela
plena riq
ueza da sensação - e cores, sons, cheiros, toques, estímulos sexuais, são
experimentados como se os estímulos se estivessem exercendo diretamente sobre o so
nhador.
"Os sonhos", escreveu Samuel Coleridge, "não são sombras para mim, mas sim as
realid
ades substanciais da vida.,,6 E, quando isso acontece, as reações afetivas também
estão presentes. Por isso a pessoa que sonha pode dar gritos de medo ou ter um org
asmo
96
#ou derramar lágrimas, embora essas reações sejam (biologicamente) bastante
inadequada
s. E, além disso, a pessoa que sonha praticaria ações voluntárias, se o pudesse
fazer - e só porque durante o sonho seus músculos voluntários estão efetivamente
paralis
ados é que fica onde está.
Nas alucinações experimentadas durante a vigília, provocadas pela patologia ou
drogas,
o mesmo acontece com freqüência, de modo que a pessoa pode lutar contra um
carrasco imaginário, ou sentir aversão por um cheiro imaginario, ou esconder os
olho
s do brilho da glória do Senhor - e nesse caso as conseqüências podem ser mais
sérias, porque ele tem liberdade de mover-se.
Constitui uma felicidade o fenômeno - o que equivale a dizer que se trata de um fe
nômeno evolucionariam ente bem administrado - de que a maioria das imagens em
vigíli
a
não tenham essa qualidade sensorial forte. Pois isso significa que podemos brincar
, por assim dizer, com lembranças, imagens e pensamentos sem perder o controle
da realidade do momento presente.
A palavra "presente" vem do latim prx-sens. Prw significa "em frente de", e sens
é o particípio presente de sum (Tu sou"). Mas sens é também o radical do
particípio
passado de sentio (Tu sinto"). Assim, sens paira ambiguamente entre "ser" e "sen
tir", e prxsens encerra a implicação de "em frente de um ser sentiente". Dessa
forma
,
o presente subjetivo compreende aquilo que a pessoa sente que lhe está acontecendo
; e, quando deixa de ter sensaçôes-como ao dormir sem sonhos, ou ao morrer-, seu
presente acaba.
Eu disse que não havia nada de muito intrigante sobre a maneira pela qual experime
ntamos as imagens. Admitindo-se que as imagens não envolvem sensações plenas, ainda
assim elas parecem ter alguma forma de componente sensorial: parecehaver nelas a
lguma coisa mais do que "simplesmente saber".
Lembremos o exemplo de olhar à volta da sala, fechar os olhos e estender a mão para
um objeto. O fato de que nessa situação nosso gesto é realizado corretamente
mostra que sabe-
97
#mos onde o objeto está, e que forma tem. Mas provavelmente não temos - e, sem
dúvida,
não precisamos dela - uma imagem visual simultânea. Da mesma forma, quando
sugeri que a visão cega pode ser um paradigma do "simplesmente saber", certamente
não quis dizer que ter visão cega é a mesma coisa que ter um fluxo contínuo de
imagens visuais. Se ter visão cega fosse assim, presurnivelmente opacientenos diri
a-mas elenão faznenhuma referência a isso.
Mas se simplesmente saber que alguma coisa está acontecendo lá fora é menos do que
ter
uma imagem desse acontecimento, enquanto sentir que alguma coisa está acontecendo

com a superfície do meu corpo é mais, onde, no esquema das coisas, as imagens se
enq
uadram?
Como ainda não existe uma teoria da imagem geralmente aceita, está aberto o caminho
para uma hipótese que, se assim não fosse, eu sentiria certa reserva em apresentar.
Descreverei tal hipótese detalhadamente no capítulo seguinte, pois preciso de uma
te
oria da imagem. Sem ela, quando for falar da consciência, terei dificuldades,
como todos os outros comentaristas parecem ter, com o problema da colocação dessas
r
epresentações mentais que, entre sensação e percepção, não são carne nem peixe.
NOTAS
1. Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro 4, cap. 2, 1.
2. William Shakespeare (1595), Ricardo 11, 1, 3.
3. Frank G. Burgess, "The Purple Cow", em Everyman's Dictionaryof Quotations a
nd Proverbs. Londres, Dent, 1951.
4. Citado por Marcus Raichle, "Images of the Functioning Human Brain", em Inta
ges and Understanding, org. por H. Barlow, C. Blakemore, M. WestonSmith. Cambrid
ge,
Cambridge University Press, 1990, pp. 284-96.
5. William Shakespeare (1605), Macbeth, 2, 1.
6. Samuel Coleridge (1803). Carta citada por Richard Holmes, Coleridge. Early
Visions. Londres, Hodder and Stoughton, 1989, p. 354.
98
#Capítulo
14 1
ELE ACHOU QUE VIU UM ELEFANTE
Para explicar essa hipótese sobre a natureza da imagem tenho de voltar a algumas c
onsiderações preliminares sobre a
diferença no status epistêmico da sensação e da percepção, isto é, seu status como
veículos
onhecimento dos fatos.
Eis, mais uma vez, o diagrama básico dos canais paralelos sensorial e perceptual:
objeto
luz na retina -<
sensação do que está acontecendo comigo
percepção do que está acontecendo lá fora
Podemos presumir que sempre que alguém está sendo estimulado na superfície de seu
corp
o é possível dizer que há realmente verdade no "o que está acontecendo comigo"
e no "o que está acontecendo lá fora". Quando, porexemplo, eu olhoparauma brasa
viva
, há um determinado padrão de estímulo na minha retina, e há um objeto físico
determinado lá fora.
99
#Mas os meios de acesso que uma pessoa tem aos dois tipos de há, por meio da
sensação
e da percepção, evidentemente não são iguais. O processo de representação sensorial
não precisa envolver muita coisa além da elaboração de uma cópia interna do
estímulo físico
l como ocorre na superfície do corpo; mas o processo de representação
perceptual tem de envolver alguma coisa mais do que o preparo de uma história sobr
e o que significa a ocorrência desse estímulo no mundo exterior. Assim, enquanto
a sensação proporciona um conhecimento relativamente díreto e certo sobre "o que
está ac
ontecendo comigo", a percepção só pode proporcionar um conhecimento relativamente
indireto e condicional sobre "o que está acontecendo lá fora".
Uma ilustração elementar mostra essa diferença entre copiar e formular uma
história. A F
igura 2 é a famosa esposa/sogra imaginada por Edward Boring. Se atentarmos
para a percepção e nos concentrarmos no que significa o desenho como estando lá
fora,
provavelmente veremos que nosso canal perceptual nos apresenta duas histórias
alternativas: ou percebemos uma jovem (de perfil à esquerda) ou uma velha (com o q
ueixo enfiado na gola de pele), e, enquanto olhamos, a história pode passar de
uma para a outra. Mas se em lugar disso atentarmos para a sensação e nos
concentrarm
os no que sentimos estar acontecendo com os nossos olhos, constatamos que nosso
canal sensorial nos oferece uma representação nada ambígua de determinada
configuração de
luz preta e branca.
Figura 2
100
#Em geral, a percepção envolve um processamento de informações muito mais complexo
do qu
e no caso da sensação. Poderíamos esperar, portanto, que as maneiras pelas
quais o cérebro realiza as duas tarefas seriam basicamente diferentes. E, embora n
a verdade saibamos muito pouco, há boas razões para supor que o canal sensorial
usa um processamento "análogo" e fica com uma representação pictórica (alguma coisa
como
uma imagem no cérebro), enquanto o canal perceptual usa um processamento
"digital" e fica com uma representação proposicional (mais parecida com uma
descrição em
palavras).
De qualquer modo, a percepção exige sem dúvida mais pressupostos ad hoc e cálculos
mais
arriscados do que a sensação
- a taça do estímulo e o lábio da representação estão mais separados. E por essa
razão é ine
l que a percepção cometa mais enganos do que a sensação.
Felizmente (por motivos que serão examinados dentro em pouco) os enganos da
percepção,
em circunstâncias normais, geralmente não são sérios. Mas para mostrarmos
os perigos potenciais basta lembrar o que pode acontecer quando o canal perceptu
al não funciona bem, por qualquer motivo. Por exemplo, pessoas que sofrem de agnos
ias
visuais do tipo que descrevemos antes podem fazer julgamentos perceptuais que não
são apenas inexatos, mas estão longe de serem corretos. Um paciente agnósico pode
ver uma tesoura como se fosse um pente - e, quando lhe pedem para usar o objeto
em questão, fará de conta que o está passando pelos cabelos. Oliver Sacics
descreveu
um paciente que achava que sua esposa era um chapéu.1
Quando o canal sensorial funciona mal, porém (desde que não sofra um colapso total,
como acontece na visão cega), os erros tendem a envolver distorções docampo
sensorial,

e não equívocos totais. Nos casos da chamada "metam orfop si a" visual o paciente
po
de ter a impressão de que partes da imagem visual estão inchando ou encolhendo,
ou que as cores esmaecem - mas a topografia geral do campo permanece mais ou men
os intacta.2
Esses diferentes padrões de erros são exatamente o que poderíamnos esperar se os
dois
canais realmente empregam estilos muito diferentes de processamento da informação
- digital em oposição a análogo, proposicional em oposição a pictórico.
101
#Vejamos, como uma analogia, ojogo dos Murmúrios Chineses. Se as pessoas se sentam
em círculo e circulam entresi uma mensagem em palavras (isto é,
proposicionalmente)
,
um único erro menor pode resultar em grandes mudanças de sentido - "a sorte do
homem
é difícil e incerta" pode transformar-se em, digamos, "a morte do homem e dificil
e incerta". Mas se, em lugar disso, fizerem circular a cópia de um desenho, um peq
ueno erro será relativamente insignificante - um mapa da Grã-Bretanha, por exemplo,
continuará sendo um mapa da Grã-Bretanha. A percepção, em termos do risco que
encerra, é m
uito mais como oprimeiro jogo, e a sensação, como o segundo.
Ora não pode haver dúvida de que o erro perceptual, senão for corrigido, geralmente
co
nstituiria uma calamidade biológica.
O homem que regularmente acha que sua mulher é um chapéu (ou, piorainda, que acha
qu
eseu chapéu é a esposa) está destinado à extinção.
Portanto, é preciso fazer alguma coisa sobre a percepção. Durante a evolução deve
ter havi
do fortes pressões seletivas em favor do desenvolvimento de algum mecanismo
para detectar o erro: alguma forma de verificar os resultados de um cálculo percep
tual antes de agir com base nele. E o fato de que hoje a maioria das pessoas em
circunstâncias normais não comete, no geral, grandes erros de percepção indica que
uma s
olução natural para esse problema foi realmente encontrada.
É importante examinarmos qual pode ser essa solução-não apenas devido ao seu
interesse i
ntrinseco, mas porque ela encerra a chave para outras evoluções.
Suponha o leitor que lhe perguntassem: "Qual a raiz quadrada de 143.641?" Se sou
besse calcular raízes quadradas, acabaria chegando ao resukado, que é
379. Mas
suponhamos
que estIvesse preocupado com a possibilidade de ter cometido um erro nos cálculos.
Então a maneira óbvia de verificá-los seria proceder ao inverso e perguntar a
si mesmo: "Qual o quadrado de 379?" Se chegasse ao número com o qual começou, o
leit
or poderia ter certeza de que sua resposta estava certa. Realmente, se desejasse
apenas uma comprovação rápida e aproximada, poderia simples-
102
#mente observar que, como o último dígito de 379 é 9, e o quadrado de 9 é 81, 379
só pode
ser a raiz quadrada de um numero que termine com 1. Apenas obtendo o quadrado
do último dígito da sua resposta, poderia detectar uma média de 80% de todos os
erros
aleatórios.
Essa estratégia de "voltar à fonte" é uma estratégia de detecção de erros bem
conhecida dos
tecriólogos da informação, que em circunstâncias variadas podem precisar
de verificar se uma operação foi realizada corretamente, ou se uma mensagem foi
deco
dificada da forma certa, ou apenas se um sinal atravessou um canal ruidoso. O
artifício é desfazer a operação, recodificar a mensagem, ou mandar o sinal de volta
à sua
origem - e, em cada caso, comparar os dados reconstituídos com o original.
Esse procedimento foi chamado de "estratégia do velho grão-duque de York' (devido
a
o duque que "tinha dez mil homens/marchou com eles para o alto do morro / e marc
hou
com eles para baixo outra vez").
Então, por que não empregar uma versão da estratégia do velho grâo-duque de York no
caso d
o processamento perceptual? A pessoa que recebe o estímulo poderia começar
perguntando-se, com efeito: "A que esse estímulo na minha retina corresponde no mu
ndo exterior?" Depois de uma série de complicados cálculos, chegaria à resposta,
talvez "um chapéu". Mas então, apenas para ter certeza de que não errara,
procuraria r
econstituir o estímulo retiniano original a partir da representação perceptual.
Se o estímulo reconstituído acabasse correspondendo ao estímulo original, muito
bem; s
e não - porque, digamos, o estímulo original tinha sido produzido por luz que
vinha de uma esposa e não de um chapéu - alguma deveria estar errada.
Essa estratégia não descobriria todos os erros perceptuais, porque por vezes uma
con
clusão perceptual errônea poderia refletir com exatidão os dados originais. Mas
poderia pelo menos detectar os piores erros. E se fosse necessária apenas uma conf
irmação parcial, o mesmo atalho do exemplo numérico poderia ser usado. Assim, a
pessoa que recebe o estímulo poderia sentir-se bastante segura se tivesse simplesm
ente de reconstituir uma versão "aproximada e imediata" do estímulo e compará~la
com o original, e não, por exemplo, o chapéu em toda a sua riqueza, mas uma
caricatu
ra ou um esboço, suficiente para, no mínimo, revelar a falta de correspondência
com uma esposa.
103
#É certo que a reconstrução até mesmo de uma versão caricata do estímulo orginal
não seria p
sível senão fosse preservado um grande volume de informação contextual
que para outros fins seria redundante, sobre o objeto percebido: por exemplo, so
bre a sua localização relativamente à direção do olhar, a que distância, e assim
por diante-nada disso diretamente relevantepara ofato de o objeto ser um chapéu. M
as há muitas razões para supormos que essa informação contextual está, na
realidade,
disponível em nível perceptual.
Quando percebemos um chapéu, percebemos ao mesmo tempo o que é e onde está: e o
fato d
e sermos capazes de estender a mão para ele com precisão, dando-lhe a forma
exata dos seus contornos, mostra que devemos ter preservado todas as informações
rel
evantes sobre a sua localização em relação ao nosso corpo. Na verdade, quando,
para apanhar um objeto perdido, mandamos sinais de comando de volta para nossos
dedos, estamos fazendo quase que o mesmo trabalho de cálculo retroativo necessário
para reconstituir o estímulo retiniano - em cada caso, gerando novamente uma descr
ição análoga a partir de uma descrição digital.
Se é essa, em princípio, a estratégia empregada, como seria possível colocá-la em
prática no
cérebro? Em particular, onde poderíamos esperar que ocorresse a comparação
entre o estímulo reconstituído e o estímulo original?
Uma resposta possível seria: no próprio órgão do sentido. Assim, no caso da visão,
a infor
mação que chega ao olho poderia ser referida ao "centro perceptual" no
cérebro e em seguida de volta ao olho. Mas isso não é plausível por várias razões,
a menor d
as quais não seria o fato de que, quando o estímulo reconstituído chega
de volta ao olho, o estímulo original muito provavelmente já não existiria -porque,
po
r exemplo, o olho moveu-se.
Há, porém, uma alternativa óbvia, e melhor, que poderia servir como o ponto de
comparação,
ou seja, o lugar no cérebro onde uma cópia do estímulo original já foi
preparada-em outras palavras, em qualquer lugar onde as representações sensoriais
se
jam conservadas. Assim, o "centro perceptuaV poderia mandar sua reconstrução
do estímulo diretamente para o "centro sensorial", onde poderia ser feita uma comp
aração com o que já existe ali.
104
#O esquema seria então mais ou menos assim:
objeto - luz na retina
sensação do que está acontecendo comigo t
percepção do que está acontecendo lá fora
Se houvesse uma correspondência satisfatória, a representação perceptual seria
aceita; s
e não houvesse, ela teria de ser imediatamente revista.
Dentro de um momento vai tornar-se claro como tudo isso pode ter relação com a
questão
das imagens. Mas primeiro, como uma diversão do excesso de teoria, posso citar
uma prova sedutora de que alguma coisa parecida com isso está acontecendo com o si
stema visual humano: a prova, evidentemente, de uma "influência de cima para baixo
"
da percepção sobre a sensação.
A Figura 3 mostra a Ilusão do tampo da mesa" (que, surpreendentemente, passou desp
ercebida até vinte anos atráS).3 A mesa parece ter sido desenhada numa perspectiva
invertida, com o lado mais distante maior do que o lado mais próximo. Mas, se colo
carmos um desenho em cima dele, veremos que o tampo da mesa está traçado como um
paralelogramo perfeito, com os lados opostos iguais.
Fígura 3
ios
#Note-se que esta é uma ilusão no plano da sensação, bem como da percepção. Não só
o lado ma
istante da mesa percebida em três dimensões parece ser mais comprido
do que o lado mais próximo, como também a imagem da linha superior recebida como um
estímulo retiniano parece mais comprida do que a linha inferior.
Que explicação se poderia dar? Reconhecemos que nada do que foi proposto até aqui
deix
a entender que o sinal enviado pelo centro perceptual ao centro sensorial poderi
a
realmente modificar a representação sensorial do estímulo visual. Mas é fácil
acreditar qu
e se duas representações do mesmo estímulo chegam ao mesmo lugar, poderia
haver alguma interação entre elas.
Talvez seja isso o que está acontecendo. O centro perceptual, aplicando as leis da
perspectiva linear, faz uma interpretação tridimensional correta do desenho: como
uma mesa na qual o lado mais distante está ao mesmo tempo mais distante e é mais
lon
go do que o lado mais próximo. Conferir essa representação é tentar reconstituir
o estímulo visual desfazendo a perspectiva, entre outras coisas. Mas isso não
desfaz
bastante a perspectiva, e o resultado é que a versão reconstituída do estímulo
retiniano que é mandada devolta para o centro sensorial mostra a linha superior li
geiramente longa demais. A correspondência, porém, é quase tão correta que, em
lugar de ser rejeitada a representação perceptual, é a própria representação
sensorial que é
odificada para torná-la adequada.
Ilusões semelhantes, como interpretações semelhantes, foram estudadas nas décadas
de
1930 e 1940 por psicólogos experimentais interessados na chamada "constância
perceptual". Eles descobriram que há uma tendência geral na visão de fazer com que
a r
epresentação sensorial do estímulo seja levada, por assim dizer, na direção
de uma visão "ideal" do objeto exterior - como se o objeto estivesse sendo visto f
rontalmente.
A Figura 4, por exemplo, é um diagrama extraído de um trabalho clássico de Robert
Thou
less.4 Mostra como um disco circular inclinado parece a um observador atento
à sua experiência sensorial. O observador devia olhar para o disco colocado sobre
um
a mesa e comparar sua "aparência" com uma de uma série de elípses colocadas
verticalme
nte
em frente dele. Thouless comenta que, para ter certeza de que o observador compr
eendia o quese desejava dele, "eu ofizpraticar preliminarmente, em geral
106
#( ... )mostrando que eu não queria saber nem qual era a forma real do objeto, nem
como ele achava que devia ser, mas simplesmente a formacomotal lheparecia. Até
mesmo o observador mais ignorante compreende perfeitamente essas instruções." Os
res
ultados mostraram que os observadores julgaram, sempre, a aparência do estímulo
elíptico na retina mais circular do que devia ser.
Figura 4
A forma real é mostrada pelo círculo, a forma retiniana é mostrada pela elipse
cheia,
a 'ormafènomenal " é mostrada pela elipse em perfil.
Thouless apresentou um nomegeral para esseefeito: "regressão fenomenal ao objeto r
eal". "Fenomenal", como ele usou, significava na esfera da sensação, enquanto
"objet
o
real" significava na esfera da percepção. Ele disse que "a lei da regressão
fenomenal"
era o fato de que, "quando um estímulo que por si mesmo daria origem a um
certo caráter fenomenal [isto é, sensorial] é apresentado junto com indicações
perceptuais
que mostram um caráter 'real' do objeto, o caráter fenomenal resultante
não é nem o indicado apenas pelo estímulo, nem o indicado pelas indicações
perceptuais, ma
s sim um meio termo entre elas".
Sem um esquema do tipo apresentado acima (embora não necessariamente este), a infl
uência implícita de cima para baixo, da percepção para a sensação, seria
desconcertante.
107
#Tudo o que dissemos até agora neste capítulo relacionou-se com a percepção e a
sensação na
presença de estímulos de objetos externos. Relacionar essa questão com
as imagens autogeradas é, agora, bastante fácil.
Talvez contribua para colocar em foco o argumento se eu descrever (da melhor man
eira possível) minha própria experiência quando, por exemplo, tento imaginar uma
vaca púrpura. Para tornar a experiência mais difícil, embora mais característica,
vamos
supor que meus olhos estivessem abertos e eu estivesse olhando pela janela,
para o céu nublado - de modo que um estímulo concorrente estivesse chegando à minha
re
tina.
Não é fácil colocar em palavras a experiência (que pode não sera experiência de
outras pesso
as), mas demodo geral ela parece ser a seguinte. Eu "vejo" uma imagem
imprecisa da vaca, indo e vindo no alto do campo visual produzido pelo céu nublado
. E essa experiência de "ver" é constituída de vários elementos. No plano da
percepção,
o que eu percebo - enquanto posso conservar essa imagem - é de fato predominanteme
nte uma representação de uma vaca (eu poderia descrever a cor de seu couro, a forma
de suas orelhas, a posição de seu rabo); e, enquanto isso estivesse em processo, eu
pouco perceberia as nuvens como fato externo. Mas, no plano da sensação, a situação
é muito mais complicada. O campo exterior ainda está ali e o que eu percebo - mesmo
enquanto estou mantendo a imagem - é, predominantemente, o estímulo retiniano
produzido pela luz que vem do céu nublado (tenho consciência das manchas de cor e
as
sim por diante). Mas, além disso, tenho o que só posso descrever como uma impressão
um tanto imprecisa de uma imagem projetada, desigual, em forma de vaca, colorida
e púrpura - uma versão do estímulo retiniano que eu estaria recebendo de uma vaca
púrpura se ela estivesse agora diante dos meus olhos.
Para explicar essa experiência, à luz do esquema que desenvolvi, basta acrescentar
q
uatro propostas plausíveis.
1. As imagens su rgem nos centros perceptuais do cérebro (ou pelo menos vêm através
de
le).
2. Quando o centro perceptual está empenhado na geração de imagens, fica
temporariamen
te liberado da percepção normal.
3. Quando o centro perceptual gera uma imagem, a tentativa
de verificar se há erro perceptual continua, embora na realidade não exista nada
par
a fazer essa verificação. Assim, há uma tenta-
108
#tiva de reconstituir o estímulo original que teria sido produzido por esse objeto
se ele estivesse estimulando os órgãos sensoriais (em condições "padrão" ou
"ideais").
Essa reconstituição é transmitida ao centro sensorial.
4. O estímulo reconstituído não corresponde ao estímulo que realmente chega à
retina. Port
anto, a representação imaginada é, rejeitada. Por isso, é extremamente
difícil conservar a imagem.
Assim, no caso de meu exemplo, o diagrama abaixo conta toda a história.
sensação do que está acontecendo comigo céunublado - luznaretina- t
idéia da vaca púrpura lá fora
A luz vinda do céu nublado estimula a retina e dá origem a sensações da forma
usual, mas
não provoca percepções porque esse canal está temporariamente fechado. Em
lugar disso, no aspecto perceptual, o centro perceptual gera suas próprias represe
ntações de uma vaca, como uma idéia do que poderia estar acontecendo lá fora. O
centro perceptual faz então uma verificação dessa representação autogerada,
tentando recon
stituir o estímulo que uma vaca real, diante dos meus olhos, teria provocado,
e isso é transmitido ao centro sensorial. Mas o estímulo reconstituído não
corresponde.
Portanto, a imagem é rejeitada e a vaca imaginada desaparece continuamente,
e tem de ser renovada.
Ao falar da minha própria experiência da imagem, eu disse que a sensação
correspondente
ao verdadeiro estímulo retiniano é "predominante" em relação à sensação
correspondente
ao estímulo imaginário. Como analogia (que pode ser mais do que uma analogia) com
es
se tipo de "predomínio", imaginemos o fenômeno da rivalidade binocular, tal como
ocorre na visão comu m, quando duas imagens incompatíveis chegam aos dois olhos.
Por
exemplo, ao olhar para esta página, ponha o dedo indicador de sua mão direita
em frente de seu olho direito, perto do rosto. Você provavelmente verá a página
através
de um dedo transparente, "fantasmagórico". Como você está focalizando a página,
o estímulo ao seu olho esquerdo é predominante e a sensação correspon-
109
#den te ocupa todo o espaço, embora o estímulo ao olho direito seja registrado, de
a
lgum modo.
A rivalidade binocular ocorre quando há competição entre duas representações
sensoriais co
rrespondentes a dois estímulos diferentes que chegam realmente aos dois
olhos. Mas pareceria totalmente plausível que houvesse uma rivalidade semelhante n
o caso de imagens, quando há competição entre uma representação sensorial de um
estímulo real e uma representação reconstituída de um estímulo imaginário.
As vacas imaginadas não são certamente como dedos fantasmagóricos, embora se
pareçam um
pouco com eles. (E, decerto, com fantasmas imaginados - para os que os vêem
- são exatamente como dedos fantasmagóricos.)
Na situação acima descrita, com o dedo indicador na frente do olho direito, feche o
olho esquerdo. Agora, evidentemente, o estímulo ao olho direito, que tem para
si o campo de visão, torna-se predominante e o dedo de repente torna-se "sólido".
Se
a analogia for válida, podemos esperar que a nitidez sensorial da imagem também
fosse consideravelmente aumentada se, e quando, ela tivesse o campo para si mesm
a - por exemplo, se nenhum estímulo externo estivesse chegando ao olho.
A maioria das pessoas concordaria que é mais fácil criar uma forte imagem visual se
olharem para uma parede nua, ou, melhor ainda, se fecharem os olhos ou se ficare
m
no escuro. Reconhecendo isso, John Donne escreveu: "As igrejas são os melhores lug
ares para rezar, os que têm menos luz:/ ParaverDeus apenas, tenho de perder a
visão.
"-'
Mas até mesmo "Perder a visão" deliberadamente pode não ser suficiente para
provocar a
ausência total de sensação visual no olho. O que se pode experimentar, nesse
caso, é a presença positiva da escuridão: a sensação de que "não há luz chegando
aos meus ol
s". E essa sensação de escuridão geralmente se sobrepoe, em riqueza
sensorial, a qualquer imagem autogerada.
Para que não haja competição alguma da representação sensorial do estímulo na
retina, seria
necessário, provavelmente, que não houvesse tal representação sensorial.
E a única situação em que isso poderia ocorrer seria quando o insumo do olho para o
cére
bro estivesse ativamente bloqueado -como acontece quando adormecemos.
110
#E as imagens geradas num cérebro adormeci do? E os sonhos? A diferença entre
sonhos
e imagens em vigília está, creio eu, exatamente nisso. Quando alguém adormece,
nenhum sinal da retina chega aos centros perceptual ou sensorial, e por isso as
imagens oníricas têm, literalmente, o campo para si mesmas.
No diagrama, agora, todo o lado esquerdo pode ficar fora.
sensação do que
está acontecendo comigo
sonho do que
está acontecendo lá fora
Quando surge uma "idéia onírica", o centro perceptual gera uma representação
adequada de
fatos externos e em seguida procura fazer uma verificação da sua própria
representação, reconstituindo o estímulo que poderia ter sido originadopelos fatos
oníri
cos se realmente estivessem acontecendo. Mas agora o estímulo reconstituído
não compete com nenhuma outra representação sensorial, e portanto pode dominar a
sensação
- e disso resulta que a imagem onfrica é percebida como de excepcional
riqueza. Além disso, como não há nada para indicar qualquer falta de
correspondência, não
há agora nada para dizer ao centro perceptual que reveja seus cálculos
- e o resultado é que a imagem onírica não desaparece tão logo é formada.
No caso da imagem mental em vigília, todas elas são, com efeito, tratadas como
"erro
s" e por isso não duram muito tempo. No caso dos sonhos, porém, mesmo que houvesse
um erro na tradução de uma idéia onírica numa representação perceptual, o erro
presumivelmen
te continuaria sem correçao por algum tempo.As,conseqüências poderiam
ser exatamente como as experimentamos: não só as imagens oníricas seriam mais vivas
e
menos passageiras do que as imagens em vigília, como também seriam mais passíveis
de estranhos erros do estilo de processamento digital. Se, por exemplo, ao sonha
r com a esposa, o centro perceptual erroneamente gerasse a representação de um
chapéu,

a pessoa que sonha pensaria na esposa ao mesmo tempo em que perceberia a imagem
de um chapéu; e a imagem perma-
111
#neceria, até que algum fato randômico talvez reparasse o cálculo perceptual.
O conto Sylvie and Bruno, de Lewis CarrolI, focaliza exatamente essa estranheza
dos sonhos. 6 Alguns versos da "Canção do Jardineiro" podem concluir essa discussão
sobre imagens mentais e erro perceptual:
Ele achou que viu um Elefante Que se exercitava num pífaro. Olhou outra vez, e viu
que era Uma carta de sua esposa. "Finalmente comVreendo ", disse ele, "A amargu
ra
da vida! "
Ele achou que viu uma Cascavel Que o interrogou em grego. Olhou outra vez, e viu
que era
O Meio da Próxima Semana.
"Uma coisa que lamento ", disse ele, "E não poderfalar! "
Ele achou que viu um Funcionário de Banco Descer de um ônibus.
Olhou outra vez, e viu que era um Hipopótamo.
"Se issoficar parajantar", disse ele, Wito vai sobra;- muito para nós. "
Não Vou terminar exatamente aqui, porque há provas científicas que venho guardando
par
a o fim.
Se as imagens mentais envolvessem um sinal devolvido ao centro sensorial, nesse
caso - se o esquema acima for tomado literalmente - isso significaria que uma, e

a mesma, área do cérebro deve estar atuante quando uma pessoa sente um estímulo
extern
o e quando está gerando uma imagem interna.
Ora, no caso da visão, sabemos que, quando a luz cai diretamente sobre a retina do
olho, há uma ativação da região correspondente do córtexvisual primário, na parte
posterior do cérebro. E mais, o estímulo elétrico direto dessa área do córtex no
ser human
o em vigília faz com que tenha sensações de luz, e quando essa área é danificada
(como na visão cega) a luz no olho ja não dá origem a quaisquer sensações. Podemos
conclui
r, portanto,
112
#que o córtex visual primário faz parte do canal sensorial. De qualquer modo, essa
áre
a do córtex tem apenas duas células nervosas numa linha direta do próprio olho,
e poderia parecer extremamente ilógico supor que ela constitui o que venho chamand
o de centro sensorial -por assim dizer, a sede das sensações visuais - e muito
menos que pudesse estar diretamente implicado na geração de imagens visuais.
É ainda mais notável, portanto, que estudos fisiológicos recentes tenham mostrado
que
as imagens visuais mentais autogeradas produzem, na verdade, uma ativação do
córtex visual. A prova vem de estudos tanto da atividade elétrica do cérebro como
do f
luxo sanguíneo cerebral quan do os pacientes realizam tarefas tão variadas
quanto visualizar uma caminhada, imaginar um gato e responder a uma pergunta com
o "É o verde dos pinheiros mais escuro do que o verde da relva?". Martha Farah exa
minou
esses estudos (inclusive um, de sua própria lavra) e concluiu que "se verificou qu
e, em muitas tarefas, a imagem mental visual ocupa o córtex visual, ao passo que
outras tarefas muito semelhantes, com exceção da imagem mental visual, não
ocupam,,.7A
Iém disso, como observa Farah, essas descobertas são complementadas pela prova
de que, quando o córtex visual é danificado, há uma perda não só da sensação visual
produzid
externamente, mas também da imagem visual mental.
Essa descoberta é, certamente, importante. com uma pequena licença de ficção
científica, s
eria possível que, quando alguém imaginasse um gato, a imagem do gato fosse
"projetada de volta" na retina (onde poderia ser "vista" por outra pessoa!) Essa
possibilidade não é, evidentemente, real. Mas a realidade é muito surpreendente.
E, para explicá-la, é preciso uma hipótese não menos surpreendente que a do Welho
Grão-Duq
ue de York".
NOTAS
1. Oliver Sacks, lhe Man Mo Mistook His Wífejor a Hat. Londres, Duckworth,
1985.
2. Critchley, Uze Pan'etal Lobes.
3. Nicholas Humphrey, "Contrast lllusior-ts in Perspective", in Nature 232 (1970
), pp. 91-93.
4. RobertH. Thouless, ThenorrtenalRegression to the Real Object,11", in British
Joumal of Psycliology 22 (193 1), pp. 1-30.
113
#5. John Donne (1619), "A Hymn to Christ, at the Authors Last Going Into German
y", Donne: Poetical Works, org. per Herbert Grierson. Londres, Oxford Undversity
Press, 1937.
6. Lewis Carroll (1889), Sylvie and Bruno, caps. 5-7. Londres, Chancellor Press
,
1983.
7. Martha J. Farah, "Is Visual Imagery Really Visual? Overlooked Evidence From
Neuropsychology", in Psychological Review 95 (1988), pp. 307-317.
114
#AQUI JAZ
Venho me aproximando sorrateiramente da grande questão da consciência.
Antes, quandoeu disseque a resposta de Aristóteles, "Podem V
até me bater, desde que eu não esteja ali", poderia ter sido também "Ou desde que
eu s
implesmente saiba, mas não sinta nada", já estava me aproximando - pois poderia
ter dito "desde que não esteja consciente no momento". E, antes disso, ao falar da
visão cega, aproximei-me ainda mais, pois vários observadores acham que o paciente
com visão cega, a quem falta a sensação visual e insiste em que não é um
participante pres
ente dos seus próprios processos perceptuais, "não tem consciência" de
ver.
De fato, a área geral onde jaz a consciência vem se tornando evidente a cada
capítulo.
E a meta deve ser agora tirá-la da água e levá-la para terra firme -antes
de examinarmos com mais vagar o que foi apanhado. Trata-se, porém, de uma presa no
toriamente escorregadia, e se eu a tivesse agarrado cedo demais - antes de trata
r
do problema das imagens mentais, em particular- poderia ter acabado de mãos vazias
.
E chegado o momento de agirmos rapidamente. Valendonos de tudo o que foi dito até
agora, temos uma argumentação em favor das seguintes afirmações:
115
#1. Estar consciente é, em essência, ter sensações, isto é, ter representações
mentais carre
das de emoção relativas a alguma coisa que está acontecendo comigo
aquí e agora.
2. O sujeito da consciência, "eu", é um eu corpóreo. Na ausência de sensações
corporais, "eu
" cessaria. Sentio, ergo sum-sinto, logo existo.
3. Todas as sensações estão implicitamente localizadas no limite espacial entre o
eu e
o não-eu, e no limite temporal entre passado e futuro, ou seja, no "presente".
4. Para os seres humanos, a maioria das sensações ocorre na esfera de um dos cinco
s
entidos (visão, audição, tato, olfato, paladar). Portanto, a maioria dos estados
humanos de consciência têm alguma dessas qualidades. Não há estados conscientes
não-sensor
iais, amodais.
5. As atividades mentais que não envolvam sensação direta só entram na consciência
na medi
da em que estejam acompanhadas de "lembretes" da sensação, como acontece
no caso de imagens mentais e sonhos.
6. Isso também se aplica aos pensamentos, idéias, crenças conscientes... Os
pensamento
s conscientes são tipicamente "ouvidos" como imagens de vozes na cabeça - e
sem esse componente sensorial eles se diluiriam.
7. Se, e quando, dizemos que outro organismo vivo é consciente, deixamos implícito
q
ue também ele é o sujeito de sensações (embora não necessariamente do tipo que
conhecemos).
8. Se tivéssemos de afirmar que um organismo não-vivo é cons ciente, os mesmos
princípio
s seriam aplicáveis. Um robô mecânico, por exemplo, não seria consciente
a menos que fosse especificamente projetado para ter sensações, bem como percepções
(qua
isquer que fossem os elementos envolvidos nesse projeto).
116
#O QUE JAZ AQUI? UM CAPITULO~SOBRE
DEFINIÇAO
Como se fosse para me lembrar, no momento ,exato, do problema que essa
discussão pode estar criando, acabei de receber pelo correio um manifesto para uma
próxima oficiC
na da consciência.1 Seu autor, Aaron Sloman, assim começa seus comentários: "A
pal avra'consciência', tal como é usada pela maioria dos acadêmicos (filósofos,
psicólogos
,
biólogos ... ), não se refere a coisa alguma em particular. Isso significa, por
exem
plo, que não podemos perguntar como evoluiu, ou quais os organismos que a têm,
e
quais os que não a têm."
A última coisa que eu desejaria fazer, neste momento crítico, era deixar-me
envolver
por uma árida discussão sobre definição. Mas não havendo como comprovar qualquer
das afirmações feitas no último capítulo a menos que tenhamos um entendimento comum
quan
to ao seu conteúdo verbal, e como acabarei desejando fazer precisamente as
perguntas que Sioman diz que não podem ser feitas, devo tentar agora mostrar não
ape
nas que a consciência pode ser definida em relação a "alguma coisa em particular",
mas também que a consciência jáfoi com efeito defi-
117
#nida como "alguma coisa em particular" -se não pelos acadêmicos de Sloman, pelo
men
os pelos falantes comuns da lingua inglesa.
A tarefa pode não ser simples. Qualquer que seja o significado de "consciência",
hoj
e, não se pode negar que teve, no passado, uma variedade de significados diferente
s,
e alguns deles ainda permanecem. Portanto, para preparar a cena, vale a pena faz
er uma excursãopela etimologia, a fim de examinar a curiosahistória da palavra. "As
palavras", como observou Aldous HuxIey, "são os instrumentos do pensamento: formam
o canal pelo qual o pensamento flui; são os moldes nos quais o pensamento é
modelad
o."2
E a recíproca também é verdadeira: os pensamentos são os moldes nos quais as
palavras são
modeladas; eles constituem o canal pelo qual as palavras fluem. Elas surgem
ou mudam de significado quando as pessoas têm uma idéia que tentam expressar.
A palavra conscious [consciente] vem do latim con, que significa "junto com", e
scire, que quer dizer "saber". No latim original, o verbo conscire (do qual veio

o adjetivo conscius, "consciente") significava literalmente partilhar o conhecim


ento com outras pessoas. Isso deixava implícita a partilha ampla do conhecimento.
Mas com o passar do tempo o uso mudou, e a palavra passou a significar a partilh
a do conhecimento com algumas pessoas, mas não com outras, a partilha num pequeno
círculo - e com isso ser parte de um segredo. César e seus generais, por exemplo,
es
tavam conscientes de seus planos de batalha.
Houve depois uma outra mudança nessa direção. O círculo daqueles com os quais o
conhecim
ento era partilhado tornou-se mais restrito - até que acabou constituído
de uma só pessoa, o sujeito que era consciente. Ser conscius sibi, consciente cons
igo mesmo, passou a significar que o sujeito era o único que sabia alguma coisa
- e, por implicação, não estava disposto a partilhar tal conhecimento com ninguém.
No pr
imeiro século da era cristã, Horácio pôde escrever que o epitáfio de um homem
devia ser "nil conscire sibi": ser "consciente consigo mesmo de nada", e não ter s
egredos culposos.
Depois que a palavra conscious, "consciente" entrou para o inglês na Idade Média,
se
u significado sofreu nova modificação. As pessoas queriam estabelecer uma distinção
entre, de um lado,
118
#"ter conhecimento privado ao qual não desejavam que ninguém mais tivesse acesso"
(p
or exemplo - como já estava implícito em Horácio - o conhecimento dos nossos
próprios atos secretos) e, por outro lado, "ter o conhecimento ao qual, pela sua p
rópria natureza, ninguém mais pudesse ter acesso" (por exemplo, o conhecimento
dos nossos mais íntimos pensamentos e sentimentos). O trabalho estava, a partir de
então, dividido entre dois mundos. O conhecimento culposo, que era apenas conting
encialmente
privado, tornou-se algo na "consciência" da pessoa, ao passo que o autoconheciment
o, que era mais necessariamente privado, continuou a ser algo de que a pessoa es
tava
"consciente".
Assim, no século XVII Shakespeare pôde escrever: "A peça é aquilo com que podemos
pegar
a consciência do rei" (estando na consciência do rei que ele tinha morto
o pai de Harrilet); e no mesmo século Locke pôde escrever que "o homem está sempre
con
sciente, para si mesmo, de pensar ( ... ) a consciência é a percepção daquilo
que passa pela mente do homem."
E certo que, mesmo no uso moderno, há ocasiões em que os significados mais arcaicos
são preservados (e isso é particularmente válido para outras línguas que não
o inglês). Se alguém dissesse, ao ser condecorado por coragem, "Estou consciente da
grande honra que me é feita", bem poderia querer dizer "Estou sabendo disso juntam
ente
com vocês"; se, escrevendo o editorial de um jornal, falasse da "consciência
naciona
l", ele poderia querer dizer a concepção comum de pertencer a um grupo especial;
se tivesse de dizer, no confessionário, Tadre, estou consciente de ter pecado", po
deria significar que isso estava na sua consciência. Mas, deixando de lado esses
contextos especiais, é claro que o significado moderno mais comum de "estar consci
ente" é, de longe, ter conhecimento dos proprios sentimentos e pensamentos privado
s.
Em sua maioria, os usos anteriores não apenas deixaram de ser correntes, como
também
deixaram de ser permitidos.
Realmente, hoje já não seria considerado natural ou correto (embora pudesse ser
comp
reendido) dizer "Estou consciente de" em relação a qualquer outra coisa que não
seja um fato pessoal; eu poderia dizer "estou consciente de ter uma dor de dente
", mas não "estou consciente de Paris ser a capital da França". Nem seria natural
usar essa expressão em relação a um fato pessoal que não estivesse relacionado
comigo: "
Estou consciente da minha dor de dente", mas não "Estou conscienteda tua
dorde dente". Nem sobre
119
#um fato relacionado comigo se a sua evidência não estiver agora frente à minha
mente:
"Estou consciente da minha dor de dente agora", mas não "Estou consciente
da minha dor de dente de ontem ".
Assim, à medida que a língua inglesa evoluiu (e talvez à medida que os usuários da
língua
se tornaram mais preocupados consigo mesmos e introspectivos), o significado
da palavra conscious não só se tornou cada vez mais limitado, como na verdade se
inv
erteu. Mais ou menos como a palavra window [janela], cujo significado se transfo
rmou
de "um buraco por onde entra ovento" para "um buraco por onde o vento não entra",
a palavra conscious passou de "ter conhecimento partilhado" para "ter conhecimen
to
íntimo não partilhado*com ninguém".
Além disso, nos dois últimos séculos houve outra grande mudança de ênfase: do uso
transiti
vo de "consciente" - "Estou consciente disto ou daquilo... ou consciente
de que o caso é este ou aquele...", para o uso intransitivo, simplesmente "Estou c
onsciente [ponto]", ou "ele ou ela está consciente [ponto]" -uso esse no qual a
palavra denota um estado de ser especial. Isso abriu caminho para a distinção entre
"consciência" (o estado de ser consciente) e "inconsciência" (o estado de não
ser consciente). E cada vez mais, no decorrer dos anos, o enfoque das discussões s
obre a consciência passou a recair nessa distinção.
Essa história pode não ser conhecida (e para os usuários modernos pode não ter
importância
). Não obstante, acredito ser indiscutível que a palavra "consciência",
especialmente em seu uso intransitivo mais recente, é hoje parte do vocabulário
cons
olidado de várias línguas. E, mesmo que as pessoas comuns não a usem todos os
dias, a maioria delas parecebastante segura de seu alcancee deseuslimites.
Nãosóusam
a palavra na mesma posição nas mesmas frases, mas freqüentemente concordam quanto
à verdade encerrada nessas frases. Se o leitor tiver dúvidas quanto a isso, veja as
seguintes sentenças: "O paciente recuperou a consciência quando a anestesia
passou",

"Não podemos negar que os chimpanzés sejam conscientes", "Os astronautas perderam a
consciência antes que o módulo espacial caísse no mar", "Não se pode desfrutar
o sexo sem estar consciente", "Meu computador não tem direitos morais porque não é
con
sciente", "Embora eu perca a
120
consciência ao adormecer, estou consciente quando sonho", "Não pode haver arte sem
c
onsciência", "Luís XVI permaneceu consciente durante pelo menos dez segundos
depois que cortaram sua cabeça". Mesmo que o leitor não concorde com todas essas
afi
rmações, não tenho dúvidas de que as compreende.
Maso queentende pela palavra "consciente" nessas diferentes frases? E o seu ente
ndimento é o mesmo em todos os casos? Meu objetivo é mostrar que em (quase) todos
os casos há pelo menos o pressuposto implícito de que "estar consciente" é,
realmente,
essencial para "ter sensações" - ou, mais geralmente, "ter representações
mentais carregadas de emoção de alguma coisa que está acontecendo comigo aqui e
agora"
.
Para realizar esse objetivo, minha argumentação será a que se segue. Primeiro, que
"te
r sensações" é um estado naturalmente demarcado e psicologicamente significante,
com características exatas. Segundo, que as pessoas se habituam a reconhecer esse
estado como natural, e desde a infância o empregam como um instrumento conceitual
para categorizar a condição das coisas vivas (e não-vivas). E que o nome para esse
est
ado é ou passou a ser - "consciência". Finalmente, que quando as pessoas falam
do "mistério da consciência", ou especulam, por exemplo, sobre a possibilidade de
os
animais serem conscientes, é quase sempre esse significado específico de
consciência
que têm em mente.
Para os primeiros passos da argumentação, you recorrer a uma ajuda inocente.
Perguntei recentemente a uma menina de oito anos, Lily, o que significa "consciênc
ia": ela me informou, seriamente, que Sim, tinha ouvido a palavra, mas Não, não
sabia o que era ou como usá-la. A mãe de Lily, que estava presente, apressou-se a
ex
plicar que a menina certamente sabia o que era consciência, mesmo que não soubesse
que sabia. E a mãe, sendo um pouco intelectual (como Lily), fez um paralelo
literári
o: na peça de Molière, Le BourgeoIS Gentilhomine, Monsieurjourdain fica surpreso
ao descobrir que vinha falando em prosa havia quarenta anos, sem perceber que er
a "prosa". Da mesma forma, Lily se tinha tornado claramente consciente nos últimos
oito anos, sem se dar conta de que era "consciente". 0 que a pilhéria de Molière
qui
s dizer, é
121
#claro, foi que M. Jourdain já sabia perfeitamente o que era prosa, mas nunca lhe
atribuíra esse nome. O que a mãe de Lily quis dizer sobre a menina foi que ela
já tinha a idéia de consciência, mesmo que não tivesse aprendido a dar-lhe esse
nome.
Suponhamos então que, como Sócrates interrogando o escravo de Mênon (que, como o
filósof
o mostrou, tinha um conhecimento não reconhecido da geometria euclidiana),
eu tivesse feito a Lily algumas perguntas dirigidas. Poderia eu ter mostrado que
ela já tinha a idéia de "ter sensações" como um estado de espírito distinto?
Poderia
eu, na verdade, ter estabelecido que ela não só compartilha minha concepção de
consciência
, como também concorda com a maioria das outras afirmações que fiz?
Há, creio, fortes razões para acreditar que eu poderia ter feito pelo menos parte
di
sso. Nenhuma menina pequena poderia ter deixado de perceber - tão logo estivesse
em condições de perceber alguma coisa -a distinção entre ter e não ter sensações.
Todos os d
s, e freqüentemente várias vezes ao dia, ela perde esse estado quando
dorme, e o recupera quando acorda. E não há, certamente, melhor maneira de
estabelec
er os limites de uma idéia do que a repetida demonstração de exemplos positivos
e negativos: "agora você vê", "agora você não Vê11.3
"Prosa" é definida no dicionário (Oxford Pocket Dictionary) como Iinguagem não-
versifi
cada" - isto é, definida por meio de sua negação. E quando Boswell perguntou
ao dr. Johnson "O que é poesia?", ele respondeu: "Ora, meu senhor, é muito mais
fácil
dizer o que não é. Todos nós sabemos o que é a luz, mas não é fácil dizer o
que ela é [exceto contrastando-àcom a treval."4 Se os seres humanos se mantivessem
s
empre em estado de ter sensações, então esse fato de ter sensações poderia ser
muito menos notável -se o sol brilhasse in in terru ptam ente, o "dia" seria um fa
to muito menos notável. Mas tal como a noite é seguida pelo dia em toda a
superfície
da Terra, assim também a vigília se segue ao sono, em toda a superfície da mente
infan
til.
Vou, portanto, começar nesse ponto e ver aonde o diálogo com Lily me leva. Espero
qu
e ela me perdoe se eu conduzir a entrevista no estilo tipicamente provocante
de Sócrates (embora tenha dúvidas de que possa ter o controle total do diálogo).
122
#NICK: Lily, quero que você pense no momento em que estava dormindo, ou, se qui
ser, pense no momento em que vai dormir, esta noite. Você concorda, não é mesmo,
que existe uma grande diferença entre estar acordada e estar dormindo?
LILY: Claro que há.
NICK: Suponhamos que eu lhe pergunte como é "estar dormindo". Você diria, por
exe
mplo, que quando está dormindo seus olhos estão fechados, você não se mexe, seus
pensamentos param e você não sente nada do que lhe está acontecendo?
LILY: Provavelmente, sim.
NICK: De fato, é como se houvesse uma pausa na sua existência. LILY: Sim.
NICK: Se quiséssemos uma analogia, poderíamos dizer que é como a chama de um
lampião
ao ser abaixada: ela se reduz a quase nada, embora não se apague totalmente.
LILY: Sim. É como se eu entrasse dentro de mim mesma.
NICK: Ora, se eu lhe perguntasse como é "estar acordada", você diria que é
exatamen
te o contrário de estar dormindo? Em outras palavras, seus olhos estão abertos,
você está se mexendo, e tem todos os tipos de pensamentos e sentimentos. É como se
a c
hama estivesse viva novamente.
LILY: Isso mesmo.
NICK: Vamos falar de "estar acordado". O que torna isso realmente diferente d
e estar dormindo? Você acha que todas essas coisas que mencionou são igualmente
impo
rtantes?
Por exemplo, quando você está acordada, tem de se mexer?
LILY: Não, não é assim. Geralmente eu me mexo, mas não tenho de fazer isso...
Veja, f
echei os olhos e estou parada, mas ainda continuo acordada! Uma vez eu acordei
de noite depois de um pesadelo e não pude me mexer, embora quisesse. Era como se e
stivesse paralisada... mas estava acordada e com medo.
NICK: Então talvez seja o fato de você pensar que faz toda a diferença. Quando
está a
cordada, você tem de pensar tudo isso?
123
#LILY: Bem, parece que sim, quase sempre... quase sempre estou pensando quan
do estou acordada - mesmo quando estou deitada na cama, ou sentada, quieta.
NICK: Lembro-me de uma caricatura numa revista chamada Punch. Um velho estav
a sentado no banco de um parque e uma senhora dizia para ele: "Diga-me, meu bom
homem,
como passa o seu tempo?" E ele respondia: "Bem, minha senhora, às vezes fico senta
do e penso; outras vezes apenas fico sentado."(...) Você não fica sentada às vezes,
sem pensar?
LILY: Bem, não, eu não fico sentada muitas vezes... mas por vezes fico deitada
n
a banheira, ou fico ouvindo minhas fitas, ou quando me machuco apenas choro e
fico triste... ou por vezes me sento e tomo um sorvete... e não penso. Por vezes a
s pessoas dizem "Um tostão pelos seus pensamentos", e não sei o que dizer, porque
eu não estava pensando.
NICK: Mas isso não quer dizer que esteja dormindo, não é? LILY: Claro que
não.
NICK: Então pensar não pode ser tão importante para o ato de estar acordado. E
o q
ue você disse por último, sentir as coisas queestão acontecendo com você?
Quandoacordada
,
você tem sempre sensações de algum tipo? Ou é a mesma coisa que acontece com os
pensamen
tos: por vezes sim, por vezes não?
LILY: Depende do que você quer dizer com sensações. Estou sempre tendo
sentlínentos
- isto é, quando acordada. NICK: Como por exemplo?
LILY: Bem, estou olhando o céu azul, ou ouvindo um ônibus passar, ou sentindo
fr
io... ou feliz, ou triste... ou talvez simplesmente sentindo "aqui estou".
NICK: Não haverá sensações em tudo isso: a impressão de que alguma coisa está
acontecend
o com você, ou dentro de você? Você vê a luz com os olhos, ouve os sons
com os ouvidos... estar contente ou triste tem influência sobre seu rosto, ou seus
membros, ou seu estômago. Até mesmo o sentimento de "aqui estou" se resume a
alguma

coisa assim. William James - você não deve ter ouvido


124
#falar dele - reconheceu que "aqui estou" não significava muito mais do que "aqui
estou tendo essas sensações na minha cabeça e pescoço".
LILY: Sim. Mas eu estou mais acostumada a falar de "sentimentos" do que de "
sensações". É a palavra que conheço. NICK: Está bem. Não me parece que
discordamos.
A questão é
que, se você está acordada, não pode passar sem os "sentimentos" - como diz. E se
alguém
dissesse: "Às vezes fico sentado e penso; outras vezes apenas fico sentado",
isso não faria sentido?
LILY: Não tenlio certeza. Suponhamos que eu estivesse pensando enquanto estou
sentada (concordo que não preciso estar - mas suponhamos que estivesse). E suponha
mos
que todos os meus outros sentimentos parassem. Então eu estaria sentada e apenas p
ensando - e não necessariamente tendo qualquer sentimento.
NICK: Bem, você diz isso. Mas acredita realmente que isso acontece? Experiment
e. Feche os olhos. Vou contar até três. Depois sente-se e pense - e tente deixar
de fora todo o resto por dez segundos. Um dois três... Pode abrir os olhos agora.
Como foi?
LILY: Meu nariz estava coçando, por isso não foi bom.
NICK: Está bem. Mas acho que você verá que nunca é "bom": há sempre alguma
coisa que i
nterfere. De qualquer modo, entendo o que quer dizer. Suponhamos que pudesse
fazer o que disse, e deixar de fora as outras sensaçoes. Então a questão seria
saber s
e o próprio pensamento não encerra um certo "sentimento".
LILY: Você está se referindo àquilo que o homem disse, de sensações no meu
pescoço e cab
eça?
NICl<; Não, na realidade não foi o que eu quis dizer (embora seja interessante
qu
e você o tenha sugerido houve toda uma escola de psicólogos no século passado
que pretendia que o pensamento envolve o envio de informações da pele e dos
músculos).
O que eu quis dizer foi que o pensamento envolve sempre
imagens mentais, que têm pelo menos uma vaga ligação com a sensação. Pensar em
palavras, p
or exem-
125
#plo, é um pouco como ouvir palavras ou pensarem figura é um pouco como
vê-las.
Um pouco, apenas.
Mas o suficiente, talvez- mas o bastante para que dê um pouco a impressão de
pensar.
Você está dizendo que tudo que fazemos envolve sensações?
Não, apenas que é impossível imaginar o que é estar acordado - ou sermos como somos
- se
m elas.
Quando você fala assim, acho que deve estar certo. Se eu não tivesse nenhum
sentimen
to, seria como se não estivesse aqui.
Mas aonde essa conversa nos está levando? Significa que "ter sentimentos" e "estar
acordado" vêm a ser a mesma coisa? Parece que sim, embora eu não tivesse pensado
que são a mesma coisa.
Talvez estar acordado seja um estado mais duradouro no qual se entra ou do qual
se sai, ao passo que ter sentimento é mais um processo transitório que acontece
cono
sco
em determinado momento. Você poderia dizer, por exemplo: "O período em que estou
aco
rdada é feito de muitos momentos nos quais tenho sentimentos."
Sim.
Mas não haverá outras razões, também, pelas quais "ter sentimentos" e estar
acordado não são
exatamente a mesma coisa? Talvez haja momentos nos quais você tem sentimentos
mesmo quando não está acordada.
Sim, foi o que acabei de lembrar. Tenho sentimentos - o que você chamaria de
sensações
- quando estou sonhando. Quando tive os sonhos de que falei, senti todo o
tipo de coisas horríveis que estavam acontecendo comigo: eu estava no mar, estava
me afogando e vi aquele grande monstro negro chegando... Em geral, porém, tenho
sonhos bonitos. Alguém poderia dizer: "Durma bem, doces sonhos." Devia dizer: "Pas
se bem e sinta-se bem enquanto estiver dormindo", não é?
Mamãe diz isso.
#NICK: Então eu acho que significa que precisamos de outra palavra para "ter se
ntimentos". "Acordado" não serve.
LILY: Sim. E precisamos de uma palavra para "não ter sentimentos", porque "ador
mecido" não serve.
NICK: Que tal as palavras "consciência" e "inconsciência"? LILY: Mas eu já
lhe d
isse que não sei o que quer dizer "consciência".
NICK: E eu estou dizendo que você sabe o que quer dizer "consciência". Se você
tem
sentimentos - ou sensações você está "consciente".
LILY: E se não tenho, estou "inconsciente?" Deve servir para gatos também,
porque
ouvi oveterinário dizer quePrune
- a minha gata - não sentiria nada durante a operação porque estaria
"inconsciente".
NICK: Isso mesmo.
LILY: Bem, eu tenho estado "conciente" - por vezes sim, por vezes não - há oito
a
nos, e nem sequer sabia disso? Há uma peça de Molière na qual...
NICK: Lily, você está roubando as palavras de sua mãe... Vamos parar por aqui.
LILY: Eu queria dizer apenas mais uma coisa. Não sei se isso vale para a Martin
e - a minha boneca. Não sei se ela é consciente.
NICK: O que acha?
LILY: Não, eu acho que não é. Quero dizer, eu não acho que Martine teve
sentimentos,
alguma vez - porque ela não parece preocupar-se com o quelhe acontece (mas
eu sim). Mas minha amiga tem uma boneca que fala, Amanda, que chora se leva um b
eliscão. Se Prune é consciente, fico pensando que Amanda também poderia ser.
NICK: Isso dependeria de quê?
LILY: Dependeria de Amanda realmente sentir as coisas, como eu. Acho que ela
podia sentir. Mas não creio que sinta. Acho que há uma diferença entre comportar-se
como se estivesse consciente, e realmente estar consciente.
NICK: Eu também acho. Mas, Lily, você está pulando vários capítulos.
127
#Não pretendo dizer que tenham realmente ocorrido conversas que sequer se aproxima
ssem desse nível de sofisticação. Mas digo que alguma coisa parecida com esse
processo

de raciocínio crítico ocorre na mente de toda criança. Notando semelhanças e


contrastes
em sua própria experiência, a criança chega a reconhecer o estado de "ter
sensações" como um estado natural, com limites bem demarcados, que existe ou não
exist
e como uma realidade: uma realidade desua própria vida, que porvezes existe
e outras não, e potencialmente uma realidade das vidas de outras criaturas.
A descoberta subseqüente, de que existe uma palavra para indicar esse estado, cert
amente ocorre pouco depois. Na ausência de conversas como a que descrevemos acima,

duvido que se ensine qualquer criança, na verdade, a usar a palavra "consciência".


E
m lugar disso, ela tem de depender da curiosidade inteligente, por assim dizer.
Tem de notar a existência da palavra na fala e nos escritos de outras pessoas, ent
ender como essas outras pessoas a usam e com isso acabar atribundo a palavra à
sua idéia pré-formada.
Locke coloca o dedo exatamente no problema, como tantas vezes faz: "Se observarm
os como as crianças aprendem línguas, veremos que, para fazê-las compreender o que
significam os nomes de idéias ou substâncias simples, as pessoas geralmente lhes
mos
tram as coisas das quais querem que façam a idéia; e repetem o nome que representa
aquilo, como branco, doce, leite, açúcar, gato, cachorro. Mas para os modos mistos
[
como consciêncial os sons são geralmente aprendidos primeiro; depois, para saber
que idéias complexas eles representam, as crianças ouvem explicações dos outros, ou
(o q
ue ocorre com mais freqüência) dependem de sua
virtual
observação e indústria."
Mas o processo de descobrir o que a palavra "consciência" significa provavelmente
não termina nunca. E poderíamos dizer £g>_ 2 " - páa nossa observação e
'indústria
- ainda estamos empenhados nessa descoberta.
Não posso, portanto, fazer nada melhor do que apresentar sem comentários os
resultad
os das minhas observações de como a palavra consciência é usada no ambiente
lingüístíco
de onde venho. Segundoessas observações, sempre que "estar consciente"
128
#surge como tópico de conversa, o principal interesse das pessoas é, quase sempre,
a
s sensações, istoé, sensações no sentido rigoroso de representações mentais
carregadas
de emoção daquilo "que está acontecendo comigo como um ser materializado num
corpo". E
talvez em cada nove vezes em dez, o enfoque recai principalmente sobre a emoção.
Assim, quando alguém diz "os astronautas perderam consciência antes que o módulo
espac
ial caísse no mar", a principal implicação é que não sentiram dor. "O paciente
estava consciente durante toda a operação": sentiu dor. "Não se pode negar que os
chim
panzés sejam conscientes": chimpanzés sentem prazer e dor como nós e se importam
com as coisas que lhes são feitas. "O LSD é uma droga que expande a consciência":
torn
a a pessoa especialmente receptiva a sensações estranhas e interessantes. "Não
poderia haver arte sem conciência": ninguém se importaria com a música ou a pintura
se
não fossem movidos esteticamente pela sua experiência. E assim por diante.
Também nas discussões mais teóricas, a argumentação gira quase sempre sobre o mesmo
ponto.
"Pode um robô controlado por um computador ser consciente?" - não, a menos
que tivesse percepção de cores, dores, coceiras etc. e se preocupasse com isso, tal
como nós nos preocupamos. O simples fato de que o robô pode ser capaz de perceber
ou pensar num alto nível nada significaria, se não tivesse sentimentos.
Esta última é, provavelmente, a objeção popular clássica a quase toda explicação
"científica
consciência. Realmente, quando, num livro anterior, eu mesmo mostrei
que a consciência envolve um tipo particular de "reflexão sobre nossos proprios
esta
dos mentais", o psicólogo Stuart Sutherland respondeu, num artigo: "Há,
infelizmente
,
uma falácia evidente no argumento de Humplirey. O cérebro poderia representar os
pro
cessos subjacentes aos motivos, pensamentos e assim por diante, e usar essa repr
esentação
como um modelo para o comportamento de outros, sem que a representação aparecesse
na
consciência."6 Ele expressava, suponho eu, a desgastada opinião de que a
consciência
- a consciência real - tem de compreender o sentimento natural do 'to que é ser
como
eu", e que nenhuma forma de computação abstrata teria probabilidade de
proporcionar

esse sentimento (pelo menos, como geralmente se imagina que deve ser).
129
#Tudo o que posso dizer é que estou hoje muito mais perto desse ponto de vista do
homem comum. Concordo: "o que é ser como eu" é sempre, naturalmente, experimentar
alguma forma de sensação; realmente, a experiência da sensação constitui o "estar
conscien
te", e nenhum ser humano ou animal ou robô poderia ser consciente sem esse
sentimento.
Concordo, portanto, que qualquer teoria da consciência que não seja uma teoria do
te
r sensações deixou de ocupar-se do verdadeiro problema. Mas devo ressaltar que
aceito isso, agora, apenas porque descobrimos (e duvido que Sutherland o tenha f
eito) uma maneira de conciliar a centralidade absoluta da sensação com uma evidente
contradição: ou seja, que certos estados mentais também podem admitir uma
consciência qu
e não nasce diretamente do estímulo dos órgãos dos sentidos. E possível até
mesmo que uma pessoa em determinadas circunstâncias "apenas fique sentada e pense"
e tenha consciência desse pensamento mas apenas porque esses pensamentos conscien
tes
(ao contrário dos pensamentos inconscientes) envolvem imagens auditivas ou visuais
, e estas por sua vez têm um componente sensorial. Um robô, em contraste, poderia
perfeitamente ficar sentado e pensar sem ter qualquer dessas imagens mentais.
NOTAS
1. Oficina de consciência realizada por DanicIDennettBellagio, maio de 1990.
2. Aldous HuxIey (1936), discurso inédito, citado em Nicholas Humphrey e
Robert Jay Lifton (orgs). In a Dark Time, Londres, Faber and Faber, 1984.
3. Ver, por exemplo, rainha análise em Nicholas Humphrey e CR. Keeble, "How Monkey
s Acquire a New Way of Seeing", in Perception 5 (1976), pp.
51-56.
4. Samuel Johnson (1776), citado por James Boswell, Life of Johnson, vol. 3. Lon
dres, Everyrnan, 1925.
5. Locke,An Essay ConcerningHuman Understandíng, livro 3, Cap. 9.9.
6. Stuart Sutheriand, resenha de Conscíousness Regained, in Nature 307 (1984), p.
391.
130
#CINCO CARACTERISTICAS EM BUSCA DE UMA TEORIA
A verdade, ou não, das afirmações feitas sobre a consciência no Capítulo 15
dependia acent
uadamente da definição.
Gostaria de pensar que, ao aceitar o desafio de mencionar claramente a palavra,
eu tenha de fato (e não por coincidência) proporcionado algumas justificativas para
a maioria daquelas afirmações - e envolvido com minha mãos o corpo da própria
consciência.
Mas exposto e delineado o "verdadeiro problema", o trabalho real deste
livro ainda está por fazer. Na verdade, tudo, até agora, poderia ser considerado
com
o um grande prefácio a esta pergunta: se estar consciente é, essencialmente,
ter sensações, então o que é ter sensações?
Quando, por exemplo, "eu sinto uma dor", quem, ou o quê, é o "eu", aqui; de que
mane
ira essas sensações se tornam propriedade desse "eu", e como pode esse "eu" com
suas sensações ser colocado num cérebro material? Se pudermos responder a essas
pergun
tas, ouso dizer que teremos liquidado o problema da consciência e do corpo-mente.
131
#A pergunta "o que é ter sensações?" é - ou terá de ser diferente da pergunta sobre
qual o
valor funcional das sensações, ou por que as representações sensoriais
devem ter qualquer papel na vida mental. Minha posição tem sido a de que a função
das se
nsações é proporcionar ao sujeito representações "do que está acontecendo
comigo" - originalmente, servir como um mediador daquilo que o afeta e, posterio
rmente, ter importantes usos secundários relacionados com a percepção e imagens
mentai
s.
Essas finalidades funcionais não determinam, porém, os meios exatos.
Vejamos (já que a analogia me vem, por alguma razão, à mente) o caso do pagamento
de u
ma conta de telefone. O pagamento em questão é a transferência de 165 libras
à British Telecom. Essa a função que o pagamento tem e que terá sido realizada
quando el
e tiver sido feito. Mas como se lê no verso da conta, há várias maneiras
pelas qu ais posso fazer o pagamento: em dinheiro, com cheque, por débito direto,
com cartão de crédito... pelo correio, pelo banco, na companhia. Como todas essas
maneiras acabariam realizando a mesma coisa, a diferença entre pagar em dinheiro e
pagar com cartão de crédito seria incidental, ou mesmo epifenomenal. Não obstante,
essas diferentes formas depagar são, é claro, notavelmente distintas. Se eu pagar
em
dinheiro ficaria imediatamente mais pobre, mas se o fizer com cartão de crédito
permanecerei financeiramente no limbo por algum tempo.
Ora, por analogia, embora minhas sensações tenham real mente a função de
representar o q
ue está acontecendo comigo, poderia haver, em princípio, váriasmaneiras
defazer isso, e talvez nem todas fossem realmente conscientes. Assim, poderia ha
vere de fato há - circunstâncias nas quais eu recebo e respondo a informações sobre
o que está acontecendo na superfície do meu corpo, sem sentir absolutamente nada.
Os
exemplos mais óbvios ocorrem durante o sono. Se meu pé é beliscado quando estou
dormindo, eu o escondo; ou se minhas pálpebras são separadas e uma luz é
enviadapara meu
olho, a pupila contraI-se- mas o fato claro é que permaneço inconsciente,
e em nenhum dos casos sinto coisa alguma. Considerando-se que o ser humano pode
reagir assim, então é de presumir que também outros organismos possam. Quando uma
minhoca, por exemplo, reage a uma espetadela ou a uma luz que chega à sua pele, não
precisa ser mais consciente da sensação do que eu quando estou dormindo.
132
#Em relação aos seres humanos, portanto, a pergunta deve ser: o que acontece quando
formamos as representações que são conscientes? Como é feita essa representação,
onde ocorre, quanto tempo dura, e assim por diante? E como é da nossa experiencia
que estamos falando, as respostas (quando existem) devem fazer justiça à idéia
interior que fazemos do processo de representação.
Vou começar, portanto, relacionando algumas observações introspectivas relevantes
sobr
e como éter sensaçoes. Por "relevantes" quero dizer tanto pessoalmente relevantes,
na medida em que me parecem óbvias e interessantes, e filosoficamente relevantes,
na medida em que indicam que as sensações têm algumas propriedades peculiares e
bastante estranhas (que, entre outras coisas, lhes dão uma situação lógica
diferente da
situação das percepções).
Parte disso nada tem de novo. Há uma tradição filosófica segundo a qual as
sensações são esp
iais pelo menos sob os seguintes aspectos: elas são privadas, intrínsecas,
inefáveis e podem ser apreendidas diretamente. A minha lista pessoal de
característi
cas especiais é igual a essa, até certo ponto: caracteristicamente, as sensações
(1) pertencem ao sujeito, (2) estão ligadas a determinado ponto do corpo, (3) são
es
pecíficas de modalidades, (4) são presentes, e além disso (5) são au tocaracterizad
oras sob todos esses aspectos. Essas características -que resumirei em seguida e d
esenvolverei melhor mais adiante -não são necessariamente independentes entre si.
Quando tivermos uma teoria decente das sensações poderemos descobrir que todas elas
são, na verdade, parte de um mesmo todo.
Ressaltei acima a palavra "caracteristicamente", porque quero usá-la num sentido b
astante forte.
Quando digo que "X tem caracteristicamente uma propriedade p", não quero dizer ape
nas que todo X tem, naturalmente, uma propriedade p - como, por exemplo, todas
as pessoas têm naturalmente um nome. Nem apenas que todo X tem necessariamente uma
propriedade p, como, por exemplo, toda pessoa tem necessariamente um lugar dena
scimento.
O que quero dizer éque ter essa propriedade específica é que faz dele esse X
específico:
em outras palavras, X não pode ser individualizado ou caracterizado como
o X que é, sem fazer referência a p.
133
#Nesse sentido foi-te eu poderia dizer, por exemplo, que "as moedas têm, caracteri
sticamente, um valor", porque uma certa moeda não pode ser caracterizada como a
moeda que é sem se mencionar quanto vale; ou que "países têm, caracteristicamente,
fro
nteiras", porqueum certo país não pode ser caracterizado como o pais que e
sem mencionarmos onde ficam suas fronteiras.
É menos fácil exemplificar o que significa dizer que alguma coisa é "au tocaracteri
za
d ora" -e a menor dificuldade não está no fato de serem poucas as coisas, exceto
as sensações, que sejam autocaracterizadoras no sentido em queuso apalavra.Mas,
quan
do digo que "X é autocaracterizador por ter a propriedade p", quero dizer, de
maneira aproximada (no momento) que X "conta a sua própria história" de tal modo
que
ninguem, na sua presença, deixa de ter a imediata e automática consciência de
que X é p. Isso, decerto, equivale a mais do que ser apenas caracteristicamente p:
o fato de que as moedas têm, caracteristicamente, um valor não significa que
qualqu
er
pessoa que tenha na mão uma moeda conheça imediatamente o seu valor, ou o fato de
qu
e países têm, caracteristicamente, fronteiras não significa que alguém conheça
imediatamente as fronteiras de um país por viver nele. Mas o fato de que as
sensações
são au tocaracterizad oras significaria que quem sente uma sensação sabe
imediatamente
quais as suas propriedades.
1. AS SENSAÇõES PERTENCEM CARACTERISTICAMENTE AO SUJEITO
O ponto de partida de tudo isso é o fato de que "o que está acontecendo comigo" é o
qu
e está acontecendo com "o meu eu
materializado num corpo ". O corpo de todo
ser humano - contido dentro da membrana física que marca o limite físico entre o
"eu
" e o "não-eu" - está estrutural, fisiológica e, sob muitos aspectos, i
nformacional
mente isolado de todos os outros corpos no mundo.
O que acontece com esse corpo é de interesse primordial e destacado apenas para o
ser vivo nele encerrado. A própria palavra "vida" vem de leib, que significa corpo
[body], e não é por acaso que em inglês são usadas as palavras "somebody"
[etimologicame
nte, "algum corpo"] ou "anybody" [etimologicamente, "qualquer corpo"] como
sinônimos de alguma pessoa, ou qualquer
134
#pessoa: ter um corpo diferente é ser uma pessoa diferente, com uma vida diferente
.
Dessa forma, uma sensação que represente "o que está acontecendo com o meu eu
material
izado num corpo" evidentemente não pode ser caracterizada como a sensação que
é, sem mencionarmos qual o corpo com que se relaciona. Não é apenas o fato de que
as s
ensações que sinto estão associadas, como se fosse incidentalmente, com este
corpo. Mas sim que se estivessem associadas a qualquer outro corpo teriam de ser
sensações diferentes. Quando sinto dor no dedo do pé, sinto-a em meu dedo, e
nenhuma
descrição que deixe de mencionar isso será completa.
As sensações que sinto são, portanto, inalienavelmente minhas: tenho com elas uma
relação
de propriedade - sou dono delas - de uma maneira impossível a qualquer
outra pessoa. A dor no dedo do meu pé pertence a mim e não poderia, em princípio,
ser
sequer partilhada com outra pessoa, ou transferida para outra pessoa.
É certo que eu e uma outra pessoa podemos sentir, cada um de nós, sensações muito
"parec
idas". Quando, por exemplo, nós dois olhamos para o mesmo arco-íris, provamos
o mesmo aspargo, ou ouvimos os compassos iniciais da Quinta Sinfonia de Beethove
n, provavelmente sentimos sensações muito parecidas, pois nessas circunstâncias o
que está acontecendo com meu corpo deve ser muito parecido com o que está
acontecend
o com o de outra pessoa. Não obstante, o fato crucial continua sendo que "o que
está acontecendo comigo" está acontecendo comigo, e "o que está acontecendo com
ele",
está acontecendo com ele, enamedida em queeu eelesornos seres à parte, essas
sensações jamais poderão ser as mesmas.
Não há em princípio, é claro, nenhum impedimento a que outra pessoa fique sabendo o
que
está acontecendo comigo por outro meio que não seja o de ter uma sensação
própria, dela mesma. Pois "o que está acontecendo comigo" poderia ser, em certas
cir
cunstâncias, para essa pessoa parte Mo que está aconte~ cendo láfora": em outras
palavras, ela poderia perceber os mesmos fenômenos que eu estou sentindo na
superfíc
ie de meu corpo. Ela poderia ver com seus olhos, por exemplo, que há um espinho
no meu pé, poderia sentir pelo tato que minha testa está quente, ou poderia ouvir
co
m seus ouvidos que estou espirrando. E, embora pudesse, dessa forma, ficar conhe
cendo
os mesmos fatos objetivos, não os estaria experimentando como eu.
135
#Como também eu posso ter uma visão de meu corpo como se fosse uma terceira pessoa,
não é apenas uma outra pessoa que pode perceber o que está acontecendo comigo
como um caso especial do que está acontecendo lá fora. E é importante notar que
minhas
percepções de meu corpo, ao contrário de minhas sensações, não são
minha
propriedade privada. Se passo os dedos por uma contusão em minha testa, por exempl
o, posso perceber que há ali um galo sob a pele; e se você passasse os dedos pela
contusão perceberia a mesma coisa. A diferença entre nós, porém, estaria no fato de
que,
quando passo os dedos pela contusão, tenho ao mesmo tempo uma percepção
de que há um galo e uma sensação de que o galo está sendo tocado, ao passo que,
quandovo
cê passa o dedo pela contusão, tem a mesma percepção, mas não a sensação.
As percepções não constituem, em geral, propriedades privadas, porque lá fora" é
genericam
ente distinto de "eu, meu corpo". Portanto, uma percepção do que está acontecendo
lá fora pode ser caracterizada, geralmente, como a percepção que é sem mencionar o
sujei
to ou seu corpo de qualquer maneira. Quando, por exemplo, tenho a percepção
de que "há uma maçã vermelha sobre a mesa", ou que "o relógio está batendo quatro
horas",
o conteúdo dessas percepções não tem nada, especialmente, a ver comigo.
Igualmente, quando eu e alguma outra pessoa vemos o mesmo arco-íris, provamos o me
smo aspargo ou ouvimos a mesma música, não há razão pela qual o conteúdo de nossas
percepções distintas de nossas sensações - não seja praticamente igual.
"Muitas pessoas", escreveu Milan Kundera, "poucas idéias: todos nós pensamos mais
ou
menos a mesma coisa, e trocamos, tomamos emprestado, nos apropriamos dos pensam
entos
uns dos outros. Mas, quando alguém pisa no meu pé, apenas eu sinto a dor."1
2. AS SENSAÇõES ESTÃO CARACTERISTICAMENTE LIGADAS A UMA
LOCALIZAÇÃO NO ESPAÇO CORPORAL
Há mais coisas nas sensações corporais além do fato de que pertencem a uma pessoa e
não a
outra. Pois, além de ocorrerem em meu corpo, minhas sensações sempre ocorrem
em algum ponto em particular. O importante, decerto, não é a localização absoluta
no esp
aço físico, mas sim a localização definida de acordo com
136
#coordenadas corporais: em que ponto do meu espaço corporal está localizada. Se
toco
uma urtiga com o pé, e em seguida toco a mesma urtiga com a mão, tenho duas
sensações diferentes, embora o fato que lhes dá origem possa ter ocorrido na mesma
loc
alização física.
Portanto, uma sensação não pode ser caracterizada como a sensação que é sem
mencionarmos ond
e, nesse espaço corporal, está ocorrendo. Quando sinto uma dor no dedo
do pé, sinto-a no meu dedo do pé, e nenhuma descrição que deixe de mencionar esse
dedo s
eria completa. Não se trata apenas do fato de que as sensações que sinto
estão localizadas nos pontos em que estão: é como se uma sensação localizada em
outro pont
o fosse uma sensação diferente - a dor no dedo do pé é diferente da sensação
de uma dor no meu polegar.
Essa característica da sensação talvez seja mais óbvia para o tato, mas é
igualmente válida
para os outros sentidos. Minhas sensações de gosto localizam-se na região
da língua, minhas sensações de cheiro, na região das narinas. Da mesma forma,
minhas sen
sações de luz e som localizam-se em meus campos visual e auditivo. com o
paladar e o olfato a localização pode não ser tão precisa: não obstante, uma
sensação de doç
na ponta da língua é diferente de uma sensação de doçura na parte
posterior da mesma língua, e nenhuma das duas poderia ser confundida com uma
sensação
de doçura no joelho. com luzes e sons a localização no campo é consideravelmente
mais precisa: de modo que, por exemplo, duas estrelas separadas por apenas algun
s graus de ângulo no campo visual dão origem a sensações bem distintas, como dois
cliques separados por uns poucos graus de ângulo no campo auditivo.
Sabemos que, no caso dos campos visual e auditivo, as sensações não são realmente
sentid
as como se fossem localizadas na superfície do corpo - na retina do olho
ou na membrana basilar do ouvido. Esses campos são constituídos de uma série de
raios
centrados na cabeça, formando um tipo de cápsula visual ou auditiva. Não obstante,
são parte do meu espaço corporal e se movimentam com meus olhos ou minha cabeça, Se
fo
rmo uma pós-imagem, ou imagem residual, de uma lâmpada acesa no escuro, e em
seguida me afasto, a sensação permanece no mesmo lugar no campo visual e se afasta
comigo.
137
#Há, ainda nesse caso, um contraste claro entre sensação e percepção. Minhas
percepções não
isam fazer menção do meu corpo, seguindo-se, afortiori, que não
precisam fazer menção de nenhuma região específica do meu espaço corporal. Isso é
verdade, e
mbora a percepção possa estar, é claro, relacionada com qualquer localização
externa. Quando percebo com minha mão direita que "há um prego em determinada
posição no
assoalho", a percepção poderia muito bem ser caracterizada sem a menção
da minha mão direita, e realmente eu poderia ter exatamente a mesma percepção
usando o
pé esquerdo (embora tendo uma sensação diferente). Da mesma forma, quando
percebo com o canto do olho que um pássaro acaba de pousar no peitoril da janela,
a percepção poderia ser caracterizada sem menção do canto do campo visual usado,
e na verdade eu poderia ter percebido exatamente o mesmo com o outro canto do ol
ho (embora tendo, novamente, uma sensação diferente).
3. AS SENSAÇõES SÃO , CARACTERISTICAMENTE ESPECIFICAS DE
UMA MODALIDADE
Ainda há mais. Além de ter uma localização particular, minhas sensações sempre
pertencem a u
ma determinada categoria qualitativa, relacionada com o tipo de coisa
que está acontecendo comigo - se o estímulo na superfície do meu corpo tem a forma
de
uma pressão mecânica, calor, luz, som, aroma, ou qualquer outra - e como, em
particular, me afeta.
Assim, toda sensação que sinto pertence a uma "modalidade sensorial"
característica, tát
il, visual, auditiva, olfativa, gustativa ou a uma submodalidade de alguma
delas. Uma sensação não pode ser caracterizada como a sensação que é sem se
mencionar qual a
modalidade sensorial a que pertence. Quando sinto uma dor no meu dedo
do pé, sinto-a como uma dor, e nenhuma descrição que deixasse de mencionar sua dor
ser
ia completa. Também nesse caso não se trata apenas do fato de que a sensação
tem essa qualidade associada a ela: se a sensação tivesse uma qualidade diferente,
s
eria uma sensação diferente - uma sensação de cócegas na minha língua é uma
sensação
bem diferente de uma sensação de doçura, embora possa ocorrer no mesmo lugar.
138
#Poderia parecer que há uma conexão evidente entre essa característica das
sensações e a c
aracterística anterior: entre o fato de as sensações terem uma modalidade
e terem uma localização definida no espaço corporal. Há certamente uma correlação
notável en
e as duas, pois é uma realidade que as sensações de gosto ocorrem apenas
na boca, as sensações visuais nos olhos, e assim por diante. Mas essa correlação
entre l
ocalização e modalidade é, presumivelmente, em parte acidental -consequencia
damaneira pela qual o corpo humano é feito. Embora eu nunca tenha sensações de
gosto n
o ouvido, ou sensações visuais nas narinas, posso conceber que se eu fosse
um tipo de criatura diferente isso poderia acontecer. Tal como tenho sensações
táteis
e gustativas na boca, se eu fosse um polvo poderia ter sensações táteis e
gustativas
nos braços.
Mais adiante voltarei à natureza das modalidades sensoriais. Sua peculiaridade abs
oluta - a distância entre as modalidades é um dos fatos mais misteriosos relativos
às sensações. É como se cada uma das modalidades fosse parte de um território
separado, de
ntro do qual (pelo menos na imaginação) fosse possível viajar facilmente,
mas entre as quais não existe ponte. Posso pensar em movimentar-me por umalinha in
interrupta de sensações intermediárias, do vermelho ao verde, do azedo ao doce,
das cócegas à coceira, de dó sustenido a lá bemol, mas nenhum esforço de imaginação
me pode
var do vermelho ao azedo, das cócegas ao lá bemol.
Essa distância entre diferentes sensações de diferentes modalidades é certamente
mais ab
soluta do que a existente entre sensações com localizações diferentes. Posso
imaginar uma linha contínua de sensações de dor, do meu dente para as minhas
bochechas
e para os meus olhos, e posso até mesmo imaginar (se me empenhar muito) uma
linha contínua de sensações visuais dos meus olhos para a minha língua. Mas o que
simple
smente não posso imaginar é que uma sensação tátil na minha língua se transforme,
numa progressão contínua, em sensação visual. Parece tão difícil conceber isso
quanto pensar
que uma sensação tátil na minha língua possa tornar-se a sensação tátil
na língua de outra pessoa -quase como se as modalidades diferentes envolvessem doi
s proprietários diferentes.
Como quer que seja, vamos observar novamente como as sensações, sendo específicas
das
modalidades, contrastam com as
139
#percepções. Como as percepções não se preocupam com a natureza do estímulo como
tal, mas si
m com o que ele significa no mundo exterior, não precisam fazer referência
a uma modalidade sensorial, e são, na verdade, essencialmente amodais. Realmente,
não há razão, em princípio, pela qual uma e a mesma percepção não deva ser mediada
por sistemas sensoriais totalmente diferentes. Eu poderia, por exemplo, chegar a
uma representação perceptual de que "está chovendo", ou "há um cachorro na porta",
por meio de meus olhos, ouvidos, pele, nariz, ou uma combinação de todos quatro.
Além
disso, no caso peculiar da "visão cutânea" de quejá falamos, temos uma
círcunstânciana
qual a pessoa podeter uma percepção tipicamente visual, por exemplo, a de que "a
lua
está alta", ou "háum objeto triangular no canto da sala", utilizando não os
olhos, mas a pele das costas.
4. AS SENSAÇõES SÃO CARACTERISTICAMENTE ENTIDADES
PRESENTES, EXISTENTES
Outro fato que resulta de as sensaçoes serem representações "do que está
acontecendo com
igo" é que elas têm um tempo ao qual se referem: ou seja, o tempo quando
o que acontece está acontecendo, o "presente". Todas as sensações são,
rigorosamente fal
ando, do tempo presente. Quando sinto dor no dedo do pé, estou sentindo que
há uma dor neste momento, e seria absurdo para mim estar sentindo que houve uma do
r ontem, ou que haverá uma amanhã.
Além disso, as sensações têm um "tempo de vida" significativo. Isso quer dizer que
toda
sensação persiste mais ou menos pelo tempo em que persiste o estímulo da
superfície. Embora o tempo de vida possa ser muito breve, como acontece com a sens
ação criada pelo relâmpago provocado pelo raio, ainda assim a sensação deve durar
pelo menos um momento antes de cessar. Segue-se ser possível dizer que as sensações
ex
istem, e mesmo que existem como entidades individuais. Quando sinto dor no
meu dedo, a sensação começa em determinado momento, dura certo tempo e acaba
desaparec
endo, ou se modificando. Mas, enquanto dura, é a mesma dor individual. E se,
depois de desaparecerem, as sensações recomeçassem, não seriam agora a dor
anterior, mas
140
#uma nova dor do mesmo tipo. Igualmente, quando olho para as paredes verdes do m
eu escritório sinto uma sensação de verde que permanece a mesma sensação até que
desvie os olhos. E se, tendo desviado os olhos, eu volto a olhar, a sensação de
verd
e que agora sinto não é a mesma, mas uma nova manifestação da anterior.
Portanto, toda sensação está necessariamente em existência no momento em que a
sinto. E
uma sensação não pode ser caracterizada como a sensação que é sem se mencionar
quando é esse tempo presente. Não se trata apenas de estar ela ocorrendo agora, mas
sim que, se a sensação ocorresse em qualquer outro momento, seria uma entidade
diferente.
Somos sempre, a qualquer momento, sujeitos de toda uma população de sensações
existentes
que duraram mais ou menos tempo. Neste momento, por exemplo, estou sentindo
frio há vários minutos, sentindo o cheiro do café há cerca de trinta segundos, e
vendo e
ouvindo minhas sensações visuais e auditivas por diferentes períodos, até
uma mera fração de segundo. Todas essas sensações coexistentes coletivamente
constituem
o que está "na consciência" neste momento, ejuntas poderíamos dizer que constituem
o "presente consciente".
Em todos esses aspectos as sensações diferem das percepções. Para começar, as
percepçõe
podem referir-se não apenas ao presente, mas também ao passado, ou
ao futuro. Podemos perceber não só que está chovendo, mas que choveu ou que vai
chover
. Além disso, as percepções, ao contrário das sensações, não existem em nenhuma
extensão de tempo. Pode ser necessário, é certo, algum tempo para assimilarmos a
infor
mação necessária a uma percepção. Mas em si mesma a percepção não é uma entidade
duradoura com uma vida própria. De fato, em termos de gramática, as percepções são,
adequa
damente falando, sempre "perfeitas" -já completas - ao passo que as sensações
são geralmente "imperfeitas" -continuadas einacabadas. "Eu percebo que o sinal de
tráfego está vermelho" significa que acabo de percebê-lo, mas já no passado; ao
passo que "sinto uma sensação vermelha" significa que ainda a estou sentindo, no
pre
sente.
141
#5. AS SENSAÇõES SÃO
A UTOCARACTERIZADORAS EM RELAÇAO AS PROPRIEDADES 1 A 4
Chegamos agora ao que talvez seja a mais fundamental - e
mais intrigante - das características que relacionei, ou seja, que as sensações são
au t
ocaracterizad oras, ou au to-reveladoras. As sensações contam a sua própria
história, ou revelam as suas propriedades características, de modo que o sujeito
tem
consciência direta e imediata delas.
Quando sinto dor no meu dedo do pé, a sensação está ali, para mim, como a sensação
que é, se
que eu tenha de fazer nenhum tipo de esforço mental para dassificá-la
comosendouma sensação e não outra. Realmente, minha impressão nesse caso é
simplesmente de
que meu dedo dói, e, quando meu dedo doi, os fatos de ser o meu dedo (e
não algum outro pedaço de mim) que está agindo de maneira dolorosa (em lugar de
agir d
e maneira visual, gustativa ou auditiva) e de estar doendo agora (e não em
nenhum outro momento) são, porassim dizer, fatosbásicos, sobre os quaís não posso
ter dúvi
das. E certamente não tenho de "deduzir por inferência" que é "provavelmente"
meu dedo do pé, e não o do leitor, meu dedo do pé e não meu polegar, uma dor e não
um chei
ro, que está presente neste momento e não cinco minutos atrás. Realmente,
parece que essas propriedades estão implícitas à sensação, de modo que a
probabilidade e a
dedução não fazem parte dela. A sensação é, poderíamos dizer, "fenomenalmente
imediata".
Uma das conseqüências notáveis disso, que também nos chama a atenção para a
realidade do fen
eno, é que posso sentir a sensação provocada por um estímulo antes
de ter condições de analisá-lo, em termos do que ele significa, e muito menos de
descr
evê-lo em palavras: minhas sensações incluem em qualquer momento muito mais
do que cheguei a perceber em nível perceptual. Embora isso seja verdade para todas
as modalidades sensoriais, talvez seja mais óbvio em relação à vista. Quando estou
numa sala escura e as luzes são acendidas de repente, imediatamente experimento se
nsações de cor por todo o meu campovisual (mesmo que sejam um tanto imprecisas
e desbotadas nas beiradas). Mas, enquanto estou sentindo todoesse campo de
sensações
, a princípio estou longe de ser perceptualmente informado, de
142
#forma completa, sobre a sala. De fato, quando a luz é acendida e eu percebo todas
as coisas coloridas como sensações, estou a princípio na posição peculiar de,
por assim dizer, "ver além das minhas possibilidades" - sinto sensações que ainda
não te
nho meios de pagar, em termos de descrição categórica.
Isso pode ser ilustrado de maneira mais elementar por um experimento de reação
tempo
ral. Suponhamos que uma luz de várias cores apareça numa tela na minha frente
e eu tenha de identificar a cor externa o mais rápido possível - isto é, identifi
cá-la perceptualmente - e apertar um de uma série de botões correspondentes.
Sehouvess
e
uma opção de apenas duas coresvermelho e verde - e dois botões, talvez fosse
necessário
um quarto de segundo para que eu reagisse. Mas, se houvesse uma escolha entre
oito cores -vermelho, laranja, amarelo, azul, verde, branco, cor-de-rosa e viole
ta - e oito botões, provavelmente eu precisaria de quase um segundo para reagir.
A razão é que no primeiro caso tenho de tomar apenas uma decisãobinária, mas no
segundo,
três; e cada decisão tomada em nível perceptual leva um tempo apreciável.
Não obstante, embora seja necessário quase um segundo para decidir que uma das oito
cores é amarelo, não é preciso esse tempo todo para sentir a sensação do amarelo.
De fato, eu diria que sinto a sensação quase que imediatamente, quaisquer que sejam
as opções de escolha - e na verdade que a sinto sem tomar qualquer decisão.
Como pode ser assim, e o que isso significa, são problemas sérios para uma teoria
da
s sensações. Mas eis aqui uma primeira reflexão quanto à resposta. Tomando
novamente
o exemplo do meu dedo do pé, minha impressão, como disse, é que quando sinto a dor
meu
dedo dói. Mas há mais. Pois se meu dedo dói muito, e meu dedo é parte de mim,
então talvez haja sentido em supor que em algum nível estou muito envolvido em
provo
car a dor. Na verdade, em lugar de simplesmente receber a sensação, eu poderia
estar a criá-la ativamente, e até mesmo dar instruções para ela - de modo que
sentir a s
ensação tem alguma coisa em comum com a atividade intencWnal. E, se assim
for, então as instruções que estou dando para criar essa sensação específica seriam
o fato p
rimordial para minha mente. Portanto, eu não precisaria mais "perguntar
a mim mesmo o que estou fazendo" quando meu dedo do pé dói (ou meus olhos sentem o
a
marelo) tal como não preciso perguntar-me o que estou fazendo quando dou instruçoes
ao meu braço para acenar.
143
#Eu poderia relacionar outras características das sensações, além dessas cinco.
Estas, p
orém, devem ser suficientes para continuarmos. Se pudermos encontrar uma
resposta para a maneira pela qual essas cinco características das sensações puderam
su
rgir como corolários lógicos/biológicos de um mecanismo plausivel no cérebro
humano, estaremos nos saindo melhor do que qualquer teórico, até agora.
A busca dessa resposta começa no capítulo seguinte.
Uma palavra de cautela pode ser aconselhável. Quando menino, fui pescarnum dos tre
chos largos do rio Norfolke peguei um lúcio que pesava doze quilos. Lutei durante
quase uma hora antes de arrastá-lo para a margem. Dei-lhe uma pancada na cabeça,
enf
iei-o num saco, pendurei o saco na bicicleta e pedalei por sete quilômetros até
a casa de minha avó. O livro de culinária da Sra. Beeton aconselhava que o lúcio
fosse
mergulhado em água salgada durante doze horas. Enchi a banheira, joguei nela
um saquinho de sal e o meu lúcio morto. Horas depois, quando estava lendo junto à
la
reira, ouvi um grande barulho. O lúcio tinha revivido, pulado fora da banheira,
e estava se contorcendo no chão. A moral dessa história é que uma coisa e pescar um
pe
ixe, e outra prepará-lo para a caçarola.
NOTA
1. Milan Kundera, Miniortality. Londres, Faber and Faber, 1991, p. 225.
144
#O PROBLEMA DA PROPRIEDADE (COM AMURAS A BORESTE)
uando sinto uma dor ou um gosto ou uma sensação de luz vermelha, essas experiências
pe
rtencem exclusivamente a mim, são minhas.
Isso foi dito antes como a primeira característica - e talvez a mais evidente - da
s sensações, e tanto sua validade quanto seu significado foram considerados como
intuitivamente claros. Mas a idéia de "propriedade" - especialmente propriedade in
alienável ou privada - é realmente muito estranha, quando a examinamos bem.
Há mais riquezas nisso do quejá se revelou. Mas para chegar até elas a análise terá
de ser
mais ampla. Pois não é só em relação às sensações que podem surgir problemas
quanto ao que quer dizer precisamente "propriedade". Eis algumas outras coisas q
ue são minhas: minha casa, meujardim, minha bicicleta, meu cachorro, meus sapatos,

meus pés, minha voz, minhas lembranças, meus atos, minha imagem no espelho, meu ato
de escrever este livro. E se alguns dessiEs exemplos parecem um pouco intrigante
s,
lem-
145
#bremos uma reivindicação de propriedade ainda mais notável feita por um místico
inglês do
século XVII, Thomas Traherne: "As ruas eram minhas, o tempo era meu, as
pessoas eram minhas ( ...) os céus eram meus, e também o sol e a lua e as
estr
elas: e todo o mundo era meu, e eu era o único espectador e gozador de tudo."'
Até mesmo com os objetos exteriores (que muitas pessoas provavelmente consideram c
omo o exemplo paradigma) a natureza da relação entre o proprietário e a coisa
possuída
está longe de ser teoricamente transparente. Digo que o jardim é meu: pertence-me,
s
ou dono dele. Mas como explicaria isso a alguém que já não soubesse do que estou
falando? Jean-Jacques Rousseau escreveu no Discursosobrea desigualdade- "O prime
irohomem que, tendo cercado um pedaço de terra, disse'lsto é meu', e encontrou
pesso
asbastante
estúpidas para acreditarem nele, foi overdadeiro fundador da sociedade civil."' Ma
s talvez não fosse uma questão de acreditarem nele, mas de terem compreendido
exatam
ente
o que ele quis dizer.
O lingüista Ray Jackendoff pergunta, num artigo recente: "O que significa Xé dono
de
Y?" E responde: "De maneira muitogeral, parece haver três partes: (a) X tem o
direito de usar Y como quiser. (b) X tem o direito de controlar o uso que os out
ros fazem de Y, e impor sanções a usos que não sejam os que ele permite. (c) X tem
o direito de ceder direitos (a) e (b)."3 Tanto Jackendoff como Rousseau consider
am a propriedade como sendo essencialmente um conceitosocial, baseadona aceitação,
por outros, de que o dono tem certos direitos especiais. De fato, ele mostra ain
da que o conceito de propriedade, juntamente com outros como parentesco e domínio,

pode na verdade estar prefigurado inatamente no cérebro humano como parte de um


"mód
ulo de cognição social" surgido nas fases finais da evolução primata - uma espécie
de gramática social inata.
Há muito o que dizer em favor da idéia de uma gramática social de base biológica (e
num
contexto diferente fiz uma afirmação sernelhante4). Não creio, porém, que
a propriedade se enquadre aí, ou pelo menos que se tenha originado aí. Pois, se o
co
nceito de propriedade fosse essencialmente social, não poderia ter surgido enquant
o
as pessoas não entendessem os direitos sociais. E isso parece muito improvável.
Mesm
o que seja reconhecido o
146
#direito à propriedade de riquezas materiais, ou mesmo que seja reconhecido o dire
ito que uma pessoa tem de ser dona de seus sapatos, dificilmente será por um direi
to
reconhecido que uma pessoa é dona de seus pés. E se alguém é dono de seus pés, e
sabe que é,
então parece muito provável que essa tenha sido - e sempre teria sido,
em toda a história humana - a base do entendimento da propriedade em geral.
Pode-se argumentar - e acho que é verdade - que toda a idéia da chamada propriedade
privada nada mais é, psicologicamente, do que uma extensão metafórica da idéia
do "meu corpo, meu eu" - uma questão de fixar as fronteiras com muito mais latitud
e. As pessoas (e não apenas as pessoas: vejam um cachorro com um osso) certamente
se comportam como se considerassem uma intrusão em sua propriedade privada ou um i
nsulto a ela como equivalente a uma ameaça ao seu bem-estar corporal. Roubem-se
os bens de alguém, e ele poderá sentir-se pessoalmente violado; invada o love de
seu
vizinho, e ele pode achar que tem tanto direito de expulsá-lo como se você tivesse
lhe pisado no pé. "Nossos corpos são nossos jardins", disse lago. E nossos jardins,
nossos carros, até o nosso dinheiro no banco, são tratados muitas vezes COMO
os postos avançados dos nossos corpos. Isso acontece até mesmo com as obras de um
ho
mem: veja-se como um autor reage quando alguém lhe rouba as idéias.
Vamos supor que a idéia de propriedade começou (e ainda começa em cada um de nós)
não como
um conceito social, mas como um conceito altamente individualista. Em
lugar de os objetos externos proporcionarem o exemplo primordial de propriedade,
é na realidade o oposto que ocorre. "Meu" tem seu significado a partir de "de mim
".
As primeiras coisas que me pertencem são aquelas que constituem na verdade parte
fís
ica de mim - e só depois o conceito se expande a outros tipos de propriedade.
Mas isso apenas desloca o problema da origem da propriedade, sem resolvê-lo. Pois,
por mais primitiva e individualista que seja a idéia da propriedade, não devemos
imaginar que os seres humanos tenham nascido com a idéia de que seus corpos são
prop
riedade deles. Em lugar disso, quando um bebé entra no mundo, as proporções e
limites físicos de seu próprio corpo são, presumivelmente, coisas que tem de
descobrir
pela experiência:
147
#até mesmo a propriedade de seus pés dificilmente pode ser considerada como uma
idéia
nata.
A questão, portanto, é como esse exemplo inicial de propriedade criou raízes. Quaís
os c
ritérios psicológicos ou lógicos pelos quais o indivíduo estabelece - para
começar - que as partes do seu corpo de fato lhe pertencem? Haverá alguma coisa que
venha antes da propriedade dos corpos, um exemplo ainda mais básico de propriedade
,
que sirva como o determinante final de quais as outras coisas que são, ou não,
"minh
as"?
Creio que há, e que se situa na idéia de que o "eu", o dono, sou o que poderia
chama
r-se meu "ego executivo". O fato central da minha existência individual como
proprietário é que "eu" sou um agente voluntário que tem meu corpo sob seu
controle.
Parece ser uma verdade analítica - e não alguma coisa que tenha de ser estabelecida
pela experiência - que a única classe de coisas que "eu", como agente voluntário,
possuo são as minhas vontades: os planos e intenções que têm origem dentro da minha
ment
e e que traduzidos em ação constituem as coisas que "eu" faço. Quando, por
exemplo, "eu" quero que meu braço se mova, a instrução para que se mova não pode
ser senão
a "minha" instrução. Se tais instruções são necessariamente minhas, segue-se
que as ações que delas resultam também são necessariamente minhas. Mas como essas
ações são
turalmente sempre realizadas através de uma série determinada de partes
do corpo, segue-se então como verdade contingente que essas partes também são
minhas.
Além disso, como sou o único a ter essa relação particular com este corpo,
não só meu corpo é meu, como também sob esse aspecto é minha propriedade privada e
inalienáv
el.
Um caso raro deve ser suficientemente excepcional para provar a regra: o caso de
gêmeos siameses.
Suponhamos que eu tivesse um irmão gemeo, unido a mim pela cintura, compartilhando
a mesma pele e alguns dos meus órgãos internos, mas cada um de nós com a nossa
(sic) própria cabeça e membros. Como sabemos pelos exemplos reais de irmãos
siameses,
cada um deles de fato se apresentaria, tipicamente, como um "eu" separado -
uma agência separada - que fala com uma voz separada e tem seus pensamentos, senti
mentos etc. Até mesmo pela lei cada irmão seria considerado como uma pessoa
148
#separada, e teria o direito à propriedade individual (as irmãs siamesas do século
XII
, as Donzelas de Bicidenden, tinham cada qual seu marido e seus filhos, e antes
de morrer fizeram testamentos separados). Deixando de lado, porém, a propriedade e
xterior, a primeira realidade é que cada irmão pode afirmar, com confiança, que
certas partes do corpo conjunto são suas, e não do seu irmão.
Assim, que partes de nosso corpo conjunto eu poderia, nessas circunstâncias, reivi
ndicar como pertencentes especialmente a mim? O que imagino que eu poderia reivi
ndicar
como meu, e o que os irmãos siameses reais de fato reivindicam, seriam os membros
que "eu" controlo e pelos quais falo. Este braço seria meu porque só obedece à
ininha vontade, aquele braço seria dele porque só obedece à sua.
Há muitas situações comuns que confirmam a validadedesta análise. Num supermercado,
por
exemplo, vejo uma figura num monitor de televisão da segurança que tem uma
leve semelhança comigo. Como verifico se a figura que estou vendo é a minha? Aceno
c
om o braço e, se for meu corpo, acenará também. Ou (o que é um pouco mais
rebuscado)
minha mão está entrelaçada com a de outra pessoa, e ao olhar para essa confusão de
dedos
, não tenho certeza de quais são os meus, e de quais os dela. Como decido
em relação a este dedo? Tento mexê-lo e, se for meu, ele se movimenta.
com os adultos, esses "autotestes" são naturalmente apenas au tocon fi rmad ores,
enão autocriadores e definidores. Na primeira infância, porém, eles têm um papel
muitomais crucial. Osbebês humanos (e os bebés de muitas outras espécies também)
passam
um tempo considerável observando seus braços e pernas agitarem-se no ar -enquanto
investigam, pelosseusatos, precisamente que partes do mundo lhes pertencem ou não.
O princípio pode não ser totalmente confiável, mas a longo prazo tem êxito: "Se
alguma coisa se move como e quando eu desejo seu movimento, sou eu, e ela é minha.
"
Dentro dessa linha, Daniel Stern, psicólogo infantil, descreveu um teste feito cor
ri duas irmãs siamesas reais? Essas meninas de quatro meses, Alice e Betty, estava
m
ligadas frontalmente à altura do estômago, de modo que estavam sempre uma de frente
149
#para a outra. Muitas vezes uma delas acabava chupando o dedo da outra. Supondo
que a gêmea que chupava o dedo gostava da atividade e queria que ela continuasse,
a pergunta de Stern foi: saberia ela como reagir se obraço fosseafastado? Saberia
de quem eram os dedos que chupava?
Stern realizou o seguinte experimento. Quando Alice estava chupando seus dedos,
ou os de Betty, ele afastou suavemente o braço da sua boca e observou que, se foss
em
os dedos de Alice na boca de Alice, o braço de Alice resistia; mas, se fossem os d
edos de Betty na boca de Alice, o braço de Betty não resistia, nem os braços
(livres)
de Alice se retesavam - embora nesse segundo caso Alice tentasse seguir os dedos
com a cabeça. Parece que Alice sabia quais as partes de seus corpos unidos aciden
talmente
que estavam sob o seu controle. "Alice", escreve Stern, "parecia ( ... ) não se c
onfundir sobre que dedos pertenciam a quem" (grifo meu).
O que aconteceria se alguém não tivesse o controle de seu próprio corpo? Todos nós
conhe
cemos a experiência peculiar de ter um braço ou uma perna temporariamente
"dormentes", em conseqüência da redução do fornecimento de sangue: por um momento,
o mem
bro paralisado se torna uma espécie de coisa estranha. Mas, se a paralisia
fosse muito mais duradoura em conseqüência de um dano ao cérebro, os efeitos
poderiam
ser ainda mais desconcertantes. Esses pacientes com danos cerebrais alguma
vez rejeitam seus membros?
A resposta é que isso às vezes acontece (embora nem sempre). Já se descreveram
pacient
es que, quando paralisados de um lado, negam enfaticamente que os membros afetad
os
lhes pertençam.
Eis como o neurologista Eduardo Bisiach descreve a situação. "Uma forma mínima
desses
distúrbios pode servista no sentimento de estranheza em relação aos membros,
manifestada explicitamente pelo paciente ou deduzida dos apelidos peculiares que
lhes são dados. ( ... ) Na forma grave, o paciente afirma que os membros pertence
m
a outra pessoa, por exemplo a quem o examina. O conteúdo das crenças alucinatórias
pod
e ser totalmente absurdo: o paciente pode pretender que o braço pertence a
um outro paciente antes transportado na ambulância, ou que foi esquecido na cama p
elo paciente anterior. Por vezes os pacientes têm uma
150
#atitude bastante tolerante em relação aos membros repudiados, enquanto em outros
ca
sos ficam irritados com a sua presença e insistem em que sejam levados embora.
Em alguns casos, embora pouco freqüentes, estados de ódio furioso aos membros
estran
hos, e mesmo violência física, podem ser observadOS."6
Bisiach descreve a seguinte entrevista com um paciente paralisado do lado esquer
do do corpo (e também cego desse lado):
O examinador, colocando a mão esquerda do paciente no campo visual deste, pergunta
: "De quem é esta mão?"
PACIENTE: É sua.
O examinador coloca então a mão esquerda do paciente entre suas próprias rnaos e
pergu
nta: "De quem são estas mãos?"
PACIENTE: São suas.
EXAMINADOR: Quantas são? PACIENTE: Três.
EXAMINADOR: já viu um homem com três mãos?
PACIENTE: A mão é a extremidade do braço. Como o senhor tem três braços, segue-se
que deve
ter três mãos.
O examinador coloca então sua mão no campo visual direito do paciente, e diz:
"Coloq
ue sua mão esquerda sobre a minha."
PACIENTE: Ei-la aqui [sem fazer qualquer movimento]. EXAMINADOR: Mas eu não a esto
u vendo, e você também não. PACIENTE: [Depois de prolongada hesitação] Veja,
doutor,
o fato de que a mão não se moveu poderia significar que eu não quero levantá-la ...
7
Assim, o paciente não só nega que a mão lhe pertença, como também ao ser desafiado
pela pr
ova circunstancial levanta dúvidas sobresuas próprias intenções -dúvidas
que quase certamente não são sinceras, pois quase que podemos ouvi-lo murmurar para
si mesmo, como Galileu: "Mas eu quero movê-la." Dificilmente poderia haver uma
demonstração mais forte do elo entre o eu como dono e o eu como agente.
151
#"Nossos corpos são nossos jardins", disse lago, nos quais nossas vontades são os
ja
rdineiros."8
A pergunta inicial foi: o que significa dizer que "isto é meu", especificamente em
relação às sensações, mas mais geralmente em relação aos nossos corpos e ao mundo
além deles?
Na medida em que sou um agente voluntário, minhas vontades são minhas mesmo, e no
cu
rso normal dos acontecimentos essas vontades, específica e singularmente, provocam

os movimentos do meu corpo. Portanto as pessoas consideram o controle voluntário d


e seus corpos como o critério para determinar se esses corpos lhes pertencem, ou
não, realmente. Além. disso, embora não exista nada no mundo exterior que "eu"
control
e da maneira pela qual controlo meu corpo, há outras coisas das quais sou o
controladordefacto. Portanto, por extensão, as pessoas usarão esse critério para
deter
minar o que mais, no mundo exterior, também lhes pertence.
Vemos, assim, como o critério de Jackendoff, de que "X é dono de Y" equivale a "X
te
m o direito de usar Y como quiser" ou alguma coisa assim - poderia ter evoluído
a partir de um inicio corporal até cobrir a propriedade em geral. Tal como o meu c
orpo é meu porque tenho a capacidade natural de fazer coisas com meus braços,
pernas
,
língua etc., assim também meu jardim, minha bicicleta, meu cachorro e até mesmo meu
tr
abalho neste livro são meus porque tenho a capacidade (e o direito social)
de fazer coisas com eles.
Na verdade, é precisamente por ser esse o significado da propriedade que a
afirmação d
e Thomas Traherne, de que "o sol, a lua e as estrelas" são seus nos espanta
como tão estranha e, em última análise, tola. Pois não há nada que ele, ou qualquer
outra
pessoa, possafazercom o sol, alua cas estrelas. Um cavalo poderia pertencer
a Traherne, as jóias da coroa também, o Taj Mahal mas não as estrelas: nem mesmo o
bom
selvagem de Rousseau seria tão estúpido a ponto de acreditar nisso.
Não obstante, Thomas Traherne podia olhar para as estrelas.
Olhe para as estrelas! Olhe, olhe para os céus!
Ah, olhe para todo ofogo que paira no ar! 9
152
#Ele podia reagir à luz que caía sobre seus olhos, e pensar: isto está acontecendo
com
igo, estou sentindo as estrelas, sou "o único espectador e gozador" dessa sensação.
E as sensações? Poderiam ser minhas, pela mesma razão que meu jardim, sapatos, pés,
ações ou
vontades são meus? E, se assim for, quais desses níveis oferecem o paralelo
adequado? Poderiam as minhas sensações ser minhas porque também elas -de algum modo
pe
culiar - estão sob meu controle executivo?
A maneira pela qual a argumentação está sendo desenvolvida pode não parecer
promissora.
(1) Meu corpo é meu porque posso fazer coisas com ele. (2) Meus bens, terras
etc. são meus porque posso fazer coisas também com eles. (3) Conclusão: minhas
sensações são
minhas porque também posso fazer coisas com elas (??).
Se fosse essa realmente a estrutura do argumento, seria falsa. Ninguém faz coisa c
om as sensações. Eu posso mexer meus dedos do pé, ou gastar meu dinheiro, ou cercar
minha terra, mas não posso fazer nada comparável com minhas dores, ou gostos, ou
sen
sações de luz vermelha. As sensações não são o tipo adequado de entidade para
serem objeto de ações como essas.
Então, que tipo de entidade são as sensações, e como são na verdade tão
evidentemente "minha
s"? Será possível que as sensações, em lugar de serem objetos de ações,
estejam na verdade mais perto de serem um tipo de ação corporal em si mesmas?
Vejamos, por exemplo, a gramática da frase Eu sinto uma dor no meu dedo do pé". A
ma
neira óbvia de analisar essa frase seria "eu [sujeito] sinto [verbo] uma dor
no meu dedo do pé [objeto", de acordo com o modelo Tu /cavo/ o meujardim". Mas tal
vez a maneira correta - embora não tão evidente - de analisá-la seja "eu [sujeito]
sintouma-dor-no-meu-dedo-do-pé [verbo]", de acordo com o modelo "eu /agito-meu-
braço
". Nesse caso, a dor-no-meu-dedo-do-pé seria uma maneira de sentir, não um
objeto dela, tal como o "agitar-o-braço" é uma maneira de agir, e não o objeto
dessa m
aneira.
A experiência de sentir-uma-dor-no-meu-dedo-do-pé não pode, é claro, ser o mesmo
tipo de
atividade que agi tar-meu -braço. A dor e outras sensações poderiam, porém,
ser "atividades semicorporais" que envolvem implicitamente alguns tipos de movim
en-
153
#to na região onde a'sensação está sendo sentida - e isso as colocaria, pelo menos
logic
amente, na categoria das atividades abertas. Na verdade, "eu", meu ego sensorial
,
seria na realidade apenas outro lado do "eu", meu ego executivo. Eu" estaria agi
ndo e falando pelo meu, ego, e no fim o "eu" estaria sentindo.
Há muita coisa, nos parágrafos anteriores, que - se não fizerem sentido
imediatamente
- se tornarão muito mais claras adiante. Mas como amostra do que está para
vir, Vou encerrar esta discussão da propriedade recorrendo a um argumento curioso.
Voltemos ao exemplo dos meus dedos entrelaçados aos de outra pessoa. Se tenho
dúvida
se determinado dedo me pertence, eu poderia, como disse, resolver a questão
tentando movimentá-lo voluntariamente e observando o resultado: se ele se mover qu
ando quero, será meu. Mas há um método alternativo que eu poderia usar: poderia
simplesmente estender a outra mão e beliscar o dedo, e se sentisse uma sensação de
dor
, também nesse caso o dedo seria meu.
Suponhamos agora que houvesse razões para acreditar ainda não estou dizendo que há,
ma
s também não digo que não há
- que o primeiro desses dois métodos é logicamente primário, de modo queem última
análiseo
único modo pelo qual eu poderiasaber com certeza que o dedo é meu seria
praticar alguma forma de ação intencional com ele. A implicação seria que a
experiência de
uma sensação no meu dedo também logicamente teria de envolver a realização
- ou pelo menos a intenção de realizar - tal ação.
Esse argumento talvez seja curioso demais para ser convincente, isoladamente. Ma
s, se lhe pudermos dar espaço, então devemos observar esse espaço.
NOTAS
1. Thomas Traherne (1670), Cetiturícs ofMeditatioi. Century 3.3. Londres, Dent,
1908.
2. Jean-Jacques Rousseau (1754), A Discourse on Inequality [Discurso sobre as
origeiis e os fundamentos da desigualdade etztre os homens], trad. para o inglês p
or Maurice Cranston. Harmondsworth, Penguin, 1984, p. 109.
3. Ray Jackendoff, "Is There a Faculty of Social Cognition?", original in6dito,
1989.
154
#4. Nicholas Humphrey (1975), "The Social Function of Intellect", reproduzido
ern Humphrey, Consciousness Regained.
5. Daniel Stern, 77te Interpersonal World of the Infant. Nova York, Basic Book
s,
1985, p. 78.
6. Eduardo Bisiach e Giuliano Gerniniani, "Anosognosia Related to Hemiplegia a
nd Hemianopia", em Awareness of Deficit After Brain Injury, G.P. Prigatano e D.L
.
Schacter, orgs. Nova York, Oxford University Press, 1990.
7. Eduardo Bisiach, "Language Without Thought", ern Aought Without Language, o
rg. por L. Weiskrantz. Oxford, Clarendon Press, 1988, pp. 464-91.
8. William Shakespeare (1606), Othello, 3, 3Z4.
9. Gerard Manley Hopkins, The Starlight Night (1918).
155
#Capítulo
1 19 ]
A QUESTAO DOS INDICATIVOS (COM
AMURAS A BOMBORDO)
Àprimeira vista, a idéia de que as sensações são equivalentes a atividades
corporais pode
parecer muito estranha (embora os leitores que tenham conhecimento da chamada
teoria adverbial das sensações possam não achá-la tão estranha assim)1. Realmente,
o leito
r pode estar pensando, que na melhor hipótese, essa idéia proporciona uma
analogia interessante, mas não uma teoria do que são as sensações, em termos reais.
Na verdade, a analogia, quando para ela somos alertados, começa a parecer surpreen
dentemente interessante. Há, sem dúvida, semelhanças formais entre as duas classes
de fenômenos, além dasjá assinaladas. Compare-se, por exemplo, o que é "mexer o
dedo do
pé" com o que é "sentir uma dor no dedo do pé". Além de ser
minha, a atividade
de "mexer-meu-dedo-do-pé" assemelhase à sensação de "dor-no-meu-dedo-do-pé" em
todos os as
pectos que se seguem.
A atividade, como a sensação, envolve uma parteespecífica do meu corpo (não pode
ser car
acterizada como a atividade que é
157
#sem menção de onde está ocorrendo - que é no dedo do pé e não, digamos, na mão).
Como a sensação, a atividade e um processo de tempo presente, com seu tempo de vida
próprio (não pode ser caracterizada como a atividade que é sem se mencionar quando
ocorre - isto é, este momento em que mexo o dedo, e não, digamos, o momento de
ontem
).
A atividade, como a sensação, tem uma dimensão qualitativa, semelhante, sob vários
aspec
tos, a ter uma modalidade (não pode ser caracterizada como a atividade que
é sem menção da maneira, ou estilo adverbial, pela qual o movimento corporal está
ocorre
ndo - isto é, está sendo feito como um ato de mexer, e não de agarrar).
Além disso, a atividade, como a sensação, é fenomenalmente imediata (suas
características
não podem deixar de ser conhecidas por mim diretamente - pois eu mesmo,
o autor do movimento, é quem está dando as ínstruções para que meu dedo se mexa).
Mas as semelhanças, meramente nesse nível formal, não bastam para uma boa teoria. E
pa
ra avançar na direção mais ambiciosa proposta no último capítulo, precisamos
estabelecer que a analogia está, na verdade, muito mais próxima de uma homologia
autên
tica: em outras palavras, que as sensações são, na realidade um tipo de atividade
corporal.
Suponhamos então que se pudesse mostrar que, além dessas meras semelhanças, as
sensações e
as atividades corporais partilham pelo menos uma propriedade crucial,
que só uma atividade corporal poderia ter. Suponhamos que pudéssemos construir um
ar
gumento dentro das seguintes linhas: "Só as atividades corporais podem ter esta
e aquela propriedades: as sensações têm essas propriedades; logo, as sensações
devem ser u
m tipo de atividade corporal."
A argumentação que encerrou o último capítulo tinha mais ou menos essa estrutura -
sendo
a propriedade crucial a de
eu pertencer a mim". Ou seja: "o único modo pelo
qual eu posso estabelecer que uma parte do meu corpo me pertence é tentando movime
ntá-la; posso estabelecer propriedade sobre meu corpo sentindo sensações; logo,
as sensações devem envolver alguma forma de movimento corporal".
158
#Embora eu acredite que uma argumentação baseada na propriedade possa-com alguns
acrés
cimos -funcionar, reconheço que seria mais persuasiva se estivesse relacionada
com uma das outras propriedades que as sensações e as atividades corporais têm em
comu
m. E a mais promissora parece a propriedade de ser "autocaracterizadora quanto
à sua localização". Assim, o que devemos procurar mostrar é que nada, a não ser uma
ativid
ade corporal, pode me (o sujeito dela) revelar imediatamente que envolve
esta parte de mim, bem aqui.
A chave do argumento está nas palavras "mim", "esta" e "aqui". Mas para desenvolvê-
l
o precisarei, como aconteceu com a propriedade, ampliar a discussão.
já dissemos que, quando sinto uma sensação ou realizo uma atividade corporal, esses
ac
ontecimentos não podem ser caracterizados como os acontecimentos que são sem
"que se mencione" o lugar do corpo onde estão ocorrendo. A pergunta que não foi
feit
a, porém, é quem está fazendo a "menção", e para quem. Poderíamos ter suposto,
desde o começo, que "eu", o dono do corpo, estou obviamente mencionando essa local
ização para mim mesmo. Muito bem. Mas nesse caso há outras perguntas que convém
fazer.
Quando sinto uma dor no meu dedo, ou mexo com ele, sou realmente eu - o dono do
dedo - quem parece estar melhor colocado para mencionar que parte do meu corpo e
stá
sendo referida. E sou certamente eu quem tem o maior interesse nela, e para quem
essa condição existe primeiro como uma condição que envolve o dedo. Não obstante,
eu poderia também, na maioria das circunstâncias, mencionar isso para alguma outra
p
essoa: "Onde dói?" "No meu dedo, este dedo." "Que parte do corpo está se mexendo?"
E novamente: "Meu dedo." Mas então o que, exatamente, está envolvido na menção do
"meu d
edo" para mim mesmo -e, em particular, como a menção disso para mim mesmo
se compara com a menção a outra pessoa?
Atacando primeiro oúltimoponto, examinemos as substituições lingüísticas que eu
poderia fa
zer ao mencionar meu dedo a mim mesmo. Eu poderia dizer para mim mesmo
"meu dedo grande do pé esquerdo", ou poderia dizer "este dedo", ou "esta parte de
mim", ou simplesmente "aqui" - e em todos esses casos eu saberia exatamente o qu
e
quero dizer. Mas, se tivesse de mencionar meu dedo dessas maneiras diferentes a
outra pessoa,
159
#menos que eu as acompanhasse do ato claro de apontar o dedo do pé; e, mesmo que e
u apontasse, as palavras só fariam sentido para outra pessoa se ela estivesse na
minha presença e pudesse observar o que eu fazia. Ao telefone, por exemplo, elas
não
teriam nenhum papel!
As palavras "este" e "aqui" pertencem a uma classe que os filósofos chamam de indi
cativas. A palavra "indicativa" vem de "indicar", e as indicativas envolvem, tip
icamente,
um ato adicional deindicar, em muitos casos não-verbal, praticadopela pessoaque as
diz. Outras palavras da mesma classe são "agora" e "hoje", e também as palavras
"eu" e "me". Todas elas adquirem pelo menos parte de seu significado do contexto
em que são faladas (onde, quando, por quem e com que gesto acompanhador?).
Imaginemos, por exemplo, a seguinte conversa, gravada numa secretária eletrônica.
"F
ala o consultório do doutor. Por favor, deixe seu nome e quando chamou, e depois
diga qual o seu problema." "Alô, sou eu. A data é hoje e o momento é agora. A dor
está n
esta parte do meu corpo, bem aqui." Embora esse recado pudesse significar
tudo para o paciente, quase nada diria ao médico.
Mas, para indicar alguma coisa a uma pessoa, o que exatamente é necessário fazer?
Ap
ontar para a coisa indicada com a mão (talvez com o dedo "indicador")? Não,
evidente
mente.
Quando digo "este" (querendo dizer, por exemplo, "esta maçã sobre a minha mesa"),
po
deria indicar o objeto em questão apontando para ele, apanhando-ojogando-o para
o interlocutor, ou enfiando nele um alfinete. Ou poderia, se quisesse, fazer alg
o mais complicado: poderia traçar um mapa da minha mesa e enfiar nele um alfinete
ou escrever "o X marca o lugar". Mas, não importa o que eu fizesse, teria de criar
alguma forma de perturbação física numa localiZação relevan te no espaço-tempo
- seja onde a maçã realmente está, ou numa localização substituta" que tenha
relação óbvia c
la. É claro que, se e quando "este" se refere a uma parte de meu
corpo, "este dedo", por exemplo, o que eu faria naturalmente para criar uma pert
urbação física no lugar relevante seria ativar essa mesma parte do corpo: "este
dedo"
é "o mesmo dedo que estou mexendo agora."
Acontece que certos indicativos têm uma propriedade interessante, ou seja, a ativi
dade de mencioná-los pode constituir, em si, a atividade corporal que realiza a
tarefa de mostrar o que e
160
#si, a atividade corporal que realiza a tarefa de mostrar o que é "este". Quando,
por exemplo, eu digo "agora" (querendo dizer "esta vez"), indico o momento em qu
estão
simplesmente proferindo o som naquele exato instante. Quando digo "aqui" (queren
do dizer "este lugar onde estou"), indico olugarem questãomovendo minha boca nesse
mesmolugar. E, quando digo "eu" (significando flesta pessoa"), indico a pessoa e
m questão falando com a boca dessa mesma pessoa. Na verdade, se dissesse "estes
lábi
os",
indicaria os lábios em questão mexendo-os. Dessa forma, esses indicativos não
exigem n
enhum outro ato de indicação para tornar claro o seu significado, já que, ao
serem pronunciados, eles saem exatamente da mesma localização no espaço-tempo
indicado
.
Mas se posso indicar meus lábios a outra pessoa pelo ato auto-suficiente de dizer
"estes lábios", e mover meus lábios ao mesmo tempo, o que teria de fazer para
indica
r
meus lábios apenas a mim mesmo? No meu caso, provavelmente não teria de dizer
"estes
lábios" em voz alta, pois seria a mesma coisa se o dissesse soffo voce. E mais
do que isso, no meu caso seria a mesma coisa simplesmente pensar "esteslábios" e
não
dizer nada-desde que, é claro, eu fizesse um leve movimento com os lábios, ou
pelo menos iniciasse alguma atividade que os indicasse. E se isso é verdade em rel
ação aos lábios, não há razão pela qual não seria para toda e qualquer parte do
meu corpo. Assim, o simples pensamento "este dedo", ou "esta mão", e um leve movim
ento com a parte referida seriam suficientes para indicar o dedo do pé ou a mão
para mim mesmo - e para que o pensamento fosse auto-indicador.
Ou não seria? Devemos ter cuidado com isso. Pois, se eu pensasse apenas "este dedo
" ou "esta mão", o pensamento em si não seria auto-indicador, como o ato da fala
indicativo, a menos que o pensamento estivesse de alguma forma diretamente ligad
o ao movimento da parte do corpo em questão, tal como o ato da fala está. Um
pensame
nto
que causalmente provocasse o movimento faria isso, mas um pensamento que apenas
está acompanhado de um movimento independentemente causado, não. Em outras
palavras,

um pensamento, ou mesmo qualquer outro estado mental, só será auto-indicador se, e


a
penas se, se referir a um determinado lugar do corpo e ao mesmo tempo produzir
uma perturbação física no próprio lugar a que se refere. De fato, para que um
pensamento
indique, por si mesmo, o meu dedo, terá de ser um pensamento que se projete
e Faça-meu-dedo-mover-se".
161
#Que tipos de pensamentos, ou outros estados mentais, são, ou poderiam ser, causal
mente eficientes dessa maneira especial? Já se disse - sem provas muito boas -
que quase todo ato de "atenção" com uma parte do corpo de fato se projetará e
provocará
automaticamente pelo menos um micromovimento da parte do corpo em questão,
de modo que, se uma pessoa focalizar sua atenção sobreseu pé esquerdo, fará pelo
menos u
m leve movimento com esse pé; sobre a língua, fará um leve movimento com
a língua; sobre a orelha direita, fará um leve movimento com a orelha! (Tente:
talve
z reconheça que alguma coisa assim parece acontecer.)
Mas certamente não são os "movimentos atencionais", e sim os "movimentos
intencionai
s" que constituem o melhor exemplo, ou seja, movimentos que são parte das atividad
es
corporais voluntárias, nos quais o ego executivo, por um ato da vontade, ordena qu
e uma parte do corpo faça alguma coisa. Meu pé pode, ou não, movimentar-se
automaticam
ente
quando eu focalizo nele a atenção, mas não pode haver dúvida de que se move
automaticame
nte quando quero que se mova. Essas atividades corporais são, portanto, exemplos
paradigmas de estados auto-indicativos.
Mas agora tudo o que temos de fazer para fechar o círculo é notar que não só estes
são exe
mplos paradigmas, como são também, em última análise, os únicos exemplos.
Pois de fato qualquer estado mental que unisse esses dois elementos que se refer
em a um local no corpo e se projetam para criar uma perturbação nesse local
pertence
riam
à classe das atividades corporais por definição - porque é precisamente a isso que
corre
sponde uma atividade corporal.
Assim, um estado pode ser auto-indicativo (ou, voltando agora à minha frase origin
al, um estado pode ser autocaracterizante em relação à sua localização) se, e
apenas se, for também algum tipo de atividade corporal. E, como nosso ponto de par
tida foi que as sensações também fazem isso, podemos concluir que elas próprias
são, na verdade, uma forma de atividade corporal. Só que agora temos uma apreensão
mai
s firme do que isso realmente significa, ou seja, que as próprias sensações
se estão projetando para o lugar a que se referem e criando uma perturbação no
lugar r
elevante.
Como dissemos antes, o lugar relevante" poderia estar num mapa, ou numa planta -
uma localização substituta que está obviamente ligada à verdadeira - e portanto
não precisaria ser realmente a parte do corpo. Se os seres humanos têm um "modelo
162
#interior" de seus corpos, a atividade sensorial que indica o corpo poderia ser
uma semi-atividade, envolvendo não o corpo real, mas o modelo interior. Mas fica
a conclusão de que, de uma forma ou de outra, as sensações devem estar fazendo
alguma
coisa, ativamente, para criar uma perturbaão "nesse lugar relacionado com o
corpo, aqui e agora".
Em suma, assim como mexer com os dedos do pé é enviar um sinal para quemeu dedose
me
xa (oporquêe ocomoaatividade envolve diretamente o meu dedo), assim também
experimen
tar
uma dor no meu dedo deve ser enviar um sinal para que meu dedo doa (estando niss
o o porquê e o como a sensação realiza a mesma coisa).
Foi uma argumentação difícil de fazer, e possivelmente de acompanhar. E, mesmo que
a t
ese faça sentido no caso da dor (e talvez do tato em geral), ainda poderia
haver problemas em estendê-la a outras modalidades de sentidos: ao caso não de
apena
s um sen timen to-d e-dor-no-meu -dedo, por exemplo, mas de senti mento-de-doçura-
em-meu-nariz
ou sentimentode-vermelhidão-no-meu-olho.
As pessoas dizem realmente, como observamos, "meu dedo está doendo", ou "minha pel
e está coçando", ou "meu rosto está queimando", usando uma linguagem muito
semelhante
à linguagem-atividade de "meu dedo está se mexendo". Não dizem, porém, "meu nariz
está se
adoçando", nem "minha retina está avermelhando". E na verdade falta ainda
perguntar que tipo de perturbação física gerada centralmente poderia estar sendo
produ
zida no nariz ou no olho.
Tendo, porém, estabelecido a tese geral de que as sensações devein realmente, em
última
análise, envolver alguma forma de ativação da superfície do corpo, está claro
qual o caminho que temos pela frente. Esta tese deve ser usada para desenvolverm
os uma história sobre a evolução biológica das sensações.
NOTA
1. Wilfred Sellars, Science, Perception and Reality. Londres, Routledge and Keg
an Paul, 1963.
163
#A
FAINOWWWONNOWAN 1.1.117-, "... .. I''...".-, -."" , 1
11 1., 1 1 1. . .,,I.,..-- - . - I. ..
....
... . . ...... -..- . .. .. .
. . . .... .. ... .. ., I ... .. I ...- -
#PLUS ÇA CHANGE
O inicio de uma história evolucionária foi delineado no Capítulo 3, onde eu disse
que
a primeira função das sensações era - e continua sendo - mediar uma reação
afetiva
ao estímulo ocorrido na superfície do corpo:
[Nos primeiros animais] os limites - e as estruturas físicas que os constituíam,
mem
branas, peles - eram cruciais. Formavam uma fronteira: a fronteira onde o mundo
exterior tinha impacto sobre o animal, e através da qual podiamocorrer trocas de m
atéria, energia e informações. Alguns desses estímulos eram, de modogeral, "uma
coisa boa" para o animal, outros eram neutros, outros maus. Qualquer animal que
tivesse meios de distinguir o bom do mau aproximando-se do bom, ou deixando que
ele
entrasse, evitando ou bloqueando o mau - teria, claramente, uma vantagem biológica
. A seleção natural, portanto, provavelmente funcionaria no sentido da
"sensibilidad
e".
Ser "sensível" teria de significar, no começo, nada mais complicado do que ser
capaz
de reação local: em outras palavras, reagir seletivamente no lugaronde o estímulo
da superfície ocorria. Os primeiros tipos de sensibilidade teriam provocado, por e
xemplo, a retração ou a inchação do local, ou a absorção
cutânea. Pouco tempo depois,
porém, surgiram tipos mais sofisticados de sensibilidade.
165
#Em lugar de, ou simultaneamente com, a reação local provocada pelo estímulo, as
infor
mações de uma parte da pele passaram a ser transmitidas para outras partes
e provocaram reações nelas, e, com diferentes estímulos provocando padrões de ação
muito dif
erentes, abriu-se o caminho para que as reações do animal se adaptassem
melhor às suas necessidades. Como as informações sobre determinados estímulos
passavamag
oraa serpreservadas e tomavam a forma de determinado padrão de ação, esse
padrão passou a representar o estímulo.
Mostramos, então, que a sensibilidade evoluiu principalmente como meio defazer alg
uma coisa sobre o estímulo no ponto em que ele ocorria: pelo menos para começar,
o animal detectava e reagia ao estímulo com o mesmo pedaço de pele - o epitélio
sensor
ial era também o epitélio responsivo, e o órgão do sentido (se é que merecia
o nome de órgão) era também o órgão efector. Embora no Capítulo 3eu ressaltassea
subseqüente
eparação entre a sensibilidade e a responsividade - que acabou levando
a dois canais de representação, a sensação e a percepção -, minha posição mudou.
Pois temos
a todos os motivos para ressaltar a união que perdura.
A razão disso foi demonstrada nos últimos capítulos. Toda sensação ainda é sentida,
até mesm
nos seres humanos de hoje, como alguma coisa que acontece "comigo",
"aqui" e "agora". E isso exige, logicamente, que a sensação (ou o plano de ação que
a el
a corresponde) continue a voltar-se para o ponto de estímulo para indicar
o "ali", "então" e "a quem".
Creio que deveríamos pensar, então, muito simplesmente em termos de um contínuo
evoluc
ionário, como o que é mostrado na Figura 5, no qual,
mesmo quando a reaçãosensorial
se tornou mais complicada, uma versão da disposição original ainda foi conservada.
Nos animais mais primitivos, a reação ao estímulo teria sido totalmente local:
quando,
por exemplo, a superfície de uma ameba era locada, teria havido uma difusão
da excitação diretamente pela membrana da célula, para produzir uma contorção
defensiva da
quela parte da membrana. Nos animais mais desenvolvidos, como a minhoca,
a reação teria envolvido a remessa de sinais de ida e volta desde um gânglio
colocado
mais centralmente. E nos seres humanos a reação teria envolvido sinais desde
a superfície do corpo até o cérebro, e de volta até a superfície do corpo.
166
#Figura 5
Haverá indícios anatômicos que confirmem esse esquema? Eu diria apenas que há
evidências s
uficientes para não rejeitá-lo. Todos os nervos sensoriais aferentes
dossereshumanos

encerram pelo menos algumas fibras eferentes, e mesmo no caso do olho cerca de 1
0% das fibras do nervo óptico conduzem sinais do cérebro até a retina (o que
significa

a existência de muito mais fibras que saem para a retina do que saem, por exemplo,
para os músculos da mão). Mas eu diria também que seria um erro deixar que os
fatos anatômicos, tal como hoje conhecidos, limitem a discussão. Haverá ocasião,
mais ad
iante, para condicionarmos a teoria à realidade fisiológica dos corpos humanos.
A principal proposta, no momento, é simplesmente esta: que a atividade sensorial,
mesmo nos seres humanos, descende dire-
167
#tamente da reação afetiva primitiva. O "círculo sensorial" cresceu gradativamente.
Não
obstante, uma tradição ininterrupta liga as sensações dos seres humanos modernos
àquelas contorções amebianas originais de aceitação ou rejeição. Quanto mais as
coisas mudar
no curso da evolução, mais permaneceram as mesmas.
Os biólogos (e os filósofos também) que querem compreender os fatos contemporâneos
faria
m bem em prestar muita atenção ao pedigree das coisas, àquilo de que descendem.
Vejamos, por analogia, o caso notável das tartarugas verdes do Atlântico sul, que
na
dam cerca de três mil quilômetros para botar seus ovos. Nem sempre foi assim.
Há cem milhões de anos, quando apenas uma estreita faixa de mar separava a América
do
Sul da África, as tartarugas queviviam ao largo do litoral sul-americano punham
seus ovos a pouca distância dali, numa ilha perto da África. Ocorreu depois a
separação
dos continentes e o bloco africano e o bloco americano começaram a distanciar-se,
abrindo entre si o vasto oceano Atlântico. O que aconteceu? O campo de alimentação
tra
dicional das tartarugas ficou no lado sul-americano, enquanto seu tradicional
campo de procriação estava no lado africano. Em vez de mudar seus hábitos, elas
nadara
m cada ano um pouco mais para o leste. O resultado é que hoje as tartarugas
fazem uma viagem "desnecessária" que - se não conhecêssemos a sua história -
pareceria b
iologicamente absurda.
Não quero sugerir, com essa analogia, que existia alguma coisa comparavelmente abs
urda nas sensações. Mas digo que se as sensações humanas, seguindo uma rota antiga,
ainda voltam do cérebro até o lugar em que a sensação é experimentada, e se a
atividade qu
e realizam ali descende das reações afetivas de nossos remotíssimos ancestrais,
poderemos esperar que esta seja a explicação para aquilo que, num nível mais
profundo,
elas ainda são hoje.
Para levar isso mais adiante, porém, precisamos ser muito mais específicos - e, em
p
articular, estudar um problema óbvio. Se as sensações humanas descendem daquilo
que eram, originalmente, contorções amebianas de aceitação ou rejeição na
superfícíe do corp
ntão como pôde surgir uma variedade suficiente de "reações sensoriais"
para sublinhar toda a riqueza da experiência sensorial humana?
168
#UMA PEQUENA MÚSICA MENTAL
alvez bastasse para uma ameba, que provavelmente não tem uma vida sensorial muito
rica: diferentes tipos de "contorT
ções de aceitação ou rejeição" poderiam, realmente, constituir uma base suficiente
para tudo
que uma ameba pode representar. Mas não basta - pelo menos, não obviamente
- para os seres humanos, para os quais parece haver um número muito maior de forma
s de experimentar um estímulo do que responderlhe com "contorções."
No fim do século passado certos psicólogos de espírito científico tentaram calcular
o núme
ro total de sensações que os seres humanos podem distinguir. Edward Titchener
contou 44.435 "sensações elementares", inclusive 32.82O para a visão, 11.60O para a
au
dição, e 1 (sim, apenas uma) para o sexo.1
Não precisamos aceitar esses números para compreender que haveria realmente um
sério p
roblema quantitativo no mapeamento das sensações humanas em diferentes tipos
de atividade corporal. Mais sério ainda é o problema qualitativo, pois qual poderia
ser a diferença crucial entre fazer uma "contorção vermelha" na retina, uma
"contorção
doce" na língua, e uma "contorção
169
#de comichão" no cotovelo? Como poderia o sinal que sai do cérebro para a periferia
conter esse tipo de informação?
Minha hipótese pode manter-se de pé, ou desabar, se eu tentar uma resposta
realista para essas perguntas.
Talvez seja útil introduzirmos uma mudança de terminologia. Em vez de falarmos de
re
ações sensoriais, e muito menos de contorções de aceitação ou rejeição, devemos
ter um nome mais específico para o que venho chamando de "atividade dos sentidos"
- e de preferência um nome que também tenha conotações de afeto. Os neologismos
são feios, e nenhuma palavra existente é totalmente exata. Mesmo assim, sugiro que,
mesmo que leve algum tempo para nos acostumarmos com ela, chamemos a atividade
que ocorre centralmente de "sentíção", e os acontecimentos reais na superfície do
corpo,
que dela fluem, "sentimentos". Assim, os sentimentos, nesse uso, seriam
o nome das perturbações físicas reais que, ex hypothesi, ocorrem no lugar onde as
sens
ações são experimentadas.
Vamos supor, então, que toda sensação distinguível nos seres humanos corresponde a
uma f
orma fisicamente diferente do sentimento que ocorre na superfície do corpo.
Vamos supor, na verdade, para argumentar, que quando alguém sente determinada sens
ação está realizando uma forma adequada de sentição - e emitindo as instruções
que se fazem necessárias para criar o sinal relevante enviado pelo cérebro. E a
perg
unta é: que características desses sentimentos poderiam corresponder às dimensões
qualitativas da experiência sensorial, e quais as características do sinal enviado
q
ue poderiam codificá-las?
Temos duas evidências (apenas duas, talvez) para continuar. A primeira é o fato de
q
ue nos seres humanos há, como dissemos, uma associação entre a "modalidade" de
uma sensação e a localização corporal em que se sente que a sensaçãoocorre;
dessaforma, as p
essoas têm, caracteristicamente, sensações visuais com a retina, sensações
olfativas com a mucosa nasal, sensações táteis com a pele, e assim por diante. A
segun
da evidência é o fato de que, mesmo hoje nos seres humanos modernos, ainda
há pelo menos um vestígio de associação entre a "qualidade submodal" de uma
170
#sensação e a forma pela qual o estímulo é avaliado em nível afetivo, de modo que,
dentro
da modalidade visual, a luz vermelha é tipicamente excitante, a luz azul,
calmante; dentro da modalidade tátil, as comichões são irritantes, as cócegas são
agradáveis
; dentro da modalidade gustativa, os gostos doces são apetitosos, os
gostos azedos são repulsivos, e assim por diante.
Em relação ao primeiro fato, note-se que cada uma das áreas específicas de
modalidade do
corpo humano é muito diferente, se examinada ao microscópio, e na verdade
tem sua microestrutura física característica, própria. Portanto, quando determinada
área
está envolvida na sentição, é provável que todos os sentimentos nessa área
tenham uma forma característica, estruturalmente determinada. Assim, podemos dizer
que a
modalidade de uma sensação está diretamente ligada a essa dimensão estrutural
da reação sensorial correspondente - as sensações visuais ligadas à forma
particular dos s
entimentos retinianos, as sensações olfativas à forma dos sentimentos nasais,
as sensações táteis à forma dos sentimentos cutâneos, e assim por diante.
Em relação com o segundo fato, note-se que a maneira pela qual uma pessoa, como um
t
odo, responde afetivamente ao estímulo provavelmente está correlacionada com
a forma pela qual ela reage (ou pelo menos seus ancestrais no passado evolucionári
o reagiam) afetivamente à sua superfície corporal. Assim, as reações sensoriais
provavelmente ainda conservam pelo menos a sombra de sua função afetiva original, e
sentimentos diferentes, que ocorrem dentro da mesma área do corpo, provavelmente
terão, cada um deles, uma forma característica funcionalmente determinada,
dependend
o de serem destinados (ou pelo menos terem sido, no passado) a acolher o estímulo,

rejeitá-lo, ou qualquer outra coisa. Dessa forma podemos dizer que a qualidade sub
modal de uma sensação está diretamente ligada a essa dimensão funcional da reação
sensorial correspondente: sentimentos que agem para aumentar o estímulo têm uma
qual
idade submodal, os que agem para diminuí-lo têm outra qualidade submodal, os
que agem para mantê-lo constante têm ainda outra, e assim por diante, dentro de uma
ampla gama de afetos positivos ou negativos mais nuançados.
Pode parecer que isso não é muita coisa, como base para prosseguirmos; mas é
promissor
. Se pensarmos em atividades corporais em alta escala, evidentemente são essas
duas caracterís-
171
#ticas - localização corporal e função - que determinam seu "estilo adverbial".
Assim, a
analogia mencionada antes, entre experimentar sensações qualitativamente
distintas e desempenhar atividades corporais qualitativamente distintas continua
a ser surpreendentemente adequada. Poderíamos dizer que a diferença entre sentir
uma sensação tátil no cotovelo e uma sensação visual nos olhos é um pouco como a
diferença e
re realizar uma atividade locomotora com as pernas, e uma atividade
ingestiva com a boca; e, dentro de uma modalidade, poderíamos dizer que as
diferença
s entre sentir sensações de dor, comichão e cocegas são um pouco como as diferenças
entre pular, correr e escorregar.
Não tentarei especificar como isso poderia funcionar, na realidade, em detalhe, em
parte porque as sugestões que acabei de fazer estão, sob certos aspectos (veremos
mais tarde quais) a certa distância da realidade biológica final. Mas, como
ilustração p
uramente abstrata, talvez as linhas onduladas da Figura 6a possam ser considerad
as
como representativas de sentimentos diferentes que ocorrem em diferentes áreas da
superfície do corpo, correspondentes às sensaçoes que pertencem a diferentes
modalidad
es
sensoriais; e as linhas da Figura 6b poderiam representar sentimentos diferentes
dentro de uma mesma área, que têm funções afetivas diferentes, correspondentes a
sensações com diferentes qualidades submodais.
Gosto dessa maneira de ilustrar sentimentos - como se fossem, literalmente, onda
s de atividade que ocorrem na superfície do corpo - porque sugere uma analogia mus
ical.
Imagine o leitor uma orquestra de concerto disposta com os instrumentos de corda
numa área do palco, os metais em outra, as madeiras em outra, a percussão em
outra,

e assim por diante. E imagine que essa orquesta tem um regente - um maestro de v
erdade - que não só determina o ritmo e marca a entrada de determinados
instrumentos
,
como também dá a cada músico, individualmente, instruções sobre o que fazer.
Suponhamosquea orquestra corresponde à superfíciedeum corpo, onde cada seção
constitui u
ma área sensorial diferente, e que o regente corresponde à fonte cerebral
de emissão de sinais sensoriais. Suponhamos ainda que a execução de determinada
combin
ação de notas em certo instrumento desse conjunto corresponde a determinada
sensação, e que o papel do regente na criação dessa atividade instrumental equivale
ao p
apel do cérebro na criação da sensação.
172
#4M~
b Figura 6
A modalidade da sensação corresponderia então ao estilo de execução exigido pela
estrutura
dos instrumentos: em outras palavras, a maneira pela qual um instrumento
de uma seção da orquestra tem de ser usado - dedilhado, tocado com arco, soprado,
ta
ngido, etc. E a qualidade submodal da sensação corresponderia à combinação real
de notas que a execução deve produzir.
De modo que, por exemplo, a modalidade tátil poderia corresponder ao estilo dos so
pros, a modalidade visual ao estilo das cordas, a modalidade gustativa ao estilo

da percussão e a seção auditiva ao estilo dos metais. E, dentro da modalidade


tátil, a c
omichão poderia ser um acorde em dó menor numa flauta, o calor poderia ser
um acorde de mi sustenido num fagote, a comichão, um dó maior num oboé.
A Figura 7 representa essa teoria das sensações. Observe-se o regente interior,
19eu
".
173
#Figura 7
Onde obtém o regente o seu programa para as atividades que está dirigindo? Bem (a
me
nos que esteja sonhando), ele o obtém das informações que recebe dos órgãos
dos sentidos. Mas essa informação não resulta, em si mesma, na criação da música -
tal como
uma partitura musical não resulta em si mesma na música.
O que o regente faz é que importa.
NOTA
1. Edward Titchener (1896), citado por E.C. Boring, Sensation and Perceptíon in
theffistory ofExperimental Ps34ology. Nova York AppIetort-Century-Crofts,
1942, p. 10.
174
#Capítulo
1 22
ENERGIAS..NERVOSAS ESPECIFICAS?
Certos aspectos desta análise podem, talvez, estar começando a parecer confusos -
es
pecialmente o que foi dito, no fim do último capítulo, sobre a falta de "riqueza
musical" na informação que vem dos órgãos dos sentidos, em si mesma. Quando melhor
desen
volvida, a hipótese revelará, porém, as suas consideráveis virtudes (depois
que tivermos solucionado algumas falhas potenciais). Mas, antes de continuarmos
e descobrirmos o que podemos fazer com ela, e necessario colocá-la no contexto das

idéias mais tradicionais.


A teoria clássica sobre as sensações é, suponho, precisamente o oposto da que
descrevi,
já que coloca todo o peso sobre a natureza do insumo ao cérebro, e não no
produto que sai dele. Pressupõe, em particular, que a modalidade de uma sensação é
deter
minada em primeiro lugar pela disposição anatômica dos nervos pelos quais
ela entra; de modo que, por exemplo, se o sinal vem através do nervo óptico e
excita
o córtex visual, isso basta para assegurar que a sensação é visual. Em termos
da analogia musical, seria como se houvesse alguém dentro da cabeça ouvindo, e não
pro
duzindo, a música, um receptor interior, e não um
175
#regente interior, que ao receber a mensagem na parte do cérebro abastecida pelo n
ervo óptico, a experimenta como o som de "cordas visuais", ao passo que, ao recebê-
l
a
na parte abastecida pelo nervo auditivo, a experimenta como o som de "trompetes
auditivos".
Essa doutrina, chamada de energias específicas dos nervos, foi apresentada por Joh
annes MüIler, já em 1834. Eis um recente sumário dela, escrito por um professor
de Oxford para o Encyclopedic Dictionary of Psychology: "A qualidade sensorial d
epende do nervo estimulado.( ... ) Qualquer tipo de ativação dos nervos auditivos
provocará sensações auditivas, porque o nervo vai ao sistema auditivo do cérebro.
Da mes
ma forma, a ativação do nervo óptico provoca sensações visuais porque o nervo
óptico transmite as informações para o sistema visual do cérebro."I
Os fatos estão corretos, certamente - se o nervo auditivo é estimulado por uma
corre
nte elétrica, por exemplo, o paciente pode ter uma sensação de campainhas nos
ouvidos, mas nunca terá uma sensação visual, ao passo que, se o nervo óptico for
estimul
ado pela mesma corrente, pode experimentar relâmpagos de luz, mas não terá
nunca uma sensação auditiva. Mas eu disse antes que apenas "suponho" ser essa idéia
a
teoria oposta à minha, porque na verdade não acho que deva ser considerada
como teoria. Ela não oferece nenhum tipo de explicação para a maneira pela qual as
sen
sações chegam a ter a qualidade que têm.
"A ativação do nervo auditivo produz sensações auditivas (e não visuais) porque o
nervo va
i para o sistema auditivo do cérebro!" Alguém podia, igualmente, dizer
que dar milho às galinhas produz cacarejos (e não mugidos), porque o milho vai para
o
"sistema galináceo" da granja, ou que discar 911 produz um policial à porta
(e não o mensageiro de um restaurante chinês) porque as chamadas 911 vão para o
"siste
ma policial" da central telefônica. Mesmo se correta, a explicação seria vazia,
enquanto não for explicado o funcionamento do "sistema".
Uma teoria explicativa das sensaçoes não pode aceitar sem discussão que diferentes
sis
temas fazem, cada um, seu próprio trabalho sistemático com o insumo recebido
-quando é precisamente essa coisa sistemática que precisa ser explicada. A teoria
de
ve, pelo contrário, examinar a natureza daquilo que cada siste-
176
#ma específico da modalidade vaifazer em seguida. Idealmente, a teoria deve propor
cionar boas razões pelas quais o "sistema auditivo" produz sensações
exatamente
com as qualidades auditivas que elas têm, ao passo que o "sistema visual" produz s
ensações com a qualidade visual dessas sensações, e assim também para as outras
modalidades. Mas se nãopuder fazer isso, devepelo menos oferecer sugestões sobre a
m
aneira pela qual o sistema auditivo difere, num aspecto relevante, daquilo que
o sistema visual faz.
O fato é, porém, que nem a doutrina das energias nervosas específicas, nem qualquer
va
riante moderna dessa doutrina, tem alguma coisa a oferecer, quanto a isso.
A literatura recente em ciências cognitivas, ou neurofisiologia, nem sequer se ocu
pa muito da questão do que produz a diferença qualitativa entre moda-
l idades sensoriais. Sepedíssemos à maioria dos cientistas contemporaneos que
fizess
em uma suposição, eles talvez murmurassem alguma coisa sobre o "processamento
da informação" ser realizado de uma forma específica à modalidade. Mas se
pressionados,
provavelmente admitiriam que não podem nem mesmo imaginar como diferentes
tipos de processamento da informação poderiam fazer isso. Há apenas umas tantas
maneir
as de transmitir impulsos nos dois sentidos entre as células nervosas, e nenhuma
delas pareceria capaz de sublinhar as diferenças de experiência entre ver vermelho
e
sentir dor. Lembramos a sombria advertência de Colin McGinn, citada no início
do livro: "Não podemos obter o conteúdo qualitativo'da experiência consciente --
ver v
ermelho, sentir dor etc. - das computações no sistema nervoso."
Se, porém, a teoria clássica não tem nada para oferecer aqui, pode a minha hipótese
sair
-se melhor? Eu diria que, ao focalizar não o que entra nos sistemas sensoriais,
e sim aquilo que sai, ela tem alguma chance.
Para começar, a hipótese sugere que as maneiras pelas quais as sensações diferem
devem,
em última análise, ser maneiras nas quais os sentimentos correspondentes
podem diferir. com isso, ela desvia o problema do processamento das informaçoes, e
m si, e o transfere para um terreno mais promissor. E mais promissor porque já
temos um modelo de como as atividades corporais, numa escala maior, podem estar
quase tão separadas em sua "qualidade adverbial" quanto as modalidades sensoriais.

Talvez
177
#nem todos concordem que soprar um trompete com a boca e tocar um violino com as
mãos se situam em áreas tão diferentes. Mas, numa analogia mais grosseira, vejam-
se
as diferenças entre comer, dançar, falar e cavar ojardim: embora seja fácil
imaginar u
ma série de atividades intermediárias dentro de cada categoria, como dançar
o tango ou dançar a mazurca, ou comer figos e comer peru, pode-se argumentar que há
uma separação absoluta entre dançar o tango e comer figos.
Além disso, essa hipótese abre a possibilidade de nos aproximarmos do que chamei de
teoria "ideal" para explicar a teoria das sensações, ou seja, uma explicação
que apresente boas razões pelas quais o produto de um sistema sensorial deve ter e
xatamente a qualidade que tem. Creio que talvez seja possível, em princípio,
estabel
ecer
logicamente as correspondências necessárias entre a forma de determinados
sentimento
s e a qualidade de determinadas sensações-com base em semelhanças formais entre
elas.
Não estou dizendo que as sugestões que fiz até agora se tenham aproximado disso.
Pois
não posso, como reconheço, pensar em nenhuma razão a priori pela qual um
sentimento,
por exemplo, que tenha uma forma determinada pela retina deva assemelhar-se a um
a sensação visual, ao passo que um sentimento que tenha uma forma determinada
auditi
vamente
deva ser auditivo; nem por que um sentimento retiniano, afetivamente alarmante,
deva assemelhar-se a uma sensação vermelha, enquanto um sentimento pacificador deva
ser verde. Não obstante, se há uma relação entre a forma dos sentimentos e a
qualidade d
as sensações correspondentes, então - a menos que Deus esteja jogando dados
com as relações corpo-mente - podemos admitir que a relação deve ser não-
arbitrária. Deve se
r uma relação "motivada", como diriam os semiólogos. E quando tivermos
uma teoria decente das sensações, será como motivada e não-arbitrária.
Se, e quando, tivermos essa teoria, estaremos nos aproximando daquilo que muitos
teóricos acharam impossível: uma "fenomenologia objetiva" que ligue as
experiências
sensoriais diretamente com o que está acontecendo no cérebro e no corpo. Devemos em
princípio ser capazes de deduzir o que a pessoa está experimentando a partir
de observações de seu cérebro e de seu corpo. E se pudermos fazer isso com outro
ser h
umano, devemos ser capazes de fazer também com um morcego... ou um vombate...
ou até com um robô. Poderíamos até mesmo chegar a ver como
178
#um robô de mentalidade filosófica poderia deduzir o mesmo em relação a nós.
Talvez ainda não estejamos perto disso. Mas demos um passo à frente dos outros
teórico
s, prevendo até mesmo que há um "ali" que devemos atingir.
Quando Howard Carter, escavando o Vale dos Reis, descobriu o túmulodeTutancâmon, e
o
lhou peloburacoque tinha feito, seus companheiros lhe perguntaram: "O que vê?"
Ele respondeu: "Coisas maravilhosas." E, em seguida, teve de dar um passo atrás e
continuar o trabalho pesado de derrubar o muro.
NOTA
1. D. ). MacFarland, The Encyclopedic Dictionary of Psychology, org. por Rom
Harrd e Roger Lamb. Oxford, Blackwell, 1983, p. 448.
179
#I
#Capítulo
1 23 1
FUMAÇA SEM FOGO
O poeta William Blake não teria gostado muito da linha de raciocínio que vimos
segui
ndo até agora. "Só as coisas mentais são reais", escreveu ele, "não interrogo
o
meu olho
0
corporal ou vegetativo, tal como não interrogaria uma janela para saber do céu.
Olho
por meio do olho, e não com ele."i Ou, como tornou a objetar, num poema posterior
:
As quatro janelas da alma desta vida Deformam os céus de um pólo ao outro, E levam-
n
os a crer numa mentira
Quando vemos com o olho, e não através dele.2
Uma mentira? Não houve, acredito, nenhuma mentira no argumento que apresentei. Mes
mo assim, está sem dúvida chegando o ponto em que pode ser necessário levar em
conta certas verdades incômodas.
Estou realmente pretendendo que as sensações são sentidas com a superfície do
corpo, que
os sentimentos de dor têm de ocorrer na pele, os sentimentos gustativos
na língua, a os sentimentos visuais realmente no olho?
Talvez eu pudesse querer pretender isso, por todas as razões já apresentadas. Mas a
tragédia da ciência, já se disse, é a morte
181
#de uma bela hipótese às mãos de um fato feio. E não insistirei, é claro, nessa
versão Mark-
1 da teoria, se estiver evidentemente errada.
O fato feio (e talvez não seja o único) que esperava emboscado à hipótese tal como
apres
entada é o fato de que em certas circunstâncias as pessoas podem ter sensações
em partes de seus corpos que não existem fisicamente.
O exemplo mais revelador - porque mais dramático e horrível - disso são os "membros
fa
ntasmas". São membros imaginários que persistem depois que um membro de verdade
foi amputado. Imediatamente após uma amputação, e muitas vezes durante meses ou
mesmo
anos depois, o paciente pode ter uma sensação clara de que o membro ainda é
parte de seu corpo. Como disse Ronald MeIzack, uma autoridade: "O membro fantasm
a é geralmente descrito como apresentando uma sensação de formigamento e uma forma
definida que se assemelha ao membro real antes da amputação. Afirmam que ele se
move
no espaço do mesmo modo que o membro normal se moveria quando a pessoa anda,
enta-se ou se estende na cama.(...) Embora o formigamento seja a sensação
predominan
te, as pessoas amputadas também relatam várias outras sensações, como picadas,
calor ou frio, peso e muitos tipos de dor. Cerca de 35% dos amputados acusam dor
em algum momento. Felizmente, a dor tende a diminuir e acaba desaparecendo, na
maioria
deles. Em 5 a 10%, porém, a dor é forte e pode intensificar-se com os anos. Pode
ser
ocasional ou constante, sendo descrita como cãibra, latejamento, ardor ou sensação
de pressão.( ... ) A dor é sentida em pontos definidos do membro fantasma. Uma
queix
a comum, por exemplo, é que a mão fantasma está apertada, com os dedos dobrados
sobre o polegar e enterrados na palma, de modo que toda a mão fica cansada e dolor
ida."3 A dor continua a ocorrer apesar de a ferida original ter fechado completa
mente
e de os nervos que dão entrada à dor já não estarem ativos.
Ora, é claro que se minha hipótese inicial estivesse certa, essas sensações
fantasmas não
seriam possíveis. A dor fantasma evidentemente não pode ser sentida com
o membro amputado. Um pé inexistente não pode doer, tal como não pode mexer-se: não
have
ndo pé, não há possibilidade de que sentimentos de dor
182
#ocorram nele e, portanto, não há sensações de dor. Mas tente dizer isso a quem
está senti
ndo a dor! Um médico do século XVI, Ambroise Paré, observou: "De fato é
uma coisa maravilhosamente estranha e prodigiosa, e que dificilmente será acredita
da, a não ser pelos que a viram com os próprios olhos, e a ouviram com os próprios
ouvidos, de pacientes que muitos meses depois de terem amputado 4, perna, ainda
se queixam de uma dor lancinante no membro retirado.,,4 A crítica teórica de uma
terceira pessoa evidentemente tem de recuar frente ao sofrimento inegável de uma p
rimeira pessoa.
Sensações fantasmagóricas também podem ocorrer depois da perda dos Olhos. Embora
não exist
a, ao que se sabe, um equivalente visual dos membros fantasmas -um campo
visual fantasma plenamente formado, depois da destruição dos olhos -, ainda assim a
sua perda súbita não representa o fim total das sensações visuais. Ainda que
felizmente os casos sejam raros, e não tenham sido estudados de maneira
sistemática,
há notícias de que por um breve período a vítima pode experimentar várias
sensações
em seu campo visual, como fagulhas de luz, estrelas candentes, chamas ou nuvens.
São mais comuns os casos em que os olhos, embora ainda intactos, tenham sido isol
ados
do cérebro por dano ao nervo óptico. E nesses casos ocorrem ilusões mais complexas.
Po
r exemplo, numa mulher de 18 anos que ficou totalmente cega em conseqüência
de uma operação para retirar um tumor que afetava o nervo óptico: "Depois de ter
tido
alta do hospital ela começou a ver 'luz/; depois, viu objetos movendo-se como
cobras e também cores, depois apareceram cenas compostas de pessoas e objetos; per
turbavam-na, impediam-na de dormir e interferiam em suas atividades cotidianas."
5
Portanto, como no caso da dor, há evidências clínicas de que a experiência de
sensações visu
ais não pode depender de sentimentos que realmente ocorrem na retina.
Poderíamos, porém, ter chegado à mesma conclusão sem ter ido tão longe. Pois, se
tudo o qu
e queremos são provas de que as pessoas podem ter sensações numa pequena
parte do campo visual que não existe no olho, basta-nos examinar nossos "pontos ce
gos" da retina.
Ocorre naturalmente um buraco em cada uma das retinas dos dois olhos, de cerca d
e um milímetro quadrado, na região em
183
#que o nervo óptico deixa o olho. Como a luz que incide sobre esse buraco não é
perceb
ida, qualquer parte da imagem retiniana que ali se situa desaparece da vista.
X
PONTO CEGO
As conseqüências são facilrn ente demonstradas. Fecheoolho esquerdo e olhe com o
direi
to para o X, com a página a cerca de trinta centímetros de distância. Se você
movimentar um pouco a página para trás e para a frente, verificará que há uma
posição em que
as palavras PONTO CEGO desaparecem. (Se abrir então o olho esquerdo,
as palavras tornarão a aparecer: os pontos cegos das duas retinas não coincidem.)
De
ve-se notar que o ponto cego não é percebido como uma área vazia. Quando as
palavras
desaparecem, o fundo branco se espalha eenche a lacuna; e se a pagina fosse verm
elha, azul ou verde, a lacuna seria preenchida com a respectiva cor.
A questão é que tais sensações fantasmas no ponto cego não podem ser sentidas com o
olho.
Não deviam portanto, de acordo com a teoria Mark-1, acontecer: sem retina,
não há sentimentos visuais na retina, não há sensações de luz.
Não há, evidentemente, uma saída para isso a não ser modificar a teoria. Se a
teoria Mar
k-1 não pode resistir, precisamos de uma teoria Mark-2 que, embora retendo
as características essenciais da versão anterior, esteja melhor adaptada aos fatos.
As duas características que têm de ser conservadas são as seguintes. Primeiro, a
idéia d
e que houve um contínuo evolucionário no desenvolvimento da atividade sensorial,
desde a ameba até os seres humanos. E, segundo, a exigência lógica de que, para que
as
sensações sejam a u tocara cterizan tes em relação à sua localização, devem
ser transmitidas de volta para criar uma perturbação física no lugar onde são
sentidas.
Mas se o lugar ao qual voltam, nos seres humanos, não for necessariamente a
superfíc
ie real do corpo, que lugar será? Lembremos que na análise anterior da situação
lógica dos
indicativos tive a prudência de inserir uma espécie de ressalva: "Quando 'este' se
r
efere a uma parte de meu corpo, 'este dedo',
184
#por exemplo, o que eu faria naturalmente para criar uma perturbação física no
lugar r
elevante seria ativar essa mesma parte do corpo:'este dedo'é'o mesmo dedo que
estou mexendo agora.'( ... ) [Mas] o'lugar relevante' poderia estar num mapa, ou
numa planta
- uma localização substituta que está obviamente ligada à verdadeira - e portanto
não prec
isaria ser realmente a parte do corpo. Se os seres humanos têm um'modelo
interio? de seus corpos, a atividade sensorial que indica o corpo poderia ser um
a semi-atividade, envolvendo não o corpo real, mas o modelo interior."
A ressalva era essa idéia de um "modelo interior do corpo"
- um modelo no cérebro. Mas o que, exatamente, poderia esse modelo interior ser?
Presumivelmente, para que o modelo seja a base das perturbações físicas subjacentes
ao
s atos de indicação, ele tem de ser mais do que um modelo puramente "abstrato"
ou "conceitual". Na realidade, presumivelmente o modelo deve ser algum tipo de e
strutura física, de modo que para cada localização na superfície real do corpo onde
as sensações são sentidas há de fato uma localização física no corpo modelo, onde
sentimento
correspondentes podem ocorrer. E, além disso, essa localização substituta
deve estar "obviamente ligada" (como eu disse) à real.
Mas o que, precisamente, poderia isso significar? Em virtude de que poderia uma
localização no cérebro estar "obviamente ligada" a uma localização na superfície
corporal?
Creio não haver outra escolha, aqui, que não seja a da interpretação forte: deve
signifi
car que, quando alguma coisa acontece nessa localização substituta no cérebro,
parecerá ao sujeito que está acontecendo na localização correspondente em sua
superfície c
orporal
- uma perturbação física no dedo modelo terá de ser subjetivamente indistinguível
de uma p
erturbação no dedo verdadeiro.
Mas como isso poderia ser provocado?
A resposta óbvia seria que a localização substituta está no caminho - ou, mais
precisame
nte, no fim -de um nervo sensorial de chegada que venha da parte pertinente
da superfície do corpo. Em outras palavras, a localização substituta do, digamos,
meu
dedo grande do pé estaria no ponto em que o nervo sensorial vindo do dedo chega
à "área do dedo" do córtex tátil do cérebro; e em geral as localizações substitutas
de todas
s outras partes da superfície corporal seriam os correspondentes pontos
de chegada no córtex de nervos vindos da pele, boca, olhos, ouvidos etc. -
185
#com, em particular, o córtex visual representando a retina, o córtex auditivo
repre
sentando a membrana basilar, e assim por diante.
Se assim for, o modelo interior do corpo seria simplesmente esse mapa córtico defi
nido pelas entradas. E onde acima escrevi que "a atividade que indica o corpo"
era uma "serni-atividade envolvendo não o corpo real, mas esse modelo interior", p
oderíamos agora supor que a semi-atividade se estende até o córtex sensorial como
tal e sobre ele exerce seus efeitos.
Digo que essa é a resposta óbvia. É, na verdade, uma resposta simples, mas isso não
depõe
contra ela. Pois suspeito que é a única resposta (não-tendenciosa) que
resolve a questão: a exigência é que um ato de indicação no ponto corporal P deve
ser subs
tituível, em princípio, por outro no ponto cerebral p.
Faria sentido, portanto, sugerir a seguinte revisão da teoria Mark-2.
186
#A informação sensorial chega ao cérebro através dos nervos sensoriais de chegada
e, com
o antes, o sujeito reage dirigindo uma resposta sensorial de volta à superfície
do corpo. Mas proponho agora que, no curso da evolução, o alvo dessas respostas
sens
oriais tenha passado progressivamente para o interior, partindo da superfície
real do corpo, pelo caminho dos nervos sensoriais de chegada. Houve, por assim d
izer, um curto-circuito da reação sensorial, um fechamento do que chamei antes de
"círculo, sensorial". Onde antes a reação percorria todo o caminho de volta até o
ponto
de estímulo (Figura
7a), agora ela termina na superfície do cérebro (Figura
8c).
Como se comporta essa nova versão da teoria frente aos exemplos paradoxais citados
antes neste capítulo? Evidentemente, as precondições para ter uma sensação se
terão modificado de maneira significativa. As sensações - mesmo as ilusórias -, em
lugar
de dependerem da existência da superfície corporal real, teriam passado
a depender da existência das áreas de projeção sensoriais córticas.
Assim sendo, não haveria mais nenhum grande problema teórico sobre sensações
fantasmas q
ue ocorrem depois da amputação de um membro, ou perda dos olhos,já que o
córtex sensorial que antes recebia insumos da parte do corpo que desaparece ainda
estaria intacto e, portanto, o local substituto dos sentimentos dolorosos ou dos

sentimentos visuais ainda existiriam. É certo que essas sensações fantasmas no


ponto c
ego ainda poderiam parecer uma anomalia, já que teriam de depender da existência
de uma área cortical correspondente a uma área retiniana que nunca existiu. Mas há,
na
verdade, uma explicação natural no caso, ou seja, que os dois olhos enviam
projeções coincidentes ao córtex e seus pontos cegos ocorrem em lugares diferentes,
de
modo que cada um dos pontos cegos separados é "coberto" no córtex visual por
uma localização que recebe seus insumos do outro olho.
Devemos esperar, é claro, que a perda do córtex sensorial como tal levasse à perda
com
pleta tanto das sensações normais como das fantasmas. E isso de fato acontece.
Depois da destruição do córtexvisual, por exemplo, os pacientes não só ficam sem
todas as
sensações visuais normais, como também (ao contrário da jovem com o nervo
óptico danificado que mencionei antes) eles
187
#não experimentam fantasmas visuais espontâneos, nem têm imagens visuais mentais,
nem
- quando a destruição é completa têm sonhos visuais. Podem ter ainda a capacidade
rudimentar de visão cega: mas isso, comojá vimos, é basicamente uma capacidade
percept
ual, e não sensorial.
A visão revista da teoria pode, portanto, solucionar as evidências clínicas,
potencial
mente incômodas, com relativa facilidade. (Felizmente, ela também se enquadra
nas evidências sobre imagens mentais sensoriais que envolvem áreas de projeção
córtica já me
ncionadas.)
A teoria original das sensações como atividades corporais sofreu uma revisão
bastante
radical - a ponto de não parecer mais a mesma teoria.
- 1 Continuo sustentando que para se ter uma sensação e necessária uma "resposta
senso
rial". Essa resposta, porém, que começou sua vida teórica como uma atividade
corporal real, tornou-se agora uma espécie de atividade cerebral. Como William Bla
ke poderia ter dito (se estivesse acompanhando a discussão): "sentimentos corporai
s"
tornaram-se "sentimentos cerebrais".
A Figura 9 mostra mais explicitamente o que e a nova teoria. Enquanto a versão ori
ginal propunha a disposição mostrada em (a), a versão revista propõe a mostrada
em (b). Onde o regente interno tinha antes uma orquestra corporal completa para
tocar, tem agora apenas o córtex sensorial à sua disposição.
Estou dizendo que essa revisão teórica corresponde a uma revisão evolucionária. Os
senti
mentos cerebrais da Figura 9b são descendentes diretos dos sentimentos corporais
de 9a, e muitas das considerações originais continuam sendo válidas. Não obstante,
toda
a questão relacionada com a evolução é que, por maiores que sejam as continuidades
biológicas, as coisas realmente se modificam. De fato, apesar de tudo o que foi di
to antes sobre a importância das linhagens, é certamente concebível que o progresso
evolucionário possa ter resultadonuma inversão completa da função ou do
significado.
188
#Superfície Corporal
Cérebro
Figura 9
Grande importância tem sido dada, até aqui, ao argumento de que as sensações devem
realm
entefazer alguma coisa no lugar em que são sentidas: que os sentimentos realmente
são - ou foram - uma forma de ação transcorrida na superfície corporal. Pode,
porém, ser d
ifícil manter essa ênfase por muito mais tempo. Os sentimentos cerebrais,
embora possam descender das contorções amebianas originais de aceitação ou
rejeição, evident
emente já não são em si mesmas nenhuma forma de contorção. De fato, parece
que, em lugar de envolver qualquer forma de ação, elas se tornaram apenas padrões
de i
mpulsos nervosos que terminam na superfície do córtex.
Terminam efazem o quê? Embora um organismo possa contorcer sua pele, não é de modo
alg
um óbvio como poderia contorcer seu córtex sensorial. E, mesmo que o pudesse
fazer, não é claro o que realizaria com isso.
Temos aqui, sem dúvida, um novo e interessante enigma. Mas, na verdade, temos
também
novas indicações. Embora não seja claro o que o "contorcer do cérebro" pudesse
realizar, de acordo com a teoria tal como está, é perfeitamente claro o que teria
de
realizar para que a teoria contribuísse para a solução do problema mente-corpo.
Pois, ao passarmos teoricamente dos sentimentos corporais aos cerebrais, avançamos
, na evolução, de orga-
189
#nismos arcaicos como as amebas para criaturas conscientes como nós. E, no nosso c
aso - mesmo que não possamos falar pela ameba -, sabemos que um dos resultados
das atividades sensoriais é que acabamos sentindo uma sensação: isto é, acabamos
tendo u
ma experiência consciente de uma dor em nosso dedo do pé, um cheiro em nossas
narinas, ou qualquer outra coisa.
Sabemos, em outras palavras, o que a teoria dos sentimentos cerebrais tem a ofer
ecer. E tudo o que se faz necessário, agora, são os meios.
NOTAS
WilliamBlake(1810), A Vision ofthelastJudgment. "Descriptive Catalogue", in Die
Complete Wrítings of William Blake, org. por Geoffrey Keynes, Oxford, Oxford Unive
rsity
Press, 1957.
William Blake (1818), Pie Everlasting Gospel, d, 1, 103, in ibidem.
Ronald Melzac, Vie PuzzIe of Pain. Harmondsworth, Penguin, 1973, p. 50.
A inbroiseParé (1552), citado in ibideni, p..50.
Ci lado por J.M. Ileaton, The Eye., Phenoiizenology and Psychology of Function a
ndDisorder. Londres, TavistockPublicatiori.5,1968, p. 184.
190
#Capítulo
1 24 1
TEMPO PRESENTE
No Capítulo 21 eu disse, "para argumentar", que "toda sensação distinguível nos
seres hu
manos corresponde a uma forma fisicamente diferente de sentimento" e que
"quando
alguém sente determinada sensação está realizando uma forma adequada de sentição -
e emitind
o as instruções que se fazem necessárias para criar o sinal relevante
enviado pelo cérebro".
Mas essa proposta talvez tenha sido um pouco apressada. Se a experiência subjetiva
de ter uma sensação consistisse "apenas" na emissão de instruções de um ponto
central, então, se esse "apenas" significasse o que deve significar, pareceria dei
xar implícito que tudo o que importa são as "instruções" -e os sentimentos como
tais deixam de ser considerados. Nesse caso, no que concerne à experiência
subjetiva
, grande parte da análise precedente não teria sentido.
Posso imaginar alguém argumentando assim:
"Vamos admitir, como quervocê, queas sensações envolvem uma resposta sensorial, com
um
sinal mandado de um ponto central de volta a uma localização periférica
(originalment
e
à própria superfície corporal, e mais tarde uma localização substi-
191
#tuta no córtex do cérebro). Não obstante, quando o sinal deixou o ponto central,
seu
trabalho mental está feito, e o que acontece com ele depois disso obviamente
não pode influenciar a sua experiência.
"A questão - e sei que você compreenderá isso - é lógica.
O que alguma coisa se torna no futuro não pode mudar o seu significado presente. S
e, por exemplo, você escreve uma carta, endereça-a a uma determinada casa e a
coloca

na caixa do correio, o ato de mandar a carta está completo, e o que acontecer com
ela, depois disso, não pode ter influência no significado do ato original. Mesmo
que a carta se extraviasse, a intenção demandá-la teria existido.
"A mesma questão poderia ser levantada em relação a um computador. Quando você
ajusta um
computador para mostrar um círculo na tela, ele envia um sinal que produz
o equivalente de "sentimentos circulares" na tela. Sevocê desliga o monitor, mas d
eixa o computador funcionando, o círculo desaparece. Mas a unidade central de proc
essamento
do computador continua emitindo as "instruções" relevantes e enviando-as pelos fios
competentes. Assim, o computador ainda "pensa" que está traçando um círcu
l o.
"Veja agora o seu regente interior. Como o processador central do computador, es
se regente presumivelmente nada sabe do que acontece às suas instruções, depois de
enviadas. Assim, a sentição pode ocorrer independentemente da ocorrência de
quaisquer
sentimentos reais. E segue-se que grande parte da análiseque você fez nos últimos
capítulos sobre o 1" onde ocorrem os sentimentos e o que eles fazem ali, e como co
rrespondem a determinadas sensações, é uma pista falsa.
"Não estou dizendo que os sentimentos não existem realmente. Concordo com você que
as
instruções para eles têm de existir, e as inst,ruções para um sentimento têm
de ser diferentes das instruções para outro. E certamente as instruções têm de ser
dirigid
as a algum ponto. Mas a questão é que aquilo que elas fazem quando chegam
ali não será importante, no que concerne à experiência interior.
"O que estou dizendo, se quiser, é que 'as atividades sensoriais não realizadas'
pod
em desempenhar exatamente o mesmo papel mental das reais. Tudo o que importa
é a intenção. E digo'se quiser' porque houve fortes indícios de que essa é
realmente a sua
192
#opini1ão -não só naquele trecho sobre'apenas emitir instruções', mas também antes
disso. Na
verdade, a idéia de atividade intencional - de'ação não realizada- existia
no Capítulo 7, quando você citou Coleridge a respeito do 'apetite visual': Tor
vezes
, quando olho intensamente para um objeto ou uma paisagem bonitos, parece que
é como se eu estivesse à beira de uma fruiçao ainda negada ( ... ) e mesmo como
teria
sentido um homem que salta, e não obstante não sai do lugar."'
Touché. Há inegavelmente alguma coisa certa nisso (embora eu pudesse achar que é um
po
uco injusto trazer Coleridge de volta). Mas - felizmente - há alguma coisa
muito errada com essa objeção, também.
O que está certo, e o que está errado?
próprio conceito de "instruções" é que constitui o problema, aqui, e está criando
dificuld
ades tanto para mim como para o meu contestador. O que significa precisamente
esse conceito? O que faz uma instrução ser uma "instrução"?
Em geral, será certamente correto ligar o conceito de instrução com a intenção.
Nada pode
ser considerado como instrução se não for uma instrução para alguma coisa,
ou sobre alguma coisa. As instruções voltam-se essencialmente para o futuro; elas
pr
ecisam terum resultadopreviSto. Nenhum sinal, quaisquerque sejam os seus efeitos
,
pode ser uma instrução se quem o envia nãojá tiver esses efeitos ein inente.
Imaginemos, por exemplo, a seguinte seqüência de números ser transmitida como um
sinal
, através de um fio: 0462742065. Como esse é o número do meu telefone, se o
sinal fosse mandado de um cabine telefônica para a central telefônica, oefeitoseria
criar um som de campainha no aparelho colocado sobre a minha mesa. Mas isso nãosig
nifica,
é claro, que o sinal constitui necessariamente uma instrução para isso: a instrução
de "ch
amar Nick". Realmente, ele só representaria essa instrução se quem liga
tivesse em mente a intenção específica de "chamar Nick". Se, pelo contrário, quem
liga e
stivesse simplesmente discando aleatoriamente, e não soubesse o que estava
fazendo, então, ainda que esse mesmo sinal
193
#passasse pelo mesmo fio e tivesse exatamente os mesmos efeitos causais, não const
ituiria essa instrução, nem necessariamente uma instrução de qualquer tipo.
Admitindo-se ser essa a regra geral - que um sinal, por si mesmo, não pode equival
er a uma instrução , o mesmo deve aplicar-se, presu miv elm ente, aos sinais que
resultam em sentimentos. Um padrão de impulsos nervosos que se dirige seja à
superfíci
e corporal ou ao córtex, não pode, por si mesmo, constituir uma instrução para
um sentimento, já que não pode haver nada antecipatório ou intencional nesse padrão
de i
mpulsos per se.
Mas nesse caso, se ainda queremos mostrar - como fiz originalmente - que a sentição
consiste apenas em "mandar instruções", estaremos evidentemente numa posição
um tantoembaraçosa. Pois quem, ou o quê, vamos considerar responsaveis pela
intencio
nal idade?
Devemos supor que é o "eu", o "regente interior", que desempenha o papel necessari
amente voltado para o futuro-prevendo quais os sentimentos que seus sinais devem

criar?
A resposta tem de ser que isso não satisfaz. Ou pelo menos que não satisfaz na
situação
tal como se encontra. Pois, tal como a situação se encontra, a última coisa
que devemos supor - se damos valor à respeitabilidade teórica - e que o regente
inte
rior é capaz de prever, ou pretender, alguma coisa. O regente interior é, afinal
de contas, um mero funcionário. Seu papel na teoria não é ter, ele próprio, uma
vida men
tal, mas ajudar-nos a explicar a vida mental - não ser consciente, mas explicar
a consciência. Se começarmos a atribuir a esse regente interior os seus proprios
est
ados intencionais, estaremos destinados a um regresso infinito.
Todos os tipos de problemas pairam agora sobre nós - do gênero que agita os
filósofos
analíticos. Mas em lugar de sermos arrastados a uma discussão dentro dos seus
termos, devemos apresentar uma linha própria, nossa.
O que estava certo no argumento acima era a suposição de que as instruções se
voltam int
rinsecamente para a frente. O que estava errado, creio eu, era o argumento
enganosamente simples que se seguiu: porqueestão voltadas para a frente, seu resul
tado real não importa. Pode ocorrer queprecisamente o inverso seja verdade.
194
#Voltando ao exemplo do estranho que disca o número do meu telefone: supusemos que
ele não sabia o que estava fazendo e por isso não tinha condições de prever os
efeitos do sinal que transmitia pelo fio. Poderíamos, porém, ver a coisa de outro
mo
do. O fato de que ele não sabia imediatamente o que estava fazendo não constituiria
impedimento para que viesse a saber inais tarde. Realmente, podemos admitir que
ele teria de saber tão logo alguém atendesse ao telefone e dissesse: Tala
NickHumphr
ey."
Poderia, então, a mensagem de retorno transformar rapidamenteo significado do sina
l original? Poderia esse sinal tornar-se, retroativamente, a instruçãopara chamar
Nick? Poderia tornar-se, retroativamente, a instrução possível de chamar Nick? E,
se a
ssim for, teríamos um modelo de como, em geral, os sinais não-antecipatórios
poderiam ser considerados como "instruções" em virtude das mensagens de retorno que
pudessem provocar?
Isso parece estranho. Parece exigir alguma forma de causação retroativa. E era a
ess
a causação retroativa exatamente que nosso adversário objetava antes: "O que
alguma coisa se torna no futuro não pode mudar o seu significado presente ", disse
ele. E isso era um ponto lógico, insistiu.
Pode ter sido lógico ( ... ) mas, novamente, talvez não fosse totalmente lógico.
Pois
podemos argumentar que tudo depende do que se entenda por "significado presente
":
em particular, ou quando, o "presente" acontece, e quanto tempo o "presente" dur
a.
Suponhamos que o presente fosse estendido um pouco. Suponhamos que tivesse de du
rar o suficiente para que houvesse superposição de presente e passado. Suponhamos
que, nas palavras de T.S. Eliot,
O tempo presente e o tempo passado Estão ambos presentes no tempofuturo, E o tempo
futuro, contido no passado.'
Suponhamos, na verdade, que os seres humanos viajam pela vida como um "navio do
tempo", que como uma nave espacial tem uma proa e uma ré, e espaço interno para nos
movimentarmos.
195
#Bem, nesse caso não estaríamos falando do "presente", tal como um físico o define.
Po
deríamos, porém, falar do "presente subjetivo" tal como o experimentamos na
realidade. O "presente físico", a rigor, é uma abstração matemática de duração
infinitamente
urta, e nada acontece nele. Em contraste, o "presente subjetivo" é,
de certo modo, o transportador e o contêiner de nossa vida consciente, e tudo o qu
e nos acontece, acontece nele. (É claro que Daniel Dennett e Marcel Kinsbourne,
num trabalho recente, também raciocinam nessa linha.2)
Vejamos o diagrama abaixo. Os números romanos representam o tempo físico; os
números a
rábicos, o tempo subjetivo. O "presente físico" não dura tempo algum, de modo
que quando, por exemplo, o tempo físico VI chega, o tempo físico V já passou. Em
contr
aste, o "presente subjetivo" durq, digamos, três unidades, de modo que o tempo
subjetivo 5 persiste até o tempo subjetivo 7.
In ....
1 2
.3 ...
.. iv .... ....v.... .... vi .... ... Vil ... ... viii...
Tempofísico
2 3 ...4...
3 4 ...5...
4 5 ... 6...
5 6
..7 ...
6 7
... 8...
Tempo subjetivo
Nesse caso - voltando ao nosso problema dos sentimentos se o sinal para um senti
mento (ou uma chamada telefônica) partisse no tempo V e uma mensagem de retorno vo
ltasse
no tempo VI, o sinal enviado e a mensagem de retorno seriam ambos parte do mesmo
presente subjetivo entre os tempos 6 e 7. E, se fossem contemporâneos dessa forma
,
não haveria nada ilógico quanto à influência do segundo no significado presente do
prime
iro.
Em que caso poderíamos agora afirmar que ter uma sensação não é, afinal de contas,
apenas
mandar instruções, mas sim "mandar uma instrução potencial e receber um
sinal de resposta em confirmação, dentro do âmbito do presente subjetivo". A
intencion
alidade não teria sido estabelecida nem em retrospecto, nem em prospecto, mas
"em transpecto": pois o resultado previsto e o resultado real estariam combinado
s num só.
196
#Antes, porém, que se eleve muito, devo trazer a argumentação de volta à terra com
uma h
ipótese bastante comum.
Perguntei antes: o queos sentimentos cerebraisfazem (supondo-se que, faam alguma
cosà)? K luz desta anáVise, uma nova resposta torna-se evidente, resposta que já
estava mais ou menos clara na Figura 9 do último capítulo: o que os sentimentos
cere
brais da Figura 9b fazem é, por assim dizer, cócegas nos nervos sensoriais de
entrada. com isso, provocam um repetido circulo de retroalimentação - disso
resultan
do que o sinal enviado e a mensagem de retorno fundem-se num processo maior,
mais duradouro.
Não há nada de misterioso num "círculo de retroalimentação". A "retroalimentação"
ocorre qua
o o produto de um sistema influi no insumo ao sistema: e um "círculo
de retroalimentação" surge quando, além disso, o insumo influi no produto, e um
círculo
de causação se estabelece.
A Figura 1O mostra um laço como esse. O produto A dá origem ao insumo B, o insumo-B
dá origem ao produto K, o produto K ao insumo W, e o insumo B' ao produto A",
e assim por diante.
Produto Insumo
Fígu ra 10
Como a atividade nesse círculo é autopropagadora, essa troca em pingue-pongue entre
insumo e produto poderia, em princípio, continuar indefinidamente. Na prática,
porém, o processo provavelmente será abandonado. Em particulai no caso de a
informação f
luir em círculo, parte dela quase certamente se perderá no curso de cada
circuito, e quase certamente o nível de ruído aumentará.
O ritmo no qual o sinal circulante decai dependerá da "fidelidade" geral do circui
to. E dois fatores principais provavelmente afetarão isso. Primeiro, quanto de
informaçao no produto real-
197
#mente volta como informação no insumo, e vice-versa. Segundo, quanta informação é
perdida
nas viagens de ida e volta. Em geral, quanto mais estreito for o acopiamento
em cada extremo - entre o produto e o insumo, e entre o insumo e o produto - e q
uanto mais curta e menos cheia de ruídos a trilha, mais longa a vida do sinal em
torno do círculo.
A possibilidade de que as respostas sensoriais criem esse tipo de círculo de retro
alimentação existia, sem dúvida, desde o começo. De fato, não era apenas uma
possibilidade
,
mas uma certeza: pois a reação afetíva não passa de uma retroalimentação. "Gostar"
de um est
ulo é responder a ele de maneira a mantê-lo ou aumentá-lo, e "não gostar"
é responder de modo a contê-lo ou reduzi-lo. Quando uma ameba primitiva, por
exemplo
, respondia com uma dessas contorções de aceitação ou rejeição na região do
estímulo,
o efeitonaverdade, a finalidade -dessa reaçãoera precisamente influenciar as
condições d
e estímulo a que estava respondendo. Os elementos de um círculo de retroalimentação
já existiam, portanto.
Temos de examinar, porém, a rapidez com que a atividade no círculo de
retroalimentação s
ensorial diminuiria. E para isso talvez seja útil trazermos de volta o diagrama
do final do último capítulo, mas desta vez com os círculos completos desenhados.
Superfície corporal Cérebro
198
#Nos primeiros tempos, tal como mostra a Figura lla, podemos supor que o círculo t
ivesse uma fidelidade muitobaixa. Uma razão disso é que era relativamente longo
e, talvez, relativamente cheio de ruídos. Mas outra razão muito mais significativa
é q
ue as reações sensoriais eram atividades autenticamente corporais, e o círculo
tinha de ser completado através do mundo exterior. O organismo tinha de fazer algu
ma coisa externamente para mudar o insumo: tinha, por exemplo, de nadar para afa
star-se
da fonte de estímulo, ou chupá-la, cuspi-Ia, abraçá-la, chutá-la, ou qualquer outra
coisa.
Nessas circunstâncias, a junção entre o produto e o insumo só poderia ter sido
relativam
ente grosseira, e muito pouca informação detalhada sobre a forma de resposta
teria sido transferida de volta para os órgãos sensoriais. Embora a contorção da
ameba,
porexemplo, certamente tivesse modificado o insumo, uma forma precisa ou
a dinâmica da contorção não teria sido preservada na mensagem de retorno. Portanto,
não ha
veria uma possibilidade real de a informação sobre sentimentos percorrer
muitas vezes o círculo - e, portanto, nenhuma possibilidade ainda de que a ativida
de sensorial fosse, por assim dizer, mantida viva durante um período maior pela
retroalimentação.
Mas, com a evolução dos sentimentos corporais para sentimentos cerebrais, a
situação tra
nsformou-se. Quando as respostas sensoriais na superfície do corpo foram
gradualmente substituídas por respostas dirigidas aos nervos de entrada e, finalme
nte, ao córtex de projeção sensorial, o resultado foi não só um círculo menor,
mas também uma junção muito melhor entre produto e insumo.
Não há, de certo, nenhum modo de dizer quais teriam sido os efeitos se, a
princípio, a
resposta sensorial simplesmente "fizesse cócegas" no nervo de entrada. Mas
no curso da evolução essas cócegas, podemos supor, se teriam tornado cada vez mais
esp
ecificamente comunicativas. Em conseqüência, grande parte da informação detalhada
sobre o sinal mandado para produzir sentimento no córtex sensorial acabaria sendo
preservada do sinal que voltava do córtex. E portanto o sinal nesse "círculo
sensori
al
cerebral" poderia agora reverberar por tempo considerável antes de desaparecer.
199
#Supondo, então, que esses círculos de retroalimentação reverberativos existem em
nossos
cérebros, podemos voltar ao problema das "instruções" e da "intencionalidade"
da atividade sensorial.
O problema surgiu com a sugestão imatura de que sentir uma sensação é "apenas
emitir uma
instrução para um sentimento", pois não era óbvio como os sinais que deram
origem aos sentimentos poderiam jamais valer como instruções para alguma coisa -
ist
o e, a menos que houvesse alguma forma de "causação retroativa".
Mas vejamos novamente o círculo de retroalimentação genérico da Figura 10. Quando
temos
A que causa B que causa A' etc., não temos, é claro, causaçáo retroativa
de A por B. Mas o que temos é a causaçao prospectiva de A' por B. Assim, embora
seja
exato dizer que os As como um todo são as causas dos Bs como um todo, seria
igualmente certo dizer que numa seqüência duradoura os Bs como um todo são as
causas d
os As como um todo.
Assim, o que temos, estranhamente, é uma fusão geral de causaeefeito: os As que são
as
causas dosBs são também os efeitos dos Bs. E, se identificarmos agora a seqüência
geral duradoura com o "presente ampliado% temos uma situação na qual os As, no
momen
to em que partem - no presente-, já estão sob a influência dos Bs a que vão dar
origem. Portanto os As, que eram antes meramente os sinais que causavam os Bs, p
assaram na verdade a ser sinais para e sobre os Bs.
Devo, porém, ser mais específico. Suponhamos que A, K, A" etc. sejam os sinais
emiti
dos pelo regente interior que criam senti mentos vermelhos no córtex visual,
e B, B', B" sejam os sinais de retorno, para o regente interior, de que os senti
mentos vermelhos estão de fato ocorrendo. E suponhamos, para argumentar, que a fid
elidade
do círculo é de tal ordem que a vida da atividade criada pelo lampejo deluzvermelha
na retina seja de cerca deum décimo de segundo; em outras palavras, que o sinal
circulante dure cerca de um décimo de segundo antes de se perder como ruído.
Ora, se esse décimo de segundo corresponde ao presente subjetivo, isso significari
a que durante todo esse presente o regente interior estaria ocupado tanto em emi
tir
repetidos sinais para
200
#os sentimentos vermelhos como em receber repetidas confirmações sobre o que os
sina
is estavam fazendo. De acordo com a análise que acabamos de fazer, os sinais
emitidos seriam com isso transformados em sinais para sentimentos verdes. E, de
acordo com a crítica atualizada que sugeri antes - a de que "sentir uma sensação
é emitir uma instrução potencial e receber um sinal de resposta confirmativo dentro
do
âmbito do presente subjetivo" -, o sujeito estaria então sentindo a sensação
de luz vermelha.
Seria bom colocar alguma carne fenomenológica nesses ossos nus.
Para tornar o exemplo relativamente simples, fiz a suposição de que o sinal de
entra
da era breve - um relâmpago. Se o sinal de entrada durasse mais, a situação seria
decerto muito mais complicada devido à superposição que provavelmente ocorreria
entre
os insumos correntes e repetidos. Não obstante, podemos prever seguramente
que, quando o estímulo persiste, a atividade sensorial, em vez de desaparecer, con
tinua a ecoar e em geral chega a alguma forma de equilíbrio. Poderíamos esperar,
portanto, que com um estímulo mais duradouro, também a sensação subjetiva
geralmente se
estabilizasse.
Existe, porém, a possibilidade de que, para haver uma soma no círculo, a atividade
p
udesse não chegar a um equilíbrio. Poderíamos esperar circunstâncias nas quais
a atividade iria num crescendo, ou oscilaria entre altos e baixos. Não posso pensa
r em nenhum exemplo evidente da ocorrência desses efeitos com sensações visuais.
Mas com as sensações táteis há fenômenos que certamente sugerem isso. Lembramos
como, mesm
o quando o estímulo permanece constante, uma coceira pode aumentar de intensidade,

ou como uma dor pode latejar; se tocarmos os lábios levemente com uma cerda, senti
remos como a sensação perdura.3
A maioria dos estímulos no mundo real são relativamente breves, pois nossos corpos
e
stão se movendo continuamente e nossos órgãos dos sentidos estão explorando
diferentes
partes do ambiente. O resultado, presu mivel mente, é que aquilo que constitui o p
resente consciente é, em grande parte, o bruxuleio sensorial imediato de estímulos
que acabaram de passar - a atividade
201
#agonizante em círculos sensoriais reverberantes. Segue-se que a profundidade temp
oral e a riqueza subjetiva desse presente consciente deve ser determinada exatam
ente
pelo tempo durante o qual essa atividade sobrevive.
E se a fidelidade dos círculos, e portanto o tempo de vida da ativídade dependesse,
de alguma forma, do estado: fosse afetada, por exemplo, por modificações gerais
da atenção ou vigilância, ou por drogas que afetam a mente? Significaria que a
profund
idade do presente consciente poderia ser, em certo grau, variável - tal como
a profundidade do som de um piano pode ser aumentada ou diminuída pelos efeitos do
s pedais.
Falei antes dos efeitos das drogas chamadas de ampliadoras da consciência, e da de
scrição que Aldous HuxIey fez de sua experiência sob a influência da mescalina:
"As impressões visuais são muito intensificadas.( ... ) Como as flores [os livros
na
parede de meu escritório] brilhavam ( ... ) com cores mais vivas, uma
significação
mais profunda. ( ... )" Parece perfeitamente possível que aquilo que ele descreve
seja um estado mental em que a atividade sensorial contínua a reverberar além
dos limites normais e o presente consciente dura excepcionalmente. (Talvez seja
um estado mental bastante "normal" para pintores como Turner.)
Em contraste, as pessoas por vezes experimentam estados de depressão em que há
perda
de intensidade visual e as cores parecem pálidas e desbotadas, como se, nesse
caso, a vida da atividade sensorial tivesse sido reduzida e o presente conscient
e, encolhido.
O exemplo mais dramático do que acontece quando a atividade de reverberação é
sufocada p
ode ser o sono. Quando uma pessoa adormece, o presente consciente se reduz
efetivamente a nada, e o tempo subjetivo torna-se apenas o raso fluxo do tempo fís
i co.
Essas sugestões podem ser mostradas no diagrama seguinte.
202
#Mescalina:
O 1 2 3 4 5
1 2 3 2 3 4 3 4 5 4 5 6 5 6 7 6 7 8
4.... ....5.... ....6.... ....7.... ....8.... .... 9.... Normal:
2 3 3 4 4 5 5 6 6 7 7 8 .... 4.... ....5.... ....6.... .
...7.... ....8.... .... 9.... Depressdo:
3 4 5 6 7 8
4.... ....5.... ....6.... ....7.... ....8.... .... 9... Sono:
4.... ....5.... .... 6.... ...7.... ....8.... .... 9...
Tempo Subjetivo
JV .......V....... VI ....... VII ....... Vill ...... :.Ix.
Tempo Físico
NOTAS
1. T.S. Eliot (1936), "Burnt Norton", Four Quartets. Londres, Faber and Faber,
1946.
2. Daniel Dennett e Marcel Kinsboume, "Time and the Observer: The Where and When
of Consciousness in the Brain", Brain and Behavioral Sciences (no prelo).
,3. Ronald Melzack e Howard Eisenberg, "Skin Sensory Afterglows", Science
159 (1968), pp. 44547.
203
#A
#Capitulo
1 25 ]
HURRA!
Nas últimas paginas, as palavras "consciente" e "consciência" voltaram a entrar na
d
iscussão, pela primeira vez desde que comecei esta história evolucionária de
"o
que é ter sensações".
Minha afirmação é que a consciência realmente surgiu na evolução, com e quando
esses círculo
de retroinformação repetidos começaram a existir. Ou seja, surgiu como,
e quando, os sentimentos cerebrais se tornaram parte do processo que se volta pa
ra a frente, para a sua própria existência, e cria seu próprio presente ampliado,
fora do tempo físico.
Para os seres humanos (e para outros organismos que atingiram o mesmo nível
evolúcio
nário), "sentir uma sensação" é ser o autor, público e desfrutadorda
atividadereverberante
,
tudoisso numa só entidade.
Quem diz que a consciência surgiu dessa maneira? Como acabei de dizer, evidentemen
te sou eu. Mas por que alguém aceitaria isso? Acho que devem aceitar porque, se
aceitaram o programa para solução do problema mente-corpo que expus antes,
reconhece
rão que existem agora todos os ingredientes para a explicação da consciência.
Vamos passar em revista esse programa e ver o que foi feito.
205
#O ponto de partida foi a distinção fundamental entre sensação e percepção.
Argumentei, na p
rimeira parte deste livro, que os animais desenvolveram duas maneiras
separadas de representar o que acontece na superfície do corpo - sensações são
represent
ações carregadas de afeto daquilo "que está acontecendo comigo", e as percepções
são representações, neutras em relação ao afeto, "do que está acontecendo lá fora".
Essa dis
nção foi crucial, e continua sendo, para tudo o que se seguiu, pois
só insistindo nela eu pude apresentar meu ponto de vista, ou seja, que a
consciência
, definida como o que é sentido pela mente e está presente nela, tem na realidade
âmbito muito limitado. Em lugar de abranger toda a gama das funções mentais
superiores
(percepções, imagens, pensamentos, crenças etc.), a consciência é exclusivamente
o "ter sensações". E todas as outras atividades mentais (quer ocorram nos seres
huma
nos, em animais não-humanos e mesmo em máquinas) estão fora da consciência, não
são sentidas e representadas para a mente, a não ser e a menos que estejam
acompanha
das pelo que chamei de "lembretes" da sensação. Em suma, "sinto, logo existo"
(e, como disse Milan Kundera, `penso, logo existo' é a afirmação de um intelectual
que
subestima a dor de dentes"1.
Assim delimitado o problema, o verdadeiro trabalho deste livro - analisar "o que
é ter sensações" - poderia ser começado. No Capítulo 17 examinei as
características
destacadas das sensações. Elas dizem que: "caracteristicamente, as sensações (1)
pertenc
em ao sujeito, (2) estão ligadas a um determinado lugar em seu corpo, (3)
são específicas de modalidades, (4) são do tempo presente, emais, (5) são
autocaracteriz
antes sob todos esses aspectos." A tarefa, disse eu, era "explicar como essas
características das sensações podiam surgir como corolários de um mecanismo
plausível no cér
ebro humano".
O argumento seguinte era em parte lógico, em parte biológico. Raciocinei, partindo
d
e princípios primeiros, que essas características especiais das sensações são,
e só podem ser, as características de processos que têm muito em comum com as
atividad
es corporais. Segue-se que a atividade de sentir, que chamei de "sentição",
deve ter evoluído a partir de, e ser ainda hoje, uma atividade que se prolonga par
a fazer alguma coisa no lugar onde as sensações são sentidas. De fato, todas as
sensações distinguíveis nos seres humanos devem corresponder a uma forma
fisicamente
206
#diferente de atividade corporal (seja na superfície corporal real, ou num lugar s
ubstituto num modelo interior) - e sentir determinada sensação é emitir quaisquer
"instruções" que sejam necessárias para provocar a atividade adequada.
Tendo isso comobase, examinei a linhagem evolucionária da sensação. Mostrei como as
at
ividades sensoriais de hoje podiam ter sido desenvolvidas, passo a passo, desde
um início primitivo: começando com uma "contorção de aceitação ou rejeição" local,
em resposta a um estímulo na superfície corporal, mais tarde uma resposta sensorial
mediada pelos nervos que vão da superfície do corpo até o cérebro, e de volta à
superfície,
mais tarde ainda um encurtamento progressivo desse círculo pela fixação
da reação, não na superfície do corpo como tal, mas no nervo sensorial de entrada,
e fin
almente o aparecimento, nos animais superiores, de círculos de retroalimentação
sensorial e reverberante dentro do cérebro.
Cheguei, dessa forma, a uma hipótese específica sobre o mecanismo do cérebro
subjacent
e ao ter sensações (isto é, específica quanto às suas exigências lógicas gerais,
e não quanto à sua base fisiológica precisa). Esse mecanismo é fisiologicamente
plausível,
na medida em que não envolve nada mais neurofisiologicamente rebuscado
do que esses simples círculos de retroalimentação. E clinicamente plausível na
medida em
que é coerente com as evidências sobre os efeitos ou não-efeitos de danos
às trilhas sensoriais (membros fantasmas, perda de sensação depois de dano ao
córtex sen
sorial etc.). E, como dissemos ao término do último capítulo, também oferece
uma explicação plausível para as mudanças na profundidade da consciência. E, o que
é mais es
timulante, é evolucionariamente plausível.
Além disso, esse mecanismo tem - ou teve, em várias fases de sua história - quase
toda
s as características fenomenológicas exigidas. A propriedade das sensações,
de serem exclusivamente de quem as experimenta, seguem-se do fato de estarem ela
s entre as atividades que "eu", meu ego executivo, cria. A propriedade de implic
ar
o aqui e agora de um evento segue-se do fato de que essas atividades se projetam
para criar uma perturbação física na locação temporal-espacial indicada. A
propriedade
de ter qualidade específica à modalidade segue-se de serem as atividades associadas
a diferentes áreas da superfície corporal, cada qual com seu próprio "estilo
adverbial". A propriedade de existir pela duração
207
#do presente subjetivo segue-se da sobrevivência das atividades sensoriais durante
um tempo de vida não-desprezível, mesmo depois que o estímulo cessa. E finalmente,
a propriedade de ser autocaracterizante segue-se do fato de que essas atividades
fecham o círculo e se tornam instruções auto-referentes para si mesmas.
Hurra! Não obstante, estarão presentes agora "todos" os ingredientes para a
explicação d
a consciência? Ou apenas "quase todos"? Talvez a afirmação devalimitar-se
a "quase todos", atéque uma destacada questão tenha sido resolvida.
NOTA
1. Kundera, Immortality, p. 225.
208
#Capítulo
HURRAI.PELOS MODOS ANTIGOS
Como o capítulo anterior mostrou, posso afirmar que todos os ingredientes para a e
xplicação da consciência foram apresentados em algum momento da análise..- o que
equiC
valea dizerem algum momentonocurso da evolução. O quefalta mostrar é que,
finalmente,
eles estão reunidos num mesmo lugar e no mesmo momento.
Esse problema não é, no geral, sério. E certo que, ao traçar o quadro geral,
apresentei
de maneira fragmentada as várias propriedades das sensações -argumentando
para algumas delas em relação a uma fase de sua evolução, e para outras em relação
a uma fas
e posterior, revista. Não obstante, pude argumentar que a maioria dos
aspectosjá existentes teria permanecido.
Não há dificuldade, por exemplo, em ver como a "propriedade" e a "indicatividade"
da
s sensações foram preservadas pois é claro como, ao passar de sentimentos corporais
para sentimentos cerebrais, a atividade do círculo cerebral ainda teria conservado
suas propriedades indicativas originais. Pode, porém, haver dificuldades de ver
como isso trabalharia para o "caráter qualitativo", igualmente essencial, das sens
ações - pois não é
209
#claro, de modo algum, como a atividade do círculo cerebral ainda conservaria suas
propriedades originais específicas às modalidades.
Ao contar a história da qualidade modal antes, neste livro, eu disse que, quando a
s contorções
amebianas primitivas de aceitação ou rejeição evoluíram para tornar-se
areas receptoras sensoriais, esses sentimentos - e os sinais emitidos que lhes d
eram origem -se teriam distinguido pelo seu "estilo adverbial". Mostrei, em part
icular,
que a modalidadedos sentimentos teria sido determinada pela estrutura do epitélio
ao qual eram dirigidos; e a qualidade submodal determinada pela natureza
dafunçãoafe
tivaque
ali desempenhavam. De modo que, no caso porexemplo de sentir um cheiro suave no
nariz, a qualidade olfativa teria resultado do fato de que os sentimentos envolv
eram
a mucosa nasal, e a qualidade suave do fato de terem envolvido um tipo específico
de afeto positivo.
O problema é ver como esse processo continuou depois que as respostas sensoriais d
eixaram de projetar-se para a superfície corporal real e, em lugar disso, passaram

a ter como alvo o corpo substituto no córtex sensorial. Pois temos de indagar por
que qualquer uma das considerações estruturais ou funcionais originais que
determina
ram
o estilo adverbial dos sentimentos corporais ainda continuariam sendo relevantes
para os cerebrais.
Presumivelmente, a forma dos sentimentos que ocorrem no córtex já não pode ser
determi
nada de maneira relevante pela estrutura do alvo, já que as diferentes regiões
do córtex sensorial não têm semelhança estrutural com os epitélios sensoriais de
onde provém
o seu insumo, e são, na verdade, todas basicamente parecidas. Não há
razão para que, por exemplo, um sentimento que ocorra no córtex visual ainda deva
se
r forçado a ter o estilo visual de um sentimento que ocorre na retina, ou um
sentimento que ocorra no córtex olfativo a ter o estilo olfativo de um sentimento
que ocorra na mucosa nasal. Além disso, como esses sentimentos cerebrais há muito
deixaram de ter qualquer coisa que ver diretamente com a mudança no ambiente do es
tímulo, não há razão também pela qual a forma dos sentimentos ainda deva ser
determinada
de maneira relevante por qualquer função afetiva.
210
#Realmente, poderíamos dizer que, quando os sentimentos cerebrais deixaram de come
rciar com a realidade corporal, toda a idéia de "estilo adverbial" tornou-se total
mente
redundante, e essa hipótese não teria sido sequer considerada, se não conhecêssemos
a hi
stória. E nesse caso, corremos o perigo de terminar (como todos que tentaram
isso) com uma teoria das sensações que deixou de ser uma teoria da qualidade
sensori
al. Para evitar isso, terei de acrescentar um capítulo final à história.
"Toda a idéia de [terem os sentimentos cerebrais um] 'estilo adverbial' tornou-se
totalmente redundante ( ... ) se não conhecêssemos a história." Mas a questão
é que sabemos da história; ou, o que é mais pertinente, a questão é que os
sentimentos cer
ebrais têm uma história. Devemos ser capazes, portanto, de recorrer ao
nosso velho e querido amigo, o conservantismo evolucionário.
Farei uma pequena digressão (e a justificação logo se tornará evidente).
Em The Evolution of Designsi o arquiteto Philip Steadman chama a atenção para as
ten
dências conservadoras evidenciadas pelos artesãos humanos que persistem em
incorpora
r
elementos de projetos passados em seu trabalho contemporâneo, muito depois de o pr
opósito original desses elementos ter sido superado ou mesmo totalmente esquecido.

Ele cita o exemplo de como, até muito recentemente, os ceramistas de Chipre "ainda
acrescentavam duas bolotas de argila a um jarro recém-terminado, sem serem capaze
s
de oferecer qualquer explicação, a não ser que essa era a forma tradicional de
decoração".
A explicação, ao que se descobriu, é proporcionada "por uma comparação
com vasos de até 2.50O anos, encontrados pelos arqueólogos na mesma área. Esses
vasos
têm a forma de figuras femininas bem modeladas. As duas saliências são os seios
das mulheres."
Características do desenho que foram outrora de importância prática, mas que se
tornar
am principal, ou talvez exclusivamente, decorativas - e não mais sujeitas à
seleção por motivos utilitários - recebem o nome de "esquenomorfos" (neologismo
cunhad
o a partir de dois vocábulos gregos que significam 'utensilio'e'formas'). Há
muitos exemplos no vestuário (por exemplo, botões nos punhos dos paletós
masculinos),
na engenharia (por exemplo, os estribos nos modelos de carros antigos) e, em
maior
211
#escala, na arquitetura. Nos templos gregos clássicos (e seus descendentes
atéhoje),
muitas da figuras decorativas dos edifícios de pedra remontam às características
estruturais das construções de madeira que os antecederam: o friso dórico
denticulado,
por exemplo, vem originalmente do desenho feito pelas extremidades expostas
das vigas de madeira que sustentavam o telhado, e os primeiros templos de pedra
tinham até mesmo reproduções em pedra dos pinos da madeira.
Os artesãos tendem a copiarmodelosjá existentes. E as razões disso são várias.
Entre elas
está a de que copiar é fácil: a seleção e planejamento que resultaram no
desenvolvimento da versão anterior tornam-se inerentes à estrutura, e a cópia pode
ser
feita sem se ter de realizar novamente esse trabalho. Outra razão é que copiar
é seguro: a versão antiga fez o que dela era exigido, e a cópia deve desempenhar a
mes
ma função pelo menos tão bem quanto o original. E, ainda, a cópia cria objetos
que estão de acordo com o que as pessoas esperam: a versão anterior fixou o padrão
de
como "devia ser" o desenho, e a cópia acaba parecendo confortavelmente familiar.
É provável que este último fator tenha sido especialmente poderoso quando, como
deve t
er acontecido com freqüência, as versões nova e velha coexistiram no mesmo
ambiente e houve uma necessidade de evitar um choque de estilos (a construção,
digam
os, de um templo de pedra ao lado de um templo de madeira).
O que se aplica à evolução culturaf aplica-se também à evolução biológica. Na
geração de des
s biológicos, também a cópia de um padrão estabelecido é fácil:
não exige trabalho de reprojetar (e basicamente tudo pode ficar a cargo dos genes
existentes). Mais uma vez, é seguro: garante que a adequação biológica da
descendência
será pelo menos tão boa quanto a dos progenitores. E está, ainda uma vez, de acordo
co
m os cânones preexistentes: reduz o risco de que uma parte do organismo seja
modernizada de uma forma que se choca com partes que ainda não mudaram.
Devemos esperar, portanto, que os organismos vivos, mesmo que tenham desenvolvid
o novas maneiras de fazer as coisas, se terão apegado a alguns dos padrões
irrelevan
tes
do passado. Em outras palavras, devemos esperar encontrar - e de fato
212
#encontramos - "esquenomorfos" biológicos, "formas de utensílios" biológicas, que
pers
istem seja como decoração ou por vezes apenas como bagagem inútil.
A viagem das tartarugas pelo Atlântico sul constitui um desses exemplos. Nos seres
humanos há exemplos anatômicos no apêndice vermiforme, no dente de siso, nas
vértebras
fundidas que formam um resquício de cauda; e há exemplos psicológicos em coisas
estran
has como a tendência que nosso cabelo tem de se eriçar quando temos medo, nossa
inclinação pelo cheiro de almíscar, nossa necessidade de dormir oito horas por
noite,
e o ciclo reprodutor lunar das mulheres.
Não faria sentido, então, argumentar que o persistente caráter qualitativo dos
sentime
ntos cerebrais - "sentimentos que deixaram de comerciar com a realidade corporal
"
- também seja uma característica "esquenomórfica"?
Vejamos a analogia seguinte com a evolução cultural. Há hoje uma grande variedade
de a
lfabetos manuscritos em uso: romano, grego, hebraico, chinês, e assim por diante.
Vamos supor (pela analogia, mesmo que não seja verdade) que o estilo genérico de
cad
a alfabeto foi determinado no passado pelo meio físico em que era feita a escrita:
o estilo romano era cinzelado na pedra, o grego era arranhado com um estilete em
placas de cera, o hebraico era escrito com uma pena nos papiros e o chinês, pinta
do
com um pincel num papel. Vamos supor, além disso (mesmo que também não seja
verdade) q
ue no passado a forma de cada letra era em parte determinada pelos movimentos
da boca ao fazer o som correspondente. Na escrita romana, por exemplo, as letras
b e p tinham a sua parte curva voltada para a frente porque correspondiam a son
s
que envolviam um movimento explosivo dos lábios (em contraste, digamos, com g e co
m d).
Hoje não empregamos, é claro, os mesmos meios para escrever, e já não falamos as
letras
como as escrevemos; de fato, hoje deixamos totalmente de lado a escrita manuscri
ta,
em muitos contextos e recorremos à máquina de escrever ou a impressora. Não
obstante,
permanecemos fiéis a ambas as características dos alfabetos ancestrais (até
mesmo na tela do computador) porque a invenção de um novo estilo de escrita teria
si
do difícil, arriscada e discordante - e qualquer mudança teria simplesmente
encontra
do
a oposição da inércia cultural.
213
#O paralelo com sentimentos é, espero, óbvio. Os sentimentos continuaram a manter
ta
nto os componentes estruturais como funcionais de seu estilo adverbial pelas
mesmas três razões que funcionam na biologia. Assim, os sentimentos no córtex
visual,
por exemplo, ainda conservam seu estilo visual (como se ainda estivessem emprega
ndo
o meio retiniano) e, além disso, os sentimentos em resposta à luz vermelha ainda
con
servam seu estilo vermelho (como se ainda estivessem produzindo uma reação
defensiva

ao estímulo), porque qualquermudança teria encontrado a oposição da inércia


biológica.
Duas perguntas se impõem, se isso estiver certo. Primeira: deixaram os sentimentos
de estar sujeitos a qualquer tipo de seleção por motivos utilitários, de modo
que seu estilo se tornou puramente "decorativo"? Segunda: permaneceu o estilo do
s sentimentos, na ausência de seleção, na verdade totalmente inalterado, disso
resulta
ndo
que os estilos dos sentimentos humanos ainda se assemelham bastante aos de nosso
s parentes distantes, como os macacos ou até mesmo as rãs ou minhocas?
Quanto à primeira pergunta, temos de lembrar o papel representativo que os sentime
ntos sempre tiveram. Desde os primeiros tempos, a resposta do organismo ao estímul
o
proporcionou-lhe uma representação mental do estímulo, isto é, uma representação em
nível de
o que está acontecendo comigo". E, como já vimos, os animais avançados,
tal como os primitivos, ainda dependem dessas representações sensoriais de muitas
ma
neiras - não só para as finalidades básicas de avaliar se o que está acontecendo
na superfície do corpo é bom ou mau, mas também para as finalidades secundárias em
relação à
onfirmação da percepção.
Podemos estar certos, portanto, de que teria continuado a haver seleção para
assegur
ar que as diferenças entre os sentimentos fossem mantidas. Por exemplo, para
que as respostas à luz na retina continuem a representar o estímulo como luz, e não
to
que, os sentimentos visuais terão de permanecer claramente distintos dos sentiment
os
táteis. Da mesma forma, para que as respostas à luzvermelha continuassem a
represent
ar o estímulo comovermelho, e não como azul, os sentimentos vermelhos terão de
permanecer claramente distintos dos sentimentos azuis.
214
#Dado, porém, que essa distinção poderia ter sido mantida apenas pela tradição, por
que te
ria sido necessário esse mecanismo isolante? A razão é que, quando as tradições
são transmitidas simplesmente pela cópia, sem uma constante pressão da seleção,
podem semp
re sofrer um "desvio genético": em outras palavras, pequenos erros de cópia
acumulam-se, até que na versão final pouca coisa reste do original.
Steadinan cita um exemplo notável desse desvio, registrado na história das moedas
ro
mano-britânicas. Havia originalmente uma moeda de ouro puro com a cabeça de Filipe
da Macedônia coroada de louros. Mas, ao serem feitas cópias locais por artesãos
britânic
os (um tanto descuidados), "O rosto do imperador logo desapareceu na cópia,
deixando apenas a coroa de louros. Esta sofre então todo tipo de transformações
carica
tas, com um tratamento grosseiro em retângulos e ovais, que se transformam
em espigas de trigo ou cevada; ao mesmo tempo, a orelha do imperador, no centro,
transforma-se em luas crescentes simétricas, que por sua vez atraem estrelas para

combinar com ela." Esse caso talvez seja extremo. Mas até mesmo o friso dórico
dista
nciou-se muito de uma fileira de vigas de madeira, e as bolotas nos vasos ciprio
tas
não se parecem muito com seios.
Portanto, esse tipo de desvio pode ter ocorrido - na verdade, supomos que provav
elmente tenha ocorrido - com os sentimentos cerebrais. No caso destes, porém, o de
svio
terá sido provocado, pelo menos até certo grau, pela necessidade de manter
diferenças
entre as representações sensoriais. A seleção terá feito com que o estilo dos
sentimentos visuais, por exemplo, não pudesse tornar-se nunca muito parecido com o
dos sentimentos táteis, ou o estilo dos sentimentos vermelhos com o dos sentiment
os
azuis.
O mesmo se aplica, é claro, à escrita. No decorrer dosséculos houve, de fato, um
desvi
o considerável da forma exata pela qual os alfabetos são escritos. Mas também
as letras tiveram sempre um papel representativo, ou seja, o de traduzir os dife
rentes sons da fala. E houve portanto, dentro de cada alfabeto, uma pressão seleti
va
contínua para manter diferentes as letras individuais impedindo que os bês, por
exem
plo, se desviassem na direção de uma se ,melhança muito grande com os dês.
Se houve também uma seleção para isolar os diferentes alfabetos como tais, não é
tão claro.
Mas, para tornar ainda mais
215
#forte a analogia com os sentimentos, vamos imaginar o seguinte roteiro. Suponha
mos que desde o começo os diferentes alfabetos, além de serem adaptados aos
diferent
es
materiais da escrita, fossem empregados exclusivamente para representar diferent
es tipos de assuntos: todos os textos em letras romanas tratariam de óptica, todos

em letras gregas se ocupariam de acústica, os textos em hebraico seriam de mecânica


e os em chinês, de gastronomia. Supondo-se então que as pessoas se teriam sempre
beneficiado com a possibilidade de dizer à primeira vista aquilo de que tratava o
texto, teria havido realmente uma pressão constante para que se mantivessem as
diferenças genéricas - evitando que qualquer série de letras do alfabeto romano
viesse
m a parecer-se demais com letras gregas.
Isso tem relação direta com a segunda questão das proporções em que os sentimentos
cerebra
is dos seres humanos continuaram a assemelhar-se aos sentimentos de nossos
parentes remotos. Se houve, de fato, um desvio no estilo das respostas sensoriai
s, mas limitado por essa necessidade de manter a separação genérica original,
devemos
esperar alguma semelhança entre os sentimentos de espécies aparentadas, mas de modo
algum uma sobreposição total. Assim como minha escrita e a de Cícero são
autenticamente
"romanas", os sentimentos visuais dos seres humanos, dos macacos e das rãs presumi
velmente ainda pertencem à tradição "visual" autêntica. Mesmo assim, tal como a
escrita gótico-romana se desviou da escrita itálico-romana, os sentimentos visuais
d
as diferentes espécies podem, de fato, ter hoje seus subestilos próprios,
peculiares
.
É ASSIM QUE UMA RÃ VÊ
E Assim QUE Um RATO VÊ
E assim que um macaco vê
É assim que o honwm vê
Fígura 12
216
#Segue-se que se um ser humano tivesse demandar instruções para os sentimentos
visua
is de um macaco, e não de um ser humano, e portanto -já que toda a questão se
resume nisto tivesse de experiMentaro que um macaco experimenta quando, por exem
plo, vê vermelho, então o ser humano provavelmente reconheceria o que lhe está
acontec
endo
como uma sensação "visual" e até mesmo "vermelha"; mas bem poderia ser uma sensação
vermel
ha diferente de qualquer coisa que ele tivesse sentido antes.
Mas não são apenas as comparações entre espécies que têm interesse. Pois quem
sabese todosos
membros da espéciehumana têm sentimentos com formas idênticas? Assim
como há pequenas diferenças entre a caligrafia das pessoas que aprenderam na mesma
s
ala de aula, assim é muito possível que existam pequenas diferenças entre os
sentimentos de seres humanos que pertencem à mesma época, raça e cultura (o que
poderi
a, algum dia, abrir todo um novo campo de "grafologia" sensoriafl).
NOTA
1. PhilipSteadman,llzeEvolutío?zofDcsigis.Cambridge,CambridgeUniversity Press, 197
9, cap. 7.
217
#I
#A MENTE FEITA CARNE
A primeira tarefa de uma teoria da consciência é satisfazer aos critérios
científicos e
lógicos básicos que estamos disA
cutindo. A teoria deve descrever um processo físico no cérebro, cujas propriedades,
no nível de descrição adequado, correspondem às propriedades das sensações
experimentadas.
com as idéias acrescentadas'no último capítulo, acredito que temos finalmente todos
os
ingredientes para isso.
Nãoobstante, issonãoé tudo o queuma teoria da consciencia deve fazer. Impossível
negar q
ue, para que a teoria vença a argumentação pública, precisa também atender
a outros critérios retóricos ou dialéticos. Em particular, ela deve ser sensível a
toda
uma série de questões suplementares que, em séculos de especulação, passaram
para o centro das discussões, tanto leigas como seculares, sobre a maneira pela qu
al a consciência se situa no mundo.
Entre elas estão as questões perenes sobre o que podemos e não podemos conhecer em
rel
ação às outras mentes e aos outros cérebros... questões sobre se cães ou
computadores
ou cadeiras de braços são conscientes, e como suas respectivas experiências se
219
#comparam com a nossa... questões do gênero "Como é ser um morcego?"
Essas perguntas podem ser boas ou não: iremos ver. Boas ou más, porém, a teoria não
pode
ficar indiferente a elas. No mínimo, teria de "responder" de maneira satisfatóría
às perguntas em relação às quais as pessoas se sentem - certas ou erradas - com
direito
a uma satisfação. Além disso, a teoria deve ser persuasiva, pois são questões
em relação as quais a maioria das pessoasjá tem opiniões fortes - talvez mesmo
inabaláveis
- ainda que sem a bênção de qualquer outra teoria.
Não estamos dizendo que essas questões podem, ou devem, ser decididas pelo voto
demo
crático (e ainda menos pelo Tu assim a refuto", do dr.johnson). Estamos, porém,
dizendo quenão há por que iniciarmos uma longa batalha com preconceitos universais.
Quando a pergunta é, por exemplo, "O cão é consciente?", então podemos reconhecer
que a unica resposta que pode ser sustentada ante o público é "Sim". Mas, quando a
m
esma pergunta é feita em relação a uma cadeira de braços, a única resposta será
"Não". Em suma, a teoria deve ser faladora, e deve falar com sentido.
Devemos aplicar agora algumas dessas perguntas à minha teoria - e com isso provar,
espero, não só que ela é excepcionalmente faladora, mas também que fala com um
bom senso excepcional.
ATEQUE PONTO O ALC,NCE DA CONSCIENCIA SE ESTENDE A NATUREZA?
Acredito que os leitores deste livro aceitam a premissa deque partimos no Capítulo
3: que a consciência tem limites temporais e espaciais no universo - que houve
uma época na história em que a consciência não existia em parte alguma, e que ainda
hoje
ela não existe em toda parte. (A idéia alternativa, de que a consciência
sempre foi inerente a todas as partículas de matéria, por vezes chamada de
"pampsiqu
ismo", é uma dessas idéias superficialmente atraentes que caem por terra tão
logo têm de se submeter a qualquer trabalho de explicação.)
220
#Uma coisa, porém, é aceitar que deve haver realmente limites, e outra fazer
sugestões
de princípio sobre quais são esses limites: sugerir por que, quando e onde
a consciencia surgiu pela primeira vez, eaté ondee em que contextos a infecçãose
espal
hou. Sob esse aspecto, porém, esta teoria está muito bem colocada, já que foi
sistematicamente desenvolvida como uma teoria do aparecimento da consciência na ev
olução, desde um começo nãoconsciente.
Em primeiro lugar, podemos concluir que a consciência está rigorosamente ligada a
co
rpos. Ser consciente é, essencialmente, ter sensações do tipo "o que está
acontecendo
comigo": em outras palavras, daquilo que está acontecendo no limite entre o eu e o
não-eu. Sem um corpo não haveria, naturalmente, esse limite e portanto nada de
que o sujeito estivesse consciente. Isso significa, por exemplo, que podemos eli
minar totalmente a possibilidade de consciência em entidades incorpóreas como (o
caso reconhecidamente improvável dos) campos de força, números, ondas sonoras,
arco-íris
, universidades, música pop, redes telefônicas, ou almas ou fantasmas imateriais.
Podemos eliminar as entidades materiais que, embora sejam limitadas, não têm
limites
intrínsecos, como as nuvens de poeira interestelar, lamaçais ou tempestades
de neve, e também entidades coletivas, constituídas de indivíduos dotados de
limites s
eparados, como os pares de gêmeos, os enxames de abelhas, ou a espécie humana
como um todo. E podemos igualmente eliminar o Universo na sua totalidade, se é que
isso teria algum valor, ou Deus na Sua -já que nada disso tem um limite no qual
alguma coisa possa acontecer (o que, na Sua infinitude, poderia Deus sentir que
Lhe está acontecendo?).
Segundo, podemos concluir que a consciência está ligada aos corpos auto-
lnteressados
. As sensações são atividades sensoriais que (pelo menos em suas origens) têm
de haver-se com o que e "bom ou mau". Sem o auto-interesse, não pode haver essa av
aliação de coisa alguma como boa ou má, e portanto nenhuma possibilidade de que
uma resposta ao estímulo tenha essa dimensão afetiva. Isso significa que podemos
eli
minar também a possibilidade de consciência em todas essas entidades corporais
que têm limites epodem mesmo reagir aoque acontece nesses limites, mas basicamente
não se preocupam com oquelhes acontece. Podemos eliminaros icebergsou asbolas
deborracha ou os relógios debolso ou a lua. De fato, no mundo natural não feito
pelo
homem,
221
#podemos eliminar tudo exceto as entidades vivas, já que nenhuma outra tem um inte
resse intrínseco em sua própria sobrevivência, e para nenhuma outra o estímulo
tem importância.
Terceiro, podemos concluir que a consciência está ligada a um grupo muito especial
d
e entidades vivas, ou seja, os animais que evoluíram além da fase de uma resposta
sensorial simples até a fase crítica em que a reação se tornou parte de um círculo
reativa
dor dotado de um teinpo devida significativo. As sensações são atividades
intencionais que persistem durante um momento ampliado no tempo subjetivo. Sem q
ue a atividade exista dessa maneira, o presente consciente só podia nascer morto,
e portanto o organismo não poderia ter maior conhecimento consciente do quelhe está
acontecendo-ou de como reage-do que nós temos quando dormimos. Isso significa
que podemos afastar a possibilidade de consciência em todas esses organismos que a
inda estão na fase em que a reação sensorial continua sendo uma atividade corporal
que ocorre na supefície do corpo, e não numa localização substi tuta no cérebro -e,
portan
to, na qual o círculo é demasiado longo e com demasiado ruído para manter
uma atividade reverberante. Podemos afastar as amebas, vermes, pulgas...
Antes, neste livro, apostei nisso. Ao examinar o caso das minhocas que reagem à lu
z, no Capítulo 5, escrevi: "Mas pode-se pelo menos argumentar que [a maneira pela
qual o verme reage ao estímulo] deve ser considerada como uma sensação visual...
desde
que deixemos de lado quaisquer preocupações que possamos ter sobre se os vermes
são conscientes." Mas agora, tendo chegado ao ponto em que a preocupação com a
consciênc
ia dos vermes é exatamente onde estamos, podemos reconhecer que, mesmo que
tenha sentido dizer que o verme nãogosta do queestá acontecendo, provavelmente não
há ne
nhum sentido em falar dele como se sentisse a sensação no presente consciente.
De fato, provavelmente não faz sentido falar de qualquer animal que não tenha uma
área
de projeção sensorial nocérebro comocapaz disso: pois o que se faz necessário
é um breve círculo de alta fidelidade, do tipo que provavelmente só ocorrenocórtex
cereb
ral deanimais como nós.
Sabemos muito pouco, hoje, sobre a anatomia dos sistemas nervosos das outras espéc
ies (e mesmo da nossa) para dizer com certeza quais os outros animais que têm
cérebr
os
semelhantes, sob esse aspecto, ao nosso. Não há razão para acreditarmos que só os
222
#seres humanos tenham chegado ao necessário estado de desenvolvimento do cérebro.
Ma
s, se formos cautelosos, devemos provavelmente pensar nele como limitado aos
vertebrados superiores, como os mamíferos e aves, embora não necessariamente todos
e
les.
Uma coisa da qual podemos ter certeza é que sempre e toda vez que no reino animal
a consciência realmente surgiu, não terá sido um processo gradativo. Os filósofos
liberais, opostos à idéia de quaisquer descontinuidades maiores na natureza, por
vez
es presumiram que a consciência teria surgido lentamente, aos poucos, com alguns
animais sendo "um pouquinho conscientes", outros mais. Isso, porém, de acordo com
a teoria, é algo que podemos eliminar definitivamente. Pois a consciência não teria
surgido se a atividade no círculo de retroalimentação começasse como uma atividade
de re
verberação; e os círculos retroalimentadores têm, tipicamente, todas as
propriedades
do tudo-ou-nada
- ou apóiam a atividade reverberadora com um tempo de vida significativo, ou então
a
atividade desaparece imediatamente. Portanto, podemos supor que, quando o círculo

sensorial se tornou mais curto no curso da evolução e sua fidelidade aumentou, deve
ter havido um momento em que a consciência surgiu muito subitamente - tal como
há um momento que nós mesmos atravessamos ao passar do sono para a vigília.
As respostas sensoriais "A.c." -"antes da consciência" -não tinham existência
temporal
. Mas então, como diz um outro livro, num ponto crucial da história, "A Palavra
se fez carne", sendo evidente que deve ter havido um Natal comparável na evolução
da
sentição.
O QUE DIZ ISSO SOBRE A VIDA EXTRATERRESTRE OU SOBRE A VIDA
ARTIFICIAL NA TERRA - SOBRE A POSSIBILIDADE DE MÁQUINAS FEITAS PELO HOMEM SEREM CO
NSCIENTES?
Nada do que foi dito em relação à teoria, e nada do quequero dizer, limitaria a
consciên
cia ávida na Terra. Se organismos vivos evoluíram de fato num ou noutro do
meio bilhão de planetas da
223
#nossa galáxia que têm um ambiente adequado para manter a química orgânica baseada
no ca
rbono, então há toda a probabilidade de que em algum deles existam criaturas
que sejam hoje conscientes, pelas mesmas razões que nós somos.
Nem o que foi dito até agora limita a consciência à vida baseada nos átomos de
carbono,
e não nos átomos de silício ou qualquer outra coisa. De acordo com a teoria,
as propriedades na linguagem dos programadores de computador -do software, e não d
o hardware, é que são cruciais: isto é, as propriedades lógicas dos circuitos
reverberad
ores,
e não o fato de serem feitas de células nervosas ou de terem as células nervosas
uma d
eterminada estrutura química. Um organismo vivo baseado no silício, por exemplo,
bem poderia ter-se desenvolvido para adquirir um cérebro que contivesse circuitos
exatamente com as mesmas propriedades lógicas dos circuitos que conhecemos. E,
de acordo com a teoria, também esse organismo seria então capaz de sentir sensações
e vi
ver no presente consciente.
Portanto, se organismos vivos realmente se desenvolveram num dos muitos planetas
que poderiam manter outro tipo de química orgânica, é muito provável que existam
criaturas conscientes também nesses planetas.
Mas se criaturas conscientes feitas de material biológico diferente pudessem viver
num planeta muito distante, talvez lhes fosse possível viver também na Terra.
E, se não evoluíram realmente na Terra, talvez pudessem, em princípio, ser
manufaturad
as na Terra pelos seres humanos. É claro que nenhum engenheiro humano desejaria
(ou seria capaz de) trabalhar da maneira pela qual a natureza trabalha, com teci
dos vivos como carne, osso, células nervosas, pele. Mas, considerando-se que o imp
ortante
é o software e não o hardware, talvez pudesse ser montada uma boa versão de um robô
com
componentes mais manuseáveis, como fios de cobre, retificadores, semicondutores,
fotodiodos, membranas plásticas e assim por diante. Em outras palavras, os engenhe
iros humanos poderiam manufaturar robôs que com seus cérebros artificiais,
sentiment
os
artificiais e atividade sensorial reverberativa artificial fossem artificialment
e conscientes - o que equivale a dizer, na verdade, apenas conscientes.
Isso talvez fosse possível, em princípio; há, porém, razões para pensarmos que na
prática se
ria absolutamente impossível. Não estou falando do caso trivial de um
engenheiro que reproduz,
224
#as cegas, cada detalhe, cada partícula e sinapse do cérebro de um animal
consciente
, fazendo uma cópia carbono (!) que por definição teria todas as propriedades
funcionais do animal. Falo do caso de fazer um robô consciente a partir do nada, à
b
ase de princípios teóricos de elaboração de projetos, sabendo que tipo de
exigências
biológicas e lógicas teria de ser atendido. E a razão pela qual isso quase que
certame
nte não poderia ser feito na prática é que não haveria como recriar as ti-adições
históricas naturais que deram à atívidade que ocorre nos cérebros naturais a
qualidade m
odal peculiar da consciência.
É certo que poderia ser criado um robô que tivesse alguma coisa equivalente a um
"co
rpo" biológico, com alguma coisa equivalente a Interesses" biológicos, de modo
a ter no mínimo a possibilidade de representar - e mesmo de preocupar-se com "o qu
e está acontecendo
comigo". O robô poderia também, presumivelmente, ser criado
para ter respostas sensoriais, e essas respostas poderiam terminar numa área de pr
ojeção sensorial no cérebro e tornar-se parte de um circuito fechado, de modo que
o robô teria a possibilidade de ser o autor, o público e, sim, até mesmo o
beneficiário
da resultante atividade de reverberação. Mas tudo isso não lhe daria a consciência
sensorial semelhante à humana, a menos que a atividade nos círculos também tivesse
o d
evido caráter adverbial. E a inclusão desse caráter adverbial no projeto seria
extremamente difícil porque a forma da ocorrência natural dos sentimentos humanos
é, c
omo já vimos, em grande parte um acidente histórico -uma característica
"esquenomórfica"
- e não projetada.
Toda a questão das características "esquenomórficas" e que já não têm nenhum
"sentido no pro
jeto". O engenheiro que se dispusesse a fazer um robô consciente poderia,
é claro, acertar por simplessorte; mas isso seria tão provável quanto se, ao
tentarfaz
er um pote de barro bem projetado, ele acabasse fazendo um vaso com bolotas,
ou ao tentar fazer uma máquina de escrever acabasse fazendo uma máquina que
escreves
se na caligrafia romana. Realmente, a única forma - exceto a cópia carbono -
de redescobrir as características adverbiais cruciais dos sentimentos poderia ser
estimular todo o processo de evolução natural que os fez surgir em animais como
nós. Mas sempre soubemos que a consciencia pode ser criada pela evolução natural. E
a
possibilidade de fazer issodesdeuma prancheta de desenho que está sendo questionad
a.
225
#Não se trata de uma objeção superficial, ad hoc, à idéia da consciência
artificial. É uma r
para dizer que nenhum processo de projeção racional, trabalhando
a partir dos princípios básicos, jamais teria probabilidade de êxito. O engenheiro
est
aria enfrentando aqui alguma coisa como um projeto equivalente ao teorema de
Gõdel na matemática. Esse teorema diz que qualquer sistema de aritmética deve ter
prop
riedades que não podem ser deduzidas dos axiomas; haverá enunciados aritméticos,
os chamados enunciados de Gõdel, cuja veracidade ou falsidade não podem ser
demonstr
adas. Por analogia (não muito rigorosa, é claro), qualquer sistema biológico
que ocorra naturalmente terá propriedades que não podem ser deduzidas das
considerações
de suas funções contemporâneas: haverá fatos reais sobre ele que não podem
ser captados por nenhuma tentativa, baseada num projeto, de recriá-lo.
Esses enunciados biológicos de Gõdel podem, muitas vezes, não ter significação.
Mas, no ca
so da consciência, serão decisivos, estabelecendo a diferença entre um
robô consciente e um robô a cuja consciência falta essencialmente uma qualidade
consci
ente -ou seja, simplesmente inconsciente.
Em RELAÇÃO AOS OUTROS ANIMAIS qUE SAO CONSCIENTES, QUE TIPO DE
EVIDENcia4
PODEMOS ESPERAR OBTER?
A única coisa que não está sendo questionada é que, mesmo que a consciência não
tenha probab
ilidade de ocorrer em robôs feitos pelo homem, ela certamente ocorre
em todos os outros seres humanos e provavelmente num bom número de animais não-
human
os, tanto na Terra como possivelmente em outros lugares.
Entre os animais na Terra, só os seres humanos, é claro, serão provavelmente
capazes d
e afirmar sua consciência em público, já que o único meio óbvio que temos de
nos comunicar com outros sobre a consciência é a linguagem. É uma realidade que não
pode
mos manter uma conversa sobre sentimentos conscientes o tipo de conversa
que tive com Lily - com um chimpanzé, um cachorro ou uma pega (provavelmente não
com
um extraterrestre, a menos que falasse uma língua que pudéssemos compreender).
Mas podemos, e fazemos isso de tempos em tempos, manter essas
226
#conversas com vários outros seres humanos. Realmente podemos, como fiz no Capítulo
17, ir além e pôr sobre a mesa os resultados de observações introspectivas sobre
as características especiais das sensações - sua indicatividade, qualidade modal,
exis
tência e assim por diante - e com isso buscar o assentimento de outros seres
humanos: "Sim, eu compreendo o que você está dizendo, e sim, o mesmo acontece
comigo
." Supondo que consigamos essa concordância, temos todas as evidências que podemos
desejar de que outros seres humanos são, de fato, membros do mesmo clube conscient
e a que pertencemos.
É lamentável o fato de não podermos fazer isso com outras espécies. Mas avida é
assim, e i
mpõe limites contingenciais àquilo que podemos comprovar -sem que esses
limites sejam necessariamente sobre o que está em causa. O fato, por exemplo, de q
ue não podemos ver o outro lado da Lua de onde estamos não significa que ele não
exista; da mesma forma, o fato de que não podemos confirmar, pela conversa, que os
cães são conscientes não significa que não o sejam.
Voltemos, porém, aos robôs feitos pelos homens. No caso dos robôs, tem havido uma
trad
ição de ceticismo filosófico que começa formulando o problema ao inverso: em
vez de perguntar como podemos saber se um robô é consciente (se o for), pergunta
com
o podemos saber que não é consciente (se não o for). Partindo das discussões
sobre o chamado Teste de Turing, sugeriu-se, com toda a seriedade, que se por ex
emplo um robô inconsciente fosse programado para responder a perguntas sobre a con
sciência,
tal como um ser humano faz, poderíamos ser enganosamente levadosa pensar que ele e
ra de fato consciente.1 Esse robô inconsciente, quando convidado a responder às
nossas observações sobre sensações no Capítulo 17, também diria: "Sim, eu - o robô
compreend
aquilo de que você está falando, e sim, o mesmo acontece comigo." Podia-se
afirmar portanto que, para ser coerente com o que acabei de dizer sobre os teste
s para a consciência em outros organismos vivos, teríamos de engolir nossas
restrições
e, pelo menos provisoriamente, receber tambm os robôs no clube da consciência.
Isso, porém, é pedir muito da coerência. Poderíamos perfeitamente - sem sermos
incoerent
es, mas apenas sensatos - pretender que não podemos esperar, de um teste
adequado a outro organismo vivo, que produza resultados confiáveis se aplicado a
227
#uma entidade que é operada, ou projetada, por outro ser consciente. O boneco do v
entríloquo, por exemplo, também poderia passar no teste de conversação. Mas nesse
caso, em lugar de concluirmos que o boneco é consciente, uma conclusão mais sensata
seria, obviamente, a de que estávamos conversando com o seu operador
- e portanto era o operador, e não o boneco, que dava provas de consciência.
O caso do robô inconsciente feito pelo homem seria um pouco diverso, já que não
haveri
a um ser consciente a operá-lo diretamente. Haveria, porém, alguém responsável
pela sua construção e seu projeto. E se o robô estivesse dissimulando com tanta
eficiênc
ia, só poderia fazê-lo porque esse projetista conhecia os tipos de resposta
necessários - pois podemos ter certeza de que um projetista que não fosse, também
ele,
consciente, não teria sido capaz de escrever um programa convincente. O pressupos
to
sensato seria novamente, portanto, que foi com esse projetista que estivemos ind
iretamente conversando - e, portanto, ísse projetista e não o robô era consciente.
Suponhamos, porém, que não pudéssemos ser sensatos assim, apenas estupidamente
conscie
ntes. A situação do teste da conversa não seria, ainda assim, muito má. Pois,
embora pudéssemos acabar cometendo o erro de concluir que o robô era consciente,
ser
ia apenas um meio erro. O teste teria diagnosticado corretamente a mão da
consciênci
a
em algum lugar: se não no próprio robô, então um pouco mais longe, no projetista.
Devemo
s, portanto, contentar-nos em aceitar essa situação. Num mundo onde não podemos
ter conhecimento completo dos truques que podem ser usados contra nós, devemos por
vezes ser enganados
- e isso também é parte da vida (e não um desastre filosófico).
COMO A QUALIDADE DA EXPERIÊNCIA DE OUTROS ANIMAIS CONSCIENTES SE
COMPARA com A NOSSA?
Se, e quando, outros animais forem conscientes, o que estão experimentando é a
ativi
dade sensorial em seus próprios círculos cerebrais. E, de acordo com a teoria,
a qualidade de suas sensações estará diretamente relacionada com o estilo adverbial
do
s sentimentos correspondentes. Deveria ser possível, em princípio, for-
228
#mular as condições sob as quais a experiência de um animal será semelhante, ou
diferent
e, da experiência de outro.
Fiz algumas considerações relevantes no fim do último capítulo, ao examinar como o
estil
o dos sentimentos se poderia ter "desviado" no curso da evolução. À luz dessa
análise, devemos esperar que dentro de uma mesma espécie haverá uma grande margem
de s
uperposição entre os indivíduos, com apenas variações "grafológicas" individuais
menores. Assim, a sensação de doçura, por exemplo, de qualquer outro ser humano
provav
elmente será muito semelhante à nossa. Entre espécies muito próximas a sobreposição
será ainda maior, embora possa ser consideravelmente menor devido ao maior potenci
al de desvio genético. Mesmo assim, devemos esperar que exista pelo menos uma seme
lhança
genérica: a sensação de vermelho de um macaco, a sensação de dor de um cão ou a
sensação de
de um urso pelo menos terão alguma semelhança qualitativa com
a minha ou a sua.
Portanto, quando a pergunta é, como feita comumente, `Como é ser' algum outro
indivídu
o num determinado ambiente sensorial?", não nos devemos envergonhar de responder.
A resposta é que ser como um outro ser humano é provavelmente mais ou menos a mesma
coisa do que ser como nós mesmos no mesmo ambiente; e como é ser outro animal
muito próximo é provavelmente muito semelhante. (Estou supondo que a questão do
"como é"
se refere à qualidade básica da sensação, e não a qualquer "pensamento"
de alto nível sobre ela: ursos e homens, embora tenham ambos sensações semelhantes
ao
provar o mel, não precisam pensar sobre o mel nos mesmos termos, é claro.)
Essa resposta depende, porém, de uma condição óbvia: que nós e o outro animal
tenhamos órgão
sensoriais bastante parecidos. Se o outro indivíduo com o qual nos
estamos comparando não dispusesse de nossa sensibilidade a uma forma particular de
estímulo, ou se fosse sensível a um tipo de estímulo ao qual não somos, então
ser como ele num determinado ambiente sensorial poderia, é claro, ser totalmente d
iverso do que é ser como nós mesmos.
Que proporção teria a diferença? E como seria isso? Evídentemente não há maior
problema em i
maginar-se a experiênci a de outro animal cuja sensibilidade a um tipo
particular de estímulo é menor do que a nossa, que seja insensível à cor ou,
digamos,
229
#surdo. Nem precisa haver maior problema com outro animal cuja sensibilidade é mai
or do que a nossa, que seja sensível à luz ultravioleta, digamos, ou ao ultra-som
- desde que estejamos familiarizados com a modalidade sensorial. Dentro de uma d
eterminada modalidade, o "espaço adverbial" disponível para sentimentos é,
presumivelm
ente,
limitado, e considerando-se a necessidade de manter os sentimentos o mais distin
tos possível, faria sentido se os animais evoluíssem para usar esse espaço
integralmen
te.
Assim, se por exemplo um animal pode ouvir sons num tom mais alto ou mais baixo
do que nós, podemos supor razoavelmente que o som mais baixo por ele ouvido tem
a qualidade sensorial do som mais baixo que podemos ouvir, e o som mais alto terá
a mesma qualidade do som mais alto para nós; em outras palavras, que a gama qualit
ativa
de sua sensação é semelhante ao que já conhecemos, embora cubra uma gama diferente
de es
tímulos.
O que poderia constituir um problema mais sério, porém, seria se o outro animal
foss
e sensível a um tipo de estímulo fora de qualquer modalidade sensorial que
conhecemo
s
- criando a possibilidade de que experimente sensações de um tipo qualitativo que
nu
nca foi sentido por nenhum ser humano. O exemplo mais discutido entre os filósofos

é o sentido localizador do eco existente no morcego, mas outros exemplos podem ser
proporcionados pelo sentido elétrico das lampreias ou o sentido térmico de certas
cobras da família da cascavel.
Como é ser um morcego? O caso do morcego, apesar de toda a atenção que lhe foi
dada, p
ode não ser particularmente interessante sob esse aspecto -já que está longe
de ser evidente que a sua localização do eco envolve, de fato, uma modalidade
sensor
ial estranha. Os morcegos, com sua capacidade de localizaro eco, têm certamente
uma capacidadeperceptual diferente de qualquer coisa que nós, humanos, possuímos;
em
outras palavras, têm uma capacidade excepcional de usar informações que chegam
aos seus ouvidos para representar "o que está acontecendo.lá fora". Isso, porém,
não é razão
para acreditarmos que eles têm sensações diferentes das que conhecemos;
em outras palavras, não há razão para acreditarmos que exista qualquer coisa de
excepc
ional sobre a maneira pela qual representam "o que está acontecendo comigo".
O órgão sensorial envolvidona localização do eco não é, afinal de contas, um órgão
dos senti
genericamente novo: é o ouvido
230
#típico dos mamíferos - e muito parecido com o nosso. E quando as ondas sonoras
cheg
am ao ouvido do morcego e excitam a membrana basilar, a forma da sua reação
sensoria
l
- a forma adverbial dos seus sentimentos - enquadra-se, p resu mivel mente, na t
radição auditiva como a de qualquer outro mamífero. Portanto, o que é para um
morcego
receber o som nos ouvidos provavelmente não será diverso do que é para nós: mesmo
quando
é uma localização do eco, a experiência que tem dos seus sons agudos que
voltam não é mais nem menos exótica do que as sensações auditivas de tons altos.
O caso da visão cutânea nos proporciona uma analogia útil. Um ser humano que usa o
dis
positivo de visão descrito no Capítulo 1O também possui (depois de algum
treinamento)
uma capacidade perceptual que a maioria dos homens não tem. Mas ele não adquire
nenh
uma capacidade sensorial nova: quando os vibradores tocam a pele das suas costas
,
ele ainda representa "o que está acontecendo comigo" como sendo de qualidade tátil.
E certo, como dissemos, que ele pode de fato dedicar toda a sua atençao ao canal
perceptual, e com isso disfarçar totalmente as sensações táteis; e o mesmo poderia
acont
ecer com os morcegos. Na excitação do momento, quando estão caçando uma presa
por exemplo, os morcegos podem não saber conscientemente nada do que está
acontecend
o em seus ouvidos. Não obstante, se tiverem consciência de que alguma coisa
"acontec
e
comigo", será a de ter uma experiência auditiva.
Mas se os morcegos não constituem um caso teste interessante de uma modalidade sen
sorial exótica, haverá algum animal que constitua? Qual seria o resultado de um
animal ter um órgão sensorial que desse origem a sensações de uma modalidade
totalmente
desconhecida dos seres humanos? De acordo com a teoria, os sentimentos cerebrais

seguiram a tradição dos sentimentos corporais, cujo estilo modal foi originalmente
d
eterminado pela natureza do epitélio sensorial em que ocorriam. Por isso, só
se o animal tiver um órgão sensorial que se tenha originado de maneira muito
diferen
te de qualquer órgão sensorial humano, de um tipo de epitélio sensorial
estruturalment
e
distinto, é que poderia ter sentimentos cerebrais cujo estilo modal fosse totalmen
te diferente do nosso. Ou seja, só se o animal tiver um órgão sensorial que não
compartilhe uma descendência comum com nenhum dos
231
#nossos. Entre os vertebrados superiores, porém, não há exemplo desses órgãos
sensoriais t
otalmente diferentes. Todos os sentidos humanos, e todos os de outros vertebrado
s,
evoluíram daqueles que já estavam presentes nos peixes ancestrais de que todos
viemo
s. Isso é verdade até mesmo para órgãos muito modificados, como o órgão sensível
ao calor na cabeça da cobra, ou o órgão elétrico no corpo da lampreia.
Podemos concluir, portanto, que não há provavelmente modalidades sensoriais
totalmen
te desconhecidas, pelo menos nos vertebrados. Nos invertebrados, admitimos que
poderia haver. Mas já concluímos que estes, sem um córtex sensorial no cérebro, não
têm, de
qualquer modo, probabilidade de ser conscientes.
SUPONDO QUE NUNCA EXPERIMENTAMOS UMA DETERMINADA MODALIDADE DE SENSAÇÃO, ONDE ISSO
N
OS DEIXARIA?
Quando escrevi que não há, provavelmente, nenhuma mo-
dalidade sensorial "total i-nente-desconhecida-para-nós", é claro que esse "nós" se
re
feria a seres humanos normais, de posse de órgãos sensoriais humanos normais
e com experiência adequada do seu uso. Se faltasse a um ser humano um, ou mais, de
sses órgãos -se nascesse cego ou surdo, porexemplo-, sua posição seria muito
diversa,
obviamente.
Nãohaveria uma forma de ele descobrir -talvez de segunda mão - como é a experiência
com
a modalidade sensorial que lhe faltasse? O bom senso nos diz que não, e o
mesmo faz a teoria que venho expondo.
Como as sensações sempre se relacionam com o que está acontecendo a "mim", então
saber c
omo é sentir uma determinada sensação é saber como essa sensação é para
"mim". E como, para mim, sentir uma sensação numa determinada modalidade é ser o
auto
r de sentimentos com essa correspondente qualidade
modal, só alguém que está
em condições de ser esse autor pode saber o que a sensação seria para ele. Mas
alguém que,
por exemplo, não tem olhos nem córtex visual não está em condições de
ser autor de sentimentos visuais. Ergo, não pode saber o que é ter sensações
visuais.
232
#E a intencionalidade das sensações, a parte essencial do sujeito na emissão de
instruções
para os sentimentos que torna impossível a alguém entrar neles de segunda
mão, a menos que tenha o equipamento relevante para criar, ele mesmo, os sentiment
os correspondentes. Oscar Wilde, ao ouvir um comentário espirituoso feito por algu
ma
outra pessoa, disse a um companheiro: "Gostaria de ter dito isso." E o companhei
ro respondeu: "Não se preocupe, Oscar, você dirá." Uma previsão justa, pois Wilde
tinha (notoriamente) o equipamento adequado para dizer ou repetir coisas espirit
uosas. Mas suponhamos que Wilde tivesse uma lesão cerebral que o tornasse parcialm
ente
afásico, de modo que lhe faltasse seletivamente a capacidade de fazer esse gênero
es
pecífico de comentário. Nesse caso, a única resposta que seu companheiro podia
dar, com sinceridade, teria sido: "Você não dirá, Oscar, não dirá."
Examinemos, como um experimento mental, o caso hipotético de uma cientista do
cérebr
o chamada Marian (um caso parecido, mas não exatamente este, foi examinado
por
Frankjackson?-). Marian é uma fisiologista que estuda o sistema visual de outros s
eres humanos mas é totalmente cega, porque não tem em seu cérebro vias visuais.
Através de sua pesquisa, empregando os outros sentidos, Marian fica sabendo tudo q
ue é possível saber de fora sobre o que acontece no cérebro de outra pessoa, quando
essa pessoa tem, por exemplo, uma sensação vermelha. Isso equivale a dizer (pois
pod
emos suporqueela tenha confirmado a existência dos sentimentos) que ela sabe
tudo que se pode saber exteriormente sobre os sentimentos visuais, inclusive o e
stilo adverbial exato do sentimento associado com ver vermelho. Surge então a segu
inte
pergunta: significa isso que Marian sabe, por si mesma, o que é ter uma sensação
visua
l vermelha? Pela minha teoria, podemos responder com segurança: não. Pois mesmo
queMarian soubesse tudo o que se pode saber sobre sentimentos, do exterior, ela
ainda não saberia como é ser autor deles. E como lhe falta o equipamento cerebral
para ser o autor, isso é algo que ela jamais poderia saber.
Certos filósofos preocuparam-se muito com casos como o de Marian. Alguns viram um
mistério profundo em sua incapacidade de penetrar nas sensações dos pacientes que
estuda tão exaustivamente; outros disseram quese ela não podesaber como e, para
esse
s pacientes, ter sensações, isso só pode significar que não há
233
#nada de especial para conhecer -na verdade, que toda a idéia de sensações é
obscura. Ma
s não precisamos, como eu disse, preocupar-nos com a incapacidade da cega
Marian, tal como não precisamos nos preocupar com a incapacidade do afásico Oscar
Wi
lde. Wilde é (vamos supor) incapaz de dizer certo tipo depilhéría. Essa é a sua
tragédia. Marian é incapaz demanifestar certa modalidade de sentimento. Essa é a
tragédi
a dela.
A diferença entre minha teoria e qualquer outra anterior é tornar o sentimento das
s
ensações equivalente a uma ação pelo sujeito. "Sentimento", de acordo com a teoria,
é uma forma de "ato". Mesmo se fosse verdade que uma pessoa pode, em princípio,
apre
nder tudo o que existe sobre o mundo exterior, e com isso adquirir total conheci
mento
daquilo que é objetivamente conhecível, dificilmente seria surpresa se houvesse
limi
tes para o que uma pessoa podefazer, e portanto limites para o que ela pode sent
ir
subjetivamente.
NOTAS
1. O trabalho original de Alan Turing, "Computing Machinery and Intelligen-
ce" (1950), junto com alguns dos debates que provocou, como o artigo Winds, Brai
ns, and Programs", dejohnSearle (1980), são reproduzidos em ne Mind's I, org. por
Douglas R. Hofstadter e por Daniel C. Dermett, Londres, Harvester Press, 1981.
2. Frankjackson,"WhatMaryDidn'tKnow",injoumalofPhilosophy83(1986).
234
#Capítulo
1 28
.
AGUA E VINHO
Adverti no prefácio que a solução do problema da consciência poderia acabar sendo
aborre
cidamente simples. Agora que chegamos a ela, creio que a advertência era
desnecessária.
Verificamos que o sentimento consciente é um tipo notável de ato intencional. Os
sen
timentos entram na consciência, não como fatos que acontecem conosco, mas como
atividades por nós mesmos engendradas e das quais particípamos-atividades que
formam
um círculo sobre si mesmas, para criar o denso momento do presente subjetivo.
A solução oferecida não é aborrecida e certamente não é simples. Mesmo assim,
haverá fatalme
e críticos (Colin McCinn sem dúvida estaria entre eles) que vão considerá-la
decepcionantemente mecanicista e não-misteriosa - carente de um certo "ils ne save
nt quoi", "Isso é tudo?", poderiam objetar.
Parece que ficamos apenas com uma série
de impulsos nervosos, ou informações, que fluem em torno de um circuito físico no
cérebr
o. E qualquer que seja a sua ascendência, por melhor que sejam as suas credenciais
lógicas e psicológicas - isso não parece suficiente para ressaltar a consciência em
toda
a sua glória. Dê-lhe, se quiser, o nome de uma forma especial de "ação",
considere-a o "autor" da atividade sensorial recirculante. Ainda assim, isso é tud
o? É a consciência apenas isso?"
235
#"A dificuldade aqui é de princípio", escreveu Colin MeCínn. "Não sabemos como a
consciênc
ia pôde emergir de um agregado de elementos não-conscientes como aparelhos
computacionais; assim, as propriedades desses aparelhos não podem explicarcomo a c
onsciência surge, ou o que é."1 Mas não é apenas McGinn. Citei Ray Jackendoff no
início do livro: Parece-me totalmente incoerente falar de experiência consciente
com
o um fluxo de informações ou falar dela como uma coleção de disparos neurais."
E as mesmas preocupações são evidencíadas em outros lugares. Thomas Nagel, por
exemplo:
"Não temos atualmente nenhuma concepção de como um único evento ou coisa
poderia ter ao mesmo tempo propriedades fisiológicas e fenomenológicas, ou como, se
tivessem, poderiam estar relacionadas."2Robertvan Gulick: "Simplesmente não temos
teorias, no momento, funcionalistas, ou outras, que expliquem como um sistema físi
co pode ter uma vida fenomenal. Ou T.H. Huxley: "Como alguma coisa tão notável
quanto um estado de consciência surge em conseqüência da irritação do tecido
nervoso é tão i
xplicável quanto o aparecimento do Djin, quando Aladim esfregou a lâmpada."4
Admito que ainda poderia haver razões de preocupação quanto a isso. Não obstante,
não crei
o que sejam tão sérias quanto essas pessoas parecem estar afirmando. Na
verdade, suspeito que seu desalento constante é, pelo menos em parte, um resquício
d
os dias antigos em que as teorias da consciência existentes nem sequer chegavam
perto-e certamente não se aproximavam tanto quanto nós - de realizar o trabalho que
lhes era pedido.
"Isso é tudo?" É o crânio humano apenas um pedaço de fosfato de cálcio, é um moinho
de farin
ha apenas eixos, engrenagense rodas, é o corpo de Harnlet apenas uma
quintessência de pó? E a água apenas hidrogénio e oxigénio, é ohidrogênio apenas um
próton c
m único elétron circulante, é o elétron apenas uma função de onda,
uma abstração matemática? E a resposta ao enigma da vida, do universo e de tudo
apenas
42?
Em cada caso, a resposta que se esperaria de uma pergunta feita assim seria quas
e que certamente "Não": talvez a coisa em questão seja defato tudo o que foi dito,
mas não é apenas isso isso não é tudo, não é apenas isso ou nada.
236
#Não há nada no mundo, decerto, que seja final e absolutamente "apenas" o que
escolh
emos paÊa descrevê-lo -pela simples razão de que não há nada no mundo que não
pudesse, se assim o desejássemos, ser novamente descrito de um ponto devista diver
so. Até mesmo o número 42 poderia, se quiséssemos, ser redescrito, pois ele é,
entre outras coisas, 7 vezes 6, a.idade de uma das minhas irmãs, a distância em
milh
as de Londres a Cambridge, e a constante mágica do menor cubo mágico (para não
falarmos de seu constante reapareci mento nas obrasdeLewis Carrofi-como, por exe
mplo, na Regra 42 do Código Civil do País das Maravilhas: "Todas as pessoas com
mais

de uma milha de altura devem deixar o tribunal").


No final, o que importa é que o interrogador e o interrogado tenham o mesmo ponto
de vista, a mesma agenda e estejam interessados nas mesmas coisas. Quando a perg
unta
é "O que é um crânio?", um antropólogo não ficará satisfeito com a resposta que
satisfaz ao
químico. Quando a pergunta é "Qual a finalidade da existência?", o místico
desejará uma resposta diferente daquela que agrada ao motorista de ônibus. O
cosmólogo
que não teria tempo para a sugestão de que a resposta ao enigma da vida, do
universo e tudo mais é a distância em milhas de Londres a Cambridge, bem poderia
sen
tir-se consideravelmente melhor coma sugestão de que a resposta é a constante
mágica de um cubo mágico.
Dada a variedade de pessoas que tiveram, e têm hoje, e terão no futuro, suas
diferen
tes razões para fazer a pergunta "O que é a consciência?", há sem dúvida uma
variedade de respostas que provavelmente seriam mais ou menos convincentes ou ad
equadas. Minha resposta pode, na verdade, ser uma resposta menos do que completa

à pergunta de alguma outra pessoa.


Não obstante, não cederíamos muito facilmente aos críticos que protestam com a
pergunta
"Isso é tudo?". Ao desenvolver a teoria da consciência como atividade sensorial,
argumentei explicitamente em favor de uma determinada visão do significado da perg
unta, e apresentei uma visão correspondente do que é a resposta. Como fui explícito
sobre o ineu ponto de vista, poderíamos esperar que os críticos fossem explícitos
sobr
e o ponto de vista deles. Se esta resposa não ébastante boa para eles, o que
mais
237
#querem? E não importa o que queiram, ou acham que querem, estão certos de que já
não o
têm, sem perceber?
As queixas contra a inadequação das teorias da consciência tornaram-se, como eu
disse,
tão comuns entre os filósofos de uma certa tendência que existe um perigo
real de que eles continuem a dizer "Isso é tudo?", mesmo quando já não têm nada
substanc
ial de que se queixar. Na peça de Tchecov, As três irmãs, as heroínas passam
toda a peça suspirando, dizendo como seria maravilhoso se pudessem ir a Moscou, qu
ando na verdade têm dinheiro mais do que suficiente para tomar o trem quando quise
rem.
Vamosvoltar agora à declaração deMcGinn, citada deinício. "De algum modo, sentimos
que a
água do cérebro físico é transformada novinho da consciência, mas desconhecemos
totalmente a natureza dessa conversão. As transmissões neurais parecem ser o tipo
er
rado de material com que trazer ao mundo a consciência. (... ) O problema mente-co
rpo
é o problema de compreender como o milagre se processa."
A tarefa parece impossível - McGinn pretendia, naturalmente, que parecesse. Não
obst
ante, aqui estamos. Trabalhando com o xarope natural (por que chamá-lo de água?)
do cérebro físico, acompanhamos um processo de fermentação que se assemelha
extraordinar
iamente à vínificação. Mesmo que falte ao produto o refinamento de um grand
cru, trata-se de um ordinaire bastante impressionante. A appelátion e a safra são
ce
rtamente respeitáveis (um vin du terroir, que remonta a várias centenas de milhões
de anos). O produto acabado -bastante corpo, um belo equilíbrio de afeto positivo
e negativo, uma boa cor qualitativa, uma forte pitada de subjetividade, um ressa
ibo
de intencionalidade, até mesmo a sugestão de uma fenomenologia objetiva latente.
Além
disso, como acompanhamento do prato principal da filosofia, é excepcionalmente
adequado e sensível, complementando uma série de pratos, tanto tradicionais como
nou
velle - torta da outra-mente, sopa de morcego, Turing ao picles, fricassê de
robô
- sem ser tão pesado ao ponto de levar as pessoas a dizerem coisas de que se arrep
endem.
Se McGinn ainda quiser negar que é o vinho da consciência, que o prove e diga o que
está faltando.
Confesso que eu também fui vítima da doença do "Isso é tudo?" e, no passado,
juntei-me c
om muita facilidade a McGinn
238
#na preocupação com o que mais uma teoria da consciência deva fazer. Mas, como uma
doe
nça que, depois de superada, parece ter atacado uma pessoa totalmente distinta,
as preocupações já não se parecem ao meu problema. Na verdade, embora existam
muitos det
alhes a serem desenvolvidos, eu diria agora que as transmissões neurais me
parecem exatamente o tipo de material adequado para trazer a consciência ao mundo.
E se eu desconheço completamente alguma coisa, não é tanto a maneira pela qual
a conversão ocorre, mas sim o que fez com que ela parecesse um milagre impossível,
e
m primeiro lugar.
Não obstante, eu digo uma mentira. Pois posso imaginar quais os problemas que aind
a haverá. A teoria que venho desenvolvendo com todas as suas características
especia
is,
é basicamente uma versão de uma teoria da "identidade", e mais, uma teoria da
identi
dade "funcionalista". E ainda poderíamos argumentar que não é mais metafisicamente
completa do que qualquer outra teoria desse tipo.
As teorias da identidade, no que respeita a X é Y, sustentam que tudo o que é
descri
to por um termo da identidade, X, é a mesma coisa do que for descrito pelo outro
termo, Y; não que os mesmos termos sejam, em si, a mesma descrição (o que não são,
exceto
em casos triviais), mas sim que designam ou selecionam a mesma coisa no
mundo. E as teorias da identidade funcionalista sustentam, ainda, que um dos ter
mos da identidade bem pode ser descrito simplesmente como uma operação lógica,
relacio
nando
causas com efeitos, ou insumos com produtos, sem referência à estrutura material
env
olvida na realização da operação.
Assim, quando mostramos que a consciência é a atividade de ser o autor de
sentimento
s cerebrais reverberantes, estamos mostrando não só que o que é designado pelo
termo "consciência" é a mesma coisa designada pelo termo "ser o autor de
sentimentos
cerebrais reverberantes", mas que este último deve ser considerado como uma
operação lógica independente das estruturas neurais, ou outras, envolvidas.
Embora eu afirme que essa teoria da consciência não sofre dos defeitos óbvios das
teor
ias funcionalistas anteriores que fizeram identificações evidentemente erradas,
ainda poderia argumentar que ela não pode constituir a explicação completa. Por
maior êx
ito que tenha em estabelecer os termos da identidade, eka não explica a razão
subjacente da identidade. Isto é,
239
#seja seu êxito em nível científico em responder à pergunta "Que operação no
cérebro é idênt
nsciência?", ela não se ocupa da questão mais profunda, Tor que
é essa operação idêntica à consciência?"
Esta última pergunta pode parecer um exemplo clássico de uma pergunta tola. Mas eu
a
dmitiria que, possivelmente, ela não precisa parecer tola. Pois como Saul Kripke,
em particular, argumentou com insistência,5 podehaver dois tipos de identidade, um
dos quais é muito mais aberto ao questionamento do que o outro.
Por outro lado, há essas identidades necessárias, que são em última análise
tautologicamen
te verdadeiras, e portanto devem continuar verdadeiras em todas as circustâncias
possíveis, em todos os mundos possíveis, Por exemplo, o número 42 é o produto dos
números
7 e 6; álcool é aquilo que se obtém oxidando o açúcar; a luz amarela monocromática
é radiação eletromagnética com um comprimento de onda de 58O nanômetros; linhas
paralelas
são linhas que correm na mesma direção; um dólar vale 10O cents. Em todos
esses casos, os dois termos, quando, e se, chegarmos a entendê-los, mostram-se tai
s que seria uma contradição negar que se referem à mesma coisa. Isso não quer dizer
que todos devem ter imediato conhecimento da identidade, ou que não temos de traba
lhar para provar que esse é o caso. Equivale a dizer, porém, que quando, e se,
tivermos provado isso terá sido dada a explicação, e seria realmente tolice fazer a
ou
tra pergunta, Tor quê?"
Há, por outro lado, essas identidades continge-ntes, que só são verdadeiras porque
as
coisas são dispostas daquela maneira no mundo em que vivemos, e portanto não
precisam ser verdadeiras em todos os mundos possíveis ou em todas as
circunstâncias.
Por exemplo, 42 é o número do ônibus que me leva para casa (mas não se eu morar
em Paris); o álcool é aquilo que é produzido quando as uvas apodrecem (mas não se
as con
dições climáticas forem muito frias); a cor que as pessoas vêem quando a
luz amarela chega aos seus olhos é a cor que vêem quando uma mistura de luzes
vermel
has e verdes chega aos seus olhos (mas não se não tiverem visão colorida
tricromática);
linhas paralelas são linhas que nunca se encontram (mas não se estivermos fazendo a
nossa geometria sobre a superfície de uma esfera); um dólar vale oito rublos
(mas não no mercado negro). Em todos estes últimos casos os dois termos selecionam
a
mesma coisa num determinado mundo, mas não seria certamente uma contradição
negar que tenham
240
#de fazer isso num outro mundo. Assim, mesmo quando descobrimos a identidade, po
demos não tê-la explicado cabalmente, e portanto não seria tolice fazer a outra
pergun
ta:
Tor quê?" - ou seja, por que é válida num mundo, e não no outro.
No caso da consciência, com que tipo de identidade estamos tratando? Quando dizemo
s que ser consciente é ser o autor de sentimentos cerebrais reverberantes, será
essa uma identidade que vale em toda parte imaginável, de modo que, por exemplo, q
ualquer pessoa em qualquer mundo possível que esteja fazendo o que estamos fazendo

quando autorizamos os sentimentos de dor sinta conscientemente a mesma dor que s


entimos? Ou é uma identidade que vale apenas num mundo restrito, ou numa série de
mundos, de modo que uma criatura em outro planeta, ou em outro universo poderia
estar emitindo sentimentos de dor funcionalmente idênticos, e não sentir qualquer
dor? E se a identidade é contingente e não necessária, então o que é tão especial
sobre os m
undos nos quais é válida, em comparação com os mundos nos quais não é?
Que malabarismo de Deus ou da natureza poderia estarfazendo com que fosse assim
num caso, enãoassim, em outro?
No passado, as pessoas estavam realmente preparadas para aceitar o fato de que a
consciência so acompanha os eventos cerebrais em circunstâncias muito especiais.
Descartes, em particular, sustentava que a identidade vale para os cérebros dos se
res humanos, mas não para os de quaisquer outros animais, e acreditava ser assim
"porque" nada menos do queDeusassim dispunha. Mas, mesmo que poucos filósofos acei
tem hoje esse tipo de contingência e a maioria aceite que a identidade -se for
realmente válida - é válida de maneira bastante ampla, muitos ainda insistem em que
is
so não precisa significar que ela seja válida universalmente e que há provavelmente
algum tipo de contingência desconhecida (ou mesmo incognoscível?) envolvido. Pois
el
es simplesmente não podem permitir que sensações conscientes particulares sejam
necessariamente idênticas a estados cerebrais particulares; que, por exemplo, seri
a logicamente impossível a alguém ser o autor de sentimentos de dor recirculantes
sem sentir uma sensação de dor. E sua razão é (pelo menos, é a razão de Saul
Kripke) que ele
s podem, ou assim dizem, imaginar perfeitamente bem um mundo - pode não
ser nosso mundo, mas isso não
241
#importa - no qual poderia existir exatamente o mesmo estado funcional num ser q
ue não tivesse consciência da dor. Como não se pode negar que um mundo imaginário
é um mundo possível, isso deve certamente ser suficiente para manter o argumento
con
tra a necessidade.
Eu teria de argumentar que, se as pessoas estivessem certas quanto à sua capacidad
e de imaginar um mundo onde a identidade que estamos discutindo não é válida, então
seria realmente racional e importante perguntar por que ela é válida em nosso
mundo.
Assim como se alguém estivesse certo sobre a sua capacidade de imaginar um mundo
no qual 42 não é igual a 7 x 6, seria racional e importante perguntar por que 42 é
igu
al a 7 x 6 neste nosso mundo, Mas a questão é: estariam essas pessoas certas
quanto à sua capacidade de imaginar isso -nos dois casos?
No caso de 42 = 7 x 6, haveria fortes razões para dizermos que elas não poderiam
est
ar certas. Não há,, reconhecidamente, nada para impedir que as pessoas tentem
imaginar o que quiserem.
Poderiam até mesmo, talvez, achar que é um exercício espi-
ritual útil imaginar que 42 não é igual a 7 x 6... ou que há vida depois da morte,
ou qu
e podem ouvir o som de uma mãobatendo palmas, ou que suas cabeças são feitas
de mostarda. Mas tentar é uma coisa, conseguir é outra. E se alguém pretendesse
estar
realmente imaginando que 42 não é igual a 7 x 6, não devemos ficar muito
impressionado
s.
Talvez, sendo caridosos, pudéssemos supor que eles cometeram um erro honesto, ou e
stavam sob uma ilusão; ou então, não sendo muito caridosos, que eles simplesmente
não sabiam de que coisa estavam falando. Pois 42 = 7x 6 é realmente uma identidade
n
ecessária. E, embora alguém talvez pudesse imaginar uma identidade superficialmente
similar que deixasse de ser válida, não poderia porém imaginar que esta não é
válida.
E deveríamos ficar mais impressionados com alguém que pretendesse ser capaz de
imagi
nar uma criatura autora de sentimentos de dor reverberantes sem sentir dor? Incl
ino-me
a dizer que os casos são exatamente paralelos, e pelas mesmas razões. Se alguém
preten
desse imaginar um mundo no qual essa relação deixa de ser válida, deveríamos
concluir que está cometendo um erro, ou que não entendeu a teoria. E, embora alguém
pu
desseimaginar alguma outra versão da teoria da identidade que deixasse de ser
válida, não poderia imaginar que essa teoria não o é. Pois suspeito que essa
identidade
particular é, na realidade, uma identidade necessária.
242
#Kripke chega, reconhecidamente, à conclusão oposta. Mas a diferença entre nós é
que, para
ele, qualquer argumento em favor de uma teoria da identidade que pretenda
mostrar que "essas coisas que achamos que podemos imaginar não são, na verdade,
cois
as que possamos imaginar ( ... ) teria de serum argumento mais profundo e mais

sutil do que eu posso pensar, e mais sutil do que qualquer coisa já surgida em qua
lquer literatura materialista que eu tenha lido". Embora eu hesite em dizer isso
,
a diferença entre nós bem pode estar no fato de Kripke não nos ter acompanhado nos
dez
últimos capítulos.
O problema é que as águas foram consideravelmente enlameadas pelas más teorias:
teoria
s que envolviam alegações sobre a identidade que não se sustentam nem mesmono
mundo em que vivemos, e muito menos em todos os mundos possíveis.
Tive ocasião, recentemente, de examinar um artigo sobre Conjuring [Prestidigitação]
na
edição de 1929 da Encyclopaedia Britannica6 e por acaso encontrei o seguinte,
no verbete Consciousness [Consciência]: "Uma teoria sustenta que cada átomo do
corpo
físico possui um atributo inerente de consciência.( ... ) Uma segunda teoria
supõe que existem, no cérebro, células nervosas especiais capazes de produzir a
consciên
cia sempre que ativada.( ... ) A teoria psicônica [que o autor do verbete,
W.M. Marston, evidentemente preferia] afirma que a consciência ocorre todas as vez
es que qualquer unidade de tecido conectivo entre neurônios individuais é
energizada
.
As unidades de tecido conectivo são chamadas de psicons, e cada impulso psicônico é
co
nsiderado uma unidade de consciência física. Essa teoria está agora em investigação
experimental."
A história não conta o que aconteceu com as investigações experimentais dessa
notável teor
ia. Mas se um filósofo tomasse agora a teoria psicônica como seu modelo,
e insistisse que é capaz de imaginar um mundo no qual os impulsos psicônicos
poderia
m ocorrer, por exemplo, na cauda de uma lagosta, sem que a consciência esteja
presente, eu seria o último a questionar isso. Na verdade, apesar do resultado de
uma centena de investigações experimentais, não posso imaginar nenhum mundo no
qual essa teoria seja válida.
243
#Mas não é essa teoria que estou propondo. E o que questiono é que quem compreende
a m
inha teoria possa imaginar que esta teoria não tem validade universal.
O problema com a teoria psiconica é que não há nela absolutamente nada que dê a
sensação de
estar certa, que nos lembre alguma coisa. A teoria não foi motivada (suponho)
por qualquer consideração do que é realmente a experiência da consciência, em nível
da fenom
enologia ou da linguagem ou do comportamento. Por isso, não pode referir-se
à experiência. Em contraste, a minha teoria começou com as propriedades destacadas
da
consciência e sistematicamente as incorporou à identidade; portanto, essa teoria,
quando necessário, pode referir-se a elas.
O resultado é que imaginar uma criatura, em qualquer lugar e qualquer tempo, fazen
do o que fazemos quando abrigamos sentimentos de dor reverberantes - isto é, imagi
nar
que essa criatura é autora da atividade sensorial e vive no presente ampliado da s
ensação - é imaginar (se tivermos êxito) que essa criatura é consciente de uma
sensação de dor. O lado corporal da equação não deixa sem designação nada que é
designado pe
ado consciente, e vice-versa.
Mas isso é tudo? Não sei o que mais dizer. "A arte da vida", observou Henry
Thoreau,
"da vida de um poeta, é, não tendo nada a dizer, dizer algumacoisa." O mais
prudente, porém, se não somos poetas, é parar.
NOTAS
1. Colin McGinn, "Could a Machine be ConsciousV', em Míndwaves, org. por Blakemo
re e Creenfield, p. 287.
2. ThomasNagel, ne ViewFrom N~here. Nova York, Oxford UniversityPress,
1986, p. 47.
3. Robert van Culícic, "A Functionalist Plea for Self-Consciousness", ín ne
Philos
oplzical Review 97 (1988), pp. 149-181.
4. Thomas H. HuxIey, Lessons in Ele~ntary PhysiOlogy, 8 (1896), p. 210.
S. Saul Kripke, 'Identityand Necessity", em Identityand Indivíduation, org. por
M. Munitz. Nova York, New York University Press, 1971
6. Encyclopaedia Brítannica, 144 ed., 1929.
244
#O SER E
O NADA
Eu parei. Mas parei num tom muito baixo para a conclusão de uma história tão
notável.
E "UmaHistória daMente" foi, como eu disse que seria, apenas uma história parcial
de
uma parte daquilo que constitui a mente. Foi, apesar disso, a história de como,
nos quatro últimos bilhões de anos, as mentes dos animais transformaram totalmente
a
condição do universo em que vivem.
Quero terminar com a história de um fato específico - uma faixa de sol que chega à
sup
erfície do nosso planeta.
Há muito tempo, antes que houvesse qualquer vida na Terra, raios de luz do sol ves
pertino caíram sobre a superfície de uma lagoa rasa numa rocha junto ao mar,
atraves
saram
a água e foram absorvidos por uma pedra no fundo da lagoa. A pedra, como tudo mais
na natureza, era insensível. Assim, o sol se punha num mundo destituído de
signific
ado,
onde nada existia como alguma coisa para ninguém.
A vida começou a se desenvolver nessas poças, e dentro em pouco os mares estavam
che
ios de pequenos organismos voltados
245
#para si mesmos. Numa rocha dessa mesma lagoa começou a viver um protozoário que se
alimentava dos restos que flutuavam perto da superfície. Agora, quando a luz
caía sobre a lagoa, um pouco
- muito pouco - era absorvido pelo limite desse protozoário. Mas ele, ao contrário
d
a pedra, era sensível à luz, Ao meio-dia corria o risco de ser prejudicado pelos
raios ultravioletas e por isso se afastava; mas, quando o sol descia, podia volt
ar a flutuar com segurança na superfície. O protozoário estava representando a luz
do sol - pelos seus atos - como um fato de significação "para mim".
A evolução progrediu, e um peixe veio habitar a mesma lagoa. O peixe vivia num
emara
nhado de vegetação e saía desse ambiente escuro para pegar sua presa. A luz também
tinha importância para ele: seu ambiente ótimo era a zona em que a vegetação
acabava e a
água clara começava. O peixe ainda tinha uma pele sensível à luz e, comparando
os estímulos em diferentes partes do seu corpo, pôde ajustar sua posição para
manter a c
auda no escuro e a cabeça na luz. Mas o peixe também havia desenvolvido um
olho formador de imagem, e aproveitou-se da imagem na retina para desenvolver a
nova faculdade da visão: a imagem era interpretada não apenas como indício da
direção
de onde vinha a luz, mas como uma indicação do que estava acontecendo Iá fora". Se
o p
eixe tivesse olhado para cima, para o céu, poderia até mesmo ter percebido
um brilhante disco vermelho além da lagoa. Mas o vento soprava e as ondulações
impedia
m a vista desse mundo distante.
Perto de onde existiu outrora essa lagoa na rocha fica hoje a cidade de Cambridg
e. E nela vivo eu, agora. Olhando pela minha janela neste momento, vejo o sol po
ente
no horizonte ocidental. Na tradição de meus ancestrais, estou representando a luz
qu
e chega à minha retina tanto como uma faixa circular de vermelho ou um globo
de fogo que existe na galáxia, lá longe. Mas alguma coisa aconteceu no curso da
evol
ução: o aparente milagre da consciência. Estou agora vivendo no tempo presente
das sensações que "eu" crio. Estou definindo minha reação à imagem do sol como uma
ativida
de da qual "eu" sou o autor. Fiz, por assim dizer, um laço da corda fina
do tempo físico, lacei o sol - e o fiz momentaneamente meu.
246
#Não me interessa calcular que valor absoluto devemos dar a essa transformação do
univ
erso, ou até onde devemos valorízar alguns dos seus aspectos, em detrimento
de outros. Thomas Gray, em sua "Elegia", falou num momento em que os filósofos dev
iam ficar calados:
Muitas as gemas do mais puro raio
Que do mar as mais fundas cavernas ocultam; M uítas as flores que se abrem ocultas
E no ar do deserto sua doçura perdem.'
Mas não são apenas os sentimentalistas como Gray que considerariam um mundo não
repres
entado por uma mente como um mundo cujo destino tristemente não se cumpriu.
Se a pergunta é "Quem pode dizer o que a'perda' é?", creio que todos sabemos a
respo
sta.
E certo que-,qualquer tipo de reação é um acontecimento dotado de significação
existencial
. A ameba que se afasta da luz, a rã que salta sobre a mosca, o homem cujas
pupilas se contraem quando ele dorme, o paciente com visão cega que estende a mão
pa
ra pegar uma bola - todos estão fazendo alguma coisa que dá ao mundo uma pitada
de significado que, sem isso, ele não teria.
Mas, no fim, foi uma reação consciente que acrescentou anova dimensão de
profundidade
semântica. Pois é a consciência, com seu poder de fazer o fugaz instante do
tempo físico continuar vivendo como o momento experimentado da sensação, que faz
com q
ue SER COMO NóS SEJA SER COMO ALGUMA COISA
- e com isso suaviza e enriquece o existir do mundo exterior PARA NóS.
Aparentemente, um milagre? Não, um fenômeno tão próximo de um verdadeiro milagre
quanto
qualquer outra coisa quejá tenha acontecido. Mas sua chave pode estar no
fato de que basta uma teoria científica relativamente simples para explicá-lo.
NOTA
1. ThomasCray(1759),"ElegyWritteninaCountryChurchyard",inneNeiv
Oxford Book of Englisli Verse, org. por Helen Cardner. Oxford, Oxford University
Press, 1972.
247
#1 l
?.1! i ;
1 .
#INDICE
A
agnosia visual 76-78, 101 Alcock, James, 78
Alice no País das Maravilhas 67,
75,237
Allport, Alan, 15
Antonioni, Michelangelo, 46 Arist6teles, 91, 115
atenqdo seletiva, 50-58, 72 B
Bach-y-Rita, Paul, 71-72 Bisiach, Eduardo, 150-51 Blake, William, 52,181 Boccacc
io, G., 50
Boring, Edward, 10O Bowra, Maurice, 38 Broad, C.D., 12 Bunyan, John, 2 Burton, M
aurice, 16 Byron, lorde, 36
C
Calvin, William, VIII
Carroll, Lewis, 67,75,112,236,
237
Carter, Howard, 179 "causaqio retroativa", 195-203 Cdzanne, Paul, 52
círculo sensorial, evolução do,
168,187,198-99 circulos retroalimentadores
198-203
Clynes, Manfred, 47 Coleridge, Samuel, 49,96 conhecimento perceptual puro,
84-88,91,92, 99 consciência, 243-44
como "ter sensações", 115-16,
121
definiqdo da, 15,117-18 emergencia evolucionAria da,
205,220-24,245-47
em extraterrestres, 224-26 em rob6s, 226-29
etimologia da palavra, 118-2O nos animais, 221-24,228-32 testes para a, em outro
s, 228,
232-34
conservantismo evoluciondrio,
42,168-69,211-17 Constable, John, 92
cor, 143-44
249
#espectro invertido, 62-65 reações afetivas à, 45-48, 55-58,
63
correção de erro perceptual, 101-7 Critchley, Macdonald, 76
Crook john, 15 D
Dama do Unicórnio, Tapeçaria da, 35, 50
Dennett, Daniel, 5, 196 Descartes, Renê, 45,241 desvio genético, 215-16 Deus, 221
Diderot, Denis, 65 Donne, John, 11O Drummond, William, 2,35
dualismo, 4
dupla função dos sentidos, 29-36,
55-73
duplo caminho da evolução mental, 19-27,31-2
E
Eagle, M., 79
eco retroativo à fonte, 103-4 Eliot, George, 14, 15
Eliot, T.S., 11, 195
energias nervosas específicas,
175-78
espectro invertido, 62-65 "esquenomorfos", 211 "eu11
como autor de sensações, 115,
124-25, 143-44, 205-6, 233,
241
como condutor interior, 173-4,
194
como ego executivo, 148-154 F
Farah, Martha, 113
fenomenologia objetiva, 178 fenÔmenos, situação mental dos
19-20,245-78
Freud,Signiund,30,35 Ery, Roger, 57 Funcionalismo, 8,238 G
gêmeos siameses, 148-49 Goldstein, Kurt, 546-47 Gould, Stephen Jay, 15 Gõdel,
teorem
a de, 226 Grande Roubo do Trem, 14 Cray, Thomas, 246-7 grdo-duque de York, 103-4

H
Halpern, L., 47 Hardin, C. L., 36 Helen (macaca), 83-4 Hopkins, Cerard Mariley,
153 Horácio (poeta romano), 51, 118 HuxIey, Aldous, 52,118,202 HuxIey, Thomas H.,
236
lago,147,152 identidade, teoria da, 5-6,238-44 ilusão do tampo de mesa, 105 imagen
s mentais
envolvimento córtico em, 94,
112-13
"lembretes" de sensações e,
108,116,126,142 nova teoria das, 99-113 nudez,das, 91-98
teste da realidade e, 96-97 impressionista, pintura, 51 indicativos, 157-63,184
intencionalidade, 143,193-94,
196,200,233 instruções, 143,149,172,192-97,
250
#200,232 interesse vs. prazer 55-58
jackendoff, Ray, 8,146,236 jackson, Frank, 233
James, William, 15, 124 johnson, Samuel, 5,122 K
Kandinsky, Wassily, 45 Karit, ltnmanuel, 52 Kinsbourne, Marcel, 196 Kohler, L, 6
9-70
Kripke, Saul, 239-43 Kundera, Milan, 136,206 L
Lago Ness, Monstro do, 14,16 Leibníz, Gottfried, 7
Lily, diálogo com, 122-28 linguagem, dificuldades com,
11-16,32,33,118
Locke, john, 61, 63, 92, 119, 128 LSD, 53,202
Lycan, William, 8 M
macacos: experimentos de cor com,
55-58
visão cega nos, 83-84 Macbeth, 96
MacDougalI, Duncan, 2 Mar-cel, Anthony, 15, 87
Marian (fisiologista cega) 232-34 MarvelI, Andrew, 45 mascaramento retroativo, 7
9 McGinn, Colin, 6,8-9,177,236,
238
Melzack, Ronald, 182
membros fantasmas 182-83, 187
mescalina, 53, 202 metamorfopsia 101 Mikellides, Byron, 46 minhocas, 39, 40, 222
modalidade das sensações, 72-73,
13-37, 157-58, 170-72, 175-78,
209-10
modelo interior do corpo, 163,
184-87
modos autocêntricos vs. alocêntricos, 3O Molière, 121
Monet, Claude, 52,57-58 monismo, 5
morcegos, 230-31 movimento romântico, 50-51 mulher/sogra, 100
MüIler, johannes, 176 N
Nagel, Thomas, 13, 236 necessidade e contingência,
239-43
negação da propriedade do corpo, 151-52
níveis de descrição, 7-8, 236-37 número de Platão, 13
o
olho, evolução do, 38-43 outras mentes, 62-63, 219-34 P
Paré, Ambroise, 183 Penrose, Roger, VIII percepção, 78-79
como "o que está acontecendo lá fora", 26, 29-36
distinta da sensação, 29-38,
55-74, 87-88, 95-97,137,
157-58, 170~72, 175-78,
209-10
251
#percepção extra-sensorial, 78, 85 percepção subliminar, 78 Picasso, Pablo, 27
Platão, 13,50
ponto cego, 183-84,188 Porter, Tom, 46
presente subjetivo 96-98, 138-40,
196-97,199-203 problema mente-corpo,
definição, 2-1O propriedade, 145-54 propriedades "características", 134 psicônica,
teori
a da consciência,
243-44
R
rãs, 39
redisposição sensorial, 67-73 regente interior (analogia musical), 172
regressão fenomenal, 107-108 Reid, Thomas, 30-35 representações análogas vs.
digitais, 100-104 Rícardo 11, 92
rivalidade binocular, 109-11O robôs, 8, 225-6
roteiros, evolução dos, 213-14,
215-16
Rousseau, Jean4acques, 146 Russell, Bertrand, 62
s
Sacks, Oliver, 101
sanção da percepção pela sensação, 87-88, 96-99 Schachtel, Ernest, 3O Scott, Peter,
16
sensação, 87-88,96-97,115,116,
124-25, 126, 205-6, 233, 241 como atividade corporal,
152-63
como "o que está acontecendo
comigo", 26,29-36 localização corporal das,
137-38
presença, 140-41 propriedade autocaracterizante, 141-44
propriedade das, 134-37 qualidade das, 138-4O sensações visuais fantasmas, 183,
188
sentição, definição de, 171 sentidos "íntimos" e "definidores"
30-31
sentimentos: .cerebrais" vs. "corporaisil,
186-90
definição dos, 170-72
estílo adverbial dos, 172-74,
178,209-17 Shakespeare, William, 92,96,118,
147,152
Sloman, Aaron, 117 sonhos, 97, 111-12, 126 sono, 123,126, 202-203 Southey, Rober
t, 67 Starbuck E.D., 30-31 Steadrnan, Philip, 211,215 Stem, Daniel, 149 Sutherla
nd,
Stuart, 13O Sylvie and Bruno, 112
T
tartarugas, 167 Tchecov, Anton, 238
tempo de reação às cores, 142-44 tempo subjetivo vs. tempo físico,
196-97,203
Thoreau, Henry, 244 Thouless, Robert, 106-107 Titchener, Edward, 169 Traherne, T
homas, 145,152-53 Turing, teste de, 227
Turner, William, 51, 202
252
#v
vaca p6rpura, 67-68,108-109 Van Gogh, Vincent, 46
Van Gulick, Robert, 236 visSo cega, 79-88, 98, 188, 247 vis5o cut5nea, 70-73, 13
7-38, 140,
231
visdo de cabeqa para baixo, 68-70
W
Weiskrantz, Lawrence, 80,83 Welch, Robert, 70
Wilde, Oscar, 233-34 Wilkes, Kathleen 14 Wittgenstein, Ludwig, 12,38,
63-64
Wordsworth, William, 49-53
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