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Transforma-Se o Amador
Transforma-Se o Amador
Luís de Camões
Camões está no centro da poesia de língua portuguesa por diversas razões. Mesmo
algumas décadas depois de Sá de Miranda ter introduzido o verso decassílabo em
Portugal, faltava ainda quem o naturalizasse, encontrando a melodia própria da língua.
Samuel Johnson disse que, depois das traduções da Ilíada e da Odisséia por Pope e
Dryden, nenhum poeta inglês deixou de perceber a melodia de seu idioma; certamente
foi Camões quem nos fez ouvir pela primeira vez a música do português em “medida
nova”, dando um passo além da perfeição métrica – e mesmo essa foi conquistada a
duras penas, como pode observar quem quer que leia as primeiras tentativas lusitanas de
domar o decassílabo.
O segundo quarteto levanta uma objeção. O desejo continua. Afinal, o “amador” não é
uma pura alma, mas também um corpo. Camões sugere que é “algo mais” que o corpo
deseja, algo além daquilo que a alma já possui, e diz, sugerindo a subordinação do corpo
à alma, que deveria submeter-se. Mas logo o primeiro terceto faz uma ressalva
esclarecedora, não muito distante em estilo das ressalvas que faz São Tomás de Aquino
na Suma Teológica: por mais linda e pura que seja, não passa de uma idéia, e é próprio
das idéias existirem apenas no pensamento. O corpo tem suas necessidades, que podem
ser pensadas, mas pensá-las não é suficiente para satisfazê-las.
Camões, porém, não termina o poema como advogado do corpo, mas retoma o amador
por inteiro, dizendo-se feito “de vivo e puro amor” que “como matéria simples busca a
forma”. Não é seu corpo que é “matéria simples”, mas toda a sua pessoa. Ainda que a
crítica, um pouco enfeitiçada pela presença de palavras como “alma”, “idéia” e
“acidente”, costume ler o poema como um embate entre Platão e Aristóteles, Camões
parece apenas descrever uma experiência paradoxal, que formula sem resolver. É ele,
por inteiro, que deseja ser moldado por outra coisa; é ele, por inteiro, que se declara
“matéria simples”, desprovida de ser e pronta a transformar-se naquilo que ama. Esse
amor busca a forma “por muito imaginar” e simplesmente esquece do corpo. Ele
gostaria de transformar-se por inteiro, mas a posse imaginativa não pode oferecer isso,
e por isso continua desejando, à revelia do corpo insatisfeito, dando a entender que aí
está um sinal de que algo está profundamente errado em toda a equação.
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