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Curso Integral Erotismo Sexualidade e Ge
Curso Integral Erotismo Sexualidade e Ge
Departamento de Filosofia
Primeiro Semestre de 2014
1
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá , como
alguns de seus critérios diagnó sticos, como lemos no mais recente manual de
psiquiatria (o DSM-V): ausência ou reduçã o de excitaçã o sexual durante a
atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma
forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma
persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por
atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculaçã o
precoce serã o divididos em três grupos: suave (se a ejaculaçã o ocorrer entre 30
segundos ou 1 minutos apó s a penetraçã o), moderado (entre 15 e 30 segundos)
severo (quando ocorre antes da penetraçã o ou em até 15 segundos apó s a
penetraçã o). Foi pensando na generalizaçã o desse modo de saber sobre a
sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu:
É muito prová vel que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre
sexo, nã o pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique
a natureza quase literá ria de seus relatos de caso. Mas sua posiçã o expressa
outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do
sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco
sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos
relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos.
Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-
determinaçã o. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito
dotado de uma histó ria (a histó ria do meu desejo), de um corpo (o regime de
prazeres pró prio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto
talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto
defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o sexo,
a revelaçã o da verdade, a inversã o da lei do mundo, o anú ncio de um outro dia e
a promessa de uma certa felicidade estã o ligados”3. Se Freud pode se vangloriar
de nã o ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota de nã o
mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual falar de
sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos e suas
posiçõ es existenciais, prometer uma certa felicidade através da constituiçã o de
uma relaçã o autô noma consigo mesmo.
Notem uma inflexã o importante. Nã o se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nó s poderíamos descobrir uma histó ria, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
histó ria e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construçã o que nã o seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalizaçã o das categorias do discurso de uma
ciência. Uma ciência que nã o apenas descreve, mas que também, e
2
BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180
3
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema
do conhecimento psiquiá trico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e
argumentaçã o”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade nã o se encontra na
identificaçã o de uma espécie de libido natural que deve se fazer sentir. O
problema da sexualidade se transforma na descriçã o de modos de produçã o de
corpos, histó rias e identidades a partir das categorias de um discurso social
fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invençã o da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversõ es através destes grandes tratados psiquiá tricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nó s podemos dizer
que nã o era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nó s
podemos mesmo dizer que nã o havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que prá ticas homossexuais existiram antes e sempre existirã o, mas
nã o a concepçã o, tã o evidente para nó s, de que elas, por si só , definem uma
identidade social em toda sua extensã o, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepçã o sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, haviam prá ticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas nã o eram uma questã o em si, nã o está vamos em um mundo no qual
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questã o definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou nã o o papel de um agente passivo, se
alguém era ou nã o capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá :
Sexo e filosofia
Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o
problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosó fico
específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento,
como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles
que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam
na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da
sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo
momento, nos pareceu fundamental nã o apenas dizer que fazemos sexo, mas que
4
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
5
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço pú blico, se fazer
reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importâ ncia.
Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre
sexo seria um problema filosó fico? Por que sexo e os discursos que o envolvem
seriam objetos de investigaçã o propriamente filosó fica? Ou seja, nã o um
problema ligado à psicologia e a reflexã o sobre seus modos de intervençã o
clínica, nã o um problema socioló gico ligado a prá ticas sociais de codificaçã o de
comportamentos de interaçã o, nã o um problema bioló gico ligado a modos de
reproduçã o, mas um problema filosó fico. Porque vocês poderiam se perguntar se
nã o seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras á reas de saber, ao
invés de discuti-lo em um curso de filosofia.
“A filosofia é uma reflexã o para a qual qualquer matéria estranha serve,
ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha” 6. Esta
frase é de um filó sofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de
Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um
curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto
pró prio à filosofia. Se descartarmos a visã o historiográ fica que dirá ser a filosofia
a reflexã o sobre os textos que definem o campo da tradiçã o filosó fica, definiçã o
ruim nã o apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensã o da
gênese da chamada “tradiçã o filosó fica” (gênese que admite textos até entã o
completamente fora do dito debate intratextual da tradiçã o filosó fica), entã o
ficamos com uma questã o central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de
fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosó ficos”,
assim como falamos que existem objetos e fenô menos pró prios à economia, à
teoria literá ria e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um
filó sofo falar de um texto literá rio, fazer consideraçõ es sobre um problema
econô mico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao
fazer isto, ele deixaria de ser filó sofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for
estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosó fico: ele nã o
tem objetos que lhe sejam pró prios. De certa forma, podemos dizer que a
filosofia é um discurso vazio pois nã o há objetos propriamente filosó ficos, o que
talvez nos explique porque nã o pode haver, por exemplo, teoria do conhecimento
sem reflexõ es aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, uma ciência
empírica, nã o há estética sem crítica de arte, filosofia política sem ciência
política, mesmo ontologia sem ló gica. Em todos estes casos a filosofia toma de
empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo
desenvolvimento nã o lhe compete diretamente.
Mas nã o haver objetos propriamente filosó ficos nã o significa afirmar
inexistir questõ es propriamente filosó ficos. Há um modo de construir questõ es
que é pró prio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer
objeto. Tal modelo filosó fico de construçã o de questõ es nos permite identificar e
pensar certos problemas que nã o poderiam ser pensados de maneira adequada
fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de
uma questã o filosó fica é sua forma de se perguntar sobre como um fenô meno ou
um objeto é um evento. Ou seja, nã o se trata simplesmente de descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razõ es
de existência a partir de uma reflexã o sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
6
CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenô menos
produzem modificaçõ es em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento nã o é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguraçã o em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Por isto, nã o seria incorreto dizer que toda questã o filosó fica é
necessariamente vinculada a um evento histó rico, ela é a ressonâ ncia filosó fica
de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidá ria do impacto filosó fico da
física moderna. Ela é a elaboraçã o, até as ú ltimas consequências, da dissoluçã o
do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como
fruto das aspiraçõ es emancipadoras da Revoluçã o Francesa.
Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosó fico quando ele
aparecer como um evento. E a boa questã o talvez seja: em que condiçõ es “sexo”
e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um
acontecimento capaz de produzir reconfiguraçõ es profundas em nossa forma de
vida?
A continuidade do erotismo
Veremos nas nossas pró ximas aulas o que pode significar uma
experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a
pena insistir em um ponto. Através da construçã o de uma noçã o de “erotismo”
desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento
impensá vel no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas
sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele
quer mostrar como as sociedades capitalistas nã o sã o apenas economicamente
injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da
exclusã o de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força.
Notemos como há , aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à
experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o
fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é
animado por um evento histó rico preciso. Como veremos, a experiência pré-
moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos
de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao
modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille
representava a versã o nã o-oficial, em conflito contínuo com aquela representada
por André Breton.
Neste sentido, através da reflexã o filosó fica sobre o sexo, Bataille procura
pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicaçã o
sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemô nica do
capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores
da primeira metade do século XX.
Gênero
A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha
força nas ú ltimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo
uso do conceito de “gênero”. Foi a filó sofa norte-americana Judith Butler quem se
responsabilizou pela transformaçã o de um conceito psiquiá trico em forte
conceito de orientaçã o para prá ticas de transformaçã o social. Seu verdadeiro
inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968
intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de
construçã o de identidades de gênero através da articulaçã o entre processos
sociais, nomeaçã o familiar e questõ es bioló gicas.
Judith Butler, por sua vez, irá levar à s ú ltimas à s ú ltimas consequências a
distinçã o entre sexo (configuraçã o determinada biologicamente) e gênero
(construçã o culturalmente determinada). No seu caso, nã o se trata de fornecer
uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre natureza e cultura, até porque
gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”9. Tal noçã o de gênero como ante-câ mara de produçã o da ‘natureza
sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o cará ter ideoló gico de
8
Idem, p. 55
9
BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11
uma noçã o biná ria de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposiçã o de
um sistema biná rio de gênero depende da crença em uma relaçã o mimética entre
gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por
ele”10.
Diferentemente da noçã o foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de
tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de
uma teoria da açã o política, teoria que procura entender a maneira com que
sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas, nã o apenas como eles sã o sujeitados à s normas e
completamente constituído por elas. Por isto, pelas mã os de Butler, a teoria de
gênero nã o será apenas uma teoria da produçã o de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que nã o
se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido” 11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmaçã o como:
Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado
pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até entã o, estava expulso
do universo do humano. Do que era visto como patoló gico, doentio e, por isto,
sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A
modificaçã o da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de
gênero foi um acontecimento de forte ressonâ ncia filosó fica, pois nos colocaria
diante da compreensã o de como nossa humanidade depende do reconhecimento
de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano.
Notem entã o como no caso do uso desses três conceitos (erotismo,
sexualidade e gênero) por três filó sofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith
Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias
diferentes, embora nã o completamente divergentes, da filosofia se voltar para
uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo
fenô meno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será
organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigató ria de vocês:
“O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “Histó ria da
sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O
curso será , em larga medida, uma apresentaçã o comentada desses três livros, ou
de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a
experiência do comentá rio possa funcionar.
Ao ler tais livros, lembrem como esses três filó sofos tecem, ainda, relaçõ es
profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua
obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há , entre os três, uma
10
idem, p. 10
11
Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
12
Idem, p. 25
interessante circulaçã o de pensamento que nã o se dá sobre a forma tradicional
da influência ou da continuidade. Há uma circulaçã o de pensamento por
exploraçã o de possibilidades nã o trilhadas, como se uma experiência de
pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns
fios descosidos que poderã o entrar em tramas completamente diferentes. Esses
que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem nã o ser os
leitores mais fieis, mas sã o certamente os melhores, os ú nicos que compreendem
o texto filosó fico como um processo aberto de invençã o. As vezes, a infidelidade
é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade
nunca foi uma virtude filosó fica, embora a pura e simples incapacidade de entrar
nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar.
Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposiçã o uma forma
de fazer comentá rio filosó fico que nã o é apenas a imersã o na textualidade
interna de certos textos da tradiçã o, mas que seja a capacidade de identificar e
constituir problemas filosó ficos. De fato, vocês aprenderã o técnicas
fundamentais para todo e qualquer processo filosó fico de leitura de textos da
tradiçã o : saber identificar o tempo ló gico que nos ensina a reconstituir a ordem
das razõ es internas a um sistema filosó fico, pensar duas vezes antes de separar
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender
como o método se encontra em ato no pró prio movimento estrutural do
pensamento filosó fico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental
para a constituiçã o daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita
a autonomia do texto filosó fico enquanto sistema de proposiçõ es e nã o se
apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato
de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele
nã o define o campo geral dos modos filosó ficos de leitura. Ele define, isto sim,
procedimentos constitutivos da formaçã o de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosó fico mas, por mais que isto
possa parecer ó bvio, o fazer filosó fico vai além do seu início. Por isto, talvez seja
interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do
que normalmente nos mostraríamos.
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de
boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 2
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o se
confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:
O excesso e os números
18
Idem; A parte maldita, p. 21
19
Idem; O erotismo, p. 188
nã o tem medida comum, eles nã o seguem a mesma ló gica. Sua relaçã o é de
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, nã o sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, nã o significa dizer que o
erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso nã o é da ordem da grandeza,
mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois
isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenô menos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que nã o
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos
mensurá veis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que nã o aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que nã o entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da ló gica utilitá ria. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em
tudo o que parece inumano no sexo:
Consciência de si e soberania
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserá vel
(o que, o mais pobre à s vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nó s sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fú nebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de gló ria25.
23
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
24
Idem, p. 289
25
Idem, p. 249
Bataille, característica que veremos com mais calma na pró xima aula, é sua
posiçã o de transgressã o em relaçã o à lei. Se na teoria política o soberano é
aquele que está , ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei,
mas à ela ele nã o se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem
soberano é aquele que estabelece com a lei uma relaçã o de transgressão. Ele
pode ir em direçã o ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos
homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressã o
da lei”26. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de
transgressã o na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as
posiçõ es, as prá ticas interditadas sã o continuamente colocadas em questã o e
profanadas. Pois o erotismo é pró prio a: “um mundo que se desnuda na
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride” 27. Veremos
melhor este ponto na aula que vem
Mas Bataille também acrescenta algo à noçã o de soberania, a saber, a
ideia de que a consciência de si soberana nã o é a realizaçã o final de uma
identidade reconquistada. O verdadeiro soberano nã o é aquele que se deleita na
segurança de sua pró pria identidade. Ele é aquele que depô s todo desejo de auto-
identidade. O verdadeiro soberano é aquele que nã o teme se perder, que nã o
teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma
experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produçã o, da conservaçã o de
si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é
fundada na capacidade de transformar a relaçã o a si em uma relaçã o que nã o
será relaçã o homogênea, mas uma relaçã o heterogênea. Veremos na aula que
vem como a experiência do erotismo nos coloca no caminho em direçã o a tal
consciência.
26
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
27
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 3
Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserá vel
(o que, o mais pobre à s vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
30
MAUSS, idem, p. 193
31
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
32
Idem, p. 289
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nó s sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fú nebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de gló ria33.
37
Idem, p. 42
38
Idem, p. 41
forma de volta de nossas sociedades a esses está gios pré-modernos e,
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais
experiências ainda estã o presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma
distorcida e profundamente destrutiva. Para a geraçã o de Bataille, fenô menos
como a ascensã o do nazismo e do fascismo foram ocasiõ es para compreender
como o processo de formaçã o das individualidades modernas era agenciado de
forma tal a produzir sujeitos indefesos à seduçã o dos regimes totalitá rios. Nã o
por outra razã o, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma aná lise psicoló gica
do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicoló gica do
fascismo”.
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da
produçã o é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construçã o de uma
estrutura social na qual relaçõ es e valores sã o baseadas na utilidade e na
quantificaçã o. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relaçõ es humanas podem ser mantidas por uma reduçã o
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
situaçõ es definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusã o do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma pró pria de apreensã o pela consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,
já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relaçã o ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibiçã o social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a gló ria e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a pró pria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atraçã o quanto repulsã o e se apresentam a nó s através da força
violenta do choque.
Bataille afirma entã o que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instâ ncia
dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania
presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania
assentada na experiência da dominaçã o.
Esta dominaçã o, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade
homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o
outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominaçã o,
revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do
heterogêneo como astú cia ú ltima da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que nã o se submete a
esta soberania moná rquica recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao
falar das experiências do sagrado e do erotismo.
39
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
Desta forma, duas concepçõ es de soberania podem entã o se contrapor.
Quando a soberania está presente sob as mú ltiplas formas do poder moná rquico,
seres humanos sã o, no interior de uma relaçã o de dominaçã o, apenas elementos
negados. Quando ela é reapropriada pelos seres humanos, a pró pria dominaçã o é
negada.
Sexo e morte
Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressã o
da descontinuidade para a qual o erotismo tenderia. Aqui nó s devemos fazer
apelo a uma certa filosofia da natureza presente no horizonte do pensamento de
Bataille. Ela parte da ideia de que a atividade vital está , a todo momento, tendo
que lidar com a noçã o de excesso:
Como vocês podem ver, trata-se de uma proposiçã o bioló gica sobre a
natureza. Ela consiste em dizer que há um mobilidade interna ao fato vital que
leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo que lhe aparece como
excessivo, pois nã o submetido ao padrã o atual de suas atividades e de normas.
Esta energia excessiva pode servir ao crescimento e desenvolvimento do pró prio
organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua destruiçã o, ou seja,
à s destruiçã o de sua forma. As formas vitais nã o apenas se desenvolvem; elas
procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as
leve à destruiçã o: “se nã o temos força para destruir a energia em acréscimo, ela
nã o pode ser utilizada; e, como um animal intato que nã o se pode domar, é ela
que nos destró i, somos nó s mesmos que arcamos com os custos da explosã o
inevitá vel”41. Neste sentido, as individualidades orgâ nicas sã o estruturalmente
instá veis, pois para dar conta da energia que as atravessa, elas devem gastá -la
como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista da pura
conservaçã o das formas atuais, nã o tem sentido algum.
Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo bioló gico que age sem ter em vista sua pró pria auto-preservaçã o e
reproduçã o. Nã o deixa de ser interessante encontrar tal conceito de organismo
em alguns dos setores mais avançados da biologia contemporâ nea. Lembremos,
por exemplo, desta afirmaçã o do bió logo Henri Atlan, para quem o organismo
bioló gico é uma organizaçã o dinâ mica capaz de ser um processo de:
O interdito e a transgressão
Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo
como fenô meno indissociá vel do interdito e da transgressã o. Bataille lembra que
a realidade humana difere daquela pró pria ao animal porque ela é submetida a
leis. A princípio, tal proposiçã o pode parecer estranha pois conhecemos bem
como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto
no mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no caso humano há , ao
menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os interditos sã o indissociá veis de
sua transgressã o. Nã o há interdito sem transgressã o regulada ou, muitas vezes,
prescrita. Nã o há proibiçã o do assassinato sem a regulaçã o de suas transgressõ es
possíveis (como a guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e
transgressã o, há uma profunda cumplicidade entre a lei e a violaçã o da lei que
aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer
que: “a transgressã o difere do ‘retorno à natureza’: ela suspende o interdito sem
suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se encontra ao
mesmo tempo a mola propulsora das religiõ es”47.
É a essa “suspensã o sem supressã o” que devemos voltar nossos olhos. A
princípio, ela tenderia a indicar um movimento neuró tico no qual o sujeito
parece necessitar dos muros da prisã o para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressã o do interdito como condiçã o para o gozo. E
Bataille nã o deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angú stia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Ele seria um erotismo acalmado no interior de uma
regiã o na qual a vida nã o força seus limites e nã o testa novas formas. Tentemos,
por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:
48
Idem, p. 86
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 4
51
Idem, p. 86
52
Idem, p. 67
53
Idem, p. 72
54
Idem, p. 79
55
Idem, p. 85
Esta funçã o da angú stia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na
medida em que podem (é uma questã o – quantitativa- de força) os homens
buscam as maiores perdas e os maiores perigos” 56. Neste sentido, eles nã o se
afastam simplesmente do que lhes provoca angú stia, mas sã o chamados por ela,
como quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem
claramente como sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um
momento, essa festa orgiá stica e violenta que a natureza celebra com a multidã o
inesgotá vel dos seres. Poderíamos nos perguntar pela razã o de tal desejo de
durar. Talvez porque a vida precise da suspensã o temporá ria da angú stia
provocada por esses turbilhõ es. E ela precisa porque faz-se necessá rio levar em
conta princípios contrá rios: uma certa conservaçã o e uma certa dissoluçã o, ou
seja, uma flexibilizaçã o pró pria à continuidade do jogo entre interdiçã o e
transgressã o. Ou seja, através do erotismo a experiência humana dá forma à quilo
que coloca em cheque as estruturas da forma. E ao permitir tal aproximaçã o, o
erotismo aparece como fonte de liberaçã o da vida dos limites que ela, por um
momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia aparecer, ao contrá rio,
como espaço no qual nã o forçamos mais os limites postos pelos interditos
quando ele perde sua dimensã o renovadora.
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o pró prio movimento vital
seria um movimento de ereçã o de interditos e transgressõ es perió dicas. Como se,
paradoxalmente, devessemos admitir que os interditos estã o aí para serem
violados. Pois: “A frequência – e a regularidade – das transgressõ es nã o abala a
firmeza intangível do interdito, de que é sempre o completamente esperado
como um movimento de diá stole completa um de sístole, ou como uma explosã o
é provocada por uma compressã o que a precede”57. À condiçã o de que aceitemos
se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades sã o mó veis na
constituiçã o de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirã o se
sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressã o contínua
acaba por transformá -los em interditos paró dicos ou em interditos fracos . Por
exemplo:
56
Idem, p. 110
57
Idem, p. 89
58
BATAILLE, Georges; Histoire de la sexualité, p. 45
Uma teoria da transgressão
No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que
pensar tal encarnaçã o violenta do divino como transgressã o? Há duas maneiras
59
Idem, p. 78
60
FOUCAULT, Michel; Preface à la transgression, in: Dits et écrits, vol. I, p. 264
61
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 266
de responder tais perguntas: uma dada por Michel Foucault e outra voltando a
uma das referências principais de Bataille, a saber, Hegel. A interpretaçã o de
Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista algo parecido a uma dialética na
relaçã o entre interdito e transgressã o, uma dialética que seria a expressã o de
uma relaçã o entre o finito e infinito, entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relaçã o dialética porque se os interditos sã o postos
para serem transgredidos, é porque os homens precisam organizar a vida social
a partir de uma contradiçã o. Esta é inclusive uma boa definiçã o de dialética,
fornecida por Hegel em uma conversa com Goethe: “espírito de contradiçã o
organizado”, e que nã o deixa de, de certa forma, ressoar a definiçã o que Bataille
fornece da transgressã o como uma: “desordem organizada 62. Maneira de
compreender a contradiçã o como forma de produzir experiências através da
tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir
da diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradiçã o dialética nã o é
simplesmente a marca de uma impossibilidade de pensar e de constituir objetos,
como seria o caso se estivéssemos diante de duas proposiçõ es contrá rias sobre o
mesmo objeto e sobre o mesmo aspecto (Só crates é e nã o é homem sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo). A contradiçã o dialética é um modo do ser entrar em
movimento e de admitirmos que o ser nã o é aquilo que permanece sempre igual
a si mesmo, como uma substâ ncia que subsiste graças ao cará ter inalterado de
sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu pró prio princípio de
alteraçã o, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superaçã o.
Movimento através da qual o ser nega a si mesmo, nega sua pró pria identidade
sem necessariamente se auto-destruir, nega seus limites graças a uma negaçã o
que conserva algo do anteriormente negado. Neste sentido, a contradiçã o é
interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relaçã o entre interdito e
transgressã o seria a maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito
uma norma, entã o tudo se passa como se as normas fossem, ao mesmo tempo, a
definiçã o do que devo fazer e de como é possível transgredir tal dever. Neste
sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira realizaçã o da norma sempre
aponta para uma superaçã o da norma.
Isto é possível porque a negaçã o da norma nã o é, para Bataille, alguma
forma de retorno à animalidade. Negar os interditos nã o significa voltar à
condiçã o animal inicial. Os interditos visam, de certa forma, negar nossa
condiçã o animal, mas a transgressã o visa negar tal negaçã o, superando-a sem, no
entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este movimento, que se inspira
claramente na dinâ mica hegeliana de uma negaçã o da negaçã o implica
possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitaçõ es do interdito sem, no
entanto, anular a experiência histó rica que o produziu.
Foucault nã o admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é
negativo na transgressã o”63. A transgressã o nã o nega nada. Ela seria, na verdade,
uma bisonha “afirmaçã o nã o positiva”, uma afirmaçã o que nã o afirma nada. Sua
maneira de colocar em questã o o ser através de uma linguagem da transgressã o,
ou seja, de uma linguagem do limite nã o implicaria em contradiçã o alguma. Pois
a contradiçã o pareceria implicar que precisaríamos sempre conservar o que é
negado no interior mesmo da determinaçã o do ser. Parece que sempre
62
BATAILLE; O erotismo, p. 144
63
Idem, p. 266
precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente,
ela pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética
hegeliana) unificar os opostos em uma síntese final. Pois sendo os diferentes
aquilo que se articula em um movimento contínuo, entã o eles acabam por se
submeterem a uma síntese. O que nã o parece ser o sentido da transgressã o em
Bataille. Ela nã o caminha em direçã o a uma síntese, mas a uma relaçã o, sempre
fulgurante e violenta, ao infinito e ao absoluto.
O sacrifício
64
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
65
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
66
Idem, O erotismo, p. 116
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
nã o parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressã o
invertida dos processos de reproduçã o material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histó rico marxista. Ela é a composiçã o material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direçã o a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direçã o a uma matéria que é produçã o contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximaçã o entre sacrifício e amor
nã o é feita em nome da visã o moral de que a relaçã o afetiva duradoura exige a
restriçã o dos interesses pró prios em nome da construçã o de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participaçã o através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que nã o é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que nã o pode ser visto como expressã o de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mú tuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenô meno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletó rica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” 67. Entre o amor
dos filó sofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinçã o entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que nã o aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e nã o sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
nã o como identidade, mas como espaço de confrontaçã o com a heterogeneidade
que nã o se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusã o que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusã o fosse a condiçã o para uma
experiência social de emancipaçã o em relaçã o à s amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinaçã o pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusã o pró prio à s massas fascistas, com sua fusã o
67
Idem, p. 129
organizada a partir da identificaçã o a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Nó s vimos na aula passada como Bataille insiste que
nossa sociedades sofrem por nã o saberem como dar conta de uma experiência da
heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de fusã o e de perda de
limites da individualidade. Vimos também como o fascismo seria maneira de
absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de
fusã o produz uma homogeneidade organizada sob a identificaçã o,
profundamente disciplinar, a um líder transcendente, cujo discurso é marcado
pela unidade, pela depuraçã o e purificaçã o do corpo social. Maneira da
identidade ter a ú ltima palavra, mesmo se através do uso do desejo de
heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o
fascismo acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”68.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que nã o se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”69. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta nã o é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e nã o haverá superaçã o do fascismo se nã o lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulaçã o do desejo. No fundo, a questã o política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmaçã o importante
como:
68
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
69
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
70
Idem, p. 163
Kojève foi insistir na importâ ncia de compreendermos as dinâ micas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
sã o, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posiçã o de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noçã o de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?
Veremos melhor este ponto na pró xima aula.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 5
Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava
nã o querer mais controlar as coisas através da sua submissã o à utilidade delas
para mim, que normalmente sou seu proprietá rio, nem controlar o tempo
através da submissã o do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define
como causa das limitaçõ es que aceito no presente, que aprisiona o presente em
uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade
definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo do gozo.
A fim de compreender porque Bataille associa a afirmaçã o de tal
soberania ao movimento de transgressã o, eu sugeri operarmos uma passagem
em direçã o à quilo que poderíamos chamar de uma “filosofia da natureza”. Ela se
expressa em uma forma peculiar de pensar a relaçã o entre a vida e morte, entre a
organizaçã o e a desorganizaçã o. Para Bataille, há um mobilidade interna ao fato
vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo
desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois nã o submetido ao padrã o
atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao
71
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
crescimento e desenvolvimento do pró prio organismo, mas a partir de certo
ponto ela pode levar à sua destruiçã o, ou seja, à s destruiçã o de sua forma. As
formas vitais nã o apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio
vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruiçã o: “se nã o temos
força para destruir a energia em acréscimo, ela nã o pode ser utilizada; e, como
um animal intato que nã o se pode domar, é ela que nos destró i, somos nó s
mesmos que arcamos com os custos da explosã o inevitá vel”72. Neste sentido, as
individualidades orgâ nicas sã o estruturalmente instá veis, pois para dar conta da
energia que as atravessa, elas devem gastá -la como puro dispêndio, ou seja,
como algo que, do ponto de vista da pura conservaçã o das formas atuais, nã o tem
sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo bioló gico que age sem ter em vista sua pró pria auto-preservaçã o e
reproduçã o. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento
para a auto-preservaçã o de sua forma momentâ nea. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à pró pria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Nã o há nada que reduza a violência”73. Pois:
Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinaçã o ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
á pice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressã o
que nã o para antes de ter atingido o á pice da transgressã o. Sade nã o
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si. A negaçã o dos
outros se torna, no extremo, negaçã o de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?77.
77
Idem, p. 202
78
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
79
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
80
SADE, ibidem, p. 83
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e
gratuito de repetiçã o do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um
pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio à s orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito
com apatia e contençã o. O gozo dos personagens de Sade, como vá rios
observaram, é um gozo apá tico.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do á pice em direçã o ao
qual algo em nó s caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o
pró prio egoísmo acendeu. Daí uma afirmaçã o como:
86
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
87
Idem, p. 216
88
Idem, p. 219
89
Idem, p. 279
um bom nú mero de escritores contemporâ neos. Mas os motivos que ele fornece
lhe sã o pró prios: é o ó dio do místico que ele reivindica, nã o o ó dio do
terrorista”90.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que
normalmente chamamos de ‘experiência mística’”91. Há algo na experiência de
fusã o e afastamento das estruturas de conhecimento que se expressam na
linguagem prosaica pró pria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como
vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo apó s
a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do esgotamento da
força representativa da linguagem. Consciência tã o alargada que estaria mesmo
disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:
90
SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136
91
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
92
Idem, p. 17
93
Idem; O erotismo, p. 285
Ela nã o produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre
no interior do campo onde nossos modos de intuiçã o e categorizaçã o desabam.
Neste sentido, a funçã o do discurso filosó fico nã o consiste em fornecer um saber
prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direçã o à quilo que
Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de
funcionamento do discurso no qual disposiçõ es contrá rias acabam por conviver.
Este riso talvez nã o seja exatamente o riso da ironia, com sua afirmaçã o de
existir sempre algo para além da enunciaçã o e no interior do qual o sujeito do
enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que
nã o é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angú stia alegre ”. Um tipo de afeto
para o qual talvez nã o estejamos acostumados, pois é angú stia que sabe que o
que lhe angustia guarda algo de profundamente necessá rio:
94
BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 6
O poder disciplinar
96
FOUCAULT, Michel; Em defesa da sociedade, p. 25
97
Idem, p. 35
dispositivos pró prios a uma política fundamentalmente ligada à noçã o de
“segurança”.
O poder soberano, segundo Foucault, teria seu paradigma na figura da
encarnaçã o moná rquica da legitimidade, com sua fundamentaçã o do exercício da
lei na vontade do soberano. Derivado da figura romana da patria potestas, ele
sempre foi o poder de decidir sobre a vida e a morte daqueles que a ele se
submetem, mesmo que este direito esteja, em vá rias situaçõ es, condicionado
pelos casos onde está em questã o a defesa do soberano. Lembremos, por
exemplo, da maneira que Foucault analisa o sentido do crime no interior do
modelo de funcionamento do poder soberano:
O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ele lhe ataca
pessoalmente porque a lei vale como a vontade do soberano; ele lhe ataca
fisicamente porque a força da lei é a força do príncipe (...) O direito de
punir será pois como um aspecto do direito que o soberano detém de
fazer a guerra contra seus inimigos (...) o suplício [sempre ligado à pena]
tem pois uma funçã o jurídico-política. Trata-se de um cerimonial para
reconstituir a soberania ferida momentaneamente (...) Seu objetivo é
menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor, até seu ponto
extremo, a dessimetria entre o sujeito que ousou violar a lei e o soberano
onipotente que faz valer sua força98.
98
Idem, pp. 58-59
99
Idem, Histoire de la séxualité, p. 181
100
Idem, O poder psiquiátrico, p. 51
fundamental de contato com o poder, é porque a gestã o da vida passa
necessariamente pelo fortalecimento e condicionamento do corpo, sendo que
muito haverá a se dizer sobre o que pode significar “fortalecimento” neste
contexto (fortalecimento em relaçã o ao que? À morte e à doença, física e mental?
Mas toda a reflexã o clínica no século XX – na qual a obra do pró prio Foucault
deve ser incluída - foi marcada pela idéia de as formas de fortalecimento sã o
indissociá veis do desenvolvimento de novas formas do adoecer).
Por outro lado, a segunda característica maior do poder disciplinar é sua
capacidade individualizadora. Foucault nã o cansa de repetir que: “o indivíduo,
parece-me, nã o é mais que o efeito do poder, na medida em que o poder é um
procedimento de individualizaçã o”101. Lembremos desta afirmaçã o central:
101
idem, p. 21
102
Idem, Sécurité, territoire, population, p. 14
103
idem, p. 68
104
Idem, p. 12
política trata da gestã o de algo que se apresenta como dotado de uma certa
naturalidade. A este respeito, lembremos da definiçã o foucauldiana de populaçã o
como: “uma multiplicidade de indivíduos que sã o e que existem apenas
profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no
interior da qual eles existem”. Esta materialidade fornece um meio capaz de
produzir acontecimentos que aparecerã o como “naturais”, regulados apenas
indiretamente, como se fosse questã o apenas de assegurar as condiçõ es de
possibilidade para que uma certa naturalidade da sociedade encontre seu solo
profícuo. Como se existisse uma: ‘naturalidade específica das relaçõ es dos
homens entre si, do que se passa espontaneamente quando eles cohabitam,
quando eles estã o juntos, quando eles trocam, trabalham, produzem” 105.
Desta forma, constitui-se uma organizaçã o do poder sobre a vida
composta por dois pó los de desenvolvimento profundamente interligados. O
primeiro, disciplinar, nos forneceria uma anatomo-política do corpo humano. Já o
segundo, composto por “controles reguladores”, forneceria uma bio-política da
população; ou seja, disciplinas do corpo e regulaçõ es da populaçã o. Esta junçã o
de anatomo-política e de bio-política é o que devemos entender por bio-poder.
A produção da sexualidade
105
Idem, p. 357
106
BADIOU, Alain; O século, p. 112
e as coisas, a posiçã o da psicaná lise no interior da episteme moderna mudará .
Neste livro, Foucault ainda afirmava:
De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
107
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
108
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
109
Idem, p. 15
110
Idem, p. 16
O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es
discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento111.
A hipótese repressiva
111
Idem, p. 20
112
Idem, p. 21
113
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensã o de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressã o. Na verdade, o que vemos é uma “incitaçã o institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulaçã o explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”114.
Desde a pastoral cató lica com seus ritos de confissã o, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelaçã o e do exame minucioso de si tendo em vistas a associaçã o da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunçã o tã o particular ao ocidente moderno”, a
saber:
114
Idem, p. 27
115
Idem, p. 29
116
Idem, p. 35
um país populoso, entã o algumas questõ es centrais de administraçã o pú blica
serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relaçõ es sexuais, o efeito
do celibato e das interdiçõ es, a incidência de prá ticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituiçã o pedagó gica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrá rio, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma
codificaçã o estrita de seus conteú dos e uma qualificaçã o exclusiva de seus
interlocutores:
É bem prová vel que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condiçã o para o
funcionamento de outros discursos, mú ltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relaçõ es de poder117.
117
Idem, p. 42
118
Idem, p. 46
A perversão do discurso
De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos
de falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
120
BADIOU, Alain; O século, p. 112
121
FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 16
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
Esta distinçã o entre arte eró tica e ciência da sexualidade é central para
Foucault. Ela nos remete claramente a Georges Bataille, haja vista a maneira
foucaultiana de lembrar que, na arte eró tica, desconhecemos relaçã o: “a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, nã o é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta”. Sabemos como esta crítica à ló gica
utilitarista no campo do erotismo vem de Bataille, assim como a compreensã o de
uma dinâ mica de interdiçã o e transgressã o que nã o se baseia no respeito
absoluto a uma lei. Como dissera na aula passada, tudo se passa como se
Foucault procurasse desenvolver, através do conceito de “sexualidade” o tipo de
experiência sexual pró pria à s sociedades dos indivíduos e seu regime de fala.
Se, como vimos na aula passada, a ciência da sexualidade baseava-se em
um modo de falar sobre o sexo que encontra suas raízes no sacramento da
confissã o, nada disto será encontrado fora do ocidente. Foucault chega a dizer
que estamos diante de duas formas de relaçã o entre sexo e verdade: uma que
privilegia a confissã o (que Foucault define como modelo jurídico-religioso, ou
ainda, jurídico-discursivo de enunciaçã o da verdade) e outra que seria uma
pedagogia da iniciaçã o. Ou seja, o ocidente seria, entre outras coisas, uma
maneira peculiar de definir o sexual através da “expressã o obrigató ria e
exaustiva de um segredo individual”125. O que nã o poderia ser diferente já que,
para Foucault, a razã o moderna ocidental é, antes de mais nada, uma forma
disciplinar de poder baseada em uma estilística disciplinar do fazer falar. “Diga-
me como você fala e te direi como você se submete”. Por isto, Foucault se
pergunta: “Pode-se articular a produçã o da verdade segundo o velho modelo
jurídico-religioso da confissã o e a extorsã o da confidência segundo a regra do
124
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
125
Idem, p. 82
discurso científico?”126. Na verdade, nossas sociedades nã o teriam feito outra
coisa. Foucault chega a descrever algumas características maiores da nossa
ciência da sexualidade que permitiram tal sobreposiçã o.
Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento
de um conjunto de signos e sintomas decifrá veis (questioná rio, interrogató rio,
amanese, hipnose etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa,
como se o sexo fosse dotado de um poder causal inesgotá vel e polimó rfico. “Nã o
há praticamente doença ou problema físico ao qual o século XIX nã o imaginou ao
menos uma parte de etiologia sexual”127. Terceiro, o princípio de latência
intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse naturalmente dotada de
uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissã o uma tarefa
sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissã o trouxesse
uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissã o. Por
fim, a medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:
126
Idem, p. 86
127
Idem, p. 88
128
Idem, p. 90
com tal modelo por ser composto por prescriçõ es que nã o podem ser
compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.
No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma
forma de ajuste entre prá ticas sociais e “disposiçõ es naturais” singulares e que
constituem, para um sujeito, algo como uma dimensã o de verdade. No entanto,
os termos deste ajuste nunca sã o completamente definidos por Foucault. Ele fala,
em vá rios momentos, de uma: “intensificaçã o da relaçã o à si através da qual
alguém se constitui como sujeito de seus atos” 129, de uma forma “ ao mesmo
tempo particular e intensa de atençã o ao corpo”130 ou ainda de “ soberania” do
indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificaçã o” porque o problema está ligado à
força, à moderaçã o e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade sã o,
para um homem, as duas formas maiores da imoralidade na prá tica dos
aphrodisia”131.
Nota-se que esta constituiçã o soberana de si passa por um deslocamento
do si mesmo, da dimensã o da autonomia individual à reconciliaçã o com o corpo.
De toda forma, tal soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida
como uma transformaçã o que nã o pode ser vista como resultado de
procedimentos disciplinares. Daí a definiçã o de tal soberania como uma arte da
existência composta por:
prá ticas refletidas e voluntá rias através das quais os homens nã o apenas
fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo132.
Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de
si mesmo, implica capacidade de constituiçã o de si como sujeito moral, mas esta
moralidade nã o pode ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral
cujo assento deve ser pensado no ajustamento ao có digo. Na verdade, tal
soberania leva a uma moral orientada, nã o para o có digo, mas para o ético.
Assim, ao invés das interdiçõ es e fronteiras, a teríamos definiçõ es das
modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as
circunstâ ncias, posiçã o pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa
“individualidade” é aqui necessá ria.
O dispositivo da sexualidade
129
Histoire de la séxualité III, p. 57
130
Idem, p. 78
131
Histoire de la séxualité II, p. 65
132
Idem, p. 18
philosophiques, morales, philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du
non dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le
réseau qu’on peut établir entre ces éléments133.
133
FOUCAULT, Michel; Le jeu de Michel Foucault
134
Histoire de la séxualité I, p. 118
135
Idem, p. 122
Esta idéia de poder é onipresente nã o porque ela tudo engloba em uma
unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela nã o depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela nã o resulta de decisõ es e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fá cil perceber
também que a noçã o mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
pró prio poder só pode existir em funçã o de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está , a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâ micas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficá cia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo mú ltiplo e mó vel de relaçõ es de força no qual se produzem efeitos globais
de dominaçã o, mas jamais totalmente está veis”136.
Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem
particularmente denso para as relaçõ es de poder entre homens e mulheres, entre
jovens e velhos, pais e filhos, educadores e alunos, administradores e populaçã o.
Ela se desenvolve no momento em que o dispositivo de aliança, com seus sistema
de casamento e de transmissã o, perde importâ ncia por servir mais de suporte
suficiente para os processos econô micos e as estruturas políticas. O dispositivo
de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de sexualidade
conheceria técnicas mó veis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança nunca será
ultrapassado completamente, mas e le funcionará a partir de novas dinâ micas.
Daí a transformaçã o da família em espaço de constituiçã o da sexualidade e de
seus jogos. Transformaçã o tã o presente na psicaná lise e suas noçõ es ligadas ao
complexo de É dipo.
Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do
século XVIII se constituirã o como eixos desta relaçã o de poder no interior da
sexualidade: a) a histerizaçã o do corpo feminino, b) a pedagogizaçã o do sexo
infantil, c) a socializaçã o das condutas de procriaçã o e d) a psiquiatrizaçã o dos
prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de formas de produçã o da
sexualidade seja através da definiçã o do feminino, da criança, da norma e do
desvio.
Weber e Foucault
137
Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno
texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo
feliz da não-identidade” (Ver Butler, 1999).
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 8
A produção da sexualidade
140
Sobre a noção de “imagem do pensamento” em Deleuze ver, sobretudo, DELEUZE, Gilles; Proust et
les signes, Paris: PUF, 2006, pp. 115-127
141
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 352
142
Idem, Surveiller et punir, p. 36
Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que
regimes de saber constituem prá ticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relaçã o a nó s mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que nã o deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinaçã o. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidade.
Neste sentido, é inegá vel que a força do pensamento de Freud e da
psicaná lise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicaná lise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsá vel
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressã o de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicçã o de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?” 143. As perguntas nã o poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâ neo a respeito da psicaná lise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente à quilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posiçã o da psicaná lise no interior da episteme moderna mudará .
Neste livro, Foucault ainda afirmava:
143
BADIOU, Alain; O século, p. 112
144
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta
solenidade com a qual hoje se fala do sexo145.
145
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
146
Idem, p. 15
poder”147. A psicaná lise será , a partir de entã o, inquirida tendo em vista a
produtividade de seu poder em conformidade com outros dispositivos
disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. Nã o só o complexo de É dipo
será objeto deste inquérito (como vemos no texto A verdade e as formas
jurídicas). Também a transferência, dispositivo central da clínica analítica, será
questionada a partir de sua proximidade com a confissã o (ver O poder
psiquiátrico).
E é exatamente deste movimento que se tratará na História da
sexualidade, a saber, de mostrar como um modo de falar sobre o sexo, que
procura se passar por um saber, esconde as engrenagens de um certo poder
produtivo. Exposiçã o que, como Foucault reconhece em O anti-Édipo, deverá dar
lugar a uma ética, a um modo de ser do desejo.
No entanto, há aqui uma grande diferença de Foucault em relaçã o à
perspectiva de Deleuze e de Guattari. Um leitura de O anti-Édipo demonstra,
rapidamente, como a temá tica da repressã o da sexualidade está a todo momento
presente. Há uma força de ruptura vinda do desejo que nã o encontra lugar nos
modos de reproduçã o social das sociedades capitalistas. Esta será a hipó tese a
ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez nã o tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:
De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:
147
FOUCAULT, Dits et écrist I, p. 1422
148
Idem, p. 16
149
Idem, p. 20
Desde o fim do século XVI, a “colocaçã o em discurso” do sexo, longe de
submeter-se a um processo de restriçã o foi submetido, ao contrá rio, a um
processo de incitaçã o crescente. As técnicas de poder se exercem sobre o
sexo nã o obedeceram um princípio de seleçã o rigorosa mas, ao contrá rio,
a disseminaçã o e a implantaçã o de sexualidades polimó rficas. A vontade
de saber nã o parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou
a constituir uma ciência da sexualidade150.
A hipótese repressiva
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensã o de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressã o. Na verdade, o que vemos é uma “incitaçã o institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulaçã o explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”152.
Desde a pastoral cató lica com seus ritos de confissã o, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelaçã o e do exame minucioso de si tendo em vistas a associaçã o da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunçã o tã o particular ao ocidente moderno”, a
saber:
150
Idem, p. 21
151
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
152
Idem, p. 27
A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um
outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensaçõ es e pensamentos inumerá veis que, através a alma e o
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocaçã o
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradiçã o ascética e moná stica. O século XVII fez dele uma regra para
todos153.
A perversão do discurso
157
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 9
Baudelaire e os gregos
162
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1390
163
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
164
FOUCAULT. Michel ; Dits et écrits II, Paris : Gallimad, 2001, p. 1389
Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade
histó ria da experiência grega referente a relaçã o dos sujeitos aos prazeres. Trata-
se de:
165
FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
166
Idem, p. 69
167
Idem, p. 93
temperança aparece como modo de elaboraçã o a si em direçã o à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construçã o
misó gina clá ssica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, nã o é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relaçã o aos prazeres”168. Neste
sentido, a verdade na relaçã o ao sexo nã o é uma questã o de conhecimento, de
classificaçã o exaustiva e de descriçã o minuciosa, mas de instauraçã o do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada nã o
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”169.
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania. Ele é
designado por Foucault “soberania de si”. Tal soberania de si forneceria um
horizonte de regulaçã o moral do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo
sem desejo e sem transtorno (trouble)” 170. Soberania que nos livra do fantasma
do excesso, que permite o aparecimento da liberdade como regulaçã o singular
dos corpos sem transtornos, que é intensificaçã o do cuidado a si. A força política
deste processo se encontra em uma aposta nas possibilidade de singularizaçã o.
Ele nos permitira, por exemplo, abandonar o discurso da sexualidade, deixar de
ter uma sexualidade fortemente identitá ria regulada entre o normal e o
patoló gico, para praticar um erotismo sem identidades previamente definidas,
preocupado apenas em agenciar o jogo de forças que nos configura, retirando
sua violência. O que nã o poderia ser diferente para alguém, como Foucault, para
quem as relaçõ es de poder nunca foram exatamente o problemas, mas sim a
degradaçã o do poder em formas de coerçã o.
Mas o que devemos entender por “soberania” neste contexto? Notemos
inicialmente como, expulsa da condiçã o de qualidade de quem detém o poder do
Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade que pode ser exercida por
todo sujeito em emancipaçã o. Tal soberania é pensada, inicialmente, como
capacidade de limitaçã o dos mecanismos do biopoder e de abertura a um espaço
renovado de trabalho sobre si a partir da criaçã o autô noma de novas normas
possíveis.
Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensã o desse projeto. Pois tal espaço pede a
reconstruçã o de um conceito de indivíduo que, em vá rios pontos, recupera temas
da individualidade liberal. O quanto estaríamos diante de um conceito de
autonomia vinculado à individualidade liberal, eis uma questã o que gostaria de
deixar em aberto.
Neste sentido, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histó rico no qual sua ideia de soberania aparece. As
transformaçõ es políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensã o individual:
168
Idem, p. 116
169
Idem, p. 29
170
Idem, p. 94
mais nas mã os dos homens, em suas decisõ es, na maneira com que eles
desempenha sua autoridade, na sabedoria que eles manifestam no jogo
de equilíbrios e transaçõ es, aparece que a arte de se governar advém um
fator político determinante171.
176
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao
ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos177.
177
Idem, p. 25
178
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 55
Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de
doutorado, Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua
recepçã o no pensamento francês contemporâ neo (em especial, em Sartre, Lacan,
Foucault e Deleuze). No entanto, é com seu segundo livro, Problemas de gênero,
de 1990, que ela aparecerá como um teó rica inovadora à procura de uma
compreensã o da subjetividade e da experiência sexual nã o mais marcada pelo
problema da produçã o de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o
“gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o
espaço privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na
normatividade pretensamente fornecida pela natureza.
Depois de Problemas de gênero, Butler publica vá rios livros nos quais
procura aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua
maneira de pensar problemas de gênero, como o papel da materialidade dos
corpos, o impacto psíquico das normas sociais, a natureza da experiência moral,
entre outros. Sã o exemplos deste movimento de seu pensamento livros como:
Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993), Excitable speechs: a politics
of the performative (1995), The psychic life of power: theories of subjection (1995)
e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between life and
death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemá tica a respeito
de questõ es política nã o diretamente relacionadas a lutas ligadas à s minorias
sexuais, mas a problemas ligados à modalidades de exclusã o e de precarizaçã o da
existência. Sã o livros nã o ligados diretamente à questõ es de gênero, mas a teoria
política, como: Precarious life: the powers of mourning and violence (2004), Giving
an account of oneself (2005) e o ú ltimo, sobre a questã o judaico-palestina:
Parting ways: jewishness and the critique of zionism (2012).
O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta
trajetó ria, permitindo com isto uma compreensã o mais articulada de sua
maneira peculiar de extrair consequências políticas das discussõ es sobre
identidade de gênero. Para tanto, precisamos voltar à sua tese de doutorado
sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas leva a sério
colocaçõ es da pró pria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos
permanecem no interior da ó rbita de um certo conjunto de questõ es hegelianas:
o que é a relaçã o entre desejo e reconhecimento e como a constituiçã o do sujeito
implica uma relaçã o radical e constitutiva à alteridade?”179.
Butler começa por lembrar que há uma “visã o filosó fica” do desejo que
procura nos fazer acreditar que a reflexã o sobre a vida desejante deveria nos
levar, necessariamente, a um paradigma de reconciliaçã o no interior do qual
encontraríamos a integraçã o psíquica entre razã o e afetos. Esta reconciliaçã o, no
entanto, nã o estaria presente em Hegel, pois em seu caso o desejo apareceria
exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado” 180 por
ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de
identidade e lugar”181. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma
fratura que faz do meu ser o espaço de um questionamento contínuo a respeito
do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um questionamento que faz
de meu ser um modo contínuo de interpelaçã o ao outro, já que nã o há desejo sem
que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem de si a
179
BUTLER, Judith; Subjects of desire, p. XX
180
Idem, p. 7
181
Idem, p. 9
partir da internalizaçã o do olhar de um Outro elevado à condiçã o de ideal. Todo
desejo pressupõ e um campo partilhado de significaçã o no qual o agir se inscreve.
Pois todo desejo pressupõ e destinatá rios, é desejo feito para um Outro e inscrito
em um campo que nã o é só meu, mas é também campo de um Outro. Assim,
perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir do desejo é partir necessariamente
do sujeito como um entidade relacional para a qual, como disse Butler, há “uma
relaçã o radical e constitutiva à alteridade”.
Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretaçã o que visa radicalizar a
experiência de negatividade pró pria a seu conceito de desejo. Para compreender
o que significa tal negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma
longa tradiçã o que remonta a Platã o e compreende o desejo como manifestaçã o
da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá , ao falar
sobre o desejo, Hegel afirma:
O sujeito intui no objeto sua pró pria falta (Mangel), sua pró pria
unilateralidade – ele vê no objeto algo que pertence à sua pró pria essência
e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta
contradiçã o por nã o ser um ser, mas uma atividade absoluta182.
A colocaçã o nã o poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pô r como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto)
é uma contradiçã o que a consciência pode suprimir por nã o ser exatamente um
ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexã o que assimila o objeto
a si. Esta experiência da falta é tã o central para Hegel que ele chegar a definir a
especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta,
em sentir esta excitaçã o (Erregung) que o leva à necessidade do movimento;
assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar
(ertragen) a contradiçã o de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por
um desejo que coloca a essência do sujeito no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:
182
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427
183
Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124
auto-posiçã o da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no
objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfaçã o.
Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque,
devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da consciência,
modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de
“negatividade” e que insiste que as determinaçõ es estã o sempre em falta em
relaçã o ao ser.
Desta forma, nã o haverá objeto natural algum capaz de realizar a
satisfaçã o da negatividade pró pria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante
procura no Outro nã o algo como a reiteraçã o de seu sistema de interesses e
necessidades. Ela procura no Outro o reconhecimento da natureza negativa e
indeterminada de seu pró prio desejo. É tendo tal esquema em mente que Butler
poderá quebrar a natureza essencialista da noçã o de gênero (em suas versõ es
ontoló gicas, políticas ou metodoló gicas) defendida entã o por certas correntes
feministas.
Três anos depois da publicaçã o de sua tese, Butler apresente este que será
seu trabalho mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da
identidade. O livro apresentava uma discussã o inovadora sobre a noçã o de
gênero servindo-se, em larga medida, de apropriaçõ es da teoria do poder de
Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da tentativa em dissociar sexo
e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-Strauss e Lacan)
como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal de
funcionamento da vida social, para ao final abrir certas consideraçõ es sobre as
potencialidades política de uma noçã o de gênero que subverta a identidade.
Maneira de mostrar como um política feminista nã o precisa adentrar na
reificaçã o ilusó ria do gênero e da identidade.
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na
tentativa de fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades
sexuais nã o devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura
biná ria de sexos. Trata-se, ao contrá rio, de tentar escapar da pró pria noçã o de
representaçã o através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta
a possibilidade de realizaçã o de atos subjetivos capazes de fragilizar o cará ter
reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as
interdiçõ es postas pelo sistema biná rio de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posiçã o que procura levar à s ú ltimas
conseqü ências a distinçã o entre sexo (configuraçã o determinada biologicamente)
e gênero (construçã o culturalmente determinada). No seu caso, nã o se trata de
fornecer uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre natureza e cultura, até
porque gênero, segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”184. Esta suspeita profunda em relaçã o à dimensã o do pré-
discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma
naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.
184
BUTLER, Gender trouble, p. 11
Partindo deste ponto, uma noçã o de gênero como ante-câ mara de
produçã o da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
cará ter ideoló gico da noçã o biná ria de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposiçã o de um sistema biná rio de gênero depende da crença em uma
relaçã o mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”185. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “mú ltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”186.
Voltemos por um momento à noçã o de sexualidade em Foucault, pois é ela
que opera na crítica de Butler à pressuposiçã o mimética entre gênero e sexo.
Vimos como Foucault insistia que as relaçõ es de poder nunca poderiam ser
compreendidas como meramente opressivas. Elas sã o inicialmente produtivas,
ou seja, elas produzem os sujeitos nos quais o poder age. Mas para aceitar que há
uma natureza produtiva do poder, faz-se necessá rio também aceitar que nem
todas as formas de dominaçã o sã o formas de opressã o. Esta é um perspectiva
que Butler partilha com Foucault.
Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da
noçã o foucaultiana de poder:
185
idem, p. 10
186
Idem, p. 22
187
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité I, p. 122
188
Idem, p. 135
sexualidade nã o-controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do
pró prio poder, isto no sentido de vir da heterogeneidade dos jogos de força, com
suas direçõ es mú ltiplas. Ou seja, quebrada a ideia de um poder que age de
maneira unitá ria e ordenada, mas que produz efeitos inesperados, situaçõ es nã o
completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o
poder age. De certa forma, ele age sobre suas pró prias camadas.
Isto talvez explique porque gênero nã o deve ser compreendido como uma
identidade está vel. Assegurar algo em sua significaçã o nã o é resultado de um
gesto fundador, de uma espécie de batismo originá rio para todo o sempre. Antes,
trata-se de um processo continuo de repetiçõ es que, ao mesmo tempo, anula a si
mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas
regras. Sendo assim, assumir um gênero nã o é algo que, uma vez feito, estabiliza-
se. Ao contrá rio, estamos diante de uma inscriçã o que deve ser continuamente
repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de
produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que:
“A injunçã o de ser um gênero dado produz necessariamente fracassos, uma
variedade de configuraçõ es incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e
desafia a injunçã o que as gerou”189.
189
BUTLER, Judith; Gender trouble, p. 185
190
idem, p. 175
Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença ontoló gica
entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada aqui à
condiçã o de simulacro que desorienta a pró pria noçã o de identidade e
representaçã o fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e nã o se adequar à
diferença sexual e aos modos de sexuaçã o tais como seriam postos pela Lei.
Assim, tudo se passa aqui como se:
191
COLEBROOK, Irony, p. 125
192
BUTLER, Bodies that matter, New York; Routledge, 1993, p. 231
193
idem, p. 235
Aula 11
Erotismo, sexualidade e gênero
O mito da identidade
No entanto, Butler precisa explicar como e porque é criada a ilusã o de que a vida
social deve se orientar por identidades está veis ou ainda, no caso da relaçã o
entre sexo e gênero, como e porque ocorre a reificaçã o de tomar por
normatividade natural aquilo que é produto de uma relaçã o social de poder.
Neste sentido, ela dirá :
201
LÉVI-STRAUSS, Claude; Les structures élémentaires de la parenté, p. 10
202
Idem, p. 549
nem janela“203 inviabilizando a essência mesma da sociedade com sua produçã o
estrutural de diferenças controladas em um sistema. Para Butler, tal perspectiva
estruturalista significa que:
Quer dizer, seria possível pensar a lei social de outra forma, nã o como a
normatividade que determina lugares e funçõ es definidas para gêneros, criando
assim a estabilidade de identidades necessá rias, mas como uma generatividade
variá vel que produz até mesmo subversõ es de configuraçõ es locais de
funcionamento da norma? Ou seja, tudo se passa como se Butler afirmasse que a
aná lise estrutural de Lévi-Strauss é, no má ximo, uma aná lise local.
203
Idem, p. 549
204
BUTLER, Gender trouble, p. 53
205
Idem, p. 53
Grosso modo, podemos dizer que isto ocorreu por Lacan seguir, à sua
maneira Lévi-Strauss e afirmar a natureza constitutiva do desejo masculino na
constituiçã o dos laços sociais. Isto o leva a afirmar que o Falo aparece como o
significante a partir do qual o desejo humano se orienta. Ele será : “ o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher” 206.
Este lugar central do falo é submissã o da diversidade possível dos modos
de sexuaçã o ao primado da funçã o fá lica. Assim, a sexuaçã o feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid (injeva do pênis), com sua maneira de
superar tal relaçã o de dependência através do ato de transformar os atributos
femininos em signos de reivindicaçõ es fá licas e que Lacan, seguindo Joan Rivière,
chama de mascarada. Da mesma forma como, para Lévi-Strauss, sociedades sã o
sistemas de trocas entre mulheres por sujeitos masculinos, para Lacan, as formas
de sexualidade se regulam a partir de um significante que tem sua indelével
vinculaçã o ao gênero masculino. Pois o falo permite a construção de um Universal
capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo
universal de reconhecimento mú tuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da histó ria subjetiva. Isto explica porque Butler
dirá que tal processo: “exige que as mulheres reflitam o poder masculino e em
todo lugar reassegurem tal poder contra a realidade de sua autonomia
ilusó ria”207.
No entanto, a teoria de Lacan é mais complexa do que isto que descrevi.
Primeiro, é importante lembrar como, para Lacan, a sexualidade é uma
construção social. Daí porque ele insistirá que “homem” e “mulher” sã o, antes de
mais nada, significantes cuja realidade é eminentemente só cio-linguística. Neste
sentido, é absolutamente possível uma mulher (anatomicamente falando) ocupar
uma posiçã o masculina na sua relaçã o ao desejo.
Proposiçõ es desta natureza se prestam a vá rios mal-entendidos. Afinal,
como é possível dizer que a sexualidade é uma construçã o social se há
diferenças anatô micas evidentes que parecem naturalmente constituir dois
sexos? E se ela é, de fato, uma construçã o social, por que falamos apenas em dois
sexos? Por que nã o cinco? Por que nã o abandonar a distinçã o biná ria e pensar
uma produçã o plá stica de novas formas de sexualidade?
No entanto, dizer que a determinaçã o da sexualidade se estabelece sem
levar em conta a diferença anatô mica dos sexos, como quer Lacan, nã o implica
afirmar que tal diferença inexista. Nã o é exatamente a mesma coisa, por
exemplo, um homem e uma mulher (anatomicamente falando) ocuparem a
posiçã o masculina. O que Lacan parece nos querer dizer é que tal diferença
anatô mica é desprovida de sentido, ela nã o é normativa por nã o ter força para
determinar condutas, ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que,
diante o sexual, sempre me vejo diante de algo irredutivelmente opaco e
resistente a toda operaçã o social de sentido. “A sexualidade”, dirá Lacan, “é
exatamente este territó rio onde nã o sabemos como nos situar a respeito do que
é verdadeiro”208.
Notemos este dado fundamental: as consideraçõ es clínicas lacanianas sã o
solidá rias de um tempo no qual as estruturas familiares perderam sua sustâ ncia
206
LACAN, S V, p. 273
207
BUTLER, idem, p. 57
208
Jacques Lacan, Mon enseignement (Paris: Seuil, 2006) p. 32
normativa e no qual a sexualidade nã o é mais um campo claramente direcionado
à teleologia da reproduçã o. Neste contexto histó rico de indeterminaçã o, a
socializaçã o do desejo nã o pode simplesmente levar o sujeito a desempenhar
papéis e identidades sexuais sem distâ ncia alguma, como se fosse questã o de
naturalizar o que é socialmente construído. Ao contrá rio, a socializaçã o do
desejo deve nos levar a confrontarmos com tal opacidade. Esta é, em ú ltima
instâ ncia a funçã o do falo.
É levando tais questõ es em conta que devemos entender porque Lacan
define o falo como: “o significante fundamental através do qual o desejo do
sujeito pode se fazer reconhecer”209. Ou seja, o falo nã o é exatamente o pênis
orgâ nico, ou algum signo de potência, mas um significante puro, uma diferença
pura que organiza posiçõ es subjetivas (masculino/feminino) a partir da
experiência de inadequaçã o fundamental entre o desejo e as representaçõ es
“naturais” da sexualidade. Neste sentido, o falo é apenas: “um símbolo geral
desta margem que sempre me separa de meu desejo” 210. Tal noçã o do falo como
‘um símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos
mostra como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica 211. Ele é a
inscriçã o significante da relaçã o de inadequaçã o entre o sexual e a
representaçã o. Neste sentido, a Lei lacaniana demonstra-se vazia, desprovida de
todo conteú do normativo positivo.
Para Butler, a estratégia de Lacan é paralisante, pois ao mesmo tempo
reconhece o cará ter impossível de sustentar identidades de gênero como
identidades fortemente normativas, ou seja, abre espaço para a experiência da
negatividade do desejo em uma chave que nã o deixa de nos remeter a Hegel,
mas perpetua tais identidades sem permitir o aparecimento de novas
configuraçõ es possíveis para além do quadro heterossexual, nã o fornecendo a
tal negatividade sua verdadeira força produtiva, ao menos segundo Butler. Daí
uma afirmaçã o como:
Que plausibilidade pode ser dada a um relato do Simbó lico que requer a
conformidade a uma Lei que demonstra sua impossibilidade de agir (to
perform) e que nã o dá espaço para a flexibilidade da pró pria Lei, para sua
reformulaçã o cultural em formas mais plá sticas? (...) A soluçã o nã o está
em sugerir que a identificaçã o deva se transformar em uma realizaçã o
bem acabada. Mas parece haver uma romantizaçã o ou, na verdade, uma
idealizaçã o religiosa da “falta”, da humilhaçã o e da limitaçã o diante da Lei
que faz da narrativa lacaniana algo ideologicamente suspeito 212.
Esta passagem crítica por Lévi-Strauss e Lacan é muito importante para Butler
evidenciar, ao menos a seus olhos, estratégias narrativas que impossibilitam
ultrapassar a matriz identitá ria heterossexual como modalidade de regulaçã o
geral da vida social. Seja através do cará ter normativo do estruturalismo de Lévi-
Strauss, seja através da conservaçã o da impossibilidade em Lacan, é sempre o
209
LACAN, Séminaire V (paris : Seuil, 1998) p. 273
210
LACAN, S V, p. 243
211
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua realização
subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
212
BUTLER, idem, p. 72
quadro de distinçõ es heterossexuais que é conservado em sua funçã o de
referência. Mesmo que no caso de Lacan, ele pareça ser conservado através de
uma certa melancolia vinda desta pretensa: “idealizaçã o religiosa da “falta”, da
humilhaçã o e da limitaçã o diante da Lei”, deste vínculo a uma identidade que
parece a todo momento expressar sua pró pria impossibilidade.
Melancolia e identidade
Levando em conta este ponto, Butler passa a terceira estratégia de seu capítulo,
certamente aquela que mais será por ela posteriormente retomada. Trata-se de insistir
que a força da submissão dos sujeitos a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável é indissociável dos usos da melancolia. O poder age
produzindo em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente
melancólica. Se vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste
forma que ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção.
Neste ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais importantes: “A
vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de apenas lembrar aqui de
algumas características gerais da ideia freudiana para, na próxima aula, retomar este
ponto mostrando como se trata de um ponto fundamental para sua teoria do poder e da
ação política.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral
de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido
é internalizado como uma proibição”213.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais
ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que
damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da
identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações
amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais
relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se
tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de
autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio,
através de autorrecriminações e acusações. A tese fundamental de Freud consiste em
dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de
amor. Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a
situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar
em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra
aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Essa é uma maneira de dizer que a
melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de
nossas identidades.
Butler vincula tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma
213
Idem, p. 80
bissexualidade inata nos seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir
libidinalmente os pais de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da
identidade de gênero que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo
em identificações capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de
objetos homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como
se a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 12
Poder e melancolia
215
BUTLER, The psychic life of power, p. 2
216
Idem, Gender trouble, p. 80
217
Idem, The psychic life of power, p. 7
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancó lica. No entanto, o
melancó lico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si pró prio, através de autorrecriminaçõ es e acusaçõ es. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tó pico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
agressividade em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
pró pria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificaçã o de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuaçã o desesperada de um amor que nã o pode lidar com
a situaçã o da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questã o o pró prio fundamento da minha identidade. Mais fá cil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusaçã o patoló gica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmaçã o como: “Freud identifica consciência elevada e auto-reprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negaçã o de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e nã o resolvido”218. Assim, a sujeiçã o do desejo pode se transformar
em desejo por sujeiçã o. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal
quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas
identidades.
Butler insiste como tal vínculo melancó lico a um objeto perdido funda a
pró pria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma que as identidade
em geral sã o constituídas. Tendo isto em mente, ela pode vincular inicialmente
tal dinâ mica da melancolia à ideia freudiana de uma bissexualidade inata nos
seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir libidinalmente os pais
de ambos os sexos. Ë só através de um construçã o social da identidade de gênero
que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo em identificaçõ es
capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos
homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se
a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construçã o social possível da identidade. Pois identidades serã o sempre
marcadas por essa impossibilidade de voltar a investir libidinalmente aquilo que
perdi, aquilo que agora se transformou em um ponto opaco do meu desejo. Essa
perda me faz ter uma identidade melancó lica.
Ética e opacidade
Quando luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, baní-lo em nome de uma açã o
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado221.
219
Idem, Undoing gender, p. 16
220
Idem, Precarious life, p. 27
221
Idem, p. 30
222
Idem, Undoing gender, p. 2
A opacidade do sujeito pode ser a consequência de seu ser concebido
como um ser relacional, ser cujas relaçã o primá rias e iniciais nã o estã o
sempre disponíveis a um conhecimento consciente. Momentos de
desconhecimento a respeito de si mesmo tendem a emergir no contexto
de relaçõ es a outros sugerindo que tais relaçõ es chamam formas
primá rias de relacionalidade que nã o estã o sempre disponíveis à
tematizaçã o explícita e reflexiva.