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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia
Primeiro Semestre de 2014

Erotismo, sexualidade e gênero:


Curso ministrado por
Vladimir Safatle

Composto por 12 aulas


Textos base das aulas
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 1

Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os


órgãos e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o
leitor poderá se convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão
de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo então também me
justificar desta acusação? Eu reivindico simplesmente os direitos do
ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria índice de estranha
e perversa lubricidade supor que conversas parecidas seriam um bom meio de
excitação sexual1.

Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês


poderão encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria
escrito em 1905 e conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes
por expor uma transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo
o século XX. Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir
francamente as relações sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu
nome correto. Esse falar franco não é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os
libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que é da ordem do
sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o desejo seja incitado
por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe que o ato de falar e
descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o desejo. Os
libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento
produzido pela razão, não gozam em silêncio.
Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele nã o é animado pela
descoberta de formas de incitaçã o aos prazeres. Nã o, Freud prefere ficar ao lado
dos ginecologistas a ser confundindo com alguém que suporta essa estranha e
perversa lubricidade dos que usam da descriçã o direta da atividade sexual para
seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e direta”, capaz de dar aos ó rgã os
sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando estes sã o
desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversõ es “sem
indignaçã o”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber
baseada na submissã o da sexualidade ao modo de descriçã o de uma ciência, uma
scientia sexualis. Esta talvez fosse uma das mais impressionantes invençõ es da
modernidade: uma ciência da sexualidade, um discurso científico sobre o que
devo fazer para nã o ter uma sexualidade patoló gica.
Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à
experiência dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência?
Nã o de uma literatura (que é um regime de explicitaçã o discursiva pró prio), nã o
de uma arte eró tica, mas de uma ciência. Pois ser objeto de uma ciência significa
assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da físicas, a sexualidade
deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei entã o dizer, por

1
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá , como
alguns de seus critérios diagnó sticos, como lemos no mais recente manual de
psiquiatria (o DSM-V): ausência ou reduçã o de excitaçã o sexual durante a
atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma
forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma
persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por
atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculaçã o
precoce serã o divididos em três grupos: suave (se a ejaculaçã o ocorrer entre 30
segundos ou 1 minutos apó s a penetraçã o), moderado (entre 15 e 30 segundos)
severo (quando ocorre antes da penetraçã o ou em até 15 segundos apó s a
penetraçã o). Foi pensando na generalizaçã o desse modo de saber sobre a
sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a


dar nú meros, medidas, classificaçõ es de acordo com a idade ou a cor dos
olhos? O que o homem significa a nossas olhos se coloca sem dú vida para
além dessas noçõ es: estas se impõ em à atençã o, mas nã o acrescentam a
um conhecimento já dado senã o aspectos inessenciais2.

É muito prová vel que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre
sexo, nã o pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique
a natureza quase literá ria de seus relatos de caso. Mas sua posiçã o expressa
outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do
sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco
sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos
relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos.
Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-
determinaçã o. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito
dotado de uma histó ria (a histó ria do meu desejo), de um corpo (o regime de
prazeres pró prio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto
talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto
defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o sexo,
a revelaçã o da verdade, a inversã o da lei do mundo, o anú ncio de um outro dia e
a promessa de uma certa felicidade estã o ligados”3. Se Freud pode se vangloriar
de nã o ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota de nã o
mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual falar de
sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos e suas
posiçõ es existenciais, prometer uma certa felicidade através da constituiçã o de
uma relaçã o autô noma consigo mesmo.
Notem uma inflexã o importante. Nã o se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nó s poderíamos descobrir uma histó ria, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
histó ria e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construçã o que nã o seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalizaçã o das categorias do discurso de uma
ciência. Uma ciência que nã o apenas descreve, mas que também, e
2
BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180
3
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema
do conhecimento psiquiá trico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e
argumentaçã o”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade nã o se encontra na
identificaçã o de uma espécie de libido natural que deve se fazer sentir. O
problema da sexualidade se transforma na descriçã o de modos de produçã o de
corpos, histó rias e identidades a partir das categorias de um discurso social
fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invençã o da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversõ es através destes grandes tratados psiquiá tricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nó s podemos dizer
que nã o era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nó s
podemos mesmo dizer que nã o havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que prá ticas homossexuais existiram antes e sempre existirã o, mas
nã o a concepçã o, tã o evidente para nó s, de que elas, por si só , definem uma
identidade social em toda sua extensã o, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepçã o sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, haviam prá ticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas nã o eram uma questã o em si, nã o está vamos em um mundo no qual
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questã o definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou nã o o papel de um agente passivo, se
alguém era ou nã o capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá :

O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro


que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais
importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de
prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente 5.

Isto significa que, em ú ltima instâ ncia, a homossexualidade como


identidade é uma invençã o que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construçã o
produzida por uma forma de circulaçã o do discurso psiquiá trico e médico que
tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal.

Sexo e filosofia

Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o
problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosó fico
específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento,
como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles
que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam
na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da
sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo
momento, nos pareceu fundamental nã o apenas dizer que fazemos sexo, mas que
4
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
5
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço pú blico, se fazer
reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importâ ncia.
Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre
sexo seria um problema filosó fico? Por que sexo e os discursos que o envolvem
seriam objetos de investigaçã o propriamente filosó fica? Ou seja, nã o um
problema ligado à psicologia e a reflexã o sobre seus modos de intervençã o
clínica, nã o um problema socioló gico ligado a prá ticas sociais de codificaçã o de
comportamentos de interaçã o, nã o um problema bioló gico ligado a modos de
reproduçã o, mas um problema filosó fico. Porque vocês poderiam se perguntar se
nã o seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras á reas de saber, ao
invés de discuti-lo em um curso de filosofia.
“A filosofia é uma reflexã o para a qual qualquer matéria estranha serve,
ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha” 6. Esta
frase é de um filó sofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de
Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um
curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto
pró prio à filosofia. Se descartarmos a visã o historiográ fica que dirá ser a filosofia
a reflexã o sobre os textos que definem o campo da tradiçã o filosó fica, definiçã o
ruim nã o apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensã o da
gênese da chamada “tradiçã o filosó fica” (gênese que admite textos até entã o
completamente fora do dito debate intratextual da tradiçã o filosó fica), entã o
ficamos com uma questã o central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de
fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosó ficos”,
assim como falamos que existem objetos e fenô menos pró prios à economia, à
teoria literá ria e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um
filó sofo falar de um texto literá rio, fazer consideraçõ es sobre um problema
econô mico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao
fazer isto, ele deixaria de ser filó sofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for
estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosó fico: ele nã o
tem objetos que lhe sejam pró prios. De certa forma, podemos dizer que a
filosofia é um discurso vazio pois nã o há objetos propriamente filosó ficos, o que
talvez nos explique porque nã o pode haver, por exemplo, teoria do conhecimento
sem reflexõ es aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, uma ciência
empírica, nã o há estética sem crítica de arte, filosofia política sem ciência
política, mesmo ontologia sem ló gica. Em todos estes casos a filosofia toma de
empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo
desenvolvimento nã o lhe compete diretamente.
Mas nã o haver objetos propriamente filosó ficos nã o significa afirmar
inexistir questõ es propriamente filosó ficos. Há um modo de construir questõ es
que é pró prio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer
objeto. Tal modelo filosó fico de construçã o de questõ es nos permite identificar e
pensar certos problemas que nã o poderiam ser pensados de maneira adequada
fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de
uma questã o filosó fica é sua forma de se perguntar sobre como um fenô meno ou
um objeto é um evento. Ou seja, nã o se trata simplesmente de descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razõ es
de existência a partir de uma reflexã o sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
6
CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenô menos
produzem modificaçõ es em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento nã o é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguraçã o em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Por isto, nã o seria incorreto dizer que toda questã o filosó fica é
necessariamente vinculada a um evento histó rico, ela é a ressonâ ncia filosó fica
de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidá ria do impacto filosó fico da
física moderna. Ela é a elaboraçã o, até as ú ltimas consequências, da dissoluçã o
do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como
fruto das aspiraçõ es emancipadoras da Revoluçã o Francesa.
Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosó fico quando ele
aparecer como um evento. E a boa questã o talvez seja: em que condiçõ es “sexo”
e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um
acontecimento capaz de produzir reconfiguraçõ es profundas em nossa forma de
vida?

A continuidade do erotismo

Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira


diferentes de ver no sexo uma forma de evento. A primeira está nesta forma de
centrar as discussõ es sobre sexo em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao
falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre como tal fala produz individualidades
a partir de discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de
intervençã o. Procuraremos entender como tais discursos foram formados, como
eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o
poder nã o apenas como uma forma de coerçã o imposta que nos coage de fora,
mas principalmente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a
nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de
transgressõ es. Nesta chave, mostraremos como o aparecimento da sexualidade
com sua ciência nos expõ e as verdadeiras artimanhas do que significa falar de
sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posiçã o de
detentor de um saber.
Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente
sobre sexo com uma garota, Freud nã o apenas escuta. Ele a ensina como falar, em
que condiçõ es seu desejo pode ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Falar nã o é apenas liberar. Falar é também
internalizar uma gramá tica do desejo. Por isto, o simples atos de falar de sexo
dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de uma ciência já é uma
forma do poder operar, nã o este poder que se expressaria através de uma
pretensa submissã o da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o
que opera em nó s dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de
escutar, como o que define as condiçõ es do que significa falar e escutar.
Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender
sexo como evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao
falar sobre sexo nã o nos focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por
exemplo, na força explosiva do que devemos entender por “erotismo”. Esta é a
estratégia que vocês encontrarã o em outro filó sofo francês, de uma geraçã o
anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definiçõ es como:

O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissoluçã o das formas


constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Trata-se
de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade,
toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A pró pria paixã o feliz
acarreta uma desordem tã o violenta que a felicidade de que se trata, antes
de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tã o grande que se
compara a seu contrá rio, ao sofrimento7.

Nã o é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de


sexualidade. Nã o procuraremos mais saber como, através da assunçã o de uma
sexualidade, constituímos formas, definindo nossa individualidade e nossa
identidade. Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo
composto por esses á tomos sociais que sã o os indivíduos modernos com seus
sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de
interesses através de contratos, de limites, de cá lculos. Interesses, por sua vez,
submetidos à ló gica utilitarista da maximizaçã o do prazer e do afastamento do
desprazer.
Bataille acredita que é tarefa filosó fica fundamental fornecer as
coordenadas para uma crítica da modernidade capaz de demonstrar como o
advento do sujeito moderno se realiza, necessariamente, através da organizaçã o
de uma sociedade composta por indivíduos. Os indivíduos sã o a unidade mínima
da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a partir de sua utilidade
suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas ú teis ou
inú teis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas,
principalmente, mundo no qual as relaçõ es entre pessoas segue a mesma ló gica
que as relaçõ es à s coisas. Mundo de pessoas ú teis ou inú teis, mundo de pessoas
que produzem prazer ou desprazer. Mundo no qual posso avaliar relaçõ es entre
pessoas da mesma forma que avalio processos financeiros baseados em
investimentos (“É , eu investi muito”) e rentabilidade (“Nã o tive nenhum
retorno”). Ou seja, mundo no qual a ló gica calculadora do trabalho no interior da
indú stria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência
social.
Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais,
que tecem entre si relaçõ es profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e
o sagrado seriam fenô menos sociais capazes de introduzir, no interior de um
mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que esse
mundo é capaz. Isso significa que estaríamos diante de fenô menos irracionais a
partir da ló gica utilitarista que guia os indivíduos e suas relaçõ es. Vale para o
sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o pró prio ser se coloca


em questã o, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde
7
BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43
objetivamente, mas entã o o sujeito se identifica com o objeto que se
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco 8.

Veremos nas nossas pró ximas aulas o que pode significar uma
experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a
pena insistir em um ponto. Através da construçã o de uma noçã o de “erotismo”
desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento
impensá vel no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas
sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele
quer mostrar como as sociedades capitalistas nã o sã o apenas economicamente
injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da
exclusã o de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força.
Notemos como há , aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à
experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o
fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é
animado por um evento histó rico preciso. Como veremos, a experiência pré-
moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos
de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao
modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille
representava a versã o nã o-oficial, em conflito contínuo com aquela representada
por André Breton.
Neste sentido, através da reflexã o filosó fica sobre o sexo, Bataille procura
pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicaçã o
sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemô nica do
capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores
da primeira metade do século XX.

Gênero

A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha
força nas ú ltimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo
uso do conceito de “gênero”. Foi a filó sofa norte-americana Judith Butler quem se
responsabilizou pela transformaçã o de um conceito psiquiá trico em forte
conceito de orientaçã o para prá ticas de transformaçã o social. Seu verdadeiro
inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968
intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de
construçã o de identidades de gênero através da articulaçã o entre processos
sociais, nomeaçã o familiar e questõ es bioló gicas.
Judith Butler, por sua vez, irá levar à s ú ltimas à s ú ltimas consequências a
distinçã o entre sexo (configuraçã o determinada biologicamente) e gênero
(construçã o culturalmente determinada). No seu caso, nã o se trata de fornecer
uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre natureza e cultura, até porque
gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”9. Tal noçã o de gênero como ante-câ mara de produçã o da ‘natureza
sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o cará ter ideoló gico de
8
Idem, p. 55
9
BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11
uma noçã o biná ria de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposiçã o de
um sistema biná rio de gênero depende da crença em uma relaçã o mimética entre
gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por
ele”10.
Diferentemente da noçã o foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de
tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de
uma teoria da açã o política, teoria que procura entender a maneira com que
sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas, nã o apenas como eles sã o sujeitados à s normas e
completamente constituído por elas. Por isto, pelas mã os de Butler, a teoria de
gênero nã o será apenas uma teoria da produçã o de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que nã o
se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido” 11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmaçã o como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos12.

Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado
pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até entã o, estava expulso
do universo do humano. Do que era visto como patoló gico, doentio e, por isto,
sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A
modificaçã o da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de
gênero foi um acontecimento de forte ressonâ ncia filosó fica, pois nos colocaria
diante da compreensã o de como nossa humanidade depende do reconhecimento
de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano.
Notem entã o como no caso do uso desses três conceitos (erotismo,
sexualidade e gênero) por três filó sofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith
Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias
diferentes, embora nã o completamente divergentes, da filosofia se voltar para
uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo
fenô meno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será
organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigató ria de vocês:
“O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “Histó ria da
sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O
curso será , em larga medida, uma apresentaçã o comentada desses três livros, ou
de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a
experiência do comentá rio possa funcionar.
Ao ler tais livros, lembrem como esses três filó sofos tecem, ainda, relaçõ es
profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua
obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há , entre os três, uma

10
idem, p. 10
11
Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
12
Idem, p. 25
interessante circulaçã o de pensamento que nã o se dá sobre a forma tradicional
da influência ou da continuidade. Há uma circulaçã o de pensamento por
exploraçã o de possibilidades nã o trilhadas, como se uma experiência de
pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns
fios descosidos que poderã o entrar em tramas completamente diferentes. Esses
que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem nã o ser os
leitores mais fieis, mas sã o certamente os melhores, os ú nicos que compreendem
o texto filosó fico como um processo aberto de invençã o. As vezes, a infidelidade
é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade
nunca foi uma virtude filosó fica, embora a pura e simples incapacidade de entrar
nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar.
Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposiçã o uma forma
de fazer comentá rio filosó fico que nã o é apenas a imersã o na textualidade
interna de certos textos da tradiçã o, mas que seja a capacidade de identificar e
constituir problemas filosó ficos. De fato, vocês aprenderã o técnicas
fundamentais para todo e qualquer processo filosó fico de leitura de textos da
tradiçã o : saber identificar o tempo ló gico que nos ensina a reconstituir a ordem
das razõ es internas a um sistema filosó fico, pensar duas vezes antes de separar
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender
como o método se encontra em ato no pró prio movimento estrutural do
pensamento filosó fico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental
para a constituiçã o daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita
a autonomia do texto filosó fico enquanto sistema de proposiçõ es e nã o se
apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato
de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele
nã o define o campo geral dos modos filosó ficos de leitura. Ele define, isto sim,
procedimentos constitutivos da formaçã o de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosó fico mas, por mais que isto
possa parecer ó bvio, o fazer filosó fico vai além do seu início. Por isto, talvez seja
interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do
que normalmente nos mostraríamos.
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de
boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 2

Na aula de hoje, vamos começar nosso mó dulo dedicado ao conceito de


“erotismo” a partir de Georges Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar
Bataille e, em um segundo momento, tecer algumas consideraçõ es gerais sobre
sua experiência intelectual.
“Eu sou um filó sofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897-
1962) seja uma boa maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra
multifacetada. Composta de vá rios livros de literatura (como, por exemplo, A
história do olho e Madame Edwarda, livros que passaram à histó ria da literatura
devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que parecem se colocar na linha
direta de produçõ es como as de Sade, dos libertinos franceses, entre outros), sua
obra nã o é, no entanto, a obra de um escritor. Seus romances sã o a elaboraçã o
literá ria de uma problematizaçã o filosó fica, um pouco como os romances de
Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra
literá ria, já que a literatura aparece quase como um regime discursivo de
explicitaçã o de proposiçõ es filosó ficas.
No entanto, sua produçã o filosó fica também nã o parece se enquadrar
claramente no modelo de produçã o que poderíamos esperar de textos filosó ficos.
Por exemplo, a parte alguns escritos sobre Nietzsche e dois artigos sobre Hegel,
nã o encontraremos textos diretamente dedicados ao comentá rio da obra de
outros filó sofos. Sua formaçã o nã o foi típica de um filó sofo. Ela se deu na Ecole
des Chartes, de Paris, de onde saiu como arquivista e bibliotecá rio com uma tese
sobre o manuscrito A ordem da cavalaria, o que explica, entre outros, porque
encontraremos em sua produçã o textos técnicos sobre numismá tica. Durante
praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando
completamente à margem da vida universitá ria.
Esta formaçã o híbrida, assim como uma grande abertura de interesses,
pode explicar porque os temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um
campo de interface entre a antropologia, a teologia, a estética e a filosofia. O que
lhe fornece uma capacidade nã o negligenciá vel de elaborar temas filosó ficos até
entã o inexistentes, como este que versa sobre o erotismo e suas relaçõ es com o
sagrado.
Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de
Bataille veremos, ao menos, duas influências maiores vindas do campo da
filosofia. A primeira é Nietzsche. De fato, a peculiaridade da recepçã o de
Nietzsche na França seria incompreensível sem o impacto dos textos de Bataille e
sua maneira de, nos anos trinta, demonstrar a incompatibilidade entre o filó sofo
alemã o e o nazismo que procurava à sua maneira recuperá -lo. Já a segunda
influência filosó fica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois descoberto
através dos cursos de Alexandre Kojève.
Kojève foi um emigrante russo responsá vel, nos anos trinta, por um
seminá rio de leituras da Fenomenologia do Espírito na Escola Prá tica de Altos
Estudos. Entre os alunos de seu curso encontravam-se: Bataille, Jacques Lacan,
Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil e de forma mais
esporá dica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês podem ver, uma boa
parte da nú cleo do pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente ao
mesmo seminá rio, aprendendo um modo de leitura dos textos hegelianos que
privilegiava questõ es ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à morte e ao
fim da histó ria. Bataille seguiu de maneira assídua os seminá rios, de 1933 a
1940, sendo a ú nica formaçã o filosó fica de longa duraçã o que teve.
Mas além da influências filosó ficas, devemos salientar ainda outras duas
matrizes para a constituiçã o de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo
e das aspiraçõ es abertas pelo modernismo estético. Desde de meados dos anos
vinte, Bataille participa assiduamente das discussõ es a respeito do surrealismo,
animadas principalmente por André Breton. No entanto, suas relaçõ es com
Breton sã o tensas e logo serã o levadas à ruptura. Bataille se vê em uma posiçã o
mais radical do que a de Breton, que ele compreende como uma porta-estandarte
de uma versã o “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito, Breton dirá : “O Sr.
Bataille faz profissã o de querer considerar apenas o que há de mais vil, mais
desencorajador e corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se
torne útil ao que quer que seja de determinado a correr absurdamente com ele em
direção a algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas mais
viciosas, mais rançoso que salões de cabelereiro” 13.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica
da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o
que teria sido recalcado pelos processos de racionalizaçã o na modernidade,
como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência
modernista é um paradoxal apelo à recuperaçã o do que foi expulso do nosso
tempo histó rico. Recuperaçã o da capacidade de escrever como um criança, sem
objetivo e em completa errâ ncia; escrever com as condensaçõ es, os
deslocamentos e as associaçõ es pró prias à s formaçõ es do inconsciente; escrever
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o
selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posiçã o de Bataille consiste em
explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexã o sobre a potência de
uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma
vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents,
Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais
revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela,
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci.
Mas, pelas mã os de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de
seu sexo, suas vísceras estã o expostas e nas mã os ele carrega um coraçã o em
chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razã o que se expressa no equilíbrio sereno da
boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a
paixã o que queima e a morte ligada ao sexo. O que nã o nos surpreende se
lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando:
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito
tarde para tentar ser razoá vel e instruido – o que levou a uma vida sem atrativos.
Secretamente ou nã o, faz-se necessá rio se transformar em algo totalmente outro
ou cessar de ser”.
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre
todo verdadeiro projeto filosó fico e a elaboraçã o, até as ú ltimas consequências,
13
BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
de um acontecimento. Aqui, nó s encontramos um bom exemplo do que significar
ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a forma de
um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela
consciência de se viver em uma época de esgotamento estético à procura de
superaçã o. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura em
sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que,
longe de ser naturalizada, é uma construçã o social responsá vel pelo
empobrecimento da vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará nã o apenas
a uma nova ordem, mas, principalmente, à destruiçã o da figura atual do homem.
Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitaçã o, a perda do centro que
define uma hierarquia.
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva
da antropologia de Marcel Mauss e da psicaná lise de Sigmund Freud. Vale a pena
lembrar que Bataille fundará , juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e
Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de
sociologia”. Nela, era questã o de desenvolver um saber capaz de fazer nã o
apenas uma antropologia da sociedades primitivas, mas principalmente uma
antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que, em nossas
sociedades, nã o se deixa pensar a partir de explicaçõ es utilitaristas. Para tanto,
Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dá diva,
dom, mana, fato social total, entre tantos outros. Ele também nã o deixa de se
apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará fortuna na psicaná lise,
através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência


intelectual de Georges Bataille é prestando atençã o no modo de funcionamento
de sua crítica social. Como vocês podem imaginar, ela nã o é apenas uma crítica
social, mas ao mesmo tempo, crítica da razã o e crítica do sujeito. Ou seja, ela
compreende que a ú nica maneira de fazer uma verdadeira crítica social nã o é
contentando-se com a denú ncia das condiçõ es de exploraçã o e injustiça
econô mica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo tempo, estar atenta para a
maneira com que nossa realidade social só será modificada à condiçã o de nos
livrarmos de um conceito de razã o onde esta aparece principalmente como um
modo instrumental de dominaçã o e de um conceito de sujeito profundamente
alienante.
Em vá rios momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas
ocidentais sã o caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho.
O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituiçã o das
identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Neste sentido,
lembremos de duas características maiores do trabalho. Primeiro, o trabalho
fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades
sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato dele ser (juntamente
com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituiçã o daquilo que podemos
entender por “forma de vida”. Tal expressã o realiza exigências maiores de
autenticidade. Procuro realizar, através do trabalho, a expressã o de algo que
definiria minha autenticidade, a singularidade do meu estilo.
No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como
modalidade privilegiada de formação em direçã o à autonomia. Nã o é por acaso
que compreendemos a maturaçã o psicoló gica como este momento em que, entre
outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a maturaçã o
implica mutaçã o no padrã o de atividades subjetiva. Ou seja, a expectativa de
realizaçã o conjunta de exigências de expressão e formação é elemento definidor
dos valores que mobilizamos na avaliaçã o social do trabalho. Pois trata-se de dar
conta de uma dupla demanda presente na definiçã o moderna de liberdade. Dupla
demanda referente à constituiçã o da autonomia e à manifestaçã o social da
autenticidade. Por sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito
do espectro de sofrimentos que ainda encontramos na vida social.
Se o trabalho tem esta dimensã o formadora é porque ele é uma das
versõ es mais bem acabadas de certo processo de auto-governo. Só aqueles
capazes de se auto-governar sã o capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx,
através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser
reconhecida por mim como expressã o da minha pró pria vontade. Esta vontade
que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever
que ele mesmo põ e para si, dever que lhe permite relativizar as exigências
imediatas de auto-satisfaçã o, é um fator decisivo na constituiçã o da noçã o
moderna de autonomia. Por isto, só aqueles capazes de trabalhar sã o autô nomos;
nã o apenas no sentido material de serem capazes de prover seus pró prios
sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para si mesmo uma
lei de conduta que é a expressã o de sua pró pria vontade. E se lembramos da ideia
de Rousseau14, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si
mesmo sua pró pria lei, ser legislador de si mesmo, entã o seremos obrigados a
dizer que o trabalho é exercício mais importante para a liberdade.
Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente
validado nã o é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja,
como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre
será uma operaçã o servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisã o
social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse
dos meios de produçã o e de seus frutos. Para Bataille, isto nã o mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produçã o e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cá lculo de tempo e metas,
nã o se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada açã o a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
sã o homogêneos, intercambiá veis. A lei que imponho para mim mesmo quando
organizo minhas atividades a partir da ló gica do trabalho é uma lei que me
ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que
produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se
encontra, para Bataille, o verdadeiro nú cleo da experiência de alienaçã o
produzida pela sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cá lculo do esforço, relacionado à


eficá cia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoá vel, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
nã o sã o admitidos. Se nã o pudéssemos refrear esses movimentos, nã o
14
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razã o de
refreá -los15.

Nesta citaçã o, vemos Bataille introduzir uma oposiçã o importante. Há um


modelo de cá lculo derivado da ló gica do trabalho. Tal modelo é indissociá vel da
noçã o de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades sã o
calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto
do início dos anos 30, intitulado “A noçã o de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob


uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisiçã o (praticamente à produçã o) e à
conservaçã o dos bens e , por outro, à reproduçã o e à conservaçã o das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser vá lido, à s necessidades fundamentais da
produçã o e da conservaçã o16.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece nã o apenas enquanto modo de


descriçã o da racionalidade pró pria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definiçã o da natureza dos
sujeitos pró prios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
sã o aqueles que organizam suas açõ es tendo em vista sua auto-conservaçã o, a
conservaçã o de seus bens e a fruiçã o de formas moderadas de prazer. Eles sã o
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas açõ es, nã o apenas suas açõ es no interior do mundo do trabalho, mas
também suas açõ es relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relaçõ es entre pessoas
acaba ganhando a forma de relaçõ es entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas”17.

Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o se
confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:

A atividade humana nã o é inteiramente irredutível a processos de


reproduçã o e de conservaçã o, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessá rio para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservaçã o da
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condiçã o fundamental desta ú ltima. A segunda parte é
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construçõ es de monumentos santuá rios, os jogos, os
15
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
16
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
17
Idem; O erotismo, p. 184
espetá culos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condiçõ es
primitivas, têm em si mesmas seu fim18.

Há vá rias questõ es que poderíamos colocar a partir de afirmaçõ es desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruiçã o que, do
ponto de vista das exigências econô micas de produçã o e maximizaçã o, sã o
simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar
a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de atividade
improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em
uma afirmaçã o como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual,


uma incompatibilidade cujo rigor nã o poderia ser negado. Na medida em
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve nã o
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo
o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideraçã o desviou o
homem, senã o da consciência dos objetos, ao menos da consciência de
si19.

O excesso e os números

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construçã o de Bataille. Primeiro,


trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a ló gica do trabalho e a
vida sexual. Isto exige nã o apenas aceitar desvincular a vida sexual dos
imperativos de reproduçã o (pois se sexo servisse principalmente para a
reproduçã o, entã o ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências
de conservaçã o das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular,
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar,
como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um
complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Nã o
por outra razã o, mais ou menos à mesma época, filó sofos ligados à Escola de
Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as
sociedades capitalistas nã o podiam ser compreendidas como sociedades
repressivas em relaçã o à s exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de
contínua incitaçã o à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao
mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento
das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento
constantemente presente para o fortalecimento da coesã o social.
Por uma razã o desta natureza, Bataille procura pensar a experiência
sexual como aquilo que nã o se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos
que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por
isto, sua incompatibilidade com o trabalho nã o é simplesmente derivada da ideia
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles

18
Idem; A parte maldita, p. 21
19
Idem; O erotismo, p. 188
nã o tem medida comum, eles nã o seguem a mesma ló gica. Sua relaçã o é de
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, nã o sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, nã o significa dizer que o
erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso nã o é da ordem da grandeza,
mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois
isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenô menos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que nã o
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos
mensurá veis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que nã o aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que nã o entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da ló gica utilitá ria. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em
tudo o que parece inumano no sexo:

A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se


opõ e à reduçã o do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga
a sua virilidade. Ela nã o responde de modo algum em nó s à quilo que é o
animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurá vel. É
mesmo nela que nã o podemos ser reduzidos como bois à força de
trabalho, ao instrumento, à coisa20.

Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na


qual reconheça as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade.
Tal animalidade nã o é o selvagem, mas o incomensurá vel, o que nã o se descreve
como descrevemos um instrumento.
Isso explica, em nosso texto, a indignaçã o de Bataille com estudos “sobre a
vida sexual” como os Relató rios Kinsey. Alfred Kinsey foi um bió logo e “sexó logo”
norte-americano responsá vel por estudos sobre o comportamento sexual
masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos procuraram
criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e heterossexuais a
partir de uma escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a partir de variá veis
de ocupaçã o, idade, religiã o, entre tantas outras. Bataille se insurge contra a ideia
de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos diante de um objeto do
mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para Bataille, impossível.
Pois a ciência é um regime de descriçã o que nã o se diferencia do padrã o de
racionalidade que encontramos no mundo do trabalho.
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é
impossível porque, primeiro: “nã o podemos em geral participar da pedra, da
tá bua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos” 21. Ou seja, nã o há
um observador indiferente aos fenô menos ligados à sexo, pois eles provocam
necessariamente nossa participaçã o. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em
um regime de participaçã o e de implicaçã o, como participaríamos e nos
20
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183
21
Idem, p. 179
implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém pró ximo. Por isto,
o discurso que crê descrever fenô menos sexuais como se fossem coletados por
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificaçã o.
Nossa descriçã o do que é da ordem do sexual sempre será uma descriçã o
sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime
de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo nã o pode ser, para
Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Nã o que eles nã o sejam precisos, eles sã o
simplesmente irrelevantes:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a


dar nú meros, medidas, classificaçõ es de acordo com a idade ou a cor dos
olhos? O que o homem significa a nossos olhos se coloca sem dú vida para
além dessas noçõ es: estas se impõ em à atençã o, mas nã o acrescentam a
um conhecimento já dado senã o aspectos inessenciais22.

Consciência de si e soberania

Em uma citaçã o anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideraçã o pela


natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senã o da consciência dos
objetos, ao menos da consciência de si. Seria interessante perguntar-se aqui
porque vincular a revelaçã o do sexo à consciência de si. Normalmente,
poderíamos pensar no contrá rio, a saber, que a natureza excessiva da vida sexual
é o avesso de toda consciência de si, pois ela nos colocaria em um regime de
descontrole e inconsciência, de distâ ncia em relaçã o a algo como um “si mesmo”,
como quem se entrega à servidã o de algo que lhe ultrapassa e lhe subjuga.
No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva
da vida sexual é condiçã o para quebrarmos o círculo de alienaçã o no qual se
encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho,
enquanto objetos de um discurso científico objetificador e acedermos à condiçã o
de consciência de si emancipada.
Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro
conceito importante de Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente,
o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever
aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanaçã o do
poder. O exemplo mais paradigmá tico aqui é o lugar do rei no poder moná rquico.
O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressã o da sua
vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e
suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode
estar dentro ou fora da lei, aplicá -la ou suspendê-la, porque é dele que emana o
poder.
Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem
trabalhar, enquanto aquele submetido à servidã o produz riquezas sem consumi-
22
Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est,
en un certain sens, une des fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui
sont exclus par cette dernière se trouvent également exclus du champ de l'attention scientifique : par
principe même, la science ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant que tels” (BATAILLE,
Georges; )
las. Ou seja, a soberania pressupõ e o descolamento entre gozo e trabalho, pois se
baseia no direito ao gozo desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto de
vista da ló gica econô mica, o soberano é improdutivo.
Bataille retira o conceito de soberania das mã os daquele que se encontra
no centro do poder político para transformá -lo em um conceito capaz de
descrever a posiçã o subjetiva de quem nã o se encontra mais em posiçã o de
alienaçã o e servidã o. Mas o paradoxal no uso batailleano do conceito de
soberania é que ele nã o descreve alguma experiência de dominaçã o baseada na
sobreposiçã o da vontade do Outro à minha vontade. Ao contrá rio, soberano é
aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo projeto, porque ele tem a
segurança de que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe
submeter.
Depor toda vontade de domínio significa nã o querer mais controlar as
coisas através da sua submissã o à utilidade delas para mim, que normalmente
sou seu proprietá rio, nem controlar o tempo através da submissã o do presente
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitaçõ es que
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro.
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio
improdutivo. Por isto, ele dirá : “é soberano o gozo de possibilidades que a
utilidade nã o justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)” 23, ou
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a nã o
ser esse tempo presente”. Desta forma, a improdutividade do soberano se
transforma na descriçã o de uma posiçã o subjetiva na qual a liberaçã o do tempo e
das coisas é indissociá vel de uma experiência de emancipaçã o.
Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim
mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente” 24. Pois só assim,
nã o sou mais um objeto submetido à suspensã o do gozo do presente em nome do
trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensã o que sempre é feita para que
um outro, este sim em posiçã o soberana, possa consumir o que produzo. Nã o há
trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um
soberano que nã o trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre um
soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociá vel da capacidade de
habitar outro tempo, distinto do tempo da produçã o. Um tempo, dirá Bataille,
pró prio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserá vel
(o que, o mais pobre à s vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nó s sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fú nebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de gló ria25.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por

23
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
24
Idem, p. 289
25
Idem, p. 249
Bataille, característica que veremos com mais calma na pró xima aula, é sua
posiçã o de transgressã o em relaçã o à lei. Se na teoria política o soberano é
aquele que está , ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei,
mas à ela ele nã o se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem
soberano é aquele que estabelece com a lei uma relaçã o de transgressão. Ele
pode ir em direçã o ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos
homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressã o
da lei”26. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de
transgressã o na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as
posiçõ es, as prá ticas interditadas sã o continuamente colocadas em questã o e
profanadas. Pois o erotismo é pró prio a: “um mundo que se desnuda na
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride” 27. Veremos
melhor este ponto na aula que vem
Mas Bataille também acrescenta algo à noçã o de soberania, a saber, a
ideia de que a consciência de si soberana nã o é a realizaçã o final de uma
identidade reconquistada. O verdadeiro soberano nã o é aquele que se deleita na
segurança de sua pró pria identidade. Ele é aquele que depô s todo desejo de auto-
identidade. O verdadeiro soberano é aquele que nã o teme se perder, que nã o
teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma
experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produçã o, da conservaçã o de
si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é
fundada na capacidade de transformar a relaçã o a si em uma relaçã o que nã o
será relaçã o homogênea, mas uma relaçã o heterogênea. Veremos na aula que
vem como a experiência do erotismo nos coloca no caminho em direçã o a tal
consciência.

26
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
27
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 3

Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso mó dulo dedicado ao conceito de


erotismo, em Georges Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no
pensamento de Bataille, a saber, a) a funçã o e o sentido da relaçã o entre erotismo
e morte, b) o fundamento da ideia de uma sobreposiçã o entre erotismo e
sagrado, c) o conceito de transgressã o.
Na aula passada, terminamos através de uma discussã o sobre o conceito
de soberania. Bataille afirmara, em dado momento, que a desconsideraçã o pela
natureza excessiva do sexo teria desviado o homem, senã o da consciência dos
objetos, ao menos da consciência de si. Eu sugeri que, compreender a relaçã o
entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma forma de tomar
consciência de si mesmo, passava por organizar discussõ es a respeito da maneira
com que Bataille compreende ser possível superar o círculo de alienaçã o no qual
se encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho,
enquanto objetos de um discurso científico objetificador. Se confrontar-se com a
natureza excessiva da vida sexual é condiçã o para tomar consciência de si
mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na experiência sexual que nos
coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito de soberania aparece como
um operador importante para compreendermos o que está em jogo na ideia de
erotismo.
Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é
utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra
em um lugar excepcional, pois fonte de emanaçã o do poder. O exemplo mais
paradigmá tico aqui é o lugar do rei no poder moná rquico. Do lugar do rei,
Bataille sublinha duas características principais: sua posiçã o, ao mesmo tempo,
dentro e fora da lei, assim como a preferência pelo uso improdutivo da riqueza
(já que o uso produtivo seria ligado à acumulaçã o, processo pró prio à ascensã o
da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude
soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos” 28.
O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza pró prio à
soberania nos é dado pelo fenô meno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir”
em chinook), que pode ser encontrado em tribos norte-americanas, na Melanésia
e na Nova Guiné . É o antropó logo Marcel Mauss que descreve o fenô meno como
uma “prestaçã o total do tipo agonístico”. Mauss quer dar conta desses
fenô menos sociais baseados na obrigaçã o de retribuir o presente recebido,
obrigaçã o de retribuir um dom como forma de afirmar o prestígio e o poder de
um clã , chefe ou tribo. Tal obrigaçã o pode chegar: “à destruiçã o puramente
suntuá ria das riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival” 29. Ou seja, a fim de
engajar rivais em uma relaçã o soberana, um chefe pode, por exemplo presentear
ou simplesmente destruir parte significativa de sua riqueza, degolar escravos,
jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o mesmo em maior
escala. Bataille segue uma colocaçã o de Mauss a respeito do cará ter
paradigmá tico de tal atividade:
28
BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326
29
MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192
Pesquisas mais aprofundadas mostram um nú mero bastante considerá vel
de formas intermediá rias entre essas trocas com rivalidade exasperada,
com destruiçã o de riquezas, como as do noroeste americano e da
Melanésia, e outras com emulaçã o mais moderada em que os contratantes
rivalizam em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim de
ano, em nossos festins, bodas, em nossos simples convites para jantar, e
sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como dizem os
alemã es30.

Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania


das mã os daquele que se encontra no centro do poder político para transformá -
lo em um conceito capaz de descrever a posiçã o de todo e qualquer sujeito que
nã o se encontre mais em situaçã o de alienaçã o e servidã o. Mas eu insistira com
vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um cará ter fundamental: ele
nã o descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do
poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete à s coisas à condiçã o
de coisas das quais ele pode gozar como proprietá rio, submete o tempo ao tempo
do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que
nã o domina, poder de quem tem segurança suficiente de nã o precisar de
dominar para se defender.
Depor toda vontade de domínio significa nã o querer mais controlar as
coisas através da sua submissã o à utilidade delas para mim, que normalmente
sou seu proprietá rio, nem controlar o tempo através da submissã o do presente
ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitaçõ es que
aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro.
Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um dispêndio
improdutivo. Por isto, ele dirá : “é soberano o gozo de possibilidades que a
utilidade nã o justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)” 31, ou
ainda, “o que é soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a nã o
ser esse tempo presente”. Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se
nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o instante presente” 32.
Pois só assim, nã o sou mais um objeto submetido à suspensã o do gozo do
presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensã o que
sempre é feita para que um outro, este sim em posiçã o soberana, possa consumir
o que produzo. Nã o há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos
trabalhados por um soberano que nã o trabalha. Graças ao efeito do meu
trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociá vel da capacidade de
habitar outro tempo, distinto do tempo da produçã o. Um tempo, dirá Bataille,
pró prio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio
do sol que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserá vel
(o que, o mais pobre à s vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro

30
MAUSS, idem, p. 193
31
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
32
Idem, p. 289
copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nó s sob a forma de beleza, de
riqueza; também sob a forma de violência, de tristeza fú nebre ou sagrada;
enfim, sob a forma de gló ria33.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por


Bataille é sua posiçã o de transgressã o em relaçã o à lei. Se na teoria política o
soberano é aquele que está , ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o
fundamento da lei, mas à ela ele nã o se submete por completo, na filosofia de
Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relaçã o de
transgressão. Ele pode ir em direçã o ao que é interdito, ao que estava separado
do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e
a transgressã o da lei”34. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este
jogo de transgressã o na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais,
as posiçõ es, as prá ticas interditadas sã o continuamente colocadas em questã o e
profanadas. Pois o erotismo é pró prio a: “um mundo que se desnuda na
experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride” 35.

O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade

A discussã o sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve


para adentrarmos no sentido da relaçã o, tã o salientada por Bataille, entre
erotismo e morte.
“Do erotismo, é possível dizer que é a aprovaçã o da vida até na morte” 36.
Com esta frase, Bataille começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de
que, para pensar a essência do erotismo, devemos compreender como a vida
serve-se da morte com uma de suas figuras, como ela transforma a morte em
aprovaçã o da atividade vital. Neste ponto, juntam-se dos níveis de
argumentaçã o: um ligado a teoria social, outro ligado à algo que poderíamos
chamar de “filosofia da natureza”.
O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa ú ltima aula. As
sociedades capitalistas modernas sã o sociedades baseadas na reduçã o do
espectro das atividades humanas à figura do trabalho, assim como na reduçã o da
experiência subjetiva à figura do indivíduo. Por um lado, o trabalho é a tarefa de
uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade deve se opor a esses
movimentos que nos fazem nos abandonarmos ao universo violento do excesso,
a saber, a relaçã o sexual e a morte. A morte é a mais forte desordem contra o
mundo do trabalho.
Por outro lado, indivíduos sã o seres descontínuos, ou seja, que definem
sua identidade da mesma forma que países definem suas fronteiras:
estabelecendo limites, usando a identidade como sistema defensivo contra a
submissã o ao outro. Do ponto de vista do desejo, indivíduos sã o fundamentados
em sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer a partir de
acordos entre outros sistemas particulares. Daí porque as relaçõ es entre
indivíduos serã o, em larga medida, relaçõ es inspiradas nas relaçõ es contratuais.
33
Idem, p. 249
34
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
35
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
36
BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35
Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a
expressã o má xima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de
interesses que devem ser restringidos mutuamente pelos interesses de outros
indivíduos. Restriçã o que, normalmente, legitima-se através da ficçã o jurídica de
um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem
socialmente realizados e abro mã o daqueles que nã o se submetem a esta
condiçã o. Ficçã o que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto
central do vínculo político (medo da despossessã o de meus bens, medo da morte
violenta, medo da invasã o de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille,
indivíduos nã o conhecem o erotismo, já que:

“o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissoluçã o das formas


constituídas. Repito-o dessas formas de vida social, regular, que fundam a
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) trata-se
de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade,
toda a continuidade de que este mundo é capaz”37.

Ou seja, a experiência do erotismo pressupõ e a capacidade de sair da ordem


descontínua das individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservaçã o das
individualidades, o erotismo sempre será violento e invasivo: “o que significa o
erotismo dos corpos, senã o uma violaçã o do ser dos parceiros?” pois “A
passagem do estado normal ao de desejo eró tico supõ e em nó s a dissoluçã o
relativa do ser constituído na ordem descontínua”38.
Esta violência pró pria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de
um estado de descontinuidade à continuidade, procura de supressã o dos limites
e dos indivíduos. Por ter esta característica de supressã o violenta dos indivíduos
e de seus sistemas de organizaçã o de experiência e afetos o erotismo, ao menos
segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A morte, enquanto supressã o de
um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se aproxima, podemos
mesmo, em certos casos, alcançá -lo. Ela é a força que faz do erotismo uma
experiência na qual os seres se livram de formas antigas e configuram novas
formas.
Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de
contrapor o advento da individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se
passaria como se Bataille procurasse fenô menos sociais nos quais a figura do
indivíduo consciente de seus interesses e insubmisso a prá ticas ritualizadas nã o
poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente pregar uma crítica da
modernidade através de alguma forma de retorno a está gios pré-modernos de
individuaçã o. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir tanto no vínculo
entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa
aparece como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na
qual a religiã o ocupa um lugar central na vida social, dando o sentido para
prá ticas na esfera da economia, da política, da produçã o cultural e na vida
afetiva., seriam as ú nicas capazes de garantir algo da ordem da experiência dessa
continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a pregar alguma

37
Idem, p. 42
38
Idem, p. 41
forma de volta de nossas sociedades a esses está gios pré-modernos e,
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais
experiências ainda estã o presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma
distorcida e profundamente destrutiva. Para a geraçã o de Bataille, fenô menos
como a ascensã o do nazismo e do fascismo foram ocasiõ es para compreender
como o processo de formaçã o das individualidades modernas era agenciado de
forma tal a produzir sujeitos indefesos à seduçã o dos regimes totalitá rios. Nã o
por outra razã o, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma aná lise psicoló gica
do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicoló gica do
fascismo”.
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da
produçã o é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construçã o de uma
estrutura social na qual relaçõ es e valores sã o baseadas na utilidade e na
quantificaçã o. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relaçõ es humanas podem ser mantidas por uma reduçã o
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
situaçõ es definidas)”39. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusã o do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma pró pria de apreensã o pela consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,
já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relaçã o ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibiçã o social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a gló ria e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a pró pria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atraçã o quanto repulsã o e se apresentam a nó s através da força
violenta do choque.
Bataille afirma entã o que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instâ ncia
dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania
presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania
assentada na experiência da dominaçã o.
Esta dominaçã o, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade
homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o
outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominaçã o,
revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do
heterogêneo como astú cia ú ltima da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que nã o se submete a
esta soberania moná rquica recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao
falar das experiências do sagrado e do erotismo.
39
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
Desta forma, duas concepçõ es de soberania podem entã o se contrapor.
Quando a soberania está presente sob as mú ltiplas formas do poder moná rquico,
seres humanos sã o, no interior de uma relaçã o de dominaçã o, apenas elementos
negados. Quando ela é reapropriada pelos seres humanos, a pró pria dominaçã o é
negada.

Sexo e morte

Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressã o
da descontinuidade para a qual o erotismo tenderia. Aqui nó s devemos fazer
apelo a uma certa filosofia da natureza presente no horizonte do pensamento de
Bataille. Ela parte da ideia de que a atividade vital está , a todo momento, tendo
que lidar com a noçã o de excesso:

O organismo vivo, na situaçã o determinada pelos jogos de energia na


superfície do globo, recebe em princípio mais energia do que é necessá rio
para a manutençã o da vida: a energia (a riqueza) excedente pode ser
utilizada para o crescimento de um sistema (de um organismo, por
exemplo); se o sistema nã o pode mais crescer, ou se o excedente nã o pode
mais ser inteiramente absorvido em seu crescimento, é preciso
necessariamente perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade ou nã o,
gloriosamente ou de modo catastró fico40.

Como vocês podem ver, trata-se de uma proposiçã o bioló gica sobre a
natureza. Ela consiste em dizer que há um mobilidade interna ao fato vital que
leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo que lhe aparece como
excessivo, pois nã o submetido ao padrã o atual de suas atividades e de normas.
Esta energia excessiva pode servir ao crescimento e desenvolvimento do pró prio
organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua destruiçã o, ou seja,
à s destruiçã o de sua forma. As formas vitais nã o apenas se desenvolvem; elas
procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as
leve à destruiçã o: “se nã o temos força para destruir a energia em acréscimo, ela
nã o pode ser utilizada; e, como um animal intato que nã o se pode domar, é ela
que nos destró i, somos nó s mesmos que arcamos com os custos da explosã o
inevitá vel”41. Neste sentido, as individualidades orgâ nicas sã o estruturalmente
instá veis, pois para dar conta da energia que as atravessa, elas devem gastá -la
como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista da pura
conservaçã o das formas atuais, nã o tem sentido algum.
Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo bioló gico que age sem ter em vista sua pró pria auto-preservaçã o e
reproduçã o. Nã o deixa de ser interessante encontrar tal conceito de organismo
em alguns dos setores mais avançados da biologia contemporâ nea. Lembremos,
por exemplo, desta afirmaçã o do bió logo Henri Atlan, para quem o organismo
bioló gico é uma organizaçã o dinâ mica capaz de ser um processo de:

Desorganizaçã o permanente seguido de reorganizaçã o com apariçã o de


propriedades novas se a desorganizaçã o pode ser suportada e nã o matou
40
BATAILLE, Georges; A parte maldita, p. 45
41
Idem, p. 46
o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, nã o
apenas sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte
intrínseca de seu funcionamento e evoluçã o: sem perturbaçã o ou acaso,
sem desorganizaçã o, nã o há reorganizaçã o adaptadora ao novo; sem
processo de morte controlada, nã o há processo de vida42.

Aqui se delineia a diferença ontoló gica fundamental entre um organismo


e uma má quina artificial. Ao menos segundo o filó sofo Georges Canguilhem: “na
má quina, há verificaçã o estrita das regras de uma contabilidade racional. O todo
é rigorosamente a soma das partes. O efeito é dependente da ordem das
causas”43. Já o organismo nã o conhece contabilidade: “Uma fiabilidade como esta
do cérebro, capaz de funcionar com continuidade mesmo que células morram
todos os dias sem serem substituídas, com mudanças inesperadas de irrigaçã o
sanguínea, flutuaçõ es de volume e pressã o, sem falar da amputaçã o de partes
importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as performances
do conjunto nã o tem semelhança com qualquer autô mato artificial”44. Ou seja, há
um princípio de auto-organizaçã o no organismo capaz de lidar com
desestruturaçõ es profundas, desordens e dispêndios.
No entanto, a possibilidade da destruiçã o do organismo como sistema, de
sua morte é um dado real e é necessá rio que tal dado seja real para que a ideia da
açã o do organismo como marcada nã o pela finalidade, mas pela errâ ncia possa
realmente funcionar. Errâ ncia implica poder se perder por completo, dispender
todo o processo acumulado em uma profunda irracionalidade econô mica, o que
explica porque a destruiçã o do sistema é uma parte intrínseca de seu
funcionamento. Pois apenas por poder perder-se por completo, ou seja, por
poder deparar-se com a potência do que aparece como a-normativo, que
organismos sã o capaz de produzir formas qualitativamente novas, migrar para
meios radicalmente distintos e, principalmente, viver em meios nos quais
acontecimentos sã o possíveis, nos quais acontecimentos nã o sã o simplesmente o
impossível que destró i todo princípio possível de auto-organizaçã o. Tal figura do
acontecimento demonstra como as experiências do aleató rio, do acaso e da
contingência sã o aquilo que tensionam o organismo com o risco da
decomposiçã o. Isto talvez explique porque Bataille afirma: “Com uma venda nos
olhos, recusamos a ver que só a morte assegura incessantemente um
ressurgimento sem o qual a vida declinaria. Recusamos ver que a vida é a
armadilha oferecida ao equilíbrio, que ela é inteiramente a instabilidade, o
desequilíbrio em que precipita”45.
Nã o deixa de ser surpreendente que a vida sirva-se desta dinâ mica para
poder construir suas formas, o que talvez mostre como nã o se trata de um mero
dado anedó tico lembrar que: “Mais de noventa e nove por cento das espécies
aparecidas desde quatro bilhõ es de anos foram provavelmente extintas para
sempre”46. Esta é apenas uma maneira um pouco mais dramá tica de lembrar que
os valores mobilizados pela atividade vital nã o podem ser a “utilidade”, a
“funçã o” ou o mesmo o “papel” a desempenhar. A vida se passa dessa
contabilidade de balcã o de supermercado. Nã o podemos sequer definir o
42
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 280
43
CANGUILHEM, Georges; Connaissance de la vie, p. 149
44
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 41
45
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 84
46
AMEISEN, Jean-Claude; La sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la mort créatrice, p. 12
desenvolvimento de ó rgã os a partir da necessidade de certas funçõ es pró prias a
uma adaptaçã o à configuraçã o atual do meio. Como a biologia evolucionista nos
mostra, mais correto seria dizer que muitos ó rgã os sã o inicialmente
configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de funçõ es deles se
desenvolvam.
Assim, quando Bataille fala da proximidade entre o erotismo e a morte,
nã o devemos ver nesse tema apenas os resquícios possíveis de um topos
româ ntico decadentista reciclado. Na verdade, essa é a forma de Bataille insistir
como o erotismo pode aparecer na vida social como potência de desestabilizaçã o
de formas ligadas à perpetuaçã o da sociedade homogênea dos indivíduos e de
produçã o possível de novas formas baseadas na capacidade de estabelecer
relaçõ es como o heterogêneo, sendo a morte o grau má ximo da heterogeneidade.

O interdito e a transgressão

Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo
como fenô meno indissociá vel do interdito e da transgressã o. Bataille lembra que
a realidade humana difere daquela pró pria ao animal porque ela é submetida a
leis. A princípio, tal proposiçã o pode parecer estranha pois conhecemos bem
como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto
no mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no caso humano há , ao
menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os interditos sã o indissociá veis de
sua transgressã o. Nã o há interdito sem transgressã o regulada ou, muitas vezes,
prescrita. Nã o há proibiçã o do assassinato sem a regulaçã o de suas transgressõ es
possíveis (como a guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e
transgressã o, há uma profunda cumplicidade entre a lei e a violaçã o da lei que
aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer
que: “a transgressã o difere do ‘retorno à natureza’: ela suspende o interdito sem
suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se encontra ao
mesmo tempo a mola propulsora das religiõ es”47.
É a essa “suspensã o sem supressã o” que devemos voltar nossos olhos. A
princípio, ela tenderia a indicar um movimento neuró tico no qual o sujeito
parece necessitar dos muros da prisã o para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressã o do interdito como condiçã o para o gozo. E
Bataille nã o deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angú stia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Ele seria um erotismo acalmado no interior de uma
regiã o na qual a vida nã o força seus limites e nã o testa novas formas. Tentemos,
por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõ e à natureza


encarada como uma dissipaçã o de energia viva e como uma orgia de
aniquilamento, nã o podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte sã o apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidã o inesgotá vel dos seres; uma e outra
47
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
tem o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contrariando o desejo de durar, que é pró prio a cada ser (...) Nunca, com
efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, nã o de uma
imobilidade derradeira48.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma


ordem à dissipaçã o de energia e à orgia de aniquilamento pró prias à atividade
vital. Os interditos sã o sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro
desejo de durar, que é pró prio a cada ser. Sistemas de regras que visam parar,
nem que seja por um momento, essa festa orgiá stica que a natureza celebra com
a multidã o inesgotá vel dos seres. Talvez porque a vida precise da suspensã o
temporá ria desses turbilhõ es. E ela precisa porque faz-se necessá rio levar em
conta princípios contrá rios: uma certa conservaçã o e uma certa dissoluçã o, ou
seja, uma flexibilizaçã o pró pria à continuidade do jogo entre interdiçã o e
transgressã o.
Sendo assim, o pró prio movimento vital seria um movimento de ereçã o de
interditos e transgressõ es perió dicas. A condiçã o de que aceitemos se tratar nem
sempre dos mesmos interditos. As sociedades sã o mó veis na constituiçã o de seus
interditos, elas erigem interditos que conseguirã o se sustentar apenas por um
certo tempo, até que o peso da transgressã o contínua acaba por transformá -los
em interditos paró dicos. Mas o que Bataille nã o concebe é uma aboliçã o
produtiva do jogo entre interdiçã o e transgressã o. Voltaremos a este ponto na
pró xima aula.

48
Idem, p. 86
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 4

Terminamos a aula passada através de uma discussã o a respeito das relaçõ es


necessá rias entre interdito, transgressã o e erotismo. Eu dissera à ocasiã o que
Bataille precisa pensar o erotismo como fenô meno indissociá vel do interdito e da
transgressã o. Para tanto, ele insiste que a realidade humana difere daquela
pró pria ao animal porque ela é submetida a leis. A princípio, tal proposiçã o pode
parecer estranha pois conhecemos bem como a natureza é espaço de
normatividades. Tanto no mundo humano quanto no mundo natural, o peso das
normas se faz sentir. Mas no caso humano há , ao menos segundo Bataille, uma
peculiaridade: os interditos sã o indissociá veis de sua transgressã o. Nã o há
interdito sem transgressã o regulada ou, muitas vezes, prescrita. Por exemplo,
nã o há proibiçã o do assassinato sem a regulaçã o de suas transgressõ es possíveis
(como a guerra). Ou ainda: “todo o movimento da religiã o implica o paradoxo de
uma regra que admite a ruptura regular da regra em certos casos” 49. Há um jogo
de equilíbrio entre interdito e transgressã o, há uma profunda cumplicidade entre
a lei e a violaçã o da lei que aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí
porque, Bataille poderá dizer que: “a transgressã o difere do ‘retorno à natureza’:
ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do
erotismo, ai se encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiõ es”50.
É a essa “suspensã o sem supressã o” que voltamos inicialmente os nossos
olhos. A princípio, ela tenderia a indicar um movimento neuró tico no qual o
sujeito parece necessitar dos muros da prisã o para poder afirmar sua liberdade,
pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa
e do pavor ligado à transgressã o do interdito como condiçã o para o gozo. E
Bataille nã o deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da
sensibilidade tanto da angú stia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o
erotismo sem interditos? Pois Bataille nã o estaria preso a alguma forma
singularmente repressiva de sexualidade, isto ao insistir que sempre deve haver
interdito para existir desejo, que o interdito é no fundo uma condiçã o para o
desejo? Por que nã o admitir que é possível ultrapassar de vez esta peculiar
dialética entre interdito e transgressã o a respeito da qual Bataille quer nos
convencer de sua força?
A resposta possível é: porque um erotismo sem interditos seria um
erotismo acalmado no interior de uma regiã o na qual a vida nã o força seus
limites e nã o testa novas formas. Se nada aparece ao erotismo como uma
interdiçã o, se ele nã o dilacera mais nada, entã o nã o há nada que já nã o esteja
presente atualmente como realidade para o erotismo. Entã o a realidade atual já é
toda a realidade possível. Nã o há uma possibilidade nã o explorada, interditada,
ainda nã o realizada. A dimensã o da realidade é toda a extensã o dos possíveis, o
que faz com que os possíveis sejam configurados a partir da extensã o da situaçã o
atual.
Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:
49
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 134
50
Idem, p. 60
Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõ e à natureza
encarada como uma dissipaçã o de energia viva e como uma orgia de
aniquilamento, nã o podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte sã o apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidã o inesgotá vel dos seres; uma e outra
tem o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contrariando o desejo de durar, que é pró prio a cada ser (...) Nunca, com
efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, nã o de uma
imobilidade derradeira51.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma


ordem à dissipaçã o de energia e à orgia de aniquilamento pró prias à atividade
vital. Os interditos sã o sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro
desejo de durar, que é pró prio a cada ser. Nã o por outra razã o, os interditos
concernam principalmente a morte, o sexo, assim como a relaçã o aos dejetos e
excrementos. Em todos estes casos, em maior ou menor grau, os interditos
impedem o contato com situaçõ es e fenô menos nos quais a duraçã o das formas
se encontra em risco, seja através da dissoluçã o mortal ou através da
proximidade com o informe. Tendo isto em vista Bataille dirá , por exemplo:
“Certamente, a morte difere como uma desordem da ordenaçã o do trabalho: o
primitivo podia sentir que a ordenaçã o do trabalho lhe pertencia, ao passo que a
desordem da morte o ultrapassava, fazendo de seus esforços um contrassenso” 52.
Isto explica porque Bataille afirmará que o objeto fundamental dos
interditos é a violência. Pois “violência” nã o significa aqui apenas a
vulnerabilidade em relaçã o à força de um outro, açã o externa que nã o leva em
conta os meus interesses. “Violência” é aqui, principalmente, o que me
desordena, o que me faz sair da ordem que me preserva. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à pró pria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Nã o há nada que reduza a violência”53. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposiçã o da vida. Ela é tributá ria, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupçã o
que segue a morte e recoloca em circulaçã o as substâ ncias necessá rias à
incessante vinda ao mundo de novos seres54.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do


qual organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio é que
Bataille dá à angú stia uma funçã o fundamental e paradoxal na direçã o de nossas
açõ es: “Se considerarmos globalmente a vida humana, ela aspira à prodigalidade
até a angú stia, até a angústia, até o limite em que a angústia não é mais tolerável.
O resto é conversa de moralista”55.

51
Idem, p. 86
52
Idem, p. 67
53
Idem, p. 72
54
Idem, p. 79
55
Idem, p. 85
Esta funçã o da angú stia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na
medida em que podem (é uma questã o – quantitativa- de força) os homens
buscam as maiores perdas e os maiores perigos” 56. Neste sentido, eles nã o se
afastam simplesmente do que lhes provoca angú stia, mas sã o chamados por ela,
como quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem
claramente como sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um
momento, essa festa orgiá stica e violenta que a natureza celebra com a multidã o
inesgotá vel dos seres. Poderíamos nos perguntar pela razã o de tal desejo de
durar. Talvez porque a vida precise da suspensã o temporá ria da angú stia
provocada por esses turbilhõ es. E ela precisa porque faz-se necessá rio levar em
conta princípios contrá rios: uma certa conservaçã o e uma certa dissoluçã o, ou
seja, uma flexibilizaçã o pró pria à continuidade do jogo entre interdiçã o e
transgressã o. Ou seja, através do erotismo a experiência humana dá forma à quilo
que coloca em cheque as estruturas da forma. E ao permitir tal aproximaçã o, o
erotismo aparece como fonte de liberaçã o da vida dos limites que ela, por um
momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia aparecer, ao contrá rio,
como espaço no qual nã o forçamos mais os limites postos pelos interditos
quando ele perde sua dimensã o renovadora.
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o pró prio movimento vital
seria um movimento de ereçã o de interditos e transgressõ es perió dicas. Como se,
paradoxalmente, devessemos admitir que os interditos estã o aí para serem
violados. Pois: “A frequência – e a regularidade – das transgressõ es nã o abala a
firmeza intangível do interdito, de que é sempre o completamente esperado
como um movimento de diá stole completa um de sístole, ou como uma explosã o
é provocada por uma compressã o que a precede”57. À condiçã o de que aceitemos
se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades sã o mó veis na
constituiçã o de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirã o se
sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressã o contínua
acaba por transformá -los em interditos paró dicos ou em interditos fracos . Por
exemplo:

É da nudez que fala o livro de Gênesis, enunciando, através do sentimento


de obscenidade, a passagem do animal ao homem. Mas o que ofendia o
pudor no começo do século nã o o ofende mais, ou ofende menos. A nudez
relativa dos banhistas ainda é obscena em uma praia espanhola, nã o em
uma praia francesa: mas em uma vila, mesmo na França, a roupa dos
banhistas constrange um grande nú mero de pessoas58.

Mas o que Bataille nã o concebe é a possibilidade de uma aboliçã o


produtiva do jogo entre interdiçã o e transgressã o. Pois o interdito nã o suprime
as atividades necessá rias à vida, mas lhes dá o sentido da transgressã o religiosa.
O que pode nos colocar a questã o de saber por que a experiência da transgressã o
é para Bataille tã o importante. Se quisermos, podemos colocar tal questã o da
seguinte maneira: por que, para Bataille, todo verdadeiro ato é uma
transgressã o?

56
Idem, p. 110
57
Idem, p. 89
58
BATAILLE, Georges; Histoire de la sexualité, p. 45
Uma teoria da transgressão

Dos exemplos dados por Bataille a respeito da transgressã o, certamente o mais


paradigmá tico é a festa. Seguindo uma ideia que encontramos inicialmente em
Roger Caillois, Bataille verá na festa a essência da transgressã o porque ela seria:
“sem dú vida, o cessar do trabalho, o consumo incontinente dos seus produtos e a
violaçã o expressa de suas leis mais santas, mas o excesso consagra e completa
uma ordem de coisas fundadas sobre as regras, ela só lhes opõ e
temporariamente”59.
A sociedade humana nã o é apenas o mundo do trabalho. Ela é uma
composiçã o entre o mundo profano do trabalho e dos interditos e o mundo
sagrado dos espaços nos quais podemos produzir transgressõ es limitadas. Por
isto, o tempo sagrado será , para Bataille, necessariamente o tempo da festa. Uma
festa capaz de produzir laços sociais que nã o sã o apenas a expressã o de um
sistema de mú tua dependência entre trabalhadores que produzem produtos que
circularã o a fim de satisfazer necessidades individuais. A festa como laço social
fundado na transgressã o do tempo profano, na dilapidaçã o excessiva pró pria a
uma sociedade que procura, através da festa, adiantar imagens de uma sociedade
mais pró xima da prodigalidade da vida.
Mas este sagrado que encontra na festa sua melhor expressã o é, ao menos
se seguirmos a leitura de Michel Foucault, um peculiar sagrado sem Deus, ou
seja, sem a separaçã o ontoló gica em relaçã o à experiência do ilimitado e do
infinito. Daí uma afirmaçã o como: “a morte de Deus nã o nos restitui a um mundo
limitado e positivo, mas a um mundo que se desdobra na experiência do limite,
faz-se e se desfaz no excesso que a transgride” 60. Esse sagrado que nã o admite
mais a separaçã o ontoló gica entre o divino e o humano, mas que constitui o
humano como a passagem incessante ao limite, como a passagem incessante ao
divino é uma espécie muito peculiar de “filosofia da encarnaçã o”, ou seja,
filosofia que procura pensar em quais condiçõ es pode ocorrer uma encarnaçã o
do divino no humano, mesmo que tal filosofia admita ao mesmo tempo o vazio
ontoló gico que a morte de Deus representaria. Há de fato um misticismo em
Bataille, já que ele reconhece a força da experiência do sagrado, mas se trata de
um peculiar misticismo “ateoló gico”, como o pró prio o nomeava. O sagrado
aparece aqui, em conformidade com uma certa tradiçã o da teologia negativa,
como o abissal, como o obscuro. O que explica porque Bataille dá a experiências
místicas como as de Santa Teresa D’á vila uma funçã o central em seu conceito de
sagrado. Pois, a seu ver:

Santa Teresa soçobrou, mas nã o morreu realmente do desejo que teve de


soçobrar realmente. Ela perdeu pé, nã o fez mais que viver mais
violentamente, tã o violentamente que pô de se dizer no limite de morrer,
mas de uma morte que, exasperando-a, nã o fazia cessar a vida61.

No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que
pensar tal encarnaçã o violenta do divino como transgressã o? Há duas maneiras

59
Idem, p. 78
60
FOUCAULT, Michel; Preface à la transgression, in: Dits et écrits, vol. I, p. 264
61
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 266
de responder tais perguntas: uma dada por Michel Foucault e outra voltando a
uma das referências principais de Bataille, a saber, Hegel. A interpretaçã o de
Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista algo parecido a uma dialética na
relaçã o entre interdito e transgressã o, uma dialética que seria a expressã o de
uma relaçã o entre o finito e infinito, entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relaçã o dialética porque se os interditos sã o postos
para serem transgredidos, é porque os homens precisam organizar a vida social
a partir de uma contradiçã o. Esta é inclusive uma boa definiçã o de dialética,
fornecida por Hegel em uma conversa com Goethe: “espírito de contradiçã o
organizado”, e que nã o deixa de, de certa forma, ressoar a definiçã o que Bataille
fornece da transgressã o como uma: “desordem organizada 62. Maneira de
compreender a contradiçã o como forma de produzir experiências através da
tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir
da diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradiçã o dialética nã o é
simplesmente a marca de uma impossibilidade de pensar e de constituir objetos,
como seria o caso se estivéssemos diante de duas proposiçõ es contrá rias sobre o
mesmo objeto e sobre o mesmo aspecto (Só crates é e nã o é homem sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo). A contradiçã o dialética é um modo do ser entrar em
movimento e de admitirmos que o ser nã o é aquilo que permanece sempre igual
a si mesmo, como uma substâ ncia que subsiste graças ao cará ter inalterado de
sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu pró prio princípio de
alteraçã o, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superaçã o.
Movimento através da qual o ser nega a si mesmo, nega sua pró pria identidade
sem necessariamente se auto-destruir, nega seus limites graças a uma negaçã o
que conserva algo do anteriormente negado. Neste sentido, a contradiçã o é
interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relaçã o entre interdito e
transgressã o seria a maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito
uma norma, entã o tudo se passa como se as normas fossem, ao mesmo tempo, a
definiçã o do que devo fazer e de como é possível transgredir tal dever. Neste
sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira realizaçã o da norma sempre
aponta para uma superaçã o da norma.
Isto é possível porque a negaçã o da norma nã o é, para Bataille, alguma
forma de retorno à animalidade. Negar os interditos nã o significa voltar à
condiçã o animal inicial. Os interditos visam, de certa forma, negar nossa
condiçã o animal, mas a transgressã o visa negar tal negaçã o, superando-a sem, no
entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este movimento, que se inspira
claramente na dinâ mica hegeliana de uma negaçã o da negaçã o implica
possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitaçõ es do interdito sem, no
entanto, anular a experiência histó rica que o produziu.
Foucault nã o admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é
negativo na transgressã o”63. A transgressã o nã o nega nada. Ela seria, na verdade,
uma bisonha “afirmaçã o nã o positiva”, uma afirmaçã o que nã o afirma nada. Sua
maneira de colocar em questã o o ser através de uma linguagem da transgressã o,
ou seja, de uma linguagem do limite nã o implicaria em contradiçã o alguma. Pois
a contradiçã o pareceria implicar que precisaríamos sempre conservar o que é
negado no interior mesmo da determinaçã o do ser. Parece que sempre
62
BATAILLE; O erotismo, p. 144
63
Idem, p. 266
precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente,
ela pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética
hegeliana) unificar os opostos em uma síntese final. Pois sendo os diferentes
aquilo que se articula em um movimento contínuo, entã o eles acabam por se
submeterem a uma síntese. O que nã o parece ser o sentido da transgressã o em
Bataille. Ela nã o caminha em direçã o a uma síntese, mas a uma relaçã o, sempre
fulgurante e violenta, ao infinito e ao absoluto.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensã o do interdito do assassinato – é o


ato religioso por excelência”64. Sendo o sagrado este espaço no interior do qual a
transgressã o é possível, entã o o sacrifício aparece sua mais profunda expressã o.
Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por excelência? Certamente,
Bataille nã o está a falar do sacrifício como limitaçã o da minha vontade em nome
de um ideal moral. Algo presente quando falo, por exemplo: “eu me sacrifiquei
para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma destruiçã o improdutiva,
melhor meio de negar uma relaçã o utilitá ria entre o homem, as coisas e os
animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual nã o tenho mais uma
relaçã o de uso e de submissã o à ló gica da produçã o. Ele é objeto de uma
“consumaçã o sem lucro”. Mas, principalmente, um animal sacrificado é um
animal do qual eu participo, ele me representa e tomo parte no ritual do
sacrifício através dele e, principalmente, nele. No sacrifício do animal, eu posso
ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o sacrifício é o calor em que se
reencontra a intimidade daqueles que compõ em o sistema das obras comuns” 65.
Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de simbiose e de
fusã o que Bataille aproxima da relaçã o amorosa. Daí uma afirmaçã o central
como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui


a vida ordenada do animal pela convulsã o cega dos ó rgã os. O mesmo se dá
com a convulsã o eró tica: ela libera ó rgã os pletó ricos cujos jogos cegos
prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade
refletida sucedem os movimentos animais desses ó rgã os inchados de
sangue. Uma violência, que a razã o nã o controla mais, anima esses ó rgã os,
tensiona-os até a explosã o e, de repente, é a alegria dos coraçõ es de ceder
ao excesso dessa tempestade66.

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a


revelaçã o de um corpo em nó s que é feito de carne, ou seja, de algo pró prio a
uma corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A
carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anô nima que me aproxima do que exige uma explosã o violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressã o daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia

64
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
65
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
66
Idem, O erotismo, p. 116
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
nã o parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressã o
invertida dos processos de reproduçã o material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histó rico marxista. Ela é a composiçã o material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direçã o a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direçã o a uma matéria que é produçã o contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximaçã o entre sacrifício e amor
nã o é feita em nome da visã o moral de que a relaçã o afetiva duradoura exige a
restriçã o dos interesses pró prios em nome da construçã o de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participaçã o através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que nã o é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que nã o pode ser visto como expressã o de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mú tuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenô meno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletó rica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” 67. Entre o amor
dos filó sofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinçã o entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que nã o aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e nã o sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
nã o como identidade, mas como espaço de confrontaçã o com a heterogeneidade
que nã o se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusã o que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusã o fosse a condiçã o para uma
experiência social de emancipaçã o em relaçã o à s amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinaçã o pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusã o pró prio à s massas fascistas, com sua fusã o
67
Idem, p. 129
organizada a partir da identificaçã o a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Nó s vimos na aula passada como Bataille insiste que
nossa sociedades sofrem por nã o saberem como dar conta de uma experiência da
heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de fusã o e de perda de
limites da individualidade. Vimos também como o fascismo seria maneira de
absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de
fusã o produz uma homogeneidade organizada sob a identificaçã o,
profundamente disciplinar, a um líder transcendente, cujo discurso é marcado
pela unidade, pela depuraçã o e purificaçã o do corpo social. Maneira da
identidade ter a ú ltima palavra, mesmo se através do uso do desejo de
heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o
fascismo acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”68.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que nã o se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”69. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta nã o é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e nã o haverá superaçã o do fascismo se nã o lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulaçã o do desejo. No fundo, a questã o política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmaçã o importante
como:

Nã o apenas as situaçõ es psicoló gicas das coletividades democrá ticas sã o,


como toda situaçã o humana, trasitó rias, mas continua possível encontrar,
como uma representaçã o ainda imprecisa, forças de atraçã o diferentes
das já utilizadas, tã o distintas do comunismo atual ou passado quanto o
fascismo é das reivindicaçõ es diná sticas. É tendo em vista tais
possibilidade que se deve desenvolver um sistema conhecimentos
permitindo prever as reaçõ es afetivas sociais que percorrem a super-
estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor70.

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência


política revolucioná ria (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas
desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille
sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de

68
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
69
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
70
Idem, p. 163
Kojève foi insistir na importâ ncia de compreendermos as dinâ micas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
sã o, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posiçã o de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noçã o de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?
Veremos melhor este ponto na pró xima aula.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 5

Na aula de hoje, terminaremos o primeiro mó dulo de nosso curso, dedicado à


leitura de O erotismo, de Georges Bataille. Durante este primeiro mês de curso,
procurei apresentar a estrutura da experiência social descrita por Bataille a
partir do conceito de “erotismo”. O termo “experiência social” é adequado para
falarmos do erotismo porque se trata, ao menos para Bataille, de um fato, tal
como o sagrado, o sacrifício e a dá diva cuja realidade tem a força de fundar
vínculos e modificar relaçõ es sociais. Vimos como o erotismo do qual fala Bataille
nã o é simplesmente um conjunto de prá ticas ligadas a processos de
intensificaçã o dos prazeres sexuais e de incitaçã o dos desejos. Bataille nã o quer
fundar uma arte erótica mais completa e atual. Na verdade, o erotismo aparece
como experiência social com forte capacidade crítica em relaçã o a nossas formas
hegemô nicas de vida. Através do erotismo, Bataille procura aliar crítica social,
crítica do sujeito e crítica da razã o apelando a uma peculiar materialismo que dá ,
a alguns temas clá ssicos do pensamento marxista (como a reificaçã o, o trabalho
abstrato), uma versã o completamente inusitada.
A importâ ncia dada por Bataille a um fenô meno como o erotismo, e sua
maneira de insistir que o erotismo traz em seu bojo uma concepçã o
revolucioná ria de sociedade, vincula-se, por um lado, à compreensã o do que
poderíamos chamar de “problematizaçã o política do desejo”. Bataille age como
quem acredita que o desejo, a maneira como ele circula e constitui laços, é um
fator político decisivo. Já em suas aná lise sobre o fascismo, ficava clara a
perspectiva de avaliar situaçõ es só cio-políticas a partir da compreensã o da
maneira com que a experiência da heterogeneidade era capaz de habitar o
desejo. Há um claro pensamento da diferença que serve de fundamento para a
crítica gerada pela filosofia de Bataille. Diferença que se configura
principalmente através dos conceitos de heterogeneidade e excesso. Todo o
papel fundamental que a noçã o de diferença desempenhará no pensamento
francês a partir dos anos sessenta, principalmente através de filó sofos como
Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault é incompreensível se nã o
entendermos Georges Bataille um importante antecessor.
Por outro lado, lembremos como, em nossa primeira aula, eu afirmara que
a caraterística maior de uma questã o filosó fica é sua forma de se perguntar sobre
como um fenô meno ou um objeto é um evento. Como dissera em nossa primeira
aula, dentro da perspectiva filosó fica, nã o se trata de simplesmente descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razõ es
de existência a partir de uma reflexã o sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia
tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenô menos
produzem modificaçõ es em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento nã o é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que
problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma
de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura
o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguraçã o em nossas formas de vida
que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um
mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a
filosofia trata. Neste sentido, podemos dizer que o erotismo é o nome dado por
Bataille à compreensã o de que há algo na experiência sexual que tem a força de
um acontecimento.
Para tanto, foi necessá rio que a dimensã o do sexual aparecesse como
espaço no qual o homem se encontra distante tanto da natureza quanto de sua
afirmaçã o como indivíduo autô nomo. Feita a crítica da subordinaçã o do sexo aos
imperativos de reproduçã o, a distâ ncia em relaçã o à natureza pode ser afirmada.
Feita a crítica da subordinaçã o do desejo aos prazeres que guiam os sistemas
individuais de interesse, o segundo passo pode ser dado. Neste sentido, é
inegá vel que a experiência do erotismo recupera, à sua maneira, as expectativas
disruptivas do surrealismo enquanto fundamento para uma crítica social
renovada. Por outro lado, há em todo acontecimento, a figura de um contra-
acontecimento que é objeto de nossos esforço de suspensã o. Como vimos nas
aulas passadas, o contra-acontecimento do qual o erotismo é a melhor resposta é
o facismo.
Vimos como a crítica social de Bataille era uma crítica radical da
sociedade do trabalho. Nossas sociedades modernas ocidentais sã o
caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho, no sentido do
trabalho aparecer como atividade fundamental para a constituiçã o das
identidades sociais e para o reconhecimento dos sujeito. Vimos como a
expectativa de realizaçã o conjunta de exigências de expressão da individualidade
e formação em direção ao auto-controle era elemento definidor dos valores que
mobilizamos na avaliaçã o social do trabalho.
Trabalhar sempre será uma operaçã o servil. Podemos mesmo modificar
radicalmente a divisã o social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que
todos tenham a posse dos meios de produçã o e de seus frutos. Para Bataille, isto
nã o mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da
produçã o e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cá lculo de
tempo e metas, nã o se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela
utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada açã o a partir do valor que
ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular
valores que sã o homogêneos, intercambiá veis. A lei que imponho para mim
mesmo quando organizo minhas atividades a partir da ló gica do trabalho é uma
lei que me ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos
que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se
encontra, para Bataille, o verdadeiro nú cleo da experiência de alienaçã o
produzida pela sociedade do trabalho.
No entanto, o erotismo é uma atividade estranha à tal racionalidade
instrumental pró pria à sociedade do trabalho. Tal estranhamento se expressa na
natureza excessiva do erotismo. Ao falar de “excesso” neste contexto, Bataille nã o
afirma que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso nã o é da ordem
da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito
grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os
dois fenô menos, sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade,
“excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir,
simplesmente porque é o que nã o se mede, o que colapsa toda medida, porque
sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos mensurá veis. Neste sentido, mesmo quando
for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a
um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que nã o
aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que podemos
calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que
lhe caracteriza é exatamente aquilo que nã o entra na imagem atual do homem,
deste homem da sociedade do trabalho e da ló gica utilitá ria. Assim, quando
Bataille propor uma espécie de fó rmula ontoló gica ao afirmar que: “o ser é
também o excesso do ser, elevaçã o ao impossível”71, devemos entender com isto
que é pró prio da definiçã o do ser o reconhecimento de uma relaçã o constitutiva
com o que lhe determina. Neste contexto, “impossível” nã o significa inexistente;
“impossível” significa o que nã o se expressa na configuraçã o atual dos possíveis e
que, por isto, força tal configuraçã o a modificar-se.
Foi tendo tal contraposiçã o em mente que introduzi o conceito de
“soberania”. Para Bataille, a resposta à alienaçã o produzida pela sociedade do
trabalho passa pela reconstruçã o do conceito de soberania, agora aplicado à
posiçã o subjetiva. Bataille retira o conceito de soberania das mã os daquele que
se encontra no centro do poder político para transformá -lo em um conceito
capaz de descrever a posiçã o de todo e qualquer sujeito que nã o se encontre
mais em situaçã o de alienaçã o e servidã o. Mas eu insistira com vocês que o
conceito batailleano de soberania tinha um cará ter fundamental: ele nã o
descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do
poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete à s coisas à condiçã o
de coisas das quais ele pode gozar como proprietá rio, submete o tempo ao tempo
do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que
nã o domina, poder de quem tem segurança suficiente de nã o precisar de
dominar para se defender.
Isto pode nos explicar porque, ao analisar a sociedade soviética, Bataille
dirá que ela poderia fornecer um caminho para uma soberania comum, a partir
do momento em que todos abrem mã o soberanamente de todo traço de
soberania moná rquica. Para além do cará ter dificilmente defensá vel de uma
proposiçã o desta natureza (difícil aceitá -la se lembrarmos do lugar soberano do
líder no stalinismo), fica a compreensã o do esforço em pensar algo que poderia
significar a soberania comum no campo social. Soberania da partilha comum da
parte maldita.

Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava
nã o querer mais controlar as coisas através da sua submissã o à utilidade delas
para mim, que normalmente sou seu proprietá rio, nem controlar o tempo
através da submissã o do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define
como causa das limitaçõ es que aceito no presente, que aprisiona o presente em
uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade
definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo do gozo.
A fim de compreender porque Bataille associa a afirmaçã o de tal
soberania ao movimento de transgressã o, eu sugeri operarmos uma passagem
em direçã o à quilo que poderíamos chamar de uma “filosofia da natureza”. Ela se
expressa em uma forma peculiar de pensar a relaçã o entre a vida e morte, entre a
organizaçã o e a desorganizaçã o. Para Bataille, há um mobilidade interna ao fato
vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo
desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois nã o submetido ao padrã o
atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao
71
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
crescimento e desenvolvimento do pró prio organismo, mas a partir de certo
ponto ela pode levar à sua destruiçã o, ou seja, à s destruiçã o de sua forma. As
formas vitais nã o apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio
vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruiçã o: “se nã o temos
força para destruir a energia em acréscimo, ela nã o pode ser utilizada; e, como
um animal intato que nã o se pode domar, é ela que nos destró i, somos nó s
mesmos que arcamos com os custos da explosã o inevitá vel”72. Neste sentido, as
individualidades orgâ nicas sã o estruturalmente instá veis, pois para dar conta da
energia que as atravessa, elas devem gastá -la como puro dispêndio, ou seja,
como algo que, do ponto de vista da pura conservaçã o das formas atuais, nã o tem
sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de
organismo bioló gico que age sem ter em vista sua pró pria auto-preservaçã o e
reproduçã o. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento
para a auto-preservaçã o de sua forma momentâ nea. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à pró pria mobilidade da vida. Talvez seja pensando
nisto que Bataille pode dizer: “Nã o há nada que reduza a violência”73. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposiçã o da vida. Ela é tributá ria, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupçã o
que segue a morte e recoloca em circulaçã o as substâ ncias necessá rias à
incessante vinda ao mundo de novos seres74.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no


interior do qual organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio
que Bataille precisa insistir que a soberania pró pria ao erotismo é sempre
transgressiva. A transgressã o é o nome a para um movimento que se desdobra
através da perpétua reversibilidade das normas.
Mas, para Bataille, nã o basta que tais reversibilidades ocorram. Há um
modelo de transgressã o privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma
experiência substantiva de heterogeneidade. A este respeito, Bataille censura o
pensamento materialista de, até entã o, ceder à “obsessã o de uma forma ideal da
matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do que qualquer outra, daquilo
que a matéria deveria ser”75. A seu ver, trata-se de um falso materialismo, incapaz
de compreender o cará ter polimó rfico e promiscuo da matéria. Este falso
materialismo ainda é dependente de uma hierarquia pró pria ao cará ter elevado
da ideia. Mas a verdadeira transgressã o nos faz nos reconhecermos naquilo que
Bataille chama de matéria baixa: “A matéria baixa é exterior e estrangeira à s
aspiraçõ es ideais humanas e se recusa de se deixar reduzir à s grandes má quinas
ontoló gicas”76. Uma matéria baixa que é a afirmaçã o do cará ter informe da
matéria, do cará ter “baixo” que uma certa tradiçã o filosó fica sempre associou à
matéria, a saber, cará ter do que se decompõ e, do que se quebra, o que apodrece,
o que nã o subsiste no interior do tempo e por isto está em plasticidade contínua.
A verdadeira transgressã o, dirá Bataille, é reconhecimento de si na
heterogeneidade radical do que se decompõ e, do que se quebra e apodrece. E
algo do erotismo se deixa tocar exatamente por tal tipo de experiência material:
72
Idem, p. 46
73
Idem, p. 72
74
Idem, p. 79
75
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
76
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
pelo corpo que nã o se submete integralmente à sua pró pria imagem, pela
fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que sempre se
perde e se decompõ e, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem algo
de suas formas.

Sade e a linguagem da violência

Dois artigos de O erotismo sã o dedicados ao Marques de Sade. De fato, foram os


surrealistas que recuperaram a importâ ncia literá ria de Sade, um autor
recorrente no pensamento francês a partir de entã o, seja através do pró prio
Bataille, seja através de Pierre Klossowski, de Blanchot, de Jacques Lacan, de
Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Há algo da concepçã o batailleana de soberania que encontra expressã o na
obra de Sade. Tal concepçã o está expressa em afirmaçõ es como:

Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinaçã o ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
á pice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressã o
que nã o para antes de ter atingido o á pice da transgressã o. Sade nã o
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si. A negaçã o dos
outros se torna, no extremo, negaçã o de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?77.

A que Bataille alude aqui? Nã o compreenderemos nada da literatura de


Sade se imaginarmos que seus personagens sã o impulsionados pela simples
procura de maximizar seus prazeres individuais. Na verdade, Sade está à procura
de uma purificaçã o da vontade que a libere de todo conteú do empírico e
patoló gico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a soberania do homem sobre um
poder transcendente de negaçã o »78. De onde se segue, por exemplo, o conselho
do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os homens,
todas as mulheres se assemelham: nã o há em absoluto amor que resista aos
efeitos de uma reflexã o sã ”79. Uma indiferença em relaçã o ao objeto que
pressupõ e a despersonalizaçã o e o abandono do princípio de prazer. Este é o
sentido de um outro conselho de Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se
isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas afeiçõ es" 80. Esta experiência de
quem sacrifica seus gostos e afeiçõ es em nome de uma espécie peculiar de
imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que recusa sua
subordinaçã o a um gozo menor.
Este gozo mais forte nã o é, pois, a afirmaçã o dos interesses egoístas da
pessoa. Há algo no movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille,
“excede o princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si”. Se a
negaçã o dos outros se torna negaçã o de si mesmo é porque sacrifico tudo o que

77
Idem, p. 202
78
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
79
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
80
SADE, ibidem, p. 83
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e
gratuito de repetiçã o do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um
pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio à s orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito
com apatia e contençã o. O gozo dos personagens de Sade, como vá rios
observaram, é um gozo apá tico.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do á pice em direçã o ao
qual algo em nó s caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o
pró prio egoísmo acendeu. Daí uma afirmaçã o como:

Sade consagrou interminá veis obras à afirmaçã o de valores inaceitá veis: a


vida era, se acreditarmos nele, a procura do prazer; e o prazer era
proporcional à destruiçã o da vida. Dito de outro modo, a vida atingia o
mais alto grau de intensidade numa monstruosa negaçã o de seu
princípio81.

Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo á pice daquilo que


somos”82, este “mais alto grau de intensidade” da vida como aquilo que define
algo que o excesso pró prio à vida subjetiva, a saber, a “experiência interior”: “A
experiência interior responde à necessidade na qual me encontro - a experiência
humana comigo – de colocar tudo em causa (em questã o) sem repouso
admissível”83. Esta é a descriçã o de uma experiência só cio-histó rica bastante
precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo uma modalidade
específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitaçõ es
e defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse
resultante do caráter repressivo da identidade. Esta é a temá tica maior de um
certo pensamento francês contemporâ neo (Lacan, Deleuze, Derrida, Foucault).
Podemos mesmo dizer que para todos eles, a modernidade nã o é apenas
momento histó rico onde: “nã o somente está perdida para ele [o espírito] sua vida
essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteú do”84. Perda que implicaria a pretensa angú stia crescente do sentimento
de indeterminaçã o. A modernidade seria também a era histó rica de elevaçã o do
Eu a condiçã o de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade
objetiva. O que neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido à auto-
identidade subjetiva enquanto princípio de fundamentaçã o das condutas e de
orientaçã o para o pensar. Levando tal contexto em conta, poderemos
compreender melhor uma colocaçã o como:

Se alguém me perguntasse o que nó s somos, e, de qualquer modo, lhe


responderia: essa abertura a todo o possível, essa expectativa que
nenhuma satisfaçã o material poderá apaziguar e que o jogo da linguagem
nã o poderia enganar! Estamos à procura de um á pice. Cada um, se lhe
agrada, pode negligenciar a procura. Mas a humanidade em seu conjunto
aspira a esse á pice, que se ele a define, que só ele é sua justificaçã o e
sentido85.
81
Idem, p. 207
82
Idem, p. 219
83
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
84
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24
85
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300
Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter
colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal
sofrimento. No entanto, a posiçã o de Sade guarda algo de profundamente reativo,
e essa natureza reativa é sua limitaçã o. Bataille explora com exaustã o o fato
paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato,
um carrasco sá dico, há de se lembrar que carrascos nã o escrevem, pois: “a
violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definiçã o, a expressã o do homem
civilizado”86. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille
pode dizer:

Na verdade, essas dissertaçõ es da violência, que incessantemente


interrompem os relatos de cruéis infâ mias de que os livros de Sade sã o
formados, nã o sã o as dissertaçõ es dos personagens violentos a que sã o
atribuídas. Se tais personagens tivessem vivido, sem dú vida teriam vivido
silenciosamente87.

Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem


de quem estava preso na Bastilha pelo homem que nã o aceita mais a pró pria
desmesura de sua experiência interior. Vítima revoltada de uma injustiça que lhe
leva a transformar a violência naquilo que ela nã o é, no seu oposto, a saber: “uma
vontade refletida, racionalizada, de violência”88. Esta linguagem inventada por
Sade é, assim, uma linguagem reativa de quem procura criar uma violência que
teria a calma da razã o, linguagem de quem faz entrar na consciência exatamente
aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência tudo fez para
esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da
revolta que procura a profanaçã o desenfreada. A revolta das vítimas da
incapacidade de uma sociedade fundada em fenô menos sociais que estejam à
altura do excesso pró prio ao ser.

A filosofia, a experiência interior e o riso

Mas o que seria uma linguagem capaz de expressar tal experiência


interior sem precisar, ao mesmo tempo, colocar-se como reaçã o e revolta à
disciplina imposta pelo homem que nã o aceita a pró pria desmesura? O que seria
um vinculo social livre da obrigaçã o de reagir através da transformaçã o do
silêncio pró prio à violência em palavra de revolta? Na verdade, poderíamos
mesmo se perguntar sobre como seria uma experiência que recuperasse a
violência bruta pró pria ao silêncio. Neste ponto, encontramos uma dicotomia
importante entre saber e erotismo. Tal dicotomia está expressa em afirmaçõ es
como: “O filó sofo pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a
experiência eró tica nos obriga ao silêncio”89. Uma obrigaçã o ao silêncio que
alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo: “É contra sua
pró pria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através
dele, ele odeia a linguagem por completo. Este ó dio, o sr. Bataille partilha com

86
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
87
Idem, p. 216
88
Idem, p. 219
89
Idem, p. 279
um bom nú mero de escritores contemporâ neos. Mas os motivos que ele fornece
lhe sã o pró prios: é o ó dio do místico que ele reivindica, nã o o ó dio do
terrorista”90.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que
normalmente chamamos de ‘experiência mística’”91. Há algo na experiência de
fusã o e afastamento das estruturas de conhecimento que se expressam na
linguagem prosaica pró pria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como
vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo apó s
a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do esgotamento da
força representativa da linguagem. Consciência tã o alargada que estaria mesmo
disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:

Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o


familiar se dissolvendo no estranho e nó s mesmos com ele. Ele nunca nos
despossui por completo, pois as palavras, as imagens dissolvidas, sã o
carregadas de emoçõ es já provadas, fixadas a objetos que as ligam ao
conhecido92.

Tal consciência do esgotamento da linguagem nã o se configura, assim,


como uma passagem da filosofia à literatura, com sua linguagem pretensamente
menos descritiva e pró xima do que nã o se deixa representar. Ela é um paradoxal
retorno à filosofia, já que só a linguagem filosó fica seria capaz de guardar o
silêncio do heterogêneo, sem nos colocar nas vias da crença em alguma forma de
imanência reconquistada pela linguagem. A filosofia nã o é composta de palavras
que carregam emoçõ es já provadas, pois ela é uma linguagem desdramatizada.
Ou seja, de uma certa forma o reconhecimento da fraqueza da linguagem
filosó fica acaba funcionando como sua força. Pois há uma mutaçã o necessá ria da
linguagem, uma mutaçã o através da qual ela nã o aparecerá mais como um meio
de conhecimento, onde ela nã o servirá para conhecer e descrever, mas para nos
levar a algo que nã o se acomoda completamente à linguagem, que se expressa
nas formas do silêncio (e o que é o erotismo a nã o ser uma forma bastante
peculiar de silêncio):

O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que nã o pode se realizar


completamente sem a disciplina, e que, por outro lado, fracassa por nã o
poder abarcar os extremos de seu objeto, o que designei outrora sob o
nome de “extremo do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos
da vida. (...) salvo, a rigor, se, no auge, a filosofia for negaçã o da filosofia,
se a filosofia rir da filosofia. Suponhamos, com efeito, que a filosofia
verdadeiramente ria da filosofia, isso supõ e a disciplina e o abandono da
disciplina93.

Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura


comunicar (já que o termo é constantemente utilizado por Bataille) o que
decompõ e a linguagem, vivenciar o que paradoxalmente coloca a vida em risco.

90
SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136
91
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
92
Idem, p. 17
93
Idem; O erotismo, p. 285
Ela nã o produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre
no interior do campo onde nossos modos de intuiçã o e categorizaçã o desabam.
Neste sentido, a funçã o do discurso filosó fico nã o consiste em fornecer um saber
prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direçã o à quilo que
Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de
funcionamento do discurso no qual disposiçõ es contrá rias acabam por conviver.
Este riso talvez nã o seja exatamente o riso da ironia, com sua afirmaçã o de
existir sempre algo para além da enunciaçã o e no interior do qual o sujeito do
enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que
nã o é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angú stia alegre ”. Um tipo de afeto
para o qual talvez nã o estejamos acostumados, pois é angú stia que sabe que o
que lhe angustia guarda algo de profundamente necessá rio:

A angú stia alegre, a alegria angustiada me dá , em um quente-frio o


“dilaceramento absoluto” no qual é minha alegria que termina de me
dilacerar, mas no qual o abatimento seguiria à alegria se eu nã o fosse
dilacerado até o fim, sem medida94.

94
BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 6

Na aula de hoje, começaremos o nosso mó dulo sobre o primeiro volume de


História da sexualidade, de Michel Foucault. Foucault era um leitor contumaz de
Georges Bataille, a quem dedicou um texto escrito para figurar como introduçã o
à s Obras Completas do filó sofo. Ao falar sobre suas influências, ele chegará
mesmo a dizer:

Durante um longo período, tive em mim uma espécie de conflito mal


resolvido entre a paixã o por Blanchot, Bataille e, por outro lado, o
interesse que eu alimentava por certos estudos positivos como os de
Dumézil e de Lévi-Strauss, por exemplo. Mas, no fundo, estas duas
orientaçõ es, cujo ú nico denominador comum era talvez constituído pelo
problema religioso, contribuíram de maneira igual a me conduzir ao
problema do desaparecimento do sujeito95.

De fato, vimos como Bataille servia-se do “problema religioso” para pensar a


natureza de experiências capazes de nos colocar para além dos limites da
individualidade moderna. Problema que animava sua maneira de pensar a
natureza essencialmente transgressiva do erotismo com sua suspensã o da ló gica
utilitarista pró pria à s sociedades do trabalho. Ló gica baseada na quantificaçã o
das atividades, na mensuraçã o dos esforços, no cá lculo dos prazeres e na
elevaçã o do princípio de auto-preservaçã o do indivíduo à fundamento de toda e
qualquer açã o que se queira racional. Vimos ainda como, através do erotismo,
Bataille vinculava sexo e acontecimento. No nosso contexto, isto significava
pensar sexo como uma experiência capaz de nos levar a um gozo que parecia
realizar as expectativas disruptivas do modernismo estético, modificar a
percepçã o do tempo, da identidade e da diferença. Principalmente, o erotismo
era a atividade de um sujeito que só poderia aparecer à condiçã o do
desaparecimento do indivíduo moderno, um sujeito soberano.
Foucault, à sua maneira, também acredita que só podemos pensar de
forma adequada em sexo se o compreendermos como espaço de produçã o de
acontecimentos. No entanto, o acontecimento pensado por Foucault é de outra
ordem. Ele nã o está ligado exatamente a emancipaçã o, tal como Bataille pensava,
mas a uma forma de sujeiçã o. Sexo é um acontecimento a ser pensado pela
filosofia na medida em que explicita uma nova forma de poder que
paulatinamente ganhou hegemonia no interior das formas de vida no Ocidente.
Esta forma de pensar sexo a partir da maneira com que o poder funciona e nos
assujeita, ou seja, nos submete e nos transforma em sujeitos, evidenciou-se a
partir do momento em que sexo foi pensado sob a forma da “sexualidade”.
Notemos a diferença entre dois termos até agora utilizados para falar de
sexo. “Erotismo” significava uma prá tica que parecia implicar o cultivo de um
desejo que circula entre os corpos, estabelecendo formas intersubjetivas de
relaçã o, de se dar a ver e de procurar ver. Já “sexualidade” é, principalmente, a
qualidade que cada individuo. Posso dizer: “tenho a minha sexualidade”, como
95
FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 642
quem tem um modo de ser que pretensamente expressa sua individualidade,
mas dificilmente direi (a nã o ser que por licença poética): “tenho o meu
erotismo”. Ao centrar suas reflexõ es sobre o aparecimento da “sexualidade”,
Foucault queria mostrar como um certo regime de organizaçã o, de classificaçã o e
de descriçã o da vida sexual foi fundamental para a constituiçã o dos indivíduos
modernos. Nã o por outra razã o, “sexualidade” é aquilo produzido por um
discurso de aspiraçõ es científicas, seja vindo normalmente da psiquiatria, da
psicologia ou da medicina. Se Bataille centrava suas aná lise na descriçã o de uma
experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual pró pria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrõ es de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
A este respeito, a questã o de Foucault consiste em se perguntar: como
algo desta natureza ocorreu e, principalmente, o que isto realmente significa?
Ter uma sexualidade seria expressã o de uma liberaçã o do meu corpo em relaçã o
à s pretensas amarras repressivas do poder? A sociedade ocidental teria
assumido a importâ ncia da sexualidade na definiçã o das individualidades a
partir do momento em que o poder teria perdido suas amarras repressivas? Ou,
na verdade, a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeiçã o que
demonstraria como a natureza do poder nã o é exatamente repressiva, como se
estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos nos quais o poder
opera?
De fato, a segunda opçã o será aquela defendida por Foucault. Nã o por
outra razã o, ele dirá : “Já faz bastante tempo que desconfio dessa noçã o de
‘repressã o’”96. Uma desconfiança que, a seu ver, resulta de uma nova maneira de
compreender o poder e que estaria expressa claramente em afirmaçõ es como:

O poder se exerce em rede, e nessa rede, nã o só os indivíduos circulam,


mas estã o sempre em posiçã o de serem submetidos a esse poder e
também de exercê-lo. Jamais eles sã o o alvo inerte ou consentidor do
poder, sã o sempre seus intermediá rios. Em outras palavras, o poder
transita pelos indivíduos, nã o se aplica a eles (...) O indivíduo é um efeito
do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu,
seu intermediá rio: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui97.

Mas como Foucault chegou a tal concepçã o de poder na qual os indivíduos


aparecem como seus intermediá rios e, principalmente, por que a sexualidade
apareceria como a expressã o mais bem acabada de sua essência?

O poder disciplinar

Foucault parte de uma distinçã o maior en tre dois modelos de


funcionamento do poder : o poder soberano e o poder disciplinar, poder este
que, por sua vez, estaria interligado, por uma série de relaçõ es, à biopolítica e aos

96
FOUCAULT, Michel; Em defesa da sociedade, p. 25
97
Idem, p. 35
dispositivos pró prios a uma política fundamentalmente ligada à noçã o de
“segurança”.
O poder soberano, segundo Foucault, teria seu paradigma na figura da
encarnaçã o moná rquica da legitimidade, com sua fundamentaçã o do exercício da
lei na vontade do soberano. Derivado da figura romana da patria potestas, ele
sempre foi o poder de decidir sobre a vida e a morte daqueles que a ele se
submetem, mesmo que este direito esteja, em vá rias situaçõ es, condicionado
pelos casos onde está em questã o a defesa do soberano. Lembremos, por
exemplo, da maneira que Foucault analisa o sentido do crime no interior do
modelo de funcionamento do poder soberano:

O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ele lhe ataca
pessoalmente porque a lei vale como a vontade do soberano; ele lhe ataca
fisicamente porque a força da lei é a força do príncipe (...) O direito de
punir será pois como um aspecto do direito que o soberano detém de
fazer a guerra contra seus inimigos (...) o suplício [sempre ligado à pena]
tem pois uma funçã o jurídico-política. Trata-se de um cerimonial para
reconstituir a soberania ferida momentaneamente (...) Seu objetivo é
menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor, até seu ponto
extremo, a dessimetria entre o sujeito que ousou violar a lei e o soberano
onipotente que faz valer sua força98.

No entanto, contra este poder centralizado, vertical por ser


completamente assimétrico, subjetivado em seu pó lo central na figura do
soberano e impessoal em sua base, a modernidade teria desenvolvido a
hegemonia de um outro poder. Um poder desprovido de centro e disseminado
por parecer vir de todos os lugares, operar em vá rias instâ ncias e níveis; um
poder horizontal. Por nã o ter centro, ele aparece como impessoal, como nã o
exercido em nome de alguém, um poder de estruturas que submetem todos sem
distinçã o, como os hospitais, as escolas, as prisõ es, as empresas. A fim de expor o
advento deste poder, Foucault chega mesmo a comentar a questã o legal que
estava em jogo na cena a respeito do internamento de Jorge III, rei da Inglaterra
acometido de loucura a partir de 1810. Através desta situaçã o, Foucault quer
ilustrar o processo de declínio do poder soberano, de sua submissã o à estrutura
generalizadora de um poder responsá vel por gerir a vida através da
implimentaçã o de disciplinas. Daí a afirmaçã o de que: “Pode-se dizer que o velho
direito de fazer morrer ou de deixar viver foi substituído por um poder de fazer
viver ou de rejeitar à morte”99.
Este poder disciplinar tem duas características maiores. Primeiro: “o
poder disciplinar é certa modalidade, bem específica da nossa sociedade, do que
poderíamos chamar de contato siná ptico corpo-poder”100. Foucault chega mesmo
a afirmar que todo poder é físico e que há uma ligaçã o direta entre o corpo e o
poder político. O que nã o significa dizer que todo poder é fundado em prá ticas de
coerçã o física. Significa dizer, na verdade, que toda prá tica de poder visa a
internalizaçã o de modos determinados de controle corporal, de regulagem das
paixõ es e dos regimes do desejo. Se o corpo é elevado aqui a interface

98
Idem, pp. 58-59
99
Idem, Histoire de la séxualité, p. 181
100
Idem, O poder psiquiátrico, p. 51
fundamental de contato com o poder, é porque a gestã o da vida passa
necessariamente pelo fortalecimento e condicionamento do corpo, sendo que
muito haverá a se dizer sobre o que pode significar “fortalecimento” neste
contexto (fortalecimento em relaçã o ao que? À morte e à doença, física e mental?
Mas toda a reflexã o clínica no século XX – na qual a obra do pró prio Foucault
deve ser incluída - foi marcada pela idéia de as formas de fortalecimento sã o
indissociá veis do desenvolvimento de novas formas do adoecer).
Por outro lado, a segunda característica maior do poder disciplinar é sua
capacidade individualizadora. Foucault nã o cansa de repetir que: “o indivíduo,
parece-me, nã o é mais que o efeito do poder, na medida em que o poder é um
procedimento de individualizaçã o”101. Lembremos desta afirmaçã o central:

O indivíduo é muito mais uma certa maneira de separar a multiplicidade,


para uma disciplina, do que o material primeiro a partir do qual nó s a
construímos. A disciplina é um modo de individualizaçã o das
multiplicidades e nã o algo que, a partir de indivíduos trabalhados
inicialmente a título individual, construiria posteriormente alguma forma
de edifício com elementos mú ltiplos102.

Por um lado, é clara aqui a ressonâ ncia de temá ticas nietzscheanas


ligadas ao cará ter constitutivo da genealogia da moral e da proveniência de um
sujeito capaz de emitir julgamentos morais. Nos dois casos, temos a tematizaçã o
da força constitutiva do poder na produçã o de uma antropologia, de um sujeito
dotado de capacidade de hierarquizaçã o das vontades, de autonomia, de
capacidade de auto-controle, de unidade e identidade.
Por outro, Foucault tende a pensar que a submissã o à vontade do
soberano nã o é constitutiva no sentido que a submissã o aos dispositivos
disciplinares o é. Pois a submissã o à vontade do soberano, é uma submissã o que
incide de tempos em tempos, enquanto que o poder disciplinar é constante e
atuante em todos os níveis da formaçã o (escola, hospital, prisã o, empresa). Daí
porque Foucault pode afirmar: “O efeito maior do poder disciplinar é o que
poderíamos chamar de remanejamento em profundidade das relaçõ es entre a
singularidade somá tica, o sujeito e o indivíduo”103.
Este poder disciplinar será , a partir do século XVIII, complementado por
um conjunto de mecanismos que nã o se exercem diretamente sobre o corpo dos
indivíduos, mas sobre o controle e planejamento das populaçõ es. O advento dos
processos de controle e gestã o de populaçõ es com seus mecanismos que vã o do
reordenamento do espaço urbano, controle de epidemias, carência alimentar à
regulaçã o do meio (millieu) no interior do qual a espécie humana vive (com suas
características físicas, climá ticas e geográ ficas) permitirá o advento de uma nova
arte de governar, de um novo paradigma de “governamentalidade”, a saber,
aquele que Foucault chamará de “segurança” (contra o perigo da carência, da
sublevaçã o, dos distú rbios sociais de vá rias formas). Estes mecanismos de
segurança terã o assim, por funçã o: “modificar algo no destino bioló gico da
espécie”104. A noçã o mesma de populaçã o como objeto do poder implica que a

101
idem, p. 21
102
Idem, Sécurité, territoire, population, p. 14
103
idem, p. 68
104
Idem, p. 12
política trata da gestã o de algo que se apresenta como dotado de uma certa
naturalidade. A este respeito, lembremos da definiçã o foucauldiana de populaçã o
como: “uma multiplicidade de indivíduos que sã o e que existem apenas
profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no
interior da qual eles existem”. Esta materialidade fornece um meio capaz de
produzir acontecimentos que aparecerã o como “naturais”, regulados apenas
indiretamente, como se fosse questã o apenas de assegurar as condiçõ es de
possibilidade para que uma certa naturalidade da sociedade encontre seu solo
profícuo. Como se existisse uma: ‘naturalidade específica das relaçõ es dos
homens entre si, do que se passa espontaneamente quando eles cohabitam,
quando eles estã o juntos, quando eles trocam, trabalham, produzem” 105.
Desta forma, constitui-se uma organizaçã o do poder sobre a vida
composta por dois pó los de desenvolvimento profundamente interligados. O
primeiro, disciplinar, nos forneceria uma anatomo-política do corpo humano. Já o
segundo, composto por “controles reguladores”, forneceria uma bio-política da
população; ou seja, disciplinas do corpo e regulaçõ es da populaçã o. Esta junçã o
de anatomo-política e de bio-política é o que devemos entender por bio-poder.

A produção da sexualidade

Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que


regimes de saber constituem prá ticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relaçã o a nó s mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que nã o deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinaçã o. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidad e.
Neste sentido, é inegá vel que a força do pensamento de Freud e da
psicaná lise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicaná lise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsá vel
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressã o de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicçã o de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?” 106. As perguntas nã o poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâ neo a respeito da psicaná lise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente à quilo que vimos em As palavras

105
Idem, p. 357
106
BADIOU, Alain; O século, p. 112
e as coisas, a posiçã o da psicaná lise no interior da episteme moderna mudará .
Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relaçã o à s “ciências humanas”, a psicaná lise e a etnologia sã o “contra-


ciências”; o que nã o quer dizer que elas sã o menos “racionais” ou
“objetivas” que as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente,
retirando-as de seu pedestal epistemoló gico, e que elas nã o cessam de
“desfazer” este homem que, nas ciências humanas, faz e desfaz sua
positividade107.

Agora, em História da sexualidade, a psicaná lise aparecerá , mesmo sem


ser diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma
hipó tese equivocada e de uma ilusã o de liberdade descrita por Foucault da
seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibiçã o, à inexistência e ao


mutismo [como a psicaná lise nos faria acreditar que ele era antes de seu
aparecimento], o simples fato de falar dele e de falar de sua repressã o tem
um ar de transgressã o deliberada. Quem sustenta esta linguagem se
coloca, até um certo ponto, fora do poder; ele faz a lei tremer; ele antecipa,
mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta solenidade com
a qual hoje se fala do sexo108.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época:


“de um discurso no qual o sexo, a revelaçã o da verdade, a inversã o da lei do
mundo, o anú ncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estã o
ligados”109. Discurso este que aparece na linha direta da reflexã o psicanalítica
sobre os modos de repressã o da sexualidade. Esta será a hipó tese a ser criticada
por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez nã o tenha existido sociedade que
mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu pró prio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela nã o diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete liberar-se de leis que a
fazem funcionar110.

De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

107
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
108
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
109
Idem, p. 15
110
Idem, p. 16
O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es
discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento111.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder sã o derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimó rficas de poder”. Nã o se trata assim de negar a
repressã o, mas de negar que sua temá tica possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constataçã o de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocaçã o em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restriçã o foi submetido, ao contrá rio, a um
processo de incitaçã o crescente. As técnicas de poder que se exercem
sobre o sexo nã o obedeceram a um princípio de seleçã o rigorosa mas, ao
contrá rio, a disseminaçã o e a implantaçã o de sexualidades polimó rficas. A
vontade de saber nã o parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se
animou a constituir uma ciência da sexualidade112.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e nã o necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de prá ticas etc.) que será questã o na
História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro,
algo acontecerá e projeto será , em larga medida, abandonado. Na verdade, a
dimensã o crítica do projeto dará lugar a uma reflexã o de outra natureza.
Foucault tinha a idéia de escrever, logo em seguida ao primeiro volume, um livro
sobre A carne e o corpo, onde seria questã o do modos de funcionamento da
pastoral cristã e de sua culpabilizaçã o da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos
(1976 a 1984). Durante estes oito anos, Foucault nã o escreve livro algum, logo
ele que, desde o lançamento de História da loucura, em 1961 publica um livro a
cada dois ou três anos. Este longo período sem publicar indica uma profunda
reformulaçã o no projeto de Foucault. Hoje, temos mais clareza desta
reformulaçã o graças à ediçã o de seus curso no Collège de France. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado
“Subjetividade e verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em:
“estudar os jogos de verdade na relaçã o de si a si e na constituiçã o de si mesmo
como sujeito, tomando por domínio de referência e campo de investigaçã o o que
poderíamos chamar de ‘histó ria do homem de desejo’”113. Uma histó ria que nos
abrirá para modos distintos de experiência de desejo e verdade.

A hipótese repressiva

111
Idem, p. 20
112
Idem, p. 21
113
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensã o de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressã o. Na verdade, o que vemos é uma “incitaçã o institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulaçã o explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”114.
Desde a pastoral cató lica com seus ritos de confissã o, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelaçã o e do exame minucioso de si tendo em vistas a associaçã o da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunçã o tã o particular ao ocidente moderno”, a
saber:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um


outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensaçõ es e pensamentos inumerá veis que, através da alma e do
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocaçã o
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradiçã o ascética e moná stica. O século XVII fez dele uma regra para
todos115.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia


de que o que é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente
é, para Foucault, a verdadeira mola do poder. A pastoral cató lica fez com que
todo o desejo devesse passar pelo crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade,
seriam tributá rios deste projeto de fazer coincidir, em uma coincidência sem
falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da
espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres individuais se ela nã o tivesse
sido integrada, a partir do século XVIII, a um verdadeiro mecanismo de:
“incitaçã o política, econô mica, técnica” sobre o sexo. Nã o um mecanismo ligado
diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um discurso
que nã o é simplesmente aquele da tolerâ ncia ou da condenaçã o, mas da gestã o,
do fortalecimento da saú de pú blica:

O sexo, isso nã o se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o


sexo advém questã o de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
entã o a esta palavra – nã o apenas repressã o da desordem, mas majoraçã o
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
nã o o rigor de uma proibiçã o, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos pú blicos e ú teis116.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um


discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administraçã o pú blica. Na verdade,
apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma
ciência que visa, por exemplo, gerir as populaçõ es já que, no coraçã o do
problema político das populaçõ es encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era

114
Idem, p. 27
115
Idem, p. 29
116
Idem, p. 35
um país populoso, entã o algumas questõ es centrais de administraçã o pú blica
serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relaçõ es sexuais, o efeito
do celibato e das interdiçõ es, a incidência de prá ticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituiçã o pedagó gica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrá rio, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma
codificaçã o estrita de seus conteú dos e uma qualificaçã o exclusiva de seus
interlocutores:

É bem prová vel que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condiçã o para o
funcionamento de outros discursos, mú ltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relaçõ es de poder117.

Esta transformaçã o do sexo em objeto de uma pedagogia, mutaçã o que


acompanha sua transformaçã o em objeto de uma medicina, de uma economia e
de uma reflexã o jurídica: eis, muito mais do que a “hipó tese repressiva”, a
verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica porque Foucault se vê obrigado
a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciá vel, a mais impaciente das sociedades é
provavelmente a nossa”118. Uma impaciência que produziu a multiplicaçã o de
discursos que nã o se submetem mais a um princípio comum, como ainda era o
caso da pastoral cató lica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questã o este tema tã o
freqü ente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, nã o seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um
“efeito do discurso”, uma produçã o discursiva que nada teria a ver com a
liberaçã o de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdiçõ es e proibiçõ es nã o seria apenas a
produçã o de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagó gicos,
jurídicos e econô micos? Maneira de dizer que nã o há nada de natural no campo
da sexualidade, nã o há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensã o de uma normatividade social que nã o se diz
enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, como Foucault se
transformou na referência fundamental para a tradiçã o das chamadas “teorias de
gênero”: teorias que procuram expor como sexo é uma produçã o social e
discursiva que se naturaliza através de identidades de gênero.

117
Idem, p. 42
118
Idem, p. 46
A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de


um conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitaçã o ao discurso,
visavam constituir uma normatividade social na relaçã o do sujeito a seus corpos,
seus prazeres e ao outro, entã o como explicar este fenô meno, tã o pró prio ao
século XIX, de atençã o exaustiva à s perversõ es?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serã o marcados por um
esforço de classificaçã o e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos
por perversõ es (ou parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII
legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo em vista, basicamente, as infraçõ es à s
regras de aliança matrimonial. Por isto, nã o haveria partilha clara entre as
infraçõ es a tais regras e os desvios em relaçã o à genitalidade. Adultério e
sodomia, enganar sua mulher ou violar cadá veres, por exemplo, sã o fenô menos
colocados no mesmo plano.
Foi necessá rio um lento movimento para que tais desvios em relaçã o à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsá vel por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio psíquico”
ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religiã o dará lugar
à gestã o médica da saú de sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definiçã o da norma e de definiçã o das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produçã o
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente nã o quando
ele nos obriga à conformaçã o à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversõ es, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiõ es corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsã o” no interior do qual poder e prazer se articulam na mesma
enunciaçã o. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele, pretensamente,
afasta.
Assim, as perversõ es nã o seriam a manifestaçã o de uma polimorfia
originá ria que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reproduçã o. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna é
perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicaçã o de sexualidades singulares, pela produçã o e fixaçã o da
“disparidade sexual”. Por isto:

O crescimento das perversõ es nã o é um tema moralizador que teria


obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da
interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É
possível que o Ocidente nã o tenha sido capaz de inventar prazeres novos
e, sem dú vida, ele nã o descobriu vícios inéditos. Mas ele definiu novas
regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto petrificado das
perversõ es nele se desenhou119.
119
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 7

Na aula passada, iniciamos a leitura do primeiro volume de História da


sexualidade. Lembrei para vocês este projeto central na filosofia de Foucault
deveria ser compreendido à luz da questã o referente à produtividade do poder,
ou seja, ao problema da maneira com que regimes de saber constituem prá ticas
disciplinares capazes de definir nosso modo de relaçã o a nó s mesmos e aos
outros. Que este problema seja tematizado de maneira privilegiada quando
voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que nã o deve nos surpreender. Pois se
há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar franco sobre o que é
da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como
nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos
relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência
de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de
sua auto-determinaçã o. Digamos claramente que seu reconhecimento como
sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma
sexualidade.
Lembrei ainda que a História da sexualidade podia ser vista, de uma certa
forma, como uma silenciosa arqueologia da psicaná lise. Como dirá Alain Badiou:
“De que Freud se sente responsá vel quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente
de ruptura no real do sexo, para além mesmo da transgressã o de alguns tabus
morais ou religiosos? Tem a tremenda convicçã o de ter tocado no sexo, no
mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no verso?” 120. As perguntas
nã o poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo
regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar
que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos
relacionarmos ao desejo.
No entanto, vimos como Foucault participa, neste momento, de uma forte
desconfiança do pensamento francês contemporâ neo a respeito da psicaná lise e
de sua maneira de fazer o sexual falar. Esta fala sobre o sexual estaria fundada na
temá tica da repressã o. Temá tica que nos permitira dizer haver uma força de
ruptura vinda do desejo que nã o encontraria lugar nos modos de reproduçã o
social das sociedades capitalistas. Esta será a hipó tese a ser criticada por
Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez nã o tenha existido sociedade que mais
falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu pró prio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela nã o diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete de se liberar de leis que a
fazem funcionar121.

De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos
de falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
120
BADIOU, Alain; O século, p. 112
121
FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 16
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento122.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder sã o derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimó rficas de poder”. Nã o se trata assim de negar a
repressã o, mas de negar que sua temá tica possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constataçã o de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocaçã o em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restriçã o foi submetida, ao contrá rio, a um
processo de incitaçã o crescente. As técnicas de poder que se exercem
sobre o sexo nã o obedeceram um princípio de seleçã o rigorosa mas, ao
contrá rio, a disseminaçã o e a implantaçã o de sexualidades polimó rficas. A
vontade de saber nã o parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se
animou a constituir uma ciência da sexualidade123.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e nã o necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de prá ticas etc.) que será questã o na
História da sexualidade. Na verdade, apenas o ocidente conhecerá esta idéia do
sexo como objeto de uma ciência. Uma ciência que visa, por exemplo, gerir as
populaçõ es já que, no coraçã o do problema político das populaçõ es encontra-se o
sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, entã o algumas questõ es
centrais de administraçã o pú blica serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade
do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relaçõ es sexuais, o efeito do celibato e das interdiçõ es, a
incidência de prá ticas contraceptivas, entre outros. Pela primeira vez, uma
sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com que
cada um faz sexo. Esta transformaçã o do sexo em objeto de uma pedagogia,
mutaçã o que acompanha sua transformaçã o em objeto de uma medicina, de uma
economia e de uma reflexã o jurídica: eis, muito mais do que a “hipó tese
repressiva”, a verdadeira mola produtiva do poder.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questã o este tema tã o
freqü ente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, nã o seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um
“efeito do discurso”, uma produçã o discursiva que nada teria a ver com a
liberaçã o de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
122
Idem, p. 20
123
Idem, p. 21
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdiçõ es e proibiçõ es nã o seria apenas a
produçã o de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagó gicos,
jurídicos e econô micos? Maneira de dizer que nã o há nada de natural no campo
da sexualidade, nã o há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensã o de uma normatividade social que nã o se diz
enquanto tal.

Uma ciência da sexualidade

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo.


De um lado, as sociedades (e elas sã o numerosas: a China, o Japã o, a índia,
Roma, as sociedades á rabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars
erótica. Na arte eró tica, a verdade é extraída do pró prio prazer, tomado
como prá tico e recolhido como experiência. Nã o é em relaçã o a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, nã o é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa civilizaçã o, ao menos
sob um primeiro ponto de vista, nã o tem uma ars erótica. No entanto, ele é
a ú nica a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter desenvolvido no
decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciaçõ es e
ao segredo magistral: trata-se da confissã o124.

Esta distinçã o entre arte eró tica e ciência da sexualidade é central para
Foucault. Ela nos remete claramente a Georges Bataille, haja vista a maneira
foucaultiana de lembrar que, na arte eró tica, desconhecemos relaçã o: “a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, nã o é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta”. Sabemos como esta crítica à ló gica
utilitarista no campo do erotismo vem de Bataille, assim como a compreensã o de
uma dinâ mica de interdiçã o e transgressã o que nã o se baseia no respeito
absoluto a uma lei. Como dissera na aula passada, tudo se passa como se
Foucault procurasse desenvolver, através do conceito de “sexualidade” o tipo de
experiência sexual pró pria à s sociedades dos indivíduos e seu regime de fala.
Se, como vimos na aula passada, a ciência da sexualidade baseava-se em
um modo de falar sobre o sexo que encontra suas raízes no sacramento da
confissã o, nada disto será encontrado fora do ocidente. Foucault chega a dizer
que estamos diante de duas formas de relaçã o entre sexo e verdade: uma que
privilegia a confissã o (que Foucault define como modelo jurídico-religioso, ou
ainda, jurídico-discursivo de enunciaçã o da verdade) e outra que seria uma
pedagogia da iniciaçã o. Ou seja, o ocidente seria, entre outras coisas, uma
maneira peculiar de definir o sexual através da “expressã o obrigató ria e
exaustiva de um segredo individual”125. O que nã o poderia ser diferente já que,
para Foucault, a razã o moderna ocidental é, antes de mais nada, uma forma
disciplinar de poder baseada em uma estilística disciplinar do fazer falar. “Diga-
me como você fala e te direi como você se submete”. Por isto, Foucault se
pergunta: “Pode-se articular a produçã o da verdade segundo o velho modelo
jurídico-religioso da confissã o e a extorsã o da confidência segundo a regra do
124
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
125
Idem, p. 82
discurso científico?”126. Na verdade, nossas sociedades nã o teriam feito outra
coisa. Foucault chega a descrever algumas características maiores da nossa
ciência da sexualidade que permitiram tal sobreposiçã o.
Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento
de um conjunto de signos e sintomas decifrá veis (questioná rio, interrogató rio,
amanese, hipnose etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa,
como se o sexo fosse dotado de um poder causal inesgotá vel e polimó rfico. “Nã o
há praticamente doença ou problema físico ao qual o século XIX nã o imaginou ao
menos uma parte de etiologia sexual”127. Terceiro, o princípio de latência
intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse naturalmente dotada de
uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissã o uma tarefa
sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissã o trouxesse
uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissã o. Por
fim, a medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:

O domínio do sexo nã o será mais colocado sob os registros da falta e do


pecado, do excesso ou da transgressã o, mas sob o regime do normal e do
patoló gico. Define-se pela primeira vez uma morbidade pró pria ao sexual,
o sexual aparece como um campo de alta fragilidade patoló gica128.

O que temos, ao final deste processo, nã o é apenas um modelo de


produçã o da relaçã o entre sexualidade e verdade. Para Foucault, este é um setor
fundamental de uma “ciência do sujeito”, já que a causalidade do sujeito, o
inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito se encontrará desdobrada no
interior do discurso do sexo. De fato, depois da psicaná lise, nã o há teoria do
sujeito sem que levemos em conta a clivagem que a experiência da sexualidade
nos impõ e.
Mas voltemos à distinçã o entre ciência da sexualidade e arte eró tica. Será
pelas vias da tematizaçã o desta arte eró tica, em uma chave neste caso bastante
diferente da sugerida por Bataille, que os dois outros volumes da História da
sexualidade caminhará . Para Foucault, a funçã o deste dois livros é clara: mostrar
como há uma produçã o de si que obedece a uma ló gica distinta daquela em
operaçã o nas prá ticas disciplinares e na submissã o a um modelo jurídico de
relaçã o a si que aparece claramente, por exemplo, nas discussõ es morais sobre
autonomia. Discussõ es que determinam meu modo de ser a partir do respeito a
normas universais, categó ricas e incondicionais transcendentalmente
asseguradas. Como se esta estratégia transcendental fosse um modo de produçã o
de sujeitos.
A partir disto, Foucault organizará uma dicotomia entre o transcendental
como modelo jurídico de relaçã o à si e o cuidado de si enquanto modo de relaçã o
do sujeito à verdade, cuidado este que estará tematizado no terceiro volume da
História da sexualidade sob a forma da arte eró tica greco-romana. O modelo
jurídico do transcendental está presente, por exemplo, nas temá ticas da lei
moral, do tribunal da razã o, no regime de universalidade categó rica, na temá tica
das condiçõ es normativas de possibilidade etc. Já o cuidado de si nã o teria parte

126
Idem, p. 86
127
Idem, p. 88
128
Idem, p. 90
com tal modelo por ser composto por prescriçõ es que nã o podem ser
compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.
No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma
forma de ajuste entre prá ticas sociais e “disposiçõ es naturais” singulares e que
constituem, para um sujeito, algo como uma dimensã o de verdade. No entanto,
os termos deste ajuste nunca sã o completamente definidos por Foucault. Ele fala,
em vá rios momentos, de uma: “intensificaçã o da relaçã o à si através da qual
alguém se constitui como sujeito de seus atos” 129, de uma forma “ ao mesmo
tempo particular e intensa de atençã o ao corpo”130 ou ainda de “ soberania” do
indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificaçã o” porque o problema está ligado à
força, à moderaçã o e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade sã o,
para um homem, as duas formas maiores da imoralidade na prá tica dos
aphrodisia”131.
Nota-se que esta constituiçã o soberana de si passa por um deslocamento
do si mesmo, da dimensã o da autonomia individual à reconciliaçã o com o corpo.
De toda forma, tal soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida
como uma transformaçã o que nã o pode ser vista como resultado de
procedimentos disciplinares. Daí a definiçã o de tal soberania como uma arte da
existência composta por:

prá ticas refletidas e voluntá rias através das quais os homens nã o apenas
fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo132.

Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de
si mesmo, implica capacidade de constituiçã o de si como sujeito moral, mas esta
moralidade nã o pode ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral
cujo assento deve ser pensado no ajustamento ao có digo. Na verdade, tal
soberania leva a uma moral orientada, nã o para o có digo, mas para o ético.
Assim, ao invés das interdiçõ es e fronteiras, a teríamos definiçõ es das
modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as
circunstâ ncias, posiçã o pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa
“individualidade” é aqui necessá ria.

O dispositivo da sexualidade

No capítulo central de seu livro, Foucault se propõ e a falar do “dispositivo


da sexualidade”. Esta noçã o é central e explica claramente o que Foucault
entende por sexualidade. A propó sito da noçã o de “dispositivo”, ele dirá :

Ce qui j’essaie de réperer sous ce nom (...) c’est premièrment un ensemble


résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des
aménagements, d’architectures, des décisions réglementaires, des lois,
des mésures administratives, des énoncés scientifiques, des propos

129
Histoire de la séxualité III, p. 57
130
Idem, p. 78
131
Histoire de la séxualité II, p. 65
132
Idem, p. 18
philosophiques, morales, philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du
non dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le
réseau qu’on peut établir entre ces éléments133.

Nó s vemos como Foucault se serve da noçã o de dispositivo para definir o


espaço da normatividade social, para além das imposiçõ es dos enunciados. Um
dispositivo é uma rede heterogênea de normas sociais. Nada estranho para
alguém, como Foucault, para quem a sexualidade é simplesmente uma
normatividade social, para quem nã o há normatividade vital alguma que deva
ser levada em conta na nossa compreensã o da sexualidade. Neste sentido, o
conceito de dispositivo tem uma funçã o maior: ela nos permite de pensar e
tematizar aquilo que muda, de uma época histó rica a outra, no interior de nossa
experiência da sexualidade. Ele nos libera, por exemplo, de procurar alguma
forma de “instinto sexual” imutá vel, impulso natural que apareceria como uma
espécie de substâ ncia primeira a fundar uma normatividade vital no interior do
corpo.
No entanto, talvez a noçã o de dispositivo nã o nos permita pensar de
maneira adequada exatamente aquilo que teria a estranha força de permanecer
invariá vel no sexual, aquilo que, como dizia Lacan, tende a voltar sempre ao
mesmo lugar. Para Foucault, assumir algo desta natureza nos obrigaria a assumir
alguma forma de normatividade vital em operaçã o na sexualidade, algo que,
como vimos, o filó sofo francês deve recusar expressamente. Ele deve recusar a
idéia de que, talvez, aquilo que nomeamos “sexualidade” é uma estranha
articulaçã o entre normatividade vital e normatividade social.
Mas se voltarmos à reflexã o sobre o dispositivo da sexualidade, veremos
como Foucault insiste que sua aná lise continua fundada, de maneira equivocada,
nas temá ticas pró prias ao poder soberano. Por isto, ele precisa afirmar que nossa
representaçã o do poder continua assombrada pela monarquia jurídica. Daí a
importâ ncia dada aos problemas do poder e da violência, da lei e da ilegalidade,
da vontade e da liberdade. No entanto, há séculos entramos: “em um tipo de
sociedade na qual o jurídico pode, cada vez menos, codificar o poder ou lhe servir
de sistema de representaçã o”134. Daí a necessidade de uma analítica do poder que
nã o tome mais o direito por modelo, mas o dispositivo. Só assim Foucault
encontrará o campo para afirmar:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a


multiplicidade de relaçõ es de força que sã o imanentes ao domínio no qual
elas se exercem, e que sã o constitutivas de sua organizaçã o; o jogo que
pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem;
os apoios que tais relaçõ es de força encontram umas nas outras de
maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrá rio, as defasagens, as
contradiçõ es que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais
elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalizaçã o institucional
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulaçã o da lei, na hegemonia
social135.

133
FOUCAULT, Michel; Le jeu de Michel Foucault
134
Histoire de la séxualité I, p. 118
135
Idem, p. 122
Esta idéia de poder é onipresente nã o porque ela tudo engloba em uma
unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela nã o depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela nã o resulta de decisõ es e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fá cil perceber
também que a noçã o mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
pró prio poder só pode existir em funçã o de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está , a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâ micas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficá cia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo mú ltiplo e mó vel de relaçõ es de força no qual se produzem efeitos globais
de dominaçã o, mas jamais totalmente está veis”136.
Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem
particularmente denso para as relaçõ es de poder entre homens e mulheres, entre
jovens e velhos, pais e filhos, educadores e alunos, administradores e populaçã o.
Ela se desenvolve no momento em que o dispositivo de aliança, com seus sistema
de casamento e de transmissã o, perde importâ ncia por servir mais de suporte
suficiente para os processos econô micos e as estruturas políticas. O dispositivo
de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de sexualidade
conheceria técnicas mó veis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança nunca será
ultrapassado completamente, mas e le funcionará a partir de novas dinâ micas.
Daí a transformaçã o da família em espaço de constituiçã o da sexualidade e de
seus jogos. Transformaçã o tã o presente na psicaná lise e suas noçõ es ligadas ao
complexo de É dipo.
Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do
século XVIII se constituirã o como eixos desta relaçã o de poder no interior da
sexualidade: a) a histerizaçã o do corpo feminino, b) a pedagogizaçã o do sexo
infantil, c) a socializaçã o das condutas de procriaçã o e d) a psiquiatrizaçã o dos
prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de formas de produçã o da
sexualidade seja através da definiçã o do feminino, da criança, da norma e do
desvio.

Weber e Foucault

Aqui, podemos sentir a peculiaridade da posiçã o de Foucault. Por


exemplo, Max Weber, ao insistir que a racionalidade econô mica dependia
fundamentalmente da disposiçã o dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta,
lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalizaçã o psíquica de uma
ética protestante do trabalho e da convicçã o, estranha ao cá lculo utilitarista e
cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. É tica esta que Weber encontrou
no ethos protestante da acumulaçã o de capital e do afastamento de todo gozo
espontâ neo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de
produçã o era um trabalho que nã o visava exatamente o gozo do serviço dos
bens, mas a acumulaçã o obsessiva daqueles que: “nã o retiram nada de sua
riqueza para si mesmo, a nã o ser a sensaçã o irracional de haver ‘cumprido’
devidamente a sua tarefa” (Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma
“sançã o psicoló gica” (p. 102) produzida pela pressã o ética e satisfeita através da
realizaçã o de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renú ncia ao
136
Idem, p. 135
gozo. O que o leva a insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtençã o de
mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo
espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer
cará ter eudemonista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade deste
processo de racionalizaçã o do trabalho, ao menos a partir de uma ló gica
eudemonista ou hedonista, pode nos indicar como toda socializaçã o é normativa,
ela é normatividade que se impõ e à vida com suas exigências de satisfaçã o
pulsional. Max Weber nã o havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da
ética protestante do trabalho na constituiçã o da racionalidade do capitalismo era
solidá ria do ascetismo e da restriçã o ao gozo.
No entanto, conhecemos vá rias críticas à plausibilidade desta “hipó tese
repressiva”, sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História
da sexualidade, Foucault nã o deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e
consolidaçã o da sociedade capitalista de produçã o. Ele insiste que as tecnologias
de si pró prias ao mundo burguês moderno nã o podem ser compreendidas como
simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal
metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para
as operaçõ es do poder. Ao contrá rio, deveríamos: “abandonar o energitismo
difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razõ es
econô micas” (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender que a
modernidade foi um longo processo de constituiçã o (e nã o de repressã o) da
sexualidade, implementaçã o de um poder disciplinar que constituiu tanto
mecanismos de incitaçã o a modos de investimento libidinal reconhecidos
socialmente quanto figuras de resistência; já que o verdadeiro poder nã o se
funda apenas em operaçõ es de gestã o coercitiva de padrõ es normativos de
conformaçã o, mas, principalmente, na produçã o dos pró prios modos de
resistência à “dominaçã o”. Foucault quer liberar a reflexã o do poder de temá ticas
vinculadas à opressã o, isto a fim de permitir a melhor compreensã o do cará ter
criador de um poder que engendra, um bio-poder que incita modos de
investimento libidinal, assim como modos de conflito.
Tendo isto em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos
de entificaçã o do ascetismo e da desqualificaçã o da carne analisados por Max
Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificaçã o do corpo, de
problematizaçã o da saú de e das suas condiçõ es de funcionamento” (2001, p.
162). Maneira de assegurar a longevidade e a nã o-corrupçã o da descendência.
Contra estas prá ticas disciplinares que constituem a sexualidade nã o se trataria
de consolidar críticas aos processos de interversã o das expectativas de
racionalidade em regimes de dominaçã o de si. A verdadeira crítica consistiria
em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade,
cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade,
suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.
No entanto, há duas consideraçõ es a fazer a respeito desta perspectiva de
Foucault. Primeiro, uma aná lise psicanaliticamente orientada nã o teria maiores
dificuldades em aceitar a temá tica de um bio-poder que engendra dispositivos de
sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito
dos modos de internalizaçã o da Lei através do supereu consiste exatamente em
mostrar como dinâ micas de repressã o se transformam em modo neuró tico de
satisfaçã o, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste sentido, a
hipó tese repressiva é apenas a descriçã o de um modo de internalizaçã o de
prá ticas disciplinares.
Mas é fato que a temá tica da “repressã o” nos leva á pressuposiçã o de um
corpo libidinal “naturalizado”, isto no sentido de nã o ser totalmente redutível à
condiçã o de efeito da ordem do discurso. Nã o há porque negar este ponto, assim
como nã o há porque negar sua importâ ncia em temá ticas, como a adorniana, de
interversã o da razã o em procedimento de dominação da “natureza interna”.
Melhor seria mostrar como o pró prio Foucault é muitas vezes obrigado a
retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso, isto a
fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder137. Ou seja, melhor seria
mostrar como nã o é fá cil se livrar da “hipó tese repressiva”.

137
Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno
texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo
feliz da não-identidade” (Ver Butler, 1999).
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 8

Na aula passada, vimos algumas questõ es gerais a respeito da noçã o foucaultiana


de bio-política, bio-poder e de genealogia do poder. Vimos como tais noçõ es
fundamentais podiam ser compreendidas como o resultado de um deslocamento.
Para Foucault, a crítica da razã o moderna, objeto maior da arqueologia do saber,
é indissociá vel de uma crítica profunda à quela categoria que lhe serve de
fundamento, a saber, o conceito de sujeito. Podemos dizer que, no interior desta
crítica, encontramos em Foucault duas temá ticas que se articulam
profundamente.
A primeira destas temá ticas referia-se ao diagnó stico do esgotamento da
filosofia da consciência, com seu modelo de fundamentaçã o das operaçõ es
cognitivas de categorizaçã o e constituiçã o de objetos da experiência a partir da
estrutura formal de síntese, unidade e identidade inicialmente acessível através
da auto-afecçã o da consciência-de-si. Como se a cogniçã o fosse, necessariamente,
indissociá vel da projeçã o da estrutura da consciência sobre o mundo dos objetos.
Mas a este esgotamento da filosofia da consciência, o pensamento francês
contemporâ neo em geral, e Foucault em particular, procurou contrapor a
necessidade de uma reflexã o demorada sobre o inconsciente. Pois este
esgotamento da filosofia da consciência foi feito, normalmente, graças à
insistência no cará ter determinante, para a estruturaçã o das formas do pensar,
de uma dimensã o propriamente inconsciente. Daí esta maneira pró pria a
Foucault de procurar expor: “na dimensã o pró pria do inconsciente, as normas,
regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condiçõ es de suas
formas e de suas condutas”138. Como se houvesse uma articulaçã o profunda entre
inconsciente e transcendental.
A segunda temá tica que nã o cansará de retornar no interior da crítica do
sujeito no pensamento francês contemporâ neo será a necessidade de impedir a
perpetuaçã o de daquilo que um dia Foucault chamou de sono antropológico.
Deste sono antropoló gico só acordaríamos através daquilo foi sintetizado por
Michel Foucault através da temá tica da “morte do homem”. Mas um pouco como
o ser em Aristó teles, a morte do homem se diz de muitas maneiras. Gostaria de
me concentrar em apenas uma. Trata-se de discutir a maneira com que tudo se
passava como se uma certa figura antropoló gica do homem servisse de
fundamento silencioso para a configuraçã o de formas de pensar que aspiram
validade incondicional e universal. Como se nã o houvesse reflexã o sobre a
estruturaçã o da forma do pensamento que nã o devesse seu direcionamento a
uma certa antropologia. Mas o que isto quer realmente dizer?
Sabemos o quanto Foucault insistiu que: “o homem é uma invençã o cuja
arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente” 139. Mas
devemos lembrar que, se o homem nasce juntamente com uma era histó rica
determinada por um modo de pensar è porque ele é, fundamentalmente, uma
forma de pensar. Entendamos isto da seguinte forma: podemos começar
138
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
139
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 398
afirmando que o homem seria aquele que reduz sua realidade subjetiva à figura
ideal do Eu do sujeito maduro, que saiu das amarras da inconsistência da
infâ ncia, que nã o se deixou encantar pela alteridade da loucura com sua
alienaçã o da vontade. Esta verdadeira redução egológica presente na
constituiçã o da categoria de “homem” traz, no seu bojo, a entificaçã o dos
atributos pró prios ao Eu. Isto fica claro se aceitarmos que o Eu enquanto
princípio formal de unidade sintética pressupõ e a elevaçã o do princípio de
identidade e de nã o-contradiçã o à condiçã o de postulados que terã o peso
ontoló gico. Enquanto sede da autonomia da vontade, o Eu pressupõ e a crença em
estratégias de constituiçã o transcendental de objetos da experiência. Enquanto
cerne de uma experiência ligada à analítica da finitude indicaria um modo
específico de limitaçã o do campo da experiência e de distâ ncia em relaçã o ao que
é apeiron, sem medida, radicalmente Outro ou, como dirá Foucault, “impensado”.
Estes procedimentos articulados conjuntamente produzem aquilo que um dia
Deleuze chamou de imagem do pensamento, maneira que o pensamento tem de
constituir objetos e processos que apenas reiterarã o as regras gramaticais que
ele naturalmente aceita como pressuposto nã o questioná vel, que apenas
naturalizarã o um senso comum140.
Coloquemos entã o uma hipó tese. Se, por um lado, encontramos no projeto
foucauldiano de uma arqueologia do saber o reconhecimento da profunda
articulaçã o entre a noçã o de inconsciente e a categoria do transcendental, peça
maior para a reflexã o sobre o esgotamento da filosofia da consciência, veremos
também uma crença, vá rias vezes presentes, de que, até entã o, a reflexã o sobre o
transcendental e suas formas teria sido contaminada pela sua dependência da
antropologia, por “uma confusã o entre o empírico e o transcendental” através da
qual “a aná lise pré-crítica do que é o homem na sua essência advém a analítica
de tudo o que pode se dar em geral à experiência humana” 141. Livrando o espaço
do que determina a validade de nossas formas de agir e de pensar (o
transcendental) de sua colonizaçã o por uma antropologia cuja gênese ainda nã o
estava totalmente clara para Foucault, nã o poderíamos, com isto, encontrar o
caminho para a reconstruçã o de um conceito positivo de razã o?
Digamos que esta é a questã o central de Foucault a partir dos anos
setenta. Sua reflexã o sobre o poder está diretamente associada à maneira de
acordar deste sono antropoló gico. Pois, para Foucault, pensar sobre o poder é
necessariamente pensar sobre processos de constituição e de produção do que
nó s nos tornamos, do modelo de homem que somos. Produçã o de tal ordem que
Foucault nã o temerá vê-la em operaçã o no sujeito do conhecimento e no objeto a
conhecer, isto a ponto de afirmar que: “nã o há relaçã o de poder sem constituição
correlativa de um campo de saber, nem saber que nã o suponha e nã o constitua,
ao mesmo tempo, relaçõ es de poder”142. Este cará ter produtivo do poder será o
grande tema do primeiro volume da História da sexualidade.

A produção da sexualidade

140
Sobre a noção de “imagem do pensamento” em Deleuze ver, sobretudo, DELEUZE, Gilles; Proust et
les signes, Paris: PUF, 2006, pp. 115-127
141
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 352
142
Idem, Surveiller et punir, p. 36
Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que
regimes de saber constituem prá ticas disciplinares capazes de definir nosso
modo de relaçã o a nó s mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira
privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que nã o deve nos
surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar
franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre
o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos
e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo
fundamental de sua auto-determinaçã o. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é
capaz de subjetivar uma sexualidade.
Neste sentido, é inegá vel que a força do pensamento de Freud e da
psicaná lise se faz sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da
sexualidade pode ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia
da psicaná lise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsá vel
quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para
além mesmo da transgressã o de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a
tremenda convicçã o de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de
Vitor Hugo, se tocou no verso?” 143. As perguntas nã o poderiam ser mais claras.
Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que
fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente
nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança
do pensamento francês contemporâ neo a respeito da psicaná lise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Contrariamente à quilo que vimos em As palavras
e as coisas, a posiçã o da psicaná lise no interior da episteme moderna mudará .
Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relaçã o à s “ciências humanas”, a psicaná lise e a etnologia sã o “contra-


ciências”; o que nã o quer dizer que elas sã o menos “racionais” ou
“objetivas” que as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente,
retirando-as de seu pedestal epistemoló gico, e que elas nã o cessam de
“desfazer” este homem que, nas ciências humanas, faz e desfaz sua
positividade144.

Agora, em História da sexualidade, a psicaná lise aparecerá , mesmo sem


ser diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma
hipó tese equivocada e de uma ilusã o de liberdade descrita por Foucault da
seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibiçã o, à inexistência e ao


mutismo [como a psicaná lise nos faria acreditar que ele era antes de seu
aparecimento], o simples fato de falar dele e de falar de sua repressã o tem
um ar de transgressã o deliberada. Quem sustenta esta linguagem se
coloca, até um certo ponto, fora do poder; ele faz a ler tremer; ele

143
BADIOU, Alain; O século, p. 112
144
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391
antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade futura. Daí esta
solenidade com a qual hoje se fala do sexo145.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época:


“de um discurso no qual o sexo, a revelaçã o da verdade, a inversã o da lei do
mundo, o anú ncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estã o
ligados”146. Discurso este que aparece na linha direta da reflexã o psicanalítica
sobre os modos de repressã o da sexualidade.
Mas, antes de continuar, sublinhemos a importâ ncia desta articulaçã o com
a psicaná lise. O recurso filosó fico à psicaná lise é uma constante no interior do
pensamento francês contemporâ neo, isto ao menos desde a fenomenologia de
Sartre e de Merleau-Ponty. Basta lembrar a maneira com que Sartre, apó s uma
crítica conhecida à pretensa inconsistência da noçã o freudiana de um
inconsciente pensado principalmente a partir das operaçõ es de recalcamento,
termina O ser e o nada exatamente através da proposiçã o de uma psicaná lise
existencial. Podemos citar ainda a maneira com que Merleau-Ponty propõ e, em
seu O visível e o invisível, fazer nã o uma psicaná lise existencial, mas uma
psicaná lise ontoló gica.
Apó s a fenomenologia, a psicaná lise será peça maior dos debates em
torno do estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma
noçã o de inconsciente estrutural fundamental para o psicanalista francês. Desta
conjunçã o entre antropologia e psicaná lise, sairá um programa influente de
pesquisa que alcançará Foucault e Althusser. Por fim, um dado comum aos
autores maiores do dito pó s-estruturalismo (Foucault, Deleuze, Derrida e
Lyotard) é exatamente o recurso constante a temá ticas e problemas advindos da
experiência psicanalítica.
Mas se voltarmos à Foucault, devemos nos perguntar: quais sã o as causas
desta modificaçã o brutal de perspectiva em relaçã o à psicaná lise? Uma resposta
possível concerne o impacto filosó fico de maio de 68 e a influência de O anti-
Édipo, de Deleuze e Guattari. O anti-Édipo acabou conhecido com o livro que mais
claramente sustentou as aspiraçõ es libertá rias globais que animaram a revolta
de 68. Tais aspiraçõ es foram patrocinadas em larga medida pela recuperaçã o de
uma crítica à s instituiçõ es que se voltou necessiramente contra a maneira com
que a psicaná lise seria dependente da inscriçã o do desejo no interior das regras
do nú cleo familiar, da perpetuaçã o de estruturas normativas burguesas de
socializaçã o que seriam os verdadeiros nú cleos de reproduçã o do capitalismo
como forma de vida. Neste sentido, o título do livro já expõ e seu projeto “O anti-
É dipo: capitalismo e esquizofrenia”. Ou seja, a crítica dos modos de socializaçã o
do desejo e de constituiçã o de individualidades baseados no complexo de É dipo
forneceria a chave interpretativa para esta relaçã o decisiva de conjunçã o entre
“capitalismo” e “esquizofrenia”.
Focault, que chegará a escrever um prefá cio para a versã o em inglês de O
anti-Édipo, reconhece sua proximidade com tal empreitada, já que se trata (e
aqui ele fala de sua proximidade com o livro de Deleuze e Guattari) de “fazer
aparecer aquilo que, na histó ria de nossa cultura, continuou até agora como o
mais escondido, o mais oculto, o mais profundamente investido: as relaçõ es de

145
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13
146
Idem, p. 15
poder”147. A psicaná lise será , a partir de entã o, inquirida tendo em vista a
produtividade de seu poder em conformidade com outros dispositivos
disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. Nã o só o complexo de É dipo
será objeto deste inquérito (como vemos no texto A verdade e as formas
jurídicas). Também a transferência, dispositivo central da clínica analítica, será
questionada a partir de sua proximidade com a confissã o (ver O poder
psiquiátrico).
E é exatamente deste movimento que se tratará na História da
sexualidade, a saber, de mostrar como um modo de falar sobre o sexo, que
procura se passar por um saber, esconde as engrenagens de um certo poder
produtivo. Exposiçã o que, como Foucault reconhece em O anti-Édipo, deverá dar
lugar a uma ética, a um modo de ser do desejo.
No entanto, há aqui uma grande diferença de Foucault em relaçã o à
perspectiva de Deleuze e de Guattari. Um leitura de O anti-Édipo demonstra,
rapidamente, como a temá tica da repressã o da sexualidade está a todo momento
presente. Há uma força de ruptura vinda do desejo que nã o encontra lugar nos
modos de reproduçã o social das sociedades capitalistas. Esta será a hipó tese a
ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez nã o tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um


século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade
de seu pró prio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela nã o diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete de liberar-se de leis que a
fazem funcionar148.

De fato, estranha repressã o esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a
uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de
falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “aná lise crítica da repressã o” é, no
fundo, insepará vel dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocaçã o do sexo no
interior do discurso”. Tais efeitos sã o produzidos pelo nosso modo de falar, de
intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu
projeto da seguinte forma:

O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento149.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder sã o derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimó rficas de poder”Nã o se trata assim de negar a
repressã o, mas de negar que sua temá tica possa dar conta da maneira com que o
poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constataçã o de que:

147
FOUCAULT, Dits et écrist I, p. 1422
148
Idem, p. 16
149
Idem, p. 20
Desde o fim do século XVI, a “colocaçã o em discurso” do sexo, longe de
submeter-se a um processo de restriçã o foi submetido, ao contrá rio, a um
processo de incitaçã o crescente. As técnicas de poder se exercem sobre o
sexo nã o obedeceram um princípio de seleçã o rigorosa mas, ao contrá rio,
a disseminaçã o e a implantaçã o de sexualidades polimó rficas. A vontade
de saber nã o parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou
a constituir uma ciência da sexualidade150.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de


discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e nã o necessariamente de
uma ética, de um conjunto de técnicas e de prá ticas etc.) que será questã o na
História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro,
algo acontecerá e projeto será , em larga medida, abandonado. Na verdade, a
dimensã o crítica do projeto dará lugar a uma reflexã o de outra natureza.
Foucault tinha a idéia de escrever, logo em seguida ao primeiro volume, um livro
sobre A carne e o corpo, onde seria questã o do modos de funcionamento da
pastoral cristã e de sua culpabilizaçã o da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos
(1976 a 1984). Durante estes oito anos, Foucault nã o escreve livro algum, logo
ele que, desde o lançamento de História da loucura, em 1961 publica um livro a
cada dois ou três anos. Este longo período sem publicar indica uma profunda
reformulaçã o no projeto de Foucault. Hoje, temos mais clareza desta
reformulaçã o graças à ediçã o de seus curso no Collège de France.. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado
“Subjetividade e verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em:
“estudar os jogos de verdade na relaçã o de si a si e na constituiçã o de si mesmo
como sujeito, tomando por domínio de referência e campo de investigaçã o o que
poderíamos chamar de ‘histó ria do homem de desejo’”151. Uma histó ria que nos
abrirá para modos distintos de experiência de desejo e verdade.

A hipótese repressiva

No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela
consiste em dizer que é falsa a compreensã o de que, a partir do século XVII,
aquilo que é da ordem do sexual teria sido submetido a um regime estrito de
censura e repressã o. Na verdade, o que vemos é uma “incitaçã o institucional a
falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulaçã o explícita e do detalhe
indefinidamente acumulado”152.
Desde a pastoral cató lica com seus ritos de confissã o, encontramos esta
exigência de tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da
revelaçã o e do exame minucioso de si tendo em vistas a associaçã o da carne ao
pecado. Assim, aparece esta “injunçã o tã o particular ao ocidente moderno”, a
saber:

150
Idem, p. 21
151
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13
152
Idem, p. 27
A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um
outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensaçõ es e pensamentos inumerá veis que, através a alma e o
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocaçã o
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradiçã o ascética e moná stica. O século XVII fez dele uma regra para
todos153.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia


de que o que é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente
é, para Foucault, a verdadeira mola do poder. A pastoral cató lica fez com que
todo o desejo devesse passar pelo crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade,
seriam tributá rios deste projeto de fazer coincidir, em uma coincidência sem
falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da
espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres individuais se ela nã o tivesse
sido integrada, a partir do século XVIII, a um verdadeiro mecanismo de:
“incitaçã o política, econô mica, técnica” sobre o sexo. Nã o um mecanismo ligado
diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um discurso
que nã o é simplesmente aquele da tolerâ ncia ou da condenaçã o, mas da gestã o,
do fortalecimento da saú de pú blica:

O sexo, isso nã o se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o


sexo advém questã o de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
entã o a esta palavra – nã o apenas repressã o da desordem, mas majoraçã o
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
nã o o rigor de uma proibiçã o, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos pú blicos e ú teis154.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um


discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administraçã o pú blica. Na verdade,
apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma
ciência que visa, por exemplo, gerir as populaçõ es já que, no coraçã o do
problema político das populaçõ es encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era
um país populoso, entã o algumas questõ es centrais de administraçã o pú blica
serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relaçõ es sexuais, o efeito
do celibato e das interdiçõ es, a incidência de prá ticas contraceptivas, entre
outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está
ligado à maneira com que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria
esperado Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a
instituiçã o pedagó gica teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das
crianças e adolescentes. Ao contrá rio, desde o século XVIII, ela multiplicou as
formas de discurso a seu respeito, constituindo (e este é o ponto central) uma
codificaçã o estrita de seus conteú dos e uma qualificaçã o exclusiva de seus
interlocutores:
153
Idem, p. 29
154
Idem, p. 35
É bem prová vel que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa
forma de falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta,
cruel. Mas isto era apenas a contrapartida e talvez a condiçã o para o
funcionamento de outros discursos, mú ltiplos, entrecruzados, sutilmente
hierarquizados e todos fortemente articulados em torno de um feixe de
relaçõ es de poder155.

Esta transformaçã o do sexo em objeto de uma pedagogia, mutaçã o que


acompanha sua transformaçã o em objeto de uma medicina, de uma economia e
de uma reflexã o jurídica: eis, muito mais do que a “hipó tese repressiva”, a
verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica porque Foucault se vê obrigado
a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciá vel, a mais impaciente das sociedades é
provavelmente a nossa”156. Uma impaciência que produziu a multiplicaçã o de
discursos que nã o se submetem mais a um princípio comum, como ainda era o
caso da pastoral cató lica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questã o este tema tã o
freqü ente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a
ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na
verdade, nã o seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um
“efeito do discurso”, uma produçã o discursiva que nada teria a ver com a
liberaçã o de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos,
que nos deixamos incitar por interdiçõ es e proibiçõ es nã o seria apenas a
produçã o de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagó gicos,
jurídicos e econô micos? Maneira de dizer que nã o há nada de natural no campo
da sexualidade, nã o há nenhuma normatividade vital operando no seu interior.
Ela seria apenas a dimensã o de uma normatividade social que nã o se diz
enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, Foucault se
transformou na referência fundamental para a tradiçã o das chamadas “teorias de
gênero”: teorias que procuram expor como sexo é uma produçã o social e
discursiva que procura se naturalizar através de identidades de gênero.

A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de


um conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitaçã o ao discurso,
visavam constituir uma normatividade social na relaçã o do sujeito a seus corpos,
seus prazeres e ao outro, entã o como explicar este fenô meno, tã o pró prio ao
século XIX, de atençã o exaustiva à s perversõ es?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serã o marcados por um
esforço de classificaçã o e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos
por perversõ es (ou parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII
legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo em vista, basicamente, as infraçõ es à s
regras de aliança matrimonial. Por isto, nã o haveria partilha clara entre as
infraçõ es a tais regras e os desvios em relaçã o à genitalidade. Adultério e
155
Idem, p. 42
156
Idem, p. 46
sodomia, enganar sua mulher ou violar cadá veres, por exemplo, sã o fenô menos
colocados no mesmo plano.
Foi necessá rio um lento movimento para que tais desvios em relaçã o à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsá vel por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio
psíquico”ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religiã o
dará lugar à gestã o médica da saú de sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definiçã o da norma e de definiçã o das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produçã o
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente nã o quando
ele nos obriga à conformaçã o à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversõ es, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiõ es corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsã o” no interior do qual poder e prazer se articulam no interior da
mesma enunciaçã o. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele,
pretensamente, afasta.
Assim, as perversõ es nã o seriam a manifestaçã o de uma polimorfia
originá ria que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reproduçã o. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Assim, quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna
é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicaçã o de sexualidades singulares, pela produçã o e fixaçã o da
“disparidade sexual”. Por isto:

O crescimento das perversõ es nã o é um tema moralizador que teria


obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da
interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É
possível que o Ocidente nã o tenha sido capaz de inventar prazeres novos
e, sem dú vida, ele nã o descobriu vícios inéditos. Mas ele definiu novas
regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto petrificado das
perversõ es nele se desenhou157.

157
Idem, p. 66
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 9

Na aula de hoje, terminaremos o mó dulo dedicado à discussã o do conceito de


sexualidade em Michel Foucault. Neste mó dulo, vimos como Foucault, à sua
maneira, acreditava só podermos pensar de forma adequada em sexo se o
compreendermos como espaço de produçã o de acontecimentos. No entanto, o
acontecimento pensado por Foucault nã o era da mesma ordem do que aquele
que vimos no mó dulo anterior dedicado a Bataille. Pois ele nã o está ligado
exatamente a emancipaçã o em direçã o à constituiçã o da soberania, tal como
Bataille pensava, mas a uma forma de sujeiçã o. Sexo é um acontecimento a ser
pensado pela filosofia na medida em que explicita uma nova modalidade de
poder que paulatinamente ganhou hegemonia no interior das formas de vida no
Ocidente. Esta forma de pensar sexo a partir da maneira com que o poder
funciona e nos assujeita, ou seja, nos submete e nos transforma em sujeitos,
evidenciou-se a partir do momento em que sexo foi pensado sob a forma da
“sexualidade”.
Lembremos mais um vez como “sexualidade” é, principalmente, um termo
utilizado para designar uma qualidade individualizadora. Normalmente dizemos:
“tenho a minha sexualidade”, como quem tem um modo de ser que
pretensamente expressa uma individualidade a ser reconhecida. Ao centrar suas
reflexõ es sobre o aparecimento da “sexualidade”, Foucault aproveitava esta
qualidade individualizadora para mostrar como um certo regime de organizaçã o,
de classificaçã o e de descriçã o da vida sexual sistematizado no interior do
discurso médico, ou seja, sistematizado a partir da distinçã o ontoló gica entre
normal e patoló gico, foi fundamental na constituiçã o dos indivíduos modernos.
Se “sexualidade” é aquilo produzido por um discurso de aspiraçõ es científicas,
seja vindo normalmente da psiquiatria, da psicologia, seja vindo da medicina,
entã o sua normatividade será , entre outras coisas, fortemente regulada a partir
de padrõ es de mensuraçã o e quantificaçã o.
Por outro lado, vimos como Bataille centrava suas aná lise na descriçã o de
uma experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, a saber, o
erotismo. Veremos hoje como Foucault absorve, à sua maneira, tal temá tica do
erotismo. Mas é fato que, inicialmente, ele estará mais interessado em querer
mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual pró pria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrõ es de normalidade e
de patologia.
A compreensã o dessa experiência é importante para responder uma
questã o propriamente política, a saber: ter uma sexualidade seria expressã o de
uma liberaçã o do meu corpo em relaçã o à s pretensas amarras repressivas do
poder? A sociedade ocidental teria assumido a importâ ncia da sexualidade na
definiçã o das individualidades a partir do momento em que o poder teria
perdido suas amarras repressivas? Ou a sexualidade seria uma forma insidiosa
de sujeiçã o que demonstraria como a natureza do poder nã o é exatamente
repressiva, como se estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia
libidinal primeira e selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos
nos quais o poder opera? Ou seja, ao dar importâ ncia decisiva a tais perguntas,
Foucault apenas era fiel a sua afirmaçã o de que: “o que me interessa é muito
mais a moral do que a política ou, em todo caso, a política como uma ética” 158.
Nã o a política como atividade que se submete a princípios morais gerais, mas a
política como ethos, como aquilo cujo campo real sã o as construçõ es de modos
singulares de ser. Daí a importâ ncia de compreender o sentido do que está em
jogo na sexualidade.
Por sua vez, vimos como Foucault defendia que a sexualidade era um
modo de assujeitamento através de sua reflexã o sobre as estruturas do poder
disciplinar. Foucault desenvolvia a hipó tese do poder disciplinar para mostrar
como devíamos compreender o poder presente de maneira hegemô nica nas
sociedades modernas. Diferente do poder soberano, hegemô nico em sociedades
pré-modernas, o poder disciplinar tinha um conjunto de características pró prias.
Primeiro, ele nã o era um poder que vinha de um centro no qual encontrá vamos a
vontade do soberano. Antes, ele era desprovido de centro e disseminado por
parecer vir de todos os lugares, operar em vá rias instâ ncias e níveis; um poder
horizontal. Por nã o ter centro, ele apareceria como impessoal, como nã o exercido
em nome de alguém, mas em nome de “saberes” que fundamentam sua
legitimidade na força irresistível do que se coloca como discurso científico. Um
poder de estruturas que submetem todos sem distinçã o, como o poder que se
exerce nos hospitais, nas escolas, nas prisõ es, nas empresas, na burocracia
estatal.
Segundo ponto, este poder era individualizador. Através do seu exercício,
individualidades eram constituídas, o que nos levava a uma fó rmula importante:
ser indivíduo é assujeitar-se a um conjunto de disciplinas que legislam sobre
meu modo de organizar o tempo, de hierarquizar meus desejos e vontade, de
regular minhas paixõ es, de proibir e desqualificar certos pensamentos, de
determinar minha identidade e interesses.
Tal poder disciplinar era composto de uma anatomo-política dos corpos e
de uma bio-política das populaçõ es, ou seja, ele visava regular os corpos e seus
regimes de desejos e afetos, assim como regular os fenô menos populacionais de
crescimento, de saú de social e de reproduçã o de costumes. Por isto, a
sexualidade podia aparecer como um dispositivo central do poder disciplinar, já
que dizia respeito tanto à experiência dos corpos quanto a questõ es de gestã o
populacional (como aquelas questõ es ligadas a aná lise da taxa de natalidade, a
idade do casamento, aos nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relaçõ es sexuais, ao efeito do celibato e das interdiçõ es, a
incidência de prá ticas contraceptivas). Neste sentido, a reflexã o filosó fica sobre a
sexualidade expunha a maneira com que um determinado regime de poder teria
produzido um acontecimento maior, a saber, a transformaçã o disciplinar da vida.
Foucault procurou mostrar como essa transformaçã o disciplinar da vida
foi o resultado da sobreposiçã o de vá rios discursos, como o discurso científico, o
jurídico-moral e o religioso. A este respeito, vimos como Foucault era sensível à
maneira com que os saberes científicos que fundamentam prá ticas disciplinares
nos levavam a “falar de sexo”. A fala ouvida pelas ciências da sexualidade nã o era
apenas quantificadora, ela também era exaustiva. Este era seu ponto central: a
ciência da sexualidade produzida no ocidente nos levou a falar de sexo de forma
tal a procurar, através desta fala, a linha de partilha entre o normal e o
patoló gico, a exaurir tal fala no interior de um sistema classificató rio capaz de
158
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1405
escutar cada fantasia, capaz de incitar confissõ es e, com isto, a nos levar a nos
inscrever no interior de uma gramá tica, escolher histó rias possíveis, controlando
assim toda produçã o possível de identidades.
Mas era importante a Foucault salientar como essa fala produzida pelo
discurso científico tinha uma genealogia. A genealogia da ciência da sexualidade
nos levaria diretamente à confissã o cristã , pois: “é nas culturas cristã s que a
sexualidade teria, pela primeira vez, sido ligada à uma codificaçã o abstrusa das
pulsõ es internas cujo deciframento exigiria toda uma “hermenêutica de si”. A
contribuiçã o essencial do cristianismo nã o residiria em uma codificaçã o dos atos
interditos e autorizados, mas no tipo de experiência de si que cada um é suposto
conhecer enquanto ser eró tico”159. Nesta experiência de si que cada um é suposto
conhecer como ser eró tico, habitaria o verdadeiro cerne da normatividade moral
nascida na confissã o. Pois confessar nã o é apenas submeter-se à quele que me
escuta, vincular-me e instituir um poder à quele que acolhe minha fala. Confessar
é constituir uma forma de verdade nascida da submissã o de si à codificaçã o
exaustiva de seus atos, pensamentos, fantasias, afetos. Pois só há confissã o se eu
confessar tudo, transformar cada dobra da alma em discurso, exaurir o si mesmo
no interior da fala. Admitir a centralidade da confissã o é admitir que tudo é feito
para ser falado e descrito discursivamente em uma fala que nã o procura a
criaçã o poética de si, mas a exaustã o de si em uma linguagem que acumula os
acontecimentos, que os submete ao mesmo regime discursivo desafetado. Pois
uma confissã o que seria fala do gozo nã o seria uma confissã o. Ela seria
simplesmente gozo. Uma confissã o precisa submeter a linguagem à escrita da
culpa. Ela precisa ter a natureza jurídica do tribunal que ouve o culpado a fim de
encontrar a verdade. Assim, é através da imposiçã o de um regime de fala, mais
do que através do obrigaçã o diante de um conjunto de regras de conduta, que
constituímos sujeitos morais. E se assim for, entã o nã o seria possível dissociar
ciência e moral, ciência como uma forma de intervir socialmente a fim de, através
da imposiçã o de um modo de falar a verdade, constituir sujeitos morais.
Por isto, se Foucault se voltava contra a “hipó tese repressiva”, que vincula
a força política da sexualidade à revolta contra a repressã o à pretensa
naturalidade de nossa “energia libidinal”, era por perceber como nenhuma
sociedade falou tanto de sexo quanto a nossa. Mais do que sociedades
repressivas, as nossas foram sociedades marcadas por uma peculiar incitaçã o à
constituiçã o do sexo como discurso. Pois nesta vontade de falar, ou antes, nesta
vontade de saber tudo sobre sexo, encontrá vamos a incitaçã o a acreditar que
falar sobre sexo seria a condiçã o para nossa liberaçã o e emancipaçã o. Nada mais
falso, dirá Foucault.
Mas ficamos aqui com uma questã o maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar
que sentimos no interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos
tornamos? De onde vem o mal-estar com este regime de fala que constitui nossa
sexualidade, assim como a esperança de outra forma de relaçã o entre discurso,
verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao desvelamento desses:
“momentos nos quais nossas identificaçõ es parecem de uma contingência e de
uma violência das quais nã o tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais nã o se
trata mais de nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direçã o a
159
RAJCHMAN, John; Érotique de la vérité, p. 116
uma identidade nova e imprová vel”160. Ou seja, se há crítica social, para Foucault,
é porque nossas identidades aparecem, em certos momentos, como dotadas de
uma violência da qual nã o tínhamos consciência. Mas por que elas aparecem
assim?
Como nã o podemos fazer apelo a algum substrato natural que resistiria à
sua codificaçã o integral pela administraçã o dos corpos e regulaçã o das
populaçõ es (saída feita, por exemplo, por Deleuze ao falar de um corpo sem
ó rgã os, por Freud ao falar de um corpo pulsional, por Bataille ao trazer a biologia
para fundamentar sua teoria do dispêndio e da parte maldita, entre tantos
outros), como Foucault também nã o quer apelar a uma fundamentaçã o
ontoló gica para o mal-estar que sentimos na vida social presente (fazendo, por
exemplo, uma ontologia do ser em chave heideggeriana), entã o só podemos
encontrar o fundamento da crítica social na histó ria. Nem ontologia, nem
reflexã o sobre a natureza, mas o recurso a uma dimensã o materialista
propriamente histó rica.
Aqui, a estratégia se complexifica. Pois, para tanto, faz-se necessá rio ser
possível mostrar como podemos ter acesso a experiências histó ricas outras do
que as nossas. Ter acesso nã o apenas no sentido de saber de sua existência,
desvelar a prova documental da ocorrência, mas de compreender seu sentido e
permitir que a partilha deste sentido tenha a força transformadora capaz de
reconfigurar nossas experiências presentes. Foucault nã o aceita uma orientaçã o
teleoló gica e finalista para sua reflexã o histó rica, como se estivéssemos no
interior de uma marcha do progresso em direçã o a um telos. Por isto, ele precisa
explicar como poderíamos recorrer à histó ria para reorientar o presente. Neste
sentido, nã o basta saber que outras épocas produziram outros modos de relaçã o
a si através do desejo, nã o basta construir aquilo que Foucault chamou um dia de
“histó ria do homem do desejo”. Maneira de falar de uma histó ria das técnicas de
si, técnicas através das quais, através de formas de auto-governo e de cuidado de
si, nos transformamos em sujeitos reconhecidos.
Se esta histó ria quer servir de fundamento para a crítica do presente,
Foucault precisa mostrar como seu sentido nos é acessível, como o uso dos
prazeres que determina a especificidade de momentos perdidos dessa histó ria
encontra lugar como potencialidade latente do presente. Seguindo uma
estratégia que nã o deixa de nos remeter a Bataille, Foucault distinguirá a
sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas. No
entanto, tal erotismo encontrará seu paradigma nas modalidades de usos dos
prazeres nas sociedades grega e romana. Mas para transformar tal erotismo em
fundamento para a crítica da estrutura disciplinar da sexualidade dos modernos
é necessá rio que algo de sua ló gica esteja, de uma maneira ou de outra, presente
entre nó s.

Baudelaire e os gregos

Em outras ocasiõ es, eu dissera a vocês que o conceito foucaultiano de “era


histó rica” baseava-se no primado de epistemes que definiam o padrã o geral de
racionalidade dos discursos científicos de uma época. Assim, por exemplo, a
modernidade baseava-se no primado de uma episteme específica caracterizada,
entre outras coisas, pelo pensar representativo e pela duplicaçã o empírico-
160
RACHJMAN, John; op. cit., p. 22
transcendental do sujeito, pela constituiçã o de um conjunto de saberes que
tomam o que condiciona o homem (na dimensã o do trabalho, do desejo e da
linguagem) como objeto da ciência. Nã o há época que nã o seja polarizada pela
tensã o entre discursos que se submetem à episteme hegemô nica e aqueles que a
ela nã o se submetem. Esta é apenas a aplicaçã o de uma ideia importante de
Foucault a respeito do fenô meno do poder, a saber:

Se nã o houvesse resistência, nã o haveria relaçõ es de poder. Pois tudo


seria simplesmente uma questã o de obediência. Desde o momento em que
o indivíduo está em situaçã o de nã o fazer o que ele quer, ele deve utilizar
relaçõ es de poder. A resistência vem pois em primeiro, e ela permanece
superior a todas as forças do processo, ela obriga, sob seu efeito, à
mudança nas relaçõ es de força. Considero pois o termo “resistência” como
a palavra mais importante, a palavra-chave dessa dinâ mica161.

Esta resistência que aparece no nível individual, aparece também no nível


estrutural da circulaçã o e produçã o de discursos. Por isto, insisti com vocês que a
episteme moderna fora sempre acompanhada de uma espécie de contra-
episteme, um contra discurso no interior do qual se aloja aquilo que terá força
crítica em relaçã o a estrutura de saberes e experiências do presente. No caso da
modernidade, tal contra episteme seria representada pela literatura. Neste
sentido, a literatura aparece como a latência de possibilidades de pensamento e
forma de vida que nã o encontram lugar no interior dos regimes de saberes e
poderes pró prios à nossa época.
Desta forma, para a estratégia historicista de Foucault funcionar, é
necessá rio que experiências histó ricas identificadas como portadoras de força
crítica em relaçã o ao presente estejam, à sua maneira, ainda em estado de
reverberaçã o no interior do paradigma literá rio modernista. Pois se a literatura é
a contra episteme fundamental da era moderna, entã o toda experiência crítica da
modernidade deverá , à sua maneira, encontrar seu modelo nas produçõ es
literá rias. E isto Foucault fará através de uma reflexã o sobre o conceito
baudeleriano de “modernidade”.
Baudelaire procurou definir a modernidade como experiência estética
que levava ao extremo a quebra da regularidade das formas e da hierarquia
valorativa das figuras poéticas. Seu recurso temá tico ao que era baixo, mal,
deteriorado, prosaico, pode ser compreendido como início da estratégia
modernista de ir em direçã o ao que foi excluído e recalcado devido ao advento da
universalidade das regras canô nicas de estilo. Ele vai em direçã o ao que era
desprovido de estilo, da mesma forma como décadas mais tarde os
expressionistas abandonarã o toda expressã o subjetiva codificada em regras de
estilo. No entanto, seu uso profundo da ironia faz desse recurso uma estilizaçã o
pensada, expressã o de uma violência controlada que permite ao poema
conservar a dimensã o da aparência, sem com isto abandonar sua singularidade.
Esta experiência estética de Baudelaire nã o é, no entanto, restrita apenas
à dimensã o do poema. O que de fato interessa a Foucault é a maneira com que
Baudelaire vincula tal experiência a uma certa estilizaçã o de si, a definiçã o dos
regimes de uma forma possível de vida. Por isto, o que realmente lhe interessa
sã o as defesas baudelerianas do dandismo, que o filó sofo francês compreende
161
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits, p. 1560
como uma forma possível de desdobramento das expectativas modernas de
autonomia, mas que nã o passa pela compreensã o da autonomia a partir da
internalizaçã o da forma jurídica da lei pela consciência moral. O dandismo
permite compreender a vida como um trabalho singular sobre si a partir das leis
de uma estética. Um ascetismo (no sentido de ascese que nos submete a uma
prova) que faz do corpo, do comportamento, dos sentimentos e paixõ es uma
obra de arte. Daí porque:

O homem moderno nã o é aquele que parte a descoberta de si mesmo, de


seus segredos e de sua verdade escondida; ele é esse que procura
inventar-se a si mesmo. Essa modernidade nã o libera o homem em seu
ser pró prio; ela o restringe à tarefa de elaborar a si162.

Neste ponto, a modernidade nã o aparece como tempo de um sujeito que


só pode relacionar-se a si através de uma verdade interior a ser extraída por uma
vontade de saber que se aloja no interior de discursos científicos que
posteriormente prescreverã o prá ticas disciplinares. Vontade de descoberta, de
revelaçã o de segredos e de verdades escondidas. Nas mã os da experiência
disruptiva da vanguarda literá ria, ela aparece como trabalho consciente de
elaboraçã o de si através da sensibilidade estilística pró pria a uma estética da
existência. Algo muito diferente da compreensã o da moral moderna como a
submissã o de si à forma geral da lei como condiçã o para a fundamentaçã o da
autonomia.
Tal questã o é de suma importâ ncia para Foucault, principalmente se
levarmos em conta afirmaçõ es como: “Nã o há outro ponto, primeiro e ú ltimo, de
resistência ao poder político do que a relaçã o de si a si” 163. Ou seja, a invençã o de
novas formas de relaçã o de si a si é a condiçã o para toda resistência ao poder
político. Neste sentido, o passo inusitado de Foucault consistirá em dizer que a
experiência da modernidade estética foi capaz de produzir uma forma de relaçã o
de si a si, forma de estilizaçã o da existência capaz de reverberar uma experiência
histó rica que lhe é aparentemente estranha, a saber, a estética da existência dos
gregos. Do ponto de vista estratégico, há uma peculiar linha de continuidade
entre modernidade literá ria e moralidade greco-romana.
Ou seja, faltava a Foucault um paradigma capaz de expor como absorver
as experiências disruptivas do modernismo em um quadro mais amplo de
reorientaçã o de processos de racionalizaçã o social. Por mais inusitado que isto
possa parecer, tal paradigma será sintetizado através deste retorno aos gregos.
Assim, quando Foucault recorre novamente a Baudelaire em O que é o
esclarecimento? , isto a fim de demonstrar como a saída da minoridade pró pria
ao projeto moderno era indissociá vel de uma reconstruçã o de si, crítica
permanente de nosso ser histó rico que nos permitiria afirmar: “Ser moderno nã o
é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo de momentos que passam, é tomar si
mesmo como objeto de uma elaboraçã o complexa e dura” 164, vemos o ú ltimo laço
de uma alta-costura entre estética da existência dos gregos e vanguarda
modernista.

162
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 1390
163
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
164
FOUCAULT. Michel ; Dits et écrits II, Paris : Gallimad, 2001, p. 1389
Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade
histó ria da experiência grega referente a relaçã o dos sujeitos aos prazeres. Trata-
se de:

uma maneira de viver cujo valor moral nã o está vinculado à sua


conformidade a um có digo de comportamento, nem à um trabalho de
purificaçã o, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuiçã o que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos165.

Ou seja, os gregos desconhecem a determinaçã o das condutas através de có digos


gerais que definem a norma dos atos, descrevendo exaustivamente o proibido e o
permitido, como se toda a criaçã o no campo dos prazeres estivesse esgotada e
normatizada. Por isto, ao invés de interdiçõ es e tabus, a moral dos gregos se
preocupa com as intensidades e com a maneira de definir os melhores
momentos, circunstâ ncias, idades para o uso dos prazeres. Mesmo as prá ticas de
abstinência nã o sã o justificadas a partir da desqualificaçã o dos prazeres, mas
como um exercício, uma prá tica de fortalecimento de si.
O que há de estético nesta maneira de pensar o uso dos prazeres é o tratar
a vida como uma obra que se submete nã o apenas a valores estéticos, como
“harmonia”, “equilíbrio” e “simetria”, mas também e principalmente a critérios
estéticos de produçã o, como a idéia de que a açã o nã o é expressã o imediata de si,
mas relaçã o agonística e singular com materiais (impulsos, inclinaçõ es) que
devem ser dominados, devem ser conformados sem serem totalmente negados.
Esta idéia da singularidade dos modos de relaçã o a impulsos e inclinaçõ es é o que
aproxima tais prá ticas de uma estilística individualizadora ligada ao cá lculo do
momento, da situaçã o, do contexto e a afastam da normatividade do direito. É
neste ponto que Foucault pode agir como quem aproxima moralidade greco-
romana e estilística de si presente no dandi moderno.
Tal estética greco-romana de si nos explica porque a virtude principal no
uso dos prazeres é a temperança. A imoralidade nos prazeres do sexo nã o é
ligada a objetos proibidos ou a prá ticas sexuais impossíveis. Ela é sempre da
ordem do exagero, do excesso e da passividade. Pois a atividade sexual: “porta
em si uma força, uma energeia que é, por ela mesma, dirigida ao excesso (...) a
questã o moral consistirá em saber como afrontar tal força, como dominá -la
assegurando uma economia conveniente”166. O sexo é o mais violento de todos os
prazeres, mais custoso do que a maioria das atividades físicas e sempre
referindo-se ao jogo da vida e da morte. No ato sexual, o sujeito pode ser levado
passivamente pelos mecanismos do corpo e pelos movimentos da alma. De onde
se segue a necessidade dele restabelecer seu domínio, exercendo sobre os
prazeres: “um domínio suficientemente completo para nã o se deixar nunca levar-
se pela violência”167 do desejo. Por isto, o sexo é o lugar privilegiado para a
formaçã o ética do sujeito.
A insistência neste tó pico é compreensível se lembrarmos como, para os
gregos, a liberdade estará profundamente associada ao domínio que os
indivíduos serã o capazes de exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a

165
FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
166
Idem, p. 69
167
Idem, p. 93
temperança aparece como modo de elaboraçã o a si em direçã o à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construçã o
misó gina clá ssica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, nã o é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relaçã o aos prazeres”168. Neste
sentido, a verdade na relaçã o ao sexo nã o é uma questã o de conhecimento, de
classificaçã o exaustiva e de descriçã o minuciosa, mas de instauraçã o do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada nã o
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”169.
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania. Ele é
designado por Foucault “soberania de si”. Tal soberania de si forneceria um
horizonte de regulaçã o moral do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo
sem desejo e sem transtorno (trouble)” 170. Soberania que nos livra do fantasma
do excesso, que permite o aparecimento da liberdade como regulaçã o singular
dos corpos sem transtornos, que é intensificaçã o do cuidado a si. A força política
deste processo se encontra em uma aposta nas possibilidade de singularizaçã o.
Ele nos permitira, por exemplo, abandonar o discurso da sexualidade, deixar de
ter uma sexualidade fortemente identitá ria regulada entre o normal e o
patoló gico, para praticar um erotismo sem identidades previamente definidas,
preocupado apenas em agenciar o jogo de forças que nos configura, retirando
sua violência. O que nã o poderia ser diferente para alguém, como Foucault, para
quem as relaçõ es de poder nunca foram exatamente o problemas, mas sim a
degradaçã o do poder em formas de coerçã o.
Mas o que devemos entender por “soberania” neste contexto? Notemos
inicialmente como, expulsa da condiçã o de qualidade de quem detém o poder do
Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade que pode ser exercida por
todo sujeito em emancipaçã o. Tal soberania é pensada, inicialmente, como
capacidade de limitaçã o dos mecanismos do biopoder e de abertura a um espaço
renovado de trabalho sobre si a partir da criaçã o autô noma de novas normas
possíveis.
Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensã o desse projeto. Pois tal espaço pede a
reconstruçã o de um conceito de indivíduo que, em vá rios pontos, recupera temas
da individualidade liberal. O quanto estaríamos diante de um conceito de
autonomia vinculado à individualidade liberal, eis uma questã o que gostaria de
deixar em aberto.
Neste sentido, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histó rico no qual sua ideia de soberania aparece. As
transformaçõ es políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensã o individual:

No espaço político no qual a estrutura política da cidade e as leis à s quais


ela se dotou certamente perderam sua importâ ncia, ainda que elas nã o
tenham desaparecido, e no qual os elementos decisivos estã o cada vez

168
Idem, p. 116
169
Idem, p. 29
170
Idem, p. 94
mais nas mã os dos homens, em suas decisõ es, na maneira com que eles
desempenha sua autoridade, na sabedoria que eles manifestam no jogo
de equilíbrios e transaçõ es, aparece que a arte de se governar advém um
fator político determinante171.

Ou seja, o colapso da noçã o de “poder comum” aparece enquanto


condiçã o para a definiçã o da soberania como governo de si. O que poderia
parecer como uma saída de compressã o do laço social a partir de uma
perspectiva individualista. Dada a impossibilidade de um espaço comum geral,
resta-nos a estilizaçã o de dimensõ es relacionais restritas. Isto talvez nos
explique porque tal conceito de soberania é construído como resistência a toda e
qualquer forma de poder estatal. Pois o poder estatal é o melhor exemplo de um
“governo por individualizaçã o”. Daí uma afirmaçã o como:

Nã o creio que devamos considerar o “Estado moderno” como uma


entidade que se desenvolveu a despeito dos indivíduos, ignorando quem
eles sã o e até suas existências, mas ao contrá rio como uma estrutura
muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados a uma
condiçã o: que forneçamos a essa individualidade em forma nova que a
submetamos a um conjunto de mecanismos específicos172.

Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de


individualizaçã o, com formas e mecanismos específicos juridicamente
totalizados, nã o haveria outra tarefa política do que “nos liberar do Estado e do
tipo de individualizaçã o que a ele se vincula”173 a fim de promover novas formas
de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito relacional que permitiria a
todos os tipos possíveis de relaçã o existirem e nã o serem impedidos, bloqueados
ou anulados por instituiçõ es relacionais empobrecedoras”174.
Tal criatividade é compreendida por Foucault a partir da temá tica do
redimensionamento do espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de
nossa identidade estatal, poderíamos nos abrir à construçã o contínua de novos
espaços de prazeres. A este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar nã o
exatamente à liberaçã o de nossos desejos, mas a permitir que nó s mesmos
sejamos infinitamente mais suscetíveis aos prazeres”175. No entanto, nã o fica
claro com lidaremos com os limites no reconhecimento de tais prazeres se o
dimensã o da relaçã o a um espaço comum geral institucionalmente garantido
entrou em colapso. Quem garantirá o reconhecimento de minha soberania de si
se nã o há mais remissã o necessá ria a um espaço político geral?
Por outro lado, há ainda um problema com a ideia do sujeito dos
“prazeres”. Um sujeito capaz de trabalhar a si mesmo tendo em vista a produçã o
de prazeres sempre novos nã o seria a versã o contemporâ nea do indivíduo que
sabe calcular conscientemente prazeres e se afastar dos desprazeres, extrair o
má ximo de prazeres de si, como se ele fosse “proprietá rio de si mesmo”, potestas
sui, o que nã o está realmente longe da definiçã o lockeana do indivíduo como
“proprietá rio de sua pró pria pessoa”? Esta relaçã o de proprietá rio de si pode, de
171
FOUCAULT, Histoire de la séxualité III, p. 123
172
Idem, Dits et écrits II, p. 1049
173
Idem, p. 1051
174
Idem, p. 1129
175
Idem, Dits et écrits II, p. 984
fato, aparecer como uma forma de emancipaçã o social ou ela seria uma forma
insidiosa de perpetuar as ilusõ es de um tipo inusitado de sujeito da consciência?
Pois seria interessante pensar esta recuperaçã o foucaultiana dos prazeres à luz
da distinçã o lacaniana entre prazer e gozo. Nã o seria o soberano de si
foucaultiano alguém capaz de reduzir a dimensã o radicalmente heterô nima do
gozo a fim de instrumentalizá -la na forma de prazeres nos quais
conscientemente trabalho e disponho como um proprietá rio de mim mesmo no
melhor estilo liberal? Estas sã o algumas questõ es que gostaria de deixar para
vocês.
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 10

Depois de um longo período de suspensã o, podemos enfim terminar nosso curso


através da apresentaçã o do pensamento da filó sofa norte-americana Judith
Butler e de sua maneira de desenvolver as implicaçõ es políticas da reconstruçã o
do conceito de “gênero”. Nestas ú ltimas aulas, gostaria de apresentar a vocês
alguns aspectos importantes de sua experiência intelectual ainda pouco
conhecida entre nó s. Gostaria também de mostrar porque tal reconstruçã o do
conceito de gênero por ela proposta representa uma das operaçõ es mais
importantes da filosofia política contemporâ nea, seja por sua capacidade de
mobilizar debates intelectuais, seja por seu uso em contextos prá ticos de lutas
sociais.
Judith Butler é uma filó sofa norte-americana ainda em atividade. Nascida
em 1956, ela ganhou espaço por permitir uma inflexã o profunda dos debates
feministas em direçã o à crítica do uso político da noçã o de identidade social.
Assim, sai paulatinamente de cena visõ es essencialistas sobre a “condiçã o
feminina” ou sobre a naturalidade ou nã o de comportamentos sexuais, isto em
prol da tentativa de desconstruçã o da pró pria noçã o de gênero. Butler serve-se
de uma articulaçã o inusitada entre o chamado “pó s-estruturalismo” francês (em
especial Foucault e Derrida), psicaná lise e hegelianismo a fim de mostrar como a
experiência de ter um gênero pode nã o ser compreendida como de maneira
identitá ria.
De fato, o conceito de gênero ganhou importâ ncia decisiva nas ú ltimas
décadas devido à maneira que ele nos permite compreender as relaçõ es entre
sexo, identidade e política. No entanto, nada disto estava presente quando o
conceito apareceu no campo clínico pela primeira vez, através das mã os do
psiquiatra Robert Stoller em um livro de 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele,
Stoller procurava descrever os processos de construçã o de identidades de
gênero através da articulaçã o entre processos sociais, nomeaçã o familiar e
questõ es bioló gicas. Tratava-se de insistir na dinâ mica pró pria da formaçã o das
identidades sexuais, para além de seu vínculo estrito à diferença anatô mica de
sexo.
Neste sentido, o uso proposto por Judith Butler é particular.
Diferentemente da noçã o foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um
conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria
da açã o política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam
com normas, subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas
formas. Nã o se trata de entender apenas como sujeitos sã o sujeitados à s normas
e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mã os de Butler, a teoria de
gênero nã o será apenas uma teoria da produçã o de identidades. Ela será uma
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que nã o
se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um gênero
é um “modo de ser despossuido”176, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz
no outro. Daí uma afirmaçã o como:

176
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao
ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos177.

Notem como tal colocaçã o nã o está muito distante de afirmaçõ es que


vimos anteriormente presente nos textos de Georges Bataille. Lembremo-nos,
por exemplo, de afirmaçõ es como:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o pró prio ser se coloca


em questã o, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde
objetivamente, mas entã o o sujeito se identifica com o objeto que se
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco 178.

Tanto em Bataille quanto em Butler sexo aparece como o nome de um


evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que
desarticula as estruturas identitá rias da primeira pessoa do singular. Isto porque
ele parece nos colocar em relaçã o com aquilo que nã o se deixa determinar no
interior das normatividades que definem a figura atual do homem. Sexo como o
que nos empurra em direçã o a estas conformaçõ es ainda nã o reconhecidas do
desejo, ainda nã o humanas. Por isto, há sempre algo de recuperaçã o do que era
visto como patoló gico, doentio e, por isto, sem direito à existência, ou ainda,
como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificaçã o da
sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de gênero foi um
acontecimento de forte ressonâ ncia filosó fica, pois nos colocaria diante da
compreensã o de como nossa humanidade depende do reconhecimento de
alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano e,
muitas vezes, do abjeto.
O pró prio uso do termo “queer” é bastante sintomá tico deste embate. O
termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é “estranho”,
“excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada
como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com
comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final dos
anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no
interior de um processo de ressignificaçã o no qual o significado pejorativo de
uma palavra é desativado através de sua afirmaçã o por aqueles a quem ela seria
endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversã o, algumas teó ricas de
gênero viram nesta operaçã o uma oportunidade para descrever um outro
momento das lutar por reconhecimento nã o mais centradas na defesa de alguma
identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produçã o do
sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana
Teresa de Laurentis.

Começar pelo desejo em Hegel

177
Idem, p. 25
178
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 55
Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de
doutorado, Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua
recepçã o no pensamento francês contemporâ neo (em especial, em Sartre, Lacan,
Foucault e Deleuze). No entanto, é com seu segundo livro, Problemas de gênero,
de 1990, que ela aparecerá como um teó rica inovadora à procura de uma
compreensã o da subjetividade e da experiência sexual nã o mais marcada pelo
problema da produçã o de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o
“gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o
espaço privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na
normatividade pretensamente fornecida pela natureza.
Depois de Problemas de gênero, Butler publica vá rios livros nos quais
procura aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua
maneira de pensar problemas de gênero, como o papel da materialidade dos
corpos, o impacto psíquico das normas sociais, a natureza da experiência moral,
entre outros. Sã o exemplos deste movimento de seu pensamento livros como:
Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993), Excitable speechs: a politics
of the performative (1995), The psychic life of power: theories of subjection (1995)
e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between life and
death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemá tica a respeito
de questõ es política nã o diretamente relacionadas a lutas ligadas à s minorias
sexuais, mas a problemas ligados à modalidades de exclusã o e de precarizaçã o da
existência. Sã o livros nã o ligados diretamente à questõ es de gênero, mas a teoria
política, como: Precarious life: the powers of mourning and violence (2004), Giving
an account of oneself (2005) e o ú ltimo, sobre a questã o judaico-palestina:
Parting ways: jewishness and the critique of zionism (2012).
O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta
trajetó ria, permitindo com isto uma compreensã o mais articulada de sua
maneira peculiar de extrair consequências políticas das discussõ es sobre
identidade de gênero. Para tanto, precisamos voltar à sua tese de doutorado
sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas leva a sério
colocaçõ es da pró pria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos
permanecem no interior da ó rbita de um certo conjunto de questõ es hegelianas:
o que é a relaçã o entre desejo e reconhecimento e como a constituiçã o do sujeito
implica uma relaçã o radical e constitutiva à alteridade?”179.
Butler começa por lembrar que há uma “visã o filosó fica” do desejo que
procura nos fazer acreditar que a reflexã o sobre a vida desejante deveria nos
levar, necessariamente, a um paradigma de reconciliaçã o no interior do qual
encontraríamos a integraçã o psíquica entre razã o e afetos. Esta reconciliaçã o, no
entanto, nã o estaria presente em Hegel, pois em seu caso o desejo apareceria
exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado” 180 por
ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de
identidade e lugar”181. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma
fratura que faz do meu ser o espaço de um questionamento contínuo a respeito
do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um questionamento que faz
de meu ser um modo contínuo de interpelaçã o ao outro, já que nã o há desejo sem
que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem de si a

179
BUTLER, Judith; Subjects of desire, p. XX
180
Idem, p. 7
181
Idem, p. 9
partir da internalizaçã o do olhar de um Outro elevado à condiçã o de ideal. Todo
desejo pressupõ e um campo partilhado de significaçã o no qual o agir se inscreve.
Pois todo desejo pressupõ e destinatá rios, é desejo feito para um Outro e inscrito
em um campo que nã o é só meu, mas é também campo de um Outro. Assim,
perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir do desejo é partir necessariamente
do sujeito como um entidade relacional para a qual, como disse Butler, há “uma
relaçã o radical e constitutiva à alteridade”.
Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretaçã o que visa radicalizar a
experiência de negatividade pró pria a seu conceito de desejo. Para compreender
o que significa tal negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma
longa tradiçã o que remonta a Platã o e compreende o desejo como manifestaçã o
da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá , ao falar
sobre o desejo, Hegel afirma:

O sujeito intui no objeto sua pró pria falta (Mangel), sua pró pria
unilateralidade – ele vê no objeto algo que pertence à sua pró pria essência
e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta
contradiçã o por nã o ser um ser, mas uma atividade absoluta182.

A colocaçã o nã o poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pô r como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto)
é uma contradiçã o que a consciência pode suprimir por nã o ser exatamente um
ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexã o que assimila o objeto
a si. Esta experiência da falta é tã o central para Hegel que ele chegar a definir a
especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta,
em sentir esta excitaçã o (Erregung) que o leva à necessidade do movimento;
assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar
(ertragen) a contradiçã o de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por
um desejo que coloca a essência do sujeito no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:

O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfaçã o do desejo sã o


condicionados pelo objeto, pois a satisfaçã o ocorre através do suprimir
desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-
de-si nã o pode assim suprimir o objeto através de sua relaçã o negativa
para com ele, pois essa relaçã o antes reproduz o objeto, assim como o
desejo183.

A contradiçã o encontra-se aqui na seguinte operaçã o: o desejo nã o é


apenas uma funçã o intencional ligada à satisfaçã o da necessidade animal, como
se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operaçã o de

182
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427
183
Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124
auto-posiçã o da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no
objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfaçã o.
Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque,
devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da consciência,
modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de
“negatividade” e que insiste que as determinaçõ es estã o sempre em falta em
relaçã o ao ser.
Desta forma, nã o haverá objeto natural algum capaz de realizar a
satisfaçã o da negatividade pró pria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante
procura no Outro nã o algo como a reiteraçã o de seu sistema de interesses e
necessidades. Ela procura no Outro o reconhecimento da natureza negativa e
indeterminada de seu pró prio desejo. É tendo tal esquema em mente que Butler
poderá quebrar a natureza essencialista da noçã o de gênero (em suas versõ es
ontoló gicas, políticas ou metodoló gicas) defendida entã o por certas correntes
feministas.

A produtividade das normas

Três anos depois da publicaçã o de sua tese, Butler apresente este que será
seu trabalho mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da
identidade. O livro apresentava uma discussã o inovadora sobre a noçã o de
gênero servindo-se, em larga medida, de apropriaçõ es da teoria do poder de
Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da tentativa em dissociar sexo
e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-Strauss e Lacan)
como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal de
funcionamento da vida social, para ao final abrir certas consideraçõ es sobre as
potencialidades política de uma noçã o de gênero que subverta a identidade.
Maneira de mostrar como um política feminista nã o precisa adentrar na
reificaçã o ilusó ria do gênero e da identidade.
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na
tentativa de fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades
sexuais nã o devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura
biná ria de sexos. Trata-se, ao contrá rio, de tentar escapar da pró pria noçã o de
representaçã o através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta
a possibilidade de realizaçã o de atos subjetivos capazes de fragilizar o cará ter
reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as
interdiçõ es postas pelo sistema biná rio de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posiçã o que procura levar à s ú ltimas
conseqü ências a distinçã o entre sexo (configuraçã o determinada biologicamente)
e gênero (construçã o culturalmente determinada). No seu caso, nã o se trata de
fornecer uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre natureza e cultura, até
porque gênero, segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual
‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual
a cultura age”184. Esta suspeita profunda em relaçã o à dimensã o do pré-
discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma
naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.

184
BUTLER, Gender trouble, p. 11
Partindo deste ponto, uma noçã o de gênero como ante-câ mara de
produçã o da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
cará ter ideoló gico da noçã o biná ria de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposiçã o de um sistema biná rio de gênero depende da crença em uma
relaçã o mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”185. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “mú ltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”186.
Voltemos por um momento à noçã o de sexualidade em Foucault, pois é ela
que opera na crítica de Butler à pressuposiçã o mimética entre gênero e sexo.
Vimos como Foucault insistia que as relaçõ es de poder nunca poderiam ser
compreendidas como meramente opressivas. Elas sã o inicialmente produtivas,
ou seja, elas produzem os sujeitos nos quais o poder age. Mas para aceitar que há
uma natureza produtiva do poder, faz-se necessá rio também aceitar que nem
todas as formas de dominaçã o sã o formas de opressã o. Esta é um perspectiva
que Butler partilha com Foucault.
Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da
noçã o foucaultiana de poder:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a


multiplicidade de relaçõ es de força que sã o imanentes ao domínio no qual
elas se exercem, e que sã o constitutivas de sua organizaçã o; o jogo que
pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem;
os apoios que tais relaçõ es de força encontram umas nas outras de
maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrá rio, as defasagens, as
contradiçõ es que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais
elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalizaçã o institucional
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulaçã o da lei, na hegemonia
social187.

Esta ideia de poder nã o toma como base as representaçõ es jurídicas do


poder soberano. Ela é onipresente nã o porque ela tudo engloba em uma unidade,
mas porque ela vem de todos os lugares. Ela nã o depende de uma
intencionalidade consciente para funcionar, ela nã o resulta de decisõ es e
escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fá cil perceber
também que a noçã o mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O
pró prio poder só pode existir em funçã o de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um
movimento que está , a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a
produzir outras dinâ micas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no
limite pudessem garantir sua eficá cia. Como se estivéssemos diante de : “um
campo mú ltiplo e mó vel de relaçõ es de força no qual se produzem efeitos globais
de dominaçã o, mas jamais totalmente está veis”188.
Notem que esta resistência nã o precisa vir de fora das relaçõ es de poder
como, por exemplo, de um corpo insubmisso, de uma libido selvagem, de uma

185
idem, p. 10
186
Idem, p. 22
187
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité I, p. 122
188
Idem, p. 135
sexualidade nã o-controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do
pró prio poder, isto no sentido de vir da heterogeneidade dos jogos de força, com
suas direçõ es mú ltiplas. Ou seja, quebrada a ideia de um poder que age de
maneira unitá ria e ordenada, mas que produz efeitos inesperados, situaçõ es nã o
completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o
poder age. De certa forma, ele age sobre suas pró prias camadas.
Isto talvez explique porque gênero nã o deve ser compreendido como uma
identidade está vel. Assegurar algo em sua significaçã o nã o é resultado de um
gesto fundador, de uma espécie de batismo originá rio para todo o sempre. Antes,
trata-se de um processo continuo de repetiçõ es que, ao mesmo tempo, anula a si
mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas
regras. Sendo assim, assumir um gênero nã o é algo que, uma vez feito, estabiliza-
se. Ao contrá rio, estamos diante de uma inscriçã o que deve ser continuamente
repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de
produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que:
“A injunçã o de ser um gênero dado produz necessariamente fracassos, uma
variedade de configuraçõ es incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e
desafia a injunçã o que as gerou”189.

Repetir de forma paródica

Mas se significaçõ es sã o produzidas através da repetiçã o, entã o um


repetiçã o que nã o fosse simplesmente mimética poderia deslocar os efeitos do
poder. Neste ponto, encontramos a preocupaçã o claramente política da teoria de
Butler. Sem fazer apelo a uma espécie de histó ria subterrâ nea do cuidado de si,
tal como vimos em Foucault, histó ria que conservou aspectos da relaçã o a si que
nos remeteria aos gregos, Butler procura pensar modalidades de repetiçã o das
normas que produzam tais efeitos de deslocamento. Em Problemas de gênero, é a
paró dia que parece ter tal funçã o.
O que nos interessa aqui é a anatomia desta crítica. Pois ela nã o deve levar
à naturalizaçã o de outras categorias identitá rias, mas à posiçã o de identidades
sexuais que sejam a pró pria encarnaçã o da desestruturaçã o da noçã o de
representaçã o, identidades que seriam a apresentaçã o da desestabilizaçã o das
identidades. Daí porque esta crítica das categorias identitá rias seria
performativamente implantada através, por exemplo, de prá ticas paró dicas de
gênero, como aquelas levadas a cabo por drag-queens e as prá ticas de cross-
dressing. Pois ao operar uma "dupla inversã o" que consistiria em embaralhar as
distinçõ es essência/aparência para afirmar, ao mesmo tempo: "minha aparência
exterior é feminina, mas minha essência interior (o corpo) é masculina" e "minha
aparência exterior é masculina (meu corpo), mas minha essência interior é
feminina", as drags fariam uma espécie de "crítica da reificaçã o dos gêneros".
Butler poderá afirmar assim que elas revelariam: "estes aspectos da experiência
de gênero que sã o falsamente naturalizados como uma unidade através da ficçã o
regulató ria da coerência heterossexual"190. Crítica paró dica que, por inaugurar
um deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura a
processos de ressignificaçã o capazes de se disseminarem na malha social.

189
BUTLER, Judith; Gender trouble, p. 185
190
idem, p. 175
Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença ontoló gica
entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada aqui à
condiçã o de simulacro que desorienta a pró pria noçã o de identidade e
representaçã o fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e nã o se adequar à
diferença sexual e aos modos de sexuaçã o tais como seriam postos pela Lei.
Assim, tudo se passa aqui como se:

Ao agir (performing) e ao chamar a atençã o para a estrutura do gênero


como performance, nó s pudéssemos ser liberados de uma política
dogmá tica ou de uma política que aspira saber o real de maneira segura.
Nã o podemos escapar do sistema de identidade ou da ilusã o de que há um
sujeito que fala. Mas podemos agir, repetir ou parodiar todos estes gestos
que criam um sujeito191.

De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao definir


performatividade como uma estrutura de citaçã o e repetiçã o contínua de
determinaçõ es normativas, de um conjunto a priori de prá ticas, Butler insiste
que a necessidade da repetiçã o indica como o processo de determinaçã o é
sempre frá gil. Prá ticas de subversã o seriam capazes de expor o estatuto reificado
do quadro heterossexual que sustenta prá ticas de gênero. No entanto, ela é a
primeira a reconhecer que: “nã o há garantia de que a exposiçã o do cará ter
naturalizado da heterosexualidade nos levará a subversã o. A heterossexualidade
pode aumentar sua hegemonia através da desnaturalizaçã o, tal como vemos
paró dias desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem colocá -
las realmente em questã o”192. Isto nos deixa com a questã o de saber como
diferenciar críticas à reificaçã o que tenham força perlocucioná ria de outras que
nã o tem.
Em Problemas de gênero, Butler nã o abandona a crença na força
subversiva de uma citaçã o teatral das normas, citaçã o que mimetiza e toma de
maneira hiperbó lica a convençã o discursiva que ela subverte. No entanto, ela
desenvolve tal posiçã o de maneira astuta ao afirmar que este ato seria capaz, na
verdade, de alegorizar uma perda pró pria a todo processo de incorporaçã o da
norma e de regulaçã o das paixõ es; perda que produz: “o campo dos objetos
heterosexuais ao mesmo tempo que produz um domínio destes a respeito dos
quais seria impossível amar [por nã o se submeterem ao processo de constituiçã o
de objetos do amor heterosexual]. Assim, drag alegoriza a melancolia
heterossexual, melancolia através da qual um gênero masculino é formado
através da recusa em perder o masculino como possibilidade de amor, um
gênero feminino é formado (assumido) através da fantasia incorporativa através
da qual o feminino é excluído como possível objeto de amor” 193. Desta forma, as
prá ticas críticas poderiam expor a fraqueza da normatividade heterossexual
através da alegorizaçã o de sua melancolia. Como se uma certa recuperaçã o da
ironia melancólica tivesse a força de desarticular matrizes de socializaçã o e
modos de indexaçã o entre normas, modos de escolhas de objeto e determinaçõ es
identitá rias. Veremos melhor est e ponto na pró xima aula.

191
COLEBROOK, Irony, p. 125
192
BUTLER, Bodies that matter, New York; Routledge, 1993, p. 231
193
idem, p. 235
Aula 11
Erotismo, sexualidade e gênero

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussã o a respeito


do conceito de gênero, assim como a respeito das consequências políticas do
pensamento de Judith Butler. Na aula passada, vimos como a teoria de gênero de
Butler nã o era exatamente uma teoria da produçã o de identidades sociais. Ela é
uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo
que nã o se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um
gênero é um “modo de ser despossuido”194, de abrir o desejo para aquilo que me
desfaz no outro. Daí uma afirmaçã o como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos195.

Sexo como o que nos empurra em direçã o a estas conformaçõ es ainda nã o


reconhecidas do desejo, ainda nã o humanas. Por isto, há sempre algo de
recuperaçã o do que era visto como pato ló gico, doentio e, por isto, sem direito à
existência, ou ainda, como inumano, pois sem identidade fixa e definida.
Lembremos como o pró prio uso do termo “queer” é bastante sintomá tico
deste embate. O termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é
“estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a
ser usada como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos
com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final
dos anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no
interior de um processo de ressignificaçã o no qual o significado pejorativo de
uma palavra é desativado através de sua afirmaçã o por aqueles a quem ela seria
endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversã o, algumas teó ricas de
gênero viram nesta operaçã o uma oportunidade para descrever um outro
momento das lutar por reconhecimento nã o mais centradas na defesa de alguma
identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produçã o do
sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana
Teresa de Laurentis.
A fim de insistir na ausência de vínculos entre gênero e identidade, Butler
procura levar à s ú ltimas conseqü ências a distinçã o entre sexo (configuraçã o
determinada biologicamente) e gênero (construçã o culturalmente determinada).
No seu caso, nã o se trata de fornecer uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre
natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler. “é o aparato
discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o
produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma
194
BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19
195
Idem, p. 25
superfície politicamente neutra na qual a cultura age”196. Esta suspeita profunda
em relaçã o à dimensã o do pré-discursivo, do anterior ao advento da lei, leva
Butler a recusar toda ideia de uma naturalidade reprimida pelo advento das
normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noçã o de gênero como ante-câ mara de
produçã o da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o
cará ter ideoló gico da noçã o biná ria de gênero (masculino/feminino), já que: “A
pressuposiçã o de um sistema biná rio de gênero depende da crença em uma
relaçã o mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”197. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez,
ao gênero aparecer como o espaço de: “mú ltiplas convergências e divergências
sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”198.

O mito da identidade

No entanto, Butler precisa explicar como e porque é criada a ilusã o de que a vida
social deve se orientar por identidades está veis ou ainda, no caso da relaçã o
entre sexo e gênero, como e porque ocorre a reificaçã o de tomar por
normatividade natural aquilo que é produto de uma relaçã o social de poder.
Neste sentido, ela dirá :

A auto-justificaçã o de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma histó ria sobre como era antes do advento da lei e
o que aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e
necessá ria199.

Temos entã o inicialmente a ideia de que há uma dimensã o “repressiva” da


lei. Nã o sendo a lei uma operaçã o da normatividade social sobre uma matéria
naturalmente dada (corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressã o nã o
contra um princípio exterior ao poder. Ela age contra a pró pria dinâ mica interna
do poder, com seus jogos de força continuamente cambiantes. Como se uma
configuraçã o momentâ nea do poder se cristalizasse procurando se perpetuar.
Para tanto, faz-se necessá rio colocar em circulaçã o “uma histó ria sobre como era
antes do advento da lei”. Histó ria de informidade e caos. Como se fora da
configuraçã o atual da lei, só pudesse haver anomia e destruiçã o da vida. Ou seja,
só pode haver conformaçã o à configuraçã o atual da lei lá onde há a produçã o
contínua do medo.
Como um exemplo da maneira com que a configuraçã o atual das
identidades é naturalizada como condiçã o fundamental para o advento de toda e
qualquer ordem social, Butler recupera a teoria das estruturas elementares de
parentesco de Claude Lévi-Strauss. Pois se a antropologia estrutural de Lévi-
Strauss estiver correta, entã o: “seria possível traçar a transformaçã o de sexo em
gênero localizando esse está vel mecanismo das culturas, a regras de trocas de
parentesco, que afeta tal transformaçã o de vá rias formas regulató rias”200. A
crítica a Lévi-Strauss teria ainda o mérito de abrir espaço a crítica daqueles que
196
BUTLER, Gender trouble, p. 11
197
idem, p. 10
198
Idem, p. 22
199
Idem, p. 46
200
Idem, p. 47
levaram a cabo as consequências de sua teoria da vida social, como Jacques
Lacan. O que é uma maneira de Butler acertar contas com algumas das
referências mais importantes para os estudos feministas até entã o.
Lévi-Strauss parte da constataçã o da universalidade da lei do incesto para
discutir os fundamentos da relaçã o entre natureza e cultura. Ou seja, o que lhe
preocupa é uma questã o classicamente filosó fica: o que é necessá rio para
sairmos do estado de natureza? Neste sentido, ele lembra como os
comportamentos naturais tem a característica de serem universais e necessá rios
(como os impulsos e tendências), enquanto os comportamentos sociais sã o
passíveis de diferenças e de contingência (por isto coercitivos), pois respondem
à s especificidades de contextos só cio-histó ricos. No entanto, conhecemos ao
menos uma norma social que tem o cará ter de universalidade e necessidade das
normas naturais. Trata-se do tabu do incesto:

Pois a proibiçã o do incesto apresenta, sem o menor equívoco, e de


maneira indissociá vel, as duas características nas quais reconhecemos os
atributos contraditó rios e duas ordens exclusivas: ela constitui uma regra
[social], mas uma regra que, a ú nica dentre todas as regras sociais, possui
ao mesmo tempo um cará ter de universalidade201.

A proibiçã o do incesto nos lembra que nã o haveria grupo social na qual


inexistiria proibiçã o alguma relativa ao casamento. Tais proibiçõ es podem variar,
mas nã o haveria casos de sociedades nos quais elas seriam inexistentes. O que
nos colocaria a questã o: por que a questã o do incesto parece ser o fundamento
da passagem da natureza à cultura?
A peculiaridade de Lévi-Strauss está na sua interpretaçã o do significado
da proibiçã o do incesto. No fundo, tal proibiçã o marca a passagem do fato
natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se ao tabu do
incesto, o homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas, ou
ainda, em um sistema de comunicaçã o onde as mulheres sã o tratadas da mesma
forma que sinais lingü ísticos. Através da proibiçã o do incesto, um grupo se vê
obrigado a tomar um mulher de outro grupo como esposa, instaurando assim
relaçõ es de exogamia, obrigaçõ es de receber e de dar. As sociedades aparecem
assim como um sistema de trocas na qual o elemento fundamental de troca sã o
mulheres:

Se a multiplicidade de modalidades de regras do casamento podem ser


subsumidas sob o termo geral de exogamia, é à condiçã o de perceber,
atrá s da expressã o superficialmente negativa da regra de exogamia, a
finalidade que tende a assegurar, pela interdiçã o do casamento em graus
proibidos, a circulaçã o, total e contínua, desses bens do grupo por
excelência que sã o as mulheres e filhas202.

Ou seja, se nã o houvesse a exogamia, se as mulheres nã o fossem as


“moedas de troca” da vida social, entã o o grupo social explodiria em uma
multidã o de famílias que formariam: “sistemas fechados, mô nadas sem porta

201
LÉVI-STRAUSS, Claude; Les structures élémentaires de la parenté, p. 10
202
Idem, p. 549
nem janela“203 inviabilizando a essência mesma da sociedade com sua produçã o
estrutural de diferenças controladas em um sistema. Para Butler, tal perspectiva
estruturalista significa que:

A relaçã o de reciprocidade estabelecida entre homens é a condiçã o de


uma relaçã o de radical nã o-reciprocidade entre homens e mulheres e uma
relaçã o de nã o-relaçã o entre mulheres204.

Transformando a diferença produzida pela distinçã o anatô mica entre


sexos em condiçã o para a pró pria existência da dinâ mica de estruturaçã o das
sociedades, Lévi-Strauss teria fornecido um belo exemplo de como o
reconhecimento social dos gêneros era calcado na naturalizaçã o do binarismo
entre homens e mulheres. Principalmente, sua perspectiva representaria uma
forma de evidenciar como “a reciprocidade estabelecida entre homens” era a
base intransponível da ordem social, pois se as mulheres eram as “moedas de
troca” os homens acabam por aparecer como os “sujeitos da operaçã o de troca”.
Por sua vez, o esquema de Lévi-Strauss naturalizaria tanto a maneira
como o desejo pode circular socialmente (através da elevaçã o da posiçã o
masculina como posiçã o de agência, sã o os homens que trocam) quanto a
maneira com que a transgressã o será expressa (através da constituiçã o do
incesto heterossexual como a matriz pré-social do desejo). Daí vem a pergunta
fundamental de Butler:

“A lei” produziria tais posiçõ es de maneira unilateral e invariá vel? Poderia


ela produzir configuraçõ es da sexualidade que efetivamente contestariam
a pró pria lei ou sã o tais contestaçõ es inevitavelmente fantasmá ticas?
Pode a generatividade da lei ser especificada como variá vel ou mesmo
subversiva?205

Quer dizer, seria possível pensar a lei social de outra forma, nã o como a
normatividade que determina lugares e funçõ es definidas para gêneros, criando
assim a estabilidade de identidades necessá rias, mas como uma generatividade
variá vel que produz até mesmo subversõ es de configuraçõ es locais de
funcionamento da norma? Ou seja, tudo se passa como se Butler afirmasse que a
aná lise estrutural de Lévi-Strauss é, no má ximo, uma aná lise local.

Lacan e a comédia do Falo

Neste contexto, é de especial importâ ncia as críticas de Butler ao psicanalista


Jacques Lacan. De fato, Lacan tende a ser visto como o exemplo mais bem
acabado de uma teoria da sexualidade construída a partir de chave
estruturalista. Teó rico importante dentro do debate do feminismo norte-
americano, Lacan foi compreendido, por muitas feministas, como o exemplo mais
bem acabado de uma perspectiva dita falocêntrica e patriarcal do funcionamento
social.

203
Idem, p. 549
204
BUTLER, Gender trouble, p. 53
205
Idem, p. 53
Grosso modo, podemos dizer que isto ocorreu por Lacan seguir, à sua
maneira Lévi-Strauss e afirmar a natureza constitutiva do desejo masculino na
constituiçã o dos laços sociais. Isto o leva a afirmar que o Falo aparece como o
significante a partir do qual o desejo humano se orienta. Ele será : “ o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher” 206.
Este lugar central do falo é submissã o da diversidade possível dos modos
de sexuaçã o ao primado da funçã o fá lica. Assim, a sexuaçã o feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid (injeva do pênis), com sua maneira de
superar tal relaçã o de dependência através do ato de transformar os atributos
femininos em signos de reivindicaçõ es fá licas e que Lacan, seguindo Joan Rivière,
chama de mascarada. Da mesma forma como, para Lévi-Strauss, sociedades sã o
sistemas de trocas entre mulheres por sujeitos masculinos, para Lacan, as formas
de sexualidade se regulam a partir de um significante que tem sua indelével
vinculaçã o ao gênero masculino. Pois o falo permite a construção de um Universal
capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo
universal de reconhecimento mú tuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da histó ria subjetiva. Isto explica porque Butler
dirá que tal processo: “exige que as mulheres reflitam o poder masculino e em
todo lugar reassegurem tal poder contra a realidade de sua autonomia
ilusó ria”207.
No entanto, a teoria de Lacan é mais complexa do que isto que descrevi.
Primeiro, é importante lembrar como, para Lacan, a sexualidade é uma
construção social. Daí porque ele insistirá que “homem” e “mulher” sã o, antes de
mais nada, significantes cuja realidade é eminentemente só cio-linguística. Neste
sentido, é absolutamente possível uma mulher (anatomicamente falando) ocupar
uma posiçã o masculina na sua relaçã o ao desejo.
Proposiçõ es desta natureza se prestam a vá rios mal-entendidos. Afinal,
como é possível dizer que a sexualidade é uma construçã o social se há
diferenças anatô micas evidentes que parecem naturalmente constituir dois
sexos? E se ela é, de fato, uma construçã o social, por que falamos apenas em dois
sexos? Por que nã o cinco? Por que nã o abandonar a distinçã o biná ria e pensar
uma produçã o plá stica de novas formas de sexualidade?
No entanto, dizer que a determinaçã o da sexualidade se estabelece sem
levar em conta a diferença anatô mica dos sexos, como quer Lacan, nã o implica
afirmar que tal diferença inexista. Nã o é exatamente a mesma coisa, por
exemplo, um homem e uma mulher (anatomicamente falando) ocuparem a
posiçã o masculina. O que Lacan parece nos querer dizer é que tal diferença
anatô mica é desprovida de sentido, ela nã o é normativa por nã o ter força para
determinar condutas, ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que,
diante o sexual, sempre me vejo diante de algo irredutivelmente opaco e
resistente a toda operaçã o social de sentido. “A sexualidade”, dirá Lacan, “é
exatamente este territó rio onde nã o sabemos como nos situar a respeito do que
é verdadeiro”208.
Notemos este dado fundamental: as consideraçõ es clínicas lacanianas sã o
solidá rias de um tempo no qual as estruturas familiares perderam sua sustâ ncia

206
LACAN, S V, p. 273
207
BUTLER, idem, p. 57
208
Jacques Lacan, Mon enseignement (Paris: Seuil, 2006) p. 32
normativa e no qual a sexualidade nã o é mais um campo claramente direcionado
à teleologia da reproduçã o. Neste contexto histó rico de indeterminaçã o, a
socializaçã o do desejo nã o pode simplesmente levar o sujeito a desempenhar
papéis e identidades sexuais sem distâ ncia alguma, como se fosse questã o de
naturalizar o que é socialmente construído. Ao contrá rio, a socializaçã o do
desejo deve nos levar a confrontarmos com tal opacidade. Esta é, em ú ltima
instâ ncia a funçã o do falo.
É levando tais questõ es em conta que devemos entender porque Lacan
define o falo como: “o significante fundamental através do qual o desejo do
sujeito pode se fazer reconhecer”209. Ou seja, o falo nã o é exatamente o pênis
orgâ nico, ou algum signo de potência, mas um significante puro, uma diferença
pura que organiza posiçõ es subjetivas (masculino/feminino) a partir da
experiência de inadequaçã o fundamental entre o desejo e as representaçõ es
“naturais” da sexualidade. Neste sentido, o falo é apenas: “um símbolo geral
desta margem que sempre me separa de meu desejo” 210. Tal noçã o do falo como
‘um símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos
mostra como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica 211. Ele é a
inscriçã o significante da relaçã o de inadequaçã o entre o sexual e a
representaçã o. Neste sentido, a Lei lacaniana demonstra-se vazia, desprovida de
todo conteú do normativo positivo.
Para Butler, a estratégia de Lacan é paralisante, pois ao mesmo tempo
reconhece o cará ter impossível de sustentar identidades de gênero como
identidades fortemente normativas, ou seja, abre espaço para a experiência da
negatividade do desejo em uma chave que nã o deixa de nos remeter a Hegel,
mas perpetua tais identidades sem permitir o aparecimento de novas
configuraçõ es possíveis para além do quadro heterossexual, nã o fornecendo a
tal negatividade sua verdadeira força produtiva, ao menos segundo Butler. Daí
uma afirmaçã o como:

Que plausibilidade pode ser dada a um relato do Simbó lico que requer a
conformidade a uma Lei que demonstra sua impossibilidade de agir (to
perform) e que nã o dá espaço para a flexibilidade da pró pria Lei, para sua
reformulaçã o cultural em formas mais plá sticas? (...) A soluçã o nã o está
em sugerir que a identificaçã o deva se transformar em uma realizaçã o
bem acabada. Mas parece haver uma romantizaçã o ou, na verdade, uma
idealizaçã o religiosa da “falta”, da humilhaçã o e da limitaçã o diante da Lei
que faz da narrativa lacaniana algo ideologicamente suspeito 212.

Esta passagem crítica por Lévi-Strauss e Lacan é muito importante para Butler
evidenciar, ao menos a seus olhos, estratégias narrativas que impossibilitam
ultrapassar a matriz identitá ria heterossexual como modalidade de regulaçã o
geral da vida social. Seja através do cará ter normativo do estruturalismo de Lévi-
Strauss, seja através da conservaçã o da impossibilidade em Lacan, é sempre o
209
LACAN, Séminaire V (paris : Seuil, 1998) p. 273
210
LACAN, S V, p. 243
211
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua realização
subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
212
BUTLER, idem, p. 72
quadro de distinçõ es heterossexuais que é conservado em sua funçã o de
referência. Mesmo que no caso de Lacan, ele pareça ser conservado através de
uma certa melancolia vinda desta pretensa: “idealizaçã o religiosa da “falta”, da
humilhaçã o e da limitaçã o diante da Lei”, deste vínculo a uma identidade que
parece a todo momento expressar sua pró pria impossibilidade.

Melancolia e identidade

Levando em conta este ponto, Butler passa a terceira estratégia de seu capítulo,
certamente aquela que mais será por ela posteriormente retomada. Trata-se de insistir
que a força da submissão dos sujeitos a identidades de gênero pensadas em uma
matriz estável e insuperável é indissociável dos usos da melancolia. O poder age
produzindo em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente
melancólica. Se vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste
forma que ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção.
Neste ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais importantes: “A
vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de apenas lembrar aqui de
algumas características gerais da ideia freudiana para, na próxima aula, retomar este
ponto mostrando como se trata de um ponto fundamental para sua teoria do poder e da
ação política.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral
de constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido
é internalizado como uma proibição”213.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais
ampla sobre as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que
damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da
identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações
amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais
relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se
tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o
melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de
autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio,
através de autorrecriminações e acusações. A tese fundamental de Freud consiste em
dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de
amor. Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a
situação da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar
em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra
aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Essa é uma maneira de dizer que a
melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de
nossas identidades.
Butler vincula tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma
213
Idem, p. 80
bissexualidade inata nos seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir
libidinalmente os pais de ambos os sexos. Ë só através de um construção social da
identidade de gênero que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo
em identificações capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de
objetos homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como
se a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construção social possível da identidade.
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 12

Gostaria de nesta aula terminar o mó dulo dedicado ao conceito de “gênero” em


Judith Butler. Mesmo que muito ainda haveria a se dizer sobre problemas de
gênero, eu idealizara este mó dulo apenas como uma introduçã o. Algo que pode
orientar vocês em reflexõ es futuras sobre as relaçõ es entre sexo, política e
formaçã o da identidade. Na aula de hoje, gostaria de mostrar como tal reflexã o
sobre problemas de gênero permitirá a Butler desenvolver posiçõ es originais a
respeito de questõ es estruturais nos campos da ética e da política. Para tanto,
trata-se aqui de inicialmente discutir a maneira com que Butler compreende a
forma do poder sujeitar sujeitos, desenvolvendo com isto uma temá tica da
produtividade do poder que vimos anteriormente com Michel Foucault.
Butler herda de Foucault a compreensã o da identidade como problema
político central. Sua teoria de gênero, como vimos, nã o era uma teoria da
produçã o social de identidades, mas uma reflexã o sobre a dimensã o
necessariamente opaca de nossa relaçã o ao sexual, sobre a maneira como há algo
em nossa experiência do sexual que nos faz pensar o sujeito para além da figura
de uma substâ ncia auto-idêntica e está vel capaz de se auto-determinar.
Sendo assim, uma questã o política decisiva, como vimos na aula passada,
passa por tentar explicar como e porque é criada a ilusã o de que a vida social
deve se orientar por identidades está veis ou ainda, no caso da relaçã o entre sexo
e gênero, como e porque ocorre a reificaçã o de tomar por normatividade natural
aquilo que é produto de uma relaçã o social de poder. Neste sentido, ela dirá :

A auto-justificaçã o de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma histó ria sobre como era antes do advento da lei e
o que aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e
necessá ria214.

Temos entã o inicialmente a ideia de que há uma dimensã o “repressiva” da


lei. Nã o sendo a lei uma operaçã o da normatividade social sobre uma matéria
naturalmente dada (corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressã o nã o
contra um princípio exterior ao poder. Ela age contra a pró pria dinâ mica interna
do poder, com seus jogos de força continuamente cambiantes. Como se uma
configuraçã o momentâ nea do poder se cristalizasse procurando se perpetuar.
Para tanto, faz-se necessá rio colocar em circulaçã o “uma histó ria sobre como era
antes do advento da lei”. Histó ria de informidade e caos. Como se fora da
configuraçã o atual da lei, só pudesse haver anomia e destruiçã o da vida. Ou seja,
só pode haver conformaçã o à configuraçã o atual da lei, organizaçã o das
possibilidades da vida a partir do funcionamento está tico de normas lá onde há a
produçã o contínua do medo.

Poder e melancolia

Neste contexto, a crítica social se transforma em uma tentativa de


214
Idem, p. 46
compreender como certos afetos sã o produzidos a fim de conformar sujeito a
determinados tipos de comportamentos, a aceitarem certas impossibilidades de
açã o como necessá rias, a assumirem certos medos. Uma teoria da sujeiçã o será
necessariamente teoria dos afetos sociais. Neste contexto: “sujeiçã o consiste
precisamente nessa dependência fundamental em relaçã o a um discurso que
nunca escolhemos mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa agência”215.
Ou seja, um discurso que nã o sinto como completamente meu, mas que define a
maneira com que defino minha açã o. Um discurso que , de certa forma, está
dentro de mim sem ser completamente idêntico ao que entendo por minha
identidade.
A este respeito, a hipó tese de Judith Butler consistirá em mostrar como a
força da submissã o dos sujeitos seja a identidades de gênero pensadas em uma
matriz está vel e insuperá vel, seja à pró pria forma geral da identidade é
indissociá vel dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nó s
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posiçã o necessariamente melancó lica. Se
vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste forma que
ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clá ssicos de coerçã o, pois violência de uma regulaçã o social que leva
o eu a acusar si mesmo em sua pró pria vulnerabilidade. Desta forma, através da
melancolia, posso aceitar ser habitado por um discurso que, ao mesmo tempo,
nã o é meu mas me constitui.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste
ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais
importantes: “A vida psíquica do poder: teorias da sujeiçã o”. Gostaria de
inicialmente lembrar de algumas características gerais da ideia freudiana para,
ao final, mostrar como se trata de um ponto fundamental para a teoria do poder
e da açã o política de Judith Butler.
Butler vê, na descriçã o freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime
geral de constituiçã o de identidades sociais, em especial de identidades de
gênero. Pois: “a identificaçã o de gênero é uma forma de melancolia na qual o
sexo do objeto proibido é internalizado como uma proibiçã o”216.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em
sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexã o
mais ampla sobre as relaçõ es amorosas. Freud sabe que o amor nã o é apenas o
nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos
de formaçã o da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relaçõ es amorosas colocam em circulaçã o dinâ micas de formaçã o da
identidade, já que tais relaçõ es fornecem o modelo elementar de laços sociais
capazes de socializar o desejo, de produzir as condiçõ es para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a
fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Por outro lado, isto nos explica porque Butler dirá : “nenhum sujeito emerge sem
um vínculo passional com esses com os quais ele ou ela é fundamentalmente
dependente”217.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é,

215
BUTLER, The psychic life of power, p. 2
216
Idem, Gender trouble, p. 80
217
Idem, The psychic life of power, p. 7
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancó lica. No entanto, o
melancó lico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si pró prio, através de autorrecriminaçõ es e acusaçõ es. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tó pico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
agressividade em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
pró pria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificaçã o de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
melancolia fosse a continuaçã o desesperada de um amor que nã o pode lidar com
a situaçã o da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questã o o pró prio fundamento da minha identidade. Mais fá cil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusaçã o patoló gica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmaçã o como: “Freud identifica consciência elevada e auto-reprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negaçã o de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e nã o resolvido”218. Assim, a sujeiçã o do desejo pode se transformar
em desejo por sujeiçã o. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal
quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas
identidades.
Butler insiste como tal vínculo melancó lico a um objeto perdido funda a
pró pria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma que as identidade
em geral sã o constituídas. Tendo isto em mente, ela pode vincular inicialmente
tal dinâ mica da melancolia à ideia freudiana de uma bissexualidade inata nos
seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir libidinalmente os pais
de ambos os sexos. Ë só através de um construçã o social da identidade de gênero
que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo em identificaçõ es
capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos
homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se
a perda destas primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda
construçã o social possível da identidade. Pois identidades serã o sempre
marcadas por essa impossibilidade de voltar a investir libidinalmente aquilo que
perdi, aquilo que agora se transformou em um ponto opaco do meu desejo. Essa
perda me faz ter uma identidade melancó lica.

Ética e opacidade

Através desta teoria da melancolia como dispositivo de constituiçã o da vida


psíquica pelo poder, Butler pode expor o tema de como somos atravessados por
objetos que nã o conseguimos completamente integrar e que podem se voltar
contra nó s em uma reflexividade violenta e paralisante. Estes objetos
218
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
demonstram como nossa constituiçã o como sujeito de nossos atos é
indissociá vel da permanência de vínculos libidinais que aparecem a nó s de
maneira opaca, desestruturando a todo momento nossas identidades e as
narrativas que construímos sobre o que somos e quem somos. Daí uma ideia
importante como: “Se exijo “ter” uma sexualidade, entã o isto poderia parecer que
uma sexualidade é o que está aqui para ser chamada de minha, para possuir
como um atributo. Mas e se sexualidade é o meio através do qual sou
despossuído?”219. Ou seja, se há algo na experiência sexual que sempre parece
nos colocar diante de objetos que nos desestruturam, que nos despossui, entã o
integrar o que tem a força de nos despossuir pode ter uma consequência políica
importante. Pois isto significa reconhecer minha dependência em relaçã o ao que
nã o controlo. Nã o se trata assim de um abandono de uma noçã o autá rquica de
autonomia em direçã o a uma forma mais elaborada de relacionalidade, ou seja,
de reconhecimento da natureza relacional do sujeito em sua agência. A ideia de
uma natureza relacional nã o capta o que significa as consequências da
compreensã o de que : “como corpos, estamos fora de nó s mesmos e somos para
outro”220. Pois a principal consequência é a consciência de uma vulnerabilidade
estrutural pró pria à nossa condiçã o. A aposta de Butler consiste em transformar
a consciência da vulnerabilidade e da dor que sentimos diante de objetos
perdidos em elemento fundamental para a constituiçã o da açã o política. Pois
podemos temer tal vulnerabilidade, o que terá consequências evidentes:

Quando luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, baní-lo em nome de uma açã o
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado221.

Daí uma questã o importante que consiste em se perguntar sobre o que


pode ser ganho para o domínio político ao mantermos uma certa vulnerabilidade
comum como condiçã o para uma forma de reconhecimento que me permite nã o
impedir que o sofrimento do outro seja indiferente para mim.
Servindo-se deste ponto, Butler procura desenvolver um modelo de
reflexã o ética que terá fortes consequências políticas. Partindo de seu referencial
hegeliano, Butler pensará os problemas políticos e morais a partir de discussõ es
relativas à s dinâ micas de reconhecimento da alteridade. Agir de maneira moral é
ser capaz de reconhecer o outro como sujeito, mesmo em situaçõ es nas quais ele
nã o parece agir a partir dos critérios e predicados de humanidade que
convencionamos a atribuir a todos os sujeitos. Desta forma, cria-se um vínculo
entre: “a questã o do poder e o problema de quem é qualificado como
reconhecidamente humano e quem nã o é”222. De fato, preciso me sujeitar à s
normas sociais com seus quadros identitá rios estabelecidos para ser
reconhecido como sujeito. Mas posso também sentir que os termos pelos quais
sou reconhecido fazem da vida algo impossível a se viver:

219
Idem, Undoing gender, p. 16
220
Idem, Precarious life, p. 27
221
Idem, p. 30
222
Idem, Undoing gender, p. 2
A opacidade do sujeito pode ser a consequência de seu ser concebido
como um ser relacional, ser cujas relaçã o primá rias e iniciais nã o estã o
sempre disponíveis a um conhecimento consciente. Momentos de
desconhecimento a respeito de si mesmo tendem a emergir no contexto
de relaçõ es a outros sugerindo que tais relaçõ es chamam formas
primá rias de relacionalidade que nã o estã o sempre disponíveis à
tematizaçã o explícita e reflexiva.

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