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Minha intenção é, assim, realizar uma análise fina (um close reading, como
dizem os críticos literários) de Enquête sur les modes d’existence, seus antecedentes e
condicionantes, seus desenvolvimentos paralelos e seus desdobramentos2, de modo a
1 Latour 2012. Ver a apreciação do livro feita de um ponto de vista filosófico (mas fortemente marcado
pela antropologia — pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, em particular) por Maniglier 2012. Patrice
Maniglier, professor da Universidade de Nanterre, é um dos principais colaboradores (e incentivadores)
do presente proponente tanto no que respeita à retomada da antropologia lévi-straussiana como à
empresa de repensar as relações entre antropologia e filosofia, e em particular de reivindicar para a
antropologia um papel axial na reconstrução da metafísica “filosófica” como empresa necessariamente
comparativa.
2 Entre os quais se destaca a versão do livro transposta para o AIME, uma grande plataforma digital
colaborativa bilingue (inglês/francês), envolvendo dezenas de pesquisadores — antropólogos, filósofos,
teólogos, juristas, matemáticos, biólogos, economista. O site AIME (http://www.modesofexistence.org/)
traz o texto da Enquête e uma quantidade de outras contribuições, como uma bibliografia e um
aparelho de notas (dois componentes que não foram publicados na versão em livro da Enquête), um
valioso glossário, além de extensas discussões e críticas dos colaboradores do AIME, de links para textos
e outros materiais relevantes, bem como os desenvolvimentos mais recentes do projeto.
2
3 Nesta exposição, vou-me restringir à versão publicada em livro do projeto AIME (ver a nota anterior),
deixando de lado, por exigir um esforço de reflexão que só poderá ser feito no decorrer mesmo da
pesquisa, o “modo de existência” da antropologia latouriana dos Modernos em sua forma colaborativa e
multi-autoral da plataforma digital.
4 Para o conceito de “terrano”, ver Danowski & Viveiros de Castro 2015.
3
É com tais reflexões que se encerra a Enquête sur les modes d’existence: com
uma exortação para que o Ocidente venha “buscar o socorro daqueles outros coletivos
cujas competências haviam sido rejeitadas, por crermos que nosso primeiro dever era,
antes de mais nada, fazê-los sair de seu arcaísmo, modernizando-os” E isso precisa ser
feito ”antes que seja tarde demais, antes que a modernização não se tenha implantado
(abatido, frappé) igualmente em toda parte” (Latour 2012: 480-81). Antes, portanto,
que o mundo acabe, antes que Gaia desabe sobre todos nós, franceses e chineses,
yanomamis e maoris — sem esquecer os bilhões de outros (con)viventes que ainda não
conseguimos varrer da face do planeta.
5 Stengers 2009.
6 Em oposição, precisamente, a “Terranos” (Latour 2013a, Danowski & Viveiros de Castro op.cit.).
7 Chakrabarty 2009.
4
8 Ver as Gifford Lectures de Latour (2013a), “Facing Gaia: six lectures on the political theology
of nature”, em especial as duas primeiras conferências da série.
5
***
9 Ver Souriau 2009, Les différents modes d’existence (suivi de L’œuvre à faire), uma reedição de dois
textos de Souriau precedida de uma importante introdução por Latour e Stengers. Este livro foi
publicado paralelamente ao ensaio de minha autoria, Métaphysiques cannibales (Viveiros de Castro
2009), como os dois primeiros títulos da coleção “MétaphysiqueS” lançada pelas P.U.F.
10 Latour 1991 para a edição francesa.
11 Isto pode ser verificado nas referências aos meus trabalhos, em especial aos conceitos de
“perspectivismo” e de “multinaturalismo”, presentes em diversos textos de Latour, que dedicou, aliás,
um curto mas polemicamente denso comentário-reportagem às diferentes concepções da comparação
antropológica defendidas por mim e por meu colega Philippe Descola (Latour 2009).
6
***
A Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des Modernes — notar a
inicial maiúscula de “Modernos”, o que os representa como um “povo” ou “tribo”, isto
é, como uma forma de vida singular antes que como uma condição histórica universal
— procura reinserir o Ocidente (os “Modernos tradicionais”, por oposição aos neo-
Modernos da Ásia e, quem sabe, da América do Sul) dentro do quadro etnográfico
mundial. Ao mesmo tempo em que sublinha a verdadeira, ao olhos do autor,
originalidade da contribuição à história da cultura humana, EME insiste sobre as
profundas e perigosas linhas de fratura, as falhas tectônicas do sistema de valores do
complexo civilizatório do Ocidente. O manuscrito original do livro (justamente aquele
que avaliei para a edição inglesa de EME) previa uma “terceira parte” que estaria sendo
escrita (no livro definitivo seria uma quarta parte, já que ele terminou redividido em
três partes), na qual a ontologia reconstruída dos Modernos, e o inventário dos modos
de existência que devem — Latour pertence ao grupo dos metafísicos “reformistas”
antes que “descritivos”, para usarmos uma distinção de Peter Strawson — ser admitidos
12 O presente projeto foi escrito antes da publicação da versão fortemente modificada das conferências
Gifford, o livro Face à Gaïa (Latour 2015), de que tratarei no decorrer da pesquisa.
13 Danowski & Viveiros de Castro op.cit.
7
É bastante evidente que o autor de EME está convicto de que “nós” deveríamos
ter orgulho de nossa herança civilizatória, e que o Ocidente não só pode e deve ser
salvo (em muitos sentidos, do tecnológico ao teológico), como ele pode ajudar a salvar
a humanidade de si mesma — com uma pequena ajuda de nossos amigos
extramodernos, já vimos mais acima. O otimismo latouriano não é portanto uma
validação incondicional do status quo civilizatório do Ocidente moderno. O autor
propõe uma abordagem — melhor dizendo, uma retomada (reprise) — da cultura
ocidental movida por um espírito radicalmente reformador. (A despeito de seu
confesso catolicismo, Latour não deixa de se assemelhar a um Lutero da etno-
antropologia ocidental.)14 O objetivo maior do livro é pintar um auto-retrato filosófico
adequado da civilização ocidental moderna, tanto para sua exibição privada (reflexiva
ou intracultural) como pública (diplomática e intercultural).
15 E aqui a inicial maiúscula em “Ciência” tem um sentido irônico-crítico. Latour, como Stengers, é um
adversário feroz da ideia da Ciência como entidade única, epistemologicamente estável, uma espécie de
Estado do Espírito do qual somos todos — querendo ou não — súditos. Em troca, tanto Latour como
Stengers são atentos etnógrafos (e admiradores!) das ciências, em minúscula e no plural, enquanto
práticas de conhecimento controversas, plurais, metodologicamente heteróclitas e dotadas de
“ecologias” específicas (ver os sete volumes da série Cosmopolitiques de Stengers 1997).
16 Não esqueçamos que “simetria” foi por muito tempo um lema crucial da antropologia latouriana, e
que os “não-humanos” (outro rótulo privativo de que terei ocasião de discordar) receberam atributos de
agentividade e de personalidade graças, em larga mas obviamente não exclusiva medida, ao trabalho
deste pensador.
17 “It’s not a bug, it’s a feature”, como dizem os programadores de computador em resposta às críticas
do público a algum comportamento estranho dos aplicativos que inventam… Observo que o otimismo
latouriano, aparentemente invencível, não deixou de se revestir de uma inquietação crescente com a
catástrofe ecológica planetária, e que sua crença nos poderes taumatúrgicos da alta tecnologia mitigou-
se consideravelmente nos últimos anos. Ver as Gifford Lectures, bem como o cortante artigo ‘War and
peace in an age of ecological conflicts” (Latour 2013b) e seu rompimento com o Breakthrough Institute
(Latour 2015)
9
projetos (pois o I Ching foi em parte responsável pela linguagem binária de nossos
computadores); mas legou-nos um esplêndido sistema metafísico, não completamente
estranho à infraestrutura conceitual de Latour, e fez contribuições decisivas para a
matemática e a física modernas.
De certa forma, EME pode ser visto como a versão finalizada de Jamais fomos
modernos. Ele possui o mesmo escopo generalizante do livro anterior (os fundamentos
ontocosmológicos do Ocidente moderno), e a mesma intenção ambiciosa: a reforma
de nossa “Constituição”. Mas, sobre cobrir muito mais “chão” que o ensaio de 1991 —
pois vai muito além da ciência e da política como seus dois objetos etnográficos
centrais —, ele é mais ousado em suas formulações metafísicas (o autor escreveu um
artigo recente intitulado “Saindo do armário enquanto filósofo”), e, acima de tudo, ele
procura apresentar uma definição positiva (empírica) antes que simplesmente negativa
(crítica) do projeto civilizacional do Ocidente. Pois seu problema em EME é o de
redefinir o Ocidente sem apelar para a ideologia da modernização e para a imagem da
modernidade que o distorcem antropologicamente.
***
O objetivo de EME é construir uma tabela ou lista sistemática dos modos de existência
vigentes na cultura ocidental. A ideia básica é que as clássicas noções dicotômicas de
sujeito e objeto, matéria e forma, linguagem e mundo (signo e referente), natureza e
10
(1) O modo “Rede” (abreviado como RES, cf. réseau — cada modo é indicado por um
acrônimo de três letras, o que acaba gerando uma espécie de “álgebra” elementar de
combinação e cruzamento entre os modos: REF.REP, ORG.FIC, MET.DRO etc.), que
pode ser definido como a Relação enquanto primitivo ontológico: ele indica a
conexão de uma série indeterminada de elementos heterogêneos que formam o
network de alteridades necessária para qualquer ser vir à existência, como também a
trajetória vetorial que ele deve tomar.
(3) O modo curiosamente nomeado “Duplo Clique” (DC), por analogia com a aparente
facilidade com que se acede ao longínquo com o mero clicar do mouse de um
computador. O DC é um modo negativo, ou melhor dizendo, o modo que inverte o
modo RES, o trickster enganador que afirma a identidade imediata entre o ser e a
identidade, e tudo que daí se segue — a começar pela promessa de uma “realidade”
dada a priori, e acessível gratuitamente. O DC é o representante, em EME, daquilo que
os filósofos da Ciência chamariam de o “obstáculo epistemológico” por excelência.
Trata-se de um modo operante em diversos dos equívocos e amálgamas expostos no
livro, na medida em que ele encarna a fantasia do acesso sem mediação, a
“brutalidade do intelecto” (para lembrarmos uma expressão de Chesterton) que ignora
o custo — noção central para Latour, desde a teoria do Ator-Rede — energético, no
sentido tanto físico como semiótico, de toda ação. O DC é a tentação da imanência
grátis.
Tudo isso pode soar excessivamente abstrato. Mas EME faz um bom trabalho na
aplicação desta meta-linguagem formal a exemplos concretos (alguns pitorescos) e na
caracterização meticulosa dos doze modos-objeto atualmente “reconhecidos” (no
sentido ambíguo já anotado) por “nossa” civilização. Indico sumariamente, abaixo,
alguns deles:
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(1) REP, o modo a “existência bruta” ou o que se costuma chamar “realidade material”,
animada ou inanimada. Este é o modo de perseveração dos existentes. O acrônimo
deriva do nome do modo, “Reprodução”, o modo de subsistência que consiste em
durar, passar pelo ser-enquanto-outro de modo a produzir o ser-enquanto-ser. Como
sabemos desde Whitehead (talvez o principal inspirador da conceituação latouriana
deste modo), mesmo uma montanha precisa insistir para existir, passar pela
transformação para continuar a mesma montanha. A “infelicidade” característica deste
modo REP é a interrupção da reprodução (no sentido literal, no caso dos organismos)
ou a pura e simples destruição material.
(3) HAB, o Hábito, que é a capacidade de eclipsar a preposição (PRE) que define cada
modo de existência, de forma a produzir um curso de ação normal e contínuo sem que
seja necessário parar a cada momento para “pensar” sobre o que se está fazendo. HAB
(outro empréstimo do empirismo jamesiano e butleriano) é o modo da prática diária,
irrefletida, daquilo que “não-é-preciso-dizer”. Esse modo não diz respeito, como
tampouco (obviamente) os dois precedentes, apenas ao humanos. Ele é o modo da
continuidade conquistada pela subsistência, e como tal é “imperceptível”. Sua ruptura
eventual leva a uma refocalização na PRE que ele tinha por função eclipsar (o martelo
que se quebra…).
Esses três modos formam um grupo, o “pano de fundo do ser”, que preexiste a toda
diferença entre sujeito e objeto, e mesmo às modificações latourianas destes conceitos
nas categorias de “quase-objetos” e “quase-sujeitos” que capitularão as duas próximas
famílias de modos de existência. Os modos REP, PRE e HAB são — difícil caracterizá-
14
(4) TEC, a Técnica, que define uma certa dobra ou desvio dos materiais e permite a
criação de dispositivos. Este é o modo da invenção. Interessantemente, Latour parece
reservá-los aos humanos exclusivamente (Homo faber), inclusive atribuindo-lhe o
poder antropogenético. A possibilidade de que TEC seja o modo geral dos seres
animados ou viventes, algo que permitiria distinguir, decerto apenas provisoriamente,
os seres vivos dos seres “indiferentes” (Whitehead), não é considerada pelo autor.
(5) FIC, a Ficção, um modo importante, definido por uma certa “vibração” entre
materiais e formas (Latour dedica uma longa explanação sobre a inexistência
“objetiva” e a inconsistência conceitual da “matéria” versus a onipresença dos
materiais, assim como se detém sobre os diferentes e contraditórios sentidos do
conceito de forma.) FIC é um modo responsável por certo erros importantes de
categoria e algumas aporias clássicas, em particular o suposto abismo ontológico entre
signo e referente, palavra e coisa, linguagem e mundo.
como há “seres de ficção” (FIC) , “seres científicos (REF)“, “seres do direito” (DRO),
“seres da religião” (REL) etc. Um pluralismo ontológico radicalmente horizontal. Os
valores PRE priorizam conjuntural e contextualmente interesses e cursos de ação; eles
não ordenam hierarquicamente graus de dignidade ontológica.
Seguem-se mais dois grupos de três modos cada um, cuja exposição, mesmo resumida,
terminaria por alongar demais este plano de pesquisa — eles serão objeto de discussão
comparativa detalhada na execução do plano. Baste dizer que o Grupo 3 (os “quase-
sujeitos”) reune os modos da Política (POL), do Direito ou Lei (DRO) e da Religião
(REL). Aqui entramos no que se poderia chamar de “mundos da superestrutura”. O
próximo e último grupo dissocia o amálgama que chamamos “Economia” em três
modos de existência: o Pertencimento (ATT, de attachement), que instaura os
“interesses apaixonados”, e cujo hiato a ser preenchido consiste em desejos e
carências; a Organização (ORG), que instaura impérios, estados, organizações, firmas,
e cuja trajetória (um dos elementos da meta-linguagem formal de EME) consiste na
produção e desempenho de roteiros ou scripts para a ação; e a Moralidade (MOR), que
explora a relação entre meios e fins, se define pelo escrúpulo como valor, e tem como
alteração (outro elemento meta-linguístico) o cálculo de um optimum impossível.
***
A questão que se coloca para este projeto, de saída, então, é a do valor heurístico, e,
no limite, empírico — ao menos para alguns deles — da tabela de quinze modos de
existência que conclui o livro, isso de um ponto de vista estritamente comparativo.
Refiro-me aqui tanto aos doze modos-objeto (como vimos, categorizados em quatro
grupos com três modos cada um) como aos três meta-modos que, consolidando uma
axiomática abstrata, um formalismo pré-ontológico de natureza quase matemática,
16
18 Sugestão que se torna ainda mais verossímil, digamos assim, na medida em que Latour reserva TEC
aos humanos (é TEC que nos hominizou paleontologicamente, diz ele), quando nos parece que ela é um
componente intrínseco da biologia evolucionária, e que ele exclui a vigência de modos de tipo FIC para
o resto do reino animal em geral (ah os bower birds e seus elaborados ninhos-armadilhas, a mensagem
“‘isto é uma brincadeira’” [“this is play” — as aspas são parte da mensagem] que Bateson explorou tão
bem para o mundo animal…). Isso para não falarmos nos estudos de Adolf Portmann e, mais
recentemente, de Bertrand Prévost.
17
Mas chegamos à questão: o que dizer dos modos de existência dos outros? Se
nossa dúzia moderna de ME é contingente, tanto do ponto de vista de seu número
como de sua identidade característica, é de se imaginar que outros coletivos
disponham, no duplo sentido de possuir e de ordenar, de modos de existência
insuspeitos: “já houve e há ainda muitas luas mortas, pálidas ou obscuras no
firmamento da razão”, como diziam Durkheim e Mauss, que ainda não dispunham dos
instrumentos para apreender a alteridade metafísica senão per speculum in ænigmate.
E acontece que várias destas “luas obscuras” podem se revelar estrelas distantes, de
magnitude igual ou maior que nosso modesto luzeiro provinciano. Tanto mais que
precisamos desesperadamente, na presente conjuntura, de toda luz disponível.
Acredito que os três meta-modos que fornecem a armadura descritiva de EME são
contribuições conceituais fundamentais, permitindo uma nova definição do objeto e
do objetivo maiores da investigação antropológica. Assim, de um lado, o pluralismo
ontológico aberto pelo novo modo PRE (introduzido em EME) vem corrigir a excessiva
18
Mas no que concerne aos doze modos-objeto, que são como os cômodos da
orgulhosa mansão que os Modernos construíram sobre os escombros de incontáveis
moradas extraontológicas alheias, entendo que as indicações de EME sobre sua
vigência (ou não) alhures são ainda insuficientes, hesitantes, e por vezes
inconsistentes. Tudo se passa como se o demônio do Duplo-Clique (DC) não tivesse
sido completamente exorcizado, justamente na passagem estratégica de dentro para
fora do multiverso dos Modernos. O custo do passe, a largura do hiato, a natureza da
surpresa, a alteração requerida para especificarmos as condições de felicidade dos
modos de existência dos outros não se acham tematizados de modo a satisfazer um
antropólogo dos extramodernos.
Não basta observar, como faz o autor de EME, que o grau de elaboração ou a
prioridade ontológica dos modos de existência recenseados em seu tratado não são os
mesmos para outros coletivos: por exemplo, que o modo MET é objeto de muito maior
investimento institucional e elaboração cognitiva entre os extramodernos do que entre
nós, para quem ele foi reduzido ao nevoeiro psíquico da interioridade do Indivíduo.
No mínimo, diga-se de passagem, caberia sublinhar que a ordenação introduzida
nolens volens pela marcha expositiva (e a tabela) de EME entre REP e MET deveria ser
decididamente invertida para o caso extramoderno. Seria preciso, além disso, nos
perguntarmos se tem sentido diferenciar esses dois modos para o caso de certas “eco-
ontologias” exóticas, como a dos coletivos chamados “animistas.19 Entendemos que
mesmo no caso dos Modernos, a definição de todo modo de existência como
constituindo “uma versão do SER-ENQUANTO-OUTRO” (EME: 189; maiúsculas no
original) — este conceito que está na raiz da “hipótese central desta
investigação” (EME: 168) — exigiria uma inversão da ordem entre REP e MET. Começar
pelo primeiro parece-nos um resto do preconceito substantivista do qual o projeto
Não basta tampouco dizer que os outros coletivos valorizam os três primeiros
modos (REP, MET, HAB) mais intensamente do que nós — o que não deixaria aliás de
explicar por que os chamávamos de Naturvölkern... A noção evolucionista de uma
ordem de precedência que “sobe” piramidalmente de modos universais a modos pan-
humanos e destes a modos exclusivamente modernos parece-nos só ser possível da
perspectiva da ontologia não-reformada dos Modernos (EME: 293-94). Além disso, a
eventualidade de modos de existência radicalmente outros, que seriam compartilhados
por humanos e não-humanos, ou seriam mesmo exclusivos dos não-humanos —
passemos por cima, por ora, da duvidosa pertinência dessa distinção privativa entre
“humanos” e “não-humanos” para os mundos dos outros humanos, i.e. os
extramodernos — essa eventualidade não chega sequer a ser considerada.
Há, enfim, muito trabalho a fazer ainda para que se estabeleça a ponte
diplomática entre o pluralismo intra-ontológico dos modernos descrito por EME e as
ontologias meta-plurais, pluralmente plurais daqueles que, como dizia Clastres dos
selvagens, “querem a multiplicação do múltiplo”. No mínimo, se o desafio é, como
formula lapidarmente Latour, “cessar de modernizar para ecologizar”, é muito provável
que tenhamos que adotar, no sentido afetiva e juridicamente complexo em que se
adota um filho (REP.DRO), alguns dos modos de existência dos outros coletivos,
daqueles que, realmente, jamais foram modernos. A saída passa pelo outro; pelo ser-
enquanto-outro dos outros.
***
A tarefa que se impõe este plano de pesquisa, assim, é o de reconstruir certas velhas
categorias antropológicas a partir do vocabulário e do instrumental conceitual
fornecido pela Enquête sur les modes d’existence. Já tive mais de uma ocasião de
argumentar pela necessidade de produzirmos um discurso antropológico onde o
“nativo” esteja em posição de estrita interlocução simétrica com o “antropólogo”. A
determinação das cosmopráxis ameríndias (inter alia) nos termos do conceito de
“modos de existência” poderá permitir, talvez, que essa interlocução se faça dentro de
uma meta-linguagem comum, capaz de permitir uma intertradução que esteja
efetivamente atenta para o equívoco, a transformação e a deformação que envolvem
necessariamente tal empresa. Ao mesmo tempo, ela permitirá que as questões
indígenas (por oposição à “questão indígena” i.e. a questão de como os brancos
acabarão de vez com o “problema dos índios”) possam se infiltrar em nosso próprio
repertório de perplexidades, apontando a existência de, justamente, outros modos de
existência, inseparáveis de outras formas de vida. Mesmo porque, como vai cada vez
mais constatando e alertando Bruno Latour, nossa forma de vida se aproxima do
esgotamento de suas potencialidades, e sua criatividade vai-se cada vez mais
revelando como uma forma particularmente perversa de destrutividade.
22
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