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Adesão do disco e hipoplasia do côndilo da ATM: relato de caso / Campos PSF et al.

Relato de Caso

Adesão do disco associada


a hipoplasia do côndilo da articulação
temporomandibular: relato de caso
Paulo Sérgio Flores Campos1, Nilson Pena2, Luís Antônio Nogueira dos Santos3, Iêda
Margarida Rocha Crusoé-Rebello1, Janaina Araújo Dantas4, Ana Carolina Ramos Mariz5,
Virgínia Lúcia Dias Prado6

Resumo
Relatamos um caso de adesão bilateral do disco associada a hipoplasia do côndilo da articulação
temporomandibular acometendo paciente de 17 anos de idade, sexo masculino, com queixa de dor
e limitação progressiva de abertura de boca, nos últimos dois anos. O paciente não referia ruídos
articulares de qualquer natureza e, clinicamente, apresentava limitação de abertura de boca, com
Descritores: desvio à esquerda sem correção da trajetória ao final do movimento mandibular. Nossa impressão
Articulação temporomandibular; Resso-
nância magnética; Disco da articulação diagnóstica foi de adesão do disco articular (“fenômeno do disco ancorado”) e hipomobilidade do
temporomandibular. côndilo direito, e adesão do disco articular, hipoplasia e hipomobilidade do côndilo esquerdo.

Muito embora o deslocamento anterior do disco articular, sem redução, não seja
um fator de limitação de abertura de boca para alguns pacientes, a limitação de
abertura está comumente relacionada ao deslocamento sem redução, para a maio-
ria dos pacientes[1,2]. Nestes casos, o disco não-recapturado atua como um obstáculo
mecânico, comprometendo a translação do côndilo e determinando restrição de
abertura de boca. Adicionalmente, o disco deslocado pode vir a aderir à eminência
articular e, permanentemente, limitar o movimento de translação do côndilo[3]. A
adesão pode também acontecer com o disco em sua posição normal, determinando,
de igual modo, limitação de abertura de boca. Esta condição é denominada “fenô-
meno do disco ancorado” e, neste caso, o paciente apresenta severa limitação de
Recebido para publicação em 11/1/2006. Aceito,
após revisão, em 16/3/2006. abertura de boca (15–25 mm) e raramente relata história de estalidos, ao contrário
Trabalho realizado na Disciplina de Radiologia da do observado em casos de deslocamento anterior do disco articular sem redução,
Faculdade de Odontologia da Universidade Fede-
ral da Bahia (UFBA) e na Clínica Delfin – Diagnós- quando o paciente mostra limitação de abertura de boca menos severa (30–45 mm)
tico por Imagem, Salvador, BA.
1
Professores Adjuntos Doutores da Disciplina de
e refere estalidos remotos[4].
Radiologia da Faculdade de Odontologia da UFBA. Situações em que tipos de adesão diferentes para cada uma das articulações
2
Professor Adjunto Doutor da Disciplina de Radi-
ologia do Curso de Odontologia da Universidade ocorrem, mostrando, inclusive, características que se contrapõem às supra-referi-
Estadual do Sudoeste da Bahia.
3
das, são raras e serão ilustradas no caso descrito a seguir.
Professor Assistente Mestre da Disciplina de Ra-
diologia da Faculdade de Odontologia da Universi-
dade Estadual de Montes Claros, MG.
4
Aluna do Doutorado em Radiologia da Faculda- RELATO DO CASO
de de Odontologia de Piracicaba, Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp), SP.
5 Membro do Grupo de Estudo em Radiologia Paciente de 17 anos de idade, sexo masculino, encaminhado para ressonância
Odontológica – GERO (CNPq).
6
magnética (RM) da articulação temporomandibular (ATM), apresentando queixa
Especialista em Radiologia Odontológica, Clíni-
ca Delfin – Diagnóstico por Imagem, Salvador, BA. de dor em ambas as articulações quando da tentativa de abrir a boca, o que se cons-
Correspondência: Prof. Dr. Paulo Sérgio Flores tituía em fator de limitação de abertura. Questionado, o paciente não referiu ruídos
Campos. Rua Guadalajara, 841, ap. 201, Ondina.
Salvador, BA, 40140-460. E-mail: pflores@ufba.br articulares de qualquer natureza, trauma ou cirurgia articular, história de bruxismo

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ou apertamento dentário, bem como uso de aparelho bemos também imobilidade do disco do lado direito,
ortodôntico. O exame clínico revelou dentição completa fixo em sua posição normal (Fig. 3), e imobilidade do
e limitação de abertura de boca (30 mm), com desvio à disco do lado esquerdo, fixo no vértice da eminência
esquerda sem correção da trajetória ao final do movi- articular (Fig. 4).
mento mandibular. Como síntese da impressão diagnóstica temos:
O exame por RM das ATMs foi realizado com téc- – Adesão do disco articular direito;
nica spin-eco ponderada em densidade de próton, plano – hipomobilidade do côndilo direito;
parassagital boca aberta e boca fechada, e plano para- – hipoplasia e retroposicionamento do côndilo es-
coronal boca fechada. Os parâmetros observados na querdo;
aquisição das imagens estão postos no Quadro 1. – espessamento do ligamento posterior do disco
Dado que o ângulo condilar horizontal era de 0° articular esquerdo;
para ambos os lados, foram estabelecidos, a partir da – deslocamento anterior e adesão do disco articu-
imagem axial de orientação (“scout” ou topograma), os lar esquerdo;
cortes sagitais (perpendiculares ao eixo maior dos côn- – hipomobilidade do côndilo esquerdo.
dilos) e coronais (paralelos ao eixo maior dos côndilos).
Na seqüência de imagens em boca fechada, para o
DISCUSSÃO
lado direito, registramos relação normal entre os com-
ponentes articulares e ausência de alterações estruturais De acordo com Kaminishi e Davis[5], as adesões dis-
(Fig. 1). Para o lado esquerdo, observamos hipoplasia e cais são mais comumente observadas no espaço articu-
retroposicionamento do côndilo, espessamento do liga- lar superior e podem acorrer por meio de dois meca-
mento posterior e deslocamento anterior do disco arti- nismos. Primeiro, um quadro de sinovite levaria à de-
cular (Fig. 2). posição de uma camada de fibrina sobre as células da
Em boca aberta, percebemos deslocamento assimé- sinóvia, em substituição à camada normal de ácido hia-
trico dos côndilos mandibulares, com hipomobilidade lurônico. Com a evolução da condição, esta camada de
bilateral, mais acentuada para o lado esquerdo. Perce- fibrina sobre as superfícies articulares se transformaria

QUADRO 1 – Parãmetros de aquisição das imagens.

Espessura Tempo
Imagem TR (ms) TE (ms) ET NEX FOV de corte (mm) Matriz de aquisição

Localizador axial (boca fechada) 300 8 – 1 24 6 256 × 128 44’’


DP parassagital (boca fechada) 1.400 24 10 3 12 2 256 × 256 3’44’’
DP parassagital (boca aberta) 1.400 24 10 3 12 2 256 × 256 3’44’’
DP paracoronal (boca fechada) 1.500 24 9 3 12 2 256 × 224 1’55’’
TR, tempo de repetição; TE, tempo de eco; ET, fator de aceleração (“echo train”); NEX, número de excitações (“number of excitations”); FOV,
campo de visão (“field-of-view”); DP, densidade de próton.

Fig. 1 – Relação normal entre os


componentes ósseos e o disco ar-
ticular (seta).

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em tecido fibroso, levando à adesão do disco. Segundo, Nitzan e Etsion[4] sugeriram que um sistema de lu-
hematomas, muito comuns no espaço articular superior, brificação composto de ácido hialurônico protegendo
experimentariam um natural processo de cicatrização, uma dupla camada de fosfolipídios proporciona o mo-
com neoformação capilar e gradual transição para te- vimento do disco articular. Em casos de sobrecarga ar-
cido cicatricial, promovendo adesão do disco. ticular, entretanto, uma produção descontrolada de

Fig. 2 – Côndilo hipoplásico (seta


reta), bandas anterior e posterior
do disco anteriormente desloca-
do (pontas de setas) e ligamento
posterior do disco espessado (seta
curva).

Fig. 3 – Disco articular fixo em


sua posição normal (seta).

Fig. 4 – Disco articular deslocado


e fixo (ponta de seta) e ligamento
posterior espessado (seta).

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espécies de oxigênio reativo pode ocorrer, o que causa- lação do côndilo, esperada para casos de “fenômeno do
ria degradação do ácido hialurônico e conseqüente disco ancorado”, não é observada neste caso, vez que o
exposição dos fosfolipídios à ação lítica da fosfolipase A2. côndilo traslada até o vértice da eminência articular. O
Dessa forma, as superfícies articulares expostas, e com disco articular esquerdo, deslocado e aderido ao vértice
elevada energia de superfície, tornam-se extremamente da eminência, obstaculiza prematuramente a translação
aderentes quando em contato. A presença de uma fina condilar, justificando a restrição ainda mais severa de
camada de fluido entre as superfícies articulares aumen- movimento do côndilo, severidade esta não esperada
taria ainda mais este potencial de adesão. Assim, o disco para casos de adesão pós-deslocamento discal. Dessa
articular pode, em sua posição normal, aderir ao com- forma, fica claro que, dependendo da área da eminên-
ponente temporal. cia articular em que a adesão ocorra, a restrição da trans-
Com relação aos tipos de adesão que podem ocor- lação do côndilo pode ser bastante severa. Também em
rer entre o disco-tecido retrodiscal e o componente tem- casos de adesão pós-deslocamento, é de se esperar his-
poral, Kaminishi e Davis[5], respaldados em observações tória remota de estalido articular, um indicativo de des-
artroscópicas, classificaram as adesões do disco da ATM, locamento com redução precedente. Cremos, no entan-
de acordo com a crescente severidade, em: bandas fi- to, que, devido à severa hipoplasia, a superfície restrita
brosas, bandas fibrossinoviais, fibrose intracapsular, do côndilo jamais permitiu uma relação anátomo-fun-
bandas osteodiscais, pseudoparede parcial, pseudopa- cional adequada entre o disco e os componentes ósseos
rede intermitente, pseudoparede fibrosa e pseudopa- articulares, determinando, assim, o deslocamento ante-
rede fibrossinovial. Descreveram também a fibrose cap- rior do disco articular.
sular e ressaltaram que todos os tipos de pseudoparede
REFERÊNCIAS
enquadram-se na definição de anquilose fibrosa. Nos
1. Katzberg RW, Westesson PL. Diagnosis of the temporomandibu-
casos específicos em que o disco adere ao componente lar joint. Philadelphia, PA: Saunders, 1994.
temporal em sua posição normal, devido à ação de uma 2. Mariz ACR, Campos PSF, Sarmento VA, Gonzalez MOD, Panella
força adesiva importante que se estabelece entre o disco J, Mendes CMC. Assessment of disk displacements of the tem-
poromandibular joint. Braz Oral Res 2005;19:63–8.
e a fossa-eminência, a condição é chamada de “fenô-
3. Rao VM, Liem MD, Farole A, Razek AA. Elusive “stuck” disk in
meno do disco ancorado”[4]. the temporomandibular joint: diagnosis with MR imaging. Ra-
A hipoplasia condilar, por outro lado, é uma con- diology 1993;189:823–7.
dição incomum e tem sido considerada uma anomalia 4. Nitzan DW, Etsion I. Adhesive force: the underlying cause of the
disc anchorage to the fossa and/or eminence in the temporoman-
de cunho genético ou uma manifestação conseqüente dibular joint – a new concept. Int J Oral Maxillofac Surg 2002;31:
a trauma local ou a patologias que envolvam o ouvido 94–9.
médio[6]. Na nossa experiência, dentre 450 pacientes 5. Kaminishi RM, Davis CL. Temporomandibular joint arthroscopic
observations of superior space adhesions. Oral Maxillofac Surg
examinados através de RM, a hipoplasia condilar tem- Clin North Am 1989;1:103–9.
se apresentado, via de regra, associada ao deslocamento 6. Browne RM, Edmondson HD, Rout PGJ. Atlas of dental and
anterior do disco articular. Em verdade, ATMs com maxillofacial radiology and imaging. London: Mosby-Wolfe,
1995.
côndilos que mostram dimensão ântero-posterior redu-
zida, o que não necessariamente caracteriza hipoplasia,
tendem a apresentar deslocamento anterior de disco. Abstract. Temporomandibular joint disk adhesion associated with con-
Cremos que a redução das dimensões do côndilo man- dylar hypoplasia: a case report.
dibular determina uma falta de suporte adequado para We report a case of a 17-year-old male patient presenting bilate-
manter o disco estável em sua posição normal e funcio- ral disk adhesion associated with condylar hypoplasia on the left
nal entre os componentes ósseos articulares, propician- side. The patient was complaining of articular pain on both sides
and progressive jaw open limitation over the previous two years.
do, assim, o seu deslocamento.
The patient did not report articular noise and, clinically, presented
O caso em tela mostra-se sui generis por revelar con-
jaw opening limitation, with deflection of the mandible to the left
dições distintas e incomuns para cada uma das articu-
side without correction of the trajectory at the end of the jaw
lações. A adesão do disco articular direito ao compo- opening movement. Our diagnostic impression was: disk adhesi-
nente temporal, em posição normal, caracteriza o “fe- on (“anchored disc phenomenon”) and limitation of the condyle
nômeno do disco ancorado”, e a restrição do movimento translation, for the right side, and disk adhesion, condylar hypo-
de translação do côndilo associada à ausência de histó- plasia, and limitation of the condyle translation, for the left side.
ria de estalidos remotos corroboram este diagnóstico. Keywords: Temporomandibular joint; Magnetic resonance imaging; Tem-
Cabe ressaltar, contudo, que a restrição severa da trans- poromandibular joint disk.

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