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Parecia incrível que um trapo de homem como


Corentin, mutilado e impotente, ainda se desse ao desvario
de tentar o prazer na carne pura de uma jovem. Mas ele não
sabia deter-se quando avistava qualquer bela fêmea nova. E
ali estava, atirado sobre Bárbara, como um bugre, a cobri-la
de beijos violentos, esmagando-a em abraços, pronunciando
frases de ternura ridícula.
Compreendi que o homem ficara, mais uma vez, fora
do seu juízo. Era minha oportunidade de salvação.
Pé ante pé, fui caminhando na direção de uma
prateleira cheia de garrafões de vinho. Pesados garrafões
que a oficialidade nazista fazia guardar na minha casa para
suprimento alcoólico de suas farras terríveis. Retirei um,
dos mais cheios, e voltei para junto do monstro, que a esta
altura dava grunhidos selvagens, maldizendo-se da sorte.
Apenas os olhos de Bárbara se voltavam para mim, por
cima dos ombros do tarado. Suplicavam que eu desferisse o
golpe.
― Agora! ― gritou ela, num momento decisivo.
Levantei o garrafão e vibrei-o com todas as minhas
forças contra a nuca de Corentin. O brutamontes caiu para o
lado, sem um gemido, enquanto o vinho, misturado ao
sangue, compunha uma estranha mancha vermelha no chão
da adega. Sem dúvida, era aquele um lugar propício aos
crimes violentos.
― Vista-se depressa! ― falei. ― Não podemos ficar
aqui um minuto sequer!
Bárbara estava ainda paralisada de terror. Gotas de
sangue do monstro salpicavam-lhe os seios trêmulos. Um
quadro de certa beleza selvagem, se não fosse sinistro.
― Para onde iremos? ― quis ela saber, ao recobrar o
domínio de si mesma.
― Para fora daqui, de qualquer modo! ― gritei-lhe,
também eu, no auge do nervosismo.
A jovem pôde vestir-se com a rapidez que a ocasião
determinava. Afinal, saímos como um tufão, pela porta da
adega, e chegamos à sala. Reuni, em meu quarto, o que
podia, juntei alguns papéis indispensáveis e despejamo-nos
para a rua. Tivemos aí a grande surpresa. Todo o quarteirão
estava cercado pela polícia militar alemã.
― Aproximem-se! ― ordenaram-nos os nazistas, do
outro lado do cordão de isolamento.
Sem outra alternativa, caminhamos na direção do
grupo de oficiais. Não eram dos nossos conhecidos. Um
major perguntou meu nome.
― Giselle.
― Quero nome e sobrenome! ― gritou o leão louro.
― Giselle Montfort! ― declamei.
Ele se voltou para minha companheira com a mesma
pergunta.
― E você?
― Bárbara Verger.
O major pareceu satisfeito com nossas respostas. Mas
explicou:
― As duas seguirão conosco.
Perguntei se estávamos presas.
― Não sei! ― vociferou o leão ariano.
Resolvi protestar. A vida entre aqueles mastins me
havia ensinado a jamais aceitar uma ordem sem procurar
contorná-la.
― Temos o direito de... ― fui argumentando.
O lourão cortou-me a palavra:
― Você não tem direito algum. Nenhuma francesa tem
direitos sob o domínio da Alemanha de Hitler.
Olhei-o firmemente, e voltei à carga:
― O general Stupnaggel sabe disso?
― Ele me deu a ordem pessoalmente! ― disse o major.
― Posso saber que ordem?
― Ordem de levar você e quem estiver na sua casa,
para interrogatório.
― Quem fará a inquisição? O general?
― Não!
― Quem, então?
― Um membro da Gestapo.
Fez um gesto de aborrecimento quando me viu
preparada para fazer nova pergunta, e cortou:
― É só o que tenho a dizer.
***
Dois minutos depois estávamos num auto alemão,
rodando através de Paris na direção da Place de La
Concorde.
Fui imaginando o que nos poderia acontecer. Gestapo!
Interrogatório da Gestapo. Os alemães de Himmler haviam
aperfeiçoado métodos de tortura com requintes científicos.
Mas, às vezes, o sadismo de alguns oficiais encarregados
daqueles "trabalhos" superava o próprio interesse dos seus
superiores em descobrir segredos. Estavam já tão
deformados no caráter que para eles era um prazer sem
conta observar o sofrimento das vítimas.
Zingg me descrevera algumas das torturas comumente
impostas aos "maquis" da Resistência. Aos homens davam
supositórios de mostarda quente. Às mulheres queimavam,
lentamente, os bicos dos seios, com arames em brasa.
Certa feita um casal foi apanhado, nos arredores de
Paris, transmitindo por um telégrafo miniatura certas
mensagens cifradas aos aliados londrinos. Interrogado o
homem, negou-se a declinar os nomes dos seus
companheiros do grupo. Usaram, então, para obrigá-lo a
confessar, deste expediente maquiavélico: diante dele, nua,
a esposa foi submetida aos maiores vexames sexuais com
soldados nazistas. Em dado momento, trouxeram um preto
zulu para a sala e obrigaram a jovem senhora a ter relações
sexuais diante do marido acorrentado e amordaçado.
Cenas de inferno!
A um outro "maquis" mostraram a própria filha, de 13
anos, torturada nas mesmas condições. Um desvirginamento
violento, à vista do pai, com todos os piores requintes de
maldade. Eu sabia que a gente de Himmler desafiava a
crueldade do próprio demônio, e a simples palavra Gestapo
já era suficiente para me fazer gelar o sangue nas veias.
Agora me levavam a mim e a Bárbara, para um desses
interrogatórios. Nem ao menos tivera eu tempo de pôr na
bolsa uma daquelas cápsulas de cianureto de potássio que
me poderiam oferecer a alternativa de um suicídio, se o
sofrimento chegasse a ser maior do que o medo da morte.
Estava indo desprevenida ao encontro das feras.
***
O carro se deteve. Reconheci o Ministério da Marinha,
onde Stupnaggel fizera seu quartel-general.
― Desçam! ― mandou o oficial.
― Mas aqui é o "bureau" de Stupnaggel!
Eu dizia aquilo quase aliviada. Dentro do quadro geral
de terror a proximidade do general meu amante já dava para
fazer-me renascer esperanças. Entre os cães da Gestapo e o
meloso Comandante de Paris, mil vezes este último que, ao
menos, admirava meu corpo e não gostaria de mutilá-lo,
quando menos fosse para não perdê-lo no rol dos seus
prazeres imediatos.
― Desçam imediatamente! ― a voz do major era mais
do que autoritária. Não admitia dúvidas. Obedecemos.
Através de corredores e salas, fomos dar num pequeno e
confortável escritório. O oficial penetrou conosco no
aposento, enquanto os símios louros de baixo escalão
guarneciam a porta, do lado de fora.
Stupnaggel estava sentado à prussiana, todo esticado
para a frente, lendo um papel certamente importante. Não
encontrei, no olhar que me lançou, senão dureza. Teve que
despachar o oficial presente, antes de me dirigir a palavra.
― Espere aí do lado de fora! ― disse ao leão rúbeo
que nos guardava. ― Se precisar, chamo-o!
Encarou-me, com olhos de gelo, e grunhiu:
― Então, bela Giselle! Outra vez metida em atentados.
Pude observar, nas palavras do general, um terrível
ódio reprimido. O elogio, bela Giselle, não era senão um
prenúncio de tempestade. Tratei de me defender com o
cinismo de sempre.
― Se pensam isso, enganam-se redondamente ― falei,
com voz firme.
Stupnaggel dava nítida impressão de haver acreditado
na história louca de Corentin. De repente, lembrando-se de
alguma coisa, perguntou:
― E afinal, onde é que ficou o Corentin?
Engoli em seco e respondi, ainda ali com voz decidida:
― Em minha casa.
― Quer dizer que... ― fez o general.
― Vai morrer daqui a pouco ― completei.
Stupnaggel apanhou o fone e rapidamente deu ordens
em alemão para que tentassem retirar Corentin da minha
casa.
― Onde está ele, Giselle?
― Na adega.
O fone voltou a pousar-se e Stupnaggel, num tom seco,
pediu-me o relato completo dos acontecimentos.
― É muito simples ― disse-lhe eu. ― Corentin queria
matar Himmler.
O general fez um ar sarcástico, e comentou:
― Engraçado. Corentin afirma justamente o contrário.
Que você queria matar Himmler!
― Mentia, aquele desgraçado! ― gritei.
Stupnaggel acalmou-se e continuou o interrogatório:
― Quer esclarecer-me um ponto?
― Se eu puder.
― Como se explica que Corentin quisesse matar
Himmler, se foi ele próprio quem o avisou?
― Avisou de quê?
― Do atentado com a bomba.
― Onde?
― Em sua casa.
― Pois aí está o ponto importante ― observei, com os
olhos fixos nos seus.
― Seja mais clara.
― Corentin queria a minha morte para, depois, lançar-
me a culpa do que acontecesse.
― Não entendi nada.
― Haverá o atentado contra Himmler. Mas não em
minha casa. Outra bomba deve ter sido colocada em algum
ponto por onde Himmler passará. Ora, coincidindo essa
explosão com a outra, em minha casa, logicamente a
suspeita recairia sobre mim.
Stupnaggel estava lívido. Suas mãos tremiam.
― Você acha, então, que existe a possibilidade de
outra bomba...
― Contra Himmler? Tenho plena convicção.
Outra vez, Stupnaggel pegou o fone. Pediu que
completassem a ligação com Himmler. Um minuto depois,
falava com o chefe nazista e repetia tudo que eu lhe dissera.
Terminou por aconselhar que se acautelasse e fosse para
lugar seguro. Encarou-me, mas em seus olhos não havia
muita certeza.
― Veremos, Giselle. De há muito que você está sob
suspeita.
― Quais os motivos?
― O envenenamento dos oficiais e uma série de
acontecimentos, desde o meu rapto.
― O senhor é um ingrato. Por acaso não o salvei?
― A Gestapo acha que isso faz parte do plano.
― Que plano?
― Um plano para conquistar a nossa confiança.
― Acredita que os "maquis" deixariam o senhor vivo,
tendo-o nas mãos?
― Foi justamente o que lhes disse.
O telefone bateu. Depois de ouvir a mensagem,
Stupnaggel voltou-se para mim e esclareceu.
― A polícia alemã entrou em sua casa. Conseguiu
encontrar a bomba de ação retardada ainda sem detonar.
― E Corentin?
― Não havia ninguém na adega.
― Ninguém? Impossível!
― Encontraram um bilhete para você. Assinado por
Paulo Zingg.
― Mas Zingg está morto!
― Os mortos não escrevem bilhetes, Giselle.
― Que diz o papel encontrado, Stupnaggel?
― Isto é o que saberemos daqui a pouco. Mandei trazê-
lo.
E acrescentou:
― O bilhete estava pregado a um alfinete na mala de
couro que envolvia a bomba.
― E a bomba?
― Os "maquis" retiraram a espoleta.
Dez minutos depois, um oficial entrou. Trazia o bilhete
de Paulo Zing. Levantei-me, ansiosa. O general Stupnaggel,
com a mão, ordenou que eu voltasse ao meu lugar.
― Calma, Giselle.
***
O bilhete que meu marido, Paulo Zingg, deixara para
mim, sobre o invólucro da bomba-relógio cuja espoleta
havia sido previamente arrancada, resumia-se numa
pequena quadra, muito em voga em Paris, antes da guerra,
letra de canção popular que dizia assim:
"Homem corre por mulher
Bombeiro persegue a chama
Mas quando a destino quer
O fogo dorme na cama. "

E na outra face do papel esta advertência:


― Giselle, cachorra! Traidora infame! Um dia o fogo
crepitará sobre seu leito de mulher ordinária. Eu me
vingarei! Assinado: Paulo Zingg.
***
Depois de três horas de interrogatório o general
Stupnaggel já perdera a paciência. Não havia meio de
incriminar-me. Afinal, a bomba encontrada graças à minha
advertência, e o bem redigido bilhete de Zingg, agredindo-
me daquela maneira, deixavam o nazista desconcertado.
Ainda chegou a fazer duas ou três chamadas telefônicas,
uma delas para o próprio Himmler, naturalmente
consultando-o sobre a minha posição. Fui libertada ao cabo
de meia hora.
Antes de abandonar o antro de Stupnaggel ainda tive
coragem de fazer-lhe a pergunta óbvia, para testar sua
reação:
― Regresso à minha casa?
― Evidentemente! ― fez ele, amuado. E acrescentou:
― Cuide-se!
Era o que eu esperava . O homem estava amolecendo
outra vez. Resolvi conquistar mais terreno.
― Bárbara vai comigo? ― perguntei, com voz de
namorada às vésperas do primeiro beijo.
― Não há objeção! ― grunhiu Stupnaggel fitando-me
com olhos de mendigo. E completou:
― Esta noite irei procurá-la. Assunto importante, pode
crer!
Fui então magnânima:
― Continuo à sua disposição, apesar de tudo!
― Apesar de tudo, por quê? ― quis saber o general.
― Ora, então acha pouco todas estas humilhações a
que vocês me submetem? ― reclamei com muita
sinceridade na voz.
Stupnaggel teve seu instante paternal:
― Você precisa compreender, minha cara Giselle, que
estamos em guerra. Guerra total, violenta e desumana.
― Mas onde atrapalho eu sua guerra? ― ironizei.
― Não diga bobabens! ― crispou-se o general. ―
Ninguém está livre de suspeitas.
― Nem eu? ― gemi, mais humilde, com medo da sua
súbita ira.
― Nem minha mãe! ― e o nazista foi enfático. ―
Afinal, por que estaria você fora de suspeitas?
Resolvi arriscar, usando meu velho e providencial
cinismo. Dei a explicação lógica:
― Vivo comendo, bebendo e dormindo com os
alemães... sobretudo dormindo!
― Mais uma razão para ser vigiada! ― crocitou o
general.
― Não vejo por quê ― inquiri.
― Claro que você vê ― disse Stupnaggel. ― Você é
esperta demais para deixar de ver uma razão como essa
justificar nossa vigilância. Estando perto de nós, vivendo
em intimidade conosco, você está perto e na intimidade das
informações. Hoje os aliados oferecem muito dinheiro por
informações. Sua inconfidência, Giselle, nos poderá custar
caro, muito caro...
― Não seja tão desconfiado, general! ― cortei eu,
procurando sorrir o melhor dos meus sorrisos. ― Afinal,
nós as francesas colaboracionistas ― ou contorcionistas -,
pois o que vocês querem é contorcionismos, somos umas
pobres tolas. Umas bobas alegres, é o que somos!
― Bobas, por quê?
― Porque deveríamos deixar os alemães "jejuando"
durante todo o tempo da ocupação da França. Ou então,
deixá-los "bastarem-se a si próprios", como aconselham
seus líderes.
― Giselle! Esta não é a hora própria às recriminações.
Não exagere! Houve um esboço de atentado, em sua casa,
contra uma figura importantíssima do governo nazista.
Fizemos investigações, você foi liberada, e ainda reclama!
― Reclamo porque a culpa é dos senhores.
― Vai me dizer por quê?
― Claro! Se sabem que minha casa é freqüentada pela
nata da oficialidade nazista, deveriam guardá-la melhor. Até
porque minha vida também corre perigo com esses
atentados. Minha vida e meu corpo...
Fiz um movimento provocante com as cadeiras, e
acrescentei, curvando-me sobre a mesa até que o general
pudesse investigar o meu decote:
― Não gostaria que meu corpo viesse a ser dilacerado
por bombas da Resistência...
Stupnaggel pareceu impressionar-se com estes últimos
argumentos. Estava a um passo de se convencer da minha
inocência. Mas insistiu no tema:
― Giselle, você terá muitas outras oportunidades de
demonstrar seu grau de lealdade à Alemanha.
― De que maneira? ― inquiri, fingindo
aborrecimento.
Stupnaggel mordeu os lábios finos, compôs uma
fisionomia indecifrável e rosnou:
― Veremos. . . veremos!
***
Naquela mesma noite o orgulhoso general
compareceria à minha casa, ostentando uma alegria que
logo observei ser exagerada. Suas manifestações amorosas
chegaram a se tornar chocantes. Mas dentro de poucos
minutos lembrou-se da minha amiga.
― Onde está a Bárbara? ― perguntou.
― No quarto.
― Chame-a, imediatamente!
― Bárbara! ― gritei. ― O general quer ver você.
Dois minutos depois ela entrou na sala. Irradiava
juventude.
― Aqui estou, meu general ― foi dizendo, numa voz
cheia de estudada ternura.
― Você está ótima nesse vestido! ― sibilou o nazista.
E, dirigindo-se a mim: ― Bárbara poderá ajudar muito na
recepção que hoje daremos aqui.
― Recepção? ― quis eu saber. ― Sim. Uma noitada
alegre para homenagear um amigo que vem de longe.
― Posso saber quem é?
― Dentro em pouco ― e Stupnaggel fez um ar
misterioso:
― Ele traz nas botas um pouco da areia do deserto.
Cuide bem do meu convidado. É uma fera!
O próprio simum soprando na França!
***
As minhas conjeturas sobre quem deveria ser o
visitante misterioso não foram das mais demoradas. A esse
tempo já eram famosas as tremendas ações daquele general
nazista que mais tarde se cognominou de "A Raposa do
Deserto". Achei mais prudente, no entanto, deixar o
questionário para depois. Afinal eu ainda me encontrava sob
suspeita, e o melhor a fazer era justamente fingir
indiferença. Limitei-me às perguntas naturais, de dona de
casa alegre.
― Devo "convocar" outras meninas?
Stupnaggel pareceu satisfeito. Umedeceu os lábios e
concordou:
― Sim, minha querida Giselle. Convoque seu
escultural regimento.
― Quantos virão? ― inquiri, pondo na voz um tom
estritamente profissional.
― Eu e o outro ― informou Stupnaggel.
― Mas... já não estamos as duas aqui, Bárbara e eu? ―
observei.
― Ora, ora! ― fez o general. ― Não seja econômica,
minha Giselle. Queremos estoque.
― Outras duas?
― Mais quatro. Variedade, variedade, Giselle!
Mulheres de todos os feitios, que possibilitem a escolha.
Também eu pretendo divertir-me à grande, esta noite.
Porque amanhã...
― Que tem amanhã?
― Muito curiosa?
― Nem tanto. Diga se quiser.
― Bem... amanhã me despeço de Paris.
― Vai para a Rússia?
― Não. Ainda não.
― Berlim?
― Sim, Berlim.
― Me leva com você?
― Não. Você fica.
― É curioso. Há duas semanas você brigava para me
levar.
Stupnaggel fez um gesto desolado com a mão quando
disse:
― Era meu maior desejo ter seu corpo alucinante, ao
meu alcance, em qualquer parte onde fosse.
Mas "eles" não querem permitir que eu a leve.
― Quem são "eles"?
― Os homens da Casa Parda. É estranho, Giselle,
apesar de todo o meu prestígio junto ao führer, a Gestapo
vigia-nos dia e noite.
***
Encaminhei-me para o telefone, a fim de chamar umas
garotas bonitas que pudessem saciar, de algum modo, o
apetite sempre aguçado daqueles nazistas. Nem todas
seriam do serviço de espionagem, mas eu tinha de me
arriscar. O general queria estoque.
― Vou descansar um pouco ― disse ele,
encaminhando-se para o quarto melhor. ― Assim que meu
ilustre convidado chegar, acorde-me.
― Fique tranqüilo ― garanti. ― Cumprirei à risca
suas ordens.
Fiz a ligação e convidei as moças para a noitada
lúbrica. Dirigi-me, em seguida, ao banheiro, onde me
deveria preparar com o maior cuidado. A frescura da minha
pele, a exata dosagem de perfume, a limpeza impecável dos
meus cabelos tinham uma importância decisiva na conquista
dos alemães. Eles gostavam de cheirar-me como
perdigueiros, antes do amor. Meu banho era, assim, um
ritual complicadíssimo, cheio de detalhes de feitiçaria.
Aliás, na França, só as meretrizes são perfeitamente limpas.
E eu precisava adotar, para com meu corpo, um cuidado de
zelosa profissional.
Jamais os decepcionei.
***
Com estas idéias bem presentes no meu espírito, entrei
no banheiro e comecei a despir-me. As peças caíram,
lentamente, aos meus pés. Abaixei-me para apanhá-las, e foi
aí que senti duas mãos enormes me agarrarem com
violência. Enquanto uma tapava-me a boca, de maneira a
não me deixar emitir sequer um gemido, a outra comprimia-
me à altura dos seios.
Quando, toda nua, tentava desvencilhar-me daquelas
garras misteriosas, ouvi a voz do suposto agressor sussurrar-
me ao ouvido:
― Eu sou um amigo! Um amigo, Giselle!
A pronúncia carregada fazia crer que se tratava de um
inglês. Deixei de resistir e fui instantaneamente libertada.
Pude então observar o homem de perto, apesar do susto.
Ruivo, sardento, não passava de um adolescente. Vestia
roupa simples e com algum esforço se confundiria na rua
com qualquer parisiense. Perguntei-lhe, com um fio de voz:
― É inglês? .
― Sim ― disse ele, com ar mais tranqüilo.
― Soldado?
― Piloto da RAF!
― Como pode estar aqui, desta maneira?
― Fui abatido, numa operação sobre Dunquerque.
Depois de haver derrubado três "stukas", distraí-me um
segundo. E o quarto, que fingia cair, voltou-se com todo o
fogo das metralhadoras.
― Quando foi isso?
― Há três semanas.
― E como veio bater na minha casa?
― Por instruções de Brandt. Conhece Brandt, não?
― Claro que conheço. E onde está ele agora?
― Infelizmente já não está em parte alguma! ― e o
rapaz pronunciou estas palavras com a fisionomia
carregada.
― Desapareceu? ― perguntei, assustada.
― Foi executado, a pistola, minutos após de me
fornecer a informação sobre seu endereço.
― Explique-se melhor. Como aconteceu tudo isso?
― Bem, eu estava escondido no próprio quarto de
Brandt quando oficiais nazistas bateram à porta. Ele
mandou que eu me colocasse atrás de um pesado armário,
antes de abrir a porta. A porta foi aberta, e deu-se a
desgraça. Dois tiros o abateram, no minuto seguinte, Os
oficiais ― depois soube, pela conversa que tiveram ― já
vinham com a missão de executá-lo. As ligações de Brandt
com o "Intelligente Service" haviam sido descobertas. Mas
a Casa Parda não desejava escândalo. Imaginem, um
parente tão próximo de Hitler traindo a Alemanha!
Resolveram simular um atentado. A rapidez com que saíram
do local permitiu-me escapar.
***
Impressionava-me o relato do piloto inglês. Não
poderia deixar de acreditar em suas palavras, sussurradas
em tom quase imperceptível. O medo de que Stupnaggel de
repente acordasse não me impedia de pedir-lhe que
prosseguisse na sua história. O jovem declinou sua patente.
Era tenente, convocado. Antes da guerra, pintor
impressionista. Jovem, cheio de ilusões. Doía-me vê-lo
agora, ali, escondido no meu banheiro, a um passo da
morte.
― Como se arranjou na França desde que foi abatido?
― perguntei.
O jovem apontou suas próprias roupas andrajosas.
Explicou:
― Assim mesmo, disfarçado nesta sujeira, consegui
atravessar grande parte do país. Não é tão difícil. Os
mendigos não têm pátria. Aliás, neste estado, pude pedir
comida como qualquer miserável. Estendendo a mão. E
assim cheguei a Conchy.
― Conchy?
― Sim. À margem do rio Conchy. Lá, existe uma
floresta protetora.
― Escondeu-se, então, na mata?
― Muitos outros ingleses como eu se alojaram lá.
Cavamos buracos de raposa, comemos até raízes de árvores.
Muitos não resistem. A falta de proteína os enfraquece.
Adoecem e morrem como moscas. A princípio deixávamos
os corpos à beira da cidade, a fim de que tivessem sepultura
cristã. Agora, o perigo é maior e não se pode arriscar.
Enterra-se o morto na própria floresta.
― E os alemães não devassaram a mata?
― Experimentaram, sem maiores resultados. Hoje
preferem ficar à espera de que a fome cumpra sua missão.
Metade já entregou a alma a Deus. Cada semana tiramos a
sorte para saber quem vai buscar socorro entre os "maquis".
Sou o quinto a ser contemplado com a incumbência. Os
outros quatro não foram felizes.
― Mortos?
― Logo na orla da floresta.
― Como foi que você escapou?
― Um cochilo dos alemães. Aliás, dizem que tenho
sorte. Vamos ver se continuo assim.
― Qual é o socorro que imagina possível, a esta altura?
― Não sei. Alguma coisa deve ser feita. Alguma
loucura útil.
***
O rapaz estava angustiado. Via-se no seu rosto que as
esperanças já eram bem escassas. Mesmo assim fui
obrigada a dizer-lhe a verdade. O pior.
― Quero que compreenda uma coisa ― falei. ― Estou
sob suspeita. É muito remota a ajuda que lhe posso dar
neste momento.
A aflição do jovem tenente inglês mostrou-se ainda
mais evidente no seu rosto sardento. Mas ainda perguntou:
― Não mantém ligações com o Movimento de
Resistência?
Expliquei-lhe, com sinceridade:
― Atravesso uma fase de descontrole. E os nazistas me
vigiam de perto. Mesmo assim quero saber o que você
pretende que seja feito pelo seu pessoal oculto na floresta.
― Desejo simplesmente retirá-los de lá! ― afirmou,
energicamente, o jovem inglês. ― Há de haver um meio
qualquer, humanamente possível, de evacuá-los, um a um,
através da fronteira com a Suíça.
― É muito difícil! ― observei.
― O difícil a gente faz já, e o impossível daqui a
pouco! ― retrucou o corajoso tenente, repetindo uma frase
do seu marechal Montgomery. Vi que estava diante de um
verdadeiro soldado. Bravo, obstinado, e dono de certa dose
de otimismo insensato muito útil aos que fazem a guerra.
Naquele minuto mesmo decidi ajudá-lo, mas resolvi tomar
as providências de primeira linha.
― Vou buscar comida ― expliquei-lhe, e vi como seu
rosto se iluminou a estas palavras. ― Conversaremos
depois.
Fui até a cozinha. Na geladeira havia de tudo que os
nazistas me prodigalizavam. Presunto, ovos cozidos.
Queijos. Tortas. Eu era, realmente, sua melhor despenseira.
Enchi uma cesta com presunto, pão e frutas, e levei-a ao
pobre rapaz faminto. Apesar da sua educação britânica ele
teve de ser voraz na maneira de ingerir os alimentos
oferecidos. Era trágico vê-lo tão animalizado pela desgraça.
Só alguns instantes depois de aplacar a fome, teve calma
para ouvir meu frio relato da situação.
― Estou na alça de mira dos nazistas! ― insisti.
― Mas diga! ― fez ele, com energia. ― Quanto tempo
acha que poderá ficar ainda em liberdade?
― Talvez quinze dias. Talvez um mês...
― Será presa inevitavelmente?
― Não pode haver dúvida sobre isto. A esta altura, a
Gestapo já deve ter colhido provas decisivas contra mim.
Eu puxei demais os bigodes do diabo. Minha vez terá de
chegar.
― Neste caso, por que não a prendem já?
― Muito por conveniência, esperando que outros do
meu grupo caiam em suas redes. Muito porque se divertem
com meu corpo.
O inglês deu um olhar tímido sobre as minhas formas.
Eu ainda estava nua e me esquecera de que ao pobre rapaz o
espetáculo da minha nudez talvez fosse uma provocação
demasiado forte.
― É... ― murmurou ele. ― Sua beleza não é deste
mundo!
Neste instante, do quarto onde Stupnaggel dormia, veio
seu grito rouco:
― Giselle!
― Já vou! ― respondi. E vestindo, apressadamente,
um robe-de-chambre, fiz a última recomendação ao inglês
para que não saísse em hipótese alguma. Ele fez a pergunta
natural:
― E se algum oficial alemão entrar aqui?
Não pensei dois segundos. Dei a única resposta
possível naquelas circunstâncias:
― Se algum oficial alemão entrar neste banheiro,
mate-o silenciosamente. É a única solução. Do contrário
estaremos perdidos!
Vi que não havia qualquer espanto no seu olhar ―
antes um brilho de contentamento ― quando deixei-o para
ir ao encontro de Stupnaggel. O general permanecia
deitado, envergando a farda. Nem sequer descalçara as
botas.
― Dormi muito? ― perguntou, entre dois bocejos.
― Uma hora e pouco ― informei.
― Era o tempo do nosso hóspede haver chegado! ―
fez ele, consultando o relógio.
Mas nesse exato minuto a campainha soou. As jovens
por mim convidadas fizeram sua entrada triunfal na sala.
Traziam os corpos bem cobiçáveis apertados em vestidos
justos, reveladores. Stupnaggel deu um salto de
contentamento e passou a escrutinizá-las com o olhar de
fauno exigente. Depois, sorrindo para mim, confessou:
― Excelente gado, minha querida Giselle! Gado de
primeira. E nós, como bons reprodutores, faremos jus à sua
escolha.
Quando eu fazia as apresentações, de resto
desnecessárias, pois o meu general já acariciava o joelho de
uma das mais ousadas, ouviu-se novamente o soar da
campainha. Foi o próprio Stupnaggel que se levantou para
abrir a porta.
E deu entrada na sala um homem forte, em trajes civis.
Então era ele mesmo! O marechal de campo, Von Rommel 1,
em pessoa! A "Raposa do Deserto", na minha casa! Por
mais prevenção que existisse no meu espírito contra as
figuras do Terceiro Reich, não pude deixar de sentir pelo
comandante das forças de Hitler no deserto africano uma
desnorteante admiração. Seu rosto estava nas primeiras
páginas de todos os jornais franceses. A identificação foi
imediata. Eu tinha von Rommel naquele instante, a dois
palmos de mim. Homem bonito, decerto! Feio bonito! Cara
de macho. Cara curtida pelo sol do deserto. Nenhuma
mulher poderia deixar de emocionar-se diante da sua figura.
O marechal percebeu meu espanto. Percebeu a emoção
que me causara. E muito depressa tomou-me as mãos entre
as suas, fortes e ásperas, para uma saudação amistosa.

1
O marechal von Rommel foi, com efeito, um nazista fora do comum. Num
inquérito jornalístico feito logo depois da Segunda Guerra Mundial na Inglaterra, obteve o
primeiro lugar como "o maior general da guerra". Homem de grande personalidade,
estrategista dos mais hábeis, revelou extraordinário talento militar iniciando no deserto a
guerra de movimento. A pertinácia e o gênio de Montgomery derrotaram-no. Segundo
este, o único defeito de von Rommel era repetir seus golpes com muita regularidade. O
fim desse bravo cabo de guerra foi trágico. Suicidou-se ― segundo depoimento do seu
próprio filho ― por imposição de Hitler, que já lhe invejava o prestígio. (NE)
― Você, então, é Giselle? ― disse, com um sorriso
bom.
Fiquei ainda mais surpresa.
― Então o senhor me conhece, marechal?
― Ora, Giselle, até o meu caro führer gostaria de
visitá-la. Sua fama é maior do que a de muitos generais do
meu grupo.
Havia silêncio em torno da nossa conversa. As meninas
se haviam sentado. Stupnaggel emudecera. Mas foi o
próprio marechal que resolveu quebrar o protocolo.
― Fiquem à vontade. Divirtam-se. Quero vê-las todas
alegres e naturais. Afinal, para um soldado que durante
tanto tempo esteve apenas olhando engrenagens de tanques
e de fuzis, no meio do Saara, o simples sorriso de uma
jovem parisiense é a maior das recompensas.
As garotas sorriram da diplomacia do esbelto marechal.
E muito depressa se entregaram à sua admiração. Não é
preciso descrever a confusão de sentimentos que ia, naquele
momento, tomando conta da minha alma. Entre o impacto
da visita do mais famoso oficial de Hitler à minha casa, e o
susto provocado, horas antes, pelo piloto inglês escondido
no banheiro, meu sangue-frio começava a correr mais
quente. Eu estava denotando meu nervosismo. E pedi
licença ao meu hóspede para ir até o banheiro. Queria saber
o que se passava com o jovem tenente.
Encontrei um quadro terrível. Só por graça de Deus
consegui sufocar na garganta um grito de horror.
― Minha Nossa Senhora! ― foi o que, afinal,
pronunciei baixinho.
O piloto inglês fumava, tranqüilamente, sentado numa
banqueta. Mas no chão, sobre o ladrilho frio, jazia o corpo
inerte de um oficial alemão. No pescoço ainda se via o
instrumento da sua morte: um cinto de robe de chambre. O
morto guardava no rosto lívido uma expressão de pavor
intenso.

22

O piloto inglês apontou o alemão morto, num gesto de


desalento, como se quisesse evidenciar o seu profundo
desgosto por ter sido obrigado a executar o nazista naquelas
circunstâncias.
― Afinal ― pude indagar -, que aconteceu?
O jovem limpou o suor do rosto, abaixou o tom da voz
e disse:
― Ele entrou aqui. Estava à procura de algo. Trazia
uma pistola na mão.
― E você?
― Não tive outro remédio senão estrangulá-lo. Aliás,
cumpri suas ordens. Matei-o em silêncio absoluto. Não
chegou a emitir um gemido.
O rapaz parecia desolado, fazendo esta descrição.
Acrescentou:
― Desculpe-me, Giselle. Com isto venho atrapalhar
mais ainda sua vida já tão cheia de riscos.
― Fale baixo! ― (fiz esse pedido apontando na
direção da sala onde Von Rommel e Stupnaggel
confraternizavam com as adolescentes).
Noutro tom expliquei ao piloto britânico a necessidade
de remover aquele corpo. Ele sugeriu três ou quatro meios
arriscados, inclusive o esquartejamento para remoção
parcelada, em valises e pacotes impermeáveis. Nenhum
seria viável no momento.
― Agora é impossível! ― disse-lhe. ― Amanhã, cedo,
quando todos partirem, pensaremos no problema. Neste
momento procurarei interditar este banheiro. Felizmente há
outro melhor e mais acessível, para uso dos convidados.
Dispus-me a sair quando o jovem piloto fez a pergunta
natural:
― Vou dormir, então, aqui, com este cadáver?
― Que outra medida poderia sugerir? ― disse eu,
aflita.
O jovem rosnou qualquer coisa como "está bem", ou
"seja lá o que quiser", enquanto eu recomendava que se
trancasse a chave, por dentro. Deixei-o fazendo companhia
ao cadáver e retornei à sala. Vivia meu momento crucial.
Tinha um nazista morto no meu banheiro e um nazista vivo,
herói e famoso, na minha sala de jantar.
***
― Onde esteve? ― foi logo perguntando Stupnaggel à
minha chegada.
― Sempre tenho de dizer onde vou? Não se pode nem
empoar o nariz nesta casa sem licença do Alto Comando?
― disse eu, entre aborrecida e brincalhona.
― Cuidado, Giselle! Não me irrite! ― crocitou
Stupnaggel, e sua voz era agourenta como a de um corvo.
Mas, para grande surpresa, von Rommel saiu em minha
ajuda:
― Certas perguntas, meu velho, não devem ser feitas
às senhoras. Giselle teria ido, talvez, purificar as mãos, em
água-de-rosas ― e pondo em mim seus olhos brilhantes e
astutos:
― O contato das rosas é sempre agradável, não é,
Giselle?
― As rosas são os seres mais inteligentes, meu caro
marechal. Porque vivem apenas algumas horas e conseguem
imortalizar um momento.
O curtido cabo de guerra nazista deixou-se atingir por
esta frase. Tomou-me as mãos e beijou-as, com muito
respeito.
― Mulheres capazes de dizer coisas assim, meu caro
Stupnaggel, valem por toda uma divisão blindada no deserto
― disse, sorrindo.
Aproveitei a deixa e, com muito jeito, reclamei:
― Mas é justamente seu amigo Stupnaggel, homem
inteligente, quem me persegue com suspeitas bárbaras. Põe-
me na condição de espiã, quando sou apenas humana. É
uma situação que, dia a dia, se torna mais incômoda.
― Por acaso não tenho minhas razões? ― rosnou
Stupnaggel.
― Você imagina coisas, meu general ― disse, com o
mais quente dos sorrisos. ― Fantasias. Um homem
imaginoso tem de perseguir suas conjeturas.
― Não sou eu ― defendeu-se o general, um pouco
mais brando.
― A Gestapo.
Fiquei muda. Von Rommel me olhava agora com olhos
diferentes. Era novamente a raposa desconfiada, farejando o
perigo. Mas sua diplomacia estava acima de tudo. Assim,
pois, decidiu acabar com a discussão, tomando-me pelo
braço e conduzindo-me até o jardim de inverno onde havia
um banco estofado, muito confortável. Ali sentou-se e fez
com que ficasse perto dele.
― Giselle, quero lhe contar uma história. Quer ouvir?
― Ora, marechal, quem não desejaria ouvir uma
história contada de viva voz por von Rommel?
― Mas a minha é triste e incompleta. Uma espécie de
sinfonia inacabada. Quer ouvi-la, mesmo assim?
― Com todo o prazer ― disse-lhe eu, pondo a mão,
docemente sobre as suas, num assentimento bem feminino.
O marechal sorriu, paternalmente, fez-me um carinho
no rosto e principiou a falar.

A ESTRANHA MULHER AFRICANA

― De todas as surpresas que se atravessam no caminho


de um soldado nem sempre a mais intensa é a do combate.
Vejo que você, Giselle, pela sensibilidade que, em tão
poucos minutos de conversa, me revelou, será capaz de
entender o que digo. Eu fui ferido por uma palavra, há
algum tempo. E guardo a cicatriz como uma medalha.
O marechal falava um francês perfeito, embora
carregado no acento de certas frases. Via-se que não era um
homem comum, um nazista qualquer.
― Nós havíamos entrado numa aldeia africana ―
prosseguiu ele ― e ficamos admirados da mistura racial do
seu povo. Brancos e nativos exploravam o ouro que saía da
terra em abundância. Estávamos estabelecendo nosso
quartel-general numa velha casa assobradada quando o
oficial da patrulha de reconhecimento veio me dizer que,
em certo bangalô, à beira de uma represa, estava uma
mulher, jovem e só, recusando-se a render-se. Já dissera da
janela que não avançassem nossos homens um passo sequer,
ou faria voar tudo pelos ares.
A patrulha recuara, e o tenente vinha saber se a
artilharia poderia destruir, à distância, aquele reduto
guardado apenas por uma mulher. Interessei-me pelo caso, e
pedi ao oficial que me levasse, imediatamente, ao local
assinalado. Lá encontrei a jovem, na mesma posição
descrita pelo chefe da patrulha. Resolvi interpelá-la:
― Que diabo pensa a senhora que está fazendo? ―
gritei.
― Que diabo é você? ― gritou ela, de volta.
― Sou o diabo von Rommel!
A jovem mudou de tom:
― Ah! Então o senhor é o Comandante? Quero falar-
lhe pessoalmente, se for possível.
Por ser bonita a moça, resolvi condescender. Afinal,
aquela era uma experiência divertida, que também divertia a
oficialidade que estava comigo.
― Posso ir até aí? ― gritei.
― Sem susto! ― disse a jovem. ― Mas logo
acrescentou: ― Venha só e desarmado.
Apesar de todos os conselhos do meu Estado-Maior,
entreguei a pistola ao ajudante de ordens e marchei na
direção da casa. Passo a passo cobri o pequeno trecho que
nos separava, sem tirar os olhos da estranha mulher. Temia
que fosse uma louca e disparasse contra mim, a qualquer
momento, mas confiava na minha boa estrela, e atendia ao
impulso da minha própria curiosidade .
Nada de mais aconteceu, porém. Empurrei a porta e
via-a encostada à parede do fundo da sala, com um olhar de
fera acuada. Era linda. De uma beleza empolgante. Cabelos
negros e longos. Os olhos grandes, faiscando de luz. A pele
morena tostada, quase de ouro. Um corpo de linhas tão
puras que fazia lembrar o das jovens de Veneza, que
conheci na mocidade. Falou, e sua voz era mais calma, e me
envolvia e hipnotizava:
― Acomode-se, general. Preciso falar-lhe!
Sentei-me, não sem antes perguntar se o risco de
explosão de qualquer mina não deveria ser considerado,
preliminarmente.
― Não existe mina, ou qualquer outro artefato de
guerra nesta casa ― explicou-me.
― Então foi apenas um truque? ― perguntei, curioso.
― Sim ― disse-me ela, sorrindo. ― Um truque para
atrai-lo até aqui.
― Como saberia que eu vinha? ― indaguei, ainda
mais interessado.
― Porque já o conheço. Conheço sua fama. A fama da
sua coragem. Você não deixaria de vir. Esta é a missão que
você não confiaria a ninguém mais.
Confesso que neste momento estava perplexo. Só me
restava a alternativa de prosseguir indagando:
― De onde me conhece?
Ela sorriu, novamente, o mais belo dos sorrisos, e
perguntou, por sua vez:
― Não se recorda mais de mim?
Eu buscava um ponto de apoio na minha memória.
Desesperadamente. Aquelas feições, aquele sorriso... Onde
já os vira antes?
***
Ela veio se aproximando de mim. Tomou-me as mãos
entre as suas, analisou-as. Demorou seu olhar nos meus
olhos. Entrelaçou os seus dedos finos nos meus, e
finalmente revelou o grande segredo.
― Marechal von Rommel... o senhor é meu pai!
Quis levantar-me da cadeira, mas não consegui. O
olhar da jovem me envolvia e me paralisava.
Falou, baixinho:
― Minha mãe passou todas as horas finais da sua vida
a recordar-se do senhor, a relembrar episódios que viveram
juntos, na Baviera. E me ensinou todos os seus hábitos, seus
gostos, suas predileções.
Senti uma punhalada na minha alma. E gritei, um grito
que atravessou o meu passado:
― Irma!
A jovem se iluminou em lágrimas:
― Sim. Irma! Era o nome de minha mãe. Trocou-o
pelo verdadeiro. Ruth. A judia que o ilustre general Von
Rommel amou, nos idos tempos de capitão.
― Você é filha de Irma? ― indaguei, atônito.
― Não apenas de Irma ― disse ela ― mas também sua
filha, marechal. Veja a ponta dos seus dedos. Como se
assemelham aos meus. E o seu nariz perfeito, e o seu olhar.
Eu olhava e via, realmente, naquela face, um pouco da
minha face, e um trecho da minha vida. Mas confesso que,
naquele momento, tive receio de enfrentar perante os
oficiais do führer a situação de ser pai de uma judia. E fui
pusilânime quando afirmei:
― Você não pode provar que sou seu pai!
Ela sorriu, beijou-me a testa, com a maior ternura do
mundo, e disse, quase num sussurro:
― Não desejo provar coisa alguma. Basta que o senhor
saiba que tem uma filha judia. E basta que eu o tenha visto,
ao menos uma vez. Não desejaria morrer sem haver
conhecido meu pai, mesmo sendo ele um nazista.
***
A esta altura do relato pude ver que o bravo "Marechal
do Deserto" emocionava-se. Fumou e prosseguiu:
― Foi assim que, em pleno teatro de operações,
experimentei um impacto mais sério do que o de um
estilhaço de granada.
Naquela perdida aldeia africana o passado
violentamente chegava ao meu encontro, e me feria fundo.
A filha que eu tivera com a bailarina judia, Irma, velho
amor da Baviera, mostrava-se mais corajosa do que eu.
― Deixou-a? ― perguntei, assombrada.
― Ora, tentei convencê-la de todas as maneiras. Não
quis acompanhar-me por nada neste mundo. Era antinazista
feroz, e confessava-o na minha cara, e, depois, diante dos
próprios oficiais. Mas até aí o problema poderia ser
contornado. O pior é que minha filha trabalhava para os
ingleses. Pertencia ao Serviço de Inteligência de Sua
Majestade. E o corpo de agentes da Gestapo que me seguia,
como era de rotina, para realizar as tarefas especiais de
obtenção de informantes, encareceu-me a necessidade de
mandar fuzilá-la. Já estavam a par da situação e não
ignoravam que se tratava de minha filha.
― E o senhor o que fez?
― É claro que não pude concordar. A guerra tem
estranhos preceitos, mas nada há que justifique, à
consciência de um pai, o gesto de mandar fuzilar uma filha,
por qualquer motivo. Ordenei aos oficiais que não tocassem
na moça que, a partir desse momento, ficou à disposição do
Comando em Chefe. Esta atitude me custou caro. Foi feito
um comunicado a Berlim. Algum tempo depois o próprio
führer enviou-me um telegrama desaforado. Esse telegrama
eu o rasguei, na frente da oficialidade e dos meus próprios
"olheiros" da Gestapo. Mas respondi que seguiria para
Berlim, a fim de avistar-me com o Chefe Supremo e dar-lhe
explicações pessoais sobre o assunto.
― E como veio parar aqui?
― Em Paris?
― Sim.
― Recebi ordens para... Mas... o que é isto, Giselle?
Você está me interrogando. Isto é trabalho de espionagem!
Von Rommel dava um tom brincalhão a esta última
frase, mas senti que já não queria prosseguir no seu relato,
por demais revelador. Resolvi disfarçar:
― Ora, ora, marechal... o senhor só é obrigado a contar
o que quer. Minha pergunta se deveu ao fato de que sua
narrativa me impressionou de tal maneira que fiquei
interessada no final.
― Eu lhe havia prevenido que a história era triste e
inacabada ― fez ele, justificando-se, polidamente.
― Certo, marechal! E agora, quem sabe, não tomaria
uma taça de champanha? ― consertei eu, tomando suas
mãos e trazendo-o de volta, carinhosamente, até a sala.
As meninas já haviam envolvido totalmente o general
Stupnaggel, de sorte que von Rommel sentiu-se animado a
cortejar-me, de modo mais objetivo. Senti, no seu súbito
olhar sobre as minhas ancas, uma pergunta óbvia que
deveria ter uma resposta óbvia. Achei que era do meu dever
procurar distraí-lo e desviá-lo da tragédia que se escondia
no meu banheiro. E fiz-me profundamente desejável.
Dentro de meia hora o herói do deserto africano estava
nos meus aposentos, ajudando-me a abrir o fecho do
soutien.
Foi uma noite longa. O marechal ― diga-se de
passagem ― não é um estrategista apenas no que diz
respeito às peças de guerra. Sabe emocionar uma sensível
mulher e dirigi-la nos seus instantes de prazer. Que meu
marido Zingg me perdoe. Von Rommel conseguiu fazer
com que eu esquecesse ser ele um nazista e um inimigo. Foi
gentil e bom. Começou por beijar-me os seios com muita
delicadeza. Inventou nomes engraçados para cada um deles.
Depois contou-me histórias de pássaros selvagens, enquanto
com a ponta dos dedos firmes acariciava minhas coxas e o
meu dorso. Finalmente beijou-me em lugar muito intimo e
disse assim:
― Esta é a sua verdadeira boca.
Quando me dei a ele, com toda a sensualidade do meu
corpo nu, estava consciente do prazer intenso que me
despertava. O hálito de von Rommel era muito puro, e sua
voz forte e quente em meus ouvidos me fez sonhar. Apesar
de enérgico, o marechal tinha um modo de fazer o amor
sutil. Retirava dos gestos lúbricos todo o grotesco que eu
detesto, e os nossos corpos juntos ganhavam em poesia o
que se suprimia de aberrações inúteis. Zingg, meu marido,
ficaria decerto muito triste ao saber disso. Mas é a pura
verdade. Nem sempre uma mulher de temperamento como
eu pode eximir-se totalmente do prazer, ao dar-se na cama,
a um homem. Por mais indecente que isto possa parecer, eu
afirmo: Von Rommel me fez sentir grandes alegrias há
muito reprimidas.
Quando a manhã já nascia, despediu-se. Vi que
também Stupnaggel tinha ido embora, com as meninas.
Certamente não quisera incomodar o chefe com sua
presença. Fui levar o marechal à porta.
― Voltará algum dia? ― perguntei.
― Quem sabe? ― respondeu ele. ― Se alguma outra
onda do destino trouxer-me ao seu quarto, ficarei satisfeito
― mas acrescentou baixinho: ― Não pense que me
enganou, Giselle. Tenho absoluta certeza de que você
trabalha para os ingleses. De certa forma, admiro-a.
Estremeci. Mas ainda encontrei força para ironizar:
― Por que fica aí parado e não me denuncia?
Ele fez uma cara muito simpática e respondeu:
― Que tenho eu com isto? Não sou da Gestapo.
― Mas é um soldado. Um general nazista! ―
acrescentei.
― A minha guerra é no campo de batalha! ― disse. ―
Não acredito em denúncias, intrigas, traições. Você me deu,
esta noite, o melhor de você. Volto agora para o meu
deserto, ou, quem sabe, para o deserto dos outros.
Apertou minha mão pela última vez e saiu. Não
chegarei jamais a compreender a alma deste rude soldado de
Hitler. Um "gentleman" guerreiro. Um homem ainda puro
na sua missão de submeter o inimigo.
Fiquei alguns instantes confusa, pensando em que tudo
aquilo não tinha sido um sonho louco, mas o problema do
cadáver no banheiro, ao lado do piloto inglês, devolveu-me
à realidade. Voltei lá, depressa. E mais uma surpresa me
aguardava, naquela sucessão vertiginosa de impactos
emocionais. O banheiro estava completamente vazio. Sobre
a pia, um bilhete sucinto:
“Giselle, fomos embora para evitar maiores trabalhos
da sua parte.”
***
O cerco à minha residência na Rua du Bac ia se
fechando dia após dia. Silenciosamente estreitavam-se os
anéis da polícia secreta alemã em torno das minhas
atividades. Mesmo assim, as bacanais continuavam. O
general Stupnaggel, após o breve intervalo de von Rommel,
continuava a usufruir do meu corpo, como se fosse sua
propriedade imóvel. Apenas os seus companheiros já não
eram os mesmos. Apesar dos uniformes, eu sabia que
pertenciam, todos eles, à famigerada organização de
Munique, servos da Casa Parda. O mais sinistro, eu
conhecia, há bastante tempo. Era o capitão Maximiliano
Marx, que viera à minha casa, certa vez, na gorda
companhia do coronel Oetting, de triste memória. Esse
homem devorava-me com os olhos. Mas, naquele tempo,
não passava de uma figura inexpressiva de ajudante de
ordens, sem qualquer utilidade para nossa causa. Eu o
repelira várias vezes, nas suas tentativas de assédio.
Cheguei mesmo, uma vez, a ameaçá-lo com uma queixa ao
Alto Comando nazista. Por isso ele se retraíra, embora seu
olhar de ódio me tivesse determinado uma previsão de
vingança. Vingança de homem frustrado. Mesmo assim,
continuara freqüentando minha casa, e usando o amor de
algumas das minhas meninas. Se algumas vezes os nossos
olhares se encontravam, eu podia ver que seu ódio jamais
arrefecera.
No dia seguinte ao desaparecimento do piloto inglês e
do oficial alemão morto no meu banheiro, surgiu esse
sinistro Maximiliano Marx em minha casa. Pela primeira
vez em muitos meses, dirigiu-me a palavra:
― Mademoiselle! ― e enfatizou o tratamento
cerimonioso. ― Precisamos ter uma conversa!
Esperei o pior, mas falei firme:
― Capitão Marx, estou às suas ordens.
― Muito bem! ― disse ele. ― Mas vamos para o
quarto.
― Por que não aqui? ― observei.
― Por razões especiais que lhe direi depois ― fez ele,
rudemente, enquanto se encaminhava na direção dos meus
aposentos.
Segui-o. Não havia outra coisa a fazer. Ele sentou-se
sobre a banqueta do toucador enquanto eu me acomodava
na cama.
― A senhora ― começou o pegajoso agente da Polícia
Secreta ― conheceu por acaso o tenente Heinrich?
― Não! ― disse-lhe, tranqüilamente.
― Pois eu o conheci, e muito.
― E daí?
― A última vez que eu o vi, mademoiselle Giselle, foi
em sua casa. Nesta casa!
― Como assim?
― Entramos juntos. Eu e ele tínhamos sido
encarregados de examinar sua residência antes do marechal
von Rommel entrar. Não me demorei, para não ser notado,
Deixei-o na ala esquerda e combinamos encontrar-nos mais
tarde, depois da saída do marechal.
Fez uma pausa e declarou:
― Até hoje, o tenente Heinrich não voltou.
― Qual é sua conclusão? ― perguntei, com ar
ingênuo.
― Giselle, eu a detenho sob acusação de haver
assassinado um oficial alemão.
***
Não posso deixar de me lembrar, com horror, deste
instante. O capitão Marx achava-se sentado justamente na
banqueta do meu toucador. No fundo falso desse toucador
eu guardava todas as páginas destas memórias, que venho
escrevendo ininterruptamente, desde os meus dias de
cárcere na prisão de Lys, de onde saí ― como já narrei ―
por obra do coronel Oetting, de triste memória. Continuo
usando a linguagem taquigráfica dos sistemas TIFFIN
(1750) e LYLE (1762) combinada com a dos sistemas
HOLDSWORTH & ALDRIDGE (1766), todas inglesas e
muito antigas, desconhecidas dos alemães, que estão
habituados apenas aos sistemas PITMAN e GREGG, mais
recentes. As páginas deste diário não constituiriam, por
certo, documento contra mim, mas poderiam despertar a
curiosidade dos chefes da polícia secreta que me torturariam
para saber do seu conteúdo.
Minha obsessão é que este diário seja conservado,
mesmo depois da minha morte. Naquele instante exato em
que Marx me dava voz de prisão, eu temia pelo destino
destas folhas. Volto a indicar este assunto. Se porventura ―
o que me parece sumamente difícil ― estas páginas forem
encontradas, em algum lugar, pelos libertadores da Europa,
talvez cheguem às mãos do meu professor Raymond Pirrier,
que as decifrará. Seja como for, vou transmitindo aqui, para
uma posteridade que não sei se atingirei, todas as
lembranças destes dias de ocupação da França.
Que Deus tenha piedade da minha alma. Que Deus
salve a minha pátria e a minha gente.
***
― Giselle, eu a detenho sob acusação de haver
assassinado um oficial alemão.
Aquelas palavras do capitão Marx ainda retiniam nos
meus ouvidos. Agarrei o telefone.
― Para onde quer ligar? ― perguntou ele, irônico. E
no seu rosto se compunha uma sórdida máscara de prazer,
diante da minha aflição.
― Para o general Stupnaggel! ― gritei, com raiva.
― Não conseguirá! ― afirmou o bruto.
― Por que não conseguirei?
― É simples. A ordem de prendê-la veio de cima.
― De quem?
― De Himmler, minha cara!
― Falarei com ele!
― Também é impossível!
― Por quê? Posso saber?
― Himmler embarcou para Berlim esta manhã.
― E o general Stupnaggel sabe da minha prisão?
― Ele próprio subscreveu a ordem.

23

Apesar de tudo o que me dizia o capitão Marx,


completei a ligação para o número particular de Stupnaggel.
Ele próprio atendeu.
― Quem fala? ― disse, na sua voz rouca e sinistra.
― Giselle!
― Que deseja?
― Ora, que pergunta? Você não sabe que estou sendo
presa?
― Claro que sei. Assinei a ordem.
― Como teve coragem, seu ingrato?
― Antes de mais nada, obedeci a instruções. Depois,
cumpri meu dever, pois agora tenho certeza de que você é
mesmo uma espiã que viveu nos traindo a todos.
― De onde lhe vem tanta certeza?
― De uma série de provas incontestáveis. Você está
liquidada, Giselle!
― Stupnaggel! Stupnaggel!
― Estou ouvindo. Não precisa gritar!
― Pois ouça melhor. Eu cairei, mas arrastarei você
comigo.
― Que bobagem, minha cara. Não há esperança para
você.
― Poderei comprometê-lo grandemente, você bem o
sabe!
― Inútil! Eu nunca a ajudei.
― Ajudou sim! Ajudou muito! Foi meu amante oficial.
Permitiu que eu convivesse com quase todos os principais
oficiais da Wehrmacht. Levou-me às fontes vitais de
informação do Reich. Você está tão ruim quanto eu em toda
esta história, meu caro Stupnaggel! Veja o que faz!
***
Era o meu desesperado canto de cisne. Tinha que fazer
alguma coisa para intimidar o general-comandante de Paris.
Ele sabia que eu seria fatalmente interrogada pelos homens
frios da Gestapo, entre os quais se podiam contar vários dos
seus inimigos, invejosos da sua carreira e do seu prestígio
na esfera da oficialidade de Hitler. Sabia também da minha
indiscutível capacidade de argumentar. Conhecia minha
inteligência, minha argúcia. Meu poder de intriga. Fosse ele
um tolo para duvidar do seu possível comprometimento na
minha condenação. Chegariam, talvez, a Hitler, as notícias
das minhas revelações. Do outro lado do fio, veio
novamente a voz do general, meu amante:
― Giselle!
Respirei com alguma esperança. E respondi.
― Pronto!
― O capitão Marx está aí? ― perguntou, numa voz
confusa.
Respondi que sim, que estava ali mesmo, a dois passos
de mim.
― Pois passe-lhe o fone imediatamente! ― ordenou,
ríspido.
Obedeci incontinenti. E houve uma conversa lacônica
entre os dois, cujo resultado já se fazia esperar. Stupnaggel
queria ver-me pessoalmente.
Descemos e embarcamos no auto oficial das forças de
ocupação, que estava parado em frente à minha casa. O
capitão Marx, visivelmente contrariado, nem sequer me
dirigia a palavra. Só falou ao chofer.
― Para o quartel-general, com pressa!
No meio do percurso tentei abrandá-lo. Àquela altura
tudo seria lícito, mesmo uma indecência de fêmea. Assim,
cruzei as pernas com desembaraço e deixei que o vestido
escorregasse para trás, mostrando generosamente toda a
alvura das minhas coxas nuas. E colei-me ao corpo do
capitão. Que, não obstante, foi grosseiro:
― Não adianta, Giselle!
Ele disse isso sem, no entanto, afastar a perna da
minha. Vi que fraquejava, e insisti, inclinando-me mais
sobre o seu corpo.
― Marx! ― falei-lhe ao ouvido, meus lábios roçando
sua orelha, propositadamente.
― Que é? ― gemeu ele, desconcertado.
― Diga-me... Não é verdade que sempre me desejou?
― É verdade!
Aproximei-me até quase envolvê-lo com as minhas
pernas. Meus seios duros já se comprimiam sobre seu peito
arfante. Continuei:
― Não é verdade, repita-me, que você jamais
conseguiu de mim sequer um beijinho?
Ele gaguejou:
― É verdade!
Mas, subitamente, olhou-me com um ar de triunfo, e
me repeliu:
― Agora, Giselle, você está se oferecendo!
― E não aceita?
Ele parecia transtornado quando afirmou:
― Dou-me ao luxo de recusar a mulher que todos
desejam!
― Será que já não sou a mesma? Já estou velha? ―
perguntei.
― Não! ― disse ele, categórico. ― Você é a mesma.
Continua apetitosa, quente, macia, e sem-vergonha. Eu é
que resisto. Porque tenho tutano!
― E por que tanto heroísmo?
― É simples, Giselle. Você está perdida. E no
momento em que se dirige à prisão, para a morte certa,
apela para mim. Para mim que você sempre detestou.
Busquei convencê-lo de outra maneira, Avancei sobre
sua boca e desferi-lhe o mais sensual dos beijos, Quase o
deixo sem fala. Logo depois, sussurrei ao seu ouvido:
― Vê, Marx querido, uma mulher que beija assim não
pode ter tido jamais desprezo por esse homem a quem
entrega seu carinho.
O desgraçado queria convencer-se. Resolvi dar
explicações:
― O que parecia desprezo era cuidado, da minha parte,
em não despertar ciúmes em Stupnaggel. Aliás, o general
jamais permitiu que eu me dirigisse a você com maior
desenvoltura. Tinha medo do seu charme.
Ele fez um ar extasiado, e ainda perguntou:
― Será verdade, Giselle, pequeno demônio?
Jurei que era verdade, e acariciei-o, ali mesmo no
carro, da maneira mais objetiva possível. Ele segurava nas
minhas coxas, nos meus seios, com as mãos trêmulas de
desejo. Mas, quem sabe se por emoção demasiada, sua
virilidade não se manifestava de forma mais ousada. O
capitão Marx não ficava indócil, daquela maneira tão
comum nos homens. Afinal falou:
― Você pode provar que gosta de mim, Giselle?
― Claro! ― respondi. ― Mas como quer que prove?
― Da maneira mais fácil! ― fez ele, sem tirar a mão
de entre as minhas coxas.
― Diga! Quero saber! ― insisti.
― Fique toda nua aqui mesmo dentro do carro, e seja
minha antes de chegarmos ao quartel.
― Mas... que dirão os transeuntes na rua? ― objetei.
― Ora... ― fez ele, alvoroçado, beijando-me os seios
― ...os transeuntes são franceses. Nada poderão dizer de
um oficial alemão.
― Tenho uma idéia melhor! ― disse eu. ― Vamos
mudar de caminho e...
― Jamais! ― objetou o rígido capitão, endireitando-se
no assento.
― Por que tanta grosseria? ― gemi, ternamente.
― Porque não confio em você! ― disse, já zangado.
Mas àquela altura eu já tinha conseguido despertar, no
homem, a fera do sexo. Seu desejo por mim, no momento
― eu sabia ― estava valendo mais do que o nazismo, mais
do que a própria vida. Decidi encolher-me e ficar fria. Foi
ele que voltou ao assunto:
― Qual é o plano, diga, Giselle demônio!
Novamente mostrei-lhe minhas pernas. Rocei meus
lábios na sua orelha e murmurei, com aquela voz que torna
os homens tarados:
― Meu bem, em vez de levar-me a Stupnaggel você
poderia seguir a estrada de Fontainebleau até Meudon, onde
tenho um chalé muito íntimo. Lá ficaríamos os dois,
perdidos do mundo.
― Mais cedo ou mais tarde seríamos descobertos e
fuzilados! ― respondeu-me, desconsolado.
Objetei que era difícil nos encontrarem. Prometi-lhe os
meus seios molhados em champanha rosé, e uma série de
outras ternuras.
Ele me agarrou, desesperadamente, e só depois de uma
seqüência de beijos fortes deixou que eu concluísse:
― Acha que valho o perigo?
***
Quando o capitão Marx estava a ponto de sucumbir, o
automóvel parou. Havíamos chegado ao quartel-general, e a
simples vista do edifício devolveu ao meu inquieto
acompanhante todo o seu senso de dever de oficial nazista.
Afinal, eu tentara o impossível, e a exigüidade do tempo
conspirava contra mim.
Ao me defrontar com Stupnaggel pude ver que suas
intenções eram negras. Seu receio de comprometer-se por
minha causa já se transformara em ódio. Olhou-me,
friamente, através da lente do seu monóculo e ordenou com
voz seca:
― Sente-se!
Obedeci. Atrás de mim, o capitão Marx permanecia
aparvalhado, como um autômato.
― Retire-se! ― ordenou-lhe Stupnaggel, com a mesma
rispidez.
Marx e outros oficiais que se encontravam no gabinete
saíram imediatamente, temendo a fúria do Comandante de
Paris. Depois de uma pausa de três minutos, que pareceram
horas, ele resolveu explicar-se:
― Bem, Giselle, você tem que enfrentar a situação!
― Já disse! ― repeti. ― Não irei sozinha!
― Pretende enlear-me?
― É meu frio propósito.
― Não fará isso!
― Ninguém poderá impedi-lo. Afinal, nada mais tenho
a perder. Estou liquidada, como você mesmo assegurou.
― Não obstante, não dirá uma palavra que me atinja!
― Como pode ter tanta certeza?
― Ouça em silêncio!
― Estou ouvindo.
― Muito bem. Aqui estão os fatos. Sua vida é algo que
já não se negocia. Está perdida. Irremediavelmente perdida.
Mas há uma outra vida que se pode salvar pelo seu silêncio.
― Qual?
― A de Paulo Zingg!
Estremeci diante daquela afirmação do general-
comandante de Paris. Teria ele, realmente, em suas mãos, a
vida do meu querido Zingg? Ou tudo não passaria de um
"blefe" para conquistar-me o silêncio? Na dúvida, preferi
calar-me e ouvir a proposta do meu ex-amante oficial.
― Por enquanto, você será removida para a velha
prisão de Lys, no sul da França. Lembra-se deste lugar,
Giselle?
― Claro que me lembro. Já estive presa naquelas celas
imundas, sob a vigilância do untuoso coronel Oetting. Por
falar nisso: por onde anda ele?
― Não vem ao caso, minha querida Giselle, O que
importa é que você vai sair de circulação, por algum tempo.
Quando a Gestapo me pedir notícias suas, direi que internei-
a, como medida preventiva. Nesse meio tempo, você terá
ocasião de meditar sobre a minha proposta. Seu silêncio
pela vida de Zingg.
― Pelo que vejo, pretende seqüestrar-me. Não sei se a
Gestapo verá com bons olhos o meu simples
desaparecimento, sem interrogatórios interessantes para
seus arquivos.
― A Gestapo virá a interrogá-la, minha querida. Mas,
depois de um período de amansamento seu, em Lys. O
diretor dessa prisão é meu amigo.
***
Lys, 14 de novembro de 1942. Há duas semanas que
me encontro nesta mesma prisão onde, faz mais de um ano,
comecei a escrever estas memórias. Só que, desta vez, sou
melhor tratada. O general Stupnaggel me permitiu trazer
para aqui uma pane dos meus pertences do apartamento da
Rua du Bac, em Paris. Consegui esconder, num velho
aparelho de higiene íntima, as páginas deste diário. Tenho
licença para circular pela enfermaria e de comparecer a uma
sala-de-estar aquecida contra o frio. O diretor da prisão, que
se senta, orgulhosamente, na mesma escrivaninha do
desaparecido coronel Oetting, chama-se Fritz Hauler, e tem
ordens de zelar pela minha saúde. Ultimamente tem zelado
pelo meu corpo, de maneira bem significativa. Dorme
comigo, em seu quarto, vez por outra. Aceito, porque seu
quarto é mais aquecido, e porque ainda tenho esperanças de
escapar, com sua ajuda.
Acho que já não poderei continuar escrevendo sem
despertar suspeitas dos guardas. Por isso, tratarei de
esconder estas páginas no arquivo velho da enfermaria,
onde já ninguém põe a mão.
Amanhã talvez eu seja chamada por...
***
Giselle relata à sua companheira de cela, Gabriele
Ladème, o que lhe aconteceu depois de haver escrito no
diário aquela última frase incompleta:
"Amanhã talvez eu seja chamada por..."
― Um rumor de passos do lado de fora do meu
refúgio, na enfermaria, fez-me guardar apressadamente, sob
o colchão de uma velha cama, as últimas páginas das
minhas memórias. Posteriormente, coloquei tudo no arquivo
morto, entre papeladas inúmeras, já sem uso, dessa mesma
enfermaria. Se alguém, no futuro, encontrar o maço, e
conseguir traduzi-lo, não saberá, ainda assim, do final. Só se
você ouvir, cuidadosamente, tudo o que lhe narro agora, e
transmitir, de alguma maneira, a uma amiga sua, que por
sua vez encontre meios de transmitir a uma filha sua, o resto
da história, para que a posteridade a conheça, talvez por
obra do acaso. Em todo caso, já que estamos aqui presas,
nesta cela imunda da Cherche-Midi, em Paris, só nos resta a
emoção da última conversa. Ouça...
O rumor de passos era dos guardas de Fritz Hauler que
me vinham chamar, com urgência. Fui à presença do louro
diretor da prisão de Lys e ouvi dele a ordem:
― O general Stupnaggel, de Paris, me telegrafa,
pedindo sua transferência para o quartel-general da
Gestapo, naquela capital. É uma pena, Giselle. Terei de
perder sua agradável companhia, mas o general exige que a
recambie, urgentemente.
Ele estava realmente triste, o oficial. Pudera! Durante
tantas noites eu o ajudara a esquentar-se com o meu corpo
nu. E de nada adiantara. Agora Stupnaggel me exigia de
volta, antes que eu tivesse tido tempo de convencer Fritz
Hauler a fugir comigo. Teria ele sucumbido aos meus
encantos com mais algumas semanas? Uma conjectura
ficava no ar.
***
O quartel-general da Gestapo era o próprio edifício do
Hotel Matignon, na rua do mesmo nome. A residência dos
Primeiros-Ministros da França servia agora de ninho de
águias germânicas. Águias ou abutres?
Conduziram-me, sob escolta, à presença de Stupnaggel.
Um oficial alto e forte anunciou-se:
― Trago a prisioneira Giselle Montfort, transferida da
prisão de Lys.
Stupnaggel olhou-me com desejo e medo. Ordenou:
― Levem-na ao coronel Weber, da Gestapo, para
interrogatório ― e dirigindo-se a mim, em surdina: ―
Lembre-se! Há uma outra vida!
Queria se referir à vida de Zingg e ao meu silêncio para
salvá-la. Como poderia eu ter certeza de que tudo não
passava de um "blefe" da sua parte?
Os soldados da escolta me fizeram imediatamente sair
da sala. Novamente fui anunciada, quando dei entrada no
reduto do coronel Weber:
― Giselle Montfort, transferida de Lys.
O homem levantou a vista e contemplou-me
demoradamente. Era feio, troncudo, mas não deixava de
mostrar na fisionomia carrancuda certo ar de argúcia ou
inteligência.
― Giselle, da Rue du Bac? ― perguntou, sarcástico.
― Em pessoa ― respondi, de minha parte.
― Seja bem-vinda! ― fez ele, gentil. ― Estava
demorando muito.
― Obrigada.
― Giselle, todos sabemos que você realizou um vasto
trabalho de espionagem entre nós, para benefício dos
aliados. Mas a nós repugna condenar uma jovem mulher,
tão bonita e provocante ― ele sorria, dizendo isto.
― Que esperam, então? ― falei, irada. ― Desejam
perdoar-me e enviar-me ao führer para uma entrevista
privada?
― Nem tanto... nem tanto... ― disse ele, divertido. ―
Pretenderíamos a revelação dos nomes dos seus ― como
diria – ‘companheiros de trabalho’.
― Em troca dão-me a preciosa liberdade? ―
perguntei.
― A liberdade é um prêmio ― garantiu o coronel,
firmemente.
Recostei-me numa cadeira e declarei simplesmente:
― Nada tenho a confessar. Nem tenho "companheiros
de trabalho". Meu trabalho tem sido o mais sórdido: O de
alimentar com meu corpo o apetite sexual dos seus generais
tarados.
O coronel insistiu:
― Não adianta negar, Giselle. Alguns dos seus
companheiros já estão presos. Maurice Leroy, por exemplo:
todas as suas atividades foram reconstituídas.
― Não sei quem é Maurice Leroy ― afirmei.
― Não se faça de boba! ― gritou Weber. ―
Encontramos anotações dele com seu nome.
― Mentira!
― Verdade! Encontramos as anotações no mesmo
hotel de Marselha em que o miserável se suicidou.
― Mas veja como isto é fora de lógica! ― procurei
argumentar. ― Não seria óbvio que este pobre homem
antes de morrer procurasse destruir todos os papéis
comprometedores?
― Não teve tempo. E alguns se perderam na sua última
tentativa de fuga. Achamos os que mais nos interessavam.
Veja este! ― e exibiu-me um papel com a letra
inconfundível de Maurice Leroy, meu velho mensageiro do
Capoulade. Mas preferi insistir na negativa absoluta:
― Nada tenho a ver com isso!
O coronel ficou lívido. E rosnou, como uma fera
contida:
― Muito bem. Você se recusa a colaborar. Mas vai ver
uma coisa! ― e acionou a campainha, nervosamente. Um
guarda deu entrada na sala.
― Traga o homem! ― ordenou.
Dentro de poucos minutos surgia na minha frente a
figura incrivelmente repugnante do velho inimigo Corentin.
Estava lívido, e tremia de medo. Sua cara era um esgar
nojento.
O coronel Weber fez-lhe a pergunta, autoritário:
― Conhece esta mulher?
― É Giselle ― disse o imundo.
― Conhece detalhes das suas atividades principais? ―
insistiu o coronel, olhando Corentin nos olhos, para espanto
seu.
O tarado foi sucinto:
― Trabalha para os ingleses.
― Tem cúmplices? ― prosseguiu Weber.
― Inúmeros! ― murmurou Corentin.
O coronel voltou-se na minha direção, com uma
pergunta nos olhos. Sacudi os ombros e afirmei:
― A palavra de um louco de nada poderia valer em um
julgamento de pessoas lúcidas. Esse Corentin, o senhor bem
o sabe, coronel, é um anormal.
― Não precisamos mais de tantas provas para
condená-la, Giselle! ― rugiu o coronel. ― Basta o que
você já fez. Mas seremos magnânimos se você revelar os
nomes dos seus cúmplices.
O coronel neste momento ficou vermelho de raiva, deu
um violento murro na mesa e gritou:
― Quero nomes, sua vagabunda! Entendeu? ― Os
nomes!
***
Foi-me difícil guardar silêncio. Mas que poderia eu
fazer, naquela circunstância? Falar era trair. E falar para não
denunciar era o mesmo que apressar minha sentença de
morte, porque o coronel se irritava, profundamente, com as
minhas negaças.
Mesmo assim, durante uma hora me importunou.
Ameaçou-me das piores torturas. Fez-me, realmente, tremer
de medo, com a simples menção do ‘aro de fogo’, um
sistema medieval de supliciar mulheres, queimando-lhes
lentamente os bicos dos seios. No seu delírio, chegou a
desnudar-me completamente. Encostou um cigarro aceso no
meu ventre nu. Gritei, e ele conteve-se, certamente em
nome de recomendações anteriores de Stupnaggel para que
não me desfigurassem o corpo. Afinal, já possesso, chamou
seus soldados e ordenou que me vestissem e me levassem.
Do lado de fora, reencontrei o fogoso capitão Marx. Estava
mudado. Tinha a fisionomia triste de um vencido. Vi que
estava com pena de mim, e se arrependia de não haver
aceito, há um mês atrás, meu doce convite para uma fuga.
Conduziu-me, de carro, com uma escolta, a esta prisão da
Rua Cherche-Midi. Ordenou-me, em voz baixa:
― Salte, Giselle! É o fim! Que se pode fazer? Seu
destino...
Olhei o edifício. Àquela hora da tarde a prisão militar
dos alemães parecia-me ainda mais sinistra.
― Aqui pelo menos há um pouco de historia! ― ia-me
dizendo o capitão Marx. ― O famoso Dreyfus esteve preso
entre estas paredes. E lá dentro, se você tiver sorte, poderá
avistar um velho conhecido.
― Quem? ― indaguei, já sem maior interesse.
― Quer mesmo saber?
― Fale, se quiser.
― Paulo Zingg, seu marido.
― Não acredito.
― Procure acreditar. É melhor!
***
Ah... eu teria que acreditar em alguma coisa! Só uma
esperança boa, mesmo remota, conseguiria retemperar meu
ânimo para resistir à sordidez da prisão.
Cela imunda. Escura, fria, desumana. Lembrei-me
várias vezes de Oscar Wilde, do seu poema doloroso,
escrito do fundo do cárcere, em Reading. Eu nem conseguia
enxergar direito a fisionomia das minhas companheiras.
Estava nas trevas. No inferno, talvez, ou na sua antecâmara.
Procurei desviar meu pensamento para Rilke, o otimista:
"Por que será que surge a claridade, se anoitece?
E onde vem o brilho das trevas?
Por acaso é a escuridão que se ilumina?"

Não! A minha noite não tinha mais estrelas. Eu estava


a um passo do fim.
Só na manhã seguinte pude ver o rosto das minhas
companheiras. Elas também me olhavam curiosas. Pois se
eu estava nua! Antes de ser jogada, como um fardo, no
fundo daquele cárcere sombrio, as carcereiras me haviam
despido completamente.
Agora me olhavam, como aves de rapina:
― É bem feita! ― dizia uma.
― Talvez nos dê alguma vantagem! ― insinuava a
outra.
Eu não sabia bem o que aquela conversa significava.
Mas depois vim a compreender. As mulheres-guardas, todas
nazistas, eram lésbicas, e se aproveitavam da situação para
‘forçar’ certas prisioneiras.
― Veja, Frieda! ― observou a primeira. ― Ela tem os
seios pequenos e duros. Parece uma virgem.
― Sim? ― comentou a outra, com olhos lúbricos. ―
Vou inaugurá-la esta noite.
― Isto é que não! Eu peguei primeiro! ― disse a mais
forte.
― Saia da frente, grosseirona! ― gritou a outra.
As duas mulheres começaram a brigar por minha
causa. A cena ia-se tornando mais grotesca no ponto em que
chegou um sargento e acalmou os ânimos das ‘walkyrias’
taradas. Frieda, não obstante, apertou o bico do meu seio
direito, antes de sair da cela.
Eu estava perplexa com mais esse drama. Reclinei-me
no catre imundo e procurei repor as minhas idéias em
ordem. Súbito, ouvi um jovial ― "Bom dia" ―
pronunciado do fundo da cela escura. Procurei apurar a
vista e reconheci, sobre outra enxerga, um rosto familiar.
― Delly! ― gritei, exultante.
― Eu mesma, Giselle.
― Como? Você, presa aqui? Por quê?
― Fatalidade, minha querida! O azar, ou o coice da
sorte. Tudo dá em desgraça.
― Mas... você estava na Inglaterra! ― observei.
― É... mas não resisti à tentação de voltar. Você sabe
como nós somos: o gosto da aventura!
― E por que não me avisou, então?
― Não queria comprometê-la, Giselle.
― Como foi que veio parar nas mãos deles?
― Voluntariamente, me entregando.
― Veio da Inglaterra para entregar-se? Ficou maluca?
Não sabe que isto é morte certa?
― Sei. Mas não havia outro meio. Dez reféns tinham
ficado aqui, responsáveis pela minha volta.
― Por isto decidiu-se.
― Apenas por isso.
Abaixei a cabeça. Delly tinha razão. Há certos
momentos em que a vida vale menos do que uma idéia.
― Que aconteceu depois? ― continuei perguntando.
― A história é longa, Giselle.
― Temos muito tempo ― falei, para deixá-la mais à
vontade.
Ela me explicou que não. Seu fuzilamento estava
marcado para um dia qualquer da semana seguinte.
― Eles não dizem o dia exato? ― indaguei, aflita.
― Nunca estabelecem o dia! ― comentou Delly,
tranqüila. ― A tortura, assim, é sempre maior. O condenado
morre em cada manhã. Morre diariamente, até morrer em
definitivo.
***
Neste momento uma das condenadas fez um longo
"psiu", pedindo silêncio. Passos de guardas vinham do
corredor.
― Elas não nos deixam beber água se vocês falarem
demais! ― explicou a mais esquelética.
***
Muitas horas mais tarde, na calma da noite, Delly pôde
contar-me, com detalhes, a história trágica da sua volta. Não
tinha sido fácil. Os ingleses que a asilavam, e os franceses,
seus companheiros do Movimento de Resistência, achavam
a idéia do regresso um absurdo.
― E os reféns? ― implorava ela.
― Os reféns morrerão de qualquer maneira! ―
explicavam os companheiros. ― Nestes momentos finais os
alemães fuzilam todos os suspeitos, sem contemplação.
Delly, insistia, desesperada:
― Mas eu não consigo dormir em paz. Dez pessoas na
França ficaram dependendo de mim.
― Não as salvará! ― explicavam os ingleses.
― Sim. Mas saberão, ao menos, que voltei! ―
explicava Delly.
― De que serve isso? ― observavam os
companheiros.
― Serve para mim mesma. E para que não morram me
amaldiçoando.
― Não fariam isso! Sabem que os nazistas matam de
qualquer jeito.
― Sim. Mas estou disposta a voltar. Se não me
ajudam, procurarei uma maneira de fazê-lo sozinha.
― Não há jeito! ― disseram os ingleses. ― A costa
está muito bem guardada. A única porta aberta para a
França é a do céu.
― Isto quer dizer que poderemos ir de avião?
― Isto quer dizer que poderemos tentar!
Dentre o grupo destacou-se o capitão Dix, da RAF,
que pôs fim à conversa. Na noite seguinte, porém, voltou à
presença de Delly acompanhado de outro senhor, já de
certa idade, em trajes civis
― Delly ― disse o simpático capitão inglês ― trago
aqui um velho amigo que deseja conhecê-la.
Ela apertou-lhe a mão. O cavalheiro falou:
― Sou também da RAF. Do Serviço Secreto, porém.
Fico impressionado sabendo que deseja voltar à França,
numa viagem suicida. Não concordo com heroísmos de
mulher, mas acho que posso ajudá-la. Se me fizer um favor.
Um favor à Inglaterra e à nossa causa.
― Recebo ordens, sem discuti-las! ― afirmou a jovem
corajosa.
― Muito bem. Então podemos conversar! ― disse o
cavalheiro.
24

O homem da RAF ― disse-me Delly ― estaria


disposto a faze-la pisar novamente o território francês,
usando um planador sobre uma das praias de Brest.
― Mas eu teria que me encarregar de uma difícil
missão, em troca ― explicou-me ela. E prosseguiu: ― O
objetivo seria fazer o contato com Charles Beuve, no porto
de Calais. Charles estava comandando a Resistência
naquela região, e precisava de receber as últimas instruções
do Comando Aliado. Não entrarei nos detalhes sobre como
aterrissamos em Brest, a apenas dois quilômetros de uma
fortificação nazista. Tudo deu certo, por milagre, ou por
fatalidade. Viajei até Calais, sem maiores problemas.
Angustiei-me à procura de Beuve, a quem só fui encontrar
duas semanas depois, quando já havia perdido as
esperanças. Afinal, transmiti-lhe as ordens para uma ação
de sabotagem sem precedentes que, estou certa, ajudará
grandemente na preparação da invasão. Horas depois, no
entanto, eu seria presa por agentes da Gestapo, em uma
estalagem. Pura coincidência. Schultz Heimer ― lembra-
se? ― um dos que freqüentavam sua casa ― viu-me e
imediatamente reconheceu-me.
― E aí? ― perguntei eu, impaciente.
Delly limitou-se a mostrar-me em certas partes do seu
corpo as marcas negras das torturas.
― Foi queimada?
― Pior que isso! Fui cauterizada no meu íntimo.
Devastaram-me as entranhas, minha boa Giselle!
A revelação me deixava fria de pavor. Mas ainda
encontrei forças para perguntar:
― E o que desejavam de você?
― Queriam que denunciasse meus cúmplices. Forneci
alguns nomes, sim. Sou feita de carne e osso. E os
desgraçados me levaram a um limite superior ao de
qualquer resistência humana. Felizmente todos os "maquis"
citados por mim já se haviam evadido para a Inglaterra.
Eram os mais visados.
― E depois?
― De prisão em prisão vim parar aqui, na Cherche-
Midi. Ainda não consegui entender por que não me
quiseram matar. Deve haver alguma razão toda especial, só
deles.
― São sádicos!
― Acredito que sim. E aqui estou, Giselle, o trapo
humano que você vê. Magra, faminta, suja e descrente. Só
me dão comida uma vez cada dois dias. Tenho um imundo
caldo de verduras, por café da manhã. Espancam-me por
qualquer motivo, ou sem motivo. Por que não me matam,
afinal? Se já não me interrogam, se já não esperam que eu
denuncie alguém, por que ainda me conservam viva? A
morte seria mil vezes bendita, neste momento.
Delly não chorava ao pronunciar estas palavras. Mas
sua voz era estranhamente rouca. Rouca e sinistra.
***
A resposta veio na mesma noite. Surgiu o frio coronel
Weber à porta do nosso cárcere. Como tinham eles prazer
em nos ver assim humilhadas!
― Delly ― disse ele, sorrindo. ― Há uma visita para
você.
A jovem mal admirou-se:
― Visita para mim?
― Sim! ― confirmou o oficial. ― Está no meu
gabinete, à sua espera.
― Posso saber quem é? ― ousou ela perguntar.
― Não! E apresse-se ― ordenou o coronel.
Eu consegui segredar-lhe, antes que saísse:
― Acho que é o fim, minha querida; prepare-se.
Ela sorriu, tranqüila, e afastou-se. Meia hora depois
voltou. Mas havia em seu rosto magro e assim mesmo belo
uma expressão de intensa alegria.
― Giselle, era ele ― foi dizendo.
― O miserável voltou? O cão? ― perguntei,
horrorizada.
― Sim. Parece um abutre em busca de carne morta.
Prefere as condenadas, você não sabe?
― Goering?
― Ele mesmo!
― Santo Deus!
― Imagine! Não se esqueceu de mim, todo esse tempo.
Assim que me reconheceu, seus olhos brilharam. Parecia
um tigre antes do bote. Ou uma serpente. "Delly" ― ele me
falou ― "até as pedras se encontram. Eis-nos outra vez
frente a frente. E agora você me pertencerá,
definitivamente."
― E que foi que você lhe respondeu?
― Tudo o que me veio à cabeça.
― Palavrões?
― Pior. Recordei-lhe seus vícios. Suas taras.
― E ele?
― Sorria.
― E depois?
― Disse-lhe que não me entregaria a ele com vida.
Mas o desgraçado continuou sorrindo. Aí aquela idéia
horrível me assaltou.
― Que idéia?
― A idéia de sempre. A de que ele venha a me possuir
depois de morta, o tarado!
― Mas... é impossível, Delly!
― Nada é impossível! Goering é necrófilo. Todos
sabem disso.
― Como você pode ter certeza?
― Por um detalhe, o próprio guarda nazista, depois do
encontro, veio-me oferecer um veneno. Veneno suavíssimo
― garantiu ele ― que mata durante o sono, sem causar o
menor sofrimento.
― Que tem isto a ver com a necrofilia de Goering?
― Ele quer meu corpo perfeito, depois de morta!
***
Não entendi, até aí, a alegria de Delly. Estaria ela
maluca? Teria o sofrimento perturbado seu raciocínio? Só
muito mais tarde pude compreender o que tramava. Quando
já era tarde demais. O resto da noite foi perdido em uma
longa conversa de amigas. Já sabíamos que seu fim estava
próximo. Só nos restava o carinho e a proximidade dos
corpos, para melhor aquecimento. É estranho o que o
cenário angustioso de uma prisão pode fazer a duas
mulheres frágeis e sensíveis. Elas muitas vezes se buscam,
quase como namoradas.
Delly abraçou-se a mim e me fez carícias. Em dado
momento senti sua boca sobre meu seio. Admirei-me do
gesto, tão fora do comum. Ela, baixinho, me explicou:
― Giselle, deixe-me confessar antes de morrer. Eu
sempre desejei fazer isso com você. Eu gosto de você
fisicamente, Giselle! A brutalidade sexual dos nazistas fez-
me ficar fria em relação a todo e qualquer homem, de algum
tempo para cá. Não se espante do que lhe faço. Deixe-me
beijá-la agora, pois sei que é esta a última noite.
Embora a princípio contrariada com aquela abrupta
revelação, permiti que a pobre moça usasse do meu corpo.
E até me admirei de que, em dado momento, estivesse,
também eu, gostando das suas doces carícias. Nada seria
mais suave, mais terno, mais tranqüilo do que o amor
daquela moça por mim. Seus beijos roçavam meu corpo,
como um véu, na escuridão da cela. E me aqueciam de um
estranho prazer.
Só no inicio da madrugada, quando clareava o dia,
desprendeu-se Delly do meu corpo. Ambas estávamos
exaustas, mas, de certa maneira, felizes. É difícil de
descrever, em palavras normais, este estranho modo de se
ser feliz na véspera de uma desgraça.
***
A carcereira surgiu na fresta da porta e anunciou que
Delly seria retirada dentro de poucos minutos.
― Vamos nos despedir agora ― disse ela, com muita
calma na voz.
― Acho que vou chorar ― falei.
― Não quero lágrimas, meu bem. Nossa despedida,
afinal, é por pouco tempo. Breve nos encontraremos no
outro mundo... se houver outro melhor do que este.
― Só peço a Deus que tenha coragem.
― Não duvide de que terei. Você também precisa de
ser corajosa. Afinal, ainda muitos motivos lhe prendem a
este mundo. Zingg, por exemplo.
― Zingg está preso.
― Em Drancy?
― Não. Aqui mesmo. Disseram-me que ia vê-lo. Até
hoje, nada.
― Talvez você tenha essa sorte. Quanto a mim,
levaram-me tudo: noivo, mãe, pai, irmão. Que laço me
prenderia ainda aqui a não ser você, querida Giselle?
Neste instante chegaram os soldados, Delly ainda me
beijou, rapidamente, sem lágrimas nos olhos. Abriram a
porta e gritaram seu nome. O próprio coronel Weber leu,
em voz alta, a sentença de morte. A data era antiga, mas
esse detalhe nem foi considerado de maior importância.
― Está pronta? ― perguntou o oficial.
― Há muito tempo! ― e a voz de Delly era um fio de
aço.
― Alguma última vontade?
― Sim! Gostaria de pronunciar uma frase, e que todos
aqui me ouvissem em silêncio.
― Que seja! ― concordou o coronel.
Delly empertigou-se, fechou os olhos e pronunciou,
mais ou menos, estas palavras :
― Que todo alemão, de hoje em diante, nasça castrado!
Fez-se um silêncio terrível depois disto. E o coronel
esbofeteou-a, violentamente.
― Cale-se, imunda! ― bradou. E disse aos guardas
que a levassem, rudemente, para fora.
Três esbirros alemães agarraram a pobre moça pelas
pernas e conduziram-na ao pátio de execuções. Soubemos
mais tarde que, antes de chegar ao muro de fuzilamento,
Delly jogou-se contra a baioneta de uma sentinela,
suicidando-se. Suas últimas palavras foram:
― Estraguei meu corpo! Sim! Dilacerei-o. O imundo
Goering não me terá!
***
As manhãs ficaram nubladas depois que Delly
desapareceu. Eu guardara dela uma última impressão de
ternura mesclada à grande coragem dos que sabem morrer.
Faltava, agora, na prisão, uma companheira de ânimo forte
que me ajudasse a sair do desalento em que vivia.
Éramos, na cela, quatro mulheres. Depois chegou você,
Gabriele Ladéme, a quem faço este relato, na esperança de
projetá-lo no tempo. De todas, você é a única que tem
chance de sobreviver, e ainda voltar a encontrar os parentes.
Seu crime não é de todo político. Através do seu
testemunho eu conseguirei, quem sabe, chegar a me
comunicar com as gerações futuras. Confio no seu esforço,
minha boa amiga.
Mas, como dizia, antes da sua chegada, nós estávamos
aqui, as quatro, aguardando o pior, ou seja, aguardando a
morte, como, de fato, ainda estamos. De todas, apenas a
inglesa Nancy tinha senso de previsão. Pelas conversas das
carcereiras era capaz de dizer se naquela madrugada haveria
ou não execuções. Ou se alguém seria transferido, ou
libertado.
Certa feita, chegou perto de mim e conjeturou:
― Tenho a impressão de que será julgada esta noite!
Era uma suposição, talvez simples faro, ou uma
razoável conclusão baseada em rumores apreendidos aqui e
ali. Mas se confirmou.
Quando caiu o sol, os guardas abriram a porta de ferro
do nosso cubículo e chamaram pelo meu número:
― 539!
― É você mesma! ― sussurrou Nancy ao meu ouvido.
Adiantei-me.
― Por ordem do general Stupnaggel ― disse o guarda
― a senhora Giselle Montfort será conduzida ao Tribunal
de Saint Dominique para julgamento.
Ainda tive tempo de perguntar à inglesa:
― Como é isso?
― Nunca se ouviu uma absolvição neste tribunal
maldito! ― disse ela, gravemente. E acenou-me uma
despedida.
Fui levada, sob escolta, até o casarão sinistro. Em
poucos minutos, eu era introduzida na sala de julgamento,
cheia de lustres pesados de cristal que recordavam um
passado menos lúgubre. Na enorme e bem talhada mesa
Luis XV, sobre um estrado, sentavam-se os juizes. Os mais
sombrios que já avistei em toda a minha vida. Fardados e
arrogantes. Da escola de Himmler!
Num dos cantos, o banco dos réus, ladeado por guardas
arianos de dois metros de altura. Não poderia imaginar a
surpresa que me aguardava para dentro de poucos minutos.
Súbito, fui atingida pela realidade! Deu entrada na sala,
algemado e ferido, meu marido Paulo Zingg. Era ele! De
cabeça erguida, corajoso como sempre, mas todo marcado
de sofrimento. Trajava o uniforme humilhante dos presos de
Drancy: Balofo como o dos palhaços. Era a técnica nazista
de desmoralizar os heróis capturados.
Afinal ficamos juntos no banco dos réus. Ele me olhou,
carinhosamente. Eu só pude dizer:
― Você, Zingg, meu amor!
― Prenderam-me em Brest ― respondeu, baixinho. ―
Agora, é o fim! Tenha coragem!
― Silêncio! ― ordenou, em alemão, o que parecia ser
o presidente do tribunal. ― Os réus não podem conversar.
Zingg cuspiu para o lado.
― Respeito! ― gritou o juiz nazista, violento.
― Ora, vá para o inferno! ― disse Zingg. ― Que
podem ainda fazer contra mim?.
― Sua insolência complicará seu caso! ― observou o
nazista.
― Não pode ficar pior do que já está! ― insistiu
Zingg, desta feita sorrindo.
― Cale-se! ― ordenou o presidente.
― Deixem-me falar a última palavra! ― pediu Zingg,
transtornado. ― Estou no fim. Sei que estou no fim. Este
julgamento, todos nós sabemos, é uma formalidade para
atender à Convenção de Genebra. Serei condenado,
fatalmente. Deixem-me, pois, dizer última palavra livre.
Tenham este gesto de soldados dignos. Saibam fazer uma
guerra mais limpa!
― O réu não pode falar agora! ― insistiu o presidente.
― Mas eu tenho tão pouco a dizer! ― explicou Zingg.
― O que eu tenho a dizer é uma sentença do grande
pensador da civilização de vocês, antes de Hitler. Uma
sentença de Goethe, o humanista: "Ninguém poderá jamais
destruir uma idéia pela força das armas. Só se combate
uma idéia com outra idéia melhor". O nazismo é a negação
de todas as idéias. Não tem fundamentos para subsistir!
Neste instante exato o presidente levantou-se, possesso,
e ordenou aos guardas:
― Impeçam este louco de falar!
Um dos brutamontes arianos adiantou-se e deu uma
coronhada violenta no meu pobre Zingg. O sangue afluiu-
lhe à testa e impregnou o tapete do tribunal de grandes
manchas vermelhas. Carregaram-no para fora, semimorto, e
o seu corpo deixou um rastro bem rubro naquela sala
iluminada de uma luz perversa. O sangue do meu marido
punha no recinto a última réstia de liberdade. Era a idéia
viva! Foi a última vez que o avistei.
***
A sessão prosseguiu. Eu teria que ser julgada, de
alguma maneira, para que se dessem foros de legalidade à
minha condenação. Como podem os homens ser tão
hipócritas em nome de suas conquistas! Há, por acaso,
qualquer valor jurídico em um julgamento de vencedores
sobre vencidos?
Foi introduzido um fantoche: o advogado da defesa.
Alemão de voz melíflua, usando óculos de aros dourados,
falando quase no tom dos sacerdotes.
Se não tivesse sido indigna, minha defesa poderia até
ser considerada pitoresca. O cavalheiro, meu defensor
juramentado, falou três ou quatro minutos pedindo
clemência. Referiu-se à minha fragilidade de mulher. À
beleza escultural do meu corpo. Disse, entre malicioso e
indecente, que se lhe fosse permitido agir como, na
antiguidade grega, o famoso advogado Hipérides,
desnudando sua constituinte Frinéia, diante dos juizes do
Areópago, para impressioná-los, não quanto à inocência da
jovem mas quanto à verdade indiscutível da sua beleza, ele
também o faria. Só que Frinéia apenas profanara os
mistérios de Eleusis, enquanto eu, Giselle, traíra a Grande
Alemanha.
Os juizes nazistas se divertiram fartamente com a
minha defesa. E deram permissão ao insidioso advogado
para que, também, à maneira de Hipérides, o orador grego,
me desnudasse.
Minhas vestes foram arrancadas e vi-me
completamente nua perante meus algozes. Devo dizer que
todos me olharam, demoradamente, e houve um silêncio
muito significativo na sala. Eu tinha os seios gelados de
frio. Estavam firmes. Pareciam excitados a um observador
superficial.
Não demorou muito a comédia. Levantou-se o
acusador e pediu que eu fosse novamente recoberta das
minhas roupas. O guarda que me vestiu aproveitou a
ocasião para tocar, de maneira impudente, certas partes
delicadas do meu corpo.
O advogado da acusação leu seu libelo. Era curioso
assistir a tudo aquilo. Um libelo pronunciado depois da
defesa, numa inversão capciosa da ordem universal dos
julgamentos.
Parecia um verdugo, o promotor. Oficial alemão, muito
magro e alto, ostentando um monóculo pretensioso. Citou
nomes e mais nomes de nazistas que tinham morrido por
minha culpa, entre os quais os envenenados por Delly.
Referiu-se a uma série de atos de sabotagem causados, a seu
ver, por informações minhas, enviadas à Inglaterra ou
transmitidas ao Movimento
Francês de Resistência.
― Esta mulher bela e provocante é uma corrompida!
― concluiu ele. ― Ofereceu corpo e alma aos inimigos do
Grande Reich. Mas usou seu corpo para fascinar os nossos
inexperientes cabos de guerra, homens de ação e de luta,
sem defesa contra sua malícia de prostituta intrigante,
instruída para a traição.
Os juizes se concentravam em olhares ao meu corpo.
― Giselle ― disse ainda o promotor ― é uma obra do
demônio contra o poderio da Wehrmacht. Tem, realmente, a
beleza do diabo, mas deve ser condenada à suprema
degradação. Sugiro que sejam ouvidas algumas
testemunhas.
O presidente assentiu. E deu entrada no recinto a figura
grotesca de Corentin. Posso reproduzir um trecho do seu
depoimento, mais ou menos nestes termos:
... "e foi então, senhores, que Giselle colou-se a mim
com fúria. Eu podia vê-la de pé e de costas, no espelho do
quarto. Era um prodígio de lascívia. Parecia uma terrível
bacante, atraindo o desejo total do macho. Meus sentidos
ficaram inteiramente embotados. Fugiu-me o raciocínio.
Perdi o controle e então..."
Também guardo de memória a seqüência final do
depoimento de um tenente alemão, franzino e efeminado.
Eu já o vira antes, em algum lugar. Ali, diante de mim,
procurava reconstituir fatos estranhos:
― "Nunca fui um fraco por mulheres. Sempre me
comportei. Mas esse demônio, senhor juiz, deixou-me tonto.
Não há nada que se compare ao poder de sedução de
Giselle. Ela desperta, em qualquer homem, o instinto
bestial que se esconde no fundo da alma, por gerações.
Antes da guerra eu estudava escultura em Berlim. Mas
jamais encontrei, diante dos meus olhos, estátua tão bem
proporcionada e tão contundentemente feminina, como o
corpo desta que hoje se senta no banco dos réus. Eu não
sonhava sequer tocá-la, com a ponta dos dedos. E ela se
despia, totalmente, ao meu lado. É um demônio!"
***
Antes de continuar a ouvir os depoimentos das
testemunhas seguintes, o juiz presidente, com voz muito
grave, e numa postura de magistrado das gravuras de
Daumier, ordenou:
― Voltem a despir a acusada! A promotoria sustenta
que a arma principal da ré tem sido a beleza do seu corpo.
Que se examine, pois, com maior cuidado, este elemento de
prova material do crime: a pele nua!
***
Novamente fui despida em pleno tribunal. O espetáculo
deveria parecer o de um "striptease" judiciário. Tudo,
menos uma sessão de Justiça.
Quando os guardas ávidos acabaram de retirar a última
peça do meu vestuário íntimo, houve um silêncio respeitoso
em toda a sala. Era o respeito que se impunha a uma
contemplação daquela natureza. Ninguém se poderia saciar
completamente no escrutínio da beleza ao meu corpo.
Confesso que, em todas as posições, eu procurava me
mostrar irresistível. Os requebros das minhas ancas, a
impertinência dos meus seios, a maciez do meu ventre, tudo
se harmonizava propositadamente para ferir os homens de
desejo violento. Eu me habituara a postar-me assim, nas
mais difíceis situações. Os meus gestos provocantes faziam
parte da minha maneira de ser. Eram a continuação da
minha anatomia.
O juiz presidente contemplou-me com os olhos em
brasa. Vi que estava perturbado, quando ordenou:
― Aproximem a acusada!
Dois guardas me seguraram, pelas nádegas, de maneira
irreverente, para me fazer chegar bem perto do juiz nazista.
Ele mediu-me de alto a baixo, demorou o olhar em todos os
pontos mais suaves do meu corpo, até que resolveu solicitar
o exame dos seus pares.
Os membros do Tribunal se levantaram e me
"passaram em revista", como se avaliassem alguma novilha
de raça antes do corte. Dois ou três abanaram a cabeça,
murmurando comentários epicuristas:
― E tudo isto vai se perder! ― prejulgou um deles, ao
contemplar de bem perto os meus seios.
Finalmente foi-me dada a palavra. Eu deveria, de
algum modo, procurar defender-me. Mas achei que a farsa
tinha sido levada longe demais. Não haveria qualquer
vantagem em acirrar o ódio daqueles homens com palavras
de desprezo pelo nazismo. Eu era, naquela sala, a última e a
mais triste das vencidas. Limitei-me a dizer:
― Que os meritíssimos aqui presentes possam guardar
de mim ao menos um gesto de beleza.
E compus, diante da mesa, o gesto clássico de Afrodite,
igual ao da famosa estátua. Naquele instante pedi aos céus
que me transformassem em mármore puro. Mas os céus
preferiram me deixar viva para o sacrifício da carne.
***
Houve um juiz, um só, que se emocionou. Vi quando
retirava os óculos, e pigarreava, e enxugava as lentes com o
lenço de linho branco. Seria um mau nazista, na opinião dos
seus companheiros. Um sentimental!
Durou pouco meu ato de personificação da deusa
grega. O juiz presidente vibrou duas marteladas na mesa,
para acordar os circunstantes do torpor contemplativo em
que se encontravam, e disse:
― Esta Corte de Justiça entra em recesso de cinco
minutos para deliberar. A condenada pode vestir-se.
Foram cinco minutos eternos, durante os quais
imaginei o que poderia estar acontecendo a Zingg, e o que
de semelhante me poderia acontecer, se me revoltasse.
Afinal reapareceram os verdugos, sinistros nas suas
togas. Todos sentados, o Presidente apanhou um papel e
sentenciou:
― Esta Alta Corte de Justiça considera a ré culpada do
crime de traição à Alemanha de Hitler. (Mencionou uma
série de provas, uma quantidade de artigos e parágrafos de
leis onde meus crimes estavam capitulados.) Será
condenada à morte por fuzilamento!
***
Quando os guardas me conduziram de volta a esta
prisão, perguntei-lhes, angustiadamente, se me poderiam
informar da data do meu sacrifício. O silêncio foi sepulcral.
Como são frios esses leões louros! Dir-se-ia que as fibras
dos seus nervos são de puro aço.
Já aqui dentro, diante da mesma pergunta, uma
carcereira me disse, sorrindo:
― Se você for boazinha comigo esta noite, informarei
tudo...
Eu não poderia deixar que mulher alguma tocasse meu
corpo, depois da morte de Delly. Seria profanar sua doce
memória. Assim, fiz ver à varunca nazista que eu não
estaria disposta a pagar-lhe aquele preço por uma notícia
que, de resto ― vejo agora ― nem é tão importante. Que
acréscimo de bem-estar poderia significar o conhecimento
de que minha morte viria em dez dias, e não em oito, ou
três, ou em horas?
Só mais tarde comecei a me preocupar sobre as razões
que estariam determinando o adiamento da minha execução.
― Qual seria o motivo dessa demora? ― perguntei,
um dia, a Nancy, a inglesa, a que tinha o senso de previsão.
― Motivo sério, sem dúvida! ― explicou ela. Por esta
época de falta de comida na França, os alemães não
estariam gastando verduras com uma sentenciada, se sua
sobrevivência não interessasse à Gestapo.
― Mas já sabem de tudo sobre mim! ― observei. ―
Nada mais existe que lhes sirva descobrir sobre minhas
atividades.
― Sim, mas eles acham que sua vida ainda lhes pode
valer de ponto de referência. São uns capetas! Exaurem um
condenado até seu último alento. Pode ser que, no íntimo,
você ainda guarde pequenos segredos que lhes sirvam de
pistas, para a descoberta de segredos maiores.
― Nancy, você parece igual a eles! ― reclamei.
― Ora, minha querida, não diga uma tolice dessas!
Procuro apenas raciocinar, como advogado do diabo.
Procuro me pôr na pele desses monstros para melhor
entender-lhes os atos e as táticas.
― Tem razão! Desculpe-me! Ando tão nervosa que já
nem sei o que digo!
Nancy consolou-me, como pôde, e prosseguiu nas suas
conjeturas pessimistas. Ela era uma criatura objetiva, sem
dúvida. De que nos adiantaria, àquela altura, acreditar em
milagres? Nancy procurava, com suas palavras frias,
acostumar-se e acostumar-nos à realidade irremediável.
― Eles têm processos modernos de fazer o condenado
confessar! ― explicava, detidamente.
― Que processos?
― Científicos. Dispõem do tal "soro da verdade", uma
droga que, uma vez inoculada no paciente, deixa-o à mercê
de qualquer inquisidor. O "soro da verdade" anula, em
qualquer pessoa, a vontade de reagir. Destrói a censura do
subconsciente e elimina o natural poder de contenção do ser
humano válido.
Comecei a ficar alarmada.
― Então, se me derem esse tal "soro", direi tudo que
está guardado no mais íntimo de mim? ― perguntei.
― Exatamente! ― garantiu Nancy. ― Você "dará o
serviço completo", sem sequer saber o que está falando.
Como se estivesse dopada, anestesiada ou hipnotizada.
― Como sabe você disso? ― indaguei.
― Através de Sara, uma judiazinha que passou por
aqui ― disse Nancy. ― Ela revelou até o esconderijo dos
irmãos e da própria mãe. Foram todos presos e enforcados.
― Ela também?
― Não. Ela antecipou-se. Usou um caco de vidro para
abrir o pulso. Morreu sem uma gota de sangue, no próprio
catre. As guardas acharam-na inerte, conto se dormisse. Até
sorria, o último sorriso da vida.
― Nesta cela?
― Sim. Aqui mesmo. E o catre é este em que você
dorme, Giselle. A cena foi terrível.
― Vocês viram?
― Claro que vimos!
― E permitiram?
― Que haveríamos de fazer? Ela implorava nossa
ajuda. Vimos como lhe foi difícil cortar o magro pulso com
o caco de vidro pouco afiado. O sangue começou a sair, a
princípio devagar, depois violentamente. Nós todas
encharcamos os pés nas poças vermelhas. Algo macabro,
sim, macabro de verdade!
― E as carcereiras?
― Foram repreendidas. Os nazistas não gostam que as
condenadas se suicidem. Querem ter o prazer de executá-las
pessoalmente, dentro do ritual. São todos muito formalistas,
você sabe... A morte prematura de qualquer uma de nós
rouba-lhes uma cerimônia e um ofício. É uma espécie de
transtorno na ordem do dia. Por isso, deixamos que a
Sarinha morresse pelas próprias mãos. Morreu como quem
dorme. Só nos foi desagradável o cheiro de sangue
coagulado que impregnou a cela, daí por diante.
Nancy era fria e mórbida nas suas descrições. Olhei-a
bem, naquele instante. Ela sorriu um triste sorriso e retirou,
debaixo do catre, um caco de vidro imundo e exibiu-o,
como se me sugerisse a mesma coisa. Abanei a cabeça.
― Não farei isto! ― disse-lhe, com firmeza. ― Prefiro
morrer no ritual. Nisto, sou igual aos alemães. Eles que me
condenaram, eles que me matem. Vou lhes dar trabalho.
― Talvez você tenha razão! ― concordou a inglesa. ―
Nós temos de deixar que eles se ocupem ao menos da nossa
morte.
Neste instante a carcereira, do lado de fora, ordenou
que fizéssemos silêncio. Senti uma súbita inspiração
invadir-me o espírito e gritei-lhe, pondo toda a autoridade
possível na voz:
― Vá dizer a Herman Goering que desejo falar-lhe. É
assunto da maior importância, Você será recompensada...
pode crer!
25

Não sei se em respeito ao prestigio do mito que eu


representava, ou se por simples dever de ofício, ou ainda,
quem sabe, na esperança de uma retribuição carinhosa da
minha parte, o certo é que a carcereira procurou transmitir
meu recado aos seus superiores na prisão.
O diretor da Cherche-Midi, coronel Weber, dentro de
poucas horas, mandou chamar-me à sua presença. Mas logo
ironizou meu pedido:
― Falar com Herman Goering? Está doida? Que
categoria tem você para querer entrar em contato com um
dos mais ilustres membros do Terceiro Reich?
― Tenho a categoria de prisioneira de guerra! ―
respondi, muito segura de mim mesma. ― Além do mais ―
prossegui ― guardo verdades muito importantes a revelar!
― Importantes para você, ou importantes para a
Alemanha? ― indagou Weber.
― Importantes para Goering! ― afirmei.
― Esta é boa! ― disse o coronel. ― E por que não faz
a mim estas tão importantes revelações? Sou todo ouvidos...
― Gostaria de fazê-lo! ― observei. ― Mas tenho
certeza que o próprio marechal Goering preferiria que o
segredo lhe fosse diretamente revelado, e só a ele,
pessoalmente.
O coronel remexeu-se na cadeira, impaciente. Via-se
que não tinha uma resposta muito nítida para me dar. Saiu
pela tangente:
― O marechal Goering não se acha em Paris. Voou
para Berlim.
― Então esperarei! ― disse.
Novamente o diretor da prisão entregou-se ao
sarcasmo:
― É curioso... muito curioso. Uma condenada à morte
diz que esperará. Você já não percebeu, Giselle, que os
condenados só esperam o fim?
― Deixo esta expectativa ao critério do prezado
coronel Weber. A decisão é sua.
― Pura chantagem, Giselle! Acho que você nada tem
de realmente importante a confessar. Está tentando dilatar o
prazo da sua vida.
― De que me serviriam alguns dias? A vida só tem
sabor na ignorância da morte. De resto, preferiria que minha
execução fosse marcada para daqui a pouco, se não tivesse
algo muito importante a dizer.
― Não acredito numa palavra do que está dizendo,
Giselle!
― Paciência...
― Mas só por curiosidade, transmitirei seu desejo ao
general Stupnaggel, amanhã.
― Não faça isto! ― gritei, com impaciência na voz.
― Por quê?
― Porque o general Stupnaggel detesta Goering.
Ciúmes! Por minha causa.
O coronel Weber começou a rir, como se estivesse
bêbado de alegria.
― Giselle ― disse ele. ― Parece que tudo está claro.
― Em que sentido? ― fiz eu, surpresa.
― Ora, não se mostre assim tão desentendida, por
favor! Não subestime minha inteligência. Não me nivele a
estes bobocas todos que você seduziu. Isto me irrita.
― Continuo indagando ― insisti, mais firme do que
nunca ― em que sentido o coronel Weber acha que as
coisas se esclarecem?
― É muito simples! Você ouviu falar de certas manias
do nosso marechal. Manias necrófilas, como todo mundo
sabe... A influência que exercem sobre ele certas mulheres
que vão morrer.
― Tenho, com efeito, ouvido várias versões a respeito
― confirmei.
― Pois bem ― prosseguiu Weber -, neste momento
você seria uma pessoa altamente indicada para agradar ao
marechal. Está a dois passos da morte. É um pré-cadáver!
― Talvez... favorita de uma noite! ― concluí. ― Isto
de pouco me adiantaria.
― Ora, convenhamos... ― insinuou o coronel ― se
você se acha bastante capaz de se fazer amar, por uma noite,
pelo marechal Goering, não seria arriscado admitir que
também pretenderia conquistá-lo para novas aventuras e
estas lhe abririam uma possibilidade de salvação. Uma
tática de Sherazade, em pleno século XX. As "mil e uma
noites" de Giselle...
― É bem imaginado ― admiti ― mas não é exato!
― É pelo menos lógico, Giselle! Você já esteve uma
vez para ser executada e à última hora veio a ordem
salvadora. Não seria demais repetir a façanha.
***
Minha longa experiência com os nazistas me havia
ensinado a não tentar tripudiar sobre suas vaidades. O mais
ferrenho oficial da Wehrmacht pode se converter num bebê
chorão quando insuflado no seu ponto fraco, no seu amor-
próprio. Em contrapartida, o humílimo sentinela,
engraxador de botas, muda-se em general de batalha, em
dragão a jorrar fogo pelas ventas, se lhe ferimos a vaidade
de nazista. Eu estava diante de um coronel cheio de pruridos
sherlockianos, apaixonado pelas suas próprias deduções em
relação ao meu pedido e suas conseqüências últimas. O
lógico seria deixa-lo encantar-se pelo próprio raciocínio e
surpreendê-lo pela retaguarda, ou seja, no terreno da
hierarquia e da disciplina, onde os nazistas são bitolados e
se espantam ao menor incidente.
Goering era um superoficial visadíssimo pelas forças
da Resistência francesa. Um atentado contra sua vida teria
custado a cabeça de muitos dos responsáveis pela sua
segurança. O coronel Weber, eu sabia, tinha muito a ver
com a organização dos guardas-costas do marechal.
― Ele ouve sempre os passos de alguém que o quer
matar! ― teria dito, a um amigo, seu ajudante de ordens. ―
Mas as suspeitas não são de todo infundadas.
Meu próximo passo deveria ser, então, colocar o
coronel Weber em sobressalto quanto à vida do seu
superior. Ataquei, sem perda de tempo:
― Pois bem, coronel. Se Goering sucumbir, de
repente, num acidente de rua, ou voar pelos ares, sobre uma
bomba, saiba que é pura coincidência. Ou profecia de
Giselle, a pitonisa!
O diretor da prisão empalideceu. E ordenou que me
retirasse, e me recolhesse à minha cela até ulterior
deliberação.
A sorte estava lançada!
***
Goering não estava mesmo em Berlim. Muito ao
contrário, divertia-se, momentaneamente, em Paris,
entregue à vida boêmia, na luxuosa residência que lhe
consignaram, em Champs Elysées. A casa reeditava, em
edições menores, as grandes farras romanas de Tibério e
Caracala. Jovens adolescentes, de ambos os sexos, todos
despidos e untados de óleos perfumados, constituíam a
paisagem humana constante do interior dessa residência.
Os escândalos não tinham sido evitados, e soube-se,
mais tarde, que o próprio Führer ordenara ao marechal que
fosse mais comedido. Suas taras ganhavam curso no
anedotário picaresco da cidade.
O coronel Weber, em pessoa, foi transmitir ao grande
oficial meu pedido para uma entrevista, a portas fechadas.
De volta à prisão, chamou-me outra vez ao seu gabinete e
deu a boa notícia:
― O marechal se digna atender sua solicitação,
Giselle! É um homem inteligente e curioso. Perguntou-me,
duas vezes, se você fora mesmo condenada à morte.
Neste momento sorri.
― Por que ri? ― quis saber o coronel.
― Porque vejo que a tara parece ser mesmo
verdadeira! ― observei.
― Mais respeito com um oficial do Führer! ― rosnou
Weber, visivelmente desconcertado.
***
De volta à cela quiseram minhas companheiras saber o
que estava acontecendo. Acaso iria eu delatá-las?
Transformara-me, porventura, em colaboradora nazista, à
última hora, por medo da morte? Que significava aquela
insistência em falar com Goering?
― Tranqüilizem-se, meninas! ― disse-lhes eu, em
segredo.
― Meu plano é o melhor possível. Vocês saberão de
tudo, mais tarde! Eu vou fazer com que o marechal Goering
passe toda a sua vida a se lembrar de mim! Por enquanto,
sosseguem...
***
Na noite seguinte, a febril atividade de limpeza e
arrumação em nossas celas anunciou a chegada de uma
autoridade. É sempre assim. Os homens importantes,
porque são importantes, se deixam enganar pelos seus
subordinados menos zelosos.
A guarda foi reforçada. As mulheres do policiamento
interno vestiram uniformes limpos. Por volta das duas da
madrugada vieram buscar-me.
― Goering está aqui! ― disse alguém, no corredor.
― Chegou o grande filho da puta! ― berrou uma
histérica, na cela vizinha.
Fui caminhando entre pragas. "Lá vai a cabra alemã!",
diziam-me ao passar. Era a suspeita natural de que eu
estivesse colaborando com os meus algozes, em troca da
liberdade. Suportei, pois, sem resposta, todos os insultos.
Quando entrei no gabinete do diretor percebi que as
guardas ficavam do lado de fora. Herman Goering estava
sozinho!
― Boa noite, marechal! ― fui dizendo, logo ao
transpor o umbral.
― Boa noite, Giselle ― respondeu Goering, afável. ―
Eis-me aqui atendendo ao pedido de uma condenada. Não
acha que nós, nazistas, somos uma gente sensível?
― Talvez ― disse-lhe eu, ganhando coragem. ― Mas
creio que o senhor veio por medo.
― Medo de quê?
― De algo que o ameace... algo de que só eu tenha
conhecimento.
― Diga logo! ― fez ele, nervoso. ― Há algum novo
"complot" em marcha contra minha vida?
― É o que veremos ― respondi, procurando ganhar
tempo.
― Não adianta valorizar sua posição, Giselle! O que
você vai dizer não é diferente do que as outras dizem, na
hora do pânico. Afirmará que estou ameaçado de morte, e
tentará me convencer de que você sabe do local, data e hora,
e dos nomes dos meus possíveis assassinos.
― Que mais, marechal?
― Finalmente, proporá a troca da sensacional
revelação pelo inestimável bem que é sua vida. Não aceito o
negócio, Giselle!
Aproximei-me de Goering e olhei-o bem dentro dos
olhos.
― Está enganado, marechal! Não sei de ameaças à sua
vida!
― Por que me chamou, então?
― Só posso dizer em outro local ― minha voz era
firme.
O gordo oficial riu gostosamente, aquele seu famoso
riso de criança nervosa, entrecortado de soluços.
― Noutro local? ― repetia, sacudindo o ventre
enorme. ― Esta é boa! A condenada quer falar longe da
prisão.
― E por que seria tão difícil assim? ― indaguei. ―
Afinal, nada deve ser impossível para Goering, quando
Goering quer.
Ele deixou de sorrir e encarou-me. Prossegui:
― Poderíamos ir até a minha casa, na saudosa Rua du
Bac, onde passaríamos a noite. Uma simples escolta para
guardar-me na ida e na volta. Outra para vigiar a residência.
Serei eu tão perigosa assim? Mais forte do que o exército
alemão?
Nesse instante os olhos de Goering brilharam. Eu
conseguira despertar o tarado!
***
As providências seguintes foram muito rápidas.
Goering chamou o diretor da prisão e comunicou-lhe,
sumariamente:
― Coronel Weber, esta moça dormirá esta noite em
seu apartamento na Rua du Bac.
O espanto que se compôs na fisionomia do oficial fez
com que Goering esclarecesse:
― Mas o prédio e a rua devem ser cuidadosamente
guardados. Quando principiar o dia, mande buscá-la de
volta, sob escolta. E que sua sentença de morte se cumpra,
sem adiamento. É uma ordem!
Com os olhos sobre os meus, Herman Goering mostrou
quanto seria impossível qualquer esperança:
― Se quer ir, mesmo sob esta condição, prossiga ―
disse-me, categórico. ― Mas se alimenta qualquer outra
esperança, desista. Não há força deste mundo que a possa
livrar da pena de morte. Muito menos agora.
― Posso saber quando serei executada?
― Amanhã, ao entardecer.
― Muito bem. Prefiro despedir-me da vida no meu
apartamento. Muito obrigada, marechal.
Descemos. O auto blindado de Goering nos levou à rua
que para mim, agora, tomava o aspecto de um sonho
colorido. Fomos seguidos de perto por agentes de segurança
e esbirros especializados. À porta da minha casa postaram-
se meia dúzia de chacais nazistas, a garantir minha
sentença. Luzes apagadas na vizinhança. Os honrados
franceses do meu bairro preferiam ignorar a cena. Ou
amaldiçoar-me em silêncio, de dentro da escuridão.
― Suba na frente, Giselle ― disse Goering, quando o
auto estacou. Falava em um tom de bondade jamais
compatível com sua fama.
Seus olhos, no entanto, revelavam o lúbrico. Eu me
recusava a pensar nos detalhes do que seria a noite com
aquele porco. Mas era preciso prosseguir no plano que eu já
me traçara, como o último antes de me despedir da vida.
Toda a expectativa desse nojo não conseguiu deter em mim
uma deliciosa impressão de aconchego que experimentei ao
penetrar, novamente, na minha sala de estar. Fui correndo
ao banheiro, refrescar-me como há tanto tempo não fazia na
cela imunda da Cherche-Midi. Seria o último banho da
minha vida?
Ouvi a voz de Goering antes de jogar-me, toda nua, na
banheira cor-de-rosa.
― Não a acompanharei porque estou cansado e
pretendo repousar alguns minutos na sua cama ― disse,
com displicência, deixando-me bem à vontade. ― Mas não
posso largá-la inteiramente sozinha ― completou, severo.
― Se não me acompanha, terei de ficar sozinha! ―
respondi.
― Não se preocupe ― disse o marechal. ― Alguém a
acompanhará.
Foi até a porta da sala e gritou:
― Banzo!
Ouvi passos na escada que dava para o sótão. Logo
Banzo apareceu. Meu horror não se poderia conter nesse
parágrafo. Diante de mim cresceu a figura grotesca de um
bicho humano. Era um negro horrível... quase um gorila! De
dois metros de altura.
― Não se assuste, Giselle ― falou Goering. ― Sem
ordem minha esse gorila não faz mal a uma pulga.
― Quem é Banzo? ― perguntei, trêmula.
― Um semi-animal ― explicou ele. ― Pertence a um
grupo racial quase extinto, dos zarabôs. Veio da África.
Presente do marechal von Rommel. Alguns chegam a
considerá-lo o elo perdido, entre o homem e o macaco.
― Ele fala?
― Claro! É da nossa mesma escala zoológica, só que
seu cérebro tem o desenvolvimento de uma criança de oito
anos, e suas feições e seus pêlos lembram os do
orangotango.
― E lhe obedece mesmo, cegamente?
― Como se fosse um autômato. Por razões muito
simples: Banzo foi feito prisioneiro, com toda a família. A
paixão desses monstros pela família é algo de
impressionante, Libertei-o e afastei-o da tribo, garantindo-
lhe que, enquanto for fiel a mim, sua gente viverá. Caso
contrário...
Goering olhou para o monstro. O negro abriu as goelas
num esgar que deveria ser sua maneira de sorrir.
Resolvi perguntar:
― Afinal, qual é o papel de Banzo aqui em meu
apartamento, esta noite?
As feições de Goering foram se intumescendo de
lascívia quando respondeu:
― Giselle, quero que você compreenda, que a principal
tarefa de Banzo é provocar excitação em meu corpo
cansado.
― Excitação?
― Sim, minha querida... ele é o instrumento que uso
para fazer com que as cordas tão gastas da minha lira
erótica possam vibrar. Entende?
― Começo a entender! ― disse-lhe. ― Mas... como?
― Muito simplesmente. Banzo dorme com as mulheres
que eu escolho!
***
Quase desmaiei diante daquela perspectiva sinistra.
Infelizmente, as mulheres como eu, endurecidas pela vida,
já não conseguem desmaiar. O desmaio é, pelo menos em
certas circunstâncias, uma anestesia do sofrimento. Implorei
a Goering, de joelhos, que não me submetesse a tal absurdo.
O desgraçado já não tinha, ele também, meios de se
comover. Pedi-lhe que, ao menos, me deixasse tomar um
banho tranqüila, sem a presença do negro. O marechal foi
inflexível:
― Esqueça-se da presença dele e faça o que tem de
fazer!
Tive de obedecer. O monstro acompanhou-me até o
banheiro e ficou lá, de olhos parados, encostado contra o
ladrilho, a vigiar-me. Vez por outra um sorriso bárbaro
iluminava-lhe a face negra. De repente, uma idéia feliz
tomou conta do meu espírito. Ali no banheiro existiam os
instrumentos necessários ao crime perfeito.
Desde os tempos em que Stupnaggel começara a
visitar-me, naquela casa, os nazistas haviam feito instalar,
dentro da sala de banhos, um tubo de oxigênio, com a
respectiva máscara, ao lado do canapé para repouso. Após
suas orgias, os oficiais, via de regra, deitavam-se no coxim
e respiravam quinze ou vinte minutos de oxigênio
procurando retemperar as forças. Isso é uma prática muito
comum entre os saxônicos e os nórdicos. Eles a repetiam
ali, para seu próprio conforto.
No banheiro também havia o clássico aquecedor de gás
para os banhos quentes. A idéia era muito simples. Banzo,
diante de mim, estava imóvel. Sua atitude era de vigilância,
para não deixar-me sair. Pois no momento só me
interessava ficar, e ficar por algumas horas. Goering, no
quarto, já roncava alto.
Rapidamente tornei-me simpática ao negro. Sorri-lhe,
dei-lhe um sabonete perfumado, e enquanto o rondava com
os meus meneios de fêmea, fui calafetando com papel
higiênico as frestas da porta e da janela.
Em seguida, abri o gás do aquecedor sem acender os
tubos. Girei a torneira de água quente na banheira. O
barulho da água iludiria qualquer suspeita. Depressa, deitei-
me no canapé e cobri o nariz com a máscara, tendo tido o
cuidado de abrir a alavanca que libertava do tubo o
oxigênio.
Banzo ficava a olhar-me sem entender muita coisa. O
gás estava escapando, depressa. De onde eu me colocara era
possível ouvir o silvo do fluido mortífero. Quando a
banheira se encheu, prendi a respiração, sai do canapé,
fechei a torneira e voltei à máscara protetora. Assim
permaneci, seguramente durante uma hora. Felizmente o
tubo de oxigênio estava cheio. Há muito que ninguém o
usava.
Quando o oxigênio acabou, tive de sair da minha
posição para abrir a janela e respirar. O corpo de Banzo
jazia inerte no assoalho frio do banheiro. Sua estrutura de
negro primitivo não pudera resistir a uma hora de respiração
de gás. Eu me libertara do monstro. Agora, o importante
seria desfazer as pistas. Retirei depressa os papéis com que
havia calafetado as aberturas, fechei o gás e agitei uma
toalha de banho dentro do recinto a fim de espalhar o cheiro
forte. E tomei meu banho tranqüila, de janela aberta, tendo
por companhia apenas o cadáver de Banzo.
Não é preciso descrever a raiva de Goering ao tomar
conhecimento da morte do seu negro de estimação. Quis
culpar-me. Ameaçou-me:
― Você o envenenou! Foi você, gata assassina!
Diante do irremediável teve de se convencer com os
meus argumentos.
― O negro morreu de velho! ― disse-lhe eu. ― Teve
um enfarte! Uma angina. Vi-o colocar a mão no peito antes
de tombar.
Goering limitou-se a dizer:
― Agora você terá de surrar-me, Giselle!
― Como? ― fiz eu, admirada. ― Surrá-lo?
― Sim! De chicote.
Goering foi até onde estava uma valise de couro e
retirou de lá um grande chicote de açoitar bovinos. Trouxe
também alguns pedaços de corda.
― Agora amarre-me à cama! ― disse, com um olhar
estranho.
― Amarrá-lo?
― Faça o que estou dizendo e não discuta, senão
mando matá-la já! ― a voz de Goering era sinistra.
Obedeci. Quando já estava bem seguro, o marechal
ordenou-me:
― Agora bata!
― Os soldados ouvirão e talvez pensem que o estou
matando! ― comentei, cautelosa.
― Não se incomode. Eles já estão acostumados.
Comece!
Empunhei o chicote e, não sem uma certa alegria no
espírito, desfechei o primeiro golpe na cara do marechal.
Um estalo perfeito.
― Na cara não!... ― ele me gritou, entredentes. Via-se
que não queria fazer barulho para não chamar a atenção dos
guardas lá fora.
― Não me avisou! ― desculpei-me.
― Bata no corpo, em todo o corpo. Principalmente
aqui.
Obedeci. Goering estava transtornado. O chicote
deixava marcas avermelhadas na carne branca do seu
ventre. Ele não deixava de dar alguns gemidos violentos, de
vez em quando.
Nesse instante a porta se abriu, forçada por violento
pontapé, e no umbral apareceu um oficial alemão, o tenente
Herman.
O quadro era horrível, e o tenente correu para Goering,
desamarrando-o, enquanto um guarda encostava aos meus
seios o cano de uma pistola, havendo-me arrebatado da mão
o chicote. Goering ficou de pé, nu, como um querubim
barroco:
― Quem o chamou, tenente Herman?
― Ouvi seus gritos, marechal. Eu me achava ao pé da
escada...
― Quem o mandou subir? E este guarda? Quem o
mandou forçar a porta?
O tenente estava sem jeito:
― Achamos que o marechal sofria um atentado!
― Os oficiais inferiores não devem achar nada diante
de um marechal ― disse Goering, raivoso. ― Recolha-se,
imediatamente, ao seu posto com seu guarda, e não me
importune mais, até o amanhecer, sob pena de eu mandar
executá-los a todos!
A cena era profundamente ridícula. Um marechal nu,
dando ordens severíssimas a um tenente fardado. Jamais a
esquecerei.
Depois que se retiraram, Goering pôs as mãos na
cabeça.
― Ninguém me entende! Nem os meus próprios
soldados! Sou um infeliz. Venha para perto de mim, Giselle
― E o marechal tornou-se, subitamente, excitado.
Acariciou meu corpo, sobre a cama, dizendo: ― Dentro de
algumas horas você morrerá! Não é maravilhoso? Quase
cadáver!
Compreendi aí a razão do porque a família de Goering
o havia feito internar, durante algum tempo, no Sanatório de
Bremen. O marechal era mais do que um tarado. Era um
demente e um necrófilo! Calei-me. Ele continuava a usar do
meu corpo, com suas mãos quentes e grossas. Não lhe opus
a menor resistência. Mas Goering não finalizava. Largava-
me, de repente, e resmungava alguma coisa sobre Banzo, e
a falta que o negro lhe fazia, nesses instantes.
Era de estarrecer!
Finalmente adormeceu. Seu ventre se assemelhava a
um globo, e, noutra ocasião, eu teria tido vontade de rir. Um
porco de sexo atrofiado, eis o que parecia...
Vi, então, que chegara a hora de executar meu plano.
Experimentei acordá-lo, com um ou dois bruscos
movimentos na cama, e não consegui. O ressonar se tornava
profundo. Goering dormia o sono dos assassinos, esse, de
pedra, que os literatos chamam "o sono dos justos", quando
se sabe que os justos não dormem.
Levantei-me, pé ante pé, e fui ao banheiro. Procurei
minha arma atrás do aquecedor. Lá estava, a bela navalha
alemã, do mesmo aço dos seus canhões mortíferos.
Quando abri a lâmina, uma réstia de luz ali refletiu-se,
provocando-me arrepios. Caminhei, em seguida,
silenciosamente, até o quarto. O começo da madrugada
deixava entrar, através do reposteiro, alguns tons de
claridade violeta. Tudo estava cheirando a morte!
Goering dormia e roncava, de barriga para o ar.
Eu tinha nas mãos a navalha aberta. Cheguei mais
perto e... cortei o mal pela raiz!
Goering acordou urrando de dor!
― Miserável! Assassina! Guardas! Guardas! Depressa.
Os soldados, muito relutantemente, entraram no quarto.
Já não sabiam se os gritos de Goering eram de tara, ou de
ordens verdadeiras.
Mas a grande quantidade de sangue que o marechal
derramava, sob seu ventre, definia a situação. De repente
houve um rebuliço dentro do quarto, um vaivém terrível de
nazistas, a gritar providências, chamar médicos,
ambulâncias. Goering, quase desmaiado agora, esvaía-se em
sangue. Eu realizara, pelo menos nele, o grande e último
desejo de Delly:
― Que todo alemão nasça castrado.
Daí em diante tudo foi rápido. Agarraram-me como um
fardo e me trouxeram outra vez para esta cela imunda, da
Cherche-Midi. E agora me dirijo a você, Gabriele Ladème,
nas últimas horas da minha vida, narrando todo o longo
trecho destas minhas memórias, na esperança de que
possam vir, um dia, a ser conhecidas, pelos nossos
descendentes.
Receba uma confissão, querida amiga! Não há padres
que me possam visitar, neste momento. Eu preciso dizer... é
necessário que alguém saiba... Eu tenho uma filha. Sim.
Uma filha! Não de Zingg, mas de um namorado alemão que
amei antes de conhecer meu corajoso companheiro. Fui
abandonada grávida, por esse namorado que me
desvirginou. Vivi nove meses de sacrifício, e depois,
quando a menina nasceu, foi raptada. Ele mandou tirá-la de
mim! Nunca mais soube dela. Eu tenho uma filha, Gabriele!
Uma filha em algum lugar do mundo! É preciso que eu lhe
confesse isso, antes de morrer.
Agora, adeus. Reze por mim na hora mais difícil.
Começo a sentir minhas fraquezas de condenada. Gostaria
de morrer firme, mas sei que não é fácil... enfrentar o
desconhecido... o fim. Meu corpo é duro, mas minha alma
estremece. Ah!... Um poema de Rilke:
"Quem, se agora eu gritasse,
me ouviria na escala dos anjos?"
***
Foram estas as últimas palavras ouvidas de Giselle, por
sua companheira de cárcere, Gabriele Ladème, jovem nas
mãos de quem se depositou este documento até agora.
Gabriele descreveu ainda o fuzilamento de Giselle,
segundo testemunho de um dos guardas que o presenciaram.
― Fizeram-na assistir à morte de Corentin, o traidor, e
à morte do seu próprio marido, Paulo Zingg. Ambos
fuzilados. Zingg pediu que lhe soltassem as mãos para um
último aceno a Giselle. O pedido foi atendido. O jovem
recebeu as balas no meio de um gesto de adeus.
Ao chegar a vez da espiã, o coronel Weber, que dava as
ordens de fogo, fez uma pausa e falou.
― Giselle Montfort, traidora da Alemanha de Hitler,
terá de morrer nua. Assim o quer o Grande Reich.
Um soldado adiantou-se e retirou da bela
revolucionária seu feio uniforme de prisioneira. Foi um
espetáculo impressionante! Nunca se vira, naquele sujo
pátio de fuzilamentos, uma figura tão provocante.
Giselle, nua, encostada ao muro de execuções, parecia
uma estátua grega de Praxiteles, tão pálida era sua cor... da
palidez do mármore. Os soldados abaixaram os fuzis para
contemplá-la.
O coronel Weber ainda perguntou:
― Pretende, a condenada, manifestar sua última
vontade?
Giselle, com voz débil, mas segura, pediu:
― Se o coronel é um "gentleman", e um grande
soldado, entendido nas regras da guerra limpa, fará meu
último desejo sem constrangimentos.
― E qual é esse desejo?
― Quero que o próprio coronel Weber cante a primeira
estrofe da "Marselhesa", para mim, antes de dar a ordem de
fogo. Afinal, não há aqui ninguém mais que o possa fazer.
O coronel engoliu em seco. Era um desafio à sua
condição de "gentleman" e soldado. Com uma voz muito
rouca, mas razoavelmente afinada, e num sotaque bastante
leve para um nazista que falasse francês, começou a cantar:
“Allons enfants de la Patrie...
Le jour de gloire est arrivé!”
***
Todos o olhavam estarrecidos. O coronel encerrou a
primeira estrofe, formalizou-se e ordenou:
― Fogo!
O corpo de Giselle foi varado por balas agudas, e o
sangue aflorou em vários pontos da sua pele alva, como
rosas líquidas em um sonho terrível. A morte, sobre ela,
floria...
Até tarde da noite daquele dia, o corpo da jovem espiã
ficou jogado no pátio, à espera de que o levassem para uma
sepultura comum.
Diz a lenda que, durante todo esse tempo, Giselle
sorria, ainda que morta.
GISELE MONTFORT
Fim das memórias secretas da espiã nua que abalou
Paris
© 1964 - DAVID NASSER
O TIRO E A HISTÓRIA

É um fato indiscutível que o homem sempre viveu em estado de guerra,


desde os tempos imemoriais, anteriores o Cristo, até os nossos dias,
quando procura descobrir o caminho das estrelas. Ontem, como agora, a
qualquer momento, em alguma parte do mundo, certo número de pessoas
está procurando matar ou exterminar outro tanto.
Parece que há uma explicação para esse delírio sanguinário do
homem, através dos tempos. individualmente, cada um de nós louvará a
paz e dirá que a guerra é uma insensatez. Coletivamente seremos os
mesmos assassinos de sempre, empenhados em conflagrações fratricidas.
Dizem que os homens se entrematam a fim de manter o equilíbrio da
espécie, assim como os salmões que desovam nas nascentes dos rios ou os
boleias que se suicidam, coletivamente, nas praias dos mores do Sul. Uma
questão puramente genética. Mais inteligente que qualquer outro bicho
sobre a Terra, o ser humano não tem, sobre ele, o ameaça dos predadores.
Converte-se, portanto, no lobo de si mesmo. Havendo praticamente
controlado o perigo dizimador das epidemias e das pestes, reduzido o taxa
de mortalidade infantil e melhorado suo média de vida para 70 anos, o
bicho-homem, diante da explosão populacional que lhe ameaça a espécie,
vai inventando armas cada vez mais destruidoras, a fim de se liquidar a si
mesmo, em escala crescente. Ou seja, as guerras parecem que têm uma
taxa de correção. O morticínio aumenta proporcionalmente ao aumento da
tecnologia.
A história do Mundo, infelizmente, está amplamente recheada de
histórias de guerra.

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