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Mila Wander e Josy Stoque

2017

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Copyright @ 2018 Mila Wander e Josy Stoque
Imagem de capa: Giuseppe Parisi
Direitos de Imagem cedidos por Shutterstock 2017

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ÍNDICE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23

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CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
QUEM SÃO AS AUTORAS

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PRÓLOGO
Era uma vez...

Há muito tempo, em um reino tão distante que nenhum olho humano


jamais viu, existia um jovem e belo deus, governando sobre todas as criaturas
que habitavam os sete mares. Netuno era bondoso e justo, e comandava com
a dedicação que lhe era pertinente e o amor que lhe era inerente. Todas as
criaturas o respeitavam e admiravam, reconheciam-no como a figura
necessária para a manutenção do equilíbrio da vida. O vasto oceano existia
em harmonia e, por longas eras, houve a mais completa paz.
Mesmo tendo tudo o que quisesse ao alcance de seu tridente mágico,
Netuno possuía um coração puro inabitado e um grande amor se tornou seu
maior desejo. Ele era muito solitário em seu castelo, nas profundezas do
oceano, e esperava por alguém que lhe fizesse companhia em sua longa e
imortal vida. A força das águas, sabendo que nenhum ser deve viver sozinho,
ainda que este fosse um deus poderoso, criou, a partir das mais límpidas
espumas litorâneas, e trouxe para Netuno uma nereide chamada Anfitrite, que
era a personificação da beleza feminina das águas.
Anfitrite, além de bela, com sua cauda sedutora e cabelos tão longos
que se enrolavam em seu corpo, era inteligente, pois possuía em seu espírito
o poder e a sabedoria vindouros dos primórdios do planeta. O deus do oceano
ficou encantado com o presente que lhe foi entregue, contudo, seu interesse
por Anfitrite se tornou meramente amigável depois que ele percebeu que o
coração da nereide estava distante da inocência que o seu próprio cultivava.
Sendo assim, ela se tornou a sua mais fiel conselheira, a feiticeira que

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ajudava a tornar o seu reino mais harmonioso e sua existência menos
solitária.
Ainda assim, Netuno sonhava com uma companheira para quem
pudesse entregar seu bom coração. Algumas vezes Anfitrite o alertava, dizia-
lhe que um coração livre de qualquer desconfiança sofria com mais
facilidade, porém o deus não acreditava e mantinha acesa a chama da
esperança.
Como sempre acontece com quem deseja fortemente alguma coisa, os
anseios de Netuno foram atendidos pela natureza durante uma de suas
vistorias aos litorais. Sentada em uma grande pedra e olhando para o mar
como se o balanço das ondas a levasse para longe, estava uma linda e jovem
camponesa, que não passou despercebida pelo olhar atento do deus do
oceano. Ele a considerou a mais encantadora criatura que já tinha passado
diante de seus olhos milenares.
Porém, havia um pequeno problema: a camponesa era humana e, como
Netuno bem sabia, nenhum ser humano seria capaz de juntar-se a ele nas
profundezas de seu reino. Ainda assim, o deus se aproximou sorrateiramente
da pedra. Acreditava que a humana se apaixonaria assim que o avistasse de
volta, pois o amor para Netuno era bastante descomplicado e sempre
recíproco. Pela primeira vez, ele se deixou ser visto por uma criatura
terrestre.
Tão logo seus olhos recaíram sobre a imponente figura de Netuno, a
camponesa se assustou. Após alguns segundos de vislumbre, e porque seu
coração era maculado com os ressentimentos e traumas tipicamente humanos,
os quais o deus do oceano desconhecia, a jovem simplesmente iniciou uma
ruidosa gargalhada.
“Você que é a pequena sereia de que tanto falam?”, ela riu
desdenhosamente.

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Netuno ainda tentou lhe explicar o que, para ele, parecia óbvio:
“Não, bela e encantadora humana, as sereias são bem diferentes de
mim, embora nós dois tenhamos uma comprida cauda”.
“Pois que volte para o mar”, disse a camponesa, “Se os marujos o
virem, vão transformar-te em pescado muito depressa”.
Netuno abriu um sorriso porque achou que o aviso da mulher
significava que ela já nutria um forte sentimento de proteção para com ele.
“Não se aflija, nobre camponesa. Ninguém seria capaz de transformar-
me em pescado. Junte-se a mim no oceano e eu prometo entregar-te a mais
pura felicidade”, o deus propôs de forma insinuante, com cada partícula de
seu corpo imortal vibrando de expectativa.
A jovem tornou a rir em escárnio.
“Jamais, meu senhor! Sou feita para ficar na terra e assim
permanecerei. Não cairei nos truques de um peixe falante. Já ouvi as
histórias, não pretendo deixar-me seduzir por uma criatura mítica e afundar-
me para todo o sempre nessas águas obscuras”, dito aquilo, a camponesa se
levantou e foi embora.
Em nenhum momento Netuno questionou as atitudes da mulher, pelo
menos não de uma forma negativa. O deus até achou que ela tivesse razão;
uma humana havia sido criada para pertencer à terra firme, seria loucura levá-
la para o oceano. Mas ele acreditava no amor em sua mais pura forma. E
acreditava também que todo amor exigia sacrifícios, mudanças e concessões.
Disposto a virar aquele jogo romântico, Netuno procurou pelos poderes
de sua fiel amiga Anfitrite. Apenas ela seria capaz de ajudá-lo. Apesar de
muito poderoso, Netuno não possuía o dom de enfeitiçar nem mesmo a si
próprio, como a nereide possuía e usava indistintamente. Seu pedido havia
sido bastante incomum, Netuno exigia que Anfitrite o abençoasse com a
capacidade de obter pernas quando resolvesse se distanciar das águas.

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A nereide, obviamente, questionou tal pedido.
“Eu me apaixonei profundamente por uma humana e a quero com
todas as forças do meu coração, Anfitrite. Porém, para ficarmos juntos,
preciso de pernas humanas para me locomover e não assustá-la”.
Anfitrite permaneceu imersa na mais pura estupefação.
“Este é, sem dúvida, o maior absurdo que já fui capaz de ouvir”, falou
em toda sua sabedoria, “os humanos são seres mesquinhos e traiçoeiros, meu
bom deus Netuno. A sua paixão é descabida e certamente terminará em
lágrimas”.
Netuno se recusou a ouvi-la. Ele sabia que a nereide não compreendia
absolutamente nada sobre o verdadeiro amor, por ser uma entidade racional e
conhecedora do lado obscuro da vida, portanto não achou prudente levar seu
questionamento a sério.
“Atenda não ao meu pedido, Anfitrite, mas à minha ordem.”
A nereide jamais desobedeceria ao deus do oceano, o soberano das
águas. Sendo assim, realizou um feitiço juntando uma coroa de corais e dez
grãos de areia. Em alguns minutos, e depois de algumas palavras
incompreensíveis, o corpo de Netuno ficou envolto a grandes bolhas de ar.
Quando elas foram embora, o feitiço estava concluído.
“Espero que saiba o que está fazendo, meu amigo”, Anfitrite informou,
reflexiva. “Essa história certamente não acabará bem e teu coração puro
será quebrado. Nenhum ser inferior como uma humana merece a sua
consideração, e muito menos o amor de um deus poderoso como você”.
Netuno continuou sem ouvi-la. Deu as costas e nadou de volta à praia
onde tinha visto a sua amada pela primeira vez.
Os rumores de que Netuno havia se apaixonado por uma humana
atravessou os mares em uma velocidade impressionante. Em pouco tempo,
todas as criaturas tomaram ciência de que o oceano corria grande perigo,

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afinal, se o deus entregasse seu coração a uma mera mortal, era certo de que
também entregaria todo o reino. E as criaturas marinhas sabiam que os
humanos eram os seres mais cruéis e impiedosos que poderiam existir.
O respeito para com Netuno desabou feito uma avalanche, e a
desarmonia ameaçou o equilíbrio natural dos sete mares. Netuno não
encontrou apoio em nenhum dos seus, mas não se importava. Para ele, o
amor justificava todos os meios e os fins. Sua atenção permaneceu na
camponesa e na promessa de um amor profundo prestes a ser vivenciado.
Somente alguns dias mais tarde Netuno a encontrou sentada sobre a
mesma pedra. Daquela vez, sentindo-se mais preparado, ele saiu do mar até
sua longa cauda se transformar, pela primeira vez, em pernas. A magia foi
rápida e certeira, Anfitrite realmente o havia obedecido. Com certa
dificuldade, Netuno andou até se aproximar da camponesa, que, tão logo o
viu, assustou-se ainda mais.
Ela colocou as mãos no rosto afogueado para não ver aquele homem
grande e completamente nu na sua frente.
“O que o senhor faz aqui sem roupas? Não tem compostura? Sou uma
dama de respeito”, a mulher esbravejou, irritada de verdade.
“Peço desculpas, minha rainha”, Netuno se aproximou devagar. “Não
tenho vestes humanas para cobrir o meu corpo, mas possuo muito amor
guardado, um amor que pertence apenas à senhorita”.
A camponesa deixou a inibição de lado e finalmente o encarou.
“Amor? Mas você nem sabe o meu nome”.
Netuno ficou sem fala, afinal, ele realmente não sabia. No entanto,
achava que nomes não tinham nada a ver com o amor. As duas coisas eram
como o mar e o céu.
“Ficaria honrado se me desse a oportunidade de saber o seu nome,
linda jovem”, ele se curvou e implorou.

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“Meu nome é Cássia, filha de Dório e Euriza”.
“O meu é Netuno, sou filho de Saturno e Ops, e estou encantado pela
senhorita. Agora que minha cauda se transformou em pernas, podemos viver
o nosso amor em seus domínios”.
“Meu senhor, creio que está equivocado. Eu não o amo”.
Netuno ficou, talvez, tão assustado quanto Anfitrite ao descobrir sobre
seus planos.
“Como não? Mas eu a amo profundamente!”.
O deus não entendia como um amor tão poderoso como o seu não
pudesse ser correspondido por uma simples e pequena mortal. Ele não
esperava que ela o amasse na mesma intensidade, até por sua curta existência
nessa Terra, mas acreditava, piamente, que a jovem não encontraria amor
igual em nenhum homem, portanto, jamais o rejeitaria.
Enquanto Cássia observava os belos contornos faciais do deus, Netuno
se desesperou. Seu coração ardeu e latejou, como se tivesse contraído uma
doença terminal, o que era impossível. Pela primeira vez, ele se sentiu vivo
de verdade, enquanto uma parte de si morria. Jamais havia sentido dor. Ele
não sabia o que aquilo significava, e sua emoção foi tão forte que uma única
lágrima escapuliu e escorreu pelo seu rosto. O deus do oceano a segurou
entre os dedos, surpreso, se sentindo um pouco fraco e uma gota menos
poderoso.
“Preciso ir. Creio que o senhor deve voltar para o mar, onde é o seu
lugar”, a camponesa apontou, como se desdenhasse de sua casa, que era
muito maior do que todos os continentes juntos.
Porém, aquela frase fez Netuno acreditar que Cássia ainda se
importava. Que só negava o seu amor porque não queria que o deus deixasse
de cuidar do mar, que era a sua única e inexorável responsabilidade. Ele sabia
que fugir do mar, no fim das contas, poderia ser um erro grotesco. A coisa

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certa a fazer era encontrar uma maneira de transformar as pernas da humana
em cauda, e não a sua cauda em pernas. Assim, Cássia poderia se juntar a ele
como uma igual, sem temer um afogamento.
Quando voltou a abrir a mão, decidido sobre o que fazer, percebeu que
sua lágrima havia cristalizado e se transformado em uma pedra azulada,
muito brilhante e bonita. Netuno a enrolou em um coral, formando um
singelo colar, e jurou a si mesmo que entregaria a lágrima, uma partícula de
sua essência, à sua verdadeira dona, àquela que a gerou a partir do sentimento
que os ligava. Ele correu com suas novas pernas até alcançar Cássia, que
ainda se distanciava da praia.
“Minha amada, aceite esta gota como prova de meu amor”, Netuno se
atirou aos pés dela, ajoelhando-se. “É um humilde presente entregue pelo
deus do oceano”.
“Deus do oceano?”, Cássia tocou a pedra, e só a aceitou porque seus
olhos perceberam que o colar poderia ter algum valor em seu mundo humano.
“Eu sou um deus, minha bela. Sou o deus de toda a vastidão”, Netuno
apontou para o mar diante deles. “Prometo que, amanhã pela manhã, tratei
Anfitrite. Ela fará um feitiço em suas pernas e nós nos uniremos ao mar.
Reinaremos juntos e viveremos um grande e eterno amor”.
“Amanhã pela manhã?”, a camponesa questionou, ainda surpresa por
estar diante de uma divindade.
“Sim, ao nascer do sol seremos um só, se a senhorita quiser”, Netuno
a olhou fixamente, ainda ajoelhado diante dela. “A senhorita aceita ser a
minha única e admirável companheira?”
Cássia olhou para o colar em suas mãos e percebeu que tinha ganhado a
sorte grande. Seu pensamento não tinha nada a ver com amor ou qualquer
sentimento, a não ser a ganância. Ela sabia que o deus poderia lhe oferecer
muito mais joias e preciosidades. Compreendia que o mar guardava muitas

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riquezas, e que Netuno sabia bem onde cada uma ficava. Apenas por este
único motivo, ela respondeu, sem titubear:
“Aceito, meu senhor. Amanhã estarei aqui, naquela mesma pedra”.
O coração de Netuno se encheu de felicidade. Ele se ergueu e beijou
Cássia suavemente, sem qualquer habilidade porque jamais havia beijado
antes. A camponesa não lhe negou o momento, fingiu perfeitamente estar
disposta a seguir com ele para outro mundo. Ambos se despediram entre
beijos e promessas que, com sua pureza de coração, Netuno não percebeu
serem parte de uma grande farsa.
Convencer Anfitrite a realizar o feitiço foi tarefa difícil para o deus. A
nereide se mantinha convicta, alertando-o de que estava diante de uma
decepção iminente. Netuno se manteve cego pelo desejo de viver um amor.
Cada pedido seu se tornou ordem, e até ameaças a Anfitrite ele fez, sem
qualquer remorso. O respeito dos outros já não lhe interessava. Ele só tinha
olhos e ouvidos para a camponesa de longos cabelos castanhos: Cássia.
Como em todas as histórias sobre corações partidos, esta teve o seu
início no surgimento de uma profunda e arrebatadora paixão. O sentimento
poderoso que invadiu o corpo e a alma do deus Netuno foi tão intenso quanto
trágico. Infelizmente, nem sempre as grandes histórias de amor possuem um
belo final. É nesse ponto da narrativa que a felicidade do deus do oceano se
transforma em tristeza infinita.
A cruel mulher jamais apareceu ao encontro marcado sobre a pedra.
Netuno esperou por sua amada durante quinhentos e sessenta e oito
dias. Passou cada segundo sentado no local do encontro, esperando
pacientemente pelo retorno de sua amada. Anfitrite tentava convencê-lo todos
os dias a desistir. Dizia que aquela espera era em vão, que Cássia havia
partido com a lágrima e jamais retornaria.
O deus insistiu. Acreditou. A chama de sua esperança jamais se apagou

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durante todo aquele tempo sem se alimentar, sem descansar, sem nada que o
tirasse do tão sonhado desfecho. Quinhentos e sessenta e oito dias foram
necessários para que Netuno compreendesse que Anfitrite estava certa o
tempo inteiro. Que ele havia agido como um lunático. Que o amor que ele
tanto almejara simplesmente não existia.
Não havia amor verdadeiro.
Não havia cumplicidade ou fidelidade.
Não existia outra vida que não fosse a que levava de forma solitária.
Algumas criaturas marinhas juraram que o barulho que o coração de
Netuno fez ao se romper ecoou por todo o oceano, e além. A alma outrora
ingênua do deus foi tomada por uma escuridão horripilante, que o tornou
incapaz de agir com bondade e justiça. Ele se tornou cruel, perverso e
vingativo. A paz dos mares foi completamente embora. A harmonia partiu
para sempre, junto com o coração do deus.
Transformou-se em um deus orgulhoso e egoísta, que se deliciava com
o sofrimento alheio e abdicara de todas as responsabilidades que lhe foram
atribuídas. Netuno, o deus do oceano, estava distante de ser o mais indicado
para tão glorioso ofício, pois seu coração se tornou duro e frio como um
bloco de gelo e ele passara a odiar seu reino como se fosse um reflexo de si
mesmo. A verdade era que Netuno se odiava ardentemente.
Sua infelicidade foi tamanha que Netuno decidiu, por conta própria,
afastar-se de todas as responsabilidades e todas as criaturas que deveria
proteger. Decidiu que nenhuma delas era digna de consideração e compaixão.
Nenhum ser que respirava era capaz de amar, portanto, ele não seria tolo a
ponto de amar sem reciprocidade. Foi então que o ódio se tornou seu melhor
amigo.
Netuno construiu e se isolou em uma imensa ilha, localizada em uma
região esquecida do Oceano Atlântico. Lá, ninguém poderia localizá-lo,

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perturbar a paz que, para ele, pertencia apenas àqueles que não se
importavam com nada e nem ninguém. O deus do oceano decidiu vivenciar a
solidão tal qual ela era. E, por muitos séculos, assistiu a humanidade definhar
em guerras, violência e morte, não a causada pela inevitável mortalidade, mas
aquela crueldade provocada por suas próprias mãos.
A solidão se mostrou a única coisa para a qual valia a pena sua imortal
existência.
Até que, um dia, um ser peculiar resolveu se banhar em seu revolto
oceano.

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CAPÍTULO 1
Íris

Estava cansada de ser tratada como uma convalescente. O acidente


acontecera há um ano e, ainda assim, meu noivo e meus pais continuavam me
protegendo, me adulando e tolhendo a minha liberdade. Eu aceitara minhas
limitações e a nova vida que ganhara, mas eles pareciam irredutíveis. Gil não
parava de falar sobre novos tratamentos dos quais ouvira falar e me
incentivava a buscar uma cura.
Só que eu já estava curada. Meu corpo e, principalmente, minha alma
haviam se regenerado ao longo do tratamento. Eu era feliz por ter
sobrevivido, por retomar minha independência e por voltar à natação. Meu
treinador estava radiante desde que eu decidira dar continuidade a uma
carreira de sucesso, que me completava. E, graças a ela, eu tinha forças mais
do que suficientes para me locomover.
Olhei para o painel na parede, repleto de medalhas de bronze, prata e
ouro. Participei de exata uma olimpíada mundial e, pouco antes do acidente,
eu havia ganhado três medalhas de ouro. Abri um sorriso de orgulho,
recordando-me de ser ovacionada pelo público de minha própria terra, que
compareceu à competição. Foi o maior momento de minha carreira como
nadadora, e que teve uma drástica pausa.
Encarei o céu através da janela e me deparei com um azul límpido, sem
nuvens. O calor de mais de trinta graus tornava aquele fim de inverno
insuportável. Gil havia dito para eu esperá-lo em casa, mas o dia me
convidava à exploração. Por que eu deveria ficar trancada entre quatro
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paredes se eu tinha uma cadeira de rodas e um carro adaptado? Peguei as
chaves sobre o balcão e rumei para a garagem.
Não era ingratidão, nem rebeldia. Eu entendia a preocupação de meus
pais e de meu noivo, só tentava lhes mostrar que estava tudo bem. Minha fase
depressiva e de negação havia passado e eu aprendi a olhar para minha nova
condição com otimismo. Eu estava viva, afinal, e queria muito aproveitar
cada segundo de minha existência, sem desistir de meus sonhos.
Gil fora um grande companheiro quando segurou a minha mão e, com
lágrimas nos olhos, me dissera, ao me visitar após a cirurgia de reparação:
— Não importa o que aconteça, Íris, eu amo você e ficarei ao seu lado.
E ele permaneceu, apesar de seu olhar de pena me incomodar diversas
vezes. Gil me acompanhou nas consultas e na fisioterapia, insistiu e discutiu
com médicos e especialistas, lutou pela minha recuperação como se o meu
corpo quebrado na verdade fosse dele. Foi paciente ao extremo quando eu me
isolei por um tempo, evitando contato físico, e sugeriu que adiássemos o
casamento até que eu estivesse recuperada.
No início, aceitei tudo sem questionar, nem me envolver. Era como se
eles estivessem falando de outra pessoa e não de mim.
— Sinto muito, senhor Gilberto, mas a lesão na coluna da senhorita Íris
é irreversível.
Irreversível, salientara cada médico que, por insistência de Gil, eu
visitara. Foram seis meses torturantes, sendo perfurada, examinada e
carregada de um lado para o outro, como se a falta de movimentos das
minhas pernas tivesse me tirado também o livre arbítrio. Foi com a ajuda de
um terapeuta ocupacional que entendi que eu era muito jovem para desistir,
que ainda tinha uma vida inteira para viver e que precisava tomar as rédeas da
situação.
— Gil, eu não quero mais consultar outro especialista.

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Meu noivo me olhara estupefato, com aqueles olhos tristonhos que não
deixavam mais seu rosto.
— Você vai desistir, Íris? Bem você, a guerreira por quem eu me
apaixonei?
Sua frase tocou meu coração, mas ninguém pode viver de ilusão para
sempre.
— Há uma grande diferença entre desistir e aceitar. Eu estou aceitando
que essa cadeira de rodas será minha extensão a partir de hoje, Gil. Estou
aceitando que a vida não para por causa de minhas limitações. Estou
aceitando que minha condição é irreversível e que eu tenho que aprender a
viver de um jeito novo. — Rolara até ele, inclinando-me para alcançar sua
mão. — Não estou desistindo, amor. Estou encarando a realidade como ela é
e mudando conforme ela exige.
Gil se inclinara ao meu encontro, emocionado, e me beijara docemente.
Há muito que nossa relação não avançava do carinho para a paixão, mas
estava tudo bem para mim, e para ele também parecia estar, já que nunca
reclamara de nada.
— Eu te amo, Íris, muito, mas me perdoa se eu não conseguir deixar a
esperança morrer, por favor?
Toquei seu rosto, sorrindo e chorando.
— É o que mais amo em você, Gil, sua perseverança. Nunca a perca.
Mas você sabe que cabe somente a mim decidir. Eu prefiro viver sobre essa
cadeira de rodas do que deixar de viver, perseguindo uma ilusão. — Bati as
mãos sobre os braços da cadeira. — Essa é minha realidade agora e quero
muito descobrir o que mais posso fazer além de rodar por aí. — Minha
tentativa de humor deu certo e Gil sorriu. — Posso contar com você nessa
nova fase?
— Claro, menina dos meus olhos. Eu sempre estarei aqui. Sempre.

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Foi a primeira vez, em seis meses, que Gil me beijou com tanta
intensidade que pensei que meu corpo corresponderia ao gesto. Ledo engano.
Da cintura para baixo, tudo continuava quieto e distante. Porém, em meu
coração, havia uma chama viva, queimando e exigindo mais combustível.
Depois de dias inquieta, descobri que precisava voltar a nadar. Aquilo não foi
bem recebido por ninguém.
— Você ficou louca? — meu pai praticamente gritou quando contei
sobre meus planos, na sala da casa dos meus pais, que fora adaptada para me
receber.
— Se o senhor considera loucura eu querer retomar minha vida de onde
parou, o problema não está comigo, pai.
— Íris! — repreendera minha mãe.
— Eu prometi que estaria ao seu lado em tudo, mas preciso concordar
com seu pai — Gil tentara suavizar a discussão. — Morar sozinha e voltar a
treinar me parece precipitado nesse momento. Por que você não espera nosso
casamento?
O quê? Minha expressão não negara meu espanto, porém, a exclamação
ficou rodando na minha mente. Eu tinha vinte e quatro anos, era jovem
demais até para casar, no entanto, Gil era meu namorado há tanto tempo que
as coisas acabaram evoluindo naturalmente. Eu não estava desistindo do
casamento, só que não ia esperar a cerimônia, como se precisasse de um
homem para ter minha vida de volta.
Foi desgastante reconquistar minha independência, mas, no fim, eu
consegui.
Parei minha cadeia de rodas, meu veículo interino, ao lado do carro e
acionei com um botão do controle o destravamento da porta. Em seguida, a
rampa desceu até encostar ao chão. Fiz as rodas deslizarem e se encaixarem
nas travas de segurança e, com outro comando, fui puxada para dentro do

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automóvel. Coloquei o cinto e liguei o motor, usando as duas mãos para
pilotar a direção automática.
Circulei pelas ruas apinhadas da cidade, já bastante acostumada com a
nova maneira de dirigir. Sorri, feliz só por estar fazendo aquilo sozinha, me
sentindo uma menina de novo, redescobrindo meu potencial. Foram assim os
últimos seis meses. Descobri a alegria da solidão de minha casa, de cozinhar
minha própria refeição, de disparar em minha cadeira de rodas e girar como
uma criança de novo. E também descobri que, quando estava na água, eu me
sentia completa.
Com água me envolvendo por todos os lados, eu adquiria consciência
do meu corpo inteiro outra vez, da cabeça às pontas dos pés. Era como se
houvesse uma energia correndo entre nós, na qual me viciara. Estaria
mentindo se dissesse que não sentia saudades de minhas pernas. Porém,
quando eu nadava, de alguma forma sobrenatural, elas estavam lá, anulando
sua ausência dolorosa.
Eu sabia que não podia mexê-las novamente, mas, senti-las como parte
de mim, como se não as tivesse perdido, era gratificante, muito mais do que o
amor e a preocupação dos meus pais e noivo. Era um momento só meu, que
eu não ousara compartilhar com ninguém. Quando eu dava braçadas,
mergulhava e enfrentava cem, duzentos, quatrocentos metros rasos, eu era
muito feliz.
A vida é feita de momentos e eu me apegara àqueles que me
transbordavam, apesar de tudo.
Odiava que tivessem pena de mim por minha deficiência. Não éramos
todos deficientes? A diferença era que, em alguns, as limitações estavam
nítidas para qualquer um ver, em outros, escondidas. Mas ninguém era
perfeito, cada um procurava calafetar algum tipo de dor ou vazio, desde o
nascimento. E eu havia aceitado que a vida também era feita de alegrias e

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tristezas, e sempre seria assim. A minha força estava na maneira em que eu
enfrentava os desafios que me eram apresentados. E eu descobri que era
muito forte.
A maior prova de que a vida é dúbia está na concepção. Do amor e do
prazer somos gerados, porém, nascemos em meio à dor e ao pranto.
Por quê? Qualquer um questionaria. O maior erro do ser humano é se
apegar a essa pergunta. Enquanto eu interroguei, fiquei pregada a um leito,
em negação, revolta e desespero. Porém, a partir do momento em que aceitei
que a vida estava me testando, me levando a superar meus limites e a me
tornar uma pessoa melhor, tive a revelação da beleza oculta nas entranhas do
sofrimento. Sempre há. Só precisamos abrir os olhos e enxergar o que não
conseguimos ver através da cortina de ilusão.
Gil e meus pais não entendiam como eu podia ter encontrado alegria
em mim mesma e na vida limitada que me fora concedida.
Mas lá estava eu, estacionando meu veículo na praia, aspirando a
maresia pelo vidro aberto. O oceano me chamara sem que eu nem percebesse,
mas algo dentro de mim me guiara até lá. Eu o perdoara há muito tempo pelo
acidente e sentia muita saudade. O mar e eu sempre fomos amigos. Nossa
relação ficou suspensa por um tempo, mas eu estava disposta a tentar
novamente. Percebi assim que desci do carro e guiei minha cadeira pelo
deque de madeira.
Parei na beirada e acionei os freios, por medida de segurança. O vento
soprava, balançando meus cabelos, e eu não conseguia deixar de sorrir. O dia
estava tão lindo que me convidava para um mergulho. No entanto, eu tive
receio, e o medo me fez suspirar e apertar os olhos. A imagem que inundou
minha mente como uma onda balançou completamente meu interior.
Além de nadadora, eu era uma excelente surfista, e após as Olimpíadas
eu me dei um descanso das piscinas e busquei distração no mar. Meu

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treinador concordara com a folga, feliz demais com mais um recorde mundial
batido nos 100 metros medley e com as três medalhas de ouro conquistadas
na competição. O oceano estava bravio, porém, eu não me importei, pois as
maiores e melhores ondas também se formavam.
A praia estava praticamente deserta, a não ser pelos outros surfistas e
um salva-vidas de plantão. Boiei para depois da rebentação e me posicionei a
fim de pegar uma onda gigante e furiosa. Foi divertido! Surfei, caí, me
recuperei e continuei furando uma atrás da outra, até que uma me engoliu e
me jogou para o fundo do mar. Rodei e rodei, conforme a onda quebrava,
sem pausa.
Eu só me desesperei quando o oxigênio começou a faltar e toda a força
que eu fazia para subir à superfície não foi suficiente. Continuei girando,
perdendo a noção de direção, até que a linha que me prendia à prancha
arrebentou. O impacto da próxima onda me lançou contra rochas, que eu nem
avistei tamanha revolta o mar se encontrava, e bati minhas costas.
Fui salva por outros surfistas que perceberam minha prancha nadando
sozinha. Não cheguei a me afogar, mas minhas costas sangravam e minhas
pernas pararam de mexer no mesmo instante.
— Você teve sorte, moça — dissera o salva-vidas.
E eu concordei. Era para eu ter morrido naquela praia, no entanto,
Alguém não me deixara partir, me dando uma segunda chance e, mesmo que
eu tivesse que suportar a consequência das minhas escolhas, era melhor do
que nada.
Foi na emergência que eu descobri a gravidade da minha lesão.
— Duas vértebras da lombar se quebraram e as pernas não respondem a
estímulos — dissera o plantonista.
— Eu nunca mais vou andar? — minha dor fora tão intensa que berrei e
chorei.

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— Não posso afirmar isso, Íris. Vamos chamar o especialista para dar
seu parecer.
O médico veio e, após uma cirurgia, foi constatado que eu realmente
não voltaria a andar.
Abri os olhos e me deparei com o oceano calmo e plácido, bem
diferente da minha memória. Ainda sorria, mesmo que uma lágrima tivesse
escorrido com a lembrança dolorosa. Eu havia perdido algo precioso, era
natural chorar. No entanto, a chance de competir nas Paraolimpíadas me dera
esperança de um futuro promissor, no qual eu ainda podia ser o que eu
sempre quis.
Também tinha Gil, que não me abandonara no momento em que eu
mais precisei dele, e com quem, certamente, formaria uma família um dia.
Aquele sonho compartilhado também me aquecia o coração. Não era porque
eu estava focada na minha recuperação, tanto da lesão quanto como nadadora
profissional, que eu havia esquecido ou abandonado outros sonhos.
Eu era capaz e aquela certeza se infiltrara no meu ser como
eletricidade, formigando toda a minha pele.
Senti até mesmo minhas pernas, como se a água estivesse ao redor
delas. Espantada e com disposição renovada, decidi que não adiaria mais meu
retorno ao mar. Aquele era o dia de nossa reconciliação. Voltei para meu
carro e para minha casa, onde eu me vesti com a roupa de mergulho. Era
chato e um pouco cansativo passá-la por minhas pernas. O maiô era bem
mais fácil, e estava por baixo. Vesti também a touca e levei a viseira comigo.
Um mergulho, em um dia calmo, não faria mal.
Retornei ao mesmo deque, espiando a água poucos metros abaixo.
Dava para me jogar com segurança. Cobri meus olhos com a viseira,
ignorando os olhares curiosos de quem passava e via uma cadeirante pronta
para mergulhar, sozinha. Eu confiava em mim e nos meus braços fortes e

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treinados. Eu subia e descia da cadeira com facilidade e, de certo, não teria
problemas ali.
Respirei fundo, soltei o ar com força, movendo os ombros para cima e
para baixo, e saltei, usando os braços como impulso. Caí na água com
barulho, afundando alguns metros. Olhei ao redor e a água estava tão
transparente que podia ver bem. Eu achava incrível como dentro do nosso
mundo havia um universo inteiro, inexplorado pela maioria de nós, bem ali,
ao alcance de um mergulho.
Sob a água, eu me sentia em outra dimensão, onde tudo era possível,
até mesmo uma deficiente nadar.
Dei braçadas vigorosas a fim de me mover e funcionou. Continuei
mergulhando, testando minha força e limites, enquanto observava a
diversidade aquática. Meu corpo parecia leve e boiava com facilidade.
Aquela energia percorreu meus nervos, dando-me sentido de completude. Eu
estava inteira de novo, como se o mar e eu fôssemos um só. Fui à superfície
somente para respirar e mergulhei um pouco mais fundo.
Ali, sob o efeito incrível e inexplicável da água me conduzindo como
uma sereia, as palavras de derrota e medo de meus pais não faziam nenhum
sentido.
— Sua vida nunca mais será a mesma, filha — meu pai, de longe, era o
mais pessimista.
— Não faça nada para se colocar em perigo de novo, Íris — minha mãe
sempre estava preocupada, mesmo antes do acidente.
— Espere por mim antes de fazer qualquer coisa, menina dos meus
olhos — Gil pedia com gentileza e doçura.
Porém, a vida não esperava para ser vivida e eu não estava disposta a
deixá-la passar sem aproveitar as oportunidades que se apresentavam.
Eu os amava e queria por perto, mas me sentia sufocada. Alguém pode

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ser sufocada de amor? Descobri que sim. E, para mim, não havia nada mais
libertador do que estar ali, surda para o mundo humano, sensível ao universo
desconhecido ao meu redor, sem nada nem ninguém me dizendo o que devia
ou não fazer. Só fluindo e coexistindo com o líquido da vida.
Foi na segunda respirada à superfície que me dei conta de que havia me
afastado muito do deque. O céu também escurecia, um vento forte e gelado
soprava e o mar ondulava ao sabor da tempestade. De onde ela veio? Assim
que o pensamento se formou em meu cérebro, um relâmpago rasgou o céu e
um trovão se fez ouvir como um mau agouro.
Tentei não entrar em pânico, mas foi inevitável ser tomada pela
sensação desesperadora do acidente. Perdi a estabilidade e afundei,
consumindo meu oxigênio depressa devido ao medo. Não consegui me
lembrar das técnicas, somente me debati, como se estivesse presa em uma
onda, enquanto afundava e afundava. Parecia que meu corpo pesava uma
tonelada e meus braços não eram mais capazes de sustê-lo. Minha touca
escapou e meus cabelos se emaranharam nos meus braços, dificultando meus
movimentos.
No segundo seguinte, a tempestade despencou, agitando a água e me
jogando para cima e para baixo ao seu bel prazer. Estava tão escuro que eu
não sabia mais para que lado era o fundo e a superfície, de modo que se
tornou inútil e perigoso tentar buscar um caminho. Fechei os olhos e tentei
me acalmar, mas o oxigênio estava acabando e minha cabeça doía, assim
como minhas pernas ausentes. Eu me deixei estar, sendo levada pelo mar
para onde ele quisesse, sem saber o que fazer para me salvar.
Então, eu rezei, com toda a sinceridade de meu coração, para que
aquele Alguém que me salvara da primeira vez, se compadecesse de mim
novamente.
Quando abri os olhos de novo, meu coração havia se aquietado na

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esperança de que eu ainda estava viva e, enquanto houvesse vida em mim,
tudo era possível. Tentei me orientar novamente, lutando pela minha
sobrevivência com o pouco de oxigênio que me restava, antes que a
inconsciência me levasse. Porém, o que vi me paralisou. Uma luz vinha em
minha direção e se aproximava como se fosse um submarino.
Mas eu estava enganada. Iluminado por uma tocha — não sabia como
era possível, entretanto, não era fogo o que havia na ponta da haste na mão da
criatura —, um homem belo e enfurecido nadava até onde eu estava. Recuei
automaticamente, amedrontada. Minha mente deveria estar me pregando uma
peça, pois ele não tinha pernas, mas uma cauda dourada e reluzente, tanto
quanto o mastro que segurava.
Era uma criatura impressionante e me encarou de perto, fazendo-me
parecer minúscula. Seus olhos, no entanto, não estavam nos meus, mas no
colar com uma pedra em formato de gota que eu carregava no pescoço desde
meu nascimento. Aquele amuleto fora de minha mãe, que o recebera de sua
avó e assim por diante, passando de geração a geração. A pedra era
desconhecida e ninguém mensurava seu valor.
Para mim, ele era o símbolo da minha ligação ancestral com o oceano.
Com uma careta horrenda, o homem-peixe ergueu a “tocha” e a lançou
na minha direção, fazendo-me abrir a boca de espanto, em um grito de
socorro. Aquilo foi meu erro. Engoli água e a senti invadir minha traqueia e
pulmões com uma ardência dolorosa. Levei uma mão à garganta e estendi a
outra na direção da criatura, em um pedido mudo de ajuda.
No instante em que sua mão poderosamente grande agarrou meu pulso,
eu apaguei.

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CAPÍTULO 2
Netuno

Era de minha vontade passar longas horas sentado na mais alta rocha
daquela burlesca ilha particular, o reduto que criei para me manter longe de
toda a mesquinharia do mundo. Ao contrário do que Anfitrite pensava, eu não
mais esperava por nada e nem ninguém, nem mesmo por uma mudança
interna da qual ela tanto falava e eu considerava enfadonha. Eu apenas
desejava que minha vida imortal atravessasse aquela era em meio ao
marasmo e à solidão, as duas únicas coisas que me mantinham são por
justamente saber que não me abandonariam.
Se alguém tivesse o disparate de me perguntar o que eu realmente
queria, diria sem nenhum remorso que — subtraindo as possibilidades de
uma morte ligeira, já que meu corpo simplesmente não padecia, por mais que
eu tivesse tentado de diversas maneiras — preferia permanecer exatamente
onde estava: de costas para o odioso mar e suas ondas tediosas, observando
as pernas humanas que me foram presenteadas por um feitiço e sentindo o
ardor dos raios solares em minha pele endeusada.
Em contrapartida, eu não almejava despertar a fúria de meu pai
Saturno, soberano que me concedeu a maldição de governar os mares e suas
maçantes criaturas. Em certos momentos de minha existência, eu era
obrigado a exercer aquele papel que, em minha opinião, não mais me
pertencia, pois há muito eu havia perdido todo o amor e consideração pelo
oceano.

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Até os meus poderes não me causavam nenhum regozijo, exceto
quando eu o utilizava para provocar o caos e a destruição. Depois, vinha a
culpa através dos sermões infindáveis de Anfitrite. Não que eu a sentisse
verdadeiramente; para ser sincero, adorava ver humanos e animais sofrendo
dentro de suas incapacidades e tolices. Eram seres dignos da mais pura
desconsideração. Mas Anfitrite matraqueava em meus ouvidos
incessantemente, fazendo-me arrependido pelo simples fato de ter minha
solidão rompida pelas suas palavras inconvenientes. Eu deveria usar o poder
de meu tridente para lhe fazer calar a boca pelo resto de seus dias.
Era o feitio que eu considerava realizar naquele momento, enquanto
tentava ignorar sua presença abaixo da grande rocha, clamando por mim com
sua voz costumeiramente melodiosa. Eu não sabia por qual motivo Anfitrite
não enfeitiçava sua cauda também. Ela parecia extremamente fraca aos meus
olhos por não deixar as águas nunca.
— Sei que está aí em cima há semanas, meu deus Netuno! — ela
continuava insistindo. Toquei no cabo dourado de meu tridente, pensando nas
consequências de acabar com Anfitrite em um segundo. Aquela criatura há
muito perdera seu objetivo para existir. — Chegou o momento de lidar com
seus deveres. Meu Senhor, o oceano precisa de tua vistoria. Faz cem anos
desde a última! Como o senhor...
— Cale-se! — gritei em plena fúria, e uma nuvem carregada se apossou
da ilha em um milésimo de segundo. A tempestade tomou início em seguida.
Para lhe mostrar que meu ódio não era para ser considerado banal, ergui meu
tridente para o céu e fiz um raio poderoso cair a um centímetro dela.
Eu me ergui a tempo de vê-la gritar, temerosa diante de um poder longe
de suas possibilidades. Equilibrei a ponta do tridente no chão e a encarei
ferozmente.
— Sei o que sou obrigado a fazer! — berrei enquanto a tempestade

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bagunçava e ensopava meus longos cabelos. — Não preciso que me digas o
que é de meu conhecimento.
— Senhor... — Anfitrite se equilibrava em uma das rochas para não ser
levada pela furiosa correnteza que tornei possível com um simples
movimento com meu indicador. Os longos cabelos negros se enroscavam por
toda parte. — Meu senhor, perdoe-me pela intromissão. Achei que preferia
ser lembrado de seus afazeres...
Olhando tão bela criatura em minha frente, um pingo minúsculo de
consideração — porque ela havia sido um presente dos deuses para mim,
afinal — permitiu que eu afastasse a tempestade, levando-a para o continente
na esperança de que, com a ajuda dela, o caos fosse instalado mais uma vez.
— Lembro-me perfeitamente de meus afazeres — respondi um pouco
menos irritado. — Partirei neste momento porque, quanto mais cedo fizer,
mais cedo estarei livre de tão odioso ofício.
Era certo de que as criaturas do mar, a quem eu governava querendo ou
não, me odiavam veementemente. A rapidez em minha vistoria era um desejo
não somente meu. Também não queria me mostrar como uma criatura
derrotada e impotente, portanto, a vaidade que tinha me faltado durante os
últimos cem anos retornou. Agitei meu tridente e seu poder, coagido por
minha vontade, cortou meus cabelos e aparou a longa barba que eu havia
cultivado sem me importar.
Olhei minha própria figura através da superfície límpida das águas que
inundavam ao redor da ilha; o ser aparentemente velho e sem coragem deu
lugar ao deus jovem que eu sempre fui e sempre seria, independente das
forças do tempo ou das adversidades. Eu me odiava por parecer sempre tão
belo enquanto dentro de mim havia uma criatura tão terrível quanto as
demais, por isso fazia o que estava em meu alcance para manter minha
aparência repugnante.

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Fazia décadas que eu não me banhava, portanto havia um cheiro fétido
sempre pairando meu corpo — para combinar com o odor que o mundo
inteiro exalava em minhas narinas —, além de manchas antigas de lama e
areia cobrindo minha pele. Satisfeito com a remoção instantânea de pelos,
corri depressa até onde a rocha terminava e pulei. Mergulhei profundamente
naquelas águas, empunhando meu tridente, e comecei a nadar sem esperar a
mágica ser feita.
A sensação de estar no oceano mais uma vez não foi agradável, muito
pelo contrário. A água não me trazia nada de bom, apenas sofrimento, dor e
uma vontade absurda de não existir. Como sempre acontecia quando eu
invadia o oceano, uma vibração diferente ecoou por todos os mares, e então
as criaturas já sabiam que o seu soberano estava presente.
As manchas na minha pele foram removidas imediatamente. As pernas
se transformaram em uma cauda longa e dourada, e então prossegui na
velocidade de um deus. Anfitrite nadou por algumas milhas ao meu lado,
depois se distanciou ao perceber que eu não abordaria nenhum assunto.
Conjurei o poder de meu tridente, que se acendeu ao seu máximo e iniciou o
processo de limpeza aquática, que garantia harmonização e energia renovada.
Era incrível como aquele poder alcançava a todos, menos a mim. Há eras
meu espírito não entrava em harmonia.
— Olha só quem voltou para o mar! — ouvi o esguicho de uma criatura
aparentemente alegre na superfície. Eu já sabia quem era, mas resolvi ignorá-
lo. — O que foi, Netuno? Um peixe comeu sua língua?
Aquela criaturinha era muito ousada e insolente. Emergi, já em alto-
mar, e a localizei fazendo suas tão conhecidas acrobacias. Não havia nem
sinal da minha ilha. Em um curto mergulho, meu poder havia alcançado um
raio gigantesco.
— Jamais conheci alguém tão destemido. Estou impressionado, Nestor

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— falei em tom de sarcasmo. Ele se agitou e veio nadando em minha direção.
— Espero que não tenha perdido os miolos e saiba perfeitamente que posso
permitir que um raio atinja o seu focinho.
Ele esguichou mais algumas vezes, gargalhando. Eu odiava aquele
bicho. De todas as criaturas do mar, os golfinhos eram os que eu mais
detestava. Sempre serelepes, risonhos e contentes. Não podia haver bicho
mais grotesco.
— Senti saudades suas — ele parou bem na minha frente, mostrando-
me aquele semblante alegre que me fazia ter raiva. — Nossa! Desde a última
vez que me expulsou da ilha, não o via tão bem.
Fiz uma careta para demonstrar o meu profundo desgosto.
— Expulsei-te pela quinquagésima vez na semana passada, Nestor. Não
sei como não retornou na manhã seguinte, como sempre faz — revirei os
olhos e continuei o meu mergulho.
Sabia que aquele golfinho medonho não desgrudaria de mim com
facilidade. Ainda mantinha minhas dúvidas sobre o motivo de eu não tê-lo
transformado em cozido durante os anos em que resolveu se instalar nos
arredores de minha ilha. Era um bicho falante, piadista e o único ser que não
se referia a mim como “senhor” ou “meu deus”. Parecia que éramos iguais, e
aquilo só podia ser mais uma de suas péssimas piadas.
— Pensei que esse seu garfo velho não funcionava mais! — ele
comentou em meio às gargalhadas. A forma que nadava, dando voltas em
meu corpo, era irritante. Continuei meu percurso, aumentando a velocidade
na direção do continente mais próximo.
— Isso que chamas de “garfo velho”, um dia, significará o teu fim,
bicho asqueroso!
Nestor continuou rindo.
— Eu sei que o senhor todo-poderoso me ama. Sou a alegria de seus

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tristes dias! Não é verdade? Aposto como sentiu minha falta na ilha. —
Aumentei a velocidade para que ele ficasse para trás, mas Nestor tinha uma
energia difícil de ser compreendida. — Retornarei assim que a Madeline
desistir de me ignorar e procriar comigo.
Eu poderia rir de sua mediocridade se aquele assunto não me deixasse
tão furioso.
— Não existe ser mais peçonhento do que uma fêmea, seja de qual
espécie for. — Meu tridente ainda trabalhava, incansável, e ajudava a
iluminar o nosso caminho. Cardumes, baleias, tubarões e demais seres
passavam por nós de uma forma não muito amigável. Eu não me importava
em ser recebido com tanta desconsideração. — Se eu estivesse em sua pele,
não perderia um segundo de meu tempo cortejando essa tal de Madeline.
Deve ser uma criaturinha arisca, trazida ao mundo pelos deuses cruéis apenas
para brincar com teus sentimentos.
— Ah, Netuno, que nada! Só porque não deu certo contigo, não
significa que vai dar errado comigo! — Nestor me atiçou até o limite de
minha paciência.
Sua insolência foi tamanha que não resisti: girei o indicador e o fiz ser
levado por uma forte e abrupta correnteza. Ainda consegui ouvir suas
gargalhadas ao fundo, até me distanciar o suficiente para me manter salvo de
sua irritante presença.
Percebi as águas se modificando, tornando-se mais escuras e agitadas
conforme eu me aproximava do continente. Emergi somente para constatar
que aquela era a mesma tempestade que eu tinha conjurado mais cedo, e que
acabara juntando mais nuvens e crescendo consideravelmente. O estrago seria
ainda maior do que o planejado.
Abri um sorriso largo ao perceber que ela logo arrancaria a paz dos
humanos. De todas as criaturas que habitavam aquele planeta, certamente os

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homens estavam em segundo lugar das que eu mais detestava. Em primeiro, e
não podia ser diferente, estavam as mulheres.
Tornei a mergulhar profundamente, mantendo meu tridente à frente
para que nenhuma reentrância passasse despercebida pelos meus olhos de
deus. Foi então que eu a vi. Uma criatura se debatendo como se tentasse
dançar dentro do mar. As pernas humanas não se moviam, no entanto.
Apenas braços e tronco lutavam grotescamente para levá-la à superfície, sem
qualquer sucesso.
Percebi que era uma mulher e minha alegria diante de tal cena se
intensificou consideravelmente. Uma humana sofrendo era a coisa mais
hilariante que eu poderia presenciar durante aquela enfadonha vistoria. Para
ajudá-la em seu iminente afogamento, girei o indicador e as águas se
agitaram mais ao seu redor, fazendo-a girar e girar conforme o movimento de
meu dedo. Cada giro seu me arrancou uma risada.
Contudo, minha alegria durou somente um átimo de minuto. Em um de
seus giros, a humana abriu os braços e pude ver nitidamente um ponto de luz
em seu pescoço. Reconheci a luminosidade no mesmo instante em que a vi.
Aproximei-me como se a luz fosse um ímã. Cheguei tão perto da mulher que
foi possível conferir cada contorno de seu rosto, e o que vi me deixou ainda
mais fora de mim.
— Cássia?! — berrei, mesclando pavor e fúria. A humana ainda se
debatia, mas parecia encantada com minha presença tão próxima.
Eu me odiei profundamente por ser vítima de seu vislumbre.
Não fazia sentido aquela mulher ser a Cássia, mas lá estava ela, com
seus cabelos longos e escuros soltos, a pele morena e o rosto belo que jamais
havia saído de meus pensamentos, ainda carregando a minha lágrima em seu
pescoço, como se todo meu sofrimento não passasse de um miserável enfeite.
Como se minha eterna espera fosse algo com que obtivesse tremendo

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orgulho.
Demorou um instante para que eu, enfim, descobrisse que qualquer
amor que invadira meu peito no passado havia se transformado no mais puro
ódio. O motivo de minha espera por aquela mulher significava apenas que eu
a queria sofrendo entre os meus dedos até que eu lhe arrancasse a vida
pessoalmente. Nada de bom com relação à Cássia sobrava dentro de mim.
Tudo era amargura.
O meu ódio foi tanto que agitei o tridente em sua direção. Estava
pronto para acabar com sua raça usando minhas próprias mãos, sem esperar
pelo seu afogamento. Aquela humana merecia morrer sentindo toda a força
do meu poder, para que assim compreendesse que levar minha lágrima em
seu pescoço havia sido o seu pior erro.
Percebendo a minha fúria, a mulher abriu a boca e milhões de bolhas
escaparam entre os lábios. Seus órgãos humanos não resistiriam muito tempo.
Eu precisava matá-la antes que as águas fizessem o serviço, do contrário me
arrependeria amargamente por não ser o principal culpado pelo fim de sua
patética existência. Aquela era uma culpa que eu carregaria com um sorriso
no rosto.
Contudo, não tive muito tempo; a mulher desesperada me olhou
fixamente e me ofereceu uma mão como se eu — logo eu! — pudesse lhe
oferecer ajuda. Havia uma força incalculável em seu olhar angustiado, deu
para sentir que lutaria pela vida enquanto houvesse um fio de esperança.
Não compreendi a mim mesmo ao segurar o seu pulso com força.
Talvez fosse a similaridade com a Cássia, a garra em seu olhar, ou mesmo a
vontade de deixá-la viver só para que eu pudesse matá-la aos poucos, como
havia feito comigo.
A humana finalmente desmaiou, perdendo a consciência, mas ela não
se livraria de mim tão fácil. Não podia ser tão simples me humilhar, me

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desrespeitar, brincar comigo e ferir meu coração para, no fim, morrer porque
tinha água demais em seus pulmões. De maneira alguma eu permitiria
tamanho sacrilégio. O mar já havia me roubado toda a felicidade, ele não
podia me arrancar a alegria de acabar com a vida da única culpada pela minha
dor.
Antes que fosse tarde, envolvi o seu corpo em uma enorme bolha de ar,
onde depositei oxigênio suficiente para que não morresse de imediato. O
plano que se formava em meus pensamentos era tão cruel quanto delicioso.
Pude me regozijar com o profundo sofrimento que eu ainda podia causar
àquela humana. Queria vê-la definhar, como definhei. Amaria vê-la gemendo
de dor, como gemi. Seus gritos de agonia seriam como o cântico de sereias
para meus ouvidos.
E então, ela imploraria pela morte e eu, como um deus extremamente
misericordioso, acataria seu último pedido, mas não antes de tomar de volta a
única lágrima que soltei por amor.

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CAPÍTULO 3
Íris

Como de um sono profundo, despertei, abrindo meus olhos devagar.


Pisquei, desorientada com a intensa claridade. Fui tomando consciência do
meu corpo lentamente, até perceber dores que se espalhavam pelas
terminações nervosas como uma onda de choque. Minha garganta ardeu e
meu pulmão estava congestionado. Tossi impulsivamente, expelindo água
salgada, que queimou minha traqueia.
Quase me afoguei, pensei ao me recordar da desastrosa ideia de me
aventurar no mar, sozinha. Gil e meu treinador, com certeza, ficariam
irritados e preocupados quando soubessem o que aconteceu. Meus pais,
então, tentariam me interditar! Sem saber quanto tempo havia se passado, e
com pressa de retornar para casa antes que sentissem minha falta, olhei ao
redor, tentando me situar. Tirei a viseira do rosto para ver melhor.
Era uma praia como tantas outras, porém, não se parecia com nenhuma
que eu conhecia. Meu coração disparou de apreensão. Apertei os olhos e fiz
um grande esforço para entender. Aquela criatura, que quase me ferira, havia
me salvado e levado para um lugar estranho? Inspirei profundamente e me
ergui sobre os cotovelos, apavorada com a ideia de estar vulnerável e à mercê
de um desconhecido homem-peixe.
Bufei, incrédula. Eu só podia ter sonhado com aquilo. Devia ser a falta
de oxigenação no meu cérebro que criou aquela imagem bizarra.
Ainda assim, eu estava viva e, pelo visto, intacta. Olhei para meu
corpo, protegido pela roupa de neoprene, e senti uma fisgada na coxa.
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Espantada, arregalei os olhos e fixei minha atenção nos meus pés. Tentei
mexê-los e tomei um susto quando eles obedeceram ao meu comando. Devia
estar em um sonho ainda, não era possível! Eu os movi de novo, só para me
certificar de que não estava louca, e fui atendida.
Duas emoções gigantescas duelaram dentro de mim. Eu havia sido
salva e curada?
Tateei as pernas, sem acreditar no milagre, grata e chorosa, mesmo me
sentindo pouco merecedora ao colocar minha vida em risco duas vezes. Senti
cada toque sobre a carne frágil e debilitada, deixando as lágrimas banharem
meu rosto enfurecidamente. Nem me dei ao trabalho de enxugá-las. Só queria
ter certeza de que aquilo era real, um presente que não esperava receber.
Belisquei as duas coxas e ri em meio ao choro ao sentir dor. A dor da
presença e não da ausência. Inacreditável!
Gargalhei e pranteei, miseravelmente grata a Quem ouviu minha prece.
Ergui o rosto para o céu e, mesmo com a vista turva, pude notar que
tinha um tom arroxeado incrível, que parecia ondular como um ser vivo.
Nada além da pontada dos beliscões me garantia que tudo aquilo era real,
mas eu não pude duvidar. Se estivesse sonhando, já teria acordado. Não pude
precisar as horas, no entanto, naquele instante de extrema felicidade, eu só
precisava agradecer pela graça duplamente concedida.
— Obrigada! — sussurrei para aquele firmamento estranho e lindo. —
Muito obrigada, seja lá quem Você é.
Limpei a face e respirei fundo. Sabia que não seria fácil, mas eu
precisava tentar. Arrastei os pés pela areia fininha e branca, dobrando os
joelhos, e usei os braços para me ajudar a levantar. As pernas vacilaram e
doeram terrivelmente, e acabei deixando-me cair de bunda sobre a praia de
novo. Meus músculos reclamaram demais pelo mínimo esforço. Há muito
que eles não sustentavam meu peso.

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Não podia desistir. Mudei de posição, apoiando-me sobre os joelhos, e
fiz força novamente. Soltei um grito quando meu pé se plantou na areia e
uma perna vacilante foi dobrada. Eu não tinha nada para me apoiar além de
minha força de vontade, portanto, esforcei-me ao máximo para erguer a outra
perna. Urrei de dor, mas o movimento foi ínfimo e trêmulo, e, perdendo as
forças, caí sobre a praia de novo.
Ofegante, olhei ao redor à procura de ajuda. De um lado havia o mar, e
parecia tão infinito que não avistei nada além de água. Do outro, uma floresta
de mata nativa e bem fechada. Entre um e outro, areia e algumas rochas.
— Olá! — berrei, em busca de auxílio. — Tem alguém aqui?
Nenhuma resposta surgiu ao meu pedido de socorro. Percebendo-me
sozinha e sem medo de perder a dignidade, arrastei-me até a pedra mais
próxima, tentando usar as pernas conforme eu conseguia. Meus braços
queimavam pelo esforço extremo. A areia retardava minha aproximação.
Tive que parar para descansar muitas vezes enquanto percorria dez míseros
metros.
A fisioterapia havia impedido que os músculos atrofiassem, mesmo
assim, ainda estavam fracos demais para me manter de pé. Andar de novo ia
ser muito difícil, mas eu jamais fraquejaria diante da chance. Era um presente
bom demais para me recusar a aproveitar por causa de dor. Precisava
continuar, não importavam quais percalços enfrentaria. Minha sobrevivência
naquele lugar, aparentemente inabitado, dependia disso.
Eu me agarrei à rocha como se fosse meu bote salva-vidas. Segurei-me
por um tempo, quase de joelhos, a fim de retomar o fôlego antes de, enfim,
me levantar sobre as duas pernas novamente. Estava ansiosa, mas não me
precipitaria. Conhecia meus limites físicos, mesmo estando acostumada a
testá-los e exigir sempre mais de mim mesma. Ainda assim, não tinha
confiança nos músculos frágeis para agir apressadamente.

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Quando senti a respiração mais regular, fiz nova tentativa, utilizando a
pedra para me escorar. Eu a escalei, usando as mãos para puxar meu peso, e
as pernas se esticaram até que as plantas dos meus pés nivelaram com a areia.
Fiz força descomunal para virar meu corpo de frente, sentando-me na rocha.
Enquanto respirava ruidosamente, tentei mexer as pernas e os pés, auxiliando
a ativar a circulação.
— Vamos lá, Íris, você consegue — incentivei a mim mesma em voz
alta, pensando que precisava explorar o local para descobrir onde estava.
Inspirei profundamente e soltei o ar com força, tomando coragem para
enfrentar o novo desafio. Demoraria muito mais se me arrastasse pela areia
como uma cobra e eu não sabia quanto tempo tinha passado e se já estava
perto de escurecer. A luz que incidia era intensa demais, porém, não parecia
exatamente o sol. Procurei pela bola de fogo pelo céu e não a encontrei.
A sensação de estar dentro de um sonho voltou com força total, no
entanto, mesmo se não fosse realidade, eu nunca ficaria sentada esperando
por resgate sem fazer nada. Por isso, apoiei as palmas das mãos com firmeza
na pedra e impulsionei meu corpo para frente, a fim de ficar de pé. Balancei
um pouco antes de conquistar o equilíbrio, abrindo os braços na lateral do
corpo.
Engoli a seco as dores que perfuraram minhas pernas e dei um passo
para frente. Na verdade, arrastei o pé um pouco adiante, quase perdendo o
equilíbrio. Fiquei com vergonha de mim mesma por estar com tanto medo.
Cair não era pior do que não me levantar. Lembrei-me da infância e dos
primeiros passos vacilantes que todo ser humano já havia experimentado.
A insegurança, o desequilíbrio e o receio pulsavam dentro de mim de
novo, como se voltasse a tenra idade. Suando frio, forcei o outro pé para
frente, erguendo-o do chão, porém, antes de pisar novamente, perdi o
equilíbrio e caí de joelhos. Senti vontade de chorar, mas engoli o pranto e

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engatinhei um pouco a fim de fortalecer as pernas. Ainda era difícil e
doloroso, mas bem menos do que ficar completamente de pé.
Tracei a meta de chegar até aonde as ondas quebravam.
Demorou o triplo do tempo que seria se eu tivesse na cadeira de rodas
ou caminhando, mas, mesmo exausta, senti orgulho de mim mesma ao
alcançar meu objetivo. Eu me sentei, esticando as pernas e deixando a água
banhá-las e energizá-las. Aproveitei para descansar um pouco e apreciar a
beleza do oceano, que eu nunca cansava de admirar, antes de fazer o caminho
de volta.
Tentei avistar algo além de água, porém não havia nada: nenhuma
embarcação, nenhuma ave, muito menos aeronave. O tom roxo do céu
tornava o mar ainda mais azul. Parecia uma miragem de tão bela. No entanto,
um ponto cinza se destacou naquela imensidão azulada e plácida, e depois
sumiu. Forcei as vistas para enxergar melhor e, alguns metros distante, fui
agraciada pela mesma imagem.
— Um golfinho! — admirada, continuei acompanhando o boto
enquanto se aproximava da baía, e notei que vinha sozinho.
Tão só quanto eu, refleti, empática com a criaturinha. Ele parou a bem
poucos metros de distância e emergiu a cabeça e o focinho, depois de espirrar
um jato de água pelo orifício da respiração.
— Olá, humana — pensei ter ouvido alguém dizer e, sobressaltada,
olhei ao redor, procurando pelo dono da voz divertida. Não havia ninguém.
— Ei, estou aqui! — insistiu. Do mar, o golfinho soltou um som
característico e agitou-se, chamando a minha atenção. — O que está fazendo
nessa ilha?
Ilha? Vasculhei os arredores outra vez, à procura do dono da voz, mas
não havia nada. Pássaros não cantavam, bichos não corriam, nem o vento
balançava as copas das árvores. Foi aí que me dei conta de que não havia

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brisa marítima. Que estranho! Será que eu realmente estava em um sonho, em
uma realidade paralela, depois de ter me afogado entre a vida e a morte? Será
que o boto seria meu guia espiritual?
— Pobrezinha! — a voz voltou a soar e eu me encolhi, amedrontada.
— Você não pode falar? Mas se até eu, que sou um golfinho, consigo, por
que você não?
Eu teria corrido, recuado ou feito qualquer outra coisa se minhas pernas
estivessem fortes o bastante. Em vez de fugir, encarei o boto novamente, que
continuava falando, sem parar, entre esguichos.
— Eu me lembro de quando eu era só um botinho e não conseguia
pronunciar nenhuma palavra que me era ensinada. É assim que você se sente?
Como se tivesse um defeito?
Ele virou a cabeça, como se o gesto complementasse a pergunta.
— E-eu... — gaguejei, sem acreditar no que fazia. — Consigo falar...
— Ah! Que bom! — o golfinho soltou uma inconfundível risada e deu
um salto, que traduzi como a mais pura alegria. — Assim terei alguém com
quem conversar.
Não podia ser verdade. Balancei a cabeça e tentei me fazer acordar de
novo. Não funcionou.
— Essa ilha, como você disse — receosa, tentei dialogar com a criatura
marítima e amistosa —, fica a quantos quilômetros do Rio de Janeiro?
— Rio de Janeiro? — questionou, parando de rir. — É um rio? E por
que janeiro?
Ai, onde foi que me meti?, retruquei mentalmente.
— É minha casa, preciso voltar para a minha família.
O boto entristeceu.
— Você não quer ser a minha amiga?
— Claro que quero! — Fiquei com dó do bichinho. Seria o máximo ter

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um golfinho de estimação. — Se você me ajudar, a gente pode nadar juntos.
Botos eram ótimos com localização, eu só não sabia como o faria
entender para onde eu precisava ir.
— Oba! — o golfinho deu um salto incrível no ar e mergulhou
novamente, gargalhando. — Vamos juntos para a casa da humana! Ei, qual
seu nome?
— Íris e o seu? — perguntei por educação.
— Nestor, muito prazer, melhor amiga.
Foi a minha vez de rir. Que criaturinha fofa!
— Estou encantada. — Resolvi sondá-lo mais. — Qual é o nome da
ilha, Nestor?
— Hm, ilhas têm nome? Não sei dizer, Íris. Mas conheço a localização.
Está no oceano. Se você quer tanto um rio, também tem um na ilha.
Não me ajudou em nada, disse a mim mesma para não estragar sua
animação.
— Ok, obrigada, Nestor — sorri, complacente. — Vou procurar.
— Disponha, senhorita. Eu tenho uma amiga, eu tenho uma amiga, eu
tenho uma amiga! — dizia, saindo e entrando na água, como se pulasse de
alegria.
— Tudo bem, então, mãos à obra — disse para mim mesma, porém, em
alto e bom tom, fazendo o golfinho parar sua acrobacia.
— Aonde vamos, Íris?
— Fazer sinal de fumaça — respondi automaticamente, voltando a
engatinhar de volta à pedra.
— Não compreendi o que a senhorita quis dizer.
— Vou fazer uma fogueira, Nestor — disse, já ofegante pelo esforço.
— Por quê? — a voz do golfinho ficava cada vez mais distante.
— Porque preciso de ajuda e outro humano seria bem útil.

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— Ah! Está bem. Vou deixá-la trabalhando no seu sinal. Até breve,
minha amiga.
Ouvi quando mergulhou novamente e me mantive focada em chegar ao
meu destino. Foi menos doloroso e difícil, mas ainda estava longe do ideal.
Se não conseguisse ficar de pé logo, o trabalho de montar uma simples
fogueira seria demorado demais. Anoiteceria e eu teria que passar a noite em
uma ilha desconhecida, sozinha. Poxa vida, podia ter pedido informação para
o golfinho sobre os perigos daquele lugar.
Eu me sentei na rocha novamente e o procurei no oceano. Nem sinal da
criatura. Tarde demais. Naquele instante, só restava eu mesma para lutar pela
minha sobrevivência. Respirei fundo e impulsionei o corpo para cima,
ficando de pé novamente. Senti mais estabilidade naquela vez, sorrindo
satisfeita. Dar passos se tornou um pouco mais fácil, porém, o equilíbrio não
era grande coisa.
Entre tombos e erguidas, que funcionou melhor para fortalecer minhas
pernas, como se eu fosse um bebê aprendendo a andar, consegui juntar uma
quantidade boa de gravetos e folhas caídas para montar uma fogueira. O mais
complicado foi criar fogo. Coloquei pedras ao redor e as usei como base para
tentar produzir uma faísca com um graveto.
Girei, girei, girei o que pareceu horas, sem sucesso. O graveto não
estava seco o suficiente, mas tudo na ilha parecia saudável, por mais que
fosse fim de inverno e logo seria primavera. O clima também era ameno e
agradável. Nem quente, nem frio. Perfeito! Claro que o esforço me fez suar,
porém, daria muito mais trabalho retirar a roupa de neoprene do que suar
dentro dela. Também não sabia como a noite cairia sobre a ilha e se o clima
mudaria. Era melhor continuar com a roupa térmica para não ter surpresas.
— Droga! — sussurrei, cansadíssima, sentindo dores intoleráveis nos
braços. Eu não aguentava mais girar aquele graveto, mas nada de faísca ou

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fogo. — Mil vezes droga! — gritei, atirando a porcaria do graveto o mais
longe que meus braços conseguiram, o que significava um metro.
Eu estava fraca, sem me alimentar há muito tempo, sedenta e com
medo de ficar perdida para sempre.
No entanto, uma gargalhada alta e macabra chegou aos meus ouvidos,
arrepiando os cabelos de minha nuca. Olhei para trás, apavorada, porém, a
risada parecia ecoar pelo ar parado, como se viesse de todos os lugares, ou de
lugar nenhum? Desesperada, empunhei uma pedra e mirei para o nada,
procurando pelo perigo.
— Quem está aí?! — Um silêncio repentino se fez em resposta.
Continuei vasculhando as árvores e as rochas, mas nada se moveu. —
Apareça! — meu corpo inteiro tremia, meu coração parecia que saltaria pela
minha boca, mas arranjei coragem não sei de onde para atacar quem quer que
fosse. — Eu não tenho medo de você e não vou pensar duas vezes antes de
atacar!
Nada. Nem um pio sequer. Bufando, continuei encarando o silêncio
como se fosse tão perigoso quanto ser atacada por alguém. Eu precisava de
ajuda e logo, antes que escurecesse. Ainda cabreira, engatinhei em volta da
fogueira malfada e escrevi um gigante S.O.S. na areia. Quem sabe assim
alguém de cima me descobria? Não era possível que não tivesse nenhum
helicóptero, ou um barquinho, por perto. O Rio possuía muitas ilhas,
provavelmente a tempestade havia me levado para uma delas.
Cobri as fendas com pedras para dar mais destaque do alto. Sentei-me
ao lado da fogueira apagada, me encolhi em uma bola e decidi descansar um
pouco antes de tentar acender o fogo novamente. Segurei com firmeza as
duas pedras, uma em cada mão, como armas, e vigiei. A risada cruel não saía
da minha memória.
Será que aquela maldita ilha era amaldiçoada?

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CAPÍTULO 4
Netuno

Do topo do mais alto pé de coqueiro, embora em minha ilha nenhuma


árvore desse frutos, assisti àquela patética humana buscar por um socorro que
jamais chegaria. Eu esperava ardentemente que tivesse esperanças em ser
resgatada, pois assim toda ela se esvairia entre seus dedos conforme o passar
dos dias, e em cada um deles eu me sentiria deliciosamente vingado. A
mulher aprenderia de uma forma definitiva o que era esperar e o que
significava ter as esperanças jogadas ao léu, como eu aprendi.
Não havia qualquer maneira de escapar de meus domínios, portanto
qualquer tentativa que fizesse seria em vão. Eu ainda tinha muitas lições para
dar e ela aprenderia, uma por uma, antes de seu iminente fim. A minha justa
vingança mal havia começado e eu já me encontrava esbanjando alegria,
tanto que até consegui gargalhar depois de muitas eras sem que eu
encontrasse qualquer motivo para sentir graça.
A humana era tão desajeitada, extremamente atrapalhada, e parecia
ainda mais vulnerável aos meus olhos. A diversão só estava começando. No
entanto, eu precisava saber quem ela era, o que fazia com a minha lágrima e
qual era a sua relação com a Cássia. Afinal, de uma coisa eu tinha absoluta
certeza: aquela mulher merecia cada sofrimento que eu porventura lhe
causasse.
Apesar de ter odiado a ousadia de Nestor, por ter conversado daquele
seu jeito irritante com a minha prisioneira, pelo menos serviu para que eu
tomasse conhecimento de seu nome: Íris. Mas ainda me intrigava sua
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semelhança física com Cássia.
— Íris... — senti o gosto de seu nome em minha boca e sorri em
malícia. — Você vai arrepender-se de ter cruzado o meu caminho.
Vários minutos se passaram e a humana não se moveu, permanecendo
com os olhos fechados e o corpo encolhido, como eu mesmo já fiquei durante
meses. No entanto, a minha paciência se afunilou. Eu queria que aquela fraca
tentasse fugir da ilha por mais tempo, embora soubesse que os humanos eram
seres acovardados, preguiçosos e vitimistas. Sendo assim, achei por bem
fazer alguma coisa que lhe obrigasse a manter os movimentos.
Desci do coqueiro com um simples pulo, empunhando o meu tridente
e o mantendo sempre próximo. Caminhei vagarosamente até a humana,
percebendo que estava adormecida. Seu corpo mortal jazia sobre a areia da
minha praia como se não tivesse nenhuma preocupação para lidar.
— Criatura fraca... — resmunguei enquanto me aproximava. —
Merece o mais profundo sofrimento, a mais profunda desconsideração.
Cheguei perto o bastante para analisar o contorno de seu rosto. Como
se fosse um ser vivo à parte de mim, o meu eterno coração apressou os
compassos, de forma que precisei de alguns segundos para voltar ao normal.
Meu ódio se intensificou diante de tal reação de meu corpo. Não pude aceitar
que o meu coração tivesse me traído naquele momento, diante do mais
desprezível ser que já habitou o planeta.
Dobrei as pernas para observá-la de mais perto. Os cabelos molhados,
sujos de areia, estavam soltos por toda parte. O rosto delicado, porém com
traços fortes, lembrou-me as eras de agonia e pranto. A face tão similar à da
Cássia me fez ter uma vontade incontrolável de matá-la naquele instante.
Ergui um punho sem conseguir conter a profunda fúria que embaçou meus
sentidos.
Estava prestes a estrangulá-la quando um golfinho enxerido apareceu

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muito perto da praia.
— Ei, Netuno! O que está fazendo?
Parei o meu punho no ar. Apertei-o com tanta força que meus
próprios dedos estalaram. Respirei profundamente antes de me reerguer e
encarar uma criatura digna de pena, que fazia suas acrobacias como se nada o
preocupasse.
— Eu o proíbo de interagir com a minha prisioneira, Nestor —
apontei um dedo para frente. — Mantenha-se longe deste assunto.
— Que prisioneira? — ele soltou uma risada imbecil, porém seu
sorriso ficou estacionado ao observar a Íris caída no chão. — Mas... Mas...
Ela é a minha nova melhor amiga. Por que a prendeu na ilha? Ela é tão
bonita, não é? E simpática. Bem que você podia deixar de ser ranzinza e dar
uma chance para a gata.
— Saia da minha ilha, Nestor — rosnei de uma forma mais contida
para não acordar a humana.
— Sabe o que você precisa? Procriar. Faz bem pra pele e pros nervos.
Até os deuses procriam, sabia? Não sei como você aguentou tanto tempo
sem...
— CALE-SE! — ergui um dedo na direção do golfinho e permiti que
uma onda o levasse para bem longe, se possível, para um lugar onde ele
nunca mais pudesse encontrar a ilha novamente.
Íris se movimentou um pouco, pois não consegui me manter
silencioso diante das impertinências de Nestor. Não havia para onde fugir,
portanto apenas esperei que despertasse. Não era uma má ideia que ela
achasse que eu poderia ajudá-la ou ser uma companhia naquela deserta ilha.
Enganá-la seria uma forma deliciosa de prosseguir com uma vingança mais
elaborada.
A ideia me fez sorrir, satisfeito com minha própria inteligência. Eu

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poderia fingir que a apoiava, que era o seu amigo — ou mais do que isso —,
para depois estraçalhar seu coração entre os meus dedos, trazendo-lhe mágoa
e uma intensa decepção. Sorri com ainda mais amplitude. Obter o seu apreço
seria uma estratégia perfeita para não apenas lhe trazer dor física, mas uma
dor de espírito tal qual a que ainda vibrava em meu peito.
Íris moveu a cabeça, soltando um pouco de ar entre seus lábios
rubros. Fui novamente traído pelas aceleradas batidas daquele órgão
totalmente desnecessário em meu corpo imortal. Toda a alegria me foi
retirada e passei a considerar a minha recente ideia um absurdo. Apenas olhá-
la me causava nojo, repulsa. Eu tinha verdadeiro asco de imaginar minhas
mãos a tocando com paixão, ainda que por fingimento.
Não... O melhor para ela seria uma perturbação psicológica que a
fizesse acreditar piamente que havia enlouquecido, ou que expiava seus
muitos pecados em uma espécie de purgatório. Eu a traria fome, sede e
solidão. Arrancaria toda sua humanidade e a transformaria em um ser apático
em minha ilha, sem alma e sem qualquer sentimento. Faria que o seu corpo
demonstrasse a ruindade que existia por dentro, não que continuasse
enganando a todos com sua beleza falsamente angelical.
Com uma nova estratégia traçada em minha mente, segurei a humana
pela nuca e pelas pernas, incomodado pelo seu cheiro doce impregnado.
Atravessei a extensa faixa de areia até alcançar as primeiras árvores e
arbustos. Eu queria fazer aquilo depressa, pois assim me livraria rápido do
contato com sua pele macia, porém o receio de acordá-la me fez caminhar
vagarosamente rumo ao centro da ilha.
Nenhum animal testemunhou minha passagem, pois eu odiava
qualquer ser vivo e os expulsara de minha ilha até não restar uma maldita
formiga. Em meio a um silêncio ensurdecedor, prossegui a jornada até uma
clareira afastada. Era o ambiente ideal para provocar a Íris assim que

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despertasse. Depositei-a sobre a vegetação rasteira, e a luz proveniente do
colar me chamou a atenção.
Circulei meus dedos através da fina corrente que prendia a minha
lágrima. A única gota que era a expressão terrena do terrível sentimento que
me deixou cego, surdo e mudo para a verdade: nenhum ser era digno de
minha consideração, de meu apreço, do meu amor.
Pensei em rasgar o pescoço da humana até ser possível retirar o colar,
mas me contive no último instante. Eu o tomaria de volta no momento certo,
quando ela estivesse completamente transtornada e eu soubesse exatamente o
porquê de sua aparência ser tão parecida a da Cássia. Parecia uma brincadeira
de muito mau gosto criada pelos deuses somente para me enlouquecer.
Deixei a humana concluir seus minutos de sono. Quando despertasse,
eu estaria pronto para perturbá-la. Caminhei entre as árvores, pensativo e
sentindo um gosto amargo em meu paladar. Eu odiava aquela ilha, porque ela
não era nada além do que o reflexo de minha alma destruída. Cada folha
carregava uma dor, um resquício de solidão e amargura. O vento não corria,
nenhum pássaro cantava e era sempre dia. Eu odiava as noites. Odiava
porque era o momento em que eu percebia que as horas haviam se passado
sem que eu reencontrasse a vontade de existir. Então, que fosse dia sempre,
não faria a menor diferença.
Voltei para a praia porque segurar a humana custou deixar o meu
tridente para trás. Encontrei-o fincado na areia, imponente como sempre, e o
segurei em formosura. Passei alguns minutos observando o trabalho da
humana desenhado na areia. Aquele pedido de socorro era demasiadamente
inútil, porém fiz questão de destruí-lo utilizando meu poder de deus. O
tridente conjurou uma brisa forte o bastante para espalhar as pedras
depositadas ali.
— É verdade, meu senhor? — ouvi a voz de Anfitrite muito perto.

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Virei-me e a encontrei sentada em meio a algumas rochas, em uma posição
que a deixava particularmente encantadora. Sua longa cauda estava à mostra,
e ricocheteava conforme sua vontade. — Trouxe uma humana para a ilha?
Não me sobrava nem um pingo de paciência para lidar com os
sermões de Anfitrite naquele momento, e em nenhum outro.
— Ela é minha prisioneira. Eu a proíbo de mostrar-se perante ela.
Compreendeu-me, Anfitrite?
— Preciso que o senhor me responda por que trouxe uma humana
aqui. Por acaso o meu deus pretende viver um novo romance com uma
mortal?
Eu a olhei, porém não consegui enxergar um palmo diante de mim.
Sua suposição me fez rosnar em fúria, de tal maneira que uma poderosa
tempestade se formou sobre nossas cabeças, tumultuando o já arroxeado céu,
que sempre refletia meu constante mau humor. Meu grito ecoou pela ilha
como a anunciação de um presságio ruim.
Anfitrite abriu bem seus olhos escuros como a noite que eu não
presenciava há eras.
— Não ouse permitir que tamanho absurdo ultrapasse seus lábios
novamente! — resmunguei, ainda bastante enraivecido. — Ela está aqui
porque desejo matá-la com minhas próprias mãos, e você, Anfitrite, não fará
nada para impedir.
A bela criatura levou uma mão ao peito, parecendo agitada.
— Meu bom deus Netuno...
— Já chega! — berrei mais uma vez, tão alto que novo eco se
propagou. Uma chuva torrencial teve início naquele instante, e um raio
poderoso foi capaz de derrubar um dos coqueiros próximos. — Estou farto de
conversas.
— O que... pretende fazer com ela? — Anfitrite perguntou em um

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tom baixo, observando a areia para não me encarar. Ela nunca me olhava
quando eu caía em estado de fúria. — Eu o conheço, meu senhor. Se a trouxe
aqui é porque matá-la não é seu único plano.
— Não é — balancei a cabeça negativamente. — Antes de tomar sua
vida entre meus dedos, quero que ela sofra. Quero que definhe. Desejo que
viva quinhentos e sessenta e oito dias de pura expiação.
Anfitrite ergueu o olhar, assustada. Ela sabia que aqueles números
não eram em vão. Eu os tinha contado especificamente.
— É uma vingança? — questionou-me.
— Exatamente. Uma doce vingança.
Abri um sorriso para que percebesse o quanto eu estava contente com
aquela possibilidade. Ela não almejava tanto me ver sorrir de novo? Pois
então, seu desejo se tornara realidade. Entretanto, Anfitrite não pareceu feliz
diante de meu renovado humor.
— Espero que o senhor compreenda que o seu coração é puro demais
para lidar com a própria maldade — Anfitrite falou depressa e saltou da rocha
em direção ao mar, que era a sua casa.
Não me ofereceu nenhuma oportunidade para rebater seu comentário.
Eu me deixei cair de joelhos na areia após seu distanciamento,
consciente do peso de suas palavras. Olhei para o céu, deixando a chuva lavar
o meu corpo nu. Nunca precisei de vestimentas para ser o único morador da
ilha. Conjurei mais alguns raios porque era divertido o barulho estrondoso
que fazia ao se chocar em uma árvore e me fazia sentir algo além do ódio
enraizado no meu peito. Fechei os olhos e o rosto de Cássia invadiu os meus
pensamentos. Porém, um segundo se passou para que eu compreendesse que
aquela humana na clareira não era a Cássia, e sim a Íris.
A pobre, frágil e azarada Íris.
Eu mal podia controlar a ansiedade para acompanhar sua destruição.

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CAPÍTULO 5
Íris

Não sei se o que me assustou mais foi a tempestade, repleta de trovões,


ou os gritos animalescos, tão profundos que pareciam vindos de um pesadelo.
Abri os olhos desorientada, como se tivesse apenas piscado. Mas, pelo visto,
havia adormecido e ficado indefesa. Meu corpo e meu cabelo, cheios de
areia, confirmavam que eu me deitara na praia, como me recordava. No
entanto, não era mais lá que eu estava.
A chuva torrencial dificultava enxergar muito longe e as nuvens cinza
chumbo, finalmente, haviam bloqueado a luminosidade intensa. Parecia
noite, uma noite escura e densa, repleta de perigos, como os urros selvagens
sugeriram. Meu coração batia descontrolado no peito e minha reação
automática, estimulada pela adrenalina, foi correr.
Eu não sabia onde estava, mas fugir do centro da vasta clareira,
perfeitamente redonda, cercada de mata por todos os lados, era o mais certo a
fazer. Jamais teria entrado na floresta sem conhecer os riscos de me perder
em um lugar desconhecido, com criaturas medonhas, não sairia em disparada
pela mata, sem saber que direção tomar. Poderia significar minha morte.
Alguém, ou alguma coisa, havia me transportado de local e, qual era seu
intuito, se me proteger ou me assombrar, eu não tinha ideia.
Outra coisa de vital importância para minha sobrevivência era a água,
que caía em abundância sobre mim naquele exato instante. Eu me esgueirei
atrás do tronco largo de uma árvore, correndo trôpega no terreno instável.
Ainda não acreditava que podia usar as minhas pernas, que funcionavam
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depois de tanto tempo para aceitar a deficiência. Tentei me esconder ali, não
emitindo nenhum barulho, nem fazendo movimentos bruscos, a fim de não
chamar a atenção de nada, nem ninguém.
Eu me esforcei a me misturar à paisagem, colando-me ao tronco.
Cautelosa, puxei uma folha grande de um galho e a dobrei em formato de
pote, a fim de armazenar o líquido precioso que jorrava do firmamento em
abundância. Em poucos segundos, minha vasilha improvisada estava cheia e
pude sorver da bebida vital, até arranhar a garganta e me provocar uma tosse
descontrolada.
Apavorada com a noção de poder ter anunciado o meu despertar para
quem quer que tenha me movido, tapei a boca com uma mão, vasculhando
além das folhas e gotas a fim de prever a aproximação de qualquer criatura.
Um raio riscou o céu naquele segundo, clareando as sombras e caiu, tão
próximo que fez o solo sob meus pés estremecer. Pensei ter avistado uma
forma grotesca no segundo de luz, por isso meu instinto de sobrevivência foi
mais forte que a inteligência. Comecei a correr na direção oposta da imagem,
tropeçando em raízes, caindo de joelhos e rolando na lama, mas sempre me
erguendo para continuar em fuga.
Minhas inúmeras quedas espalharam dores no meu corpo, mas não me
importava. Olhei pela vigésima vez por sobre o ombro para garantir que não
havia sido seguida no momento em que saí da mata fechada e tive a sorte de
cair na mesma praia. Segui em frente, porém, com um pouco mais de
dificuldade devido a areia molhada prender meus pés pouco confiáveis. Por
isso, não vi se aproximar, simplesmente trombei em alguma coisa, rija e
larga, e fui lançada de costas contra o chão, batendo a cabeça e apertando os
olhos, inclusive para protegê-los da chuva.
— Quem ousa tocar-me sem meu consentimento? — a voz soou dura e
forte como uma trovoada.

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Eu me encolhi, assustada com o tom repreensivo, gemendo um pouco
com as pontadas de dor que se espalharam por minhas costas. Ainda assim,
tateei o chão à procura de algo para me defender e me senti grata por
encontrar uma pedra, que fechei na palma da mão com força. Abri os olhos
devagar, com medo de encarar quem quer que fosse, sentando-me com
prudência. Pelo menos o idioma era compreensível. Mesmo que fosse uma
ilha desconhecida, aquele provável nativo falava português.
Vislumbrei o exato momento em que o estranho se ergueu, pois estava
de joelhos, e se virou de frente para mim, revelando toda a sua imponência.
Além de uma impressionante altura, que parecia tocar as nuvens, seu corpo
imenso, largo e musculoso, estava completamente exposto, inclusive o...
Hm... Engoli em seco ao encarar aquele chocante exemplar do sexo
masculino, nu em pelo, sob a tempestade. Nunca vi nada mais
assustadoramente lindo e sexy do que aquele desconhecido.
Medo e atração duelaram dentro de mim para ver quem ganhava o
controle de meu corpo, que se retraía, paralisado pelo assombro, porém
também se retesava pronto para combater caso aquele gigante ousasse me
ferir. Será que foi ele que me carregou até a clareira? Sendo tão grande e
forte, não seria nada difícil, ainda que eu não fosse uma pequena.
Eu me senti esquentar sob a chuva gélida. Suas mãos gigantes cobriram
o órgão genital e desviei o olhar para o rosto daquele ser espantoso, tentando
ser menos curiosa e despudorada, apesar de que a tentação de vascular cada
reentrância daquele corpo fosse tão imensa quanto seu tamanho. Eu me
levantei também, porque estar tão abaixo dele fazia com que me sentisse
vulnerável demais.
Ele não disse nada, nem tive coragem de me desculpar por meu olhar
inconveniente. Seus olhos capturaram os meus em uma longa encarada, que
enviou arrepios febris ao longo de minha coluna. Eu os senti vibrar até os

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dedos dos pés, como se fossem criaturas vivas correndo pelas minhas veias.
O calor se tornou incendiário, principalmente porque a chuva parou, tão de
repente quanto teve início a tempestade que me pegou desprevenida no
mergulho que não era para ter dado errado.
No entanto, o medo foi aplacado conforme eu observava o homem.
Havia uma tristeza profunda em seu olhar, que tive que esticar o pescoço para
encarar. Facilmente o homem possuía mais de dois metros de altura. Eu tinha
um metro e oitenta centímetros de tamanho, e raramente encontrava homens
altos como ele. Senti uma empatia pungente, que surgiu de meu eterno
instinto de ajudar o próximo. O que teria acontecido com aquele sujeito para
carregar em suas íris um sofrimento tão evidente?
Assim como as nuvens espessas se foram, o pesar que pensei ter notado
em seus olhos se apagou e seu rosto se transfigurou em uma careta horrenda
de ódio. Ele franziu o cenho e pareceu incrivelmente ameaçador, apesar de
ainda belo. Recuei um passo porque meu senso de sobrevivência era mais
inteligente que meu coração nervoso, que exigia ao meu cérebro que o
abraçasse e acalentasse. Apertei a pedra na palma da mão fechada em punho,
escondida atrás das costas.
Meu movimento defensivo aquietou sua fúria e sua expressão se
suavizou.
— Desculpe-me por tê-la assustado, senhorita. Não pretendo lhe fazer
mal.
Desviei o olhar para a areia, ainda encharcada a nossos pés, me
sentindo culpada, mesmo sem ter culpa alguma. Notei um curioso objeto
largado no chão ao seu lado. Era um tridente da cor de ouro. Fiz uma careta
de incompreensão, tentando identificá-lo. Parecia saído da cinegrafia de
algum filme de Hollywood.
— Moça? — ele chamou a minha atenção, fazendo-me encará-lo

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novamente. — Está tudo bem?
— Sim — respondi, desviando o olhar novamente para o objeto, pronta
para comentar sobre ele. No entanto, ao encarar o lugar onde o tridente estava
um segundo antes, não encontrei absolutamente nada. Fiquei com a boca
aberta, com a pergunta presa na garganta, sem saber se eu realmente o havia
visto ou imaginado. Olhei para o gigante, perplexa e me sentindo estranha.
Será que eu havia enlouquecido por inanição? — Estou bem na medida do
possível.
O que aquele sujeito estava fazendo pelado naquela ilha? Seria um
lugar privativo? Ele era um daqueles ricos excêntricos, que comprou o local
para uso exclusivo? Será que ele havia me levado até a ilha? Fiquei sem graça
de questionar e procurei usar uma abordagem menos direta.
— Fui pega por uma tempestade no mar e acordei nesta praia. Você
sabe dizer onde estamos?
— Gostaria muito de poder ajudá-la, mas também sou um náufrago.
— Ah! — encarei o mar à minha frente e nas costas dele. — Será que a
correnteza nos trouxe até aqui?
Ele deu de ombros e o gesto me pareceu pouco amistoso, como se não
se importasse.
— Faz tempo que está nessa ilha? Ela é habitada?
— Há um longo tempo — sua voz soou enfadonha, aniquilando a ideia
de que ele fosse culpado pela minha presença naquele lugar paradisíaco,
saído direto dos contos fantásticos para a realidade. — Já desbravei o local e
não encontrei viva alma.
Engraçado, apesar de sério demais e um pouco esquivo, o desconhecido
tinha um jeito estranho de falar. Não parecia o linguajar do século XXI. Bati
a palma na testa e abri um sorriso amplo ao me dar conta dos meus maus
modos. Eu me justifiquei com o medo que tive daquela criatura

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monstruosamente grande, assim que o vi.
— Desculpe te encher de perguntas sem nem mesmo me apresentar.
Meu nome é Íris e o seu?
— Netu... É... — ele pareceu confuso por um instante.
— Neto?
O homem apenas assentiu. Olhei ao redor, tentando ser prática, e
pensando nos próximos passos.
— Você ouviu os gritos animalescos agora pouco? Construiu um
abrigo? Sabe onde tem comida? Já tentou sair daqui? — Conforme eu soltava
as perguntas sem pausa para respirar, Neto enrugava a testa, como se os
assuntos não fossem pertinentes. Será que ele estava há tanto tempo ali
sozinho que havia se esquecido de como ser social? — Por que o clima é tão
estranho? E o céu? — mirei o firmamento, que voltara ao seu tom de roxo
claro e ondulado, à procura do sol que nos iluminava. Naquele instante me
dei conta de que não sentia seu calor contra minha pele. — Não vi animais na
ilha, nem aves, por isso me apavorei quando ouvi os berros. É tudo tão
esquisito, não acha?
Eu me abracei, desolada por um instante, principalmente porque ter a
companhia de Neto não amenizava meus temores. Seus olhos me analisavam
com certa frieza e distanciamento, que me causaram calafrios.
— Não é possível escapar dessa ilha — suas palavras foram
pronunciadas pausadamente, como se significassem o juízo final.
Para mim, era. Eu não queria permanecer ali para sempre. Tinha uma
vida inteira para viver no Rio de Janeiro e estava me preparando para minha
primeira paraolimpíada, que aconteceria na Coreia do Sul no próximo ano.
— Não posso ficar — sussurrei, trêmula. — Minha família deve estar
preocupada comigo.
Então veio a culpa por algo que me era devido. Eu devia ter sido menos

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impulsiva e ter esperado Gil chegar antes de me aventurar no mar. Devia ter
conferido a meteorologia também. Devia ter avisado alguém sobre meus
planos, nem que fosse uma mensagem de texto. A tristeza por minha escolha
se abateu sobre mim e me deixei sentar na areia úmida, aproveitando para
descansar minhas pernas.
Olhei para o horizonte, sonhando com meu lar, morta de saudades da
preocupação exagerada de minha mãe, as diretas sem tato do meu pai e a
companhia inseparável do meu noivo. Senti falta até da cadeira de roda e do
tempo em que não precisava andar para chegar aonde eu queria. Uma lágrima
escorreu pela minha face e, enxugando-a, dei graças a Deus por recuperar
meus movimentos. Eu ainda podia lutar a fim de retornar para minha vida.
Senti que estava sozinha e verifiquei os arredores para me certificar do
que já sabia. Neto se fora com sua nudez provocadora. Pensei em correr atrás
dele em busca de mais explicações, no entanto, tive medo de ele ser alguma
espécie de aproveitador. Não dava para confiar, principalmente porque seus
modos soaram bem esquisitos, como se não ligasse para o fato de estar
ilhado.
Além do mais, eu tinha muito trabalho para fazer e não queria perder
tempo. A tempestade havia destruído meu S.O.S. e eu precisava reconstruí-lo.
Também necessitava arranjar um jeito de fazer fogo e logo. Talvez o
náufrago pudesse me ajudar com isso, se tivesse boa vontade. Ele não podia
ter sobrevivido sem fogo e comida.
Enquanto arrumava o pedido de socorro, ouvi o esguicho característico
daquela criatura fofa, que me considerava sua melhor amiga.
— Olá, Íris. Como está seu sinal?
Confesso que me assustei de novo diante da loucura que era ter um
golfinho falando comigo como se fosse gente. Será que Neto também
conseguiria ouvi-lo ou apenas eu que tinha ficado louca?

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— Quase pronto — respondi de uma vez, sorrindo e me movendo a fim
de terminar a tarefa o mais rápido possível. Eu não perderia tempo analisando
o nível de minhas maluquices, pois pretendia deixar a ilha o quanto antes.
— Que bom.
— Nestor, você sabia que existe outro náufrago nessa ilha? — encarei o
golfinho, que jogou a cabeça de lado, como se não entendesse minha
pergunta.
— É mesmo? E o que ele faz aqui?
Caí na gargalhada ao perceber que Nestor não havia compreendido
mesmo.
— Está perdido, como eu.
— Você jura, Íris? Ele também pode ser meu amigo?
Pensei em Neto e não o achei muito amistoso comigo, mas talvez ele
fosse com bichinhos. Cada pessoa, uma mania.
— Se ele concordar, não vejo porque não.
Nestor gritou e riu, dando suas lindas piruetas, que também desenharam
um sorriso no meu rosto. Assim como eu acreditava, lá estava o boto para
confirmar. Sempre havia uma beleza oculta no que era feio, desesperador e
terrível. Bastava saber olhar e apreciar o momento como ele exigia, fosse as
lágrimas em meio ao riso, ou a esperança contida no caos.
Eu tinha esperança de que, com garra e força de vontade, poderia ser
agraciada com a minha vida de volta, assim como fora com o movimento das
minhas pernas.
Em um momento de pouca lucidez, eu simplesmente corri até o mar,
saltando as ondas que batiam no meu corpo. Senti a carícia da espuma contra
a minha pele, como há muito não sentia. Assim como a força contida no
vaivém do mar. Quando achei seguro, mergulhei, dando braçadas
estimulantes naquele oceano, que era uma extensão do meu lar.

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Nele não havia medo ou limitações, ainda que eu não pudesse respirar
embaixo d’água. Sob a água, eu podia sonhar com meu futuro porque ali
habitava o meu constante. Não existia nada que eu quisesse mais que
ultrapassar meus limites, alcançar meus objetivos e encontrar a felicidade, por
acaso, em uma curva na estrada da vida. Eu ainda estava aprendendo a ser
feliz, mas tinha esperança de que trilhava o caminho correto.
Joguei água no boto, que esguichou de volta para mim, e brincamos o
que pareceu uma era inteira. Porém, o riso de Nestor, mesmo que ainda fosse
bizarro ouvir de um golfinho, era combustível para o próximo passo da minha
luta.
Eu sairia daquela ilha, não importava o preço que precisasse pagar.
Mas, enquanto estivesse ali, aproveitaria ao máximo a benção que me foi
dada.

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CAPÍTULO 6
Netuno

Eu não suportava conviver com aquela humana tola nem por meio
minuto, portanto acatei a opção de simplesmente ir embora enquanto ela
estivesse distraída, observando o oceano como se pudesse encontrar uma
saída simples que não fora considerada antes. Não estava em meus planos
mostrar-me nem tão cedo, mas a fedelha havia me encontrado em um
momento de ira, vulnerável no meio da praia. Seu olhar sobre o meu corpo
me encheu de ainda mais raiva. Perceber deslumbre em seus olhos claros,
única característica que a divergia de Cássia, que possuía olhos negros como
a noite, foi como se mil facas atravessassem o topo da minha cabeça.
Precisei fazer um absurdo esforço para não matá-la imediatamente, e
um maior ainda para tratá-la de forma educada, já que não queria que
desconfiasse de que estar presa na ilha era culpa minha. Não ainda.
Considerava muito cedo para me revelar como um deus disposto a lhe
castigar até o último suspiro deixar seus pulmões. Íris precisava sofrer muito
antes de adquirir a vantagem de compreender o verdadeiro motivo de tanto
sofrimento, além do que eu necessitava descobrir muito mais sobre ela, e, se
fingisse ser um humano comum, talvez o meu trabalho fosse mais eficaz.
Não que eu tivesse qualquer pressa. Os próximos quinhentos e sessenta
e oito dias seriam longos e, ao mesmo tempo, turbulentos. Possuía tempo
suficiente para concretizar meus desejos mais sombrios, só precisava
controlar a ira e afiar a pouca paciência que me restava. Enquanto andava de

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volta ao topo de minha rocha favorita, seus olhos ainda se faziam presentes
na minha memória, e meu coração ardia de uma maneira excruciante.
Imaginava que eu já tivesse atingido todos os níveis que o ódio poderia
alcançar, porém me enganei: ele só aumentava a cada segundo e, no fundo,
lidar com ele era especialmente sufocante.
Sentei-me como sempre fiz nas últimas eras, esperando que o tempo, o
temível passar de horas, afastasse de minha alma a completa falta de tato para
suportar as maldades que o meu cérebro mancomunava incansavelmente.
Seguia contra a natureza, que me fizera bom e gentil, por conta própria,
portanto era necessária concentração para retirar de meu corpo uma inocência
não quista. Às vezes eu acreditava que, se não fosse um deus poderoso, teria
sucumbido à capacidade de ser perverso que adquiri nos últimos anos. Até
mesmo para possuir uma alma ruim era necessário ter força.
Naquele instante desolador, por exemplo, lutava contra a vontade de
permitir que Íris fosse embora dos meus domínios, não por não suportá-la,
mas por sentir uma fagulha em meu peito gritando em desespero, alertando-
me de que aqueles planos jamais dariam certo enquanto o meu destruído
coração batesse em descompasso apenas com um mísero olhar. As mulheres
eram tão feiticeiras quanto Anfitrite, possuíam o dom de desnortear os
homens e lhes fazer perder a razão nos momentos cruciais em que usá-la era a
melhor opção. Não pretendia montar uma armadilha e, de repente, perceber-
me dentro de outra.
Dali de cima eu podia observá-la com exatidão graças à minha visão
superaguçada, que me permitia monitorar a ilha de norte a sul. Íris
mergulhava com maestria, como se a água do mar não lhe causasse qualquer
estranhamento. Vendo-a daquela forma era impossível não compará-la a uma
sereia, capaz de encantar com a mesma facilidade em que poderia levar um
humano às profundezas e deixá-lo afogar-se sem piedade. Uma criatura tão

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bonita quanto cruel, escondendo toda a maledicência por dentro de um corpo
perfeito para o pecado da luxúria.
Eu a assisti banhar-se, depois acompanhei sua patética tentativa de
construir um sinal na areia da praia. Vi quando se cansou e parou para
descansar. Nenhum movimento seu passou despercebido pelo meu olhar
atento, reflexivo. Em meu íntimo, planejava os próximos passos para tornar
aquela estada interessante. Com a raiva mais controlada, consegui encontrar
discernimento para seguir em frente.
Tão logo a humana sentou-se com dois gravetos em mãos, a fim de
fazer fogo, conjurei uma nuvem negra, que tomou a ilha inteira. Uma chuva
grossa e fria se fez presente em poucos minutos, e a humana buscou abrigo
embaixo de alguns coqueiros, desistindo dos gravetos. Sorri ao perceber seu
corpo tremer, os lábios arroxeados e grossos baterem com veemência. Girei o
indicador e fiz uma brisa congelante invadir a praia e levar, novamente, todo
o seu trabalho realizado na areia.
Perceber seu descontentamento e infelicidade me fez gargalhar. Era
bom demais fazê-la sofrer, de forma que não fui capaz de me arrepender por
tê-la trazido. Após uma hora, a nuvem negra começou a espaçar-se e a chuva
se foi. Assisti a Íris voltando a fazer, pela terceira vez, o sinal sobre a areia
molhada.
— Essa mulherzinha não desiste nunca? — murmurei para mim
mesmo, surpreso ao presenciar tal cena. Havia uma força de vontade em suas
atitudes que era rara entre os seres de sua espécie. — Que idiota... — bufei,
irritando-me com sua persistência. — Pois agora quero verificar até onde vai
essa vontade de sair daqui.
Peguei o meu tridente e, com alguns movimentos circulares, fiz com
que nova tempestade se aproximasse. Daquela vez, não apenas chuva, mas
trovões e relâmpagos poderosíssimos se fizeram presentes. O trabalho da

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humana foi todo dissolvido mais uma vez. Ela correu para os coqueiros, mas
um dos raios atingiu um ponto próximo, de forma que Íris soltou um grito
apavorado. Gargalhei com mais vontade, divertindo-me intensamente.
— Patética! — falei entre risadas. O meu corpo inteiro vibrava em
felicidade.
Íris começou a correr pela praia, já que fiz os raios atingirem a maioria
das árvores próximas. Ela gritava desesperadamente, e só parei de rir quando
ficou perto demais da rocha onde eu estava. Não queria que ela conseguisse
me ver, por isso desci de volta para a areia e me escondi em uma reentrância.
Ela continuou se aproximando.
— SOCORRO! — gritava a plenos pulmões. — SOCORRO,
ALGUÉM ME AJUDA!
Os raios continuaram atingindo os coqueiros, derrubando troncos e
galhos pesados por toda parte. Íris encontrou as primeiras rochas e percebi
quando se aproximou perigosamente. De onde eu estava, dava para vê-la
encolhida entre as pedras tal como eu, porém seu pavor era tão grande que ela
não me percebia. Apontei um dedo na direção do mar e fiz uma onda gigante
se formar e atingi-la.
Íris gritou antes que o revolto mar a engolisse por completo. Comecei a
rir mais uma vez, porém a onda conjurada foi maior do que imaginei, de
forma que também fui tomado por ela. A vontade de vê-la em apuros me
tirou a sanidade por uns instantes, tanto que não controlei a fúria do meu
próprio poder. Meu corpo girou por sobre as rochas como uma leve pedrinha
rolando ao sabor do vento.
Senti a mágica se fazendo em minhas pernas, como sempre acontecia
quando o oceano tomava meu corpo. Em poucos segundos, a odiosa cauda
retornou e pude nadar sem dificuldade. Procurei pela Íris e a encontrei
desacordada, embaixo de uma rocha maior, que provavelmente tinha se

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deslocado com o poder da forte onda. Revirei os olhos diante da fraqueza
humana. Se ficasse ali, a mulher morreria e então meu divertimento teria fim
depressa demais.
— Porcaria... — resmunguei baixo e nadei até alcançá-la. Removi a
rocha que a impedia de boiar e tomei seu corpo miúdo para mim. Nadei rumo
à superfície, tentando entender aquela droga de onda que não parava de
avançar dentro da ilha.
Girei meu dedo e ela recuou com força, de maneira tal que precisei me
equilibrar segurando a humana com o braço e uma das pedras com o outro.
Quando o mar voltou ao normal, percebi que havíamos parado no topo da
minha rocha favorita. Meu corpo estava sobre o da Íris, e ela começou a
tossir uma bela quantidade de água salgada. Eu me afastei para o lado e
observei minha cauda esticada. A humana ainda tossia, mas seria questão de
tempo até que me visse e percebesse que eu não era um homem comum.
— Neto... — ouvi seu sussurro e me virei para ela, com o coração
agitado de adrenalina. Íris me observava, ainda deitada e parecendo imersa
em alucinações. — Neto?
Observei-a com os olhos bem abertos. Virei o rosto para a minha cauda
novamente, e suspirei aliviado ao perceber que tinha se transformado em
pernas de novo. Íris se sentou ao meu lado, desnorteada. Ainda chovia muito
e podíamos ouvir os raios caindo muito próximos. Olhei ao redor, à procura
do meu tridente, porém não o encontrei. Ergui-me de imediato, procurando
por ele abaixo de nós. O objeto estava sobre uma rocha menor, jazia
esquecido como se não tivesse qualquer valor.
— O que aconteceu? — a humana questionou com a voz chorosa.
Virei-me para encará-la, e percebi que seus olhos estavam mesmo diferentes.
Íris chorava e eu sorria diante de suas lágrimas. — Do que está rindo? Quase
me afoguei!

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Brincar com ela podia ser mais divertido do que eu previra.
— Porém, não afogou graças a mim. Deveria me agradecer.
A mulher deixou seu olhar apavorado recair sobre o meu corpo nu de
novo. Daquela vez, mais preparado, não me deixei abalar pela sua
curiosidade, pela força que um deus como eu possuía sobre os humanos. Ela
era fraca e medíocre, e eu poderia me aproveitar daquilo da maneira correta,
até remover toda sua sanidade sem que a minha fosse atingida.
Ofereci uma mão para que se levantasse, e Íris aceitou de bom grado.
Apesar de mais alta que uma mulher comum, minha altura ainda era muito
superior à sua, o que me deixava em um patamar acima sempre, olhando-a de
cima como era para ser.
— Obrigada... — murmurou, ainda me encarando como se estivesse
enfeitiçada. — Mas eu me sentiria muito melhor se você se vestisse. É
estranho ter um cara nu assim, na minha frente.
Meu sorriso se alargou ainda mais. Decidi que eu gostava de deixá-la
constrangida por causa de minha ausência de roupas. Era perceptível a força
que fazia para não analisar minhas partes íntimas de forma desejosa. Todo
humano era igual; supervalorizava as vestimentas e tratavam a nudez como se
fosse algo antinatural, sexualizado. Eram tolos. E ela era mais tola ainda ao
imaginar que um dia eu poderia cogitar um ato de fornicação entre nós.
— A ilha pertencia apenas a mim até você chegar — expliquei com ar
de divertimento. — Não acho justo deixar de ficar à vontade apenas porque
não estou mais sozinho.
Ela cruzou os braços para frente. Não soube dizer se foi para se
proteger da chuva ou porque ficou irritada com o que falei.
— Tudo bem, Neto, não vou discutir. Se quer ficar peladão, fique
peladão. O que mais me preocupa agora é essa tempestade! — Um trovão
forte se anunciou depois que um raio caiu do outro lado da ilha. — Ahh... —

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Íris começou a soltar um grito, mas parou pela metade, creio que não
querendo deixar transparente que morria de medo.
Voltei a sorrir.
— Está com medo?
— Não. — Virou a cara para o outro lado. Os humanos têm o péssimo
hábito de mentir só para se sentirem melhores. — Só acho estranho uma
tempestade assim, do nada. No Brasil não costuma chover desse jeito em
pleno verão.
— O que te faz achar que estamos no Brasil? — soltei a pergunta
apenas para deixá-la enlouquecida. Fez efeito. Íris arregalou os olhos claros.
— O-Onde estamos, e-então?
— Muito distante de qualquer continente.
Ela pareceu ainda mais apavorada diante de minha resposta.
— Como eu vim parar aqui? — Sua boca se escancarou, e ela ficou me
olhando como se me reconhecesse. — Você... Você me salvou no mar e... me
trouxe até aqui.
Sua frase me deixou em alerta. Então, ela se lembrava de mim, do
momento em que eu a “resgatei” do oceano. Fiquei em silêncio,
repentinamente sem saber o que dizer a respeito, porém, não podia deixar que
Íris me reconhecesse. Negaria aquela sua versão até o fim, se possível fosse.
— Eu? — Toquei em meu próprio peito. — Você certamente está fora
de si. Desbravo esta ilha há anos e, como falei, é impossível sair.
— Está tudo tão confuso... — balançou a cabeça como alguém que
tenta encontrar sentido.
A tempestade teve fim do mesmo jeito repentino em que começou. O
céu voltou a ganhar seu tom arroxeado costumeiro. A ausência de meu
tridente não me permitiu conjurar mais horas de tempestade.
— Agora que a tempestade se foi, gostaria de permanecer na minha ilha

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sem ser aborrecido — informei cordialmente. Fiz um gesto cavalheiresco e
comecei a descer a rocha pelo caminho que eu conhecia. No entanto, a
humana passou a me seguir.
— Como assim “sem ser aborrecido?” Neto, estamos presos aqui!
Temos que encontrar uma forma de escapar.
— Já lhe informei que não há maneiras de escapar. — Virei-me para
trás apenas para observar seus modos tolos. Íris descia com bastante
dificuldade. — Você tem algum problema em seu cérebro que não
compreende o que os outros falam?
— O único que deve ter problemas aqui é você! — rebateu com a voz
mais firme. Passei alguns segundos a olhando, achando engraçada a sua
careta irritada. Íris era, realmente, um parque de diversões para mim. — Se
está aqui há tanto tempo, deve ter construído um abrigo. Onde fica?
Cocei a cabeça e sorri.
— Você diz que tenho problemas e depois pede para que lhe conte
onde fica meu abrigo? O que a faz achar que desejo compartilhá-lo com
você?
Íris soltou um ruidoso suspiro, demonstrando sua revolta. Voltei a
descer as rochas, que ficavam justapostas. Resolvi deixar meu tridente de
lado para buscá-lo em outro momento, longe do olhar afetado da humana. Ela
continuou me seguindo quase sem conseguir acompanhar meus movimentos.
Cheguei à areia muito antes e prossegui meu caminho. Se eu corresse, a
despistaria em alguns segundos, porém queria saber até onde sua audácia
chegaria.
— Quanto tempo está nessa ilha? Como parou aqui?
— Há muitos anos — respondi apenas uma de suas perguntas. Íris não
precisava saber mais do que aquilo.
— Anos? Meu Deus, você está aqui há anos? — berrou atrás de mim.

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— Não pensou em construir uma embarcação? Podemos juntar alguns caules
e fazer uma balsa.
— É inútil, Íris.
— Por quê? Aposto que você nem tentou sair daqui. Devia ser um
derrotado na civilização e viver na ilha foi sua melhor opção como pessoa,
não é possível!
Virei-me para trás a tempo de vê-la se esforçando para manter o meu
ritmo. Estava visivelmente chateada. A expressão que fazia me causava
divertimento. Até pensei em rebater as grosserias que falou, porém percebi
que aquilo tudo fazia parte de seu temperamento. Os humanos sempre
ofendiam e destruíam tudo ao seu redor quando não sabiam como lidar
consigo mesmos.
Sorri enquanto a encarava.
— De que merda está rindo?
— De você. Se soubesse como soa patética aos meus ouvidos, faria o
mínimo esforço para demonstrar ao menos um fiapo de inteligência.
Ela parou, assustada.
— Seu grosso!
— Diga-me, quem você era na “civilização”? — Foi a minha vez de
parar e cruzar os braços para frente. — Qual era a sua ocupação?
— Eu sou uma atleta — apoiou as mãos na cintura. — Uma nadadora.
Ela não poderia soar mais tola diante de mim. Soltei uma sonora
gargalhada, tanto que dobrei a barriga para frente. Fazia eras que eu não ria
tão despreocupadamente, por causa de algo que, de fato, era extremamente
engraçado, não de um modo irônico, porém divertido de verdade.
— Uma... nadadora? — questionei entre risadas.
— Do que está rindo? Eu sou Íris Jaques, medalhista de ouro em
mundiais e nas Olimpíadas. Aliás, na última, ganhei três medalhas de ouro,

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nos 100 metros, nos 200 e nos 400 metros medley. Com certeza você deve ter
ouvido falar de mim.
— Não. Nunca — comentei, sorrindo. Saber aquelas informações havia
sido bastante útil. Então, Íris era uma nadadora. Das piores, sem dúvidas. —
E considero hilariante você ser uma nadadora e ter quase se afogado.
— Uma rocha caiu em cima de mim — apontou para trás, onde
ficavam as pedras. — Quer parar de tentar me diminuir? Você é grosso,
antipático e impertinente.
— E você é... nada. — Dei de ombros. Sua expressão de raiva se
intensificou, bem como meu divertimento. — Você não é nada nesta ilha,
Íris. Gostaria que parasse de me seguir e tomasse conta de sua própria vida.
Se não fosse por mim, você já estaria morta há muito tempo.
— Já agradeci por isso. O que quer que eu faça? — Voltei a caminhar e
ela, ignorando o meu pedido, continuou me acompanhando. — Desculpa se
quero sair daqui e voltar pra minha vida. Tenho meus pais, que devem estar
preocupados, e o meu noivo. E você? Aposto que não tem ninguém para
quem voltar!
Duas coisas no que ela disse me fizeram parar. A primeira foi a menção
a um suposto noivo. Então, aquela humana era comprometida. Seu coração já
pertencia a uma pessoa, assim como o coração de outra pessoa a pertencia. A
segunda foi o fato de jogar em minha cara que eu era um ser solitário, como
se não tivesse sido uma opção, uma escolha que fiz e que não me arrependo
de tê-la tomado.
Apertei os meus punhos com força, tentando controlar a ira que
prometia transbordar outra vez dentro do meu ser. Um rosnado simplesmente
atravessou os meus lábios, e foi tão forte que ecoou por toda a ilha. Íris soltou
um berro alto, apavorado, e voou sobre as minhas costas, derrubando-me na
areia. Eu me virei no susto, mas suas mãos e pernas me tomaram de forma

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que a mulher mais parecia um polvo cheio de tentáculos prestes a me abraçar.
— Ouviu isso? — ela murmurou, com o corpo ainda sobre o meu.
Permaneci estupefato, piscando os olhos sem compreender seu rompante. —
Já ouvi esse grito antes. Tem uma fera nesta ilha, Neto.
Finalmente a compreensão me atingiu, embora ainda não entendesse
por que ela estava em cima de mim. Íris julgou meu rosnado feroz como se
pertencesse a uma fera desconhecida. Eu poderia negar, ou mesmo afirmar no
intuito de deixá-la ainda mais amedrontada, mas suas mãos estavam sobre
meu peito e as pernas abertas ao redor de minha cintura. Seus cabelos
molhados e longos, sujos de areia, encostavam ao meu rosto devido à sua
proximidade. Íris se encolheu mais, como se meu tronco fosse a base que a
mantivesse intacta.
Não tive a capacidade de tirar meus olhos dela. Aquele cheiro
impregnado em sua carne tomou minhas narinas e me senti flutuando sobre
as ondas do mar. Com uma mão hesitante, controlada por invisível força
distante da razão, toquei seu rosto assustado até que ela finalmente me
encarou. Olhos claros como as águas límpidas do oceano me observaram de
volta, atentamente. Vi quando o ar saiu entre seus lábios grossos, e percebi de
novo o deslumbramento em sua expressão.
Eu me percebi imaginando como seria tomá-la em meus braços, beijá-
la e arrancar-lhe aquelas vestes que atrapalhavam a minha pele de sentir a sua
ao máximo. Sem que eu controlasse, as ideias se enroscaram na mente até
que senti uma vontade absurda de me colocar dentro dela, de fazê-la minha
de uma forma carnal, selvagem, bruta. Ouvi seus gemidos silenciosos em
meu ouvido e até pude sentir seu ventre se contorcendo em meio a um
poderoso ápice.
No entanto, meu olhar desejoso atravessou seu pescoço e visualizei a
lágrima enfeitando aquele miserável colar. Lembrei-me de que a humana

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tinha um noivo esperando, em vão, pelo seu retorno. Ao voltar a conferir seus
olhos, percebi a crueldade, a infidelidade, a maldade despida em sua alma
podre. Aquela mulher não hesitaria um só segundo antes de trair a pessoa a
quem ofereceu seu coração. Recordei-me de minha própria dor como se ela
fosse mais poderosa do que a última onda conjurada.
Diante de tamanho asco, empurrei a mulher para trás com força
comedida, de forma que ela cambaleou e terminou sentada na areia. Eu me
pus de pé no mesmo instante, observando-a e considerando, mais uma vez,
acabar logo com sua miserável vida. Só não o fiz, talvez, porque não desejava
estrangulá-la enquanto meu membro estivesse rijo. Ela não merecia tal
consideração.
— Não me toque outra vez — avisei em tom de ameaça. Íris continuou
me olhando, parecendo verdadeiramente apavorada. — E, se quer saber, há
uma fera grotesca nesta ilha. Uma fera que adora devorar mulheres
traiçoeiras. Se eu fosse você, tomava muito cuidado.
Virei as costas e prossegui a caminhada a passos largos. Daquela vez,
no entanto, Íris não me seguiu. Não ousei olhar para trás, mas sabia que ela
continuava caída e sabia que também que analisava o meu traseiro sujo de
areia.

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CAPÍTULO 7
Íris

Eu ainda tremia quando Neto sumiu entre a vegetação da floresta, do


jeito que veio ao mundo, coberto apenas pela areia da praia. Meu corpo
queimava e sacudia ao ritmo incoerente da minha respiração. Medo e
excitação pulsavam dentro de mim como duas forças em choque constante.
Só tinha um jeito de aquela batalha ter fim: eu precisava dar voz a minha
racionalidade e ao meu instinto de sobrevivência.
Mas estava difícil fazer meu corpo se acalmar, principalmente pela
reação intensa e perigosa. Não sei o que me deu para eu me atirar em cima de
Neto daquele jeito, esquecendo-me de que ele era um homem e que estava
completamente pelado. Fui insensata por me permitir um contato tão íntimo e
aquele encontro poderia ter terminado de maneira ainda pior.
Naqueles segundos que seus braços me envolveram, e nossas peles se
tocaram, eu me senti protegida da tal fera. Neto era tão grande,
poderosamente alto e forte, que transmitia uma segurança inexplicável.
Minhas mãos percorreram seu peitoral liso e duro, instintivamente, laçando
seu pescoço grosso, e minhas pernas abraçaram sua cintura como se ele fosse
meu bote salva-vidas.
Porém, o que realmente me fez abrir a guarda por um instante foi seu
olhar. As íris bicolores esvaneciam a partir das pupilas de um castanho claro
para um verde escuro. Elas me disseram, sem que Neto precisasse falar, que
tudo ficaria bem, porque eu não estava sozinha. No entanto, havia algo mais
ali, gritando loucamente, até fazer meus ossos vibrarem.
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Neto me desejava, fisicamente, como mulher. A reação de seu corpo
entre as minhas pernas não podia ser mais clara.
E, mesmo que eu me sentisse mal pela fraqueza, não pude ficar
indiferente à sua virilidade. Mentalmente, eu estava consciente de sua
grosseria e seu sarcasmo. Mas, biologicamente, eu o correspondi. Meus olhos
percorreram os detalhes de seu rosto como se o acariciasse. As sobrancelhas
grossas, que contrastavam com a cor de sua pele e sombreavam os olhos
incríveis... A barba por fazer e o bigode que definiam seus traços e
destacavam sua boca... A intensidade com que me olhava me arrepiou da
cabeça aos pés. Quis tanto beijá-lo, que o ar escapou dos meus pulmões com
força.
Foi aí que tudo mudou. Os mesmos olhos doces e amorosos se
transformaram em uma furiosa tempestade. O medo fez morada em mim,
sobrepujando o desejo traiçoeiro, diante de seu olhar assassino. Eu sabia que
ele podia usar toda aquela imponência para me transformar em nada, se assim
quisesse, mas não consegui me fazer fugir, tomada de susto e paralisada de
pavor.
Neto me atirou sobre a areia, jogou uma informação aterrorizante com
a rudeza que lhe era inerente, e se foi, me deixando sozinha, ofegante e
apavorada. Foi impossível não observar sua bunda perfeita coberta de areia
enquanto ele se afastava. Contive um gemido, que era uma mistura insana de
tesão e revolta. Como ele podia ser tão cruel e gostoso? Estávamos na mesma
situação, podíamos ser aliados.
Afastei os pensamentos libidinosos, tentando esquecer seu corpo, sua
ereção e a maneira doce que me olhou. Neto não passava de um embuste e eu
era noiva, pelo amor de Deus! Não podia pensar nele daquela forma, por mais
que a ideia de que meu corpo se acendeu com ele me proporcionava
esperança no amanhã. Fazia muito tempo que eu não reagia sexualmente ao

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Gil. Talvez ter as minhas pernas de volta tenha resolvido o problema, e nada
tinha a ver com o fato de eu me sentir atraída por um grosseirão.
Eu precisava focar em sobreviver e sair daquela ilha, mesmo que Neto
me garantisse que não tinha jeito de escapar. Tinha que haver um modo. Eu
não deixaria sua falta de fé destruir a minha. Talvez ele tivesse perdido a
esperança por ficar tanto tempo sozinho, se transformando em um selvagem
intragável. Talvez nem queira mais sair dali porque não saberia viver em
sociedade de novo.
Fiquei com pena do pobre. O que será que aconteceu com ele esse
tempo todo, naquele lugar estranho?
Olhei ao redor, procurando indícios da tal fera e não encontrei nada.
Resolvi que me manter na praia seria melhor. Eu estava com tanta fome e
sede. Ainda bem que tinha parado de chover e não ventava mais. A roupa
térmica mantinha a temperatura do meu corpo. Vasculhei o céu arroxeado e
tentei, mais uma vez, adivinhar as horas. Era impossível! Eu nem conseguia
localizar o sol!
Estava cansada, mas me levantei e procurei por uma pedra pontiaguda,
que pudesse servir de arma a fim de desbravar a beirada da mata em busca de
matéria-prima. Quem sabe eu tinha a sorte de encontrar comida. Só encontrei
árvores e plantas não frutíferas. Desanimada, recolhi bambus e os levei para a
praia a fim de transformá-los em armas. Enquanto afiava as pontas,
transformando-os em lanças improvisadas, percebi que eu podia fazer um
abrigo para me proteger da próxima tempestade e ainda dar um jeito de
armazenar a água da chuva.
Sem água eu não sobreviveria muito tempo. A comida podia esperar
um pouco, apesar de estar cada vez mais fraca. Minhas pernas já respondiam
bem aos meus comandos de andar e correr, apesar de leves espasmos volta e
meia pelo esforço excessivo. Assim que tudo estivesse pronto, eu iria

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descansar um pouco. Estava exausta demais para aguentar tantas atividades e
emoção em um só dia.
Ou teriam se passado dois? Não fazia a menor ideia.
Passei um bom tempo caminhando cautelosamente pela floresta, sem
me aventurar muito fundo, recolhendo bambus, cipós e folhas imensas. Uma
lança estava sempre à mão caso a criatura desconhecida resolvesse me atacar.
Se ela estivesse com a mesma fome que eu, não tinha chance de sobreviver.
Semicerrei os olhos e pensei na possibilidade de feri-la mortalmente e, quem
sabe, conseguir proteína para me alimentar. Meu estômago roncou alto e eu
soltei uma risadinha.
Folhas se agitaram ao meu redor, como se algo se movesse, e sem
pensar muito, eu apenas atirei a minha lança improvisada.
— Ai!!! — o grito, em vez do que eu imaginava, era totalmente
humano.
— Neto? — eu tremia de medo e nem acreditava que tivesse acertado
alguém por puro instinto, sem nem ver. — É você?
O gigante saiu de entre as árvores parecendo uma delas, só que
andante. Sua cara era de deboche e a lança, que crava em seu braço, foi
arrancada sem um gemido.
— Meu Deus! Me des-desculpe — minha voz falhou ao perceber a
merda que eu tinha feito. — Eu não queria te machucar.
— Me machucar? — retrucou, atirando a lança entre nós, que se fincou
na terra com precisão e profundidade. Aquilo me fez estremecer. Ele devia
ser um exímio caçador, senão não teria sobrevivido por tanto tempo. — Nem
se você quisesse conseguiria.
Seus olhos se estreitaram perigosamente e eu arrepiei todinha com a
ameaça implícita. No entanto, ergui meu queixo, contrariando o que eu sentia
por dentro.

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— Eu não quero, tá legal? — cruzei os braços diante do peito. — E
nem entendo porque temos que ficar cada um em um canto se podemos nos
ajudar.
Neto gargalhou alto, jogando a cabeça para trás, me enfurecendo.
— Você não consegue nem andar sem tropeçar, como pensa que pode
me ajudar?
Ofendida, dei um passo a frente, peguei a lança e segui adiante,
empurrando-o com o ombro.
— Se não pretende me ajudar, então saia do meu caminho, Neto!
— Quem ouve você falar assim, pensa que é uma grande guerreira —
disse no meu encalço, seguindo-me mata adentro.
Senti tanta raiva que podia enfiar a lança em seu coração. Maldito era
aquele náufrago grosseiro!
— Só estamos eu e você aqui, ninguém vai me ouvir, segundo o que
me disse — debochei também. — Isso me faz pensar que eu não devia
confiar na informação de um estranho estúpido feito você!
— Depois eu que sou estúpido. Você não sabe o seu lugar, mulher
insolente!
O tom duro e firme de sua voz vibrou dentro do meu ser, de maneira
assustadora e excitante. Lá estava eu me sentindo estranhamente atraída pela
criatura mais rude que eu tive o desprazer de conhecer. Eu me virei para ele,
parando as passadas duras, e o encarei de perto. Neto parou bem diante de
mim, a menos de um passo de distância, e seu olhar era puro desafio.
— Por algum motivo que desconheço, você esqueceu o que é gentileza.
Talvez a vida solitária nessa ilha tenha te endurecido, talvez você seja só
idiota mesmo. Mas quer saber? Eu não me importo! Só quero sair daqui e, de
preferência, sem cruzar mais com essa sua cara de bunda de novo!
Neto riu outra vez, me deixando ainda mais emputecida.

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— Você não deveria existir — disse entre os risos. — Tanto sua
ameaça, quanto indiferença não significam nada para mim. — Olhou-me da
cabeça aos pés com desprezo evidente. — Você não é nada!
Tomada de uma coragem que desconhecia, em vez de me encolher e
chorar, eu me aproximei mais, tentando peitá-lo, apesar de sua altura
desproporcional.
— Se isso é verdade, o que estava fazendo me seguindo pela floresta,
escondido atrás das árvores? — Apontei um dedo em seu peitoral nu,
afundando-o na carne saliente, ameaçadoramente. — Suas palavras dizem
uma coisa e suas atitudes outra. Você se importa, tanto que está se
certificando de que estou bem, à distância, mesmo que não admita.
Seus olhos se tornaram filetes furiosos.
— Eu podia acabar com o seu sofrimento em um piscar de olhos!
— Então, acabe! — ergui mais o rosto para ele, petulante. — Acabe
comigo!
Neto me encarou, fungando de ódio, por um tempo longo demais. Eu
não arredei o pé, esperando que estivesse certa sobre suas verdadeiras
intenções. Era um risco, mas eu já estava à beira da morte mesmo, sem
comida nem água, cercada por uma fera e um imbecil, que não parava de
falar coisas que provavelmente não tinha coragem de concretizar. Estava de
saco cheio daquela ilha estúpida e daquele homem irônico.
— Você é tão patética que não merece misericórdia — rosnou,
furiosamente.
Frustração se misturou à minha raiva, mas não me deixei abater.
— Faz um favor a si mesmo, Neto: vá se foder e me deixa em paz!
Virei de costas e continuei meu caminho desconhecido pela mata,
pisando com firmeza sobre a grama verde e bonita, e a terra fofa devido à
chuva recente, sem ver nada à minha frente. Meus olhos estavam enevoados

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pelo furor e eu não conseguia pensar em nada. Só sabia sentir aquela mágoa
misturada à ira que me corroia por dentro. Andei, andei e andei até sentir
minhas pernas doerem tanto que tive que me sentar.
Foi então que dei uma conferida à minha volta e não reconheci onde
estava. A fúria havia me deixado cega e, provavelmente, perdida naquela ilha
esquisita. Não conseguia ver o céu e estava escuro. Será que havia,
finalmente, anoitecido ou só encontrara um ponto tão fechado da floresta que
não dava nem para luz entrar? Apavorada com a perspectiva de ser alvo fácil
da criatura que vivia ali, levantei-me depressa e escalei a primeira árvore que
consegui, o mais alto que pude.
Esperava que estivesse segura ali até amanhecer novamente.
Não havia sons de vida na mata, o que era muito estranho. Não havia
bichos. Era como se a fera se alimentasse de tudo o que fosse vivo, e de carne
e osso. Tudo parecia muito saudável, quase artificial. Puxei uma folha e a
picotei até ver a seiva escorrer. Era real, mas brilhava como se o que dava
vida àquela ilha não fosse a terra. Toquei o líquido brilhante e outra luz se
acendeu, quase me cegando. Demorei alguns segundos para entender que era
a gota pendurada em meu pescoço.
No instante em que a toquei, a luz se foi, deixando-me perplexa. Era
como se ela me dissesse que havia uma ligação entre a ilha e ela. Será que foi
isso que aconteceu? A joia milenar que eu carregava me levara até aquele
lugar, que talvez fosse sua origem? Era o que parecia. Olhei para ela entre
meus dedos, tão delicada e frágil, porém, eu sabia o quanto era indestrutível,
ainda mais que um diamante, assim como misteriosa. Ela nunca fora
identificada por qualquer especialista, talvez porque não existisse em nossa
dimensão.
Ergui a cabeça e encarei o horizonte sem realmente vê-lo.
— Não é possível... — sussurrei, incrédula com o rumo dos meus

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pensamentos.
Eu não podia estar em outra dimensão, como aqueles filmes de ficção
científica, podia? Apertei os dedos com força ao redor da pedra, que estava
quente, mas não a ponto de queimar minha palma, e desejei acordar daquele
sonho maluco no qual eu me enfiara.
Mas o que mais explicaria uma ilha desconhecida no meio do oceano,
com um céu arroxeado, um golfinho que falava e um ser esquisito, que vivia
nu e me maltratava como se fosse velho e solitário demais para ter o mínimo
de paciência com uma jovem curiosa como eu?
Só queria entender tudo aquilo, ver algum sentido na loucura que eu
estava vivenciando e descansar na minha cama macia. Mas não podia. Estava
cansada, faminta e sedenta demais para sequer suportar mais um minuto de
olhos abertos. Como minha mãe sempre dizia, nada como uma noite de sono
para que a solução de um problema impossível aparecesse.
Eu me recostei em um galho grosso e amarrei um cipó nas minhas
pernas e na minha cintura para que eu não caísse. E, segurando minha lança,
me deixei adormecer.

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CAPÍTULO 8
Netuno

A ousadia daquela humana me enfureceu a tal ponto que até mesmo as


luzes passaram a me incomodar, portanto, pela primeira vez, o meu reduto
particular conheceu as sombras da noite. Sentia tanta raiva das horas de lua
que não permitia que anoitecesse na ilha, pois eram sempre os momentos em
que eu me deparava com o tamanho de minha própria solidão. A dor cravada
em meu peito tornava-se ainda mais intensa e eu percebia que mais um dia
havia se passado sem que a esperança retornasse.
Até que, enfim, desisti de esperar por qualquer coisa: pelo retorno de
minha fé, por alguém que me fizesse companhia e pela diminuição da dor. As
noites iam e vinham sem que nada se transformasse, então obriguei a mim
mesmo a encarar a luz da manhã para sempre, como se os longos anos que se
passaram fizessem parte do mesmo dia.
Eu estava fazendo o possível para manter Íris viva durante o tempo
planejado, porém sua capacidade de me tirar do sério estava dificultando a
situação. Jamais havia me sentido tão desconfortável dentro de minha própria
ilha, a que construí com o único intuito de me manter longe do mundo de
maneira a tornar minha existência um pouco mais suportável. Porém, aquela
mulher de olhos claros tinha surgido para arrancar de mim todo o
autocontrole que me restava.
Quem aquela mulherzinha pensava que era para falar comigo naquele
tom desrespeitoso? Era muito petulante e vulgar, mantinha um linguajar
inapropriado, incondizente com sua aparência frágil. Ela estava longe de ser
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uma dama educada e gentil. Falando daquela forma, parecia uma vadia
qualquer, como eu sabia que todas as mulheres eram. Sua máscara de donzela
em perigo finalmente fora arrancada.
A ira diante daquele pensamento me fez conjurar uma tempestade,
encomendada unicamente para despertar a mulher que dormia no topo de
uma árvore. Eu me mantive escondido entre os galhos da árvore vizinha
enquanto a observava em um sono facilmente interrompido. Íris pulou de
susto diante de um raio, e contive a vontade de gargalhar. Mal sabia ela que
as intempéries daquela noite estavam apenas começando.
— Quero ver se continuará com esse seu ego inflado, Íris... —
murmurei aquelas palavras na palma de minha mão e depois as soltei ao
vento.
Uma nova rajada de ar levou meu recado aos seus ouvidos, e percebi
Íris assustada, olhando ao redor incansavelmente, porém sem conseguir me
localizar. Provavelmente achou que um fantasma tinha lhe dito tais palavras.
— Garota tola... — balbuciei e mirei o céu. Gotas fartas de chuva
passaram a deixar o meu corpo inteiro ensopado. Girei o tridente, o qual
resgatei mais cedo, e as nuvens giraram conforme a minha vontade. — Vai
conhecer a força da destruição.
Um verdadeiro tufão se formou e eu permiti que a fúria do vento se
apossasse da ilha sem a menor piedade. Íris soltou vários gritos conforme as
árvores ao redor tombavam. Cada berro de pavor, para mim, fazia parte de
uma composição, a trilha sonora para a passagem do caos. Abri um sorriso
regozijado pelo simples fato de fazê-la sofrer.
A mulher agarrou-se no tronco da árvore com força, sem deixar de
gritar alucinadamente.
— SOCORRO! SOCORRO, ALGUÉM ME AJUDA!
O tufão passou muito perto dela, furiosamente, e só não permiti que se

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aproximasse mais porque seria uma morte demasiadamente rápida. Íris
continuou aos berros mesmo depois que o forte vento tomou conta do outro
lado da ilha. Percebi que a mulher tremia e chorava, o que me deixou ainda
mais contente.
Ela olhou ao redor, choramingando feito a mulherzinha patética que
era. Decidiu descer da árvore e demorou longos minutos para concluir a
tarefa, deixando-me bem impaciente. Percebi que Íris não duraria nem um dia
em uma ilha deserta comum; era fraca e tinha medos tolos. A chuva ainda
caía sem qualquer trégua, os raios enfeitavam o céu com seu poder
eletrizante.
Desci da árvore com o intuito de continuar vigiando-a. Fui sorrateiro o
suficiente para me manter sempre perto, porém nunca as suas vistas. Não
vacilaria novamente. Daquela vez, estava muito mais preparado e disposto a
jamais ser descoberto.
Íris abraçou o próprio corpo e se apoiou em um tronco largo de uma
árvore. Seu queixo começou tremer tão forte que fui capaz de ouvir o barulho
de seus dentes se chocando. Sorri ao perceber que estava com frio. A humana
tinha necessidade fisiológica de se manter aquecida, mas ela nem mesmo foi
astuta o bastante para conseguir fazer fogo.
Com o movimento de um dedo, eu trouxe o tufão para perto
novamente, espalhando mais medo e frio. Íris soltou outro grito e se encolheu
perto do tronco, agarrando-se nas plantas e no que mais encontrou em sua
frente. Eu tinha noção de que o ar estava congelante, mas meu corpo imortal
não sentia o menor incômodo. Seu queixo ainda batia ruidosamente.
— SOCORRO! — ela voltou a gritar. Não contive a vontade de deixar
o tufão mais próximo, quase a atingindo em cheio. Areia, plantas, galhos e
folhas se reviraram à nossa volta. — NETO, SOCORRO!
Aquele pedido desesperado de ajuda, e estranhamente direcionado a

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mim, deixou-me empertigado. Franzi o cenho ao máximo, confuso com
aquela mulher. Depois de ter me falado tantas coisas feias, e de eu tê-la
humilhado de muitas formas, ainda teve a coragem de me pedir socorro? Ou
aquele ser era ignorante demais ou possuía certa humildade. Talvez fosse
puro interesse, as mulheres gostavam de ter uma figura masculina do lado
para resolver todos os problemas que, em sua maioria, eram causados por
elas mesmas.
Com um movimento curto usando o tridente, o tufão ganhou o mar
aberto, onde giraria até perder a força. Íris continuou chorando em desespero,
tremendo de frio e, naquele instante, contorcendo-se para conseguir beber a
água que se aglomerava nas folhas e caía na terra em diversos filetes. Sua
condição me pareceu tão miserável que uma centelha de misericórdia se
instalou em mim.
Considerei minha atitude exagerada para o primeiro dia. Devia ter
pegado um pouco mais leve na minha ânsia de lhe causar mal. Íris tinha
muito que sofrer ainda, eu não precisava ser tão definitivo logo no início.
Poderia deixar o pior para depois. Por enquanto, restava-me lhe dar algum
conforto para que suportasse o frio, caso contrário poderia ter uma
hipotermia. Seria imprudência e tolice de minha parte deixá-la morrer por um
motivo tão estúpido.
Fiz a tempestade completa se agrupar em um só raio, que atingiu uma
árvore próxima em cheio. Uma grande faísca se transformou em labareda em
poucos segundos. A chuva foi embora e o fogo se manteve constante, de
forma que Íris correu para perto dele. Esfregou os braços e as mãos às
pressas.
De repente, ouvi uma longa risada escapulir entre seus lábios e o meu
coração sofreu um aperto sufocante.
— Obrigada! — Íris gritou para o céu. Minha confusão se intensificou

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ainda mais. Eu não esperava qualquer agradecimento, principalmente porque
os humanos, de forma geral, tendiam a ser extremamente ingratos. — Muito
obrigada!
— A quem está agradecendo? — pensei alto demais, e só percebi que
estava muito perto dela quando Íris virou para trás, um tanto assustada.
— Neto? — fez uma careta estranha, como se eu não passasse de um
pedaço de lixo desprezível. Íris cruzou os braços e voltou a encarar a chama.
— O que faz aqui?
Precisei pensar rápido para lhe dar uma boa resposta.
— Pensei ter ouvido seus gritos. — Ela permaneceu calada. Eu me
senti um imbecil por ter me deixado aproximar novamente. No entanto,
minha curiosidade com relação a ela tinha aumentado e talvez aquele fosse o
momento de fingir ser seu amigo. Não sabia por qual motivo, mas meu asco
diante de sua presença diminuíra. — Por que chamou por meu nome?
Íris resmungou algo que não compreendi.
— A quem estava agradecendo, Íris?
— Eu não sei, a Deus. Tenho que acreditar em alguma coisa, não é?
Estava com frio e do nada um raio caiu e essa fogueira apareceu.
— Acha que foi um deus que fez isso? — perguntei em um murmúrio,
aproximando-me mais. Queria saber exatamente até onde a sua fé alcançava.
Apesar de meu corpo não ter sentido frio, era aconchegante o calor que
emanava da labareda.
— Já falei que não sei — Íris deu de ombros, porém sua resposta não
me deixou convencido de maneira alguma. Olhou-me de soslaio, como se
evitasse me encarar. — Não é possível que você não sinta frio estando nu
desse jeito!
— Meu corpo se mantém devidamente acostumado.
— O que é isso? — Íris apontou para o tridente em minha mão. Eu

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havia me esquecido completamente dele.
Encarei a ponta dourada da fonte do meu poder, refletindo sobre uma
boa resposta, uma que convencesse.
— Como acha que me mantenho vivo diante da constante presença de
uma fera? — Tornei a olhá-la e Íris parecia impressionada. Inflei o peito,
sentindo-me um bravo guerreiro. — Criei esta ferramenta para me proteger.
— Parece de ouro... — ela fez menção de que tocaria no tridente, mas o
afastei no último instante. Sua mão permaneceu no ar.
Vi sua face brilhando e enxerguei a ganância inerente aos humanos em
seu olhar deslumbrado. Íris, como todas as mulheres e homens, fariam
qualquer tipo de atrocidade para obter tesouros. Eles enganavam, ludibriavam
e até matavam para acumular bens materiais.
— É feita de uma rocha existente do outro lado da ilha — expliquei
depressa, admirando a minha própria imaginação para inventar mentiras com
a mesma facilidade dos humanos. Diminuir o valor de meu tridente serviria
para mantê-la longe dele. — Entretanto, lá é perigoso. É onde a fera habita a
maior parte do tempo.
Manter Íris daquele lado da ilha era uma ótima ideia. Havia certos
lugares que eu não permitiria que ela alcançasse jamais.
— Como é essa fera? Já a encontrou?
— É grande... — balbuciei, imaginando como seria descrever a raiva
que morava em meu peito. — Enorme. Com dentes pontiagudos, afiados.
— É tipo um leão?
— É uma espécie de monstro disforme, com a boca do seu tamanho.
Sim... Ele a engoliria com extrema facilidade.
— Sério? — Íris se empertigou, olhando ao redor de um jeito
desconfiado. Entretanto, semicerrou os olhos. — Você não está tentando me
assustar não, né?

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— Você ouviu o horrendo rosnar da fera, não lembra? Não estou
tentando assustá-la, apenas mantê-la atenta ao perigo.
— Tudo bem, Neto — Íris se sentou em uma pedra larga e soltou o ar
dos pulmões. — Só não entendo por que veio me ajudar. Não pareceu nada
disposto a prestar socorro mais cedo. E ainda foi muito ignorante.
Respirei fundo para manter a compostura. Precisava aproveitar que
meu desconforto diante dela estava suportável. Eu tinha muito para saber
sobre a humana, e me manter perto era uma alternativa boa. Só precisava
continuar controlando os meus nervos.
— Desculpe-me pela indelicadeza. — Eu me sentei ao seu lado sem me
importar com a nudez. Ela, no entanto, pareceu bem incomodada. — Não
costumo lidar com mulheres sensíveis.
— Duvido que saiba lidar com qualquer mulher... — Íris sussurrou,
revirando os olhos.
— O que quer dizer com isso?
— Nada não. — Ela olhava para frente de forma meio estática, ainda
evitando virar o rosto na minha direção. Creio que minha presença a
constrangia, o que me deixava feliz. Era muito mais aceitável que a mulher se
sentisse desconfortável comigo, não o contrário. — Vai me dizer onde é o seu
abrigo?
— Não há abrigo, Íris.
— Como assim? — Ela finalmente me ofereceu seu par de olhos claros.
— Não tem abrigo? Uma caverna, uma cabana? Onde você dorme?
Abri os braços, apontando para a nossa volta.
— A ilha é o meu abrigo.
— Cara... — Íris respirou fundo, ruidosamente. — Ou você é um
preguiçoso ou muito burro. Como passou anos na ilha sem um abrigo sequer?
— Desta forma você me ofende. — Ainda que eu estivesse mentindo,

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fiquei extremamente irritado com o modo como ela se direcionava a mim.
Era como se não me temesse, como se eu não indicasse qualquer perigo. —
Sou naturalista. Escolhi viver do jeito que a ilha proporcionou.
— Amanhã de manhã começamos a construir o nosso abrigo — Íris
definiu sem me consultar, em um tom mandão que me deixou embasbacado.
Ela só podia se achar uma deusa, uma rainha. Não era possível que seu ego
chegava tão alto. — Depois, construiremos um barco.
— Pra quê? — Fiz uma careta enquanto ela se levantava, cercava a
fogueira com pedras para não se alastrar, e se deitava perto do fogo,
equilibrando a cabeça numa rocha menor.
— Vamos sair daqui, Neto. — Íris soltou um bocejo. — Agora, vou
dormir. Por favor, não se aproxime, não tente fazer nada comigo.
Fiquei ainda mais confuso.
— Por que acha que eu faria alguma coisa?
— Não sei, Neto, você é um homem desconhecido e nu. Estamos
sozinhos numa ilha deserta e eu não estou a fim de ser estuprada. Boa noite.
Continuei a observando. Íris tentou encontrar alguma posição
minimamente aconchegante sobre a vegetação molhada. Não lhe ofereci
nenhuma resposta porque jamais havia me passado pela cabeça abusar de seu
corpo sem sua permissão. Era um tipo de maldade impensável até para mim.
Assisti ao seu sono durante longas horas. Analisei seu corpo, o aspecto
da pele, o rosto que parecia desenhado. Imaginei como seria tomá-la à força,
porém cada ideia que atravessava minha mente causava-me repulsa não pelo
seu corpo, mas pela minha suposta atitude deplorável.
Refletir sobre aquilo me fez questionar se eu não estava sendo bondoso
demais. E me fez pensar também se eu seria capaz de ser tão mal.

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CAPÍTULO 9
Íris

Acordei me sentindo revigorada. Aquela fogueira veio bem a calhar,


porém, já estava extinta e eu não tinha mais nenhuma fonte de calor para a
próxima tempestade. Estava mais do que na hora de construir um abrigo.
Balancei a cabeça ao me recordar que Neto, além de andar nu pela ilha, nunca
havia feito um abrigo. Homens! Se não fôssemos nós, mulheres, na vida
deles, jamais teriam saído das cavernas.
Era também menos solitário saber que havia outro ser humano com
quem conversar e dividir a tarefa árdua de sobreviver naquele lugar bizarro,
mesmo que fosse um ogro em forma de homem. Não sabia como seria se eu
estivesse completamente só, como Neto ficou por tanto tempo. Talvez eu
reagisse ainda pior que ele. No entanto, havia esperança em mim o bastante
para nós dois, caso ele realmente tivesse desistido de tentar voltar para casa.
Eu queria fazer o melhor com a pior experiência da minha vida, que era
estar perdida em uma ilha desconhecida com um total estranho. Precisava
acreditar que por baixo daquela couraça de rudeza havia um homem perdido
e machucado, que necessitava ver uma luz no fim do túnel. Talvez por isso eu
tenha ido parar lá, para ajudá-lo a ter fé outra vez.
Estava arrependida por ter mandado que se fodesse, mas estava de saco
cheio de aguentar sua grosseria gratuita. Acreditava que em qualquer situação
a gentileza deveria ser o primeiro gesto, porém, também não dava para baixar
a cabeça e engolir tanto desaforo sem reagir. Desculpe, mundo, mas sou
apenas uma humana, lutando para não esmorecer, e Neto tornava tudo mais
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difícil. Eu explodi, evidentemente. Cheguei ao meu limite e extravasei minha
ira. Esperava que seu humor tivesse melhorado durante a noite.
Sim, havia escurecido, até que enfim. Concluí que se passara somente
um dia, mas que dia. Parecia pelo menos três de tão longo. Tudo aconteceu,
me dando uma amostra do caos que seria viver naquele lugar. Era preciso dar
um jeito de sair dali antes que o clima estranho me enlouquecesse ou até
mesmo adoecesse. Eu me lembrei da regra de três: o ser humano consegue
sobreviver três minutos sem ar, três dias sem água e três semanas sem
comida. Minha urgência era armazenar água.
No caminho de volta para a praia, carregando comigo a minha lança,
fui prestando atenção aos detalhes, procurando sinais para me orientar, e
sorvi a água das folhas que se encontravam carregadas pelo líquido precioso.
Olhei para o alto dos coqueiros à beira da areia, percebendo que havia
tomado o rumo correto, e não vi um coco sequer. Será que Neto já havia
bebido e comido todo o fruto disponível na ilha? Não era possível!
Finquei meus pés na areia macia e branquinha e olhei a imensidão do
oceano, respirando a maresia profundamente. Era incrível estar ali, apesar de
assustador. Confesso que metade de mim estava amando as “férias” forçadas.
Dar um tempo dos treinos, que me consumiam demais, de Gil e dos meus
pais, que me cobravam e se preocupam a todo instante, era um alívio enorme.
Ali eu me sentia estranhamente livre.
Eu estava cheia de terra por causa da tempestade e de dormir no chão
úmido, e precisava muito de um banho. Estiquei meus braços atrás das costas
e desci o zíper da minha roupa térmica, revelando parte do meu maiô. Desci o
neoprene com muito mais facilidade pelas minhas pernas longas do que
quando coloquei, e corri para o mar.
Uma onda quebrou nas minhas coxas e aproveitei a profundidade para
mergulhar de cabeça. Meu cabelo estava cheio de areia e não ficaria melhor

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depois daquele banho em água salgada, mas era minha única alternativa.
Aproveitei para lavar também a roupa de mergulho, para usar quando
necessário, e me deliciei com o clima gostoso e a claridade vibrante, antes de
retornar para a areia.
Estendi a roupa de neoprene em uma rocha para secar e, enquanto
caminhava, torci meus cabelos a fim de remover o excesso de água. Foi
somente quando eu me aproximava do ponto em que tentei manter um sinal
de socorro que notei um leve movimento entre as árvores. Paralisei com
medo de que fosse a fera. Abaixei na velocidade da luz e peguei uma pedra,
armando-me e atirando-a.
— Ai — gemeu uma voz conhecida. — Estou cansado de ser atingido
por você.
— Neto? — Meu Deus! Quantas vezes eu ia atacá-lo sem querer até
sairmos dali? — Desculpe! — coloquei as mãos na cintura, meio
constrangida e meio irritada, vendo-o surgir dentre a folhagem espessa. —
Por que você fica se escondendo desse jeito? Sabe que tem uma fera nessa
ilha e eu preciso estar preparada para me defender.
Algo nele me chamou a atenção e logo notei que estava vestido com
um calção de banho, mantendo aquele peitoral enorme ainda despido.
— Eu a vi se banhando e achei melhor deixá-la à vontade.
— Ah! Você está vestido! — foi a única coisa que consegui comentar.
Nem me dei ao trabalho de agradecer pela gentileza ao me dar privacidade,
mesmo que eu não fosse tirar o maiô por nada nesse mundo.
— Nem sempre fui um homem nu — ele retrucou, olhando-me com
aquela impaciência que lhe era característica. — Nem você sempre será uma
mulher vestida — salientou apontando para meu corpo, bastante exposto na
roupa de banho.
Foi involuntário, porém, senti meu rosto queimar. Não sei se de

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vergonha ou culpa. Eu o havia acusado de ser um potencial estuprador e
naquele momento usava uma quantidade mínima de pano sobre o corpo. Dei
de ombros mentalmente, me lembrando de que a culpa nunca era da vítima,
por mais que ela estivesse seminua.
— Não pretendo ser uma mulher nua nessa ilha, se é isso que está
insinuando. Meu maiô é roupa o bastante enquanto a outra seca — sinalizei
para a pedra na qual o neoprene secava. — Aliás, bom dia — recordei-me de
ser educada. — Dormiu bem?
— Eu não durmo, Íris.
— Nunca? — arregalei os olhos, estupefata.
— Não sinto necessidade.
— Nem de comida ou água? Você sabe se tem alguma fonte de água
doce por perto? Preciso garantir pelo menos água antes de começarmos a
construir o abrigo.
— Vai mesmo perder tempo com um abrigo?
— Perder tempo? — reclamei, irritada. — O que você faz nessa ilha de
tão importante que não pôde construir um mero abrigo para protegê-lo da
chuva?
— Eu gosto de chuva... E de raios! — seu olhar era selvagem e
matreiro.
Um misto de medo e atração correu por meu corpo diante dele.
— Pois eu não gosto de nenhum dos dois — fui incisiva.
— Percebi — esnobou, abrindo um sorriso de satisfação, muito perto
do cruel.
— Você vai me ajudar a construir um abrigo, que vamos dividir, é
claro?
— O quê?! — seus olhos se arregalaram tanto que o verde das íris
quase foi engolido pelas pupilas dilatadas.

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— Prefere mesmo ficar peladão debaixo da chuva? — minha vez de
provocá-lo, seguindo atrás de bambu para começarmos a tarefa. Se ele não ia
me falar nada sobre água, eu teria que dar um jeito de armazenar. — Se ficar
doente, eu não vou cuidar de você.
Neto me seguiu de perto, com suas passadas longas e firmes.
— Eu nunca fico doente, senhorita.
— Tá bom, mister perfeito!
Ele não respondeu e não olhei para cara dele, adentrando na floresta em
busca de bambu e cipó, duas coisas que havia em abundância naquela ilha.
Como ele não falou mais nada, também fiquei calada. Não estava a fim de
brigar. Queria que tivéssemos uma convivência pacífica. Gostei também que,
mesmo que não tenha concordado verbalmente em me ajudar, não se recusou
a carregar a matéria-prima que eu recolhia pelo caminho. Seus braços eram
realmente fortes. Ele não reclamou hora nenhuma.
Voltamos para a praia em silêncio e fui orientando-o. Amarramos os
bambus uns nos outros com o cipó para construir paredes e um telhado.
Passamos um bom tempo em total silêncio, fincando os bambus em terreno
menos arenoso o mais profundamente possível, e aproveitamos a encosta
pedregosa como parede de contenção. Quando terminamos, solicitei seu
auxílio para buscar grandes folhas de coqueiro, que serviriam para forrar o
teto e o interior, a fim de mantê-lo vedado.
Nessa expedição precisei da força e da altura daquele gigante para
alcançar as folhas verdes e frescas no alto das árvores. Trocamos de lugar.
Enquanto ele as recolhia, eu carregava. Neto fazia tudo com uma seriedade e
concentração desconcertantes, como se fosse muito importante. Aquilo me
arrancou um sorriso besta, que ele notou. Toda vez que ele me entregava uma
folha, conferia se eu ainda sorria e aquilo só fez minha alegria aumentar.
Por causa de sua distração com meu sorriso, nossas mãos se esbarraram

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e um calor insuportável se espalhou pelo meu corpo, queimando-me por
dentro. Meu sangue ferveu e eu corei de contentamento. No entanto, tudo se
foi assim que Neto se afastou com tanto asco, distorcendo seu rosto bonito,
que me senti suja. Um passo mais distante e mais focado do que nunca, ele
continuou a tarefa, desprezando-me completamente.
Eu não sabia o que era pior: sua crueldade ou repulsa.
Neto sempre me dava mil razões para odiá-lo, mas eu só precisava de
um motivo para tê-lo como amigo. Fazia um esforço enorme para entender as
pessoas, para ser empática, mas quando alguém luta tanto contra sua boa
vontade, o que se deve fazer? Desistir? Será que ele, algum dia, conseguiria
ser sociável comigo? Tinha que haver um jeito de perfurar a armadura grossa
que ele vestia para se proteger sabe-se lá de quê.
Sermos os únicos sobreviventes naquela ilha maluca não era razão
suficiente para ficarmos unidos e cooperarmos um com o outro? Eu provaria
a ele que o melhor que tínhamos a fazer é permanecermos juntos e tudo
ficaria bem no final. Contra sua aversão eu seria paciente, humilde e
determinada. Talvez ele só precisasse ser tratado como gente para voltar a
agir como uma pessoa educada.
Voltamos ao abrigo, cobrindo-o, amarrando as folhas e calafetando
com uma mistura de barro e folhas amassadas que eu fiz. Pedi ao Neto que
ficasse com o telhado enquanto eu selava as paredes. Nosso trabalho rendeu
tanto que me distraiu da minha sede e fome constantes. Sabia que precisaria
ser refeito, principalmente depois de uma chuva, mas eu esperava que fosse
provisório.
Depois de um descanso merecido, faríamos jangadas, então voltaríamos
para nossos lares e nossas vidas.
Aquele pensamento me deixou tão feliz que eu me vi observando
aquele homenzarrão com um sorriso besta nos lábios de novo. Eu o levaria de

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volta para casa, onde, provavelmente, seus parentes, e talvez uma namorada,
o esperavam, sem perder a fé de que um dia Neto entraria novamente pela
porta da frente. Meu coração se inflou de emoção e meus olhos se encheram
d’água.
Sabia que era assim porque Gil e meus pais jamais desistiriam de mim.
E se fosse o contrário, eu jamais desistiria deles.
Uma travessura preencheu meu cérebro e não ponderei antes de
permitir que minha mão lançasse a massa de barro nas costas largas e nuas de
Neto. Ele paralisou o que estava fazendo e joguei mais uma bola, acertando
sua lombar. O gigante se virou para mim, devagar. Porém, antes que abrisse a
boca ou reagisse, atirei mais barro, que acertou bem a sua cara de bravo.
Gargalhei, jogando a cabeça para trás e me contorcendo toda.
Parei no instante em que uma bola de terra atingiu minha barriga.
Estreitei os olhos e me curvei, ao mesmo tempo em que o via imitar meus
gestos.
— Guerra de barro! Ah! — gritei, enquanto lançava mais e mais massa,
cobrindo o homem sério da cabeça aos pés.
Eu também não fiquei melhor. Neto atirava bolas em mim até mais
depressa do que eu conseguia retribuir. Fui girando em meu próprio eixo para
me defender, e acabei coberta totalmente daquela gosma nojenta. Comecei a
rir, achando extremamente engraçado que só os olhos e os dentes dele
estivessem brancos.
— Você está parecendo um monstro — falei em voz alta, sem
conseguir conter as risadas, que amansaram meus golpes.
Neto não parou.
— Devo admitir que a senhorita ficou bem mais atraente desse modo.
— Ah! Seu... seu... — armei um contra-ataque, já que a palavra não me
vinha, enrolando uma grande bola de terra nas mãos. — Seu besta!

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Quando equilibrei a massa disforme na mão a fim de lançá-la, Neto
correu na minha direção, segurando meu pulso e me jogando ao chão com
seu peso. Sua risada soou como um grunhido, porém, sua boca se esticou
tanto, mas tanto, que eu tive certeza de que ele estava se divertindo tanto
quanto eu. Não conseguia parar de olhar para aquele sorriso e tive o desejo
inesperado de beijá-lo.
— Do que a senhorita me chamou?
— Besta? — respondi, revirando os olhos e rindo de montão, sem
medo algum, e afastei o pensamento sobre beijo que me acometeu.
— Vou lhe mostra quem é... — Neto não conseguiu terminar porque
enfiei terra em sua cara, aproveitando seu discurso para soltar minha mão.
Ele cuspiu terra sem me soltar e eu me debati, tentando me livrar. Ele
era bem pesado com aquilo tudo de músculos, espalhados por seus dois
metros de altura.
— Me solta! — eu me fingi de assustada.
Assustado, Neto saltou, ficando de pé em um segundo, e me estendeu a
mão.
— Eu a machuquei, Íris? Desculpe-me, pensei que fosse algum tipo de
chacota.
Aceitei sua mão, segurando-a com firmeza, mesmo quando fiquei de
pé.
— Relaxa, Neto, estou ótima. Eu estava só brincando. Vamos — eu o
puxei, contente por ele não ter sentido a mesma repulsa de antes com nossa
intimidade. — Precisamos tirar essa terra do corpo antes que seque.
Eu adorava nadar no mar e não precisava de desculpas para tal, mas lá
estava eu, justificando sua mão na minha com a coisa mais natural que duas
pessoas perdidas e amigas poderiam fazer. Só que meu corpo reagiu àquele
toque com tremendo fervor, como da outra vez. Minha pele reconheceu a

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dele e teve o mesmo deslumbramento.
Só que eu era noiva e não podia me sentir atraída por outro homem,
muito menos por aquele perdido e desconhecido, que nada falava sobre si
mesmo.
Meu braço ricocheteou quando Neto parou o passo, assim que percebeu
para onde eu o puxava.
— O que foi? — perguntei, virando-me para ele.
Sua expressão era indecifrável.
— É melhor a senhorita se banhar sozinha.
Agitei a mão no ar, ignorando seu cavalheirismo inédito.
— Não se preocupe, Neto, eu não ligo de tomar banho com você.
No entanto, ao tentar puxá-lo novamente, ele soltou minha mão daquele
mesmo jeito de antes, como se queimasse a dele.
— Eu não gosto do mar.
— Não? Então como faz para se lavar? — perguntei, esperançosa de
que me contasse sobre uma fonte de água doce.
— Não interessa! — seu cenho se franziu e sua grosseria deu as caras
novamente.
Fiquei olhando para ele, vendo-o se apressar para adentrar a floresta,
todo melado de barro, e senti nojo ao pensar que Neto não devia tomar
banho, pelo menos não com frequência.
Meu Deus! Que tipo de homem ele era?

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CAPÍTULO 10
Netuno

Íris havia me deixado em um estado profundo de confusão com aquela


ideia tola de construir um abrigo. Por vários instantes, não sabia se a ajudava
de fato ou se destruía tudo com minhas próprias mãos, com o único intuito de
impedi-la de se proteger durante as frias madrugadas. Depois que, enfim,
decidi ajudá-la — porque seria muito mais doloroso destruir o abrigo quando
este estivesse pronto —, percebi o modo diferenciado como me observava.
Aquela humana, mesmo diante de tantas intempéries, ainda mantinha
um senso de humor fora do comum. Entrei em sua brincadeira sem que
qualquer raciocínio lógico me fizesse recuar, e, por fim, restou-me apenas o
arrependimento por ter lhe dado, por um segundo, a vantagem da dúvida. Eu
sabia que todas as mulheres não passavam de feiticeiras, mas não fazia ideia
de em que momento Íris tinha soltado o seu feitiço e isso me intrigava. Além
de, claro, aborrecer-me profundamente.
Seu sorriso matreiro alcançava os olhos escuros claros e parecia
iluminar tudo a sua volta, como o surgimento de um raio de sol escaldante
após uma longa e solitária noite. Fazia eras que eu não sabia o que era rir
despretensiosamente, sem que houvesse qualquer situação de perigo por mim
causada. Permitir que aquela humana me fizesse rir passou a me causar
extrema vergonha. Se ela não tivesse me chamado para um banho ao mar e
me lembrado de quem eu realmente era, provavelmente eu ainda estaria rindo
feito um patético.
Enquanto remoía meus erros e seguia floresta adentro, pensava em seus
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modos gentis e, ao mesmo tempo, corajosos. Íris trabalhou sem a preguiça
inerente aos humanos, sem qualquer reclamação ou negatividade. Entretanto,
o que mais me perturbava era compreender sua ausência de medo ao me
encarar.
Já estava mais do que acostumado a ser alvo de extremo receio. As
criaturas marinhas temiam a minha presença porque, nas últimas eras, eu
levava o caos para onde quer que fosse. Se elas não me respeitavam mais
como um ser vivo supremo, eu as obrigava a respeitar meus poderes de deus
de todo o oceano. Havia feito o possível para não ser ridicularizado, e a força
bruta, combinada com várias demonstrações dos desastres que eu podia
conjurar, me foram armas cruciais para manter a ordem entre os meus.
Eu ainda não havia decidido se o fato da Íris não me temer era uma boa
ou uma péssima notícia. Ter sua confiança era um de meus objetivos, pois só
quem confia cegamente tem a capacidade de ser decepcionado no fundo de
sua alma. Por outro lado, o meu orgulho jamais me abandonava e me fazia
almejar ser odiado, temido e respeitado pela força de meus poderes. Os
pensamentos que nublavam a minha mente permaneceram confusos durante o
longo tempo que utilizei para chegar à gruta.
Atravessei uma cortina de pedras justapostas, de modo que dificilmente
um olho destreinado encontraria, ainda que estivesse bem em frente a ela. Um
humano consideraria aquela apenas uma rocha grande, localizada no centro
da ilha como se tivesse caído ali pela simples expressão do acaso. Caminhei
entre as passagens que mais se assimilavam a um labirinto, até que, enfim,
alcancei um imenso salão. A fonte de água doce formava um imenso lago de
água tão cristalina que brilhava.
Respirei profundamente antes de retirar minhas novas vestes humanas,
que naquele momento se encontravam sujas de areia molhada.
Completamente despido, dei passos vagarosos na direção da fonte e me

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deixei mergulhar na água fria e calma, muito diferente do mar. Ali, eu me
sentia muito mais protegido, longe de todas as criaturas que me aborreciam,
exceto uma.
A cauda dourada surgiu como um passe de mágica, o que facilitou o
mergulho. A água levou a sujeira do meu corpo em questão de segundos,
limpando-me e refrescando-me. Alcancei as profundezas daquela fonte
natural, encontrando mais rochas e me regozijando com a ausência de
animais insuportáveis. Já bastava ter que lidar com alguém que me tirava do
sério constantemente. Apenas ele era o bastante para me fazer ter o desejo de
permanecer longe da gruta, porém meu dever era maior que qualquer
desagrado e eu tinha um objetivo grandioso ao mantê-lo longe do oceano.
— Finalmente, hein? — sua voz se fez presente e revirei meus olhos
tão logo o localizei, nadando em minha direção. Ele tinha crescido
drasticamente em pouquíssimo espaço de tempo. — Pensei que me deixaria
aqui sozinho para todo o sempre.
— Pensei que Anfitrite vinha lhe visitar diariamente — comentei,
aproximando-me apenas para me certificar de que estava saudável. O jovem,
com a cauda tão dourada quanto a minha, já tinha quase o meu tamanho. Só
precisava engordar um pouco mais, era um ser ranzinzo e que não colocava
medo nem em um golfinho. — Ela não está obedecendo às minhas
condições?
— Claro que está, mas é diferente. O senhor crê que não necessito de
sua presença, mas é uma inverdade. Preciso de uma referência masculina e
arrogante para ver se aprendo a me comportar como um ogro igual a você.
Soltei uma risada sem graça, porque se começasse a reclamar,
certamente me arrependeria. Nenhuma discussão que tivemos havia sido
proveitosa para o meu lado. Anfitrite encontrava um modo de protegê-lo até
de mim, de forma que o moleque crescia cada segundo mais jocoso e

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impertinente.
— Penso seriamente em impedir Anfitrite de visitá-lo por uns bons
anos — alertei com a voz ameaçadora, e ele apenas sorriu. Talvez acreditasse
que eu seria incapaz de tal ato, porém ele precisava conhecer melhor os
limites de minha crueldade. — A solidão, em certos casos, é a melhor opção
para uma educação apropriada. Com mais tempo para o raciocínio, talvez
você retire de sua face essa expressão de escárnio.
— Sei que o senhor é o fodão do pedaço e pode fazer o que quiser, mas
não se esqueça de que precisa de mim tanto quanto eu do senhor — ele falou
aquela verdade em um tom ameno que só me deixou mais irritado.
— Onde está aprendendo essas palavras indecorosas?
— Qual? Fodão? — o moleque riu. — Estou longe de circulação, mas o
mundo sempre dá um jeito de chegar até mim.
— Está usando seus poderes levianamente, só para variar —
resmunguei, nadando até o topo de uma rocha grande. Ele me seguiu já
sabendo que seria rechaçado. — Não ouse pensar nessa possibilidade.
Permaneça aqui.
— Poxa, Netuno, só uma nadadinha no mar. Sinto falta de água
salgada.
— Você nunca conheceu a água salgada, como pode sentir falta do que
não conhece?
— Foi onde nasci. Ainda me lembro muito bem. O senhor nem era esse
deus mal-amado que é hoje.
— Basta! — bufei, irritado. — Afaste-se, Tritáo. Não me deixe
arrependido por tê-lo visitado.
A criatura ficou resmungando, mas se manteve afastado em obediência.
— Grande visita essa sua. Não dura nem cinco minutos. O senhor não
me suporta, seja sincero.

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Revirei os olhos mais uma vez e cruzei os braços em frente ao meu
tronco.
— Ótimo, não lhe suporto — desabafei sem refletir sobre as
consequências. Seu olhar mudou junto com a expressão de sua face, e pude
visualizar uma profunda tristeza emanando dele. Tritáo me deixou
arrependido pela minha grosseria. — Desculpe-me. Falei apenas aquilo que
você desejava ouvir.
— O senhor nada sabe sobre os meus desejos. Se soubesse, jamais me
deixaria trancafiado no meio de uma ilha imunda, criada para que você possa
chorar suas pitangas e ficar eras inteiras de mi-mi-mi.
Franzi o cenho, desconfiado.
— Onde está aprendendo essas expressões?
Tritáo bufou, impaciente.
— Não importa. Deixa pra lá. O senhor nunca vai me compreender.
Eu o olhei de forma desconfiada por alguns instantes. Tritáo sequer se
despediu, nadou para longe de mim sem olhar para trás. Eu já estava
acostumado a receber seu desprezo e má-criação gratuitamente. Porém,
daquela vez, suas maneiras de portar-se me deixaram extremamente
intrigado. O garoto estava crescendo e mudando, logo me odiaria
irreversivelmente e eu nada podia fazer a respeito além de continuar
protegendo-o, pois era o meu crucial dever.
Encontrei a rocha certa e adentrei uma abertura estreita, tomada pela
escuridão. Aquele caminho era conhecido apenas por mim e Anfitrite. Nadei
durante algum tempo entre rochas justapostas e passagens das mais secretas.
Finalmente, encontrei a última abertura que dava diretamente para o mar
aberto.
A curiosidade me fez localizar a Íris se banhando na beira da praia.
Parecia tão familiarizada com o oceano quanto qualquer uma das sereias que

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eu conhecia. Seu corpo bailava em uma dança ritmada, os cabelos flutuavam
e o sorriso não abandonava seu rosto durante cada mergulho.
— Ela é linda, não é? — Nestor apareceu na minha frente com o seu
longo e enxerido focinho. Levei um pequeno susto, pois estava distraído. —
Íris é uma gata. Pena que não é da minha espécie. Eu teria muitos filhotes de
golfinhos com ela.
— Saia da minha frente — empurrei o bicho para o lado e virei de
costas para não demonstrar meu interesse pela humana. Não queria observá-
la na frente daquele golfinho idiota e abrir espaço para interpretações
errôneas.
— Eu vi vocês dois na beira da praia. Construindo um ninho, brincando
de areia... Que coisa fofa! Se eu não conhecesse o senhor, diria que está
caidinho por ela.
— Não fale babaquices! — resmunguei, já arrependido de ter entrado
no oceano. Nadei o mais rápido que pude, mas Nestor fez o possível para me
acompanhar e continuar tagarelando.
— Não julgo o senhor, Íris é um espetáculo. E é muito legal. Vocês têm
a minha benção. Posso ser o padrinho do casamento?
— CALA A BOCA! — rosnei com mais grosseria, e sem querer formei
um tsunami muito perto da beira da praia.
Olhei para a superfície acima das nossas cabeças. As águas obedeceram
à minha fúria em uma velocidade impressionante. Meu coração passou a
bater acelerado com a lembrança de que Íris nadava muito perto do perigo, e
certamente não sobreviveria ao tamanho daquela fúria.
A onda foi crescendo e crescendo, de modo tal que eu nada podia fazer
para detê-la. Estava sem o meu tridente, e por um instante mal me lembrava
de onde o havia deixado. Aquela humana estava me desconcentrando de
muitas maneiras.

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— Íris... — Nestor murmurou, com a expressão tão apavorada quanto a
minha.
Ele começou a nadar na direção da praia primeiro do que eu. Ainda
passei algum tempo estático, observando o prenúncio da onda destruidora e
me perguntando o que eu tinha feito para merecer tanta agonia sentida.
Soltei um suspiro irritado e segui o Nestor. Não havia alternativa a não
ser salvar aquela mulher mais uma vez.

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CAPÍTULO 11
Íris

Tentar entender o outro é um grande passo para a empatia, mas era uma
tarefa muito complicada quando se tratava de Neto. Ele não facilitava
nadinha para mim. Parecia até que não queria ser compreendido, que não
fazia a menor questão de coletividade e cooperação, como se se bastasse. Era
um pensamento bastante empoderado, porém, até que ponto antissocial?
Enquanto me banhava, pensava a respeito e aproveitava aquele tempo
sozinha para também praticar um pouco de individualidade sem culpa. Fomos
criados para o coletivo desde que nascemos: família, bairro, amigos, escola,
comunidade religiosa, trabalho, relacionamentos amorosos e sociedade.
Ensinaram-nos que não podemos viver sozinhos, que precisamos uns dos
outros, e nos obrigaram a aceitar isso como verdade, o único caminho da
felicidade, a única resposta para todas as questões universais.
Forçam-nos a nos anular em prol do outro para não agredi-lo, magoá-lo
ou decepcioná-lo, a seguir os passos de nossos familiares, a nos envolver com
pessoas de “bem” e a ter filosofias e condutas em uniformidade com o resto
do mundo. E ainda nos sentimos culpados quando pensamentos
individualistas se manifestam contra tudo o que nos educaram a acreditar.
No entanto, esqueceram de nos dizer que somos seres individuais.
Nascemos sozinhos, passamos a vida carregando uma solidão que nunca é
aplacada e morremos sozinhos. E quando buscamos satisfazer a nós mesmos,
prioritariamente, somos acusados de egoísmo.
O fato é que não existem apenas dois lados: certo ou errado, bem ou
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mal, como nos contos da carochinha. Somos sete bilhões de indivíduos,
carregando um universo inteiro dentro de cada um, e, dessas pessoas,
ninguém pensa, age ou faz escolhas como eu.
Absolutamente ninguém.
Assim como ninguém nunca vai saber como é carregar as minhas dores
e vitórias além de mim mesma.
Somos sete bilhões de pensamentos, amores e perdas distintos, sem
exceção.
A coletividade deveria nos ajudar a ampliar nossos próprios horizontes,
a desenvolver empatia e tolerância ao próximo e a descobrir mais sobre nós
mesmos. Mas não, muitas vezes — na maioria delas —, somos padronizados,
programados a pensar coletivamente, manipulados a tratar nossos instintos
individuais como erros, ameaças ao equilíbrio da sociedade.
Mas, se pensarmos direito, percebemos que todos somos potenciais
líderes, podados em nossa cerne e desacreditados de tal forma que nós
mesmos deixamos de enxergar que somos donos da própria vida, para agir e
pensar somente com o coletivo. Abelhas operárias, que trabalham por algo
que não têm valor para elas, e aceitam migalhas de reconhecimento para
serem aceitas na sociedade.
Não estou dizendo que eu deveria ser uma ogra como Neto, longe
disso. Eu acredito na empatia e no limite como forma de aprender a ser uma
pessoa melhor e a fazer a diferença na vida das pessoas que me cercam.
O que estou questionando é: por que não somos ensinados a sermos
educados e empáticos? Por que não nos ensinam que somos indivíduos
solitários e que não adianta buscar fora de nós aquilo que nunca
encontraremos em outro? Por que preferem nos deixar frustrados com essas
descobertas sozinhos?
A verdade é que a coletividade não nos prepara nem para a vida em

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sociedade, nem para a individualidade.
E esse pensamento profundo, e até confuso, me levou exatamente ao
início. Neto.
Via nitidamente o quanto ele, despreparado para se aceitar como ser
individual e sozinho, também não aceitava o fato de ser obrigado à
coletividade, no caso, a minha companhia na ilha. Aquilo gerou raiva, muita
raiva. Seu individualismo o levou a um nível no qual a empatia não existe.
Ele está tão centrado em si mesmo que nada mais nem ninguém importam.
Eu o perdoei por aquilo naquele exato momento, porque a minha
descoberta como indivíduo solitário me levou a outro caminho. O da empatia,
compaixão e gratidão. Conhecer a mim mesma, profundamente, me fez
entender melhor o outro e deixar de criar expectativas sobre suas decisões. O
poder sobre a mudança da minha vida estava em minhas mãos e ninguém me
roubaria aquele direito, assim como não o podia fazer.
Era grata, principalmente, ao acidente que me tornou limitada de um
lado para que eu crescesse de outro. Foi no fundo do poço que eu encontrei a
minha força de vontade e determinação para continuar. Também tinha muito
a agradecer pelo apoio de meus familiares e noivo, mas se eu não lutasse,
jamais teria voltado a nadar novamente.
Eu me aceitava como ser individual, pronta para brilhar com a minha
própria luz e encontrar meu caminho pessoal, e desejava que essa luz
inspirasse outros a fazerem o mesmo. O coletivo apaga o indivíduo, mas a
individualidade o exalta, o transforma em indestrutível e o coloca acima das
dificuldades que possam surgir. Somente através da individualidade se pode
construir um mundo melhor.
Quando a coletividade for composta apenas de pessoas que se
autodescobriram individuais e se aceitaram como são, a sociedade ideal será
possível.

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Aquele momento de solidão, e o silêncio que pairava no ar à minha
volta — nem o som do mar, indo e vindo ao redor de meu corpo em ondas
suaves, se fazia ouvir —, fez-me trazer um sorriso ao rosto. Não havia nada
mais libertador do que ouvir seus próprios pensamentos com tanta clareza,
que parecia até que eu conversava comigo mesma. Aquela era a minha
verdade, o meu certo, e não fazia mal a ninguém.
Era reconfortante estar tão consciente de mim mesma, e de meus ideais,
que nem mesmo a grosseria gratuita de um ogro em formato de homem me
abalaria.
De repente, uma sombra se fez sobre mim, levando-me a erguer os
olhos para aquele céu arroxeado, tão lindo, que me fazia suspirar sempre. O
deslumbramento deu lugar ao pavor ao perceber que uma onda gigante se
formara, tão silenciosamente que não sabia como foi possível. Fiquei estática,
encarando, embasbacada, o tsunami avançar para a praia em uma velocidade
impressionante, ciente de que correr não adiantaria nada.
— Íris! — eu conhecia aquela voz, mas não conseguia desviar os olhos
daquela onda que, certamente, me levaria para a morte. — Respire fundo,
estou chegando!
Sem pensar muito a respeito, fiz o que a voz ordenou e fechei os olhos
segundos antes de ser atingida. A força de uma tonelada de águas me
encobrindo foi tão assustadora que tive medo de não escapar, por mais que
alguém estivesse correndo para me socorrer. Como seria possível que
qualquer criatura viva conseguisse me resgatar de um tsunami enfurecido,
que varria a praia e me arrastava com ele?
A onda me embolou junto com destroços do que fora meu abrigo. Eu
me senti ser atingida de diversas formas por pedras, bambus e espinhos. Fui
cortada, perfurada e machucada, desesperando-me ao sofrer a ausência de ar
e rodopiando na onda feito os restos. Fui arrastada facilmente, sem controle

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do meu corpo ou o poder de desviar de obstáculos. Minhas pernas e braços se
debatendo de nada serviram para me salvar.
Dois giros depois, pensei ver um rosto familiar borbulhar na minha
direção. Lembrei-me do afogamento na praia do Rio de Janeiro, antes de
despertar naquela ilha. A cena se transformou em um déjà vu quando a
proximidade assustadora da criatura revelou uma cauda dourada, que reluziu
como um farol sob a água lamacenta. Na face, uma expressão improvável,
entre raiva e medo, que também me assustou.
Tomada pelo assombro, abri a boca para gritar e acabei engolindo água
de novo. A inconsciência me levou assim que aqueles dedos firmes, que meu
corpo reconheceu de imediato, abraçaram meu pulso.
O vazio fez morada em mim e parecia certo. Tão certo que foi doloroso
acordar, expelindo água salgada por todos os orifícios e carregando dores
inacreditáveis pelo corpo, que latejavam sem parar. Entretanto, nada
martelava mais em minha mente do que a certeza de que o mesmo homem-
peixe que me trouxera até a ilha havia me salvado de novo. E eu o conhecia.
Abri os olhos devagar, tossindo e sentindo mais dores se alastrarem.
Diferentemente da primeira vez, eu não estava sozinha. Ergui a cabeça em
sua direção, esperando encontrar alguma resposta para todas as questões que
não paravam de me atormentar.
— Graças aos deuses do Olimpo você despertou! — a voz soou firme e
afobada e eu só conseguia analisar aquele rosto bonito, de olhos ferinos, sem
dizer uma palavra. — Como está se sentindo, Íris?
— Vo... Vo-vo-cê... me salvou.
— Sim — afirmou de imediato, sem pensar.
Olhei para baixo e, sem pudor algum, constatei que Neto estava nu
novamente.
— Como?! — questionei, incrédula.

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Percebi que ele deu de ombros, enquanto o analisava, à procura de
vestígios da cauda que vislumbrara no mar. Eu o encarei novamente.
— É humanamente impossível! — retruquei, incisiva, dando voz às
minhas dúvidas. — Sou uma nadadora profissional e experiente, e não
consegui lutar contra o tsunami. A menos que você...
Parei. Será que eu teria coragem de dizer aquilo em voz alta?
— O quê, Íris? — ele adquiriu uma postura defensiva.
— Não seja humano.
Neto arregalou os olhos e direcionou seu olhar de ódio para mim.
— Não a salvei pensando em me exaltar, porém, a senhorita não
deveria apenas me agradecer em vez de fazer suposições equivocadas?
— Equivocadas?! — levantei minha voz e minha garganta ardeu. — Eu
o vi antes de desmaiar e você tinha uma cauda exatamente igual a da criatura
que me agarrou ainda na praia do Rio de Janeiro, antes de eu acordar nessa
maldita ilha!
— Cauda? — ele apontou para as próprias pernas, fazendo-me
acompanhar seu gesto automaticamente. — Você está vendo alguma cauda
aqui, Íris?
— Agora não, mas você se negou a nadar comigo e está completamente
nu!
Neto se ergueu, afastando-se de mim.
— Por acaso desejar liberdade e privacidade me desqualifica como
humano?
Não me mantive inferior e tentei me erguer, apesar do sofrimento que
me causou. Mesmo gemendo de dor, fiquei de pé, tentando manter seu nível
de altura.
— Eu confiei em você, Neto, mesmo sendo um mal-educado. Acreditei
que faríamos bem um para o outro se aceitássemos a companhia. Mas será

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impossível continuar olhando para essa sua cara cínica se você estiver
mentindo para mim. — Dei um passo à frente, trêmulo e vacilante, buscando
a proximidade para apelar para seu coração, que talvez fosse bom, bem lá no
fundo. — Você é uma criatura mítica, que vive nessa ilha diferente, e me
sequestrou? Por favor, seja sincero. Eu preciso saber!
Neto engoliu em seco e continuou me olhando como se eu fosse
maluca. É claro que o pensamento me passou pela cabeça. Eu estava numa
ilha com o céu roxo, que chovia sem aviso e até um tsunami a havia atingido
sem explicações lógicas. Conhecera um golfinho que falava e me considerava
seu amigo. E a única coisa que eu ainda não havia aceitado era que um
homem-peixe havia me salvado duas vezes. Ou melhor, me sequestrado sabe-
se lá por quê.
— Você deve ter batido a cabeça com força contra alguma pedra, Íris
— Neto rebateu e começou a gargalhar, me ofendendo profundamente.
A minha vontade era de esbofeteá-lo até fazê-lo parar de rir.
— Não estou doida! — berrei, espelhando seu ódio. Um tremor se
espalhou pelos meus nervos, salientando a dor dos cortes e das perfurações
que tomavam conta de minha pele. Ainda não estava preparada para conferir
o estrago. Meu grito fez as risadas cessarem, porém a expressão de escárnio
continuava em seu semblante. — De hoje em diante, fique bem longe de
mim! Eu não confio mais em você!
Não admiti em voz alta, mas um medo aterrador se instalou em meu
estômago, contraindo-o. Se aquele gigante, que eu já temia pelo simples fato
de ser um desconhecido, ainda fosse uma criatura mitológica com poderes
inimagináveis, eu estava ferrada. Aquilo talvez explicasse o fato de ele
sempre insistir que não havia escapatória da ilha. Não havia motivo ele não
quer que eu fosse embora. Mas, por quê? Qual seria seu propósito ao me
manter presa naquele lugar estranho?

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— Íris, espera! — ele insistiu às minhas costas, enquanto eu mancava
para longe dele, tentando me localizar na floresta densa.
— Não me siga! — eu me virei de frente para ele só para que
percebesse que eu falava sério. Peguei um galho e fiz um risco no chão de
terra. — Esse é o seu lado da ilha e esse é o meu. Pode ficar com a sua
liberdade e privacidade aí, que eu ficarei quieta aqui, sem perturbá-lo. Espero
sair dessa ilha logo, assim eu não precisarei olhar para essa sua cara de
embuste. Adeus. Até nunca mais!
Trôpega, carreguei o galho como arma, sentindo espasmos também nos
braços. Não daria o gostinho a Neto de me ouvir gemer de dor, mas estava
difícil caminhar ou respirar. Esperei tomar uma distância segura, me escondi
atrás de uma árvore e comecei a vasculhar meu corpo, resmungando baixinho
e sentando-me na vegetação não atingida pela água furiosa.
Um dos meus pés tinha um corte horrendo, o que estava dificultando
minha locomoção. Eu não tinha nada para proteger a ferida. Usava apenas um
maiô que. Olhei ao redor e percebi que nunca fora àquela parte da ilha, mas
teria que me virar ali mesmo, por mais que temesse tanto Neto quanto a fera.
Tentei me lembrar de plantas medicinais, que pudessem ajudar na
cicatrização de ferimentos, mas não tinha certeza de nada. Estava difícil
inclusive pensar, de tanta dor que eu sentia. Optei por encontrar um canto em
que pudesse descansar em paz. Avancei poucos metros e encontrei uma
clareira. A sensação de sufocamento foi tão grande que desisti de ficar ali. Eu
me lembrei de quando acordei e ouvi a fera pela primeira vez.
Dei dois passos para trás e me escondi atrás de uma árvore, com o
coração retumbando no peito. Não sabia o que fazer e um atordoamento se
fazia presente, amolecendo meu corpo. Se eu não me encostasse a algum
lugar, desmaiaria. Estava muito tempo sem comer ou beber água potável, e
ainda me encontrava ferida de diversas formas.

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Escolhi um vão entre árvores tão próximas que mal dava para eu
passar. Esperava que mantivesse outras criaturas maiores distantes. Forrei as
raízes com folhas frescas e me deitei, fechando os olhos quase que
involuntariamente. O que eu não sabia era que, depois de fechá-los, não teria
mais forças para reabri-los.
O tempo passou, inexoravelmente.
Às vezes eu tinha consciência de sons, palavras, luz e sombra... Em
outras, sentia a presença de alguém e me sentia protegida, como há muito não
me sentia. Eu não estava louca, só confusa. Não tinha ideia de quanto tempo
se passara desde que chegara àquela ilha, e nem porque tudo era tão diferente,
mas a culpa não era minha. Não era. Eu só queria poder conversar com
alguém como o Gil. Ele saberia o que dizer para me acalmar.
Em certo momento, consegui piscar os olhos. Alguém me chamava
com muita insistência. Mas havia um rosto próximo que, apesar de
preocupado, não era amigável. Eu me encolhi e uma dor lancinante se
espalhou pelas minhas pernas, como se as perfurasse.
Naquele instante, busquei alívio na inconsciência.
Talvez eu não conseguisse mais voltar dela.

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CAPÍTULO 12
Netuno

Uma maluca com sérios problemas de inconstância me enxotando de


minha própria ilha era o grande prêmio que me aguardava pelo simples fato
de tê-la salvado da enorme e destruidora onda. Íris saiu cambaleando, com
feridas ensanguentadas tomando todo o corpo, mas com o seu nariz empinado
em um orgulho deprimente. Fiquei um tempo estático, sem acreditar que fui
expulso de seu convívio mesmo depois de todo o esforço para não deixá-la
morrer afogada. Eu me senti um verdadeiro imbecil, e me sentir assim fez
com que a raiva crescesse em meu peito igual ao tsunami; rápida e
inexorável, prometendo causar muita destruição.
Ela começou a desconfiar de minha natureza, e não era para menos.
Íris, apesar de meio tola em vários momentos, tinha uma esperteza típica das
mulheres feiticeiras. Ainda pensei em contar toda a verdade, porém seria
burrice de minha parte me expor logo no princípio. Só me gerariam dores de
cabeça, pois aquela humana se tornaria ainda mais insuportável e a minha
vingança não duraria o tempo planejado, já que a falta de paciência me faria
acabar com sua raça depressa.
Virei as costas para o traço recém-feito na areia, um sinal patético da
nova divisão da ilha, percebendo que a parte que me coube era justamente a
que tinha sido devastada. Quem aquela mortal pensava que era para demarcar
minhas terras e impedir-me de caminhar por onde quer que eu sentisse
vontade? Sua atitude foi tão mesquinha que o meu ódio aumentou
drasticamente, deixando-me cego enquanto percorria uma trilha em meio aos
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estragos.
Encontrei o meu tridente totalmente por obra do acaso, jogado entre
arbustos arrancados pela força da onda, e o segurei prometendo a mim
mesmo que não seria imprudente com relação aos meus poderes. Bastaram
alguns giros e as árvores caídas passaram a se erguer, as plantas retornaram
às suas raízes e a parte da ilha atingida foi voltando à sua normalidade. Pensei
numa maneira de explicar a Íris de que forma aquela metade se estabilizou,
porém ela não queria a minha presença e eu não fazia a mínima questão de
estar com alguém sem ser convidado.
— Socorro! Socorro, alguém! — ouvi alguns gritos espalhafatosos e
corri até a beira da praia. Encontrei o Nestor preso entre duas rochas,
debatendo-se como um peixe fora d’água e com muita dificuldade para
manter a respiração.
Cruzei meus braços diante dele, fazendo sombra sobre a sua triste
figura.
— Todo este desastre foi culpa sua, criatura abominável! —
resmunguei, analisando seu corpo de golfinho e percebendo que, apesar de
tudo, não havia nenhum machucado. — Eu deveria te deixar morrer feito um
pescado. Depois eu te cozinharia e jogaria seus restos mortais para os siris
comerem.
— Netuno, socorro! — ele arfou, ainda se debatendo. — Não consigo...
respirar!
— Pois isso não é problema meu! — rosnei, irritado, repleto de ódio.
— Quem sabe da próxima vez que decidir tirar-me do sério, você pense a
respeito da possibilidade de terminar encalhado? — Soltei uma gargalhada.
— Ah, é, perdoe-me, não haverá outra vez!
— NETUNO! — Nestor gritou de forma engasgada e, de repente, seu
corpo miúdo parou de se mexer. Um último suspiro foi solto antes do

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golfinho simplesmente fechar os olhos.
Assustado, olhei ao redor, sem saber o que pensar ou fazer. Meu
coração passou a retumbar dentro de meu peito, de forma que mal consegui
respirar. Uma agonia tremenda tomou todos os meus sentidos e me vi
agarrando a criatura em meus braços.
— ARGH! — bradei em puro ódio de minhas próprias atitudes
enquanto o levava de volta para o oceano.
Eu deveria aprender a manter as decisões tomadas até o fim. O golfinho
merecia perecer daquela maneira patética, então, pra quê salvá-lo? Ele
mesmo havia encontrado a própria morte, além de ter causado uma confusão
desnecessária entre mim e Íris. De que forma eu imporia respeito se
continuasse agindo como um fracote de coração mole?
Entrei com o Nestor na água e nadei por alguns metros até que a
criatura finalmente soltou o primeiro espasmo. Suspirei aliviado ao vê-lo de
olhos abertos, reencontrando a respiração e começando a bater suas
nadadeiras.
— Por um instante, achei que o senhor fosse me deixar morrer — ele
disse com a voz um pouco ofegante e a expressão séria como eu nunca havia
visto.
— Era o que eu deveria ter feito — resmunguei e dei as costas,
pensando em voltar para a praia o mais depressa possível. Aquela cauda já
tinha arranjado muito estresse para um só dia, portanto não estava a fim de
passar nem mais um minuto em minha forma natural. Sabendo que o maldito
Nestor me seguia, prossegui: — Você é um golfinho inconsequente! Poderia
ter matado a Íris, se matado e me feito remoer em puro remorso.
— Remorso? — ele riu com escárnio. — Não sabia que o senhor era
capaz de sentir isso! E não entendo por que a salvou se a sua pretensão é
matá-la. — Parei de nadar e olhei para a criatura, espantado com sua

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sagacidade. Em nenhum momento eu tinha lhe contado meus planos. — Sim,
Netuno, não sou bobo quanto pareço. Sei que está maltratando Íris por não
conseguir lidar com seus próprios fracassos.
— Eu, definitivamente, deveria ter te deixado morrer naquela pedra. —
Retomei o percurso na direção da praia. — Se você realmente não fosse um
bobo, pararia de atiçar a minha ira.
— Se o senhor fosse um pouco responsável, cuidaria melhor da garota
— Nestor continuou me empertigando daquela forma irritante. — A coitada
está com fome e sedenta. Para piorar, toda machucada. Eu a vi rolando entre
pedras e galhos, o corpo dela deve estar todo surrupiado depois da onda. É
capaz de ficar doente.
— Não me importo — dei de ombros. — Íris me mandou ficar bem
longe e assim permanecerei.
— E desde quando o senhor obedece às ordens de uma mortal? —
Nestor questionou em meio a risadas e me senti ainda mais imbecil do que
antes.
Deixei-o para trás, de uma vez por todas, ao alcançar a areia e esperei,
sem nenhuma paciência, que a minha cauda se transformasse em pernas de
novo. Ainda não sabia exatamente o que fazer, mas aquele golfinho tinha
razão: eu não era um deus poderoso que obedecia aos comandos de uma
humana exibida e orgulhosa. Íris poderia me querer longe, mas eu não lhe
daria aquele gostinho. Meu objetivo, afinal, era contrariá-la com tudo o que
estivesse ao meu alcance.
Sendo assim, decidi procurá-la só para deixar claro que eu não acataria
sua divisão. Encontrei-a não muito longe da última vez em que a vi,
dormindo entre as raízes de enormes árvores. Pensei em gritar alto para que
ela pensasse que a fera estava próxima, no entanto, meu corpo travou
completamente ao analisá-la. Passei alguns longos segundos admirando a sua

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beleza em tão poucas vestes. Seu corpo parecia um desenho dos deuses, e a
pele bronzeada me presenteou com uma vontade absurda de guiar minhas
mãos através dela. Prendi os lábios, controlando a tentação.
Eu não devia sentir um pingo de desejo por aquela criatura, de forma
que a raiva aumentou a um nível insuportável. Tive vontade de agarrá-la pelo
pescoço e chacoalhá-la até que sua presença não me causasse nada além do
asco. Eu preferia, milhões de vezes, morrer de nojo daquela mulher a pensar
nas diferentes formas que os nossos corpos poderiam se encaixar em atos de
plena luxúria.
— Acorda, preguiçosa! — zombei em voz alta só para provocá-la.
Nada aconteceu. Íris permaneceu estática. — ACORDA! — gritei mais alto e
mais perto, sem nenhuma delicadeza.
A humana permaneceu desacordada, sem sequer se mexer. Olhei-a com
mais cuidado, aproximando-me até acocorar bem próximo ao seu corpo
inerte. Íris estava pálida e com os lábios arroxeados. Havia pequenos cortes
em seu corpo, mas nada que justificasse uma doença. Toquei no topo de sua
testa com a mão tremendo de pavor. A temperatura estava demasiadamente
quente. Íris ardia em febre.
— Íris... — chacoalhei-a com certa delicadeza para fazê-la acordar,
pois tinha percebido que ela ainda respirava. — Íris, desperte, por favor...
Ela se moveu apenas um pouco e semicerrou os olhos, parecendo não
enxergar muita coisa. Soltou alguns balbucios ininteligíveis e voltou a
dormir. Fiquei tão assustado com o seu estado sonolento que me levantei e
andei de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Olhei para o meu
tridente, que eu tinha depositado no chão, e o peguei a fim de fazer alguma
magia. Girei-o na direção da Íris e, automaticamente, todas as suas feridas
desapareceram. Coloquei-o no chão novamente e corri de volta para a
mulher.

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— Íris... Acorde! — tornei a chacoalhá-la. — Está tudo bem agora, seu
corpo está em perfeito estado — sorri sozinho, reparando que os machucados,
de fato, tinham se fechado e a sua pele de aparência macia estava como antes.
No entanto, a humana ainda não acordou. Permaneceu pálida e ainda
estava com febre. Eu não sabia mais o que fazer.
— A senhorita está com sede, não é verdade? — falei depressa,
desesperado. — Quer um pouco de água doce? Posso arranjar. — Ela
continuou sem se mover, mesmo com a menção feita à água, coisa que tanto
desejava. — Íris, ajude-me a te ajudar.
Peguei o tridente de novo e conjurei uma nova fonte de água doce no
meio da floresta. O líquido da vida começou a brotar entre as raízes daquelas
árvores. Com as mãos em concha, peguei um pouco e levei para a boca de
Íris. Ela pareceu despertar um pouquinho, porém se engasgou assim que deu
o primeiro gole.
— Não faz assim, Íris... — balbuciei e ergui o seu corpo molenga,
deixando-a sentada. A mulher começou a tossir fortemente. Por fim, voltou a
dormir. — Íris, o que você tem? Já deveria ter sido curada.
Seus lábios foram ficando cada segundo mais arroxeados. Percebi que a
pele pálida ganhava aquela mesma coloração preocupante, e então desconfiei
de que ela estivesse envenenada. Devia ter pisado em algum ouriço ou em um
baiacu desavisado. Analisei a sola de seus pés e achei um ponto
extremamente arroxeado, que antes da minha magia deveria estar aberto e ter
permitido a possível entrada do cruel veneno.
Íris morreria rapidamente se eu não desse um jeito de retirá-lo de sua
corrente sanguínea. No entanto, sua cura estava longe de meus poderes. Eu
podia cicatrizar feridas na velocidade da luz, mas não remover veneno.
Aquilo estava fora de minhas habilidades como deus do oceano.
Assustado, com o coração acelerado e a cabeça funcionando a mil por

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hora, puxei Íris para os meus braços, a fim de tirá-la dali. Eu conhecia apenas
uma criatura que poderia curá-la, só me restava decidir se valeria a pena fazer
mais um pedido a alguém que não andava muito satisfeita com minhas
atitudes.
Olhei para a Íris em meu colo e soltei um suspiro.
— Vai ficar tudo bem, mulher — balbuciei, tentando acalmá-la e me
acalmar.
Ela abriu um pouco os olhos e sussurrou:
— Gil... — segurou o meu pescoço e depositou a cabeça em meu peito.
— Gil...
O nome de um homem saindo por entre seus lábios me fez quase largá-
la ali mesmo. Eu estava desesperado, em profunda agonia para salvá-la e a
estúpida ainda tinha coragem de murmurar outro nome? Era o meu que devia
estar em seus pensamentos, em seus lábios carnudos, em seu pedido fraco por
socorro. Eu a tinha salvado da morte certeira por três vezes!
Visualizei a história se repetindo em minha memória. Por mais que eu
oferecesse tudo a uma mortal, até mesmo o meu mundo inteiro, meus
poderes, amor e total consideração, ela ainda ficaria descontente e me
abandonaria. Não importava o que fizesse para ganhar sua admiração, o
coração das mulheres era um poço obscuro e inatingível, repleto de
sentimentos que me confundiam e me magoavam profundamente.
Fiz o maior esforço para levar a Íris rumo à gruta, local seguro para
uma magia daquele porte. Não queria chamar a atenção das criaturas
marinhas para o que eu pretendia fazer, só causaria mais rebuliço no oceano.
Ainda que me sentisse infeliz, magoado e inconformado, tomei como missão
concluir a decisão de salvar a Íris, e não desistir no meio do caminho, como
vinha fazendo com todas as outras escolhas.
Atravessei as rochas com a mulher inerte em meus braços, percebendo

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a sua temperatura ficando mais quente. Íris tinha poucos minutos de vida,
logo entraria em convulsão e seu corpo padeceria. Com cuidado, adentrei o
lago de água doce mantendo-a na superfície. Não me importei quando minhas
pernas viraram cauda novamente. Só queria concluir o serviço o mais
depressa possível, antes que um desastre acontecesse.
— Anfitrite, eu invoco a tua presença! — bradei, exalando o poder de
minha voz. Sabia que, onde quer que aquela criatura estivesse, escutaria o
comando e viria ao meu encontro depressa.
— Quem é essa mulher? — Tritáo emergiu na nossa frente, todo
curioso. Aproximou-se, encarando a Íris como se ela fosse o mais incomum
dos seres. — Quem é ela, Netuno?
Suspirei pesadamente, impaciente.
— Ela se chama Íris e está envenenada. Quero que Anfitrite remova o
veneno.
— Acha que ela consegue? Essa mulher parece que já morreu. —
Tritáo mantinha os olhos arregalados, certamente por nunca ter visto uma
criatura humana antes. — Por falar nisso, de onde ela veio? É sua namorada?
— Não seja um tolo, Tritáo. E cale a boca, está me dando nos nervos.
Íris ainda respira, mesmo que com dificuldade.
Avistei outra criatura emergindo das profundezas. Os cabelos longos de
Anfitrite surgiram primeiro, depois a sua linda face, que se manteve assustada
ao me encarar.
— O que faz aqui com essa mortal? — ela foi logo reclamando, como
eu tinha certeza que faria. A nereide se aproximou mais. — Não pode trazê-la
neste esconderijo, meu deus Netuno.
— Não ouse questionar minhas atitudes. Sei que este lugar é sagrado,
pois fui eu que o criei — alertei em um timbre grosseiro e urgente. — Desejo
apenas que remova o veneno no sangue desta mulher, depois, eu a levarei

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para bem longe antes que desperte.
Anfitrite balançou a cabeça em negativa.
— Achei que já a tivesse matado.
— Matar? — Tritáo ficou assustado. — O senhor ia matar essa
humana?
Revirei os olhos, irritado. Olhei para Anfitrite, deixando claro que
havia detestado aquela suposição feita na frente de Tritáo. O garoto já me
tinha em baixa conta, não precisava ter conhecimento dos detalhes mais
sórdidos ao meu respeito.
— Não quero ouvir ladainhas ou questionamentos — resmunguei. —
Anfitrite, atenda às minhas ordens. Agora.
— Meu senhor, não posso permitir que...
— AGORA.
— Essa mortal será a sua desgraça! Ouça o que digo desta vez, Netuno
— Anfitrite aumentou o tom de voz e fez uma expressão de revolta. — Uma
vez o senhor não me escutou e olha no que deu!
— É diferente agora! — retruquei, possesso com aquela criatura tão
bonita quanto desobediente. — Não pretendo oferecer o meu amor a esta
humana, nem mesmo quero a sua consideração de volta. Você conhece
minhas reais pretensões.
— Então, deixe-a morrer logo.
— Não — rosnei. — Não é o momento propício.
— Do que vocês estão falando? — Tritáo estava perdido, imerso em
sua confortável ignorância.
— Seu coração vai amolecer — Anfitrite desdenhou, olhando para a
Íris com certo asco. — O senhor vai achar que poderá oferecer uma nova
chance ao amor. Essa humana te fará acreditar que o seu bom coração pode
ser consertado. Meu bom deus se sentirá vivo novamente, e oferecerá tudo o

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que o pertence para esta humana. E então, com o seu coração nas mãos... —
Anfitrite ergueu a palma. Depois, fechou-a com força. — Ela irá esmagá-lo,
estraçalhá-lo. E um coração partido pode ser consertado uma vez, meu
senhor, mas jamais resistirá à segunda. O senhor cairá em desgraça e o
oceano se desintegrará. Os deuses jogarão sua ira e tudo o que conhecemos
terá o seu fim por causa de uma maldita mulher!
Fiquei calado, olhando, assustado, para o rosto de Anfitrite.
— Uau... — Tritáo assoviou. — É uma história interessante.
— Cale-se, Tritáo — Anfitrite ordenou, irritada. — Ao menos uma vez,
leve alguma situação a sério!
— Sua profecia não passa de um grande equívoco — interrompi-os,
seguro de mim mesmo. Não havia temor algum, pois Íris não era merecedora
de minha consideração e eu sabia daquilo perfeitamente. Nunca seria
enganado por sua beleza. — Jamais oferecerei o meu amor a uma humana
novamente. Portanto, Anfitrite, ordeno que conjure a magia neste exato
momento, ou sofrerá as consequências de sua desobediência!
A nereide, ainda que emburrada, tomou Íris de meus braços e a
aconchegou nos seus. Acompanhei, em silêncio, a magia tomando forma,
uma luz brilhante rodeando o corpo de Íris. Anfitrite balbuciou palavras
esquisitas, em uma língua feita por feiticeiras poderosas como ela. De
repente, a luz foi embora, para o mesmo lugar de onde veio.
— Está feito — a criatura murmurou, devolvendo-me a humana.
— Já?
— Sim, senhor.
Anfitrite ergueu o queixo e, visivelmente chateada, mergulhou de volta
para as profundezas, exibindo sua longa cauda antes de desaparecer
completamente. Não esperou o meu agradecimento, ou mesmo uma
comprovação de que Íris acordaria. Resolvi deixar sua revolta de lado e me

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preocupar com o que merecia a minha atenção naquele momento.
— Ela está acordando, veja! — Tritáo murmurou, apontando para Íris.
Não perdi tempo e deixei a água aos rastejos, depositando a humana na
rocha para esperar o retorno de minhas pernas. Sua coloração foi voltando ao
normal aos pouquinhos, bem como a respiração. Os lábios roxos passaram a
exibir a coloração rosada que tanto mexia com meus nervos.
— Gil... — Íris balbuciou aquele nome mais uma vez.
A revolta em meu peito foi tanta que, tão logo minhas pernas
retornaram, levantei-me e saí da gruta sem levá-la comigo. Nada me
importava mais, nem mesmo deixá-la conhecer o esconderijo. Só consegui
sentir uma infelicidade medonha, uma sensação de fracasso e de
descontentamento. Considerei a minha existência um acontecimento
medíocre enquanto ganhava a floresta. Não queria viver em um mundo podre,
imundo. Aquela verdade palpitava em meu coração e me deixava
enlouquecido.
Em algum momento, meus joelhos dobraram e me deixei cair sobre a
vegetação. Ofegante, a onda de sentimentos bizarros tomaram a minha cabeça
e, mais do que de repente, senti meus olhos marejarem como há eras não
acontecia. Uma única lágrima escorreu e eu a segurei em minha mão, já
sabendo que se petrificaria e serviria como uma joia para adornar pescoços de
mulheres desalmadas. Só para este objetivo que servia a minha dor.
Para mais nada.

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CAPÍTULO 13
Íris

Acordei assustada, com a sensação sufocante de um pesadelo


confundindo minha mente. Sonhei que eu chamava pelo meu noivo e ele não
me escutava, me virando as costas e se afastando de mim, depois de descobrir
que eu havia perdido o movimento das pernas. Além do medo daquela perda,
meus olhos marejaram assim que me dei conta de que ainda estava naquela
maldita ilha e, como se tornara um costume terrível, me encontrava em um
lugar diferente do qual escolhi para descansar.
Minha pele estava úmida e fresca, porém, o calafrio que percorreu meu
corpo quente me garantiu que eu havia tido febre enquanto estive
desacordada. Corri o olhar à procura dos machucados, que deviam ter
infeccionado, porém, não havia nenhum arranhão sequer. Apalpei minha
carne, sem acreditar que estava inteira, como em um passe de mágica. Puxei a
perna e olhei a sola do meu pé, que estava tão ferido que eu mal conseguia
andar, e encontrei uma mísera manchinha rosa demarcando o local.
Engolindo em seco, achei que estava em condições de desbravar a nova
e desconhecida área da ilha na qual fora deixada sozinha. Alguém estava
zoando muito com a minha cara e rezava para que não fosse a única pessoa
que eu tivera o desprazer de encontrar naquele lugar esquecido por Deus.
Mas se não fosse ele, quem seria? Não queria nenhum tipo de contato com
Neto, aquele gigante bizarro, sarcástico e rude. Além de imbecil, também era
um mentiroso, que teve a ousadia de me chamar de louca.
Mas eu não estava doida. Não ainda. Queria estar bem longe dali, mas
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ao mesmo tempo meu lado aventureira se regozijava com a oportunidade de
desbravar o desconhecido. Eu me levantei com facilidade, observando a gruta
com olhos curiosos. O deslumbramento veio em seguida. As rochas eram
como prismas, refletindo luzes coloridas para todos os lados. Diferente de
outras grutas, não era escura, mas brilhava, irradiando luz sobre as sombras.
Um verdadeiro espetáculo da natureza que eu não podia registrar, pois estava
sem meu celular.
— Olá! — chamei, quando não avistei nenhum ser vivo, e me
surpreendi novamente quando minha voz ecoou pelas rochas como música.
— Que incrível!
O eco musical se dispersou como uma suave canção e foquei meu olhar
para baixo pela primeira vez, despreocupada com possíveis perigos. O lago
de água translúcida espelhava o teto e o fundo coloridos, como uma piscina
sensacional e muito convidativa. Eu me ajoelhei na beirada, tomando cuidado
para não escorregar, e me curvei sobre o imenso espelho. Abri a boca de
espanto ao ver meu rosto. Eu estava incrivelmente bonita, como não imaginei
que uma náufraga pudesse ficar.
Toquei meu rosto sem acreditar na perfeição da minha pele e na
maneira que meus cabelos ondulavam naturalmente, como se os tivesse
tratado com os melhores produtos. Não podia ser verdade! Será que eu ainda
estava sonhando? Belisquei meu braço e senti a dor se espalhar por meus
nervos. Será que as coisas extraordinárias daquela ilha deixariam de me
surpreender em algum momento e eu me tornaria uma mulher ranzinza e
frustrada tanto quanto Neto?
Por mais que eu quisesse ir embora, não conseguia imaginar como
alguém podia ser infeliz vivendo em um lugar tão sensacional. Eram tantas
belezas incríveis para apreciar, que se tornava impossível sentir tédio ou
insatisfação. Eu conseguiria passar uma vida inteira ali, mesmo com a

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inconstância do clima e com uma fera a solta, que provavelmente era guardiã
daquele templo de beleza natural e inexplorada. Devia ser por causa da besta
que aquele lugar nunca fora descoberto pela humanidade.
Eu era uma privilegiada por ter sobrevivido ao mar, duas vezes, e poder
pisar naquela terra inabitada.
Larguei as distrações de lado e foquei na sede insuportável que me
torturava há dias. Finalmente eu havia encontrado água doce e potável para
consumo. Eu ia sobreviver, mesmo que aquele idiota do Neto tenha me
escondido aquela fonte infinita do líquido da vida de propósito. Formei uma
concha com as mãos, juntando-as, e sorvi tanto, mas tanto da água pura e
saborosa, que uma crise de tosse me acometeu.
De repente, o lago se mexeu trazendo bolhas para a superfície. Vi uma
cauda dourada se agitar e meu coração disparou a um milhão por hora.
Pequenas ondulações se formaram, que brilhavam como um caleidoscópio de
luzes coloridas. Ainda assim, podia enxergar muito bem a criatura submersa,
que nadava em minha direção. Seu rosto — sim, havia um rosto — era jovem
e belo, como de um adolescente, e parou a centímetros do meu, provocando-
me uma reação exagerada e defensiva.
Joguei meu corpo para trás e engatinhei de costas até encostar à parede,
sem tirar os olhos dele. O rapaz se escorou na beirada, sorrindo,
inocentemente.
— Oi, moça! Está tudo bem agora. Você está segura aqui.
Não era a mesma face da criatura que havia me salvado do tsunami,
mas era incrivelmente bela. E me olhava com curiosidade, batendo a cauda na
superfície do lago, como se batesse o pé no chão à espera de uma resposta.
Raspei a garganta sem saber o que dizer diante de seu olhar entusiasmado.
— Obrigada? — agradeci sem saber se era o certo a fazer. Já era um
alívio ter certeza de que ele não tinha intenção de me machucar.

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Eu não podia ter criado a imagem de um garoto-peixe na minha mente,
podia? Sutilmente, me belisquei para ter certeza de que não estava vendo
coisas. A dor foi bastante real, assim como a voz da criatura.
— Que é isso! Achei bem legal ter alguém para trocar ideias. Meu
nome é Tritáo e o seu?
— Tritáo? — arregalei os olhos. — Como o ser mítico?
— Também acho estranho, mas não tive escolha — brincou.
— Ah! Sim, claro. Me desculpe. Eu me chamo Íris.
Ele começou a rir.
— Como o colorido dos olhos? — e gargalhou, batendo a cauda na
superfície e espirrando água para todo lado.
Ri com ele porque não tinha porque ficar brava com o garoto. Ele era
apenas um menino e estava se divertindo.
— Nossos pais são bastante criativos — entrei na onda.
— Pode apostar! — Tritáo não fazia nenhum esforço para controlar as
risadas. — De onde você veio, Íris?
— Do Rio de Janeiro.
— E fica onde?
— No Brasil.
— Em que continente?
— América do Sul, para ser específica.
— E como é lá?
— Temperatura de quarenta graus, clima úmido, cenário montanhoso e
belas praias de areia branca.
— E os humanos? São tão bonitos e legais quanto você?
— Obrigada pelo elogio, Tritáo — sorri, lisonjeada. — Tem muita
gente bonita também, mas ninguém é legal o tempo todo.
O garoto-peixe suspirou, descontente.

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— Aqui também é assim, mesmo sendo imortais. Às vezes eu acho que
os mortais são muito mais felizes. Vivem o pouco tempo que lhes é
concedido com muito mais intensidade do que nós. A eternidade pode ser
maçante e tediosa, principalmente para seres egoístas, que podem ter tudo e
privar os outros de seguir seu caminho.
Estranhei suas palavras amarguradas. Como uma criatura tão bela podia
ser tão infeliz?
— Não sei exatamente a que você se refere, Tritáo, mas nem todos os
humanos aproveitam seu tempo na Terra da melhor maneira. Alguns passam
a vida passivamente, infelizes e solitários; outros atormentam a existência
alheia por puro divertimento. Pessoas assim, ou criaturas como você diz, são
tóxicas e não valem a pena ter por perto. Devemos nos afastar e buscar a
felicidade dentro de nós mesmos. Os outros vêm e vão, você é o único que
permanece, por isso precisa ser o melhor para si mesmo.
Seu belo rosto se iluminou ao ouvir minhas palavras.
— Você tem um jeito único de ver a vida, Íris. Gostei de você.
— Obrigada, Tritáo. Fico feliz em ajudar.
— Você viria me visitar mais vezes? Eu me sinto tão sozinho aqui.
Pensei que talvez pudesse ter encontrado, finalmente, um aliado que me
ajudaria a sair daquela ilha.
— Claro, adoraria passar tempo com você nessa gruta incrível! Mas o
que você acha de me mostrar a ilha? Ainda tem tanta coisa que ainda não
conheço!
— Ah! Se nossa amizade for condicionada à troca, não poderei fazer
minha parte. Não posso sair desse lago.
Seus olhos se entristeceram e baixaram, fugindo dos meus.
— Por que não?
— Não tenho permissão. Sou uma criatura marinha que nunca viu o

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mar.
— Nunca? — espantei-me, horrorizada. Quem o mantinha prisioneiro
ali?
— Apenas nasci lá, mas não me lembro de nada! E não sei se um dia
poderei desbravar os sete mares!
Eu me compadeci daquela solitária criatura e, a fim de não forçá-lo
com muitas perguntas, resolvi deixar algumas para o próximo encontro.
— Não tem problema. Eu virei todos os dias, mesmo que você não
possa sair.
Seu olhar se iluminou de alegria infantil e genuína.
— Obrigado, Íris! Você não sabe o quanto minha vida tem sido
solitária e vazia dentro desse poço. O que me leva a uma questão muito
importante: ninguém pode saber que você vem me ver, tá legal?
— Tudo bem, não tenho mesmo para quem contar — pisquei,
cúmplice, rejeitando qualquer reaproximação com Neto.
Algo me dizia que ele sabia mais coisas do que quis me dizer, inclusive
sobre a existência daquela criatura mítica, presa na gruta mais sensacional
que eu já conheci.
— Ah, Íris. Preciso te alertar de uma coisa, mesmo que signifique
perder uma companhia. — O modo grave com que disse a frase fez meu
coração disparar e um jato de adrenalina percorrer meu organismo. —
Enquanto você ficar nessa ilha, estará em perigo. Você precisa arranjar um
jeito de cair fora!
— O... o q-quê você sabe? — gaguejei, assustada.
— De nada. Ninguém conta nada para mim, me tratam como criança. É
um saco! Mas de uma coisa eu tenho certeza: seu lugar não é aqui. Você tem
que voltar para sua casa, seus familiares e os outros mortais, como você.
Ao mesmo tempo em que me senti acuada e com medo, algo dentro de

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mim quis discordar. O que aquele menino-peixe estava querendo dizer? Que
eu, por ser uma mera mortal, não era digna de estar entre criaturas míticas? A
dualidade dos dois sentimentos brigaram dentro de mim enquanto me
despedia e tentava descobrir um modo de sobreviver até conseguir escapar.
Ou de reivindicar meu direito de ficar, se assim eu escolhesse, por livre
e espontânea vontade.

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CAPÍTULO 14
Netuno

Em algum momento percebi o quanto estava agindo como um tolo ao


me ajoelhar naquela terra e chorar por um motivo que chegava a ser
insuportável de tão inútil que era. Em nada adiantaria prosseguir com as
lamentações, nem mesmo me humilhar diante de mim mesmo em uma atitude
desesperada. Disposto a retornar à gruta e buscar Íris antes que Tritáo me
desobedecesse e se mostrasse a outra criatura que não fosse eu ou Anfitrite,
guardei a lágrima petrificada entre os veios de uma grande árvore e me
recompus, colocando-me de pé.
Passei um longo minuto questionando minhas próprias ações, enquanto
erguia meu olhar para o céu nublado da ilha perdida. Agi como um
irresponsável deixando aquela mortal para trás, como um imbecil ao me
ajoelhar e soltar a segunda lágrima de toda minha existência e, naquele
instante, sentia-me um pouco como o velho Netuno, aquele que acreditava no
amor e na bondade alheia, e que havia se decepcionado drasticamente. Estava
farto de sentir pena de mim mesmo.
Aquele pequeno período de reflexão foi o suficiente para me fazer
endurecer as expressões e resgatar os meus objetivos. Eram poucos, os únicos
que eu tinha e que me faziam existir sem que fosse tão doloroso. Além de
manter Tritáo seguro, acabar com a raça da Íris era o que me impulsionava a
não voltar para o alto da rocha e lá permanecer até o fim das eras. Por este
motivo retornei à gruta o mais rápido que pude, dando passadas largas e
decididas.
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Procurei Íris na pedra onde eu a tinha deixado, porém nada encontrei.
Guiei os olhos atentos na superfície do poço, imaginando que ela poderia
estar se banhando na água doce, o que seria perigoso porque eu sabia que
Tritáo não se manteria prudentemente escondido. No entanto, ela não se
encontrava lá. Tudo estava imerso no mais completo silêncio, e pude até jurar
que ele gargalhava às minhas custas.
Onde Íris estava, afinal?
— Tritáo! — bradei com a voz dura e grave, como sempre fazia
quando o moleque aprontava. Eu não estava disposto a mergulhar por um
bom tempo, por isso invoquei sua presença na superfície.
No instante seguinte, a criatura emergiu com o rosto inexpressivo. Eu o
conhecia o suficiente para ter certeza de que, sim, ele tinha aprontado mais
uma vez.
— Onde está Íris?
— Íris? Que Íris? — Olhou ao redor, desconcertado. Sua tentativa de
me enganar era patética. Eu já tinha ouvido dizer que os adolescentes eram as
criaturas mais difíceis de lidar que habitavam o planeta, mas Tritáo me
parecia um espécime raro em muitos momentos. Sua personalidade afastava
qualquer um de meus interesses em manter uma boa convivência.
Suspirei profundamente antes de bradar de novo:
— ONDE ESTÁ A MORTAL?
— E-Eu não sei, Netuno. Estava nadando em paz, solitário, como
sempre faço. O senhor que a deixou aí em cima — apontou para a rocha.
Revirou os olhos de maneira tal que me encheu de possessão. Prendi os
punhos até sentir meus ossos estalando. — Não tenho autorização para ficar
na superfície, lembra?
Se eu possuía algum conhecimento em minha longa existência,
certamente um deles era que Tritáo não sabia mentir. Sabia também que não

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adiantaria questioná-lo, pois a criatura era cínica como a maioria das outras,
além de que Íris estava sozinha em algum lugar na ilha e poderia arranjar
outra confusão com muita facilidade.
— Volte para a água e não me desobedeça novamente, ou precisará
sofrer todas as consequências — soltei a ameaça sem qualquer pudor,
encarando-o com o olhar frio. Tritáo nada falou, apenas submergiu, porém
não antes de demonstrar sua indignação através de uma careta que não me
abalava.
Deixei a gruta com os pensamentos ainda mais conturbados do que
antes. Entretanto, precisava encontrar Íris com urgência, saber se estava
intacta depois do feitiço de Anfitrite e, claro, continuar a perturbá-la com a
minha constante presença. Não demorou muito e eu a encontrei no meio da
mata, segurando um punhado de galhos de diversos tamanhos, tão
concentrada na tarefa que sequer me viu.
Passei algum tempo, mais do que deveria, observando seus modos
delicados e, ao mesmo tempo, empenhados. Não sabia quais eram seus
objetivos ao realizar aquela colheita, mas Íris me parecia uma guerreira
enfrentando cada obstáculo com aquele olhar encantadoramente claro e
compenetrado. Eu a enxergava claramente como uma deusa voraz, trajando
uma armadura reluzente enquanto protegia o seu povo dos poderes das trevas.
Observá-la em tão curioso cenário permitiu que o meu imortal coração
acelerasse, tragando o meu fôlego em uma velocidade que considerei
absurda.
Ela não deveria possuir tanto poder sobre o funcionamento do meu
corpo. A ideia me deixou imerso em revolta e ódio, o que me fez gritar bem
alto para assustá-la e tirá-la daquela posição confiante em que se mantinha.
Como previsto, Íris se assustou, soltando um grito fino e derrubando todos os
galhos no chão. O pavor em seus olhos foi tão absoluto que ela saiu em

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disparada sem nem mesmo visualizar o que a tinha assustado.
Soltei um leve riso desdenhoso, satisfeito com minha atitude. Tirá-la da
posição de guerreira era o que eu deveria fazer dali em diante, até que Íris
mostrasse toda a sua mediocridade e, enfim, se fizesse desinteressante aos
meus olhos. Toda aquela beleza e coragem cairiam por terra quando meu
coração percebesse o quanto ela era uma imbecil.
Eu a segui como a fera que ela acreditava ser real faria. Farejei seu
cheiro entre a mata até alcançar a praia do outro lado da ilha, onde a humana
finalmente havia se cansado e se jogado na areia com a respiração pesada.
Aproximei-me, impondo o meu tamanho e carregando o tridente ao lado do
meu corpo despido. Não me importava mais em deixar nem minha pele e
nem o tridente visíveis. Talvez Íris precisasse tomar conhecimento sobre
quem era que mandava naquelas terras.
— Neto? — ela arfou, ainda jogava na areia e com dificuldade para
respirar. — O que faz aqui? Ordenei que ficasse do outro lado e...
— Você não ordena nada, Íris — eu a interrompi bruscamente. Estava
sem paciência para fingir ser alguém agradável. Minhas estratégias
precisavam mudar com urgência se eu quisesse ser coerente. — Quem pensa
que é para me impor ordens?
— Saia de perto de mim! — Íris se levantou como se já soubesse que
eu era a única fera da ilha. — Você é chato pra cacete e se acha a última
bolacha do pacote!
Soltei uma risada repleta de ironia.
— E você é uma mal-agradecida — apontei o tridente na direção dela
apenas para sentir o poder vibrando em minhas veias junto com a certeza de
que, se eu quisesse, ela seria feita em milhões de partículas em questão de
segundos.
— Ah, é? Quer dizer que ainda preciso te agradecer? Por quê? — Íris

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colocou as mãos na cintura com ar de deboche.
— Porque eu a salvei da morte incontáveis vezes e não recebi nada
além de sua ignorância — retruquei, começando a ficar verdadeiramente
irritado. Íris me tirava do sério com grande facilidade. Arrancava-me o
controle sobre minhas próprias reações. Falar com ela jamais era uma atitude
previsível.
— Você sabia que tinha água doce nessa ilha e não me contou! Deixou
que eu ficasse desidratada. — Deu alguns passos para trás, talvez assustada
pela minha proximidade ou talvez apenas por não me querer por perto. — Eu
podia ter morrido! O que você quer de verdade, Neto, me matar? É isso?
Fechei as expressões e soltei, sem pensar:
— Se eu quisesse matá-la, não a teria salvado tantas vezes! — Apenas
depois que pronunciei aquelas palavras foi que percebi o quanto estava
agindo com incoerência. Ela me perturbava até o último fio de minha
sanidade. — Você é uma criatura arrogante.
— Eu? Arrogante? — Foi a vez de Íris rir em escárnio. — Olha só
quem está falando. Você é um poço de arrogância, Neto. Além do mais, eu
sei muito bem quem você é.
— Sabe? — Aquela informação me sobressaltou. Tritáo... Só podia ter
sido coisa dele. Claro que aquele moleque não manteria a boca fechada ao
meu respeito. — O que você sabe?
— Sei que é uma criatura mítica. Sei que... — Íris olhou para as minhas
pernas. — Que você tem uma cauda. É por isso que age de um jeito tão
esquisito! Eu sei quem você é, Neto, não tente me enganar!
— Você não sabe absolutamente NADA sobre mim.
Eu me aproximei com o único intuito de intimidá-la. Achei que Íris
fosse se encolher feito uma medrosa, ou mesmo se afastar como estava
fazendo segundos antes, mas, para a minha surpresa, ela ergueu o olhar para

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o meu rosto e ficou me desafiando de um jeito firme, como se, de alguma
forma, fosse párea para mim. Só não senti pena de sua triste figura porque
aquela coragem me deixou estático.
— Sei que é um infeliz de merda — ela cuspiu as palavras, ainda me
olhando atentamente, oferecendo-me dois pontos luminosos que atingiam o
meu peito sem qualquer aviso. — Que não sabe o que é ser cordial, gentil ou
bondoso. Sei que é orgulhoso, individualista e... esquisito. Bem esquisito
mesmo.
— E você é uma metida que se acha a sabichona, a dona de todo
conhecimento do mundo — rebati, cuspindo as palavras grosseiras de volta.
— Acha que sabe de tudo, mas não passa de uma ignorante retardada.
— Você é insensível, amargurado e não sabe lidar nem consigo
próprio!
— Você é... — parei, percebendo que havíamos nos aproximado
demais. Íris estava tão perto que sua respiração batia no meu peitoral,
provocando-me arrepios fora de contexto. — Você é... — Não consegui achar
qualquer outra palavra que a definisse além de encantadora, mas me recusei a
proferi-la.
Íris, por outro lado, prosseguiu com suas grosserias:
— Você é incapaz de ser gentil, não sabe lidar com uma mulher, não
sabe...
Eu a calei tão depressa que Íris se sobressaltou. Puxei seu rosto de
encontro ao meu e grudei nossos lábios com pressa, sem a menor delicadeza
e com todo aquele desejo vibrando em meu corpo. Não me importei em
estarmos no meio de uma briga, de ter sido humilhado de várias formas por
aquela maldita humana, só pensei em aplacar aquela vontade de beijá-la, de
tomar o seu corpo e de fazê-la minha o mais depressa possível.
No princípio, Íris pareceu relutante, mas logo seu corpo foi amolecendo

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de encontro ao meu, de forma que consegui guiá-la e apoiá-la no tronco do
coqueiro mais próximo. Ela passou a me devolver o beijo com a mesma gana
que eu utilizava para mover nossas bocas e línguas. Colei meu corpo no dela
e a senti tão pequena e frágil, mas ao mesmo tempo tão entregue e decidida.
De uma forma inimaginável. De um jeito que jamais pensei que alguém que
parecia me odiar tanto poderia agir.
Apertei minhas mãos grandes em sua cintura e submeti sua pele ao meu
encontro, para que sentisse a firmeza que crescia entre as minhas pernas e era
a mais pura tradução daquele desejo infundado que eu não conseguia parar de
sentir. Usei tanta força para recuar, em vão, que acabei conjurando uma
intensa tempestade à nossa volta.
As nuvens se agruparam e uma chuva pesada, com gotas fartas e
congelantes, encontraram nossos corpos. Toda aquela energia conjurada
atravessava o meu corpo e, eu sentia, o da Íris também, como se o meu poder
a pertencesse por completo. O momento se tornava cada segundo mais
intenso, bem como a força da natureza a nossa volta, mas mesmo assim não
paramos. Não ousamos encerrar o beijo.
Eu sabia, no fundo de meu espírito imortal, que nada no mundo me
faria encontrar a capacidade de parar.

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CAPÍTULO 15
Íris

Não sei como de uma discussão com troca de ofensas, acabamos nos
beijando, grudados contra um tronco de árvore. Aquilo não fazia o menor
sentido, mas quem estava pensando? Eu, com certeza, perdera a capacidade
de reflexão assim que os lábios de Neto se grudaram aos meus. Por um
segundo, apenas um segundo de clareza de pensamento, tive certeza de que
não deveria permitir tal ousadia. No instante seguinte, porém, algo
extraordinário aconteceu e tomou toda a minha consciência.
Uma força me inundou como uma tempestade interna, de tal forma que
parecia fluir e nos envolver, inclusive por fora. Era uma energia boa, que
nunca havia experimentado na vida, por mais que tivesse buscado de
inúmeras maneiras. Nunca houve relação ou emoção que me fizesse sentir
algo tão intenso, poderoso e fantástico. E também tão instável, furioso e
inexplicável. Meu corpo tentou traduzir a sensação e a única palavra que
chegou perto de defini-la foi “divina”.
Também havia contraste. Enquanto eu me aquecia por dentro, as peles
quentes se esfregando uma na outra sem interrupção, à nossa volta soprava
uma furiosa e gelada ventania, que carregava em si gotas grossas e frias de
chuva. Eu nunca tive medo de tempestade, por isso, nunca temi Neto. Ele era
como a chuvarada, se derramava sem piedade, despejando tudo o que sentia
sobre mim. Sua intensidade me irritava, não porque ele fosse sincero, mas
porque não se importava em medir palavras ou ofender gratuitamente a única
companhia que possuía naquela ilha.
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Mas ali, entre meus lábios e em contato com meu corpo, Neto era
apenas um homem extravasando seu desejo mais profundo. Seu pau duro
comprimido contra minha barriga me garantia que eu também o deixava
louco, excitado e fora de si. Naquele momento, éramos como dois selvagens,
atraídos um para o outro e ignorando qualquer coisa que nos quisesse impedir
de ir até o fim. Eu, definitivamente, iria contra as leis do Universo para
chegar ao ápice daquela emoção irrefreável.
Neto era a personificação da força da natureza e eu me vi
irremediavelmente envolvida por ele, contrariando tudo o que vivi e acreditei
antes de conhecê-lo.
Seu beijo tinha a ferocidade de um monstro faminto e minha ânsia era
saciar aquela vontade com meus lábios. Também não sabia de onde vinha
meu próprio desespero, como se eu pudesse ser desintegrada por um raio se
não o tivesse logo. A água da chuva nos abarcava como uma concha
protetora e eu a bebia, doce feito mel, direto do amargor duro e seco da
língua de Neto. Ele me beijava como se não acreditasse na própria atitude e
no próprio ardor.
Um rugido feroz nasceu em sua garganta e cresceu até explodir na
minha boca, como o gemido mais dolorido que jamais ouvi.
Não tive medo. Meu corpo todo estremeceu e correspondeu à tamanha
explosão de sentimentos. Percebi que atender àquele desejo também ia contra
tudo o que Neto fizera até então e ele lutava para não se render, mesmo que já
tivesse entregue, de corpo e alma. Quantas vezes ele tentou me assustar, me
afastar, me fazer odiá-lo? E, mesmo assim, lá estava eu, sedenta por mais um
gole de sua arrogância desintegrada na mais pura e carnal paixão. Eu me
liguei a ele de maneira magnética e nada naquele mundo, naquela ilha e na
minha consciência me faria correr para longe, quando ambos queríamos estar
perto e misturados como a chuva fazia parte de nós.

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A água que eu engolia pareceu se tornar lava dentro de mim, conforme
adentrava em minhas entranhas. De alguma forma sensacional, era como se
Neto compartilhasse comigo suas sensações através de magia. Eu só queria
que aquele gigante me preenchesse com sua rudeza e seu imenso pau, que já
tivera muitas oportunidades de vislumbrar. Suas mãos pareciam garras ao
redor da minha cintura e a sensação de seu poder me deixou extasiada.
Queria dizer a ele que tudo ficaria bem, que podia me ter sem medo,
mas eu não tinha como afirmar isso nem para mim mesma, portanto, seria
tolice. Meio frustrada, eu o agarrei pelos cabelos, como se fosse o único
culpado por meu descontrole, e puxei os fios com força pela raiz. Finquei as
unhas em seu ombro enorme quando não teve nenhuma reação à minha
brutalidade. Seu grunhido foi gutural, daquela vez, afastando qualquer
sofrimento que ele pudesse estar sentindo.
Era isso que eu queria. Trazer Neto de volta à briga. Ele tinha que saber
que aquilo não seria, nem de longe, como qualquer outro sexo que já provara.
Se a experiência seria diferente para mim, faria questão de tornar o momento
memorável para ele também. Já estava claro para mim que a gente só
conseguia se entender brigando, xingando, ferindo. Talvez aquele fosse nosso
clímax, a máxima de nossa compreensão mútua. Se era guerra que ele queria,
era guerra que iria ter.
Neto bufou como um animal e prendeu meu lábio inferior entre os
dentes, até me fazer chiar de dor. Raspei minhas unhas em suas costas,
sentindo na ponta dos dedos a força de seus músculos incríveis, enquanto se
moviam. Não vi acontecer. Só senti minha pele esfolar quando aquele homem
bruto rasgou meu maiô de natação, bastante reforçado para a costura se partir
com tanta facilidade. A ideia de que ele podia me quebrar em duas,
facilmente, não me amedrontou, mas me excitou em um nível acima do
limite.

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Só podia ter pirado de vez com a ideia de que o perigo me estimulava.
Sempre fui pacata, apesar de ser determinada e confiante. Nunca vivi
grandes aventuras a não ser o surf e a natação. Eram meus únicos perigos
reais, fora o que todo humano enfrenta no seu dia a dia, em um mundo cheio
de maldade. Mas eu respeitava meus pais e treinador, tinha amigos com quem
me relacionava muito bem e um noivo, que foi praticamente meu único
namorado sério, desde a adolescência. Talvez fosse isso que me atraía em
Neto e na ilha: a chance de viver algo completamente novo.
E eu nem sabia se teria a minha vida pacata de volta. De repente, a
raiva me encobriu como um tsunami. Tive ódio de Neto, por me tratar com
desprezo e não admitir que me desejava, mesmo quando me salvou tantas
vezes e decerto me levou para aquela ilha deserta a fim de aplacar a própria
solidão. Mas ele lutava contra o que sentia e o que queria para si, e isso me
revoltava. Se tinha uma coisa que eu nunca faria era sabotar a mim mesma.
Assistir alguém fazendo isso me tirava do sério.
No entanto, no momento em que fiquei completamente nua, e a água
escorrendo entre nossos corpos pôde me tocar, assim como a quentura
daquele homem teimoso me atingiu, houve uma explosão. Percebi através de
minhas pálpebras fechadas que o céu escuro da tempestade se rasgou em um
raio, logo depois do trovão. Urrando, o gigante me ergueu pelas pernas, que
laçaram sua cintura, e esfregou seu pênis na entrada da minha vagina,
fazendo-me perder o juízo de vez.
Largando minha boca pela primeira vez desde que começamos a nos
beijar, Neto mordiscou meu rosto, lambeu meu pescoço e sugou meu ombro.
Eu ardia, provavelmente na mesma intensidade que ele, aquele ser que
identificara como mítico, o que só me deixara mais curiosa para conhecê-lo
melhor, inclusive da forma bíblica. Aquela força divina se entranhava em
mim a cada vez que seu quadril se movia de encontro ao meu, ainda que não

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tivesse me penetrado.
O contato já bastava para me levar a um estado de tesão tão grande que
foi impossível conter o grito quando o orgasmo veio.
Por um segundo, tive a impressão de que o mundo havia parado, mas
nós não. A sensação foi como se o clímax se prolongasse pela eternidade de
um instante. Sentia meus lábios entreabertos, mas não ouvia som. Olhei para
Neto, que sugava um dos meus mamilos de forma ininterrupta e deliciosa,
enquanto ainda atiçava meu clitóris com sua ereção. Mas, ao observar além
de nós, as gotas da chuva e o vento estavam suspensos.
Em seguida, ouvi o eco do meu grito e as gotas voltaram a cair feito
agulhas gélidas sobre nossos corpos quentes. Não tive tempo de questionar o
que tinha acontecido, só de continuar sentindo os últimos resquícios do gozo.
Os dentes de Neto brincaram com os bicos dos meus peitos e suas mãos
apertaram minha bunda com tanta força que eu achei que pudesse gozar de
novo só com aquilo. Era extraordinário como eu me sentia um elemento dele
e de suas emoções, como se fôssemos apenas um.
Erguendo-se e me encarando com uma careta de mais puro prazer, Neto
fez seu pau deslizar para dentro de mim, soltando um grunhido animalesco.
Em uma única estocada, estava tão fundo que perdi o fôlego, com seus lindos
e expressivos olhos verdes totalmente focados nos meus. Aquele mesmo
fenômeno se fez presente, transformando o cenário à nossa volta em um filme
pausado. Sem me importar com mais nada do que a sensação de
preenchimento, fechei os olhos e senti sua mão imensa envolver minha nuca
e puxar minha cabeça para si.
Pareceu demorar uma vida inteira para Neto se mexer dentro de mim,
como se estivesse se acostumando a me ter tão intimamente. Suas arremetidas
foram mais fortes e intensas do que eu esperava quando começaram, fazendo-
me sacudir em um misto de loucura e encanto. Até o coqueiro atrás de mim

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sentiu o baque da força que o gigante empregava, curvando-se a cada novo
ataque. Estranhei o fato de não me machucar, talvez pelo tempo ter
literalmente estagnado.
Em um estalo, o tronco se partiu e tombou, levando-nos ao chão.
Segurando-me com firmeza, Neto amorteceu nossa queda e nos rolou pela
areia, ainda conectados, a fim de que eu não recebesse o impacto diretamente
no meu corpo. Não senti nenhum receio de me machucar. A confiança que
depositei naquele bruto teria me causado estranheza, se eu não estivesse com
a cabeça bem distante dali.
A raiva passava e deixava um misto de desejo e alegria nas minhas
entranhas. O beijo não se interrompeu enquanto giramos e giramos na praia,
sendo acariciados pelas gotas da chuva paralisadas no ar, ao serem impedidas
de continuar seu curso natural. Terminei deitada embaixo daquele homem
enorme, que me beijava como se não o fizesse há muito, muito tempo.
Segurando-me pelos cabelos, seu quadril voltou a se movimentar de encontro
ao meu, causando-me frenesi.
Minhas mãos foram parar naquele traseiro duro e firme, puxando-o
para mais perto e mais fundo. Como eu desejei tocar naquela bunda! Abracei
seu quadril com as pernas e me apertei a ele, sentindo seu peitoral rígido
comprimir meus seios e a fricção eriçar meus mamilos intumescidos. Sua
língua se movia na minha boca como uma serpente, fazendo amor com ela da
mesma forma que seu corpo fazia com o meu.
Neto bufou na minha boca, conforme acelerava o ritmo, e seu controle
se esvaziava como a vazão de uma represa. Um novo orgasmo me alagou,
fazendo-me contorcer e erguer o tronco em um arco. Enfurecido como uma
fera, e respirando com dificuldade, ele afastou nossas bocas, emaranhando
seus longos dedos nos meus cabelos molhados, enquanto buscava seu próprio
alívio.

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Seus olhos verdes tocaram os meus como o mar se encontra com o azul
do céu em um dia de sol, e me aqueceram como fogo. Pude ver o exato
instante no qual ele se unia a mim, naquela eterna e fugaz morte que era o
gozo. Como da primeira vez, a sensação se prolongou por mais tempo do que
devia, de uma maneira mágica e inexplicável.
Quando o clímax se tornou brasa e se apagou, a chuva voltou a cair,
ricocheteando nas costas largas de Neto. Seu olhar comia o meu, em uma
mistura de doçura e fúria, como se essa última não pudesse desaparecer
jamais. No entanto, conforme sua respiração acalmava, as nuvens se
dissipavam e a chuva diminuía, até acabar. Apoiado sobre os próprios
cotovelos e joelhos, a fim de não me esmagar, senti seus olhos me
perscrutarem, entre curiosos e preocupados.
— Uau! — exclamei, dando vazão ao primeiro pensamento que me
ocorreu. — Isso foi sensacional!
A ideia de fazer sexo selvagem com Neto de novo, e experimentar mais
daquela poderosa e mágica conexão, fez morada em minha mente.

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CAPÍTULO 16
Netuno

Em alguns raros momentos de minha prolongada existência, confesso


que cheguei a me sentir como se fosse um humano. Não por pensar que a
mortalidade corria em minhas veias, visto que o poder jamais me
abandonava, porém por acreditar que o misto de sentimentos em meu peito
me levaria a um estado de quase morte. Quando vi Cássia pela primeira vez,
supus estar mais vivo do que nunca. Encontrei o amor em sua forma mais
despretensiosa. Ao ser rejeitado, ao sentir dor, tristeza, mágoa e, em seguida,
ódio, acreditei ser uma criatura comum, igual a todas as outras capazes de
sofrer em agonia sem que nada fizesse cessar.
Fazia eras que eu não deixava nada além do ressentimento dominar os
meus sentidos, e a situação se manteve confortável para mim. Entretanto,
com Íris em meus braços, enquanto sua boca procurava a minha e o seu corpo
se encaixava ao meu com perfeição, algumas emoções tanto humanas quanto
divinas se misturaram em uma loucura fantasiosa e excitante, arrebatando-me
de um jeito nunca esperado. O poder de deus que eu exercia sobre a natureza
saiu de meu controle, mas ao mesmo tempo podia ser manipulado conforme
as sensações humanas me invadiam. Jamais havia me sentindo tão
maravilhosamente descontrolado, já que nenhuma emoção terrestre fazia
sentido para mim.
Então, mais uma vez, aquele estado de quase morte foi alcançado
através de um êxtase intenso, profundo, enquanto penetrava Íris e a sentia se
contorcer sob meu corpo despido e teso. Fui humano mais uma vez, com toda
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a vulnerabilidade que lhe cabia, toda a confusão mental e física, os instintos e
a sensação absurda de que a vida poderia acabar a qualquer momento. Minha
existência se tornou fugaz, tão rápida quanto um sopro, passageira como uma
nuvem de chuva. Por um mísero instante, a perda de sentido encontrou uma
razão para existir e se fez presente em meu espírito. Eu me encontrei e me
perdi em uma encruzilhada, e de repente soube qual caminho deveria seguir
porque, no fundo, era exatamente aquele que eu queria percorrer.
O maior problema de todos era que seguir por aquela estrada seria mais
do que extrema imprudência, seria burrice de minha parte. Loucura.
Insensatez. A pior escolha que eu poderia tomar por mim mesmo, visto que
só me traria mais dor e amargura. Era um caminho deveras tortuoso e eu
sabia que não poderia voltar caso me arriscasse. Não poderia haver riscos.
Porque a verdade era única: Íris jamais mereceria ser dona de meu
descontrole. Eu nunca mais cometeria atitudes passionais movidas pelas
sensações humanas que teimavam em me enganar.
Engano... Era o que tudo aquilo significava. Nenhum sentimento era
como eu imaginava que fosse. Todos vinham acompanhados da mais pura e
dolorosa mentira em sua própria forma de ser. Eram grandes ilusões criadas
pelos deuses mais cruéis, e tolo seria quem se deixasse enganar por elas.
Encarei Íris por um tempo incalculável enquanto raciocinava sobre o
que tinha acabado de nos acontecer. A princípio, tive medo de tê-la
machucado. Um receio incoerente, visto que seu bem-estar não deveria ser
um fator importante para alguém que desejava matá-la. Depois, senti vontade
de prosseguir, de entregar mais daquela luxúria, de beber mais do sabor de
seus beijos e de lamber sua pele como se fosse uma fruta doce. Eu me contive
no último instante porque uma simples lembrança me fez compreender a
inverdade de nossa atitude insensata. Aquela mulher era noiva, possuía outro
dono e, pela forma como o chamava, o homem em questão estava incrustrado

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em seus mais profundos pensamentos.
Ainda assim, como uma qualquer, ela havia se entregado a mim,
traindo a confiança do noivo e o próprio sentimento que deveria nutrir por
ele. As mulheres não passavam de traidoras, seres traiçoeiros que não faziam
a mínima ideia do que significava a palavra fidelidade. A raiva queimou a
minha retina enquanto a observava com atenção. Tudo o que pude sentir se
transformou no mais puro ódio, e me vi levantando da areia e me
distanciando o mais depressa possível. Peguei o tridente, que estava jogado
sem cuidado em algum ponto da praia.
Não sabia para onde seguir de forma que me mantivesse longe o
bastante para não ser importunado, talvez por este motivo tenha caminhado
na direção do oceano. Íris, por sua vez, correu até se colocar na minha frente.
— Ei! — depositou o dedo indicador em meu peito, como se o simples
toque me fizesse parar qualquer coisa que estivesse prestes a fazer. — Para
onde pensa que está indo? Vai me deixar nua, jogada na areia, depois do que
fizemos?
— Pode ter certeza de que é a forma mais misericordiosa que encontrei
para deixá-la, Íris — desviei o rosto, pois mal conseguia olhar em seus olhos.
Não queria enxergar a mentira, a perversidade, tão de perto. Ainda me
incomodava profundamente acompanhar a crueldade alheia. A minha própria
já bastava.
Íris se manteve em silêncio, mas logo ofegou de um jeito estupefato.
— Não dá pra acreditar que você é tão cretino assim.
— Cretino? Eu? — rosnei entre dentes, ainda evitando encará-la. —
Admito que não sou a mais inocente das criaturas, mas chamar-me de cretino
enquanto você age como uma vadia é, além de mesquinharia, uma atitude
cínica.
Íris soltou outro ofego, daquela vez indignado. No instante seguinte,

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sua mão espalmada se chocou contra o meu rosto em alta velocidade. Não
senti dor, mas o fato de não estar preparado para aquilo fez minha face virar
para a direita totalmente. No impulso, levei uma mão para o ponto onde fui
atingido e a olhei, pasmo. Íris estava com a ira instalada em seus olhos claros.
— Nunca mais me chame de vadia, mesquinha e cínica, muito menos
na mesma frase! Ouviu bem, Neto? — rosnou com ferocidade, demonstrando
estar extremamente irritada. Nunca a vi daquela forma, ainda que tenhamos
brigado bastante desde que nos encontramos. — O que eu deveria esperar de
um ogro feito você? — riu em deboche, sem sentir a menor graça. — Por
mais que seja uma criatura cheia de magia, jamais será alguém decente.
— Não sei onde está a decência em uma mulher que se diz
comprometida e se entrega para o primeiro que lhe aparece em uma ilha
deserta. Se isso não é agir com indecência, Íris, então não sei o que é.
Ela permaneceu estática, como se finalmente compreendesse os meus
motivos para abandoná-la depois de um momento tão intenso. Como não foi
capaz de responder nada, então supus que havia entendido a própria culpa.
Deixei-a para trás e continuei andando na direção do mar. Eu não queria
mergulhar, porém qualquer coisa era melhor do que permanecer em sua
companhia perturbadora. Sobretudo, não queria arriscar cair em tentação e
cometer a insanidade de cair em sua armadilha outra vez.
— Espere! Neto! — Senti-a correr atrás de mim. Apressei o passo. —
Neto, espere! Sei que foi errado de minha parte, mas eu... Neto!
Não queria ouvir qualquer justificativa. Sabia que as mulheres também
tinham grande capacidade argumentativa, manipulavam com facilidade e, no
fim das contas, era provável que eu ainda precisasse lhe pedir desculpas.
Venci os últimos metros que me separavam da água e emergi de uma vez,
deixando Íris para trás de uma vez por todas.
Minha cauda não tardou em surgir, facilitando meus movimentos e me

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devolvendo a velocidade de um deus para me locomover. Em poucos
segundos, estava tão afastado da ilha que era humanamente impossível que
Íris me acompanhasse. Algumas criaturas marinhas me ignoravam conforme
eu passava por elas. Algumas fugiam, temerosas, outras me ofereciam olhares
inquisitivos. Apenas uma se aproximou, e revirei os olhos ao perceber que
era o Nestor.
— E aí, todo-poderoso, se deu bem, hein? — gargalhou de forma
sonora, esguichando.
Ser flagrado pelo Nestor era o que me faltava para que o ódio se
enraizasse de vez em minhas entranhas.
— Você é a criatura que mais se mete onde não é chamado que já
conheci. Teve a capacidade de xeretar tudo pela superfície?
— Mas é claro! Não podia perder o momento de amor entre um deus e
uma humana. Deu para sentir a magia nos sete mares. — Nestor abriu um
sorriso zombeteiro, mostrando todas as suas presas de golfinho. — Fizemos
até apostas.
— Apostas? — parei de nadar para encará-lo, surpreso. — Quem fez
apostas? Por quê?
— Apostamos que o senhor se apaixonaria pela humana. Tem uma
turma que acha impossível de acontecer de novo.
Cruzei os braços na frente do corpo. Custei a acreditar que, mais uma
vez, eu estava sendo motivo de chacota entre as criaturas marinhas.
— E a qual turma você pertence, criatura chata das trevas? —
questionei, utilizando o mesmo ar desdenhoso que ele. Minha vontade era de
sair destruindo tudo e todos que encontrava em meu caminho, mas eu teria
que prestar contas a Saturno e não queria entrar em contato com meu pai nem
tão cedo.
— Torço sempre pelo amor, meu bom deus! — Nestor falou,

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gargalhando.
Não me deixou responder nada, nem mesmo conjurar um golpe que o
partisse ao meio de uma vez, como era minha vontade, apenas nadou para
longe, de um jeito animado que me irritava profundamente. Uma força
esquisita adentrou as águas, mas a ignorei depressa porque nada mais me
interessava além da vingança.
De uma coisa eu tinha certeza: o oceano precisava compreender quem
ainda estava no comando. Não aceitaria, de forma alguma, ser desrespeitado
pelos que deveriam me reverenciar. Foi por isso que girei o tridente usando
bastante força, agitando em arcos até o poder se aglomerar em minhas mãos.
Uma fonte luminosa cresceu até ficar do tamanho de uma grande rocha.
Bradei para que todos ouvissem:
— Eu juro que, se mais uma criatura fizer apostas ao meu respeito,
destruirei os sete mares, um a um, e todas as criaturas que neles habitam!
Aquele aviso em forma de ameaça seria o suficiente, por enquanto.
Sabia que todos os seres estavam cientes, onde quer que estivessem. Meu
poder de alcance era total dentro do oceano. Com um movimento mais
brusco, empurrei o círculo luminoso para cima, sabendo exatamente o que
queria.
Um dia seria suficiente. Vinte e quatro horas de tempestade em todo o
planeta, com absolutamente todos os mares revoltosos e todas as criaturas em
alerta. Era o castigo divino que sempre chegava, e que se mostrava merecido.
Ou aprendiam a me respeitar, ou pagariam caro por tanta desconsideração.

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CAPÍTULO 17
Íris

Por um instante, Neto me pareceu terrivelmente vulnerável, enquanto


me analisava com seus olhos confusos. Por apenas um segundo, ele deixou de
ser um gigante assustador para voltar a ser um menino perdido, e aquela
percepção fez meu coração bater em um novo ritmo. Acreditei, piamente, que
ainda havia esperança em seu peito. Se não, por que a dúvida?
Ledo engano. No momento seguinte, lá estava o ogro de volta,
cuspindo lama e nojeiras na minha cara. Como alguém conseguia ser tão
ordinário? Tudo bem que não existia justificativas para o que eu fizera, afinal,
era uma mulher comprometida. Porém, que direito ele tinha de me julgar por
meus erros, quando ele próprio tinha telhado de vidro?
Nunca fora tão humilhada por alguém que eu gostava. Não tinha para
quê negar o sentimento que estava ali, independente de Neto fazer por
merecer. Também nunca fui abandonada, sozinha, sem explicações, após o
sexo. Aquilo me deixou transtornada. Eu não queria que ele fosse, por isso
corri em seu encalço, mesmo que já tivesse mergulhado e nadasse para bem
longe de mim.
Parei à beira d’água, sentindo um aperto tão grande no peito que
simplesmente deixei as lágrimas caírem, enquanto avistava uma cauda
dourada sugir na superfície e submergir. Paralisei de susto ao dar de cara com
aquela criatura mítica de novo, tomando consciência de que eu estava certa.
Não era o que importava naquele momento. Eu não queria estar certa, eu
queria que Neto fosse sincero comigo e que parasse de se esconder. Será que
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eu corria algum risco de vida ao estar tão íntima de um ser com poderes que
eu desconhecia? Chorei de medo, abandono e raiva.
Neto não precisava ser tão cruel comigo. Ele tinha escolha, poderia ter
medido as palavras ao expressar sua decepção. Eu havia me esquecido
completamente de Gil. Admitia minha culpa e meu erro, que não podiam ser
amenizados. Se alguém não merecia ser traído de forma alguma, esse alguém
era meu noivo.
Mas quem Neto pensava que era para tomar as dores de uma pessoa
que nem conhecia? Quem ele pensava que era para condenar meu
descontrole, quando ele próprio carregava e despejava pedras e mais pedras
contra mim, sem motivo algum? Ele não estava na minha pele, não carregava
as minhas dores e nada sabia sobre a minha vida. Não tinha moral alguma
para dizer o que pensava sobre minha atitude. A única pessoa que podia dar
sua opinião era Gil e ele jamais seria um cretino como Neto.
Na verdade, o homem-peixe, mesmo sendo um ser mítico, com poderes
sobre o clima, jamais teria a honradez de um ser humano, gentil e prestativo,
como Gilberto. O que adiantava ser tão poderoso, se não havia bondade nele?
Temi mais ainda continuar tão próxima de uma criatura tão instável. Com
certeza, ele poderia me matar com um estalar de dedos. Daquela vez, a ideia
de ser violada não me excitou, pelo contrário, me encheu de pavor.
Finalmente, compreendi a verdade sobre Neto e que eu deveria mantê-lo
distante, para ficar segura até minha partida.
Não tinha mais o que pensar. Neto fora um deslize que nunca mais
aconteceria. Eu só precisava voltar para casa, para meus pais e meu noivo,
que deveriam estar desesperados com o meu sumiço. Enxuguei as lágrimas,
com minha coragem renovada. Não fazia o menor sentido, ainda assim, corri
para as ondas e me joguei no mar, que me acolheu de braços abertos. Nadar
sempre me acalmava.

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O que aconteceu a seguir foi mágico. Minhas pernas formigaram
novamente, como na primeira vez que as senti se mexerem, logo após acordar
naquela ilha encantada, como se pura eletricidade corresse por elas. Antes de
furar as ondas, a sensação cessou e meu corpo passou a nadar com muito
mais velocidade. Intrigada, emergi depois da arrebentação e consegui ver,
através da água cristalina, que no lugar das minhas pernas havia uma linda
cauda, com escamas coloridas em tons de verde e azul, brilhando conforme a
luz refletia nelas.
— Puta merda! Eu virei sereia! Mas como?
Será que o fato de eu ter transado com um homem-peixe havia
modificado meu DNA? Ou era apenas um encanto, decorrente da nossa
conexão? Aquilo me perturbou por apenas um segundo, no seguinte, eu vi
como uma saída para mim. Graças àquela cauda, eu podia nadar até os
confins do mundo, e não morreria nem me cansaria, como uma mera humana.
Ia aproveitar a magia para me afastar daquela ilha de uma vez por todas.
Deixaria Neto e sua arrogância para trás, mesmo que eu desejasse que,
um dia, ele engolisse seu orgulho e aceitasse que se sentia muito sozinho. Eu
simplesmente não ia continuar esperando que acontecesse. Estava farta de ser
tratada tão mal. Ninguém suportava viver daquele jeito. Não fazia ideia de
quanto tempo ele estava naquela condição, mas tinha certeza de que devia
estar no seu limite. Eu chegara ao meu, principalmente ao constatar que, em
um ataque de fúria, ele podia acabar com a minha vida.
Mergulhei novamente e permiti que minha cauda reluzente me levasse
pelo oceano. Não senti nenhuma necessidade de subir à superfície para
respirar. Estava tão determinada e focada que não parei nem para admirar as
belezas naturais do fundo do mar. De repente, fui atingida por uma forte onda
sonora, que me fez estremecer. Cada palavra daquele vozerio vibrou como
uma corda estendida ao máximo pelo meu corpo e neurônios. Pus as mãos

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nos ouvidos, a fim de protegê-los daquele som terrível, porém, a voz de
trovão berrava dentro do meu cérebro.
“Eu juro que, se mais uma criatura fizer apostas ao meu respeito,
destruirei os sete mares, um a um, e todas as criaturas que neles habitam!”
O mar se remexeu como em um caldeirão. Olhei para o alto e percebi
que a luz parara de incidir sobre o oceano. Uma nova tempestade se formava,
carregada de raios, trovões e ventania. Aquela voz soou poderosa e temível,
assim como a de um deus enraivecido deveria ser. Amedrontada, apressei-me
em me afastar de toda aquela estranheza sem sentido, mas quanto mais
avançava, mais a água se tornava revolta. Não tive medo de me afogar, ainda
assim, meu instinto de sobrevivência me mandava tomar cuidado.
Criaturas passavam por mim, agitadas, e esconderam-se conforme
podiam, entre corais, algas, areia e rocha. Continuei em frente, sem ter
certeza de que ia na direção certa. Em algum momento, com certeza,
encontraria um continente, e então poderia me localizar. O oceano pareceu
deserto por alguns quilômetros, até que avistei um golfinho, nadando
tranquilamente, como se nada ao seu redor estivesse acontecendo. Eu
conhecia apenas um boto e ele sempre me parecera inocente.
— Olá, melhor amiga. Que cauda linda! Combina com você. Agora
você é um ser do mar, como eu! Viva! — A voz de Nestor se fez presente na
minha mente, assim como a outra, mas de maneira amistosa e alegre, como
era de seu feitio.
— Não exatamente, mas nesse momento parece que sim — tentei
mover os lábios, mas nenhum som saiu da minha boca além de bolhas de
oxigênio.
— Quer companhia para nadar? Para onde está indo? — animou-se o
boto, me acompanhando na direção da qual veio.
— Para casa.

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— Oba! Finalmente, você conseguiu descobrir como chegar em casa?
— Graças a essa cauda, eu pude fugir daquela ilha.
— Fugir? De quem está fugindo, Íris? — Nestor ficou preocupado e
temeroso.
— De alguém que não merece minha companhia.
— Entendo, conheço alguém exatamente assim.
— Aposto que sim, você nunca está livre de esbarrar em gente desse
tipo.
— É verdade, mas é esse tipo de gente que mais precisa de alguém.
Engoli em seco sua sabedoria inesperada e teria ficado calada se não
estivesse tão puta com certo homem-peixe.
— Quando uma pessoa não quer ser ajudada, Nestor, não adianta
tentar.
Aquilo me pareceu a admissão de uma pessoa derrotada, o que eu não
era.
— Sempre vale a pena lutar pelo amor, Íris. Achei que você entendesse
isso.
E eu entendia, mas a que preço? Não era certo me partir para que o
outro ficasse inteiro. Nunca seria sequer aceitável, muito menos saudável! E
eu não tinha obrigação nenhuma de consertar um troglodita, que preferia
açoites a afago. A vida não fora fácil para mim, portanto, eu me dera o direito
de ser feliz e de afastar tudo e todos que me fizessem mal. Neto era uma das
criaturas desse mundo que eu preferia manter distante.
— Você está certo, Nestor, mas a minha paz e sanidade vêm em
primeiro lugar.
— Ah! Compreendo o que quer dizer. Eu gosto de aventuras, vivo do
jeito que quero, faço minhas acrobacias, procuro fêmeas interessadas em
acasalar, não me privo de rir e me divertir, como eu mereço. Só que seria

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egoísmo de minha parte não dividir essa alegria com quem mais precisa. E o
todo-poderoso é a criatura que mais precisa de felicidade em todos os setes
mares.
— Todo-poderoso?
— Sim, Netuno, o deus do oceano, supremo senhor do mar e das
criaturas que nele habita, como eu e você.
Eu não era um ser aquático, mas havia escutado a ordem e a ameaça.
— Ouvi agora há pouco uma voz furiosa, que pareceu se propagar pelo
oceano como uma onda. Era ele?
O golfinho revirou os olhos e achei a atitude engraçada, como todas as
reações contrárias que tinha.
— Era. Sou muito jovem, então só ouvi as histórias, mas por muito
tempo o deus do oceano foi bom para todas as criaturas marítimas, que o
amavam e respeitavam. E ele os amava com toda a bondade que lhe era
própria. Mas Netuno também foi jovem e inocente, e desde sempre desejava
uma companheira para passar a eternidade ao seu lado. Certo dia, ele avistou
uma humana e foi amor à primeira vista. No entanto, ela o desprezou, e desde
então, ele tem sido um tirano para com todos, isolando-se em uma ilha,
abdicando da própria forma e do dever de governar sobre os sete mares.
Era muita informação para absorver, mas aquilo não tinha nada a ver
com o que eu conhecia sobre mitologia. Fala sério! Eu não podia estar
acreditando naquela história. Em seguida, afastei as dúvidas. Estava
conversando com um golfinho, que me considerava uma amiga, e ganhara
uma cauda de sereia, maravilhosa. Não podia aceitar algumas esquisitices e
rejeitar outras. Não fazia sentido, mesmo se fosse loucura.
— Me parece uma atitude exagerada para um deus que foi rejeitado por
uma mortal — debochei, incrédula.
— Ele não foi só rejeitado, Íris. A humana zombou dele e o chamou de

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pequena sereia, o que o tornou uma piada entre as criaturas do oceano, que
não eram tão puras quanto Netuno. Ele perdeu a admiração e o respeito dos
seus simplesmente por amar alguém diferente dele. No entanto, ao meu ver,
sua atitude deveria ser elogiada. O deus do oceano nada tinha a ver com a
terra. Quem a governa é a deusa da terra e da fertilidade do solo, sua sábia e
amorosa avó. Mesmo assim, ele se permitiu amar, sem barreiras. Você acha
errado?
A mistura de mitologia romana com o conto de fadas da Ariel fez uma
bagunça na minha cabeça. Cada vez mais espantada com as palavras de
Nestor, me permiti refletir antes de lhe dar uma resposta, mais próxima da
correta. Naquela história, eu acreditava que não existia certo ou errado.
Existiam pontos de vistas. E quem era eu para julgar menos ou mais o
sofrimento de alguém, ainda que fosse um deus? Talvez, no caso dele, a dor
seria infinitamente maior, exatamente por ele ter a eternidade toda para vivê-
la. A minha vida era curta e podia acabar a qualquer instante. Então, minha
agonia teria fim.
Bem, se é que deuses realmente existiam. Mas eu não ia questionar o
boto sobre isso. Se ele acreditava, eu que não ia lhe dizer que podia ser
mentira.
— Acho louvável quando qualquer um se permite amar apesar das
diferenças. É um dos amores mais difíceis, ainda que entre criaturas da
mesma espécie. Mas também acredito que seja o mais enriquecedor, mesmo
que não dure. Penso que qualquer relacionamento acontece com o propósito
de nos tornar melhores. Se tiver o efeito contrário, nem deve acontecer.
Agora, se Netuno desconta sua raiva e rejeição nas criaturas que ama, ou
amou, isso o torna mesquinho e injusto. E, como um ser superior, não deveria
se deixar abater pela maldade de criaturas falhas, como nós, os humanos.
Sem perceber, eu me incluía em defesa dos fracos e oprimidos, fazendo

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uma analogia entre o deus do oceano e Neto, que sim, era real, porque eu o
sentira dentro de mim. Entendia o sofrimento de Nestor e das criaturas
marítimas como ninguém. Mas não podia perdoá-los, nem um nem outro, por
justificarem atrocidades devido à dor. Eu era prova de que podíamos tirar
boas lições e vitórias do sofrimento. Não estava ali, nadando como uma
sereia, de volta para casa? Não continuava respirando apesar de todos os
acidentes? Não ia competir na próxima Paraolimpíada? Nós sempre
possuímos a escolha de fazer o melhor com aquilo que temos.
— Você também é sábia, melhor amiga. Lindas e verdadeiras palavras.
Mas, não importa o que se fala pelos sete mares, eu acredito em Netuno,
acredito em sua bondade e no seu amor incondicional.
— Por quê, se ele é um tirano?
— Ninguém perde a sua essência, Íris. Só pode escondê-la por um
tempo. Netuno precisa que voltemos a acreditar em sua bondade, que
tenhamos fé em seu amor e cuidado. Eu tenho muito a oferecer e não vou
desistir enquanto estiver vivo. Um deus existe porque possui devotos, assim
como o amor só existe porque buscamos por ele. E quando o deus do oceano
parar de se esconder, quero estar ao seu lado para recebê-lo com saltos
ornamentais. Então ele vai saber que o amor sempre vence, não importa
quanto sofrimento provoque. O amor sempre está lá, como o céu azul depois
da tempestade.
Chorava ao final da profunda reflexão de Nestor. Sua voz na minha
cabeça ganhou até mesmo um tom menos eufórico e mais sério, na medida do
possível para uma criatura de natureza brincalhona. Parei de nadar e agarrei o
corpo longo e escorregadio do golfinho mais fofo de todos os setes mares. E
olha que eu estava longe de conhecer tudo! O boto riu, reclamando de
cócegas, mas não tentou fugir dos meus braços, que o apertavam com força
comedida. Quando o soltei, estava me sentindo tão bem que poderia flutuar

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até o infinito.
— Obrigada por ser um amigo tão incrível, Nestor. Você me deu muito
no que pensar. Se não se importa, gostaria de ficar sozinha agora.
Ele esfregou o focinho no meu rosto a fim de conter uma lágrima
perdida.
— Claro, Íris. Quando terminar, é só me chamar que eu venho nadando
o mais rápido possível para continuarmos nossa viagem.
Beijei sua cabeça e ele se foi, saltitante como sempre. Desci até o fundo
do mar e me sentei sobre a areia, fechando os olhos. Respirei fundo, mesmo
que não precisasse. Não sabia mais se deveria voltar para casa. Não tinha
certeza de que iria encontrar aquele tipo de amor e bondade que Nestor
narrara em mim mesma, muito menos nos outros. E eram bons demais para
rejeitar. A raiva pela grosseria de Neto havia evaporado e a única coisa que
sobrou no meu peito foi a vontade de amar. Amar daquele jeito,
indiscriminado e sem barreiras.
Eu sabia que ele não merecia, mas, como Nestor me mostrou de forma
tão didática, o amor não era mais necessário onde estava escasso? A
convivência com o homem-peixe, o golfinho e aquela ilha maluca deixara sua
marca, assim como o acidente operava uma drástica mudança em mim há um
ano, desenhando também uma cicatriz nas minhas costas, depois da cirurgia
para tentar curar minha paralisia.
E outra, mesmo merecendo, eu não tinha certeza de que meu amor por
Gilberto era tão grande quanto deveria.
Então, como poderia retornar para um lugar do qual não me sentia mais
parte?

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CAPÍTULO 18
Netuno

A minha própria onipotência era o que fazia com que eu me sentisse


um verdadeiro deus, filho de Saturno e Ops, dono de todo o oceano, senhor
das águas e dos que nelas habitavam. Na companhia de meu tridente, sabia
que podia fazer o que quisesse, e essa consciência era capaz de deixar minha
mente em ordem. O controle estava em meu corpo másculo, em minhas mãos
fortes e nas vontades que me acometiam. Tudo a minha volta existia
conforme o meu desejo.
Foi com a certeza de que eu tinha retomado o comando da minha
existência que nadei por entre as criaturas assustadas. Os cardumes se
escondiam, bem como os crustáceos. Até as algas pareceram se encolher
diante de minha presença. Daquela vez, ninguém me olhou de forma
inquisitiva, estavam todos temerosos. Dificilmente algum ser continuaria
apostando sobre mim, como se meus sentimentos fossem motivos para ser
desdenhado e desrespeitado. Era assim que eu gostava.
Uma força diferente ainda podia ser sentida relativamente próxima. O
mar possuía muitos mistérios e era repleto de energias desconhecidas, de
forma que eu podia senti-las vibrando durante todo o tempo, como se
fizessem parte de mim. Ainda que aquela fosse diferente, não tive qualquer
curiosidade para conferi-la de perto. Não até que pude ouvir aquele timbre
perturbador.
O cântico se assemelhava aos das encantadoras sereias, mas eu sabia
que elas não ousavam se aproximar de minha ilha por serem criaturas deveras
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sensíveis e bondosas. Elas haviam se afastado de minha companhia tão logo a
raiva me consumiu, de forma que fazia muitas eras que não me deparava com
uma. Sendo assim, a curiosidade finalmente venceu a batalha que se travava
em meu peito. A voz era tão apaixonante quanto hipnótica, e eu não podia
deixar de conferir de perto o que aquela doce sereia cantava.
Confesso que fui atraído como uma presa fácil, e só não fiquei irritado
porque ainda sentia o poder circulando em mim e atingindo todos os sete
mares, que naquele momento continuavam revoltosos, amedrontando a todos.
Imaginei que uma sereia comum seria incapaz de cantar de forma tão
despretensiosa durante um castigo oferecido por seu deus, portanto passei a
considerá-la ousada e destemida. Talvez aquele tipo de criatura fosse a ideal
para me fazer companhia; primeiro porque ela conhecia e, como eu, sentia os
poderes do mar, segundo porque éramos fisicamente parecidos. Em terceiro
lugar, nenhuma criatura me ironizaria por ter uma sereia como companheira.
Não seria a mesma coisa de me apaixonar por uma humana de novo. As
sereias, embora hipnóticas, não eram conhecidas no mundo marinho por
serem mentirosas.

Sua cauda dourada brilhou


E um grande amor se anunciou
Mas meu coração humano
Não reconheceu o deus do oceano

Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar

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O maravilhoso timbre se tornava mais firme e melodioso conforme eu
me aproximava. Precisei pausar o mergulho ao me dar conta de que a canção
me dizia respeito. Eu conhecia todos os cânticos feitos para mim, alguns
pelas próprias sereias, mas aquele não era de meu conhecimento. O mais
perturbador certamente foi ouvir a palavra “coração humano” no meio de
uma letra que obviamente se referia a algum aparecimento que fiz.
Permaneci em um estado tão avançado de perturbação que tornei a
seguir aquela desconhecida voz, que não cessou:

Uma lágrima me ofereceu


E o meu pobre coração acordou
Uma promessa o deus me fez
Sou a rainha que ele coroou

Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar

As coincidências na letra eram tão gritantes que um rompante assustado


me fez seguir ainda mais rápido, até visualizar uma linda sereia nadando em
meio aos seres que se afastavam e se escondiam. Ela parecia não perceber o
perigo a sua volta, estava concentrada em balançar a longa cauda esverdeada
e girar em torno de si mesma, com os braços abertos e os seios perfeitos à
mostra. Nadava, fazia piruetas e abria um sorriso amplo capaz de iluminar até

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os mais obscuros corações. O meu coração.
Soltei um profundo suspiro diante de tão glorioso cenário. Poucas vezes
uma sereia havia me deixado tão deslumbrado. Aproximei-me mais com a
intenção de fazê-la perceber que havia me chamado a atenção. Eu queria
saber muitas coisas. Quem ela era, o que fazia ali, por que estava cantando e,
principalmente, o que significava aquela letra, que só fazia ficar ainda mais
estranha:

Um encontro foi marcado


Mas um ser me impediu
O meu bom deus foi deixado
Ouvi quando seu coração partiu

Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar

Só uma lágrima restou...

A sereia parou de sorrir e de rodopiar como uma verdadeira deusa. Os


cabelos longos e escuros se armaram ao seu redor, e então finalmente pude
ver a sua face. Eu a conhecia como ninguém, porque foi aquele mesmo rosto
que, há poucos minutos, contorceu-se de prazer tão perto do meu. No
momento em que ela segurou um ponto luminoso que adornava seu pescoço,
as informações que recebi de uma vez me fizeram tontear. Ela abriu os olhos
claros e me percebeu tão próximo que soltou um grito apavorado.

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Não podia ser. Ou eu estava sonhando ou aquela sereia era a Íris.
— Neto? O que faz aqui? — Ela nadou para trás, escondendo-se perto
de uma formação rochosa repleta de algas. Alguns peixes menores se
assustaram e deram em debandada. — Ops! Não se assustem... Eu... — Íris
tentou chamá-los, mas os pequenos seres estavam tão apavorados que nem
deram bola.
Eu ainda estava tão estupefato que me faltavam até palavras. Não
conseguia descobrir qual havia sido a magia que transformara Íris em uma
sereia. De uma coisa tinha certeza, aquele poder todo não havia saído de
mim. Eu não tinha a capacidade de oferecer pernas, ou caudas, para ninguém.
Mas conhecia alguém que podia.
Só podia significar que...
— Anfitrite! — rosnei, já furioso, sentindo-me traído por aquela
nereide.
— Hã? — Íris arregalou os olhos confusos e temerosos. Ele estava
mesmo com medo de mim? A sensação que me invadiu não foi igual a que
tomava conta de mim quando percebia que causava pavor nas criaturas. Não
me senti poderoso e nem me orgulhei. Muito pelo contrário. — O que é
Anfitrite? Ou quem?
— O que está fazendo aqui? — apontei, sem conseguir conter a minha
ira. — Quem te transformou em sereia?
— E-Eu... Ninguém, Neto. Só mergulhei e pronto, essa cauda apareceu.
Pelo visto, não é só você que tem magia. Agora, abaixe esse seu garfo!
Olhei para o meu tridente, percebendo pela primeira vez que ele estava
apontado para Íris. Eu o ergui e suspirei fundo, afastando-me um pouco. Íris
ficou me olhando fixamente, reparando em cada detalhe de minha figura.
Tentei não me sentir invadido, porém foi impossível. Seu olhar misturava
admiração e temor, vislumbre, confusão e várias coisas que não consegui

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definir.
— Então... Você é mesmo um... — balbuciou, mas parou e ficou
apenas me olhando. Não concluiu a frase.
— Que música era aquela que estava cantando? — Fiz uma expressão
dura para me manter no controle da situação. Queria que Íris me respondesse
sem titubear ou se utilizar daquele seu jeito ousado que me tirava do sério.
— Ah... É... Uma canção que a minha mãe cantava para mim. E que a
minha avó cantava para ela. — Íris ainda estava usando a rocha para se
manter distante, o que começava a me chatear profundamente. Eu queria
tocá-la, beijá-la e tê-la de novo, por menos sentido que fizesse. Havia
acabado de receber um tapa, além de toda a sua arrogância, mesmo assim
ainda a queria. Era um absurdo desejá-la tão fortemente. — Nestor me contou
uma história interessante e...
— História? Que história? O que o Nestor lhe contou?
— Calma, não precisa gritar.
— Estou muito calmo, Íris, você nunca me viu agitado de verdade —
retruquei, com os nervos à flor da pele, sentindo o controle se esvair entre os
meus dedos.
Ela soltou um ofego e balançou a cabeça em negativa.
— Não dá pra conversar contigo. Aqui ou na terra, você é o mesmo
grosseirão de sempre. — Íris deixou a rocha e nadou rápido na direção oposta
a da ilha. Eu a segui imediatamente e a interceptei, segurando seu braço. —
Me solta, Neto. Vou embora agora mesmo. Já deveria ter ido, na verdade.
— Embora? Para onde pensa que vai, Íris?
— Encontrar algum continente. Voltar para a minha vida. Estou farta
da ilha e principalmente de você! — Eu a soltei como se fosse capaz de pegar
fogo dentro do oceano. — Nestor estava errado, afinal. Tem gente que
simplesmente não merece a nossa consideração.

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— Você quer ir embora? — praticamente berrei, possesso e
descontrolado. Senti o mar se revoltando um pouco mais. — Então, vá. Não
te impedirei. Quem está farto de você sou eu.
— Farto de mim? O que foi que eu te fiz, mano? — Ela se virou para
me encarar de perto. Parecia tão furiosa quanto eu. — Desde o começo só
queria a sua amizade, mas você é um ogro insensível!
— Eu não sou insensível, Íris, que droga! — berrei, chegando ao limite,
no nível certo para explodir e sair do controle. — É por ser sensível demais
que ajo desta forma, que me protejo de gente como você! — apontei para ela.
— Seres que só sabem enganar, trair e fingir. Eu não sei ser assim, se quero
ser mal, eu sou mal. Todos aqui sabem muito bem que precisam se manter
longe de mim porque sou perigoso. Não há engano.
— Quem disse que eu quero te enganar de alguma forma, Neto? Olha,
eu não sei o que te aconteceu, não sei quem te decepcionou, mas eu não sou
igual a todo mundo.
Soltei uma leve risada.
— É claro que é. Vocês são todas iguais. — Balancei a cabeça de um
lado para o outro, sentindo meu peito afundar em mágoa. A vontade de
chorar me deixou irritado. Eu preferia morrer a deixar Íris acompanhar tanta
vulnerabilidade, por isso dei as costas para ela. — Jamais trairia alguém a
quem prometi compromisso... — sussurrei, com os olhos fechados e os
punhos presos. — Nunca me entregaria a uma pessoa sabendo que há outra
esperando pelo meu retorno.
— Neto... Sei que foi um erro meu. Você tem razão neste sentido, mas
entenda que, naquele momento, eu não sei o que me deu. Foi mais forte do
que qualquer raciocínio que eu pudesse ter. E o meu erro não te dá o direito
de me ofender como me ofendeu lá na praia.
— Se fez isso com ele, Íris, significa que pode fazer com qualquer um,

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inclusive comigo, que nada significo para você além de um incômodo. —
Prendi os lábios com força para não deixar a lágrima presa escapar. — E isso
faz de você uma traidora igual a qualquer outra. Portanto, se quer ir embora,
vá. Poupe-me de passar por esta vergonha mais uma vez.
Íris permaneceu calada, portanto, julguei que eu não tinha mais nada
para fazer em sua presença. Comecei a nadar em direção à minha solitária
ilha, porém com a sede de justiça me implorando para tirar uma questão a
limpo.
Anfitrite iria se ver comigo.

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CAPÍTULO 19
Íris

A inesperada e surpreendente conversa com o golfinho fez eu me


lembrar de uma história que minha avó me contava quando eu era criança e
acreditava em contos de fadas. Seu intuito era me ensinar uma lição sobre a
vida, escolhas e mal-entendidos. E aquele pequeno conto estava ligado a joia
que foi passada de mãe para filha na minha família, em uma trajetória
ancestral tão antiga que eu não tinha ideia de quando datava.
— Era uma vez uma jovem camponesa, diferente das moças da
pequena vila onde morava. — Tenho certeza de que vovó falara o nome dela,
mas não consegui me recordar. Só sua história ficou marcada na minha
memória. — Ela era uma ávida leitora e tinha uma opinião muito distinta
sobre homens e casamento, que horrorizava todos do vilarejo. Sua mãe era a
única que compreendia o desejo de liberdade e independência de sua filha,
porque fora ela mesma que lhe incutira isso.
Com os olhos fechados, eu podia até mesmo escutar o tom suave e
misterioso que minha avó empregava nas palavras, conforme narrara o conto.
Eu era tão fascinada por suas histórias que me sentava aos seus pés e a
escutava por horas, sem nunca me cansar.
— Ela cresceu em beleza e graça, e também em inteligência e
determinação jamais vistas. A jovem não era iludida sobre a vida. Conhecia
suas durezas, assim como suas alegrias, e acreditava que seu destino estava
em suas mãos. Certo dia, enquanto observava o vasto mar, refletindo sobre
aquilo que lia e escutava, ela viu uma criatura mítica emergir e admirá-la com
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lindos olhos verdes, da cor do mar. Apesar de sua beleza, a moça ficou
ressabiada com seu majestoso porte e o poder que dele emanava.
Eu era fascinada por tritões e sereias desde a primeira vez que ouvira
aquele conto. Talvez por isso, e pela atração que eu sempre senti pelo mar, eu
tenha me tornado nadadora muito cedo. Aprendi a nadar tão logo comecei a
andar. Claro que eu não acreditava que aqueles seres existiam... Até vê-los
com meus próprios olhos e me tornar uma daquelas belas e encantadoras
criaturas.
— Ela logo o identificou como um tritão e se lembrou de relatos que
ouviu de outros moradores da vila sobre a aparição de uma pequena sereia
naquela enseada. Achou engraçado que aquele ser esplêndido e robusto fosse
confundido com uma bela e delicada sereia. Mas talvez fossem os cabelos
compridos da criatura que tenham confundido aqueles que o avistaram à
distância. Ninguém também relatou uma aproximação, até porque a maioria
morria de medo de seres míticos e fugia, apavorado. Mas ela não, ficou
curiosa com a intenção dele ao se aproximar dela.
Essa parte era a minha preferida. Eu ficava ansiosa para saber o que
aconteceria a seguir. Sempre gostei de mistérios e de desvendá-los.
— O que a camponesa jamais poderia esperar é que a criatura, metade
homem e metade peixe, se declarasse apaixonada por ela. O modo como ele
falava tinha tanta intensidade que a assustou. Eles acabaram de se conhecer!
— Mas, vovó, não existe amor à primeira vista? — eu questionara, tão
inocente, talvez, quanto o pobre tritão.
— Não, minha filha. Amor verdadeiro só surge com a convivência,
conhecendo o outro, tanto suas qualidades, quanto seus defeitos, e
aprendendo a conviver com eles. Mas existem vários tipos de amor. Por
exemplo, o amor de pais, de irmãos, de avós, que é o amor de família, que
surge da ligação de sangue e só cresce conforme passamos tempo juntos.

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— Ah! Também tem o amor de amigos, né? Eu amo meus amiguinhos,
adoro brincar com eles.
Vovó sorrira para mim, satisfeita e orgulhosa.
— Você entendeu muito bem. Então, pode imaginar o quão incrédula a
camponesa ficou com a declaração de amor da criatura. Como um ser tão
grande poderia ser tão puro? Aquilo não fez sentido para sua mente, por isso,
continuou recusando qualquer intimidade com ele. No entanto, ele não
desistiu. Declarou-se deus dos mares e lhe deu uma pedra em forma de gota,
que não era nada mais, nada menos que uma única lágrima que ele derramara
como prova de seu amor por ela.
— Nossa, vovó, que lindo! Tem certeza de que ele não a amava de
verdade? Se era um deus, seus sentimentos não seriam diferentes dos nossos?
— Foi o que a jovem se questionou ao saber quem ele realmente era.
Por isso, ela aceitou reencontrá-lo, no mesmo lugar, no dia seguinte. Ficou
tão ansiosa, com aquela lágrima entre as mãos como a prova cabal do amor
de um deus por ela, que chegou à praia bem antes do horário combinado. Ela
queria saber como seria estar com um deus, já que nenhum outro homem do
vilarejo a interessava. Mas aquela criatura incrivelmente inocente poderia
transformar sua pacata vida em algo extraordinário, e ela ansiou muito por
isso.
— Eu também ficaria ansiosa. Imagina ser transformada em sereia!
Vovó rira do meu desejo infantil.
— A camponesa só queria conhecer o amor em seu estado mais
sublime. O que via ao seu redor eram acordos matrimoniais, que não traziam
felicidade para ninguém, nem mesmo aos filhos. Só estabilidade. Ela queria
mais do que isso para si. Quando a água da enseada se agitou,
repentinamente, antes do horário combinado, seu coração deu um salto no
peito de tanta ansiedade. Ele também deveria estar ansioso por reencontrá-la

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e chegara mais cedo. Seus olhos se pregaram na espuma que se formou,
porém, o que surgiu foi uma criatura muito mais sombria.
— Ela corria perigo, vovó?
— Talvez, por isso seu instinto foi recuar diante da criatura que cresceu
tanto, mas tanto, que tomou praticamente toda a enseada. Ela flutuava acima
das ondas como se fosse terra firme. Seus cabelos, tão longos, se enroscavam
em seu corpo como uma serpente, e seus olhos faiscavam com o mais puro
ódio na direção da camponesa. Quando a voz dela soou como uma trovoada,
a jovem tropeçou em uma pedra e caiu sentada na areia. O ser mítico bradou:
“Como ousa, mortal, iludir o deus do oceano com sua beleza fugaz? Pois não
sabe que sua vida não passa de poeira no tempo?”
— O que a camponesa fez, vovó?
— Ela enfrentou a criatura, que pensou ser a mãe do deus, ou seja,
provavelmente, uma deusa-rainha dos mares. Mesmo temerosa, ela só podia
ser honesta. Por isso, retrucou: “Sinto muito se encantei o deus do oceano
com minha beleza passageira, nobre senhora das águas! Não foi a minha
intenção. Tentei persuadi-lo a desistir de mim, mas seu amor me pareceu tão
sincero que resolvi lhe dar uma chance para nos conhecermos melhor.”
— O que a deusa-rainha fez?
— Enfurecida, pareceu crescer ainda mais sobre a moça, e seus cabelos
balançaram ao redor, como serpentes vivas, prontas para picá-la. “Vou dar-
lhe esse aviso uma única vez, como prova de minha misericórdia, mortal
prepotente! Nunca mais volte a essa enseada, ou vou transformar o seu
tormento em eterno! Se me desobedecer, eu amaldiçoarei não somente o seu
destino, como também o de toda a sua semente, até o fim do mundo! Você
viverá a mais cruel das infelicidades e a passará para sua filha, e para a filha
de sua filha, e assim por diante, entre as mulheres da sua família, por todas as
suas gerações vindouras! E tenho dito!” Em uma explosão de espuma e água,

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a criatura submergiu.
— A camponesa obedeceu, vovó?
— Ela refletiu por alguns minutos antes de decidir, mas achou por bem
fazê-lo. Não queria ser responsável por despertar a ira de uma deidade e,
consequentemente, selar sua própria infelicidade, muito menos das filhas e
netas que viriam depois dela. Não era esse destino que desejava para si
mesma, ou para qualquer outra mulher. Mesmo infeliz por ter sido forçada a
desistir de algo que poderia mudar sua vida para sempre, a jovem sabia que
aquela era a escolha certa. Pelo menos, ela não se apaixonara pelo deus, não
sofreria sua ausência. Ele fora apenas um sonho que não se tornara realidade.
Ela podia conviver com isso.
— Nossa, vovó, que história triste.
— Triste por que, Íris?
— A moça nem ficou com o deus, não teve final feliz.
— Claro que teve, minha neta querida. Ela salvou o destino de milhares
de mulheres que puderam ser felizes porque fez essa escolha. A camponesa
teve uma vida longa e feliz. Casou-se com um homem que a respeitava e
admirava. Teve filhos saudáveis e fortes, e filhas incríveis, que aprenderam
cedo que podiam ser mais do que mães e esposas. Podiam ser tudo aquilo que
quisessem.
Ao final da história, vovó sempre cantava a canção, que comecei a
cantarolar sem perceber. Eu me lembrei também do dia em que recebi a pedra
em forma de gota. Eu tinha dezoito anos e minha mãe se sentou comigo para
dizer que fora passada de mãe para filha por gerações para que nunca nos
esquecêssemos de fazer escolhas sábias e sempre confiássemos no amor
verdadeiro, que podia ser qualquer tipo de amor. Naturalmente, liguei uma
história à outra, mas nunca soube o quanto da lenda podia ser verdade ou
ficção.

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Até aquele momento e o relato, de outro ponto de vista, que Nestor fez.
Neto surgiu do nada e bruscamente, como era de seu feitio, me tirando
do sério e me magoando mais do que eu admitiria. Ele mal escutava o que eu
dizia, bastante perturbado com a letra da música. Fiquei com tanta raiva por
ser tão bruto que nem me abalei com sua cauda tão dourada, que feria meus
olhos de tanto que brilhava. Como humano, ou criatura mítica, ele continuava
o mesmo cretino de sempre.
Neto até baixou a guarda e expôs seus sentimentos, mas ele preferia me
afastar e me ferir para descontar sua própria frustração. Eu estava cansada e
chateada por ter acreditado que ele tinha salvação. Mas ninguém podia ser
salvo se não quisesse, e eu não tinha nenhuma obrigação de fazê-lo. Ele
deixou claro que não queria mais nem olhar para a minha cara. O que me
restava a não ser parar de adiar o inevitável? Como as mulheres da minha
família me ensinaram, eu precisava escolher o que era melhor para mim e
para meu futuro. Nem sempre ficar era a decisão mais certa a fazer.
Precisava voltar para casa, meus pais e Gil. Teríamos que ter uma longa
conversa sobre nosso relacionamento. Não tinha certeza de que deveríamos
prosseguir, com tantas dúvidas quanto aos meus sentimentos por ele. Não era
certo. Deixá-lo livre para seguir o seu caminho seria muito mais justo.
Gilberto sempre foi muito bom para mim e merecia alguém que tinha certeza
de que queria estar com ele até o fim de seus dias. Eu não era mais aquela
pessoa.
Nadei sem prestar atenção, sentindo apenas a ondulação revoltosa do
mar contra minha cauda, que batia agitada contra a pressão da água, a fim de
me impulsionar para frente. O objetivo de tomar distância era a única coisa
que realmente importava naquele momento. Não daria atenção para a tristeza,
que criava raízes dentro de mim, crescendo e dando frutos, como mágoa e
desamparo. Não me permitiria chorar, mesmo que já o estivesse fazendo sem

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nem me dar conta.
De repente, senti algo passar pelo meu corpo, como uma onda de
energia, e parei de sentir minha cauda. Meu corpo parou, como se não tivesse
forças para continuar nadando e senti meus pulmões arderem por falta de
oxigênio. Olhei para baixo e vi minhas pernas no lugar da cauda, porém, elas
não se moviam. Aterrorizada, bati os braços para me levar à superfície a fim
de respirar. Precisei de toda a minha força para conseguir vencer o mar, que
continuava bravio.
Tomei um longo fôlego ao conseguir meu intento, forçando os braços
ao limite para me manter boiando. A tempestade transformara o céu em um
redemoinho cinza assustador. Mesmo com dificuldade devido à chuva
torrencial, ao vento e às ondulações do oceano, que me encobriam com
facilidade, pude avistar terra firme. Quase exultei, mas eu ainda estava longe
demais para alcançá-la. Também não havia embarcações. Nenhum
marinheiro se arriscaria a navegar com aquele tempo.
Respirei profundamente antes de submergir outra vez. Meus braços não
estavam suportando lutar contra a força da água. Foi então que percebi que
no fundo do mar havia um cemitério de barcos naufragados, dando-me a
sensação horrível de morte. Debatendo-me debilmente, me forcei a nadar
para longe daquele cenário horrível, e aconteceu de novo. Senti a mesma
energia passar pelo meu corpo e minhas pernas voltaram a se mover. No
segundo seguinte, elas se transformaram em uma linda cauda.
Olhei estupefata para o fundo do mar, avistando lindos corais e toda a
beleza colorida existente no oceano. Parecia que eu havia transposto um
portal para outro mundo! Curiosa, voltei por onde tinha vindo, porém
devagar, e assim que senti a mesma energia envolvendo minha cabeça, parei.
Não conseguia respirar de novo, mas minha cauda ainda se movia. Que
bizarro! Enxerguei o lado morto do mar, então recuei, antes que ficasse sem

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oxigênio. Estiquei a mão diante de mim, onde não havia nada além de água
do oceano, mas senti a energia acariciando minha pele.
— A ilha e seus arredores são protegidos por magia! Por isso que nunca
vi barcos nem aviões por perto.
Droga! Eu teria que voltar para a ilha, porém, não seria por muito
tempo. Encontraria um jeito de vencer aquele pequeno empecilho. Eu só
precisava monitorar e mapear a área, e esperar que o tempo melhorasse. Uma
única embarcação seria suficiente para meu resgate. E então, eu me veria
livre de Neto para todo o sempre. Ele estava totalmente errado. Havia um
jeito de escapar da ilha, graças àquela cauda de sereia.
Mesmo com a esperança perdida e renovada, eu ainda não estava
animada em olhar para a cara de Neto outra vez. Pena que nem no mar eu
estava livre de sua presença. Ele ficara tão lindo como tritão, mesmo que
mais assustador! Era muito triste que fosse um grosseirão sem conserto.
Nadei de volta, sem pressa, aproveitando o tempo livre para admirar as
belezas do fundo do mar.
— Oi, amiga — Nestor apareceu do nada, dando-me um susto. Estava
bem distraída. — Você não me chamou. Por que está tão triste?
Minha barriga roncou alto e, envergonhada, me dei conta de que estava
negligenciando a mim mesma ao ficar choramingando por causa de um cara
que não merecia nenhuma consideração. Que culpa eu tinha de alguém tê-lo
enganado no passado? Neto era como os outros homens, generalizava e
julgava todas as mulheres por causa de uma experiência ruim.
— Deve ser fome, Nestor. Não como desde que cheguei à ilha.
— Ah! Vamos resolver isso agora mesmo. Adoro caçar!
Como um predador, o golfinho mirou um cardume de peixes,
escondidos atrás de uma vegetação aquática, e eles fugiram na minha direção.
Paralisada, deixei que eles passassem por mim.

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— Íris! — reclamou o boto. — Por que não pegou alguns peixes?
— Ah! Nestor, por mais que eu goste de comida japonesa, não vou
comer peixe com tripas e tudo. Prefiro limpos e cortados em filés.
— Não sei o que quer dizer com isso, mas você é uma sereia agora e é
assim que sereias se alimentam. Para você é muito mais fácil do que para
mim. Tem mãos!
Revirei meus olhos para o golfinho, sentindo meu estômago se contrair
de fome. Eu nunca havia pescado e a ideia de matá-los ou comê-los vivos não
me atraía.
— Tadinhos dos peixinhos, Nestor, são tão bonitinhos. Não posso fazer
isso!
Nestor se aproximou de mim antes de declarar:
— É questão de sobrevivência da sua espécie, Íris. Você vai morrer se
não comer nada. A natureza é perfeita, nos dá alimento em abundância,
muitos ainda vão sobreviver à sua fome, não se preocupe. Aproveite o
banquete, minha amiga. Não quero perdê-la porque prefere fazer amizade a
comer os peixes.
Ainda meio enjoada, comecei a chorar. Desejei que houvesse um pote
de sorvete em algum lugar e uma televisão para fazer uma sessão de cinema
bem depressiva. Nestor voltou a atormentar um cardume, e daquela vez, eu
pesquei dois peixes. Fechei os olhos, não sendo capaz de encarar seus
olhinhos esbugalhados, antes de simplesmente engoli-los.
O golfinho estava certo, como sempre. Eu precisava ter forças se
pretendia sobreviver e deixar aquela ilha encantada para sempre.

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CAPÍTULO 20
Netuno

Com um pouco mais de concentração eu poderia localizar qualquer


criatura que estivesse imersa em meus domínios, e foi utilizando aquela
inerente habilidade que me tornei capaz de saber que Anfitrite estava na gruta
antes mesmo de alcançá-la, provavelmente acompanhando Tritáo em seu
processo diário de educação. Podia ouvir as risadas que eles ofereciam um
para o outro com bastante intimidade, e a minha raiva se intensificou porque
jamais tive momento tão despretensioso com o moleque. Ele não abria a
guarda para mim e, confesso, eu também não tinha feito por onde merecer o
seu afeto. Infelizmente, aquele seria mais um momento que ele conferiria de
perto a força de toda a minha ira.
Não bastava que Íris fosse uma traidora que havia simplesmente ido
embora, nem que eu não tivesse a amizade de Tritáo, naquele momento, a
traição de Anfitrite queimava em meu peito com mais intensidade do que
qualquer outro problema sem solução. Talvez porque, no fundo, eu já
soubesse que manter Íris na ilha seria uma atitude em vão, ou que me
aproximar de Tritáo era impensável, mas uma decepção vinda de alguém que
os deuses criaram para me servir por toda a existência? Aquilo se tornou
demais para que o meu cérebro absorvesse. Será possível que nenhuma
criatura era capaz de ser confiável?
Atravessei parte do oceano revolto, pois a tempestade ainda fazia o seu
serviço e assim permaneceria até o meu justo castigo ser totalmente aplicado.
Encontrei as rochas que formavam uma discreta fenda, depois se
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comprimiam em um labirinto complicado, o atalho ideal para chegar à gruta
pelo mar. Nenhum ser além de mim e Anfitrite conhecia tão tortuoso
caminho, o que mantinha Tritáo em devida segurança. Alcancei o poço de
água doce e submergi em fúria. Encontrei os dois apoiados sobre a mesma
rocha, com apenas suas longas caudas submersas. Pararam de rir quando
visualizaram a minha odiosa figura.
— Netuno? — Anfitrite ergueu uma sobrancelha, parecendo confusa a
respeito do meu humor. Nunca o seu belo rosto me pareceu tão dissimulado.
A decepção ricocheteou dentro do meu estômago, trazendo-me verdadeiro
asco. — O que houve?
Nada respondi porque seria capaz de provocar outro tsunami caso
deixasse minha ira escapar por entre os meus lábios. Apenas ergui o meu
tridente com desenvoltura, apontando-o para ela em tom de extrema ameaça.
Anfitrite se encolheu por inteira e, antes que eu pudesse pensar em que tipo
de poder açoitaria sobre sua figura, Tritáo se colocou à frente da ponta
dourada de minha arma mortal.
— O senhor ficou louco? — Ele me olhou duramente, mostrando-me a
coragem e a firmeza que tanto quis que tivesse. Até aquele momento o
moleque não havia demonstrado ser capaz de qualquer atitude heroica. — Por
que está apontando o seu tridente para nós?
— Saia do meu caminho, Tritáo — balbuciei em um rosnado fraco,
comedido o máximo que consegui. — Este assunto é comigo e Anfitrite.
— Meu senhor, o que eu lhe fiz? — ela choramingou por trás de Tritáo,
e prendi os lábios com força diante do novo tom falso que eu pude ouvir
soando em sua voz, que sempre me pareceu melodiosa.
— Quanto eu ordenar que você faça determinado feitiço, certifique-se
de que é o correto e faça valer a sua sina de me ser completamente obediente
— alertei de forma controlada, porém sentindo que todo aquele controle se

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esvaía na palma de minhas mãos e alcançava a ponta do tridente, que ainda
estava apontado perigosamente para Tritáo.
— Não compreendi, meu senhor. Por favor, abaixe o tridente e vamos
conversar a respeito.
— O que o senhor vai fazer? — Tritáo perguntou, aflito. Seu olhar
apavorado atingiu o meu. Apesar de toda coragem, ele me temia como eu
achava que jamais alguém fosse me temer. — Matá-la? — Permaneci em
silêncio, apenas o encarando. — O senhor não pode matar a minha mãe! Não
há motivo no mundo que me faça permitir que cometa essa barbaridade,
muito menos na minha frente.
— Saia da minha frente, Tritáo!
— Estou farto de você, Netuno! — o moleque gritou em fúria, e senti
as águas se movimentarem ao meu redor. Tritáo conjurou uma pequena onda,
que morreu ao se chocar entre algumas rochas. Seu poder não era páreo para
o meu, mas me surpreendi ao perceber que ele estava perto demais de
comandar totalmente as forças das águas. — Acha que é o dono do pedaço,
mas te vejo como um homem mimado que só quer chamar a atenção. Não
parece que sou eu o adolescente que vive nesta ilha.
Com a mão livre, fiz um movimento curto e uma onda grande o levou
para o outro lado do poço em menos de um segundo. Não estava a fim de
discutir com Tritáo, muito menos de receber sermões de alguém que não
fazia ideia sobre nada da vida. Voltei a apontar o tridente para Anfitrite,
vendo-a se encolher novamente.
— Não sei por que colocou o feitiço das sereias em Íris, mas sua
inconsequência não será passada despercebida — rosnei furiosamente. —
Agora vejo que não posso contar nem mesmo contigo. Sua ousadia receberá
punição severa neste momento, e nada irá me impedir. — Olhei de soslaio
para Tritáo, que ainda tentava se recuperar da força de meu poder.

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— Meu senhor... Fiz isso apenas para ajudá-lo! Não vê que minha
função sempre será garantir o seu bem-estar?
Revirei os olhos, irritado e sem a menor paciência para compreendê-la.
— Ajudar-me de que modo? Por sua causa Íris teve condições de ir
embora.
Vi o exato instante em que o rosto de Anfitrite se iluminou. Um
glorioso sorriso atravessou seu rosto esculpido pelos deuses, e aquela atitude
só me trouxe ainda mais raiva. Enquanto ela sorria, por dentro sentia o meu
coração chorando lágrimas de sangue. Era injusto demais que alguém
demonstrasse alegria na minha frente. Como era possível sobrar felicidade
para tanta gente e nenhuma para mim?
— Ela se foi? De vez?
Aquiesci, prendendo os dentes um contra o outro. Sabia que a minha
expressão não era nada suave e amistosa. Ainda não sabia o que pensar a
respeito de Íris ter partido. Uma parte de mim dizia que havia sido a melhor
escolha deixá-la simplesmente ir embora, mas havia um nó preso em minha
garganta, que se estendia em meu estômago e me trazia falta de ar. Eu não
sabia como lidar comigo mesmo sem ela por perto, o que não fazia o menor
sentido, já que fui solitário durante eras e sua presença, definitivamente, não
fazia com que eu magicamente soubesse lidar com minha imortal existência.
— Esta é uma ótima notícia, meu bom deus. Aquela mulher seria a sua
destruição — Anfitrite falou com o timbre melodioso de sempre. Suas
palavras pareciam música, mas eu não queria ouvi-la. — Oferecer-lhe uma
cauda de sereia foi, na verdade, um grande favor que fiz ao senhor. Assim
poderá ficar livre da desgraça.
Abaixei o meu tridente porque, repentinamente, encontrei sentido nas
atitudes da nereide. Ela era um ser criado para me proteger acima de qualquer
coisa, logo, certamente havia sido uma escolha correta. Íris estava invadindo

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a minha vida depressa demais, e eu não conseguia me manter imune, nem
mesmo distante. Nosso momento de loucura na praia não me deixava negar.
Ela mexia com meus desejos como uma feiticeira, e eu era tão fraco
emocionalmente que acabaria me deixando ceder, mais uma vez, por uma
humana perversa. Anfitrite tinha razão o tempo inteiro. Eu que era
inconsequente demais, além de muito teimoso, para aceitar a verdade.
— Da próxima vez que realizar um feitiço, avise-me sobre suas
verdadeiras intenções — falei em um murmúrio, nadando para trás a fim de
me distanciar. — Não quero correr o risco de ser surpreendido. Odeio ser o
último a tomar conhecimento.
— Perdoe-me, meu bom deus Netuno — Anfitrite abaixou o olhar em
sinal de subordinação. — Tive receio de que me impedisse.
Olhei para o lado, pois ainda estava bem chateado com a nereide. Eu
não era nenhuma criança que ela precisava manipular. Percebi que Tritáo
estava parado perto de nós, observando-nos atentamente.
— Ela foi embora mesmo? — perguntou, parecendo tão arrasado
quanto eu estava. Suspirei profundamente e aquiesci de novo. — Será se vai
voltar?
— Espero que não — comentei com a voz fria, por mais que meus
olhos estivessem em brasa. — Para o bem dela própria. E para o meu
também, porque eu juro que, se vê-la de novo, eu a mato com minhas mãos.
Tritáo arregalou os olhos, surpreso com a minha sinceridade. Eu o
resguardava daquele meu lado sombrio, mas o moleque em algum momento
precisaria saber quem era o Netuno de verdade, ainda que não trouxesse
orgulho para ninguém. Um dia teria que dar conta de tudo que era meu.
Sem mais nada a comentar, nadei até a borda do poço e permaneci
sobre uma rocha até minha cauda se transformar em pernas mais uma vez. Os
dois acompanharam o processo com curiosidade e expressões pesarosas,

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embora eu achasse que a face de Anfitrite estivesse corada demais. Eu me
levantei e segui pela ilha por terra, rumo ao alto da rocha de onde eu jamais
deveria ter saído.
Estava pronto para passar mais algumas eras aprofundado na solidão,
saboreando-a como alguém que se alimentava apenas de ressentimentos e
mágoas. Até aquele momento, nunca precisei de mais ninguém para existir.
Nem mesmo do oxigênio eu necessitava. Olhando para o vasto oceano à
minha frente, e para a tempestade forte que ainda caía, sentindo as gotas
geladas de chuva atravessarem o meu corpo e o vento frio massagear a minha
face, prometi a mim mesmo que nunca mais sairia dali, até o fim dos meus
dias, até quando algum deus mais poderoso resolvesse me incutir outra
função.
Tão logo fiz a promessa, visualizei uma criatura se debatendo na beira
da praia. A longa cauda esverdeada se transformou em pernas numa
velocidade impressionante, e então ela se levantou, exibindo um corpo nu
esculpido, caminhando sobre a areia como uma deusa pronta para qualquer
batalha. Meu coração pareceu escapulir pela boca. O ar que eu tanto não
precisava deixou o meu corpo e me vi necessitando dele como um mortal
qualquer. Suspirei ruidosamente diante de tão perturbador cenário.
— Íris... — balbuciei, e aquele nome curto, porém lindo, fixou-se em
meu espírito como uma cicatriz profunda e aberta, que doía, latejava,
arrancava-me a sensatez. — Íris — falei novamente apenas para ter certeza
de que não estava sonhando.
Ela havia retornado. Eu não sabia o motivo, mas, naquele instante,
pouca coisa importava além do simples fato de que ela estava ali, tremendo
de frio por causa da tempestade, mas ali, na minha ilha. Não havia me
deixado. Não me abandonara.
Prendi os lábios, os punhos e também a vontade de gritar o seu nome

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bem alto, para que atravessasse o oceano e todos soubessem o quão forte o
meu coração pulsava. Mas aquilo tudo seria inconsequência. Tolice. Eu me
envergonharia de tal atitude a partir do momento em que colocasse em
prática. Somente pensar a respeito me deixou extremamente envergonhado,
porém não menos contente.
Vê-la com frio me deixou incomodado, portanto me pus de pé e agitei o
tridente para os céus. A tempestade se juntou completamente, limpando o céu
por inteiro, e um único raio saiu dela antes de se esvair. O raio caiu sobre
uma árvore perto de Íris, oferecendo-lhe o fogo necessário para aquecê-la.
Sua surpresa fez com que soltasse um grito. Sorri no impulso. Em seguida,
ela olhou ao redor como se procurasse por alguma coisa, ou alguém.
— Obrigada! — gritou, e então eu soube que, na verdade, Íris me
procurava. Ela sabia, de alguma forma, que havia sido eu quem tinha
conjurado o raio que lhe trouxe a fogueira.
Sua gratidão me encheu de um sentimento novo no peito. Por um
instante, tive vontade de fazer mais por ela. De aconchegá-la. De fazer com
que se sentisse bem-vinda em minha ilha outrora tão amargurada. Eu sabia
que, para alguém que prometera matá-la caso a visse de novo, meu
pensamento era uma grande incoerência.
Mas Íris me trouxe a luz. Havia sido ela quem acendera uma chama
dentro de mim com o seu retorno, uma muito mais intensa do que a fogueira
que conjurei. Era tudo estranho em demasia. Eu sabia que ela era uma
traidora e que não merecia qualquer consideração, ainda assim, por ser capaz
de ser grata, ainda que eu tivesse lhe humilhado e ofendido de várias formas,
pensei que talvez Íris tivesse nem que fosse o mínimo de bondade em seu
coração. Apenas as pessoas boas são capazes de sentir gratidão. Não há como
disfarçá-la com crueldade.
Sem que eu percebesse, mais uma lágrima escapou pelos meus olhos.

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Senti-me um pouco mais fraco que antes, porém não me lamentei por ficar
sem mais um pingo de força. Segurei a gota cristalizada entre as minhas mãos
e sorri. Pensei no quanto seria louco se aquela também estivesse adornada em
um colar.
O ponto de luz em minhas mãos era a primeira lágrima de alegria que
já tinha soltado em toda minha sofrida existência.

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CAPÍTULO 21
Íris

Senti a consciência se avizinhar devagar, tão preguiçosa quanto eu


estava. Fazia dias que eu não dormia como daquela vez. Eu me sentia tão
bem que demorei vários segundos para tomar coragem de abrir os olhos e
quebrar o encanto que o descanso havia deixado em meu corpo. Não queria
que a tristeza do dia anterior acabasse com a minha paz recém-conquistada,
mas sabia que seria inevitável, estando eu longe demais de uma solução para
meu dilema.
No entanto, arregalei os olhos assim que o piado de pássaros preencheu
meus ouvidos, já acostumados com o som característico do oceano indo e
vindo na praia. Ao contrário do que em outras ocasiões, não dei de cara com
um céu arroxeado e estranho. Tinha um teto sobre a minha cabeça e,
analisando melhor, paredes ao meu redor. Sentei-me de um pulo e uma manta
quentinha escorreu pela minha pele, indo parar na minha cintura.
— Ainda devo estar sonhando, não é possível! — falei para mim
mesma em voz alta, abismada demais com o surgimento mágico de uma
cabana de bambu, e até mesmo um cobertor.
Mas não fora do nada. Talvez Neto sentiu remorso, depois de acender
uma fogueira para eu me esquentar do frio da tempestade, e me carregou para
seu abrigo enquanto eu dormia. Continuava nua sob a manta, mas ele deu um
jeito de me manter aquecida e protegida durante meu sono renovador. De
onde surgira aquela manta? Parecia nova, nunca usada antes, e era
industrializada!
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Larguei-a de lado e me levantei, afastando uma imensa folha, que
servia de porta, para enfim encarar a mesma praia onde me deitara. No
horizonte, o tom esverdeado do mar se unia ao céu, com sua cor azul
costumeira. O que aconteceu com o tom de roxo? Pela visão periférica
percebi um movimento acima de mim e virei o rosto na direção. Era um
bando de pássaros cruzando o firmamento. Pude ver, inclusive, o sol,
iluminando-me com seus raios quentes. Será que a película da redoma foi
removida? Comecei a rir comigo mesma ao comparar, mentalmente, a tal
película com o insulfilm.
Estupefata, cheguei à única e absurda dedução lógica possível: Neto
havia construído um abrigo a minha volta enquanto eu estive dormindo!
Fiquei satisfeita por ter me respeitado e não me carregado sem meu
consentimento para outra parte da ilha, além de impressionada com sua
habilidade de construir uma cabana sem me despertar. Aquele simples gesto
teve a capacidade de apagar toda a tristeza de suas duras palavras, ditas no
dia anterior, e que me fizeram desejar ir embora imediatamente.
Neto estava arrependido e eu também. Sabia que não tinha sido legal
muitas vezes, perdendo a paciência com sua grosseria. Mesmo achando que
não fiz errado em não aceitar ser tratada tão mal, eu também podia ter
escolhido palavras menos rudes para expressar meu descontentamento.
Estava disposta a perdoá-lo se ele pudesse superar o fato de eu ter traído meu
noivo com ele, naquela mesma praia. Olhei para a areia, já seca da
tempestade, e suspirei, saudosa.
Algo dentro de mim se remexeu com a lembrança de nossa transa
intensa. Aquilo foi sensacional demais para me privar de viver, ou mesmo
para não querer uma reprise. Claro que eu queria, mas não forçaria Neto a
ficar comigo de novo se ele não achava certo. Só queria encontrá-lo para
agradecer pela excelente noite de descanso sob um teto e uma manta. Quem

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sabe a gente poderia pelo menos conviver na santa paz, enquanto eu não
partisse de uma vez por todas para resolver minha vida no Brasil?
Quando me virei em direção à floresta para ir à sua procura foi que eu
vi. O rio — que eu nunca vi, apesar de ter bebido da fonte subterrânea na
gruta de Tritáo — fora desviado para a praia! Ele serpenteava entre os
coqueiros, escorrendo pela areia e criando pororocas quando se encontrava
com as ondas do mar. O veio era largo e fundo o bastante para que eu
pudesse beber da água doce com abundância. Sem esperar mais, eu me
ajoelhei e bebi até sofrer uma crise de tosse.
Aproveitei a água maravilhosa, em uma temperatura fresca, para lavar
meu rosto. Fiz um coque com meu cabelo e o amarrei com ele próprio.
Adoraria tomar um banho, a fim de tirar um pouco do sal do corpo, porém,
era melhor que fizesse isso com Tritáo. Assim teria uma desculpa diária para
visitá-lo. Avancei pela floresta, sem ter nenhuma vergonha de minha nudez,
maravilhada com a liberdade de não usar roupas. Mesmo que acontecera sem
querer, estava gostando dessa coisa naturalista.
Percebi que as árvores também haviam dado frutos durante a noite. Não
questionei a bênção, apenas colhi tudo aquilo que dei conta de comer,
enquanto desbrava mais da ilha, até mesmo esquecida da fera que a rondava.
Com a luminosidade natural do sol e a cor azul de volta ao céu, eu me sentia
segura e feliz. O lugar passou de sombrio e assustador para mágico e
encantado de um dia para o outro.
— Neto? — chamei, mesmo me sentindo meio tola. Ele não era um
deus, onisciente, não é? Não poderia saber que eu o chamava se estivesse do
outro lado da ilha, bem escondido de mim. Se não estava por perto, talvez
significasse que não queria ser perturbado, mas eu estava muito determinada
a encontrá-lo. — NETO!
Não houve resposta, mas não desanimei. O dia estava encantador, os

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pássaros também desfrutavam do alimento abundante e até insetos cruzaram
meu caminho. Senti um reflexo bater no meu rosto em algum momento e
protegi meus olhos da claridade perigosa. Desviei a face o bastante somente
para tentar descobrir o que provocara o fenômeno e avistei Neto empoleirado
na imensa rocha, na qual eu acordei após meu afogamento por causa do
tsunami.
Corri até lá, desgostosa. Ele decerto deveria ter me ouvido, se não
estivesse tão pensativo. Seu rosto estava sereno e parecia refletir sobre algo
além de minha compreensão. Parei ao seu lado com as mãos na cintura,
esperando ser notada. Para meu espanto, aconteceu instantaneamente. Neto
virou o rosto para mim e ergueu uma sobrancelha surpresa ao passar os olhos
sobre meu corpo nu em um segundo. Suas faces coraram após a breve análise
e seu olhar recaiu sobre o meu, de onde não saiu mais.
— Oi, não me ouviu te chamar? — fingi não me abalar com seus olhos
perscrutando minha pele de maneira tão íntima e contive o súbito desejo de
me cobrir com as mãos.
— Não, sinto muito. O que deseja?
Como Neto não me convidou, eu me juntei a ele na rocha e me sentei
ao seu lado, tomando cuidado para não me encostar ao seu corpo também nu.
— Agradecer pela cabana e pela manta. — Neto não conteve um ligeiro
sorriso de satisfação, que espelhou o meu. — Aliás, como a conseguiu?
Franzindo o cenho, sua expressão se fechou novamente.
— Você faz muitas perguntas, Íris.
— Você me deixa no escuro, Neto. Não tenho escolha a não ser
perguntar.
Ele nada disse e fixou o olhar de volta no horizonte, ignorando-me.
— Tudo bem, já que não quer conversar, pelo menos me ouça. —
Suspirou e balançou a cabeça, concordando sem dizer nenhuma palavra. —

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Você estava certo quanto a eu ser uma traidora e eu sinto muito por ter
passado a impressão errada sobre quem realmente sou ao ceder ao seu beijo.
Eu... — inspirei ruidosamente, tomando coragem e escolhendo as palavras
certas para a minha confissão. — É claro que meu noivo não merecia essa
traição. Ele tem sido muito bom para mim desde que o conheci, há alguns
anos, mas estar aqui com você também foi revelador para mim.
Fiz um gesto amplo ao nosso redor a fim de apontar o lugar onde
estávamos.
— Não escolhi traí-lo conscientemente, nem decidi fugir de nosso
compromisso ao acordar nessa ilha desconhecida. Estou triste e decepcionada
comigo, mas ao mesmo tempo feliz e aliviada. Há um ano me sinto sufocada,
perdida e estranha, e não sabia o que fazer para mudar essa sensação. Só
entendi quando ficamos juntos, quero dizer, eu e você. — Neto me encarou
por um instante, surpreso com o rumo da minha confissão. — Eu não amo
Gil como ele merece e agora eu sei que nosso relacionamento era apenas
cômodo, até mesmo fácil para mim, como tudo antes do acidente.
— Acidente? — A preocupação que repousou em seu olhar foi
reconfortante.
— Sofri um acidente ano passado. Bati as costas contra uma rocha da
praia onde eu surfava, fraturei algumas vértebras e perdi o movimento das
minhas pernas para sempre. Sei que você talvez não acredite porque estou
andando, mas, quando despertei na praia desta ilha, voltei a sentir minhas
pernas. E agora eu sei que consigo andar outra vez por causa da magia deste
lugar.
Neto não fez nenhum comentário, então continuei falando.
— No começo, foi muito difícil aceitar a deficiência. Meus pais e Gil
estiveram ao meu lado o tempo todo, mas, quando ficou comprovado que era
irreversível, também se tornaram protetores demais. Eu só queria retomar

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minha vida de onde parou, mas eles mudaram o modo de me tratar e isso me
chateou. Quando fui pega pela tempestade na costa onde moro, estava
nadando sozinha no mar porque estava farta de dar satisfação a eles, como se
eu fosse uma criança.
Compreensão nadou por seu olhar esverdeado e eu me senti acolhida,
sem que ele precisasse expressar qualquer palavra.
— Não pretendia ser ingrata, também não queria aumentar a
preocupação deles. Foi um ato de rebeldia, mas também de libertação.
Desejava testar meus próprios limites e me superar. Eu sou uma atleta e faço
isso diariamente na piscina, desde que eu era pequena. Estou acostumada a
lutar pelo que quero, como minha avó me ensinou. Eles deviam me conhecer
melhor e saber que eu nunca aceitaria a ajuda e a compaixão deles sem fazer
nada, mesmo que agora eu tenha limitações que não tinha antes. Não quero
ser definida pela minha deficiência, assim como lutei para conquistar minha
independência, mesmo sendo mulher.
Ele desviou o olhar, talvez se sentindo desconfortável com a
intensidade que eu despejava pela boca.
— Só que, ao mesmo tempo, eu me deixei ficar em uma relação estável
com Gil. Com ele, eu me sentia segura, protegida, mas não de um jeito ruim.
Ele nunca me impediu de fazer nada que eu quisesse, até porque não é meu
dono, nem possessivo comigo. Pelo contrário, é meu maior fã e incentivador.
E eu sempre o amarei por isso. Tê-lo em minha vida era como estar em
constante calmaria. Era bom, certo e confiável, principalmente para uma
moça jovem no início de uma dura carreira como eu estava trilhando quando
o conheci. Mas não é mais para a mulher que me tornei, sobretudo depois do
acidente... E do que aconteceu entre nós na praia ontem.
Neto me encarou novamente. Pareceu perturbado com minhas palavras.
— Com você, Neto, eu descobri o que é viver uma louca tempestade, e

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que eu posso gostar disso. — Gostar muito, quase salientei, mas não queria
forçar a barra e parecer ansiosa demais por um repeteco daquele sexo fora do
normal. — Descobri também que não posso me casar com Gilberto, por mais
que não queira perder sua amizade. Mas aqui — acariciei meu coração em
círculos — sinto que nosso noivado já estava rompido muito antes de eu
naufragar nessa ilha e de conhecer você. Eu só percebi isso quando estava
indo embora ontem, depois de nossa última discussão.
Trocamos um longo e silencioso olhar, como há muito não acontecia.
Naquele silêncio confortável, eu me senti segura, porque tinha certeza de que
Neto jamais me machucaria. Mas também me senti como um mar revolto,
bravio durante uma tempestade. Aquele gigante de olhos doces causava uma
chuva de sensações, tanto em meu corpo quanto em minha mente.
— Por que decidiu voltar? — Sua voz saiu baixa e cheia de ar, como se
estivesse sem fôlego.
Jamais mentiria para Neto. Aquele era o momento da verdade, de abrir
meu coração para ele.
— Eu não decidi, apenas não consegui ir embora. — Seu cenho se
franziu novamente. — Quando eu passei pela redoma de magia, minha cauda
voltou a ser pernas e, bem, minhas pernas não se mexem sem magia... — Não
acrescentei que quase me afoguei devido à tempestade. Acho que Neto não se
interessaria, já que pareceu um pouco decepcionado. — Então, não pude ir
muito longe da borda.
— Ah! — Fiquei esperando que adicionasse algo, porém, nada disse.
— Ah? É só isso que tem a dizer?
— O que quer que eu diga, Íris?
— Por nada? Eu comecei essa confissão te agradecendo.
— Por nada — repetiu de maneira mecânica, sem nenhuma emoção.
— Você me confunde, Neto.

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— Você não faz ideia do quanto estou confuso, Íris.
— Por quê?
— Porque você é só... você e sempre teve tudo o que quis. Eu nunca
tive nada.
— Como assim?
— É uma longa e triste história, Íris. Não vou perturbá-la com meus
pesares.
— Pois pode falar à vontade, Neto. Estou muito feliz por não ter
conseguido ir embora. Nunca me perdoaria quando chegasse em casa e
pensasse no quanto você parecia chateado. Foi muito bom ter a oportunidade
de pedir desculpas pela estupidez com que te tratei diversas vezes. Por favor,
me perdoe e divida comigo seus problemas. Vou fazer um esforço para
entendê-lo e ajudá-lo como puder. — Toquei seu braço musculoso,
estimulando-o a se abrir também. — Você tem em mim uma amiga.
Neto não respondeu. Estava ansiosa por conhecê-lo melhor. Até aquele
momento, eu havia falado, falado e falado sem parar. Ficaria em silêncio pelo
tempo que fosse necessário até que ele se sentisse pronto para dividir seus
segredos comigo.
E, então, quem sabe a gente poderia tentar tudo outra vez?

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CAPÍTULO 22
Netuno

Íris não me trouxe apenas a sua presença marcante — e também


torturante, por culpa do cheiro que seus cabelos emitiam quando a brisa
passava por eles, além da perturbadora ausência de vestes, que me tirava a
concentração mais do que eu conseguiria admitir —, trouxe consigo uma
gama de reflexões que se enroscavam em minha mente como uma longa
trança retalhada. Meu olhar sobre sua figura foi capaz de se modificar com
apenas algumas palavras. Eu nada sabia sobre o seu noivado, o acidente que a
deixou sem andar, suas expectativas, sua garra, que, naquele instante,
pareceu-me muito maior do que imaginei.
Aquela mulher ainda era um poço de mistério para mim, no entanto,
saber um pouco mais sobre seus sentimentos mais profundos ajudou a
amenizar a desconfiança inevitável que cultivei ao seu respeito desde que a vi
pela primeira vez, afogando-se em minhas águas. Eu não queria abaixar a
guarda, pois não fazia o meu estilo confiar em alguém, principalmente numa
humana cheia de defeitos, porém foi inevitável sentir uma absurda vontade de
confessar meus próprios traumas, sofrimentos e tristezas. Olhando para o
oceano à nossa frente, calma como as ondas que beijavam a areia, Íris parecia
alguém que me entenderia independentemente do teor de minha culpa.
Abri a boca com o intuito de confessar toda a história com a Cássia,
porém tornei a fechá-la porque, em um átimo, descobri que nada daquilo
havia começado com a minha súbita paixão por uma humana. Muito pelo
contrário, talvez aquela decepção tenha sido a última gota para uma revolta
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de minha parte. Entretanto, eu não saberia como contar a Íris que o meu pai
era um titã malvado e poderoso, que devorava seus filhos quando nasciam.
Ela jamais entenderia que minha vida começara com uma longa viagem do
ventre da minha mãe para o estômago do meu pai.
Se não fosse meu irmão Júpiter, salvo pela minha mãe Ops de ser
devorado, eu ainda estaria lá, existindo como se fosse um verme sem
importância. Meu irmão foi criado de uma forma diferente e conseguiu
derrotar o meu pai, obrigando-o a nos soltar, a mim e a meus irmãos. Júpiter,
depois de seu bravo feitio, autointitulou-se deus dos céus, soberano absoluto
do olimpo, e me restou apenas o mar para governar. Ao meu irmão Plutão
sobrou o submundo, um local tão odioso de estar que nem mesmo o deus
mais destemido gostaria de visitar. Apesar de termos sido salvos, nosso
relacionamento nunca foi considerado fraterno. As rinchas entre Júpiter e
Plutão são inúmeras, e a mim coube apenas tentar distanciamento, de forma
que preferia ser engolido pelo meu pai novamente a me envolver nas
confusões familiares.
Fui criado por demônios, que me ensinaram os mais estranhos modos
de governar os sete mares e as piores maneiras de descobrir o meu próprio
poder, porém, a presença constante de minha mãe foi a responsável por não
me arrancar a bondade e a doçura necessárias para cultivar amor por todas as
criaturas marinhas. A maldade e a crueldade conhecida logo em meu
nascimento não atingiu o meu coração, e assim permaneceu depois que
aprendi a gostar de ser quem eu era. Contudo, pensar a respeito daquilo
enquanto observava a luz do sol brilhar contra as águas do mar fez-me
perceber que nem mesmo um deus sairia imune a tantas situações
traumáticas.
— O meu pai nunca foi... um pai de verdade — falei em um tom baixo,
e me dei conta de que começaria uma confissão jamais feita em toda minha

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existência apenas depois que as primeiras palavras escapuliram entre meus
lábios. Íris se virou, voltando a me encarar de perto. — Conheci a solidão e a
crueldade muito cedo. Fui rejeitado e passei eras tentando entender o que
havia acontecido... — suspirei, lembrando-me da coexistência dentro da
barriga de Saturno. O ruim de ser imortal era que nem mesmo ser engolido
era capaz de provocar a morte. — Meus irmãos se odeiam e, provavelmente,
odeiam-me também. Minha criação foi, basicamente, aprender a viver
sozinho em meio a riscos, provando meus poderes de maneiras impensáveis
para uma humana.
Íris arregalou os olhos e soltou um suspiro exasperado. Não ousou fazer
qualquer comentário. Seu silêncio foi bem-vindo a partir do momento em que
ela depositou a mão sobre a minha, na rocha. Observei o ponto em que nossas
peles se encostavam e, pela primeira vez em muito tempo, senti que alguém
realmente se importava. Por menos sentido que fizesse, Íris não era alheia ao
meu sofrimento.
— Jamais consegui superar a solidão — balbuciei, sentindo o meu
peito aprofundar de dor e ressentimentos. Ainda que eu não pudesse contar
toda a história sem assustá-la, percebi que desabafar me fazia bem. — Nem
mesmo fui capaz de amar a criatura designada a ser minha companheira. Ela
não me arrancou da solidão que sempre fez parte de minha existência, por
isso a tornei uma simples amiga. Até que, como castigo dos deuses, amei
alguém que não foi capaz de me amar.
— Acredita em castigo vindo dos deuses? — Íris questionou,
parecendo surpresa e reflexiva, ao mesmo tempo.
Aquiesci. Eu sabia que os deuses eram os maiores castigadores. Meu
irmão Júpiter era o primeiro a mostrar crueldade quando algum ser, qualquer
que fosse, se revelava ingrato. Plutão era a mais bizarra e maldosa criatura
que poderia existir. Não duvidava de que eles me castigavam com frequência,

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sem que eu ao menos tomasse conhecimento.
Aquela linda mulher voltou a calar-se diante de minha resposta
silenciosa.
— Quando rejeitamos um amor, é justo que sejamos rejeitados em
algum momento — refleti em voz alta. Talvez aquela tenha sido a primeira
conclusão tirada após anos pensando no que poderia ter dado tão errado. —
Não acha?
— Eu acho que ninguém deveria ser obrigado a amar — Íris respondeu
sem sequer titubear. Aquelas palavras me fizeram pensar ainda mais a
respeito. — O amor é uma coisa que simplesmente acontece. Se essa criatura
que você deveria amar não atingiu seu coração, então não era para ser. Não
acho que alguém deveria ser punido por esse motivo.
— A justiça nem sempre é fácil de compreender, Íris. Por isso os
deuses são seres com extrema sabedoria.
Ela deu de ombros.
— Não me parece nada sábio castigar os outros. Há muitas formas de
fazer com que aprendam sem precisarem sofrer.
— O sofrimento é inevitável e, de fato, a melhor forma de educar.
— Talvez, Neto. Mas, prossiga... Quem era ela? — Íris soltou a minha
mão e eu, mais do que indignado, senti uma profunda tristeza. Não queria que
se distanciasse, ainda que fosse apenas para ajustar seu corpo na rocha, a fim
de me observar melhor. — A pessoa por quem você se apaixonou?
— Uma camponesa mortal. Muito parecida com você — soltei sem
refletir direito antes. Percebi quando Íris deixou seu rosto ruborizar.
— Quando você fala “mortal”... Significa que você é... — ela parou
sem concluir o raciocínio.
— Imortal.
Íris soltou um exagerado resfolego.

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— Sério? Como... pode? Você não morre? Mas... Isso é impossível!
— Eu queria que fosse possível deixar de existir. Acredite que tentei
bastante encontrar uma forma de sumir deste mundo.
— Por quê, Neto? O mundo parece tão maravilhoso! — Íris apontou
para o horizonte. — Você tem tudo ao seu dispor, poderes mágicos, lugares
para ir. É tudo tão sensacional!
— Nem tanto. O valor atribuído ao mundo, em sua grande parte, é
porque a maioria dos seres não viverá nele para sempre, portanto precisa
aproveitar cada segundo como se fosse o último. Eu sei que não haverá
último segundo para mim, Íris, logo, não me interessa aproveitá-lo.
— Poxa... Não deveria ser assim. — Ela deu de ombros. — Mas,
vamos, me fale mais sobre a camponesa mortal.
— Não há muito que falar a respeito. Ela era linda, encantadora, mas
traiçoeira, como grande parte das mulheres. — Olhei para Íris, escolhendo
bem as palavras para não incluí-la e, de repente, brigarmos de novo. Eu não
queria mais discussões. Estava exausto. — Prometeu que se juntaria a mim
no oceano, mas se arrependeu e desapareceu.
— Eu sinto muito, Neto. — Íris desviou o olhar. Voltou a tocar a minha
mão e o meu peito encheu-se de um sentimento difícil de traduzir. Era tão
bom que chegava a ser um incômodo. — Imagino que deve ter sido difícil
lidar com essa decepção. Mas você precisa esquecer a parte ruim e se
concentrar nas boas, sabe? Os momentos bons que passaram juntos, os beijos,
as conversas. Amar alguém nem sempre é fácil.
O que Íris falou me deixou extremamente incomodado, ainda mais do
que aquela emoção louca que permeava o meu coração. Imaginei o único
beijo que troquei com Cássia. Mal houve conversa entre nós. Os momentos
tinham sido tão escassos que, após aquelas eras, eu sequer me lembrava
direito. Cássia passou pela minha existência como um leve sopro e havia

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deixado em mim uma longa e tortuosa tempestade para dar conta. De repente,
tirei a conclusão de que não deveria ter sido assim. Alguém tão pequena, e
com quem convivi tão pouco, não deveria ter me arrancado toda a alegria de
viver por tanto tempo.
— Acho que... — soltei um suspiro profundo. — Não passamos tantos
momentos juntos. Trocamos um único beijo e... Apenas isso. Mas nada foi
necessário para que eu a amasse. Eu a vi e já sabia.
Íris ergueu uma sobrancelha.
— E como tem tanta certeza que a amou?
— Eu... Porque... Eu... — Os pensamentos se enroscaram, novamente,
em meu cérebro. Ela me deixava em um estado de profunda confusão. — O
amor apenas se sente, Íris.
— Sim, sem dúvida, mas também requer tempo, convivência. Não
existe amor à primeira vista, Neto. Você pode ter sentido atração quando a
viu, mas amor... Amor é outra coisa. — Ela balançou a cabeça em negativa,
olhando-me com desaprovação. Eu mesmo tive vontade de me olhar com
aquela expressão, de tão tolo que me senti. — Agora começo a entender por
que foi decepcionado. Claro que a mulher não poderia te amar assim, de cara.
Como queria que ela se juntasse a você no mar? É uma decisão muito
complicada de ser tomada, não acha?
— Sim, mas... Ela disse que aceitava.
— Disse? Com todas as letras? — Íris ainda estava meio exasperada.
Parecia revoltava com a conversa, e eu não saberia dizer por qual motivo.
— Sim, Íris. Ela não cumpriu com a palavra. Eu tenho verdadeiro asco
de quem não é capaz de cumprir as promessas que faz.
— Tudo bem, ela errou. Os humanos costumam não cumprir
promessas, realmente. É um grave defeito, e que me incomoda tanto quanto a
você. — Ela jogou os longos cabelos para o lado e fiquei um tanto

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hipnotizado enquanto encarava o seu pescoço desnudo. — Mas você tem que
superar isso, o fato de que nem sempre as pessoas farão o que você quer. Não
se obriga ninguém a amar, principalmente uma mulher que não teve tempo de
criar qualquer vínculo mais forte contigo.
Dentro de mim, sabia que Íris estava coberta de razão. No entanto, não
pude admitir a mim mesmo que toda aquela amargura havia sido infundada.
Como eu pude amar Cássia se não podia responder a nenhuma pergunta sobre
ela? Eu não a conhecia nem mesmo superficialmente. Só havia sido
enfeitiçado pela sua beleza e, talvez, a solidão que me angustiava tenha me
feito insistir naquela história de amor.
Saber que eu não a amava me deixou com um nó preso no estômago.
Olhei o mar e ele já não me pareceu tão odioso. Encarei Íris e toda a
crueldade que desejei fazer com ela simplesmente desapareceu do meu
âmago. As coisas foram, pouco a pouco, ganhando uma nova perspectiva.
Claro que precisava raciocinar mais a respeito, porém sentia que o peso que
sempre carreguei em minhas costas estava algumas toneladas mais leve. Íris
havia sido capaz de me deixar menos perturbado, ainda que a minha
existência fosse marcada por lamentações sem fim.
— Sinceramente, Neto... Pensando bem, essa solidão que você sente
nunca vai passar. Somos seres solitários por natureza porque somos únicos. O
importante é ocuparmos esse vazio com sentimentos bons em relação a nós
mesmos. Precisamos gostar de nossa própria companhia.
— Mas eu me odeio, Íris — murmurei com certo ar rancoroso.
Ela me analisou fixamente. Seus olhos claros me arrancaram o fôlego
com extrema facilidade.
— Todo amor precisa ser cultivado, Neto, inclusive o amor-próprio.
Como todos os outros, requer tempo e paciência. — Íris se levantou
repentinamente. — Você chega lá, não tenha dúvida. Tem a eternidade para

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isso.
— Para onde você vai? — Uma sensação de abandono me deixou
empertigado, tanto que também me levantei. Observei o corpo nu de Íris e um
arrepio de excitação tomou conta do meu corpo. — Quer que eu lhe arranje
vestimentas? — apontei para a sua pele exposta de um jeito que considerei
encantador.
— Está incomodado com a minha nudez agora? — Ela soltou uma
gargalhada livre, e o som foi tão bonito que me despertou de tanta
infelicidade. Eu me senti vivo como quase nunca me sentia.
— Não estou... — menti. — Você que falou que se incomodava.
— Isso foi antes, Neto.
— Antes de quê?
— Antes de você saber exatamente o que tem aqui — Íris apontou para
o próprio corpo, e não tive como não reparar em seus seios, no ventre
desenhado, perdendo-se nos seus contornos de mulher. — Vamos, Neto! A
sua não é, mas a minha vida é curta demais pra olhar esse mar e não
mergulhar!
Íris saltou do alto da rocha diretamente para a profundeza do oceano.
Ouvi o ruído de seu corpo chocando-se contra a água e meu corpo inteiro
sofreu um arrepio intenso. Fazia muito tempo que eu não sentia verdadeiro
desejo de nadar.
Naquele momento, ansiei profundamente um contato mais amplo com
as águas, que me pertenciam tanto quanto aquele sentimento novo que
vibrava em meu peito.

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CAPÍTULO 23
Íris

Senti o exato instante em que minhas pernas viraram cauda, assim que
mergulhei no oceano. Concluí que eu gostava muito dela. Era linda demais!
Pena que não podia ficar com aquela belezura para sempre. Ri, feliz da vida,
formando bolhas de ar que subiram para a superfície do mar plácido. Esperei
que Neto me seguisse no salto, porém, vários segundos se passaram e nada
dele aparecer.
Emergi, apontando um olhar ainda divertido para a rocha na qual
tivemos a conversa mais reveladora e honesta desde que cheguei àquela ilha.
Neto continuava de pé sobre ela, segurando seu tridente, magnífico como
uma escultura. Ele realmente parecia uma estátua de tão parado que estava e
com o olhar fixo no horizonte, como eu fizera enquanto esperava que
superasse seus receios e se abrisse comigo.
— Ei, Neto! — gritei, chamando sua atenção. — Você não vem nadar
comigo?
Ele suspirou audivelmente e desviou seus olhos para baixo até me
alcançar.
— Não existe nada nos sete mares que eu já não esteja cansado de ver,
Íris.
— Ninguém pode se cansar de tanta beleza, nem mesmo você. Vamos,
por favor! Me mostre o que eu ainda não vi.
— Essa é a sina de quem é imortal. Eu me cansei de tudo isso há muito
tempo.
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— Não seja estraga prazeres, Neto! Você não tem nada a perder.
Depois que eu me cansar de nadar contigo, você ainda terá o resto da
eternidade para fazer nada em cima dessa pedra. Eu não vou durar para
sempre e não quero desperdiçar nenhum segundo da minha estadia nessa ilha
me lamentando. E quero muito que você me faça companhia enquanto eu
estiver por aqui. Venha logo!
Não sabia que parte do meu discurso aos gritos o convenceu, no
entanto, em seu rosto, um ar de determinação se passou logo depois do
espanto. Neto finalmente atendeu às minhas súplicas, saltando no mar com
graça e virilidade impossíveis de não mexerem comigo. Ele era maravilhoso!
Seu corpo era talhado como uma obra-prima. Mergulhou com a precisão e o
encanto de um exímio nadador. Nem se atrapalhou com o tridente. Duvidava
muito de que eu tivesse pulado de maneira tão perfeita.
Submergi atrás dele e o achei ainda mais incrível enquanto perfurava a
água com uma velocidade impressionante por causa da cauda dourada.
Humano ou criatura mítica, Neto era a coisa mais atraente em que eu tinha
posto meus olhos e minhas mãos. Senti uma tentação enorme de tocar sua
cauda a fim de saber se ela tinha a mesma textura que a minha, mas não o fiz.
Não sabia como ele reagiria ao meu toque. E seria bem infantil de minha
parte também.
Ri e rodopiei, contente por tê-lo comigo no fundo do mar.
— E então? Qual é o itinerário, meu guia? — brinquei ao me aproximar
dele.
Neto não espelhou a minha animação, o que tentei ignorar. Não
precisava forçar seu entusiasmo também. Bastava que tivesse aceitado a
minha proposta.
— Acredito compreender o que quer dizer, apesar de não conhecer a
palavra “itinerário”. — Sua resposta me fez gargalhar. — Pensei em levá-la

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para conhecer meu castelo. Faz muito tempo que eu não vou lá.
Parei de rir e o encarei, estupefata.
— Você tem um castelo?
Neto revirou a expressão em uma careta, que me pareceu bastante
adorável. Suavizava a dureza de seus modos sempre tão controlados.
— Antes de me isolar naquela ilha, eu vivia no fundo do oceano, entre
as criaturas marinhas com quem fui destinado a conviver.
— Você acredita em destino também? — continuar a conversa,
enquanto nadávamos para as profundezas do oceano, foi bastante inesperado.
Mas, como sempre, eu tinha muitas perguntas para fazer, e pela primeira vez
Neto parecia disposto a respondê-las.
— E você não? — surpreendeu-se. — Como uma simples mortal,
destinada a morrer antes de um século de vida, pensei que acreditasse.
— Mano, na boa, não tenho nada de simples — retruquei sem conter
uma ponta de indignação. Tudo bem que ele era um ser mítico, cheio de
poderes, mas não precisava me diminuir. Eu não escolhi nascer humana. Se
eu pudesse, teria sido uma sereia. Quem não escolheria?! — E outra,
ninguém nesse mundo todo, mesmo se existir um Deus Supremo
“governando” nossas vidas, me tirará o poder de decidir meu destino. Tá bom
que eu não posso desejar ter poderes, porque isso dificilmente vai acontecer.
Mas olha só para mim! — Neto parou de nadar, assim como eu, e olhou para
meu corpo, para o qual apontei a fim de enfatizar minha lógica. — Nunca
imaginei que pudesse virar sereia, mas cá estou. Isso não é um milagre
divino?
Neto bufou, contrariado, voltando a nadar.
— Não há nada de divino no fato de você ter ganhado uma cauda. Está
mais para uma maldição.
Eu o segui, franzindo o cenho, sem entender tanta amargura.

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— Você pode até odiar a si mesmo, mas eu amo quem sou e tenho o
direito de pensar o que quiser sobre a minha cauda. Para mim, é uma dádiva,
e não vai ser você e sua rabugice que me farão mudar de ideia.
O ser mítico me fulminou com seus olhos de oceano.
— Pode me olhar como quiser, Neto. Não vou me deixar contaminar
por sua desesperança. Se estiver certo, nunca vou saber, mas prefiro acreditar
em mim mesma, no meu potencial e que tenho escolha. Se não, como eu
poderia viver o resto dos meus dias culpando os outros por meus problemas?
Seria no mínimo injusto, não é mesmo? Portanto, eu decido ter fé, esperança
e amor. Se eu pensasse do seu modo, teria desistido de você no nosso
primeiro encontro. Me diga, era isso que você preferia? Viver isolado naquela
ilha, sem ter ninguém com quem conversar? Pelo que entendi, você está
cansado da solidão.
— Você não entende, Íris. Eu não tenho escolha!
— Claro que tem, Neto! Todo mundo tem escolha. Você pode escolher
continuar afastando todos que tentam se aproximar, ou pode viver
pacificamente com outras criaturas. Devemos afastar aquilo que nos faz mal,
mas só saberemos se dermos uma chance para mostrarem seu valor.
Eu me calei. Estava falando demais. Neto não retrucou, no entanto,
parou de nadar abruptamente. Desviei meu olhar de sua beleza ultrajante e o
apontei para o mesmo local que ele encarava. Perdi o fôlego com a
monstruosa construção em puro ouro, esculpida no fundo do mar. O castelo
estava logo abaixo de nós, envolto por uma bruma esverdeada que parecia
vinda da vegetação aquática. O dourado do metal estava escuro e opaco.
Mesmo em um estado tão lamentável, era uma estrutura impressionante.
— É só limpar e dar uma polida, e ele vai ficar novinho em folha —
falei a primeira coisa que me ocorreu para quebrar o silêncio. Temi que Neto
estivesse abalado com a situação de sua casa. — Vamos entrar. Quero ver

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como é por dentro.
No entanto, Neto me segurou pelo pulso antes que eu pudesse avançar.
— Não precisa se envergonhar. Sei que você não esteve no castelo por
muito tempo. Eu não me importo. — E abri um sorriso sincero para ele.
Neto estreitou os olhos, confuso.
— Não acho que seja seguro adentrarmos.
Bufei, incrédula.
— O que mais poderíamos encontrar além de desordem e um cardume,
se aproveitando do lugar para se esconder de predadores?
Neto não soltou meu pulso, principalmente quando fiz menção de
continuar a exploração.
— Não existem apenas criaturas inofensivas no oceano, Íris.
— É mesmo? Vai me dizer que também existem monstros, como o
Kraken? — E caí na gargalhada. Ele só podia estar brincando.
No entanto, Neto não me acompanhou, deixando sua expressão se
tornar ainda mais sombria.
— Está falando sério? — Senti o sangue esvair do meu rosto. —
Existem monstros marinhos?
— É melhor irmos embora agora! — salientou, puxando-me em direção
oposta de seu castelo.
— Mas você tem poderes! — discuti somente para não me deixar
apavorar.
— Nem mesmo os meus poderes são páreos diante de criaturas tão
antigas quanto o próprio oceano.
Poxa vida, eu queria tanto saber como o castelo era por dentro! Neto
disse que nunca dormia, então, o que será que havia em sua morada? Será
que era aberto para que todas as criaturas pudessem circular? Parecia que
sim. Não avistei nenhum portão ou porta. Havia somente entradas em todas

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as torres e paredes. Realmente, se alguma criatura quisesse se esconder em
seu interior, seria fácil fazê-lo.
Quando achou que estávamos seguros, Neto me soltou. Por causa da
adrenalina, nem senti a força do aperto, mas seus dedos ficaram marcados na
minha pele. Inconscientemente, alisei o local, um pouco preocupada com seu
apavoramento. Nunca o vi temer nada e aquilo abalou um pouco minhas
estruturas. Até mesmo um ser mítico tinha suas limitações.
— Perdoe-me, Íris, não queria machucá-la — disse ao notar meu gesto.
— Está tudo bem, Neto. Eu sei que só queria me proteger — sorri a fim
de tranquilizá-lo.
O pesar em seus olhos me machucou muito mais do que sua pegada
bruta.
— Talvez agora você entenda o que quero dizer sobre destino —
pontuou, desviando seu olhar de mim, como se sentisse vergonha do que fez.
— Ei! — Eu o toquei no ombro, a fim de fazê-lo se voltar para mim,
novamente. — Você não está destinado a ser infeliz, está me ouvindo?
— Ouvi-la não muda o fato de que não somos fisicamente compatíveis.
Engoli suas palavras a seco, com certa raiva. Como ousava dizer que
não éramos compatíveis depois do sexo maravilhoso que fizemos na praia?
Se aquilo tudo acontecera mesmo que ele fosse um gigante poderoso e eu
uma mera mortal, como costumava dizer, imagina o que podíamos fazer com
aqueles corpos? Uma queimação subiu pela minha cauda, intensificando-se
na altura do que seria meu quadril. Uau! Só a lembrança de nossa transa
acendeu meu organismo.
Será que sereias podiam transar? Como seria? Não percebi nenhum
orifício em mim ou pênis em Neto. Afastei os pensamentos antes que pegasse
fogo debaixo d’água. Ignorei suas palavras tristes e abri um sorriso travesso.
Ele ia ver como seus pensamentos pessimistas que não eram compatíveis com

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o meu otimismo.
— Se for verdade, então não tem a menor chance de eu fugir de você!
Neto ficou perdido com a mudança de clima e não entendeu onde eu
queria chegar. Ah! Mas ele compreenderia em algum instante. Por isso,
simplesmente lhe virei as costas e comecei a nadar furiosamente, rindo
faceira devido à brincadeira. Meu corpo de sereia ainda estava aceso com a
ideia de ser alcançada em algum momento. Era uma besteira me sentir
daquele modo, mas foi inevitável. Talvez o instinto animal tenha despertado
em mim aquele desejo fora de propósito.
E eu confiava que Neto não me machucaria. Já estivera em seus braços
e sabia que, apesar de sua dureza, também podiam ser delicados.
Soltando um rosnado, que me fez dar um salto e encará-lo por cima do
ombro, Neto vinha em meu encalço. Sua expressão era de uma criatura
furiosa, mas seus olhos eram de uma doçura surpreendente. A mesma doçura
que me fez perceber, desde a primeira vez, que havia bondade em seu
coração.
— Ah! — gritei, continuando a brincadeira. — Você não vai me pegar!
Em resposta, seu rosnado ficou mais feroz. Senti até mesmo a água se
agitar com a força que ele empreendeu para me alcançar. Não olhei para trás
de novo para não perder o ritmo, e forcei minha cauda além de seu limite.
Avistei uma porção de rochas, que provavelmente faziam parte da estrutura
da ilha, e percebi, com um olhar bastante atento, que havia uma passagem
estreita entre elas. Na esperança de despistá-lo, eu me apressei naquela
direção. Talvez ele não coubesse no espaço apertado.
— Não entre aí, Íris!
Ignorei sua ordem e me esgueirei entre as pedras, descobrindo, tarde
demais, que Neto caberia. Parecia um labirinto, cheio de passagens, inclusive
sem saída. Tive que retornar quando me deparei com um desses becos,

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porém, ele havia chegado e me impedia de sair, obstruindo a passagem com
seu corpanzil.
— Droga! — ofeguei. Havia exigido demais da minha cauda e meu
coração saltitava alegre e selvagem no meu peito. — Você conseguiu!
Sua expressão mudou para o mais puro contentamento e eu perdi o
fôlego com a beleza de seu sorriso singelo, quase infantil. Neto deixava de
ser um gigante para se tornar um menino brincalhão. Eu sempre soube que
aquele cara existia dentro dele. Só precisava arrancá-lo do esconderijo que se
autoimpôs. Não pude conter minha alegria, muito menos meus olhos, que o
devoraram. A excitação da perseguição causou um efeito devastador em mim.
— Você é lindo, Neto. Seja como homem ou tritão. Queria que pudesse
se ver através dos meus olhos.
Neto arregalou os olhos, espantado, suavizando a ferocidade em seu
rosto. Ele nadou os poucos centímetros que nos separavam e parou bem na
minha frente. Tocou meu rosto devagar, afundando seus olhos nos meus, e
enroscou os dedos nos meus cabelos, que flutuavam ao meu redor,
desprotegendo meus seios nus. Ele deslizou seu olhar pela minha seminudez,
terminando na minha cauda esverdeada, e voltou a me encarar.
— Você é a criatura mais encantadora em que pude colocar meus olhos
por eras. E não estou falando somente de seu corpo, não importa que formato
ele tenha.
Não conseguia nem pensar enquanto ouvia o som baixo e rouco de sua
voz na minha cabeça. Minha pele formigou ao reconhecer seu toque,
desejando muito mais. Eu me vi presa em seus olhos de mar, tanto quanto por
sua proximidade nada ameaçadora. Desejava ardentemente que ele vencesse
os últimos centímetros e me tomasse em seus braços, a fim de satisfazer
aquele desejo que me queimava por dentro.
Queria muito sentir Neto dentro de mim outra vez, então, eu o tomei.

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Quando juntei seus lábios nos meus, puxando-o até enroscar minha cauda na
sua, bolhas de prazer inundaram minha boca, juntamente com a sua língua.

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CAPÍTULO 24
Netuno

Eu desconhecia as raízes da força magnética que me empurrava para


muito perto daquela peculiar mulher. Por mais que tentasse compreendê-la,
tudo perdia completamente o sentido quando os lábios de Íris se juntavam aos
meus em uma dança prazerosa e arrebatadora, guiando-me rumo a um estado
de êxtase que sequer necessitava de uma conotação sexual. Era muito mais
profundo que qualquer vontade física, um sentimento insuportável de
constante insuficiência: tudo o que poderia ser feito se mostrava pouco
demais para o tamanho daquilo que me tirava dos eixos.
Debaixo da água era um pouco diferente do que em terra, porém não
menos fantástico. Ali era o meu habitat natural, e eu sentia o meu poder ainda
mais forte, agindo a cada segundo, envolvendo também o objeto de meus
maiores desejos: Íris. As bolhas nos envolveram partindo de nossas cabeças
até as caudas, como se fizessem parte de nós e do momento espetacular que
se concretizava em um intenso beijo.
Enrosquei os meus dedos em seus cabelos e a pressionei contra uma
das rochas que compunham a fenda. Não queria que nos aprofundássemos no
labirinto, pois sabia bem onde ele terminaria e não queria ser pego em
flagrante por nenhuma criatura, sobretudo por Tritáo ou Anfitrite. Por este
motivo, enquanto beijava Íris, arrastava-a pelas paredes até adentrarmos em
uma pequena depressão cavernosa, que nos cabia e nada mais. Ficamos tão
grudados um ao outro que eu nem mesmo soube definir onde o meu próprio
corpo terminava e em que ponto começava o dela.
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— Neto... — ela emitiu o seu pensamento em forma de palavras, sem
deixar o nosso beijo findar. — Eu quero você. Mas... — fez uma pausa que
me deixou louco.
Eu não queria que houvesse um “mas” entre nós. Ainda que fosse
errado, que ela estivesse comprometida com outro homem — mesmo não o
amando como outrora, o compromisso ainda existia e o correto era rompê-lo
antes de nos entregarmos ao desejo —, havia também o fato de eu ser um
deus imortal que certamente não deveria ter uma humana em seus braços. Ter
Íris novamente só me faria colecionar mais erros, porém aquele era um risco
que os meus nervos em polvorosa estavam dispostos a correr.
— Mas...? — balbuciei enquanto enroscava nossas línguas, sentindo a
água salgada em nossas bocas. Estava um pouco nervoso com o que ela tinha
para dizer, mas o fato de não ter me soltado ou parado o beijo deixou-me com
certo alívio.
— Mas eu não tenho ideia de como fazer isso aqui, assim. Só conheço
o jeito humano de fazer amor.
A inocência de Íris poderia me fazer rir se não fosse a última palavra
dita. Eu tinha certa aversão a ela, por isso meu corpo travou e, mesmo sem
querer, distanciei as nossas bocas. Aquela mulher perturbadora ficou me
olhando, com os braços ainda ao redor do meu pescoço e o desejo evidente
em seu olhar hipnotizante. Era difícil acreditar que ela queria fazer amor
comigo. Não sexo ou qualquer ato de propriedade carnal, mas um
envolvimento que exigia emoções provenientes do coração.
— Eu... — tentei falar, porém não encontrei nada que traduzisse minha
surpresa e incapacidade de raciocinar a respeito. — Íris.
Ela tomou novamente a iniciativa de enroscar seu corpo ao meu.
Beijou-me sem qualquer aviso, sem que eu pudesse refletir ou compreender o
que estava acontecendo. As bolhas tornaram a nos envolver e soltei um

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gemido involuntário entre os seus lábios. A mortal deve ter sentido o meu
membro teso, pois se afastou para tocá-lo curiosamente. Íris, por fim, afastou-
se para observá-lo com surpresa. Aquele certamente era um falo distinto de
minha versão humana; ele crescia mais ou menos no mesmo local, porém era
coberto por escamas douradas como a minha cauda.
— Se há um pênis em você... — Íris falou em um timbre reflexivo. —
Com certeza há uma entrada em mim. — Ela passou a tocar sua cauda,
tentando encontrar alguma cavidade onde eu pudesse penetrá-la.
Sua atitude me fez rir e soltar muitas bolhas pela boca. Cheguei a me
esquecer da palavra “amor”, dita por ela com bastante clareza, porém
recordei quando seu olhar recaiu sobre o meu mais uma vez. Eu estava
excitado, louco para unir-me a Íris dentro do oceano, mas não soube como
reagir. Parecia um moleque perdido, sem direcionamento ou qualquer
experiência. Íris havia me desarmado totalmente e não havia nenhuma
bússola para me orientar.
— O que foi, Neto? — Sua expressão foi ficando confusa conforme o
meu silêncio crescia entre nós dentro da diminuta caverna.
— Nada.
— Está preocupado com o seu castelo?
A minha antiga morada não importava para mim há muitas eras. O que
havia me enchido de preocupação alguns minutos atrás fora a segurança
daquela nova sereia, tão inocente quanto uma recém-nascida. Mas Íris tinha
me arrancado cada pensamento a respeito com seu jeito alegre e faceiro. Não,
eu não pensei nem um por segundo desde que a toquei.
— Um pouco. Não o suficiente para te deixar aqui e ir conferir o que
aconteceu com ele — usei toda a minha sinceridade para proferir minha
verdadeira preocupação.
— Você... Parece que travou. — Íris começou a alisar os meus braços,

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desceu pelo peitoral bem devagar, até que massageou o membro ereto. Soltei
um gemido curto. — Ah... Já sei. É por eu ainda ser noiva. — Vi o exato
instante em que seu olhar foi tomado pela tristeza.
— Não. Não, Íris, não é isso. — Agarrei seu rosto com as duas mãos.
— Eu a compreendi neste sentido.
Ou, ao menos, tentei compreendê-la. Ainda achava estranho e ficava
confuso com seus sentimentos confessos em relação ao noivo, porém uma
parte de mim tentou não julgá-la e conseguiu, por mais que essa atitude me
surpreendesse completamente. Eu não costumava ser compreensivo,
principalmente quando o assunto era traição, a mais abominável das atitudes.
— Então, por que não me toma de vez? Neto, eu estou louca para...
Vi a urgência em seu rosto e decidi, em um rompante, oferecer o que
Íris tanto queria. Girei-a de costas para mim, deixando as bolhas dançarem ao
seu redor. Prendi-a contra a rocha e a penetrei profundamente, na abertura
que eu sabia que existia em sua retaguarda, e que Íris não havia notado antes
porque não conseguia vê-la.
Ouvi o seu urro de prazer em meus pensamentos e retrocedi uma vez,
voltando a encaixar-me novamente. Íris deixou seu corpo amolecer sobre a
rocha, erguendo as mãos para se apoiar. Envolvi meus braços por cima dos
dela, encaixei meu rosto em seu pescoço e me movimentei ferozmente de
encontro à sua cauda esverdeada. Desci as mãos lentamente, apenas para lhe
agarrar os seios com gana. Íris passou a gemer alucinadamente, creio que
sentindo cada emoção diferenciada que significava fazer amor no oceano.
Ao contrário da nossa primeira vez, meu humor se manteve sereno. Até
o mais revolto dos mares se aquietou naquele instante de entrega. Permiti que
todo o oceano ao nosso redor se tornasse manso, propício para um mergulho,
para a pesca, para a navegação. A energia tranquilizante envolveu cada
criatura, e me senti, novamente, parte de cada uma delas, como um deus

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protetor. Fazia muito tempo que não me sentia inserido de forma tão bem-
vinda.
Graças a ela. A criatura que tinha uma de minhas lágrimas adornada em
seu pescoço. Segurei-o com as duas mãos, sentindo o cordão nas minhas
palmas. Por incrível que pudesse parecer, em vez de ficar horrorizado com
aquela joia arranjada, senti um imenso orgulho de ter uma parte de mim a
enfeitando. Um pedaço meu que jamais a deixava.
— Íris... — murmurei aquele nome que havia se fixado em meu
cérebro. Ele não me causava mais repulsa ou qualquer sentimento contrário à
satisfação. Era assustador. Perigoso. Era perturbador que eu pudesse reagir de
forma tão positiva enquanto a tomava em meus braços e a fazia minha.
Minha sereia. Minha humana. Minha mortal. Minha mulher. — Íris...
Senti o exato instante em que nos conectamos em um nível
sobrenatural. Foi mágico perceber sua energia percorrendo meu corpo, como
se fosse o mais intenso dos poderes. Já havia trocado aquela conexão com ela
em terra. Sua força humana duelara com a minha divina, de igual para igual.
E não era diferente daquela vez. Íris nunca foi tão compatível comigo como
naquele momento. Tão minha, como se os deuses a tivessem moldado
perfeitamente para que coubéssemos um no outro.
Eu a puxei para trás quando o êxtase se avizinhou. Deixei-nos
encaixados para que pudéssemos senti-lo da forma mais intensa. Íris se
contorceu sob meus braços, gemendo e chamando o nome que ela achava que
era o meu. Sabia que seu clímax também estava perto. Mais bolhas dançaram
a nossa volta, até que ouvi seu grito poderoso ecoando em minha mente. O
grito mais doce que eu poderia ouvir.
A satisfação foi tamanha que me deixei guiar como um barco sem
leme.
— Minha! — rosnei bravamente, agarrando-lhe os cabelos com uma

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mão e, com a outra, apertando a sua cintura estreita. A ponta de minha longa
cauda dourada entrelaçou a dela, submetendo-a a mim. Íris se deixou
esmorecer em meu abraço, aproveitando o orgasmo mais longo inerente às
sereias. — Você é minha, Íris!
Ela virou o pescoço para trás e, em resposta, surpreendeu-me com um
beijo urgente, como se consentisse sem pestanejar. Pela segunda vez, senti-
me desarmado. Não esperava que ela se oferecesse tão naturalmente, menos
ainda a mim.
Considerar que Íris me pertencia pareceu um erro gritante, pois,
naquele segundo ínfimo perdido no veio do oceano, eu, Netuno, deus do
oceano, a pertenci por completo.

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CAPÍTULO 25
Íris

Ainda sentia meu corpo de sereia convulsionar em um longo clímax,


enquanto beijava a boca de Neto. Tê-lo dentro de mim, de duas maneiras tão
íntimas e intensas, fazia meu sangue ferver. Sua língua acariciava a minha ao
mesmo tempo em que seu pau de ouro parecia inchar e se prender a mim,
para sempre. Não havia outro jeito de definir aquela sensação sublime que se
perpetuava, tanto internamente quanto por fora. O próprio mar dançava ao
nosso redor em uma eterna carícia, borbulhando de amor.
Aquilo não era sexo, nem em mil oceanos! Como eu previra antes de
me entregar a Neto novamente, nada que eu conhecia se comparava à nossa
união. Mesmo que a parte humana em mim relutasse em ceder a mais uma
experiência extraordinária com aquele ser mítico, como ele mesmo vacilara
ao me lembrar do compromisso ainda não rompido, minha parte sereia o
desejou com tanta força que o desejo sobrepujou a razão. O sentimento que
me assombrava era de ter sido feita para aquela criatura.
Por isso, me pareceu certo ouvi-lo dizer que eu era dele. Tão certo
quanto o céu era azul.
— Íris... — Neto balbuciou contra meus lábios, causando-me frenesi.
— Prometa-me que não voltará ao castelo ou a essa fenda.
Pisquei diante de suas palavras tão fora de contexto. No entanto, preferi
continuar beijando-o e sentindo-o dentro de mim. Agarrei seu pescoço e o
obriguei a aprofundar o beijo novamente. Neto, porém, tinha outros planos.
Puxando-me pelos cabelos, afastou-nos o suficiente para que seus olhos
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penetrassem os meus com fúria.
— Está me ouvindo, Íris?! — rosnou, animalesco.
Eu me soltei aos tapas, desencaixando-nos a contragosto.
— Você é mesmo um estraga prazeres, Neto! — Ajeitei meu cabelo, a
fim de recobrar a dignidade. — Literalmente!
Neto me prensou contra a rocha, mas não foi motivado pelo tesão.
Dava para perceber que sua pica dourada fora devidamente recolhida.
— Diga que me obedecerá!
Sua intensidade sempre extrapolava os limites, principalmente o físico.
— Se você me explicar essa história direito e pedir com jeitinho, pode
até ser que eu o atenda. — Tentei empurrá-lo para longe, mas seu corpanzil
não se moveu.
— Estou falando sério, Íris! É muito perigoso!
— Eu também estou falando sério, Neto! Você não é meu dono. Trate
logo de abrir espaço porque essa sua carranca não me intimida!
— Se é o que deseja...
Largou-me, por fim, virando de costas e saindo do labirinto. Vi algo
brilhando entre as pedras e percebi que era o garfo dourado. Neto o largara,
provavelmente, quando cedeu ao meu beijo. Eu o peguei e segui o ogro.
Como da primeira vez em que transamos, ele deu um jeito de destruir o clima
com sua falta de educação. Não sabia por que ainda esperava uma reação
normal dele.
— Muito me admira alguém do seu tamanho, e com poderes, com
medo de uma criatura que eu nem tenho certeza de que existe.
Neto olhou por sobre o ombro e arregalou os olhos. Nadou ao meu
encontro e tomou, bruscamente, o garfo da minha mão.
— Como você...?
— Cruzes! Você não sabe mesmo como ser gentil! Custava me dizer:

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“obrigado, Íris, por pegar meu garfo de ouro, como eu ia comer sem ele? Eu
fiquei tão puto com você que o esqueci.” — Revirei os olhos. — Queria saber
o que não te irrita.
Cruzei os braços sobre os seios nus, furiosa com seu mau humor.
— Perdoe-me se minha preocupação com seu bem-estar a incomoda.
— A ironia em sua voz não passou despercebida. — Só quero evitar que vire
alimento de monstro.
Tomou a dianteira, novamente, voltando a nadar e se distanciar com
agilidade. Ah! Mas ele não ia fugir de mim daquela vez.
— Qual é a sua, afinal de contas? Você é algum tipo de dono do
pedaço, para agir desse jeito escroto o tempo todo? Para que serve esse
garfo? Para atormentar criaturas como eu até que o obedeçam? Você também
tem um calabouço naquele castelo, onde tortura os desobedientes? Por que é
tão difícil para você pedir em vez de ordenar?
Neto suspirou pesadamente, desacelerando o nado, a fim de permitir
que o alcançasse.
— Você tem razão, Íris. Desculpe-me por minha falta de tato. É que...
Tudo em mim é... muito! Não sei explicar melhor que isso. Eu sou o que você
vê, uma hora calmaria, na outra tempestade. Tenho esses poderes, mesmo não
pedindo por eles, que me permitem ter quase tudo o que quero, mas não sou
dono de nada. Como já expliquei antes, existem seres nos sete mares que eu
jamais poderia derrotar ou controlar. E você é um deles. — Neto riu e eu ri
com ele. Estávamos começando a nos entender. — Como uma criatura tão
jovem consegue ser tão petulante é um mistério para mim.
— Ei, eu não sou mais criança!
— Para uma humana, pode até ser. Mas, como sereia, você é uma
recém-nascida.
Estreitei os olhos, mas não discordei de seu comentário. Até que fazia

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sentido.
— Então você não torturava ninguém em um calabouço?
— Não, nunca. Meu castelo era um lugar de paz e harmonia.
— Gostaria de ter visto isso. E seu garfo não serve para espetar as
bundas dos desobedientes?
— Não espeto ninguém. — Neto soltou uma risada. — O tridente me
ajuda a concentrar os meus poderes.
Hm... Aquilo era interessante. Tive uma ideia meio absurda, mas
externei assim mesmo:
— Talvez seja preciso que você derrote o monstro, como um grande
guerreiro marinho, e traga harmonia de volta ao oceano. Ele anda muito
revoltado. Só pode ser essa maré de fúria que tem deixado o clima louco lá na
superfície, tão louco que me carregou até a ilha. Talvez, se eu te ajudar a
libertar os mares dos seres malignos, conseguirei ir embora.
Neto parou de nadar e me encarou, entre surpreso e tristonho.
— Você ainda deseja ir embora?
— Por mais extraordinário que seja viver essa... aventura, meu lugar
não é aqui.
O olhar que Neto me lançou foi de cortar o coração. Pensei em formas
de confortá-lo, mas nada seria justo com ele. Só conseguia sentir o desejo de
convidá-lo a vir comigo. Tinha muita coisa que eu podia lhe mostrar pelo
mundo afora. Minha esperança era que ele quisesse ir, por vontade própria,
por isso, contive minhas palavras. Talvez, quando eu realmente encontrasse
um jeito de partir, tivesse coragem de lhe fazer o convite para, ao menos, me
visitar, ou tirar umas férias em terra. Afinal, ele também tinha pernas e podia
viver na civilização se eu o instruísse a ser mais educado.
— Espera aí! — Uma dúvida me acometeu, algo que eu não acreditava
que não havia pensado antes. Minha exclamação causou um sobressalto em

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Neto. — Você tem poderes! Consegue até transformar seu corpo! Pode sair
da ilha e me levar de volta para casa!
— Eu... Eu... — Não era a primeira vez que eu o deixava sem palavras,
mas, desejava desesperadamente que ele me respondesse. — Não sei de onde
tirou essa ideia.
— Como assim? Esse garfo não serve para isso, não?
— Não, Íris. Eu não posso transmutar minha cauda em pernas com meu
tridente. Esse poder não me pertence. Se eu sair da ilha, serei apenas uma
criatura marinha, sem nenhum poder.
— Mas você ainda poderia me carregar, não é mesmo? Tem braços
fortes.
— Estamos muito longe do Brasil, você ficaria exausta e desidratada.
Seria uma viagem perigosa para você.
— Ah! Eu vi uma costa não muito longe daqui, depois da redoma de
magia. Você pode me levar até lá. Para eu nadar sem minhas pernas no mar
aberto é complicado.
Neto fez uma careta conforme eu insistia em um meio de deixar da ilha
de uma vez por todas.
— Íris, essa ilha é dominada por piratas. Eu jamais a colocaria nas
mãos de humanos que poderiam escravizá-la ou vendê-la.
Meu mundo desabou e as ideias mirabolantes na minha cabeça caíram
por terra. Neto e eu nunca seríamos compatíveis, como ele já havia dito.
Aquela certeza me causou tanta tristeza que minha expressão espelhou a dele.
Éramos uma grande e irreversível piada do destino.
— Agora vai me dizer que os deuses criaram essa ilha estranha e nos
colocaram nela, hora humanos, hora peixes, para tirar uma onda com a nossa
cara?
Pela primeira vez, desde que conhecera Neto, eu me deixei abater.

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— Os deuses possuem um senso de humor bizarro... — Neto apenas
ergueu uma sobrancelha, mantendo a expressão impassível.
— Conta outra! — bufei, incrédula.
Mas se até uma criatura poderosa como Neto possuía suas limitações, e
se realmente existissem monstros que ele temia, não haveria também deuses?
Fui criada em uma religião monoteísta, no entanto, Nestor, assim como Neto,
pareciam acreditar que havia vários. Um deus só para o oceano, por exemplo.
Do jeito que aquele mar andava cheio de vontades, não seria estranho que um
ser temperamental o regesse.
— Acho que cansei de nadar... — disse, subindo até a superfície, a fim
de ir ao encontro da nossa praia. Pensar nela como “nossa” doeu um pouco,
mas contive o choro que queria saltar do meu peito. Nossa até quando? — Eu
deveria comer alguma proteína, mas não quero torturar os peixinhos de novo
com uma caçada. Vou me sustentar com os frutos que os deuses resolveram
me oferecer lá na ilha esquisita. Devo agradecer por terem devolvido o sol e a
noite também?
Neto me seguiu em silêncio, sem fazer qualquer comentário, nem
mesmo sarcástico, sobre o meu desânimo. Sua presença, enorme e silenciosa,
se mostrou reconfortante. Nadamos lado a lado até a praia e nos arrastamos
na areia, até que nossas caudas se transformaram em pernas outra vez. Nus,
caminhamos até as árvores e ele me ajudou a colher alguns alimentos, que
meu corpo mortal necessitava. Sentamos sobre uma rocha a fim de aproveitar
os últimos raios de sol para aquecer nossas peles molhadas.
Enquanto eu comia, comecei a rir de maneira meio histérica, quase
forçada. Não consegui conter o ataque, cedendo cada vez mais a ele. Nós
estávamos parecendo o casal de jovens que protagonizaram o filme “A Lagoa
Azul”, só que mais velhos e mais experientes. Eu denominaria nossa história
como “Sob o Céu Roxo”. Ri tanto que até me engasguei com o fruto que

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comia. Neto demonstrou preocupação por não saber o que fazer para me
auxiliar na crise.
— Estou bem, não se preocupe. Só me lembrei de um filme bobo. Você
não deve conhecer, afinal, não é um náufrago de verdade. — Não pude
disfarçar o desapontamento em minha voz.
— Eu não sabia como explicar a você, que me fez inúmeras perguntas
quando nos conhecemos, quem eu era. Aprendi, da pior maneira possível, que
é melhor esconder minha verdadeira natureza dos humanos.
— Por isso usa mais a forma de homem e se isolou na ilha?
Neto deu de ombros, como se não tivesse importância.
— Fale-me sobre esse tal filme, mesmo sendo bobo. — Desviou-se do
assunto.
Comecei a rir de novo, mas de maneira mais natural. Ainda bem.
Contei a ele a história de “A Lagoa Azul”, mas ele não riu. Neto não sabia
apreciar uma boa piada. Terminei de comer e lambi os dedos para limpá-los
do sumo. Encostei-me nele, meio cansada, admirando o céu alaranjado,
conforme o sol se punha. Ele me contemplou sem dizer absolutamente nada,
mas senti sua surpresa com meu gesto.
— Estava com saudade de ver o pôr do sol. É lindo, não é?
Neto volveu o rosto para o horizonte e voltou seus olhos para mim em
seguida.
— Nada se compara a beleza que vejo em seu olhar. — Eu o encarei,
espantada com a delicadeza em sua voz. — Parece um mar em chamas.
Neto tinha seus momentos, eu precisava admitir. Eu me atirei em seus
braços e me deixei abraçar por um longo tempo. Demorou apenas um
segundo para ele retribuir e permanecer em um silêncio solene comigo. A
noite chegou, trazendo uma lua cheia gloriosa e o cansaço ao meu corpo, que
se esforçara mais do que o normal para um dia. Eu me levantei e o puxei pela

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mão até a cabana que fizera para mim, com um sorriso contido. Ele me
acompanhou sem questionar, como se estivesse hipnotizado.
Afastei a folha a fim de entrar e o trouxe comigo para dentro do nosso
lar. Como os náufragos do filme, fizemos daquela ilha a nossa morada. Soltei
sua mão e me enrolei na manta. Dei um tapinha na areia ao meu lado, antes
de fazer o convite:
— Sei que você não dorme, mas não ficaria comigo só até eu
adormecer?
Neto engoliu em seco, porém, atendeu ao meu pedido de imediato.
Deitou-se exatamente onde apontei. Eu me aconcheguei em seus braços, que
me laçaram assim que eu deitei a minha cabeça em seu peitoral musculoso.
Fechei os olhos, sorrindo, grata. Se nosso tempo juntos tinha prazo de
validade, eu pretendia aproveitar cada segundo ao lado daquele homem, meio
ogro e meio deus.

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CAPÍTULO 26
Netuno

Desejei possuir a capacidade de adormecer apenas para que meus


conturbados pensamentos dessem uma trégua. Tornou-se insuportável
observar o sono de Íris, deitada em meus braços, enquanto um turbilhão de
reflexões me deixava cada segundo mais fora de mim. Ainda não sabia como
lidar com o profundo momento vivenciado na fenda. Ter aquela mulher
enquanto eu tivesse pernas poderia ser justificado, afinal, os instintos
humanos eram diferentes, porém possuí-la enquanto estivesse em minha
verdadeira forma, como deus de todo oceano, chegava a ser um absurdo.
Anfitrite e boa parte das criaturas marinhas me condenariam por tal
atitude inconsequente. Eu poderia me sentir um grande bastardo se não
estivesse com o coração inflado de um sentimento esquisito, que
miraculosamente não era ruim. Muito pelo contrário. Cheguei a sorrir feito
um bobo enquanto alisava os longos cabelos de Íris e observava o contorno
de seu rosto adormecido. Era inconcebível que uma mortal fosse tão bela até
mesmo em um instante de vulnerabilidade.
— O que fez comigo, Íris? — balbuciei devagar, experimentando seu
lindo nome passando pelos meus lábios. Balancei a cabeça em negativa e
finalmente tirei uma conclusão a respeito de tudo aquilo: — É loucura.
A verdade era que eu não mais desejava matá-la. Não sentia raiva,
remorso, sede de vingança ou qualquer um dos péssimos sentimentos que me
fizeram trazê-la para a ilha. No entanto, não queria que Íris partisse. Por este
motivo que menti sobre não ter a capacidade de levá-la de volta. Ela ainda
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não tinha percebido que eu era um deus, mas sentia que não demoraria muito.
Até lá, precisava encontrar uma forma de fazer com que ela não
resolvesse ir embora de vez. Não que eu soubesse o que fazer com o desejo
de sua permanência em meus domínios. Se Íris ficasse para sempre, o que
significaria? Seria eu capaz de controlar o sentimento arrebatador que nutria
meu corpo toda vez que a encarava?
Minha conclusão não poderia estar mais certa: era loucura demais
alimentar qualquer sentimento pela mortal, seja ele bom ou ruim. Íris deveria
ser uma criatura irrelevante para mim e, no fundo, era. Sua existência não
passava de um pequeno sopro dado pelo Universo, algo insignificante,
passageiro e até mesmo inútil. A importância que eu lhe atribuía, mesmo sem
querer, era infundada racionalmente.
Eu a deixei assim que os primeiros raios solares ameaçaram alcançar a
ilha. Não sabia se tinha sido boa ideia permitir que o meu reduto particular
voltasse ao normal, com dia e noite bem definidos, frutos em abundância e
vida animal. Contudo, Íris morreria se o ambiente continuasse escasso. A
vida de uma humana como ela era de uma grande delicadeza e, se eu não
queria mais matá-la, era coerente oferecer maneiras para que sobrevivesse.
Tudo o que fosse um risco para o seu bem-estar passou a me incomodar
profundamente. Sendo assim, apenas por ela que resolvi voltar ao oceano
para conferir qual havia sido a força que invadira o meu castelo sem qualquer
aviso, enchendo-o de uma energia das trevas. Era um absurdo que eu não a
tivesse sentido antes. Mas eu me encontrava tão insatisfeito comigo mesmo
que havia agido como um soberano descuidado, sem me importar com
invasores ou qualquer outra coisa que não fosse minha própria insatisfação.
Encontrei Nestor perto da praia, provavelmente porque estava nos
espiando. Era o que mais aquela criatura sabia fazer. Não teci qualquer
comentário e continuei a nadar rumo ao castelo. Obviamente, o golfinho me

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seguiu. Achei estranho que não tivesse falado nada a princípio, pois tagarelar
era a segunda coisa que ele sabia fazer com maestria. Depois de poucos
minutos, Nestor abriu o bico:
— O senhor está deixando Íris apaixonada só para machucá-la depois?
— perguntou com um ar preocupado. Sua seriedade foi tão surpreendente que
parei o nado para observá-lo. Seus olhos estavam arregalados de pavor. — É
um plano terrível até para o senhor. Já ouviu falar que não devemos fazer
com o outro aquilo que não desejamos para nós?
Fiquei mudo por alguns segundos. Claro que cheguei a pensar naquela
possibilidade, mas foi no começo, antes de conhecê-la. Além do mais,
dificilmente eu conseguiria obter o sentimento de alguém apenas com o
intuito de ferir. Seria um plano fadado ao fracasso, de toda forma.
— Estou ciente de que sou um péssimo deus, e que meus últimos
comportamentos não trouxeram orgulho para ninguém, mas esse seu
julgamento é completamente descabido.
— Não enxergo dessa forma, Netuno. — Nestor continuou bastante
sério. Eu não sabia que aquela criatura podia conversar sem ironias ou
risadinhas irritantes. — Íris é uma boa pessoa. Não merece tanta
desconsideração.
Apertei os meus punhos porque a raiva já ameaçava me dominar.
— Em primeiro lugar, Íris é esperta demais para se apaixonar por mim.
Ela me odeia — desabafei aquilo com a plena sensação de que o meu coração
doía. — Só permite minha aproximação por pura carência, um sentimento
humano que remove a razão e faz com que a pessoa cometa barbaridades
regidas pelo impulso emocional.
— Não creio que seja apenas carência, meu senhor.
— Pois eu tenho absoluta certeza. Ela é inteligente e eu a destratei
desde o início. — Retomei o meu nado porque não queria perder mais tempo

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com o golfinho. Porém, como previsto, ele me seguiu.
— Então, não é este o seu plano?
— É claro que não!
— O que pretende, então, Netuno? Ainda vai matá-la? Se for fazer isso,
não a iluda. Não a deixe sofrendo por mais tempo. É muita crueldade!
— Chega, Nestor! — Apontei o meu tridente para ele. O golfinho se
calou, mas não recuou nem um centímetro diante da ameaça contida em meu
olhar. — Não vou matá-la e nem enganá-la. Íris permanecerá em segurança
enquanto eu estiver aqui.
De repente, Nestor abriu um grande sorriso, cheio de dentes.
— O senhor está apaixonado? Pretende desposá-la? Íris será a sua
rainha, meu bom deus? Teremos, finalmente, a paz de volta ao oceano?
Balancei a cabeça em negativa, admirado com aquelas tantas perguntas.
Eu não sabia responder a nenhuma delas, mas Nestor não poderia perceber a
minha hesitação, caso contrário seria eu que jamais reencontraria a paz.
— Não seja idiota — resmunguei.
— Apenas estou sendo óbvio. O oceano inteiro sentiu a agitação da
paixão entre vocês, foi lindo! Não tente negar, Netuno, será pior se continuar
escondendo a verdade.
— Não há verdade alguma sendo escondida. — Aliás, havia algo sendo
escondido, e eu estava justamente atrás de saber mais sobre isso.
Já estávamos perto do castelo. Podia vê-lo adiante, e a mesma sensação
ruim de outrora invadia meus sentidos. Havia uma força com grande
magnitude implantada em meu antigo lar. Alguma fera marinha, proveniente
das trevas, escondia-se perto demais da minha ilha. E a certeza de não poder
expulsá-la sozinho crescia conforme nós nos aproximávamos.
— A verdade é que o senhor ama a Íris. E, se não parar de negar logo,
irá perdê-la por causa dessa teimosia.

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— Shh! — Coloquei uma mão para frente a fim de impedir o Nestor de
continuar nadando. — Calado.
Naquele ponto do oceano, a água se tornava mais densa, eu podia
sentir. Minha pele inteira formigava e se arrepiava, percebendo o tremendo
perigo. O castelo estava aparentemente intacto, mas meus poderes de deus me
permitiu identificar o monstro que o invadira.
— O que foi? O que houve? — Nestor indagou, temeroso.
— Há uma criatura amaldiçoada em meu castelo.
O golfinho me olhou como se eu tivesse sido tragado pela
irracionalidade.
— E o senhor só percebeu agora? Essa criatura mora aqui faz uns anos.
— Foi a minha vez de arregalar os olhos, estupefato com a informação. —
Ninguém vem para essa parte do oceano. Achei que havia sido o senhor que o
colocou aí dentro!
— Não fui eu!
— Ferrou, Netuno! — Nestor soltou um berro exasperado, e eu apertei
o seu bico com força.
— Calado, sua criatura ordinária! Não percebe que a situação é
periclitante? — Larguei-o sem qualquer delicadeza. — Esse monstro invadiu
o meu castelo sem meu consentimento e certamente não está aqui em vão.
— Qual é o monstro? O senhor sabe?
— Caríbdis.
O golfinho nadou para trás no mesmo instante, todo assustado. Com
certeza ele sabia sobre a lenda daquele ser monstruoso. Caríbdis costumava
ser uma ninfa voraz, mas acabou tendo o azar de atrair a ira do meu irmão
Júpiter, que a amaldiçoou pela eternidade, transformando-a num monstro
horripilante. Caríbdis se uniu às forças do mal e ganhou poderes
inimagináveis, tornando-se uma das criaturas mais temidas de todo o oceano.

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— Não pode de ser... — Nestor sussurrou.
Meu cérebro já tentava resolver a situação. Eu precisava de alguma
ajuda se quisesse derrotar Caríbdis. Os primeiros nomes que me vieram à
cabeça foram Oceano e a sua irmã Tétis, dois titãs poderosíssimos que
habitavam as águas, ajudando a manter a ordem. Eles costumavam ser meus
amigos, porém a minha revolta os afastou de meu convívio. Muito
provavelmente estavam insatisfeitos comigo, talvez na torcida para que eu
fosse destronado. Definitivamente, não estava disposto a sentir a ira dos titãs.
Sendo assim, a possibilidade foi descartada de imediato.
— O que o senhor vai fazer? — Nestor perguntou enquanto eu refletia.
Virei as costas para o castelo.
— Por enquanto, nada. — Usando o poder do meu tridente, soltei uma
ordem que partiu para as criaturas que nadavam em um raio de trinta
quilômetros dali. — Evacuem a área imediatamente! Não quero ver nenhuma
criatura habitando este espaço até segunda ordem!
Eu sabia que havia sido ouvido por todos e que seria atendido às
pressas.
Repentinamente, um pensamento me deixou horrorizado: Tritáo
poderia correr perigo. Precisava encontrá-lo com urgência e tentar arranjar
uma forma de deixá-lo bem longe do monstro.
— Nestor, preciso que me faça um grande favor — eu me direcionei a
ele, que se manteve atento. — Dê um jeito de acordar Íris e avise para que ela
não entre no mar sob nenhuma hipótese.
— Sim, senhor! — Ele sequer pestanejou, virou as costas e foi nadando
em direção à praia.
O meu descuido colocou as criaturas que eu mais possuía apreço em
perigo. Pensar nisso me deixou indignado, odiando-me profundamente,
porém também serviu para que eu fizesse uma importante promessa: nunca

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mais deixaria o oceano desprotegido de novo.

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CAPÍTULO 27
Íris

Pela primeira vez desde que acordei naquela ilha estranha, eu dormia
em paz e até sonhava. Todos os meus temores se foram e eu não quis admitir
a mim mesma na hora, mas era culpa do Neto. Ele era um ogro rude? Era. Eu
estava bem ciente disso. Mas também sabia ser terno e me amara de maneira
doce no fundo do mar. Depois, aceitou de bom grado ficar até eu adormecer.
E, nossa!, foi tão bom dormir, deitada em seu peitoral, quanto fazer sexo com
aquele monumento todo.
Aquela casca grossa nada mais era do que uma barreira para proteger
seu frágil coração. Eu também sabia que Neto tinha potencial para mudar e
estava disposto a tal, só que não aconteceria da noite para o dia. Mas eu não
desejava que ele fizesse nada por mim, ou porque eu vivia lhe dando
conselhos. Queria que ele percebesse que o caminho do amor e da bondade
era sempre o melhor, para qualquer tipo de criatura, ainda mais quando não
se deseja a solidão.
E, em meu sonho, Neto enxergava e o tempo que passamos juntos foi
de risos e carinhos. Um tempo que sabíamos que seria curto, mas quem
estava se importando com isso quando a alegria fazia morada em nossos
corações? E seu riso era tão contagiante! Parecia se espalhar pela ilha como
uma névoa do bem, alegrando a cada ser vivo que tocava. Havia paz,
harmonia e uma felicidade palpável, que eu não seria capaz de encontrar em
outro lugar além daquela ilha encantada.
— Íris! Onde você está? — Ouvi uma voz engraçada me chamando,
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mas continuei imersa no mundo dos sonhos. — Preciso falar contigo com
urgência, minha amiga!
A insistência acabou me arrastando para a realidade, inevitavelmente.
Franzi o cenho e pisquei os olhos, percebendo a claridade invadir a cabana
por meio de frestas. Era dia e eu me encontrava sozinha, constatei logo.
Chateada por ser tirada do meu conto de fadas particular, eu me ergui e me
espreguicei, saindo para a praia. A luz forte do sol, refletida na areia e na
água, me fez cerrar os olhos momentaneamente. Mas, por fim, avistei um
golfinho jorrando água e saltitando em alto-mar.
— Bom dia, Nestor! — cumprimentei, caminhando em sua direção.
Antes que meus pés tocassem as ondas e virassem barbatanas, o boto
berrou:
— Não entre no mar, Íris! Por favor! — Estaquei, assustada. — Não é
seguro. Há um monstro terrível escondido não muito longe daqui. — A
expressão de Nestor me garantia que ele falava sério e estava apavorado. —
Acho que vou passar umas férias na ilha. A gente pode se encontrar no rio
para nadar em segurança. Não me perdoarei se alguma coisa acontecer com
você, amiga.
— Fique tranquilo, Nestor, não pretendo nadar no mar. Mas você viu
esse tal monstro?
— Graças aos deuses nunca tive o desprazer de cruzar com vil criatura.
Se assim tivesse acontecido, não poderia sonhar em ter minhas próprias crias.
Eu o vi estremecer, apesar de achar engraçado o que disse. Exagero,
talvez, mas não ia discutir com uma criatura amedrontada. O medo paralisa
qualquer ser.
— Tudo bem, Nestor. Pode se acalmar agora.
— Se estiver com fome, posso caçar uns peixes para você, Íris.
— Acabou de dizer que o mar é perigoso.

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— Posso caçar no rio, me encontre lá!
— Mas onde fica esse rio? — Era tarde demais, o golfinho já
mergulhara.
Eu podia seguir o veio que Neto desviara para suprir minha sede. Dei
de ombros e fui cuidar de minha higiene matinal, de beber bastante água e
colher frutos para minha refeição. Sabia como era triste sentir fome, não
rejeitaria comida quando me oferecessem.
Não avistei Neto em parte alguma. Até me aproximei de sua pedra
preferida para ver se o encontrava, plantado feito uma árvore. Mas nada dele.
Deixei-o para lá. Neto estava longe de qualquer ideal de homem ou mesmo
de amigo. Talvez a gente só se desse bem no sexo, vai saber? Acordar
daquele sonho e encarar a minha realidade solitária, e mais prisioneira do que
nunca naquela ilha, me colocou para baixo.
Nada era realmente perfeito, nem ninguém. Questionei o que eu sentia
por Neto e não cheguei a nenhuma conclusão satisfatória. Eu sentia tesão por
ele? Sem dúvida. Carinho? Sim, como por qualquer criatura. Mas era só. Fora
a pegada maravilhosa durante a transa, Neto transmitia poucas qualidades
apaixonantes. Sabia que sexo fazia parte, mas não era tudo. Tinha que ter
algo mais. Na maior parte do tempo ele era arrogante, bruto e orgulhoso.
Havia me dito que era tudo muito intenso, mas, poxa vida, a gente tinha
cérebro para quê, senão para aprender a conter nossas impulsividades?
O que eu estava pensando? Por Deus! Tinha uma vida para retornar. Eu
não podia querer me apaixonar por uma criatura mítica, com poderes
sobrenaturais! Íris, acorda! Planeta Terra chamando! Volta para a
realidade, querida! Você é uma humana, mortal, que está um pouco perdida
depois do acidente, e de várias quase mortes. Só isso. Seu tempo nessa ilha (e
na vida!) está contado. Não se apegue. E nem seria burra de me apaixonar
por um grosseirão, não é? Não tinha vocação para sofredora.

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No reflexo do riacho, vislumbrei aquela mesma beleza que me
espantara no poço. Meu Deus! Como era possível que meu cabelo e meu
rosto estivessem tão deslumbrantes? Tinha alguma coisa na água daquela ilha
que era mágica! Aquilo me lembrou de Tritáo e da promessa que fiz de ir
visitá-lo diariamente. Olhei para a minha nudez e concluí que teria que
quebrá-la mais um dia. Como eu iria me apresentar pelada diante de um
adolescente?
Fui seguindo o rio, conforme ele se infiltrava na mata e alargava. Colhi
frutos pelo caminho e saboreei seu gosto suculento e cheio de sumo. Deixei
escorrer pelo queixo, como uma criança comendo. Ri de mim mesma. Que
sujeira! Os pássaros cantavam, os animais corriam e as borboletas voejavam
de uma flor a outra. Respirei o ar puro, sorrindo para o céu azul. Havia tanta
vida ao meu redor. Nem parecia aquele cenário igual de cemitério, belo, mas
assustador, de quando cheguei.
De repente, notei algo que não parecia natural pendurado no galho alto
de uma árvore. Parei embaixo dela para tentar enxergar melhor e me enchi de
alegria. Era minha roupa de neoprene! Mal podia acreditar em minha sorte.
Escalei o tronco, escorando-me nos galhos mais baixo, e puxei a peça para
mim. Assim que estava no chão novamente, eu a vesti. Agora eu podia
conversar com o Tritáo.
— Obrigada! — agradeci aos céus pela dádiva, muito bem-vinda.
Eu nem havia pedido nada, mas fora atendida mesmo assim. Isso que
era ser abençoada. Mudei de direção, cortando o riacho e prometendo a mim
mesma encontrar Nestor assim que possível. Sabia que ele iria me esperar, de
qualquer maneira. Andei vários metros quando algo começou a refletir a luz
matinal bem no meu rosto. Protegi meus olhos com o braço e desviei do
rastro de luz a fim de tentar enxergar o que era. Talvez o tsunami trouxera
algum objeto da vida moderna para a ilha.

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Quase caí para trás quando parei diante do tronco. Preso entre os
juncos, havia uma joia rara, que eu conhecia muito bem. Uma luz forte
incidiu do meu peito, como se a pedra em forma de gota pendurada na
corrente no meu pescoço reconhecesse a outra. Eu, com certeza, reconheceria
de qualquer forma.
— Não é possível! — Eu a peguei entre os dedos com delicadeza. Era
exatamente igual a minha. Não tinha absolutamente nada de diferente, o que
era muito estranho. Nenhuma pedra preciosa era igual à outra. Mas a
pergunta que não queria calar era: o que ela estava fazendo ali? Será que,
como eu pensara anteriormente, era na ilha que ela se originava? Não vira
nenhuma pedra na gruta com o mesmo tom de azul. — Não pode ser.
Determinada a comparar, eu a guardei por dentro da manga comprida
da roupa de neoprene, que não tinha bolso, mas era anatômica e se modelava
com exatidão ao meu corpo. Empurrei-a mais fundo com um dedo, na direção
do braço, deixando-a mais distante da borda do pulso. Não queria perdê-la.
Caminhei determinada até a gruta, com pressa de tirar aquela história a limpo.
Será que Tritáo sabia alguma coisa? Ele não me dera informação alguma da
outra vez, além do aviso.
Será que ficaria decepcionado por eu não ter ido embora? Mas, naquele
momento, mesmo querendo ainda partir, havia um perigo grande demais para
eu sequer poder nadar nos arredores mágicos da ilha, como sereia. Neto e
Nestor me fizeram prometer. A preocupação deles era tocante, eu precisava
dar algum valor àquilo. Também não queria morrer. Não era uma
inconsequente. Eles conheciam os mares mais do que eu. Precisava acreditar
neles.
Assim que achei a gruta, eu a adentrei sorridente e saltitante. Estava
com saudades daquele menino. Eu o encontrei com o tronco apoiado em uma
pedra, tristonho.

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— Oi, Tritáo, desculpa...
Mas ele não me deixou terminar. Assim que me viu, seu rosto se
iluminou e nadou até a beirada do lago a fim de se aproximar de mim.
— Oi, Íris! Pensei que você tivesse ido embora. Mesmo que isso me
fizesse feliz, porque é o melhor para você, também me deixa triste. Eu estou
me sentindo especialmente sozinho hoje.
— Não fique triste, querido. Não consegui vir antes, tive uns
contratempos. Quase parti, aliás. — Pensei em lhe contar sobre a cauda,
assim eu podia nadar com ele, mas isso implicava em ficar nua. Achei melhor
deixar para lá. — Mas ainda estou aqui.
— Que bom, amiga. Ninguém mais poderia me animar hoje além de
você.
— O que fez nos dias que não vim?
— Nada — deu de ombros. — Nadei do fundo do poço pra superfície,
só para fazer meu exercício diário e ficar forte. Meu pai não me perdoaria se
eu negligenciasse minhas obrigações. — E revirou os olhos.
— Mas não é possível que você só tenha obrigações. É apenas um
menino!
— Ah! Não! Minha mãe é divertida. Ela conta muitas histórias
incríveis, do tempo em que o mundo não era como nós o conhecemos. Mas
nenhuma história me animou hoje.
— Ela veio te ver?
— Veio. Mamãe vem me ver todos os dias. Muito diferente do meu pai.
Meu Deus! O abandono de filhos por parte de pais também acontecia
no mundo das criaturas míticas e imortais. Coitado de Tritáo. Eu tivera a
sorte de nascer em um lar em que meus pais trabalharam unidos na minha
educação, mas vi muitos outros lares desfeitos pela omissão ou ausência da
parte paterna. Têm homens que pensam que ser pai é só colocar no mundo e

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dar comida. Mas ser pai vai muito além disso.
— Sinto muito, Tritáo.
— Como são seus pais?
— Uns amores, muito carinhosos e atenciosos. — Senti uma saudade!
— Eles devem estar muito preocupados com o meu sumiço.
— Ah! Não fique triste também, Íris. Tenho certeza de que você vai
encontrar um jeito de voltar para eles. Se eu pudesse sair daqui, te ajudava.
— Espero que sim, Tritáo. Olha. Sei que não é conselho que se dê a um
adolescente, mas você já experimentou contrariar as ordens do seu pai? Às
vezes precisamos mostrar que estamos prontos para fazer nossas próprias
escolhas.
— Pode apostar que sim! Mas não vale a pena, Íris. A fúria do meu pai
é conhecida pelos sete mares.
— Tente novamente, Tritáo. Você não tem nada a perder. O que mais
ele pode te proibir de fazer? Você já é prisioneiro nessa gruta, o que é um
absurdo. Não existem justificativas para isso. Só se aprende a viver, vivendo.
Tritáo ficou cabisbaixo de novo. Em vez de ajudar, eu estava
atrapalhando.
— Ei! Não fique assim. Esquece, tá legal? Faça o que achar certo.
— Eu só queria que ele me ouvisse e respeitasse minha opinião.
— É o que todo filho deseja. — Pensei que, se o pai de Tritáo fosse
turrão como Neto, peitar, mesmo que ele ficasse furioso, podia dar certo.
Pessoas como ele não respeitam quem sempre abaixa a cabeça. — Mas, às
vezes, é preciso ganhar esse respeito.
— Como, Íris?
— Questione, Tritáo. Não precisa brigar, mas argumente. Você
consegue.
Seu rosto se iluminou.

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— Obrigado. Você foi de grande ajuda. Já me sinto melhor.
— Que bom! Fico feliz em ajudar. Agora, tem uma coisa que eu acho
que você poderia me ajudar, mesmo sem sair daqui.
— É mesmo? Se eu puder, claro que ajudo.
Tirei a pedra em formato de gota do esconderijo da manga longa e a
coloquei em sua mão, ajoelhando-me à sua frente.
— Você já viu essa pedra aqui na ilha antes?
Tritáo a rodou nos dedos, colocou-a diante dos olhos e a analisou por
algum tempo antes de se pronunciar:
— Engraçado, parece uma lágrima.
— Também achei, mas o que mais intriga é a semelhança com essa —
e puxei o colar que eu carregava comigo sempre, desde que o recebera.
— Uau! Elas são idênticas! Onde você achou?
— Essa eu ganhei da minha mãe, que ganhou de minha avó, e assim
por diante. Está na minha família há muitas gerações. Diferente de nós, ela é
eterna e sua história perpetua através de nossas mulheres.
— Eu adoro ouvir histórias.
— Adoraria contar a você, mas antes, me diga. Essa gota que está
segurando, eu achei escondida entre juncos de uma árvore. Você já viu
alguma pedra parecida com ela na ilha? Talvez no fundo desse poço? Não
com o mesmo formato, mas com a mesma cor?
— Não, nunca vi, Íris. É a primeira vez que a vejo. Posso ficar com
ela?
— Claro! Se ela for da ilha mesmo, provavelmente te pertence. Você
está aqui muito antes de mim. — Guardei meu colar de volta na segurança da
minha roupa de neoprene, decepcionada. Tritáo era tão imaturo e perdido. Eu
tinha pena do menino inocente e solitário que o pai dele o estava
transformando. A vida não era fácil, por isso mesmo ele devia ser criado para

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lutar e se defender, cair e se levantar, e não para se esconder e esperar a
tempestade passar. — Se ainda quiser, posso te contar a história do meu
colar.
No entanto, os olhos de Tritáo se arregalaram. Ele apertou a gota na
mão e me pediu silêncio com um sinal.
— Se esconda! — sussurrou, alarmado.
Sem questionar, obedeci e corri para trás de uma pedra bem grande.
— Oi, pai. Que bons ventos o trazem em minha humilde prisão?
— Não faça assim, Tritáo. — Eu me arrepiei inteira ao reconhecer
aquela voz. — Estou preocupado com você. Está tudo bem? Tem recebido
visitas de sua mãe?
— Regularmente.
— E de alguma criatura abelhuda? — Engoli em seco, sem acreditar,
quando o pai do menino-peixe voltou a falar.
— Não, senhor. — Percebi a voz de Tritáo vacilar.
Precisava confirmar minhas suspeitas. Cautelosamente, espiei atrás da
pedra. Vi Neto, com toda sua exuberância aquática, nadando no lago, com
seu tridente a tiracolo, como se houvesse uma ameaça iminente. Ele é sempre
tão tenso! Voltei a me esconder. O coração parecia que ia saltitar pela gruta.
Ele mentiu para mim. Quer dizer, omitiu. Inclusive que tinha uma ex-mulher.
Será que existia divórcio entre criaturas míticas?
— Não mesmo? — Neto insistiu.
— Não, senhor. — A voz de Tritáo cresceu, mais confiante.
— Assim espero.
— O que o senhor quer, afinal? Só veio averiguar se estamos seguindo
suas ordens? É só com isso que se importa!
— Não é verdade. — A voz de Neto amoleceu. Ele raspou a garganta
quando percebeu o deslize. — Surgiu uma ameaça e eu vim ver se você está

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seguro. Também quero que saiba que tudo o que faço é para seu...
— Meu bem, eu sei! Já cansei de ouvir esse discurso. Quando eu vou
poder sair dessa gruta é só o que me interessa saber.
— Você lembra tanto a mim mesmo quando tinha a sua idade, Tritáo.
Tão inocente e cheio de sonhos ingênuos. — Neto suavizou a voz ao dizer
aquilo, como se a lembrança o entristecesse. — Você ainda não está pronto
para o mundo lá fora. Não vou deixar que repita meus erros.
— Mamãe tem outra visão do senhor. Diz que foi um garoto do bem,
de coração puro.
— Sua mãe é nostálgica quanto àquela época, que nunca mais voltar,
Tritáo.
— Por que não? Não seria muito melhor viver em um mundo de paz,
harmonia, bondade e amor?
— Sim, seria, se esse mundo não passasse de uma terrível ilusão. Vou
ter que conversar com sua mãe para parar de colocar ideias tolas em sua
cabeça. Sempre a admirei por ser realista, mas essa obcessão pelo impossível
já passou dos limites.
— Nada é impossível para o grande...
— Chega, Tritáo! Por que você não me ouve pelo menos dessa vez sem
discutir, por favor? — Havia puro desespero na voz de Neto. — Há criaturas
no oceano tão antigas e poderosas que nem mesmo os deuses do Olimpo
conseguiriam derrotá-las!
— Tudo bem, pai. Vou lhe dar um voto de confiança agora, mas espero
que seja recíproco.
— Eu confio em você, Tritáo. Por isso, tenho certeza de que vai me
obedecer. — Novamente aquele tom ameno. — Só não confio no restante do
mundo. Ele pode te ferir tão profundamente que vai querer deixar de ser você
mesmo para parar de doer.

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Houve um segundo de silêncio profundo, em que senti aquela dor na
alma.
— Foi isso que aconteceu com o senhor, pai?
No entanto, em vez de uma resposta, eu ouvi o som de água pingando.
— Prometo vir mais vezes para conversarmos melhor, já que sua mãe
ficará impossibilitada de chegar à gruta. Selei a entrada secreta do poço para
a sua segurança, visto que há uma criatura maligna em meus domínios, muito
próxima desta ilha. — Neto não esperou que Tritáo retrucasse ao intensificar
sua reclusão. — Eu juro, filho, que o protegerei com minha própria vida.
Você é o futuro, Tritáo. Lembre-se disso.
Escutei os passos do gigante rumo à entrada da gruta pela floresta e me
encolhi atrás da pedra para que Neto não me visse. Meu coração doía e
saltitava, e dúvidas zuniam na minha mente, confusa e curiosa. Assim que
achei seguro, saí do esconderijo e voltei para a beirada do lago. Chamei por
Tritáo, que não estava mais na superfície, mas ele não me atendeu.
Respeitei seu desejo de ficar sozinho, depois de uma conversa tão tensa
com seu pai.
Até eu estava atordoada demais para conciliar alguma frase coerente.

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CAPÍTULO 28
Netuno

Ser pai era o maior desafio com que os deuses haviam me presenteado.
Eu ainda tinha dúvidas se a presença de Tritáo em minha vida era um agouro
ou uma dádiva, porque, na maioria das vezes, não sabia como lidar com o
fato de haver alguém que era sangue do meu sangue e que, por direito,
possuía tudo o que me pertencia. Preferia travar batalhas com milhões de
monstros como Caríbdis a encarar Tritáo e toda sua revolta adolescente.
Ver seus olhos brilhantes de perto, sempre ansiosos para saber mais, a
ir além do que o pequeno espaço que lhe foi designado naquele afastado
poço, enchia-me de um orgulho sem precedentes, mas também de um
tremendo desespero. Era incrível como eu sempre me sentia um péssimo ser
quando estava perto dele. Tudo o que pudesse fazer se mostrava insuficiente
para agradá-lo, e, não importava o que eu dissesse, Tritáo quase nunca
concordava comigo.
Naquela situação, no entanto, precisava lhe dar um pouco de crédito,
afinal, reduzir o seu diminuto contato com o mundo externo talvez fosse
pedir demais para uma criatura tão ávida pela vida como ele. Eu bem sabia
que o lugar onde habitava era pequeno demais para cabê-lo, porém nada mais
podia fazer para protegê-lo das maldades inerentes daquele planeta.
Eu tinha conhecimento de que a nossa relação era fadada ao fracasso.
Começamos mal por causa da minha impaciência e profunda tristeza, dois
fatores que me afastaram dele de uma maneira praticamente irreversível. Eu
não o deixei conhecer sobre mim além do que podia se ver aparentemente.
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Tritáo mal tinha verdadeira noção do maior dever de sua vida, do principal
motivo de sua existência, e a culpa era absolutamente minha. Ganhar sua
confiança e respeito era o que me restava, já que afeto era algo que eu não
esperava obter. Pouco, ou melhor, nada fiz para merecê-lo.
Deixei as reentrâncias da caverna, que ficavam escondidas na mata, e
fui à procura de Íris. Tentei não me importar com a tristeza visível nos olhos
de Tritáo, mas a verdade era que por dentro eu estava à beira da agonia.
Contudo, havia outro problema para resolver e eu não podia me dar o luxo de
perder tempo. Não sabia se Nestor havia conseguido avisar Íris para que não
entrasse no mar, e a dúvida estava acabando com os meus nervos. Além do
mais, não tinha exatamente certeza de que a mulher obedeceria àquela ordem,
já que possuía uma incrível capacidade de ir de encontro a qualquer coisa que
lhe dissessem. Seu poder de questionamento era admirável para uma criatura
tão frágil e naturalmente ignorante, já que os poucos anos de existência
jamais lhe permitiriam ter o conhecimento necessário para responder a todas
as suas muitas perguntas.
Ouvi um ruído na beira do rio e corri na esperança de encontrá-la. Meu
coração batia forte apenas com a mera ideia de vê-la de novo. Porém, ao
perceber que não se tratava de Íris, e sim de Nestor, que nadava em círculos
como se esperasse por alguém, eu me senti um grande imbecil por me
permitir sofrer tamanha ansiedade para estar na presença daquela mulher. Seu
poder sobre o meu sistema nervoso começava a me trazer profundo
incômodo.
— O que faz aqui, Nestor? — questionei de um jeito emburrado,
decepcionado. Ainda me surpreendia que eu tivesse mudado de ideia tão
depressa com relação a Íris. Eu sabia lidar melhor com o fato de querer matá-
la do que com aquela cruel vontade de protegê-la. — Nunca vi cetáceo de sua
espécie nadar em rio.

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A criatura me percebeu, um tanto assustada, e foi logo avisando:
— É certo que a água doce pouco me agrada, mas vim até aqui pela
Íris. — Percebi uma montanha de peixes se debatendo perto da margem e
fiquei ainda mais confuso. — Estou pescando para ela — Nestor se explicou
em seguida.
— E onde ela se encontra? — Olhei ao redor na expectativa de admirar
a beleza grandiosa que a seguia impreterivelmente, por onde quer que Íris
fosse.
— Confesso que não sei, meu bom deus.
Respirei fundo, impaciente. Não sossegaria enquanto não a encontrasse
sã e salva. Por um instante, perguntei a mim mesmo como seria se eu a
tivesse matado na época em que o meu único desejo era aquele. Não fazia
tanto tempo assim, para ser bem sincero, mas parecia que havia passado uma
eternidade. De alguma forma, eu me sentia bastante diferente, e Íris era a
culpada.
— E você deu o meu importante recado? — perguntei, com os punhos
fechados de raiva. Havia um turbilhão de sentimentos contraditórios
brincando de guerra em meu coração. — Porque se Íris estiver no mar e
acontecer alguma coisa terrível, juro que não concederei um instante de
misericórdia antes de transformá-lo em assado de golfinho.
Empunhei o meu tridente na direção de Nestor, deixando clara a
ameaça.
— Calma, Netuno! Íris prometeu que não nadaria no mar, por isso
marcamos um encontro aqui no rio! — Ele não se deixou abalar e continuou
nadando, recolhendo peixes com a boca repleta de dentes.
Decidi que não ficaria ali esperando o surgimento da impactante
mulher. Deixei Nestor com o seu serviço, tomando o cuidado de recolher
alguns peixes com a mão livre, para o caso de Íris estar faminta, e continuei a

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procurando. Alcancei o pequeno abrigo que construí para ela na beira da
praia, porém não a encontrei. Deixei os peixes sobre uma rocha e conjurei
uma fogueira no local onde a anterior tinha se apagado. Íris certamente
preferiria assar os peixes antes de comê-los, como faziam os humanos.
Parei por um instante para admirar a vista. Fazia muito tempo que eu
não sentia emoção alguma ao encarar o mar, porém, naquele instante, fui
incapaz de ignorá-lo. Talvez porque eu permitira a presença do sol na ilha e
ele brilhava forte, oferecendo raios hipnotizantes que atingiam a água e
resplandeciam.
Soltei um pesado suspiro, admirado comigo mesmo. A vontade de
proteger o oceano me tomou de surpresa, de um jeito impensável, e o amor
que outrora se escondeu dentro de mim veio à tona em rebordosa. Eu amava
aquelas águas. Só havia me esquecido daquilo porque odiar era milhões de
vezes mais fácil. Amar era um exercício deveras cansativo, por hora
decepcionante e sempre cheio de exigências, das quais fugi durante eras.
— Neto? — ouvi aquela doce voz e o coração a reconheceu de
imediato.
Virei na direção da mata e me perdi na figura admirável de Íris, que,
infelizmente, estava vestida com suas antigas roupas de humana. Ela se
aproximou devagar, como se não tivesse certeza do que eu poderia fazer caso
ficasse perto. Eu queria que Íris soubesse que sua presença sempre me
impactava, de tal forma que minha primeira atitude diante de si nunca era
raciocinada como deveria.
— Onde esteve? — a curiosidade me fez questionar. Minha voz saiu
mais rígida do que era a pretensão, talvez porque eu usasse a grosseria para
esconder a fragilidade em que me enfiava toda vez que Íris me olhava.
Tomar conhecimento daquilo me deixou espantado. Pela primeira vez,
compreendi que, talvez, eu não fosse tão duro quanto deixava transparecer. A

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criatura que eu deixava à mostra para Íris, e para todos os outros, coincidia
com quem realmente eu era? Pensar naquilo me deixou em silêncio por
alguns segundos, e a mulher os utilizou para estacionar ao meu lado e
admirar o mar como eu fazia antes.
— Passeando, já que não posso mergulhar. O que está acontecendo,
Neto? — Íris me ofereceu seus olhos claros, dois focos de luz brilhantes, que
me deixavam sem fôlego. — Nestor me falou da presença de um monstro...
Estou assustada. Já não bastava a fera que habita a ilha, e que parece
adormecida...
A fera estava, de fato, cada segundo mergulhada em estado de
hibernação. Eu podia senti-la dentro de mim, menos feroz, mais dócil.
— Preciso que me prometa uma coisa, Íris: que não vai entrar no mar
sem a minha presença — eu a interrompi drasticamente. — É importante que,
dessa vez, não negligencie essa ordem.
— Por que precisa ser uma ordem? — fez uma careta insatisfeita.
Revirei os olhos e cocei as têmporas, um tanto impaciente. Por que ela tinha
que ser tão geniosa? — Não pode ser um pedido, Neto? Você, por acaso, é
incapaz de pedir alguma coisa?
— Só quero me assegurar de que não correrá riscos.
Íris me encarou por algum tempo, sem nada dizer. Por fim, voltou a
olhar o oceano diante de nós, com suas ondas tranquilas. Quem o via não
poderia prever que as águas guardavam tantos mistérios, e alguns nem tão
bons assim.
— Você precisa mudar a sua abordagem — Íris prosseguiu, porém de
uma forma calma, como se sua preocupação fosse unicamente me aconselhar.
— Não pode continuar se sentindo no direito de controlar a vida dos outros.
— Não tenho o direito, mas possuo deveres que precisam ser
cumpridos. — Ela me olhou, confusa. Dei de ombros. Eu já tinha falado mais

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do que o necessário. Em pouco tempo Íris saberia quem eu realmente era e eu
tinha certeza de que não lidaria bem com isso. — Infelizmente, fazer o que é
certo nem sempre me faz ser legal.
— Em que momento você é legal? — ela soltou, mas seu olhar
assustado me fez perceber que tinha se dado conta de que havia sido
grosseira. Tudo bem, eu merecia. Íris tinha razão, eu não tinha demonstrado
ser alguém que valesse a pena sequer a companhia. Ela estava ao meu lado
por pura falta de opção. — Desculpa.
— Não, não se desculpe. Não tenho sido agradável — suspirei.
Caminhei devagar na direção da água. Preferi me afastar a falar demais
ou a, de repente, tomá-la de novo. Era impossível resistir a ela. Queria me
enfiar entre suas pernas o tempo inteiro, queria cheirar seus cabelos e
acarinhá-la, envolvê-la em meus braços e me certificar de que nunca iria me
fazer sofrer.
Aquelas vontades me assombravam. Sendo assim, era melhor ir
embora, já que meu dever de constatar sua segurança tinha sido cumprido.
— Para onde vai? O mar é perigoso, Neto! — seu grito de pavor me fez
parar e virar, novamente, para encará-la. Eu poderia achar a sua preocupação
engraçada se não fosse o medo real que invadira aquele semblante delicado.
— Não vá, por favor. Esse monstro... Sei que você se acha o fodão, mas...
Tenho medo.
Dei alguns passos em sua direção.
— Medo de quê, Íris? Permaneça longe da água e esse monstro jamais
a alcançará.
— Não tenho medo por mim, mas por você — ela desviou o rosto e
falou sem me olhar, como se sentisse vergonha. — Não quero que passe por
apuros. Eu... gosto de você, Neto.
Meu coração errou uma batida. Uma sensação entorpecente atravessou

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o meu corpo, e precisei resfolegar porque, de repente, a presença dela se
tornou demais para mim. Eu não sabia lidar. Talvez Anfitrite tivesse razão o
tempo todo. Deveria me livrar de Íris antes que fosse tarde. Ela estava me
enfeitiçando, cada segundo me empurrando para o fundo de um abismo que
eu bem conhecia, porque estava tentando sair dele há eras. Era injusto que eu
caísse de novo logo no instante em que me encontrava perto da superfície.
Prendi os lábios, incapaz de responder à altura.
— Há algo que queira me dizer? — Íris me olhou com profundidade.
Ela estava esperando uma resposta? Pois não receberia. Eu não podia. Não
conseguia.
Balancei a cabeça em negativa.
— Tem certeza? Não há nada que queira dividir comigo?
— Do que está falando? — resmunguei, desconfiado. Talvez, fazer-me
de desentendido fosse a melhor opção. — Não há nada a ser dito. Eu me
preocupo com você e, pelo que vi, é um sentimento recíproco. No entanto,
não há necessidade de se preocupar, Íris. Sei cuidar de mim mesmo. Você
não corre o risco de ficar sozinha na ilha, sem alguém grosseiro para
conversar.
Eu sabia que a preocupação de Íris era apenas aquela. Minha
companhia era o que ela tinha de mais palpável, portanto era compreensível
que não quisesse me ver sendo devorado por um monstro.
Ela deu de ombros, ressabiada.
— Preciso te perguntar uma coisa... — Íris pendeu a cabeça para o lado
e mostrou a lágrima que me pertencia. Aquele colar causava um tremendo
rebuliço no âmago do meu ser. Fiz uma careta enquanto ela girava o objeto
entre seus dedos. — Já viu algo parecido com isso aqui na ilha?
— Não — resmunguei de imediato. A mentira saiu sem que eu
pensasse direito. — Por quê?

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— Hm... Por nada — Íris voltou a devolver o pingente para dentro de
suas vestes. — Tive a impressão de ver algo parecido aqui, mas devo estar
ficando louca.
— Mesmo?
— Sim... Essa ilha... Sei lá, esse lugar parece estar preso em um sonho.
Ou em um pesadelo, ainda não sei definir direito. Você já assistiu Lost? —
Fiz uma expressão confusa, e Íris gargalhou em seguida. — É claro que não,
que idiota eu sou. Enfim, às vezes acho que vou acordar, quentinha na minha
cama, a qualquer momento.
— Não é um sonho e nem um pesadelo, Íris. É a sua realidade agora.
— Olhei ao redor, profundamente reflexivo.
Eu podia fazer muito mais para que a sua estada fosse agradável e não
repleta de escassez e situações desconfortáveis. Íris estava muito incomodada
e logo pensaria em mil formas de deixar a ilha. Ela era inteligente e ativa
demais para permanecer parada, convalescente. Eu não podia permitir que
partisse. Não estava pronto para deixá-la, por mais que devesse.
Lembrei-me das palavras do Nestor. Eu a perderia se não entendesse
que precisava dela, ao menos um pouco, para me sentir melhor. Talvez
devesse deixar o orgulho de lado, bem como o medo de ser decepcionado de
novo. Uma coisa eu havia entendido: Íris não era Cássia. Sendo assim, não
poderia esperar que agisse igual.
Talvez eu devesse mostrar um pouco o verdadeiro Netuno que havia
por trás do medo, da tristeza, do ressentimento e da culpa. Eu não podia ser
apenas aquilo. As experiências ruins não eram as únicas que me definiam.
Sentia que havia muito mais para ser exposto.
E Íris, muito talvez, precisasse me conhecer profundamente para, quem
sabe, não desejar ir embora. Eu estava diante de uma confusa controvérsia.

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CAPÍTULO 29
Íris

Pensei que Neto fosse fugir de mim, como sempre fazia. Parecia que
para ele minha presença constante era intolerável. Estava chateada por
escolher não me contar nada do que eu presenciara escondido, mas não queria
que me deixasse só. O gigante me irritava, mas também era minha única
companhia. Suspirei, baixando a cabeça, me segurando para não implorar que
permanecesse, ou mesmo que retribuísse minha sinceridade sem filtro.
— Deixei uns peixes assando na fogueira. — Ergui os olhos e encarei
dois oceanos revoltos em seu olhar, fixo em mim com uma intensidade
desconcertante.
As mãos na cintura, o garfo de ouro esquecido na lateral do corpo e sua
nudez despretensiosa causaram frenesi no meu organismo. Senti o anseio de
ficar tão nua quanto Neto. Era libertador se sentir à vontade na própria pele.
Depois que experimentara a sensação natural de andar sem roupas pela ilha, o
neoprene começava a incomodar.
Prendi a respiração. Neto não precisava comer. Ele fizera aquilo para
mim.
Sorte dele que eu era tão atenta e observadora, senão, já teria desistido
de tentar entendê-lo. Ao mesmo tempo em que Neto fazia tudo para me
afastar, seus olhos e gestos diziam o contrário de suas palavras, muitas vezes
duras e ríspidas. Sua alma gritava a dor que carregava. Tanta solidão em um
ser eterno cobrara seu preço e o deixara sem saber como lidar comigo. Mas
ali estavam, como em outros muitos momentos, gestos desprendidos, que
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eram a exata antítese de sua rudeza.
Neto se importava, se preocupava e não era alheio às minhas
necessidades. Ainda que escolhesse demonstrar isso de maneira errada, como
quando o vi prender o próprio filho em uma gruta subterrânea — fato que
fazia meu coração disparar e meu estômago revirar —, havia bondade em seu
coração. Eu gostaria tanto que ele se abrisse mais e expusesse sua alma para
que eu pudesse ver, tocar e embalar com todo o meu... Eita! Eu pensei amor?
Não, não, queria dizer carinho. Com todo o meu apreço.
— Ah! — resfoleguei quando percebi que esperava uma resposta. —
Obrigada.
Eu estava tão perdida que demorei a notar a ruga em sua testa enquanto
aguardava que dissesse ou fizesse alguma coisa. Por Deus! No que eu estava
pensando? Não podia me apaixonar por Neto. Eu não pertencia àquele mundo
fantástico. Claro que era incrível fazer parte dele por um tempo, mas eu sabia
que meu lugar não era ao lado daquela criatura mítica, com poderes
sobrenaturais, que vivia isolado em uma ilha encantada. Eu tinha uma vida
pela qual lutara para retornar. Não podia abandoná-la assim, de uma hora
para a outra, por sentimentos que mal compreendia. Seria loucura demais!
Não seria?
Então por que meu coração doía toda vez que eu pensava em ir
embora?
Agitei a cabeça, afastando a confusão de pensamentos, e sorri para
Neto. Ele vasculhou meu semblante atenta e lentamente, antes de deixar seus
olhos caírem sobre meus lábios. Eu o vi lamber os seus e senti um arrepio na
nuca só de me lembrar do sabor que eles tinham. Eram salgados como o mar,
mas doces como um sonho, do qual você se esforça para não acordar.
— Sei que não precisa comer, mas, não me faria companhia, senhor?
— brinquei, expandindo meu sorriso e tentando não pensar que eu tinha

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prometido a mim mesma não implorar para que ele não me deixasse sozinha.
Neto demonstrou tanta surpresa quanto eu continha.
— Se é o que deseja, senhorita, o farei com todo o prazer.
A última palavra caiu como uma bomba no meu estômago e borboletas
voejaram, batendo contra as paredes, fugindo do epicentro da explosão. Neto
caminhou até me alcançar e parou tão perto que seu calor emanou para o meu
corpo como uma onda. Seu olhar caiu sobre mim como um tsunami.
Desconcertada, como eu não ficava há muito tempo — até me senti uma
virgem de novo! —, sorri amarelo e dei início à curta caminhada até o abrigo
que ele construiu para mim.
Abri um largo sorriso ao incluir mais um item às atitudes benevolentes
e altruístas de Neto.
— Do que está rindo? — Não percebi que Neto prestava atenção às
minhas oscilações de humor.
— Nada... — Ele pareceu frustrado com a minha omissão. — É que...
Bem, eu estou feliz e grata, apesar de tudo. Sei que não existe perfeição nas
coisas, muito menos nas pessoas, mas fico radiante quando vejo a natureza
lutando para evoluir e pessoas para serem melhores. — Dei de ombros. —
Isso me causa muita alegria.
— Mesmo se alguém seja mais grosseiro do que educado?
Fiquei boquiaberta ao sentir a brincadeira na voz de Neto e, quando o
encarei, ele sorria, leve e faceiro. Tão encantador quanto estava furioso. E
sexy, ah!, muito sexy.
— Ainda assim — ri, incapaz de conter a felicidade que me inundava.
— Quem é verdadeiramente bom, não consegue ser mau o tempo todo.
E pisquei para ele. Neto arregalou os olhos e soltou o ar com força.
Olhava-me como se estivesse hipnotizado.
— Eu queria... — balançou a cabeça, cortando a própria fala. —

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Gostaria de ser merecedor do apreço de alguém. Estou cansado de ser temido.
Não há vantagem alguma se minha fúria não consegue sequer afastar os
perigos daqueles por quem tenho afeição.
Parei de andar e tomei sua enorme mão nas minhas, afundando meus
olhos naqueles dois mares, sempre tão instáveis e profundos, nos quais
segredos e tesouros estavam perdidos por eras, mas esperava que não fosse
para sempre.
— Uma criatura muito sábia me disse uma vez que amor não se faz por
merecer, apenas se doa. E por mais que minha racionalidade humana discorde
veementemente, uma artimanha para me proteger de uma possível desilusão,
não existe sentença mais verdadeira. É aquela velha máxima: faça com os
outros o que gostaria que fizessem com você. Jesus, um grande homem,
considerado Deus pelo cristianismo, também deixou ensinamentos
semelhantes para a humanidade: amai ao próximo como a ti mesmo.
Neto pareceu tanto surpreso quanto ponderar sobre minhas palavras.
— Ah! E quer saber o que fizeram com Ele, por amar as diferenças,
aceitar os pecadores e visitar a casa de pessoas muito más? — Curioso, Neto
balançou a cabeça positivamente, apertando meus dedos de maneira gentil,
que me aqueceu por dentro. — Ele foi crucificado. Colocaram uma coroa de
espinhos em sua cabeça e uma placa sobre a cruz, que dizia, ironizando: Rei
dos Judeus. Quando Ele sentiu sede, lhe deram vinagre para beber.
— E Ele não fez nada? Não usou seu poder para massacrar aqueles
humanos cruéis?
— Não. Pelo contrário. Ele implorou ao Pai, o Deus de quem era Filho,
para que os perdoasse, porque não sabiam o que faziam.
— Misericórdia! — Neto perdeu a compostura, franzindo o cenho e
erguendo a mão com o tridente, como se estivesse pronto para se defender.
— Exatamente. Bondade, amor e misericórdia foi o que o Filho de

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Deus ensinou, quando andou na Terra como um de nós.
Vi muitas emoções passarem pelo rosto de Neto, como se houvesse
uma briga interna em sua alma. Eu me compadeci e parei de falar, pois não
era de meu feitio dar lições de moral o tempo todo para alguém. Só achei que
valia a pena compartilhar algo tão grandioso quanto aquele exemplo de
dignidade e compaixão, para que ele entendesse porque eu acreditava em seu
coração, essencialmente bondoso e gentil. Afinal, todos havíamos nascido
puros. A vida que se encarregou de nos endurecer.
Eu o puxei até a fogueira, já que os peixinhos cheiravam tão gostoso
que atiçaram meu estômago vazio de proteínas. Ele se sentou ao meu lado,
observando o oceano por um tempo, enquanto eu aproveitava o silêncio para
me deliciar com aquela refeição digna de um náufrago.
— Eu já fui uma criatura pura, como esse Filho-Deus que você
descreveu. Só não tive a sorte de ter um pai tão compassivo quanto Ele.
Ainda assim, sempre existiu amor em mim, só não havia ninguém para
oferecer. Bem, pelo menos era o que eu pensava, mas estava errado, percebo
agora. — Seu olhar não desviava do oceano enquanto falava. — E, muito
diferente de Jesus, escondi quem eu realmente sou por vergonha de minha
capacidade de ser benevolente com aqueles que não merecem.
Seus olhos caíram para os próprios pés, misturados à areia como se
fizessem parte da mesma essência. Aquela atitude me compadeceu
novamente e me vi satisfeita com minha refeição. Fui até o riacho,
rapidamente, sem dizer nada, para lavar as mãos e a boca, e tirar o cheiro de
peixe de mim. Em seguida voltei para o seu lado, sentando-me e tocando seu
queixo com a barba por fazer, macia demais ao toque, para que me olhasse.
— Desconfiei disso o tempo todo, mas quero que saiba que eu te vejo,
claramente, agora, porque você me deixou olhar para dentro de si. — Seu
olhar se fixou no meu como se uma linha invisível os ligasse,

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indefinidamente. — Não me afaste mais, Neto. Você não está sozinho. Pelo
menos tem a mim, Nestor e...
Parei de falar antes que dissesse o nome de Tritáo. O menino-peixe me
fizera prometer que ninguém deveria saber que eu conhecia sua existência e
localização. E, pelo pouco da interação que eu havia visto entre pai e filho,
entendia por quê.
Entretanto, Neto não pareceu perceber meu deslize, pois seus olhos
escorregaram para a minha boca e ele agiu antes mesmo que eu me
recuperasse. Nossos lábios se uniram em um beijo feroz, faminto e repleto de
paixão, que rapidamente aqueceu tanto meu corpo todo que a roupa de
neoprene se tornou insuportável sobre a minha pele. Lutei bravamente para
me livrar dela, sendo auxiliada pelas mãos afoitas e precisas daquela criatura
enorme, tal qual seu coração.
Porque não interrompemos o beijo, foi difícil me livrar da peça única
quando chegou às minhas pernas, travando meus movimentos. Finquei os
dedos em seus braços para não cair, porém, como ele tentava fazer com que a
roupa escorregasse por minha pele suada, não foi o suficiente. Perdi o
equilíbrio e cai de bunda na areia, rindo de mim mesma. Como eu era boba!
Não conseguia parar de rir, por qualquer motivo, aparentemente.
Com um puxão preciso, Neto libertou minhas pernas da prisão de
neoprene e, sem titubear um único segundo, cobriu minha nudez com a sua.
Voltamos a nos beijar como dois loucos. Eu, tão perdida em seu calor, em sua
língua e suas mãos contra meu corpo, que me esqueci de que estava rindo
antes daquele instante mágico. Como da primeira vez, rolamos pela areia,
disputando quem ficava mais tempo por cima, perdendo o fôlego no
processo.
Acabamos onde as ondas quebravam na praia, Neto por cima de mim,
mas eu não me importei por ter perdido a batalha. Sua boca estava no meu

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pescoço, saboreando a água do mar que ia e vinha contra nossos corpos
enroscados, acariciando nossas peles como tentáculos mornos. Senti o exato
instante em que nossas pernas se transformaram em caudas. Sorri,
resfolegando, quando ele ignorou a metamorfose e atacou meus seios,
puxando os mamilos com os dentes. Olhei para o céu azul, sentindo-me
levitar para o pré-êxtase, que brotava no meu baixo ventre, como um indício
do que viria.
Ser amada por Neto era como ser idolatrada por um deus.

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CAPÍTULO 30
Netuno

Nossas caudas se enroscaram enquanto nossos corpos se mantiveram


próximos a ponto de eu ter a sensação de que se fundiriam a qualquer
momento, tornando-se uma só matéria. Jamais havia sentido tamanha
intensidade vibrando em meu peito; nem mesmo a raiva ou o ódio eram mais
fortes do que aquilo que me impulsionava a tomar Íris em meus braços, beijar
seu corpo como um ensandecido e considerar os gemidos que soltava similar
a um cântico hipnótico feito pelas sereias.
Eu não sabia o que fazer com tanto desejo na maior parte do tempo, e
por isso ela me deixava tão perturbado quase sempre, porém, naquele instante
selvagem, em que éramos apenas instintos e luxúria, tinha a compreensão de
cada gesto como se me fosse inerente provocar seus sentidos e ter os meus
saciados. Era natural lamber, sugar e beijar seus seios fartos, subir até o seu
pescoço e mordê-lo de leve, provocando-lhe arrepios capazes de me deixar
ainda mais disposto a atiçá-la.
Eu sentia intensamente que Íris me pertencia, tais quais meus poderes e
minha imortalidade, fazia parte de mim como um presente entregue pelos
deuses mais gentis. Fui grato enquanto tomava seus lábios deliciosos mais
uma vez, saboreando a sua língua rápida, disposta a me invadir com vontade
recíproca. A calma que latejava em meu espírito divino não permitiu que eu
conjurasse uma tempestade — como aconteceu em nossa primeira vez —,
nem mesmo que fizesse soprar uma simples brisa. O vento a nossa volta
continuou soprando com tranquilidade, e as ondas que nos atingiam eram
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suaves como penas, acariciando nossos corpos com delicadeza inimaginável.
— Neto... — Íris arquejou entre meus lábios e eu senti uma absurda
vontade de confessar que aquele não era o meu verdadeiro nome, apenas uma
pequena parte dele.
Pareceu-me errado que ela não soubesse quem eu era. Sabia que Íris se
assustaria, e que provavelmente teríamos uma nova discussão, principalmente
quando tivesse conhecimento de que foi a minha cativa naquela ilha durante
todo o tempo. Quando soubesse que minhas primeiras pretensões era fazê-la
sofrer para depois lhe dar uma morte muito dolorosa, aquela humana jamais
compreenderia. Eu a perderia tão depressa que possivelmente nunca mais
obteria seu perdão.
A dor que me acometeu com aquela simples ideia me fez parar. Saí de
cima do seu corpo escultural, girando o meu para longe das águas, que
passaram a me incomodar. A tranquilidade se foi, deu lugar ao medo. Eram
raros os momentos em que o pavor me dominava a ponto de trazer vontade
de destruir tudo e todos a minha volta; geralmente quem me trazia tal desejo
era sempre a raiva, o ressentimento. Como um deus, eu não temia quase nada.
Naquele instante, contudo, perder a Íris me pareceu tremendamente pior do
que enfrentar a criatura que habitava o meu antigo castelo.
— O que houve? — Íris se sentou sobre a areia e me encarou com
pesar. Prendeu os lábios como se soubesse o quanto eu era instável, já
prevendo que meu afastamento lhe traria algum tipo de controvérsia. —
Neto?
Observei minha cauda voltando a se transformar em pernas, já que
perdi o contato com o mar. Aquela mágica sempre me deixava admirado, não
importava quantas vezes acontecesse bem diante do meu nariz. Alguns
segundos se passaram até que eu percebi que seria incapaz de dar qualquer
justificativa a Íris. Simplesmente nenhuma palavra se formava em minha

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mente.
— Há alguma coisa importante que queira me dizer? — ela se
aproximou aos rastejos, afastando-se das águas também. Acompanhamos,
juntos e em silêncio, sua cauda desaparecer.
— Não quero dizer nada que a faça me odiar — confessei em um
sussurro. O aperto que surgiu em meu peito foi tão intenso que achei que
fosse chorar, mas me controlei ao máximo. — Prefiro me manter em silêncio.
Íris assentiu como se soubesse tudo o que se passava em meus
conturbados pensamentos. Ainda que eu tivesse certeza de que ela de nada
sabia a meu respeito, não consegui me afastar da sensação de que me
conhecia como ninguém mais seria capaz de conhecer.
— Não fale nada, então — Íris balbuciou, erguendo uma mão para
tocar a lateral de meu rosto. Eu a encarei de perto. Suspirei diante de tamanha
beleza, coragem e bondade. Aquela mulher estava se aprofundando cada
segundo mais dentro de mim, e eu não sabia o que fazer para impedi-la. —
Sei que me quer, Neto. Também sei que isso o deixa confuso, por já ter
sofrido muito com experiências ruins. Mas, se quer um conselho, deixe
acontecer. Ninguém pode viver achando que as situações se repetirão.
— Não se trata disso, Íris — balancei a cabeça em negativa, ainda mais
confuso e perdido. — Bom, é isso também. — Fechei os olhos com força e
soltei um longo suspiro. Senti suas mãos me acariciando.
— Estou apaixonada por você, Neto — ela murmurou e eu reabri os
olhos, assustado. Meu coração sofreu um impacto tão forte que mal consegui
identificar se parou de bater ou se bateu rápido demais. — Não vou te fazer
sofrer nunca. Só quero aproveitar o que temos agora.
— E... — resfoleguei, com bastante dificuldade de dizer qualquer coisa.
— E o... que temos... agora?
— Paixão — Íris definiu sem titubear. — Muita paixão. Eu quero vivê-

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la com toda intensidade que for possível. Não tenho medo, não quando te
olho e sei, aqui dentro — Íris tocou o peito, no lugar onde seu coração devia
estar —, o quanto você é bom.
Suspirei.
— Eu não tenho tanta certeza assim. Como você pode ter se conheceu o
meu lado mais obscuro?
Íris abriu um sorriso que considerei hipnótico. Não precisava de mágica
nenhuma para saber que ela era uma sereia; bela, sensual, guerreira,
encantadora em todos os sentidos imagináveis.
— Todo mundo tem sombras dentro de si. Mas, sempre onde há
sombra, há luz também — Íris, como sempre, sabia exatamente quais
palavras usar para causar o mais profundo impacto. — Quanto maior a
sombra, maior a luz também é. Você tem tanta luz que encandeia, Neto. Eu a
sinto com intensidade.
— Isso... é loucura — continuei balançando a cabeça. Não estava
conseguindo lidar com a confissão de Íris. Então, ela estava mesmo
apaixonada por mim? Mas o que significava? Eu já não sabia mais o que
esperar de paixão, amor, carinho, amizade. Não conhecia nenhum desses
sentimentos em sua totalidade, apenas achei que os conhecia antigamente.
Até mesmo a Cássia eu tinha dúvidas se chegara a amar. Parecia-me
apenas uma obsessão sem sentido, um objeto de atenção que me encantou,
mas que não passou de capricho. E eu, como um ser absurdamente
despreparado e inocente, rebelei-me da pior forma. Nada daquilo deveria ter
acontecido. Boa parte de minha existência foi baseada neste grande erro, e
consertá-lo parecia o mesmo que querer voltar no tempo. Apesar de possuir
tantos poderes, aquele eu não tinha.
Só me restavam o remorso e o medo de prosseguir.
— Toda paixão é meio louca, Neto.

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Dei de ombros.
— Íris... Não consigo calcular o tamanho do medo que estou sentindo
neste momento — desabafei, mostrando vulnerabilidade. No entanto, o que
me deixaria irritado apenas me trouxe alívio. Demonstrar que eu tinha
fragilidades àquela mulher deixou de ser incômodo para ser algo tão natural
quanto as ondas à nossa frente. Eu sequer sabia em que momento tudo
mudou, só tinha certeza de que nada estava igual. — Não sei lidar com você
— soltei um riso nervoso. — Para ser bastante sincero, raras vezes soube
lidar comigo mesmo.
Ela segurou a minha mão com força. Por um momento, tudo me
pareceu muito mais fácil, simples. Eu a encarei fixamente e recebi seu olhar
encantador de volta. Tudo nela me deixava em um estado de difícil
compreensão; era desejo, aflição, pavor, alegria, uma vontade de gritar e de
sumir, de beijá-la e de implorar para que ficasse eternamente... Não sabia o
que sentir toda vez que nossos olhos se cruzavam.
— Só me beija — murmurou com serenidade. — Faça amor comigo.
Deixe-me ser sua e seja meu, nem que seja por um instante. O resto a gente
decide depois.
Segurei seu rosto com as duas mãos, puxando-a para mais perto. Íris
me fazia sentir profundo desejo de nunca mais pensar no que poderia vir
depois. Permiti que seu corpo ficasse sobre o meu; as pernas abertas ao meu
redor, convidando-me a invadi-la do jeito humano que conheci recentemente,
e me tornei um viciado depressa demais. Era delicioso tê-la de todas as
formas.
Invadi a sua boca com a minha, embaralhando nossas línguas com
agilidade. Íris abraçou o meu pescoço e eu segurei sua cintura, trazendo-a
para finalmente penetrá-la. Meu membro humano estava firme, pulsando com
o único objetivo de possui-la, de fazê-la minha, como ela própria havia

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sugerido. Eu a acataria de bom grado, e também de boa vontade consideraria
minha existência como pertencente a ela.
Era perigoso. Sem sentido. Mas eu a pertenci no instante em que me
coloquei dentro dela.
Íris passou a cavalgar o meu corpo ora com suavidade, ora com
bastante selvageria. Comandou aquele instante de paixão com muita
propriedade, tomando-me, beijando-me, entregando-se a mim com
reciprocidade. Seus gemidos prosseguiram, atormentando-me, guiando meu
êxtase para as profundezas de um precipício delicioso de estar. Afundei em
sua pele num mergulho às cegas, como se aquela mulher fosse o meu oceano,
os sete mares reunidos em um só espírito. De fato, sentia nossas almas se
encontrando em uma confusa encruzilhada, para que, juntos, pudéssemos
seguir a mesma direção.
— Íris... — balbuciei enquanto lhe oferecia mordidas no ombro. Ela
ainda se balançava sobre mim, e eu apenas sentia todas as emoções.
Observava o mar à minha frente toda vez que ousava abrir os olhos. Era o
cenário mais perfeito de todos, e me sentia tão feliz que a alegria mal cabia
em meu peito. — Minha sereia... — ofeguei, ensandecido.
Empurrei seu corpo para trás até deitá-la na areia. Continuei a
invadindo com força, puxando as pernas torneadas para cima a fim de
penetrá-la mais profundamente. Uma onda mais forte acabou nos atingindo, e
a mágica se fez presente entre nós. Transformamo-nos em seres míticos em
questão de segundos, porém nem mesmo aquele assalto nos fez parar de nos
amar. Havia muitas formas de vivenciarmos a paixão mencionada pela Íris.
Virei-a de costas, com a barriga na areia, e encaixei meu membro de
deus do oceano em sua abertura de sereia. Permanecemos daquela forma,
gemendo, tremendo, aprofundando o clímax delicioso que aquela nossa nova
forma nos permitia sentir. Era tão profundo, tão intenso, que senti minha

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alma flutuando sobre nossas cabeças. Outra onda conseguiu nos atingir,
permitindo que continuássemos com caudas.
Puxei Íris para trás e me deitei de costas sobre a areia. Encarei o céu
extremamente azul e, mais uma vez, fui grato a todos os deuses.
— Neto... — Íris passou a se contorcer naquele instante que ganhara
mais liberdade. — Neto...
Aquele meio-nome em sua boca ainda me incomodava, mas tudo estava
tão gostoso que ignorei. Não ousaria parar.
Depois de alguns minutos, as ondas recuaram mais e nos
transformamos novamente. Íris aproveitou a posição e abriu as pernas ao
máximo, encaixando-nos novamente. Passou a saltar sobre mim de um jeito
delicioso.
— Íris! — rosnei e prendi sua cintura com as duas mãos.
Era diferente fazer sexo do jeito humano, mas não conseguia escolher
qual dos dois era mais intenso. Talvez não fossem nossas formas que
definiam o prazer sentido, e sim o fato de estarmos completamente
interligados, conectados. E aquela conexão surgia de qualquer modo, como se
nos fosse inerente.
Girei a cabeça para o lado, creio que na intenção de conferir se as ondas
chegariam até nós mais uma vez. Estava ansioso e interessado naquela forma
híbrida de nos amarmos, porém o que vi me fez parar por uns segundos,
enquanto Íris ainda se chacoalhava sobre mim.
Anfitrite estava na superfície, olhando-nos com seriedade. A expressão
fechada me trouxe certa angústia, mas eu nada podia fazer a respeito. Assim
que percebeu que eu a tinha localizado, mergulhou de volta para o oceano,
deixando, antes, sua longa cauda à mostra. Íris gemeu mais alto, contorcendo-
se, indicando um poderoso orgasmo.
Voltei a me concentrar apenas nela. Íris era a única que me interessava.

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Deixaria as questões com Anfitrite para depois.

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CAPÍTULO 31
Íris

Não sabia quando e como havia acontecido, mas não podia mais negar
o que sentia. Eu me apaixonei pelo Neto, talvez antes mesmo de perceber.
Tanto que foi muito fácil deixar a verdade escapar por minha boca, junto com
a promessa de que jamais o magoaria. Também sabia que era a excitação do
momento e da paixão que vivenciávamos o grande motivador da minha
confissão, mas eu não era leviana. Jamais mentiria para conseguir o que mais
desejava, por mais nobre que fosse o objetivo.
Também tinha consciência de que não ficaria ali para sempre, mas se
Neto sentisse o mesmo que eu, daríamos um jeito. Como dois loucos
apaixonados, encontraríamos uma maneira de continuar vivenciando aquele
sentimento intenso, que com certeza seria capaz de encurtar distâncias e
ignorar as nossas diferenças. Não sabia como seria quando ele me visse
limitada pela cadeira de rodas, porém, eu não hesitaria em saltar para o mar
se ele estivesse disposto a me segurar em seus braços.
Que loucura! Eu mal podia conter a euforia, enquanto era tomada por
um explosivo orgasmo, que fez meu coração bater mais forte, mais rápido e
mais apaixonado do que nunca. Mesmo que Neto não correspondesse aos
meus sentimentos, e um dia nos separássemos, eu ficaria feliz com as
lembranças dos momentos incríveis e mágicos que vivemos na ilha. Eu era
apenas uma humana que tivera a chance de amar uma criatura mítica, imortal
e poderosa. Como eu poderia me arrepender disso?
Eu queria curtir Neto por mais um tempo, sem pressa de voltar para a
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minha vida, a fim de resolver todas as pendências que eu deixei para trás. O
depois parecia muito distante naquele momento e permiti que continuasse
assim.
Perdi as forças e caí para trás, sobre o corpo duro de Neto, que me
envolveu no mesmo instante. Respirava pesadamente, ainda de olhos
fechados, e com a boca seca pelo grande esforço físico. Outra onda
arrebentou em nossos corpos ainda grudados e transformou nossas pernas em
cauda novamente, fazendo-me gargalhar. As escamas escorregadias fizeram
com que eu deslizasse para a areia. No entanto, Neto manteve os braços ao
redor dos meus ombros, mantendo-nos juntinhos.
— Eu nunca vou me cansar disso — admiti em voz alta, abraçando-o
também e fazendo as pontas de nossas caudas se enroscarem a tempo de se
transformarem em pernas. Aquele jeito híbrido de fazer amor fora novo e
incrível como todas as vezes em que alcançamos tal intimidade. Eu estava,
literalmente, no paraíso.
— Nem eu — Neto concordou, deixando seus lábios encontrarem
minha testa, onde selaram um beijo terno.
Suspirei. Nunca me senti tão feliz e apaixonada. Claro que eu sabia a
diferença entre amor e paixão, já me apaixonara outras vezes e amava
pessoas demais para ter dúvidas. No entanto, eu nunca me senti daquele jeito,
como me sentia com Neto. Era, no mínimo, intrigante. Mesmo que fosse
errado, parecia certo. Ainda que ele tentasse se esconder, eu o enxergava. E,
com todas as diferenças físicas e experiências de vidas, encontramos uma
compatibilidade indiscutível.
Eu sentia, mais do que podia acreditar, que nosso encontro estava
marcado há muito tempo.
Aquela constatação me pegou de assalto e resfoleguei, assustada. Que
intenso!

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— O que foi, Íris? — Neto se preocupou, buscando o meu olhar.
— Nada. Não se preocupe, Neto. Estou bem. — Estava mais do que
bem. Estava ótima, mas guardei a sensação para mim, fechando os olhos e
sentindo o cheiro de mar que emanava de seu corpo.
Foi a vez de ele suspirar e a minha de me preocupar.
— O que foi, Neto? — abri os olhos no átimo.
— Grrr... — Sério que ele grunhiu?
Ergui a cabeça de seu ombro e o encarei. Seus olhos estavam aflitos,
como quando me confessou que estava apavorado. Toquei seu rosto, tentando
acalmá-lo.
— O que quer que esteja te perturbando, pode me contar.
— É... o... — seu olhar se esquivou, mas retornou em seguida, mais
determinado. — Meu nome.
— Que tem?
Aquele suspiro de derrota novamente. Será que ele estaria travando
uma batalha dentro de si? Por quê?
— Eu não me chamo Neto, Íris — falou de uma vez e esperou.
— Ok... — retruquei, cautelosa. — Sei que não. Esse nome significa
que você se chama como seu avô...
— Não, meu nome é único, apesar de ter mais de um.
— Certo — respondi porque ele parou de falar de novo. Não estava
entendendo nada.
Seus olhos se desviaram para meu colar e seus dedos começaram a
brincar com a pedra em formato de gota. Esperei, sem forçar uma confissão,
que parecia muito difícil para ele.
— Você é tão inteligente e perspicaz, Íris. Não sei como ainda não
adivinhou.
— Adivinhar o quê?

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Meu Deus! Eu podia começar a surtar? Segurei o máximo que pude
uma reação exagerada. Não queria assustá-lo e fazê-lo parar, mesmo que
estivesse cada vez mais alarmada.
— Você ouviu as histórias de diversos pontos de vista... — Seus olhos
perscrutaram os meus à procura de ler minha alma, mas eu continuava sem
compreender aonde ele queria chegar com aquela conversa bizarra. — Falei
um pouco sobre mim, você me disse que Nestor também lhe contou uma
versão... — Voltou a encarar a lágrima que segurava na mão enorme. Não
parei de encarar seus olhos e notei o instante em que eles se encheram de
água. Por quê? — E tem a canção que sua mãe cantava para você...
Travei. Meu cérebro bugou de vez e estava pronta para lhe implorar
que falasse logo quando algo estranho aconteceu. Muito mais estranho do que
qualquer coisa que presenciei desde que chegara àquela ilha. Uma lágrima se
formou no cantinho do olho verde-mar de Neto — ou sei lá que nome ele
tivesse —, mas não era transparente. Era azul e brilhava tão intensamente que
semicerrei as pálpebras a fim de proteger meus olhos.
A criatura poderosa, e completamente vulnerável diante de mim, largou
meu colar a fim de enxugar a lágrima. No entanto, em vez de agir como eu
deduzi, ele aparou a gota na palma. Acompanhei o trajeto da lágrima a partir
do momento que parou de brilhar, caindo pesadamente na mão aberta. O mais
estranho não foi o brilho, mas o fato de a lágrima azul ter se solidificado. Deu
para perceber no instante em que não se esparramou como deveria.
Demorei apenas um instante para entender que aquela gota era igual à
minha.
Levei uma mão ao colar e, com a outra, cutuquei a lágrima que Neto...
Er... mantinha entre nós. Constatei o que já sabia. Estava mesmo endurecida,
como uma pedra preciosa.
— Você... — não sabia o que pensar, muito menos o que dizer, pela

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primeira vez desde que conheci aquele ser mítico, extraordinário.
Fragmentos vieram à minha mente, numa profusão de memórias, que
outrora me pareceram desconexas. Entretanto, naquele momento elas se
encaixaram uma na outra, como peças de um mesmo quebra-cabeça.
O dia em que conheci Neto...
“— Desculpe te encher de perguntas sem nem mesmo me apresentar.
Meu nome é Íris e o seu?
— Netu... É... — ele pareceu confuso por um instante.
— Neto?”
O relato que Nestor fez sobre o coração partido de um deus...
“... Netuno, o deus do oceano, supremo senhor do mar e das criaturas
que nele habita, como eu e você.”
“Certo dia, ele avistou uma humana e foi amor à primeira vista. No
entanto, ela o desprezou, e desde então, ele tem sido um tirano para com
todos, isolando-se em uma ilha, abdicando da própria forma e do dever de
governar sobre os sete mares.”
A canção que minha mãe cantava para eu dormir...
“Sua cauda dourada brilhou
E um grande amor se anunciou
Mas meu coração humano
Não reconheceu o deus do oceano
Só uma lágrima restou...”
O conto de fadas que minha avó me contava...
“Era uma vez uma jovem camponesa, diferente das moças da pequena
vila onde morava. (...) O que a camponesa jamais poderia esperar é que a
criatura, metade homem e metade peixe, se declarasse apaixonada por ela.”
E vários trechos de conversas com Neto...
“Até que, como castigo dos deuses, amei alguém que não foi capaz de

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me amar.”
“— Você tem um castelo?
— Antes de me isolar naquela ilha, eu vivia no fundo do oceano, entre
as criaturas marinhas com quem fui destinado a conviver.”
“Eu já fui uma criatura pura, como esse Filho-Deus que você
descreveu.”
Dei um pulo para trás, chocada com a descoberta e o quanto aquela
verdade estava nítida há muito tempo. Foram me dadas diversas dicas, de
todos os lados, mas eu me negara a aceitá-la.
— Ai, meu Deus! Você é um deus! Tipo, um deus de verdade! O deus
do oceano!
Netuno me encarou, amedrontado. Talvez meu rosto demonstrasse a
loucura que eu sentia me corroer por dentro. Minha mente trabalhava
freneticamente.
— Sim, sou Netuno, mas também fui chamado de Poseidon no mundo
antigo.
— Deuses mitológicos existem? — Eu me levantei e comecei a andar
de um lado para o outro, impactada.
Aquele suspiro cansado escapou da boca de Netuno outra vez.
— Foi por causa dessa reação que eu não te contei antes. Mas estou
cansado de me esconder. Quero que você me conheça, Íris.
Mal consegui assimilar o que ele disse, conforme continuava a
caminhada sem propósito, de um lado para o outro, diante de um grande
deus, sentado na areia, nu em pelo, com quem eu tinha acabado de transar e
acabara de me descobrir apaixonada. Que maluquice!
— Porra! Você chorou uma pedra brilhante igual à minha! — gritei
sem querer, não fui capaz de me controlar.
— Toda vez que eu choro, perco um pouco do meu poder, que fica

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armazenado na pedra — ele falou como se fosse a coisa mais natural do
mundo.
Apertei a joia na palma, completamente surtada, quando pensar em
paixão trouxe o conto à minha mente outra vez.
— Se a lágrima existe, o conto é verdadeiro, e a camponesa e o deus
também são reais! Puta merda! — Como tudo o que eu presenciara naquela
ilha, inclusive a minha cauda e um golfinho que falava.
Netuno se remexeu, inquieto, mas nada disse.
— Você é o deus do oceano, governante dos sete mares, tem até um
castelo de ouro no fundo do mar!
Precisei ver para crer, como Tomé, que só acreditou que Jesus havia
ressuscitado depois que tocou as chagas em suas mãos. Eu não sabia se
desacreditava em tudo o que estava vivendo ou em mim mesma por não ter
percebido antes. Será que eu acordaria em uma cama de hospital, em coma
induzido, depois do acidente no mar, e constataria que tudo não passara de
um sonho? Um sonho muito louco, mas ainda assim meramente um sonho.
— Não é possível que você seja o deus que se apaixonou pela
camponesa da história... Como é mesmo o nome dela? — Por que eu não
conseguia me lembrar?
— Cássia. — Ainda havia tristeza em sua voz. Netuno apertou a nova
lágrima na palma fechada e encarou o punho cerrado por um tempo, enquanto
eu processava tudo.
— Isso mesmo, Cássia — salientei, energicamente, agitando os braços
ao meu redor. — Ela viveu há o que? Uns mil anos? Se é que realmente
existiu e foi seu primeiro amor. Caramba! Se for mesmo verdade, ela é minha
ancestral! — Arregalei os olhos, descrente demais. Era tudo muito bizarro.
— Parei de contar desde que me isolei na ilha, mas faz mais de mil
anos... — Netuno cruzou as pernas em posição de lótus. — Você se parece

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com ela.
— Pareço? — distorci o rosto, sem saber o que pensar a respeito.
— Sim, fisicamente, mas você tem um bom coração.
Foi ali que me liguei que a história de amor desiludido de Netuno não
passava de um grande mal-entendido e percebi o grande problema no qual me
enfiei. Aquele deus provavelmente só se sentia atraído por mim por causa da
minha fisionomia semelhante à de seu grande amor. Aquilo me machucou
mais do que podia imaginar. No entanto, vê-lo sofrer por um equívoco foi
bem pior. Respirei profundamente e me acalmei, como mágica. Ele precisava
de mim para corrigir os rumos de sua vida e eu estava muito disposta a
ajudar, mesmo que significasse perdê-lo.
Bem, eu não sabia se Netuno poderia ressuscitar os mortos, mas se
pudesse, voltaria correndo para a Cássia depois do que eu lhe diria.
— Neto... — eu me aproximei. — Quer dizer, Netuno — e me sentei
diante dele, tocando-o e fazendo-o me encarar novamente. Seus olhos eram
poços frios de insegurança e receio. Tive vontade de tomá-lo em meus braços
e acalentá-lo até que ficasse tudo bem e seu olhar voltasse a ser um mar
bravio e vivaz. — Você está enganado sobre Cássia. Não prestou atenção na
letra da canção? — Pensei em cantá-la novamente, mas só a menção já o
havia feito chorar, não queria que ficasse mais fraco por causa de uma
mentira. — Ela foi ao seu encontro, mas uma criatura aparentemente
poderosa ameaçou amaldiçoar tanto ela quanto sua descendência, se não
fosse embora antes de você chegar.
Netuno franziu o cenho, silencioso por pouco tempo.
— Que criatura?
— E eu sei lá! Não vivi naquela época. Você deve conhecer tudo o que
existe escondido no oceano mais do que eu.
Sua feição se misturou entre dúvida e medo.

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— Se concentre no que sabemos agora, Netuno — suavizei a voz e
acariciei sua mão cerrada, nervosamente. — Cássia o aceitou e estava
disposta a conhecê-lo melhor para, quem sabe, encontrar o verdadeiro amor
ao seu lado. Você nunca esteve sozinho.
A última sentença fez seu rosto se iluminar como um relâmpago em dia
de tempestade. Uma alegria sem medida, misturada a uma profunda tristeza,
fez morada em mim, duelando para ver quem ganhava meu coração.
Eu havia cumprido a minha missão ali. Devolvera a esperança para o
coração despedaçado do deus do oceano.
Mesmo que uma parte de minha própria alma ficasse destruída.

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CAPÍTULO 32
Netuno

Eu tinha minha última lágrima sobre a palma da mão enquanto Íris me


observava com curiosidade redobrada e o resquício de algum sentimento que
a fazia se contrair um pouco, afastando-se de mim ainda que quase de
maneira imperceptível. Compreendia sua surpresa e distanciamento, afinal,
tinha lhe soltado informações em demasia para serem processadas pelo seu
cérebro humano.
No entanto, ainda que estivesse confuso e muito temeroso, pois podia
perdê-la de vez em questão de segundos, encontrava-me em um estado
maravilhoso que alguns costumavam chamar de alívio. Depois do que Íris me
contou sobre Cássia, e após perceber que não havia nada em mim que me
conectasse à camponesa por quem supostamente me apaixonei, só pude sentir
verdadeiro alívio por acreditar que jamais voltaria a ser quem fui durante
tantas eras de rebordosa. O sofrimento, ou melhor, aquele sofrimento em
específico, não mais me atingiria.
Eu estava completamente livre do passado.
Pode parecer uma ideia tola, uma sensação irrelevante, mas para mim
fez toda a diferença. Havia sofrido tanto em vão, e pelo mesmo motivo, que
não aguentava mais remoê-lo. Livrar-me de todas as coisas ruins, todos os
momentos em que a dor me cegava a ponto de descontar minha ira no oceano
que eu tanto amava, não podia ser outra coisa senão a melhor notícia daquele
milênio.
E eu devia tudo aquilo à mulher que estava bem na minha frente. Seus
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olhos claros se tornaram ainda mais hipnóticos. Absolutamente cada detalhe
de Íris não permitia que eu permanecesse acomodado dentro de mim mesmo;
ela me tirava e me colocava no sério com facilidade, como se eu fosse apenas
um objeto que pudesse manejar sem estribeiras. Tão linda, gentil e
inteligente... Guerreira, encantadora, ardilosa. Eu estava mais do que pronto
para torná-la a minha deusa.
Claro que o medo ainda existia. Até demais, para ser sincero. Havia
tanto medo que minha única alternativa era tentar vencê-lo. Íris me entregava
essa coragem, e também a força de vontade necessária para comandar o vasto
oceano que seguia tranquilo, bem atrás dela, formando um cenário perfeito.
No fundo, eu sabia que, ainda que ela não fosse feita para mim, jamais me
machucaria de propósito. Só me restava descobrir se tinha desistido de se
manter apaixonada por mim após saber quem eu era. Caso fosse de sua
vontade não mais se envolver comigo, eu a entenderia. Afinal, mentiras
sempre afastam, são prejudiciais. Foi por causa de uma que me revoltei
contra todos. Eu não saberia dizer como reagiria caso a situação se invertesse.
Talvez eu fosse muito mais imaturo, com meus longos anos de existência, do
que Íris, que não passava de um feto diante da eternidade que me foi imposta.
— E então? — ela perguntou em um sussurro, parecendo assustada.
Não soube dizer se, de repente, passei a lhe causar temor. Nem mesmo nos
meus momentos mais revoltosos ela se mostrou tão apavorada.
Dei de ombros.
— Creio que sou eu que devo perguntar... E então?
— E então o quê?
Franzi o cenho, um tanto confuso. Íris me deixava assim mais vezes do
que eu gostaria.
— Não sei do que está falando, Íris. Eu... — soltei um longo suspiro,
apertando a lágrima em minha mão. Aquela tinha sido derramada com o

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único objetivo de desabafar os variados sentimentos que me acometiam.
Sequer me importei em oferecer uma mínima fagulha de meu poder. — Sei
que está assustada, que talvez não queira mais... se envolver. Perdoe-me por
ter omitido a informação mais importante ao meu respeito.
— Eu? — Íris esbugalhou os olhos. — Achei que você não quisesse
mais se envolver, agora que sabe que a camponesa não te abandonou ao léu.
Minha expressão ficou ainda mais confusa.
— Não compreendo o que uma coisa tem a ver com a outra. Minha
história com a Cássia está no passado, Íris. Agora, finalmente, posso enterrá-
la e recomeçar de outra forma, uma maneira que não seja tóxica para os seres
que me cercam e pelos quais sou responsável.
Íris balançou a cabeça em concordância. Percebi certa tristeza em seu
olhar. O medo havia dado lugar a algo que eu não compreendia. Por este
motivo, segurei-lhe a face com delicadeza, acariciando-a com as pontas dos
dedos. O fato de ela não ter rejeitado o toque encheu o meu peito de
esperança. Talvez houvesse alguma para nós dois, afinal. Ao menos ela não
me considerava repugnante, alguém tão diferente dela que lhe causava
estranhamento. Já era a segunda boa notícia do dia.
— Onde estão seus pensamentos? — questionei em um timbre baixo,
ameno. Não era meu objetivo assustá-la, embora eu estivesse com vontade de
gritar e conjurar mil tsunamis de tão perturbado que me encontrava.
Íris sorriu.
— Achei que fosse um deus, que soubesse tudo o que se passa pela
mente dos outros.
Sorri de volta.
— Felizmente, não tenho esse poder — continuei a acariciando.
Íris parou de sorrir repentinamente, e então eu soube que a conversa
seria difícil.

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— Sou parecida com ela, então... Olha, Neto... Netuno. Eu não sou a
Cássia — Íris se levantou em um rompante, olhando-me de cima. — Você
não pode projetar os sentimentos que nutre por ela em mim. Não posso
corresponder às suas expectativas desse jeito.
Eu me levantei logo em seguida.
— Sei perfeitamente que você não é a Cássia, e eu realmente não
queria que fosse. Descobri tardiamente que o que senti pela camponesa foi
qualquer coisa, menos amor, Íris — sorri, porém sem sentir a menor graça. —
Eu me sinto um completo idiota por ter perdido tanto tempo... — fechei os
olhos com força. — Mas estou aliviado por finalmente me reconhecer dentro
de meu próprio corpo, depois de tantas incongruências — abri os olhos
novamente e encontrei uma Íris confusa.
— Nem sei direito o que pensar, Net... uno — ela arquejou com força.
— Você é um deus. O deus de todo o oceano.
— Sou o conjunto de imperfeições que você bem conhece — ofereci
uma mão para que Íris segurasse.
Ela a olhou por alguns instantes, como se não soubesse direito o que
fazer, mas, por fim, entrelaçou os dedos delicados nos meus. Estávamos nus,
molhados, melados de areia e confusos, ainda assim me senti conectado
àquele ser como se fizesse parte do novo eu que ressurgia depois de eras
obscuras. Metaforicamente, Íris era tudo o que eu via após meus olhos se
abrirem. Era a definição do meu reencontro comigo mesmo. A encantadora
mulher que me conectava às coisas boas que gritavam dentro de mim, e que
finalmente tive vontade de libertar. Por ela.
Porque, no fundo, eu sabia que havia encontrado o verdadeiro amor. E,
daquela vez, não era uma emoção obsessiva. Queria o seu bem acima de
qualquer coisa, até mesmo de ficarmos juntos ou não. Perdê-la me acarretaria
uma profunda tristeza, tinha certeza de que um pedaço de mim seria

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arrancado, porém nunca me traria revolta. Eu não desacreditaria do mundo,
das pessoas, caso não desse certo abrir o meu coração novamente. Muito pelo
contrário, era profundamente grato por ter vivido o pouco que vivemos, o
sopro leve dado pelo Universo para que o equilíbrio se restabelecesse.
Fazia muito tempo que eu não sabia o que era serenidade. Naquele
momento, segurando aquela pele macia, olhando aqueles olhos lindos, eu
soube que não havia o que temer. O antigo Netuno havia retornado e não
pretendia ir embora de novo por causa de pura imaturidade.
— Vem comigo — pedi tranquilamente, puxando-a para uma
caminhada silenciosa pela beira da praia.
Íris nada disse, apenas manteve os olhos fixos no mar. Já eu, mantive
os meus fixos nela. Andamos cautelosamente até alcançarmos as primeiras
rochas. Ajudei-a a subir até chegarmos ao local onde passei a maior parte do
tempo nas últimas eras. Achei que eu fosse passar a detestar o topo daquela
rocha, mas sabia que ela não tinha sequer a mínima culpa. O único
responsável pelas minhas reações era eu mesmo, ninguém mais, nada além.
Sentamo-nos lado a lado, e arrisquei aninhar a cabeça de Íris em meu
peito. Ela se deixou levar de bom grado, trazendo-me, junto com tal atitude,
mais coragem para me mostrar, descortinar-me por completo. Queria que não
houvesse mistério entre nós. Embora minha própria existência fosse um
grande segredo escondido pelos cosmos, desejava que entre Íris e eu
houvesse o mínimo de omissões que fosse possível.
— Não é necessário se preocupar com uma possível projeção de minha
parte, Íris — comecei a explicar, enquanto olhávamos, juntos, para o belo
horizonte que se formava diante de nós, composto pelo brilho do sol refletido
nas águas do mar. — Ainda que Cássia estivesse ao seu lado agora, eu
saberia diferenciá-las perfeitamente, e tenho certeza absoluta de que meu
coração bateria apenas por você, e que meus olhos buscariam apenas os seus.

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Íris ergueu a cabeça para me observar, no susto. Aproveitei o momento
para deixar nossos rostos bastante próximos.
— Sei que está assustada — prossegui, tentando buscar as palavras
certas. Sabia que qualquer passo em falso poderia significar perdê-la. Não
queria nem imaginar quando Íris se desse conta de que eu tinha poder para
tirá-la da ilha em questão de minutos. — Que pareço, aos seus olhos, alguém
muito longe de sua realidade.
— Não é todo dia que faço amor com um deus. Ou que um confessa
que o coração dele bate apenas por mim — Íris sorriu, faceira. Sorri de volta
porque ela me presenteava com uma deliciosa vontade de sorrir sem motivo
aparente.
— Bom, estamos quites. Definitivamente, não é todo dia que faço amor
com uma humana, nem mesmo que uma se autointitule apaixonada por mim.
Íris roçou a cabeça no meu pescoço, como se quisesse abrir espaço em
meu corpo. Mal sabia ela que havia um enorme compartimento nas
profundezas do meu coração que havia sido aberto por ela, para apenas ela
ocupar.
— O que será de nós dois nessa ilha, Netuno? — perguntou, voltando a
me olhar. Sua expressão se tornou preocupada. Aquela também era uma
grande preocupação para mim, mas eu não queria raciocinar sobre assunto
tão difícil.
— Não sei, Íris. Ainda há muito a ser dito. Preciso confessar algumas
coisas importantes, antes de você decidir o que fazer. — Ela assentiu,
permanecendo calada, creio que como um convite para que eu me abrisse de
uma vez. — Creio que você precisa saber que, de fato, eu nunca estive
sozinho, embora me sentisse profundamente solitário.
Íris voltou a aquiescer.
— Nestor?

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— Também. Aquele golfinho impertinente esteve ao meu lado desde
seu nascimento, que aconteceu há poucos anos, nos arredores da ilha. — Ela
sorriu em resposta e eu continuei: — Há muitas eras, os deuses me
consideraram uma criatura solitária e criaram uma nereide para ser minha
companheira.
— Uma nereide? O que diabos é isso? — Íris se empertigou.
— São ninfas aquáticas que lembram sereias, mas possuem poderes
inimagináveis — expliquei pacientemente. Ela se manteve curiosa e, senti,
um pouco desconfiada. Por este motivo, tratei de tirar as dúvidas de sua
mente. — No entanto, tornamo-nos bons amigos. Anfitrite é minha
companheira, mas não no sentido romântico. Jamais senti nada por ela além
de carinho.
— Hm... E foi com ela que você teve um filho?
Arregalei os olhos.
— Como sabe disso? — praticamente gritei, estupefato.
Íris se encolheu, buscando afastamento, porém eu a puxei de volta. Não
queria largá-la, ainda que a conversa se complicasse. Prometi a mim mesmo
que buscaríamos o entendimento mútuo, custe o que custar.
— Desculpa, Netuno, mas acordei num poço de água doce e foi
impossível não perceber a existência do garoto. Tritáo é um rapaz muito
simpático — ela sorriu, amenizando o clima estranho que havia se formado
entre nós. — Gosto dele.
Balancei a cabeça, um tanto chateado com o moleque por ter me
desobedecido, mas aliviado porque Íris já sabia dele e que se davam bem. Eu
sabia que se dariam, desde o início. Ambos são extremamente capazes de
entrar na mais completa confusão. Ainda que fosse loucura, queria que Íris se
tornasse a minha deusa, e conviver com o meu filho seria essencial.
— Onde está essa tal de Anfitrite? — Íris perguntou, curiosa.

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Olhei para o mar. Eu não fazia ideia de onde a nereide estava, mas algo
me dizia que continuava seguindo os meus passos, comprovando com os
próprios olhos que fiz exatamente o que prometi que jamais faria: apaixonar-
me por uma humana.
— Em breve posso apresentá-las, caso for de seu interesse.
Ela deu de ombros.
— Gostaria, sim. Se ela é importante pra você... Então também é para
mim. Tentarei não sentir ciúmes.
— Ciúmes? — encarei-a demoradamente.
— Claro, né? Ela tem um filho contigo. Vocês devem ser bem íntimos.
Mas tudo bem, sem estresse. Se você diz que não tem nada com ela, então eu
acredito em você, Netuno. Aliás, nem sei se tenho algum direito sobre isso.
— Sobre o quê?
— Sobre você — Íris acariciou o meu rosto. — Não me considero apta
a ter qualquer direito sobre um deus.
Balancei a cabeça em negativa, tomando as mãos que me acariciavam e
depositando-as em meu peito.
— Você tem todos os direitos sobre mim, Íris. — Olhei para o mar. —
E sobre tudo o que me pertence.
— Net... uno.
— Veja bem essas águas. Olhe-a atentamente. — Íris fez o que pedi
sem pestanejar. — São infinitas gotas aglomeradas por todo planeta.
— Eu amo o mar — ela comentou de um jeito profundo.
Sorri. Eu também o amava.
— Pois ele é seu — murmurei. — Eu o entrego a você, como também
entrego, neste momento, o meu coração, Íris.

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CAPÍTULO 33
Íris

Que intensidade, meu bom Deus! Quer dizer, meu deus, Netuno! Porra!
Aquilo era uma confusão dos diabos na minha cabeça, mas eu bem que
estava gostando. Entendia perfeitamente a ansiedade de Cássia em desfrutar
algo extraordinário ao lado de um ser todo-poderoso, que podia mover céus e
mares ao seu bel prazer. Aquilo era excitante demais para uma humana, cheia
de limitações, como eu.
Mas o mais incrível existia naqueles olhos fixos nos meus. Netuno era
tão humano, às vezes, que era difícil não vê-lo simplesmente como Neto.
Toquei sua face, tomada de grande assombro e ternura, sorrindo feito uma
besta quadrada. Não importava muito sua forma ou o que podia fazer,
contanto que continuasse me olhando daquele jeito, seríamos felizes juntos.
Eu saltei sobre ele, como uma moleca espevitada, fazendo seu corpo
tombar para trás na pedra. Suas mãos enormes abraçaram minha cintura e me
seguraram firmes, enquanto eu tentava cobrir seu corpaço com o meu. Pairei
a centímetros de sua boca, rindo feito uma idiota, com os cabelos balançando
ao nosso redor como uma cortina. Ele era tão lindo, santo Deus! Ops! Olha lá
eu de novo com aquele dilema...
— Você sempre me confunde, Íris — ele disse, acariciando meu rosto e
tentando domar aquela juba, para que não escondesse a minha face de seus
olhos ávidos. — Em um momento é séria e adulta, parece até mais madura do
que eu, que tenho séculos de existência. Em seguida, age como uma criança,
fazendo brincadeiras e rindo de um jeito tão faceira que fico ainda mais
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encantado por você.
Meu sorriso reduziu para algo entre tímido e lisonjeado.
— Ora, ser adulto é necessário, mas dizem que não devemos deixar a
criança em nós morrer.
— Quem disse isso?
Dei de ombros. Naquele instante, eu só sabia que estava
apaixonadíssima por Netuno, o deus do oceano.
— Gostaria de ter ouvido esse conselho antes — ele tentou brincar
também.
Porém, uma sombra nublou a alegria em seu olhar e eu maldisse minha
língua, que não conseguia ficar quieta dentro da minha boca.
— Relaxe, meu deus gostosão — eu me aprumei sobre seu corpo,
encaixando minhas pernas entre as dele e aproximando ainda mais nossos
lábios. — Se não conseguir sozinho, estou aqui para ajudar.
Seus olhos flamejaram ao perceber o tom sensual na minha voz e, antes
que pudesse reagir, tomei sua boca na minha, beijando-o com todo o amor
recém-descoberto. Suas mãos juntaram meu cabelo em um rabo malfeito,
enquanto nossos lábios realizavam uma dança nova e sem sentido, se
movendo em conjunto com as batidas insanas dos nossos corações.
Definitivamente, Netuno relaxou nos meus braços. Suas palmas
deslizaram por minhas costas, dos ombros até a cintura, amarrando-me a ele
bem apertado. Finquei meus dedos em seus cabelos, massageando seu couro
cabeludo e sentindo-o gemer na minha boca de um prazer que não tinha nada
a ver com sexo. Era carinho e afeição em gestos e beijos, ininterruptos.
Só paramos quando perdemos o fôlego e precisávamos respirar. Quer
dizer, eu necessitei. Sabia que, como um deus, Netuno não precisava de nada
além de ser adorado. E eu estava radiante em fazê-lo, de maneira exclusiva,
ignorando o fato de que ele tinha uma ninfa, que devia ser gostosa e linda pra

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caralho, pelo que sabia sobre mitologia greco-romana, para servi-lo desde
sempre. E pior, que fora feita para ser companheira dele e lhe deu um filho.
Era muita vantagem para sequer cogitar em competir. Eu nem podia
engravidar, quer dizer, o médico não aconselhava por causa da minha
paralisia. Seria uma gravidez de risco, tanto para mim quanto para o bebê.
Parei de pensar naquilo no mesmo instante e me concentrei nas mãos
de Netuno me acariciando, enquanto eu fazia desenhos aleatórios em seu
peitoral. Não sabia ainda o que pensar sobre maternidade. Era um assunto
importante quando decidi me casar com Gilberto, mas isso já não era mais
relevante. Tinha uma carreira para recomeçar e era jovem, forte e
determinada demais para me deixar abater por outra limitação. E havia
tempo, muito tempo para pensar sobre isso no futuro.
— Me diz uma coisa, Netuno... Essa é sua verdadeira forma?
— Não, eu sou um ser do mar, achei que já tivesse ficado claro.
— Ah, sim. Eu entendi isso. Só queria saber se sua aparência e seu
tamanho são esses mesmos ou você os modificou quando se transmutou em
um humano.
Ele ficou em silêncio e o encarei. Havia uma ruga entre seus olhos.
— Você gostaria de me ver como deus, é isso?
Mordi o lábio, meio arrependida. Não parecia algo que Netuno gostasse
de fazer. Se ele curtisse sua verdadeira forma, não a mudaria, não é mesmo?
No entanto, a curiosidade humana é uma coisa de outro mundo. Eu queria
saber, portanto, não ia me negar o conhecimento. Pelo que eu já vira em
filmes e lera em livros, eu sabia que deuses eram muito mais do que aquele
aparentava. Ele era gigante e lindo também, mas estávamos falando de seres
glorificados, com um poder imensurável. Acenei um sim com a cabeça,
tomando coragem de admitir o que eu queria.
— Se é o que deseja, eu o farei de bom grado — depois do espanto,

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Netuno até sorriu.
Ele se sentou, fazendo eu também me acomodar na rocha. Beijou meus
dedos, antes de soltar a minha mão, e ficou de pé. Foi difícil para meu
pescoço acompanhar sua grandeza daquele ponto de vista, por isso, me ergui
também. Netuno respirou fundo, posicionado na ponta da pedra, como eu
fazia antes de saltar em uma piscina. Então, sem aviso, mergulhou para o
mar, com aquela graça e força que lhe eram peculiares. Tomei seu lugar a
tempo de vê-lo submergir e, no instante seguinte, me joguei para trás,
batendo as costas na rocha.
A água do mar se agitou como se algo enorme, como um submarino,
emergisse. Em vez de um navio submerso surgir, agitando o mar de maneira
assustadora, foi Netuno que apareceu. O rosto voltado para o céu, com uma
longa barba branca, um braço musculoso estendido ao lado do corpo e o
outro para cima, segurando o tridente, sabe-se lá de onde o tirou, era a
máscara da grandiosidade. Os cabelos, tão brancos quanto a barba e mais
compridos do que os meus, se moviam ao sabor do vento que surgiu do nada.
Na fronte havia uma coroa de ouro com três pontas, sendo a do meio maior,
parecida com o garfo que carregava sempre consigo. O peitoral e o tanquinho
perfeitos, trincados e duros, ficaram na altura dos meus olhos, e sua cauda
dourada resplandecia tanto, ainda que em parte submergida, que se tornou
muito difícil olhá-la.
Aquela, sim, era a imagem de um deus.
Abismada, busquei seus olhos virando os meus para o alto, que estavam
voltados para mim com certo temor. No entanto, a expressão de seu rosto era
dura e fria, como se estivesse usando uma máscara. Se não fosse pelo olhar,
eu jamais reconheceria o meu Netuno.
— Puta merda! — foi a única coisa que saiu da minha boca.
— Entendeu agora por que não gosto dessa forma?

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— Como se eu precisasse me sentir mais intimidada...
Seu fôlego me alcançou de repente e a ventania brava me empurrou
contra a rocha, com uma força sobrenatural. Com os olhos entrecerrados, vi o
horror no rosto de Netuno, e então ele desapareceu de meu campo de visão.
Tudo se acalmou imediatamente, como mágica. Respirei com dificuldade,
tentando entender o que acabara de acontecer. Fora uma péssima ideia desejar
vê-lo em sua forma divina. Eu devia ter desconfiado que minha humanidade
fosse frágil demais para lidar com poder.
— Íris! — O deus do oceano pairou diante de mim, enquanto eu ainda
tremia e ponderava sobre a burrada que tinha feito. — Você está bem? Eu te
machuquei?
— Não, não — reagi ao perceber o medo em sua voz. Não queria
preocupá-lo. — Eu estou bem. Só impressionada.
— Você parece assustada — tomou minha mão, sentindo o suor frio na
palma.
— É, isso também.
— Perdoe-me, Íris. Eu juro que não queria amedrontá-la ou feri-la.
Forcei um sorriso e tentei afastar a imagem daquele deus com cara de
mau da minha mente.
— Entendo porque seus súditos o acham um tirano, mesmo você sendo
um fofo.
Netuno soltou aquele suspiro cansado, que soou bem mais natural para
mim do que o bufo divino que teria me jogado longe se não fosse a rocha
atrás de mim.
— Aquela é a aparência real de um ser que viveu demais...
Busquei seus olhos atemorizados, que evitara de tão transtornada que
fiquei, e senti meu coração voltar a bater normalmente. Toquei seu rosto, com
a barba rala e morena outra vez, assim como seu cabelo bem aparado e a

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aparência jovem, de no máximo trinta anos de idade. Ele continuava enorme,
mas um enorme humanamente possível. Sorri, na tentativa de tranquilizá-lo.
— Eu só me senti ainda menor do que já sou perto de você, mas não
tem problema se seu amor por mim for daquele tamanho.
Netuno também riu comigo, beijando os nós dos meus dedos.
— Pois saiba que é, ou pode vir a ser — deu de ombros, como se não
fosse a coisa mais linda e honesta que um homem poderia me dizer. — Cabe
muito amor dentro do meu peito, principalmente por você, minha deusa.
Corei como há muito tempo não fazia. Não era dada à timidez. Mas
aquilo era inédito na minha vida. Ser chamada de deusa por um deus era de
fazer rir.
— Sabe que não sou nenhuma deusa — esnobei, brincando.
Porém, Netuno ficou sério, encarando-me por um tempo longo demais.
— Eu não acabei de lhe oferecer tudo o que tenho? Você é a minha
deusa do mar.
— Hã?
— Se quiser...
— Como assim? Você pode me dar poderes?
Sua expressão ficou tristonha.
— Não, não posso, mas lhe darei qualquer coisa que me pedir.
Ergui uma sobrancelha desconfiada.
— Qualquer coisa?
— Peça e você será atendida.
Olhei para o tridente e não contive a piada.
— Quero espetar a sua bunda com esse garfo! — e gargalhei.
Primeiro Netuno franziu o cenho, depois riu também, mesmo que não
fosse tão efusivamente quanto eu. Porém, pegou o tridente, esquecido no
chão ao seu lado.

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— Não sei como você conseguiu segurá-lo, lá no fundo do mar...
— Por quê? É tipo como o martelo do Thor, só você consegue pegar?
— Não sei quem é esse tal de Thor, mas, sim, só eu consigo segurar.
— Ah! — aquilo era impressionante. Lembrei-me que tínhamos
acabado de transar quando aconteceu. — Talvez porque seu poder circulava
em mim?
Seus olhos dispararam para o colar no meu pescoço.
— Ou porque você carrega consigo parte do meu poder.
Envolvi a lágrima do deus do oceano com a mão, sentindo-a aquecida
fora do normal. Pensei que era por causa da proximidade com o todo-
poderoso, pois antes de chegar àquela ilha, a gota sempre fora apenas uma
pedra fria e linda. Nada mais.
— Mas posso fazer melhor — um sorriso matreiro surgiu no seu rosto,
chamando minha atenção de volta ao assunto do garfo. — Posso ser seu servo
enquanto estiver ao meu lado, minha deusa. Diga-me o que você deseja e
considere feito.
Meu semblante se iluminou.
— Quero ser tratada como uma deusa, com todas as honras e pompas
— brinquei, pensando que ele não levaria aquilo a sério.
Ledo engano. Netuno estralou os dedos e, num piscar de olhos,
estávamos de volta à praia, porém, eu vestia uma túnica curta, verde água,
que combinava com meus olhos, ao estilo greco-romano que já vi nos filmes,
com detalhes em ouro, como o cinto e um broche. Segurava uma taça
dourada em uma mão, com um líquido também dourado, que eu deduzi ser
ambrosia, o vinho exclusivo dos deuses. Uma espécie de coroa de corais
adornava minha fronte.
Estava deitada em algum mobiliário luxuoso e colorido, parecido com
um sofá, mas sem encosto. Diante de mim, uma mesa baixa continha um

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banquete, repleto de frutos e peixes assados. Meu estômago roncou alto com
o cheiro delicioso. Ao meu redor, havia quatro colunas das quais tecidos
diáfanos pendiam, como cortinas. Dava para ver o céu e o mar, e o meu deus,
que se ajoelhara aos meus pés, vestindo apenas uma tanga de couro ao redor
da cintura, como no filme 300. Ah! Que pena! Eu o preferia nu. Mas não
contive a risada alta com toda aquela produção hollywoodiana.
— Mais algum pedido, minha deusa?
— Faça amor comigo até eu me cansar, meu deus do oceano.
Seu rosto se ergueu, já com um olhar malicioso, antes de dizer:
— Transformaria o dia em noite eterna, só pelo prazer de tê-la
adormecida em meus braços, Íris.
Sua voz suave e doce não condizia com a promessa quente e tempestiva
em seu olhar. Netuno estalou os dedos de novo e transformou o céu naquele
roxo que eu já conhecia, nublando assim o sol e seu resplendor. Larguei a
taça em um canto e estendi meus braços para recebê-lo.
Eu podia fazer amor com aquele deus irresistível e me alimentar ao
mesmo tempo.
Seria, no mínimo, interessante...

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CAPÍTULO 34
Netuno

Passei as últimas horas desejando possuir a habilidade de dormir só


para acompanhar a Íris em seu sono. Ela estava profundamente adormecida,
com um sorriso singelo em seus lábios, as pálpebras relaxadas e uma
expressão serena que foi capaz de me manter comovido. Havíamos feito
amor de variadas formas, durante todo o dia — ou melhor, durante a noite
que conjurei para jamais terminar —, mas eu ainda a queria com toda a
intensidade. Não compreendia de que forma Íris conseguia me deixar tão
satisfeito, porém tão insaciado, como se nenhum momento que passássemos
juntos fosse o bastante para esgotar o profundo desejo que eu nutria por ela.
Certo de que aquela noite já havia durado tempo demais, e que todas as
criaturas deveriam estar confusas com isso, apontei o meu tridente para o céu
e permiti que o sol reaparecesse. Íris se moveu um pouco, separando-se do
meu abraço, e continuou dormindo. Pudera, devia estar bem cansada dos
últimos acontecimentos. Sorri ao me lembrar de como ela era sagaz durante o
sexo, sempre disposta a dar e receber todo o prazer que nosso corpo pudesse
sentir.
Deixei a tenda que aquela mulher me fez conjurar, e que construí de
bom grado, espreguicei o meu corpo e observei o oceano. Era incrível como
ele parecia misterioso daquela perspectiva; não dava para ver o que existia
imerso nas águas, um mundo de vidas, emoções, dores e deleites, tanto
quanto havia na terra firme. Lembrei-me de que fazia muito tempo que eu
não ocupava minha forma original, como tinha feito na frente de Íris. Eu me
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senti muito desconfortável no início, mas também pude voltar a compreender
o funcionamento do meu oceano. Em poucos segundos, reconectei-me às
criaturas e soube exatamente o que cada uma sentia. Por mais estranho que
parecesse, um segundo foi o suficiente para que eu abraçasse os sete mares
com o meu poder e o meu amor, em um pedido de desculpas silencioso.
Em troca, recebi a poderosa energia da gratidão, capaz de alimentar o
meu espírito com esperança. Eu soube que o mar ainda me amava. Em
contrapartida, ele soube que eu estava de volta.
Achei por bem não contar a Íris o que havia acontecido, até porque me
mantive vidrado demais em mostrar quem eu realmente era para ela.
Concentrei-me em sua surpresa e admiração. Talvez, com o tempo, aquela
mulher entendesse melhor a minha essência, por mais que eu tivesse passado
eras tentando. Naquele instante, enfim, podia dizer que eu tinha total ciência
do meu dever, da minha função no mundo, da importância de ser quem eu
era. Infelizmente, tudo aquilo tinha se perdido devido à dor, ao ódio e à
culpa.
Nunca mais eu me esqueceria do que, de fato, significava ser um deus.
Foi pensando nos meus deveres que deixei Íris adormecida,
certificando-me, antes de partir, que havia alimento para que ela se saciasse
ao despertar. Ela ainda não tinha me questionado sobre os motivos de eu ter
permitido que passasse tantas dificuldades outrora. Achei que seria sua
primeira pergunta ao se deparar com o que meus poderes podiam oferecê-la.
Contudo, Íris se manteve deslumbrada e apenas aproveitou a fartura,
mantendo-me ao seu lado sem pestanejar.
Sua grande inocência me deixava comovido, mas muito assustado. Não
sabia como reagiria quando descobrisse a verdade sobre estar “presa” na ilha.
Pelo que a conhecia, Íris não ficaria satisfeita em saber que foi a minha cativa
o tempo todo, e que permiti que sofresse por pura vingança. Eu me

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arrependia, obviamente, e me envergonhava de uma forma profunda por ter
sentido coisas tão ruins ao seu respeito. Ela não merecia ter a sua vida virada
de ponta cabeça por minha causa. Não sabia se um pedido de desculpas
resolveria a situação. Mas, no momento certo, eu precisaria arriscar.
Segui mata adentro em direção à gruta. Tritáo estava sozinho por muito
tempo e era meu dever lhe entregar notícias do universo longe do poço.
Ainda não tivera a oportunidade de conversar com Anfitrite, ela deveria estar
confusa, sem saber por que a entrada da caverna estava inacessível pelo mar.
Sua aparição constrangedora na praia provavelmente também seria um dos
assuntos de nossa conversa, que eu tinha certeza de que não seria fácil. Eu fiz
exatamente o que prometi que não faria, mas aquele Netuno medroso e
rancoroso já não existia mais e ela precisava compreender que nada tiraria a
liberdade que eu possuía de fazer o que bem quisesse. Nem mesmo os seus
medos e paranoias.
— Tritáo? — chamei assim que adentrei a gruta. Sentei-me em uma das
rochas porque não estava a fim de me transformar. Ainda vestia uma peça
antiga, comumente usada pelos ancestrais humanos há alguns séculos. —
Tritáo, apareça!
Não obtive qualquer resposta. Tomado pelo desespero repentino, ergui-
me e corri em direção à água. Não hesitei em mergulhar para encontrar uma
das criaturas mais importantes em minha existência. Jamais me perdoaria se
algo ruim tivesse lhe acontecido. Seria única e exclusivamente minha culpa.
Senti a sua presença nas profundezas do poço e me aproximei um tanto
aliviado, pois consegui ser tocado pela energia que ele emitia naturalmente.
Tritáo era poderoso, mas ainda não sabia disso. Eu esperava que nunca
precisasse ter conhecimento dos limites de seu poder.
— Tritáo? Não ouviu meu chamado?
O jovem estava cabisbaixo, deitado nas rochas mais inferiores, como se

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sua vida tivesse perdido o sentido. Ele continuou sem responder. Meu
coração se agitou e me aproximei mais, colocando-me em sua frente.
— Não vou falar outra vez — resmunguei, pois tinha certeza de que ele
gozava perfeitamente de suas faculdades mentais. Se houvesse algo errado,
sua energia emitiria um sinal perceptível. — Responda-me, agora!
Ele deu de ombros. Continuou mudo.
Fechei os olhos com força, contendo a vontade que eu tinha de explodir
aquele poço. Uma pequena correnteza foi formada, o que era um bom sinal.
Se eu estivesse menos controlado, provavelmente a tal explosão já teria
acontecido.
Tentei manter a calma. Lidar com Tritáo era um desafio tremendo.
Sendo assim, decidi mudar de atitude. Precisava deixar o Netuno do passado
trancafiado em uma irrelevante memória. Ele não podia vir à tona nos
momentos em que estivesse com o meu filho. Afinal, mudar aquele
relacionamento era algo que eu queria desde sempre, mas que nunca tive
coragem, ou capacidade, para tal.
— Tudo bem se não quiser falar comigo, mas eu quero falar com você
— comentei, olhando para o fundo do poço porque, inexplicavelmente, sentia
vergonha. Eu não sabia fazer aquilo, e a tentativa poderia ser patética. Já me
sentia um idiota antes mesmo de começar. — Sabe... Íris e eu começamos a
nos dar bem, finalmente.
Tritáo continuou sem responder, mas me encarou, o que só podia ser
boa notícia. Sua curiosidade inerente podia ser uma grande aliada. Por isso,
continuei:
— Prometi que não me apaixonaria por uma humana de novo. Sim, já
me apaixonei uma vez e deu muito errado. Não resisti a tanto sofrimento e
sucumbi durante eras, Tritão, mas... Íris me fez voltar à tona. Eu me
reencontrei.

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— Vocês acasalaram? — Seus olhos se esbugalharam de curiosidade.
Eu poderia ter ficado chateado, ou constrangido, com a pergunta, mas senti
que Tritáo só a fez porque não conseguia conter sua vontade de saber mais.
Aquiesci com suavidade, balançando a cabeça.
— Naturalmente.
— E como foi? Sei que é uma pergunta meio esquisita, Netuno, mas eu
não sei direito o que é acasalar. Minha mãe disse que é o que faz duas
criaturas que se amam. E que o senhor e ela já acasalaram uma vez.
Naquele momento, sim, senti-me absolutamente constrangido.
— Vamos à superfície, assim explico com mais propriedade.
Tritáo sorriu e aquiesceu, seguindo-me. Eu não sabia direito como lhe
explicar algo aparentemente complexo, mas tentaria, pois o mais difícil tinha
feito: conseguir a sua atenção, tirá-lo da mudez. Deixei as águas e me sentei à
pedra mais próxima, tendo Tritáo na minha frente, submerso apenas pela
metade. Seus olhos exprimiam a mais pura curiosidade adolescente.
— Bom — clareei a garganta, sem ter a mínima ideia do que dizer. —
Eu... Você... Bom.
— O senhor ama a Íris? — ele perguntou de uma vez.
— Sim. Eu a amo profundamente. — Tritão abriu um enorme sorriso.
— E já estou sabendo que se viram algumas vezes, não precisa me esconder.
Seu sorriso morreu no mesmo instante.
— Eu...
— Tudo bem, Tritáo, não o castigarei por ter me desobedecido, não
desta vez. Íris explicou que se encontraram por acaso pela primeira vez, e era
óbvio que nenhum dos dois conseguiria se manter livre um do outro com
facilidade. Eu os conheço.
— Ela é muito legal e bonita! O senhor tem sorte. Mas ainda estou em
dúvida sobre o acasalamento. Como é? Mamãe disse que era uma emoção

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maravilhosa — Tritáo prosseguiu quase sem dar pausas. Estava exasperado.
Nunca conversamos tão francamente, sem ordens ou reclamações de minha
parte. — Que as almas se conectam e podem gerar uma vida.
Prendi os lábios, lembrando-me do único momento de entrega entre
mim e Anfitrite. Não posso dizer que foi ruim, mas nem se comparava aos
momentos com Íris. Havia sido rápido e objetivo, com o único intuito de
permitir a chegada de Tritáo, um acordo entre nós dois. Jamais repetimos tal
ato desde então. Por este motivo, não compreendia como Anfitrite podia
atribuir tanto valor a ele. Não um valor biológico, que foi gerar uma vida,
mas um valor sentimental.
— É mais ou menos isso, Tritáo — cocei a cabeça, ainda sem encontrar
palavras. — O que mais sua mãe disse?
— Não lembro... — ele fez uma expressão engraçada. — Faz um
tempo. Ela sabe que você e Íris estão juntos?
— Creio que, agora, sabe — mais uma vez, lembrei-me de sua aparição
na praia.
— E como reagiu? — Tritáo fez uma expressão confusa. — Porque é
óbvio que ela ainda gosta do senhor. Quero dizer, mamãe nunca me disse,
mas só alguém que gosta muito do outro consegue lidar com a situação por
tanto tempo.
Minha mente deu uma reviravolta. Aquele garoto falava tanto, e tão
rápido, que às vezes era difícil compreendê-lo.
— Do que está falando, Tritáo?
— O senhor sabe do que estou falando, Netuno. Minha mãe seguiu os
seus passos e o obedeceu desde que nasci, e creio que começou bem antes
disso, não foi?
Dei de ombros.
— Prefiro que me chame de pai, como já fez uma vez,

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espontaneamente, mesmo que tenha sido em um tom irônico.
— O quê?
Jamais fiz aquele pedido antes, creio que foi por isso que Tritáo me
olhou de um jeito assustado, absolutamente surpreso. Eu estava pronto para
explicar que a nossa relação precisava ser mais estreita, de pai para filho, e
não de um carrasco para alguém que apenas obedecia. Contudo, não tive a
oportunidade.
Íris apareceu no poço sorrateiramente, chamando pelo Tritáo. Quando
me viu, abriu um largo sorriso e veio me abraçar, pois tinha parado ali
justamente porque não me encontrou ao seu lado e achou que eu estivesse
presente. Foi impossível não sentir uma felicidade enorme ao vê-los no
mesmo espaço.
De um lado, Íris, a minha sereia, rainha e deusa. Do outro, o meu filho,
sangue do meu sangue.
Sendo assim, eu os apresentei oficialmente. Os dois eram melhores de
conversa do que eu, portanto mal participei da interação animada que foi
formada. Apenas os observava e refletia, sobretudo sobre o que Tritáo tinha
acabado de me dizer antes de Íris chegar.
De repente, um estalo invadiu a minha mente e me ergui num
rompante.
— O que foi, Netuno? — Íris se preocupou. Ambos me encararam,
assustados.
— Preciso resolver um assunto urgente. Podem continuar conversando
sem a minha presença?
— Sim, mas... O que houve? — Íris se manteve assustada. Segurei seu
rosto com as duas mãos e lhe ofereci um beijo gentil no topo de seu nariz.
— Volto em pouco tempo. Por favor, façam companhia um ao outro.
Tritáo pareceu extremamente feliz com a minha permissão de deixá-lo

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com a Íris. Eu sabia que ali não haveria perigo para nenhum dos dois, por isso
dei as costas sem qualquer preocupação adicional. Precisava tirar uma
história a limpo.
Alcancei a praia a passos largos, subindo na rocha mais alta, como
sempre fazia. Emanei a mesma energia que me fazia conectado à Anfitrite,
então soube que, onde quer que estivesse, ela viria me encontrar. Não
demorou tanto assim. A nereide surgiu na minha frente vinda das águas, com
as pernas humanas que quase nunca utilizava, trajando vestes feitas de corais
e plantas marinhas. Era uma bela aparição, sem a menor dúvida.
Os cabelos grandes e escuros sopravam a favor do vento.
— Precisamos conversar — resmunguei, desviando o rosto porque, em
meu íntimo, não queria discutir.
— Se não fosse o Nestor, eu jamais saberia da existência de um perigo
no oceano. Se não fossem os meus próprios olhos, não saberia que aquela
mulher estava tão avançada em sua feitiçaria — ela falou duramente,
expressando descontentamento. Voltei a encará-la. Anfitrite parou alguns
metros à frente. — Pensei que o senhor fosse mais forte. Acreditei que
relutaria mais em cair nas armadilhas da humana.
Prendi os lábios com força.
— Não há armadilhas.
Anfitrite sorriu de uma maneira maldosa.
— O senhor continua inocente, mesmo com a experiência da dor.
Soltei um arquejo e decidi mudar os rumos do assunto antes que ela me
fizesse parecer patético. Não permitiria que me apontasse o dedo, como
sempre fez desde que surgiu em minha existência. Foram aqueles seus modos
controladores que me afastaram dela no início. Eu percebi em Anfitrite
alguém incompatível com meus desejos.
— A dor que você mesma me causou — informei sem pestanejar.

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Anfitrite fez uma expressão confusa.
— Nunca lhe provoquei dor alguma, meu bom deus.
— Verdade? — franzi o cenho. — Não tenho tanta certeza assim.
Lembro-me bem do quanto relutou para me enfeitiçar, quando falei que
amava a Cássia e a queria. Lembro-me de quantos empecilhos colocou para
que eu não fosse adiante em minha ideia de torná-la rainha.
— Não ficou óbvia a loucura que estava cometendo? Sou uma criatura
racional ao extremo, Netuno. Infelizmente, os deuses colocaram em meu
corpo o conhecimento terrestre. Sei quais são as maldades dos humanos.
— Você conhece a própria maldade? — rosnei, já em fúria. — Pois eu
lhe digo que a maldade de impedir Cássia de me encontrar foi a maior que já
presenciei.
Anfitrite se calou. O curto silêncio que fez, acompanhado com os olhos
bem abertos, responderam as perguntas que eu tinha me feito, as mesmas que
me fizeram procurá-la naquele instante. Por um segundo, pensei em tudo em
outra perspectiva e tirei a conclusão de que Anfitrite, por ainda nutrir
sentimentos por mim, segundo Tritáo, podia ter feito coisas a respeito de
minha atenção em outras criaturas.
— Eu não...
— BASTA! — gritei, e um raio caiu a poucos metros de nós. Todavia,
busquei a serenidade. Não adiantaria mover céus e mares por causa de
Anfitrite e do passado, de algo que já havia sido superado. — Chega de
mentiras.
— Fiz apenas para protegê-lo! Era insanidade, meu senhor! — ela se
ajoelhou aos meus pés, soluçando. — Aquela humana o destruiria.
— Você me destruiu, Anfitrite, não aquela humana.
— Netuno! — ela choramingou. O rosto estava coberto por lágrimas
brilhantes, cristalinas como pequenos pontos de luz. Achei que, como as

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minhas, fossem se materializar, porém não aconteceu.
— Mantenha-se longe do mar, para sua segurança — alertei com calma
forçada. Não queria, e nem ia, deixar que o descontrole ditasse minhas ações
novamente. Eu era um deus. Precisava ser consciente e forte. — Tritáo está
seguro no poço.
— Meu deus...
— Não quero ouvir absolutamente nada sobre o passado. Mas, sempre
que puder, mantenha-se distante das minhas vistas. Deste modo, ficarei em
paz.
Virei as costas, empunhando o meu tridente, e deixei a rocha com
tranquilidade. Ainda ouvi o choro de Anfitrite por algum tempo, mas logo me
distanciei tanto que nada mais pude acompanhar.
Eu me senti orgulhoso por não ter sucumbido.

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CAPÍTULO 35
Íris

Estar apaixonada era como flutuar sobre as nuvens. Amar um deus,


então, me deu a chance de tomar um porre épico e começar a curar a ressaca
assim que bebi aos montes a água do riacho. A dor de cabeça passava aos
poucos depois de ingerir o líquido precioso, e também de lavar meu rosto. Só
o que não consegui trazer de volta foi a clareza de minha mente. Eu me
lembrava da visão assustadora do deus do oceano em sua forma divina, mas
não sabia como tínhamos ido parar na praia, no meio de um cenário digno
dos filmes de Hollywood.
Adorara o figurino de deusa, o sabor da ambrosia e dos alimentos que
Netuno me serviu enquanto me saciava também de seu corpo escultural.
Aquela fome parecia jamais passar, pelo deus dos mares! Quanto mais eu me
envolvia, mais vontade tinha de conectar nossos corpos, vez após outra,
mesmo exaurida. Eu me recordava de flashes absurdamente quentes dos
momentos que protagonizamos na praia, mas precisava do meu deus para
preencher as lacunas deixadas pelo vinho.
Foi com esse intuito que procurei por Netuno na gruta de Tritáo. Fiquei
feliz por reencontrá-lo, como se me fosse impossível suportar qualquer tipo
de distância, ainda que apenas por alguns instantes. Mas me alegrei ainda
mais quando percebi que pai e filho conversavam em um tom amistoso,
muito diferente do que ouvi o deus despejar sobre o tritão.
Entrei na conversa como convidada, e foi demais ouvir a felicidade na
voz de Tritáo por saber que estávamos apaixonados e juntos. Eu sabia que um
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filho sempre seria mais importante do que o parceiro, por isso, a aprovação
do adolescente me deixou ainda mais leve e otimista. Definitivamente,
Netuno estava disposto a fazer a sua parte para que déssemos certo,
independente das diferenças. Ao menos iríamos tentar, o que o futuro nos
reservava não me interessava no momento.
Netuno, no entanto, saiu da gruta de repente, me deixando preocupada
e confusa, sem explicar. Mas como permitiu que eu fizesse companhia para
seu filho, tive a oportunidade de conversar com Tritáo a sós, sem a presença
inibidora do pai.
— E então, me conte como você está se sentindo, preso nesse poço...
— comecei assim que o deus se retirou, esperando que Tritáo se abrisse
comigo.
— Um nada insignificante e inútil. — Abri a boca para retrucar, mas
ele continuou: — E entediado também.
— Sinto muito por isso, mas eu também fui proibida de nadar no mar, e
bem agora que descobri que posso virar sereia.
— Verdade? Então você pode nadar na gruta comigo!
— Er... Posso — fiquei sem graça por conta da minha nudez, porém, o
menino era ingênuo o bastante para agradá-lo, sem medo. — Vire de costas,
por favor.
Mesmo sem compreender, Tritáo me atendeu. Tirei a túnica pela
cabeça e me joguei na água, antes que o adolescente se virasse. Senti minhas
pernas se transformando em cauda e voltei à superfície, tomando o cuidado
de deixar meus cabelos na frente do meu busto, a fim de esconder meus seios
desnudos.
— Pronto! Agora estamos no mesmo nível — brinquei, mesmo que eu
jamais tivesse poderes, como ele deveria ter herdado de Netuno.
— Nossa, Íris! Que cauda bonita! O tom lembra muito o dos seus

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olhos.
— Obrigada.
Intrigada, notei que Tritáo não tirava os olhos da minha cauda, como se
estivesse hipnotizado. Epa! Alerta vermelho!
— Está tudo bem? — questionei, trazendo sua atenção de volta ao meu
rosto.
— Desculpe, eu estava pensando... Bem, meu pai se esquivou da
pergunta, mas eu sei que você vai ser sincera, como sempre foi desde a
primeira vez que conversamos.
— Qual a sua dúvida, Tritáo? Se eu puder ajudar, responderei com o
maior prazer.
— Como é o acasalamento? — Abri a boca, mas foi de espanto mesmo.
Fechei em seguida, sem saber o que dizer. — Fiquei ainda mais curioso
quando percebi que você também tem as duas formas, como meus pais.
Netuno me disse que vocês já acasalaram e minha mãe explicou que foi assim
que eu fui concebido, mas não entendo... Como acontece?
Foi inevitável me constranger, corando. Nunca me imaginei naquela
situação. Engoli em seco e resolvi que ser direta era melhor.
— A verdade é que tanto humano quanto criatura marítima podem
acasalar sempre que quiserem e nem sempre por amor. Podemos escolher
procriar ou só ter prazer. Não é necessário que haja um sentimento para
acontecer, apenas a vontade de ambas as partes para a prática.
— É mesmo? Não foi assim que minha mãe contou...
— Mas quando a gente ama, acasalar é como amar o outro com o
próprio corpo.
— Tá, até aí eu entendi, ela foi bastante didática sobre amor e
acasalamento. Mas como acontece, Íris? Por favor, me explique ou vou
morrer de curiosidade!

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Adolescentes e seus dramas. Não era muito diferente entre humanos e
tritões.
— Existe uma parte no corpo do macho que se encaixa ao corpo da
fêmea, de forma que ele possa plantar a semente no ventre fértil dela.
Tritáo enrugou a testa e eu parei de falar, rezando silenciosamente para
que aquela analogia tosca bastasse para que ele entendesse e parasse de
perguntar.
— Acho que agora entendi...
Suspirei, aliviada, e louca para cair fora daquela gruta antes que o
menino-peixe me perguntasse mais. Ele era adolescente, possivelmente, já
deveria ter sentido desejo sexual, mesmo que nunca tivesse interagido com
uma sereia. Quer dizer, lá estava eu, a alguns metros de uma criatura com os
hormônios em polvorosa. Meu tempo com Tritáo, definitivamente, havia
acabado naquele dia.
— Que bom, agora preciso... procurar por Netuno e ver em que
confusão ele se meteu — desconversei, afastando-me até a borda. Pelo menos
foi bom para eu tomar um banho de água doce, estava precisando. — Vire-se
de costas de novo, por favor, Tritáo.
Ele me obedeceu e eu usei a força de meus braços para içar meu corpo
do poço. Assim que estiquei a cauda na rocha colorida, ela voltou a se
transmutar em pernas. Eu me levantei logo e me vesti com a túnica antes de
autorizá-lo a se voltar para mim.
— Ah, Íris! Preciso te devolver aquela pedra. Não descobri de onde ela
é.
Tritáo nadou até a borda, esticando seu longo braço na minha direção, a
fim de me devolver a gota petrificada. Foi então que reparei que ele havia
crescido. Nossa! Ficaria tão grande quanto o pai.
— Obrigada, Tritáo, mas eu já sei de onde veio — eu a manuseei entre

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os dedos, sentindo a gota do meu colar brilhar e aquecer ao se reencontrar
com a outra. — É uma lágrima de Netuno. Toda vez que ele chora, perde um
pouco de seu poder, que fica armazenado nessa pedra mais do que preciosa,
diria, poderosa.
— Meu pai chorou?!
Eu o encarei com um olhar condescendente.
— Seu pai é o homem... Quer dizer, o ser mais sensível que eu conheci.
Lembre-se disso antes de discutir com ele de novo.
Tritáo arregalou os olhos, cheios de espanto.
— Não tem como eu me esquecer de uma coisa como essa! — admitiu,
ainda assombrado com a informação.
Eu ri. Coitado daquele menino. Passou anos — sei lá quantos —
acreditando que o pai era um tirano sem coração. Era o que Netuno queria
que acreditássemos, mas ainda bem que mudou de ideia, e me fez amá-lo
ainda mais por sua atitude. Eu me despedi de Tritáo, prometendo voltar em
breve para visitá-lo, e saí da gruta, brincando com a gota na minha mão.
Não sabia para onde Netuno havia ido, mas ao me deparar com o veio
do rio desviado, eu me lembrei do Nestor. Pobre golfinho! Havia me
esquecido completamente de que a criaturinha me pedira para encontrá-la no
rio. Andei pela margem, na direção oposta à da praia, esperando que me
levasse direto para ele.
Andei, vendo a vida florescer ao meu redor e se mover pelo céu ou
terra, através dos animais. A tal fera não rugira mais. Talvez Netuno a tenha
aprisionado para a minha segurança, já que se mostrou bastante preocupado
comigo. Para mim não havia papel melhor definido para um deus do que o de
protetor. E o deus do oceano era extremamente cuidadoso com todas as
criaturas sob seu domínio.
Nestor me avistou primeiro.

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— Íris! Finalmente você apareceu! Achei que tivesse morrido!
Coitado! Eu o havia preocupado demais.
— Me desculpe, Nestor. Eu demorei a encontrar esse rio, mas é porque
Netuno e eu nos entendemos, até que enfim.
— Que boa notícia, Íris! — esguichou. — Eu não lhe disse que o amor
e a bondade sempre prevalecem?
Eu me abaixei e acariciei seu focinho. Ele pareceu gostar do afago.
— Você tinha razão, meu sábio amigo. E a sinceridade também.
— Com certeza. Pesquei vários peixes para você, porém, como
demorou muito, acabei comendo tudo sozinho.
Gargalhei. Nestor era adorável.
— Não tem problema, amiguinho. As árvores voltaram a dar frutos.
Estou bem alimentada.
— Ufa! Que alívio. Eu não queria que você morresse. Aliás. Não tem
ido ao mar, não é mesmo?
— De maneira alguma. Netuno deixou muito claro que é perigoso
demais e não vou discutir com quem se preocupa com meu bem-estar.
Nestor girou a cabeça e traduzi como se estivesse intrigado.
— Então, o todo-poderoso está cuidando de você?
— Sim, não precisa mais caçar para mim. Estou bem. Na verdade,
estou ótima.
— Você parece bastante apaixonada.
— E estou — ri, nervosamente, meio sem graça. Eu me sentia meio
tola, mas era bom, muito bom. — Não esperava que acontecesse, mas
aconteceu.
— E Netuno, se declarou para você?
— Ah, sim. Ele me tratou como uma deusa — sorri, nostálgica, quando
flashes da longa noite que tivemos juntos vieram à minha mente.

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Foi aí que me lembrei de que tinha perguntas sem respostas sobre
aquilo.
— Espero mesmo que ele tenha deixado as ideias malucas de lado... —
Nestor dizia, ganhando a minha atenção.
— O que você quer dizer com isso? — questionei, encafifada.
— Exatamente o que disse. — Não compreendi a sua expressão.
— Preciso procurar por Netuno agora, mas voltarei de novo para
nadarmos.
— Está bem, Íris — de repente, o golfinho parecia apressado. — Até
mais!
Mergulhou e sumiu. Dei meia volta e retornei pelo caminho que tinha
feito, rumo à praia daquela vez. Não me distraí com nada além de meus
pensamentos. Estava perdida entre lembranças desconexas do dia anterior,
que não faziam nenhum sentido por mais que eu pensasse. Comecei a ficar
perturbada com a ideia de ter acontecido algo ruim, que jamais deveria ter
esquecido. Apressei o passo, porém, estaquei assim que me vi diante de uma
bela mulher, coberta apenas por algas e corais.
— Deveria ter aproveitado o presente que lhe dei e ter ido embora
dessa ilha para sempre, mortal! — sua voz amarga e dura não combinava
com a beleza do rosto, dos olhos azuis e dos lábios rosados.
Aquela criatura era espetacular, exatamente como eu previra.
— Anfitrite... — sussurrei, incapaz de conter o assombro diante de sua
perfeição.
Tentei não me sentir intimidada por aquela ninfa alta, esguia e nada
dócil, apesar da aparência feminina, delicada e sensual. Nem me comparar.
Entendi perfeitamente porque Netuno quis fazer um filho com ela. Até eu, se
fosse homossexual, pegaria aquela nereide. Notei que carregava consigo uma
espécie de cajado, com uma ponta de cristal. Engoli a seco, tomando cuidado

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e me lembrando de que Anfitrite possuía poderes.
— Foi você que me deu a cauda? — decidi que o ataque era a melhor
defesa. — Pois saiba que sua magia falhou. Tentei ir embora, mas após
cruzar a fronteira entre a magia e a realidade, a mágica se desfez.
A nereide soltou um urro, monstruoso, do mais puro ódio.
— Você precisa partir, humana insolente! Pare de seduzir o deus do
oceano com seus encantos terrenos. Ele quase foi destruído uma vez por
causa de uma mortal.
Esnobei com um gesto de mão.
— Eu conheço essa história e também faço parte dela. Eu sou
descendente de Cássia — demonstrei certo orgulho de minha origem. —
Também sei que você é importante para Netuno e, como eu o amo, aceitarei a
sua presença sem fazer caso.
Anfitrite soltou uma estrondosa gargalhada, que não combinava em
nada com sua expressão azeda.
— Jamais tolerarei a sua presença nessa ilha, não importa o que queira.
Foi naquele momento que entendi de onde vinha tanto rancor.
— Você o ama — afirmei, ligando o que Tritáo falara sobre sua mãe à
repulsa da nereide por qualquer mortal que se aproximasse de Netuno.
— Meus sentimentos não são relevantes — retrucou, secamente,
agitando um pouco o cajado e fazendo o cristal brilhar. — A única coisa que
importa é a integridade de Netuno e você está ameaçando todas as criaturas
que habitam os sete mares ao iludir meu deus e senhor.
Nossa! Tritáo tinha de quem puxar o drama. Apesar de que Netuno não
ficava muito distante. Somente pouco tempo antes, ele se tornara mais
ponderado.
— Eu o amo e pretendo fazer seus dias felizes, enquanto estivermos
juntos.

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Anfitrite deu um passo adiante, ameaçadoramente.
— O “enquanto” é a questão. Se você o amasse de verdade, o deixaria
em paz para cumprir seu destino, que é governar todo o oceano com bondade
e amor.
— Eu só quero proporcionar momentos alegres a um deus que já sofreu
demais por uma mentira...
A nereide se descontrolou. O brilho que emanou do cristal quase me
cegou e a energia criou uma espécie de vento, que agitou seus cabelos ao
redor de seu rosto, como uma medusa. Caí sentada na grama, pega
desprevenida.
— NÃO! Netuno está se desviando de seu caminho e se distraindo com
meras mortais, que não possuem nada a lhe oferecer a não ser instantes de
prazer. O deus do oceano merece mais. Merece devoção completa e total, por
toda a eternidade.
— Isso me soa tanto como dor de cotovelo — cutuquei a fera,
levantando-me, cheia de coragem para enfrentá-la de igual para igual. — Se
você realmente o amasse, o deixaria seguir o caminho que ele escolher.
Anfitrite cresceu mais alguns metros, transformando seu belo rosto em
uma máscara disforme, tomada pela fúria. Segurei-me a um tronco para não
cair outra vez.
— Se você realmente o amasse, o pouparia de sofrer o resto da
eternidade pela sua ausência, mortal estúpida! Se esqueceu de que não viverá
para sempre? Quem acha que o consolará quando você morrer?
Tentei retrucar, mas não fui capaz. As engrenagens do meu cérebro
funcionavam a todo a vapor.
— O que está tentando me dizer, Anfitrite? — me fiz de desentendida.
— Além de frágil, também é desprovida de inteligência? — pisoteou o
meu orgulho, que já estava abalado. — Sua vida perto da de Netuno é apenas

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um sopro passageiro e você já deve ter percebido que não existe nada
efêmero no deus do oceano. Ele ama com uma intensidade que nem eu
poderia. Toda a paixão que vocês viverem serão lembranças dolorosas, que se
perpetuarão em sua memória infinita por toda a eternidade. E receio que seja
tão doloroso que deseje acabar com a própria vida.
— NÃO! — foi a minha vez de berrar. Eu podia deixar de existir, mas
ele não. Prostrei-me em terra, de joelhos, com as mãos no rosto, em um
pranto incontido. — Ele não faria isso. Eu o farei prometer não tentar. —
Resfoleguei, soltando a primeira coisa me veio à mente, uma saída. — Minha
alma é imortal, não importa para onde ela vá. Ele é um deus, pode ir ao meu
encontro. Daremos um jeito, tenho certeza. O amor sempre vence — repeti as
palavras de Nestor a fim de convencer.
— Pobre criatura pequena e iludida — havia sarcasmo em sua voz. —
O que a faz ter tanta certeza que o deus do oceano já a ama a tal ponto? É
verdade que temo que isso aconteça se vocês continuarem juntos. Mas o
rancor ainda é muito recente e forte. É por isso que acredito que ainda há
tempo de salvar o coração já despedaçado de Netuno e manter o oceano
seguro sob seu poder.
Encontrei forças na certeza de que Netuno me amava, independente do
que a nereide pensava, para me erguer, enxugar as lágrimas e rebater suas
palavras ardilosas.
— Você pensa que, por eu ser uma humana e não ter poderes, sei
menos do que você, que é eterna. Mas sobre vida e sofrimento não sabe de
nada! Eu aprendi a dar valor a cada respiro e a cada tombo, e foram esses
ensinamentos que eu compartilhei com Netuno. Ele mudou, amadureceu e é
um novo deus. Você está tão cega por ter sido rejeitada que não consegue
enxergar o que eu vejo. Não existe nesse planeta criatura mais sincera do que
Netuno. Tenho total confiança em seu amor e em sua bondade.

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Anfitrite voltou ao seu estado anterior, trazendo calma ao seu
semblante enfurecido.
— Você não sabe de nada, criatura diminuta! Netuno está apenas a
usando para se vingar de Cássia. Aquela maldita humana corrompeu o
coração bondoso do meu senhor. Ele tentou matar você inúmeras vezes e a
salvou da morte como fim de tortura, só para poder quase matá-la de novo,
até se cansar, e finalmente consumar o ato. Não percebe que, depois que
adquiriu cauda, talvez ele mudou de estratégia para que não fosse embora?
Ele pode estar seduzindo-a para deixá-la tão destruída, como ficou quando
esperou mais de quinhentos dias por sua ancestral. A vingança obscureceu
seu coração.
Perdi o fôlego com a dureza de suas palavras e vacilei por um instante,
lembrando-me de que realmente fora quase morta várias vezes, que Netuno
fora um ogro estúpido, e depois que eu voltei da tentativa de fuga, ele mudou.
As árvores não frutíferas deram frutos, a fera desapareceu e ele se deixou
aproximar, contando para mim tudo sobre si mesmo que me fez amolecer e
me apaixonar.
— O que você está dizendo não faz nenhum sentido — ainda discuti,
tentando afastar os pensamentos contraditórios da minha mente.
— Pergunte para ele, Íris — foi a primeira vez que ela usou meu nome
e não um substantivo qualquer, a fim de me diminuir. — Questione como
veio para essa ilha, ou melhor, pergunte por que ele te trouxe para cá.
— Ele me trouxe...? — Já suspeitava disso, mas deixei a informação
arquivada em algum canto obscuro do meu cérebro.
— Sim, a trouxe e a manteve prisioneira. Porque se a minha poção não
funcionou como era esperado, a culpa só pode ser dele. Quem mais teria o
poder de impedi-la de partir? Netuno não podia deixá-la ir embora, humana.
Não com vida.

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Quanto mais a nereide falava, menos as descrições batiam com o deus
do oceano que eu conhecia. Não. Netuno era bondoso. Não havia espaço em
seu coração para a maldade. Ele não me aprisionaria naquela ilha, me tirando
a liberdade de ir e vir, que me era um direito nato. Ele me pediria para ficar,
já esperava por isso, e me permitiria exercer meu único poder como mortal,
que era o livre-arbítrio.
Ao mesmo tempo, a imagem daquele deus de barba branca, gigantesco
e feroz, um verdadeiro tirano, surgiu em minhas lembranças, me fazendo
titubear. A aparência malvada e cruel que Anfitrite descrevera com exatidão.
O todo-poderoso poderia fazer o que quisesse comigo e eu jamais teria
chance contra a sua vontade. No entanto, Netuno não tinha direito de me
privar da escolha.
Precisava tirar aquilo a limpo o mais rápido possível.

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CAPÍTULO 36
Netuno

Busquei em meu íntimo a existência da velha raiva que nele habitava,


porém nada consegui encontrar além de uma emoção intuitiva que significava
a ausência de surpresas. A verdade era que Anfitrite não tinha me
surpreendido nem um pouco ao confessar o que fez; eu sempre soube que ela
não era a criatura mais correta, nem a mais bondosa, embora tentasse
expressar esses dois âmbitos que não lhe eram próprios. Finalmente havia
descoberto por que ela me soava tão estranha e diferente dos princípios que
eu tomava para mim, alguém que não me trazia segurança para amar ou ter
por perto.
Não tinha sido em vão que nos tornamos incompatíveis para o
relacionamento duradouro que os deuses pretendiam ao me presentar com sua
presença. Naquele momento, parei de culpar a mim mesmo por ter agido de
forma aparentemente ingrata durante tantos anos. Remover das minhas costas
a responsabilidade de amá-la foi, na verdade, mais um alívio. Também não
mais me sentia um traidor por estar com a Íris, como cheguei a me sentir nos
momentos em que a consciência de justiça falava mais alto. Eu me sentia
algumas toneladas mais leve enquanto fazia o caminho de volta para o poço.
Estava ansioso para reencontrar Íris, a fim de termos uma conversa
séria sobre Anfitrite. Talvez eu também ganhasse coragem para contar a
verdade sobre a sua estada na ilha, incluindo todos os erros cometidos. Sentia
que Íris me compreenderia, porque ela era uma mulher empática; se colocava
constantemente no lugar do outro. Desabafar seria mais um alívio que eu
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estava disposto a sentir, porque cada vez que o peso sobre mim diminuía, eu
sentia que poderia recomeçar a minha existência de uma forma melhor, mais
proveitosa e benevolente.
Contudo, ao alcançar o poço, Tritáo avisou que Íris tinha saído à minha
procura. Senti que ele queria conversar comigo, mas eu estava tão agitado
que o deixei falando sozinho. Queria encontrar Íris o mais depressa possível,
beijar sua boca de novo, trazê-la aos meus braços e me abrir por completo,
ainda mais profundamente. Não permitiria segredos de nenhuma espécie
entre nós. Eu sabia muito bem quais eram as consequências de uma mentira.
E, se o destino a havia trazido para mim, ao colocá-la em minha frente no
oceano, durante uma vistoria, eu faria o que estivesse ao meu alcance para
jamais perdê-la.
Percorri o caminho do rio em direção à praia, local onde ela certamente
me procuraria primeiro. Senti algo queimando a sola do meu pé e me
esgueirei para ver o que era. Raramente algum objeto, seja o que fosse, tinha
a capacidade de me atingir de forma sensorial tão forte, por isso me mantive
curioso para encontrar o que eu tinha pisado. Soltei um resfolego ao
encontrar uma das minhas lágrimas petrificadas. Não sabia o que ela estava
fazendo ali, à beira do rio, mas minha angústia se intensificou ao identificar o
colar que eu reconhecia jogado ao chão.
— Íris?! — ajoelhei-me na terra e segurei as duas lágrimas, uma delas
presa à corrente, nas mãos. Olhei ao redor, tentando identificar o que poderia
ter acontecido, mas não havia sinal de luta ou qualquer coisa parecida.
Levantei-me, apavorado. Íris jamais arrancaria o seu colar, item que
pertenceu à sua família durante várias gerações, sem mais nem menos.
— ÍRIS! — gritei, tão alto que os animais que caminhavam por perto se
assustaram, bem como um bando de passarinhos voou para longe.
— Ela foi à praia — alguém falou ao meu lado. No rio, visualizei o

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Nestor, mas sua imagem estava meio embaçada. Havia um grande risco de
meus olhos soltarem mais lágrimas iguais àquela.
— Por quê... Como... Onde? — murmurei, sem saber direito quais
palavras usar para compreender os motivos de Íris ter se livrado das lágrimas
como se elas nada importassem.
— Anfitrite — Nestor falou baixo, olhando para os lados como se
estivesse fazendo algo ilegal. Sua expressão era preocupada e não havia
nenhum resquício de alegria. O problema só podia ser muito sério para aquele
golfinho ter ficado tão introspectivo.
— O que a nereide fez? — rosnei, rangendo os dentes. Segurei as
lágrimas com o punho fechado e uma nuvem escura surgiu, mais do que de
repente, no céu acima de nossas cabeças.
— Contou a Íris a verdade sobre... o senhor tê-la sequestrado.
Dois raios caíram simultaneamente, muito perto de nós, e Nestor achou
por bem se recolher nas profundezas do rio, antes que sobrasse para ele
também. Eu ainda não sabia o que sentir, nem o que fazer, por isso fiquei tão
descontrolado. No entanto, um minuto completo de reflexão foi o suficiente
para eu ter certeza de que deveria resolver a situação com maturidade e
conversa, não com tempestades e ranger de dentes.
Sendo assim, a nuvem foi se dissipando, dando lugar aos raios solares.
O antigo Netuno, talvez, tentaria culpabilizar Anfitrite ou mesmo a
própria Íris, mas o novo deus do oceano, que descobri recentemente que era o
meu verdadeiro eu, não tiraria de si próprio a culpa que realmente possuía.
Errei de uma forma cruel com a Íris, tentei sabotá-la e arquitetei uma
vingança sem o menor sentido, então nada era mais justo do que consertar
meu erro.
Caminhei, mais lentamente do que deveria, até a praia. Eu não podia
me esquecer de coisas simples. A primeira delas era que Íris me amava,

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apesar de tudo. Ela mesma tinha confessado, não? Eu precisava acreditar que
nela ainda havia algum sentimento, assim seria mais fácil fazê-la me
compreender. Ou não. Talvez o amor seja apenas um estado frágil, separado
por uma linha bastante tênue do verdadeiro ódio.
Ela tinha muitos motivos para me odiar, afinal.
O segundo fato que não podia cair no meu esquecimento era a justiça.
Eu havia falhado, logo, era justo que eu sofresse as consequências disso. O
que Íris fizesse comigo, não importava o quê, seria justo, e não uma maldição
dos deuses. Logo, a terceira coisa era que eu precisava ter serenidade para
resolver, para respeitá-la, para entregar-lhe todo o meu ponto de vista e
esperar pacientemente por um possível perdão. Que poderia acontecer, ou
não. E, ainda assim, nada me daria o direito à revolta. Apenas os tolos se
revoltam quando o Universo traz de volta aquilo que eles mesmos plantaram.
Os conscientes aceitam com resignação e tentam melhorar o próximo plantio.
Eu era um deus. Precisava agir conscientemente, não como um tolo ou
uma criança mimada que brincava de conjurar nuvens e raios quando uma
situação não acontecia da forma que ela esperava.
Encontrei Íris quase cavando um buraco na areia da praia de tanto que
andava em círculos, falando consigo mesma e praguejando alucinadamente.
A expressão em seu rosto não era das melhores, o que me encheu de mais
medo e ainda mais angústia. A combinação daqueles dois sentimentos foi tão
forte que paralisei, incapaz de prosseguir ou mesmo de traçar uma estratégia
de defesa. Ela notou a minha presença um minuto depois. Primeiro, parou e
me encarou. Em seguida, veio ao meu encontro a passos firmes.
Era a hora da verdade.
— Foi você quem me trouxe para a ilha? — perguntou decididamente,
sem qualquer rodeio. Continuei paralisado feito as tantas estátuas do Olimpo.
— Netuno, foi você quem me trouxe para cá? Vamos, responda!

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Não havia alternativa além daquela que traria a verdade. Aquiesci
devagar, mantendo a boca fechada por puro medo de piorar tudo.
Íris soltou um resfolego surpreso. Acredito que um lado dela tinha
esperanças de que eu fosse negar. Mas não podia. Ela merecia minha
sinceridade.
— Quero explicações — sua voz se tornou ainda mais séria. Íris parecia
um pedaço de rocha, firme e concreta, com a expressão dura. — Como foi?
Por quê? Com que finalidade?
Olhei para o mar na tentativa de encontrar algum conforto.
— Olhe para mim, Netuno — Íris falou, e não foi em tom de pedido. —
Olhe no fundo dos meus olhos e diga que estou aqui por sua causa.
Soltei um fraco suspiro.
— Você está aqui por minha causa, Íris. Eu a encontrei se afogando no
mar, devido a uma tempestade que eu mesmo criei devido à raiva que estava
sentindo por ser obrigado a vistoriar o oceano. — Íris balançou a cabeça em
negativa, bem devagar, como se não acreditasse em minhas palavras. — A
princípio, quis afogá-la, mas sua presença me deixou perturbado e eu a trouxe
para o meu reduto. Você é parecida com a Cássia — dei de ombros —, e na
época eu pouco tinha noção de meus próprios sentimentos. Achei que fosse
ela, embora não fizesse sentido.
Íris bufou, nitidamente chateada.
— E o que pretendia fazer com a suposta Cássia que encontrou no mar
totalmente por acaso?
Desviei o rosto, mas logo me lembrei de que Íris queria a verdade
sendo dita cara a cara. Sendo assim, criei coragem e voltei a observá-la.
— Vingança.
— Vingança?
— Exatamente. Eu queria que sofresse tanto quanto sofri. — Minha

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visão ficou embaçada novamente, porém me contive ao máximo para não
chorar. O Netuno do passado, que nem era tão distante assim, enchia-me de
vergonha. Ainda assim, eu era capaz de respeitar o meu passado. Não me
lamentaria pelo que jamais poderia ser modificado. — Queria ouvir seu choro
angustiado, vê-la gemendo de dor e desprezá-la de todas as formas possíveis.
Ela deu um passo assustado para trás. Talvez eu tivesse usado muita
emoção para dizer as últimas frases, provocando medo nela. Não queria que
me temesse, pois não havia nada para ser temido em mim, por isso tentei me
aproximar. Íris, no entanto, estava disposta a se manter longe e recuou mais
uma vez. Desisti e tentei compreendê-la, respeitar sua vontade.
— Eu não o reconheço — ela falou um pouco menos firme daquela
vez, e vi que seus olhos também se encheram de lágrimas. Íris sofria e a culpa
era minha. — Você tentou me matar. Várias vezes, mesmo sabendo que eu
não era a Cássia porque me lembro muito bem de ter dito quem eu era logo
no início. Não é verdade?
— Íris, preciso que entenda que aquele Netuno não era eu.
— E quem era, então? — cruzou os braços na frente de seu corpo. O
semblante se tornou tão decepcionado que era dolorido continuar a
encarando. — Alguma entidade fantasmagórica que te obrigou a agir com
tanta crueldade? Alguém estava apontando uma arma na sua cabeça e te
persuadindo a ser perverso?
— Não, mas eu mudei a ponto de não mais reconhecê-lo.
— Ainda que eu acredite nisso, Netuno, quem me sequestrou, me fez
sofrer, me fez passar frio e fome, quem me deixou assustada e sozinha... Foi
você.
Assenti calmamente, embora por dentro de mim tivesse se instalado o
caos.
— Eu poderia ter morrido desnutrida, desidratada — Íris apontou para

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a tenda armada, com a mesa ainda farta porque ela sozinha não dera conta de
comer tudo. Era um banquete divino, que eu conjurei somente para o seu
deleite. — Você poderia ter resolvido meu problema, desde o início, e não
fez.
— Eu seria incapaz de deixá-la necessitada outra vez, Íris. Jamais a
faria passar por tantos sacrifícios novamente. Você foi guerreira, e a sua garra
me ajudou a compreender o quanto eu era um fraco.
Íris riu. A força que seu corpo fez para rir permitiu que algumas
lágrimas caíssem. Minha vontade foi de abraçá-la, pedir mil perdões e
prometer que tudo ficaria bem dali em diante. Mas eu sabia que seria em vão
insistir. Precisava que a sua raiva diminuísse um pouco, assim, quem sabe, eu
pudesse cogitar qualquer reaproximação.
Enquanto seu perdão não chegava, só me restava pedir por ele.
— Íris... — abri a boca, mas ela me interrompeu no mesmo instante:
— O ser por quem me apaixonei não era capaz de matar. Havia mágoa,
raiva, aspereza... Sim, havia, e eu compreendia. Mas não posso, sob nenhuma
hipótese, compreender alguém capaz de sequestrar, torturar e matar. — Íris
desviou o rosto por um segundo, mas logo voltou a me enfrentar. Estufou o
peito, convicta de suas palavras. Ela era capaz de me trazer fascínio mesmo
diante de uma situação tão terrível. — Isso significa que não foi por você que
me apaixonei, Netuno. Foi por alguém que eu pensava que existia.
Prendi os lábios com força. Não consegui me segurar por nem mais um
segundo; uma lágrima se perdeu em meu rosto e atingiu a areia, já
petrificada. Aquilo respondia à dúvida sobre Íris me amar. Ela não amava.
Seu interesse era por quem acreditava que eu era, quem eu significava antes
da mentira ser revelada. Com a mentira exposta, Netuno não passava de um
impostor, alguém sem senso de bondade.
Ainda assim, eu tinha certeza de que Íris ainda me enxergava entre véus

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e cortinas.
— Não sou capaz de matar, Íris — confessei, suspirando. — Eu te
salvei em todas as vezes que ficou em perigo porque, no fundo, nunca fui
alguém cruel. Apenas tentava ser por profunda imaturidade.
— Nunca foi alguém cruel? — bufou, sorrindo e chorando ao mesmo
tempo. — Você me enganou, quase me matou várias vezes, me deixou
faminta, sedenta, assustada, solitária. Quis se vingar de alguém que, até
ontem, nem acreditava nessa história de deus do oceano! Aposto que não
existe nenhuma fera nessa ilha, não é? — apontou para mim. — A fera
sempre foi você!
— Tentei corrigir meus erros, Íris! — falei com mais veemência,
começando a perder o controle conforme percebia que ela jamais me daria o
seu perdão, que eu jamais a sentiria nos meus braços de novo. — Eu te salvei,
fiz Anfitrite curar a sua doença com um feitiço, trouxe o sol e a lua de volta,
bem como a água doce, as frutas, o alimento. Para você. Por você. Tentei me
corrigir, isso não conta?
Balançou a cabeça, aquiescendo, e por um momento achei que
estivesse me entendendo. Porém, logo começou a dizer, com um timbre
grosseiro:
— Anfitrite também me falou que você estava curtindo essa coisa de
quase me matar só para me torturar. Queria que eu perdesse as esperanças,
que desistisse de viver, apenas para ter o prazer de me encarar como se eu
fosse um espelho da sua própria derrota. Desejava que eu fosse a sua
projeção, e aí você me mataria, como não conseguiu fazer consigo mesmo. —
Ofeguei, assustado com a sua conclusão. Jamais poderia chamar aquilo de
mentira, no entanto. A verdade soou como um soco bem no meio da minha
cara. — Você é o ser mais mesquinho e egoísta que tive o desprazer de
conhecer.

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— Íris... — meus olhos se encheram de lágrimas. Daquela vez, não era
apenas uma que estava por vir, de jeito nenhum.
— Só porque não soube lidar com o fato de alguém não querer você,
achou que tinha o direito de fazer o que bem entendesse com os sentimentos
dos outros! — ela continuou, ignorando meu apelo ao sussurrar seu nome. —
Você não conhece limites, por isso ultrapassou todos eles, Netuno. Pensa que,
só porque tem poderes, o mundo inteiro deve fazer a sua vontade, nem que
para isso precise mentir, iludir e raptar alguém. Mas saiba que você não pode,
não importa que tenha a droga desse garfo e o poder de me matar em um
estalar de dedos. Pensei que fosse um ser íntegro e que usasse esses poderes
somente para proteger os mais fracos. Mas não, acabo de descobrir que os
usou para se vingar. Que decepção!
— Íris... — tentei mais uma vez.
— Ainda que Cássia não tivesse aparecido por ter decidido não ir, e
não por ter sido impedida, estava no direito dela.
— Eu sei. Agora, sei disso. Você me ajudou a enxergar a verdade, Íris,
e a verdade trouxe mudanças importantes em meu comportamento. Acredite
em mim!
Soube que meu apelo foi em vão ao perceber seus olhos aéreos, como
se Íris não fosse capaz de enxergar mais nada à sua frente, muito menos eu.
— O que esperar de alguém que não sabe ouvir um não? Para quem, ou
o quê, você liga, Netuno? — ela apontou ao nosso redor. — Mantém
Anfitrite por perto porque é legal ter alguém que o adora. Trata Nestor como
se o pobre golfinho fosse um cisco no seu olho. Aprisiona o próprio filho
dentro de um poço solitário e triste. Abandona todas as criaturas marinhas só
porque se sente rejeitado e humilhado.
— Nem tudo o que fiz é desprovido de sentido, Íris. Anfitrite e Tritáo
são um caso totalmente à parte, que você ainda não entende.

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— Não entendo porque a verdade não me foi contada. E, sinceramente,
não acredito em mais nada que saia de sua boca. Não confio em você porque
o desconheço! — Íris deu vários passos para trás. — Não confio nem mesmo
em mim perto de você. Nunca fui de agir da forma que agia quando estava ao
seu lado, logo, é muito mais provável que eu tenha sido drogada por alguma
poção do amor.
— Não houve feitiço algum, Íris.
— Será? Quem pode me garantir? Você? — ela riu de novo. — Não
sou mais a Íris pé no chão que sempre fui antes de você me beijar pela
primeira vez e tomar o meu corpo com propriedade, como se eu fosse um
objeto manipulável. — Começou a balançar a cabeça com angústia. Levou as
mãos aos cabelos e os puxou. — Não duvido que tenha me dopado para me
fazer ceder. Afinal, como podia me entregar a alguém que só me destratava?
Agora eu vejo... Agora posso ver. Meu Deus, eu estou enfeitiçada!
— Não há feitiço algum! — repeti, chateado, em um tom mais alto para
ser ouvido. — Jamais faria uma coisa dessas.
— Não importa mais, Netuno. Nada aqui parece de verdade... — Íris
caminhou até a beira da praia, e eu a segui, porém mantendo certa distância
para não chateá-la mais. — A ilha, os seres, minhas pernas saudáveis... Meus
sentimentos por você. Nada parece real e eu nunca fui de viver no mundo da
fantasia. Gosto da realidade, do que é concreto e seguro. — Ela se virou para
mim. — Já chega, Netuno. Eu quero ir embora deste lugar.
Fechei os olhos, e todas as lágrimas que se agruparam escorreram.
Reabri-os. Pude sentir as pedrinhas desabando perto dos meus pés. Eu me
senti tão mais fraco que tonteei, mas Íris não percebeu porque estava
observando o oceano à sua frente.
— Não vá. Por favor, não vá — murmurei, sem forças para falar mais
alto ou de forma mais convincente. Aquele foi apenas um pedido patético,

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sofrido.
— Eu poderia ter escolhido ficar se você tivesse me dado o poder de
escolha. Mas não me deu — Íris voltou a me olhar. Sua expressão se
modificou ao perceber que eu chorava sem pausas, e que aos meus pés já
deviam ter pelo menos vinte pingentes de colares alheios. Ela fez uma longa
pausa, mas prosseguiu: — Poderia ter ido embora, resolvido a minha vida no
continente e voltado para ficar contigo. No entanto, fui manipulada o tempo
todo a aceitar a sua presença, de forma que nem mesmo sei o que realmente
quero. Não suporto ficar por nem mais um segundo nesta ilha.
— Este é, de fato, o seu desejo, Íris?
Ela aquiesceu.
— É. O único que sou capaz de sentir agora.
Assenti com bastante resignação, repetindo em minha mente que a
coisa certa a fazer era respeitá-la, e não aprisioná-la em algum buraco dentro
da ilha até que mudasse de ideia ao meu respeito. Infelizmente, tal crueldade
se passou pela minha cabeça, prova de que aquela mulher talvez tivesse
razão. Eu ainda não era o suficiente para ela. Havia muito ainda para ser
aprendido e modificado.
Sendo assim, apontei o tridente alguns metros adiante, em direção ao
mar, e conjurei um barco grande, confortável, similar às embarcações
luxuosas que eu via navegando pelas águas de vez em quando e que
funcionavam a motor. Aquele, contudo, funcionava de uma forma um tanto
diferente.
Por último, escrevi, em letras cursivas, o único nome provável para o
barco que levaria Íris embora: Deusa do Mar. Era o que ela significava para
mim. Aquela mulher era a minha deusa, alguém que eu adorava, era devoto,
respeitava intensamente e aprendera a amar muito além do que a mim
mesmo. E o mar, no fim das contas, sempre a pertenceria, pois eu mesmo

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havia lhe presenteado um dia antes.
Presentes não se devolvem.
Íris me olhou com indignação.
— Você sempre pôde me levar de volta! — ela chorava intensamente,
talvez tanto quanto eu. — Mas é claro que sim... Quem conjura tempestades,
ilhas paradisíacas, tendas e banquetes... Claro que pode conjurar um barco.
Como fui estúpida!
— Como mandar embora alguém que foi capaz de me ressuscitar? —
falei, daquela vez sem querer olhá-la e ciente de que não conseguiria vê-la ir,
mesmo se me implorasse por isso. — Talvez o amor seja tão egoísta quanto a
vingança.
— Você não me ama, Netuno.
— Acredite em suas verdades, Íris, é o seu direito. Mas nunca duvide
do meu amor. Quero sua felicidade como nunca antes desejei qualquer coisa.
— Se me amasse, me deixaria partir! Amor verdadeiro não aprisiona,
liberta.
Apontei para o barco.
— É seu. — Íris permaneceu calada. Continuei sem ousar olhar em
seus olhos. — Como o mar também o é. Como o meu coração e o meu amor
eterno.
Ela correu, sem pestanejar, em direção à embarcação imponente. Deve
ter virado sereia no percurso, pois sumiu completamente. Eu me ajoelhei
sobre a areia, diante de minhas próprias lágrimas. Olhei para o céu azul.
Lembrei-me da colheita obrigatória. Eu merecia. Era a lei do Universo.
— Ei... — senti uma mão macia tocar meu ombro e olhei para cima,
assustado. Era Íris, toda molhada e trêmula. Por um segundo, achei que
tivesse desistido de ir embora, mas foi logo perguntando: — Quais são as
chances de voltar ao continente e perceber que estou grávida de um deus? —

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Sua cabeça abaixou, fitando a areia. — Não quero mais surpresas. E, bom,
transamos sem nenhuma proteção e...
— Não há a mínima chance — informei com a voz rouca, voltando a
observar o mar. Não consegui conter a decepção. — Procrio apenas quando
me permito procriar.
Íris ficou em silêncio. Passou tanto tempo calada que precisei a encarar
de novo. Sua expressão era estranha. Não compreendi direito, mas foi como
se Íris desejasse ter um filho meu, apesar de tudo.
Eu me ergui. Talvez ela não quisesse um filho, mas uma lembrança,
algo que me conectasse a ela profundamente. Poderia estar totalmente
enganado, mas seu semblante ainda era de quem se lamentava
profundamente.
— Ótimo — ela murmurou e seguiu, novamente, na direção do barco.
— Espere, Íris. — A mulher se virou depressa. Abri a palma da minha
mão e a estendi. Imediatamente, todas as lágrimas que já soltei naquela ilha
voaram ao meu encontro. Um pouco mais de poder foi necessário para fazê-
las se agruparem em uma pulseira cheia de lágrimas. — Aceite este humilde
presente.
Íris ficou olhando para a minha mão, estupefata.
— Não posso — seu orgulho falou mais alto.
— Não há nada mais coerente do que pegarmos para nós algo que nos
pertence — estalei o outro dedo e a pulseira parou em volta de seu pulso. Íris
deve ter sentido o peso na hora, pois ergueu o braço e admirou a peça recém-
conjurada. — São suas. Exceto esta — apontei para a lágrima que estava
presa ao colar, e que ainda jazia em minha palma. — Essa me pertence.
— Não entendo por que são minhas.
— Porque só foram possíveis por sua causa, Íris. São lágrimas de amor
por você, alegria por você, tristeza por você. Medo de te perder. Enfim, por

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ter te perdido.
— Eu vou embora, Netuno — ela balançou a cabeça em negativa. —
Nada que faça ou diga me fará mudar de ideia. Não vou viver de ilusões.
— Eu sei. E eu te amo por isso. E por todo o resto também.
Íris soltou um suspiro, correu para o mar e deu um mergulho, sumindo
completamente. Prendi o colar em meu pescoço para nunca me esquecer
daquela lágrima. Era uma peça dolorida demais para que carregasse, e, de
fato, pertencia apenas à minha imaturidade. Eu precisava dela para nunca me
esquecer de jamais me comportar como antes. Não poderia haver revolta,
seria tolice. O sol continuaria brilhando; o vento sopraria, sereno e calmo. As
criaturas viveriam em paz.
Eu era um deus e sempre seria. Viveria sem ela, mas viveria. O carma
me pertencia. Sendo assim, era justo que nada a minha volta sofresse as
consequências dos meus erros. Por isso, não me ajoelhei, derrotado, apenas
me sentei sobre a areia e cruzei as pernas, aguardando. Não havia necessidade
de me esconder no topo da rocha mais alta. Nem mesmo de me isolar do
mundo.
Vi o exato instante em que Íris conseguiu alcançar o barco. Ainda como
sereia, ergueu-se e se colocou dentro da embarcação pronta para levá-la.
Transformou-se em poucos segundos, pois logo se colocou de pé.
— Como faço essa joça funcionar? — ela gritou, mesmo que de muito
longe, sabendo que eu a ouviria de qualquer forma.
Mandei de volta apenas uma mensagem mental. Sequer precisei abrir a
boca.
“Este barco a levará exatamente para onde seu coração mandar. Seu
desejo é o leme.”

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CAPÍTULO 37
Íris

Meu coração foi se despedaçando conforme Anfitrite falava, e os


caquinhos afundaram na areia, onde atirei as lágrimas de Netuno, a fim de
abandonar naquela ilha tudo que ela representava para mim: dor, desilusão e
perda. Ali eu me deixei enganar, iludir, seduzir... Tudo porque a menina que
ainda existia em meu interior acreditou em um conto de fadas, por mais que a
mulher soubesse que não passava de pura ficção, e das mais clichês.
Mais pedacinhos de meu coração ficaram na praia, que fora tudo desde
que chegara àquele lugar, enquanto Netuno confessava seus crimes: meu
refúgio, minha tormenta, nosso ninho de amor... Como eu desejei estar
errada! Ser sacudida por ele ou beijada até ser convencida de que estava
sendo paranoica, ou ludibriada por uma criatura com ciúmes. Jamais culparia
a nereide por ter coragem de me dizer a verdade, que o todo-poderoso deus
do oceano me negou.
Ouvir tudo de seus lábios não melhorou o meu estado. Eu me senti tão
mal, tão ferida, que só queria desaparecer. A proximidade com aquele ser que
me encantara, para em seguida me desencantar, era intolerável. O sofrimento
foi tão grande que pensei ser capaz de me desintegrar, a ponto de me
transformar em mera espuma do oceano, como uma das versões daquela
história malfadada que eu vira na TV. Aquele amor, que nascera do nada e se
transformou em meu tudo, não queria me abandonar.
Mas eu precisava ir... Precisava assimilar tudo aquilo, bem distante dos
olhos poderosamente sinceros de Netuno, antes que eu me jogasse em seus
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braços.
Eu não podia perdoá-lo tão fácil. O que ele fez era inconcebível. Com a
sua mentira, Netuno me tirou tudo: minha família, minha carreira, minha
vida, meu poder de escolha... O deus me deu outras coisas que não pedi,
como uma história incrível para contar, devolveu minhas pernas, me
presenteou com uma cauda de sereia e me fez nutrir o mais profundo dos
sentimentos por outra pessoa que não fosse família, que eu sempre soube que
tinha potencial para vivenciar, mas nunca o sentira. Não antes de conhecê-lo.
Porém, ao me enganar e continuar mentindo, ele me arrancou inclusive
a fantasia.
Não queria mais ser a deusa de um deus, não desejava mais me tornar
sereia quando mergulhasse no mar, não almejava mais um futuro romântico,
ao lado de um ser mítico, em uma ilha deserta. Eu só ansiava ir embora.
Aspirava ser eu mesma outra vez, a atleta medalhista, cadeirante, filha e
noiva. Precisava abraçar meus pais e me deixar chorar em seu colo, como a
criança que um dia fora. Necessitava olhar nos olhos de Gil e descobrir como
me relacionar com ele dali para frente.
As dezenas de lágrimas que Netuno derramou e transformou em uma
pulseira para me presentear não podiam ser mais simbólicas. Eu deixava com
ele partes de mim, ao abandonar o colar milenar de Cássia, e ele me dava
parte de seu poder, que fui incapaz de recusar, ao enxergar a mesma dor que
eu sentia em seu rosto. Queria algo dele para me recordar. Senão, pensaria
que tudo aquilo foi apenas invenção da minha cabeça. Precisava ter certeza
de que foi concreto e real, enquanto o mundo inteiro parecia desabar ao meu
redor, como se fosse construído por cartas e despencasse com um sopro.
Por isso, lá no fundo de minha alma, desejei estar esperando um filho
de Netuno. Eu o acompanharia crescer, andar, falar e, quem sabe, eu veria o
pai todos os dias através do pequeno. Depois pensei que só podia estar

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ficando louca se queria ter engravidado de uma criatura que eu mal conhecia
e que havia me raptado. Ter um filho de um ser poderoso, longe dele e na
civilização, tinha potencial para me causar grandes problemas, além dos
normais. Onde estava com a cabeça para desejar algo tão maluco?
Corri para o barco antes que a presença de Netuno e toda aquela magia
me convencessem a ficar. Eu não era dada a fantasia. Fora educada para a
realidade. Jamais escolheria algo tão insensato quanto jogar a minha vida
para o alto para viver uma louca paixão. No entanto, minha alma parecia
discordar de minha mente, com força. Dividida, partida e magoada, só restava
meu coração para me guiar. E o deus do oceano me deu a dica mentalmente
de como fazer para dar o fora dali.
Fechei os olhos e avistei a praia que eu costumava frequentar no Rio,
minha casa, meus pais e até Gilberto, e então meu coração se acalmou,
aliviado.
“Eu desejo voltar para casa, meu lar e meu lugar neste mundo.”
Assim que o pensamento se formou em minha mente, o motor do barco
ganhou vida e arrancou. Reabri os olhos e encarei a baía, cada vez mais
distante, e a imagem do gigante sentado na areia sumindo rapidamente da
minha visão. Achei melhor ir para a proa, a fim de seguir em frente. Não
adiantava de nada manter os olhos atrás, quando o futuro estava começando
naquele instante, com minha decisão de partir.
Era o melhor a fazer. Eu precisava recompor a minha vida. Muitas
coisas estavam pausadas desde que fora sequestrada e prisioneira daquela
criatura.
Respirei fundo, tentando conter as lágrimas que banhavam
abundantemente meu rosto. Queria ser forte e não chorar daquele jeito, mas,
às vezes, a força estava na coragem de admitir seus sentimentos. Portanto, eu
me deixei pratear aquela dor, até que o sofrimento finalmente cessasse e

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viesse a paz de espírito.
— Íris, você está bem? — a voz de Nestor chegou aos meus ouvidos,
dando-me um susto.
— Vou ficar — respondi, fungando e procurando-o nas ondas ao redor
do barco.
Ele acompanhava o ritmo da embarcação, facilmente, mergulhando
bem na superfície.
— Aonde você vai?
— Para casa. Não quero mais viver isolada nessa ilha da fantasia.
— Netuno vai ficar arrasado. Sinto muito que tenha acontecido desse
jeito...
— Você sabia, Nestor?
— Eu presto atenção em tudo que Netuno diz. Fui contra a ideia de
vingança desde o início, mas não falei nada porque vi a chance de ele se
apaixonar outra vez.
Ri sem graça de sua inocência.
— O amor dele não é o bastante para compensar o que fez comigo,
Nestor.
— Percebi isso tarde demais, Íris. Perdoe-me por não ter lhe contado.
Fiquei dividido entre as duas criaturas que mais amo no oceano. Acreditei
que o amor bastasse e corrigisse tudo.
Senti o resto do meu coração despedaçado se apertar. Aquele golfinho
era a única coisa boa que eu levaria da ilha. Ah! E a amizade com Tritáo.
Esperava que um dia ele conseguisse fugir da gruta e viesse me visitar, quem
sabe?
— Não precisa se desculpar, não era sua responsabilidade me contar.
Quem errou comigo foi Netuno — suspirei, muito chateada. — Na maioria
das vezes, o amor basta, Nestor. Mas não em todas, infelizmente.

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— Nunca mais vai voltar?
— Não sei, Nestor. Provavelmente, não.
— Como vou ficar sem minha amiga?
— Você será muito bem-vindo no litoral carioca — apesar de que havia
pouca aparição de golfinhos nas praias que eu frequentava.
— Oba! — saltitou, feliz. — Irei, com certeza, só preciso aprender o
caminho.
— Você consegue, Nestor. — Sorri amarelo. Não estava no clima nem
para brincar com aquele amiguinho, que me salvou do tédio na ilha. —
Agora, se não se importa, gostaria de ficar sozinha.
— Tudo bem, Íris. Estarei aqui se precisar de mim.
Nestor esguichou antes de desaparecer sob a água, ficando somente sua
barbatana na superfície. Mirei o horizonte, onde o sol se erguia cada vez mais
para o centro do céu, conforme o tempo passava, inexorável. Eu me sentei, a
fim de não me cansar, mas continuei com o olhar fixo à minha frente,
enquanto o barco sacolejava sobre as ondas. Não sei precisar quanto tempo
passou, mas senti o exato instante em que cruzei a redoma de magia e minhas
pernas sucumbiram à realidade.
Olhei ao redor e avistei os arquipélagos que compunham aquela região,
que estavam longe. Claro que não soube dizer onde estava. Não fazia ideia.
Por sobre os ombros, olhei para trás, mesmo sabendo que nada veria por
causa da magia que escondia a ilha de Netuno. Doeu. Portanto, tratei de
volver meus olhos para frente, e concentrar meus pensamentos em algo que
não me fizesse sofrer. Por isso, contei as ilhas que compunham aqueles
montes de terra.
Era tudo muito lindo, apesar de saber que, embaixo daquele mar,
barcos haviam naufragado. E eu desconfiava que o causador daqueles
desastres havia sido ninguém mais e ninguém menos que Netuno, o deus

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furioso dos mares. Pensar naquilo renovou a minha tristeza e decepção,
tornando-me mais decidida a prosseguir por aquele caminho e nunca mais
olhar em seus olhos, jamais me permitir ser enganada outra vez.
O Deusa do Mar — nome que Netuno deu para meu barco — fez um
desvio e depois seguiu reto por bastante tempo. Não vi nada além do oceano
por muitos quilômetros. Se eu pudesse, teria voltado para casa a nado, por
mais que soubesse ser humanamente impossível. Teria me ajudado a
exorcizar os fantasmas que me atormentavam a alma e o privilegiado
silêncio, que só se obtém embaixo d’água.
Era o meio da tarde quando avistei terra. Teria me levantado para ver
melhor, porém, eu não podia. A famosa ponte Rio-Niterói foi a próxima coisa
que se revelou no horizonte e meus olhos se encheram de lágrimas outra vez,
bem quando conseguira controlar o choro. Meu coração ficou pequenininho,
do tamanho de um grão de areia. Eu estava em casa. Podia respirar aliviada
novamente.
O barco se moveu sozinho e reduziu a velocidade ao alcançar a baía de
Guanabara e adentrar a doca, e parou à beira do píer. Eu não tinha como
descer e agradeci aos deuses por ainda ser dia e o cais estar lotado. Precisei
pedir ajuda.
— Socorro, por favor. Alguém me ajude? Estou no Deusa do Mar! —
gritei.
Não demorou muito para alguém me ouvir e mobilizar a segurança do
lugar para me auxiliar. Tive tempo para pensar em como explicar meu
sumiço, sem incluir ilhas perdidas e criaturas mitológicas. Mas o que não
esperava era que me reconhecessem de cara.
— Íris Jaques! — o primeiro homem que subiu no barco, depois de
colocar uma rampa, soltou, espantado.
— O quê? — alguém gritou do píer.

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— A medalhista olímpica dada como morta? — o segundo homem
questionou logo atrás do primeiro.
Eles pararam diante de mim, com cara de quem estavam vendo um
fantasma.
— Por favor, me ajudem a desembarcar. — Engoli o receio a seco, já
que eu precisava deles para chegar a minha casa. — Também preciso ligar
para meus pais.
Para meu alívio, todos os trabalhadores do porto foram muito solícitos,
carregando-me até um escritório com ar-condicionado, onde pude fazer a
ligação que resultou no meu resgate. Por mais que a decisão de retornar para
o Rio tivesse sido minha, foi com tristeza que encarei minha limitada
autonomia. Sem minha cadeira de rodas e meu carro adaptado, eu não iria a
lugar algum.
Enquanto esperava, soube que estava desaparecida há cerca de quinze
dias, o que me espantou pelo pouco tempo. Parecia que se passaram meses e
não apenas duas semanas. Também soube que virei notícia nacional, que
alguém na praia havia visto eu me atirar na água da cadeira de rodas, e que
por isso suspeitavam que eu me suicidara por causa da paralisia. Aquilo me
pegou de surpresa. Jamais faria uma coisa dessas!
Apesar dos rostos curiosos, não fui importunada com perguntas até a
chegada da minha família. Minha mãe entrou na frente, jogando-se aos meus
pés e me abraçando já aos prantos. Meu pai me olhava com lágrimas contidas
nos olhos, até me alcançar e abraçar. Ficou a um palmo de distância do meu
rosto, admirando-me, encurvado sobre o que parecia um cansaço extremo.
Que droga! O que eu havia feito com eles?
— Eu sabia que você não estava morta — minha mãe choramingou. —
Meu coração me dizia que minha filhinha estava viva!
Apenas pude chorar. Vê-los e senti-los de novo era tudo o que eu mais

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desejava.
— A marinha realizou buscas por dez dias, até perderem a esperança de
encontrar seu corpo para um enterro digno — meu pai foi mais prático,
porém, não menos emocionado. Seu tom de voz denunciava sua emoção.
— Me declararam como morta? — arregalei os olhos.
— Sim, no quinto dia de busca já não acreditavam mais que estivesse
viva. Procuraram por toda a parte, minha filha. Onde você estava? O que
aconteceu?
— Eu só quis fazer as pazes com o mar, pai — respirei fundo, sentindo
uma tristeza enorme por atender àquele desejo e agir com tanta
irresponsabilidade, colocando a minha vida em risco e a sanidade dos meus
pais à prova. — Mas fui pega por uma tempestade e apaguei. Quando
acordei, estava em uma ilha deserta. Fiz o que pude, e o senhor me ensinou,
para sobreviver, até que alguém apareceu com um barco e me trouxe para o
porto.
Era meia verdade, já estava de bom tamanho.
— Precisamos agradecer a esse cidadão de bem por devolver a nossa
filha sã e salva — mamãe falou, solenemente.
— Me levem para casa, por favor — implorei, exausta daquela longa
jornada.
Fui apertada e beijada. Meus pais estavam gratos e até fizeram uma
prece. A parte ruim de tudo aquilo foi atravessar a turba de repórteres que
formou um muro entre nós e o carro. Ainda bem que a guarda do porto
auxiliou a abrir passagem à força. Não respondemos a nenhuma pergunta. Eu
teria que dar uma declaração na delegacia e meus pais queriam que eu fizesse
exames preventivos, porém, naquele momento, eu só precisava de uma cama
de verdade. E também de comida de mãe.
Foi no veículo que perguntei por Gilberto. Meus pais se entreolharam

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antes de me dizer que ele fora incansável durante a investigação, como eu já
esperava, fazendo eu me sentir ainda mais culpada. Disseram que ele aparecia
todo dia na casa deles à espera de notícias e que cuidou do meu apartamento
na minha ausência. Ia à delegacia pressionar o encarregado para que não
desistisse, se preciso, até com a marinha falava. Mas que sumiu assim que a
polícia encerrou as buscas.
— Faz cinco dias que não o vemos — concluiu papai.
Daquilo tudo, o único alívio foi saber que nenhum dos três acreditou na
história de suicídio. Eles me conheciam bem demais para crerem que eu fosse
fazer algo contra a minha própria vida. Decidi que o procuraria depois, caso
ele não soubesse do ocorrido e me visitasse antes. Precisava de um respiro
antes de nossa conversa, que seria muito difícil. Estava emocionalmente
exausta para enfrentar outro fim de relacionamento. Só precisava de amor,
muito amor.
Minha mãe me ajudou com o banho e meu pai preparou o jantar, que eu
comi até bem para alguém com o estômago contraído de angústia. Eles
conversaram comigo, contando coisas bobas que eu perdi, desviando minha
mente perturbada de assuntos pesados. Quando comecei a pescar, me
mandaram para cama. Foi interessante voltar para o quarto de uma jovem que
eu já não era, pois saíra da casa de meus pais há algum tempo. E também
porque aqueles quinze dias me modificaram para sempre.
Dormi o sono dos justos assim que minha cabeça tocou o travesseiro,
sem sonhos, nem pesadelos. Acordei com uma sensação estranha de vazio.
Olhei ao redor e não havia mar. Embaixo de mim não tinha areia. Meu corpo
estava coberto com um pijama de estampa colorido bem infantil, e não nu. E
não havia nem vestígio de que alguém dormira ao meu lado. Engoli o choro e
respirei fundo a fim de começar aquele dia.
Fiz todas as minhas obrigações, foi um dia bem cheio. Fui à delegacia,

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falei com meu treinador e a assessoria de imprensa marcou uma entrevista
para responder perguntas dos jornais, mas eu solicitei que ela falasse por
mim. Eu não queria aparecer por enquanto. Fiz os exames e, inicialmente, os
médicos acharam que eu estava perfeita. Assim que os resultados estivessem
prontos, seria chamada para averiguar. Portanto, estava livre para seguir a
minha vida.
Só quando a noite veio que me dei conta de que Gilberto não havia
dado as caras, nem um telefonema ou mensagem de texto. Apenas o silêncio.
Resoluta, me vesti e embarquei no meu carro, que meu pai conseguira
resgatar da praia onde eu o deixara, a fim de ir ao encontro dele. Preferi não
ligar antes. O que tínhamos para conversar precisava ser dito face a face.
Cheguei ao seu endereço trinta minutos depois. Estacionei, desci a
rampa e fiz minha cadeira de rodas deslizar. Confesso que estava um pouco
desacostumada com a falta de mobilidade. Volta e meia eu pensava em me
levantar e andar, porém, minhas pernas não correspondiam ao meu desejo, e
eu me lembrava de que eu era paralítica. Não fazia mal. Era só questão de
tempo.
Parei na calçada em frente à campainha e me estiquei para alcançá-la e
apertar o botão. Ouvi o som repercutir dentro da casa e passos vindos pela
varanda. Eram estranhos. Não pareciam os pés de Gilberto, pesados e
precisos. Eram mais como saltos femininos. Dei de ombros e esperei. O
portão rangeu quando se abriu e uma mulher deslumbrante, como uma
modelo, surgiu no meu campo de visão. Ela me olhou, curiosa.
— Oi — comecei a falar, tentando não deduzir nada sobre aquilo. —
Gilberto está?
— Está sim... Você não é aquela moça que se atirou no mar?
Delicada, não? Dei de ombros.
— Sim, por isso eu queria falar com Gil.

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Ela ergueu uma sobrancelha, sem entender nada, mas se virou para
dentro, mantendo a mão no portão como para me impedir de entrar na casa
que seria minha, se eu me casasse com Gilberto. Que coisa estranha!
— Amooorrr — gritou, fazendo-me arrepiar toda. — É para você!
Abri a boca para falar, mas não consegui. Pensei em dar meia volta e
fugir, mas eu não era disso. E se Gilberto já estava com outra mulher, eu
tinha o direito de ouvir isso de sua boca, assim como ele tinha o direito de
saber que eu me apaixonara por outro homem, mesmo sem querer.
Ter minha vida de volta não estava sendo nada do que imaginei.

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CAPÍTULO 38
Netuno

Ainda que tivesse prometido a mim mesmo que não acompanharia


aquela cena de perto — com o intuito de não sofrer mais do que já sofria —,
foi inevitável não observar a partida de Íris até que a embarcação sumisse no
vasto horizonte. A verdade foi que nutri esperanças de que ela desistisse de ir
embora; esperei e ansiei que retornasse, que o barco, por fim, se recusasse a
encontrar o continente e voltasse para a ilha, seguindo o coração da mulher
que o guiava. Eu me enganei. Íris era muito decidida para titubear, e estava
tão decepcionada que não me perdoaria tão fácil.
No fim das contas, percebi que sequer havia tido tempo de pedir
desculpas. Não que as crueldades que cometi fossem facilmente desculpáveis,
ainda assim, queria ter implorado por perdão. Na verdade, queria ter feito e
falado muito mais, porém cada segundo era um pequeno sopro no espaço,
passava tão rápido que, muitas vezes, não conseguíamos aproveitá-lo melhor.
Ainda que eu tivesse a eternidade ao meu dispor, cada momento era único e
jamais voltava atrás. Ser imortal era saber lidar com a relatividade do tempo.
Não dava para acreditar que o curto beijo que lhe dei antes de deixar a
gruta havia sido o último. Rememorei cada instante da noite anterior e era
difícil crer que poucas horas haviam se passado desde então, que ela já não
estava em meus domínios, que tinha me deixado de uma vez por todas para
seguir com a sua vida humana e mortal. Culpá-la por mal ter me deixado falar
não era uma opção. Íris estava coberta de razão em cada palavra proferida,
mas, mesmo assim, sua opinião ao meu respeito me machucava
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profundamente.
Sentia o meu coração destroçado pela segunda vez, porém, daquela, a
dor era ainda pior, insuportável, latente. Ouvia o meu próprio coração
batendo em descompasso dentro da caixa torácica, gritando por socorro,
sangrando em desespero. Eu não guardava nenhuma esperança de
recuperação, e acreditava que, no fundo, não queria superar. Preferia sentir
aquela agonia para sempre a me esquecer do que Íris significava para mim.
Eu a amaria pela eternidade. Não importava se jamais me perdoasse; aquela
humana ficaria marcada em minha vida e eu adoraria ter o meu amor como
companhia.
Sentia-me feliz por não estar revoltado, descontando uma fúria sem
fundamento em quem nada tinha a ver com minhas decisões e atitudes.
Precisava acreditar que era um grande avanço ainda estar sentado na beira da
praia, mesmo que tivessem se passado três longos dias e três longas noites,
com os olhos apontados para o horizonte e ciente de que tudo estava em seu
lugar. As ondas beijavam a areia com tranquilidade. Pássaros cantavam nas
podas das árvores atrás de mim. O vento soprava, o sol ardia, aquecendo o
planeta como deveria ser.
Prendi os lábios com força, bem como os punhos. A quem estava
tentando enganar? Três dias não eram o bastante para ficar naquele estado
entorpecido? Sentia tanta dor, e era tão terrível, solitário e apavorante que me
curvei diante da areia, iniciando um pranto incontido. Jamais havia chorado
tanto em um período curto de tempo, mas aquele momento superou qualquer
outro. As lágrimas caíam em enxurradas, se petrificavam na areia e se
amontoavam em grande velocidade. Ainda assim, não consegui parar.
Mesmo me sentindo mais fraco a cada segundo, meu espírito desejava
exprimir toda aquela confusão de sentimentos instalada em meu peito.
— Netuno... — a voz de Nestor me chamou, mas a ignorei. Continuei

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chorando feito uma criança. Toda vez que tentava pausar, lembrava-me de
que jamais veria Íris de novo, nunca mais a beijaria ou a teria em meus
braços. Não mais a faria minha. Não sentiria seu cheiro, sua presença
reconfortante, suas conversas inteligentes. — Meu bom deus, não chore. O
senhor vai ficar mais fraco.
— Eu já... sou... um fraco... — balbuciei entre soluços, ainda com o
rosto sobre os punhos, que estavam fechados sobre a areia. — Sempre... fui.
— Tenho certeza de que Íris retornará, Netuno. Ela ama o senhor.
Espere um pouco mais.
Balancei a cabeça depressa, inconformado.
— Eu a perdi, Nestor. Passei três dias para entender isso — murmurei,
ficando ereto de novo. O golfinho estava na beira do mar, com o corpo
praticamente todo emerso. Eu não duvidava de que tivesse me bisbilhotado
durante todo aquele tempo. — A culpa é minha. Não há o que ser feito.
O animal parecia tão triste quanto eu. Só então percebi que eu não era o
único que tinha perdido alguém importante. Sabia que o Nestor gostava
muito da Íris. Tritáo também ficaria devastado ao saber que a humana se foi.
— Você ainda pode visitá-la no continente — comentei, tentando
animá-lo. — Duvido de que Íris desistirá do oceano. Ela sempre carregará
uma parcela dos mistérios do mar consigo.
— Queria que vocês dois ficassem juntos pela eternidade. São perfeitos
um para o outro e se amam profundamente.
Dei de ombros. Enxuguei os meus olhos com as costas das mãos e
soltei um suspiro fraco. Havia uma pequena montanha de lágrimas
justapostas diante de mim, cerca de cem ou duzentas, não dava para mensurar
apenas as observando. Nestor olhou para elas com surpresa e admiração em
seu olhar arredondado.
— Nós nunca ficaríamos juntos pela eternidade, Nestor — falei uma

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grande e assustadora verdade. Talvez ela fizesse com que eu me sentisse
melhor, mas só me deu mais vontade de continuar chorando. — Íris é uma
humana. Eu sou um deus.
— Nem toda eternidade dura pra sempre, meu bom deus — Nestor
respondeu com uma expressão enigmática. Seu rosto arredondado sempre
seria engraçado, não importava se estivesse triste ou feliz, por isso abri um
sorriso idiota. — Quis dizer que achei que viveriam juntos pela curta
eternidade dos homens.
— Isso é impossível.
— Ouvi dizer que não — Nestor virou de ponta cabeça quando uma
onda o atingiu. Deu um mergulho e voltou parecendo um pouco melhor,
como se tivesse acabado de pegar mais fôlego para prosseguir.
— O que quer dizer com isso, Nestor? Que conversa estranha. Não
estou com cabeça para adivinhações.
— O senhor sempre soube que possuía a opção de ser mortal, não
soube?
— O quê? — Ergui-me depressa. — Não. É impossível.
— Como deus, sim, é impossível que o senhor morra. Mas ser deus
sempre foi uma escolha, não?
— Claro que não. Foi algo imposto desde o meu nascimento.
— Quando o senhor chorar tudo o que precisar, até ficar sem poderes...
O que acha que vai acontecer? — Nestor apontou o bico para a montanha de
lágrimas.
Chacoalhei os ombros, confuso e um pouco irritado com aquela
conversa sem sentido. Pelo menos o golfinho estava me distraindo, motivo
pelo qual ainda não o tinha mandado para longe de mim.
— Ficarei sem meus poderes. Não é óbvio? — bufei.
Nestor abriu um sorriso faceiro.

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— O que faz o senhor ser um deus não é seus poderes? — Franzi o
cenho. Aquele bicho estava me deixando muito perturbado. — Não existe
deus sem poder, Netuno, ao menos é o que se fala nos mares. Chegamos a
pensar que aconteceria quando o senhor conheceu a camponesa.
— Pensaram que eu...?
— Que deixaria de ser um deus. Que abandonaria os mares e abriria
mão de sua imortalidade.
— É impossível, Nestor! — praticamente gritei, admirado. — Um deus
não deixa de ser deus. Já tentei acabar com a minha própria vida tantas vezes
e...
— Mas o senhor nunca chorou assim antes de tentar se matar.
Observei as pedrinhas azuis e brilhantes mais uma vez.
— Você está sugerindo que eu... chore e... chore até perder meus
poderes e acabe com minha vida? — perguntei aos murmúrios, encarando o
Nestor.
— Não! — ele soltou uma risada esquisita. — Estou sugerindo que o
senhor tem escolhas, sempre teve. Até mais, Netuno!
O bicho mergulhou e me deixou com uma interrogação enorme para
dar conta.
— Nestor! Nestor! — Nada aconteceu, ele não retornou com o meu
chamado desesperado. Como aquele animal sabia aquelas informações que
nem eu mesmo tinha conhecimento? — NESTOR!
Senti um tremor sob os meus pés. Foi bastante fraco, quase
imperceptível, mas que me fez parar por um momento. Olhei ao redor,
percebendo que tudo ainda estava em seu lugar. Foi tão estranho que achei
que tivesse vindo de mim, dos meus sentimentos conturbados, mas tirei a
prova quando um novo tremor surgiu, daquela vez, muito mais intenso.
Foi tão forte que alguns coqueiros caíram e eu quase perdi a firmeza em

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minhas pernas.
Nestor, enfim, emergiu.
— O que foi isso, Netuno?
— Não faço a menor ideia!
— O mar está esquisito, venha, venha depressa! Acho que o monstro
despertou! — Nestor esguichou e voltou a mergulhar.
Senti um grande pavor devorar os meus sentidos em um segundo,
porém, no seguinte, senti-me pronto para proteger as criaturas marinhas e
derrotar, de uma vez por todas, o ser das trevas que estava escondida embaixo
da minha ilha. Eu já deveria ter feito aquilo há muito tempo, se não estivesse
tão distraído.
Empunhando o tridente, que tinha sido jogado na areia ao meu lado,
corri na direção da água e dei um profundo mergulho. Minhas pernas
sumiram rapidamente, dando lugar à cauda que me ajudaria a nadar com mais
desenvoltura e rapidez. Encontrei Nestor no meio do caminho. Fiquei
preocupado em haver alguma criatura que eu deveria proteger por perto, mas
elas já tinham debandado depois do meu aviso sobre o monstro.
— Nestor, saia do mar! — gritei a ordem, assustado por ele estar
nadando na direção do castelo, não na contrária a ele. — Vá para o rio, agora!
— Não o deixarei sozinho, meu senhor! — ele falou ligeiro, com
aquela sua voz engraçada. No entanto, não foi graça o que senti. Havia
apenas medo.
— Pare! — apontei o tridente para ele e ordenei, emitindo um poder
para paralisá-lo no meio do caminho, antes que fosse tarde. No entanto, nada
aconteceu. Nestor continuou nadando. — Como...?
Olhei para o tridente. Parecia igual, nada estranho. No entanto, era
óbvio que a minha força estava extremamente reduzida. Logo, foi fácil
concluir que eu tinha perdido tanto poder que não havia sido capaz nem

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mesmo de parar o Nestor, uma coisa simples que utilizava uma força
primária.
— NESTOR! — gritei de onde estava, certo de que, não importava o
que tentasse, sem poderes eu jamais conseguiria derrotar Caríbdis. — Volte,
seu bicho maluco e... sem noção!
O golfinho não me ouviu, já estava perto demais do castelo dourado.
Soltei um rosnado e nadei até ele. Ao menos a velocidade do meu nado ainda
era superior a de qualquer outro ser que habitava as profundezas. Agarrei o
Nestor com desespero e o empurrei para longe, na direção oposta.
Um novo tremor aconteceu e um ruído apavorante se fez ouvir. Os
olhos do golfinho se arregalaram.
— VÁ! — berrei. — SAIA DAQUI!
O barulho surgiu outra vez, mais intenso e horripilante. Olhei para trás,
e o que constatei foi uma péssima notícia. O monstro que estava no castelo
era mesmo Caríbdis, e ele já estava quase todo do lado de fora. Era uma
criatura enorme, com tantos dentes que se perdiam de vista, além de
tentáculos gigantescos, similares aos dos povos, exceto pela estatura
fenomenal.
Nadei na direção dele sem titubear, pois sabia que, a partir do momento
em que Caríbdis começasse a se preparar para o ataque, seria impossível
detê-la.
— Netuno! — Nestor gritou atrás de mim.
Cheguei tão perto da criatura que ela finalmente me viu. Abriu a sua
boca imensa, exalando um bafo fétido, com cheiro de morte. Apontei o meu
tridente porque, apesar de estar praticamente sem poderes, Caríbdis não
precisava saber que eu me sentia um verdadeiro inútil. Apenas a minha
presença seria o suficiente para amedrontá-la, se eu estivesse com sorte.
— Criatura vil e repugnante, volte para as profundezas de onde surgiu!

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É uma ordem! — Fiz minhas palavras ecoarem em um raio de quilômetros.
Caríbdis se encolheu um pouco, mas não o suficiente para me tranquilizar. O
que raios aquele bicho fazia ali? Eu não tinha a menor ideia. — Obedeça ao
deus do oceano, soberano das águas!
Caríbdis soltou mais um urro, capaz de me deixar estremecido. Não
houve tempo de reação. Antes mesmo que eu pudesse continuar a tentar
amedrontá-lo, o bicho abriu sua boca enorme ao máximo e me engoliu sem a
menor cerimônia, ignorando o fato de eu ser um deus.
A última coisa que consegui ouvir foi o grito de Nestor.

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CAPÍTULO 39
Íris

Eu ainda processava a notícia — em carne, osso e pernas longas diante


de mim — de que Gilberto colocara outra mulher dentro da nossa ex-futura
casa, quando ouvi os passos e a voz que eu conhecia bem se aproximando.
— Quem é, menina dos meus olhos?
O quê? Escutar aquilo foi como uma apunhalada pelas costas. Aquele
era o apelido que Gilberto me dera, desde que me conheceu, há seis anos.
Tudo bem que eu fiquei encantada com um cara mais velho, maduro e bem-
sucedido, interessado em uma moça esforçada, no início de carreira olímpica,
que sabia como tratar uma mulher. Ele me respeitava, era carinhoso e
presente. Como não me apaixonar?
Gil surgiu em meu campo de visão antes que a mulher respondesse.
Meu coração batia descontrolado pela surpresa, e também doía um pouco
saber que fora enganada duas vezes. Pois aquelas palavras só podiam
significar uma coisa: Gil era um cafajeste de marca maior. Respirei fundo e
mantive a compostura. Não ia desabafar na frente dele, até porque não o
amava.
Nossos olhos se encontraram e prendi a respiração, na expectativa.
— Íris? — Seus passos foram ágeis, conseguindo passagem pelo portão
entreaberto, e encostando-o atrás de si, deixando a mulher longe das minhas
vistas. Escutei seus saltos batendo no piso conforme ela entrava. — O que
veio fazer aqui?
Naquele instante, tive certeza. Gilberto sabia que eu voltara, sã e salva,
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mas simplesmente não estava interessado. Seguira com sua vida, que não me
incluía mais. Ele não me procurara porque não queria. Simples assim. A
notícia de meu retorno já estava em todos os jornais. Até a desconhecida
sabia sobre a minha história trágica, como meu ex-noivo não saberia?
Ainda assim, ergui o queixo, segurando o choro. Não esperava por
aquela traição, mas eu a enfrentaria com dignidade.
— Não devia ter vindo sem avisá-lo, mas precisamos conversar —
disse com firmeza, me recusando a me desculpar por procurá-lo após minha
volta.
Eu ainda tinha algum direito, não?
Gilberto soltou o ar com força, como se estivesse irritado. Ele nunca
me tratara com tanto desdém. Aquilo estava me perturbando demais. Ansiosa
para fazer milhares de perguntas, me contive. Aquela não era a hora certa,
com uma pessoa esperando por ele dentro de casa. E, definitivamente, eu não
ia ter aquela conversa na calçada.
— Amanhã, na hora do almoço, posso te encontrar.
— Ótimo, tem aquele restaurante que...
— Na sua casa, não em público — ele me cortou, secamente.
Engoli em seco, começando a sentir raiva de sua atitude estranha.
Quem ele pensava que era para me tratar como se eu não fosse nada?
— Certo — virei a cadeira e rumei para meu carro. — Até lá.
Ouvi apenas o bater do portão às minhas costas e me encolhi com o
som. Merda! O que estava acontecendo? Ter que esperar até o dia seguinte
seria um martírio, mas era melhor. Não seria uma conversa amigável. Voltei
tremendo para a casa dos meus pais e me tranquei no quarto quando
começaram as perguntas. Expliquei apenas que Gilberto estava com visita e
marcamos para conversar depois.
Aquela noite foi terrível. Mal consegui pregar meus olhos, rodando na

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cama como se tivesse um formigueiro sob mim. A espera e as muitas teorias
que se formaram em minha mente estavam me levando à loucura. Mas a
certeza de que eu fora iludida mais uma vez por outro homem estava me
corroendo por dentro como um verme. Estava quase arrependida de ter
voltado para casa quando o dia amanheceu, finalmente, permitindo-me que
circulasse pela casa sem levantar a suspeita de meus pais.
Durante o café da manhã, falei que gostaria de ir ao meu apartamento, a
fim de dar uma olhada em como estavam as coisas. Porque, se fazia seis dias
— contando com o anterior — que Gilberto não dava notícias, com certeza
minha casa também estava abandonada por pelo menos esse tempo. Meus
pais estavam tranquilos e não me pressionaram, nem me superprotegeram,
como faziam antes de eu desaparecer.
Grata pelo espaço, eu me arrumei e parti. Dirigi ansiosa até meu
endereço, tentando não pensar na bagunça que minha vida estava. Precisei ser
dada como morta para conhecer o caráter daquele que estivera ao meu lado
nos bons e maus momentos, que pedira a minha mão em casamento e que
planejara construir uma família comigo. Aquele que apoiara minha carreira
de atleta e lutara para que eu não desistisse durante a minha recuperação. O
homem que foi incansável em busca de uma cura para minha paralisia.
Não o reconhecia mais e doía perceber que eu me deixara iludir duas
vezes.
Foi inevitável chorar. Não devia me culpar pelo erro dos outros. Ter fé
nas pessoas, acreditar no melhor, não era um defeito meu. Mas agir de má fé
ao perceber essa minha qualidade, sim, isso era errado, muito errado. Não
consegui evitar sentir raiva e dor de novo, e cheguei a soltar um grito dentro
do automóvel, a fim de extravasar os sentimentos intensos que se revolviam
dentro de mim. Fora usada e jogada fora, mas não tinha problema, porque
independente de qualquer um deles, continuaria sendo eu mesma, vivendo,

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lutando e conquistando.
Eu não precisava de Netuno nem de Gilberto para ser feliz. Eu me
bastava.
Havia minha carreira, que meu treinador estava ansioso para fazer
decolar novamente, assim como eu. Tinha novos desafios pela frente que
consumiriam meu tempo e minha disposição. Só precisava me recuperar dos
últimos acontecimentos e receber a liberação médica para voltar a nadar. E,
sob a água, eu estaria completa novamente, como se ela tivesse o poder de
juntar meus pedaços.
Cheguei à minha casa e entrei. Era toda adaptada para eu viver sozinha
e para passagem segura de minha cadeira de rodas. Eu não precisava da casa
luxuosa de Gil, que teria que passar por uma desgastante reforma para me
receber. Ao adentrar a sala, senti uma coisa boa pela primeira vez desde que
voltara para o Rio. A casa de meus pais e também seus braços foram
acolhedores, mas não era mais minha.
Ali, sim, eu me sentia em casa. Cada detalhe foi escolhido por mim e
feito para mim. Respirei fundo e aliviada com a sensação que tanto aguardava
vivenciar. Percorri os cômodos, nostálgica, tocando tudo com saudades e
ignorando a poeira que cobrira tudo com a minha ausência. Não sabia o que
Gilberto fizera ao ir ao meu apartamento, mas ele estava do mesmo jeito que
deixei quando saí para dar um mergulho no mar e fui sequestrada por Netuno.
Gil só podia ter mentindo para meus pais e aquilo me enfureceu.
Comigo ele podia fazer o que quisesse, afinal de contas, eu o escolhera e
nada mais justo do que arcar com as consequências de minhas más escolhas.
Mas eles não tinham culpa e não mereciam aquela traição, quando o
acolheram de braços abertos, mesmo sendo bem mais velho do que eu ao nos
conhecermos. Ele foi aceito porque meus pais confiavam em mim, e eu os
decepcionara ao ser uma péssima avaliadora do caráter alheio.

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Na hora do almoço, ouvi a chave na porta e o esperei na sala. Não
queria que Gil entrasse daquele jeito, sorrateiro. Ele não tinha nenhum direito
de adentrar a minha casa como se fosse dele. Mas eu lhe dera uma cópia da
chave e a pegaria de volta assim que nossa conversa terminasse. Como se
lesse meus pensamentos, Gilberto adentrou a casa a passos firmes, uma
expressão dura e fria no rosto que sempre fora carinhoso quando se virava
para mim, e atirou o molho de chaves sobre a mesinha de centro.
Ficou de pé, como se estivesse incomodado com a minha presença.
— Já soube de toda a história pela mídia — disse, como se para me
poupar de contar os detalhes, ou para se poupar de ouvi-los de minha boca.
Vai saber?
— O que está acontecendo, Gilberto? — foi a única coisa que consegui
perguntar.
Esperava que fosse honesto e me contasse toda a verdade, ao menos
isso poderia amenizar o asco que subia por minha garganta e a vontade de
vomitar na cara dele todas as injúrias que me revolvia o estômago. Mas eu
estava cansada de ter conversas definitivas. Só queria que aquela acabasse o
mais rápido possível. Gil parecia querer o mesmo, pois despejou tudo de uma
só vez, sem respiro.
— Você é uma menina mimada, Íris. Faz o que quer sem pesar as
consequências. Estou farto de você! De saco cheio de resolver seus
problemas enquanto você não liga para nada nem ninguém. Só para o que
você quer. Sabe, quando a gente está com outra pessoa, pondera se as nossas
decisões não vão machucá-la, mas você nunca ligou para mim e para o futuro
que imaginei para nós. Você destruiu tudo que sonhei viver ao seu lado por
puro capricho.
Suas palavras, ditas de maneira explosiva, me pegaram de surpresa. Ele
não estava me descrevendo. Eu não era daquele jeito, nem em encarnações

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passadas!
— Do que você está falando?!
— Quando eu te conheci, soube que era perfeita para mim, Íris. Você
era jovem, bonita, gentil e delicada. Também tinha uma carreira que lhe dava
certo prestígio e visibilidade. Éramos parecidos. Cheguei a pensar que fomos
feitos um para o outro. Você aceitou meu pedido de casamento com a
empolgação de uma menina e aquilo me comoveu tanto que eu só queria
começar a nossa vida feliz e perfeita juntos o mais rápido possível. Mas,
então, você estragou tudo. — A fúria desfigurou seu rosto. — Por que você
tinha que surfar naquela praia em dia de ressaca? Por que teve que pegar
aquela maldita e perigosa onda?
Abri a boca para retrucar e a fechei de novo, a fim de entender aonde
ele queria chegar. Encontrei a minha voz nas profundezas de minha garganta
apertada.
— Você está me acusando de ser negligente e causar o acidente? E no
que isso impediria a nossa felicidade? Tudo bem que eu decidi adiar o
casamento até terminar de me recuperar e isso me fez pensar se devíamos ou
não continuar em frente...
— Eu desisti de você quando desistiu de si mesma — admitiu, fazendo
meu coração sangrar. Gilberto falava e falava, e eu continuava sem entender.
— Lutei tanto para que recuperasse o movimento das pernas e tivesse uma
vida normal, mas você não quis procurar alternativas não convencionais para
resolver seu problema. O que mais eu podia fazer? Nem na cama a gente
estava se entendendo mais!
Espantadíssima, mesmo que concordasse em parte com o que dizia,
percebi qual era o problema dele.
— Você me trocou por outra por eu ser cadeirante? É isso?!
— Você já se olhou no espelho, sentada nessa cadeira? Não é uma

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imagem sexy. Nem mesmo de longe se parece com a mulher perfeita que
escolhi para ser a mãe dos meus filhos.
Que cretino preconceituoso! Eu queria sentar a mão na cara dele, mas
não a alcançaria, então, apenas estendi o braço para a porta.
— Saia da minha casa e suma da minha frente, seu canalha! Você não
merece meu respeito, nem mesmo para concluir nossa história. Ainda bem
que meu último acidente abriu meus olhos e percebi que nunca te amei como
deveria, não para passar o resto de meus dias ao seu lado!
Foi a vez de ele se espantar. Eu só queria que Gil desaparecesse em um
estalar de dedos, como mágica.
— Você queria conversar para terminar comigo? — Apenas o encarei
com o queixo erguido, mantendo meus olhos firmes e meu corpo trêmulo o
mais imóveis possíveis. — Você é ridícula, Íris. Como pude me enganar
tanto?!
Ri, esnobe.
— Falou o cara que colocou outra mulher dentro de casa assim que fui
dada como morta! Meus parabéns, Gilberto. Ganhou o troféu de cafajeste do
ano!
— Eu sou homem e tenho minhas necessidades, mas você não
entenderia já que é frígida.
— O quê? — rolei a cadeira em sua direção e ele rumou para a porta,
como se evitasse qualquer contato comigo. Será que pensava que minha
paralisia era contagiosa? Que escroto! — Fora daqui, seu imbecil!
Desapareça da minha frente, ordinário!
— Pode apostar que vou — disse, abrindo a porta. — Faz um ano que
procuro um jeito de me livrar de você. Não suporto olhar mais na sua cara.
Chega!
E bateu a porta, deixando-me trêmula de raiva. Como Gil ousava me

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maltratar daquele jeito, me reduzindo a nada por ser deficiente? Que pessoa
horrível!
Esperei o tremor passar antes de voltar para casa dos meus pais, por
isso, passei a tarde sozinha, rodando meu apartamento e tentando fazer a fúria
diminuir. Não adiantaria de nada alimentar sentimentos ruins por uma pessoa
que não tinha empatia. Eu continuaria vivendo e conquistando, independente
do que Gilberto pensava a meu respeito. Na verdade, o que ele achava de
mim e da minha vida não me interessava nem um pouco.
Quando retornei para a casa, anunciei que meu noivado com Gilberto
estava rompido e que não queria falar sobre ele nunca mais. Meus pais
respeitaram minha decisão e não fizeram perguntas inconvenientes. Tinha
para mim que eles pressentiram que havia algo errado com Gil. Eu me
tranquei no meu quarto, me sentindo um pouco mais destruída. Pensei que
minha vida não podia se desfazer mais uma vez, porém, estava enganada.
Se Netuno virara minha existência do avesso, o que Gilberto fizera?
Descobri que ainda tinha outro lado, como se tivesse quatro dimensões. O
vazio cresceu dentro do meu peito e chorei até adormecer, sentindo-me
perdida e sem compreender o que estava acontecendo comigo. Ficar na ilha
era impensável, mas continuar no Rio também estava difícil. O que eu
deveria fazer dali para frente? Devia voltar para o meu apartamento em
algum momento, e para a minha carreira, mas por que não me confortava?
Espantei-me quando o sono me levou para um cenário um tanto antigo.
Era uma enseada. O som do mar e das gaivotas era calmante e reparador.
Respirei fundo a maresia e me senti melhor só por estar em silêncio, como se
meus pensamentos estivessem desligados. Sentei-me em uma rocha e fiquei
contemplando o mar, indo e vindo pela areia branquinha, e uma paz que não
sabia a origem preencheu todo o meu ser, afastando o vazio que ameaçava
me devorar por dentro.

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— Íris...
O sussurro atrás de mim me fez virar e encarar o meu reflexo. A moça
em pé, sorrindo, era igualzinha a mim. Parecia ter a mesma idade até. Só que
seus olhos eram castanhos e suas roupas eram antigas. Pareciam de uma
camponesa, como vira em filmes de época.
— Cássia? — murmurei, sem acreditar que estivesse diante de minha
ancestral.
Meu cérebro estava mesmo bugado.
— Fui autorizada a vir auxiliá-la em sua jornada.
Engoli em seco.
— Tipo por um deus?
— Sim, na verdade, uma deusa, a Fortuna. Ela rege nossos destinos e
coloca escolhas em nosso caminho a fim de nos orientar.
— Está me dizendo que o livre-arbítrio é lorota?
Cássia riu e seu riso foi tão agradável que não pude reagir mal.
— Não, você sempre terá o direito de decidir qual caminho deseja
seguir. A Fortuna só apresenta as possibilidades e conhece o fim de todas.
— Ah! — aquilo era uma explicação decente. — De onde você veio?
— Dos Campos Elísios, no Submundo. É um lugar de paz e amor.
— Tipo o céu ou o paraíso?
Ela riu de novo e o som cristalino fez cócegas nos meus ouvidos.
— Como quiser definir, querida. Mas para mim o céu é o monte
Olimpo, onde habita o deus dos deuses.
Engoli em seco e arregalei os olhos.
— Você está no inferno, com o deus das trevas?!
— Sim, eu o conheço. Ele me ajudou na adaptação ao mundo dos
mortos.
— Puta merda! — deixei o palavrão sair. Não devia me espantar que

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existissem outros deuses além do deus do oceano.
— Infelizmente, meu tempo com você é escasso e o que tenho a dizer
deve ajudá-la a entender os últimos acontecimentos e a tomar as próximas
decisões.
— Certo — me mantive sentada, porque se levantasse, cairia dura na
areia. Foi naquele instante que percebi. Minhas pernas se moviam novamente
em meu sonho.
— A Fortuna me colocou no caminho de Netuno por sua causa, Íris. O
deus sofreu muito por minha rejeição, mas era preciso para que ele abraçasse
seu lado humano, tão vivaz em seu temperamento instável. Quando ele me
conheceu e me quis, não era a mim por quem sua alma clamava, era por você.
Como sua ancestral, você nasceria da minha semente e, com aquele encontro
furtivo nessa enseada, ele viveu incompleto até a sua chegada, à sua espera.
— Nossa! Que jeito doloroso de uma deusa fazer duas pessoas se
conhecerem.
— Ela teve seus motivos. Netuno era muito imaturo e você causou a
mudança que ele precisava para estar pronto a fim de cumprir seu destino.
— Ok, mas você ainda não me disse o que preciso fazer.
— Íris, você e Netuno são almas gêmeas, mas você tem escolha de
viver esse amor, que durará por toda a eternidade, mesmo que deixe de existir
no plano terreno, ou pode escolher seguir a sua vida sem ele. Você já
cumpriu o papel de transformá-lo.
Estremeci e congelei. Pelos deuses! O que Cássia queria dizer com
aquilo?
— Então, meu destino era afetar a vida de Netuno a ponto de torná-lo
um deus melhor?
— Seu amor foi reparador à alma dele e o trouxe de volta para seu
caminho. Mas ele também tem escolha, sempre teve.

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— Eu disse isso a ele há algum tempo.
— Eu sei, você é uma moça muito sábia e forte. Tenho orgulho de fazer
parte da sua vida, ainda que seja de uma forma mínima.
— Ei, não diga isso. Quando escolheu seguir a sua vida terrena e não
ficar com Netuno, você fez uma grande escolha e sou muito grata por isso.
Cássia abriu um sorriso terno e imenso.
— Fico feliz que pense assim, porque nem em mil anos me
arrependeria de dar a vida a você, Íris. Acompanhar sua luta e trajetória me
ensinou coisas que ainda precisava aprender para minha alma evoluir. Eu me
tornei melhor, assim como Netuno, só por te conhecer.
— Gilberto não pensa assim — vacilei, lembrando-me de nossa
conversa recente.
— Ele tomou uma decisão diferente da sua, porém a alma dele é pouco
evoluída para compreendê-la.
— Verdade?
— Sim, você é muito especial e foi destinada a amar um deus, que
precisava de uma mortal para descobrir quem realmente é.
— Obrigada.
— Fique em paz, minha filha. Continue agindo conforme seu coração
mandar e a Fortuna abrirá caminhos de possibilidades. Você merece ser
muito feliz.
Cássia se aproximou e selou um beijo em minha testa antes de
desaparecer, esvanecendo como fumaça.
Acordei na cama com a sensação de seus lábios formigando minha
pele. Aquilo foi tão real, não parecia um sonho. Cássia se foi, mas deixou a
sensação de paz no meu peito. Esqueci que um dia existiu um Gilberto na
minha vida e me concentrei no que importava. Netuno não havia me
enfeitiçado. Éramos almas destinadas a nos apaixonar. Ele me amava, assim

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como eu sentia cada partícula de meu ser vibrando de amor pelo deus. Mas,
por mais encantada que aquela fantasia me deixava, não era o fato de ser
todo-poderoso que me fascinara, fora seu coração bondoso e intenso que me
atraíra.
Aliviada, me permiti perdoá-lo. Precisava enviar aquela mensagem a
ele, de forma que sentisse e a recebesse. Levantei-me da cama o mais rápido
que pude, já que amanhecera, me vesti e rumei para a porta, respondendo ao
questionamento dos meus pais, apressada:
— Vou à praia, mas já volto.
— Você não vai mergulhar, né? — minha mãe se apavorou.
— Não, só vou olhar o mar — sorri e saí com a chave na mão.
Dirigi calmamente, respeitando o trânsito. Não queria me enfiar em
outro acidente. Sorria feito uma idiota e lágrimas de alegria embaçaram meus
olhos. Eu o amava e era correspondida. A felicidade de admitir um
sentimento tão bom e nobre me encheu de esperança de um futuro muito
melhor do que podia imaginar. Eu tinha escolha, mas não era o que me
preocupava. Já estava decidido. Ficaria no Rio, viveria a minha vida terrena e
continuaria nadando. Não fazia sentido algum morar em uma ilha deserta,
isolada de tudo e todos, quando eu tinha o mundo inteiro para desbravar.
E também não podia machucar meus pais novamente. Aquela moça
impulsiva e louca não se parecia com quem eu era. Sempre fui responsável e
correta, e continuaria a ser. Portanto, só a vida real combinava comigo,
mesmo que eu soubesse que existiam deuses e almas gêmeas. Puta merda! Os
contos de fadas eram reais e aquilo ainda parecia um sonho para mim. Porém,
eu podia ficar feliz por ter vivenciado algo que poucos têm o privilégio de
experimentar.
Eu ria e chorava quando cheguei ao porto. Nem sei por que fui para lá.
Será que se eu colocasse um bilhete e mandasse o Deus do Mar ir ao encontro

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de Netuno, ele iria sem mim? Acho que não funcionava dessa forma.
Desci do carro e rumei para o píer a fim de estar o mais próxima
possível da água. Alguém disse que era melhor eu não ficar ali, mas ignorei e
continuei em frente. Parei na beirada e travei as rodas. Olhei a baía imensa e
plácida, como o meu coração batendo freneticamente naquele instante. Fechei
os olhos e tentei fazer meus pensamentos percorrerem o oceano até Netuno.
“Eu te perdoo, com todo meu coração e amor, minha alma gêmea.”
Ouvi um som familiar e franzi a testa, estranhando. Quando abri os
olhos, encarei a criatura, que soltava esguichos e mantinha a boca aberta,
olhando-me diretamente nos olhos. Eu só conhecia um golfinho que era tão
esperto e falador. Mas por que eu não o escutava?
— Nestor? — perguntei, aguardando que ele falasse.
Ele se agitou, mas de sua boca nada saiu além de sons de botos.
— O que houve? Por que não te entendo? — Nestor se moveu mais,
apontando o focinho para o Deus do Mar. Acompanhei seus movimentos,
tentando traduzir seus gestos. — Foi Netuno? Aconteceu alguma coisa com
ele? Por isso você veio me ver tão cedo?
Faziam apenas três dias que eu voltara para o Rio de Janeiro. Não
pensei que Nestor fosse sentir minha falta logo. Estávamos distantes demais
da ilha e, para chegar ali, ele precisou percorrer muitos quilômetros. Ainda
não fazia ideia de onde aquela ilha ficava, mas podia descobrir. Enquanto
pensava, Nestor começou a nadar em círculos, como se estivesse sem
paciência.
— Netuno está muito mal, Nestor? Tentou se matar de novo?
Espantei-me quando o golfinho pareceu balançar a cabeça em sinal
positivo. Eu teria corrido se pudesse. Precisava impedi-lo de macular a sua
alma por causa de minha ausência. Seria autodestrutivo e eu o amava demais
para deixá-lo cometer tal sacrifício. Só ficaria em paz se soubesse que ele

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estava bem.
— Me espere junto ao barco, já vou ao seu encontro.
Sem pensar duas vezes, rolei a minha cadeira rumo ao meu destino, que
era salvar o deus do oceano de si mesmo pela segunda vez.

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CAPÍTULO 40
Netuno

Estar no desagradável e nauseabundo estômago daquela criatura me


remeteu aos meus primeiros anos de existência, em que fui dividido entre a
inconsciência e a consciência dentro da barriga de meu pai. Fez-me lembrar
de que, não importavam as circunstâncias, meu corpo sempre dava um jeito
de sobreviver. Então, a minha mente deveria fazer o mesmo: concentrar-se na
sobrevivência, porque finalmente compreendi que a vida que me foi dada não
havia sido em vão. Assim como acreditava piamente que ser engolido, sem
poderes e com o coração destroçado, não se constituía como uma mera obra
do acaso.
Voltar àquela situação, por mais assombrosa que fosse, soava como um
renascimento, ou ao menos o que eu conhecia sobre o que significava nascer.
Por dentro, sentia-me diferente para tal acontecimento. Era um estranho no
mundo, porém, eu o reconhecia como nunca antes fizera, o que era um
grande paradoxo. Talvez, só eu compreendesse. Se qualquer outro ser fosse
engolido com vida pela Caríbdis, teria uma ideia diferente de sua própria
condição, de sua própria essência.
Naquele instante, minha essência era arranjar uma forma de sobreviver
diante de qualquer intempérie, ainda que tudo me fosse arrancado, de vários
âmbitos possíveis. Eu tinha consciência de meu tridente sendo agarrado com
força pelas minhas duas mãos. Não parei, em nenhum segundo, de tentar
emitir algum poder que me fizesse estraçalhar o monstro. Mesmo que o
tridente não funcionasse, eu não o largava, e aquilo tinha o sentido de me
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fazer questionar: quem era Netuno sem o seu poder?
Nestor tinha dito claramente que um deus sem poderes não era um
deus. Então, quem era o ser que mergulhava entre carcaças apodrecidas e
líquido estomacal? Eu existia, era óbvio, pois boiava, contorcia-me, sentia
frio e calor conforme a direção de meu raciocínio. Sentia falta de Íris em
primazia, sobre todas as outras coisas. Eu amava. Netuno vivia sem poderes,
mas vivia, sobrevivia, lutava para existir. Aquilo só podia significar que eu
nunca precisei ser um deus para possuir essência.
A essência estava em mim incondicionalmente.
Pode parecer um pensamento complexo, ou tolo demais, para
desenvolver dentro de um ser monstruoso, mas aquele era o meu
renascimento e eu precisava refletir sobre ele, diferentemente da primeira
vez, em que eu apenas sofria. Afinal, depois que dali eu saísse, haveria uma
vida me esperando. Não sabia que espécie de existência seria, mas eu
continuaria sendo o Netuno e precisava saber lidar com quem eu era. Os
maiores erros que cometi foram por causa da dificuldade que sempre tive de
me colocar diante do meio a minha volta e do Universo que girava dentro de
mim.
Talvez, a resposta fosse apenas uma: o Universo em mim não era
apenas eu, mas o conjunto do todo traduzido em uma alma imortal. Talvez,
ser Netuno significasse ser tudo o que eu vi, tudo pelo que passei, quem eu
amei, o que eu fiz para os outros e o que os outros fizeram para mim. Havia
muitas possibilidades e apenas uma certeza: eu queria outra chance para fazer
diferente, para ser melhor.
Comecei a me remexer excessivamente, fincando o tridente dourado
nas paredes escorregadias no interior de Caríbdis. Se meus poderes não
funcionavam, ainda existia a força física para utilizar. Sempre haveria uma
saída. Girei braços e pernas para provocar o maior desconforto possível no

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monstro, e foi assim que ele finalmente me expeliu. Não me questionei por
qual orifício, pois já estava suficientemente enojado.
Senti meu corpo sendo projetado contra uma superfície gélida e dura,
então percebi que estava no interior do castelo. Os tentáculos da criatura
tomavam toda parte, eu continuava preso em seus domínios e não via forma
alguma de escapar sem ser visto. O monstro berrou alto, provocando-me um
arrepio que percorreu de cima a baixo do meu corpo, reação com a qual não
estava acostumado. Dificilmente eu sentia frio, calor ou arrepios, prova de
que aquele renascimento me gerou algumas mudanças físicas.
— Ó, criatura infame, ordeno que deixe o meu castelo agora mesmo!
— gritei, mas foi uma tentativa patética de demonstrar algum poder sobre o
monstro.
Em vez de ser obedecido e libertado, um de seus tentáculos envolveu o
meu tronco e me prendeu com bastante força, uma que eu jamais poderia
superar, não sem meus poderes. O tridente foi arrancado de minhas e então eu
soube: aquele era o meu fim. O tal renascimento não havia servido para muita
coisa, afinal de contas, só para me lembrar, em meus últimos suspiros, do
quanto havia sido um imbecil durante as eras em que eu deveria ter sido mais
útil.
Fechei os olhos com força, tentando alguma comunicação com o
mundo externo. Precisava dar um aviso importantíssimo. Invoquei qualquer
resquício de poder que precisava habitar em mim ainda — caso contrário
estaria perdido — e me desliguei do que acontecia a minha volta. A princípio,
nada aconteceu. Tentei novamente porque aquele instante era crucial e muita
coisa dependia daquele recado.
“Anfitrite... Escute-me!”
A conexão telepática estava muito fraca, mas aconteceu e eu passei os
próximos segundos torcendo para que se estabelecesse de uma vez. Demorou

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o que achei que fossem horas para obter uma pequena resposta:
“Estou ouvindo”, a voz de Anfitrite soou baixa, sem qualquer firmeza,
além do fato de que parecia chateada, nada disposta a me ouvir. Mas o que
passou não importava e eu não queria saber como a nereide se sentia ao meu
respeito. Havia problemas maiores a serem resolvidos e orgulho nenhum
podia ser maior do que as soluções.
“Estou em extremo perigo e sei que serei neutralizado em breve. Por
favor, encontre Tritáo. Chegou o momento.”
Eu esperava que Anfitrite tivesse levado o meu último alerta a sério. O
tentáculo poderoso da criatura continuou me apertando a ponto de me
sufocar, o que seria hilário se eu fosse capaz de sentir sufoco físico. Naquele
momento, no entanto, eu fui, como se fosse um humano à beira da morte.
Era aquilo que o Nestor queria dizer? Que eu poderia ser um... mero
humano, se assim desejasse? Mas não era o meu desejo. Jamais pensei a
respeito. Os humanos sempre me pareceram mesquinhos, traiçoeiros e
ignorantes. Não era o ideal de minha própria essência.
A resposta de Anfitrite chegou muito tempo de agonia depois:
“Onde o senhor está? O que aconteceu? Por favor, Netuno, me diga
onde está!”
Tentei enviar outra mensagem, mas a inconsciência estava quase me
dominando. Fiz um maior esforço. Precisava resolver aquela questão antes de
morrer, se é que a morte seria possível para mim. Eu não fazia ideia do que
aconteceria depois que eu apagasse. Poderia nunca mais acordar. Poderia
despertar no momento seguinte. A sensação do desconhecido era ainda mais
desconfortável do que o aperto daquele maldito tentáculo.
Com um pouco mais de força, consegui projetar minha imagem para
dentro do poço. Vi Tritáo escorado em uma rocha na superfície, brincando,
entretido e entediado, com algumas pedras menores. Ele se assustou quando

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me viu.
— Pai? — franziu o cenho, assustado. — Por que está brilhando?
— Não sou eu aqui de verdade, apenas a minha consciência.
Tritáo pareceu ainda mais admirado.
— Que maneiro! Como é que faz isso? Quero aprender!
— Tritáo, não há tempo para ladainhas — falei depressa e com
seriedade, sentindo que a projeção poderia ser encerrada a qualquer
momento. — Escute com atenção o que vou dizer agora.
— Sim, senhor — respondeu de forma entediada, como se já previsse
que eu lhe daria mais uma ordem para ser seguida meticulosamente.
— Você precisa sair do poço e encontrar a sua mãe.
— O quê? — o garoto berrou, com os olhos arregalados ao máximo. —
Acho que estou sonhando, tendo uma miragem ou sei lá o quê — piscou
ligeiramente.
— Fuja para bem longe da ilha imediatamente!
— Mas... o poço está bloqueado. O senhor mesmo bloqueou!
Revirei os olhos, um tanto impaciente.
— Você possui poderes que sequer imagina, Tritáo. Você é meu filho.
Filho do deus de todo oceano. Sair daí sempre foi uma escolha sua. Todos
nós temos escolhas, ainda que não pareça — falei de uma vez, determinado e
me lembrando de minha própria história.
Fazer aquela revelação não era fácil, sabia que Tritáo se decepcionaria
comigo se soubesse que nunca esteve trancado, de fato, mas era preciso.
Tudo pela sua segurança.
— Eu... — balbuciou, estupefato.
— Você é um semideus com poderes mágicos herdados de sua mãe.
Uma espécie rara entre deus e feiticeiro, o que te faz muito mais forte até
mesmo do que eu — confessei de uma vez, resignado. — Agora, saia daí e se

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distancie da ilha o máximo que puder. Anfitrite saberá o que fazer em
seguida.
— Por quê? — Tritáo ficou com os olhos marejados. — Por que isso
agora? Por que me escondeu, durante tantos...
— Não há tempo, filho. Só espero que me perdoe um dia — abaixei a
cabeça, triste de verdade por jamais ter tido a oportunidade de criar laços
fortes com Tritáo. — E... Que proteja o oceano melhor do que eu.
— Pai... O que está havendo?
— Eu o amo, filho. Nunca se esqueça disso.
Aquela havia sido a primeira vez que meus sentimentos por ele foram
confessos. Infelizmente, não havia mais tempo para uma despedida. A
projeção se desfez e me vi de volta aos domínios de Caríbdis, daquela vez,
sentindo-me ainda mais fraco por ter gasto os poucos poderes que me
restavam.
De repente, uma mensagem mental me atingiu em cheio, sem qualquer
aviso:
“Eu te perdoo, com todo meu coração e amor, minha alma gêmea.”
Custei a acreditar na voz que corroeu meu cérebro, mexeu com todos os
meus sentidos e me fez tontear imediatamente.
— Íris! — berrei, e senti lágrimas se formando em meus olhos. Não
dava para acreditar. Não podia ser real. Aquela humana não havia me
perdoado tão depressa. Não tinha a mínima possibilidade.
Certo?
Sem que eu tivesse forças para impedir o pranto de pura emoção que se
anunciava, as lágrimas escorreram e se petrificaram, deixando-me com a vista
escurecida e o coração batendo devagar, prestes a parar a qualquer momento.
Por fim, simplesmente apaguei. Mas devo admitir que perdi a
consciência em um momento em que não sentia dor ou aflição. Só havia a

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alegria. Sendo assim, meu corpo padeceu feliz.

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CAPÍTULO 41
Íris

Implorei ao Deusa do Mar para que navegasse o mais rápido que


pudesse até onde meu coração estava, rezando para que os deuses intervissem
por Netuno. Não sabia o que tinha acontecido, mas eu sabia que havia um
monstro no castelo sob a ilha e que cada vez que ele chorava perdia seus
poderes. Será que em uma última boa ação em prol da vida marinha, o deus
do oceano tinha enfrentado aquele ser perigoso e assustador sozinho?
Não me admirava que Netuno fizesse uma idiotice daquelas. Eu queria
matá-lo, mas também socorrê-lo. Afinal, se ele enfraquecera a culpa era
minha, que o fiz chorar centenas de gotas de seu poder. Será que ele poderia
engoli-las de novo e recuperar sua força de deus? Precisava ter fé, senão
enlouqueceria.
Enquanto navegava, analisei um mapa marítimo que alguém do
escritório do porto me emprestara. Aquilo era impossível de ler! Tinha tantas
informações e traços! Sabia que não precisava dele para navegar com
segurança pelos sete mares, mas ainda assim eu era curiosa e queria saber
onde a ilha se localizava.
Será que existia um app pra smartphone? Puts! Aquilo me lembrou de
que eu estava com meu celular e que podia ligar a localização, e assim eu
finalmente descobriria o misterioso local onde Netuno se escondia. Fiz aquilo
um pouco para passar o tempo, mas o barco foi mais rápido do que da
primeira vez, e, de repente, senti a energia da redoma transpassar meu corpo e
me devolver o movimento das pernas.
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Larguei o aparelho de lado, me ergui de minha cadeira de rodas e, sem
pensar duas vezes, subi na balaustrada e mergulhei no oceano. Eu me livrei
das roupas enquanto sentia minhas pernas virarem cauda e comecei a nadar
em frente, seguindo a direção que a proa do barco apontava.
— Íris, Netuno, castelo, monstro, lágrimas — ofegante, rodando ao
meu redor como um louco, Nestor repetia as palavras, que eu ouvia direto na
minha mente, como se fossem peças de um quebra-cabeça que eu já montara.
— Já entendi tudo só pela sua expressão assustada. Vamos salvá-lo!
— Quase enlouqueci quando percebi que você não conseguia me
entender, mas ainda bem que me atendeu de imediato.
— Me conte como ele está, por favor.
Enquanto nadávamos, Nestor me guiando rumo ao castelo, o golfinho
me disse que Netuno passou três dias chorando, sentado na praia, e que
depois resolveu expulsar o monstro, mas os poderes dele estavam tão fracos
que não tiveram efeito algum contra o bicho asqueroso. E, da última vez que
viu o deus, ele havia sido engolido pela criatura.
— O quê? — surpreendi-me, aparvalhada. — Mas como?
— Coitado! Não é a primeira vez que ele é engolido.
O boto falou sobre o pai dele, Saturno, o deus do tempo, que estava
preso no tártaro, que é a pior área do submundo — tipo o inferno para mim
—, depois de ser derrotado pelo irmão mais novo, Júpiter, e ter vomitado os
outros filhos que engolira, entre eles Netuno, o deus do oceano, e Plutão, o
deus que ficara encarregado pelo reino dos mortos. Cruzes! Que história
macabra! Explicava muita coisa sobre a personalidade volátil do pobrezinho.
— Então, ele pode estar vivo dentro da barriga do monstro? — concluí
depois de seu relato.
— Sim, se ele ainda tiver poder de deus em si.
— Ótimo! Vamos espetar a bunda daquele monstro marinho!

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Nestor não riu, provavelmente tão nervoso quanto eu. Sem receio, ele
nadou à minha frente, apressando-me. Eu estava apavorada, mas não menos
determinada. Não importava a cara feia que fosse enfrentar, Netuno não
merecia ser comido por um monstro e eu faria o que estivesse ao meu alcance
para impedi-lo de definhar até a morte. Não poderia viver sabendo que ele
deixara de existir por minha causa, ou por um monstrengo qualquer. Ele era
eterno e assim deveria continuar.
Sentia minha retina queimar devido ao choro que queria sair, mas não
era hora de pranto. Eu precisava ser forte por nós dois. E para cumprir minha
promessa de voltar para meus pais. Em um gesto automático, levei minha
mão ao peito, mas o colar não estava lá. Sorri, pois sabia que Netuno estava
com ele e fiquei aliviada. Ele ainda tinha um poder consigo. Talvez aquilo o
mantivesse vivo, por mais que tivesse chorado quase todo seu poder. O
movimento fez a pulseira, que eu não tirara, balançar, me lembrando de que
eu tinha mais poder comigo. Ia tratar de usar aquela vantagem para fazer algo
mais além de nadar em direção à morte certa, pelo amor da minha vida.
Avistei o castelo de ouro, mais opaco do que da última vez que o vi.
Parecia que uma sombra negra o envolvia, tornando-o sombrio e assustador.
Engoli em seco e continuei em frente, com meu fiel escudeiro ao meu lado,
tão focado e silencioso quanto eu. Estávamos nos preparando para batalha,
concentrando nossas energias no que importava.
— Devagar, Íris — Nestor orientou, fazendo-me desacelerar. — Vou
sondar o local e verificar a situação antes de decidirmos o que fazer. Fique
aqui.
— Tudo bem — disse, mesmo que não quisesse me separar dele. —
Tome cuidado — pedi, baixinho, com medo do monstro me ouvir.
— Terei, fique tranquila.
Parada a uma distância segura, segundo o golfinho, eu o vi dar uma

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volta completa no grande castelo, verificando janelas e portas, sem realmente
adentrá-las. Em algum momento, ele o fez, causando furor no meu coração.
Era difícil ficar ali sem fazer nada enquanto ele e Netuno estavam correndo
perigo. Porém, logo o boto estava de volta, meio ofegante, por causa da
rapidez com que nadava.
— Netuno está desmaiado e Caríbdis parece que dormiu. Deve ter
ficado indigesta depois de engolir o deus do oceano.
— Vamos tirá-lo de lá — fui dizendo, conforme avançava para o
castelo.
Nestor foi mais rápido e cruzou o meu caminho, me obrigando a parar.
— Calma, Íris. Precisamos ser cautelosos. Aquele monstro tem a
capacidade de engolir toda a água do oceano. Você não vai querer parar em
seu estômago.
Seria a morte para mim. Eu era apenas uma mortal.
— O que você está pensando em fazer?
— Precisamos de ajuda. Alguém que distraia Caríbdis, no caso de ela
acordar de repente, enquanto você resgata Netuno.
— Não! — gritei e tapei a minha boca. O golfinho ficou agitado,
olhando para os lados à procura de perigo. — Você não, Nestor. Precisamos
de alguém que possa ao menos escapar do monstro. Não conhece ninguém?
Ele entortou a cabeça, como se pensasse a respeito, sem dizer nada. No
entanto, uma voz se meteu em nossa conversa, sobressaltando-me.
— Eu vou!
Observei a criatura que surgia em um nado magnífico e a uma
velocidade impressionante. Sua aparência era feroz o bastante para eu ter
certeza de que falava sério e não aceitaria ser questionada. Engoli em seco ao
perceber o seu cajado brilhante.
— Anfitrite, pelos deuses do olimpo! — Nestor comemorou a chegada

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da nereide e tive que fazer o mesmo.
Ela me estendeu a mão ao parar diante de mim.
— Trégua? Por Netuno?
Apertei a mão estendida, sem titubear.
— Já falei que não tenho motivos para te querer mal. Minha palavra
continua valendo, independente de eu ter deixado a ilha.
A feiticeira sorriu, balançando a cabeça uma vez. Em seguida, sua
expressão ficou séria e furiosa.
— Perdoe-me, meu bom deus, mas não posso deixá-lo sucumbir —
sussurrou como uma prece e fiquei sem entender o que ela estava dizendo. —
Escondam-se! — sua voz se tornou mais urgente e dura, em nossa direção. —
Vou atrair Caríbdis para fora do castelo, então vocês entram e tiram Netuno
de lá!
Acenei positivamente, posicionando-me com Nestor atrás de um
rochedo, de forma que pudéssemos ver sem sermos vistos. Anfitrite girou seu
cajado, criando um campo mágico entre ela e o castelo, provavelmente como
uma forma de escudo para se defender da criatura.
— Caríbdis, ouça meu chamado — sua voz soou cadenciada, como um
feitiço, arrepiando os pelos da minha nuca. — Venha ao meu encontro!
Um urro animalesco soou por todo o oceano, fazendo-me estremecer. O
som se repetiu, causando tremor na rocha e no fundo arenoso do mar. Sentia
até mesmo meu coração tremer sobre a força da criatura que despertava.
Primeiro um tentáculo surgiu por uma porta, depois outros. Eram imensos e
eu só conseguia pensar no Kraken, de Piratas do Caribe, que não era uma
referência muito boa. Apavorada, vi quando os membros grotescos se
arrastaram na tentativa de agarrar Anfitrite, que se esquivou como podia,
nadando com velocidade e obrigando o monstro a sair do castelo.
Quando a cabeça da criatura surgiu, temi desmaiar. Havia somente uma

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boca gigantesca, cheia de dentes, até onde se podia ver, conforme ela a
escancarava e grunhia, como se reclamasse de terem importunado seu sono
de beleza. A nereide a atraiu para a direção oposta em que estávamos,
garantindo, assim, nossa segurança. Mal pude esperar que Caríbdis
removesse todo seu corpanzil do castelo para seguir nadando para a entrada
mais próxima, a fim de encontrar Netuno.
Nestor teve que se apressar para me acompanhar, tamanha foi a minha
pressa e angústia. Entramos no castelo silenciosamente. Não tive tempo de
reparar a situação dos objetos e das paredes do lado de dentro, que estavam
piores do que por fora, como já imaginava. Estava escuro também e tive que
forçar as vistas para conseguir enxergar. O golfinho, que habilmente
localizara o deus do oceano pela primeira vez, me guiou diretamente até onde
ele se encontrava.
Assim que o avistei, jogado no chão como se estivesse quebrado e sem
vida, nadei desesperadamente, chocando-me com seu corpo imóvel e
tomando-o em meus braços.
— Netuno — minha voz saiu baixa e engasgada. Precisava conter as
lágrimas para despertá-lo. — Acorde, meu amor. Por favor, abra os olhos.
Ele não me atendeu e, em pânico, me lembrei de que sempre podia
recorrer aos meus conhecimentos terrenos. Tomei seu pulso e tentei manter a
calma, para não confundir sua pulsação com a minha, que estava
completamente descontrolada, latejando na minha têmpora. Respirei com
dificuldade e me concentrei na pele de Netuno e na vida que corria por baixo
dela. Foi difícil, mas consegui perceber uma pulsação fraca e inconstante.
— Você está vivo, meu deus — eu o abracei, beijando sua face
inexpressiva. — Obrigada por resistir até eu chegar. Vou tirá-lo daqui.
Fiz força para mover seu corpanzil, mas não consegui. Mesmo como
sereia, ele ainda era muito pesado e seu estado inconsciente não ajudava.

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Precisaria acordá-lo para que me ajudasse a movê-lo.
— É muito pesado, Nestor, não tenho forças — comecei a chorar com a
minha incapacidade física, ou mesmo a falta de poderes.
— Acalma teu coração, Íris. Ele está despertando.
— Está? — olhando para baixo, vi suas pálpebras tremularem, fazendo
meu mundo inteiro chacoalhar. Ou será que estava tudo se mexendo mesmo
ao meu redor? Não me interessei pelos rugidos de Caríbdis, nem o som
apavorante de algo se partindo, que vinha de cima. Eu me concentrei em
Netuno. — Olhe para mim...
O deus do oceano abriu os olhos lentamente e sorriu ao me ver.
— Pedi aos deuses para trazer você de volta e eles me atenderam.
— Sim, meu amor. Resista, você precisa me ajudar a tirá-lo do castelo.
Ele franziu o cenho e fechou os olhos de novo. Lambeu os lábios, como
se estivesse bem longe dali.
— Íris, vou te esperar — murmurou em delírio. — Meu pensamento
está sempre em você...
Sua cabeça tombou no meu braço e ignorei o tremor violento que se
seguiu.
— NÃO! — gritei, desesperada. — Netuno, fica comigo. Por favor.
Não vá!
Minhas lágrimas se misturaram ao mar e eu acariciei seu rosto sereno,
que parecia em paz em seu último suspiro. O chão tremia. As paredes
pareciam que iam desabar, mas eu não me importava.
— Íris, venha — Nestor me chamou e nem olhei para ele. Todos os
meus sentidos estavam naquela criatura espetacular nos meus braços, que eu
aprendera a amar perdidamente. — Caríbdis está voltando!
— Não! — respondi firmemente, em meio ao pranto. — Não vou
deixá-lo para virar comida de monstro.

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— Você não pode enfrentar o monstro sozinha. Vou chamar Anfitrite!
Passei a mão no rosto a fim de desembaçar as vistas e coloquei Netuno
sobre o piso, delicadamente. Olhei ao redor, à procura de alguma arma, e dei
de cara com o garfo de ouro. Sorri, me sentindo besta por me lembrar de
nossa piada interna naquela hora de perigo. Eu precisava me apegar às coisas
boas para não surtar. Nadei até ele e o agarrei, erguendo-o com facilidade.
Nem era tão pesado quanto parecia.
Eu ainda admirava o tridente quando a criatura surgiu na abertura mais
próxima, com sua bocarra horrenda aberta. Eu me virei para ela, imponente,
erguendo o garfo em sua direção.
— Em nome do deus do oceano, eu ordeno que se afaste, criatura
horripilante!
Caríbdis não me obedeceu, mas permaneci no mesmo lugar, entre
Netuno e o monstro, segurando o tridente com força para que não escapasse
de minha mão.
— ÍRIS! — Nestor gritou, colocando-se entre nós, como se seu
corpinho pudesse me proteger daquele gigante.
Tudo continuou tremendo, como se estivesse prestes a cair sobre nossas
cabeças.
— Caríbdis, ouça minha voz! — Anfitrite chegou naquele momento,
posicionando-se na lateral, a fim de chamar a atenção do monstro. Porém,
quando seus olhos recaíram sobre mim, arregalaram-se de surpresa. — Como
você consegue pegar o tridente?!
Dei de ombros. Não importava. Mas se ela perguntou aquilo,
significava que nem ela podia.
A distração custou caro para Anfitrite. A criatura a agarrou pela cintura
com um tentáculo, levando-a até sua boca enorme, arreganhada. Eu precisava
interferir. Não podia deixar que Caríbdis comesse a nereide. Ela era mãe do

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único filho de Netuno e eu não deixaria Tritáo órfão. Não sem lutar.
Eu me atirei, gritando, contra o corpo melequento da criatura,
afundando o tridente em sua carne molenga. Caríbdis urrou e soltou Anfitrite.
Só que, com outro tentáculo, que não vi chegar porque veio por trás, ela me
jogou longe. O garfo ficou preso na criatura, enquanto eu me chocava contra
uma parede, brutalmente. Senti todo meu corpo de sereia doer e minha cabeça
tontear com a pancada.
Vi o instante em que Anfitrite atacou o mostro com sua magia, sem
usar nenhuma proteção, e os tentáculos se enrolaram em torno dela de novo.
Quis sussurrar minha desaprovação, mas não consegui fazer sair minha voz.
Nestor, com toda a sua estúpida coragem, avançou em direção a Caríbdis,
sendo lançado ainda mais distante do que eu, provavelmente devido ao
tamanho.
Anfitrite grunhia com a boca tampada por um tentáculo, tentando se
livrar do aperto. Nestor estava desmaiado, com a barriga pra cima, muitos
metros longe de mim. Eu precisava reagir, mas o mundo girava e tremia.
Então, aquele era nosso fim. A criatura maligna vencia e estávamos
destinados a morrermos, juntos, no estômago de Caríbdis, por amor ao deus
do oceano.
Apertei os olhos, fazendo força para não perder a consciência, nem a
esperança. Precisava continuar lutando, por mais loucura que fosse.
— MÃE! ÍRIS! NESTOR! PAI! — a voz que berrou parecia um trovão
e feriu meus tímpanos.
Movi a cabeça na direção do som a fim de ver quem era, apesar de
reconhecer de imediato. Tritáo ofegava e parecia metros maior. Havia uma
força tão grande nele que chegava a emanar como luz. Eu sorri e estendi a
mão, inutilmente. Ele parecia perdido, sem saber o que fazer. No entanto,
Caríbdis estava ligada no novo intruso e avançou em sua direção, como se

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fosse um banquete delicioso. O menino-peixe conseguiu se esquivar, no
entanto, o espaço era limitado demais para se safar.
— Tritáo, use seus poderes! — consegui falar e ele me ouviu. Eu nem
sabia que ele possuía poderes, mas precisava confiar no filho de um deus.
— Como? — ele olhava de um para outro, sem saber quem socorrer
primeiro.
— Do mesmo jeito que você fez para chegar aqui! — incentivei-o a
confiar em si mesmo, desconfiando que ele desobstruíra sozinho a gruta a fim
de chegar ao castelo.
Ele ergueu as mãos e as apontou para Caríbdis, ignorando a
aproximação da criatura. Seu rosto se torceu em fúria e força, e ele emitiu um
grito ao mesmo tempo em que uma onda de poder atingia o monstro,
empurrando-o metros para trás. Tritáo se espantou com sua própria força,
mas continuou afastando a criatura, até que ela saísse do castelo.
Antes que Caríbdis saísse, entretanto, eu me levantei e nadei até o
tridente, arrancando-o de sua carcaça.
— Tritáo! — chamei e lancei o garfo em sua direção.
Ele teve que parar de atacar o monstro para pegar o tridente, mas voltou
com força total, antes que Caríbdis conseguisse reagir. Corri de volta para
Netuno, a fim de protegê-lo com meu corpo. Precisava pensar em algo que
pudesse ajudar Tritáo. Ainda que fosse poderoso, não parecia que era capaz
de derrotá-lo, só de afastá-lo, mas não para sempre.
— Use sua autoridade de divindade, Tritáo — continuei ajudando como
podia. — Faça como seu pai faria!
Ele balançou a cabeça afirmativamente, e berrou a ordem:
— Volte para as profundezas, onde é seu lugar, e nunca mais volte
aqui! — apesar da força descomunal que o menino-peixe emanava, não surtiu
o efeito esperado.

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E como a criatura ainda segurava Anfitrite, ele lançou uma onda de
poder para o tentáculo que a sufocava, antes que a criatura fugisse. A nereide
flutuou desacordada, apavorando Tritáo. Nestor acordou naquele momento e
nadou até ela.
— Não se preocupe, Tritáo. Vou cuidar dela. Vá derrotar a criatura que
machucou seus pais.
O menino estava confuso com seus poderes. Será que ele nunca
aprendeu a usá-los?
— Mas como, Nestor? E por que devo usar os poderes do tridente do
meu pai?
— Ele já os perdeu, Tritáo, não há mais o que fazer a respeito. Conjure
o oceano para si e você conseguirá dominar Caríbdis.
Aquele papo me deixou chocada, além de triste e destruída. Netuno
havia ido embora. Não adiantara de nada me abalar do Rio até o
desconhecido para impedir que ele morresse. O deus do oceano perdera seu
poder e se tornara somente um corpo inerte em meus braços. Chorando de
novo, descontroladamente, vi Tritáo encher o peito de ar, mesmo que não
precisasse, fechar os olhos e dizer:
— Eu, Tritáo, filho da nereide Anfitrite e do deus do oceano Netuno,
conjuro o poder sobre o mar para mim!
Depois de um violento barulho e tremor, houve um segundo de
silêncio. Tritáo continuou concentrado e eu na expectativa do que se seguiria.
Como chuva debaixo do mar, as lágrimas de Netuno saltaram sobre o
menino-peixe, causando uma explosão toda vez que uma se chocava contra o
tridente. O garfo, por sua vez, brilhava mais e mais, tornando difícil olhar.
Senti o exato instante em que a pulseira se desfez do meu pulso, atraída pela
invocação do novo deus do oceano, e a gota no peito de Netuno também
seguiu o mesmo caminho.

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Um brilho intenso me cegou totalmente e fui obrigada a fechar os
olhos. Quando os reabri, Tritáo havia crescido tanto quanto Caríbdis, e estava
com uma aparência semelhante à de Netuno, quando me mostrou sua
verdadeira forma, só que jovem e risonho.
— Consegui! — disse, com uma voz de trovão que não combinava com
seu estado de alegria.
Eu sorri para ele.
— Agora, vá acabar com aquele monstro de uma figa, deus do oceano
— ordenou Nestor, em tom de brincadeira.
Tritáo ficou sério e se virou para a entrada em que Caríbdis ainda
estava, já que pretendia atacar novamente, e talvez a luz a tenha impedido.
Ele apontou o tridente, que brilhou com fraqueza, como se respondendo ao
movimento do novo deus do oceano, e disse em uma voz imperiosa:
— Que seja feita a vontade do deus do oceano: desapareça!
Em um raio de luz, que queimava como fogo, a criatura urrou e
esperneou, até desaparecer como mágica. Foi tão depressa que mal pude
acreditar.
Nestor fez loopings de alegria ao redor de Tritáo.
— Parabéns, Tritáo! Você será um grande deus.
— Para onde você o mandou? — eu quis saber.
— Para junto das criaturas malignas, como ela.
Sorri, orgulhosa, para o menino que se tornava homem rapidamente.
Porém, bastou um olhar em direção à sua mãe para ele voltar a ser um garoto
amedrontado.
— Mamãe! — resfolegou, nadando em seu auxílio.
Olhei com tristeza para aquele cenário pós-guerra, aflita e desorientada.
Encarei o rosto plácido de Netuno, já não um deus, só uma criatura
mitológica. Acariciei seu rosto, deixando as lágrimas caírem de meus olhos

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outra vez. Cantarolei a canção de Cássia, sentindo meu coração partido e
destroçado. Eu me consolei com o fato de que ele estava onde deveria estar e
havia feito o que seu coração mandou ao tentar salvar as criaturas marinhas
de Caríbdis. Devia ficar orgulhosa dele e não arrasada.
Mas eu estava muito pior do que quando o abandonei. Naquele instante,
eu entendi tudo e ao mesmo tempo não entendia nada. Só queria que ele
tivesse a oportunidade de escolha, como eu tive. Chorei, chorei e chorei,
sendo assistida por aquela família pequena e diferente, e por Nestor, o
golfinho mais fofo e inteligente que tive o prazer de conhecer.
Um novo tremor aconteceu e ficamos assustados, nos dando conta de
que não era Caríbdis.
— O que foi isso? — perguntei, apavorada de novo, abraçando o corpo
de Netuno.
— Tem alguma coisa ruindo. Vamos sair daqui!
Tritáo carregou o pai sozinho, em seus braços de deus. Fomos para fora
do castelo e percebemos que a ilha estava mais próxima do que deveria.
Estávamos bem no fundo do mar.
Arregalei os olhos ao perceber o que se passava.
— A ilha está afundando! — berrei, puxando Nestor pela barbatana,
para o mais longe possível dali.
Porém, não consegui me mover por muito tempo. Meu oxigênio faltou
e comecei a sufocar. Minha cauda sumiu e virou pernas, que pararam de se
mexer. Apenas ouvi alguém gritar:
— A magia que esconde a ilha também está ruindo! Tritáo, faça alguma
coisa!
Apaguei antes que o novo deus do oceano sequer se movesse.

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CAPÍTULO 42
Netuno

Toda a minha existência foi rememorada em um átimo, como um


prelúdio, uma preparação para o meu iminente fim. Sempre soube que minha
ingenuidade e fraqueza emocional culminariam em uma tragédia sem
precedentes. Havia uma forte intuição que jamais me largava, por este
motivo, depois da decepção com Cássia e de cair em profunda amargura, tive
a brilhante ideia de procriar; uma forma de fazer com que os sete mares
jamais ficassem desprotegidos, e Anfitrite concordou de bom grado.
Tritáo veio para o mundo com um objetivo bastante definido; cuidar do
oceano quando eu não fosse mais capaz de fazê-lo. Era certo que havia
passado eras sem protegê-lo como deveria, ainda assim, insisti para que o
meu filho estivesse pronto, educado, ciente de seu dever. Adiei ao máximo a
hora da verdade, por medo, por covardia, por imaturidade. Talvez, por todos
esses motivos reunidos.
Não tive tempo suficiente para treiná-lo como um semideus. Mal tive
para amá-lo como todo pai deveria fazer. Além disso, ainda criança, Tritáo
demonstrou possuir poderes que nem eu e nem Anfitrite entendia. Sua
mágica chamou a atenção de diversas criaturas das trevas — o que poderia
ser o principal motivo da aparição de Caríbdis sob aquela ilha —, e perdi as
contas de quantas vezes precisei salvá-lo da morte certa. Tritáo era tão
poderoso que todos os seres eram capazes de sentir seu poder onde
estivessem, mas nem sempre isso significava uma vantagem. Seu poder,
enfim, precisou ser neutralizado.
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O poço era o lugar mais seguro para deixá-lo, por mais solitário e
tedioso que parecesse. Embora eu não tivesse sido um santo, jamais
cometeria uma crueldade com minha prole apenas pelo prazer de trancafiá-lo.
Muito pelo contrário. Não me animava deixá-lo tão longe do mar, seu
verdadeiro habitat. Infelizmente, precisamos parar o poder que ele exercia,
escondê-lo de tudo e todos, para que alguma coisa assombrosa não
acontecesse tanto com ele quanto com a harmonia do oceano.
Com o passar dos anos, Tritáo caiu em esquecimento. Sua memória se
transformou em mito, o mito virou lenda, até que nada mais se ouviu falar
sobre ele; uma criatura centenária que era metade deus, metade feiticeiro. A
redoma criada em volta da ilha nada mais era do que uma das tantas maneiras
de fazer seu poder parar de ser emitido com tanta força. A minha desatenção
acabou permitindo a entrada de Caríbdis, e eu com certeza jamais me
perdoaria por ter colocado todos em perigo.
Senti uma brisa leve soprar em meu rosto. Estranhei o acontecimento,
pois não esperava que ventasse onde quer que fosse o mundo para onde os
deuses iam quando, porventura, pereciam. Eu conhecia pouquíssimas
histórias de divindades que haviam sido “neutralizadas”, palavra escolhida
para traduzir a morte de um ser divino, já que, em teoria, e de certa forma em
prática também, um deus era e sempre seria imortal.
Aspirei o cheiro de maresia e me senti em casa, feliz porque ao menos
poderia ter aquele odor em minhas narinas e me lembrar do quanto amei e
sempre amaria o oceano. Abri os olhos devagar, e a primeira imagem foi de
um céu extremamente azul, com poucas nuvens espaçadas. Podia sentir os
raios solares sobre o meu corpo e abri um largo sorriso. O paraíso dos deuses
era um lugar perfeito. Eu não precisaria de mais nada para tentar reencontrar
a paz perdida no mundo terreno.
— Íris... — balbuciei sem refletir antes, como se meus lábios

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estivessem com aquele nome preso e precisasse ser solto antes de qualquer
coisa.
— Oh, graças aos deuses! — ouvi a voz inconfundível de Anfitrite;
melodiosa e suave. Franzi o cenho. Ela não deveria estar ali, deveria? Será
que a nereide também havia morrido? — Ele acordou!
— Pai! — Tritáo surgiu no meu campo de visão, bloqueando o céu azul
que eu contemplava. Fiquei tão confuso que, por longos instantes, não
consegui ter qualquer pensamento coerente. — Pai, o senhor está bem?
Consegue me ouvir?
— Tritáo... — ergui uma mão e toquei o seu rosto. Parecia muito real.
Algumas mãos me ajudaram a sentar, e me vi em uma praia tranquila,
com pernas humanas trêmulas. Eu não tinha muita ideia do que havia
acontecido, mas eu parecia, apesar de tudo, bastante vivo.
— Caríbdis... — murmurei, ainda muito admirado. Olhei ao redor mais
uma vez. Não havia sinal de mais nenhuma criatura naquela praia. — Íris...
— Caríbdis foi derrotada — Anfitrite falou, sorrindo. — Nosso filho a
derrotou bravamente.
Olhei para Tritáo, que sorria, orgulhoso. Notei que o tridente dourado
jazia ao seu lado, sobre a areia. Ele estava muito diferente de todas as vezes
que o tinha visto, mas, a princípio, não soube identificar o que poderia ser.
Foi então que percebi uma tremenda ausência em meu espírito: o oceano não
mais estava conectado a mim, ainda que eu ainda sentisse sua energia
vibrante. Tentei, mas não consegui me conectar com o mar por completo,
com as criaturas, e muito menos saber o que pensavam e sentiam.
Encarei Tritáo mais uma vez. Meus olhos se encheram de lágrimas e as
soltei sem pudor. Para a minha surpresa, elas não petrificaram.
— O deus do oceano — sussurrei, segurando a face do meu filho. A
compreensão de que Tritáo havia, finalmente, se tornado exatamente quem eu

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sempre quis que fosse me deixou bastante emocionado.
— Netuno... Quero dizer, pai, eu não sei direito o que fazer.
Dei de ombros.
— Saberá, não se preocupe. Depois de sua primeira vistoria, os sete
mares atenderão aos seus comandos e tudo... — apontei para frente, para a
vastidão de água salgada diante de nós. Não ousei enxugar minhas lágrimas.
— Tudo o que pertencer ao oceano será completamente seu.
— E o senhor? — Tritáo questionou, bastante assustado e preocupado.
— A ilha já era. O que o senhor vai fazer?
— Eu? — dei de ombros. — Absolutamente nada — sorri. — Viverei
como um tritão comum, exceto que nenhum jamais viveu tanto quanto eu.
Nestor estava certo. Um deus sem poderes não era um deus, e os meus
foram removidos por minha culpa. Não havia o que lamentar, no entanto. Eu
me sentia livre pela primeira vez em toda a minha existência. Todo aquele
poder me consumia, nunca havia me feito bem de verdade. Naquele instante,
percebi que o que tanto me amedrontava era o descontrole que o poder divino
me propiciava.
Um minuto de silêncio foi feito, em que apenas o cantar de alguns
pássaros pôde ser ouvido. Com os sentidos todos recobrados, ergui-me,
ficando de pé. Apenas Anfitrite possuía pernas, notei que Tritáo continuou
com sua cauda, certamente porque a mãe não lhe presenteara com o feitiço,
para que ele jamais fugisse do poço.
Caminhei até que meus pés sentissem a proximidade da água. Não a
toquei porque não queria ser transformado naquele momento.
— Onde está Nestor? — lembrei-me da criaturinha, a última que eu
tinha visto com sobriedade, antes de ser engolido, e me preocupei. Virei-me
na direção de Tritáo e Anfitrite, que permaneceram inertes, apenas me
observando com atenção.

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— O senhor demorou a acordar. Íris precisou voltar para não preocupar
os pais, mas prometeu retornar logo. Nestor foi com ela, para garantir
segurança em seu trajeto.
Meu cérebro sofreu um baque tão profundo que ajoelhei sobre a areia,
completamente sem forças.
— Íris? — balbuciei, sôfrego. — Ela... veio?
— Sim, e lutou bravamente para salvá-lo — Anfitrite falou. Não
percebi resquício algum de ciúmes, inveja ou qualquer sentimento
contraditório à suavidade de sua voz. Mesmo que tivesse, talvez eu não seria
capaz de identificar, pois estava tonto e bastante incrédulo.
— Ela... voltou? — sussurrei, voltando a chorar. Eu não me importava
em demonstrar tanta vulnerabilidade, não mais. O antigo Netuno teria
vergonha de chorar na frente do filho. Naquele momento, queria que ele visse
a cena e percebesse que um deus também podia ter sentimentos. — Voltou
por mim?
— Sim — Anfitrite sorriu e se levantou. Andou até mim e se ajoelhou à
minha frente. — Ela o ama verdadeiramente, Netuno. Possui uma coragem
que poucos humanos são capazes de possuir. Não a perca.
Se fosse possível, eu teria ficado ainda mais confuso com as palavras
da nereide.
— Não a deixe ir, pai — Tritáo completou. — Vocês se amam.
— Mas... Ela fez uma escolha. Talvez tenha voltado porque sentiu que
eu estava em perigo. Íris é incapaz de negar ajuda — balancei a cabeça,
aquiescendo, concordando com minha própria teoria. — Mesmo que me
odiasse, ela tentaria me salvar, porque é um ser bom em sua essência.
Era aquilo. Íris, de fato, havia retornado, não tinha sido uma alucinação
de minha mente. Mas não significava que me quisesse de volta, ainda que
tivesse me perdoado diante de um momento assustador. Diante da morte

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iminente, o perdão é muito mais fácil. Prova disso era Íris não estar presente,
era ter voltado para os seus pais porque, no fundo, jamais largaria a sua
realidade, sua humanidade.
Além do mais, eu sequer sabia quem eu era. Ainda não. Como
permitiria que alguém como Íris ficasse comigo, que nada tinha a oferecer?
Não estava certo. Nossos caminhos se separaram e não havia muito a ser
feito. De minha parte, sabia que nutriria aquele amor até que o acaso me
neutralizasse. Em algum momento aconteceria, já que não tinha mais
poderes.
Senti um leve tremor, quase imperceptível, sob meus joelhos. Olhei
para trás, aquele era um chamado, eu sabia reconhecê-lo perfeitamente.
Certas coisas jamais mudariam. Um pedaço do deus do oceano sempre me
pertenceria, ainda que eu não estivesse no comando. Olhei para Tritáo.
— O oceano... está me chamando — falou, assustado. — Posso senti-lo
em minhas veias, como se fosse sangue. É incrível!
Sorri para ele.
— Jamais o deixe esperando, meu filho — aconselhei seriamente.
Tritáo rastejou até alcançar a quebrada das ondas. Parou e se virou para
nós.
— Sinto que nasci para isso. É estranho?
Balancei a cabeça em negativa.
— Você vai redescobrir o seu lugar. Aprenderá a amar o oceano, as
criaturas e a ter senso de responsabilidade. Só me prometa uma coisa,
Tritáo... — encarei-o com seriedade, e o rapaz parecia bastante atento. — É
uma grande responsabilidade cuidar dos mares, mas soa tão natural que vai
gostar. Não estrague tudo com bobagens. Seja um deus melhor do que eu fui.
— O senhor já me disse isso.
Assenti.

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— Não quero que se esqueça disso. Repetirei o tempo todo.
Ele sorriu e rastejou ao meu encontro. Com o corpo molhado, me
abraçou fortemente. Não evitei chorar em seus braços, agora fortes de um
jeito especial. Tritáo emanava graça, imponência, divindade.
— Também te amo, pai — murmurou em meu ouvido e deu as costas,
mas, antes, trocou olhares e sorrisos com a mãe. Fiquei tão trêmulo depois de
sua declaração que chorei ainda mais. Achei que Tritáo fosse mergulhar de
uma vez, mas hesitou e voltou a me encarar. — O senhor sempre nos terá,
sabe disso, não é?
— Sei, sim — sorri e chorei ao mesmo tempo.
— Faça a escolha certa, pai. Seja feliz. O senhor merece.
Soltei um intenso suspiro. A minha felicidade era a última coisa no que
eu pensava naquele instante. Não importava. Não fazia questão de ser feliz,
só queria que aquele garoto fosse. Eu estava com medo, obviamente, mas ele
precisava crescer, amadurecer, viver.
— Tritáo, sobre o poço...
— Relaxa, coroa! — ele fez um gesto com a mão. Estava tão
descontraído que me permiti rir. Não sabia de onde tirava aquelas expressões
contemporâneas. — Sei que foi pelo meu bem. Além do mais, não fiquei tão
solitário assim. Nestor me distraía pra caramba!
Primeiro, fingi chateação, depois soltei uma gargalhada. Estava tudo
explicado.
— Eu sabia que aquele golfinho de uma figa invadia o poço às
escondidas!
Tritáo deu de ombros, ainda rindo, e, por fim, mergulhou rumo ao seu
destino: o oceano. Olhei para o céu e fiz um apelo aos deuses. Pedi com
fervor para que protegessem o meu garoto e a sua nova sina.
Anfitrite repousou sua mão sobre o meu ombro. Encarou-me de perto.

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— Protegerei nosso filho por toda a eternidade, o senhor sabe disso,
não sabe? — murmurou suavemente, como se cantasse.
Assenti, aliviado.
— Por favor, Anfitrite. Cuide dele.
Ela sorriu e caminhou com desenvoltura até ser tomada por uma onda
mais forte. Não teceu mais nenhum comentário, e nem precisava. Sabia que
aquela não era uma despedida, por mais que parecesse. O mar era o meu
verdadeiro lar, e era para lá que eu deveria ir também. No entanto, permiti a
mim mesmo ficar um pouco mais na beira da praia.
Pensei em muitas coisas, mas a norteadora de minhas reflexões era a
dona de um par de olhos claros maravilhosos: Íris. Suspirei de amor, com o
peito latejando de saudade. Aquele sentimento queimava os meus sentidos,
de forma que o coração acelerava e eu já não conseguia mais me manter
tranquilo, paciente.
Entretanto, não sabia dizer se estava triste. Talvez os acontecimentos,
incluindo o renascimento proporcionado pelo estômago daquele monstro,
tivessem me deixado conformado. Ou, talvez, maturidade significasse
compreender que nem sempre podemos ter o que queremos. E tudo bem. Eu
não me arrependia de ter passado vários momentos intensos com Íris, sendo
assim, melhor ter as lembranças de seus olhos sobre mim do que não ter
nada.
Precisava me contentar.
— Está pensando na morte da bezerra? — uma voz estranha surgiu do
mar. Não identifiquei porque tive certeza que nunca a ouvi antes. — Nunca vi
uma bezerra, acredita? Dizem que é um filhote de vaca.
Franzi o cenho ao admirar uma figura masculina caminhando em minha
direção, com o corpo tomado por algas marinhas, os cabelos amarelados e
enormes soltos ao vento. Eu não fazia ideia de quem era aquela bela criatura,

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mas emitia um poder impressionante, dava para senti-lo.
Eu me pus de pé, ainda confuso.
— Não me olha desse jeito, Netuno — revirou os olhos e riu. —
Depois de ter te aguentado por um tempão, vai dizer que não me reconhece?
— Hm... — cocei a cabeça, tentando vasculhar minha antiga memória
de deus. Não havia nada parecido com o sujeito. — Desculpe-me, não
lembro. Estou sem meus poderes, então...
— Você está muito estressado! — ele parou na minha frente. — Com
essa cara amassada, precisava relaxar mais. Procriar é uma boa ideia. Passei
anos procriando com “golfinhas” por sua causa!
Meu cérebro sofreu um baque.
— Nestor? — berrei, estupefato.
— Finalmente! — ele sorriu e me deu um abraço. Não correspondi
porque simplesmente não pude acreditar no que estava acontecendo. A
criatura deu uns tapinhas nas minhas costas. — Não se assuste, a minha
essência é a mesma do golfinho que insistia em ser seu amigo, mesmo sem o
senhor merecer muito. Mas, quer saber? Aprendi a amá-lo profundamente.
Foi uma experiência... reveladora. Vou sentir saudades, com toda certeza.
— Quem é você? — Eu ainda não estava entendendo nada.
— Sou o Nestor! — abriu os braços teatralmente e depois caiu na
gargalhada. Eu a associei imediatamente aos esguichos do golfinho. As
coisas não poderiam ficar mais estranhas. — Tudo bem, tudo bem, meu nome
verdadeiro não é Nestor, mas isso é irrelevante.
— Estou confuso! Você é um golfinho? — continuei coçando a cabeça.
— Ouvi algumas histórias de humanos se transformando em botos, mas
nunca o contrário.
— Não sou humano, meu bom deus — ele se curvou diante de mim,
mas logo voltou a erguer-se. — Apenas tentei salvá-lo — apontou para o

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mar. — Ele é lindo, misterioso e mágico demais para ser comandado por um
deus com a autoestima baixa, não acha?
— Por favor, explique-me quem você é e o que está falando! — pedi
mais uma vez. Quanto mais eu pensava, menos lúcido me sentia. Será que, no
fim das contas, eu realmente tinha morrido e estava tendo visões?
— Eu sou o princípio, Netuno, a origem. O rio, o mar, a água, a fonte.
Abri a boca, estarrecido ao máximo nível. Não podia ser verdade.
— Oceano... — murmurei.
— Isso aí! — ele riu e deu um tapa no meu ombro. Que criatura maluca
era aquela? Não era possível que o mais poderoso titã de que se teve notícia
estava bem na minha frente. — Como o senhor está?
— E-Eu... n-não... sei.
Estava difícil digerir a informação. Aquele ser era tão poderoso que eu
não sabia o que fazia ali. Uma divindade antiga, que estava sempre conectada
a mim desde que o oceano me foi designado. O Oceano era difícil até mesmo
de entender, só sabia que era palpável e maleável ao mesmo tempo, como a
força da natureza. E, definitivamente, não fazia ideia de que se materializava
em uma forma aparentemente humana. Muito menos que poderia viver como
um simples e divertido golfinho.
Ele deu de ombros.
— Você estava triste e confuso, Netuno, eu precisava fazer alguma
coisa. Eu te protegi o tempo todo, te aconselhei e fui seu amigo — explicou,
como se finalmente tivesse entendido que eu precisava de respostas
concretas. — A princípio, queria apenas proteger o oceano, mas depois...
Você se tornou importante pra mim. Criei laços afetivos e fiquei. Depois,
veio a Íris e tudo fez sentido.
— Você... — sussurrei, embasbacado. — Não pode ser. Você poderia
ter derrotado aquele monstro facilmente!

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Oceano soltou uma sonora gargalhada.
— Sim! Não se preocupe, jamais permitiria que Caríbdis o
neutralizasse ou machucasse alguém. Apenas fiz o que precisava ser feito,
Netuno. Tritáo precisava sair daquele poço. E você... — apontou para mim.
— Precisava ser liberto daqueles poderes para finalmente escolher a coisa
certa.
— Coisa... certa?
A criatura revirou os olhos mais uma vez, impaciente.
— Íris.
— O que Íris tem a ver com isso?
— Como assim? — Oceano berrou, animado. — Tem TUDO a ver. Ela
é a sua alma gêmea, seus destinos se cruzaram, o amor foi despertado em sua
mais profunda forma. Vai abrir mão disso? Vai deixá-la ir? Pelo amor dos
deuses do Olimpo, não seja burro!
Tive vontade de ordenar que não me xingasse novamente, mas me
contive. Não podia desrespeitar aquela entidade poderosa, seria sacrilégio de
minha parte. Eu lhe devia tanto respeito que era imensurável.
— Olha, eu ainda estou extremamente confuso.
— Digere, Netuno! E, depois que digerir, tome a sua decisão. Meu
dever já foi cumprido.
— Seu dever?
— Sim. O oceano entrará em harmonia e os meus amigos estão a um
centímetro de serem felizes. Só depende deles.
A criatura virou as costas e andou na direção do mar. Balancei a cabeça
em negativa. Se eu não tivesse acompanhado a sua transformação, jamais
acreditaria que tinha sido real. Mas aconteceu. O ser, assim que deu o
primeiro mergulho, voltou à tona em uma nova forma: a de golfinho. E não
era um animal qualquer, mas o meu melhor amigo.

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Meus olhos embaçaram.
— Nestor...
— Meu bom ex-deus, foi ótimo passar os últimos duzentos e trinta anos
ao seu lado! — Finalmente reconheci aquela voz engraçada. Deixei algumas
lágrimas escaparem e corri para abraçar Nestor com força. O bicho se
contorceu e remexeu, correspondendo ao abraço do seu jeito. — Nem
acredito que não desconfiou. Golfinhos não vivem tanto!
— Eu não me atentei de modo algum! Achei que tivesse sido menos
tempo.
— Perdeu muito tempo olhando para o próprio umbigo, camarada, é
hora de deixar os velhos costumes.
Assenti, sorrindo. Sempre sincero demais. Tão verdadeiro que chegava
a me irritar. Porém, daquela vez, só consegui sentir paz. Nestor soltou um
esguicho e nadou ao meu redor.
— Para onde você vai? — perguntei, pois, de repente, percebi que não
queria ficar sem ele. Eu amava aquele golfinho estúpido. Ou melhor, aquele
titã descontraído.
— Gostei dessa coisa de ajudar o deus do oceano — ele respondeu,
todo serelepe. — Tritáo vai precisar de mim, não vai?
— Com toda certeza. E eu também, Nestor.
— Não, não, amigo. Você precisa escolher. Apenas isso! Lembre-se de
que o senhor pode ser quem quiser! — Ele deu uns rodopios e gargalhou. —
Tchauzinho! Certamente o verei em breve, em outras condições, espero!
Dito aquilo, Nestor mergulhou e sumiu, deixando-me sozinho e
confuso.
Todos me falaram sobre escolhas.
E foi observando o mar, atentamente, que fiz a minha.

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EPÍLOGO
E viveram felizes para sempre...

Não, espera. Não é assim que essa história termina.


O que é felicidade, afinal? É um estado de êxtase, que preenche o corpo
e a alma, e nos deixa em paz. Como Íris nos mostrou, feliz é aquele que se
ama e se aceita, compreendendo suas forças e fraquezas. Feliz é aquele que
vive e não apenas existe, aproveitando o que a vida tem de bom e de ruim a
nos oferecer. A Fortuna traça nossos caminhos, mas somos nós que
escolhemos por qual percorrer. Porque o importante não é o fim, mas a
jornada. É através dela que aprendemos, nos fortalecemos e colecionamos
lembranças, que moldarão toda a nossa existência.
O final é apenas uma nova encruzilhada, repleta de novos caminhos a
seguir.
E o que é o “para sempre”? Netuno diria que é a imortalidade, mas já
sabemos que ele passou a ser mortal, não como Íris, mas ainda um ser com
começo, meio e fim, ao menos nesse plano. O “para sempre” nada mais é que
o espaço infinito compreendido no aqui e agora. É o momento em que
tomamos uma decisão capaz de mudar os rumos de nossa vida. É o instante
em que sorrimos, choramos, nos entregamos e nos afastamos. É também o
estado reflexivo que precede a escolha.
O “para sempre” nada mais é do que pedacinhos infinitos do presente.
O futuro é volátil e está em constante construção e desconstrução,
sendo moldado pelas decisões que tomamos ao longo da vida. É como ter
segundas chances multiplicadas ao infinito. O passado só serve para consulta,
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pois não pode ser alterado. Mas é uma coisa boa ter um arquivo em nossa
mente, onde está catalogada cada escolha que fizemos durante nossa jornada.
E o que é mais importante que estar feliz, do que sonhar com uma felicidade
que pode ou não vir? Nada.
E o que é o nada senão a ausência de tudo isso?
Netuno estava cansado de apenas olhar a vida passar diante de seus
olhos. Ele tinha sede, uma sede que nunca sentiu antes de perder seus
poderes. Sede de viver, fome de experimentar, desejo de amar. Com Íris, ele
percebeu que o amor não era apenas sentimento, mas, principalmente, a
expressão dele através de gestos, bondade e perdão. Por isso, a deixara ir.
Permitira que sua alma gêmea voltasse para o lugar ao qual pertencia,
enquanto ele reaprendia a viver a nova vida que ganhara. Não era mais um
deus, porém, ainda era um tritão, um ser que sempre teria o oceano como lar.
No entanto, não demorou muito para Netuno compreender a dádiva que
recebera.
Do outro lado dessa história está Íris, uma jovem determinada, que se
amava e se aceitava como poucos, e que acreditava em si mesma com uma
coragem invejável. Era diante das dificuldades que ela mostrava sua força,
inquebrável, mesmo quando a solução parecia impossível. Sua fé movia
montanhas e abria um caminho seguro no mar, se fosse preciso. Não sabia o
que era desistir, mas conhecia o peso de fazer escolhas que considerava
corretas. Só tinha seu coração para se guiar e os ensinamentos, passados ao
longo de gerações, até alcançá-la.
Íris se angustiara por não ver Netuno de olhos abertos, após o fim de
Caríbdis. Pensara que o pior havia acontecido. Porém, Anfitrite a
tranquilizou, depois de colocá-la em segurança no barco, dizendo que o tritão
estava vivo, só fraco demais para se manter acordado. Ele precisava
descansar e recuperar as forças. Nossa guerreira entendeu, mas como tinha

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uma promessa a cumprir, voltou para seu lar, que compreendia o espaço do
continente Americano denominado Rio de Janeiro.
A nadadora olímpica sempre teria o Deusa do Mar para encontrar
Netuno quando quisesse, e isso amenizava a distância enorme entre eles.
Como a humana curiosa que era, descobriu através de seu aparelho sem fio,
que a ilha afundada do antigo deus do oceano — ela riu quando a história de
Atlântida surgiu em sua mente —, assim como o castelo de ouro no fundo do
mar, estavam localizados no centro do que os mortais chamam de Triângulo
das Bermudas. Íris gargalhou sozinha ao constatar o quão óbvio aquele local
era.
“Só a fúria de um deus fora de controle podia causar todos aqueles
fenômenos sobrenaturais e inexplicáveis. Como não pensei nisso antes?”
Não havia muito que aprender, no entanto, Íris aprendeu. Precisou
passar por um acidente traumático para perceber que o relacionamento no
qual estava não era real. Precisou ser sequestrada por um deus para descobrir
que contos de fadas são possíveis. Precisou se tornar um ser mitológico para
valorizar sua humanidade. Precisou amar uma criatura perdida para redefinir
a si mesma. Precisou deixar Netuno para trás para descobrir que ele era sua
alma gêmea. Precisou salvá-lo uma segunda vez para lhe dar a mesma chance
de escolha que tivera. E precisou se manter longe para não interferir no seu
direito de decidir os rumos da própria vida.
Seguindo sua rotina, Íris voltou à fisioterapia, aos treinos e às
competições. E foi exatamente em uma delas que o avistou na plateia,
sorrindo e aplaudindo-a, enquanto observava a arquibancada em busca dos
rostos orgulhosos de seus pais. Do pódio, segurando um buquê de flores e
carregando a mais nova medalha de ouro no pescoço, a atleta sentiu o
coração saltar no peito, em reconhecimento daquele que o faria bater
descompassado pelo resto de seus dias.

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Seu corpo inteiro reagiu à presença dele. Até suas pernas mortas.
Quando se encaminhou ao vestiário, o encontrou sentado em um banco,
mais lindo que nunca, vestido com roupas comuns. Ele parecia muito à
vontade na própria pele, como se caminhar entre mortais fosse algo
corriqueiro. Mas Íris sabia que não era.
“Netuno, o que faz aqui?”, perguntou, mais para puxar assunto do que
curiosidade.
Seu coração metralhava o peito pelo lado de dentro e a esperança se
fortaleceu, feito o material mais indestrutível da face da Terra.
“Fiquei sabendo que você ajudou a expulsar Caríbdis dos meus
domínios, apesar do perigo que correu. Vim agradecer e retribuir a visita, já
que estava desacordado e não tive oportunidade de fazê-lo, naquele
momento.”
Mal sabia Netuno que Íris tinha a arma mais poderosa do universo
dentro de si.
“Não precisa me agradecer por algo que fiz movida, unicamente, pelo
meu coração.”
Íris jamais pensou naquela possibilidade. Sua mente racional havia
aceitado que Netuno era fruto do oceano, e o fato de ter pernas lhe escapara
como um detalhe sem importância.
“Sua bondade é admirável, Íris. É uma das minhas coisas preferidas
em você.”
Netuno e a força da natureza que era seu olhar sobre ela, causaram-lhe
rubor na face. Ele tinha uma intensidade de falar e agir que muito atraía Íris.
“Você parece diferente...”, ela constatou depois de alguns segundos de
silêncio.
“Eu me sinto diferente”, ele admitiu, ainda que se sentisse
estranhamente natural, vestindo aquelas peles confortáveis, que os humanos

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chamavam de camiseta e short. “Aliás, parabéns pelo prêmio de primeiro
lugar. Se eu entendi bem, é um jogo para ver quem chega primeiro e você foi
a vencedora.” Netuno abriu um sorriso ingênuo.
Íris gargalhou com a inocência tão inerente daquele gigante dos mares.
“Como humano, você é apenas um bebê. Ainda tem muito que
aprender. Mas, sim, é tipo um jogo. O objetivo é que cada atleta supere as
próprias limitações.”
“Ah! Que interessante!”
Ela riu mais um pouco e se acomodou melhor na cadeira. Aquela
conversa tinha tudo para ser longa e importante.
“Tá legal. Não vou fingir que não estou surpresa com sua presença em
terra firme e que esse encontro é meramente casual”, Íris disparou a falar,
ciente de que estava ansiosa.
Porém, ela acreditava que eles passaram do nível da conversa fiada,
depois de tudo o que viveram juntos na ilha.
Netuno riu, de maneira tão bonita e suave que Íris se apaixonou de
novo por ele.
“Sempre sincera e objetiva. Essa é a Íris que eu admiro.”
Ela também sorriu, inebriada com a leveza que emanava daquele
homem alto, lindo e muito sexy, vestido de maneira despojada. Não fazia mal
que seu corpanzil estivesse todo coberto. Íris conhecia cada detalhe de cor.
“Fico aliviada por não se ofender com a minha curiosidade.”
Ele ficou sério com a resposta dela, sem notar o tom de brincadeira em
sua voz.
“Jamais me ofenderia contigo por sua honestidade. Íris, não me prive
de saber seus pensamentos. Eles me são caros.”
Eles se encararam por um tempo que pareceu uma era inteira. Dois
verdes únicos e dois oceanos distintos, colidindo e explodindo no mesmo

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sentimento. Ah! O amor! A única força no universo capaz de unir dois
mundos contrapostos.
“Muitas criaturas me disseram que eu sempre tive escolha...”, Netuno
abriu os braços antes de continuar: “Cá estou para descobrir aonde um novo
caminho pode me levar.”
Íris esperou que Netuno acrescentasse algo, porém, como ele nada
disse, optou por aproveitar a sua presença para saber mais sobre o oceano,
que não visitava desde a última vez que embarcara no Deusa do Mar.
“Como estão Tritáo, Anfitrite e Nestor? É uma pena que eu não
compreenda o que ele fala quando vem me ver.”
“Muito bem. Tritáo nasceu para tomar o meu lugar e não poderia fazer
um trabalho melhor. O castelo está habitável, protegido por magia para que
humanos curiosos não o vejam, assim como a ilha submersa. As criaturas
marinhas o respeitam, admiram e procuram sempre que se sentem
ameaçadas. Anfitrite é sua fiel conselheira e amorosa mãe. Ela se mantém
firme como protetora do deus do oceano. Nestor, bem, continua sendo um
golfinho atrevido e de palavras afiadas.”
Ambos riram, saudosos. Porém, alguém a chamou, aproximando-se.
“Íris!”, o homem alegre parou ao lado da cadeira de rodas com um
pulo, sobressaltando-a. “Oi”, cumprimentou, sorridente, ao notar Netuno.
O ex-deus do oceano encarava o homem com a mais pura descrença.
“Ah! Que susto você me deu”, Íris repousou a mão no coração
retumbante. “Deixe-me apresentá-los. Netuno, esse é meu treinador,
Nestor.”
“Muito prazer”, ignorando o espanto no rosto do gigante, o treinador
lhe ofereceu a mão para que a apertasse, formalizando as apresentações, que
automaticamente, Netuno aceitou. “Mora na cidade ou está de visita devido
aos jogos?”

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“Netuno está apenas de passagem”, Íris respondeu por ele, sorrindo.
“Que pena! Se ficasse, tenho certo de que não se arrependeria. O Rio
de Janeiro não é conhecido como a ‘Cidade Maravilhosa’ em vão. Tem
praias incríveis!”
O tritão, usando a forma humana, obrigou seu cérebro a funcionar
normalmente, na tentativa de ignorar que aquele Nestor era o seu Nestor. O
golfinho falante que na verdade era o grande titã Oceano, transmutado.
“Se Íris aceitar ser a minha guia, não vejo porque não estender a
minha estadia”, Netuno pensou em acrescentar a palavra ‘indefinidamente’,
mas desistiu.
“Sábia escolha, meu rapaz”, o treinador se aproximou a fim de lhe dar
tapinhas amistosos nas costas, correspondendo ao olhar incisivo de Netuno
sobre o seu. “Íris com certeza fará um itinerário sensacional para você
turistar pelo Rio”, e piscou para ele, cúmplice, voltando para o lado da aluna.
“Estarei logo ali se precisar de mim, Íris. Até logo, Netuno. Espero revê-lo
em breve.”
E se foi, deixando-o perplexo, mesmo com um diálogo tão curto.
“Você falou sério sobre ficar?”, Íris também estava chocada com a
admissão de Netuno.
“Pessoa curiosa esse Nestor. Até me lembra de certo golfinho...”, foi a
única coisa que Netuno conseguiu dizer, com a saída do treinador.
“É mesmo, não tinha reparado nisso até você dizer, que coincidência!
Nestor é como um segundo pai para mim. Ele é meu treinador desde que
decidi me profissionalizar como atleta. Eu devia ter uns quinze, dezesseis
anos.”
Netuno recebeu aquela informação com o coração em paz. O Oceano
esteve todo aquele tempo cuidando de sua alma gêmea, e ainda por cima
auxiliando-a a realizar seus objetivos. Ele não podia pedir mais a uma

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entidade tão misericordiosa.
Abriu um sorriso, voltando sua atenção para Íris, que o olhava com
curiosidade.
“Respondendo à sua pergunta: nunca falei tão sério em toda a minha
existência.”
Íris engoliu em seco a sinceridade e intensidade de Netuno, que lhe
causava comoção interna.
“Eu tenho uma deficiência, Netuno. Mas posso te ajudar a escolher os
melhores destinos.”
Tomado por uma emoção que mal cabia em si, Netuno se ajoelhou
diante dela, nivelando seus olhos.
“Não será a mesma coisa desbravar os cinco continentes sem você,
Íris.”
Ela balançou a cabeça e desviou seus olhos.
“Sou apenas uma mortal, cheia de limitações...”
“Desde quando suas restrições humanas a detiveram?” Netuno tomou
as suas mãos. “Íris, você enfrentou um monstro marinho perverso e gigante.”
“Eu o fiz como sereia e não como humana...” Ela entortou o pescoço
como se pedisse desculpas por ser quem é.
“O que está acontecendo? Por que está se diminuindo perante um ser
quase tão mortal quanto você? Quando eu era um deus, você me enfrentava
sem medo, de cabeça erguida, e me dizia absolutamente tudo o que pensava,
sem receio de punições.”
Íris revirou as mãos no colo, procurando as palavras certas para se
explicar.
“Não quero que limite a sua nova existência para me acompanhar.
Você é jovem, forte e perfeito. Pode ir a qualquer lugar e fazer qualquer
coisa que quiser. Eu nem posso mais nadar no mar sem correr risco de

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vida.”
Havia uma tristeza tão grande no coração de Íris, ao admitir aquilo, que
tocou fundo o de Netuno. Ambos lacrimejaram. Em seu íntimo, a moça
esperou que as lágrimas do meio tritão, meio homem, se cristalizassem
quando escorressem, mas não aconteceu. Eram gotas normais que deslizavam
por sua face. Tão normais quanto as dela.
“Você é perfeita para mim, Íris. Aos meus olhos, você continua tão
linda e encantadora como humana, quanto o foi como sereia. Eu não me
apaixonei por sua cauda ou por suas pernas. Eu me apaixonei por seu
coração, puro e sincero. Eu me apaixonei por sua força, sua coragem e seu
desprendimento de amar uma pessoa como eu, que nunca fez por merecer.
Você arriscou a sua vida para me salvar. Deixe-me fazer algo para retribuir
seu apreço. Permita-me amá-la enquanto eu respirar.”
Não contiveram o choro, sem se importar com quem reparasse no que
acontecia em sua bolha de confissão e amor. Para eles, nada mais importava
naquele momento além dos sentimentos intensos e controversos que nutriam
em seus corações.
“Mas, e seu filho? Você não pode simplesmente renegar o oceano por
mim. Não vou deixá-lo cometer essa atrocidade contra si mesmo.”
Netuno riu por entre o pranto, uma risada alegre, que apartou as nuvens
de tristeza de sua face.
“Não pretendo renegar quem eu sou. Graças a você, eu finalmente me
aceitei. Só que me aceitar implica em admitir que sempre fui mais humano
do que deus. Não sei porque nasci assim, com essa empatia tão grande pela
humanidade, que me fez amá-la tanto quanto odiá-la. Desprezei a mim
mesmo por eras, até aprender que tenho um dom. Eu posso migrar entre o
mar e a terra, com a mesma naturalidade. Esse é meu verdadeiro poder.”
Íris nada disse, os olhos límpidos como um mar verde inundando a

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alma de Netuno.
“Jamais pediria a você que rejeitasse sua preciosa humanidade para
se juntar a mim no mar. Foi a humanidade em ti que a fez exatamente como
é. Muito menos que se afaste da sua amada família para ficar comigo. Mas
eu não preciso escolher, posso ter os dois. Consigo viver com você em terra e
ver meu filho sempre que quiser. Basta mergulhar no oceano.”
Netuno apertou a mão dela, ansioso em convencê-la a aceitar a
imperfeição que ele era.
“Íris, por favor, me dê uma chance de lhe revelar o novo Netuno. E se
mesmo depois de me conhecer a fundo você não me amar, tudo bem. Seguirei
a minha vida sem perturbá-la.”
Como Netuno, Íris começou a rir e chorar ao mesmo tempo, fungando e
se retorcendo, em uma alegria genuína. Ela parou de repente, espalmando seu
rosto molhado.
“Eu já o conheço, seu bobo. Sei exatamente que tipo de criatura que
você é. Mesmo sendo maluco e acabar no estômago de um monstro, é
bondoso e intenso. Eu o amo perdidamente. Viveria mil vidas só para ter a
oportunidade de me apaixonar por minha alma gêmea quantas vezes me
fossem permitidas.”
Com a confiança que só se constrói com a honestidade, Íris pulou no
colo de Netuno, que a pegou rapidamente, segurando-a contra o peito,
exatamente no lugar onde seu coração batia, apaixonado pela humana mais
divina que tivera a oportunidade de conhecer.
“Ao meu lado, suas limitações serão inexistentes, minha deusa. Você é
dona do meu amor e do meu corpo. Eu a carregarei junto comigo até os
confins da terra. E mesmo depois do meu último suspiro, minha alma ainda
procurará a sua.”
“Por toda a eternidade, meu deus.”

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Selaram aquele pacto eterno com um beijo, digno de aplausos daqueles
que estavam assistindo. Entre eles, o bom e velho Nestor, quer dizer, Oceano,
que orquestrou aquele encontro, ao lado da deusa da Fortuna. Cantarolando,
ele se afastou, a fim de dar privacidade para o casal, que começava uma nova
jornada, juntos, naquele dia. O que aconteceria depois, nem mesmo uma das
entidades mais antiga do planeta sabia, quem diria Netuno ou Íris.
Porém, viver a realidade, por mais dura que seja, sempre será preferível
a passar pela eternidade apenas existindo, à espera de que a fantasia se
concretize.

FIM

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AGRADECIMENTOS

Não tenho palavras para expressar ou mensurar o tamanho da gratidão


que sinto por ter a querida amiga Josy Stoque em minha vida. Essa história
inspiradora foi somente uma das tantas que ainda vamos escrever juntas, com
toda certeza, porque tê-la como parceira é simplesmente viciante! É para ela
que vai o meu grande agradecimento: à essa pessoa incrível, profissional,
com uma sensibilidade ímpar e uma garra inquestionável. Obrigada, Josy,
pela amizade, por compartilhar histórias inesquecíveis comigo e por sempre
me entender. Amo você do fundo do meu coração!
Agradeço também aos queridos leitores e leitoras que nos acompanham
de perto pelo Wattpad, Amazon e pelos livros físicos. Àqueles que
acompanharam “Eu Nunca” e “Proteja-me” e depois se apaixonaram por
“Deus do Oceano”. Tudo só faz sentido por causa de vocês, seus lindos e
lindas!
Agradeço imensamente às nossas queridas leitoras betas, mulheres
maravilhosas que estão sempre presentes, surtando, colaborando e nos
ajudando a prosseguir sem desistências. Obrigada, meus amores. Amo cada
uma de vocês!
Por fim, agradeço aos deuses mitológicos que tanto nos inspiraram.
Sobretudo, àquele Deus em quem acredito piamente. Obrigada por mais uma
etapa concluída!
***
Ah! Não acabou, não. Ainda tem eu! Quero expressar publicamente,
mais uma vez, o meu apreço por essa mulher incrível, dona do coração mais
puro e verdadeiro, que eu tenho o privilégio de dizer que é minha amiga:

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Mila Wander. A você dedico toda a minha admiração e respeito, pela incrível
pessoa e profissional que você é. Agradeço pelo apoio incondicional que me
oferece, em qualquer âmbito de minha vida. Te amo! E não vejo a hora de
escrevermos nossas próximas histórias, parceira para sempre.
Também estendo meus agradecimentos aos meus leitores, que
acompanham a minha jornada desde o início, e os que chegaram agora
também. Sem vocês, essa carreira não tem o menor sentido. Muito obrigada!
Amo vocês! Aos meus leitores betas, que são fãs de carteirinha, obrigada
pelos surtos inbox. Amo cada um de vocês e sou muito grata por também
fazerem parte de minha caminhada, me ajudando a levantar quando caio. Sou
grata a essa história, que tanto me emocionou, e me ensinou, mais uma vez, a
ser uma pessoa melhor. E, por último, agradeço a Deus pelo dom de escrever
e tocar o coração daqueles que entram em contato com as minhas histórias.

Mila e Josy

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QUEM SÃO AS AUTORAS

Josy e Mila também se conheceram por acaso ao se


esbarrarem no mercado literário nacional. Apesar das diferenças entre suas
personalidades, se tornaram fãs uma da outra e essa admiração as uniu na
aventura louca que foi escrever a história de amor improvável entre Joseph e
Pauline. Para se lembrarem de se permitirem o novo e de que ninguém entra
na vida de outra pessoa sem deixar algo de si, elas tatuaram o trevo da sorte
com a frase “Eu Sempre”.
Josy Stoque é autora do best-seller trilogia Puro Êxtase e da Coleção
Amanhã; e, Mila Wander, dos sucessos de público e vendas O Safado do 105
e da trilogia Despedida de Solteira. Ambas também escreveram juntas “Eu
Nunca”, publicado pela editora Pandorga, e “Proteja-me”, romances best-
sellers da Amazon.

Conheça: www.josystoque.com.br | www.milawander.com

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