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2017
Era de minha vontade passar longas horas sentado na mais alta rocha
daquela burlesca ilha particular, o reduto que criei para me manter longe de
toda a mesquinharia do mundo. Ao contrário do que Anfitrite pensava, eu não
mais esperava por nada e nem ninguém, nem mesmo por uma mudança
interna da qual ela tanto falava e eu considerava enfadonha. Eu apenas
desejava que minha vida imortal atravessasse aquela era em meio ao
marasmo e à solidão, as duas únicas coisas que me mantinham são por
justamente saber que não me abandonariam.
Se alguém tivesse o disparate de me perguntar o que eu realmente
queria, diria sem nenhum remorso que — subtraindo as possibilidades de
uma morte ligeira, já que meu corpo simplesmente não padecia, por mais que
eu tivesse tentado de diversas maneiras — preferia permanecer exatamente
onde estava: de costas para o odioso mar e suas ondas tediosas, observando
as pernas humanas que me foram presenteadas por um feitiço e sentindo o
ardor dos raios solares em minha pele endeusada.
Em contrapartida, eu não almejava despertar a fúria de meu pai
Saturno, soberano que me concedeu a maldição de governar os mares e suas
maçantes criaturas. Em certos momentos de minha existência, eu era
obrigado a exercer aquele papel que, em minha opinião, não mais me
pertencia, pois há muito eu havia perdido todo o amor e consideração pelo
oceano.
Eu não suportava conviver com aquela humana tola nem por meio
minuto, portanto acatei a opção de simplesmente ir embora enquanto ela
estivesse distraída, observando o oceano como se pudesse encontrar uma
saída simples que não fora considerada antes. Não estava em meus planos
mostrar-me nem tão cedo, mas a fedelha havia me encontrado em um
momento de ira, vulnerável no meio da praia. Seu olhar sobre o meu corpo
me encheu de ainda mais raiva. Perceber deslumbre em seus olhos claros,
única característica que a divergia de Cássia, que possuía olhos negros como
a noite, foi como se mil facas atravessassem o topo da minha cabeça.
Precisei fazer um absurdo esforço para não matá-la imediatamente, e
um maior ainda para tratá-la de forma educada, já que não queria que
desconfiasse de que estar presa na ilha era culpa minha. Não ainda.
Considerava muito cedo para me revelar como um deus disposto a lhe
castigar até o último suspiro deixar seus pulmões. Íris precisava sofrer muito
antes de adquirir a vantagem de compreender o verdadeiro motivo de tanto
sofrimento, além do que eu necessitava descobrir muito mais sobre ela, e, se
fingisse ser um humano comum, talvez o meu trabalho fosse mais eficaz.
Não que eu tivesse qualquer pressa. Os próximos quinhentos e sessenta
e oito dias seriam longos e, ao mesmo tempo, turbulentos. Possuía tempo
suficiente para concretizar meus desejos mais sombrios, só precisava
controlar a ira e afiar a pouca paciência que me restava. Enquanto andava de
Tentar entender o outro é um grande passo para a empatia, mas era uma
tarefa muito complicada quando se tratava de Neto. Ele não facilitava
nadinha para mim. Parecia até que não queria ser compreendido, que não
fazia a menor questão de coletividade e cooperação, como se se bastasse. Era
um pensamento bastante empoderado, porém, até que ponto antissocial?
Enquanto me banhava, pensava a respeito e aproveitava aquele tempo
sozinha para também praticar um pouco de individualidade sem culpa. Fomos
criados para o coletivo desde que nascemos: família, bairro, amigos, escola,
comunidade religiosa, trabalho, relacionamentos amorosos e sociedade.
Ensinaram-nos que não podemos viver sozinhos, que precisamos uns dos
outros, e nos obrigaram a aceitar isso como verdade, o único caminho da
felicidade, a única resposta para todas as questões universais.
Forçam-nos a nos anular em prol do outro para não agredi-lo, magoá-lo
ou decepcioná-lo, a seguir os passos de nossos familiares, a nos envolver com
pessoas de “bem” e a ter filosofias e condutas em uniformidade com o resto
do mundo. E ainda nos sentimos culpados quando pensamentos
individualistas se manifestam contra tudo o que nos educaram a acreditar.
No entanto, esqueceram de nos dizer que somos seres individuais.
Nascemos sozinhos, passamos a vida carregando uma solidão que nunca é
aplacada e morremos sozinhos. E quando buscamos satisfazer a nós mesmos,
prioritariamente, somos acusados de egoísmo.
O fato é que não existem apenas dois lados: certo ou errado, bem ou
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mal, como nos contos da carochinha. Somos sete bilhões de indivíduos,
carregando um universo inteiro dentro de cada um, e, dessas pessoas,
ninguém pensa, age ou faz escolhas como eu.
Absolutamente ninguém.
Assim como ninguém nunca vai saber como é carregar as minhas dores
e vitórias além de mim mesma.
Somos sete bilhões de pensamentos, amores e perdas distintos, sem
exceção.
A coletividade deveria nos ajudar a ampliar nossos próprios horizontes,
a desenvolver empatia e tolerância ao próximo e a descobrir mais sobre nós
mesmos. Mas não, muitas vezes — na maioria delas —, somos padronizados,
programados a pensar coletivamente, manipulados a tratar nossos instintos
individuais como erros, ameaças ao equilíbrio da sociedade.
Mas, se pensarmos direito, percebemos que todos somos potenciais
líderes, podados em nossa cerne e desacreditados de tal forma que nós
mesmos deixamos de enxergar que somos donos da própria vida, para agir e
pensar somente com o coletivo. Abelhas operárias, que trabalham por algo
que não têm valor para elas, e aceitam migalhas de reconhecimento para
serem aceitas na sociedade.
Não estou dizendo que eu deveria ser uma ogra como Neto, longe
disso. Eu acredito na empatia e no limite como forma de aprender a ser uma
pessoa melhor e a fazer a diferença na vida das pessoas que me cercam.
O que estou questionando é: por que não somos ensinados a sermos
educados e empáticos? Por que não nos ensinam que somos indivíduos
solitários e que não adianta buscar fora de nós aquilo que nunca
encontraremos em outro? Por que preferem nos deixar frustrados com essas
descobertas sozinhos?
A verdade é que a coletividade não nos prepara nem para a vida em
Não sei como de uma discussão com troca de ofensas, acabamos nos
beijando, grudados contra um tronco de árvore. Aquilo não fazia o menor
sentido, mas quem estava pensando? Eu, com certeza, perdera a capacidade
de reflexão assim que os lábios de Neto se grudaram aos meus. Por um
segundo, apenas um segundo de clareza de pensamento, tive certeza de que
não deveria permitir tal ousadia. No instante seguinte, porém, algo
extraordinário aconteceu e tomou toda a minha consciência.
Uma força me inundou como uma tempestade interna, de tal forma que
parecia fluir e nos envolver, inclusive por fora. Era uma energia boa, que
nunca havia experimentado na vida, por mais que tivesse buscado de
inúmeras maneiras. Nunca houve relação ou emoção que me fizesse sentir
algo tão intenso, poderoso e fantástico. E também tão instável, furioso e
inexplicável. Meu corpo tentou traduzir a sensação e a única palavra que
chegou perto de defini-la foi “divina”.
Também havia contraste. Enquanto eu me aquecia por dentro, as peles
quentes se esfregando uma na outra sem interrupção, à nossa volta soprava
uma furiosa e gelada ventania, que carregava em si gotas grossas e frias de
chuva. Eu nunca tive medo de tempestade, por isso, nunca temi Neto. Ele era
como a chuvarada, se derramava sem piedade, despejando tudo o que sentia
sobre mim. Sua intensidade me irritava, não porque ele fosse sincero, mas
porque não se importava em medir palavras ou ofender gratuitamente a única
companhia que possuía naquela ilha.
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Mas ali, entre meus lábios e em contato com meu corpo, Neto era
apenas um homem extravasando seu desejo mais profundo. Seu pau duro
comprimido contra minha barriga me garantia que eu também o deixava
louco, excitado e fora de si. Naquele momento, éramos como dois selvagens,
atraídos um para o outro e ignorando qualquer coisa que nos quisesse impedir
de ir até o fim. Eu, definitivamente, iria contra as leis do Universo para
chegar ao ápice daquela emoção irrefreável.
Neto era a personificação da força da natureza e eu me vi
irremediavelmente envolvida por ele, contrariando tudo o que vivi e acreditei
antes de conhecê-lo.
Seu beijo tinha a ferocidade de um monstro faminto e minha ânsia era
saciar aquela vontade com meus lábios. Também não sabia de onde vinha
meu próprio desespero, como se eu pudesse ser desintegrada por um raio se
não o tivesse logo. A água da chuva nos abarcava como uma concha
protetora e eu a bebia, doce feito mel, direto do amargor duro e seco da
língua de Neto. Ele me beijava como se não acreditasse na própria atitude e
no próprio ardor.
Um rugido feroz nasceu em sua garganta e cresceu até explodir na
minha boca, como o gemido mais dolorido que jamais ouvi.
Não tive medo. Meu corpo todo estremeceu e correspondeu à tamanha
explosão de sentimentos. Percebi que atender àquele desejo também ia contra
tudo o que Neto fizera até então e ele lutava para não se render, mesmo que já
tivesse entregue, de corpo e alma. Quantas vezes ele tentou me assustar, me
afastar, me fazer odiá-lo? E, mesmo assim, lá estava eu, sedenta por mais um
gole de sua arrogância desintegrada na mais pura e carnal paixão. Eu me
liguei a ele de maneira magnética e nada naquele mundo, naquela ilha e na
minha consciência me faria correr para longe, quando ambos queríamos estar
perto e misturados como a chuva fazia parte de nós.
Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar
Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar
Para o mar
Me leve para o mar
Para amar
Me leve para amar
O deus e o seu mar
Senti o exato instante em que minhas pernas viraram cauda, assim que
mergulhei no oceano. Concluí que eu gostava muito dela. Era linda demais!
Pena que não podia ficar com aquela belezura para sempre. Ri, feliz da vida,
formando bolhas de ar que subiram para a superfície do mar plácido. Esperei
que Neto me seguisse no salto, porém, vários segundos se passaram e nada
dele aparecer.
Emergi, apontando um olhar ainda divertido para a rocha na qual
tivemos a conversa mais reveladora e honesta desde que cheguei àquela ilha.
Neto continuava de pé sobre ela, segurando seu tridente, magnífico como
uma escultura. Ele realmente parecia uma estátua de tão parado que estava e
com o olhar fixo no horizonte, como eu fizera enquanto esperava que
superasse seus receios e se abrisse comigo.
— Ei, Neto! — gritei, chamando sua atenção. — Você não vem nadar
comigo?
Ele suspirou audivelmente e desviou seus olhos para baixo até me
alcançar.
— Não existe nada nos sete mares que eu já não esteja cansado de ver,
Íris.
— Ninguém pode se cansar de tanta beleza, nem mesmo você. Vamos,
por favor! Me mostre o que eu ainda não vi.
— Essa é a sina de quem é imortal. Eu me cansei de tudo isso há muito
tempo.
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— Não seja estraga prazeres, Neto! Você não tem nada a perder.
Depois que eu me cansar de nadar contigo, você ainda terá o resto da
eternidade para fazer nada em cima dessa pedra. Eu não vou durar para
sempre e não quero desperdiçar nenhum segundo da minha estadia nessa ilha
me lamentando. E quero muito que você me faça companhia enquanto eu
estiver por aqui. Venha logo!
Não sabia que parte do meu discurso aos gritos o convenceu, no
entanto, em seu rosto, um ar de determinação se passou logo depois do
espanto. Neto finalmente atendeu às minhas súplicas, saltando no mar com
graça e virilidade impossíveis de não mexerem comigo. Ele era maravilhoso!
Seu corpo era talhado como uma obra-prima. Mergulhou com a precisão e o
encanto de um exímio nadador. Nem se atrapalhou com o tridente. Duvidava
muito de que eu tivesse pulado de maneira tão perfeita.
Submergi atrás dele e o achei ainda mais incrível enquanto perfurava a
água com uma velocidade impressionante por causa da cauda dourada.
Humano ou criatura mítica, Neto era a coisa mais atraente em que eu tinha
posto meus olhos e minhas mãos. Senti uma tentação enorme de tocar sua
cauda a fim de saber se ela tinha a mesma textura que a minha, mas não o fiz.
Não sabia como ele reagiria ao meu toque. E seria bem infantil de minha
parte também.
Ri e rodopiei, contente por tê-lo comigo no fundo do mar.
— E então? Qual é o itinerário, meu guia? — brinquei ao me aproximar
dele.
Neto não espelhou a minha animação, o que tentei ignorar. Não
precisava forçar seu entusiasmo também. Bastava que tivesse aceitado a
minha proposta.
— Acredito compreender o que quer dizer, apesar de não conhecer a
palavra “itinerário”. — Sua resposta me fez gargalhar. — Pensei em levá-la
Pela primeira vez desde que acordei naquela ilha estranha, eu dormia
em paz e até sonhava. Todos os meus temores se foram e eu não quis admitir
a mim mesma na hora, mas era culpa do Neto. Ele era um ogro rude? Era. Eu
estava bem ciente disso. Mas também sabia ser terno e me amara de maneira
doce no fundo do mar. Depois, aceitou de bom grado ficar até eu adormecer.
E, nossa!, foi tão bom dormir, deitada em seu peitoral, quanto fazer sexo com
aquele monumento todo.
Aquela casca grossa nada mais era do que uma barreira para proteger
seu frágil coração. Eu também sabia que Neto tinha potencial para mudar e
estava disposto a tal, só que não aconteceria da noite para o dia. Mas eu não
desejava que ele fizesse nada por mim, ou porque eu vivia lhe dando
conselhos. Queria que ele percebesse que o caminho do amor e da bondade
era sempre o melhor, para qualquer tipo de criatura, ainda mais quando não
se deseja a solidão.
E, em meu sonho, Neto enxergava e o tempo que passamos juntos foi
de risos e carinhos. Um tempo que sabíamos que seria curto, mas quem
estava se importando com isso quando a alegria fazia morada em nossos
corações? E seu riso era tão contagiante! Parecia se espalhar pela ilha como
uma névoa do bem, alegrando a cada ser vivo que tocava. Havia paz,
harmonia e uma felicidade palpável, que eu não seria capaz de encontrar em
outro lugar além daquela ilha encantada.
— Íris! Onde você está? — Ouvi uma voz engraçada me chamando,
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mas continuei imersa no mundo dos sonhos. — Preciso falar contigo com
urgência, minha amiga!
A insistência acabou me arrastando para a realidade, inevitavelmente.
Franzi o cenho e pisquei os olhos, percebendo a claridade invadir a cabana
por meio de frestas. Era dia e eu me encontrava sozinha, constatei logo.
Chateada por ser tirada do meu conto de fadas particular, eu me ergui e me
espreguicei, saindo para a praia. A luz forte do sol, refletida na areia e na
água, me fez cerrar os olhos momentaneamente. Mas, por fim, avistei um
golfinho jorrando água e saltitando em alto-mar.
— Bom dia, Nestor! — cumprimentei, caminhando em sua direção.
Antes que meus pés tocassem as ondas e virassem barbatanas, o boto
berrou:
— Não entre no mar, Íris! Por favor! — Estaquei, assustada. — Não é
seguro. Há um monstro terrível escondido não muito longe daqui. — A
expressão de Nestor me garantia que ele falava sério e estava apavorado. —
Acho que vou passar umas férias na ilha. A gente pode se encontrar no rio
para nadar em segurança. Não me perdoarei se alguma coisa acontecer com
você, amiga.
— Fique tranquilo, Nestor, não pretendo nadar no mar. Mas você viu
esse tal monstro?
— Graças aos deuses nunca tive o desprazer de cruzar com vil criatura.
Se assim tivesse acontecido, não poderia sonhar em ter minhas próprias crias.
Eu o vi estremecer, apesar de achar engraçado o que disse. Exagero,
talvez, mas não ia discutir com uma criatura amedrontada. O medo paralisa
qualquer ser.
— Tudo bem, Nestor. Pode se acalmar agora.
— Se estiver com fome, posso caçar uns peixes para você, Íris.
— Acabou de dizer que o mar é perigoso.
Ser pai era o maior desafio com que os deuses haviam me presenteado.
Eu ainda tinha dúvidas se a presença de Tritáo em minha vida era um agouro
ou uma dádiva, porque, na maioria das vezes, não sabia como lidar com o
fato de haver alguém que era sangue do meu sangue e que, por direito,
possuía tudo o que me pertencia. Preferia travar batalhas com milhões de
monstros como Caríbdis a encarar Tritáo e toda sua revolta adolescente.
Ver seus olhos brilhantes de perto, sempre ansiosos para saber mais, a
ir além do que o pequeno espaço que lhe foi designado naquele afastado
poço, enchia-me de um orgulho sem precedentes, mas também de um
tremendo desespero. Era incrível como eu sempre me sentia um péssimo ser
quando estava perto dele. Tudo o que pudesse fazer se mostrava insuficiente
para agradá-lo, e, não importava o que eu dissesse, Tritáo quase nunca
concordava comigo.
Naquela situação, no entanto, precisava lhe dar um pouco de crédito,
afinal, reduzir o seu diminuto contato com o mundo externo talvez fosse
pedir demais para uma criatura tão ávida pela vida como ele. Eu bem sabia
que o lugar onde habitava era pequeno demais para cabê-lo, porém nada mais
podia fazer para protegê-lo das maldades inerentes daquele planeta.
Eu tinha conhecimento de que a nossa relação era fadada ao fracasso.
Começamos mal por causa da minha impaciência e profunda tristeza, dois
fatores que me afastaram dele de uma maneira praticamente irreversível. Eu
não o deixei conhecer sobre mim além do que podia se ver aparentemente.
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Tritáo mal tinha verdadeira noção do maior dever de sua vida, do principal
motivo de sua existência, e a culpa era absolutamente minha. Ganhar sua
confiança e respeito era o que me restava, já que afeto era algo que eu não
esperava obter. Pouco, ou melhor, nada fiz para merecê-lo.
Deixei as reentrâncias da caverna, que ficavam escondidas na mata, e
fui à procura de Íris. Tentei não me importar com a tristeza visível nos olhos
de Tritáo, mas a verdade era que por dentro eu estava à beira da agonia.
Contudo, havia outro problema para resolver e eu não podia me dar o luxo de
perder tempo. Não sabia se Nestor havia conseguido avisar Íris para que não
entrasse no mar, e a dúvida estava acabando com os meus nervos. Além do
mais, não tinha exatamente certeza de que a mulher obedeceria àquela ordem,
já que possuía uma incrível capacidade de ir de encontro a qualquer coisa que
lhe dissessem. Seu poder de questionamento era admirável para uma criatura
tão frágil e naturalmente ignorante, já que os poucos anos de existência
jamais lhe permitiriam ter o conhecimento necessário para responder a todas
as suas muitas perguntas.
Ouvi um ruído na beira do rio e corri na esperança de encontrá-la. Meu
coração batia forte apenas com a mera ideia de vê-la de novo. Porém, ao
perceber que não se tratava de Íris, e sim de Nestor, que nadava em círculos
como se esperasse por alguém, eu me senti um grande imbecil por me
permitir sofrer tamanha ansiedade para estar na presença daquela mulher. Seu
poder sobre o meu sistema nervoso começava a me trazer profundo
incômodo.
— O que faz aqui, Nestor? — questionei de um jeito emburrado,
decepcionado. Ainda me surpreendia que eu tivesse mudado de ideia tão
depressa com relação a Íris. Eu sabia lidar melhor com o fato de querer matá-
la do que com aquela cruel vontade de protegê-la. — Nunca vi cetáceo de sua
espécie nadar em rio.
Pensei que Neto fosse fugir de mim, como sempre fazia. Parecia que
para ele minha presença constante era intolerável. Estava chateada por
escolher não me contar nada do que eu presenciara escondido, mas não queria
que me deixasse só. O gigante me irritava, mas também era minha única
companhia. Suspirei, baixando a cabeça, me segurando para não implorar que
permanecesse, ou mesmo que retribuísse minha sinceridade sem filtro.
— Deixei uns peixes assando na fogueira. — Ergui os olhos e encarei
dois oceanos revoltos em seu olhar, fixo em mim com uma intensidade
desconcertante.
As mãos na cintura, o garfo de ouro esquecido na lateral do corpo e sua
nudez despretensiosa causaram frenesi no meu organismo. Senti o anseio de
ficar tão nua quanto Neto. Era libertador se sentir à vontade na própria pele.
Depois que experimentara a sensação natural de andar sem roupas pela ilha, o
neoprene começava a incomodar.
Prendi a respiração. Neto não precisava comer. Ele fizera aquilo para
mim.
Sorte dele que eu era tão atenta e observadora, senão, já teria desistido
de tentar entendê-lo. Ao mesmo tempo em que Neto fazia tudo para me
afastar, seus olhos e gestos diziam o contrário de suas palavras, muitas vezes
duras e ríspidas. Sua alma gritava a dor que carregava. Tanta solidão em um
ser eterno cobrara seu preço e o deixara sem saber como lidar comigo. Mas
ali estavam, como em outros muitos momentos, gestos desprendidos, que
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eram a exata antítese de sua rudeza.
Neto se importava, se preocupava e não era alheio às minhas
necessidades. Ainda que escolhesse demonstrar isso de maneira errada, como
quando o vi prender o próprio filho em uma gruta subterrânea — fato que
fazia meu coração disparar e meu estômago revirar —, havia bondade em seu
coração. Eu gostaria tanto que ele se abrisse mais e expusesse sua alma para
que eu pudesse ver, tocar e embalar com todo o meu... Eita! Eu pensei amor?
Não, não, queria dizer carinho. Com todo o meu apreço.
— Ah! — resfoleguei quando percebi que esperava uma resposta. —
Obrigada.
Eu estava tão perdida que demorei a notar a ruga em sua testa enquanto
aguardava que dissesse ou fizesse alguma coisa. Por Deus! No que eu estava
pensando? Não podia me apaixonar por Neto. Eu não pertencia àquele mundo
fantástico. Claro que era incrível fazer parte dele por um tempo, mas eu sabia
que meu lugar não era ao lado daquela criatura mítica, com poderes
sobrenaturais, que vivia isolado em uma ilha encantada. Eu tinha uma vida
pela qual lutara para retornar. Não podia abandoná-la assim, de uma hora
para a outra, por sentimentos que mal compreendia. Seria loucura demais!
Não seria?
Então por que meu coração doía toda vez que eu pensava em ir
embora?
Agitei a cabeça, afastando a confusão de pensamentos, e sorri para
Neto. Ele vasculhou meu semblante atenta e lentamente, antes de deixar seus
olhos caírem sobre meus lábios. Eu o vi lamber os seus e senti um arrepio na
nuca só de me lembrar do sabor que eles tinham. Eram salgados como o mar,
mas doces como um sonho, do qual você se esforça para não acordar.
— Sei que não precisa comer, mas, não me faria companhia, senhor?
— brinquei, expandindo meu sorriso e tentando não pensar que eu tinha
Não sabia quando e como havia acontecido, mas não podia mais negar
o que sentia. Eu me apaixonei pelo Neto, talvez antes mesmo de perceber.
Tanto que foi muito fácil deixar a verdade escapar por minha boca, junto com
a promessa de que jamais o magoaria. Também sabia que era a excitação do
momento e da paixão que vivenciávamos o grande motivador da minha
confissão, mas eu não era leviana. Jamais mentiria para conseguir o que mais
desejava, por mais nobre que fosse o objetivo.
Também tinha consciência de que não ficaria ali para sempre, mas se
Neto sentisse o mesmo que eu, daríamos um jeito. Como dois loucos
apaixonados, encontraríamos uma maneira de continuar vivenciando aquele
sentimento intenso, que com certeza seria capaz de encurtar distâncias e
ignorar as nossas diferenças. Não sabia como seria quando ele me visse
limitada pela cadeira de rodas, porém, eu não hesitaria em saltar para o mar
se ele estivesse disposto a me segurar em seus braços.
Que loucura! Eu mal podia conter a euforia, enquanto era tomada por
um explosivo orgasmo, que fez meu coração bater mais forte, mais rápido e
mais apaixonado do que nunca. Mesmo que Neto não correspondesse aos
meus sentimentos, e um dia nos separássemos, eu ficaria feliz com as
lembranças dos momentos incríveis e mágicos que vivemos na ilha. Eu era
apenas uma humana que tivera a chance de amar uma criatura mítica, imortal
e poderosa. Como eu poderia me arrepender disso?
Eu queria curtir Neto por mais um tempo, sem pressa de voltar para a
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minha vida, a fim de resolver todas as pendências que eu deixei para trás. O
depois parecia muito distante naquele momento e permiti que continuasse
assim.
Perdi as forças e caí para trás, sobre o corpo duro de Neto, que me
envolveu no mesmo instante. Respirava pesadamente, ainda de olhos
fechados, e com a boca seca pelo grande esforço físico. Outra onda
arrebentou em nossos corpos ainda grudados e transformou nossas pernas em
cauda novamente, fazendo-me gargalhar. As escamas escorregadias fizeram
com que eu deslizasse para a areia. No entanto, Neto manteve os braços ao
redor dos meus ombros, mantendo-nos juntinhos.
— Eu nunca vou me cansar disso — admiti em voz alta, abraçando-o
também e fazendo as pontas de nossas caudas se enroscarem a tempo de se
transformarem em pernas. Aquele jeito híbrido de fazer amor fora novo e
incrível como todas as vezes em que alcançamos tal intimidade. Eu estava,
literalmente, no paraíso.
— Nem eu — Neto concordou, deixando seus lábios encontrarem
minha testa, onde selaram um beijo terno.
Suspirei. Nunca me senti tão feliz e apaixonada. Claro que eu sabia a
diferença entre amor e paixão, já me apaixonara outras vezes e amava
pessoas demais para ter dúvidas. No entanto, eu nunca me senti daquele jeito,
como me sentia com Neto. Era, no mínimo, intrigante. Mesmo que fosse
errado, parecia certo. Ainda que ele tentasse se esconder, eu o enxergava. E,
com todas as diferenças físicas e experiências de vidas, encontramos uma
compatibilidade indiscutível.
Eu sentia, mais do que podia acreditar, que nosso encontro estava
marcado há muito tempo.
Aquela constatação me pegou de assalto e resfoleguei, assustada. Que
intenso!
Que intensidade, meu bom Deus! Quer dizer, meu deus, Netuno! Porra!
Aquilo era uma confusão dos diabos na minha cabeça, mas eu bem que
estava gostando. Entendia perfeitamente a ansiedade de Cássia em desfrutar
algo extraordinário ao lado de um ser todo-poderoso, que podia mover céus e
mares ao seu bel prazer. Aquilo era excitante demais para uma humana, cheia
de limitações, como eu.
Mas o mais incrível existia naqueles olhos fixos nos meus. Netuno era
tão humano, às vezes, que era difícil não vê-lo simplesmente como Neto.
Toquei sua face, tomada de grande assombro e ternura, sorrindo feito uma
besta quadrada. Não importava muito sua forma ou o que podia fazer,
contanto que continuasse me olhando daquele jeito, seríamos felizes juntos.
Eu saltei sobre ele, como uma moleca espevitada, fazendo seu corpo
tombar para trás na pedra. Suas mãos enormes abraçaram minha cintura e me
seguraram firmes, enquanto eu tentava cobrir seu corpaço com o meu. Pairei
a centímetros de sua boca, rindo feito uma idiota, com os cabelos balançando
ao nosso redor como uma cortina. Ele era tão lindo, santo Deus! Ops! Olha lá
eu de novo com aquele dilema...
— Você sempre me confunde, Íris — ele disse, acariciando meu rosto e
tentando domar aquela juba, para que não escondesse a minha face de seus
olhos ávidos. — Em um momento é séria e adulta, parece até mais madura do
que eu, que tenho séculos de existência. Em seguida, age como uma criança,
fazendo brincadeiras e rindo de um jeito tão faceira que fico ainda mais
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encantado por você.
Meu sorriso reduziu para algo entre tímido e lisonjeado.
— Ora, ser adulto é necessário, mas dizem que não devemos deixar a
criança em nós morrer.
— Quem disse isso?
Dei de ombros. Naquele instante, eu só sabia que estava
apaixonadíssima por Netuno, o deus do oceano.
— Gostaria de ter ouvido esse conselho antes — ele tentou brincar
também.
Porém, uma sombra nublou a alegria em seu olhar e eu maldisse minha
língua, que não conseguia ficar quieta dentro da minha boca.
— Relaxe, meu deus gostosão — eu me aprumei sobre seu corpo,
encaixando minhas pernas entre as dele e aproximando ainda mais nossos
lábios. — Se não conseguir sozinho, estou aqui para ajudar.
Seus olhos flamejaram ao perceber o tom sensual na minha voz e, antes
que pudesse reagir, tomei sua boca na minha, beijando-o com todo o amor
recém-descoberto. Suas mãos juntaram meu cabelo em um rabo malfeito,
enquanto nossos lábios realizavam uma dança nova e sem sentido, se
movendo em conjunto com as batidas insanas dos nossos corações.
Definitivamente, Netuno relaxou nos meus braços. Suas palmas
deslizaram por minhas costas, dos ombros até a cintura, amarrando-me a ele
bem apertado. Finquei meus dedos em seus cabelos, massageando seu couro
cabeludo e sentindo-o gemer na minha boca de um prazer que não tinha nada
a ver com sexo. Era carinho e afeição em gestos e beijos, ininterruptos.
Só paramos quando perdemos o fôlego e precisávamos respirar. Quer
dizer, eu necessitei. Sabia que, como um deus, Netuno não precisava de nada
além de ser adorado. E eu estava radiante em fazê-lo, de maneira exclusiva,
ignorando o fato de que ele tinha uma ninfa, que devia ser gostosa e linda pra
FIM
Mila e Josy