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da produção material, como também dos var o patrimônio, implica uma reorientação
sentidos e valores atribuídos pelos diferen- do uso desse solo. Trata-se de levar em
tes sujeitos a bens e práticas sociais. Essa conta um ambiente, que não se constitui
perspectiva plural de algum modo veio apenas de natureza − vegetação, relevo,
descentrar os critérios considerados ob- rios e lagos, fauna e flora, etc. − e de um
jetivos, porque fundados em saberes consi- conjunto de construções, mas, sobretudo,
derados legítimos que costumavam nortear de um processo cultural − ou seja, a manei-
as interpretações e as atuações no campo ra como determinados sujeitos ocupam
da preservação de bens culturais. esse solo, utilizam e valorizam os recursos
existentes, como constróem sua história,
Por exemplo, no caso de inventários em como produzem edificações e objetos, co-
sítios históricos urbanos, quando o que nhecimentos, usos e costumes.
está em jogo não é apenas a proteção de
determinados bens − sejam bens arquitetô- Embora essas informações só possam ser
nicos isolados, sejam acervos de bens mó- apreendidas a partir de manifestações ma-
veis − mas o reordenamento de um espaço, teriais, ou suportes − sítios, monumen-
a questão é ainda mais complexa, pois im- tos, conjuntos urbanos, artefatos, relatos,
plica a administração de interesses distin- ritos, práticas, etc. − só se constituem
tos e a interferência no destino de uma re- como referências culturais quando são con-
gião e dos que nela habitam. Trata-se de sideradas e valorizadas enquanto marcas
produzir um conhecimento para iluminar distintivas por sujeitos definidos.
uma intervenção.
Falar em referências culturais nesse caso
Ao se incluir nesse conhecimento a identi- significa, pois, dirigir o olhar para repre-
ficação de referências culturais, deseja-se que, sentações que configuram uma identida-
nessa intervenção, seja levada em conta de da região para seus habitantes, e que
não apenas a consideração do valor históri- remetem à paisagem, às edificações e obje-
co e artístico dos bens. Mesmo que a isso se tos, aos fazeres e saberes, às crenças,
acrescente uma preocupação com a racio- hábitos, etc.
nalidade econômica e social da interven-
ção, é possível que os inventários deixem Referências culturais não se constituem,
de fora a dimensão simbólica daquele espa- portanto, em objetos considerados em si
ço para seus habitantes, necessariamente mesmos, intrinsecamente valiosos, nem
plural e diversificada. Pois, do ponto de vis- apreender referências significa apenas ar-
ta da cultura, considerar apenas a concen- mazenar bens ou informações. Ao identifi-
tração, em uma determinada área, de um carem determinados elementos como parti-
número significativo de monumentos ex- cularmente significativos, os grupos sociais
cepcionais de algum modo a desvitaliza, operam uma ressemantização desses elemen-
uma vez que se deixa, assim, de apreender tos, relacionando-os a uma representação
em toda a sua complexidade a dinâmica de coletiva a que cada membro do grupo de al-
ocupação e de uso daquele espaço. gum modo se identifica.
Logo, quando não se trata de solo virgem, O ato de apreender referências culturais
inexplorado, mas de regiões que têm histó- pressupõe não apenas a captação de deter-
ria, tradições, ou seja, quando se trata de minadas representações simbólicas, como
um solo cultivado, que tem cultura ins- também a elaboração de relações entre
crita nele, pensar em uma intervenção, elas e a construção de sistemas que fa-
mesmo que seja com o objetivo de preser- lem daquele contexto cultural, no sentido
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democrática. Por outro lado, a ausculta de CNRC e da FNPM, de que tive o privilégio
outras vozes, a consideração de outros de participar.
interesses que não os dos grupos de maior
poder econômico e/ou intelectual, só é A Experiência do CNRC
possível se a própria sociedade se organiza
com essa finalidade. Ao ser criado, em 1o de julho de 1975, o
CNRC definia como seu objetivo o traça-
Nesse sentido, o reconhecimento, de um do de um sistema referencial básico para a
lado, da diversidade de contextos cultu- descrição e análise de dinâmica cultural
rais, da pluralidade de representações des- brasileira [MEC/SPHAN/FNPM, 1980; Ma-
ses contextos, e do conflito dos interesses galhães, 1985; Fonseca, 1997].
em jogo, e, de outro lado, da necessidade
de se definir um consenso − o que preser- A escolha do termo referência para carac-
var, com que finalidade, qual o custo, etc., terizar a atividade do centro tinha um inte-
pressupõe a necessidade de se criarem es- resse estratégico naquele momento:
paços públicos, não apenas para usufruto tratava-se de se distinguir das instituições
da comunidade, como para as próprias to- oficiais, museológicas, e propor uma forma
madas de decisão. Processo complexo e nova e moderna de atuação na área de cul-
nem sempre viável, mas em princípio pos- tura. Tudo − o objeto, o método, a forma de
sível, hoje, quando descentralização e or- trabalhar e arregimentar pessoal, e mesmo
ganização da sociedade civil são palavras o formato institucional − se propunha
de ordem que estão, aos poucos, se tornan- como diferenciado. E Aloísio Magalhães
do realidade. Nesse contexto, tanto a auto- soube, com sua habilidade, como conse-
ridade do saber (dos intelectuais) quanto guir, para a realização dessa experiência, o
do poder (do Estado e da sociedade, por apoio de setores mais esclarecidos do gover-
meio de suas formas de representação polí- no militar, como o do então ministro da In-
tica), têm participação fundamental no dústria e Comércio, Severo Gomes, e, poste-
processo de seleção do que deve ser preser- riormente, do ministro da Educação e Cul-
vado, mas não constituem poderes decisó- tura, Eduardo Portella, e dos generais Gol-
rios exclusivos. Podemos dizer que, a par- bery do Couto e Silva e Rubem Ludwig.
tir dos anos 70, o eixo do problema da pre-
servação deslocou-se de uma esfera emi- Nos primeiros tempos, outras visões sobre
nentemente técnica para um campo em o trabalho do CNRC se contrapunham à
que a negociação política tem reconhecido concepção de Aloísio Magalhães. Para o
o seu papel. embaixador Wladimir Murtinho, e tam-
bém para o ministro Severo Gomes, o tra-
Se nos anos 90 o processo mencionado balho do CNRC deveria assumir uma fei-
acima não é mais uma utopia − como algu- ção predominantemente etnográfica e
mas iniciativas em vários locais vêm de- bem mais modesta. Predominou, no en-
monstrando − ainda era nos anos 70, em tanto, na fase inicial, a visão de Fausto Al-
pleno regime militar, quando foi criado o vim Júnior, matemático com especializa-
Centro Nacional de Referência Cultural ção em informática.
(CNRC), posteriormente incorporado à
Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM). Os fundamentos que justificavam a existên-
É sobre esse pano de fundo, e a partir de cia do CNRC foram sendo formulados por
uma perspectiva crítica, mas que leva em Aloísio Magalhães, com a colaboração dos
conta os limites daquele momento, que funcionários do CNRC e de consultores ex-
vou falar da experiência de trabalho do ternos, e a partir das experiências de traba-
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lho, durante a segunda metade dos anos 70. para o país. E o discurso de Aloísio Maga-
Para Aloísio, havia ocorrido, nas décadas de lhães encontrou receptividade junto a es-
50 e 60, um achatamento de valores, uma ses interlocutores.
homogeneização da cultura. De um lado se
tinha a cultura oficial referida a um passado As referências que o CNRC se propunha a
morto, que era museificado. De outro, se apreender eram as da cultura em sua dinâ-
verificava a absorção acrítica dos valores mica (produção, circulação e consumo) e
exógenos, da modernização, da tecnologia em sua relação com os contextos socioeco-
e do mercado. A reação a esse processo de- nômicos. Ou seja, um projeto bastante
via ser buscada na cultura, domínio do par- complexo e ambicioso, e que visava exata-
ticular, da diversidade. Mas não na cultura mente àqueles bens que o IPHAN conside-
morta do patrimônio do passado, referên- rava fora de sua escala de valores. E, gradu-
cias concretas porém estáticas e distantes almente, a preocupação com os novos patri-
da nacionalidade. Era preciso buscar as raí- mônios passou a incluir os sujeitos a que se
zes vivas da identidade nacional exatamen- referiam esses patrimônios, primeiro com
te naqueles contextos e bens que o SPHAN a idéia de devolução dos resultados das
excluíra de sua atividade, por considerar es- pesquisas às populações interessadas e,
tranhos aos critérios (histórico, artístico, de posteriormente, com sua participação en-
excepcionalidade) que presidiam os tomba- quanto parceiros [MEC,1983]. Infelizmen-
mentos. te, inúmeros projetos desenvolvidos pelo
CNRC não chegaram a essa fase e seus rela-
Para Aloísio Magalhães, o Brasil ocupava, tórios e eventuais resultados ficaram guar-
entre os países, uma posição privilegiada dados nas gavetas.
em termos de perspectiva de desenvolvi-
mento. Aqui coexistiam, naquele momen- O Projeto Tecelagem Manual no Triângulo
to, o mundo avançado da tecnologia e da Mineiro, desenvolvido no âmbito do Pro-
indústria e o mundo das tradições popula- grama Tecnologias Patrimoniais, foi dos
res, do fazer artesanal. No projeto do poucos trabalhos realizados em que todas
CNRC se pretendia cruzar esses dois mun- as fases propostas foram cumpridas, o que
dos − o recurso às mais modernas tecnolo- permitiu avaliação da experiência [FNPM,
gias para recuperar e proteger as raízes au- 1984; Maureaux, 1986]. Presta-se, portanto,
tênticas da nacionalidade − com o objeti- a ser apresentado aqui como subsídio para
vo de fornecer indicadores para um desen- uma proposta de inventário de referências
volvimento apropriado [Magalhães, 1985]. culturais e como base para o estudo de for-
mas de apoio ao patrimônio imaterial.
Desde os primeiros anos, o trabalho reali-
zado no CNRC foi objeto de avaliações so- Tinha-se, nesse caso, um campo claramen-
licitadas a especialistas brasileiros e es- te delimitado − uma prática específica em
trangeiros, muitos dos quais levantavam uma região definida − e objetivos bem mo-
questões sobre a metodologia proposta. destos − documentar e compreender essa
Entre os brasileiros, sobretudo nos meios atividade para fornecer subsídios a eventu-
acadêmicos, havia desconfianças quanto a ais projetos de incentivo.
um projeto cultural desenvolvido com o
apoio de um governo autoritário. A uma coleta minuciosa de informações
(sobre a tecnologia, os padrões, os produ-
O fato, porém, é que o principal interlocu- tos, as diferentes orientações da prática, a
tor do CNRC era o Estado, o então protago- história, os contextos em que essas práti-
nista dos projetos de desenvolvimento cas se davam, as tecedeiras, etc.) aliou-se
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uma pesquisa dos meios de documentação sentidos que as tecedeiras, implícita e ex-
mais adequados para registrar as informa- plicitamente, atribuem à sua prática com a
ções (fotos, desenhos, vídeo, textos, uso do tecelagem. Possivelmente, não se teria reu-
computador para reproduzir padrões, etc.). nido, com a mesma segurança, os elemen-
tos − no caso, as referências − para se ava-
Partia-se do pressuposto de que só era possí- liar possíveis intervenções no sentido de
vel entender as diferentes orientações da se preservar ou não essa atividade, seja fo-
prática atual de tecelagem se essas orienta- mentando a prática tradicional, seja indi-
ções fossem relacionadas à evolução da tec- cando sua reorientação visando a um
nologia desde sua introdução no Brasil, às novo objetivo (mercado de bens artesa-
possibilidades e limites do equipamento e nais).
da técnica, e às necessidades materiais e
simbólicas − que a manutenção dessa práti- É importante frisar que não se partia tam-
ca vinha atender no momento atual. Essas bém de pressupostos que costumam estar
informações eram imprescindíveis para se presentes nas pesquisas feitas pelos folclo-
pensar em eventuais formas de apoio e in- ristas ou pelos planejadores econômicos,
centivo a essa atividade que fossem adequa- ou seja, a defesa incondicional da necessi-
das à sua especificidade. dade de se proteger produtos e modos de
vida autênticos, em uma visão idealizada
Uma característica da pesquisa, e que se re- da cultura popular; a redução da atividade
velou fundamental para a apreensão dessa artesanal a um tipo de trabalho anacrôni-
especificidade, como também para criar co, mas que poderia representar alternati-
uma ponte de diálogo com as tecedeiras, va economicamente viável em função do
foi o centramento na tecnologia. A descri- mercado de produtos artesanais, alimenta-
ção minuciosa de todo o processo de fabri- do pelas classes média e alta e sobretudo
cação de tecidos, além de propiciar a recu- em função do turismo, para ocupar mão-
peração desse fazer (de modo a registrá-lo de-obra não qualificada.
e a possibilitar sua eventual reprodução
em outros locais ou por pessoas desejosas Em ambos os casos, o foco estaria em valo-
de aprender a tecer) foi um caminho segu- res externos aos dos produtores e usuários
ro para se avaliar o potencial e os impasses habituais, e talvez fora das possibilidades
atuais dessa atividade na região. [Mau- daquela situação específica.
reaux, 1986].
No início da pesquisa, que incorporou a
Nossa hipótese era de que, se a pesquisa ti- contribuição do trabalho realizado por Ed-
vesse partido de questões mais genéricas e/ mar de Almeida, partia-se de uma perplexi-
ou abstratas, como indagar se se trata de dade: por que ainda se tece no Triângulo
artesanato ou indústria caseira, se a produ- Mineiro, tendo em vista que, economica-
ção atual conserva sua autenticidade, ou mente, essa atividade não é mais compen-
mesmo tentado captar diretamente o ima- sadora? de uma indagação: haverá condi-
ginário das tecedeiras, as representações ções e haverá interesse, sobretudo por par-
que constroem sobre o tecer, essa postura te das tecedeiras, em intervenções com o
poderia ter levado a pesquisa a reproduzir objetivo de se preservar essa atividade?
modelos de análise estranhos à maneira
como as tecedeiras encaram sua atividade, Os resultados da pesquisa indicaram que o
deixando de fora o que seria a maior rique- retorno mais produtivo da pesquisa do pon-
za e a mais importante contribuição de to de vista das tecedeiras seria um catálogo
uma pesquisa como essa: a apreensão dos que reunisse padrões e códigos para tecer os
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Apreender referências culturais significati- ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodri-
vas para um determinado grupo social pres- go e o SPHAN. Rio de Janeiro: MinC-
supõe não apenas um trabalho de pesquisa, SPHAN-FNPM, 1987.
documentação e análise, como também a ARANTES, Antônio Augusto (Org.). Produ-
consciência de que possivelmente se pro- zindo o Passado. São Paulo: Brasilien-
duzirão leituras, versões do contexto cultu- se, 1984.
ral em causa, diferenciadas e talvez até con- CEDEC/IPHAN. Parâmetros Metodológicos
traditórias, pois, dificilmente, se estará li- para o Resgate do Patrimônio Imaterial
dando com uma comunidade homogênea. no Estado de São Paulo. São Paulo,
1999.
Reconhecer essa diversidade não significa CENTRO NACIONAL DE REFERÊNCIA
que não se possa avaliar, distinguir e hie- CULTURAL. Bases para um Trabalho
rarquizar o saber produzido. Haverá sem- sobre o Artesanato Brasileiro Hoje. Bra-
pre referências que serão mais marcadas e/ sília, 1980.
ou significativas, pelo valor material ou FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patri-
pelo valor simbólico envolvidos. Por ou- mônio em Processo. Rio de Janeiro: UFRJ/
tro lado, bens aparentemente insignifican- IPHAN, 1997.
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