Você está na página 1de 10

Referências Culturais:

Base para novas políticas de patrimônio


Maria Cecília Londres Fonseca*

Introdução Melo Franco de Andrade (1987, p. 71) re-


conhecia que “o acervo dos bens culturais
A proteção de bens culturais de excepcio- compreendidos no campo de ação do ór-
nal valor histórico e artístico, em nome do gão integrante do Conselho ultrapassa lar-
interesse público, é prática social consoli- gamente a relação numérica dos bens ins-
dada no Brasil há mais de cinqüenta anos. critos nos livros do Tombo, bem como a
Essa prática, inaugurada pelo Serviço do fração dos que devem, por seus requisitos,
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ser incluídos no tombamento”. Esporadi-
(SPHAN), não costumava, até os anos 70, camente, nas reuniões do Conselho Con-
suscitar maiores dúvidas quanto aos prin- sultivo do órgão, eram discutidos os limi-
cípios que norteavam a aplicação do único tes do tombamento como único instru-
instrumento legal disponível: o tomba- mento de proteção adequado à diversidade
mento. As dificuldades e resistências en- do patrimônio cultural brasileiro.
contradas pelos pioneiros do SPHAN de-
corriam sobretudo de protestos à limitação Somente a partir de meados da década de
do direito de propriedade e de uso dos 70, os critérios adotados pelo Instituto do
bens tombados. Mas a autoridade intelec- Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
tual e moral dos modernistas que aderiram (IPHAN) começaram a ser objeto de reavali-
ao SPHAN e que se apresentavam como de- ações sistemáticas, que levaram à proposta
fensores do interesse da nação legitimava de uma nova perspectiva para a preserva-
a escolha dos bens a serem protegidos nos ção de bens culturais. Essas reavaliações
termos do Decreto-Lei no 25, de 30 de no- partiam de pessoas vinculadas a atividades
vembro de 1937. “modernas”, como o ‘design’, a indústria e
a informática. Entre outras mudanças, foi
Entretanto, Mário de Andrade já assinala- introduzida, no vocabulário das políticas
ra, na proposta entregue ao ministro Gus- culturais, a noção de referência cultural, e fo-
tavo Capanema em 1936, que o patrimô- ram levantadas questões que, até então, não
nio cultural da nação compreendia muitos preocupavam aqueles que formulavam e
outros bens além de monumentos e obras implementavam as políticas de patrimônio.
de arte. Anos depois, em fala à Câmara do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Indagações sobre quem tem legitimidade
do Conselho Nacional de Cultura, Rodrigo para selecionar o que deve ser preservado,
a partir de que valores, em nome de que
* Assessora do Ministério da Cultura. interesses e de que grupos, passaram a pôr
POLÍTICAS SOCIAIS
112 acompanhamento e análise

em destaque a dimensão social e política sign’, a indústria, a informática) e no exer-


de uma atividade que costuma ser vista cício de uma prática institucional e políti-
como eminentemente técnica. Entendia-se ca. A noção de referência cultural, entre ou-
que o patrimônio cultural brasileiro não tras, foi incorporada por esses agentes a seu
devia se restringir aos grandes monumen- discurso, como um dos emblemas de sua
tos, aos testemunhos da história oficial, em proposta. Pouco explorada enquanto con-
que sobretudo as elites se reconhecem, ceito, tornou-se porém a marca de uma pos-
mas devia incluir também manifestações tura inovadora em relação à noção de patri-
culturais representativas para os outros mônio histórico e artístico, na medida em
grupos que compõem a sociedade brasilei- que, naquele momento, remetia primordi-
ra − os índios, os negros, os imigrantes, as almente ao patrimônio cultural não consa-
classes populares em geral. grado. A noção de referência cultural, e as
inúmeras experiências que, em seu nome,
Quando se fala em referências culturais, se foram realizadas, serviram de base associa-
pressupõem sujeitos para os quais essas re- das à releitura das posições de Mário de An-
ferências façam sentido (referências para drade no seu anteprojeto para um Serviço
quem?). Essa perspectiva veio deslocar o do Patrimônio Artístico Nacional e na sua
foco dos bens − que em geral se impõem atuação no Departamento de Cultura para a
por sua monumentalidade, por sua rique- definição de patrimônio cultural expressa
za, por seu “peso” material e simbólico − no artigo 216 da Constituição Federal de
para a dinâmica de atribuição de sentidos 1988, que alarga o conceito ao falar de
e valores. Ou seja, para o fato de que os “bens culturais de natureza material e ima-
bens culturais não valem por si mesmos, terial” (ênfase do autor).
não têm um valor intrínseco. O valor lhes
é sempre atribuído por sujeitos particula- Entretanto, o cumprimento do preceito
res e em função de determinados critérios constitucional implica regulamentação no
e interesses historicamente condiciona- que diz respeito à preservação dos bens
dos. Levada às últimas conseqüências, essa culturais de natureza imaterial, para os
perspectiva afirma a relatividade de qual- quais instrumentos de proteção de caráter
quer processo de atribuição de valor − seja restritivo, como é o tombamento, são ina-
valor histórico, artístico, nacional etc. − a dequados. É preciso criar formas de identi-
bens, e põe em questão os critérios até en- ficação e de apoio que, sem tolher ou con-
tão adotados para a constituição de patri- gelar essas manifestações culturais, nem
mônios culturais, legitimados por discipli- aprisioná-las a valores discutíveis como o
nas como a história, a história da arte, a ar- de autenticidade, favoreçam sua continui-
queologia, a etnografia, etc. Relativizando dade. Por esse motivo, considero que reto-
o critério do saber, chamava-se atenção mar a experiência relativamente recente do
para o papel do poder. Centro Nacional de Referência Cultural
(CNRC), e tentar avançar no entendimento
Neste texto, parto do pressuposto de que da noção de referência cultural, pode con-
ocorreu no Brasil, nos anos 70, uma reori- tribuir para alcançar esse objetivo.
entação de uma prática implementada pelo
Estado desde 1937 − a preservação de bens A Noção de Referência Cultural
culturais −, reorientação que, embora esti-
vesse em consonância com mudanças nos A expressão referência cultural tem sido uti-
diferentes campos das ciências sociais − a lizada sobretudo em textos que têm como
história, sobretudo a antropologia −, partiu base uma concepção antropológica de cul-
de agentes vinculados a outras áreas (o ‘de- tura, e que enfatizam a diversidade não só
POLÍTICAS SOCIAIS
acompanhamento e análise 113

da produção material, como também dos var o patrimônio, implica uma reorientação
sentidos e valores atribuídos pelos diferen- do uso desse solo. Trata-se de levar em
tes sujeitos a bens e práticas sociais. Essa conta um ambiente, que não se constitui
perspectiva plural de algum modo veio apenas de natureza − vegetação, relevo,
“descentrar” os critérios considerados ob- rios e lagos, fauna e flora, etc. − e de um
jetivos, porque fundados em saberes consi- conjunto de construções, mas, sobretudo,
derados legítimos que costumavam nortear de um processo cultural − ou seja, a manei-
as interpretações e as atuações no campo ra como determinados sujeitos ocupam
da preservação de bens culturais. esse solo, utilizam e valorizam os recursos
existentes, como constróem sua história,
Por exemplo, no caso de inventários em como produzem edificações e objetos, co-
sítios históricos urbanos, quando o que nhecimentos, usos e costumes.
está em jogo não é apenas a proteção de
determinados bens − sejam bens arquitetô- Embora essas informações só possam ser
nicos isolados, sejam acervos de bens mó- apreendidas a partir de manifestações ma-
veis − mas o reordenamento de um espaço, teriais, ou “suportes” − sítios, monumen-
a questão é ainda mais complexa, pois im- tos, conjuntos urbanos, artefatos, relatos,
plica a administração de interesses distin- ritos, práticas, etc. − só se constituem
tos e a interferência no destino de uma re- como referências culturais quando são con-
gião e dos que nela habitam. Trata-se de sideradas e valorizadas enquanto marcas
produzir um conhecimento para iluminar distintivas por sujeitos definidos.
uma intervenção.
Falar em referências culturais nesse caso
Ao se incluir nesse conhecimento a identi- significa, pois, dirigir o olhar para repre-
ficação de referências culturais, deseja-se que, sentações que configuram uma “identida-
nessa intervenção, seja levada em conta de” da região para seus habitantes, e que
não apenas a consideração do valor históri- remetem à paisagem, às edificações e obje-
co e artístico dos bens. Mesmo que a isso se tos, aos “fazeres” e “saberes”, às crenças,
acrescente uma preocupação com a racio- hábitos, etc.
nalidade econômica e social da interven-
ção, é possível que os inventários deixem Referências culturais não se constituem,
de fora a dimensão simbólica daquele espa- portanto, em objetos considerados em si
ço para seus habitantes, necessariamente mesmos, intrinsecamente valiosos, nem
plural e diversificada. Pois, do ponto de vis- apreender referências significa apenas ar-
ta da cultura, considerar apenas a concen- mazenar bens ou informações. Ao identifi-
tração, em uma determinada área, de um carem determinados elementos como parti-
número significativo de monumentos ex- cularmente significativos, os grupos sociais
cepcionais de algum modo a desvitaliza, operam uma ressemantização desses elemen-
uma vez que se deixa, assim, de apreender tos, relacionando-os a uma representação
em toda a sua complexidade a dinâmica de coletiva a que cada membro do grupo de al-
ocupação e de uso daquele espaço. gum modo se identifica.

Logo, quando não se trata de solo virgem, O ato de apreender referências culturais
inexplorado, mas de regiões que têm histó- pressupõe não apenas a captação de deter-
ria, tradições, ou seja, quando se trata de minadas representações simbólicas, como
um solo “cultivado”, que tem cultura ins- também a elaboração de relações entre
crita nele, pensar em uma intervenção, elas e a construção de sistemas que “fa-
mesmo que seja com o objetivo de preser- lem” daquele contexto cultural, no sentido
POLÍTICAS SOCIAIS
114 acompanhamento e análise

de representá-lo. Nessa perspectiva, os su- quando não recorrem simplesmente à des-


jeitos dos diferentes contextos culturais truição dos vestígios da cultura daqueles
têm um papel não apenas de informantes que desejam submeter. É do lugar da hege-
como também de intérpretes de seu patri- monia cultural que se constróem represen-
mônio cultural. Na segunda parte deste tações de uma identidade nacional.
texto, a partir de exemplos, vou tentar de-
senvolver esse raciocínio. Portanto, se consideramos a atividade de
identificar referências e proteger bens cul-
O conhecer é o primeiro passo para prote- turais não apenas como um saber, mas
ger essas referências − pois é preciso, antes também como um poder, cabe perguntar:
de mais nada, identificá-las, enunciá-las. quem teria legitimidade para decidir quais
Entretanto, como a dimensão simbólica do são as referências mais significativas e o
espaço costuma ser mais “vivida” que co- que deve ser preservado, sobretudo quan-
nhecida, e também porque sua considera- do estão em jogo diferentes versões da
ção pode limitar a realização de interesses identidade de um mesmo grupo?
outros (como a valorização do solo como
mercadoria, para construção de novas edi- O Estado tradicionalmente delega aos inte-
ficações), essa dimensão raramente é leva- lectuais essa função. São eles os encarrega-
da em conta no planejamento urbano. São, dos de criar museus, arquivos, tombar
inclusive, valores que só costumam ser bens, etc. Esses espaços − e os bens neles
conscientizados quando se supõe a imi- preservados − tornam-se assim públicos,
nência da perda [Gonçalves,1996], como mas cabe perguntar quão públicos na reali-
ocorreu, por exemplo, nos anos 30, quan- dade são.
do alguns intelectuais modernistas perce-
beram que o processo de urbanização e o Só muito recentemente a defesa de valores
abandono das cidades históricas mineiras como a qualidade de vida, a proteção do
ameaçavam destruir irremediavelmente o meio ambiente e a preservação de referên-
legado da arte barroca do período colonial. cias culturais que não apenas as de valor ex-
cepcional (leia-se, do ponto de vista daque-
Entretanto, como a preservação de bens les que detêm o poder de assim defini-las)
culturais não atende a um interesse mera- passou a ser entendida como direito do ci-
mente museológico ou etnográfico, o co- dadão, que pressiona o poder público no
nhecer − que se vale do saber já consolida- sentido de assegurar para si o gozo desses
do das diferentes ciências − é um passo ne- direitos. As referências culturais de grupos
cessário mas não suficiente para uma inter- antes sem voz própria (as chamadas minori-
venção. Nesse ponto, o político vai se aliar as) começam a ser reconhecidas nos textos
ao saber − o que não significa que a dimen- legais como objetos de direitos. Como se
são política não estivesse presente, de al- trata, em linguagem jurídica, de interesses
gum modo, no momento do conhecer. difusos, de aferição subjetiva, sua definição
para fins de proteção constitui um proble-
Preservar traços de sua cultura é também, ma complexo, dificilmente solucionável
hoje sabemos, uma demonstração de po- pela transposição de modelos.
der. Pois são os poderosos que não só con-
seguem preservar as marcas de sua identi- O fato é que o princípio exclusivo de auto-
dade como, muitas vezes, chegam até a se ridade − seja ela científica, religiosa, finca-
apropriar de referências de outros grupos da na tradição, ou mesmo política (o Esta-
(no caso do Brasil, de índios e negros), res- do agindo em nome da nação) − não se
semantizando-as na sua interpretação. Isso sustenta em uma sociedade que se queira
POLÍTICAS SOCIAIS
acompanhamento e análise 115

democrática. Por outro lado, a ausculta de CNRC e da FNPM, de que tive o privilégio
outras “vozes”, a consideração de outros de participar.
interesses que não os dos grupos de maior
poder econômico e/ou intelectual, só é A Experiência do CNRC
possível se a própria sociedade se organiza
com essa finalidade. Ao ser criado, em 1o de julho de 1975, o
CNRC definia como seu objetivo “o traça-
Nesse sentido, o reconhecimento, de um do de um sistema referencial básico para a
lado, da diversidade de contextos cultu- descrição e análise de dinâmica cultural
rais, da pluralidade de representações des- brasileira” [MEC/SPHAN/FNPM, 1980; Ma-
ses contextos, e do conflito dos interesses galhães, 1985; Fonseca, 1997].
em jogo, e, de outro lado, da necessidade
de se definir um consenso − o que preser- A escolha do termo “referência” para carac-
var, com que finalidade, qual o custo, etc., terizar a atividade do centro tinha um inte-
pressupõe a necessidade de se criarem es- resse estratégico naquele momento:
paços públicos, não apenas para usufruto tratava-se de se distinguir das instituições
da comunidade, como para as próprias to- oficiais, museológicas, e propor uma forma
madas de decisão. Processo complexo e nova e moderna de atuação na área de cul-
nem sempre viável, mas em princípio pos- tura. Tudo − o objeto, o método, a forma de
sível, hoje, quando descentralização e or- trabalhar e arregimentar pessoal, e mesmo
ganização da sociedade civil são palavras o formato institucional − se propunha
de ordem que estão, aos poucos, se tornan- como diferenciado. E Aloísio Magalhães
do realidade. Nesse contexto, tanto a auto- soube, com sua habilidade, como conse-
ridade do saber (dos intelectuais) quanto guir, para a realização dessa experiência, o
do poder (do Estado e da sociedade, por apoio de setores mais esclarecidos do gover-
meio de suas formas de representação polí- no militar, como o do então ministro da In-
tica), têm participação fundamental no dústria e Comércio, Severo Gomes, e, poste-
processo de seleção do que deve ser preser- riormente, do ministro da Educação e Cul-
vado, mas não constituem poderes decisó- tura, Eduardo Portella, e dos generais Gol-
rios exclusivos. Podemos dizer que, a par- bery do Couto e Silva e Rubem Ludwig.
tir dos anos 70, o eixo do problema da pre-
servação deslocou-se de uma esfera emi- Nos primeiros tempos, outras visões sobre
nentemente técnica para um campo em o trabalho do CNRC se contrapunham à
que a negociação política tem reconhecido concepção de Aloísio Magalhães. Para o
o seu papel. embaixador Wladimir Murtinho, e tam-
bém para o ministro Severo Gomes, o tra-
Se nos anos 90 o processo mencionado balho do CNRC deveria assumir uma fei-
acima não é mais uma utopia − como algu- ção predominantemente etnográfica e
mas iniciativas em vários locais vêm de- bem mais modesta. Predominou, no en-
monstrando − ainda era nos anos 70, em tanto, na fase inicial, a visão de Fausto Al-
pleno regime militar, quando foi criado o vim Júnior, matemático com especializa-
Centro Nacional de Referência Cultural ção em informática.
(CNRC), posteriormente incorporado à
Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM). Os fundamentos que justificavam a existên-
É sobre esse pano de fundo, e a partir de cia do CNRC foram sendo formulados por
uma perspectiva crítica, mas que leva em Aloísio Magalhães, com a colaboração dos
conta os limites daquele momento, que funcionários do CNRC e de consultores ex-
vou falar da experiência de trabalho do ternos, e a partir das experiências de traba-
POLÍTICAS SOCIAIS
116 acompanhamento e análise

lho, durante a segunda metade dos anos 70. para o país. E o discurso de Aloísio Maga-
Para Aloísio, havia ocorrido, nas décadas de lhães encontrou receptividade junto a es-
50 e 60, um “achatamento” de valores, uma ses interlocutores.
homogeneização da cultura. De um lado se
tinha a cultura oficial referida a um passado As referências que o CNRC se propunha a
“morto”, que era museificado. De outro, se apreender eram as da cultura em sua dinâ-
verificava a absorção acrítica dos valores mica (produção, circulação e consumo) e
exógenos, da modernização, da tecnologia em sua relação com os contextos socioeco-
e do mercado. A reação a esse processo de- nômicos. Ou seja, um projeto bastante
via ser buscada na cultura, domínio do par- complexo e ambicioso, e que visava exata-
ticular, da diversidade. Mas não na cultura mente àqueles bens que o IPHAN conside-
“morta” do patrimônio do passado, referên- rava fora de sua escala de valores. E, gradu-
cias concretas porém estáticas e distantes almente, a preocupação com os novos patri-
da nacionalidade. Era preciso buscar as raí- mônios passou a incluir os sujeitos a que se
zes vivas da identidade nacional exatamen- referiam esses patrimônios, primeiro com
te naqueles contextos e bens que o SPHAN a idéia de “devolução” dos resultados das
excluíra de sua atividade, por considerar es- pesquisas às populações interessadas e,
tranhos aos critérios (histórico, artístico, de posteriormente, com sua participação en-
excepcionalidade) que presidiam os tomba- quanto parceiros [MEC,1983]. Infelizmen-
mentos. te, inúmeros projetos desenvolvidos pelo
CNRC não chegaram a essa fase e seus rela-
Para Aloísio Magalhães, o Brasil ocupava, tórios e eventuais resultados ficaram guar-
entre os países, uma posição privilegiada dados nas gavetas.
em termos de perspectiva de desenvolvi-
mento. Aqui coexistiam, naquele momen- O Projeto Tecelagem Manual no Triângulo
to, o mundo avançado da tecnologia e da Mineiro, desenvolvido no âmbito do Pro-
indústria e o mundo das tradições popula- grama Tecnologias Patrimoniais, foi dos
res, do fazer artesanal. No projeto do poucos trabalhos realizados em que todas
CNRC se pretendia cruzar esses dois mun- as fases propostas foram cumpridas, o que
dos − o recurso às mais modernas tecnolo- permitiu avaliação da experiência [FNPM,
gias para recuperar e proteger as raízes au- 1984; Maureaux, 1986]. Presta-se, portanto,
tênticas da nacionalidade − com o objeti- a ser apresentado aqui como subsídio para
vo de fornecer indicadores para um desen- uma proposta de inventário de referências
volvimento apropriado [Magalhães, 1985]. culturais e como base para o estudo de for-
mas de apoio ao patrimônio imaterial.
Desde os primeiros anos, o trabalho reali-
zado no CNRC foi objeto de avaliações so- Tinha-se, nesse caso, um campo claramen-
licitadas a especialistas brasileiros e es- te delimitado − uma prática específica em
trangeiros, muitos dos quais levantavam uma região definida − e objetivos bem mo-
questões sobre a metodologia proposta. destos − documentar e compreender essa
Entre os brasileiros, sobretudo nos meios atividade para fornecer subsídios a eventu-
acadêmicos, havia desconfianças quanto a ais projetos de incentivo.
um projeto cultural desenvolvido com o
apoio de um governo autoritário. A uma coleta minuciosa de informações
(sobre a tecnologia, os padrões, os produ-
O fato, porém, é que o principal interlocu- tos, as diferentes orientações da prática, a
tor do CNRC era o Estado, o então protago- história, os contextos em que essas práti-
nista dos projetos de desenvolvimento cas se davam, as tecedeiras, etc.) aliou-se
POLÍTICAS SOCIAIS
acompanhamento e análise 117

uma pesquisa dos meios de documentação sentidos que as tecedeiras, implícita e ex-
mais adequados para registrar as informa- plicitamente, atribuem à sua prática com a
ções (fotos, desenhos, vídeo, textos, uso do tecelagem. Possivelmente, não se teria reu-
computador para reproduzir padrões, etc.). nido, com a mesma segurança, os elemen-
tos − no caso, as referências − para se ava-
Partia-se do pressuposto de que só era possí- liar possíveis intervenções no sentido de
vel entender as diferentes orientações da se preservar ou não essa atividade, seja fo-
prática atual de tecelagem se essas orienta- mentando a prática tradicional, seja indi-
ções fossem relacionadas à evolução da tec- cando sua reorientação visando a um
nologia desde sua introdução no Brasil, às novo objetivo (mercado de bens artesa-
possibilidades e limites do equipamento e nais).
da técnica, e às necessidades materiais e
simbólicas − que a manutenção dessa práti- É importante frisar que não se partia tam-
ca vinha atender no momento atual. Essas bém de pressupostos que costumam estar
informações eram imprescindíveis para se presentes nas pesquisas feitas pelos folclo-
pensar em eventuais formas de apoio e in- ristas ou pelos planejadores econômicos,
centivo a essa atividade que fossem adequa- ou seja, a defesa incondicional da necessi-
das à sua especificidade. dade de se proteger produtos e modos de
vida autênticos, em uma visão idealizada
Uma característica da pesquisa, e que se re- da cultura popular; a redução da atividade
velou fundamental para a apreensão dessa artesanal a um tipo de trabalho anacrôni-
especificidade, como também para criar co, mas que poderia representar alternati-
uma ponte de diálogo com as tecedeiras, va economicamente viável em função do
foi o centramento na tecnologia. A descri- mercado de produtos artesanais, alimenta-
ção minuciosa de todo o processo de fabri- do pelas classes média e alta e sobretudo
cação de tecidos, além de propiciar a recu- em função do turismo, para ocupar mão-
peração desse fazer (de modo a registrá-lo de-obra não qualificada.
e a possibilitar sua eventual reprodução
em outros locais ou por pessoas desejosas Em ambos os casos, o foco estaria em valo-
de aprender a tecer) foi um caminho segu- res externos aos dos produtores e usuários
ro para se avaliar o potencial e os impasses habituais, e talvez fora das possibilidades
atuais dessa atividade na região. [Mau- daquela situação específica.
reaux, 1986].
No início da pesquisa, que incorporou a
Nossa hipótese era de que, se a pesquisa ti- contribuição do trabalho realizado por Ed-
vesse partido de questões mais genéricas e/ mar de Almeida, partia-se de uma perplexi-
ou abstratas, como indagar se se trata de dade: por que ainda se tece no Triângulo
artesanato ou indústria caseira, se a produ- Mineiro, tendo em vista que, economica-
ção atual conserva sua autenticidade, ou mente, essa atividade não é mais compen-
mesmo tentado captar diretamente o ima- sadora? de uma indagação: haverá condi-
ginário das tecedeiras, as representações ções e haverá interesse, sobretudo por par-
que constroem sobre o tecer, essa postura te das tecedeiras, em intervenções com o
poderia ter levado a pesquisa a reproduzir objetivo de se preservar essa atividade?
modelos de análise estranhos à maneira
como as tecedeiras encaram sua atividade, Os resultados da pesquisa indicaram que o
deixando de fora o que seria a maior rique- retorno mais produtivo da pesquisa do pon-
za e a mais importante contribuição de to de vista das tecedeiras seria um catálogo
uma pesquisa como essa: a apreensão dos que reunisse padrões e códigos para tecer os
POLÍTICAS SOCIAIS
118 acompanhamento e análise

produtos, permitindo-lhes assim dispor dade dessas manifestações, esses estudiosos


tanto de uma coleção maior que aquela que na verdade estão tentando preservar seus
qualquer uma delas poderia reunir indivi- próprios valores, convertendo a cultura
dualmente, e de um mostruário do que po- popular em símbolo de um tempo perdido
diam tecer, para dialogar com seus eventu- e em refúgio para a vida moderna.
ais fregueses. Outros produtos, como a pu-
blicação e o vídeo, dirigiam-se a outras esfe- Orientar um trabalho de preservação a
ras de público, com o objetivo, além de re- partir da noção de referência cultural − tal
gistrar, propiciar, aos eventuais consumido- como é entendida neste texto − significa
res, melhor compreensão do que é a tecela- buscar formas de se aproximar do ponto-
gem manual, aproximando, assim, a de- de-vista dos sujeitos diretamente envolvi-
manda daquilo que o produtor pode efeti- dos com a dinâmica da produção, circula-
vamente oferecer. Ou, em outros termos, ção e consumo dos bens culturais. Ou seja,
revelando a especificidade cultural do que significa, em última instância, reconhecer-
costuma ser buscado como mera mercado- lhes o estatuto de legítimos detentores não
ria, em geral por seu caráter exótico, popu- apenas de um saber-fazer, como também do
lar ou folclórico, uma vez que o consumi- destino de sua própria cultura. Não é pre-
dor costuma projetar, sobre a atividade ar- ciso chamar atenção para as implicações
tesanal, valores que muitas vezes são estra- políticas dessa perspectiva, nem para seus
nhos àquele universo (como a originalida- limites em situações concretas, quando até
de no caso da tecelagem). o termo comunidade pode servir para enco-
brir interesses de grupos locais mais pode-
Em termos gerais, a pesquisa com a tecela- rosos, de autoridades políticas, etc.
gem, assim como outras realizadas com a
cerâmica, o trançado indígena e o artesa- Essas experiências de trabalho, iniciadas no
nato de reciclagem de pneus, veio mostrar CNRC e incorporadas à Fundação Nacional
a impossibilidade de se reduzir diferentes Pró-Memória, criada em 1979, contribuí-
atividades a um único modelo de interpre- ram para a elaboração do documento Dire-
tação. Pois, justamente, o que distingue as trizes para Operacionalização da Política Cul-
produções pré-industriais da produção in- tural do MEC, de 1983, fruto do trabalho co-
dustrial é sua diversidade, em função de letivo das várias instituições que integra-
sua adequação ao meio ambiente, às neces- vam a Secretaria de Cultura do MEC, criada
sidades do momento, a um universo sim- em 1981 e entregue a Aloísio Magalhães.
bólico, etc. Ou seja, a tentativa de apreen- Nesse documento, é claramente afirmado o
der as referências culturais que caracteri- princípio da parceria entre Estado e comu-
zam a tecelagem manual em teares de qua- nidade na produção e preservação dos bens
tro pedais, tal como é praticada no Triân- culturais, o que, no entender de alguns, soa-
gulo Mineiro, partia do pressuposto de va falso em um período de ditadura militar.
que, sob uma capa de “resistência”, de rei- Além disso, criticava-se, também, uma ima-
teração de gestos e produtos, se desenvol- gem idealizada da cultura popular, que obs-
via uma dinâmica específica. Essa perspec- curecia a dimensão da subalternidade, das
tiva está bem distante de uma visão − que é contradições e dos conflitos com que esses
a que costuma ser adotada pelos folcloris- grupos se debatiam. Na verdade, o discurso
tas − que interpreta as manifestações da da participação revelava claramente o seu
cultura popular a partir de uma noção mí- caráter contraditório: enunciado pelo Esta-
tica de tempo, enfatizando o seu caráter re- do, só podia, no entanto, ser concretizado
petitivo, opondo tradição a mudança. Ao por iniciativa da sociedade.
tentarem resgatar ou preservar a autentici-
POLÍTICAS SOCIAIS
acompanhamento e análise 119

Conclusão tes podem ser fundamentais para a cons-


trução da identidade social de uma comu-
Resumindo, espero que tenha ficado claro nidade, de uma cidade, de um grupo étnico
que não me refiro a referências culturais etc. Ou seja, é preciso definir um ponto de
como objetos ou práticas, nem como da- vista para organizar o que se quer identifi-
dos coletados sobre esses bens. Um Centro car, e para isso é preciso definir um deter-
de Referências Culturais não se confundi- minado recorte ou recortes − como, por
ria com um museu ou um banco de dados. exemplo, o trabalho, a religiosidade, a so-
ciabilidade −, o que, evidentemente, vai
A noção de referência cultural pressupõe a indicar uma determinada compreensão do
produção de informações e a pesquisa de campo que se quer mapear.
suportes materiais para documentá-las, mas
significa algo mais: um trabalho de elabora- Concluindo, acredito que pensar a preser-
ção desses dados, de compreensão da resse- vação de bens culturais a partir da identifi-
mantização de bens e práticas realizadas por cação de referências culturais − do modo
determinados grupos sociais, que visa à como essa noção foi entendida neste texto
construção de um sistema referencial da – significa adotar uma postura antes pre-
cultura daquele contexto específico. Nesse ventiva que curativa. Pois trata-se de identi-
processo, a situação de diálogo que necessa- ficar, na dinâmica social em que se inse-
riamente se estabelece entre pesquisadores rem bens e práticas culturais, sentidos e
e membros da comunidade propicia uma valores vivos, marcos de vivências e expe-
troca com a qual todos sairão enriquecidos: riências que conformam uma cultura para
para os agentes externos, valores antes des- os sujeitos que com ela se identificam. Va-
conhecidos virão ampliar seu conhecimen- lores e sentidos esses que estão sendo
to e compreensão do patrimônio cultural; constantemente produzidos e reelabora-
para os habitantes da região, esse contato dos, e que evidenciam a inserção da ativi-
pode significar a oportunidade de recuperar dade de preservação de bens culturais no
e valorizar partes do seu acervo de bens campo das práticas simbólicas.
culturais e de incorporá-las ao desenvolvi-
mento da comunidade. Referências Bibliográficas

Apreender referências culturais significati- ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodri-
vas para um determinado grupo social pres- go e o SPHAN. Rio de Janeiro: MinC-
supõe não apenas um trabalho de pesquisa, SPHAN-FNPM, 1987.
documentação e análise, como também a ARANTES, Antônio Augusto (Org.). Produ-
consciência de que possivelmente se pro- zindo o Passado. São Paulo: Brasilien-
duzirão leituras, versões do contexto cultu- se, 1984.
ral em causa, diferenciadas e talvez até con- CEDEC/IPHAN. Parâmetros Metodológicos
traditórias, pois, dificilmente, se estará li- para o Resgate do Patrimônio Imaterial
dando com uma comunidade homogênea. no Estado de São Paulo. São Paulo,
1999.
Reconhecer essa diversidade não significa CENTRO NACIONAL DE REFERÊNCIA
que não se possa avaliar, distinguir e hie- CULTURAL. Bases para um Trabalho
rarquizar o saber produzido. Haverá sem- sobre o Artesanato Brasileiro Hoje. Bra-
pre referências que serão mais marcadas e/ sília, 1980.
ou significativas, pelo valor material ou FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patri-
pelo valor simbólico envolvidos. Por ou- mônio em Processo. Rio de Janeiro: UFRJ/
tro lado, bens aparentemente insignifican- IPHAN, 1997.
POLÍTICAS SOCIAIS
120 acompanhamento e análise

FUNDAÇÃO NACIONAL PRO-MEMÓRIA.


Tecelagem Manual no Triângulo Minei-
ro. Brasília, 1984.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Re-
tórica da Perda. Rio de Janeiro: UFRJ/
IPHAN, 1996.
JAKOBSON, Roman. Linguistique et Poéti-
que. In: Essais de Linguistique Généra-
le. Paris: Minuit. 1963. p. 209-248.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História:
novos problemas. 2. ed. Rio de Janei-
ro: Francisco Alves, 1979.
LUKÁCS, Georg. Problemas del Realismo.
México: Fondo de Cultura Economico,
1966.
MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? Rio de
Janeiro: Nova Fronteira; Brasília:
FNPM, 1985.
MAUREAUX, Xavier. Tecelagem Manual
no Triângulo Mineiro: uma política
sistemática de inventário tecnológi-
co. Revista do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional, n. 20, p. 56-63. 1986.
MEC/SPHAN/FNPM. Proteção e Revitaliza-
ção do Patrimônio Cultural no Brasil:
uma trajetória. Brasília: MEC/SPHAN/
FNPM, 1980.
MEC. Diretrizes para Operacionalização da
Política Cultural do MEC. Brasília, 1983.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filoso-
fia. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MOTTA, Lia e SILVA, Maria Beatriz Resen-
de. Inventários de Identificação. Rio de Janei-
ro: IPHAN, 1998.

Você também pode gostar