Você está na página 1de 229

9 788599 156865

ri
REVOLUÇÃO PASSIVA E MODO DE VIDA:

ENSAIOS SOBRE AS CLASSES SUBALTERNAS,


O CAPITALISMO E A HEGEMONIA
EDMUNDO FERNANDES DIAS

REVOLUÇÃO PASSIVA E MODO DE VIDA:

ENSAIOS SOBRE AS CLASSES SUBALTERNAS,


O CAPITALISMO E A HEGEMONIA

São Paulo, 2012


@2012, Editora José Luís e Rosa Sundermann

A editora autoriza a reprodução de partes deste livro para fins acadêmicos e/ou de divulgação
eletrônica, desde que mencionada a fonte.

Coordenação editorial: Henrique Canary, Jorge Breogan e Martha Piloto


Revisão: Natalia Conti Sumário
Capa e diagramação: Martha Piloto
Revisão final: Henrique Canary
Premissa, 9

Sobre a crise, 19

Norma, Instituição, Luta: poder da palavra ou palavra do poder?, 35

Sobre os modos de vida, 51


Dados internacionais de catalogação (C1P) elaborados na fonte por Iraci Borges
(CRB-8:2263) Uma olhada sobre o 81ack Panther: classe, gênero, etnia, 61

Pode o subalterno falar?, 67


Dias, Edmundo Fernandes.
Revolução passiva e modo de vida: ensaio sobre as
classes subalternas, o capitalismo e a hegemonia. São
Intelectuais e senso comum, 83
Paulo: Editora José Luis e Rosa Sundermann, 2012.
384 p. Intelectuais, ontem, hoje, 97

ISBN: 978859915686-5 A hegemonia como articulação, 103

1. Classes sociais. 2. Hegemonia. 3. Marxismo. Decifrar o fetichismo, construir a emancipação, 113


4.lntelectualidade. 5.Linguagem - política. I. Título
CDD 301.35 Em busca da legitimidade burguesa (processo de construção), 123

Ainda sobre a linguagem e o espaço da política, 133


( ,
I ~,

O espaço como linguagem (e a linguagem como arma ofensiva e defensiva), 159

Determinismo: o caminho da derrota,185


Editora José Luís e Rosa Sundermann Panzieri, a subjetividade antagonista e o poder operário, 195
Avenida 9 de Julho, 925 •
Bela Vista. São Paulo • Brasil. 01313-000. La nuova clase operaria e I'autunno caldo, 201
55 -11 3253 5801
vendas@editorasundermann.com.br • www.editorasundermann.com.br A democracia da Gládio, 221
A Estratégia da Derrota: o silenciamento dos subalternos, 229

Trabalho sob o neoliberalismo: autônomo ou penoso?, 253

Crise e classes: problemas ou soluções? Ainda sobre o silêncio, 269

Capitalismo e Loucura, 275

O neoliberalismo mata, 281

O genocídio neoliberal - os "p": pobre, preto, preso,289

Estado-penitenciário: o paraíso do neoliberalismo, 301

Os intelectuais como direção dos subalternos, 309

Política como construção de hegemonia, 315 Para

A educação e a tentativa de construir o consenso, 331 Moema, filha amada.


Construir o sentido, o projeto, 349
Márcia, que tem tornado minha vida possível em momentos difíceis de minha
Bibliografia, 359 saúde.

Filmografia, 379 Natalia, pela generosidade e revisão cuidadosa desse texto.

Se erros houverem a responsabilidade é do autor.

Uma fábula orientafI conta a história de um homem em cuja boca, enquanto ele
dormia, entrou uma serpente. A serpente chegou ao seu estômago, onde se alojou e
de onde passou a impor ao homem a sua vontade, privando-o assim da liberdade.
O homem estava à mercê da serpente: já não se pertencia. Até que uma manhã
o homem sente que a serpente tinha partido e que era livre de novo. Então se dá
conta de que não sabe o que fazer da sua liberdade: "No longo período de domínio
absoluto da serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter sua vontade à
vontade dela, seus desejos aos desejos dela e seus impulsos aos impulsos dela que
havia perdido a capacidade de desejar, de tender para qualquer coisa e de agir au-
tonomamente". "Em vez de liberdade ele encontrara o vazio", porque ''junto com a
serpente saíra a sua nova 'essência', adquirida no cativeiro", e não lhe restava mais
do que reconquistar pouco a pouco o antigo conteúdo humano de sua vida.

Franco Basaglia, Le Istituzione della violenza

1 Contada por Jurij Davydov em Il Lavoro e la libertà, Einaudi, Torino, 1966. Grifo nosso.
8 Edmundo Fernandes Dias

o perigo oposto ao empirismo é o de uma denúncia de tipo abstrato: de uma denún-


cia global, extremista e imprecisa.
Giovanni Jarvis2

Os intelectuais não devem fornecer receitas para viver melhor, mas suscitar pergun-
tas: o seu ofício é abrir questões, explorar o mundo das possibilidades, e concorrer,
em conjunto, com os outros cidadãos para definir as metas e os objetivos comuns de
uma sociedade.
Pietro Barcelona3 PREMISSA

"Os fodidos sempre serão fodidos': como costumava dizer Dom Emílio Azcárra-
ga, que foi amo e senhor da televisão mexicana:' [... ] devemos aprender porque tínhamos amado as nossas cadeias e não tínha-
Eduardo Galean0 4 mos querido retirá-las do nosso dorso. Apenas nós, os oprimidos politicamente
conscientes, podemos descobrir como fomos modelados, persuadidos e literal-
O sistema nos esvazia a memória, ou nos enche a memória de lixo, e assim nos mente produzidos como qualquer produto manufatureiro para cooperar plasti-
ensina a repetir a história em lugar de fazê-la. camente na nossa própria opressão. Esta é a nossa responsabilidade histórica.
Eduardo Galeano s
Robin. D. G. Kelley
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome,
histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta, "hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo conta- Poder do discurso ou Discurso do Poder, that's the questiono Esta é a questão cen-
to celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite. traI que se completa com outra, "quem falà' ou "quem ouve de maneira consensual
ou rebelde"? Chamaremos Discurso do Poder a fala daqueles que exercem o coman-
Allen Ginsberg' do da totalidade social: trata-se de um discurso oficial, institucional. E, complemen-
tarmente, nominaremos Poder do discurso àquele que de rebelde imaturo passa a ser
É necessário mudar a vida sem mover-se da vida. discurso fundador de uma nova sociabilidade, mesmo sabendo que os dominantes
Julio Cortazar tem também seu poder de discurso.
Discurso é aqui entendido como o que enuncia e anuncia novas subjetividades ou
as reproduzem.

Marx é uma grande força subjetiva que enfrenta a força objetiva da produção, da circulação, da
troca e do consumo do capital. Este tem uma sua determinação objetiva ainda que movido por ins-
tâncias subjetivas. Frente a este mecanismo determinístico Marx opõe uma subjetividade igualmente
forte. (Tronti, 2006)

Trata-se, portanto, de um momento superior da luta de classes: a passagem do


ecônomico-corporativo ao ético-político. Processo que nada tem de linear, pelo con-
trário, é cercado pela presença do Discurso do Poder na formulação do Poder do
2 Crisi della psichiatria e contraddizioni istituzionale, in Basaglia, 1968, p. 297. Grifo nosso. Discurso; passagem sempre conflitiva. Como disse Gramsci: o velho morre, mas o
3 Barcelona, 1994, p. 11. Grifo nosso. novo não pode (ainda) nascer.
4 Galeano, 2002, p. 6.
5 Galeano, 1996, p. 109. Há hoje um discurso praticamente universal: "a classe operária não existe mais.
6 In Kadish e outros poemas, citado por Oliveira (s/d) Mas é quem sempre leva ferro" (Labica, 2009, p. 7. Grifo nosso). Por quê? O capita-
10 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 11

lismo, contradição em processo, só pode responder às suas crises pelo militarismo seguramente, não nos basta declamar os versos satânicos ou os salmos, os célebres
(ver Luxemburgo) e por permanentes reestruturações, no governo da economia e textos que falam sobre tudo e não nos ajudam em nada. Teoria não fecundada pela
no das massas (Barcelona). Isto é vital para que o capitalismo possa permanecer prática é o equivalente de uma prática sem teoria. A cegueira nos conduz à derrota.
como dominante. Ele requer e necessita a destruição e a captura da subjetividade dos Esta obra não se pretende acadêmica - ainda que tenha desta, espero, alguns de
seus antagonistas, impedir que as classes trabalhadoras/ subalternas/instrumentais seus melhores traços. Ela pretende ser instrumento de capacitação dos "militantes do
se constituam plenamente como classes. A burguesia, pelas próprias formas do seu futuro': Como Bosi (2011, p. 10) salienta, com propriedade:
poder, pode ser dominante, mas não dirigente.
Nem sempre há ousados projetos políticos orientando a ação desses trabalhadores, senão o desejo
Ex~inando a história recente do BrasiF vemos que as crises necessitam e exigem para a sua reali- - entendido como direito - de se fixarem no mundo pelo suor de seu próprio trabalho. É aqui que
zaçao que se redesenhem as formas produtivas e, consequentemente, as classes sociais. Mais ainda se tenta descer das grandes abstrações como ''capital'', "trabalho", "dominação", "resistência", para a
é necessário redesenhar a institucionalidade8: em especial o conjunto de leis sobre o trabalho (aí dimensão vivida dos trabalhadores, suas interpretações sobre a vida, seus dilemas e sentimentos. Não
compreendida a forma sindical), a educação, a gestão da política (ou seja, a Reforma do Estado). se trata de repetir uma intenção, mas de assumir um desafio que julga ser a compreensão de sua
Trata-se, portanto, da sociedade por inteiro. (Dias, 2004a, p. 23) alma tão importante quanto os feitos de seu corpo. (Grifo nosso)

Este trabalho não pretende ser um tratado exaustivo sobre o silenciamento dos A Comuna de Parisl2 e a Revolução Russa foram e são vitais para a compreensão
9
subalternos como forma privilegiada da política dos dominantes. Calar a maioria do processo de construção de uma nova sociabilidade para além da Ordem do Capi-
do povo entendido este, no sentido gramsciano, como articulação contraditória das tal. Sempre se poderá dizer que não trato, com o fôlego necessário, de questões muito
diversas formas das classes trabalhadoras significa aparentar a existência de uma decisivas nesse processo. Devo reconhecê-lo. Não posso, contudo, dentro dos limites
hegemonia. E a aparência não é acaso, mas necessidade para os dominantes. Esse deste texto - já demasiado longo - trabalhar, como seria necessário, estas e outras
processo que Mordenti sintetiza na fórmula hegemonia sem hegemonia, neutraliza- questões. Procurarei iluminar aspectos vitais desse processo. Muitos ainda poderão
ção do discurso antagônico. Conferir "legitimação" aos que mandam permite colocar afirmar que falo de fatos bem conhecidos. Mesmo discordando dessa avaliação no
nossa questão central: Porque perdemos? Pergunta que se traduz em outra: Porque que se refere a muitos pontos tratados aqui devo dizer que tentei dar uma explicação
obedecem os que deviam recusar? E que traz em si a pergunta especular, formulada totalizante para assuntos aparentemente incompatíveis ou desconexos. Não há nele
por Goran Therborn: Como dominam os que domi nam lO. Esta é a esfinge que nos cabe nenhuma linearidade. O importante é mostrar a articulação macro-micro. Akira
decifrar. Kurosawa em um momento particularmente brilhante dirigiu Dodes 'ka-den (1970),
Usemos uma metáfora esportiva: Muhamed Ali sempre bailou no tablado, esca- onde, pelo entrecruzamento das trajetórias dos membros de uma comunidade, ele
pando de ser encurralado no canto do ringue. Deixar de ser um alvo fixo para lutar constrói não apenas o modo de vida, mas a própria comunidade. Dar-me-ei por sa-
no centro do tablado implica em determinar nosso espaço de luta ou, quando este tisfeito se conseguir oferecer um quadro daquilo que Gramsci chamava um "mondo
nos é adverso, tratar de revertê-lo. Na política ser alvo fixo significa a permanente grande e terribile': Para todas as organizações a questão da memória é decisiva, em
derrota .. Há que se compreender a dialética ataque-defesa; o momento da guerra especial para a classe trabalhadora:
de mOVImento ou o da guerra de trincheiras. Sabendo porém que uma não exclui
[Ela] não pode perder sua memória e, portanto, necessita manter vivas sua visão de mundo e suas
a outra. Trabalhamos com conceitos marxistas e não com tipos ideais weberianos.
experiências de luta, de construção do reaL [... ] [devemos recusar] a reduzir [sua] história a uma
Como dizia Lenin devemos proceder à análise concreta de situações concretas. Fazer espécie de autobiografia institucionaL História não é, nem pode ser, sinônimo de passado. Significa,
política é distinto de fazer ideologia ll . Esta é necessária na perspectiva daquela, mas, e isso é vital para nós, uma reflexão atenta e estratégica sobre o reaL Os gregos pensavam o tempo
7 ~ proposição ~cima ~rm~da ?ode ~er gene:alizada e ganhar uma universalidade objetiva e subjetiva. como sendo chronos, mas também [como] kairós. Este último é o tempo atual, o das conjunturas
8 ~o nos ref~r~rmos a mstlt~clOnahdade, nao nos prendemos à forma jurídica, mas ao adensamento que atualizam a estrutura. Viver o kairós, significa ter uma compreensão da história como processo
d~,rede de pratlcas,~ue cons~Ituem, a ~m só tem~o, a individualidade e o coletivo:' (Dias, 1999, p. 41) aberto, como locus da nossa intervenção que deve, é óbvio, ser a mais consciente possível. Significa
9 l?s postergados una f~hz expressa0 de AdvIS, 1969 em sua magnífica Cantata Santa Maria de construir, na prática, uma fala para o mundo em que estamos inseridos. [... ] Não é uma reiteração
I~u~que qu~ narra/denuncIa o ~assacre de 3.600 operários da indústria do Salitre em greve por com- do já realizado, mas um abrir-se para os grandes desafios que nosso tempo nos coloca. [É o] per-
dIçoes de VIda, trabalho e salános brutalmente reprimido pelo estado chileno. manente diálogo entre seus costumes, sua historicidade, suas respostas vividas e pensadas, com o
10 Therborn, 1989.
decifrar as leis de tendência do movimento de uma sociedade classista que busca negar sua subje-
11 "[ ... ] o proc,esso ide?IÓgico visa a difusão de uma concepção de mundo à qual está ligada uma prática, o
tividade [a dos trabalhadores]. 13
trabalho do filosofo sera um trabalho de educação do senso comum afim de tornar mais coerente, mais ativa e
sobretudo mais orgânica (a organicidade sendo a condição de possibilidade da progressividade de uma ideo- 12 Sobre a Comuna ver, entre outros, a filmografia de Watkins, 2000.
logia.)" Cloutier, p. 244. 13 Adunicamp, 2007, p. 7.
12 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 13

Penso ser decisivo tratar da questão do ''controle do sentido", vale dizer das possibi- e suas práticas materiais localizam cada um no seu lugar "natural': Se assim é, os teóricos
lidades e d?s dificuldades de construção da fala (projetos hegemônicos) das classes em liberais (Bobbio, por exemplo) têm razão ao afirmar que alterar essa ordem é subversivo.
presença. E fato sabido que a comunicação é hoje, muito mais do que em qualquer Sabemos, contudo, que isso é apenas uma versão parcial do processo.
outro tempo, estratégica. Podemos, nesse sentido, afirmar que se "a história é a his-
[... ] podemos falar de consciência de classe antagônica quando o proletariado se opõe às classes
tória da luta de classes" (Manifesto do Partido Comunista) ela se dá na capacidade de
dominantes para mudar o estado de coisas presente.
articulação do poder pelos dominantes que não se reduz, como muitos pensam, ao [... ] Trata-se de ver em que condições o proletariado se liberta das ide ias das classes dominantes
controle puro e simples dos meios de produção. Já em A Ideologia Alemã 14, Marx e para desenvolver a sua consciência de classe. Mas isto significa, implicitamente, que [sua trajetória]
Engels ressaltavam o poder dos meios de produção ideológica e da comunicação en- não é dada de uma vez por todas; e sequer [... ] que seja uma evolução progressiva, dos níveis mais
baixos até os níveis mais elevados.
tendidas como capacidades de veicular e legitimar normas e instituições, de construir/
[... ] não podemos nos nossos projetos estratégicos, pressupor uma classe trabalhadora pronta para
destruir discursos classistas. realizar os seus objetivos de classe, contra os patrões ou no âmbito de um regime socialista (isto é,
Quando falamos em subalternos estamos pensando naqueles que estão desprovidos contra novas formas dos seus "inimigos de classe"), abstraindo os "estímulos fisiológicos ao reflu-
de discurso próprio, vale dizer, de programa autônomo de classe. Movimento consti- xo': ligados à exigência de poder trabalhar e viver tranquilamente. (Rieser, 2010)
tutivo que se realiza duplamente no âmbito da sua formação enquanto classe: por se
organizarem dentro do conjunto das práticas, normas e instituições dos dominantes Os subalternos sabem, na prática, que aceitar a naturalidade é permanecer em
são, por isso mesmo,.desorganizados objetivamente por aqueles; e por se articularem uma escravidão legalizada. "Sabem" empiricamente, isto é, "sentem': mas necessa-
- consciente ou inconscientemente - em camadas históricas diversas: do capitalismo riamente não tiram todas as consequências disto. O problema está radicado no grau
financeirizado às formas mais tradicionais do pensamento camponês, passando pe- dessa consciência e na distância entre percepção imediata e construção do projeto. A
las religiosidades de vários tipos, da experiência multissecular dos conjuntos que os pergunta clássica de Gramsci - "porque perdemos?" - é hoje mais atual que nunca.
formam e das práticas econômico- políticas que constituem e são constituídas por A aparente vitória do capitalismo, a perda dos grandes projetos, obriga-nos a respon-
esse processo em constante criação. der a uma questão crucial: porque os subalternos, aparente ou realmente, consentem
Construir a história fragmentária dos grupos subalternos que "raramente deixam com aqueles que os exploram e oprimem? Porque silenciam? Como são silenciados?
documentos historicamente verificáveis pelo limitado nível de consciência social As classes não se caracterizam apenas pela lógica do capital. Elas criam e são cria-
que frequentemente contradistinguem as classes subalternas" (idem). Eles possuem das pelas relações sociais de um determinado modo de produção que se constitui
divisões, estratificações e formações históricas diversificadas. Mas, afirma o comu- como matriz das formações sociais. São proletários, camponeses, mas existem tam-
nista sardo, há um "patrimônio formado via a experiência cotidiana em relação ao bém como individualidades, como mulheres e homens, como Joana, Pedro, José,
senso comum" (idem) isto é, na "relação dialética entre espontaneidade e direção como Gramsci amava afirmar. Precisamos, mais que nunca, tematizar os subalternos
consciente" (Fresu, 2009). e as periferias, vale dizer, a história vivida, desafio que poucas vezes foi trabalhado
O operário fabril é o subalterno produzido em um momento adiantado da forma- '" corretamente. Na imensa bibliografia já produzida aparece um fosso aparentemente
tação do capitalismo; assim como os trabalhadores de escritório ligados às grandes intransponível entre a classe e os seres que a constituem. É frequente a acusação de
empresas e os trabalhadores agrícolas do mundo rural capitalista. Já em outro mo- que o marxismo é incapaz de compreender esses seres e suas práticas. Esse falso pro-
mento da escala social, encontramos os trabalhadores rurais vinculados às formas ~ ( blema tem imobilizado muitos militantes.

mais rudimentares de exploração do agro, das formas mais elementares do pequeno Iremos trabalhar com a ideia de que é através do modo de vida que se passa das macro-
comércio. determinações do modo de produção às microrrelações entre os indivíduos: se não reali-
Os subalternos aparecem quase como figuras de linguagem, ilustrações de um discurso zarmos esta análise, a um tempo macro e micro, sob o pretexto de uma análise "científicà:
maior e sempre presente: parecem ser o que são pelo destino, pela sorte. "Organizados" o que desaparece é a história como laboratório da luta e da teoria. Gramsci chamava esse
pelo discurso do poder que os enquadra. Organizados? Sim, desde que se entenda essa determinismo de "teoria da inércia do proletariado': Quando falamos de modo de vida esta-
''organização'' como naturalidade, sempre e necessariamente,fora e além da história, eter- mos nos referindo às formas de produzir e de consumir (bens, valores, formas de pensar).
no, oculto. Oculto na medida em que busca transformar a subjetividade classista e históri- Em todas as esferas do real as classes trabalhadoras são educadas pelo capital e por tradições
ca dos dominantes em uma objetividade naturalizada que se impõe a todos. Esse discurso (que são apropriadas e reinscritas pelo capital). Da família ao trabalho, passando pela esco-
la, o trabalhador, explorado e oprimido, é formado como elemento da ordem do capital15•
14 Sobre a questão da linguagem em A Ideologia Alemã e no marxismo, ver a oba de Houdebine
1977. ' 15 Do trabalhador para o capital caminhamos para o trabalhador do capital. Ainda aqui encontra-
14 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 15

Dado que as massas raciocinam com a experiência e dado que (no limite o bom senso é capaz de formas organizativas por elas mesmas criadas como o partido e as centrais sindicais.
compreender) a história é a mestra da vida então existe sempre (ainda que potencialmente) o risco Locus de projetos como o autunno caldo17, onde se colocou em questão o núcleo
de uma benjaminiana "tradição dos oprimidos': isto é, o risco de uma memória coletiva que mani-
duro do poder do capital (as fábricas, o Estado) passando por questões de disputa so-
festa o sentido do que está na base deste que foi, pela hegemonia sem hegemonia do capitalismo real,
um risco mortal que deve a todo custo ser evitado. (Mordenti, 2007, p. 21). bre a sua subjetividade tanto no plano coletivo, quanto como individualidade (des-
taque especial para a luta antimanicomial, etc.) até os momentos de brutal repressão
Trata-se de caminhar no sentido de pensar (e praticar) as condições da reto- do capital (fascismo, Berlusconi, etc.). Dessas lutas saíram análises e práticas que me
mada do conflito de -classe. Hoje é, mais do que nunca, tarefa fundamental "agir permitiram pensar o silenciamento dos subalternos como padrão de dominação ca-
a fim de que a consciência das potencialidades críticas imanentes no grau de desen- pitalista, mas também suas tentativas de pensar e construir a nova sociabilidade,
volvimento atingido pelas forças produtivas sociais se torne um 'saber socialmente para além da Ordem do Capital.
compartilhado"'(Burgio e Grassi, 2002. Grifo nosso). A história é um imenso labo-
A subjetividade operária despedaçou a camisa de força do "plano da empresá'; se rebelou contra a
ratório. A riqueza desse processo não pode nem deve ser tomado como receita, mas
serialização produtivística; contestou o "poder discricionário" do empregador e da "hierarquia da
como estímulo à nossa prática social de transformação. fábricá'; fez-se ver e escutar por todos os outros sujeitos sociais; tensionou os lugares sagrados do
O nosso velho camarada Maquiavel dizia que virtu e fortuna formam o solo objetivo poder; interrogou e escavou as instituições do movimento operário e sindical. [... ] Levar a demo-
da política, isto é, onde a ação dos homens e das classes se exerce. Não nos basta apenas cracia à fábrica tornou-se discurso comunicativo, revolta e instância de mudança. A onda operária
um programa político e saber quais as relações objetivas e as subjetivas em presença, delineou os contornos de uma comunidade impossível: a democracia, por trás das cancelas da fábri-
ca, permanecia e permanece [uma cadeia] árdua de impossibilidade. (Chiocchi,2008)
mas como colocá-las em movimento consciente. Essa articulação, absolutamente ne-
cessária, requer não o frio analista, mas o apaixonado militante. Paixão que não é
Por fim uma questão normalmente inaudível aos militantes. Muitos poderão, in-
cega, que, pelo contrário, é o conhecer profundamente a história profunda da sua classe
gênua ou sectariamente, perguntar-se porque privilegio a questão dos chamados
e a história dos seus antagonistas. A História não é um fato natural e nem decorre da
loucos. Faço-o porquê no todo desse processo de construção da racionalidade de
decifração formal. Há aqui uma diferença radical entre o que chamamos abstração
dominação vigente esta é uma das mais brutais formas de exclusão. A luta contra o
formal e abstração real. Ela não pode, portanto, ser reduzida às condições objetivas
fim dos manicômios é tão mais reacionária quanto se sabe que em
ou subjetivas. A história não é, e nem pode ser, dedutível dessas condições como
muitas vezes militantes sinceros tomam por uma realidade em si. [... ] 1953, como conclusão de um estudo sobre as organizações psiquiátricas dos países membros da
Uma última questão. Concordamos com Panzieri (1968b) na ligação pesquisa Organização Mundial da Saúde, o comitê de especialistas afirmou que o Hospital psiquiátrico devia
-trabalho político: ser em sua totalidade uma comunidade terapêutica. Tal comunidade devia basear-se nos princípios
de conservação da identidade do paciente, na convicção de que os pacientes são dignos de confiança
[... ] a pesquisa aparece como um aspecto fundamental deste trabalho de construção política. Além e têm capacidade de assumir responsabilidades e iniciativas, na vinculação sistemática dos pacientes
disso, o trabalho a que a pesquisa nos obrigará, um trabalho de discussão ainda que teórica entre em algum tipo de ocupação, etc. (Basaglia, 1969, in Garcia, p. 33. O grifo da última frase é nosso.)
os companheiros, com os operários, etc., é um trabalho de formação muito aprofundado e então a
pesquisa é um instrumento ótimo para proceder a este trabalho político (pp. 115-116). Os doentes da mente, como Basaglia os designa, são também habitantes da cidade,
ainda que legalmente se questione o seu status de cidadão. A exclusão é tão brutal que
o peso da situação italiana, em especial nas décadas de 60 e 70 do século passa- muito dos que falam em nome da psiquiatria 18 enquanto ciência se recusam a aceitar
do, neste texto poderá parecer excessivo. Engels, em Prefácio a O Dezoito Brumário, qualquer alteração da sua prática e do seu poder profissional. Quando da realização
disse que a França fora tomada por Marx como parâmetro por ter sido o local onde
17 Para uma bibliografia detalhada do autunno caldo ver Chiochi, 2008.
as lutas de classe tinham sido levadas ao máximo no período l6 • A Itália viveu e vive 18 Em O Alienista, Machado de Assis sintetizou essa perspectiva: "Meus senhores, a ciência é coisa
contradições entre capital e trabalho, a meu juízo, fundamentais: foi o locus de gran- séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo
des enfrentamentos classistas, das mais amplas lutas pela autonomia operária onde aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da casa Verde, estou pronto a ouvir-vos;
mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em
as classes subalternas testaram seus projetos enfrentando até mesmo a resistência de comissão a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu
sistema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes:: dizia Simão Bacamarte. Ou em outro momento:
mos a subsunção real do trabalho ao capital. Essa socialização "na marrá' ou pelo "convencimento:' é "A loucura [... ] era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um
~~amental para a realização da Ordem do Capital. A disciplina é decisiva e vai determinar a "vitória do Cap- continente:' "Suponho o espírito humano uma vasta concha [... ] [eu quero] extrair a pérola que é a
Ital no seu forte, nas suas casamatas: no locus efetivo da produção. Veremos isso ao analisar o autunno caldo. razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão
16 Dias, 2008. é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades: fora daí insânia, insânia e só insânia:' (Grifo nosso)
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 17
16

do V Congresso Mundial de Psiquiatria (México, 29 de novembro a 5 de dezembro A diferença qualitativa entre a "Flicatrià' (psiquiatria repressiva) e a "politicracià' (a politização
da psiquiatria, na linguagem de meus colegas franceses), é, precisamente, o fato de que esta última
de 1971) Henry Ey, um dos mais famosos psiquiatras, solicitou a publicação, na re- tomou consciência de ser uma "flicatrià' e tenta opor-se a este papel e a denunciar praticamente sua
vista EEvolution psychologique, de uma nota advertindo que função. (Basaglia, 1991)

[... ] dado o atual mal estar político-social criado por certa 'anti-psiquiatrià ou, se se quiser, por Ele não apenas indica um programa, mas propõe também uma "pesquisa a quente":
certo contra-sentido no uso dos conceitos fundamentais da verdadeira psiquiatria. [... ] o perigo de
uma psiquiatria que se define como antimédica e aquele outro derivado do uso político dos conceitos e [... ] pesquisa feita em uma situação de notável movimento conflitual, e que nesta situação é neces-
das instituições psiquiátricas [... ]. (Basaglia, 1971, in Garcia, pp. 118-119. Grifos nossos) sário estudar a relação entre conflito e antagonismo; isto é, estudar de que modo muda o sistema de
valores que o operário exprime em períodos normais, quais valores se substituem com consciência
Após muito debate político e intervenção dos antipsiquiatras italianos e dos movi- de alternativa, [... ]
mentos sociais, foi aprovada, na Itália, a Lei n. 180 de 13 de maio de 1978, conhecida Estudar particularmente todos os fenômenos que se referem à solidariedade operária e recusa do
sistema capitalista: isto é, em que medida os operários são conscientes daquele momento em que
como Lei Basaglia 19, que determinava o progressivo fechamento dos hospitais psi-
sua solidariedade pode ser portadora também de formas sociais antagonistas. Trata-se substancial-
quiátricos e a instituição de serviços de higiene mental para a cura ambulatorial. A mente de verificar em que medida os operários estão conscientes que isto possa assumir um valor
reação política a essa legislação não se deteve. Há hoje um debate patrocinado pela geral para s sociedade, enquanto valor de igualdade face à desigualdade capitalista. (p. 114. Grifo
direita (o Popolo della Libertà e Berlusconi intervieram nesse debate) para anulá-Ia20 . nosso)
O projeto do deputado Burani Procaccini,
Por fim, e não poderia faltar, a perspectiva internacionalista:
[... ] não parece estar interessado apenas em um retorno à lógica da exclusão, nem somente na priva-
tização dos serviços públicos e na destruição das tutelas sociais, mas também no desenvolvimento O confronto feito através da pesquisa de várias situações europeias deveria dar-nos, não apenas
de um dispositivo biopolítico de prevenção de riscos que ameacem a saúde pública e a segurança do a nós, mas também aos companheiros franceses e alemães, elementos bastante importantes para
corpo social. O neoliberalism021 é também biopolítica: cultura do perigo, controle da população, nor- definir a possibilidade, ou não, e sob que bases, de uma unificação das lutas operárias no plano
malização difusa e capilar dos indivíduos. A proposta de lei Burani Procaccini entra em um programa europeu. (p. 116)
contra-reformista sistemático e de amplo espectro, no qual os direitos das pessoas são atacados mesmo em
âmbitos específicos como a saúde mental, a prostituição, a toxicodependência, os menores. Todas estas Esta obra tem propósitos, a um só tempo, modestos e ambiciosos. E não há nisto
novas leis e propostas de leis aparentemente marginais são, pelo contrário, decisivas para compreender a
complexidade da governabilidade neoliberal, e para construir percursos de luta é [preciso] que saibamos
contradição alguma. Modestos no sentido de que se trata da reunião de informações
confrontarmo-nos com tal complexidade': (Di Vittorio e Genchi, s/do Grifos nossos) já conhecidas; ambiciosos porque se pretende oferecer uma leitura que dê sentido e
direção a uma aparente massa caótica de "dados"22. Tratar de modo determinista é
O site http://www.vittimedellaI80.org/index.php, produzidos por elementos con- ajudar a decapitação dos subalternos. Fazer esse combate é tornar possível a voz e o
trários, afirma que a lei produziu "ineficiência, crueldade e abandono': negou de for- projeto destes.
ma "estúpida, cruel e retrógradà' a existência da doença mental e atuou na mudança
da "mentalidade dos mass media, opacamente submetidas ao 'polítically correct' de
psiquiatras e psicólogos e de todos aqueles que têm benefícios com a desresponsa-
bilização das estruturas': (Grifos nossos) Mentira pura e simplesmente. Em Pollía/
Delírio (Basaglia, 1982) já se afirmava justo o contrário. Mas para mentir basta...
mentir. A acusação explícita é a da politização da ciência (sic).

19 Cf. Gazzeta Ufficiale n. 135, 6 de maio de 1978.


20 "Tal é a ação paradoxal de uma ciência e de uma instituição que, nascidas para tratar de uma
doença cuja etiologia e patogênese resultaram desconhecidas, fabricaram um doente à sua imagem e
semelhança, de modo a justificar, e ao mesmo tempo garantir, os métodos sobre os quais baseavam
sua ação terapêutica. [... ]
Não pretendemos, porém, negar que o doente mental seja um doente". (Basaglia, 2005, p. 76)
21 Para uma competente apresentação do que é o neoliberalismo enquanto política ver O mito da 22 Estes nada mais são do que informação organizada e codificada por uma teoria, vale dizer, por
"mundialização" e o Estado social europeu. In Bourdieu, 1998a. uma concepção de mundo que é sempre classista.

L
SOBRE A CRISE

A crise consiste precisamente no fato que o velho morre e o novo não pode nas-
cer: neste interregno verificam-se os fenômenos mórbidos mais variados.

Antonio Gramsci

Abandonemos essa Europa que não para de falar no homem, ao mesmo


tempo em que o massacra onde quer que o encontre, em todos os cantos de
suas ruas limpas, em todos os campos do mundo.

Frantz Fanon

A crise capitalista23 não afeta apenas a estrutura econômica, alcança até o mais pro-
fundo das individualidades, culturas e perspectivas de indivíduos e classes sociais e cha-
ma fortemente a atenção tanto do analista quanto de quem quer simplesmente entender
a sociedade em que vive e nas suas conjunturas (prazos, significados e gravidades dis-
tintas). Ela atinge, em especial, aos subalternos; os dominantes, contudo, não se livram
das contradições tornadas mais e mais presentes pela realização do modo de produção.

A enorme explosão do débito em escala mundial que precedeu a explosão da crise [... ]: 1) permi-
tiu construir produtos financeiros [... ] através dos quais, em particular nos países anglo-saxões,
trabalhadores que ganham menos que antes tenham podido continuar a consumir como antes; 2)
consentiu [a] empresas em crise sobreviver (graças ao crédito obtido a taxas extremamente favorá-
veis); 3) ofereceu uma via de desafogo para capitais em fuga do emprego industrial [... ]. [... ] a finança
23 O tamanho da crise é indicado por Soros (2010, p. B5): "De fato, a magnitude do problema atual
. é ainda maior que a da Grande Depressão. Em 1929, o crédito total em circulação nos EUA equivalia
a 160% do PIB e subiu para 250% em 1932. Em 2008, começamos em 365% - e esse cálculo deixa de
fora o uso generalizado de derivativos, que não existiam nos anos 1930:' Sobre a crise ver Ferguson
(2010). ''AdolfMerckle, o bilionário alemão (a quinta pessoa mais rica da Alemanha, segundo a For-
bes), proprietário da Ratiopharm, Phoenix e de uma forte participação na Heidelberg Cement, que
perdeu um bilhão de euros [... ] e pediu ajuda de um consórcio de 40 bancos e ao Estado:' (Giacché,
998)

L
20 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 21

25
não é a doença. É a droga que permitiu não reconhecer-lhe os sintomas. [... ] A doença, ou seja, a crise da lar de vendas que valia 7,2 centésimos em lucros há dois anos, gera hoje 12 centésimos . (Moro., 2003~
superprodução de capitais e de mercadorias, finalmente manifestou-se com violência no verão de 2007, o rendimento real (com ajuste da inflação) duma família típica baixou durante cinco anos segwdos ate
e assumiu as características de uma verdadeira [... ] "crise geral" que investe pelo menos todo o ocidente 2004. Em 2003-2004, 95% das famílias que se encontram no grupo inferior de rendimentos, sofreram
capitalista, quando não o mundo inteiro.24 (Giacche, 2009. Ver também Giacche, 2010, Grifo nosso). uma redução dos rendimentos médios reais por agregado familiar (os 5% do topo, claro, fizeram lucros
maiores). Em 2005 os salários reais caíram em 0,8%26. (Bellamy, 2006)
Doug Henwood, editor do Lefi Business Observer, descreveu a situação em "Le-
aking Bubble," 1he Nation, 27 de Março de 2006: As expectativas de retomada da economia estadunidense foram derrubadas. ~e
considerarmos que foram perdidos, desde o início da crise em 2008, cerca de 7 mI-
Houve tempo em que era preciso entrar com um pesado pagamento inicial para comprar uma casa. lhões de postos de trabalho e mais de 15 milhões sem trabalho, os 39 mil postos
Agora não: em 2005 um primeiro comprador mediano entrava apenas com 2 por cento do preço de compra, criados - dados de novembro de 2010 - são sequer uma gota de água nesse oceano
e 43 por cento não fazia qualquer pagamento. E cerca de um terço das novas hipotecas em 2004 e 2005
proceloso. Pior: em outubro tinham sido criadas 172 mil vagas.
foram feitas a taxas flutuantes (porque os pagamentos iniciais são mais baixos do que os empréstimos
a taxa fixa). Em picos anteriores as taxas de juro atingiram alturas cíclicas, mas nos últimos anos tem-
-se assistido às taxas de juro mais baixas em toda uma geração. (citado por Bellamy, 2006. Grifo nosso) A recessão americana pode ter terminado oficialmente em 2009, mas nunca nos últimos 60 anos o
trabalhador teve tanta dificuldade para conseguir emprego nos EUA como agora.
Atualmente, cerca de um terço dos desempregados, ou 4,4 milhões de pessoas, está sem trabalho
Na mesma linha Moro (2009) dá mais elementos: há pelo menos um ano. Na média, o americano desempregado está fora de função há 40 semanas,
nÓmero que não foi visto em nenhuma das dez recessões anteriores. _.
Por anos o FED, com o beneplácito dos governos americanos, manteve um baixíssimo custo do di- [... ] Para muitos desempregados, a esperança de voltar à rotina para já na fila de seleçao. MUltas
nheiro, estimulando a banca a emprestar para além de qualquer garantia razoável. Em particular foi empresas têm políticas que os desqualificam no início do processo, seja porque são considerados
incentivada a aquisição de casas, [... ] Foram concedidos empréstimos de até 100%, mesmo a quem preguiçosos, seja porque são vistos como desatualizados. . . .
não tinha nem trabalho, nem outra propriedade. [... ] Nos Estados Unidos e no Reino Unido a dívida "Quando um trabalhador fica sem emprego por muito tempo, fica depnmIdo, desmoralIzado e
das famílias em 2007 atingiu 100% do PIE. Contudo o crescimento financeiro dos bancos cresceu perde suas habilidades porque não está mais atualizado com as novidades tecn?lógicas o~ com as
para além de qualquer medida: os bancos europeus para cada euro de capital possuído tinham dado novas ferramentas': diz John Schmitt, economista-chefe do Center for EconomlC and PolIcy Rese-
em empréstimo 40 euros, os americanos ainda mais. (Grifos nossos). arch. (Fagundes, 2011 )27

Moro (2009a) articula a especulação financeira à superexploração do trabalho: Na avaliação da Standar&Poor's, feita em 18 de abril de 2011, os Estados Unidos
receberam um ((negative outlook" o que significa baixa capacidade estadunidense
Segundo o Hedrich Center for Workforce Development da Rutger University nos últimos vinte e cinco de gerir seu débito público, que é da ordem de 105% do PIE. Situação agravada. p~las
anos o salário real dos trabalhadores americanos (a assim chamada classe média) caiu. Os padrões de
discordâncias entre republicanos e democratas (seria exagero falar em contradIçoes)
consumo das faml1ias foram mantidos apenas graças ao ingresso das mulheres no mercado de trabalho
e ao aumento das horas de trabalho (nos anos 90, 50 e 60 horas de trabalho tornaram-se a norma para deixaram o país até o último momento legal para aprovar seu orçamento: ((O maior
muitos trabalhadores). Mas isto não bastou. Os trabalhadores foram obrigados a endividar-se com os país do mundo poderia falir no início de julho"28. . .
bancos, por sua vez incitados a emprestar pela lógica do governo e do Federal Bank mediante um bai- Não há dúvida de que os Estados Unidos farão o impossível para manter o dIreIto
xíssimo custo do dinheiro. Conseqüência: a taxa de poupança das famílias caiu e em vinte e cinco anos de domínio, ou seja a possibilidade de emitir livremente moeda para apropriar-se de
as falências individuais cresceram 400%. Isto antes da crise atual. (Grifo nosso)
bens e serviços produzidos por outros (atualmente cerca de US$ 500 trilhões circu-
A relação entre custo do trabalho e lucro capitalista é clara e se dá no quadro de 25 Cf. J. C. Cooper e K. Madigan, "How surging profits will fuel the recovery" in Business Week, 16
uma perda de recursos pelos trabalhadores: de fevereiro de 2004, citado por Moro, 2003.
26 Cf. "Economy Up, People Down," August 31, 2005, e "Real Compensa.tion Down as Wage Squeeze
Continues," January 31,2006, Economic Policy Institute, http://www.epl.org.
Nos Estados Unidos, por exemplo, se bem o preço dos manufaturados tenha diminuído a uma taxa 27 Krugman (2010) afirma: "[ ... ] o desemprego - especialmente o desemprego_ de longo prazo -
anual de 0,4%, o custo do trabalho (salário) por unidade de produto caiu em 2,7%. Deste modo, um dó- mantem-se em níveis que seriam considerados catastróficos há alguns anos e nao parece~ ~star a
caminho do declínio. [... ] Perante perspectivas tão sombrias, esperávamos que os nos~os POh~IC?S se
24 "Marx observa no manuscrito do terceiro livro de O Capital, que o crédito aparece como a causa dessem conta de que ainda não fizeram o suficiente para prover a recuperação. Mas nao~ nos ultIm,os
da superprodução: 'se o crédito aparece como o comando principal da superprodução e dos excessos meses, observou-se a volta de um comportamento espantosamente ortodoxo com relaça.o: empres-
e da super especulação no comércio, isto ocorre somente porque o processo de reprodução, que por timos e orçamentos equilibrados. [... ] E quem pagará o preço pelo triunfo da ortodOXIa. Dezenas
sua natureza é elástico, é aqui levado até seu limite extremo, e o é precisamente porque uma grande de milhões de trabalhadores desempregados, muitos dos quais ficarão sem trabalho durante alguns
parte do capital social é empregada por aqueles que não são seus proprietários, que, por isto, ar-
anos, e alguns dos quais nunca mais voltarão a trabalhar:' (Grifo noss?) "
riscam em medida bem diversa do proprietário o qual, enquanto age na primeira pessoa, considera 28 In Marazzi (2011). O FinanciaI Times de 27 de abril de 2011 advertIU em Nervous Wall St warms
com preocupação os limites do próprio capital privado": (Giacche, 2009)
on debt limit"
I

L
22 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 23

Iam fora dos USA a mesma soma em bens e serviços efetivos). Outro problema é o Crise de superprodução e de realização, ela é uma crise orgânica que abarca a totali-
da globalesclerose, como David Books escreveu no Herald Tribune de 2 de agosto de dade do modo de produção30•
2008: a dispersão do poder «deveria em teoria ser uma coisa boa, mas na prática mul-
tipolaridade significa poder de veto sobre a ação coletiva. Na prática, este novo mun- A contradição é finalmente total, entre, de um lado, as promessas de que os admiráveis progressos
tecnológicos e científicos parecem portadores e, por outro, a miséria com a qual o sistema compri-
do pluralista deu origem à globalesclerose, a incapacidade de resolver um problema me massas crescentes de habitantes do planeta. Uma forma particular de tal contradição é aquela
depois do outro" (é este, entre outros, o sentido de um editorial do Economist de 26 que opõe a imagem fictícia de uma sociedade dita ''do conhecimento" à realidade de um mercado de
de março passado, '~nother year ofliving dangerously': referido à concomitância da trabalho que paradoxalmente reclama cada vez mais mão de obra escassa ou inteiramente desquali-
crise norte-africana, médio-oriental, o terremoto japonês, a crise financeira euro- ficada. (Hirtt, 2004. Grifo nosso)
O Centro europeu para o desenvolvimento da formação profissional (Cedefop) prevê, para os
péia). (Marazzi, 2011)
próximos anos, um aumento do emprego altamente qualificado, mas igualmente "um crescimento
Segundo uma reiterada afirmação da prática burguesa o mercado atua como au- significativo do número de empregos para os trabalhadores dos setores de serviços, especialmente na
tocorretor. Será mesmo?29 É possível seguir acumulando sem regulação econômica? venda a varejo e distribuição, assim que em outras ocupações elementares não necessitam senão pouco
Quais os riscos não apenas para a população mais e mais empobrecida, mas para o ou quase nada de qualificações formais"31. (Hirtt, 2010)
próprio capitalismo? Enfim, quais os limites desse processo? O problema está hoje
claramente colocado: «A ausência de debate sobre este tema deixa imune o legado Os burgueses não têm dúvidas, nem qualquer sentimento de culpa. Para eles o
mais perverso da última era liberal que foram as políticas de flexibilização dos merca- projeto é absolutamente claro. Claude Thélot, membro da comissão que estudou o
dos de trabalho': (Dedecca, 2009, p. 8, Grifo nosso) futuro da educação na França reporta-se a François Fillon, o ministro da área:
Os teóricos e práticos do capitalismo têm dificuldades de equacionar a natureza
A noção de sucesso para todos não pode se prestar a malentendidos. Ela certamente não quer dizer que a
real da crise. O primeiro ministro inglês da época, Gordon Brown, por exemplo, escola deva se propor a fazer com que todos os alunos atinjam as qualificações escolares as mais elevadas.
colocava como resposta à crise um idílico e patético objetivo: «alinhar o sistema fi- Isto seria ao mesmo tempo uma ilusão para os indivíduos e um absurdo societal, dado que as qualificações
nanceiro aos valores típicos de uma família" (Giacchê, 2008); a crise seria devido a escolares não seriam mais associadas, mesmo vagamente, à estrutura dos empregos. 32 (idem)
uma ''fragilidade humana': (sic) etc. etc. Buscam exorcizar o mal no âmbito das pa-
lavras como se isso fosse suficiente para eliminar o problema. Segundo a Organização A educação é reduzida, no mais elevado índice à condição de instrumento do pro-
Internacional do Trabalho o número estimado de desempregados em 2009 seria da cesso do capitalismo. Não há lugar para todos no maravilhoso (sic) mundo das mer-
ordem dos 50 milhões e o Banco Asiático de Desenvolvimento falava de uma des- _~a4...C?!!as e isso traz problemas. A crise ideológica daí decorrente exige para
valorização de asset financeiros da ordem de 50000 bilhões de dólares equivalente a
todo produto interno bruto mundial. [... ] assegurar a vitalidade da própria sociedade e a aceitação da própria sorte pelos oprimidos o
Para Marx a crise não é uma patologia, mas uma tendência fundamental do capi- sistema se dotou [de] um complexo estoque de valores morais: obediência à autoridade, disciplina,
patriotismo, educação, higiene, "boa educação' das crianças, religião, respeito à propriedade, amor
talismo e, assim, as medidas propostas para combatê-la não dão conta do problema.
pela ciência e pelo progresso, veneração pelas belas artes e pela cultura da elite, etc. Mas todo este
29 A relação mercado/estado pode ser demonstrada pela ação governamental estadunidense: "Em panteão se encontra enfim [com oJ único verdadeiro Deus da sociedade capitalista: o lucro, imediato
1999 Bill Clinton assinou o Gramm-Leach-Bliley Act, que levou à superação da lei bancária de 1933 e individual (Hirtt, 2004. Grifo nosso).
e limitou os controles sobre os bancos de investimento. Em 2000, sempre por iniciativa do senador
P~il ?ramm, é inserido uma emenda de 262 páginas na lei financeira: o Commodity Futures Moder- A possibilidade de adiar as contradições geradas pela dialética produção-realização
lllzatlOn Act, que desregulamenta o mercado de derivados. Em 2002 Bush [.. ] um plano casa com o
qual se propunha realizar um sonho dos americanos: todos deveriam ser proprietários de uma casa. passou - necessariamente - pela incorporação dos trabalhadores, não como cidadãos,
Para tal fim torna possível conceder empréstimos sem controles para quem tivesse uma renda baixa. 30 Apenas para dar uma dimensão dessa crise: "O total dos capitais dos fundos comuns e dos fundos
Em 2004 a SEC reduziu drasticamente o controle sobre as bolsas e sobre as sociedades financeiras. de pensão, em 2007, era equivalente ao PIE do mundo: 53 trilhões de dólares contra 54. Trata-se de
Nos anos 2004-5 os bancos multi-estatais foram isentados das normativas contra o 'crédito preda- capitais que derivam da poupança de centenas de milhões de pessoas, todavia esta enorme quanti-
tório:' Screpanti, 2009. dade de dinheiro é gerida de modo discricionário por poucos grandes fundos. A questão que me
"Na I~ália, por exem~lo, assistimos o aparente paradoxo segundo o qual a Confindustria [... ], pede coloco é esta: não se poderiam utilizar os investimentos geridos por estes senhores das finanças para
e obtem a mtervençao estatal sob a forma de ajudas e continua a reivindicar as privatizações, por reparar as falências da economia mundial?". Luciano Gallino (2009, p. 1. Grifo nosso). Esta é uma
exemplo, das utillity:' (Moro, 2009. Grifo nosso)
das formas da luta de classe.
Como vemos, o que se passou na destruição do patrimônio público brasileiro nada teve de original. 31 Cedefop, "Future skiU needs in Europe: médium-term forecast. Bacground technical report': Pu-
Ao mesmo tempo em que se entregava, a preço de banana, estatais como a Vale do Rio Doce, víamos
blications Office of the European Union, Luxemburgo, 2009 .
empréstimos do BNDS serem usados para tais compras, recebendo-se em troca as chamadas moedas 32 Claude Thélot, Pour la réussite de tous les éleves. Rapport de la commission de débat national sur
podres.
l'avenir de l'ecole, La Documentation Française, 2004.

L
24 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 25

mas como consumidores mais e mais impotentes. Falamos em adiar porque sob o capi- dados americanos, crescimento das dificuldades do controle geopolítico do oriente
talismo não há solução possível para além de algumas poucas melhorias localizadas. petroleiro, etc.) às contradições nos países do bloco capitalista.
Paul Krugman assinala que em "em 2006 os Estados Unidos gastaram 57% mais do
Ao longo dos últimos 40 anos, mudanças na regulação do contrato e das relações de trabalho foram que ganharam nos mercados mundiais': pergunta "como os norte-americanos têm
adotadas tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos, destruindo os coletivos de
conseguido viver tão além de seus recursos?': e responde: "Aumentando suas dívidas
trabalho, corroendo a representatividade das instituições sindicais, ampliando a heterogeneidade
das formas de contrato de trabalho, revertendo [a] tendência de redução da jornada de trabalho, com o Japão, a China, os países produtores de petróleo do Oriente Médio:'
deprimindo reiteradamente os salários e promovendo a mobilidade social negativa entre gerações Sua possibilidade está associada ao hegemonismo econômico, tecnológico e militar.
e combalindo a proteção ao trabalho e social. (Deddeca, idem)
"[...] [porque somos] tão odiados se somos tão bons"? Pergunta-se o presidente Bush. Os líderes estadu-
Encontramos um "caso emblemático" da crise de produção na produção/ consu- nidenses continuam a não se preocupar com os efeitos da sua política externa a longo e médio prazo,
que os empurra a usar quaisquer meios para impor ao mundo a sua supremacia. O financiamento por
mo de automóveis, símbolo de consumo e desorganizador objetivo da vida das nos- parte da administração Reagan da contra-revolução anti-sandinista na Nicarágua (57 mil vítimas),
sas metrópoles: a ajuda militar à "luta contra o terrorismo"35 conduzida pelo governo de Ankara contra os curdos
(dois-três milhões de refugiados, dezenas de milhares de vítimas, 350 cidades e aldeias destruídas),
Nos Estados Unidos, de fato, a produção de 2009 será de apenas 45% do output potencial, 5 milhões de a sustentação incondicionada à ocupação israelita dos territórios palestinos são todos episódios que
autos a menos comparados a 2007; segundo a CSM Wolrdwide33, a utilização das fábricas nas primeiras mostram como os dirigentes estadunidenses não têm nenhum escrúpulo em apoiar práticas de vio-
doze produtoras mundiais, cai a 72,2% já em 2008 [e] se reduzirá em 2009 a 64,7%. [... ] na Alemanha lência calculada e 'guerras de baixa intensidade" que podem ser equiparadas ao terrorism036. Mas,
já foram demitidos os trabalhadores precários (4500 na Volkswagen), enquanto o horário semanal de como mostra eficazmente a parábola de Osama bin Laden 37, os seus sucessos de ontem podem ser
trabalho (e o salário) foi reduzido para dois terços dos trabalhadores estáveis da Volkswagen e em feve-
de feridos: 15 vezes maior que o número de mortos. Até agora, 52.000 veteranos que voltaram do
reiro e março para 26 mil da BMW; no Japão [... ] a Nissan planificou 20 mil demissões. Ainda pior é a
Iraque foram diagnosticados com síndrome de estresse pós-traumát~co~ Os EUA terão que ~~nceder
situação das fábricas americanas, entre as quais a GM e a Chrysler já estariam falidas sem os 14 bilhões indenizações por invalidez, segundo estimativas, a 40% dos 1,65 mllh~es de sold~dos que Ja foram
de dólares dados pelo governo. A GM, em particular, prevê o fechamento de quatro das vinte e duas mobilizados. [... ] A guerra teve somente dois ganhadores: as companhIas petroleIras e as e.mpresas
fábricas estadunidenses e 31 mil demissões. (Moro, 2009. Grifo nosso) de defesa. O preço das ações da Halliburton, a antiga companhia do vice Dick Chene~, fOI para as
nuvens. A metade dos doutores iraquianos foram assassinados ou abandonaram o paIS, o desem-
Todas as relações entre as potências estão colocadas em cheque: da crise do dólar prego não fica abaixo de 25%, e, cinco anos depois do iní~io da g~~rra, Bagdá ainda tem .menos de
oito horas de eletricidade por dia. As milhares de mortes VIOlentas Ja se tornaram costumeIras para a
ao peso econômico e político da China, do enorme peso da chamada "luta contra o maioria dos habitantes ocidentais. Mas estudos estatísticos sugerem que nos primeiros 40 meses da
terrorismo"34 (déficits, massacre das populações iraquianas e afegãs e mortes de sol- guerra houve mortes adicionais em número que varia entre 450.000 pessoas, como mínimo, (150.000
33 A CSM Worldwide é um instrumento de informação sobre o mercado automobilístico. delas violentas) e 600.000:' (Grifo nosso)
34 In "Deep in debt, and denying if: International Herald Tribune, 14 de fevereiro de 2006, citado 35 "Já no tempo dos alemães, durante a segunda guerra mundial, os nazis caracterizavam invariavel-
por Bauman, p. 104. Sobre a questão dos interesses promovidos pela luta contra o "terrorismo" é im- mente seus opositores como 'terroristas~' (Alleg, 2004)
portante que se leia Giacche (2002). Quem são os líderes do "eixo do bem"? Dick Cheney (vice-pre- 36 "Por outro lado o ódio ao 'totalitarismo' permite aos jovens alistarem-se em qualquer guerra
sidente americano e capo da Halliburton), Condolezza Rice (conselheira para a segurança e membro imperialista: a exploração e a violência se vendem mara:ilhosament.e como luta par~ ~ontrolar, a
do Conselho de Administração da Chevron), Donald Evans (ministro do Comércio e por um quarto exploração e a violência. E permite a massas d~. pessoa~ sI~,ples adenrem com uma ~una para nos
de século administradoir da Tom Brown - gas natural), Kethlenn Cooper (subsecretária do Ministé- [europeus] inconcebível a campanhas contra a mterferenCla do governo, fazendo fahr mesmo mo-
rio do Comércio e economista-chefe da Exxon), Spencer Abraham (ministro da Energia e vindo do destíssimas reformas como a da saúde proposta por Hillary Clinton:' (Martinez, 2005)
setor da mineração), Gale Norton (ministro do Interior e advogado da Delta Petroleum). "E, dulcis 37 "[ ... ] ninguém conhece melhor a gênese deste grupo fundamentalista quanto a CIA e seus s~quazes,
in fondo, tanto Bush pai quanto Bush filho petroleiros, desde sempre:' Precisamos falar mais alguma que tanto lhe encorajaram o nasciment? .Zbignie~ Brze~in~ki, .secretário de se~u.rança nacIOnal da
coisa? Os Estados Unidos gastaram "até 4,4 trilhões de dólares (quase 7 trilhões de reais) pelos con- administração Carter felicitou-se sem dUVIda pela armadllha cnada para os sOVIetlcos em 1978, ~a­
frontos travados no Iraque, Afeganistão e Paquistão. O cálculo foi divulgado pelo estudo Custos de nobrando os ataques dos mujaheddin (organizados, armados e adestrados ~ela C~) co~tra o r~g~~e
Guerra, feito pelo Instituto Watson de Estudos Internacionais, da Universidade Brown. [... ] 224.000 de Kabul: uma manobra que induziu aos soviéticos, no final do ano segumte, a mvadIr, o. ternto~IO
a 258.000 mortes diretas, o que inclui 125.000 civis no Iraque. [... ] No mesmo período, os confrontos afegão. Só depois de 1990 e depois da instalação de bases americanas ~e~m~entes na ArabIa sa~dIt~:
já causaram [a morte] indiretamente - por exemplo, por desnutrição e falta de acesso a atendimento sobre uma terra sagrada para o Islã, estes combatentes tornaram-se ImmIgos dos Estados Umdos.
médico e água potável. Outras 365.000 pessoas ficaram feridas, e 7,8 milhões de pessoas precisaram (Chomsky) Ver Carmichael (1969) e também Chomsky e Herman (1976), uma abund~te ~o~umen­
deixar suas casas:' Nos 3209 dias (até 24-10-2011),103 mil mortos civis iraquianos, 4482 americanos. tação sobre os chamados "Banhos de Sangue': Gusterson (2009) cita Chalmers }ohnson: 'A VIsa~ a:ne-
Stiglitz (2008) afirmou: "A administração Bush afirmou que a guerra custaria 50 bilhões de dólares. ricana da colônia é a base militar:' Gusterson afirma: "Excluindo as bases amencanas no Afegamstao e
Hoje, os EUA gastam no Iraque exatamente essa quantia a cada três meses. Para colocar essa cifra em no Iraque, os Estados Unidos gastam cerca de 102 mil mil?~es de ~ó~are~ por ano [; .. ~ têm 227 bases na
contexto: por um sexto do custo da guerra, os EUA poderiam botar nos eixos e estabilizar seu sistema Alemanha [... ] os soldados americanos vivem muma espeCle de Imltaçao da Amenca nas. suas bases,
de seguridade social durante mais de meio século, sem precisar cortar benefícios nem ir à procura vêem a TV americana, ouvem o rap e o heavy metal americanos e comem a fast food amen.cana, a fim
de contribuições. [... ] O governo tentou ocultar dos norte-americanos os custos da guerra. Os gru- de que os rapazes [... ] para alí transplantados, tenham pouca ~xposição a ?~tro modo de VIda. ,~ ... ] Os
pos de veteranos apelaram para o Ato de Liberdade de Informação para conhecer o número total veteranos da Coréia [afirmam que foram praticados] 52000 cnmes na CoreIa entre 1967 e 2002.

l
26 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 27

descontados sucessivamente por um preço altíssimo. Bin Laden é o produto da vitória estadunidense desenhar falsos inimigos para negar a evidência dos reais, e a buscar a conciliação [...] lá onde existe
contra os soviéticos no Afeganistão: qual será o custo do seu novo triunfo neste país?(Noam Chomsky) apenas divisão e luta inevitável. A ideologia global impõe o denominador comum da luta contra o
terrorismo. (Masi, 2009. Grifo nosso)
o orçamento estadunidense revela como são tratadas as classes e confirmam a
tese marxiana do Estado como gerente coletivo da propriedade burguesa. Os cortes A vitória dessa "ideologia global" não se deve a uma pretensa verdade, natural e
orçamentários são feitos sempre sobre os gastos sociais. As despesas militares são, intrínseca. Como o fascismo ela veio após a derrota do movimento dos trabalha-
na prática, intocáveis visto que desde a muito se consubstanciam em um complexo dores: veio e se estabeleceu após a derrota do socialismo realmente inexistente41 • O
industrial-militar denunciado pelo próprio Eisenhower38• capitalismo para continuar seu processo de recolonizaçã042 , processo que requer a
permanente ideologização da política internacional? Este era e é o problema real.
Os governantes e cidadãos norte-americanos são viciados em dinheiro estrangeiro (e dependentes dele),
da mesma forma que do petróleo importado. O déficit de 300 bilhões no orçamento federal foi recente- o primado da dimensão técnica sobre a dimensão humana é o problema que a grande filosofia do
mente louvado pela Casa Branca como algo de que se deve ter orgulho só porque haviam sido cortados século vinte atribuiu à política e que a política não soube resolver. [. .. ] a falência na realização do so-
alguns bilhões de dólares do déficit do ano anterior [... ]. O dinheiro importado [... ] não é gasto para cialismo respingou sobre toda a história humana. Ali não faliu a experiência de uma parte do mundo
financiar investimentos potencialmente lucrativos, mas para sustentar o boom do consumo e, portanto, e do homem, ali houve a falência do inteiro projeto moderno, o projeto do moderno, o humanismo,
o "fator de boa sensação" do eleitorado, assim como para financiar os déficits federais, exacerbados com como uso da racionalidade técnica ao serviço da razão humana. (Tronti, 2009. Grifo nosso)43.
regularidade (apesar dos cortes cada vez mais drásticos nos gastos sociais) pela continuidade da redução
de impostos para os ricos. (Bauman, pp. 104-105. O livro é de 2007. Grifos nossos).
O resultado foi o redesenho geopolítico mundial. Capitalismo e história parecem
fundir-se em uma unidade insuperável, linear, sem antagonismos. A história "apare-
Muito já se falou sobre tudo isso. O imenso estoque ideológico capitalista que pro-
ce" como natureza; o capitalismo como sua forma.
metia liberdade e ampliação mundial das riquezas via globalizaçã039, não realizou suas
promessas no que se refere às condições materiais da imensa maioria das populações, Uma vez derrubada a União Soviética, derrotados ou desaparecidos quase em todas as partes os
mas vem vencendo ao impor, na maioria dos países, a adesão ideológica às suas teses. partidos comunistas, a cruzada deveria ter-se concluído. [... ] as alianças militares constituídas para
combater "o império do mal" não deveriam mais ter razão de ser. Ao invés disso assistimos a uma
O "pensamento único" seria hoje mais bem definido como "ideologia global"40: favorecida pela progressiva escalation na agressividade, na relativa propaganda, nas intervenções armadas fora dos
babei linguística ocupa as mentes, leva a conformar-se às convenções dominantes, empenhadas em confins nacionais, na reorganização da OTAN, na repressão violenta a qualquer movimento po-
pular. A etiqueta "luta contra o comunismo" foi substituída por "luta contra o terrorismo" - para
38 Cook, 1966. ''Atualmente os Estados Unidos são o maior exportador mundial de armamentos. Segundo
continuar na velha estrada e pelos mesmos inconfessados velhos motivos, de modo mais pesado e
os dados do instituto independente sueco 'Sipri: entre 1995 e 2000 os Estados Unidos cobriram 47,3% do
em formas mais graves. A fabricação de um "império do mal" aparece então como uma necessidade
mercado, seguidos pela Rússia (15,4%), França (9,4%), Grã-Bretanha (6,7%) e Alemanha (5,8%); no total
estes cinco países cobrem 84% da atual demanda mundial de armas. Na sua retaguarda Holanda, Ucrânia, absoluta. Ao "terrorismo" vem arbitrariamente associada toda forma de violência (armada, física,
Itália (1,6% com um valor de 2 bilhões de dólares), China e Bielorússia:' (Ingrao e Zanotelll, 2003, p. 13) O moral) e enfim de luta (armada ou desarmada): trate-se de revolta individual ou de grupo, insurrei-
processo do complexo industrial-militar encontra similares no pensament de Rich Ludendorff, membro ção popular, guerra de libertação ou de independência, guerrilha, conflito social, luta de classe e até
do Estado maior alemão na primeira guerra interimperialista e teórico da guerra total. (Chapoutut, 2005) mesmo reivindicação sindical. (Tronti, 2009. Grifo nosso)
39 Os resultados? ''A multiplicação dos deixados à margem do crescimento, tanto no Sul quanto no
41 "[ ... ] o discurso sobre a crise dos modelos do Leste: na medida em que a organização produtiva
Norte, e também a renovação incessante da humilhação e do esmagamento subjetivo de todos aque-
nestes países tinha assimilado as tecnologias e as regras organizativas típicas da empresa capitalista
les que essa mesma modernidade designa despudoramente, diante da globalização, como os 'sem';
moderna, a rediscussão da 'objetividade' destas não pode deixar de debilitar também estes modelos.
sem-pátria, sem-território, e também sem-teto, sem-trabalho, sem-documentos, sem-direito a um
Entram em crise, de fato, também aquelas teorias, amplamente difundidas no movimento operário,
espaço de palavra:' (Cherki, 2002) Ou como recapitula Labica (2009, pp. 14-15): "Quem teria a ousa-
segundo as quais os desequilíbrios próprios do sistema capitalista encontram a sua origem na 'má
dia de afirmar que a industrialização do assassinato não foi mais beneficiada pelos avanços científicos
gestão' dos recursos por parte dos capitalistas. A redes coberta daquilo que Trentin chama a 'contra-
do que as terapias médicas ou a proteção do meio ambiente? Conquista-se o espaço e destroem-se os
dição orgânicà, que está dentro da produção capitalista, significa colocar em dúvida seja a hipótese
solos mais férteis. O mesmo país que investe bilhões num porta-aviões nuclear deixa dispararem suas
produtivista, seja a hipótese de uma superação das contradições por meio da gestão do capitalismo
taxas de desemprego e de pobreza. Os Direitos Humanos são assunto constante, mesmo enquanto por parte da classe operária:' (Barcelona, p. 41. Grifo nosso). A utilização da expressão "socialismo
milhões de crianças são condenadas ao trabalho forçado ou à guerra, eventualmente à prostituição e
realmente existente" contém uma visão mistificadora e mistificada do que ocorria nos países ditos
sempre a uma existência encurtada. Abrem-se restaurantes para cachorros e canais de televisão para
socialistas. A equação "estado + planificação = socialismo" foi seguramente um dos principais instru-
gatos, enquanto populações inteiras estão desprovidas das condições mínimas de higiene:'
mentos da derrota daquilo que se iniciou com a revolução de 17. O mesmo vale, a nosso juízo, para
40 "Exatamente porque [é] ideologia autêntica que não tem nenhuma comparação não apenas com
a caracterização daqueles regimes como "Estados operários corrompidos".
a realidade dos processos econômicos [os 'mercados' reais], sequer com a práxis de quem a professa
42 "Querer se limitar apenas ao evento da abolição, é querer conscientemente apagar a perpetuação
[... ] o liberismo ou 'pensamento único' pode ser sem mais identificado com a forma mais [... ] difusa
do racismo, da violência colonial e da exploração brutal daquelas e daqueles que trabralham nas so-
de ignorância: isto é, uma forma não apenas de ocultamento da verdade, mas de orgulho no querer
ciedades pós-coloniais. O problema colonial está posto e espera ser resolvido. (Vergés, 2005, p. 54)"
ignorá-la. Enquanto seus prosélitos, de direita e de esquerda, ou nem de direita nem de esquerda,
43 No mesmo sentido ver Rossanda, p. 23.
não são senão sacerdotes desta 'ditadura da ignorância':' (Viale, 2010. Grifo nosso)
Revolução passiva e modo de vida 29
28 Edmundo Fernandes Dias

As intervenções contra classes, povos, nações e culturas44 que, por este ou por aque- francesa foi marcado por inúmeras tentativas de restauração e de revolução. Foi
le motivo, se opõem aos países centrais e ao processo da financeirização planetária um século de guerra civil permanente. Quando examinamos a cena pós-revolução
são tornadas possíveis e legitimadas pela lógica do hegemonismo. A perda de uma russa não encontramos nada de semelhante49 • Um diferencial entre os dois pro-
so
referência internacional dos subalternos foi obviamente decisiva: "A queda do Muro cessos é a presença incontrastada do capitalismo. Basso e Perocco , trabalhando
de Berlim [. ..] não foi a renuncia ao comunismo, mas a qualquer regulação política sobre a produção ideológica, nos ajudam a compreender esse problema e mostram
do mercado"4s (Rossanda, p. 79. Grifo nosso)46, referindo-se às forças de esquerda47. suas bases reais:
Desde quando se exauriu o ciclo de desenvolvimento pós-bélico (1945-1973), a taxa de acumula-
P?d~ríamos r~orq~ com malícia: e se ainda existisse no Krernlin um delfim de Brejnev, a idéia estaria
ção de capital permaneceu, no conjunto, palpitante; e não poderá recuperar-se sem uma massiva
VIva. O P.CI nao tena ~udado de nome? O pensamento europeu desde os anos trinta teria tido alguma razão
injeção suplementar de valores que só pode vir de uma desvalorização conjunta da força de trabalho
para. du:uiar qu~ a ~ocledad: sepa~ada do movime~t~ operário pudesse nascer no contexto em boa parte pré- em escala mundial. [... ] O conflito entre a Europa das empresasS1 , dos governos, dos estados, dos en-
-capltal~a ~ Russ~a. Mas nao tenamos tocado o uruco argumento forte, o único de Furet outros projetos
genheiros da chamada opinião pública e os imigrantes é no fundo um conflito de classe, que é parte
revoluclOnanos carram, mas marcaram definitivamente a história - as revoluções inglesa e francesa, que
integrante do conflito entre capital e trabalho mais vasto. O racismo institucionaP2, em todas as suas
nenhuma restauração conseguiu apagar como se não tivessem ocorrido. Marcaram para sempre o fim dos
variantes, não se limita de fato a inferiorizar as populações de cor: procura converter tal conflito en-
respectivos ancien regime. Mas Lenin? Não deixa herança48. (Rossanda, p. 198, dela é o último grifo)
tre capital e trabalho em um conflito entre trabalhadores, entre povos, entre culturas, entre religiões
trabalhando sobre desigualdades reais ... para agudizá-Ios até o paroxismo e o choque. (Masi, 2009)
Esta é uma dolorosíssima questão: a da eficácia do apagamento da mais radical
intervenção dos subalternos na história. Lembremos que o período pós-revolução A questão central do conflito capital-trabalho está aqui colocada na macropers-
44 A cultura é "o sa~er e.o m?~o de ser de um país no seu conjunto, ou seja, a qualidade histórica pectiva institucional internacional/nacional. O que normalmente é ocultado revela-
de um povo com a .l~fimta sene de normas, mesmo não escritas, e até mesmo inconscientes, que -se à luz do dia: o Estado é o mediador de uma brutal luta assimétrica entre forças e
determm~m a sua Vlsao da realidade e regulam o seu comportamento': (Pasoloni, Saló ... , p. 87, citado
por PonzlO) poderes altamente diferenciados. Examinemos a questão da dominação ideológica,
45 "O m~r~ad~ será considerado como local da eficácia econômica, da gestão da vida social, um sem cuja decifração se repetirá o já conhecido e os elementos que permitam aos
espaç~ p~lvIleglad~ de :eprodução da sociabilidade burguesa:' (Lima, 2004, p. 15). subalternos construírem a sua resposta à crise serão recalcados. Falta, portanto, uma
46 Zblgme~ Brzezms~: ~ derrota e a queda da União Soviética propiciaram o rápido ascenso dos
Estados Umdos como umca e de fato primeira potência mundial real"; '~mérica do Norte encarna análise teórica que localize as possibilidades de resolução da crise.
em. quase todas. as ~a~tes o futuro de uma sociedade exemplar que há que imitar-se"; "na termino-
logIa. crua dos .Impe~lOs do p~ss:d~, os três grandes imperativos geoestratégicos se resumiriam da 49 Ver entre outros Anweiller, 1972.
~eg~mte maneIra: eVItar a C?mVenCla ~~tre vassalos e mantê-los em um estado de dependência que 50 Pietro Basso e Fabio Perocco, Gli immigrati in Europa, Franco Angeli, 2003, citado por Masi,
JustIfic~ sua segura~ça;"c~ltIvar a dOCllI?a~e dos súditos protegidos; impedir aos bárbaros que for-
2009.
me~ alIanças ofen~lVas; reger ~ eme,:g,~nCla de. n~vas potências mundiais para que não ponham em 51 Em 2004, Wal-Mart "rede mundial de supermercados de preços baixos empregava 1,4 milhão de
pengo a supremacIa norte amencana; 'A amplIaçao da OTAN servirá aos objetivos, tanto de curto pessoas; sua receita de 258 bilhões de dólares "corresponde a 2% do produto bruto dos EUA e a oito
quanto de longo prazo, da política norte americanà: "a mundialização [... ] não é mais do que o vocá- vezes o tamanho da Microsoft': Esta empresa do novo tipo tem inovado na escolha dos fornecedores,
bulo.encobridor do imperialismo"; "a difusão não igualitária do capitalismo em âmbito planetário". recorrendo a um setor manufatureiro chinês em rápido crescimento, e no emprego da tecnologia
(LablCa, 2003, pp. 47-48. Grifo nosso). avançada. O Instituto McKinsey considera a Wal-Mart o verdadeiro paradigma da empresa de ponto
47 Apesar de concordarmos com a análise da autora recusamos a metáfora da "Queda do muro": derivando sua produtividade de uma 'permanente inovação gerencial' que concentrou o poder no
porque o~~~t~ ~ fato de que não existiu nenhuma sociedade comunista e por que se tratava de um J.centro do gigante, desabilitou os sindicatos e trata a massa de seus empregados como se fossem tra-
process~ J~ mlCI,a?O no final ?os anos vinte do século passado com a passivização da revolução russa,
a destrUIçao pratlCa dos sovIetes, do partido bolchevique e da possibilidade de democracia no ter-
-fbalhadores temporários e provisórios". (Sennett, 2006, p. 125. Grifo nosso)
52 "[ ... ] quando um terrorista branco, desconhecido, lança uma bomba contra uma igreja dos negros
ri~ó~i~ do antigo império tzarista. "[ ... ] o desmoronamento do bloco soviético e a crise das culturas isto se configura como um ato de racismo individual, asperamente condenado na maior parte dos
hlsto~lCas de classe expressas pelo movimento operário fizeram definhar, nos anos 90, a atenção países do mundo. Mas quando na mesma cidade de Birmingham, no Alabama, não cinco, mas 500
re~aclOnada ao tema do trabalho como questão eminentemente política da contemporaneidade e bebês negros morrem de fome a cada ano, pelas condições de higiene e de alimentação e quando
seJa como for u~a reconstrução unificante e inclusiva da ideia de trabalho, que tinha sido operante milhares de pessoas são sistematicamente destruídas e aniquiladas física, emocional e intelectual-
po: todo ~m seculo [... ]. A tal ponto que pesquisadores dos 'mundos operários: como Maurizio mente por causa das condições de miséria e da discriminação em que vive a comunidade negra,
Gnmbaudl, falando sobre Turim do início do século passado, rejeitando as leituras políticas 'leva ao isto é um aspecto do racismo institucionalizado. Quando uma família negra se muda para uma casa
p~r~~oxo de estudar os operários quase prescindindo do trabalho que os definiu e construiu como num bairro branco e é apedrejada, queimada ou expulsa, este é um claro fato de racismo individual
taIS. (Casurano, p. l36. O grifo é nosso). e muitas pessoas o combatem, pelo menos por palavras. Mas é o racismo institucionalizado que
~~ "Qua~do se acaba o inventário do que se perdeu, se esboça o que resta a fazer, se se permanece fiel mantêm os negros presos em favelas e cortiços dilapidados, onde deve passar a sua vida quotidiana
a IdeologIa que a Revolução ti?ha, ~la próp;ia: herdada das Luzes e o que é o progresso, transfigurado presa aos padrões à rapina dos exploradores proprietários de favelas e comerciantes, dos tubarões
pela ~uta, geradora ~e conqUIstas I:-reverslvels e de antecipações para o futuro. O que permanece? das casas de penhores e dos padrões dos agentes imobiliários': (Carmichael, 1969, pp. 58-59. Grifo
Segumdo a expressa0 de E. Bloch um sonho para frente: e um horizonte de esperança:' (Vovelle, nosso).
2002, p. 14, Grifo nosso).
30 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 31

[... ] a ingênua confiança na iniciativa do Estado é o reflexo de ideologias externas, sobretudo inglesas e E, o que pode escandalizar ainda às belas almas, tudo isso sob o influxo do lucro
americanas, refonnistas ou verdadeiramente de "terceira força': que não são consideradas nos seus limites que é apresentado como de natureza distinta da capitalista por estar sendo praticado
ideológicos face às situações em que surgiram, mas são aplicadas verdadeiramente, com uma mentalidade
incrivelmente provinciana, a uma situação como a nossa italiana, que apresenta características, problemas
em um país dirigido por um partido que se pretende comunista:
e exigências profundamente diferentes. Naturalmente, é necessário distinguir entre as várias formas de neo-
-estatalismo econômico. Existem aquelas que, referindo-se de vários modos, sobretudo à obra de Keynes, É uma gloriosa responsabilidade para as empresas socialistas trabalhar duramente a fim de aumentar
refletem um ponto de vista capitalista sobre as possibilidades de atenuar com a intervenção do Estado pelo a acumulação para o Estado e conseguir maiores lucros. Nas condições socialist~, ~ que _uma empres~
menos as conseqüências dos defeitos congênitos do sistema. E existem aquelas, pelo contrário, [as] de tipo ganha é, na essência, diferente do lucro capitalista. Os ganhos de uma empresa sOClalzsta sao uma mam-
laborista, sobretudo que, sublinhando uma presumida função pública, "geral': acima das classes, das insti- festação do esforço consciente dos operários para cri~r riquezas materiais, fornecer fund~s par~ o ~onsu­
tuições políticas democráticas, vêm na crescente participação nelas dos trabalhadores a via pacífica e mais mo e acumular capital para construir o socialismo. E inteiramente diferente da exploraçao capltaltsta da
direta para superar o modo de produção capitalista que hoje moveriam não mais para a explosão das suas mais-valia dos operários [... ]. Melhorar a gestão das empresas e aumentar os ganhos [por um lado] e a
contradições, mas para uma espécie de extinção gradual. (Panzieri, 1973, p. 121. O segundo grifo é nosso.) idéia [revisionista] de por o lucro no posto de comando [por outro lado] são dois conceitos inteiramente
diferentes. (editorial do Renmin Ribao de 27 de agosto de 1977, citado idem, p. 22. Grifos nossos)53.
A crise atual confirma que sob a ordem do capital não há - e nem pode haver - solu-
ções reais para as crises produzidas pelo enorme fosso existente entre produção social e o processo desse conflito passa pela expropriação da capacidade intelectual dos
apropriação privada: a construção social da riqueza tem seu solo matriz na eliminação trabalhadores, processo já clarificado por Marx:
da possibilidade de uma efetiva distribuição da riqueza que permita o pleno acesso à
As potências espirituais do processo material de produção ampliam sua escala sobre um aspecto
cultura, à saúde, ao ócio necessário para a recomposição da capacidade produtiva das
a custa de inibirem-se nos demais. O que os trabalhadores parciais perdem, se concentra, enfren-
classes trabalhadoras, das classes subalternas, mesmo mantendo-as como tal. tando-se a eles no capital. É o resultado da divisão manufatureira do trabalho o erigir frente a eles,
como propriedade alheia e poder dominador, as potências espirituais do processo material de pro-
o capital tem a necessidade de restringir cada vez mais o espaço do trabalho, e na segunda metade do dução.(Marx,1959,p.294)
século XX chega a devorar o trabalho como entidade política e a destruir a política como dimensão
mediadora. O mecanismo da acumulação e da reprodução ampliada conduz à formação de capitais A contradição capital-trabalho se revela não apenas na teoria, nas macrodetermi-
imensos estruturados em organismos de domínio global que visam o controle total e direto dos
estados-nação e a criar um domínio absoluto próprio sobre o trabalho que, disperso em partículas
nações, mas, também, e especialmente, no modo de vida dos subalternos.
atomizadas e flexíveis, potencialmente privados de qualquer autonomia humana, seja manobrável
como objeto e reconduzido ao puro estado de mercadoria. As imensas massas de trabalhadores, Bem antes da crise financeira eram evidentes as falências da economia global: nunca o mundo foi
mesmo não industriais, que povoam as zonas do mundo não metropolitanas, são as primeiras a tão rico e tecnologicamente avançado, todavia o nosso é um planeta no qual os pobres que sobrevi-
serem submetidas ao mais alto grau de controle e de exploração. Toma, assim, a forma de bandi- vem com um dólar ao dia são 1,4 bilhões, 1 bilhão vive em favelas, 2,5 bilhões sem água54 • (Gallino,
tismo pior que o do século dezenove, à recolonização direta e indireta de grande parte do mundo. 2009, p. 1. Grifo nosso)
Esta é a primeira fonte da política de agressão e da guerra permanente, com todas as ideologias de
cobertura, que visam, segundo a expressão de Basso e Perocco, "mobilizar a população trabalha-
A questão da pobreza não se reduz apenas à pura monetarização. Veiga (2011, A3)
dora autóctone contra outras populações e contra si mesma". (Masi, 2009. O primeiro grifo é nosso)
mostra que ela é a
o problema central está colocado não no fato aparentemente técnico da diVisão, [... ] privação de capacidades básicas, [que] jamais deveria ser medida apenas com estatísticas de
mas no controle do processo produtivo como um todo e, portanto, na questão do renda. É pobre mesmo aquele que tiver boa renda monetária caso esteja impedido de convertê-la
poder e da capacidade de recomposição das tarefas. Isto implica um problema ain- em vida decente. Por falta de saúde, de educação e de muitas outras carências.
da maior: a relação entre divisão do trabalho e modo de produção. Questão vivida [desconhece a realidade, quem acredite que só menos de um terço da população brasileira continue
pobre porque em 2008 já não passavam de 28,8% os condenados a viver c?m menos de meio s~l~~io
também no socialismo realmente inexistente. A exploração e a opressão não são elimi-
mínimo. [... ] mais da metade da população permanece pobre: o acesso a rede de esgoto samtano.
nadas. Pelo contrário. São reforçadas. Não usufruem deste direito básico 56% da população total do país.
[... ] O número de moradias insalubres diminuiu dez pontos entre 1995 e 2002 (de 59,1 % para
As regras e os regulamentos não devem ser nunca eliminados. Mais, com o desenvolvimento da pro-
53 Isto nos permite compreender o processo da sociedade chinesa regida por um governo do PC
dução e das técnicas, as regras e os regulamentos devem tornar-se mais rigorosos, e as pessoas devem
Chinês e por uma economia capitalista. . .
segui-los à letra. [...] É uma lei natural. À medida que a produção se desenvolve, devemos estabelecer 54 'Atualmente, o mercado de divisas mundiais FOREX (Foremg Exchange Market) gira um volume
regras e regulamentos mais rigorosos e mais racionais. (Rádio Pequim, 14 de agosto de 1977, citado de transações de $ 1,5 trilhões de dólares/dia. Bancos centrais, especuladores, opera~ores de fundos,
por Betelheim, 1981, p. 19. Grifo nosso) hedgers e bancos privados participam diariamente dessa farra que c~bre o globo e nao pa.ra durante
as vinte e quatro horas do dia:' (Nascimento, 2005, p. 48) Farra, obViamente, para os dommantes.

.
33
32 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

49,5%), e mais cinco entre 2003 e 2008 (de 48,3% para 43%). Mantidos tais níveis de desempenho, As classes na sociedade capitalista são a síntese da unidade dialética de exploração e
a universalidade do esgoto com tratamento só ocorreria em 2060. ) opressão. A esfinge neoliberal decifrada nos mostra ~ue o_au~ento expone~ci~ da ex-
ploração exige/requer o correlato aumento da opressao: nao ha forma economlCa pura,
o Banco de Regulamentações Internacionais (BRI) afirma que a diferença entre em um éter metafísico, mas na concreta relação/unidade dialética de violência/consen-
1980 e hoje, em todos os países industrializados marcou um crescimento dos lucros so. São necessárias reformas constitucionais, a quebra dos chamados direitos sociais, das
sobre os salários: na Itália, por exemplo, houve um aumento dessa diferença da or- formas de solidariedade, da focalização/não universalização das questões sociais mais
dem de 23,1 % (1993) para 31,3% (2005). relevantes para os subalternos e da busca desenfreada pela captura da subjetividade an-
tagonista deles56 • Aqui, contudo, surge o mito do cidadão-consumidor. Como ao capital
Trata-se de 8% do PIB, equivalente a 120 bilhões de euros, ou seja, de 7 mil euros por cada um dos 17 é impossível a distribuição da renda em termos equivalentes à riqueza produzida, esse
milhões de assalariados italianos que passam dos salários aos lucros. Mas a coisa mais interessante do mito fundante, pode tornar-se uma bomba relógio de alto poder explosivo. Pode, afir-
estudo do BRI é que a causa deste fenômeno está localizada, não na concorrência dos trabalhadores
dos países "em vias de desenvolvimento': mas na introdução de nova tecnologia que, expulsando
mamos. Nada há de fatal na vida social. Contudo o capitalismo como ~ontradição em ,
trabalhadores e desestruturando organizações do trabalho reduz a capacidade de resistência e ne- lrocesso torna possível a exacerbação da crise:
gociação dos trabalhadores. [... ] tendo as novas tecnologias uma forte componente informática,
que as tornam obsoletas mais rapidamente, as reestruturações tornaram-se mais freqüentes. [... ] A cota dos salários no produto interno bruto conheceu uma queda também ela acentuada a partir de
Segundo o Harbour report, as principais [fábricas de automóveisJ de Detroit reduziram a diferença 1981-82 (a tendência à queda que começara na Europa com a grande recessão de 1974-75 se aprofun-
com os estabelecimentos japoneses na América em termos de tempo necessário para a produção de um dou a partir de 1981). Ao contrário, a cota das rendas embolsadas pelos capitalistas aumentou.
veículo de 10.51 horas em 2003 para 3.50 em 2007. (Moro, 2009. Grifos nossos) [... ] a cota da renda nacional dos Estados Unidos em favor dos 10% mais ricos cresceu de modo im-
pressionante. O crescimento é particularmente ~rutal a partir do início dos ~os 80.QEn~uanto.em 1982
Para que isto se realize é necessária a quebra dos direitos dos trabalhadores e de suas o decil mais rico açambarcava 35% da renda naCIOnal, a sua cota explode e atmge 50 % vmte e cmco anos
mais tarde, chegando assim à situação que precedeu ao crack da bolsa de Wall Street de 1929. [... ]
condições materiais de vida. Mais do que isso. Cria-se em escala planetária o trabalha- Outra evolução completa a grande transformação: nos Estados Unidos, enquanto diminui a parte
dor do capital e não mais o trabalhador para o capital. O trabalho é virtual55, limpo, au- dos salários no produto interno bruto, o consumo privado aumenta fortemente a partir de 1981-82.
tônomo, dizem. O que se oculta é que assim procedendo subsume-se também a família Isto significa duas coisas:
ao capital. Horários são dilatados, a família funciona como uma equipe "comandadà' 1. Os trabalhadores financiam cada vez mais os próprios consumos [... ]. 20% das famílias mais
pobres aumentaram o próprio endividaIl1entoJde 90% ente 2000 e 2007): é o elo débil do sistema,
localmente pelo trabalhador (ele próprio um capataz não pago) a serviço do capital.
o público natural das subprimes; -
Isto é uma espécie de plus-plus-valor (perdoem-nos a imagem) visto a superexplora- 2. Os capitalistas consumem cada vez mais utilizando uma parte crescente dos seus lucros em des-
ção ao mesmo tempo oficializada e clandestina. Partícipes imaginários do maravilhoso _2esas ostentatórias. Mas estes também se endividam. De fato, em volume de crédito, o 20% mais
mundo das mercadorias, os trabalhadores, condição necessária para a eficácia capita- ~ico contribuiu apenas com a metade no aumento do débito das famílias registrado entre 2000 e 2007.
Os ricos se endividaram para especular na Bolsa ou em outros setores como o imobiliário enquanto
lista, tornam-se supérfluos, inclusive como consumidores. Chamamos de mercado ao
conjunto das relações sociais capitalistas, que se expande apenas horizontalmente como Ios preços estiveram aumentando.
[... ] nos Estados Unidos o consumo cresceu fortemente enquanto o volume dos salários diminuiu. Na
imagina(va) a esquerda distributivista, mas verticalmente. União européia, a parte dos salários diminuiu de modo ainda maior enquanto os consumos se man-
Produz-se, assim, uma contradição mais e mais rígida: "enquanto por um lado se tiveram. A diferença entre os Estados Unidos e a Europa no que se refere à evolução dos consumos
multiplica a oferta de mercadorias no mercado, por outra se reduz a procura, na maior está no fato de que, com a exceção de Grã-Bretanha, Espanha e Irlanda, o endividamento das famílias
permaneceu claramente inferior ao dos Estados Unidos (ainda que de algum modo em crescimento).
parte constituída por trabalhadores assalariados [... ]:' (Moro, idem). Na ordem do ca-
(Toussaint, 2009. Grifos nossos)57.
pital a totalidade das classes subalternas esd submetida ao permanente processo de
exploração-opressão.
55 "Virtual é quase sinônimo de possível, imaginável, mas enquanto substituto. Do que? Do real. 56 Sobre isso ver Dias, 1999.
57 Não podemos dentro dos apertados limites deste texto examinar os desdobrament~s da proful:~a crise
Realidade virtual é, portanto, um oximoro, uma realidade não-realidade. Mas porque seria 'não real'
que vem pautando a zona do euro. Mais uma vez não foi cumprida a pron:essa ~o capItal finan~~mzado e
aquilo que a mente imagina e traduz no sistema cibernético? É imaginado, portanto é real. Em que
na Grécia, na Irlanda, na Espanha, em Portugal as crises assumem claras mflexoes sobre a pohtlCa desses
se diferencia esta realidade da outra?
países. Podemos, contudo, indicar "a evolução e a intensidade da crise. Em sete~bro d~ 2008 houve a fa-
Da ausência do corpo, da materialidade - que palavras inquietantes. Na realidade virtual és catapul-
lência do Lehman Brothers, um fato de alto valor simbólico, sendo este um dos cmco maiores bancos ame-
tado no vazio, mas o corpo permanece na poltrona [... ]. O não virtual é terrível [... ] vulnerável, te
ricanas. Em 29 de setembro foi a primeira segunda-feira negra em Wall Street: o Dow Jones caiu 8,7%. Na
aciona, te põe em perigo. O virtual te libera do outro na sua corporeidade, do outro em absoluto [... ].
semana sucessiva, em 6 de outubro, a segunda segunda-feira diminuiu em 3,86%. Toda aquela semana, de
O virtual é realidade codificada e flexível, e provavelmente revela o inumano da flexibilidade total"
6 de outubro, foi uma semana negra: o Dow Jones chegou a 22,85. De 9 de outubro de 2007 a 10 de outubro
(Rossanda, p. 5. Grifos nossos).
de 2008 o Dow Jones diminuiu em 42,55%:' (Screpanti, 2009)

c
NORMA, INSTITUiÇÃO, LUTA:
PODER DA PALAVRA OU PALAVRA DO PODER?

o problema da vida é a contradição entre o que é a organização social e o


sofrimento que se exprime em cada um de nós.

Franco Basaglia

Na Grécia clássica existia um personagem decisivo: o aed0 58 • Este cantor, como o


coro nas tragédias gregas, assumia o ponto de vista da comunidade. Ele falava da me-
mória, era um historiador oral. Memória flutuante, modificável ao longo do tempo.
Atribui-se a Tucídides (ver a História da Guerra do Peloponeso) o processo de fixação
dessa memória59 • Lembremos para não darmos margem a interpretações errôneas,
que a escravidão era a base daquelas sociedades e, portanto, o compromisso era com
os homens-livres, os membros da pólis.
Memória e linguagem são constitutivas do social. "[ ... ] a memória constitui ao mes-
mo tempo o material e o objeto: a histórià: (Le Gof, p. 52) A memória é a expressão
real! imaginária da experiência das classes em luta. A linguagem, em qualquer uma
das suas formas é sempre grávida das contradições classistas60 ; é a forma de trans-
missão dessas experiências. Memória e linguagem são expressões de uma determi-
nada Weltanschaung no interior da qual ganham sentido e direção.
58 "O poeta é [... ] um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, assim
como o adivinho o é do futuro. Ele é a testemunha inspirada dos 'tempos antigos: da idade heroica
e, por isso, da idade das origens.
A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sabedoria, uma Sop hia. [... ]
Para Homero [... ] versejar era recordar:' (Le Gof, pp. 17-18. O primeiro grifo é nosso)
59 Grandes obras literárias ou memórias históricas de um povo ainda sob a forma mítica constituem
a matriz do que viria a ser a História. A Ilíada, o conjunto dos livros que chamamos Antigo Testa-
mento (em especial o Deuteronômio), entre outros, são narrativas em que se preserva a identidade
daqueles povos. "Com os gregos se divisa de modo claríssimo a evolução da memória coletiva para
uma história. [... ] Vernant observa que 'a memória que se distingue do hábito, representa uma difícil
invenção, a progressiva conquista, por parte do homem, do seu passado individual, assim como a
história constitui para o grupo social a conquista do seu passado coletivo"'(Le Gof, p. 16). Ver Châte-
let, 1961 e Vernant, 1962 e 1965.
60 Marx trabalhou essa questão preliminarmente em A Ideologia Alemã.

«
~
'i
.~
I
•,I,;,i.'
j 36 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida
37

cultamento do real. Sob o pretexto de apagar formas ofensivas ele acaba P?r_ocult~r
I

o poder passa diretamente pelo discurs0 61 • Mordenti afirmou que quem não tem
I

o d'ferenças reais. A pretexto do pagamento da dívida histó~ica da esc~av~dao - d~­


II1 !

li, I

voz é subalterno, porque desprovido de instrumentos de disputa hegemônica. Bur-


gio (1994), analisando a relação entre cultura e violência, chama precisamente a
a~d: dos dominantes _ passa-se a uma culpabilização histónca_ dos p.ro~nos doml-
Vlados (a culpa é genericamente dos brancos, mesmo daqueles tao opnmldos quant~
atenção para isso.
\n gros descendentes (ou não) de escravos. Mudam-se as palavras, muda-se a rea
os ne "d - . gros mas afro-descendentes.
Ii lidade? Palavras passam a ser sUbStltUI as: nao mais. n~ . '
Pode-se falar exercitando o silêncio, defendendo-o e impondo-o. Pode-se falar para impedir a
própria comunicação, para instituir fechamentos, barreiras, descontinuidades, pontos de não co-
mensurabilidade. Pelo contrário o próprio fato de que a linguagem seja por si mesmo lugar de
r
\ olítlcas focalizadas (que em nada alteram a domlnancla ,b~rguesa) ~~ssam ~ se~
;ormas compensatórias daquelas culpas genéricas ao contrano das p~ht~c~s unIve~
comunicação torna tanto mais urgente, no interesse de quem queira limitar a própria comunica- . são a resentadas como incapazes de resgatar as diferenças hIstoncas e cn-
ção, a intervenção de "bloqueio" sobre a linguagem. Que historicamente o uso de uma linguagem
inacessível aos subordinados (das fórmulas dos magos e feiticeiros ao latinorum dos poderosos à
sa~s queamentePconstruídas Pierre-André Taguieff (citado por Arcangeli 2004) chega
mlnos ' ltamento'
defesa dos arcana imperii) tenha sido instrumento crucial do exercício do poder é deste ponto de a falar em uma eugenia léxica negativa que se expressa nesse ocu .
vista facilmente compreensível. O discurso é em si mesmo diálogo, veículo de reconhecimento
recíproco, testemunho da igualdade essencial de todos os homens: exatamente por isto se tornou . anismo tartufesco dos businessmen americanos que nos "presenteou 'a d~p~i~ação do capi~al
necessário, no curso do tempo, inserir no discurso, na língua, "fechamentos" que lhes neutralizasse O ~ur~t., I bra da bolsa de 1987 e 'otimização das dimensões empresanals par~ as demls-
a potência igualitária e revolucionária. a~lOnano pe a ,~~eo mesmo puritanismo tartufesco do exército americano surpreen~~do ao usar
soes em mass~ e utras ara ocultar aos olhos dos mais ingênuos a ide Ia de morte
certas expressoes em lugar de o P" ente nervoso" ara indicar sem dramas a quem sabe,
Pode ser também mistificador e negado r mesmo de identidades históricas. O cha- e de destruição [... ] [co~o por exemp~o] ag t .stem~ nervoso e alude à destruição de civis
- indicar a quem nao sabe, um gas que a aca o SI , _ "
ma do politicamente correto62, forma mistificatória aceita tanto pela direita quanto por ~;aodo de "collateral damage", danos colaterais. A destruição das vegetaçoes se ch::~ progr~:
setores crescentes da esquerda oficial produz, em um processo claramente liberal, o de~;mtrole dos recursos" e, se um setor amigo é bombardeado por engano, fala-se e ogo amIgo
. , ." (A geli 2004)
e[ d]e ~:0~:~::1~:~~~ so:: m;vidos em direção ao camponês ou ao fazendeiro .qUt~ aspira s~r
61 Uma demonstração efetiva do que afirmamos pode ser vista em Giacchê (2010). Ele mostra como
a crise capitalista apareceu na mídia e nos discursos de políticos, economistas e financistas. O "Fi-
... . perador sanitário, mas uma auten lca requa -
nanciaI Times de 3 de abril de 2009 [... ] sobre uma foto de grupos dos 'leaders' mundiais [... ] [legen- agricultor ou do enfermelro que ~ue; tornar;se ~ms~mples passagem formal de bedel a colaborador
ficação profissi.onal não ocorre ~1~P esm;; e:~:~eiro a o erador sanitário; os pobres e os patrões
dava] 'Os leaders do G20 saúdam o sucesso da summit": "Quanto ao atraso da informação, no seu

~ op~r~dor e;~~~;~a~~ifique~os nã~


afanoso repassar dos acontecimentos, bastará recordar como, em fevereiro de 2008, as agudas previ-
sões do economista estadunidense, Nouriel Roubini, foram uma voz isolada no coro das informações escolar, de gan para possuidores e empresários; os pacientes
sobre a crise:' O mesmo Financial Times, de 23 de abril de 2007 sentenciava: ''A história ensina que permanecem taIS, .a:~ ~ ~~o têm nenhuma recaída, sequer de efeito placebo, sobre a qualidade ~o
esta é apenas uma correção em um mercado especulado r': Citemos, por fim, a Chuck Prince, admi- que ~e torn~t~ .as:~: ;oentes de lepra não se sentem mais tutelados se o legislador prefere chama-
nistrador delegado do Citigroup: "Quando a música parar as coisas tornar-se-ão complicadas. Mas sefVlço sam arlO ..
enquanto a música durar devemos permanecer de pé e dançar. Estamos ainda dançando." Giacchê -los de hansenianos. (Arcangeli,2004a) ,
comenta: Prince parou de dançar quando, em novembro, foi demitido.
62 Exemplar é a tentativa de colocar uma nota explicativa na obra de Monteiro Lobato (As caçadas de . alisou privilegiadamente o processo linguístico nazista pelo qual os su-
Pedrinho) sob a alegação dela conter posições racistas. Trata-se obviamente de reescrever a história
BurglO an d , . h anidade'
balternos não são apenas oprimidos, mas per em a propna um .
ao invés de efetivamente travar o combate ideológico necessário. Censuraremos também Os Salmos
de Salomão por suas frases acusáveis de erotismo? Censuraremos Daniel Defoe por sua apologia
não apenas à escravidão, mas à insinuação desta como forma civilizadora? Eliminaremos Macbeth Em fevereiro de 42, Goebbels instaura .um projetoftde re~~são do~:s~~a~:~~i~: ;~~:,~sl!~~~n~~~:
_
por sua incitação à queima das bruxas? Condenaremos ainda Shakespeare por falar do poder tau- aos povos submetidos que pod~ consl~erar-se: :~: ~:~~nstituindo nos campos de batalha.
matúrgico do ouro ao afirmar que ele corrompe as virtudes? (Arcangeli, 2004a). Ele lembra ainda A refletir em si e corroborar as hlerarqmas q~e. g _ devem desaparecer na troca lingüística. O
ameaça fantasma, Star Wars, onde "Watto é um mercador ávido, infiel e levantino, que fala como um
Entre os falantes subsistem diferenças ess:ncltalS ql~e nao . das outras populações. Trata-se de
imigrado italiano e exibe o nariz estereotipado do israelita meridiona!"? (idem) Apesar do racismo - d I - - deve ser traduzIVe nas mguas serVIS .
claramente expresso ninguém comentou ou pediu a censura a esses textos. Os exemplos podem se alema~ os a emaes nadO . d····· "avizinhem lingüisticamente" ao Herrenwolk ariano. (BurglO,
impedu que os povos omma os se
repetir ad infinitum, ad nauseam ... O fundamental é: reescreveremos o passado a la 1984 ou cons-
truiremos a transformação real do presente. Válida como advertência essa prática acaba por traduzir 1994)63
possibilidades reativas de legitimação de grupos particulares.
"[ ... ] Anette Ardison perguntava, sexta feira 26 de maio [de 1995] a Eric Raoult, ministro da Inte- " d ' rmitido visto que a política morreu. Tudo é pronunci-
63 Herrenvolk, povo de senhores. !u. o e pe S' . ' d sde o início dos anos oitenta começaram
gração e da Luta contra a exclusão, sobre a significação dessa titulação. Ele respondeu que se tratava ável [... ]. É o grito dos depuradores etmcos na erVla qu.e e. .' eram [ ] bestiais os
simplesmente do ministério dos Negócios sociais, exceção feita à Saúde. Prosseguindo neste jogo do mes peJoratIVOS: os pnmelros .. , ,
a chamar os albaneses e croat~s ~om novo~ no. nora voluntariamente a política, que é considerada
dicionário, [... ] ela demanda tradução do "ministério da Solidariedade entre as gerações': Resposta segundos, genocidas. [... ] O gnto lrresp~nsave.llg . ista negador da autolimitação. É o grito
lacônica: "É o ministério da Família". Ilustração de nossas contorções linguísticas. Pratica-se, então,
inferior, [... ] demasiadamente ~u~ana. E o ynto eXPl:s~~snnas ~oisas humanas:' (Arcangeli, 2004)
alegremente o eufemismo; privilegiam-se as comunidades por medo de vexá-las; reverencia-se a que pretende fazer limpeza, pnmelro nas pa avras e p
vítima sofredora, única postura digna de admiração:' (COIGNARD e LANEZ, 1995)
38
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 39

Não é um processo novo, sequer é uma formulação nazista. Losurdo (2002) mo~­
..
Por um discurso blOloglsta . a natureza ue desenbolvem anticorpos contra micróbios
tra como o processo de racialização tomou como modelo os... USA. Rosemberg, e pelas leIs d d ' q . d s por metáforas bacteriológicas. A peste
d - l' , orrentemente enunCIa o _
teórico nazista, retomou entusiasmado as formulações americanas contra negros e e parasitas. Os Tu eus sao, a las, c. d t do ataques perigosos contra o corpo alemao.
judia, o parasita judeu, o verme JU eu, represen an
«amarelos~ isto é, asiáticos. A Rasenhygiene"é no fundo a tradução alemã da euge- (Chapoutot, 2005)
nics" (idem), aliás, inventada por Francis Galton. O americano Lothrop Stoddard
d d . t d s normas de inclusão
cunhou a expressão Untermensch tão ao gosto dos nazis. A idéia é a da supremacia A memór!a
e de exclusao. aparece ~oml o o corfo ;:~r~:~: ;or :~:';~:~~m :oerência lógica e efi-
O pensave e o pra lca ,
da raça branca "contra os selvagens e semiselvagens internos e externos à metrópole
capitalista [... ] incapazes de civilização e seus inimigos incorrigíveis" (idem). cácia prática.
De todo modo mesmo as formas mais brutais de violência exigem uma forma
[ . . .. . ortante colocação em jogo na luta pelo poder con~u.zida
de legitimação. Aqui se traduziu por uma negação da própria personalidade dos ... ] memóna coletiva constItum uma lmp,.
.. A d
d . t é uma das preocupações maXlmas
da memona e o esqueclmen o
Pelas forças SOClaIS. po erar-se . doml'nam as sociedades históricas. Os es-
subalternos - processo que foi muito além da tentativa de captura da subjetividade
antagonista. Ao criar uma linguagem comunicativa para os oprimidos evitava-se um das classes, dos
quecimentos, os grupos, l~ 1;'. sao_ reveIadores destes mecanismos de manipulação da memona
d . d' íduos que commaram e
os hlstona
silêncios da
, .

risco que poderia se materializar em um sentimento de compreensão por parte de coletiva. (Le Goff, p. 4. Grifo nosso)
alguns alemães. Os judeus não eram homens, mas animais. Não podiam assim falar
e ouvir o "verdadeiro alemão': por isso esse código lhes foi imposto. - .,. ,. marca indelével ao longo dos tempos. Mesmo
Essa relaçao hIstona-pohtIca tem uma tud' fragmento, que a liberdade é domi-
qu~n.
. d querem nos convencer d e que oe t
Dois procedimentos essenciais articulam esta estratégia de destruição da comunidade lingüística
hOJe, quan o . ,. b _ tentação totalitária tanto dos senhores da guerra o
nante e que a histona aca ou d o'rI'a flutuante intervêm para corngIr,
universal. [... ] O primeiro procedimento consiste no exagero da língua através do desenvolvimen- d d vos arautos e uma mem
to de uma linguagem cifrada "heroizante" da língua (Klemperer64 sublinha o uso massivo, con- dos donos o po er - no .. Essa relação mantem sua fonna repressiv%r-
juntamente à freqüência de superlativos, o uso obsessivo de termos como welthistorisch [história para prevenir antagonIsmos potenCIaIs., t calam-se os explorados e oprimidos e
. d elo qual a um so empo
mundial], ewig [eternidade], einmalig, zahlos, unworstellbar e - em sentido celebrativo _fanatisch) ganaa. ora: processo p
e de uma terminologia "batalheirà' (onde a constante evocação terrorista de inimigos e perigos). d' tes HOJe como nunca, e, possI'vel documentar passo a passo o
.
organIzam-se
ue ocorre. A os omman
flutuação . ,: agora e,, contudo, de caráter orweliano: do mesmo
da memona
A segunda, mais complexa, consiste na exoterização da língua, em primeiro lugar através do uso

,o~e
massivo de eufemismos finalizados também eles, em grande parte pelo mascaramento da terrí- q d d ntado tudo pode ser apagado.
vel realidade do extermínio. Brause ("duchà') era sinônimo de morte por gaseificação; com Abbe- modo que tudo po e ser 'I' que esta seja brutalmente estratifi-
forderung ("afastamento': "transporte') se indicava o extermínio; entsprechend behandeln ("tratar A decisão hoje não esta ~aIS na po IS m esm~b' Estado-Mercado que decide (já
adequadamente") significava na realidade eliminar; quem morresse de trabalhos pesados, fome,
d · ,. L hza se no grand e conu 10
cada e contra ltona. oca - . e se re'eita' o que é relevante ou o que
dizia Gramsci em 1919) o que se pu~hca, °d
pancadas ou durante o transporte com os furgões a gás era definido, com terrível ironia, normal qu
, eJl pelo simples fato de não falar
verstoben ("falecidos por morte natural"); a Abfahrthall, que nas ferrovias é a estação de partida, era . . t global e torna o pOSSIV
o forno crematório; o Doktor era o foguista designado para o forno; Sonderbehandlung ("tratamen- não é. HOJe o esquec1fl1en o ,fi ' tecIa "deI" dos micro-computado-
to especial") era nada mais, nada menos que sinônimo de assassinato. De particular interesse é a ou de deixar de falar. Sua representaçãdo gra ca e. aa1flagamento da informação do que
. . - t de a ser ca a vez maIS r 'J'
constelação semântica que se desenvolve neste contexto em torno ao conceito de seleção natural. res. HOJe a comumcaçao en f d t 1 d apareAncia Esta não é nem ilusão, nem
O envio para o front oriental dos hebreus aptos para o trabalho e a morte dos menos robustos . t D' papel un amen a a . ,
eram considerados momentos da natürliche Auslee, assim como era considerado natürliche Ver-
esclareClmen o. ai o .. d I d sociedade. A grande questão e: como a
engano, mas elemento constItutIvo, .0 rea) a defiorma diversa.
minderung ("baixa demográfica natural") a morte de tantos, mais fortes, que eram aproveitados na ' 'I xiste amda os que pensam
construção de estradas: neste contexto não surpreende que para referir-se ao envio para as câmaras crítica ainda e posslve , como, e d dois componentes da equipe que iniciou
de gás se servisse também do termo selektieren, extraído do vocabulário técnico dos pecuaristas65 • No final dos anos 70 do seculo p~ssal pO. "t 'co de Gorizia marco fundamental
[... ] a negação da humanidade das raças inferiores (donde o neologismo Untermenschi [subhuma-
l'b l' - do HospIta sIquIa fI ,
o processo .de I . era Izaçao
. 1 em um magnI'fico t ext o 66 ) caracterizaram o quadro históri-
nidade}) deu lugar, na forma mais brutal, mas também mais evidente, através a sua bestialização
ou reificação (o termo empregado da lingüística é Akusativierung, "acusativização': no sentido de
da luta antImanlComIa ,
d d
I d
lavam as utas os su
balternos italianos e não apenas
,
objetivização.) (Burgio, 1994) co-concreto on e se esenro _ . ft la da "A economia política das
estes já que o processo é universal. E~ ~~a seçao In lU.
O regime nazi reivindica uma outra metáfora, a do organismo. A metáfora organicista do Volkskor-
per permite apresentar o estado total como uma necessidade natural e harmoniosa. A luta contra os
relações, a empresa da reprodução SOCIal eles afirmaram.
Volksfremde, esses elementos estranhos ao corpo da nação, ao corpo natural da raça. É legitimado
. do entra com força na cena e na linguagem do polít~co; não
64 Victor Klemperer, Die unbewãItigte Sprache. Aus dem Notizbuch eines Philologen "LTr: Darms- [... ] na primeira metade dos anos 70 o pnva d' I -o na racionalidade instituciona~ eXIge, pelo
quer ser dialetizado segundo os velhos esquemas e mc usa "
tad, Melzer, 1966, citado por Burgio, 1994. LTI - Língua Tertii Imperi.
65 Ver sobre isso as obras de Levi (1968, 1997 e 1999). Risi em 1997 filma a Trégua de Levi. 66 "Vocazione terapeutica e lotta dI. classe. Per un'analise critica della 'via italiana' alla nforma PSI-
chiatrica (1950-1978)':

L
«
41
40 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

contrário, uma espécie de dissociação entre a ordem institucional e vida cotidiana para evidenciar as sua identidade, mas o recalcamento de suas exigências engavet~das, de se~s direitos
diferenças entre as razões e os procedimentos da primeira e as necessidades da outra. ~ o corres ondidos mantidos formalmente, como pura abstraçao; como sIntes.e des-
As formas admitidas e reconhecidas da contratualidade social entre os diferentes sujeitos ricocheteiam, n: rocess~, aparece "o direito a ter direitos", abstração vazia porque de.sprovIda. d~
S f!ividade prática na relação direta com os antagonistas. E c?~O bandeIra redutIva.
na economia política das relações institucionais, como revelação de exigências engavetadas, de direitos
induzidos e não correspondidos e mantidos [como] pura abstração. Começamos várias experiências
de desencanto da moral coletiva do esforço. À crítica são submetidas todas aquelas exclusões históricas e ~ mais este ou aquele direito, mas o genérico direito a ter dlreltos.
que querem a pessoa exposta a uma hierarquia de valores coletivos, com o sacrifício de si. na~ classes não são homogêneos: têm sexos, etnias, idades, culturas, crenç~s e ne-
Por outro lado a pobreza, que se pretende abolida, reaparece como representação fragmentada e cotidiana ~ d des diferenciadas gerando movimentos contestatórios não apenas dIversos,
da miséria social. Se não se revê mais a subsistência (embora a penúria de bens seja uma questão longe de ~::I p~r vezes contraditórios entre si; não são apenas categoria~ lógi~as, mas forma~
de ser na totalidade social. No seu interior se expressam, tambem: dIf:renças e ~?n
ser resolvida) [há] de qualquer maneira a difícil empresa da reprodução social: o próprio espaço que cir-
cunda afábrica e que também as lutas sindicais tem a tempo introduzido nas suas plataformas reivindica-
tivas como "política dos serviços sociais". Tal estratégia é destinada a diluir-se nos anos mais recentes, e se . ~ Um bom exemplo é a luta das mulheres contra a domInaçao mascu Ina,
trad Içoes. . d A

confunde em uma declaração de princípios mais que em práticas de mobilização e de luta. O sindicato, aqui entendida como relação social e não como atnbuto e genero.
de fato, parece fechado na fábrica, enleado em uma posição de defesa das conquistas dos anos precedentes
e não parece em condições de exportar para o social seu patrimônio de elaborações.
No social são as lutas das mulheres e dos grupos juvenis, dos marginais e dos precários, [que denunciam]
A lei sobre o aborto [legge 194 sull'interruzi~n~ gra;id:z:]e!s~ ~~~::a:~ed: ~;~~:~~~:~~~:
di
anos. O movimento feminista, que se constituiU em or - ulterior dela e uma retomada

~~~~~:,sN7!~ ;:~d~o~t::o::::~~;:~ f~d~u~:t;~~::ie~ade atomar ~on,Sci~~~!:~~b~~


as regras e as reiterações com as quais cada um é obrigado a pagar o custo da autoconservação na norma-
lidade produtiva. Em particular, a luta das mulheres contra o poder do homem, cena primitiva de todas
as formas de opressão e de domínio, encontra no substrato concreto da instituição familiar, no tema da d .d d Ih res A gravidez não e uma doença, mas quan e o In
saúde e da autonomia da mulher um terreno que confere ao privado uma ressonância própria67 .
Em tal contexto, no qual deterioram prospectivas de resgate social e códigos precedentes de salva-
~~;~~:Zle;~~lh:r~r:~i~: :;a~seb~ma do~te eÇ~ :::i:~:: :::~~~s~a;:r:lq~~: ~~~~n:~~~~
é uma intervenção medICa nao so re uma oen ,
ção coletiva, não estão ausentes as recaídas nos saberes da subjetividade. A dilatação manipulada das
(Basaglia, 2000. Grifo nosso)69
problemáticas das relações e da "questão do sujeito" parece conferir novo espaço às psicoterapias aos
saberes religiosos e escatológicos. Enquanto nas realidades metropolitanas se abre o mercado da droga
vida das mulheres travam-se batalhas ideológicas. As igrejas,
pesada, alguns circuitos privados de psicoterapia se circundam de uma propaganda tal [para] fazer Sob re o corpo e a " d ' eito em
pensar em um ingresso tardio da psicanálise na sua moderna versão de massa. (Basaglia e Gallio, 1979. mesmo a uela que requerem o celibato de seus "~inistros, arrogam-se o Ir ,
Grifos nossos). nome de ~ma "verdade" (sic) transcendental de dItar o comportamento de mulheres
· r ) t' o resultado final do corte do cérebro de uma pessoa em
Aqui estão presentes os autores/atores da luta social e os limites do campo onde se (choques elétricos e comas d ~ ms.u ma. ' a e . ue fazem isto a outros seres humanos ten-
dois ou mais pedaços pela P,SlcoClr~rg1a - ma1~~~i~:r~sO ~ praticamente não podem evitar sentirem-
trava a luta de classes (as normas e as instituições). Faz-se necessário explicitar uma dem a sentir sinceramente p1eda~e, mhteresse. e d ç ndalizados com aqueles que, dentre os seus
questão: na linguagem das chamadas ciências humanas tornou -se moeda corrente -se cada vez mais indignados, tnstes, orronza os e esca "
colegas, estão horrorizados e escand_alizados ~om se~s ~to~1turas ue ainda obrigam a extirpação do
falar em atores sociais. Ator é quem representa um personagem criado por um autor.
69 Sobre a radicalidade desta ,l~ta nao necess1~amos ~~~se~ uerdà~- ou será "à esquerdà'? - e mesmo
Reduz-se assim à ideia de persona, de máscara o que, aliás, é decisivo nas formas clitóris. Basta ver como se pos1C10n~m os c~nd1datosC d ~borto "Quando a mulher decide abortar
artísticas. Nosso problema, o dos subalternos, é o da passagem de ator a autor. militantes de partidos dit?S comumstas so re a ques ao °ande co~quista das mulheres o fato de que
faz uma violência sobre SI mesma, mas me p~rece um~ gr. ti" in Basaglia 2000)
É neste quadro que veio se aprofundando, ao longo de sucessivas décadas, que ossa ser ela a tomar esta decisão:' ("RepresslO ne e m att1a men a_e d f,ecundaç' ão Afirma: "Qual-
P - d' f, nça de genero na percepçao a
A
.
devemos procurar as razões do silêncio dos subalternos, de sua irrupção na luta (os Rossanda chama a atençao 'para a 1 erfh le não ode sabê-lo _ de ter-lhe fecundado um óvulo,
movimentos sociais). Basaglia e Gallio ao falarem das transformações da/na "contra- quer homem que tenha sabIdo pela mu er - e I p revolução O corpo dela é investido, subver-
sabe o que acontecerá nele e nela: nele, n~~a, ne a't~I?a de sua cir~ulação sanguínea e respiratória, é
tualidade social entre os diferentes sujeitos" colocaram em questão a aparente natu-
tido o ciclo, o embrião cresce .nos s~~s ,teCl ~s, P:~:~te:n nenhum caso viver se separa dela antes de
ralidade das instituições, falaram da "economia política das relações institucionais': defendido pelas suas defesas 1mumtanas, nao P , I' d ' [ ] A maternidade é um
, " .d d I os nove e sera expu so com or. ...
Estas, em uma sociedade classista, são construídas fora e contra os interesses reais da seis meses, atmg1ra a matun a e pena a, A ' f, "na decompõe qualquer outro programa de
evento global e longo que investe uma eX1stenc1 a .em1n! 'filho(a) não saia mutilado. Que medida
totalidade social representando, essencialmente, o interesse das classes dominantes. d' - es para que um d os d O1S, mae e b' d
re al1zaçao e eXIge me laÇO
o - '
, 'd d ' ma aquisição mental, afetiva, não perce 1 a
Apesar disso, e como perversão maior, exige-se dos pobres 68 não apenas a perda de comum tem isto com ~ patermda~e? :yat~~n~t: eu: ~ mãe restrinja suas relações para privilegiar
no corpo. E sobre a VIda de relaçoes. E eV1 e qd I a suas relações um pai sendo chamado
67 Sobre isso ver "Le tecniche psichiatriche come strumento di liberazione o di opressione", in Ba- . t ' evidente que o homem esenvo v '
saglia,2000. àqueIa com sua cna ura, e , " ' I A d' simetria é patente, a fisiologia se reprojeta e se
a ser antes de mais nada um md1v1duo SOC1a . 1S
68 Lang (p. 28) descreve o quadro dessa perda. "[ ... ] quanto mais o tratamento é levado adiante com b' " "( 154)
multiplica em papéis aparentemente o ng~to:lOS. p', ,fica voltar a ser pessoas que vivem e lutam
colóquios (psicoterapia), acalmando o paciente (fármacos tranqüilizantes), [... ] violência física (cold- No mesmo sentido: "Reapropriar-se do propno corpo slgm
-packs e camisas de força), [... ] enfim com as formas cada vez mais humanas e eficazes de destruição pela libertação comum:' (Basaglia, 2004, p. 12).
~
'I
I
42 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida
43

F mos um breve parêntese. Para Basaglia a racionalidade que cria a loucu~a, e ao


de carne e osso (até mesmo das que sequer professam aquela crença). O silencia- aça . . t .a é a mesma que tornou possível a totalidade do SIstema
mento (quando não criminalização pura e simples) da fala e das necessidades das mesmo tempo a pSlqula n ,
mulheres é praticado por um discurso que sequer é universal. Discurso que põe representativo burguês. Ele (2000) esclarece:
em contradição a vida real com uma hipotética vida transcendental, eterna, fora da icômios nasceram em um momento em que o mundo mudava e nascia um novo
história. Veja-se o drama das freiras estupradas nas guerras balcânicas e que foram [... ] os man 'A' d h ascem de fato depois da revolução Francesa, quando se
humanismo As ClenClas o ornem n " d dUma
obrigadas a levar o processo da concepção até o parto. Filhos da violência tornados m ta~to a razão uanto a fraternidade. Estas se tornam o emblema e um novo mun o. ,
obrigatórios pela disciplina eclesial.
Criam-se assim barreiras de insuportabilidade estimuladas por uma obrigação de
:~~~~~'le::as:;:~~~~l:~:e;: ~:~:i. !~!~!,~!:;~e::~~~~:t~a~;:::t~a~~~;i;~U:
contem a irracionalidade. (Grifo nosso)
resignação, de passividade. Fatalismo? Não, seguramente não, mas tendência do-
minante: loucura, drogas70 , criminalidade são respostas; mas, também, formas de Torneri (2008, p. 48) chama a atenção para a questão do discurso daí decorrente:
rebeldia.
heterosexual branco tendo sido imposto violentamente como voz neutra, será o
A loucura coloca em questão a norma. A norma é o único modo de classificar o homem: os [... ] o macho , . d'f' '1 '''autodescolonizar-se'' dado que é mais difícil para ele perceber
sUJo eito para quem sera maIS 1 lCl ' l' . fil 'fi ial
comportamentos que cabem nela são considerados bons e aceitos por todos; os outros não, os d d ,. que está sob um certo pensamento po ltlCO, OSO co, soc .
outros são anormais, isto é, loucos?!. fisicamente a ~~mpone~~e e, o~~n~ocentro do pensamento dominante e então será mais fácil para
[... ] Assim razão e desrazão que são fenômenos naturais, são manipulados tornando-se saúde e O seu corpo 01 por ~Ul os secu t Isto não significa que através da experiência de outras
doença mental, segundo a norma [... ] em um determinado contexto. Somos adestrados de tal ele perceber aquele dISCurSO como neu ro. , .o que o leve a separar-se desta máscara neutra
vozes ele não possa elaborar um persurso propn
maneira que o nosso modo de raciocinar [é] sempre acrítico, pelo qual uma coisa é ou não é, e uma
modelada sobre ele.
pessoa é louca ou sadia,feia ou bonita, má ou boa. (Basaglia, 2004, p. 10. Grifo nosso)72
70 "Porque os jovens se drogam? Simplesmente porque não aceitam esta vida, nem querem outra
e nós devemos criar esta nova vida para os jovens e para nós, evidentemente. O problema da droga Basaglia nos adverte que do
faz ver uma coisa curiosa produzida pelo capital: a droga é colocada no mercado e ao mesmo tempo
. . . inista ao ositivismo trata-se cada vez mais de uma racionalidade q~e define,
;~'::~:~~~t:~:que não ~mpreende e não pode "".mpreen~7írriue :~:~~~~a lmguagem
combatida. Mas é uma falsa luta porque, na verdade, a sua presença no mercado é uma forma de
controle:' ("Salute e lavoro': in Basaglia, 2000. Grifo nosso)
Luta falsa: a droga já foi usada em defesa dos valores cristãos e estes do livre comércio. Na Guerra da doença, que é a linguagem de uma racionalidade que constata asag la, ,.
do Ópio a droga "foi apresentada ao público dos Estados Unidos pela Americam Board of Commis-
sioners for Foreign Missons como 'não tanto um negócio de ópio ou de ingleses, mas o resultado de
um grandioso da Providência para fazer com que a maldade dos homens subvertesse seus propósitos
A diferença está em que isto leva ao estranhamento, a desa,gr~ga~~o e a uma a~a ~
de caridade para com a China, rompendo as muralhas de exclusão e trazendo o império para um t beldia sem causa. Lutar é uma tentativa de subtrair-se a dlaletlca da opressao
contato mais imediatas com as nações cristãs"'. O segundo grifo é nosso. E John Quincy Adams, ren l~~: ão ela construção de um discurso (falo aqui não só ~~ termo~ ?e el~bo­
presidente dos Estados Unidos, "explicou que a política de comércio chinesa era contrária à natureza
e aos princípios cristãos: ~ obrigação moral de intercâmbio comercial entre as nações é fundada ;:~ãO d~ u!a teoria/programa, mas, e essencialmente, das ~ra~l~a~ ~OC1a1S ~oa:e~:~
inteira e exclusivamente no preceito cristão de amar ao próximo como a si mesmo [... ] O princípio correntes). "Dare iCnome.,alla opressiQn~'~ como fal~ B.asagl~a,. e 1~1~lar o ~
fundamental do império chinês é anticomercial [... ] Não admite a obrigação de manter intercambio de libertaçao; ou nas palavras de Gramsci a libertaçao ldeolog lca p e em SI mesmo
comercial com outros. É tempo de fazer cessar esse enorme ultraje contra os direitos da natureza
humana e contra os princípios básicos do direito das nações: Americam Board of Commissioners for liberdade. . o
Foreign Missons apud Harry Magdoff A Era do Imperialismo, São Paulo, HUCITEC, 1978" citado A dissociação entre o individual e o coletivo implica conSIderar o outro como pur
por Coggiola, p. 124. Grifo nosso. Sobre a droga como comércio e lavagem de dinheiro ver o artigo objeto e os que atuam como comissários da superestrutura como um eu que nega
de Coggiola.
71 Seja-nos permitido acrescentar "bárbaros': "imigrantes': "criminosos': "diferentes': etc. Enfim àqueles:
toda a gama dos "que não consentem". O crime o é sempre a partir da norma: não existe a criminali-
dade em si mesma; é a norma que o define. E a norma, por mais que seja legitimada, é uma conven-
ção, não um fato da natureza; quanto aos bárbaros, como a própria palavra afirma estes são os "de
Se se considera que a enfermida~e ~ apen~s ~ re:ulta:é~d;o~::e~l~r~~~~t~~~a::í~~~ar~a~~~
se leva em conta que uma alteraçao mtrap~~qUlcda adm mpo como o espectador que participa
forà: os "diferentes de nós': também definidos pela norma. 1 . ' atra pode manter-se i:llasta o o ca ,
72 O poder médico de definir a doença, poder in contrastado, pode ser visto na definição que Ro- interpessoa , o pSlqUl . ., 1 M m uma perspectiva distinta, o próprio
bert. E. Rothemberg (Enciclopedia della Medicina, Garzanti, 1987, p. 311) dá da homossexualidade de uma situação tão desagradável quanto mevltave '. as e t como o outro como pólo de uma
psiquiatra?3 faz parte da realidade do enfermo, preClsamen e '
como "distúrbio psíquico determinado principalmente pelo ambiente [... ] [o doente deve ser en-
, ' - m oder técnico no interior da instituição - já é
caminhado] a um psiquiatra competente ao qual caberá decidir se é ou não o caso de realizar uma
terapià'. (Arcangeli, 2004a Grifo nosso) Distúrbio marcado pelo farisaísmo com expressões que vão 73 "Nesta situação o medlCo - possu~ ou nao U !
originalmente objeto de culto e adoraçao por part e os e
nfermos' goza, pois, de um poder puro que
,
de sodomita (pretensamente bíblico) a pederasta.
r
,I 44
\ .
"
Edmundo Fernandes Dias
Revolução passiva e modo de vida

ao "endemoniado", ao "louco', como expressão do mal involuntário e irresponsável do espírito,


45

de seu corpo, (Basaglia, 1969, in Garcia,~, 22)


relação interpessoal alterada e destruída portanto junto ao criminoso, expressão do mal intencionado e responsável. Loucura e criminalidade
como parte do mundo do enfermo, assim como
representavam esta parte do homem que devia ser eliminada, erradicada e ocultada [... ]
Segundo o racionalismo iluminista, o cárcere tinha que ser a instituição punitiva para quem violasse
o problema que se coloca é o da produ
intervenção das classes dos indI'vI'd d ç
ão d
a norma, Esta define as formas de
a norma representada pela lei - a lei que protege a propriedade, que define os comportamentos
públicos corretos, as hierarquias da autoridade, a estratificação do poder, a amplitude e a
, uos e as organizações I EI
sob a forma da ética d fil fi ' no rea . a aparece tanto profundidade da exploração. (Basaglia, 2010)
, a oso a, quanto, de forma mais geral, da razão.
Na produção de seus "diagnósticos': o médico - "detentor de uma norma da qual
vo ~çao burguesa e com a razão moderna
Com o iluminismo e a crise do iluminism0 74 com a re I -
e crítica, nascem a filosofia e a ciênci d i ' 75 o enfermo, a priori, resulta o infrator76': atua (consciente ou inconscientemente) na
~rel ~s
a a oucura 'a defimção dos "d' 't "d h
como citoY,ens da cidade racional, a atribui ão de ' " " os omens-Ioucos construção do ocultamento das contradições sociais. Essa razão legisferante define
exemplar, E a afirmação de uma razão il ~ d um estatuto, a fabncaçao de um "documento"
infestada, exorcizada e condenada má i~mma ~ qu~ acolhe ~ s~a, parte irracional, a sua "metade"
as "verdades sociais", como viver, como pensar, o que é certo e o que é errado. Unge
"épocas" da razão [que] também ;ão g ,a ou mdlstelnosa, A hlstona das sociedades é a história das com os poderes míticos de uma verdade intocável porque científica, castrando na
, as epocas a oucura [ ] A filos fi - , , ,
racIOnal. Dissociam-se loucura e magia,'doença e pecad imensa maioria dos "pacientes/oprimidos" a possibilidade de sua recusa. A razão,
o' 'cura
" ,e "salv o-"a nao
A I e maIS mItica, mas
e se naturaliza' não pertence mais
'
b I'
ao so renatura' é a parte n -
açao, oucura se humaniza
, Id ' normalmente um conjunto articulado de abstrações formais, nega o efeito da cons-
esumana do humano a função irr' Id " aO-SOCIa a sOCiedade, a parte trução de um novo discurso montado sobre abstrações reais. A vida e a prática das
t ' ,
,; ra~ao se az clentlfica e piedosa,
d , aCIOna a racIOnalidade A -
tolerante e definitória, "ao mesmo tem b ' I '
po enevo a e racIOnal, (ScalIa, 1971, p, 147) pessoas _ sadias ou não -.é_gesconsiderada. Nos mais recentes livros de psiquiatria
encontramos ainda ecos da literatura medieval contra as "bruxas"77.
d,As_institduições, loeus privilegiado das lutas de classe, criam toda uma série de
Iaçoes e e gestores para dar sentido e dire ão ' ' , me-
)ç d a r~~lOnahdade dos dominantes,
Nas suas variáveis racionais e irracionais, cientistas e políticos, reformadores e utopistas, a razão "críticâ'
visto ser impossível (mesmo sob as ditad continua a ser o sujeito do discurso. Constrói as definições cognoscitivas, técnicas, institucionais, as
uras o omlnlO como pura coerção.
regras do conhecimento e as normas de conduta; estabelecem as decisões na classificação e na avaliação,
os novos critérios de "sentido' (são e doente, normal e patológico). Distribui as partes, atribui os
Entre ~ós, o desviante, aquele que se encontra fora ou no limi d "
ou da Ideologia médica ou da )'ud' " . te a norma, e mantldo no interior papéis, constitui as relações e as "classes". É, alternativa e totalmente, condenação e elogio, intolerância
lClana que conseguem tA I I' ,
pressuposto aqui implícito é de que se t t d . con e- o, exp lCa-Io e controlá-lo. O e tolerância, exclusão e "planificação' da loucura.
ra a e personalIdade anormal . . , . Ih
a a sorção no terreno médico ou p al . ongmana, e consente Nascem a ciência da loucura como "método' do poder-razão e a institucionalização da loucura como
b. en , sem que o desVIo - aqu I "lugar" definido do poder-razão. A razão moderna se constitui e exibe no seu espetáculo; encontra o
re atlvos, propostos e definidos como b i t .. e a concreta recusa de valores
I . a so u os e lmodlficáveis debTt I'd d limite e a confirmação da própria racionalidade; produz a nova irracionalidade e inicia o reino da razão,
seus IImites. Neste sentido a ideolog'Ia me'dOlCa ou a penal servem - a I .I e a va I ez a norma e dos
e personalidade anormal originária fi A qUI para conter, pela definição isto é da ciência e das instituições da loucura. No limite, a razão [... ], se pensa como limite da razão, exprime
d ,o enomeno, transpondo o para t
manutenção dos valores da norma. Não se trata de -, . um erreno que garanta a o furor e o horror da razão derrotada da natureza ou da sociedade "ma: feroz, atroz. (Scalia, p. 149)18
especialístico, mas de uma estratégia defi' ulmda resposta tecmca a um problema de caráter
, . enSlva, vo ta a a manter o stat d
mvelS. A ciência, neste caso cumpre a ' . t t us quo em to os os seus
consentem a clara separação do anormal :~op~la _ar~ a, fornecendo codificações e etiquetas que
o doente mental é uma questão biológica, produto genético ou, na realidade, ele é
Ao longo dos séculos, loucos, criminosos, r:S~i:~:o a norm.a. (Basaglia_e Ongaro, 1971, pp. 19-20.)
uma produção histórica da sociedade? Goffman em Asylums nos fala das instituições
os tipos conviveram no mesmo lugar o ~ d' a~, a1coolIzados, ladroes e extravagantes de todos totais, lugares produtores desse tipo de doentes. No sentido que
niveladas por um elemento em com n e ~sd lstmtas facetas de sua anormalidade resultavam
d . um - o saIr a norma e de seus A d .d ' 76 Basaglia, 1971 in Garcia, p. 50.
e Isolar o anormal do contexto social A d d h ,. . .canones - eVI o a necessidade 77 Um exemplo é o livro DSM-IV-TR Diagnóstico and Statistical Manual of Mental Disorders, pu-
, . . s pare es o OSplCIO lImItavam, continham e ocultavam blicado pela American psychiatric Association, Washington, 2000 que se refere ao medieval Malleus
Malificarum (Martelo das Feiticeiras). Sobre isso ver a tese de Santoro, 2008. Cf Miller, 1953.
O psiquiatra participa pois com a for I ~ ç~ r~~ e P,sl~OIOglCO concedido ao internado. [... ]
sera tanto maIOr quanto mais restrito for o es a I . ,.
O Malleus Maleficarum foi escrito em 1486 por H. Kramer e Jacob Sprenger, membros da Ordem
de poder da classe do:nina~te que )'á e~taUbalçao o lagnostlCo e com o uso de sua técnica, no )'ogo Dominicana e Inquisidores da Igreja Católica. O Papa Inocêncio VIII, pela bula Summis desideran-
propno e qUI I rio~L(ftasagiia, 1969, in Garcia, p. 26)
" 'Iíb e eceu quem e como deve" d
pagar para po er manter seu tes affectibus pulgada a 5 Dezembro 1486, é tornada oficialmente instrumento da inquisição contra
74 U~a obs.ervação se faz necessária. A passa gem de uma ... • bruxarias e heresias. A igreja reconhece a existência das bruxas e da bruxaria, assim como concedeu
na pratica seja efetivamente o contrário _ d perspectIva umversalIsta - mesmo que autorização para que os praticantes de bruxaria fossem perseguidos e eliminados.
a~sumlr _ no I?omento atual (do século XVIII até ho'e) _
. quan o na sua formatação d . ,
o u.mverso a sua vontade, para 78 Sobre a "neutralidade científicâ': "Em um seminário [realizado] por uma Foundation americana que reúne
amda que aqUI e ali assuma _ quando .) essa perspectlva claramente reacionária
sual que na bandeira brasileira venha e~~~~~g~e Inc~?tar os subalternos à sua ordem. Não foi ca:
doutores de todas as universidades da costa ocidental foram fornecidos, de forma confidencial, perfis psiquiá-
tricos dos atuais líderes políticos chineses descritos como paranóides. Demonstrava-se, desse modo, sobre bases
trata-se da passagem para a Razão Instrum t r~ r em ~ Progresso. Para Adorno e Horkheimer 'Científicas': que de um paranóide não se pode esperar senão medo e ameaças:' (Cf. S. D. Alinsky, The Poor and
75 Para um detalhamento dessa questão ~n ai' emos la~UI uma trajetória de revolução passiva Powerful, International Journal ofPsichiatry, voI. 4, n. 4, outubro de 1967, p. 308, citado por Pirella, p. 205).
c 't I 2 e re evante a eItura de Am t (201 ) .
apl u o : o paradigma psiquiátrico. Ver també m BasagI'la, 1971 m . GarCia,
ar.an p.e 50. O , em especial o

l
47
46 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

[... ] o doente é o resultado da "objetivação" da sociedade dos sadios, que o define como doente, apresentada como neutra - aparecem como mediadores entre os que consentem e os
o coloca em um lugar "encarregado: o recue e segrega em um espaço separado, em um "papel': que não o fazem.
em uma "instituição total': em que começa e freqüentemente morre - a sua "carreira moral': A
, . , - d . f ficar - através do tecnicismo - a
instituição, em que os doentes vivem-morrem, é construída para "eliminar" e, ao mesmo tempo, A tarefa destas figuras inte~medianas sera, ent.ao, o e mls 1 ue o ob· eto da violência se adapte
para continuar a fazer viver aqueles que não se adaptaram que não aceitaram - e não foram aceitos. . IA ·a sem com isso modIficar-lhe a natureza, fazendo com q ~
VlO enCl , iência e poder tornar-se, por sua vez,
à violência de qu~ é objeto, sem nunca c?~:~: ~~;:f~o;~~ novos empreiteiros será o de ampliar
Neste espaço total, culpa e doença, desvio da. norma, "destino" são a mesma coisa. O doente é o
resultado último de um mecanismo de excl~são, de violência, de controle; não é apenas "objeto" de
sujeito d~ vi0dlênCla re:l cdoenstcraobor~;oot:nic~ente, novas formas de desvio, até hoje consideradas
conhecimento, é um "sujeito" que foi objetivado. (Scalia, 1971, pp. 165-166)79 as frontelfas a exclusao, ,
'~ntes de sair foram controlados as fechaduras e os doentes': Estas são frases que se lêem nas notas na norma. (Basaglia, 1968, p. 116)
consignadas de um turno por enfermeiros aos que os substituem, para garantir a perfeita ordem da
seção. Chaves, fechaduras, barras, doentes, tudo isto faz parte do mobiliário do qual os enfermeiros Em Follia/Delirio ele afirma com toda clareza:
e médicos são responsáveis, sem que a mínima diferença qualitativa os distinga. (Basaglia, 1970a)80

Na sua penetrante análise da "carreira moral" do doente mental, Erving Goffman ~:~~: ~~~::!~~ d~ed:;~~::as~~~~t~, ;::~:~~i:~ ~~~~~::~;!~;!i!~1~~~
precisa que o tipo particular de estruturas e de ordenamentos institucionais, mais I do;~ça se con_stroie:t~r e:~;l:;~:~~ ;r~:~~~::~IOgia sobr~ as quais depois o manicômio se
e
que sustentar o se do paciente, o constitui. Isto significa que, se originalmente, o Ii EleifidlCO torna St gta So' asSim ele pode dominar e reprimir as contradições que a doença expressa.
ed ca e se sus en .
doente sofre da perda da própria identidade, a instituição e os parâmetros psiquiá- r-Ú982, pp. 357-358, citado por Rivera, 2006)
tricos construíram-lhe uma nova através do tipo de relação objetivante que estabele-
ceram e através de estereótipos culturais com os quais o circundarão. [... ] O doente Há, contudo, um conjunto de questões que o psiquiatra deve responder:
se torna um corpo perigoso vivido na instituição, para a instituição, a ponto de ser
considerado como parte integrante das suas próprias estruturas físicas. (Basaglia, . ' . d mo dado? Onde reconhecê-la, onde individualizá-la senão
Como dedlCar-se [... ]_ a enfe~mld~ :1 ~~nda tocar; Podemos ignorar a natureza da distância que nos
1970a) A defesa da saúde não se obtém com as reformas em nome da eficiência e da em outro lugar que nao nos e pOSSlV ,. c ml·dade? Não será necessário tirar primeiro,
d ~ . tando a causa apenas a enler .
racionalidade, então trata-se de organizar a luta pela saúde em cada nível, operando separa o en ermo, l;P~a obJ. etivação à qual os enfermos estão forçados na instituição, para ver o
r 1969· Garcia p 37)81
diretamente sobre as causas, afrontando os problemas da organização do trabalho e
da sociedade, de ordem regional, e da ecologia, da medicina preventiva e da ruptura
uma a uma, as cama as
I:
que fica da enfermidade e poder começar atuar sobre ela? (Basag l~~U co; não lê 'u~a biografia,

da atual ordem sanitário-assistencial, das mutualidades nos hospitais e nas estrutu- "O olhar médi~o ~ãO eqn~~n:r:u~j~~:~~:d:~~ ~:~~~~e~~:~;;:e la objetivi~a~e
atrás dos ~i~ais
mas uma pato ogIa na bO t a um modo de viver ou a uma sene de habitos
ras dispersas. (Biagiohi, p. 67, in Basaglia et allii 1978) . 'f e não remetem a um am len e ou 1 -
smtoma lCOS qu dro clínico onde as diferenças individuais que afetam a evo uçao
Rivera (2006) utiliza a noção basagliana de crimini di pace, usada "para designar adquiridos, mas remetem a um lqua 'f de sintomas com a qual o médico classifica a entidade
da doença desaparecem, naque a grama lCa ,
as práticas, que se consumam, sobretudo nas instituições totais, de disciplinamento 82
como o biólogo classifica as plantas ._ d dificuldade e de um desequilíbrio nas condições
do corpo e da mente, de reificação, de desumanização em dano de categorias parti- Mas quando os sintomas, de expressoes e uma o, e inscrever no mundo social, se
culares de pessoas': ~e vida, se tornam simple,s~inais de um: !:~~~~~~d:~~n;:~t~~l: do grupo com o qual não pode
Como diria o poeta (ou o psiquiatra?): de perto ninguém é normal. Resta saber mscreve no mundo patologlCo, a doe~ç b _ d olhar o olhar médico que autônomo, se
. . b· ra ser confiada a o servaçao e um , o o o

qual o grau de periculosidade do que não consente, do rebelde, do diferente. Normas maIS mtercam lar, pa 1d 1 pro' prio e onde soberanamente dlstnbUl
, 1 d só pode ser contro a o por e e
e instituições se coisificam em técnicas - em especial as que se referem às práticas move em um Clrcu o on e dO. (U Galimberti Il corpo, Milano, Feltrinelli, citado por
sobre o corpo doente o saber que a qUlflU. . ,
sociais - que têm um papel decisivo: dar a forma de consenso institucional àquilo Rotelli, 1988) d ' . ntada necessidade ou vontade de controle
que é expressão de uma correlação de forças brutal. Os técnicos - função política A "medicalização' da política corr~spo~ e a mcreme u essa diferen a é de escasso peso,
social por parte do empresariado, seja pr~vado ~u es~~a~~~~~~eenão apenas a ;eografia das nações,
79 "Neste sentido o psiquiatra deve, em primeiro lugar, compreender que não pode limitar-se a enquanto as multinaconais da empresa vem co ocan
estabelecer os cânones do grupo social ao que representa determinando qual é o doente que deve mas também o internacionalismo dos povos.
aceitar e restabelecer, e qual o que há que eliminar, mas só que, pelo contrário, o que determina na b I dO 'logo com a loucura senão para constatar a sua
realidade é sua própria adesão aos valores dominantes e sua capacidade de adaptação aos mesmos" 81 "Enfim, a psiquiatria nã? con~egue.esta .e e~:~d;auma vez ue a lou:ura significa não-natureza,
(Basaglia, 1991) absoluta estupidez. A estupIdez e, aqUl, rad~cah h 'd a-o ~ sUJo eito não é capaz de exercer sua
o

d S o alienado não e sen or e SI, n , )


80 É importante ver o "Bicho de sete cabeças': baseado na experiência real de Austregésilo Carrano ou natureza d eturpa a. e . d [ ]" (Amarante idem, p. 111. Grifo nosso
liberdade, deve ser tutelado, do~rado e ad~ll?l~tra o i···
para o ci~ntista social a mesma atitude
o

Bueno, internado pelo pai em uma instituição. Dessa passagem institucional pelo cárcere psiquiátri-
co Bueno publicou um livro Canto dos Malditos - que deu o roteiro do filme - e fez dele um ativista 82 Durkheim, As regras do meto do SOClO oglCo, r~Ac a~a
do movimento antimanicomial. metodológica do cientista das áreas das chamadas ClenClas exatas.

l
p
49
48 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

[esta medicalização] se exerce também com a exasperada tecnificação do ato médico e do sistema
Na fase de transição entre a antiga ética que reconhecia um valor às empresas F~ivadas, às pres~ações
sanitário, o que significa - inevitavelmente hoje, quando sob o mando capitalista todo poder da
de habilidade aos conhecimentos e à superioridade individual e as novas etlcas que recon ec.em
medicina se converte em técnica do seu poder - consignar a medicina ao controle industrial. E
como valores' o coletivismo, a máquina, às sensações e imagens, nos encontraremos c?~ mUltos
já que, como dissemos, esta medicina é cada vez menos um sistema assistencial e cada vez mais um
_ daptam nem ao velho nem ao novo mundo. Trata-se desse grupo margm que se
sistema administrativo, tudo se resolve (em última análise) em um aumento da capacidade do capital que nao se a h ··d 87 G ·fos
safio às disciplinas da saúde mental. (Ruesc , mIem, p. . n
para administrar sanitariamente a sociedade, aparentando administrar socialmente a medicina. convert eu em u m novo de
(Maccacaro, p. 85, in Basaglia et allii 1978. Grifo nosso) nossos)

Toda essa visão ideológico-profissional está marcada por um mar de pretensas O projeto é tão reacionário que não pode sequer r,ec~nhe~er 9.~e ~_.situação por ~le
verdades, preconceitos e puras expressões do poder do capital. ]. Ruech fez uma co- descrita não é, para o capital, patológica, mas sua pr~~n~ normah~ade.Mo~al da hIS-
municação Social Disability - The Problem of Misfits in a Society a um congresso tória: para ele - que se crê revestido pelo manto da CIenCIa - havera sempre m~dapta­
cujo tema era Towards a Healthly Community, patrocinado pela World Federation dos. Melhor será conte-los ou fazer prevalecer os qu~ s~ ada~tam: os chateaçao zero.
for Mental Health and Psichiatry. Desta comunicação retiramos algumas afirmações: M .s aí se confirma a normalidade que ele crê doentIa, IrraclOnal. .
~ que já foi examinado anteriormente. Para muitos ainda é surpreendente hOJe a
Mas na sociedade pós-industrial, sem classes, a mobilidade social consiste em movimentos horizontais fala de Laing (1970):
para e desde a estrutura de poder. A população moderna está, pois, formada por um grupo central
que compreende governo, indústria, finanças, ciência, engenharia, militares e instrução. Em torno Falei com um coronel do exército americano que se ocupa do problema dos "loucos': co~o ele
deste círculo gira um círculo de consumidores de bens e de serviços organizados pelos que estão h . do problema do desviante em geral, das pessoas com cabelos longos que busca eVItar_o
no centro. Na periferia encontram-se os marginalizados que não tem nenhuma função significativa ~;~ a:~ilitar e dos que protestam em geral. O coronel me dizia que ao exército, an:ericano nao
em nossa sociedade. [... ] inter~ssa recuperar esta gente [... ]. Não tem nelcessidadelde~es ~ ~~~~sp~pe;i~;í:x~~~~é:~~:r;:~
[... ] Em muitos casos os hippies vivem do "Welfare" e representam, por sua conduta anti-higiênica, me arece é cada vez mais usado para contro ar a popu açao CIV! . . - d
as enfermidades venéreas e o comércio de drogas, um perigo para a saúde pública. [... ] Atualmente, exi!em e~ ualquer parte do mundo, estão aí para manter a escravidão da própna po~ula~ao e
[as] figuras centrais, caracterizadas por um QI superior a 111, gerem e organizam a civilização cada na ão: ;êm de fato experimentando gazes que agem sobre centros ner:,osos no Vle~na, pa!:
tecnológica. Ao redor deles gira 49% da população adulta que teve, pelo menos, um ano de ensino ç dem ser usados do melhor modo o ano seguinte em Berkeley, ChICago e Washmgton .
secundário. Estas pessoas se dedicam a numerosos serviços e consomem os principais bens e ver como po F a Alemanha os Estados da Europa ocidental e os Estados Unidos estão se
Penso que a r a n ç a , ' . I T .f '
serviços. tornando campos militares em cujas fortificações a elite do poder industna e. ml ltar re~~ l~a,
Passemos agora aos marginalizados, à periferia. Aproximadamente 33% da população adulta teve ermitindo a ente, fora, de entreter-se como queira, com grande liberdade. S.e tl~er ne.cessl a e,
apenas educação elementar e na economia moderna há poucos trabalhos ao seu alcance. Junto com ~ d g ando de mão de obra extraordinária para qualquer emergencla a elIte sempre
os inválidos, os enfermos, os ineptos, os desocupados vivem da generosidade pública e privada; ~:;:nsa~r :~o;::á-Ia c~m razias no exterior e será permitido todo ~ste andar li~re pelos campo~~
sua função está limitada ao consumo dos serviços do Welfare e da assistência sanitária. {... ] o centro p fi b ·lar e a cazer amor porque isto não faz a menor dIferença. (Lamg, 1971, p. 12)
entre as ores, a aI 1; •••
representa apenas 10%, enquanto o grupo central compreende 25%.

Os enfermos (e entre eles se exclui aos anciãos), os ineptos e os jovens formam 65%
e os 2/3 da população total. Este grupo pode definir-se como "o mundo do ócio"83?
(citado por Basaglia e Ongaro, 1970, in Garcia, pp. 82, 83, 85 e 86. Grifos nossos).
Os preconceitos são claros. E o projeto político também como pode ser verificado
na afirmação da constituição de uma sociedade sem classes sob a ordem do capital.
Falar que os marginalizados vivem do ócio (acusação implícita de oportunismo) e
o fazem sendo produtos de uma sociedade que os exclui, permite-nos colocar uma
questão central: que tipo de ciência é essa? O próprio Ruesch nos esclarece:
83 Segundo as informações do censo dos Estados Unidos, em 1965, fornecidas pelo próprio Ruesch, 84.L~mbremo.s o envio de trtopas ~~as::~~~oi~:~~;~~~ ~~~:X~~:~;::~~~~t~:~:seag~:~::):.
sobre um total de 193.818.000 habitantes, 6,583% - 12.759.884 - eram considerados inválidos so- mlssoes de tremamento con ra os IS ' eriam assassinado crianças, idosos
ciais (enfermos mentais, inválidos orgânicos, problemas penais, drogas, alcoolismo, suicídio); outras acusação de militantes resistentes segundo a qual essasI tropas tt_ h ce da Minustah "esclareceu"
. Ih d 2001) general Augusto He eno, en ao c ell ,
25.622.743 pessoas eram consideradas como desadaptados potenciais (velhos, desocupados, imi- e mulheres (6 d e JU o e o bl' . do Haiti" Na realidade essas tropas
(sic): pelo menos 23 rebeldes "causavam pro emas a economIa ...
grados, pessoas com retardamento mental leve ou em vias de reabilitação (13,220%). Totalizando
treinavam para futuras ações nas favelas e contra os subalternos brasIleIros.
estas duas categorias teríamos 38.382.627 indivíduos (19,803%). Uma sociedade com esses números
(lembro que são informações oficiais) pode ser considerada uma sane society? 85 Entrevistado por Basaglia e Ongaro, 1970.

d
SOBRE OS MODOS DE VIDA

Em New York, entre as publicidades nos vagões do metrô, podíamos ler


anúncios do tipo: Que tipo de tragédias humanas preferis? Vietnam, Biafra, a
controvérsia árabe-israelense, os guetos negros, a fome na Índia... ? Escolha a
vossa e a ajudai, ajudando a Cruz Vermelha.

Basaglia e Ongaro

o modo de vida materializa a passagem das macro estruturas (relações capital-traba-


lho na sua forma mais abstrata) às microrelações (o cotidiano das classes). As rela-
ções sociais de produção se traduzem em relações de consumo e as determinam: o
consumo é um elemento mediador importante nesse processo, pelo qual as classes
têm (ou não) acesso a bens econômicos e sociais. Essas relações determinam, ao
mesmo tempo, campos de possibilidades das classes e formas de dominação e de
subalternização. O mito da liberdade de consumo, por exemplo, associado à carência
real de recursos provoca elementos objetivos de insuportabilidade da vida.
Todo modo de vida se realiza em um conjunto de instituições que, ao mesmo tem-
po' expressam a relação estrutural-contraditória de dominação. Define-se, assim, a
chamada normalidade; vale dizer, o que é certo e o que é errado. Ao naturalizar as
relações de poder ela se torna aquilo que Basaglia (1968a) definiu como "As Institui-
ções da Violêncià' que dão forma ao todo social.

Família, escola, fábrica, universidade 86 , hospital: instituições que repousam sobre uma clara divisão
de papéis: a divisão do trabalho (servo e senhor, professor e aluno, empregador e trabalhador,
médico e doente, organizador e organizado). Isto significa que o que caracteriza as instituições
é a clara divisão entre quem têm o poder e quem não têm. De onde se pode ainda deduzir que a
subdivisão dos papéis é a relação de aniquilamento e de violência entre poder e não poder, que se
86 "A batalha pela renovação da escola, pela reforma da Universidade, em geral pela profunda re-
visão das estruturas materiais, das condições do desenvolvimento cultural do País, a batalha para
libertar estas estruturas da pressão deformante das potências econômicas, estatais e políticas que
oprimem o desenvolvimento da cultura, não é uma batalha que vem depois da luta pela solução dos
problemas econômicos, é uma batalha que as forças socialistas devem travar no País com a mesma
consciência e com a mesma firmeza:' (Panzieri, 1973, p. 54. Grifo nosso.)

E
53
52 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

transforma na exclusão do não poder por parte do poder: a violência e a exclusão são a base de toda Barcelona (1994) chamou a atenção para esse processo de indi~erenciação en~re as
relação que se instaure em nossa sociedade. (idem, p. 115. Grifo nosso) . - s de mundo Quando o marxismo foi, e contmuou sendo, mde-
duas grand es V I s o e · .. .
vida e criminosamente, transformado em uma teoria teológico-POSItIvIsta, em uma
Essas instituições, não obstante seu peso estruturante, possuem e produzem con- versão à esquerda das práticas capitalistas, ocorre( u) necessaria~ente o processo de
tradições. Sua tarefa é reduzir estas contradições ao máximo, traduzindo o diferente despolitização e de crescente passivização dos subalternos, redUZindo o
em perigo, desvio, subversão.
[ ] o sujeito humano [...] a puro sujeito econômico e [...] toda a socieda~e humana a?ura organizaç~o
Esta é a história recente (em parte atual) de uma sociedade organizada sobre a clara divisão entre p~ra a satisfação das necessidades econômicas, [.. .] tudo o que não é VIsível econon:lcan:e~te, que n~o
quem tem (quem possui em sentido real, concreto) e quem não tem; da qual deriva a mistificada se traduz em valor monetário e mercantil, não existe mais. No mundo moderno nao eXistImos s: n~o
temos dinheiro no bolso e não podemos, de algum modo, trocar com outros ou uma prestaçao e
subdivisão entre o bom e o mau, o são e o doente, o respeitável e o não respeitável. [... ]
Entretanto, a chamada sociedade do bem estar, da abundância, descobriu agora não poder expor trabalho ou de dinheiro. (Barcelona, 157. Grifos nossos)
abertamente sua face de violência, para não criar em seu seio contradições demasiado evidentes,
que se voltariam contra ela, e encontrou um novo sistema: o de ampliar a empreitada do poder aos Há uma perda de projetos. As críticas que os trabalhad~res faz~am. nos anos 60 Sã~
técnicos, que, o exercerão em seu nome e continuarão a criar - através de formas diversas de violência: bstituídas pela visão de um laissez faire como se nada tlvesse sIgnIficado. O traba
a violência técnica -, novos excluídos. (idem, pp. 115-116. Grifo nosso)
~~o não deixa de ser o elemento central de socialização (apesar dos ?orz e dos Offe
88

d .da) mas não capta o entusiasmo dos trabalhadores. Estes, maIS do que nunca,
Essas ciências e técnicas, ao assim procederem, são fundamentais na tentativa de ~ VI:
89
obra sua Não há porque nos espantar. O trabalh0 capitalista
realização da hegemonia burguesa. O peso institucional das práticas científicas atua nao o veem como .
sempre produz(iu) estranhamento, reificação.
como fortalezas e casamatas buscando impedir (tentando-o, pelo menos) o avanço
da voz, dos projetos e das práticas dos subalternos, construindo o silêncio destes. Porque se surpreender se massas de jovens tendem a se afastar de um tra~alho que ~olta a se
Consegue-se, por meios técnicos, resentar a eles como redução a uma engrenagem, e se, ao contrário, passa a uscar .sua ace, uma
:~a qualidade humana fora do trabalho, que vêem apenas como uma zona opaca da Jornada deles,
[... ] fazer aceitar a inferioridade social do excluído, assim como conseguia fazer, de modo sorrateiro I o a esquecer, a reduzir, até mesmo a cancelar. .
e refinado, a definição da diversidade biológica que, por outra via, sancionava a inferioridade moral ~~~r:c~ creio que no momento em que aquele operário, recusando-se a ser redUZIdo a uma
e social do diverso: ambos os sistemas tendem a reduzir o conflito entre o excluído e o excludente engrenag;m busca ;ornar-se protagonista, juntamente com seus companheiros de trabalho, de um
confirmando cientificamente a inferioridade originária do excluído, nos confrontos com quem o .eto cole;ivo ue fale a outras camadas, nesse momento ele é obrigado a ac~r.tar contas com a
exclui. (Basaglia, 1968, pp. 116-117. Basaglia grifou apenas o "diverso': Os outros grifos são nossos.) pro] t _ d Estado Deve mais cedo ou mais tarde, enfrentar as mediações necessanas, as formas e ~s
i:;~:~ d: política· numd sociedade de massas e, portanto, a difícil questão da definição e da formaçao
O imenso exército de "comissários da superestrutura" existentes na sociedade de uma "vontade gerar' [... ]. (lngrao, 52. Grifos nossos)90
capitalista obriga as classes trabalhadoras a enfrentar a questão crucial: entender o atriótico e o exercício dos direitos políticos:' (Wahnich, 2010) ' I d
P , d - t · aos anos 70 do secu o passa o.
sentido das práticas capitalistas para, assim, poder eliminar a propalada "inferiorida- 88 ~stamos nos referindo a pro uÇ~ob~~: se~~~: o fim do trabalho passou para o segundo plano. A
de social original dos dominados': As palavras são elementos de encantamento via a
naturalização das práticas (veja-se o discurso dos chamados governos democrático-
~;se~: ~:tâo~~:bo~l~~ ~~~~~:iaoe~ dizer que não h~~::i~::~~i~ab~l;~o~:;af~~~~:au:a~~eeoq~:~
conseq~entemente, sena p:e~~s~ defea~~e:l::~oo~;:balh~ assalarial. Dever-se-ia, então, falar ~e
-populares: governo para todos). São importantes fetiches a serem decifrados e eli- conheClmento de outras ~tlVl a es p . t ao pleno emprego. Esta discussão evolulU
minados. O exemplo contemporâneo é o destes países, mas convêm não esquecer plena atividade muito maiS do que precom~areu; ;:t~;::da do emprego, e, na França, a experiência
porque houve no final dos anos 1990. uma as d debate Colocávamos de novo a questão de
que a Constituição russa, sob Stalin, caracterizava a União Soviética como "Estado da passagem às 35 horas, o que modIficou os tter~?~ aOda natu~eza dos empregos que poderiam ser
de todo o povo': Com essa manobra a burocracia "anunciava" (sic) o fim das classes saber como regressar ao pleno emprego, mas am e
sob o socialismo realmente inexistente. Este "todos" permite não apenas a elimina- criados:' (Husso n , 2007) . . d · ores res onsabilidades do 'pessoal
90 "A perda desta possibilidade constltUl, talvez, uma as mal I p. I de luta e de conflito.
ção imaginária das diferenças; mas muito mais que isso busca construir a passagem 'd -
político coletivo e as geraçoes que s .
e formaram e afirmaram naque es CIC os
_ do seu interior funcionalizar adequa-
de práticas antagônicas ao status de práticas igualitárias. Nos países ditos liberais a Para além das fortes resi~tê~ci~s, a~ueles cI~los nao, :?u~e~m~e facilitou a fr;gmentação dos vetores
noção de cidadania87 realiza essa manobra de ocultamento das desigualdades. damente o 'protesto sOClal a reVlraV?lt~ emoc:a l~a .. q rs ectivas e de reivindicações in-
da conflitualidade social em um arqUlpelago de mstanCl~~, _de X:é!hegar à ossificação extrema das
87 "É necessário dizer que em 1789, a noção de nacionalidade não existe. Nem a palavra nacionali- comunicantes e, frequ~nteme~te, e~tenlmente em compe~~~~~temática do poder alternativo às lógi-
dade, nem a palavra cidadania eram empregadas, preferia-se expressões como 'o direito do cidadão: 'organizações do mOVImento arcalzantes, enredada ~ .. J I·'·
cas do poder democrático-burguês, herdada das tradlçoes revo UClOnanas Ol
·tocentistas" (Chiocchi,
.
'os direitos do cidadão francês: a 'qualidade' ou ainda o 'título' de Francês/à, o título de cidadão, etc.
Ora, esta palavra 'cidadão' apaga de fato as distinções entre pertencimento legal à nação, engajamento 2008. Grifo nosso)
54 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 55

As lutas da descolonização91 (de libertação nacional, de construção de novos pa- No plano europeu os Estados Unidos buscaram reconstruir as economias destru-
íses, de reconstrução de culturas secularmente reprimidas, etc.) e os movimentos ídas pela guerra para fazer frente ao "perigo vermelho': Primeiramente pelo Plano
operários e sociais (estudantil, de gênero - incluindo aí formas de diversidade sexual Marshall e depois pela "Doutrina Eisenhower': O plano Marshall
- étnico, ecológico, etc.), que traziam potencialidades de construção de uma vontade
geral em diferentes níveis, foram derrotados. [... ] enunciado, em 1947, corno plano de "ajudà' para a reconstrução e a cooperação econômica
européia, aceito pelos Países da Europa ocidental, recusado pelos da Europa oriental. Representou,
Após a Segunda Guerra Mundial, as décadas de cinqüenta e sessenta foram marcadas no Norte através do European Recovery Program e a Organization for Economic Cooperation for Europe o
por um forte crescimento econômico (os anos chamados de "Trinta Gloriosos"), que permitiu aos primeiro instrumento para urna intervenção orgânica e massiça dos USA no ordenamento
trabalhadores ganhar, pela luta, importantes avanços sociais, corno um aumento claro nos padrões econômico-político da Europa pós-bélica.
de vida, o reforço do sistema de Previdência Social, a melhoria dos serviços públicos, especialmente [... ] [A doutrina Eisenhower foi urna fórmula] para indicar a linha política inaugurada pelo general
educação e saúde, etc. O Estado também passou a fazer nacionalizações numerosas, reforçando Eisenhower [... ] de intervenção em todos os setores onde, segundo a visão estratégica da "guerra
assim o seu poder de intervenção econômica. A população se beneficiara grandemente da riqueza frià: tornava-se necessário o "containment" da ameaça comunista. Efetivamente a presidência
criada em escala nacional e aumenta a parte relativa aos salários na renda nacional. Eisenhower representa a fase da mais rápida expansão do imperialismo USA e de Assunção, por
Ao mesmo tempo, ao Sul, enquanto os países latino-americanos estavam em fase de rápida parte dos Estados Unidos, da função de gendarme internacional. (Panzieri, 1973, p. 77)
industrialização, é proclamada - pelo menos formalmente - a independência da maior parte
dos países africanos e asiáticos. Alguns deles esboçaram urna verdadeira autonomia política e Lentamente se faz clara a constatação de que a restauração do capitalismo nos
econômica: alguns, corno a Índia, Indonésia e Egito, respeitando o sistema capitalista, outros, corno países de socialismo realmente inexistente e a reestruturação nos países capitalistas
China, Cuba e Vietnã, optam pela ruptura com ele. Mas a maioria dos novos países independentes
ainda estão, de fato, submetidos amplamente à autoridade de alguma grande potência, freqüentemente,
(novas tecnologias, informática, etc.), permitiram a retomada da capacidade de acu-
a antiga metrópole92. (Toussaint, 2009. Grifo nosso) mulação capitalista criaram as condições da derrota das lutas e dos movimentos dos
subalternos, potenciando a crise do movimento operário e socialista em escala pla-
91 "[ ... ] a descolonização é um fenômeno violento': Fanon (1970, p. 6.) O colonizado "é declarado
impermeável à ética, ausência de valores, mas também negação de valores. [... ] Nesse sentido ele é o
netária. O quadro real desse processo foi muito mais amplo.
mal absoluto. [... ] depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças
cega~". (idem, p.I? ?ri~o n.osso.) Violência necessária porque os antigos dominantes metropolitanos Os anos 1980 assinalaram urna mudança nas relações de força, tanto entre os países mais
opor~am.~ma resIstenCla vIOlenta, feroz a esse processo. Para além da guerra de libertação nacional industrializados e os países periféricos, quanto entre capitalistas e assalariados. Foi o resultado da
argelIna Ja documentada por ele faz-se necessário ver corno esse processo ocorreu em outras partes combinação de fatores diversos:
do planeta. Chomsky e Herman (1976) documentaram a situação no sudoeste asiático onde descolo- A decisão de Paul Volcker, atual conselheiro econômico de Barack Obama, que aumentou
~ização e luta contra o "comunismo" ocultaram não apenas as barbaridades cometidas pelo imperia- brutalmente as taxas de juros a partir do final de 1979 quando era diretor da Federal Reserve dos
hsmo estadunidense bem corno isso fazia parte de urna geopolítica de controle universal. Massacre
Estados Unidos;
dos camboja~os (1970) pelas tropas americanas (ver pp. 25-26), o financiamento do governo "amigo"
O contra-choque petrolífero de 1981 que pôs fim a urna política de preços elevados das matérias
de Chank-kaI-Shek, o ~olpe de estado na Indonésia com a deposição de Suharno e o genocídio prati-
primas favorável aos países da periferia exportadores (todos os preços das matérias primas e dos
cad.o contr~ os, comulllstas da ordem ?ce u~ ~ilhão - naquilo que foi chamado de 'terrificant pogrom
antIcomulllsta (p. 46) pelo governo amIgo de Suharto (pp. 46-49); com as presenças americanas produtos agrícolas conheceram urna tendência de queda de 1981 até o início dos anos 2000;
na Tailândia (pp. 35-41), nas Filipinas, no "novo Camboja': no Laos, na Coréia do Sul, no Vietnã do A ofensiva generalizada dos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan contra os
Sul, no ~aquistão, etc. Isto não ficou restrito a esta parte do mundo. A presença imperialista belga e assalariados, tudo em um contexto de crise econômica generalizada de 1980 a 1982. As relações
estadullldense se fez presente no Congo ex-belga com a morte de Lumumba e a proteção a Tshombe de forças deterioraram-se claramente tanto para os países da periferia quanto para os assalariados.
(da rica província de Katanga), em Burundi onde o governo da minoria tribal tutsi foi responsável (Toussaint, 2009)
pelo massacre de hutus (entre a primavera e o verão de 1972 foram mortas mais de 250.000 pessoas
e onde a ordem era 'matar todos os indivíduos hutus das categorias mais qualificadas, acima de 14
anos"') também deixou sequelas fantásticas, assim corno na Guatemala (deposição de Jacobo Arbens Nos países ditos socialistas isso decorreu, fundamentalmente, da política pela qual a
e m~~sacre de campo~e~es), na República Dominicana (deposição de Juan Bosch que contou com o URSS e os partidos comunistas - tal como compreendidos à época - foram transfor-
aUXIlIo de tropas brasIleIras) e nas diversas ditaduras que foram se estabelecendo (Brasil, Chile, Ar- mados gradualmente em reguladores da política internacional pela aceitação da coe-
gentina, Uruguai, Bolívia, etc.). Muito poder-se-ia falar sobre o assunto. Infelizmente não o podemos
para não perder o nosso terna central. xistência pacífica e nos países europeus pela subordinação dos partidos socialistas ao
92 "[ ... ] a Europa fomentou as divisões, as oposições, forjou classes e racismos, tentou por todos os meios chamado programa democrático. A tentativa - absolutamente incapaz de se realizar -
provocar e aumentar a ~stratificação das sociedades colonizadas:' (Sartre, 2007, p. 8. Grifo nosso.) Ou seja,
redesenhou o mapa afncano de modo a colocar etnias e culturas, distintas e antagônicas, em um mesmo turais e às 'nossas instituições '? Ou que sobre tal aspecto sua' cultura' é 'inferior'. " (Balibar 2005, p.12) "E
país tornando-os, assim, fragilizados e vulneráveis. corno para o passado (no conjunto do processo de desenvolvimento da modernidade) a função do racismo
"O racismo faz objeto de uma 'interdição' que tem consequências jurídicas [... ]. Pode-se dizer no curso é sempre o de legitimar práticas discriminatórias (podendo ir até o genocídio) onde se reflete a esquizofre-
~e uma ~am~~a el~itor~ que existem '~I1Uitos emigrantes, ou 'muitos emigrantes não europeus, ou de nia burguesa, seu modo de recorrer a urna mescla inextrincável de dinâmicas de inclusão e de processos de
Negros ,de Arabes ,de Mussulmanos ,de 'Judeus'? 'Ou que eles são' inassimiláveis' aos modelos cul- exclusão, a urna mescla contraditória de universalismo e de privilégios. " (Burgio, 2005, p. 120.)
56 Revolução passiva e modo de vida 57
Edmundo Fernandes Dias

desse regime e desses partidos de governar os estados capitalistas, nos marcos dessa ins- ''As empresas precisam identificar os clientes menos valiosos': explica outro executivo. Em outras
titucionalidade demarcaram os limites desta forma de fazer política. Transformaram-se palavras, eles necessitam de uma espécie de "vigilância negativ~: ao estilo ~o Big Brother de Orwell
ou do tipo panóptico, uma geringonça semelhante a uma peneIra que baslCamente executa .a tarefa
em uma esquerda distributivista, com uma cultura positivista e liberista, em agentes da
de desviar os indesejáveis e manter na linha os clientes habituais - reapresentada como o efeito final
reestruturação capitalista. Desde o fim da II guerra interimperialista - dita mundial- as de uma limpeza bem-feita. (p. 11)
classes trabalhadoras foram sendo particularmente desarmadas (Itália, França, Grécia Poucos dias depois, outro editor, em outra página, informava aos leitores que Charles Clarke,
foram casos exemplares)93. O PCI, para tornar-se partido da ordem e de governo, pro- ministro britânico do Interior, havia anunciado um novo sistema de imigração, "baseado em
pontuações': destinado a "atrair os melhores e mais inteligentes"~7 [... ] :'Isso vai nos permitir
cedeu à condenação da esquerda extraparlamentar dos anos 70 como terrorista, acober-
assegurar': disse o ministro do interior, que "só venham para o Remo Umdo as p~ss~as dotadas
tando a ação dos aparelhos de segurança94. Só quando seu projeto fracassou, ele falou, das habilidades de que o país necessita, evitando ao mesmo tempo, que os destItUldos dessas
tardia e debilmente, sobre a ação dos órgãos de segurança95, ditos de inteligência. habilidades se candidatem:' [... ]
Produziu-se uma profunda transformação na classe trabalhadora, que ela conti- Como assinalou Nicolas Sarkozy, ex-ministro do Interior e atual presidente francês, "a imigração
nuou classe trabalhadora na totalidade social. As classes não desapareceram. Faça- seletiva é praticada por quase tod~s ~s democracias do mundo': E e~e pro~~!guiu exigindo "que a
França seja capaz de escolher seus ImIgrantes segundo nossas necessIdades. (p. 12)]
mos bem essa precisão: "falar de 'movimento operário' (e mesmo de 'proletariado')
não significa necessariamente ignorar as transformações nas condições materiais do Estamos, pois, diante de um controle totalitário em que Estado e Mercado deci-
trabalho e na estrutura da subjetividade. 'Operário', na língua de Marx e do movimen- dem, fora e acima das liberdades democráticas que eles mesmos proclamam, quem e
to comunista, [... J salariato' (Lohnarbeiter) e este último termo reenvia, por sua vez,
o que pode ter direito a existir em seus territórios. Não que~em ~o:rer ne~hum risco,
à condição geral de submissão ao capital, qualquer que seja a forma que ela encarne:'
e a ciência e a tecnologia, contrariamente a toda promessa IlumInIsta, delXa(ra)m de
(Burgio e Grassi, 2002. Grifo nosso)
ser elementos de emancipação passando a ser figuras centrais de uma política totali-
A classe não é uma figura pré-determinada da produção, mas um sujeito que se tária. Direitos humanos? Para que? Para quem?99 É preciso moldar o indivíduo que
constrói e pode negar a ordem onde teve sua origem:
o mercado e o Estado, isto é, as classes dominantes, desejam e necessitam:
[... ] a idéia de "movimento operário': não designa um sujeito determinado por funções específicas Em 2 de março de 2006, o Guardian anunciou que "nos 12 últimos meses as 'redes sociais' deixaram
no âmbito do processo de produção imediato, mas uma subjetividade sócio-política, e precisamente de ser o próximo grande sucesso para se transformare~ no suce~~o do momento."100 [ ..... ] "L ançar
toda a área social submetida à exploração capitalista na medida em que consegue uma adequada um novo site [... ] é como abrir o mais novo bar em uma area nobre ([ ... ] esse novo bar atrama uma
representação de si, das dinâmicas reprodutivas nas quais vive e se modifica, portanto das próprias multidão "até que murchasse, o que aconteceria com tanta certeza quando a chegada da ressaca do
potencialidades transformativas. (idem)
dia seguinte" passando seus poderes magnéticos ao "pr~ximo mais n~;o" na eterna cor~ida p~ra
ser "o point mais quente" o último "assunto do momento, o lugar onde todo mundo que e alguem
O campo da ideologia foi o espaço onde mais agudamente os trabalhadores foram precisa ser visto"). [... ] , . .
derrotados. Depois de a radicalidade operária (em especial na Itália) ter sido contida "No cerne das redes sociais estão o intercâmbio de informações pessoais:' Os usuanos ficam felIzes
(com a ajuda de partidos, sindicatos e centrais sindicais ditas de esquerda) veio a por "revelarem detalhes íntimos de suas vidas pessoais': "fornece~~m. informa~ões precisas" e
"compartilharem fotografias': Estima-se que 61 % dos adolescentes bntanlCos com Idades entre 13 e
feroz reação burguesa da qual o momento atual é a lídima expressão. 17 anos "têm um perfil pessoal num site de rede" que possibilite "relacionar-se on-line"101. .
Bauman (2008) apresenta-nos a face daquilo que os capitalistas pensam ser o seu [... ] na Coréia do Sul, por exemplo, onde grande porção da vida social já é, com~ parte d~ r.otma,
admirável mundo novo. medida eletronicamente (ou melhor, onde a vida social já se transformou em VIda eletronzca ou
cibervida, e a maior parte dela se passa na companhia de um computador, um iPod ou um celular,
[Em 2 de março de 2006] [... ] o Guardian informava ao leitor que "sistemas informáticos estão
sendo usados para rejeitá-lo de maneira mais eficaz, dependendo de seu valor para a companhia
para a qual você está ligando:'96 (p. 10) 97 Alan Travis, "Imigration shake-up will bar most unskilles workers f outside EU': Guardian, 8 de
março de 2006, idem. _. ""
93 Ver entre outros Salvadori (1991) e Claudin, (1972 e 1983). 98 Entrevista publicada no Le Monde, 28 de abril de 2006, idem. A expulsa0 dos CIganos, dos rom,
94 Sobre isso ver a filmografia de Elio Petri, de Damiano Damiani, Ugo Pirro, Francesco Rosi, Dini faz parte dessa estratégia. Berlusconi também pratica a mesma política. ,
Risi (Prudenzi e Resegotti, 2006) e o debate sobre o sequestro e morte de Aldo Moro e a ação da 99 Isto não impede de os governantes destas "democracias': considerarem ~u?a e outros paI~es como
Gládio, entre outros. totalitários. Impedir a saída de dissidentes é crime, impedIr a entrada de ImIgra~tes genencame~te
95 "Ironicamente, o termo francês 'sécuriser: que significa 'dar um sentimento de segurançà, é muito suspeitos (basta ter nome ou a aparência árabe) é legítima defesa .. Para en~rar ~,ratIcamente todos sao
recente [... ]. Em latim securis significa 'machado: como nos 'fachos' (fasci), e 'machadada: O respon- tendencialmente suspeitos. Típico processo de duplo pensar e agIr orwehano. .
sável por garantir a segurança ('sécuriseur') pode ser dito 'seguriforme' (sécuriforme), 'em forma de 100 Sean Dowson, "Show and tell online': Technology Guardian. 2 de março de 2006, Idem:
machado: em homenagem à sua função:' (Labica, 2009, p. 19) 101 Paul Lewis, "Teen age networking websites face anti-paedophile investigation", GuardIan, 3 de
96 Nick Booth, "Press 1 ifyou're poor, 2 ifyou're loáded .. :' Guardian. 2 de março de 2006. Citado por Bawnan. julho de 2006, idem.
59
58 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida

N sociedade dos consumidores, a dualidade sujeito-objeto tende ~ ~er ~ncluída sob a ;u~~da~e
e apenas secundariamente ao lado de seres de carne e osso), é obvio para os jovens 102 que eles não a idor-mercadoria. Nas relações humanas, a soberania do sUJeIto e, portan~o, rec a~sI ca a
têm sequer uma pitada de escolha. [... ] consum d berania do consumidor - enquanto a resistência ao obJeto, denvada de
Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando e e reaprbesent~ ana~007~e~r:ente suprimida, embora rudimentar, é oferecida à percepção como a
treinados na arte de viver uma sociedade confessional - uma sociedade notória por eliminar a fronteira sua so eranIa .d ( 'd 30 31)
inadequação ou imperfeição de uma mercadoria mal escolhI a. I em, pp. -
que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa
virtude e num dever públicos, e por afastar da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser
reduzida a confidencias privadas, assim como aqueles que se recusam a confidenciá-las. (pp. 7,8 e 9_10)103 Esses indivíduos terão que trabalhar, logo nada mais do que necessário que co~fi-
rá-Io como a nova força de trabalho. O caráter, o conhecimento, ~ que pesqUIsar
o mais fantástico é que isto é praticado nos países que afirmam o individualismo gu
nada tem a ver com a
"autonomià' dos indivíduos proclamada no dIscurso, negada
possessivo104 como sua base filosófica e política e onde se combate como totalitárias
na prática. Estes são
as tendências que privilegiam o coletivo. Ironias da história ou necessidade do capi-
tal? A redução de tudo e de todos à condição de mercadoria é decisiva tanto para o tem o os promotores das mercadorias e as mercadorias que promovem .. São,
[.... ] ~~an:=~te o ~r~duto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores (e xermItam-
processo de acumulação, quanto para o controle político. Trata-se da radical adequa- SImu ' I er acadêmico que já se inscreveu para um emprego como ocente ou
ção entre o governo das massas e o governo da economia (Barcelona, 1994). me :~:~:~:t~n~~s d~ap~~quisa vai reconhecer suas próprias dificul~a?es nessa.experiência)d· [I"']
Aquilo que parecia uma visão paranoica de totalitarismo (o Big Brother de Orwell) par i .s que ambICIOnam eXIge que remo e em
O teste em que precisam Pdas~ars p:~aS~J~:e:~:rep~~~~:~sc ;e são capazes de obter atenção e atrair
A'

com que hipocritamente se criticava aos países de socialismo real inexistente, passou a si mesmos como merca ona , ,
a ser apenas uma ilustração tímida do cotidiano de sociedades ditas democráticas demanda e fregueses. (Bauman, p. 13)106
A arte foi simplesmente uma demonstração antecipada das atuais tendências do-
O que se convencionou chamar de neoliberalismo tem aqui sua definição precisa:
minantes. E, ironia suprema, o Big Brother passou a ser vivido como instrumento
de entretenimento (e, portanto, legitimado e desejado) onde o povo é chamado a "chatea ão zero" - começou a circular em silêncio pelo Vale do
praticar a exclusão ("paredão") dos indivíduos-"personagens" candidatos aos cinco ~~í:~~, ~::~ :a~t;:~e:~l:;~ informá~ica nos Es~ados Unidos. [... ] foi aia~~~1~d:osd:m~::;::g~
minutos de fama e prêmios 105. O pior dos nossos pesadelos virou o desejo das massas. . d d t nte de incentivos financeIros, trocavam com
que, m epen en eme "fi ar "descomprometido" ou "desobrigado': Um empregador
A matriz da nova sociabilidade está então plenamente constituída: Mais recentemente, passou a sIgm c _ b d . "Ele é um chateação zero':
" " ode comentar com aprovaçao so re um emprega o.
pontocdoo~i:er que ele está disponível para assumir atribuições extras, responder a chamados de
Na sociedade dos consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e queren 107 (B 17)
ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira emergência, ou ser realoc~do a qualquer moment,o. los aU::::p'r~~issoS ou ligações emocionais
perpétua as capacidades esperadas e exigidas por uma mercadoria vendável. A característica mais O mpreuado ideal sena uma pessoa sem vzncu , .r.
e, 6 . t belecê-Ias a ora' uma pessoa pronta a assumir qualquer tareJa que
proeminente da sociedade dos consumidores - ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta antenores, e que eVite es a . g , ,r. I' de I'mediato suas próprias inclinações,
- é a transformação dos consumidores em mercadorias [... ]. (Bauman, p. 20) d para se reajustar e reJoca Izar
lhe apareça e prepara. a' d abandonando as adquiridas anteriormente; uma pessoa
d
102 "Os adolescentes seriam seres artificiais, meio robôs, meio humanos, cindidos entre a obedi- abraçando novas pno:1 a es e ue "acostumar-se" em si _ a um emprego, habilidade ou modo
ência aos adultos que os engendraram e a vontade de emancipar-se. Como não tem 'memória': não
tem, contudo, 'consciêncià, e, portanto não são plenamente livres para construir seu futuro. Por outro
~~f:;;:::~o~s~~-~:~;~:~;t~ e, portanto, impru~ente; além de tud~:ap~~:~~aq~e :a~~~:
d - fi r mais necessária, sem queixa nem processo.
lado tem estado programados para utilizar todas as potencialidades das novas tecnologias, pelo que
são os melhor preparados para adaptar-se às mudanças, para afrontar o futuro sem os preconceitos
~o:~f:e~: a~u;e:s;e;~~a: de longo prazo, as trajetórias de carreira grav~d~s na ped;::a~ua:d:;;
tipo de estabilidade mais desconcertantes e assustadoras do que a ausencza das m .( ,
dos seus genitores. Mas sua rebelião está destinada ao fracasso: podem apenas protagonizar revoltas
episódicas e estéreis, esperando adquirir algum dia a 'consciência' que os fará adultos:' (Feixa, 2009) pp.17 -18. Grifos nossos)
Trata-se de uma forte tendência, mas não de um determinismo negado r da historicidade.
103 "[ ... ] o sistema perceptivo em que nossos jovens estão imersos e que caracteriza o seu tempo; O ollerário-massa, desqualificado, despolitizado, obtém aqui sua p~s-gra~uação: dele
tal sistema perceptivo (simbolizado pelo gesto do zapping) é feito de superfícies virtuais em contí- r c' ul b umaniana Nao sena absur o,
agora o ciberempregado, para usarmos a lorm a a . . d
ló ica, pensarmos em ciberlumpens que se apresent~ s~b a for~a .de skmhea s,
nuo movimento, de extrema velocidade e de pressa, de 'flexibilidade' adaptativa e passivizante; isso
constitui em torno aos nossos jovens um 'presente eterno' privado totalmente de profundidade e de
problematicidade, que não por acaso (no plano linguístico) ignora e destrói os modos verbais da ~ t os soldados (conscientes ou não) do exerCIto capItalIsta, prontos,
neonaZIS, e ou r
possibilidade e do problema (o condicional e o conjuntivo) e tem horror do passado remoto, o tempo Brasil um nome e um modus operandi: Currículo
106 Essa afirmação sobre ~s academICo~ tem no D b t
A •

verbal do passado profundo e concluído:' (Mordenti, 2008) 2 n 3 maio de 2009. Ver, em especial,
104 Macpherson, 1971. Lattes e Lattescracia. Sobre ISSO ver MOVImento em e a e, a. , . ,
105 O famoso paredão tão condenado pelos governos norteamericanos e sua rede de estados satélites Bosi (2009). .". B' d' Wh Work Becomes Home and Home becomes
em relação à revolução cubana é assumido simbólica e praticamente como o ritual de exclusão desse 107 Arlie Russell HochschIld, The TIme m. en
delírio orgástico. . Work': Henry Hold, 1997, pp. xviii-xix, idem.
60 Edmundo Fernandes Dias

é claro, para defender o vigente ainda que aparentemente o neguem. Como diria
Reich (l970a), eles e seus ressentimentos se tornam fascistas mais facilmente do que
revolucionários 1oB •
Falta então definir o papel do Estado e sua camaradagem-gerência com o mercado.

A velocidade e o ritmo acelerado desses processos foram e continuam a ser tudo, menos uniformes.
Na maioria dos países (embora não em todos), eles parecem muito menos radicais no caso do
trabalho do que até agora o foram em relação ao capital, cujos novos empreendimentos continuam
a ser estimulados - quase como regra - pelos cofres governamentais numa escala crescente e não UMA OLHADA SOBRE O BLACK PANTHER110:
reduzida. Além disso, a capacidade e a disposição do capital de comprar trabalho continuam sendo
reforçadas com regularidade pelo Estado, que faz o possível para manter baixo o ''custo da mão-de- CLASSE, GÊNERO, ETNIA
obra" mediante o desmantelamento dos mecanismos de barganha coletiva e proteção do emprego, e
pela imposição de freios jurídicos às ações defensivas dos sindicatos - e que com muita freqüência Primeiro há que enfrentar um espetáculo inesperado: o streaptease do nosso huma-
mantém a solvência das empresas taxando importações, oferecendo incentivos fiscais para exportações nismo. Ei-Io aqui nu e nada bonito: não era senão uma ideologia mentirosa, a deliciosa
e subsidiando os dividendos dos acionistas por meio de comissões governamentais pagas com dinheiro justificativa da pilhagem; suas ternuras e seu preciosismo justificavam nossas agres-
público. (Bauman, pp. 15-16. Grifos nossos) sões. Que belo predicar a não violência! Nem vítimas, nem verdugos.

o segredo de Polichinelo se revela: entregues a si mesmos e sem controle social, Jean-Paul Sartre
mercado e Estado mostram sua mais profunda promiscuidade.

Para apoiar, por exemplo, a fracassada promessa da Casa Branca de manter baixos os preços nos postos
o movimento negro enfrentou como poucos a fusão das contradições colocadas
de gasolina sem ameaçar os lucros dos acionistas o governo Bush confirmou em fevereiro de 2006, que pelas diversas especificações da segmentação no interior das classes subalternas:
iria renunciar a 7 bilhões de dólares em royalties nos próximos cinco anos (soma que alguns estimam classe, etnia, gênero. Contradições agudizadas no interior, por exemplo, de uma et-
ser o quádruplo), a fim de encorajar a economia norte-americana do petróleo a prospectar o produto nia ou nação particular. Exemplar é a contradição de gênero entre os chamados afro-
nas águas de propriedade pública do golfo do México ("É como dar subsídios a um peixe para que americanos. Contradição sobredeterminada pela posição diferencial no interior da
ele nade': foi a reação de um deputado a essa notícia: "É indefensável subsidiaressasempresas com os
preços do petróleo e do gás tão elevados").109 (idem, p. 16. Grifo nosso)
classe. A história da formação social, seu passado ideológico e de poder, marca tam-
bém divisões no seio do movimento negro que recusou a "integração (sic) oficial':

No centro das lutas que se juntavam sob o slogan do "Black Power" estava a necessidade de redefinir
radicalmente as relações entre os negros e a sociedade americana, argumentando que esta andasse
profundamente modificada, não reformada, se se quisesse que as condições de vida da população
negra melhorassem e o fulcro deste novo radicalismo era exatamente a identidade negra.
Entre os objetivos principais se batia pelo controle das próprias escolas, pelos programas dos
Black Studies na universidade e nos colleges, pelos direitos de welfare, a reforma das prisões, casas
populares, trabalho e justiça racial para os pobres. A esfera da educação era considerada crucial e,
eram fundadas "Escolas de Libertação' onde os jovens negros pudessem aprender a própria história
coletiva e adquirir a estima de si e a consciência política necessárias para empenhar-se radicalmente
no processo de revolta da própria comunidade. (Torneri, 2008, p. 3) 111

Projeto complexo que envolve o chamado modo de vida, a totalidade concreta


do cotidiano dos subalternos. Redefinir a inserção dos afro americanos na formação
social estadunidense implica repensar o estado-nação. Para Torneri (2008, p. 5) o
poder dos discursos (liberais, humanistas) não foram os principais determinantes da
110 Ver as regras e o programa do Black Panther Party in BPP. Consultar http://www. blackpanth-
108 Sobre isso a análise de Marx (1928) guarda uma atualidade impressionante.
her.org e o Panther de Peebles (1995)
109 Edmund L. Andrews, "Vague law and hard lobbying add up to billions for big oi!': New York 111 Muitas dessas lutas e propostas guardam semelhança com os terroni italianos do autunno caldo,
Times, 27 de março de 2006. Citado por Bauman.
embora não tivessem entre si contatos.
62 Revolução passiva e modo de vida 63
Edmundo Fernandes Dias

luta da comunidade negra; e sim "as condições sociais e econômicas em que viviam a A diferença de classe mostra a abstração formal de uma igualdade realmente
empurrar as organizações nascentes para a ação [e] serviram para eletrizar o terreno inexistente. Brancas patroas das negras. Rendas e recursos diferenciados. Inimigos
político e a canalizar-lhes as forças': distintos: para umas o homem (abstração vazia), para outras o modo de produção
A luta da mulher negra teve, segundo esta autora, um papel decisivo: capitalista e a forma concreta da formação social estadunidense.

É a partir desta condição ambígua de subalternidade extrema, ditada pelo fato de ser ao mesmo Daqui decorre a célebre afirmação "enquanto mulher eu não tenho pátria. Enquanto mulher, a
tempo negra, mulher e proveniente dos degraus mais baixos da escala social, que [ela] será minha pátria é o mundo inteird'115, que se tornará uma das bases do pensamento da diferença
empurrada a elaborar uma subjetividade, autônoma, própria, que sabia combinar estes diversos sexual. [... ]
âmbitos de luta, sem cair em uma proposta "monistà' que a constrangeria a escolher apenas um Será exatamente Adriane Reich, feminista, lésbica, judia e estadunidense, uma vez absorvida a lição
[deles], chegando a oferecer uma visão revolucionária mais ampla daquelas existentes, que abarca ensinada exatamente por aquele feminismo de que falamos, a responder a Virgínia Wolff com as
todos os âmbitos da existência. (Torneri, 2008, p. 7) palavras: "enquanto mulher eu tenho uma pátria: enquanto mulher não posso desembaçar-me
desta pátria simplesmente condenando o seu governo ou repetindo três vezes 'enquanto mulher a
minha pátria é o mundo inteiro~'1l6
Diferentemente da luta das feministas brancas que buscavam sua emancipação por Parte-se então de duas afirmações completamente diversas: no primeiro caso da recusa de
uma inserção no mercado de trabalho e na culpabilização dos homens - ignorando participar em um sistema construído por homens e para os homens, enquanto no segundo caso, da
assim a dialética racismo-sexismo - as negras fizeram, com maior ou menor consci- convicção que é impensável estar fora deste sistema e que é necessário, pelo contrário, assumir-se
ência, uma teoria e uma prática que articulavam classe-gênero-etnia l12 • a responsabilidade do próprio ponto de partida se se quer ter algum poder de modificação do real,
dado que "um posto no mapa é um posto na história:'ll7 (idem, p. 45)
As mulheres brancas, na sua visão totalizante do sexo feminino retêm que o domínio do homem
[fosse] o primeiro dos instrumentos de opressão por parte da sociedade, do qual decorre todas as Aqui está claramente articulada a diferenciação entre o modo de ver a questão
outras modalidades de opressão. Fazem assim derivar também o racismo do sexismo, assumindo da procriação e suas relações com os gêneros e a política. Coloca-se aí também a
tons extremamente anti-masculinos nas suas dissertações fazendo do homem o inimigo por diferenciação e o peso político que o mesmo gênero dá à relação racismo 1l8 -sexismo:
excelência, [... ] para derrotar o domínio patriarcal apelam a um hipotético ideal de sisterhood, à
idéia de uma sorellanza universal que deveria unir todas as mulheres do mundo, que pelas diversas o racismo, como o sexismo, diz respeito a todos. Se se omite a questão do racismo não será possível
condições em que vivem, são como que acomunadas pelo fato de ser mulher e de estar submetidas criar nenhuma sisterhood, e consequentemente também a luta contra o domínio patriarcal sairá
ao poder dos machos nas suas diversas formas. (idem, pp. 9-10) debilitada.
O fato de que as mulheres brancas não compreendam que a luta de liberação deve ser conduzida em um
A diferença no interior do mesmo gênero aparece claramente como projeto político: nível mais amplo que o da simples contraposição mulher-homem torna-as de algum modo cúmplices
da exploração de mulheres e homens pertencentes à comunidade negra e às classes subalternas. (idem,
pp. 11-12. Grifo nosso)
Pelo contrário, segundo as palavras de Beal, a ''comunidade negra está empenhada em luta pela vida ou
morte com as forças opressivas deste país e a enfase principal por parte das mulheres negras deve estar no
combater a exploração capitalista e racista da população negrà'J13 Esta diferenciação mergulha suas raízes no sistema colonial e na escravidão, um
[... ] as mulheres negras são sistematicamente exploradas pelo sistema capitalista, são menos remuneradas que de seus fundamentos.
os homens e são destinadas prevalentemente para profissões que não comportam nenhuma possibilidade
de avanço (trabalho doméstico, assistência nos hospitais, fábricas texteis), enquanto, por exemplo, no que A sexualidade sempre forneceu metáforas de gênero à dominação colonial. Em um contexto
se refere às mulheres brancas middle class sustentadoras do feminismo mainstream, "muito poucas dentre como o escravista o poder do patrão sobre seus escravos vinha mesmo expresso em termos de
estas sofrem a extrema exploração econômica que a maior parte das mulheres negras são submetidas dia a
dia Se elas consideram o trabalho doméstico degradante e desumanizante, tem financeiramente condições 115 Virginia Wolff citada por Stephania de Petris, Tra ''Agency'' e Differenze: percorsi del femminis-
de comprar sua liberdade - geralmente assumindo uma doméstica negrà'1l4. (idem, p. 10 mo postcoloniale, in Studi Culturale, a. 11, n. 2, dezembro de 2005, citado por Torneri.
116 Reich, Notes Towards a Politics of Location, in Reina Lewis e Sara Mills, Feminist Postcolonial
Theory - a reader, Edimburgh University Press, 2003, citado por Torneri.
112 Câmara e Silva (2007, p. 135) chamam nossa atenção para as diferenciações do pseudo-conceito de 117 Idem, ibidem.
raça: "[a] discriminação com base na ideológica noção de raça ocorre com populações distintas em todo o 118 Para Rivera (2010) o racismo "é um sistema de idéias, discursos, símbolos, comportamentos,
globo terrestre. Na França, a 'raçà à qual se dirige o racismo, política da extrema e o informal da sociedade atos e práticas sociais que atribue a certos grupos humanos diferenças naturais ou quase naturais ou
nacional são os árabes; na Inglaterra, são os indianos e os paquistaneses; em Israel, são os árabes e os pales- essenciais seja lá como for, generalizadas, definitivas, para legitimar, realizar em dados comporta-
tinos; mesmo nos EUA, o racismo dirige-se com intensidade diferenciada não só para os negros, incorpo- mentos, normas e práticas de desvalorização, estigmatizações, subordinações, exclusões, persegui-
rando também latinos e asiáticos; situação semelhante ocorre na conturbada região balcânica ou, nos países ções ou extermínio:' Uma boa representação disso é "o mito dos 'italianos, brava gente' [que] serviu
vizinhos na América Latina com a população indígena como principal alvo do racismo:' para cobrir um passado vergonhoso marcado pelo antijudaismo católico e pelo antissemitismo fas-
113 Francis Beal, Double Jeopardy: to Black and Female, 1970, citada por Torneri, p. 10. cista, pelo preconceito antimeridional e anti cigano, e pelo raismo coloniaI:' Nb - a classificação dos
114 Idem, ibidem. sulistas como "i sudicci" (os sujos).
64 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 65

poder sexual e o estupro "como direito e rito do grupo masculino branco dominante era a norma facilmente em violência no interior do seu próprio grupo. Esta lição da nascente
cultural"1I9. O corpo da mulher negra era o terreno discursivo sobre o qual as dinâmicas de racismo "subjetividade feminina negrà: como fala Torneri nos ensina que criar uma sociabi-
e sexismo convergiam: os estupros sistemáticos de que as escravas eram vítimas se tornavam, no lidade contra e para além da Ordem do Capital implica em decifrar a esfinge classe-
universo da dominação racial, um ato de castração simbólicca que recordava continuamente aos
machos dominados a própria perda do poder - a impotência. (idem, p. 25)
-etnia-genero. A cultura do estupro espalhou-se como uma praga emocional, como
No nível da experiência na vida privada: sobretudo no Sul as mulheres brancas não foram apenas diria Reich.
testemunhas-cúmplices do tratamento brutal reservado às mulheres negras por parte dos seus pais- Pode ser que Engels tenha razão ao dizer que "a violência é a parteira da histórià:
irmãos-maridos, mas o domínio sobre as próprias escravas permite a elas mesmas adquirir um E o é, mas que tenhamos que ela é também a pedagogia dos dominantes. A interiori-
maior poder na esfera doméstica, adquirindo um novo status.
zação do modo de vida dominante, capitalista e branco, é decisivo:
No plano simbólico: o ideal vitoriano da feminilidade casta e virtuosa, dedicada à casa e aos filhos
e mãe da nação 120, se construía naqueles anos especularmente a imagem da mulher negra como
criatura selvagem e desenfreada, que servia na realidade para esconder uma realidade dramática de Fanon demonstrou em seus livros a existência de um negro greco-latino que compartilha - ainda que
estupros e violências. (idem, p. 11) de forma subalterna - todas as formas da sociedade capitalista 124. Ele conclui que "a modernização
induz os indígenas à loucura: para o sujeito branco o sujeito negro não representa tudo o que está
fora de si; ao contrário para o sujeito negro é tudo que é desejável possa existir; o sujeito negro
A questão da contracepção é outro momento das contradições intra e entre gêneros.
confirma o sujeito branco, enquanto este esvazia o sujeito negro, que não consegue identificar-se
Não se trata de um puro direito a programar a procriação - direito inalienável das mu- com o que é negado continuamente pela estrutura racista e colonial:' (Moretti)
lheres - mas de seus efeitos práticos. Políticas de contracepção que envolvem a totalida-
de da situação familiar. Falamos em percepções diferentes no interior do gênero femini-
no (marcadas obviamente pela questão da classe), mas também intergeneros. Assim se

[... ] de fato, as mulheres brancas consideravam o acesso à contracepção e a interrupção da gravidez


como meios de atingir a liberdade sexual, as negras tinham devido, e ainda deviam lutar contra a
esterilização forçada e as políticas de planificação familiar utilizadas para limitar o nascimento de
crianças negras 121 .
Por outro lado bater-se contra a esterilização e as políticas reprodutivas racistas não significava
regeitar o controle dos nascimentos. Quando os nacionalistas negros proclamavam a contracepção
um meio para eliminar a comunidade afroamericana, as feministas negras respondiam com uma
análise de classe, censurando [o fato] de não levar em consideração da situação dos grupos de
negros mais marginais e sustentando que, enquanto os recursos não fossem mais equamente
redistribuídos, ter filhos não por livre escolha, mas para "crescer a raçà' não teria feito senão
exacerbar as já dificilíssimas condições de vida desta gente 122• (idem, p. 15)
Como veremos nas pesquisas de Wacquant gênero-etnia-classe se fundem naquilo que
Gramsci chama de povo: o conjunto das classes trabalhadoras, dos subalternos. A questão do
estupro já prefaciada pela situação colonial ganha aqui uma nova dimensão:
''A presente epidemia de estupro aparecida em um momento em que a classe capitalista está
furiosamente reafirmando a sua autoridade frente a mudanças globais e internas. [... ] O ataque às
mulheres espelha a deterioração da situação dos trabalhadores de cor e a crescente influência do
rascismo no sistema judiciário, nas instituições educativas e na atitude do governo de estudado
descuido nos confrontos com a população Negra e com outras gentes de cor:'123 (idem, p. 23)

É preciso, contudo, ter em mente que esse genocídio afetivo também se produz
entre os homens negros, pobres e oprimidos. A impotência dos oprimidos se traduz
124 ''A elite europeia dedicou-se a criar uma elite indígena; selecionaram-se adolescentes, marcou-
119 bel hooks, Riflessione su razza e sesso, 1991. In Elogio del Margine, Feltrinelli, Milano, 1998, -se- lhes na frente, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, introduziram nas bocas
citado por Torneri. Obs: o nome desta autora aparece sempre em minúsculas. mordaças sonoras, grandes palavras pastosas que se aderiam aos dentes; após uma breve inst~ncia
120 Figura cara ao capitalismo como um todo e ao fascismo em particular. Cf. Scola, 1977. na metrópole regressavam a seu país, falsificados. Essas mentiras vivas já não tinham nada a dlzer a
121 Robin D. G. Kelly, Freedon Dreams: The Black Radical Imagination, citado por Torneri, 2008. seus irmãos; eram um eco; desde Paris, Londres, Amsterdã, lançávamos palavras: 'Partenon! Frater-
122 Idem, ibidem. nidade!' e em alguma parte na África, na Ásia, outros lábios se abriam: '... tenon!' ... nidade!:' (Sartre,
123 Angela Davis, Woman Race & Class. The Women's Press, Londres, citado por Torneri. 2007, p. 5. Grifo nosso)
i

"
!

PODE O SUBALTERNO FALAR?

Creio que quando se usa o slogan "outro mundo é possível" (sem dizer qual)
automaticamente se afirma que outro mundo é impossível. Com efeito, um
dos pressupostos também dos movimentos, e não apenas da ideologia libe-
ral, é o da intangibilidade do atual modo de produção. Este pressuposto con-
dena o movimento e o empurra para a indeterminação, porque pressupõe,
na melhor das hipóteses, uma desconfiança no fato que os movimentos de
libertação baseados na abolição da propriedade privada dos meios de produ-
ção possam resultar eficazes.

Vladimiro Giacché

A questão dos intelectuais e da linguagem foi no início do século passado elemento


comum nos debates sobre política e poder. Tratava -se, na realidade, da questão das
direções. Além de Gramsci, que, a nosso juízo, problematizou com maior eficácia a
questão dos intelectuais em uma precisa postura política e epistemológica marxista,
Kautsky, Lenin, Rosa e Trotsky participaram desse debate já colocado por Marx e
Engels. (Vacca, 1985).
Mesmo aqueles que negaram o marxismo necessariamente se defrontaram com
a problemática. Weber em a Ciência como Vocação e em suas investigações sobre a
China e a Índia antigas; na escola durkheimiana encontramos entre outras a obra
de Marcel Granet (A civilização chinesa e O pensamento chinês). Etienne Balaz em
A burocracia celeste: pesquisas sobre a economia e a sociedade da China tradicional
também trabalhou a questão. Na civilização chinesa o aprendizado dos ideogramas
era de tal modo complexo que implicava em dedicação exclusiva e tempo integral:
quem os dominasse conheceria e exerceria o poder. Fora do mandarim existiam cen-
tenas de linguagens. O poder era exercido pelos intelectuais da cultura dominante. O
mesmo vale para as civilizações egípcias, mesopotâmicas, maias, astecas, quechuas,
etc. A identificação entre intelectual e poder, é patrimônio de formas teóricas e de
perspectivas políticas e civilizatórias radicalmente distintas.
68 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 69

Debate presente nas obras de Mannheim, Korch, Lukács, na primeira escola de


25
Frankfurt1 • Rusconi (1969) trabalhou essa questão mostrando a centralidade da
r pela qual os proletários não poderiam elaborar sua teoria revolucionária. Em Que
fazer? Lenin afirmou:
relação intelectual-política: I
Já dissemos que os operários não podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser
A :'teoria críticà' não comete a ingenuidade de considerar-se fora do círculo da cultura burguesa- introduzida de fora. A história de todos os países atesta que a classe operária, exclusivamente por suas
OCIdental: constitui sua autocrítica extrema. Suas autoridades são os grandes críticos da sociedade próprias forças, só está em condições de elaborar uma consciência trade-unionista, isto é, a convicção
burguesa: Marx, Freud e parcialmente Weber. Sua estrutura conceitual está radicada no pensamento de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo a promulgação
que marcou o ponto culminante da razão filosófica clássico-burguesa, Hegel. A teoria crítica não de tais ou quais leis necessárias para os operários, etc. Em troca a doutrina do socialismo surgiu de
poupa polêmicas e críticas sequer no que se refere a seus próprios mestres. (p. 16) teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas por representantes instruídos das classes
proprietárias, pelos intelectuais. Por sua posição social, também os fundadores do socialismo. cient~~o,
Marx e Engels, pertenciam à intelectualidade burguesa. Exatamente do mesmo modo, a doutnna teonca
Afirmada a centralidade da relação entre intelectuais e política constatamos, em- da socialdemocracia surgiu na Rússia independentemente em absoluto do crescimento espontâneo do
bora isto possa parecer paradoxal, que uma das maiores debilidades da maioria dos movimento operário, surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre
militantes de partidos ditos revolucionários ou de esquerda tem sido um enorme e os intelectuais revolucionários socialistas. (pp. 382-383. Grifo nosso).
constante anti -intelectualismo graças à identificação entre intelectuais e dominantes,
tornada dogma imutável. Esse movimento assume duas possibilidades polares: na Uma observação se faz necessária. Essa visão é feita após a famosíssima citação
primeira encontramos uma recusa à prática dos intelectuais vistos necessariamente segundo a qual "sem teoria revolucionária, não pode haver tampouco movimento
como conservadores ou reacionários, como corpo homogêneo anti-classes trabalha- revolucionário" (p. 376). Examinemos as duas citações. A primeira conclusão óbvia
doras; na segunda encontramos uma leitura determinista que dispensa a necessidade é a da exterioridade teoria/classe que é acompanhada do fato (não explicado e inex-
do estudo. Esta última assume a forma de uma "verdade" para além da vida concreta, plicável) de que o socialismo é produto apenas das mentes avançadas de membros
como se a vida de homens e mulheres fossem apenas o desdobrar-se de algo exterior a "progressistas" da classe dominante. A segunda: o partido é um demiurgo capaz de
eles, seja pela "lógica do capital" - que funciona normalmente como um permanente fazer a tradução dessa teoria para uma base estruturalmente incapaz de trabalhar
sequestro abstrato da intervenção das classes na história - e que pode ser vista como sua própria experiência. A aceitação leninista desta tese sacralizou a afirmação de
leitura à esquerda da "natureza humana': ou como visão religiosa segundo a qual o Kautsky. O que não é dito ou examinado é o processo da passagem dos intelectuais
"mundo caminha para o socialismo': Esta postura acaba por reforçar a primeira. O às lutas dos trabalhadores. Tudo se passa como se fosse uma pura obviedade. (ver
determinismo é a morte da militância 126• Lukács, 1965) E não é! Tanto ele quanto Lenin assumem essa tese como axioma.
Outra leitura desta relação é revelada pela tese da "importação da teoria" elaborada Nesta visão o subalterno não pode falar. O partido fala por ele. Há outra possibilidade
pelos brilhantes cérebros de burgueses (progressistas!), que rebaixa a capacidade de explicativa: a direção do partido era fundamentalmente constituída por intelectuais
auto-elaboração da teoria pelos subalternos. Aqui, querendo-o ou não, consciente como Lênin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin entre outros. Os operários estão
ou não, Lenin prestou um desserviço ao aceitar a tese kautskiana 127 "da importação': obviamente aí, mas estes foram os principais dirigentes.
125 Sobre a Escola de Frankfurt ver entre outros Horkheimer e Adorno (1976), Therborn (1972)
Na dialética do senhor e do escravo, este vê sua situação como natural porque a
Rusconi (1969) e Perlini (1969). ' vê com olhos do senhor. É necessário olhar com seus próprios olhos, isto é, elaborar
,~26 Uma boa caracterização de determinismo pode ser vista em Bloch que cita Isaías e Moisés, que seus discursos, projetos e intelectuais - sua direção - para poder criar uma nova his-
~lham para a .empiria a partir das 'tábuas da lei": Ernest Bloch, Der Geist der Utopie (1a. ed.), op.
Clt., 347-348, CItado por Losurdo, 2006, 202. Grifo nosso. toricidade. O continuun histórico é uma barreira. O pensamento dos subalternos não
127 "Como doutrina, o socialismo tem, evidentemente, suas raízes nas relações econômicas atuais pode deixar de ser subversivo se quiserem transformar sua subjetividade em objetivi-
no mesmo grau que a luta de classes do proletariado; da mesma forma que a última, ele decorre da dade nacional e depois universal. O nome clássico desse processo é revolução. Quando
luta contra a pobreza e a miséria das massas, geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de
cla.sses ,[ ... ] não se engendram um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista,
uma visão anti -intelectualista abstrata se instala nos subalternos ela os encaminha
hOJe, so pode brotar na base de um profundo conhecimento científico. [... ]. para a derrota. Nada de fatal, é claro, mas trata-se de uma forte possibilidade. Quan-
Ora, o por~ad?r, da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses; de fato, foi do cérebro do o pensamento socialista afirma que o saber vem de fora da classe pela ação dos
d~ alguns ~ndlvlduos dess~ ~ate.goria que nasceu o socialismo contemporâneo e através deles é que
fOI comUnIcado aos proletan~s mtelectualmente mais desenvolvidos, que o introduzem, em seguida, de sua missão. Não havia necessidade de fazê-lo se essa consciência emanasse por si mesma da luta
na ~ut~ de ,classes do prol~tanado onde as condições o permitem. Logo, dessa forma, a consciência de classe". Karl Kautsky, "Um Elemento Importado de Forà', Die Neue Zeit, 1901-1902, XX, I, n° 3,
sO~I~hsta e um element~ Importado de fora na luta de classes do proletariado e não algo que surge 79. A ideia de que a ideologia socialista surge do "desenvolvimento social contemporâneo" afirma
ongmalmen~e dela. Por I~SO:? velho ~rograma de 1888 do Partido dizia, muito acertadamente, que a claramente uma pura mecanicidade. O desenvolvimento é sempre, lembremos, o resultado das lutas
tarefa da sOCIaldemocraCIa e mtroduZIr no proletariado a consciência da sua situação e a consciência e das práticas das classes, nunca um algo já dado.
70 Revolução passiva e modo de vida 71
Edmundo Fernandes Dias

intelectuais burgueses nega-se a autonomia dos subalternos, cria-se um fosso entre o que lhe permitirá contextualizar esta reivindicação romântica dos marginalizados em um projeto
"nacional-popular" mais amplo: é preciso dar a voz aos grupos subalternos, a "um povo cujo clamor
direção e base, uma crise de direção.
não é senão silencio" (Le ceneri di Gramsci) que está composto de camponeses, operários, mulheres
e jovens com tradições culturais e valores particulares. (Freixa, p. 148 )
Gramsci propugnava, em oposição ao populismo fascista, a luta hegemônica dos estratos fortes
~ maduro.s das .cl~sses subalternas, isto é, operários de fábrica, em contraposição aos próprios
Nos anos dez do século passado Gramsci salientava que a "libertação ideológicà'
mtel.ectuélls orgamcos, .fo~~a~os no .laboratório político do partido comunista. E em conjunto
~ublmhav~ lia ext~aordmana Importancia de todos, mesmo se pequeno ou parcial traço de era o primeiro passo da emancipação da classe: "cada classe que se preparou para a
autonomIa de lInguagem e de luta da parte dos subalternos marginalizados (produtores de conquista do poder, tornou-se apta mediante uma educação autônoma. A primeira
folclore), ~ual momento de passagem para colocar em grande desordem a sua situação objetiva de emancipação da servidão política e social é a do espírito." (1982, p. 643)
s~balt~rmdade.. Para Gramsci a construção de uma alternativa nacional-popular (hoje deveremos Em Lenin o partido não tinha, nem podia ter, um contato profundo com a clas-
dI~er: mter-naclOnal-popular) ao então populismo fascista era um processo complexo e articulado,
feIto de momentos e criadores de autonomia, de hegemonia, de democracia. (Baratta, 2006). se na sua cotidianidade seja porque a necessidade de quadros retirava do cotidia-
no fabril aqueles que poderiam vir a fazer a tradução da sua experiência na teoria
Quando se del~ga, também no interior do partido, a direção partidária, a capacidade socialista, seja pelas condições da própria clandestinidade. Gramsci, já no período
de pensar ~s p~oJetos, a: lutas, o subalterno continua subalterno. A proposta gramscia- ordinovista, analisando o movimento operário formulou um aparente paradoxo: na
n~ de partl~o ~ um escandalo radical diante da prática de socialistas e comunistas que Itália "são as massas que educam o partido e não é o partido que guia e educa as
vl~em o fetl~hlsm~ da organização. Só quando os subalternos falarem com sua pró- massas': A derrubada do aparelho estatal burguês não basta para conferir ao partido
p"na ~oz sera p~sslv~l sua emancipação e com isso longe estamos de negar a impor- a capacidade hegemônica e caráter comunista à revolução. Em Due rivoluzione Gra-
taneIa da organlzaçao. Faz-se necessário, entretanto garantir a democracia interna e msci afirmou que esta
a capacidade da organização de ser a escola da luta de classes (formação de quadros
não é necessariamente proletária e comunista enquanto se propõe e obtém a derrubada do governo
d: modo qu,~ todo~ possam ser dirigentes). É comum a tentativa de ''dar voz a quem político do Estado burguês [... ] mesmo se a onda da insurreição popular entrega o poder nas
nao tem voz , ou seja, de dar a nossa voz à eles. Esse substitucionismo a curto, médio e mãos dos homens que se dizem (e são sinceramente) comunistas. A revolução só é proletária e
longo prazo, mantêm os subalternos sem voz. comunista quando ela é a liberação das forças produtivas proletárias e comunistas que vinham sendo
elaboradas no seio da sociedade capitalista, [... ] na medida em que consegue favorecer e promover a
Não tentarmos dar voz aos outros, aos subalternos, que cada vez mais deste modo se tornam expansão e a sistematização das forças proletárias e comunistas capazes de iniciar o trabalho paciente
as c?ntra-figuras ou os fantoches do nosso espetáculo, mas esforçar-se por olhá-los, escutá-los, e metódico, necessário para construir uma nova ordem nas relações de produção e distribuição, uma
sentI-los, quando se exprimem, porque se exprimem, com a força ora da luta ora do silêncio nova ordem com base na qual seja tornada impossível a existência da sociedade dividida em classes, e
ou da re~úncia. [... ] t?rn.ar-se capazes de fazer nossa (porque no fundo já o é) a condição da cujo desenvolvimento sistemático tenda por isso a coincidir com um processo de exaustão do poder do
subaltermdade, pode sIgmficar por em suspensão o jogo da hegemonia. Ou colocá-la radicalmente Estado, com um dissolver-se sistemático da organização política de defesa da classe proletária que se
em jogo, a hege~o~ia, fazê-la atravessar por inteiro o contraponto de que fala Said: histórias que se dissolve como classe para tornar-se humanidade. (1987, p. 569. Grifo nosso).
encontram, terntonos que se sobrepõem. (Baratta, Idem).
Ma.: n~ssa inter~enção não pode se limitar à eterna tarefa do intelectual burguês que ensina a quem é O partido, intelectual coletivo dos subalternos, trabalha - com estes e não sobre
opnmldo o. ca~mho da s~a libertação, porque deste modo, continua-se a perpetuar nossa distância e estes - sua libertação. Sua tarefa é, necessariamente, complexa:
nossa dommaçao. (BasaglIa e Ongaro, 2005, p. 236. Grifo nosso)
o partido socialista, com seu programa revolucionário, subtrai ao aparelho do Estado burguês a sua
.Vá:ias foram as tentativas de articular a voz dos subalternos. A revolução russa, o base democrática de consenso dos governados. Influencia cada vez massas populares mais profundas
ble~1O rosso, o autunno caldo. Em todas elas fazia -se necessário a constituição de um e lhes assegura que o estado de confusão em que se debatem não é uma frivolidade, não é um
proJeto, uma voce. Os artistas tiveram papéis decisivos nesse processo. Pasolini foi mal-estar sem saída, mas corresponde a uma necessidade objetiva, é o momento inelutável de
um processo dialético que deve desembocar em uma laceração violenta, em uma regeneração da
um deles. Para ele não se tratava de
sociedade. Eis que o Partido vem assim se identificando com a consciência histórica das massas
populares e as governa [por um] movimento espontâneo e irresistível: este governo é incorpóreo,
"historicizar" a vida das classes subalternas, mas, pelo contrário, resgatar um testemunho vivo uma funciona através de milhões e milhões de laços espirituais, é uma irradiação de prestígio que só em
cultura em tramites de desaparecimento; para os ragazzi [em italiano no texto] eram o último momentos culminantes pode tornar-se governo efetivo. (Gramsci, 1987, p. 369. Grifos nossos)128.
~esíd~o. de "culturas diversas" que estavam sendo aniquiladas pelo processo de homogeinização
ImgUlstIca e cultural originado pela mudança no modo de "produção: o que ele chamava de
des~parecimento das luciérnagas [Virgílo Fantuzzi, Pier Paolo Pasolini, 1978, Mensajero, Bilbao]. 128 Aqui estão claramente colocadas as questões da hegemonia e do Estado Ampliado que costuma
Sera a redescoberta que Pasolini faz de Gramsci (explícito no livro de poemas Le ceneri di Gramsci) ser atribuído ao período posterior à tomada de conhecimento da obra de Lenin por Gramsci.
72 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 73

Ao proceder assim, insisto, ele se apresenta como governo potencial mesmo que muito pelo contrário; o pedantismo apaixonado é tão ridículo e perigoso quanto o sectarismo ou a
ainda não tenham sido construídas as novas formas estatais. Aqui está colocado cla- demagogia apaixonada. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender
e especialmente sem sentir e estar apaixonado, que o intelectual possa sê-lo se distinto e destacado do
ramente o debate da hegemonia. O processo de conquista da autonomia dos subal- povo: não se faz história-política sem paixão, sem estar sentimentalmente unido ao povo, sem sentir as
ternos é uma batalha hegemônica onde o desenvolvimento da linguagem é central. paixões elementares do povo, compreendendo-o, isto é, explicando-lhe [e justificando-lhe] na situação
Tese permanentemente reafirmada por ele: a produção da teoria da revolução pelo histórica determinada e ligando-o dialeticamente às leis da história, a uma concepção superior do
proletariado como condição necessária de sua emancipação e da possibilidade da mundo, cientificamente elaborada, o "saber". Se o intelectual não compreende e não sente, as suas
relações com o povo-massa são reduzidas a puramente burocráticas, formais: os intelectuais tornam-
construção da sua sociabilidade fora e contra a ordem do capital. Diferentemente da
se uma casta ou um sacerdócio (centralismo orgânico); se a relação entre intelectuais e povo-massa,
prática de o «Que Fazer?': Gramsci pensa o operário como o intelectual moderno. entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica na
qual o sentimento paixão se torna compreensão e então saber (não mecanicamente, mas de modo
o destinatário desta atividade é fundamentalmente o quadro operário, é o militante de fábrica que vivo), então a relação é apenas de representação, e ocorre uma troca de elementos individuais entre
pode dar origem o intelectual de novo tipo e a ele é dirigido o esforço educativo do partido, cuja governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, se realiza a vida de conjunto que é apenas a
formação pedagógica não se limita ao momento puramente escolar, mas se coloca em todo o arco força social, cria-se o "bloco histórico': (idem, pp. 451-452. Grifos nossos).
das atividades e das iniciativas 129 •
O papel da direção é garantir o processo de reforma intelectual e moral fazendo
É nesse sentido que Mordenti (2007a) afirma que a questão «Pode o subalterno com que as massas possam superar o momento econômico-corporativo e atingir o
falar?" é subversivamente radical. Subalterno é aquele que não pode falar, que não ético-político, não apenas como indivíduo, mas como massa. Tarefa democrática
tem voz. Isto se coloca no contexto de outra questão decisiva. que exige a constituição de um organismo que permita essa tradutibilidade e pro-
ceda à construção dos intelectuais da classe a partir das experiências concretas da
Apenas tal pressuposição que pode motivar a inaudita resposta que Gramsci fornece à mais inaudita subjetividade desta. Entre o intelectual-dirigente e o membro ativo da classe não
das perguntas que um dirigente comunista jamais se colocou, uma pergunta aos limites do absurdo
na concepção leninista do Partido e que Gramsci, pelo contrário, define como "questão teórica
deve haver oposição. Se isto ocorre, se se rompe a dialética direção-base, a questão
fundamental": Apresenta-se uma questão teórica fundamental, a este propósito: a teoria moderna [. .. ] da crise orgânica no seio da própria classe está colocada. Na construção do partido
pode estar em oposição com os movimentos ''espontâneos'' das massas? (1975, pp. 330-331). da classe qualquer soldado - na metáfora gramsciana - deve poder vir a ser capitão o
que exige um permanente fluxo democrático no interior desta organização. Cercear
A resposta que Gramsci dá (e nenhum outro comunista depois dele dará) é tão isto implica a esterilização e a burocratização do partido, a imposição de um cen-
mais resoluta quando grávida de consequências fundamentais para a teoria do Par- tralismo burocrático sobre o movimento real da classe: significa a morte do partido.
tido e para a própria ideia de revolução: Textos e intervenções políticas se traduzem em linguagens distintas (nacional do-
minante/nacional dominada). Em Reds, p. ex., o camarada Zinoviev fala sobre a re-
Não podem estar em oposição: entre eles existe uma diferença "quantitativà: de grau, não de volução para membros de uma nação islâmica. Ele fica estupefato com a recepção
qualidade; deve ser sempre possível uma "redução': por assim dizer, recíproca, uma passagem de
destas idéias. O camarada-tradutor explicou que quando ele falava revolução sua fala
uns aos outros e vice-versa. (idem, p. 330).
era vertida como jihad. Sem dúvida ambas tratam da libertação, mas em âmbitos
distintos, «traduzindo" historicidades, culturas, e subjetividades próprias, e com pa-
Essa diferença se e quando se apresenta gera o que chamamos crise de direção. Tem
râmetros distintos: religioso, político, etc. Conseguiu-se uma adesão imediata, mas
razão Mordenti ao afirmar que a pergunta sobre a possibilidade do subalterno falar não
falsa. Isto poderia, no máximo, abrir uma via de conversa entre culturas distintas que
é apenas subversiva, mas «não é precisamente esta a parte mais original e escandalosa
não deveria ser meramente instrumental.
do pensamento de Gramsci? Este raciocina sobre tal problema, ou seja, como construir
Ainda sobre a questão da autonomia dos subalternos relembremos a já citada ad-
a hegemonia enquanto ainda perdura o poder do adversário' (2007a). Lembremos que
vertência gramsciana segundo a qual «o ponto de partida deve ser sempre o senso
para ele trata-se da passagem «do saber ao compreender ao sentir e vice-versa do sentir
comum, que é espontaneamente a filosofia das multidões as quais se trata de tornar
ao compreender ao saber" (Gramsci, 1975, p. 451). Isto por que
homogêneas filosoficamente" (Gramsci, 1975, pp. 1397-1398). O senso comum que
o elemento popular "sente': mas não compreende, nem sabe; o elemento intelectual "sabe': mas não por si só já é uma superação de formas populares tradicionais (como o folclore, p.
compreende e especialmente não sente. Os dois extremos são então o pedantismo e o filisteismo ex.) expressam a construção do real pelas classes subalternas ou instrumentais.
de um lado e a paixão cega e o sectarismo do outro. Não que o pedante não possa ser apaixonado, Canclini (1983, p. 11) avança alguns elementos importantes para o debate entre as
129 Moggia, in Gramsci, 1988, XXIII. culturas populares e cultas:
74 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 75

o que é a cultura popular: criação espontânea do povo, a sua memória convertida em mercadoria enquanto reivindicação do pensamento e dos costumes populares, suscitando o seu estudo e a sua
ou o espetáculo exótico de uma situação de atraso que a indústria vem reduzindo a uma curiosidade defesa após ter sido amplamente excluído do saber acadêmico. Mas esta exaltação se baseou num
turística? entusiasmo sentimental, que não conseguiu sustentar-se quando a filologia positivista demonstrou
A solução romântica: isolar o criativo e o artesanal, a beleza e a sabedoria do povo, imaginar de que os produtos do povo [...] - originam-se tanto da experiência direta das classes populares como do
modo sentimental comunidades puras, sem contato com o desenvolvimento capitalista [... ] seu contato com o saber e a arte "cultos", sendo a sua existência, em boa parte, um resultado de uma
[... ] o popular é o outro nome do primitivo: um obstáculo a ser suprimido ou um novo rótulo ''absorção degradada" da cultura dominante. (idem, p. 44. Grifos nossos).
pertencente a mercadorias capazes de ampliar as vendas a consumidores descontentes com a
produção em série. Nessa perspectiva os conceitos de popular e nacional são identificados. O nacional
[... ] O passado se mistura com o presente, as pessoas significam o mesmo que as pedras: uma é identificado com a forma política que os dominantes impõem ocultando as desi-
cerimônia do dia dos mortos e uma pirâmide maia são cenários a serem fotografados.
gualdades concretas e a subsunção destas a um discurso heterônomo.

Seguramente o popular é um pouco de tudo isso, mas é visto, acima de tudo, como Entendemos que a investigação dos conflitos interculturais não pode estar orientada pela preocupação
o diferente em contraposição ao moderno, entendido este como o "nosso" padrão de em exaltar a cultura popular, nem pela intenção de se apegar de modo conservador ao aspecto
gosto, linguagem e práticas as mais variadas chanceladas pelas formas dominantes imediato e ao sentido que a própria comunidade atribui aos fatos e nem pelo interesse de adaptá-
na nossa sociedade, aceitáveis para a conformação da vida. O popular é o reino do la à modernização. A questão decisiva consiste na compreensão das culturas populares através da
sua conexão com os conflitos de classe e com as condições de exploração sob as quais estes setores
fragmento conservado de experiências anteriores que não se coadunam com a sis- produzem e consomem. [... ] Sintetizando: as culturas populares são o resultado de uma apropriação
tematicidade do moderno. É frequente que os dominantes pensem o popular como desigual do capital cultural, realizam uma elaboração específica das suas condições de vida através
um modo de vida; mas não o "seu" modo de vida. Conviver com ele só subsumindo- de uma interação conflitiva com os setores hegemônicos. (idem, pp. 46, 43-44. Grifos nossos)
-o ao mundo oficial, o dos dominantes. A câmera digital, p. ex., é um sucedâneo fácil,
l3l
imediato e descartável do contato com essas formas pretéritas e relativamente sim- A cultura popular está vinculada subalternamente à cultura dos dominantes •
páticas (do ponto de vista mercantil-turístico é claro). Bonitos vistos de longe, repul- Compreender suas possibilidades e limites é compreender a racionalidade classista
sivos quando insistem (como os pobres em geral) em chegar perto de nós, pensam que preside as sociedades em que elas se encontram e as formas pelas quais são vi-
muitos pós-modernos para quem a vida é pouco mais que uma realidade virtual. vidas material e simbolicamente. É preciso levar em consideração uma importante
Bonitos quando matriz lucrativa de ONGs (ver Quanto vale ou É por quilo?) 130, inde- determinação: o caráter desagregado e errático que os grupos subalternos assumem
sejáveis quando vendem bala ou querem limpar o vidro dos nossos carros nos sinais. pela sua própria posição na totalidade social:
O popular pode ser ainda uma espécie de biografia da prática e da sexualidade dos
senhores (Casa Grande e Senzala), bondade senhorial cuja forma mais aperfeiçoada na atividade histórica destes grupos é a tendência à unificação ainda que sobre planos provisórios,
mas esta tendência é continuamente despedaçada pela iniciativa dos grupos dominantes, e,
é a herrenwolk democracy (Losurdo). Devemos, diz Canclini, compreender que a
portanto, pode ser demonstrada apenas no ciclo histórico completo, se esse se conclui com um
sucesso. Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se
[... ] cultura popular não pode ser entendida como a "expressão" da personalidade de um povo, rebelam e se insurgem [...] Todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos tem
porque tal personalidade não existe como uma entidade a priori, metafísica, e sim como um por isso valor inestimável para o historiador integral. (Gramsci, 1975, pp. 2283-2284. Grifo nosso).
produto da interação das relações sociais. Tampouco a cultura popular é um conjunto de tradições
ou de essências ideais, preservadas de modo etéreo [... ]. (p. 42)
Como se coloca então a questão da unidade dos subalternos?
Ainda com Canclini percebemos a utilização política dessa noção por parte dos
As classes subalternas, por definição não são unificadas e não podem unificar-se até que se possam
setores e classes dominantes: tornar 'Estado': sua história, portanto, está ligada à da sociedade civil, é uma função 'desagregada'
e descontínua da sociedade civil e, por este trâmite, da história dos Estados ou grupos de Estados.
Os românticos conceberam o povo como uma totalidade homogênea e autônoma, cuja criatividade É necessário, portanto, estudar: 1) a formação objetiva dos grupos sociais subalternos, pelo
espontânea seria a mais alta expressão dos valores humanos e o modelo de vida ao qual deveríamos
131 "Um ponto firme da análise de Pasolini é o fato evidente que as duas culturas, a da burguesia e
regressar. A crença na cultura popular como sede autêntica do humano e a essência pura do
a do povo, como também as duas histórias, a burguesa e a proletária, estão unidas, ~m co~sequ.ência
nacional, isolada do sentido artificial de uma "civilização" que a negava, teve certa utilidade
de um 'aburguesamento total e totalizante' (Pasolini 1976, p. 80 [Lettere luterane, Emaudl, Torm~]).
130 Bianchi, 2005. Aqui temos uma outra questão vital que dada as dimensões deste livro não po- A responsabilidade ideológica de tal unificação é, segundo Pasolini, de todos aqueles, intelectuais e
deremos trabalhar. A questão da natureza das ONGS: sua relação com as classes e sua necessária partidos de esquerda, que, de boa ou má fé, acreditaram dever resolver o pr~blema da pobrez~ subs-
dec.ifração._De q~e estamos realmente tratando? A rigor ONG é uma etiqueta que cabe em qualquer tituindo a cultura e os modos de vida das classes pobres pela cultura e habItos da classe dommante;
entIdade nao ofiCialmente estatal: a Escola Nacional Florestan Fernandes, a CONLUTAS, os sindica- isto é acreditaram, diz Pasolini, que a história não fosse e nem pudesse ser senão a história burguesa:'
tos pelegos, a Rede Globo, a UDR etc. (Ponzio)
76 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 77

desenvolvimento e as alterações que se verificam no mundo da produção, sua difusão quantitativa e cesso de elaboração autônomo estamos localizando o papel das direções. As formas
a sua origem de grupos sociais pré-existentes, dos quais conservam por certo tempo a mentalidade, pelas quais as classes elaboram suas experiências-soluções devem ser sempre consi-
a ideologia e os fins; 2) a sua adesão ativa ou passivamente às formações políticas dominantes,
deradas, sem negar, é claro, a importância decisiva do partido. O partido por maior
as tentativas de influir sobre os programas dessas formações para impor reivindicações próprias
e as conseqüências que tais tentativas tiveram na determinação de processos de decomposição que seja a aderência à sua classe tende a elaborar no seu seio uma linguagem e uma se-
e de renovação ou de neoformação; 3) o nascimento de novos partidos dos grupos dominantes mântica específica que muitas vezes se autonomisam em relação àquela. Manter sem-
para manter o consenso e o controle dos grupos subalternos; 4) as formações próprias dos grupos pre a troca de experiências entre massas e partido é decisivo para criar a possibilidade
subalternos para reivindicações de caráter restrito e parcial; 5) as novas formações que afirmam
da emancipação.
a autonomia dos grupos subalternos, mas nos velhos quadros; 6) as formações que afirmam a
autonomia integral, etc. (idem, p. 2288). Um belo exemplo dessa questão pode ser vista na experiência dos Conselhos de
Fábrica de Turim. Uma leitura reducionista tende a glorificar o papel da direção
A desagregação se dá em função da subalternidade: ao serem organizadas no / sobre a ação das massas. Nessa perspectiva o partido tem sempre razão acima da
pelo Estado do outro (do dominante) as classes subalternas passam a ser prisioneiras história. Gramsci fala permanentemente na construção dos intelectuais, vale dizer
daquela ordem cabendo-lhes (mantidas as regras vigentes) disputar, no melhor dos dos dirigentes. Estes não podem ignorar a experiência concreta das classes em luta,
casos, uma posição menos desvantajosa. Visível na luta sindical (dada a sua natureza pois, caso contrário, estariam negando o real como laboratório da história. Direção
concorrencial), tornada invisível na política, essa desagregação coloca tarefas diferen- e base devem estar permanentemente em contato: é a dialética espontaneidade-di-
tes para as diferentes formas de organização dos subalternos. O estado, instrumento reção consciente.
privilegiado de intervenção da prática social dos dominantes, encontra aqui um dos
pontos de menor resistência. o movimento turinês foi acusado de ser "espontaneistà' e "voluntaristà' ou bergsoniano (!). A
acusação contraditória, analisada, mostra a fecundidade e a justeza da direção impressa. Esta
Construir a autonomia dos subalternos significa que estes devam ter homogenei- direção não era "abstrata", não consistia no repetir mecanicamente fórmulas científicas ou teóricas;
dade não apenas no plano cultural, mas, sobretudo, romper/quebrar a estruturação não confundia a política, a ação real com a desquisição teorética; ela se aplicava a homens reais,
da totalidade anterior. Em oposição à forma de conhecimento dita popular se coloca formados em determinadas relações históricas, com determinados sentimentos, modos de ver,
a filosofia, a religião, etc., que são sistematicidades discursivas dotadas de grande ho- fragmentos de concepções de mundo, etc., que resultavam das combinações "espontâneas" de
um dado ambiente de produção material, com o aglomerar-se "casual" nele de elementos sociais
mogeneidade, ainda que admitam contradições no seu seio. O discurso dominante
disputados. Este elemento de "espontaneidade" não foi descuidado e muito menos desprezado: foi
é possuidor desta capacidade e por isso consegue desorganizar o discurso dos subal- educado, foi dirigido, foi purificado de tudo o que de estranho podia torná-lo submisso, para torná-
ternos, organizando-o dentro do seu. Contra o errático do popular se contrapõe as lo homogêneo, mas de modo vivo, historicamente eficiente, com a teoria moderna. (1975, p. 330.
regras da prática social estabilizada dos dominantes. Trata -se de uma batalha hege- Grifo nosso).
mônica praticada por intelectuais, ou seja, pelas direções das classes em presença.
Forma mais elevada do processo da luta de classes essa batalha orienta e dá sentido A afirmação é precisa. A repetição abstrata de uma teoria, por mais rica e funda-
às ações classistas. A gramática e a norma culta de um lado e a forma popular (sem- mentada que seja, não produz resultados automaticamente. Ela ganha significado e
pre vista como pitoresca ou grosseira) de outro traduzem no plano da linguagem as força quando mergulhada na experiência concreta das massas. Contrariamente a isto
distinções de classe. nos defrontamos com uma espécie de teologia laica. Os dirigentes e as bases devem ter
A ideia que a teoria é externa aos subalternos, que vem de fora, dos intelectuais a capacidade de ler o real e de elaborar seus projetos de autonomia e de transformação.
burgueses, atua no sentido da permanência da subalternidade ao negar a história e a
Esta unidade da "espontaneidade" e da "direção consciente': ou seja, da "disciplinà' é precisamente
luta de classes como laboratórios da prática e da teoria, colocando os subalternos em a ação política real das classes subalternas, enquanto política de massa e não simples aventura de
uma posição de espera incompatível com suas necessidades. Contrariamente a isto grupos que se reclamam à massa. Apresenta-se uma questão teórica fundamental, a este propósito:
Gramsci afirmava como "critério metodológico" a tese segundo a qual "Todo traço a teoria moderna pode estar em oposição com os sentimentos "espontâneos" das massas? [... ] Não
de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deveria por isto ser de valor pode existir oposição: entre elas há diferença "quantitativà: de grau, não de qualidade: deve ser
possível uma "redução" por assim dizer, recíproca, uma passagem de uns a outros e vice-versa. [... ]
inestimável para o historiador integrar (1975, p. 2284. Grifo nosso). Descuidar, e pior, desprezar os movimentos ditos "espontâneos': isto é, renunciar a dar-lhes uma
A afirmação de uma verdade externa e sobre a classe e suas lutas ou o determinis- direção consciente, elevá-los a um plano superior inserindo-os na política, pode ter mesmo
mo foram e são "alternativas" (sic) ao processo de elaboração autônomo da classe.
re estaria conformado pela contradição - colocada á margem da práxis como algo similar à astúcia
Tratava-se, de fato, da teoria da inércia do proletariado132. Quando falamos em pro- da razão hegeliana - entre as todo-poderosas forças produtivas (divorciadas da classe operária, asso-
ciadas á tecnologia e aos instrumentos técnicos de trabalho) e às relações de produção (transformada
132 "A história marcharia então por si só, como uma locomotiva com piloto automático cujo softwa-
em relação homem-coisa e não homem-homem). Koham, 1997, pp. 17-18.
78 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 79

conseqüências muito sérias e graves. Ocorre quase sempre que a um movimento "espontâneo" Existe correlação entre os informados, os possuidores de TV a cabo e os que têm
das classes subalternas se acompanhe um movimento reacionário da direita da classe dominante, apego a culturas históricas e dominantes? E, da mesma forma, existe correlação entre
por motivos concomitantes: uma crise econômica, por exemplo, determina descontentamento
os "entretidos" que possuem apenas a TV aberta e dominados? Sim, mas elas devem
nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massa por um lado, e por outro determina
complôs dos grupos reacionários que aproveitam a debilidade objetiva do governo para tentar ser pensadas de maneira não mecânica. Em cada um desses pólos existem diferenças
golpes de Estado. Entre as causas eficientes destes golpes de Estado deve colocar-se a renúncia de internas e mesmo contradições 133 •
grupos responsáveis em dar uma direção consciente aos movimentos espontâneos e fazê-los então Explicita-se, assim, o momento atual da desagregação dos subalternos. Não se trata
tornar-se um fator político positivo. (idem, p. 331. Grifo nosso).
mais apenas do enclausuramento daquele processo no eterno ontem, mas na formatação
no interior do chamado moderno. Longe de ser uma ruptura com o esquema gramsciano
A tarefa dos intelectuais dos subalternos é pois a construção com aqueles do discurso
é antes sua confirmação atualizada. A questão permanece embora atualizada. A cultura
autônomo. Discurso permanentemente atento à fala vigente dos dominantes e de outras
popular é marcada não pelo isolamento, mas pela inundação de informações (da cul-
classes o que permite ler os pontos de debilidade e de tensão das práticas dominantes
tura da elite ou nela retraduzida) desde que tenham ... recursos financeiros para tal. O
e assim construir seu projeto de revolução, de constituição da sua sociabilidade. Isto é,
próprio fato de que a informática tenha hoje um peso grande nas atividades profissio-
"tornar'subjetivo' o que é dado 'objetivamente '''. (idem, p. 138. Grifo nosso).
nais e de que a tecnologia se torne mais e mais acessível a uma população ampliada não
Analisaremos mais adiante a relação entre direção e base, vale dizer, o partido.
oculta aquilo que o próprio Canclini já denunciara: o controle ideológico. Colocam-se
Ressaltemos, porém, desde já a afirmação gramsciana segundo a qual a disciplina é a
perguntas do tipo quem comanda? Como o faz? E, fundamentalmente, quais as mensa-
unidade entre "espontaneidade" e "direção consciente': O PCI "usou" essa questão de
gens veiculadas neste espetáculo? (ver Debord, 1972).
modo a defender uma posição de aliança com setores ditos democráticos em óbvio
Spivak134 chama a atenção para uma caracterização da subalternidade nos países
prejuízo dos movimentos de massa que ocorriam à margem do partido.
pós-coloniais:
~om ter~inologia gramsciana, este dado de fato se traduziu em uma unilateral acentuação
mterpretatlva dos elementos de "direção consciente" (ou seja, da política de partido por um lado, [Esta] sequer pode ser identificada com "pobrezà' ou com "classe proletárià: categoria rica de
da cultura manifestada pelos "intelectuais democráticos" por outro, com a abertura de uma "luta sentido histórico na Europa, mas pobre e inaplicável em realidades pré-industriais caracterizadas
de hegemonià' entre política e cultura) diante do valor da "espontaneidade': e portanto também da por níveis de subalternidades estratificados e sobrepostos, lacerados por conflitos religiosos ou
luta de classe, da conquista de "autonomià' pelos "grupos sociais subalternos': de uma concepção tribais, linguisticamente não homogêneas. (Gallo, 2005, p. 76)
dialética e não tradicional-populista de "povo': (Baratta, 2004, pp. 68-69).
Se o uso de "classe proletárià' pode ser problemático, dada a incipiente indus-
Gramsci trabalha a questão da separação/corte existente entre a cultura popular trialização de vários daqueles países, o mesmo não pode ser aceito para ((pobrezà:
e.a cultura dos dominantes. Essa cisão é um dos elementos que atuam sobre o gra- apesar de a rigor ela não ter significação teórica e ser semanticamente polissêmi-
dIente cultural: do folclore à filosofia e à religião, através do senso comum e do bom ca prestando-se às mais diversas interpretações (palavra =I:- conceito, como veremos
senso. A sistematicidade própria das formas cultas e do caráter desagregado das for- adiante). Quanto ao uso de classe proletária ela não tem interpretações equívocas,
mas ideológicas dos dominados decorre do processo de formação dos intelectuais mas diferenciações concretas que a análise das formações sociais pode conferir rigor
de cada uma dessas classes e, obviamente, da posição que elas ocupam no bloco do teórico, só se tornando uma impropriedade quando vira mito fundacional tal como
poder que comanda a formação social. proclamado pelos deterministas.
Canclini (2000) questiona essa formulação. Confundindo forma e conteúdo ele Mesmo no interior dos países industrializados a classe proletária não pode ser vis-
afirma outra maneira de encarar o problema apontando que: ta univocamente, apresentando formas históricas, nacionais, regionais e geracionais
133 Referência ao célebre livro sobre Robinson Crusoé. Carta a Giulia Schucht, 1-7-1929. Sobre o
[... ] essa tensão não tem o aspecto da antiga oposição entre cultura popular e de elite. As distinções papel dos meios de comunicação na formação da imaginação das massas é interessante considerar
se constroem ~~tre os que ~cessam a televisão aberta e gratuita, quase sempre nacional, e os que a lembrança gramsciana: "Creio mesmo que uma vida infantil como a de 30 anos atrás hoje seja
possue~ ~ele~lsao a cabo, Dlrect TV, antenas parabólicas e recursos informáticos para comunicar- impossível: [... ] O rádio e o avião destruíram o Robinsonismo, que foi o modo de fantasiar de tantas
~e. A dlsJuntlva e~tre cultura de elite e popular tende a ser substituída pela distância entre
gerações. A própria invenção do Mecano indica como a criança se intelectualize rapidamente; o herói
não pode ser Robinson, mas o policial ou o ladrão científico, pelo menos no Ocidente". (1972, p. 287).
l~fo~~ados e. entretIdos, ou entre os que têm capacidade de memória mantendo o apego a culturas
134 Gayatri Charkovorty Spivak, bengalesa, professora de literatura em New York, um dos princi-
hlstoncas (sejam cosmopolitas ou de tradição local) e os que se dispersam na vertigem de consumir pais nomes dos cultural studies, dos subalternal studies e autora da famosa questão: "Pode o subal-
o que os meios comerciais e a moda consagram a cada semana e declaram o resto obsoleto. (p. 6). terno falar?" pronunciada durante o Convegno Cultura planetarie? Prospettive e limiti dell'analisi
culturale nella contemporaneità, Istituto Gramsci del Friuli Venezia Giulia e Facoltà di Lettere e
Filosofia dell'Università di Trieste, 18 e 19 de fevereiro de 2005.
80 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 81

que não podem ser desprezadas na análise concreta. Robert Lenhardt (1978) sa- Rivera (2011e) analisando as contradições italianas marcadas pela presença de
lientou entre outras questões como um operário francês menos qualificado recebe emigrantes forçados (africanos, roms, turcos, etc.) 137 comenta sobre um "atentadd'
mais do que um estrangeiro com maior capacitação. Günter Wallraff (1988) mostra religioso contra uma estátua da Madona "tratado pela mídia como "emblema perfei-
o mesmo quadro na Alemanha. Os estrangeiros não recebem apenas salários meno- to da "guerrilhà: A leitura ideológica dos que se subtraem à esse discurso
res, mas sempre exercem as piores e mais perigosas tarefas. O racismo 135 não é uma
excrescência do capitalismo, mas uma necessidade para ele. A racialização faz parte [... ] aquele gesto iconoclasta, em sentido literal, é intolerável porque inconscientemente repropõe a
semântica profanatória - e racista - do nazismo e do neonazismo, hoje replicada pelo leguismo [n.t
do modo de vida e da organização do trabalho. Há uma ambiguidade vital: se por um
membros da Lega Nord].
lado eles fornecem força-de-trabalho mais e mais barata, por outro são passíveis de [Têm] cultura de estádio e aqueles acostumados a videogames e uma certa afasia, que leva a
criminalização e servem de justificativa para problemas crônicos do capitalismo como substituir comunicação verbal ou gestual por slogans os petardos e sinalizadores o gosto da ação
o desemprego. Veja-se, por exemplo, as políticas de Sarkosy, Merkel e Berlusconi. chamativa [eclatante], não importa se olhada, compreensível ou medida em relação aos objetivos.
Falamos que o racismo é uma das matrizes constitutivas do capitalismo: ele mar- Certo, sabemos bem [aprendemos] - com os riot ingleses e as revoltas nas cités francesas - que a
colocação em cena da violência é também um instrumento para romper o muro da segregação,
ca desigualdades mesmo no interior de uma classe. Com isso introjeta, por vezes,
tornar-se visíveis no espaço público, atrair a atenção da política e das media: em definitivo, um auto
ódios, ciumeiras profissionais, regionalismos, nacionalidades, etc. Sobre isso ver atestado de identidade. (idem)
como os italianos do norte tratavam do Sul (lembrando sempre da presença de forte
influência árabe). E é marcado quase sempre por formas jurídicas que dão um ar de Vemos, assim, como as questões de nacionalidade, culturas e tradições afetam a
legitimidade ao que é simplesmente brutalidade legalizada. Nos Estados Unidos, por constituição da classe. Além disso, o processo de industrialização (que não se reduz
exemplo, o apenas ao aumento do número de fábricas) nos países dominantes e naqueles que
mesmo tendo construído sua industrialização são subalternos na Ordem do Capital.
princípio republicano de igualdade está subordinado ao de "raçà: pois o "melting pot" [em inglês no
Por fim lembremos que todo conceito é historicamente datado e situado o que não
texto] é só para os brancos, embora a noção de "brancos" esteja sendo flexibilizada, pela aceitação
dos católicos e dos judeus. A noção de "raçà' não foi, porém, de todo, dissociada da religião, pois, impede que possua (no mais alto nível de abstração) uma universalidade.
hoje, os muçulmanos árabes são um dos principais focos do racismo americano. Houve melhor
aceitação (ainda que desconfortável) de alguns "não brancos': como os hispânicos de pele clara. A
quantidade de casamentos inter-raciais, especialmente entre orientais e os de origem anglo-saxã
tem aumentado. Os negros, porém, continuam a ser pesadamente estigmatizados.
Nos Estados Unidos, o critério da 'gota de sangue", leva à classificação como negro a quem tiver algum
antepassado negro. Em muitos estados, como Mississipe, a lei prevê que é negro aquele que tiver um
oitavo de ''sangue'' negro. Em outros estados esta percentagem é de um quarto. O não reconhecimento
do mulato, nos Estados Unidos, parte da idéia de impureza do negro, como se "raça"fosse uma espécie
de doença transmitida pelo sangue. {Zarur, 2005. Grifo nosso) 136

135 Sobre o racismo italiano ver Rivera et alii, s/d.: "a situação dos "rom na Europa ocidental é grave.
O recorde de condenações recebidas pela Grã Bretanha da parte da Corte Européia para os Direitos
Humanos em casos que se referem aos pertencentes da comunidade cigana inglesa, os campos nô-
mades construídos pelas autoridades italianas [... ] são o produto de práticas administrativas racistas,
os ataques aos refugiados rom por parte de grupos neo-nazistas na Alemanha e na Itália por parte
dos fascistas, nortistas e delinquentes de todo tipo, além das taxas de desemprego e sub-emprego dos
rom bem acima da média dos respectivas países, são o testemunho de quanto a perseguição aos rom
tenha uma dimensão europeia:' (Sigona, 2009)
O ex-presidente do Banco Mundial, James Wolfenson em conjunto com o financeiro Georges Soros,
da "Década para a Inclusão Social dos Rom" afirmava: "Os rom estão entre os que perderam mais
na transição do capitalismo a partir de 1989. No início dos anos 90 foram os primeiros a perder o
trabalho, sucessivamente lhe foi impedido de reentrar na força de trabalho por causa da sua forma- 137 ''A uma pessoa de bom senso parece estridente a contradição entre a necessidade de mão-de-
ção profissional insuficiente e de uma discriminação perversà: {Wolfenson e Soros, "Why the Roma -obra e o fechamento de fato das fronteiras eurpéias, a sua crescente militarização [... ] Na realidade
Matter in Europe': citado por Signona, 2009, p. 2.. esta aparente contradição é parte de uma estratégia econômica e política: serve para incrementar o
136 Sobre isso ver a obra de Lolc Wacquant. Uma demonstração empírica disto pode ser visto com mercado do trabalho nero e reforçar relações de tipo neocolonial entre a União européia e países do
a tragédia anunciada do Katrina. Lembremos também que a eugenia nasceu nos Estados Unidos e terceiro mundo e no interior de cada um Pais europeu, entre a maioria e a minorias. Tduo isto, cer-
não na Alemanha nazi. tamente, de modos variados segundo os Paises, suas histórias, suas culturas políticas:' (Rivera, 2007)
INTELECTUAIS E SENSO COMUM

Nunca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e
cultura. E existe um estranho paralelismo entre esse esboroamento generaliza-
do da vida, que está na base da desmoralização atual, e a preocupação com a
cultura, que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir a vida.

Antonin Artaud

Costumo dizer que uma das funções da sociologia é ensinar uma espécie de
judô simbólico contra as formas modernas de opressão simbólica.

Pierre Bourdieu

Mordenti (2007a) chama a atenção para o fato de que nações e poderes aparecem
como grandes narrativas encarregadas de manter a coesão, o sentido e a direção de
cada forma de dominação. Ao falar em grandes narrativas ele não pratica, de forma
alguma, o termo como forma de desqualificação e revisionismo histórico praticado
pelos pós-modernos; ele os usa em sentido inteiramente oposto, utiliza-o como afir-
mação de uma historicidade. Essas

[... ] práticas discursivas, narrativas, ou melhor, as "grandes narrativas" compartilhadas pelos


subalternos são necessárias aos poderes tanto quanto as polícias e os exércitos, se não fosse por
outro motivo [... ] mesmo na mais exclusiva, coercitiva e "dominante" das ditaduras, pelo menos
as polícias, os exércitos e os membros dos aparelhos repressivos devem, de algum modo, estar
"hegemonicamente" persuadidos pelo poder a que servem, isto é, devem compartilhar a narrativa
do mundo proposto/imposto por aqueles poderes. Por isto as ditaduras têm necessidade de heróis.
(Grifo nosso)

Nesse sentido palavras como liberdade, igualdade, ordem, cidadania e suas formas
discursivas correlatas são vitais para os dominantes. Gramsci, em 1917, analisou a
palavra ordem e seus elementos constitutivos:
84 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 85

A palavra "ordem" tem um poder taumatúrgico; a conservação das instituições políti~as é conferida em te também um conjunto de teses acadêmicas sobre o assunto indicando o direcio-
grande parte a este poder. A ordem presente se apresenta como algo harmoniosamente coordenado,
namento acima citado. Nelas
estavelmente coordenado; e a multidão dos cidadãos hesita e se atemoriza na incerteza do que uma
mudança radical possa trazer. [... ] Forma-se na fantasia a imagem de algo violentamente dilacerado;
[... ] a sociedade civil é o lugar da hegemonia, a arena onde a classe dominante amplia e reforça o seu
não se vê a possibilidade de uma nova ordem, melhor organizada do que a velha, mais vital do que
poder com meios não violentos. [... ] Existe uma forte tendência em sublinhar o caráter não violento
a velha, porque ao dualismo se contrapõe a unidade, a imobilidade estática da inércia à dinâmica
e não coercitivo das relações hegemônicas que se verificam na sociedade civil e, ao mesmo tempo,
da vida movendo-se por si mesma. Vê-se apenas a laceração violenta, e o ânimo temeroso detém-se
ignorar o fato de que são relações de poder desiguais; relações que reforçam e perpetuam o controle
no medo de perder tudo, de ter diante de si o caos, a desordem inelutável. (1982, p. 5. Grifos nossos).
exercido pela classe dominante sobre o Estado. Esta tendência é muitas vezes motivada pelo desejo
de apresentar Gramsci como pensador "democrático': (idem)
As palavras dessa "grande narrativà' tornaram -se, em conjunto, meta -linguagens
constituidoras do real e nos remetem a um problema que percorrerá nosso texto: o O processo da mutação de um conceito criado por um marxista revolucionário para o
da interpretação. A leitura ainda que aparentemente conceitual pode, quando sepa- amplo dicionário reacionário da política dos organismos internacionais (entre outros) é
rada da sua problemática, ter seu sentido não apenas alterado, mas produzir efeitos tornado possível por uma anfibologia. A expressão "sociedade civil" recobre conteúdos
políticos contraditórios aos interesses das classes em presença. Um belo exemplo são e práticas semanticamente diversos. O problema maior se dá quando a esquerda aceita
as leituras que se fazem de sociedade civil em Gramsci, para quem ela é um desdo- a mutação sendo assim pautada e hegemonizada pelo discurso liberal matriz original
bramento metodológico do conceito de Estado. No entanto ela é lida, mesmo por dessa categoria. Gramsci coloca claramente a questão ao afirmar que
intelectuais que se reclamam do marxismo, como entidade separada de sociedade
política e transformada em elemento que permite/facilita a captura liberal da subje- Os Cadernos do Cárcere se colocam explicitamente em guarda contra o "erro teórico" que,
tividade antagonista. Buttigieg (1998, p. 59) comenta: ao pesquisar a relação entre sociedade civil e Estado, transforma uma "distinção metódica"
em "distinção orgânicà: esquecendo que, "na realidade efetiva, sociedade civil e Estado se
identificam" (Q, 1590)':
Outro aspecto do pensamento político-social atual que pode ser examinado criticamente, partindo das
reflexões gramscianas sobre a subalternidade é a suposição (seria melhor dizer a ilusão ou a ficção)
muito difundida segundo a qual ''sociedade civil" é a chave mágica para dar remédio aos problemas Assim, do erro teórico passa-se à capitulação ideológica como evidencia a última
não apenas políticos e sociais, mas também econômicos de cada sociedade, em qualquer parte do frase de Buttigieg, acima citada. Clarifica-se, assim, o problema gramsciano da tra-
mundo. (Grifo nosso) dução que permite tratar linguagens, códigos, campos epistêmicos, etc., levando
sempre em conta a definição de ortodoxia, isto é, de que o marxismo se basta a si
A leitura da sociedade civil como lugar do consenso e em oposição ao Estado não é mesmo não necessitando epistemologias externas e contraditórias com ele138. Para a
apenas não-gramsciana, mas profundamente anti-gramsciana: poderá perfeitamen- consolidação da lógica do novo projeto, Gramsci acentua, seguidas vezes, que faz-se
te "casar-se" com teorias de governança responsável, responsabilidade fiscal e demais necessário destruir as condições de existência do projeto anterior 139, não bastando
manobras teórico-práticas de dominação do capital em sua fase atual. Há aqui uma apenas criticá-lo; não se trata de um debate acadêmico, mas do uso de um bisturi
questão que merece, é claro, um aprofundamento que não posso aqui e agora fazer. teórico.
Quando falamos em consenso imaginamos ''acordo''. Contudo consenso pode ser enca- A linguagem política, solo no qual se expressam possibilidades históricas, requeri
rado como obter o consentimento, isto é, obter a obediência. Esta, se e quando legítima, permite/interdita, dependendo da relação de forças entre as classes em presença, a
retiraria a ambiguidade aqui presente. Se não o é, revela-se no seu oposto: consentir obtenção do máximo de consciência de seus projetos. Gramsci elaborou na análise
sem consenso. Não se trata de um jogo de palavras, mas de elementos vitais para a da noção de ordem uma preciosa análise da eficácia da ideologia, enquanto materia-
compreensão e a prática da política. lização/ organização das relações políticas. A palavra ordem aparece datada política
Organismos internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Inter- e ideologicamente. Concebido o presente como ordem, como "naturalidade", somos
nacional e a UNESCO abordam essa temática cuja finalidade é desarmar objetiva levados a pensar o diferente, o diverso, como violência, caos, artificialidade, enfim
e subjetivamente a consciência antagonista, a dos trabalhadores. Encontramos na 138 Referimo-nos às tentativas de usar o kantismo como epistemologia do marxismo seja pelos
página do Banco Mundial menção a milhares de documentos que tratam da socie- revisionistas alemães do final do OUocento bem como a de ColleUi (1975).
dade civil. Citaremos apenas dois que nos parecem altamente ilustrativos: "Prom 139 Ponto de partida da cultura da ordem burguesa a crítica radical à ordem "natural" feudal: foi
como que "um exército invisível de livros, de opúsculos [... ] que prepararam homens e instituições
confrontation to collaboration: civil society - government - World Bank relations in para a revolução necessárià' (Gramsci, 1980, p. 102. Grifo nosso.) Foi elemento de direção intelectual
Brazil" e "Civil society organizations and the poor: the unfulfilled expectations': Exis- e política das massas. A consciência do proletariado também se forma na crítica dos seus inimigos, os
capitalistas: a cultura socialista, como o iluminismo, terá que ser uma magnífica revolução.
86 Edmundo Fernandes Dias Revol ução passiva e modo de vida 87

como perigo. A ordem burguesa, pelo efeito ideológico da idéia de ordem, se natura- ruptura. Expoentes deste bloco intelectual são Giustino Fortunato e Benedetto Croce, os quais, por
liza, perde sua historicidade, se eterniza, passando a ser vista como o único cenário isto, podem ser julgados como os reacionários mais ativos da península.
Dissemos que a Itália é uma grande desagregação social. Esta fórmula além dos camponeses pode se
possível da vida social, evitando-se assim a questão central: seu caráter classista, bur-
referir também aos intelectuais. É notável o fato de que no Sul, ao lado da grandíssima propriedade,
guês ou proletário. existiram e existem grandes acúmulos culturais e de inteligência em indivíduos singulares ou em
Como anunciamos anteriormente as palavras, pela força da prática das classes, cons- grupos restritos de grandes intelectuais, enquanto não existe uma organização da cultura média.
tituem o real. O problema coloca-se então na relação dos intelectuais com o senso (Idem, p. 155. Grifos nossos)
comum, o folclore e as demais formas de expressão das diversidades culturais, com
a historicidade e a subjetividade das formas de praticar a cultura pelos subalternos. Trata -se do processo de identificação com o bloco do poder e de desidentificação
Gramsci explicita sua posição em carta à Tatiana Schucht, sua cunhada, datada de 17 exercido sobre e contra os camponeses. Entre essa camada pequeno proprietária e
de novembro de 1930: a massa rural não pode haver identificação na medida mesmo em que a primeira
participa como exploradora da segunda e atua como freio às possibilidades/tentati-
Fixei-me sobre três ou quatro argumentos principais, um dos quais é o da função cosmopolita que os vas de subversão camponesa, formando um corpo de intelectuais cindidos daquela
intelectuais italianos tiveram até o setecento, que se divide depois em tantas seções: o Renascimento massa.
e Maquiavel, etc. [... ] a coisa não é nova para mim, porque há uns dez anos escrevi um ensaio sobre
a questão da língua segundo Manzoni e isto me exigiu certa pesquisa sobre a organização da cultura
Cisão que caracterizamos como crise de direção, cisão entre direções e bases no
italiana, desde quando a língua escrita (o assim chamado latim médio, isto é, o latim escrito dos 400 interior do movimento dos subalternos. Este processo pode ocorrer entre os do-
até 1300) se destacou completamente da língua falada do povo, que cessada a centralização romana, se minantes, não o ignoramos. Lembremos que o desenvolvimento da autonomia dos
fragmentou em infinitos dialetos. [... ] assim continuou a existir uma dupla língua, a popular, ou dialetal, subalternos estava referida exatamente à necessidade da própria unidade italiana 140 •
e aquela douta, a língua dos intelectuais e das classes cultas. (Gramsci, 1965, p. 378. Grifo nosso).
A caracterização dos subalternos como possuidores de uma "incapacidade orgâni-
ca': de uma "inferioridade biológica': de uma "barbárie congênita" foi analisada por
Palavras aparentemente estranhas quando escritas por um dirigente do Partido
Gramsci na sua análise da Questione Meridionale. Falamos em crise de direção no
Comunista da Itália e da Internacional Comunista, mais ainda quando sabemos te-
duplo sentido de subordinação dos socialistas aos preconceitos ideológicos da bur-
rem sido produzidas no cárcere fascista onde ele permanecerá até quase sua morte.
guesia (viam os sulistas como i sudici, os sujos) e, por outro lado pela subordinação
O dirigente comunista aparece como que subsumido ao linguista de profissão. Ele já
das direções socialistas à direção burguesa (o giolittismo). Faltava aos socialistas a
anteriormente vinha trabalhando a hipótese das limitações políticas impostas pela
cisão intelectual-povo:
visão da Questione Meridionale como a questão hegemônica par excellence: questão
da terra (reforma agrária e domínio eclesial- questão vaticana). Se aqueles que deve-
o intelectual meridional origina-se predominantemente de uma camada que é ainda muito riam ser sua direção sequer os entendiam ou mesmo os temiam (ver a incapacidade
importante no Sul: o burguês rural, isto é, o pequeno e médio proprietário de terras, que não é dos mazzinianos de proporem um programa radical), os burgueses, por seu lado,
camponês, que não trabalha a terra, que ficaria envergonhado se fosse agricultor, mas que da pouca preparavam -se para o exercício do domínio.
terra que tem, arrendada ou explorada em meação, que precisa viver com certa folga, para mandar
os filhos à universidade ou ao seminário, de dar um dote às filhas que devem desposar um oficial Não só não se tinha a consciência exata da própria personalidade histórica, mas sequer se tinha a
ou um funcionário civil do Estado. Desta camada os intelectuais recebem uma áspera aversão pelo consciência da personalidade histórica e dos limites do próprio adversário (as classes inferiores,
camponês trabalhador, considerado como uma máquina de trabalho que deve ser espremida até o osso estando historicamente na defensiva, não podiam adquirir consciência de si senão por negações,
e que pode ser substituída pela superpopulação trabalhadora; recebem também o sentimento atávico e através da consciência da personalidade e dos limites de classe do adversário: mas precisamente
instintivo do medo louco do camponês e de suas violências destrutivas e então [desenvolveJ um hábito este processo é ainda crepuscular, pelo menos em escala nacional). (Fresu, 2009)
de hipocrisia refinada e uma refinadíssima arte de enganar e domesticar as massas camponesas.
(1971, p. 15l. Grifos nossos)
140 "A radicalidade da análise gramsciana foi, na realidade, bastante menos compartilhada no PCI
Essa composição classista no interior do mundo "rural" atua no sentido de tornar do quanto se poderia crer [... ]: nos limitemos a dizer que a <direità do Partido via naquela análise uma
inaudível as questões da massa camponesa sem terra. Aqui se constitui, para ele, a deslegitimação muito drástica do Estado burguês, e, portanto, o risco de uma posição revolucionária,
enquanto a <esquerdà do Partido lia naquela crítica a reproposição do paradigma do <atraso: que
relação entre intelectuais tradicionais e o sistema de poder da grande burguesia: podia conduzir à subalternidade nos confrontos com os estímulos inovadores do neocapitalismo dos
anos cinquenta e sessenta.
Acima do bloco agrário funciona no Sul um bloco intelectual que praticamente serviu até agora [... ] Permaneceu largamente incompreendida e inutilizada a dura crítica de Gramsci a respeito do
para impedir que as fissuras do bloco agrário se tornassem muito perigosas e determinassem uma papel desenvolvido no Ressurgimento italiano pelas <classes cultas: ou seja, substancialmente, a pro-
pósito do caráter retórico-literário da unidade nacional italiana:' (Mordenti, 2010, p. 2. Grifo nosso)
88 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 89

Gramsci se perguntava também como e porque o povo italiano preferia os roman- sabemos, a cultura é espelho da sociedade. A burguesia internacional, economicamente parasitária,
produz apenas sub-cultura. A classe operária das metrópoles é residual, não é mais um centro,
ces de apêndice (tipo Os Mistérios de Paris, de Eugene Sue) às obras dos literatos
[não é] diretamente o centro. Não é mais a alternativa e então não pode mais produzir cultura
italianos como os Promessi sposi. A resposta encontrava -se na ausência do caráter alternativa. Hoje não se pode encontrar traços de produção cultural sem recorrer à contribuição
popular e de sua presença nestas obras. O povo ao não se reconhecer na literatura dos elementos chamados étnicos, isto é "essencialmente" subalternos. Mas neste modo salta, como
erudita italiana desprezava-a. Perdia-se assim importante elemento de constituição "alteridade" cultural, o próprio conceito de subalterno, que insiste pelo contrário a radicalizar-se do
de uma vontade nacional-popular. Um dos elementos vitais da cisão intelectuais-re- ponto de vista econômico e social. (Grifo nosso)
volução passiva está exatamente
Baratta faz um movimento teórico importante ao localizar a articulação do que ele
na concepção "revolução-restauraçãd: ou seja, em um conservadorismo reformista temperado. Pode- chama de elementos "étnicos" com a produção· cultural. Consideramos porém que a
se observar que tal modo de conceber a dialética é próprio dos intelectuais, os quais concebem a si afirmação de que a classe operária é "residual': que "não é mais a alternativa e então
mesmos como os árbitros e mediadores das lutas políticas reais, aqueles que personalizam em si a "catarse" não pode produzir uma cultura alternativà' absolutiza um momento do processo
do momento econômico ao momento ético-político, isto é, a síntese do próprio processo dialético, síntese que histórico. Ignora (ou pelo menos) não acentua a potencialidade da ligação entre as
eles "manipulam" especulativamente no seu cérebro dosando "arbitrariamente" (isto é, passionalmente).
(1975, p. 1222. Grifo nosso).
diversas formas das classes trabalhadoras. Ele próprio afirma, contudo, que Gramsci
O problema nacional-popular é, pelo contrário, a meu juízo, o problema da consciência do Estado introduz uma importante diferenciação entre os subalternos:
concretamente entendido, e no qual confluem elementos que me parecem atestar a impossibilidade de
escrever uma história das camadas subalternas na ausência do "espírito estatal" e nacional e não se tornam Ponto cardeal da situação vivida por Gramsci era a diferenciação interna às massas subalternas,
possível uma alternativa em termos de folclore ou de espírito popular positivamente entendido. (Durante) de resto não distante da diferenciação vivida por Marx entre proletários e sub-proletários. São
subalternos, para Gramsci, tanto os operários quanto os marginalizados. A nova cultura é operária.
Mordenti (2010, p. 3) chama nossa atenção para o fato do mito Dante como subs- Em torno a este centro se movem ou devem mover-se, de modo oposto, mas convergente,
intelectuais orgânicos e estratos subalternos marginalizados. (idem).
titutivo da ação real das classes pelos intelectuais. "Nação-povo e nação-retórica
poder-se-ia dizer das duas tendências': afirmava Gramsci. (1975, p. 362)
Essas considerações caminham no sentido da carta de 19 de março de 1927 na
Dante entendido como pai da pátria porque pai da nossa língua e da nossa literatura e isto explica qual Gramsci traça o esboço dos seus estudos carcerários, primeira visão do que
mais do que nunca o apoderar-se de seu mito [... ] se tornasse um problema político decisivo para virão a ser os Quaderni:
as diversas tendências que se chocavam pela hegemonia do Risorgimento.
Mas, sobretudo aquele fundamento retórico da unidade nacional se revela fraquíssimo do ponto Pensei em quatro assuntos até agora [... ]: 1° uma pesquisa sobre a formação do espírito público
de vista político: enquanto em outros países o eixo da unidade nacional era caracterizado em na Itália no século passado; em outras palavras, uma pesquisa sobre os intelectuais italianos, suas
coisas como a luta contra os impostos, ou em exército nacional, ou em uma ordem econômica origens, seus agrupamentos segundo as correntes da cultura, os seus diversos modos de pensar,
mais racional, etc., entre nós tal eixo era procurado e achado em uma tradição retórico-literária, etc., etc. [... ] - 2° Um estudo de lingüística comparada! [... ] Mas que coisa poderia ser mais
longamente inventada. Para compreender toda a debilidade intrínseca de tal escolha basta refletir o "desinteressado" e "fur ewig" que isto? [... ] - 3° Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a
fato de que na Itália, em 1861, 78% da população era analfabeta (72% entre os homens, 84% entre as transformação do gosto teatral italiano que Pirandello representou e contribuiu para determinar. -
mulheres!) com 91 % na Sardenha e 90% na Calábria e Sicília; dez anos após a Unidade os analfabetos 4° Um ensaio sobre romances de apêndice e o gosto popular na literatura. [... ] No fundo, para quem
eram ainda 72%, e segundo o ISTATainda em 2001 existem 782.342 italianos/as que não sabem nem observa bem, existe homogeneidade entre estes quatro assuntos: o espírito popular criativo, nas suas
ler, nem escrever. (Mordenti, 2010, p. 4. Grifo nosso) diversas fases e graus de desenvolvimento, está na base deles e em igual medida. (1965, pp. 58-59.
Grifos nossos. Em alemão no original.)
O estudo gramsciano procurava as raízes dessa cisão, o processo de sua superação
e o grau de cosmopolitismo ("internacionalistà' e pouco aderente ao nacional) que Observemos que ele localiza sua preocupação com o "espírito popular criativo':
caracterizou a formação dos intelectuais articulado em grande medida pela visão elemento de ligação entre a forma popular e a forma culta na perspectiva da cisão
internacionalista da Igreja Católica e de seus intelectuais. Daí o interesse gramsciano intelectuais-povo. Aí tanto os romances de apêndice quanto o "gosto teatral" assu-
pela ação de Lutero que, ao inverso, construiu ou permitiu construir uma linguagem mem um papel relevante. Mesmo nas condições precaríssimas em que produz ele
nacional com base na linguagem popular e não na linguagem culta (o latim eclesial). enfatiza seu interesse141 :
Baratta (2009) localiza o problema na atualidade:
141 Por outro lado não faço nenhum trabalho, porque não posso chamar trabalho o ler puro e
simples. Leio muito, mas desordenadamente. Recebo alguns livros de fora e leio os livros da biblio-
~ II :II A nossa época é "postmoderna", no sentido, como ilustraram Hall e Jameson, do globalismo cultural, teca carcerária, assim, ocasionalmente, semana a semana. Possuo uma capacidade bastante feliz de
o qual tende a apagar todos os limites entre cultura alta e cultura popular. Como marxianamente encontrar algum lado interessante mesmo na mais baixa produção intelectual, como os romances
90 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 91

A grande questão gramsciana é: porque perdemos. Em carta enviada de Moscou e da hegemonia e da nova sociabilidade 143 e ter uma atitude antidogmática no preparar-
publicada com o título Che fare?l 42 Gramsci examina as causas da derrota do proces- -se para compreender e transformar o real. É preciso atuar em conjunto, ter tolerância
so revolucionário italiano. com as dificuldades alheias. Gramsci trabalha, na segunda década do século passado,
com dois pares conceituais: intransigência/tolerância, intolerância/transigência. Postu-
Porque os partidos proletários italianos foram sempre débeis do ponto de vista revolucionário? lado vital da ação humana, a intransigência de princípios significa que um grupo pos-
Porque fracassaram quando deviam passar das palavras à ação? Eles não conheciam a situação em sui finalidades objetivas que busca realizar e, para tanto, tem que adequar meios e fins.
que deviam operar. Não conheciam o terreno em que deveriam dar a batalha. Nós não conhecíamos
a Itália. Pior ainda:faltavam-nos instrumentos adequados para conhecer a Itália como ela realmente Convencido de que uma finalidade é correta, o grupo com sua natural diversidade na
é e então estávamos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos orientar, de estabelecer captação da realidade tem que discutir para chegar a firmar sua ação. O debate é neces-
linhas de ação que tivessem certa probabilidade de ser exatas. Não existe uma história da classe sário e tem que ser levado tolerantemente: cada membro do grupo deve ser convencido
operária italiana. Não existe uma história da classe camponesa. [...] Parece que na Itália não se tenha da justeza das proposições. Uma vez convencidos eles podem atuar intransigentemente.
nunca pensado, estudado, pesquisado. [... ] Eis a nossa debilidade, eis a principal razão da derrota dos
partidos revolucionários italianos: não ter tido uma ideologia, não tê-la difundido entre as massas,
Pode-se ser intransigente na ação se se foi tolerante nas discussões, e os mais preparados ajudaram
não ter fortificado a consciência dos militantes com certezas de caráter moral e psicológico. (1988, pp.
os menos preparados a acolher a verdade, e se as experiências individuais foram tornadas comuns,
30,31 e 32. Grifos nossos).
e todos os aspectos do problema foram examinados, e nenhuma ilusão foi criada. (1982, p. 479).

Ele mostra como os próprios revolucionários viviam a cisão "intelectuais-povo'


Tolerância significa capacidade de entender as dificuldades dos outros, e agir sobre
e trabalhou a questão do desconhecimento da realidade italiana a partir da des-
elas. Quando falamos de tolerância não estamos pensando em conivência com os
construção da aparência de uma realidade homogênea; afirma que essa realidade
equívocos. Desde que esteja dentro de um grupo, cada indivíduo deve submeter-se
comporta níveis muito diferenciados de estratificações históricas, de sedimentações
à sua disciplina. Assim, a afirmação de ter o direito de pensar como lhe aprouver
culturais que ao longo do tempo interditaram a visão de uma Itália como nação
não pode ser aceita. Isto não é liberdade de pensamento, é tornar impossível a vida
unitária.
do grupo. Oposto à intransigência de princípios/tolerância na discussão (princípio
Sempre estive persuadido que existe uma Itália desconhecida, que não se vê, muito diversa daquela democrático), se coloca a intolerância/transigência (princípio dissolvente):
aparentemente visível. [... ] que a separação entre o que se vê e o que não se vê é entre nós mais
profunda que nas outras nações chamadas civis. Entre nós a praça com seus gritos, seus entusiasmos Nós somos apenas contra a intolerância [... ] porque impede os acordos duráveis, porque impede
verbais, sua bazófia, ultrapassa chez soi muito mais relativamente em outras partes. Assim se que se fixem regras de ação obrigatórias moralmente [... ]. Por que essa forma de intolerância leva
formaram toda uma série de preconceitos e de afirmações gratuitas, sobre a inteireza da estrutura necessariamente à transigência, à incerteza, à dissolução dos organismos sociais. (idem, p. 480).
familiar tanto quanto sobre a dose de genialidade que a providência teria se dignado dar ao nosso
povo, etc. etc. [... ] Creio que os costumes familiares das cidades, dada a recente formação de centros Para que tudo fique mais claro, basta ler radicalidade no lugar de intransigência e
urbanos na Itália, não podem ser julgados abstraindo da situação da média geral de todo o país sectarismo no de intolerância. E veremos que a radicalidade no terreno dos princí-
que é ainda muito baixa e que pode ser deste ponto de vista, resumida neste traço estatístico: um pios é o oposto do sectarismo. Em uma postura radical, se se está convencido de que
extremo egoísmo das gerações entre os 20 e os 50 anos, que se verifica em prejuízo das crianças e
dos velhos. [... ] A explicação, segundo penso, está na estrutura demográfica do país que antes da
o princípio e/ou a ação são justos, pode-se discutir tolerantemente. E, por isso mes-
guerra tinha a seu encargo 83 pessoas passivas para cada 100 trabalhadores, enquanto na França, mo, pode-se fazer com que os outros percebam a justeza do proposto e, no debate,
com uma riqueza enormemente superior, o encargo era de 52 para 100. Muitos velhos e muitos todos cresçam politicamente. Mas, se já desde o início, se usa uma postura sectária,
jovens em confronto com gerações médias, empobrecidas numericamente pela emigração. (p. 186. intolerante, não há nenhuma margem para a discussão e na hora do enfrentamento,
Carta a Tatiana Schucht, 5-3-1928. Em francês no texto. O primeiro grifo é nosso).
despreparado para a ação, acaba -se por transigir. O debate amplo e pleno é, pois,
uma necessidade democrática para o movimento operário.
"Desinteressado: ''jur ewig", ''para a eternidade". Prisioneiro, afastado do cotidiano da
luta, Gramsci podia agora pensar estrategicamente sem o aguilhão da prática imediata,
Uma das mais graves lacunas de nossa atividade é esta: esperamos a atualidade para discutir os
liberado da teia das conjunturas imediatas. É necessário conhecer a situação em que se problemas e para fixar as diretrizes da nossa ação. Coagidos pela urgência, damos aos problemas
vive. O antiintelectualismo é mortal para o movimento revolucionário. Não basta ter
143 "O homem moderno deveria ser uma síntese daqueles que veem ... hipotetizados como caracte-
coragem e gritar palavras de ordem. A cultura é condição necessária para a construção rísticas nacionais: o engenheiro americano, o filósofo alemão, o político francês, recriando por assim
dizer, o homem italiano do Renascimento, o tipo moderno de Leonardo da Vinci tornado homem-
de apêndice, por exemplo. Se tivesse possibilidade acumularia centenas e milhares de fichas sobre -massa ou homem coletivo mantendo ainda a sua forte personalidade e originalidade individual.
alguns temas de psicologia popular difusa. (p. 11l. Carta a Giuseppe Berti, 8-8-27. Grifo nosso). Coisa pouca .. :: (1965, p. 654, carta a Giulia Schucht, 1-8-1932. Grifo nosso)
142 Cf. "Voce della gioventli", Milão, 10 de novembro de 1923 (cf. Gramsci, 1988).
92 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 93

soluções apressadas, no sentido de que nem todos os que participam do movimento dominam É necessário estudá-lo pelo contrário como "concepção do mundo e de vidà: implícita em grande
os termos exatos das questões. E, portanto, se seguem a diretiva fixada, fazem-no por espírito de medida, de determinados estratos [... ] da sociedade, em contraposição (também ela [... ] implícita,
disciplina e pela fé que nutrem nos dirigentes, mais do que por uma convicção intima, por uma mecânica, objetiva) com as concepções de mundo "oficiais" (ou em um sentido mais amplo das
espontaneidade racional. (Idem, p. 498). partes cultas da sociedade historicamente determinadas. (p. 2311).

É necessário compreender porque e como entre as direções e as bases dos subalter- Trabalhá -lo é vital para os militantes do futuro, para os dirigentes que se propõem
nos existia não apenas um fosso teórico-político, mas trabalhar a resolução da questão. realizar a reforma intelectual e moral, os que querem construir com os subalternos
Estudar os intelectuais, as direções. A aparente questão intelectualista é recoberta pela (e não para eles ou sobre eles) uma nova sociabilidade que é a forma concreta pela
alma do estrategista. Gramsci adverte que a questão central da política nas sociedades qual aqueles construam sua fala, seus projetos.
classistas está radicada na cisão entre dirigentes e dirigidos, governantes e governados.
Conhecer o "folclore" significa, portanto, para o instrutor conhecer que outras concepções de
mundo e de vida trabalham de fato a formação intelectual e moral das gerações mais jovens para
Toda a ciência e a arte política se baseiam neste fato primordial, irredutível (em certas condições
extirpá-las e substituí-las com concepções consideradas superiores [... ]. Só assim o instrutor será
gerais). As origens deste fato é um problema em si, que deverá ser estudado em si (pelo menos
mais eficiente e determinará realmente o nascimento de uma nova cultura nas grandes massas
poderá e deverá ser estudado como atenuar ou fazer desaparecer o fato, mudando certas condições
populares, isto é, eliminará a separação entre cultura moderna e cultura popular ou folclore. Uma
identificáveis como atuantes neste sentido), mas permanece o fato de que existem dirigentes e
atividade deste gênero, feita em profundidade, corresponderia no plano intelectual ao que foi a
dirigidos, governantes e governados. Deste fato ter-se-á que ver como se pode dirigir de modo
Reforma nos países protestantes. (p. 2314).
mais eficaz (dados certos fins) e, portanto, como preparar do melhor modo os dirigentes (e nisto
consiste mais precisamente a primeira seção da ciência e da arte política), e como por outro lado se
conheçam as linhas de menor resistência para ter a obediência dos dirigidos ou governados. Para Gramsci as diferentes classes elaboram com maior ou menor autonomia a
Na formação dos dirigentes é fundamental a premissa: queremos que existam sempre governantes sua voz, o seu projeto. A teoria é decisiva para dar homogeneidade e esta requer a
e governados ou queremos criar as condições para que a necessidade da existência desta divisão
ortodoxia no sentido de que devem bastar-se a si mesmas. O processo é então a da
despareça? Isto é, parte-se da premissa da perpétua divisão do gênero humano ou acredita-se que esta
seja um fato histórico, respondendo a certas condições? (1975, p. 1752. Grifo nosso). construção e não a da repetição. O cotidiano é (e deve ser sempre) o laboratório das
práticas sociais e não uma rotina ad nauseam.
A superação da cisão dirigentes-dirigidos é a questão da possibilidade da revolução.
Na citação acima encontramos muito mais daquilo que poderia parecer uma obvie- Cada estrato social tem o seu "senso comum" e o seu "bom senso': que são no fundo a concepção de
vida e do homem mais difusa. Toda corrente filosófica deixa uma sedimentação de "senso comum":
dade. Ela articula a questão da historicidade da política vigente, capitalista, com os
é este o documento da sua realização histórica. [... ] O "senso comum" é o folclore da filosofia e
projetos de sua negação. É nesse sentido que se faz necessária a reforma intelectual está sempre entre o [... ] folclore (isto é, como é comumente entendido) e a filosofia, a ciência, a
I"~
'''I
e moral. Observe-se que não se trata apenas do processo formal do conhecimento, economia dos cientistas. (1983, p. 2271).
mas sua conversão em modo de vida, em prática social de transformação.
Trabalha-se a referência às classes como produtoras das possibilidades de eman-
Pode existir uma reforma cultural, isto é, elevação dos estratos deprimidos da sociedade, sem uma cipação, ou seja, de superação da cisão onde se realiza o processo de construção da
precedente reforma econômica e uma mudança na posição social e no mundo econômico? Pode
nova sociabilidade. Esta se realiza sobre a( s) cultura( s) existentes. Canclini trabalha
uma reforma intelectual e moral deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica? Pelo
contrário o programa de reforma econômica é precisamente o modo concreto em que se apresenta a essas culturas como pluralidades.
reforma intelectual e moral. O moderno Príncipe, ao desenvolver-se, desenvolve todo o sistema de
relações intelectuais e morais [... ] o seu desenvolver-se significa precisamente o que em cada ato é As culturas populares [... ] se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos
concebido como útil ou danoso, virtuoso ou celerado, o próprio moderno príncipe só enquanto é e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão,
referência serve para incrementar o seu poder e a contrastá-lo. (p. 1561. Grifos nossos). reprodução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida.
(idem, p. 42)
Entender como os subalternos vivem, pensam e se movem é entender as possibili-
dades reais da nova sociabilidade. Por isso" o ponto de partida deve ser sempre o senso Em suma: 1) trata-se de um processo de apropriação desigual dos bens econômi-
comum, que é espontaneamente a filosofia das multidões as quais se trata de tornar cos e culturais, 2) cujo sujeito é uma nação ou etnia, a partir dos setores subalternos e
homogêneas filosoficamente': (1975, pp. 1397-1398. Grifo nosso) O folclore não deve 3) só pode ser visto pela compreensão, reprodução e transformação, real e simbólica,
ser tratado com "naturalidade': "elemento pitoresco': das condições gerais e específicas do trabalho e da vida. A linguagem e os valores
culturais são condições da emancipação radical (a revolução) que supõe um traba-
94 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 95

lho de libertação ideológica dos subalternos e das suas direções. Penso em especial próprio de pensar e sentir. A cultura, nos seus vários graus, unifica uma maior ou menor quantidade
de indivíduos em numerosos estratos, mais ou menos em expressivo contato, que se compreendem
na libertação ideológica das direções que por sua trajetória possuem, em princípio,
entre si em graus diversos, etc. (1975, p. l330. Grifos nossos).
mas nem sempre, um conhecimento mais sistemático do real; mas, nem por isso,
libertas dos seus condicionamentos e do pensamento dos dominantes. Sobre isso ver
Sobre a questão da linguagem ele afirma:
a bela discussão que Gramsci realiza entre liberalismo e sindicalismo teórico.
Dado que o processo de formação, de difusão e de desenvolvimento de uma língua nacional unitária
o primeiro é produto de um grupo social dominante e dirigente, o segundo de um grupo ainda ocorre através todo um conjunto de processos moleculares, é útil ter consciência do processo todo em
subalterno, que não adquiriu ainda consciência da sua força e das suas possibilidades e modos seu conjunto, para se ter condições de intervir ativamente nele com o máximo de resultado. Esta
de desenvolvimento e por isto não sabe sair da fase do primitivismo. [... ] O liberismo é um intervenção não se necessita considerar como ''decisiva'' e imaginar que os fins propostos serão todos
programa político que quer mudar, na medida em que triunfe, o pessoal dirigente de um Estado obtidos nos seus particulares, isto é, que se obterá uma ''determinada'' língua unitária, se ela é uma
e o programa econômico do próprio Estado, isto é, mudar a distribuição da renda nacional. necessidade, e a intervenção organizada acelerará os tempos do processo já existente; o que quer que
Diferente é o caso do sindicalismo teórico, enquanto referido a um grupo subalterno, o qual seja esta língua não se pode prever e estabelecer: em todo caso, se a intervenção é "racional", ela será
com esta teoria se impede de [... ] tornar-se dominante, de desenvolver-se para além da fase organicamente ligada à tradição, o que não é de pouca importância na economia da cultura. (1975,
econômico-corporativa para elevar-se à fase de hegemonia ético-política na sociedade civil e pp. 2345-2346. Grifos nossos.)
dominante no Estado. (Gramsci, 1975, p. 1590)

A linguagem não é um vínculo neutro que se estabelece entre pessoas, classes,


Em Il partito e la rivoluzione de 1919 Gramsci trabalha com o conceito de hege-
grupos e não pode politicamente ser tratada como mera questão técnica. Gra-
monia, ainda não inteiramente constituído, mas que aparece como «irradiação de
msci insiste frequentemente no respeitar - para superar - as linguagens e os dialetos
prestígio"l44. A questão da cultura como elemento constitutivo dessa práxis estatal
regionais. Estes não são anomalias, mas linguagens historicamente determinadas. A
antes da revolução já pode ser encontrada no período pré-carcerário. O texto clássi-
maioria da população nacional se exprime neles e por eles. No projeto de curso para
co sobre isso é Socialismo e cultura. Gramsci trabalhou o tema seguidas vezes. 145 Em
a Escola interna do partido ele insistia em que
Alcuni Temi encontramos um amplo material para esta relação lingua-subalternos.
Encontramos o debate entre dialetos e língua nacional nas suas Lettere deZ Carcere, Cada instrutor deve desenvolver-se [como] um dirigente local do partido, que tenha condições
quando ele aconselha sua irmã a educar Franco, seu sobrinho, na linguagem sarda. de desenvolver a propaganda das nossas idéias e do nosso programa, que tenha condições de dar
Essa reflexão nada tem de expressão de um desejo individual. Ao situar a língua sar- à Central do partido todas as informações concretas necessárias para estabelecer um plano de
da como universo no qual Franco deve ser educado, Gramsci trabalha com a neces- agitação e de ação e que tenha condições de traduzir em linguagem compreensível às massas locais
as palavras de ordem do partido. (1988, p. l33).
sidade de ligar senso comum (a historicidade daquela população) com a riqueza de
uma língua nacional mais desenvolvida. Permite-se assim que as experiências vitais
possam ser traduzidas.

Colocada a filosofia como concepção de mundo a atividade filosófica concebida não [somente]
como elaboração "individual" de conceitos sistematicamente coerentes, mas [... ] como luta cultural
para transformar a "mentalidade popular" e difundir as inovações filosóficas que se demonstrem
"historicamente verdadeiras" na medida em que se tornam concretamente, histórica e socialmente
universais, a questão da linguagem e das línguas "tecnicamente" deve ser colocada em primeiro plano.
[... ] "linguagem" é essencialmente um nome coletivo, que não pressupõe uma coisa "únicà' nem no
tempo, nem no espaço. Linguagem significa também cultura e filosofia [... ] o fato "linguagem" é na
realidade uma multiplicidade de fatos mais ou menos organicamente coerentes e coordenados: no
limite se poderia dizer que cada ser falante tem uma linguagem pessoal própria, isto é um modo
144 Lo Piparo, p. 172 indica a aproximação da temática gramsciana c~m A. Meille~, "Di~éren~ia.tion
et unifications dans les langues': Scientia, vol. IX, V, 1911, n. 9, repubhcada em MeIllet, Lmgmstlque
historique et linguistique générale, Paris, 1921, vol. 1, p. 122.
145 Antes do cárcere sob o título "La costituzione della repubblica russà: 11 Grido del Popolo (16 de
fevereiro de 1918), "Vecchiume imbellettato': rUniversità popolare, Per un'associzione di cultura, A
Giuseppe Lombardo-Radice, Scuola di Cultura, Studi Difficili, Che Fare?, rUnità (22 de setembro
de 1926) etc.
INTELECTUAIS, ONTEM, HOJE

o problema de identificar teoria e prática se coloca neste sentido: de cons-


truir sobre uma determinada prática uma teoria que, coincidindo e identifi-
cando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo
histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente, eficiente
em todos os seus elementos, isto é, potenciando-a ao máximo; ou, dada
certa posição teórica, de organizar o elemento prático indispensável para a
sua colocação em ação. A identificação de teoria e prática é, um ato crítico,
pelo qual a prática é demonstrada racional e necessária ou a teoria realística
e racional. Eis porque o problema da identidade de teoria e prática se coloca
especialmente em certos momentos históricos ditos de transição, isto é, de
mais rápido movimento transformador, quando realmente as forças políticas
desencadeadas exigem ser justificadas para serem mais eficientes e expansi-
vas, ou se multiplicam os programas teóricos que exigem serem eles também
justificados realisticamente e enquanto demonstrem serem assimiláveis pelos
movimentos práticos que só assim se tornam mais práticos e reais.

Antonio Gramsci

As classes na sua constituição autônoma necessitam para agir de uma cama-


da de intelectuais, vale dizer de dirigentes, dado que o real não é de forma alguma
visível pela simples experiência cotidiana. Camada que tem a tarefa, em conjunto
com a classe de decifrar a esfinge do poder e proceder à sua transformação.

urna massa não se "distingue" e não se torna independente "per si" sem organizar-se (em sentido
lato) e não há organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, isto é, sem que
o aspecto teórico do nexo teoria e prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas
"especializadas" na elaboração conceitual e filosófica. Mas este processo de criação de intelectuais é
longo, difícil, cheio de contradições, de avanços e recuos, de dispersão e de reagrupamento, em que
a "fidelidade" da massa [... ] algumas vezes é colocada à dura prova. O processo de desenvolvimento
é ligado a urna dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa
e qualitativamente, mas cada oscilação em direção a urna nova "amplitude" e complexidade do
98 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 99

estrato dos intelectuais é ligado a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva em o novecento se abriu na consciência da relatividade ou da falsidade dos valores universais. Depois
direção a níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente a sua esfera de influência [... ]. de Marx, também Nietzche e Freud mostraram seu caráter parcial e instrumental. As vanguardas
(Gramsci, 1975, p. 1386). do início do século vinte - políticas e artísticas - partiram daí. Mesmo no primeiro Lenin ou
no jovem Gramsci o aspecto crítico-negativo prevaleceu claramente sobre o reconstrutivo. Mas,
a partir dos anos vinte, seja a revolução, seja a reação tiveram necessidade de novos valores
A construção dos intelectuais, não importa de que classe, passa pela disputa hege- absolutos. [... ] A abstrata certeza do universal, identificado no partido e na ciência do proletariado,
mônica com/contra os intelectuais das outras classes. foi erigida contra a concretude do particular, do homem aqui e agora. A verdade existia de novo,
e era garantida pelo sentido da história que era compreendido e indicado pelo partido. (Luperini,
É certamente muito importante para o proletariado que um ou mais intelectuais, individualmente 2007. Os grifos são nossos.)
adiram ao seu programa e à sua doutrina, se confundam no proletariado, se tornem ou se sintam
parte integrante dele. O proletariado, como classe, é pobre de elementos organizativos, não tem e não Estamos falando obviamente sobre o determinismo que corrompeu a leitura do
pode formar-se um próprio estrato de intelectuais senão muito lentamente, muito cansativamente, e só
depois da conquista do poder estatal. Mas é também importante e útil que na massa dos intelectuais
marxismo: a ideia de que a prática é o critério da verdade. Uma prática concebida
se determine uma fratura de caráter orgânico, historicamente caracterizada; que se forme, como como esvaziada de determinações, identificada, pura e simplesmente à empiria, o
formação de massa, uma tendência de esquerda, no significado moderno da palavra, isto é que permitiu que muitos erros e crimes fossem praticados em nome do marxismo,
orientada para o proletariado revolucionário. A aliança entre proletariado e massas camponesas buscando retirar sua legitimidade daquela teoria, o que foi um contra-senso radical,
exige esta formação; [... ] O proletariado destruirá o bloco agrário meridional na medida em que
são nesse nível: Práxis e verdade abstratas e vazias. Não cabe, é verdade, a afirmação
conseguir, através do seu partido, organizar em formações autônomas e independentes, cada vez mais
notáveis massas de camponeses pobres; mas conseguirá na medida mais ou menos ampla em que tal engelsiana de que "a prova do pudim é comê-lo': Gramsci salienta sempre a histo-
tarefa obrigatória ainda que subordinadamente à sua capacidade de desagregar o bloco intelectual ricidade das conjunturas e das estruturas. Política e história são um todo, mas são
que é a armadura flexível mas resistentíssima do bloco agrário." (1971, p. 58. Grifo nosso). construídos pela ação concreta de mulheres e homens reais, isto é, das classes. Nesse
sentido a práxis abstrata, a famosa "lógica do Capital": de tendências se transfor-
Observe-se aqui a forma pela qual Gramsci trabalha a questão diferentemente da maram em mitos desmobilizadores, conduziram ao socialismo realmente inexistente.
formulação Kautsky-Ieniniana. A difttrença radica-se exatamente sobre o movimen- Trata-se de retomar as diretivas marxianas, não como uma volta às origens, uma
to da formação da consciência. Em Gramsci trata -se de uma ação recíproca, ainda reforma protestante às avessas, mas como capacidade de enfrentar os renovados de-
que desigual e combinada; naqueles como "elemento importado de forà' da classe safios colocados a essa teoria/prática.
trabalhadora. Essa estratégia só é possível pela contrução da articulação das classes
subalternas (proletariado e campesinato). Estratégia tornada possível pela interven- Entre os anos vinte e os anos sessenta o comunismo se tornou valor absoluto, tanto mais abstrato
ção dos intelectuais, daqueles que têm como finalidade o conhecimento do real a e irreal quanto mais distante da realidade da sua presumida atualização nos diversos modelos
partir da sua situação de classe e que se proponham, com elas, a transformar a socie- "socialistas" de capitalismo de estado. O comunismo foi neste período a utopia 147 de milhões de
militantes e a "falsa consciêncià' de Estados nacionais, que em seu nome eram autoritários no
dade. Sobre isto Mordenti salienta que interior e imperialistas no exterior. Quando a distância entre ideologia e realidade explodiu
dramaticamente, o chamado comunismo realizado ruiu de golpe, subvertendo não apenas a realidade,
a hegemonia (na sua dialética com o domínio) é o grande tema fundamental que percorre mas o valor conceitual do termo. [... ] a crise do comunismo coincidiu de fato com a de qualquer
inteiramente os Quaderni, já que se trata de analisar as formas histórico-ideológicas da crise valor possível. [... ]
de hegemonia burguesa, e, ao mesmo tempo, de colocar o proletariado em condição de tornar- A queda [daquela] alternativa colocou o homem face à nua realidade do capital, a sua substancial
se "classe para si': isto é, capaz de exercitar a sua hegemonia historicamente madura, de ser em imoralidade e indiferença ética. O neoliberalismo, que visa destruir, em nome do mercado, todas
suma a nova classe dirigente: 'Um grupo social [uma classe] pode e deve ser dirigente já antes de as solidariedades sociais e, com elas, qualquer entidade coletiva e comunitária (do Estado à família,
conquistar o poder governativo (é esta uma das condições principais para a própria conquista do da escola pública à vida da região ou do bairro), é a ideologia do pós-comunismo. Mas ela não pode
poderr'(1996, p. 51)146. explicar aos jovens porque eles não devem jogar pedras da passarela. (Luperini, 2007. Grifo nosso)
Gramsci olha a esta cultura de modo dialético, isto é, considera-a, ao mesmo tempo, necessária e não
suficiente; ela constitui um elemento imprescindível (e às vezes precioso) porque contém um núcleo
vivo de antagonismo e então um embrião de autonomia cultural, mas testemunha igualmente uma Há uma ambiguidade real na queda das formas burocrático-coletivas, que se au-
fase histórica de subalternidade que é necessário liquidar o mais rápido. (Mordenti, p. 53). toproclamaram socialistas. Sua derrota não correspondeu ao apogeu (esperado) da
ideologia burguesa; afinal, como diz Mordenti, o que se seguiu foi uma hegemonia
O problema permanece. A historicidade da luta atual leva Luperini afirmar a exis- sem hegemonia em escala mundial:
tência de uma diferença entre o período histórico do século passado e o de hoje: 147 Utopia lembra-nos Labica (2009, p. 13) assumindo a caracterização de Ernest Bloch, "é uma
tendência do real, inscrita no cotidiano das relações capitalistas de produção, tanto sob : forma da
146 A citação gramsciana encontra-se em 1975, p. 2010. necessidade de sua superação, quanto contra as regressões que essas relações engendram.
100 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 101

o capitalismo celebra vitorioso o fim do século e do milênio. Não existem mais obstáculos, nem Essa modificação da linguagem não é gratuita. A relação saber-poder é de mão
fronteiras. E, todavia entre os funcionários do capital não há entusiasmo (como havia, por exemplo,
dupla. Apesar da desqualificação neoliberal do saber este é necessário ao exercício
no final do século dezenove), mas melancolia, tristeza, ausência de perspectivas ideais. Quando
existia o inimigo para além da cortina de ferro, o capitalismo se auto-justificava com uma série de cotidiano do poder dos dominantes. Não há "políticas públicas': codinome das me-
valores (não importa se instrumentais) dos quais hoje não tem mais necessidade. Hoje, reduzido à diações para o exercício das tentativas de hegemonia, sem a colaboração/participa-
trama de interesses nus, tem um único valor que não apenas torna lícito todo desvalor, mas o funda: ção destes trabalhadores especializados.
o mercado, o interesse de grupos individuais [... ] em concorrência recíproca. (idem)
Em um mundo como no atual Ocidente, no qual o setor-guia no campo industrial é aquele que
Isto tudo sustenta ainda um horizonte ideológico que se funda no terror de uma produz mercadorias imateriais, isto é, informações, publicidade, espetáculo e, em suma, linguagem,
situação incontrolável. Aos subalternos tem que se oferecer novas óperas-bufas: se o poder e saber se localizaram cada vez mais no sistema das comunicações. O poder da linguagem
e a linguagem do poder tendem a unificar-se. Isto ocorre tanto na esfera econômica e produtiva,
comunismo morreu (sic), é preciso criar um novo fantasma que pode ser o terrorismo, quanto na política, e se manifesta na sua indiferença cada vez mais estreita. O saber-poder dos
as atitudes anti-cristãs dos ''fundamentalistas'' islâmicos, a luta contra a corrupção ou intelectuais individuais e também o dos intelectuais como categoria ou corporação é selecionado
simplesmente o outro, o estrangeiro, o bárbaro, o xiita, etc. O espetáculo não pode parar, e filtrado por enormes complexos produtivos e também por instituições políticas (a educativa, por
por isso novos ''perigos'' devem ser criados. Novos perigos e novas missões. Compre- exemplo). Estas últimas resultam porém cada vez mais débeis e mais dependentes, já que estes
complexos produtivos se erigem diante delas como modelos a copiar e a quem uniformizar-se.
ende-se assim a fala de Henry Kissinger 148 sobre a eleição de AUende: "Não temos
[... ] Inseridos nestes grandes aparelhos de saber-poder, que respondem a poucos centros de comando
porque aceitar que um país se torne marxista pela irresponsabilidade de seu povo" integrados, nacionais e internacionais em conjunto, os intelectuais não têm possibilidade real de
(Galeano, 2008, p. 15). controle sobre eles. Reduzem-se a simples trabalhadores do conhecimento, coagidos a fazer as contas
Atualiza-se a própria concepção de intelectual, acentuando o que Gramsci já chamara [. .. ] com instabilidade, flexibilidade e, portanto, a desenvolver uma elevada capacidade de conversão.
de funcionário das superestruturas. Franco Fortini, em 1971, descrevia o processo de (idem. Grifos nossos) 150
mutação dos intelectuais: "o processo de destruição do corpo separado dos intelectuais está
Luperini cita a Said 151 que a partir de um projeto diferenciado vê, apesar dessas
tão avançado que o próprio termo 'intelectual é quase inutilizável'''149 (sic. Grifo nosso). O
brutais limitações, possibilidades outras desde que o intelectual seja comprometido:
que ocorreu foi a perda real e concreta do mito da autonomia do intelectual.
O novo intelectual, inserido nos novos complexos produtivos em posição subordinada ou externa
De fato, cada vez mais, o intelectual é substituído "pelo especialistà: pelo técnico [... ] que coloca o
a eles, se configura como um outsider, um diletante, um marginalizado, um exilado, um homem
próprio saber a serviço de uma instituição - pública ou privada, não importa - sem mais capacidade dos limites, e por isso aparece animado por um espírito de oposição e não de compromisso. Sua
ou possibilidade de ver para além deste horizonte setorial. [... ] Coincide com a tarefa designada pelas
função pública, segundo Said, é colocar questões provocativas, de desafiar ortodoxias e dogmas e
instituições, sejam estas científicas e educativas de um estado, o sistema das comunicações públicas,
sobretudo "de encontrar a própria razão de ser no fato de representar todas as pessoas e as instâncias
uma entidade ou uma empresa privada, ou o próprio governo de uma nação. Comporta um saber,
que habitualmente são esquecidas ou censuradas': (idem. Grifo nosso)
um conjunto de competências específicas, em troca de um estipêndio; implica em financiamentos
públicos ou privados para a pesquisa; um status, tarefas, ainda que burocráticas, e a colocação em uma
hierarquia. Deste ponto de vista o intelectual é sempre um funcionário. (Luperini, 2007. Grifo nosso) Recusa certo determinismo fatalista. Aquelas atitudes polares que colocam os li-
mites onde os intelectuais, mais do que outros trabalhadores, pela própria natureza,
Não se pode rigorosamente caracterizar o processo como uma substituição, mas podem atuar. Lembramos aqui a prática operária diante das fábricas "sem trabalha-
como uma atualização. Transformado como massa em uma mercadoria como ou- dores': isto é, controladas ciberneticamente. Face às tecnologias modernas qualquer
tra qualquer ele vende sua força-de-trabalho independente de quem seja o patrão. oposição poderia parecer impossível de paralisá -las, de realizar sabotagens, etc. O
Ideologia? Projeto? Como Marx afirmou no Manifesto Comunista que "em lugar da movimento operário descobriu que a tecnologia "expropriou seu trabalho': mas via
exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma ex- essa mesma tecnologia - com projetos políticos distintos - ser possível "expropriar o
ploração aberta, despudorada, direta e brutal" (1951, p. 43. Grifo nosso): expropriador': Resta saber quem tem projeto e qual o sentido deste.

o professor não é um educador, mas um docente; quem se assenta nos tribunais não é um juiz, mas
um magistrado; quem cura os enfermos não é um médico, mas um operador sanitário. A educação,
a justiça, a saúde são substituídas pela sua administração setorial, isto é, técnica e burocrática.
(Luperini. Grifo nosso). 150 Cf. Zigmunt Baumann, La decadenza degli intellettuali. Da legislatori a interpreti, Bollati Borin-
ghieri, Torino, 1972, citado por Luperini, 2007.
148 Sobre Kissinger, criminoso de guerra, ver Chomsky e Herman (1976) e Jarecki e Gibney (2002). 151 Edward W Said, Dire la verità. Gli intellettuali e il potere, Feltrinelli, Milano, 1995, citado por
149 Citado por Luperini, 2007. Luperini,2007.
A HEGEMONIA COMO ARTICULAÇÃO

As lutas dos sujeitos à margem do discurso ocidental nos mostram, pelo


contrário, como a mudança revolucionária não está colocada apenas em um
futuro utópico em que os oprimidos se revoltarão e tomarão o poder. Muito
mais que isto, porque para que isto ocorra é necessário desconstruir a lógica
de poderes interiorizados e existentes no interior do próprio movimento, e
isto é um processo urgente, que deve ser iniciado logo se se quer que os pró-
prios esforços cheguem a um bom fim.

Silvia Torneri

Quando um discurso torna inaudíveis as demais formas de pensar/escrever/ ela-


borar estamos frente à tentativa de impossibilitar que formas discursivas antagônicas
articulem outras práticas sociais classistas. Aqui está colocada claramente a questão
da hegemonia.

o subalterno, enquanto permanece subalterno e enquanto subalterno, não pode evidentemente


falar, porque o ser subalterno define-se precisamente como uma radical ausência de autonomia,
que significa ausência de um ponto de vista próprio, de um discurso auto-centrado e posicionado a
partir de si, portanto ausência sobretudo de palavra. [... ]
O pólo opositivo do subalterno é evidentemente o poder (gramscianamente: o nó domínio/
hegemonia), e como "subalterno' é ausência de palavra, assim "poder" é também [... ] poder de
linguagem e de palavra, o poder hegemônico de articular um discurso auto-legitimante, de instituir
(em vantagem própria, exclusiva) um sentido, de dar sentido às coisas (ou melhor: de impô-lo) e
de impor tal narrativa política como "senso comum" das massas. E Gramsci nos ensina que a luta
hegemônica entre as classes se desenvolve precisamente em torno ao "senso comum": é hegemônico
quem encontra, controla, gere, o sentido comum; por isto tal narrativa política compartilhada é o
lugar da hegemonia, um órgão dela, uma articulação decisiva dela. (Mordenti, 2007a. Grifo nosso).

o próprio da subalternidade é precisamente a subsunção de suas subjetividades e


práticas às dos dominantes tornadas praticamente únicas pela dominação, a subtração
da racionalidade e afetividade dos subalternos; mais do que isso significa colocá -los
104 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 105

sob o horizonte dos do~inantes, horizonte definidor do possível, do pensável, do é puramente formal, mas não se trabalham necessariamente as condições de sua
praticável. Quando os burgueses e seus intelectuais dizem que o capitalismo é a única realização. Há que se recuperar a famosa Tese XI Ad Feuerbach segundo a qual os
realidade existente, possuidor de uma "naturalidade" específica, estão afirmando, "filósofos somente interpretaram diversamente o mundo, trata-se de transformá-lo':
a um só tempo, a impossibilidade do socialismo como teoria e projeto. Tudo isto E ler esta tese na perspectiva de que
ancorado na reafirmação dessa representação mítica, tornada, assim, "verdade"
científica. Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode
separar o homo faber do homo sapiens. Todo homem, fora da sua profissão realiza uma atividade
intelectual qualquer, é um "filósofd: um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção
Lendo conjuntamente, os Quaderni dei carcere, o 12 dedicado aos intelectuais e o 25 e o 27, dedicados
de mundo, tem uma linha consciente de conduta moral, contribui, portanto, a sustentar ou a
respectivamente ao folclore e aos subalternos, se esclarece bem que os estratos marginalizados dos
modificar uma concepção de mudo, isto é, a suscitar novos modos de pensar. (1975, pp. 1550-1551).
subalternos, ao lado das massas camponesas, não produzem e não podem produzir intelectuais
orgânicos, porque são separados pela língua e cultura "altamente" nacional-popular. [... ] terreno
fértil de todo populismo era o apelo direto e imediato à espontaneidade-criatividade do povo e dos A relação dos homens com sua vida implica necessariamente na capacidade de
subalternos. (Baratta, 2006). ler o real. Vivendo sob uma weltanschauung, o que lhe permite entender a si e aos
O povo-nação se define desde o início das notas carcerárias como um interlocutor importantíssimo
demais, ele pode alterá -la. Esse processo de atualização da concepção de mundo se
da batalha cultural dos Quaderni: ao mesmo tempo sujeito consciente de transformação da vida
social e estatal e destinatário daquela pedagogia permanente que é a hegemonia gramsciana. dá, entre outros locais e modos, no processo de trabalho. A análise gramsciana do
[... ] Gramsci acena ao problema duplo do Rinascimento e do Risorgimento, dois momentos nodais Americanismo e Fordismo 152 localiza exatamente essa transformação e adverte que
da história da Itália nos quais a identificação com uma tradição nacional clássica "falsà' produziu mesmo quando preso às estruturas do capital o homem pode, quando mais se torna
fenômenos de cosmopolitismo e chovinismo cultural (aparentemente dois fenômenos opostos) mecânico o ato produtivo, libertar-se e pensar sua própria resposta. Em face de isto
que são a raiz menos visível do nacionalismo particular italiano, apatriótico e superficial, mas capaz
de animar-se pelas glórias individuais e sucessos internacionais de cientistas, artistas, condotieri e
os industriais buscaram os elementos de permanente "educação" do trabalhador, vale
assim por diante. (Durante) dizer, sua transformação no gorila amestrado. Nessa mesma análise vê-se a crítica do
processo que vinha se desenvolvendo no mundo dito socialista. O trabalho altera
Subtrair-se à subalternidade significa em termos concretos a possibilidade da revo- desde a estrutura familiar até o domínio do processo técnico. Trata-se da construção
lução: tarefa dos subalternos, em especial dos seus intelectuais, é construir essa possibi- da disciplina que pode vir a ser transformadora e não mais conformista.
lidade. Gramsci colocou uma questão escandalosa para os deterministas e mecani-
cistas: uma classe pode ser dirigente antes de ser dominante. Quando a direção dos Se, entre os autores lidos por Gramsci, André Philip havia falado do ideal taylorista de um operário
passivizado, reduzido à "gorila amestradd: André Siegfried - como também Sinclair Lewis com o
subalternos sofre a direção dos dominantes, quando reproduz como seu o discurso
célebre Babbitt - havia destacado a "estandardização" não apenas do processo de produção, mas
do outro objetivamente enfraquece a posição dos seus companheiros. Imobiliza -os. também do modo de viver, do "gosto" dos americanos graças também a uma "utilização racional
Por isto da publicidade" (Siegfried, 1928, p. 163; Q 3, § 68, p. 2.602), concluindo que a sociedade americana
"tende a assumir as feições de um coletivismo de fato, deliberado pelas elites e alegremente aceito
É chegado o momento no qual os revolucionários assumam o problema da construção do sentido como pelas massas" (Siegfried, 1928, p. 350). [Citado por Baratta, 2004, p. 61].
o mais decisivo dos problemas. Senão nos termos da produção de uma narrativa oposta e especular Conforme Hass, uma chave da "visão americana da vidà' deve ser buscada "na categoria do
em relação à do poder [...] ao menos nos termos da capacidade de criticar a narrativa do poder com a desejo. O desejo, o homem desejado, a moça desejada, o marido desejado, o negócio desejado; estes
finalidade de subtrair-se à ela. (Baratta, 2006. Baratta grifou apenas "sentido") comandam neste mundo fantástico pseudo real a realidade da imagem de uma forma diferente, de
uma maneira muito mais decisiva do que no mundo" (Gramsci, caderno A, p. 33-35 bis, Notizie sul
Esse processo tem que criar as condições da liberdade ideológica. Recusar-se à film americano). [Citado por Baratta, idem. Grifo nosso].
sedução do discurso do dominador - tão forte e imaginativo quanto possa ser - im-
152 ''Americanismo'' para Gramsci é, também, mas não apenas (como será por exemplo para Said
plica na práxis da construção de uma sociabilidade acima e contra a ordem do ca- "Orientalismo"), a imagem subjetiva construída de fora (em particular pela Europa), de uma reali-
pital. Esse processo de emancipação ideológica já tinha sido colocado como projeto dade geográfica, social e cultural (a América estadunidense), mas ao mesmo tempo esta mesma re-
por Gramsci nos anos posteriores à primeira guerra interimperialista. O pressuposto alidade considerada tendencialmente de dentro, com uma busca portanto de objetividade. (Baratta,
2004, p. 155).
básico é a afirmação gramsciana de que "Todos os homens são intelectuais" (1975, Mordenti (1996, p. 24) indica que uma das fontes gramscianas sobre o americanismo e o fordismo
p. 1516), afirmação que Mordenti considera "a mais revolucionária, escandalosa e foi "[ ... ] um número especial da revista "Die Literarische Welt" dedicado à literatura dos Estados
não escutada das afirmações gramscianas" (Mordenti, 2007a). Como assim? Ela não Unidos, e que representa um verdadeiro e próprio incunábulo das reflexões gramscianas sobre o
"americanismo" e o fordismo, assumindo então um significado estratégico no percurso da reflexão
é uma das citações mais repetidas de Gramsci? O problema é que essa repetitividade gramscianà:
106 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 107

Mordenti (2007a) chama a atenção para a ancestralidade dessa dominação. E também Vemos, assim, claramente que o poder "despótico" e o governo político são, apesar da opinião de
o papel dos intelectuais dos dominantes nesse processo. Recuperemos uma afirmação alguns, coisas muito diferentes. Um só existe para os escravos; o outro existe para as pessoas que a
natureza honrou com a liberdade. O governo doméstico é uma espécie de monarquia: toda casa
anterior. As formas mais homogêneas são a filosofia e a religião. Na prática uma e outra
se governa por uma só pessoa; o governo civil, pelo contrário, pertence a todos os que são livres e
conformam "normas de vidà' e, assim, orientam a prática dos membros de uma dada iguais. Não é, aliás, uma ciência adquirida que faz de um homem senhor de outro. Esta qualidade
formação social. Entre elas existe outro ponto comum: trabalham sobre abstrações for- pode existir sem isso; como a liberdade e a servidão, ela tem um caráter que lhe é natural.
mais, recusam a historicidade concreta da vida e das lutas sociais. Sua homogeneidade
se deve exatamente a isto. Contudo elas não estão desligadas da prática social. Gramsci Vemos aqui não apenas a naturalidade da escravidão. A relação senhor escravo
referindo-se a Croce falava que este tinha um duplo referencial: modelo típico de fi- é senhorial constituindo-se como o modo de saber ordenar, que é, aliás indigna re-
lósofo engajado na conservação da sociedade sob a atual dominação ele por um lado querendo uma espécie de intelectual de segunda ordem, encarregado dessa mediação.
expressava um continuum filosófico, por outro afirmava sua ligação indissolúvel com Encontramos aqui um elemento típico da tradutibilidade gramsciana. Produtos de
a burguesia italiana: "Croce, especialmente, se sente ligado fortemente a Aristóteles e uma época histórica distinta onde a escravidão era uma das bases da vida social essa
Platão, mas não esconde estar ligado aos senadores Agnelli e Benni e nisto precisamente antropologia filosófica vem sendo traduzida permanentemente pelos dominantes
deve se pesquisar o caráter mais elevado da filosofia de Croce)': (1975, p. 1515). para marcar a subalternidade das classes populares. O discurso do trabalho como
Essa dominação não é uma fatalidade embora seja um poderoso obstáculo. Mor- fadiga (ou mesmo como culpa) encontra-se tanto nas Sagradas Escrituras quanto nos
denti mostra esse processo apresentando Platão e Aristóteles como constituidores pais do liberalismo, pensamento que se caracteriza pela exclusão (ou em algumas situ-
de um modo de pensar e representar que é, ainda hoje, decisivo no processo de con- ações pela inclusão subalterna do outro) daqueles que não tendo propriedade lhes resta
servação política e de conquista da subjetividade antagonista. Trata-se da relação do a incapacidade da fala, da construção da hegemonia. Falamos em culpa. Lembremos
pensamento com o trabalho físico. de Locke, Segundo Tratado do Governo Civil, onde se afirma que a deSigualdade não
era natural, mas decorria do fato de que alguns não seguiram a lei do Senhor.
Platão no Górgias define, uma vez por todas, para o Ocidente, a verdadeira liberdade, própria dos A questão da leitura é essencial. O processo discursivo seja na forma da norma
senhores e dos filósofos, em relação de oposição ao trabalho. No diálogo platônico Sócrates está falando clássica, seja na popular tem nas línguas ditas modernas um complemento: o da
dos construtores de máquinas, lhes reconhece a utilidade, mas determina:
Nem por isso deixarás de menosprezá-los à sua arte, e como ofensa os chamaras bànausos, e poderíamos, leitura. Problema que se apresenta sob formas variadas, mas que passa, necessaria-
por troça, chamá-lo de mecânico (bànauso), como decerto não darias quererás tua filha para casar-se mente, pela interpretação. Ler o real é, na perspectiva dos subalternos, elemento de
com ofilho dele, nem permitirias que teu filho tomasse a dele em casamento. (Mordenti, 2011, p. 98)153 emancipação; é uma forma de apropriação - individual, social - de uma produção
histórica determinada. Historicidade e produção naturalizadas pelo senso comum.
Processo que tem continuidade na reflexão de Aristóteles (Ética a Nicomaco) Daí a importância da advertência de Châtelet (1968a, p. 81): "Jamais se termina de
quando afirma que "o próprio do homem" (idem, p. 99), aquilo que o torna tal é sua- aprender a ler, isto é, de desaprender a recitar e a constatar."
parte racional, isto é, a atividade especulativa: Esta é de fato a atividade mais elevada, Em uma visão carregada de senso-comum e sub sumida à norma culta essa questão
dado que o intelecto é em nós o princípio superior e refere-se às coisas mais excelsas é pensada como neutra e fortemente determinada pelas formas aparenciais. Ela se
entre aquelas passíveis de conhecimento. [. .. ] revela como tudo na sociedade mercantil-capitalista, objeto do fetichismo específico
dessa sociedade. Aparece como algo imediato, já dado, pronto para uso e consumo.
O trabalho, pelo contrário, é caracterizado no pensamento aristotélico pela necessidade e pela A nós, nessa lógica, cabe aceitar. Essa visão não é, contudo, única. Trata-se, assim,
fadiga [... ]. Quem sabe e quem usa não sabe fazer e, mais, não deve saber fazer. Aristóteles escreve
de uma reprodução/duplicação da forma de expressar dominante, da weltanschaung
na Política que o poder senhorial não consiste no "saber fazer': mas no "saber fazer USO"154: o saber
fazer é próprio dos servos. (idem, pp. 99-100) dos que comandam o processo. Marx e Engels em A Ideologia Alemã assinalaram
que as idéias dominantes em uma dada formação social são as idéias das classes do-
Ao examinar as diferenças entre o "Despotismo" e o Poder Político Aristóteles, minantes. Indicaram assim o caráter de produção das idéias que não descem do céu
ressaltando o "saber fazer uso': afirma: à terra pela pura mediação dos filósofos e afirmaram que a centralidade das classes
dominantes se exerce também no plano das representações.
153 Mordenti esclarece que bànausos está associado a "trabalho manual, ofício [... ] grosseria; mau
gosto". E acrescenta: "Note-se também a precisão quase racista de Platão no trecho citado do Górgias Os subalternos são obrigados a pensar sua historicidade/realidade - isto é, o con-
em ordem à necessidade de não fazer casar os próprios filhos com os filhos dos bànausos, isto é, de junto de sua experiência social - no interior do campo discursivo-ideológico dom i-
não mesclar o sangue das duas raças:' (2011, pp. 98-99) nante, que afirma o que e como pensar e praticar. Mesmo as questões aparentemente
154 Política, IH.
108 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 109

mais distantes deste problema são marcadas por esse discurso, que sempre e sempre marxismo não mistifica a história, não projeta no passado o presente, não aceita a ascesa
se realiza no interior de uma dada weltanschaung, de uma relação de poder. triádica ininterrupta nem o ''deus ex machina". Concebe a história como dialética efetiva
Estas formas discursivas atuam na eliminação da subjetividade e da historicidade de contrastes e rupturas, como drama real do homem. (Panzieri, 1973, p. 35. Grifo nosso)
dos subalternos, em um processo que denominamos captura da subjetividade anta- Falar (escrever) e ouvir (ler) é uma relação pensada como fala, como visão, no inte-
gonista. A luta de classes se desenvolve no cotidiano, nas mais diversas formas: da rior do processo de captação puramente sensorial. Falou e disse (ouviu e entendeu).
família, da escola, das relações de trabalho, etc., nas insituições da violência, como Se o texto é uma verdade, a leitura é uma tomada de consciência da verdade daquele
dizia Basaglia. Como em toda luta de classes existem contradições também no pro- texto. Assim, evidentemente, o processo de leitura se dá sob a forma de comentário, que
cesso de leitura, pois as palavras, as sentenças desempenham aí um papel vital. Su- tem por função repetir, manter, reforçar a verdade156• No entanto, o comentário pode
perar a aparente neutralidade da leitura, examinar a possibilidade de conservação X ser (e frequentemente o é) uma traição ao texto. A grande questão é a naturalidade,
ruptura, significa começar a fazer a crítica da ideologia dominante e pensá -la como a meta-historicidade de um sujeito universal pela ausência das determinações que
produção, como projeto. A leitura revela/oculta o embate de projetos vigentes na marcam sua presença no real.
nossa sociedade. A leitura é uma relação entre produtores (definidos por um conjunto de relações so-
A concepção imediata, e imediatista, da leitura remete desde o início a uma po- ciais, sejam econômicas, políticas ou teóricas), e não uma relação entre consciências.
sição empirista-humanista que contamina todo o seu conjunto e torna impossível A leitura definida como prática (relação social) só pode ser entendida como práti-
o conhecimento do seu processo. Ela traz consigo vários problemas. Um deles é a ca (transformação) teórica. A leitura passa do puro campo da intersubjetividade de
identificação entre palavra e conceito o que pode permitir o ocultamento das deter- iguais para o da luta hegemônica. O discurso não é natural, mas responde às formas
minações objetivas. Vejamos a aparência da forma contratual do trabalho na socie- de luta. Dependendo do modo que se procede à leitura pode-se modificar ou impe-
dade capitalista. Ao reduzir-se força de trabalho à trabalho, ao identificar compra- dir que um determinado conteúdo seja explicitado. Recalca-se, assim, possibilidades
dores e vendedores dessa mercadoria particular, ela permite transformar a violência e realiza-se outras. Exemplar disso foi a primeira edição dos Cadernos do Cárcere sob
classista em algo natural, legítimo, desejável. A posse de uma carteira do trabalho a direção de Togliatti. Gerou-se aquilo que Coutinho (1990)157 chamou de operação
transforma o indivíduo em cidadão. O "fichado': como se diz em várias partes do Gramsci. Durante adverte tratar-se de um sucesso vulgarizado vastíssimo, mas ao
Brasil, é, por esse simples fato, um ser da ordem, um cidadão (sic). Obviamente este mesmo tempo redutivo porque baseado sobre a circunscrição ao campo literário de
é um processo fetichizado. uma idéia concebida com alcance mais amplo. [... ] Gramsci [como] mestre de crítica
É no âmbito de uma representação mítica própria de uma classe em uma socieda- literária dos anos do neorealismo, e ainda sob essa que se exemplaram as páginas
de classista que se poderá articular um homem plenamente racional e a-histórico. antológicas relativas à Gramsci dos manuais para a escola [... ] tendente a fazer de
Um homem omniconsciente que pode, como no projeto iluminista, por sua capa- Gramsci um intelectual democrático de alcance nacional, tradicionalmente orienta-
cidade racional dominar a história e a natureza, elas próprias a-históricas, eternas. do para uma pedagogia histórico-cultural tendo como centro o Risorgimento.
A trajetória partiu da libertação do pensamento medieval, mas acabou por tentar
[... ] um esforço de desincrustração: nenhuma outra noção gramsciana tem sofrido a estratificação
tornar impossível o surgimento de uma subjetividade para além e contra a ordem do de leituras e de usos muito rígidos ou instrumentais que nacional-popular sofreu. "Sociedade
capital: do "Iluminismo" caminhou-se para a "razão instrumental". A forma burguesa civil" poderia ser a segunda, vizinha à outra como ponto de apoio para a leitura de um Gramsci
da leitura nega a historicidade e a subjetividade dos antagonistas. Ela não possibilita mais democrático que comunista e teórico da prevalência da superestrutura, que freqüentemente são
compreender/transformar o real, mas reforça o domínio do já construído histori- colocados ao lado pelos mais rigorosos filões de pesquisa sobre o pensador. (idem. Grifo nosso)
camente pelo poder vigente, do conhecido transformado no eterno sempre. Basta
repeti-la, comentá-la, para que possa ser mais bem consumida. O stalinismo 155, por A "operação Gramsci" fazia parte do esforço do PCI de tornar-se um partido da
exemplo, quando se tornou dominante passou a ser visto como a "verdade" do mar- ordem. Para tal Gramsci, o ícone que foi deformado, deixava de ser um líder revolucio-
xismo, sob o título de "marxismo leninismo': Ao marxismo se substitui uma dialética nário para ser um teórico literário muito interessante. O processo de incrustação que
mistificada, na história se adora o fato e se abole o homem (e o ''jato'' pode mesmo ser Durante fala é a da despolitização, da mistificação.
um "único" homem e seu ''culto''), a pesquisa das responsabilidades ''objetivas'' se con- 156 Retome-se aqui a leitura do livro de Châtelet (1968) onde se demonstra como o sistema escolar
francês "usà' a filosofia para formar o "homem honesto': o "bom cidadão': .. do ponto de vista da or-
verte na absolutização de um presente político e em um presente histórico inventado. O dem vigente é claro. Châtelet diz que seu livro é apenas uma "descrição': mas é muito mais que isso.
155 "O vocabulário, aqui também, é muito significativo: disciplina, fidelidade, confissão ('autocríti- É a demonstração de como uma "leiturà' fetichizada e desarticulada frequentemente é uma traição
cà), heresia ('revisionismo'), apostasia ('traição'), excomunhão ('exclusão') etc:: (Labica, 2009, p. 45). ao que os autores disseram sem que isso cause o menor escândalo.
Ver Costa-Gavras (1970). 157 Para uma leitura contraposta à essa análise ver Dias (1991 e 1994).
Um dos maiores defeitos da edição temática dos Cadernos do cárcere é o fato de não ter levado O saber se constitui por rupturas, por vezes radicais, com o saber anterior. Por sua
em conta as indicações do autor na divisão das notas por "temas principais" e tê-las, ao contrário, colocação em questão, o que supõe uma atitude antievolucionista por parte do teó-
agrupadas conforme uma "enciclopédia das ciências" de tipo tradicionalmente humanista e no rico. Exemplo típico: a constituição do conceito de valor que permitiu a explicação
fundo acadêmico. (Baratta, 2004, 65). '
da mais-valia e dos segredos inerentes à ordem capitalista. Ricardo descobrira o sig-
nificado do trabalho, mas, prisioneiro de sua formatação classista e ideológica, não
Isso deixava aberto o caminho para uma "leiturà' inteiramente deformada da obra
podia dar o passo sucessivo e constituir a teoria da exploração por acreditar e sus-
gramsciana. Leitura que foi "compradà' por boa parte da esquerda extra -parlamen-
tentar o mercado capitalista como realidade inarredável. Mercado abstrato, relações
tar apesar da publicação, em 1975, da edição crítica que permitiu uma desincrus-
sociais naturais. Marx e sua teoria do valor permitem pensar o mercado determina-
tação, "ignoradà' por esses leitores. Os exemplos do procedimento de eliminação
do (Gramsci) com relações sociais capitalistas e sem a segmentação entre política e
dos elementos centrais da teoria e sua transformação em um conjunto de "normas"
economia, superando assim a idéia do homo reconomicus e afirmar que burgueses
abstratas e a-históricas são abundantes nas teorias sobre a totalidade social.
e proletários têm natureza radicalmente distinta e que os primeiros se constituem
Quando Maquiavel escreve O Príncipe ele está se referindo a um projeto de trans-
também pela exploração e opressão dos segundos. O homo reconomicus não é uma
formação, política e não apenas conhecendo melhor o real. A recusa à sua obra é pro-
abstração vazia. Ela é o resumo em estado puro da prática burguesa. A grande questão
va do carater do embate hegemônico. Até hoje passado quase quinhentos anos ainda
está na identificação desta com uma presumida natureza humana.
se fala em maquiavélico quando se fala sobre alguém sem princípios. Seu discurso
Retomando a Introdução de 1859 de Marx, Gramsci localiza, com precisão, como
sobre a Fortuna e a Virtu, ou foi empobrecido, simplesmente reinscrito por meio de
agir aqui: "Buscar a real identidade sob a aparente diferença e contradição e procurar
comentários ao próprio discurso que contestava (o discurso religioso dominante),
a substancial diversidade sob a aparente identidade, eis a mais essencial qualidade do
ou rec~lcado como ~moral ~ e portanto inaudível). Na realidade, na medida em que
crítico das idéias e do historiador do desenvolvimento social': (1975,33)
Maqmavel pronuncIa um dIscurso novo na linguagem anterior (filosófico-religiosa),
Nas diversas leituras sobre as transformações atuais do chamado "mundo do tra-
te~emo~ ~ma não compreensão/deformação do autor. Sejam estas marcadas pelo de-
balho" são colocadas lado a lado tanto tentativas marxistas quanto de várias outras
seJo/pratlca da conservação, seja pela dificuldade do novo modo de apropriação no
matrizes. Tudo se processa, como se efetivamente, ao analisarmos desta maneira o
processo de transformação. Poderíamos ainda citar o uso do anticomunismo como
processo de produção já tivéssemos a chave para a decifração do real. Nesse movi-
ferra~e.nta política mesmo por aqueles que dizem que Marx já morreu e pertence,
mento juntam-se leituras deterministas, voluntaristas, que acentuam a mecanicida-
no maxImo, ao museu das quinquilharias ideológicas.
de do real e a eliminação do trabalho como seu elemento constitutivo. O elemento
Escrita/leitura são formas de expressão das relações sociais. Não são sujeitos abs-
que unifica essas leituras é a ideia de que o capitalismo sofreu modificações tão pro-
tratos os que escrevem ou lêem. E a própria relação da leitura nada mais é do que
fundas que já não é mais o mesmo. Desapareceriam os antagonismos, a teoria do
~~~ prOdução: na medida em que, ao nos depararmos com um texto (e suas pos-
valor; as diferenças classistas se transmutaram em diferenças individuais. Não mais
sIbIhdades), nos o leremos a partir de um conjunto de questões (desejos, interesses,
sociedade capitalista, mas sociedade da informação, dos serviços, etc. Não mais clas-
probl~mas, etc.) q~e determinam o tipo de leitura feita. Aqui a forma hegemônica
ses e lutas de classe, mas grupos sociais e lutas de classificação, não mais operaria-
organizai desorganIza o campo dos saberes e das práticas. Quando uma weltans-
do, mas aqueles que "vivem -do-trabalho': Aqui há uma questão interessante. Quem
chaung, tradução de poderes/saberes, se impõe ao derrotar seus oponentes ela bus-
"vive-do-trabalho"? O operário ou o burguês? Marx, nos Manuscritos econômico-
ca - e consegue em larga medida - reorganizar o campo dos poderes/saberes dos
-filosóficos, falava em "viver-para-o-trabalho" como caracterização do trabalhador
subalternos. Estes passam a pensar no interior do campo de saber dos dominantes
sob a propriedade privada. Posteriormente sua investigação permitirá a construção
na qual são subsumidos. A violência cotidiana é vista, por exemplo como "natural"
"fatal" ~ ~s .subalternos vêm-se como impotentes. Trata-se do proc;sso de conquist~
do conceito de classes trabalhadoras. O reino do pós-modernismo é a tentativa de
negar a história, as classes, enfim o próprio real. Esta leitura demonstra que o acordo
da subjetIvIdade antagonista. Se os subalternos não podem falar, obviamente não
substantivo explica apenas uma coisa: o recuo de muitos teóricos marxistas e sua ade-
podem expressar suas historicidades, suas necessidades.
são a outros projetos políticos. E o avanço dos teóricos do capitalismo. Fora isso existe
A leitura "naturalizadà' é, na realidade, uma redução do desconhecido ao conhecido e,
uma enorme diferença de explicações, de situações, de projetos, todos dentro da Ordem
portanto, empobrecimento e deformação. Supõe necessariamente que são impossíveis cor-
do Capital, obviamente.
tes no processo do conhecimento. Se o conhecimento é visto como puramente cumulati-
vo, n~o há espaço para pensar o discurso como algo novo o qual passa por absurdo ao
questlonar o saber anterior. Trata-se do caminho propício ao determinismo e à derrota.
DECIFRAR O FETICHISMO, CONSTRUIR A EMANCIPAÇÃO

o trabalho educativo-formativo que um centro de cultura desenvolve, a ela-


boração de uma consciência crítica que ele promove e favorece sobre uma
determinada base histórica que contenha as premissas de sua elaboração,
não pode limitar-se ao simples enunciado teórico de princípios "claros" de
método [... ].

Antonio Gramsci

Superar o fetichismo significa examinar os discursos como projetos de intervenção


no real, e como sua duplicaçã%cultamento. Trata -se de examinar suas especifici-
dades, isto é, sua produção e sua interferência na cena histórica mundial. O discurso
é, sempre e necessariamente, a prática de um projeto de hegemonia. Consciente ou
inconscientemente. Todo e qualquer movimento político que pretenda a construção
da sua hegemonia tem que criar, necessariamente, uma leitura da história com a qual
e pela qual pode apresentar-se como projeto.

Na realidade, toda corrente cultural cria uma linguagem própria, isto é, participa no desenvolvimento
geral de uma determinada língua, introduzindo termos novos, enriquecendo com conteúdo novo
termos já em uso, criando metáforas, servindo-se de nomes históricos para facilitar a compreensão
e o juízo sobre determinadas situações políticas. (Gramsci, 1975, pp. 2264-2265.)

Ilustrativa dessa necessidade é a análise de Marx:

Os homens fazem sua própria história, mas não afazem arbitrariamente, não afazem em condições
escolhidas por eles, mas em condições diretamente dadas e herdadas do passado. A tradição de
todas as gerações mortas pesa muitíssimo sobre o cérebro dos vivos. E mesmo quando estes parecem
ocupados em se transformar, a eles e as coisas, em criar algo absolutamente novo, é precisamente
nestas épocas de crise revolucionária que eles evocam, temerosamente, os espíritos do passado,
para que lhes emprestem seus nomes, suas palavras de ordem, seus costumes, para aparecer na
nova cena da história sob esta fantasia respeitável e com aquela linguagem emprestada. Assim,
Lutero toma a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789 à 1814 se veste sucessivamente
com as roupas da República romana, depois com as do Império romano e a Revolução de 1848
"'í

114 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 115

não soube fazer nada de melhor do que parodiar, tanto 1789, quanto à tradição revolucionária
de 1793 a 1795. (1928, p. 23. Grifo nosso).
volução francesa cidade e campo "unificaram-se': a sociedade foi questionada de alto
a baixo e, pelo Iluminismo houve a possibilidade de nascimento de formas relativa-
mente democráticas.
A classe tem que produzir seus intelectuais capazes de pensar os problemas de sua
classe e se fundir às experiências concretas das suas bases com o saber já elaborado A reforma luterana e o calvinismo suscitaram um vasto movimento popular-nacional onde
pelo crescimento intelectual de massa. se difundiram, e apenas nos períodos sucessivos uma cultura superior [... ]. É verdade que
mesmo a Reforma na sua fase superior assumiu necessariamente os modos do Renascimento
Ampliei muito a noção de intelectual e não me limitei à noção corrente que se refere aos grandes e como tal se difundiu mesmo nos países não protestantes onde não tinha havido a incubação
intelectuais. Este estudo traz consigo certas determinações de Estado que habitualmente é entendida popular; mas a fase do desenvolvimento popular permitiu aos países protestantes resistir tenaz
como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para conformar a massa popular e vitoriosamente à cruzada dos exércitos católicos e assim nasce a nação germânica como uma
segundo o tipo de produção ou a economia de um momento dado) e não como equilíbrio da das mais vigorosas da Europa moderna. A França foi lacerada pelas guerras de religião com a
Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda uma sociedade vitória aparente do catolicismo, mas teve uma grande reforma popular no século XVIII com o
nacional exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, a escola, etc.) iluminismo, o voltairianismo, a enciclopédia que precedeu e acompanhou a revolução de 1789:
e precisamente na sociedade civil atuam especialmente os intelectuais (Benedetto Croce, por exemplo tratou -se realmente de uma grande reforma intelectual e moral do povo francês, mais completa que
é uma espécie da papa laico e um instrumento eficacíssimo de hegemonia mesmo que uma ou a luterana alemã, porque abraçou também as grandes massas camponesas, porque teve um fundo
outra vez possa encontrar-se em confronto com o governo, etc.). Desta concepção da função dos laico destacado e tentou substituir à religião por uma ideologia completamente laica representada
intelectuais, penso, vem iluminada a razão ou uma das razões da queda das Comunas medievais, isto pela ligação nacional e patriótica; mas sequer esta teve um florescimento imediato de alta cultura
é, do governo de uma classe econômica, que não soube criar sua própria categoria de intelectuais e [... ]. (1975, pp:1859-1860).
então exercer sua hegemonia além de uma ditadura; os intelectuais italianos não tinham um caráter [... ] o portador histórico da Reforma é o povo alemão, não os intelectuais. Mas esta "velhacarià'
popular-nacional, mas cosmopolita sobre o modelo da Igreja e a Leonardo era indiferente vender ao dos intelectuais explica a "esterilidade" da Reforma na alta cultura, até que nas classes populares
duque Valentino os desenhos das fortificações de Florença. As Comunas foram então um estado reformadas não se seleciona lentamente um novo grupo de intelectuais e eis aí a filosofia alemã dos
sindicalista, que não conseguiu superar esta fase e tornar-se um Estado integral. (Gramsci, 1965, p. (1)700-(1)800. (pp. 424-425).
481. Carta a Tatiana Schucht, 7-9-1931. Grifo nosso)
No que se refere ao processo soviético a possibilidade de construir uma nova so-
Realizar a dialética direção-base sem ignorar o movimento orgânico do real é uma ciabilidade foi abortada por um amplo conjunto de elementos que vão da própria
necessidade: criar uma nova weltanschauung capaz de dar-lhe sentido e direção, um natureza da sociedade sob o tzarismo, ao peso do campesinato (Anweiller, 1972), a
novo patamar de intervenção política. As formas que surgirão daí devem estar em implantação recente da indústria e da reconstrução da até então classe operária des-
constante aderência ao real para alterar a correlação das forças em presença. Deve truída pela guerra civil e pelas intervenções externas. Contribuiu também fortemente
atuar no sentido de um centralismo em movimento, recusando o centralismo burocrá- a dispersão dos velhos bolcheviques por todo o imenso território russo, pela cons-
tico que seguramente leva as forças subalternas emergentes à derrota. tituição da burocracia estalinista (incluindo aí a destruição-morte da velha guarda
Gramsci trabalhou vários momentos neste processo: a dialética reforma - renasci- bolchevique). Um dos problemas fundamentais nesse processo foi a incapacidade de
mento, o processo hegemônico da revolução francesa, o processo soviético e a dialé- construir a aliança operário-camponesa. O problema da terra, o peso dos camponeses
tica da revolução passiva. No primeiro deles nossa simpatia original se desloca quase ricos, a questão das nacionalidades, tudo isso atuou objetivamente na passivização da
automaticamente para o renascimento visto como uma forma superior e tendemos revolução. O processo abortado foi produzido pela derrota de uma direção altamente
a negar a reforma como algo necessariamente reacionário. O renascimento foi um qualificada por outra caracterizada pelo nacionalismo grão-russo, o burocratismo e
movimento interno aos dominantes e excludente dos subalternos, afirmou Gramsci, a utilização de um modo militar de conduzir o processo, sem ignorarmos a visão po-
reconstruiu uma cultura que nada tinha a ver nem ideológica nem materialmente sitivista dessa nova elite governamental. O resultado foi a incapacidade de superar o
com os subalternos. Já a reforma, apesar do seu caráter religioso e sectário (para determinismo. Trotsky preocupou-se com o processo de constituição da nova classe
Lutero a aliança sempre foi com os príncipes; e os camponeses eram tratados como operária: da militarização do trabalho 158 ao problema do modo de vida (1971).
pouco mais que animais) constituiu uma linguagem nacional-popular em oposição
158 Essa tese já fora defendida no IX Congresso do PC realizado em março e abril de 1920 onde
às formas clássicas, permitiu a alfabetização das massas (ler a Sagrada Escritura era foram aprovadas "a maior militarização do trabalho e a criação de exércitos do ,~rabalho" (Deuts~her,
um dever inarredável) e desenvolveu, por isso mesmo, a imprensa de massa, claro p. 50) e apoiada por toda a direção do partido. Deutsc~er (p. 52) come~ta: , E.m anos pos,tenores
que nos limites do seu tempo. Tocou vivamente a vida dos subalternos e mobilizou- fez-se moda vituperar aos exércitos do trabalho e sugenr que Trotsky fOl o un~co respons,av~l por
sua criação. Contudo, o próprio Stalin ocupou a presidência do Conselho Ucramano do Exercito do
-os integrando-os à ordem. Marx já tratara disso nos Anais Franco-Alemães. Na re- Trabalho, enquanto Trotsky, como presidente do Conselho do Trabalho e da Defesa, encab~çava a
organização em toda a Rússia:' Às páginas 52 e 53 desse livro vem transcrita a posição defendIda por
116 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 117

o processo de russificação, tanto interna quanto externamente, contribuiu para se processo, sem falarmos nas contínuas e variadas formas de recolonização, controle
impedir a criação de uma sociabilidade revolucionária; o "homem novo" não nas- geopolítico de recursos e territórios, etc. A finada Rússia, de Stalin a Yeltsin, viveu inten-
ceu. Houve entre outras medidas "a ação de [uma] legislação e planificação lingüís- samente essa revolução passiva. Mordenti (2007) acentua que
ticà' (Carlucci, p. 2). Ele afirma que aquele processo tem
o atual domínio capitalista sobre o mundo não é hegemônico (no sentido próprio de hegemonia)
[... ] paralelos com o que está acontecendo hoje na Europa. Certamente, não devemos esquecer nem pode sê-lo, já que, no momento mesmo de sua esmagadora vitória, ele se revela absolutamente
as condições históricas enormemente diferentes e a matriz ideológica diversa; mas, por certas incapaz de resolver os problemas da humanidade associada, o capitalismo não pode ampliar-
tendências, a União Européia recria um contexto institucional definido, não de todo diferente se organicamente à totalidade dos povos do mundo (a não ser sob a forma da exploração,
daquele do estado dos sovietes, e aos problemas que aquele estado já tinha enfrentado, dá soluções da expropriação, até a morte pela fome), e provoca, em suma (ao mesmo tempo!) crises de
baseadas sobre princípios parcialmente análogos. [... ] a paridade entre todas as línguas dos estados superprodução e crises de sub consumo, o capitalismo não pode resolver o problema crucial da
membros, e a assunção [de uma] língua como língua oficial da União. Um princípio que não relação entre o homem e o planeta que o hospeda, que tende, portanto, ao desastre ecológico
difere muito daqueles proclamados por Lenin em seu tempo; [... ] entre um plurilinguismo de jure, irreversível; muito menos o capitalismo pode resolver o problema da paz entre os homens, e
oficialmente reconhecido e promovido, e a prevalência implícita, de facto, de uma língua sobre pelo contrário produz continuamente e de modo crescente, das suas próprias vísceras, guerra e
outras [... ]. (idem, pp. 2 e 3) terrorismo, guerras terroristas e guerras de extermínio [... ]. [p. 14].
Mas, o que acontece quando a iniciativa é tomada pelos nossos inimigos? Que fazer quando os
segmentos mais lúcidos da burguesia intentam resolver a crise orgânica de hegemonia, de legitimidade
Entre essas duas possibilidades existiu o primeiro experimento estatal operário: a Co- política e de governabilidade apelando a discursos e simbologia ''progressistas'', colocando-se na cabeça
muna de Paris. Marcado pela sua divisão interna a Comuna conseguiu no seu breve das mudanças para desarmar, dividir, neutralizar e finalmente cooptar ou demonizar os setores
espaço temporal mostrar suas potencialidades estatais. O seu isolamento em relação populares mais intransigentes e radicais? [. .. }
ao campo e a ação da burguesia francesa, entre outros motivos, foram causas de sua A revolução passiva é para Gramsci uma "revolução-restauração': ou seja, uma transformação feita
por cima, pela qual os poderosos modificam lentamente as relações de força para neutralizar os
derrota. A burguesia aliou-se ao invasor alemão contra os communards, provando que
seus inimigos de baixo. (Kohan, 2006. Grifo nosso)
diante do "perigo" operário vale a pena qualquer alternativa. Tratou-se de uma clara
manifestação de revolução passiva em âmbito internacional. O imenso jogo das con- Pode "garantir a passividade das massas dos dominados, suas desagregações e da
tradições internas (blanquismo, proudhomismo, AIT, etc.), o peso extraordinário da incapacidade da parte deles de projetar" (p. 16), mas sem resolver as questões coloca-
miséria, do desemprego, das múltiplas e variadas necessidades populares, o processo re- das pela sua própria crise. Gramsci, falando da crise das primeiras décadas do século
cente da constituição de uma classe operária moderna foram limites sempre marcados passado, advertia - e isto continua válido - que:
e presentes 159 • Faltou o enfrentamento com as questões centrais: a estatização do sistema
financeiro, a demora no ataque a Versailles, etc. Contudo a constituição do cidadão-em- o que agrava a situação é que se trata de uma crise em que se impede que os elementos de solução
-armas, de um executivo e um legislativo que não tinham exterioridade entre si, da re- se desenvolvam com a celeridade necessária, mas tem o poder [de impedir] que outros a resolvam,
vogabilidade dos mandatos, etc., mostrava a possibilidade nova que se abria. Abortava- isto é, têm apenas o poder de prolongar a própria crise. (1975, p. 1718).
-se, assim, a constituição da nova sociabilidade.
A hegemonia sem hegemonia, caso típico de revolução passiva necessita e requer um
Gramsci trabalhou o conceito de revolução passiva. Diante do avanço das forças po-
discurso que neutralize a voz, o projeto dos antagonistas. Nada tem de estranho que os
pulares a burguesia preferiu sempre a aliança com seus antigos dominadores - com
dominados reproduzam como seu o discurso que legitima sua opressão. Esse discurso
os junkers na Alemanha, por exemplo - e constituiu sua presença estatal em grande
é uma aparência, mas uma aparência necessária. Discurso que chega a sofisticam ente
medida subordinadamente. A revolução passiva marcou e marca um período epocal:
ler o real no sentido inverso ao dos dominados e ser aceito por estes.
de 1848 até hoje ele é dominante. As soluções capitalistas para sua crise (nazi-fascismo,
taylor-fordismo, welfare state entre outros) implicam nesse acordo entre os dominantes Agora a defesa do presente estado de coisas não toma mais a forma da apologia e sequer a da
e as direções reformistas contra os subalternos ainda que aqui e ali a forma seja mais ou persuasão; agora basta (mas é absolutamente necessário!) convencer que outro mundo é im-
menos democrática (aparência necessária). Sempre que o "perigo dos trabalhadores" possível [... ] im-pensável. (Mordenti, 2007, p. 17).
- classes perigosas - parece ganhar concreção essa democracia torna -se mais e mais
Estados. Foram apenas induzidos a exercitar conjuntamente o seu poder para corresponder às exi-
formal. O chamado neoliberalismo 16o e a reestruturação capitalista são formas reais des- gências da globalização. Suas instituições foram, de fato, geridas pelos comissários que nelas repre-
Trotsky no III Congresso dos Sindicatos. sentam nesses Estados e agem na base das atribuições que, mediante tratados explícitos, os Estados
159 Sobre isso ver Watkins, 1999. conferem à tais instituições, internacionais sobreinternacionais que sejam. A decidir as desregula-
160 "Não é verdade que os mercados expropriaram os Estados. Pelo contrário é verdade que os mentações dos anos 80 não foi a espontaneidade das massas de explorados e oprimidos. Foram os
Estados tenham abdicado a favor dos mercados. Não é verdade que a globalização intensificou os Estados governados por crentes das velhas e novas ortodoxias liberais:' (Ferrara, 2011)
r"i
I I
I

118 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 119

Os meios de comunicação de massa tornam-se decisivos na disputa hegemônica, al- O marxismo, filosofia, que se propõe como construtora da racionalidade da ação
terando fundamentalmente o processo da luta de classes. Ouçamos ainda a Mordenti dos subalternos

um programa televisivo não é de fato produzido para ser vendido ao público, pelo contrário, é produzido tinha duas tarefas: combater as ideologias modernas na sua forma mais refinada e iluminar as
para vender o próprio público às empresas de publicidade. Assim o público de sujeito (ainda que massas populares, cuja cultura era medieval. Esta segunda tarefa, que era fundamental, absorveu
passivo) do mecanismo de compra-venda torna-se definitivamente o seu objeto; quem-compra todas as forças, não apenas "quantitativà' mas "qualitativamente"; por razões ''didáticas'' o marxismo
(ou melhor quem-deve-comprar) torna-se assim aquilo-que-se-compra, e que é de fato vendido confundiu-se com uma forma de cultura um pouco superior à mentalidade popular, mas inadequada
aos que fazem inserções publicitárias por parte dos produtores televisivos; é de fato precisamente a para combater as outras ideologias das classes cultas, enquanto o marxismo original era exatamente
presença de tal mercadoria - o público - que determina sob a base dos índices de audiência o valor a superação da mais alta manifestação cultural do seu tempo, a filosofia clássica alemã. (Gramsci,
dos espaços publicitários que financiam os programas e consentem os enormes lucros dos donos das 1975, pp. 422-423. Grifo nosso).
redes de televisão.
[... ] a própria cultura sofre uma redução rigorosa à comunicação, e a comunicação não comunica O fato da esterilização do marxismo promovida pela legitimação da estatalidade
senão à ela mesma, dado que ela deve comentar tudo e o contrário do tudo. (p. 18. O terceiro grifo russa (e do stalinismo 162 , seu organizador) abandonou seu poder expansivo trans-
é de Mordenti.)161
formando-se em um mecanicismo positivista deixando de ser uma arma de eman-
cipação.
Redução que representa e expressa o fetichismo semântico tornado senso-comum,
"verdade reveladà: para a maioria da população. Pode-se dizer a propósito da filosofia do marxismo o que Luxemburgo diz a propósito da economia
política: no período romântico da luta, do Sturm und Drang163 popular, se aponta todo o interesse
[... ] a época que vivemos é estruturalmente o reino do oximoro, isto é, da coexistência dos opostos sobre as armas mais imediatas. Mas a partir do momento em que existe um novo tipo de Estado,
em uma única expressão, da perfeita subversão do sentido das palavras e das coisas, isto é (mais nasce concretamente o problema de uma nova civiltà e, portanto a necessidade de elaborar as
brutalmente) da supressão do sentido das coisas. A "guerra/humanitárià' e as "bombas/inteligentes" concepções mais gerais, as armas mais refinadas e decisivas 164. (p. 309)
são os fundamentos armados deste reino do absurdo cotidiano (ou melhor da insensatez absoluta,
dado que mesmo que a palavra "absurdo" contenha ainda um resíduo polêmico, e, deste modo,
A maioria dos intelectuais marxistas, presos a uma leitura oficialista, praticam
uma exigência implícita de sentido). (idem, pp. 18-19)
uma forma de teologia laica e à necessidade de repetir seus dogmas, realizaram eles
A força e a prática dessa hegemonia sem hegemonia é fundamentalmente tornar também sua cisão em relação às classes trabalhadoras. Esse processo instaurou uma
inaudível o discurso do subalterno. Inaudível e estranhado ele crise de direção a partir da qual não conseguiram capturar os intelectuais do capita-
lismo' antes tornaram-se prisioneiros destes. Os intelectuais tradicionais da burgue-
representa para os ideólogos do capitalismo real um objetivo político de primeira grandeza; tornar sia participaram da operação de hegemonia político-cultural de Croce fundada na
in-significante e in-sensato (isto é, im-pensável) o próprio conceito de "reformà' é certamente pretensão de autonomia. Eles se pensavam como os protagonistas de uma história
politicamente muito mais importante que [golpear os direitos sociais]. (p. 20). sem ligação com as classes, como um universal abstrato puro. É essa concepção que
permite aos intelectuais tradicionais se sentirem
Insignificante e in-significante, insensato e in-sensato, impensável e im-pensável não
são jogos de palavras ou formas retóricas de expressar o mesmo conteúdo. Quando Mor-
dente grafa o "in-" ele anuncia que neste discurso-arma de guerra de classes algo não tem 162 Togliatti, em uma entrevista em Nuovi argomenti, reconheceu os "graves atrasos da URSS no
nível superestrutural, a burocratização, o excessivo dos aparelhos propondo, nas relações entre os
significado, sentido, possibilidade de ser pensável. Na forma clássica com a junção do "in" partidos comunistas, o policentrismo:' (Dalmasso, 2004)
à palavra que se segue reduz-se o campo, com a separação se interdita; passamos do insig- 163 Sturm um Drang (Tormento e assalto) movimento de jovens poetas alemães contemporâneo
nificante (sem valor) ao in-significante (sem significado). Nesta hegemonia sem hegemonia ao Iluminismo (ou Esclarecimento como preferem muitos filósofos e tradutores). Originalmente
foi o nome de uma obra de Maximilien Klinger (1776). Participam do movimento Herder e Goethe
entre outros. Pretendiam a exaltação da cultura francesa e participar de uma luta política inexistente
[... ] o imaginário e a cultura jogam um papel bastante mais importante do que a esquerda no território alemão. "A angústia dos jovens Alemães diante do divórcio que eles constatavam entre
(pelo menos aquela não "gramscianà: isto é toda) seja capaz de compreender; e uma partida eles entre especulação e ação, diante da impossibilidade em que estavam de participar da história
absolutamente decisiva se joga em torno da memória, da tradição, da história. (p. 21) européia, diante do fosso que eles descobriam, súditos de pequenos príncipes e sonhando com 're-
públicas', entre sonho e realidade [... ]. Certamente toda a revolta de uma geração contra aquela que a
161 Cf. Ivana Bentes (2008, p. 5. Grifo nosso): "O espectador é o primeiro a ser 'explorado' pela pu- precede comporta, num primeiro momento, a rejeição global dos valores caros aos mais velhos - e,
blicidade, pela ficção, pelas 'atrações: Somos nós que emprestamos nosso tempo, nossa subjetividade ao mesmo tempo, uma regressão parcial:' (Asamov-Autrusseau, 1972, pp. 132-133. Grifo nosso). Ver
e nosso imaginário para criar valor na TV. Ou seja, o que a mídia vende/explora não é a publicidade também Modem, 1961.
- somos nós mesmos:' 164 Referência à existência da URSS. Luxemburgo é Rosa. O 10 e o 30 grifos são nossos.
nI
I
120 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 121

com "espírito de corpo" a sua interrupta comunidade histórica e a sua "qualificação", assim eles se O texto nos aparece agora como um conjunto de sintomas, atualizações de uma
põem a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante; esta autoposição
não é sem conseqüências no campo ideológico e político, conseqüências de vasto alcance (toda a
problemática. Não uma essência a ser revelada, mas uma representação, ao nível
filosofia idealista pode-se facilmente conectar com esta posição assumida do complexo social dos teórico, de uma conjuntura. Ler não é mais "perceber o sentido de': mas produzir o
intelectuais que se crêem "independentes': autônomos, revestidos dos seus próprios caracteres, etc. vínculo entre uma problemática e suas atualizações. É intervir e construir a cena. É
(Gramsci, 1975, p. 1515). criar condições para sua compreensão/transformação. A leitura não é mais um ato
rotineiro; aparece agora como um processo de transformação. Como práxis. Tem
Insistimos na tese já defendida da luta entre intelectuais dos dois campos como que se levar em consideração a questão dos meios dessa produção. Da aplicação
elemento central da "luta de hegemonias": desses instrumentos (a crítica, a abstração, etc.) sobre a matéria-prima: a letra do
texto (Dias, 2000).
Uma das características mais relevantes de todo grupo que se desenvolve em direção ao domínio
Gramsci chama a atenção para a leitura dos textos os quais não podem ser "força-
é a sua luta pela assimilação e a conquista "ideológicà' dos intelectuais tradicionais, assimilação e
conquista que é tanto mais rápida e eficaz quanto mais o grupo dado elabora simultaneamente os dos': não podem ser "usados" para provar uma tese de oportunidade. O seu processo
próprios intelectuais orgânicos (idem, p. 1517) de leitura que ele chama de filologia vivente166:

Quando Marx leu Smith, Ricardo e tantos outros, trabalhou não apenas sobre o senso Se se quer estudar uma concepção de mundo que nunca foi exposta sistematicamente pelo autor-
pensador, é necessário fazer um trabalho minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo
comum e por vezes sobre o bom senso desses autores. Partiu das aparências para tratar de exatidão e honestidade científica. É necessário seguir, antes de mais nada, o processo do
de construir uma nova teoria 165. Para pensá-los na cena histórica, ele teve que examinar desenvolvimento intelectual do pensador, para reconstruí-lo segundo os elementos tornados e
sua interferência, para depois construir um discurso transformador que coloca como permanentes, isto é, aqueles que foram asssumidos pelo próprio autor como pensamento próprio,
sua a problemática da constituição de uma nova forma de existência social. O que sig- diverso e superior ao "material" precedentemente estudado e pelo qual ele pode ter tido, em certos
momentos, simpatia, até tê-lo aceito provisoriamente e ter-se servido dele para seu trabalho crítico
nifica afirmar que a articulação desses termos tem um duplo caráter: se, por um lado, o
e de reconstrução histórica ou científica. [... ]A pesquisa do leit motiv, do ritmo do pensamento [é]
discurso marxiano faz parte da cena, está presente nela, por outro, essa presença não é mais importante que simples citações destacadas" (Gramsci, 1975, p. 419).
passiva, mas, pelo contrário, pretende a transformação da cena. Pensar o discurso mar-
xiano na cena é pensar as condições nas quais ele é produtor e produto. É, portanto, O escrúpulo e o rigor devem exprimir uma tensão política atual e ser finalizada
afirmar a dialética da totalidade social. O discurso é produto da totalidade, ao mesmo por um conhecimento crítico não apenas do passado, mas também do presente. Ba-
tempo em que é uma forma de apropriar-se dela. Apropriação que destaca do universo ratta sintetiza:
ideológico dominante elementos que o personificarão como um discurso.
Mas o discurso marxiano é também, e sobretudo, um produtor da cena. Tendo o método da "filologia vivente" comporta o movimento da circulação do empírico e do individual
sido produzido, ele entra no jogo da realidade. A cena, contraditória, expressa tam- ao universal e total e vice-versa, sem nunca fechar o círculo ou chegar a uma conclusão definitiva
ou peremptória. Trata-se de uma idéia-chave tanto na ciência como na política, no âmbito teórico e
bém as condições de possibilidade de um discurso crítico do universo ideológico prático, seja nas dimensões da pesquisa abstrata como na análise concreta. (Baratta, 2004, pp. 18-19).
que lhe é, ao mesmo tempo, anterior e contemporâneo. Na dialética da cena e do
discurso por transformações desiguais e combinadas, esses dois elementos ganham Gramsci nos mostra como lia examinando a produção de Marx:
cara nova. E o discurso novo, crítico, criado pela intervenção dos homens, como
membros de uma classe, pode vir a ser produtor. É uma nova forma de apropriação Mesmo o trabalho de elaboração feito pelo autor do material das obras publicadas depois dele,
do real, que permite a transformação do próprio real. deve ser estudado e analisado: este estudo daria, no mínimo, indícios para avaliar criticamente
O discurso transformador é produtor e produzido, constituído na articulação com a credibilidade das redações realizadas por outros das obras inéditas. Quanto mais o material
preparatório das obras editadas se afaste do texto definitivo redigido pelo próprio autor, tanto
outros discursos. É, no início, fragmento, para mais tarde transformar-se em cor-
menos será crível a redação de outro escritor de um material do mesmo tipo. De fato uma obra
po diferenciado. Enquanto fragmento, esse discurso destaca elementos de outros não pode ser nunca identificada com o material bruto recolhido para sua compilação: a escolha, a
discursos, trabalha-os com outro método, com outras questões. Como fragmento, disposição dos elementos, o peso maior ou menor dado a este ou àquele dos elementos recolhidos no
ele pode, pouco a pouco, ir combatendo fragmentos do discurso dominante. Esse período preparatório, são o que precisamente constitui a obra efetiva. (Gramsci, p. 420. Grifo nosso)
trabalho de quebra e reconstrução de fragmentos privilegia problemas, questões,
desarticula-os do seu todo anterior, tornando-os estranhos a este último.
166 Dois bons exemplos de leitura filológica vivente sobre os Quaderni encontramos em Mordenti,
165 Ver Dias, 201Oa. 1996 e Baratta, 2004.
122 Edmundo Fernandes Dias

Escrita e leitura são produções e requerem, para ser apropriadas pelo leitor-pro-
dutor, um processo de construção da racionalidade ali exposta. O significado nunca
está dado. Ler é perguntar, lembra Gramsci, e só pode ser cientista se se tem questões
que vão além da repetição. O processo, abaixo transcrito, indica passos necessários
para essa construção:

É necessário, acima de tudo, reconstruir o processo de desenvolvimento intelectual do pensador


dado pela identificação dos elementos tornados estáveis e "permanentes': isto é, que são assumidos
como pensamento próprio, diverso e superior ao "material" precedentemente estudado e que EM BUSCA DA LEGITIMIDADE BURGUESA
serviu de estímulo; [... ] Esta seleção [... ] dá lugar a uma série de "descartes': isto é de doutrinas ou (PROCESSO DE CONSTRUÇÃO)
teorias parciais pelos quais aquele pensador pode ter tido, em certos momentos, uma simpatia, até
te-las aceito provisoriamente e ter-lhe servido para o seu trabalho crítico ou de criação histórica e
científica. É observação comum a cada estudioso, como experiência pessoal, que cada nova teoria
estudada com "furor heróico" [... ] por certo tempo, especialmente se se é jovem, atrai por si mesma, Art.1. o Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções
se apodera de toda a personalidade e é limitada pela teoria sucessivamente estudada até que se sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
estabeleça um equilíbrio crítico e se estuda com profundidade sem render-se subitamente ao
Art. 2. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos
0

fascínio do sistema ou do autor estudado. (idem, p. 1841).


naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a pros-
Impiedoso consigo mesmo, como deve ser todo dirigente, todo intelectual, ele afir- peridade, a segurança e a resistência à opressão.
ma a necessidade de controlar seu próprio texto, sua própria obra: "É possível que Art. 3. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação.
0

depois do controle, devam ser radicalmente corrigidas exatamente porque o contrá- Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela
rio do que está escrito resulte verdadeiro" (idem). Advertência e autocrítica sobre uma não emane expressamente.
obra escrita em condições dramáticas - o cárcere fascista longe estava de ser uma
cômoda biblioteca - muitas vezes dependendo apenas da memória. Escrever e ler, Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão,
processos construtivos, devem ser sempre submetidos à prova (mas cuidado, não França, 26 de agosto de 1789
falo aqui das provas positivistas negadoras da contradição). Trata-se, afirma Mor-
denti (2007) da
Quando os intelectuais burgueses pensaram sua passagem ao comando das sociedades
[... ] exigência de uma pesquisa prático-teórica, um pensamento que saiba pensar da parte dos europeias eles o fizeram do ponto de vista de modernidade. O pressuposto era o da liber-
explorados e dos subalternos, que saiba elaborar uma leitura do mundo pelo menos tão articulado dade de saber, pensar, expressar novas convicções. A ciência foi, inúmeras vezes, aponta-
quanto o são articuladas as formas do domínio, e esteja portanto em condições de dar sentido da como possibilidade de diminuir o sacrifício físico na produção e criar a igualdade na
àquilo que ocorre, de tal modo orientando o esforço de libertar-se do capitalismo realizado. Por isto
Gramsci e sua lição podem ser utilizadas e continuadas. (p. 28).
política, como libertadora. Igualdade postulada como princípio universal, mas realizada
a partir da correlação de forças, era, e é até hoje, liberdade para os proprietários1 67 • A mo-
dernidade criou uma nova forma de existir, de pensar, de sentir, de viver, enfim, um novo
modo de vida. Desigualdade e opressão estavam absolutamente presentes. Esse campo
foi, contudo, demarcado por inúmeras lutas de resistências dos subalternos. Nesse senti-
do Marx remarcou o conjunto das lutas pela jornada de dez horas que buscavam

decidir a grande disputa entre a dominação cega exercida pelas leis da oferta e da procura, conteúdo
da Economia política burguesa, e a produção social controlada pela previsão social, conteúdo da
Economia política da classe operária. Por isto, a lei da jornada de dez horas não foi apenas um
grande triunfo prático, foi também o triunfo de um princípio; pela primeira vez a Economia política
da burguesia tinha sido derrotada à luz do dia pela Economia política da classe trabalhadora (Marx
e Engels, 1951, p. 352. Grifo nosso).

167 Cf. Dias, 2007c.


124 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 125

Marx dava extrema importância às lutas contra o despotismo fabril. A afirmação do será resolvida apenas meio século após com o golpe do Dezoito Brumário. O funda-
Manifesto Comunista de que a burguesia era revolucionária, não significava liberdade mental, porém, está absolutamente claro: a liberdade não era para todos.
sans phrase, liberdade também para os subalternos, as classes instrumentais (Gramsci,
Se tomarmos os dois países mais representativos da tradição liberal, a Inglaterra e os Estados
1975). Muito pelo contrário. Era a liberdade de extração do mais-valor, vale dizer a di-
Unidos vemos que são igualmente os países mais implicados no plano histórico na tragédia da
tadura de classe da burguesia. Liberdade e ditadura: duas faces da mesma dominação. escravidão dos Negros. Os Estados Unidos só aboliram a escravidão dos Negros em 1865. E mesmo
A burguesia, diante das lutas dos subalternos, não podia mais existir sob as con- depois os Negros não gozaram da liberdade. Somente na metade do século 20 que eles adquiriram
dições anteriores. As análises marxianas (em especial O Dezoito Brumário 168 ) de- direitos políticos. (Losurdo, 2008)
monstraram que essa revolução só podia ser passiva. Ao romper com as formas de
apropriação feudais os burgueses estabeleceram um duplo horizonte negativo. Pela Este foi um longo e doloroso processo. A luta pelos direitos civis passou não apenas
Lei Le Chapelier 169, em nome da igualdade de todos, a burguesia se chocava com as pela morte e repressão a muitos dos seus militantes. Rosa Parks e Martin Luther King são
formas pretéritas, tanto quanto tratava de impedir formas organizativas emergentes. personagens exemplares desse processo. A liberdade não foi negada apenas aos negros:
As formas dessa dominação foram marcadas pela oposição/conciliação com os
antigos dominantes e pela possibilidade de contestação dos subalternos. A burguesia A superação da discriminação racial, da discriminação contra as mulheres, ou da discriminação
censitária 171 não são então frutos do liberalismo, pelo contrário, são aquisições, ainda que precárias
não rompeu com a nobreza na Inglaterra, pelo contrário, aliou-se à ela e construiu e incompletas, das grandes lutas populares do movimento socialista e comunista. (idem)
novas formas de poder político, social e econômico; na França, pela brutal resistên-
cia da antiga ordem feudal-clerical, a burguesia foi muito além do que desejava. O 1. O processo da "democracià' burguesa criou uma ditadura brutal sobre os su-
corso Bonaparte, agente da burguesia, recolocou-a nos eixos e instaurou plenamente balternos. A modernidade burguesa, o período que Marx afirmou ser revolucioná-
sua ditadura de classe. Bonaparte irá suprimir a celebração da festa da revolução, rio, realizou -se fundamentalmente na transformação das forças produtivas (aí inclu-
o 14 de julho (Le Gof, p. 46). Era necessário apagar as ide ias revolucionárias. No ída a criação do operário); do ponto de vista das relações políticas essa modernidade
dezoito brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799) Napoleão tomou o "poder" conduziu a um aumento da repressão e isolamento (negação dos direitos acoplada à
para "proteger aos homens das ideias liberais" (sic).170 O caráter mercantil ficou abso- ilusão da igualdade jurídica l72 ). Isolamento que Marx nos Grundrisse designou como
lutamente evidenciado: o código napoleônico permitiu a formalização e a generali- o "homem nu': despossuído dos direitos comunitarios do período feudal e entregue
zação dessa nova ordem que permaneceu e se fortaleceu sob a Restauração. A forma a si mesmo. Agora sobreviver era uma tarefa rigorosamente individual.
monárquica voltou, mas não o conjunto das velhas formas econômicas. O liberismo 2. A modernidade burguesa foi uma ruptura - ainda que relativa; a modernização
nunca foi incompatível com a monarquia conforme nos mostra a história inglesa. que lhe sucede, como programa e como prática, é a pura conservação. Ela é sempre um
Estavam dadas as condições da passivização da revolução. O fato de que o positivis- 171 "Considerando o peso crescente do dinheiro e da riqueza nas eleições nos Estados Unidos, Ar-
mo tenha sido a primeira filosofia burguesa pós 89 é uma confirmação preciosa do que thur Schlesinger Jr, um ilustre historiador americano, estimava que se assiste de fato a reintrodução
afirmamos. O processo revolucionário transmutou-se em ordem regressiva. Ordem e da discriminação censitárià' (Losurdo, 2008). Reintrodução! Ainda aqui as formas pretéritas fortale-
cem o capitalismo ao preço, é claro, da permanente exclusão dos subalternos.
progresso é o oximoro lema da burguesia. As novas formas políticas não alteraram a nova O debate (janeiro de 2010) sobre financiamento de campanhas eleitorais estadunidenses mostra a
forma econômica. República ou monarquia são indiferentes aos burgueses, ainda que veracidade da estimativa de Schlesinger Jr.: a Suprema Corte votou por 5 a 4 a derrubada de uma lei
continuem a dividir o mundo simbólico e político-formal dos dominantes. Essa esfinge que proibia o uso de dinheiro de caixa para financiar as campanhas. Russell Banks esclareceu: "[ ... ]
as grandes empresas e os grandes doadores financiam as campanhas eleitorais de todos os parlamen-
168 Dias, 2008. tares, dos governadores de Estados, de prefeitos e outros eleitos e até, em alguns Estados, dos juízes e
169 A Lei Le Chapelier, de 14 de junho de 1971, afirmava no seu Art. I que o "aniquilamento de procuradores:' (Folha de São Paulo, 24 de janeiro de 2010, Mais!, p. 8. Grifo nosso).
todas [as] espécies de corporações de cidadãos do mesmo estado ou profissão': Era "uma das bases Paul Stevens, magistrado da ala à esquerda da Corte afirmou tratar-se de uma "ameaça [à] integrida-
fundamentais da constituição francesa" interditando a empresários, operários e companheiros de de de instituições eletivas por todo o país': Ou seja: "A Suprema Corte deu luz verde para uma invasão
qualquer arte de construir "sindicatos, ter registros [... ] formar regulamentos sobre seus pretensos de dinheiro de interesses privados em nossa política, minando a influência de americanos comuns
interesses comuns" (Art. 2). Essas ações foram consideradas contrárias aos "princípios da liberdade que fazem pequenas contribuições a seus candidatos:' (Folha de São Paulo, 22 de janeiro de 2010,
e da constituição" e são "declaradas inconstitucionais, atentatórias à liberdade e à declaração dos p. A-16. Grifos nossos). Absolutiza-se o vale tudo. Sobre isso - até mesmo!!!!!!!!!! - Obama afirmou:
direitos do homem e nulas" (ArtA. Grifos nossos). Poderíamos seguir citando, mas a caracterização "Foi uma vitória da indústria petrolífera, de Wall Street, de seguradoras e outros grandes grupos que
está feita. Foi tal sua importância que ainda hoje é reivindicado por alguns o seu restabelecimento usam seu poder todos os dias em Washington para abafar as vozes de americanos comuns" (idem).
por ser vista como um "progresso notável, porque ela impôs a liberalização do mercado de trabalho Desnecessário dizer que a medida foi saudada pelos republicanos e conservadores como vitória da
[... ] interditava as corporações, os monopólios e as greves". (grifos nossos) Sintomaticamente isto foi liberdade: "Foi um passo adiante na proteção da liberdade de expressão desses grupos" disse o sena-
postado em blog por alguém que se denominava VilCoyote (2007). dor conservador Mitch McConnell, líder da bancada republicana. (idem)
170 Anderson, in Tula, 1993, p. 79. Grifo nosso. 172 Dias, 2007.
126 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 127

projeto reformista proclamado tanto pelos dominantes, quanto pelos dominados e à defesa da monarquia prussiana175 • Os burgueses se aliaram com os junkers, seus ini-
confunde-se normalmente com o nacionalismo. Esse processo ainda que de algum migos tradicionais, para deter o avanço do nascente proletariado após os movimentos
modo atualize o modo de vida não altera - e nem o poderia - o conjunto das relações de 1848. E, nas décadas de 70 e 80 do século XIX, isto ainda repercutiu na Itália levando
sociais mantendo a dominância e a subalternidade existentes. Em contrapartida o o Partido da Ação (garibaldino), o Vaticano que temia a quebra da hierarquia eclesial e
processo revolucionário tem que realizar essa dupla mutação. No que se refere ainda suas consequências políticas e morais e o Partido Moderado a temer os "excessos fran-
à modernização ela se dá sobre um duplo aspecto: o privado e o público. No primeiro ceses" principalmente no que tocava a questão agrária. Nascia aqui a famosa conjunção
sua forma é a da não universalização dos direitos (ainda que formalmente procla- das Questões Meridional e Vaticana, ou seja, o caráter da unidade italiana.
mados) conservando e mesmo exacerbando os interesses particulares dominantes. O fantasma ainda hoje está presente e se traduz, por exemplo, na obra de Carl
No segundo há uma extensão dos direitos ainda que de forma restrita. A negação Schmitt 176 :
da validade/legitimidade e a extensão/universalização dos interesses sociais tenden-
cialmente universais são faces do mesmo processo. Neste deve haver a constituição no espírito do pensamento humanístico [considerou-se] o povo, a massa inculta, a besta
de novas formas de sociabilidade negadoras das relações sociais e dos modos de vida multicolorida, como um elemento irracional que, por isto, necessita ser dominado e guiado pela
ratio, com a astúcia ou a violência. A este ideal do domínio absoluto da razão vem contraposto o
anteriores. Do período pós-revolucionário francês até hoje, o modo burguês se cons-
mundo onde reinam incontrastado pelos afetos, exemplificados em três tipos representativos; a
tituiu como revolução passiva. grande massa, as mulheres, as crianças. (citado por Barcelona, 140. Os grifos são nossos).
Gramsci chamou a atenção que o processo revolucionário francês levado à exas- todavia se esta verdadeira fobia das massas conota o percurso político-institucional destes dois
peração tanto pela resistência da nobreza, do clero e dos regimes reacionários euro- séculos e determina os estímulos para a passividade e a manipulação das classes subalternas, é do
peus, por um lado, e pela presença das novas classes trabalhadoras, por outro, criou mesmo modo indiscutível que a sociedade moderna tem necessidade para viver da mobilização e
da participação ativa dos cidadãos e dos operários. (Barcelona, p. 141. Grifo nosso)
um clima de terror entre os novos governantes. Alexis de Tocqueville, cuja obra é fre-
quentemente usada como contraponto ideológico ao pensamento de Marx e Engels, 3. Demofobia também presente na obra revisionista de François Furet, cf. De-
afirmou em discurso na Câmara dos Deputados, em 27 de janeiro de 1848: mocracia e comunismo: o fim da utopia. O ex -comunista para recusar o socialismo
tem que identificá-lo ao stalinismo 177• Vovelle (2002) fala-nos que neste livro Furet
creio que posso indagar a todos os que me ouvem, e que todos me responderão que, nas regiões
que representam, existe uma impressão análoga; que certo mal-estar, certo temor invadiu os faz seu ajuste de contas "não somente com seu pasado, mas com o de toda uma gera-
espíritos; [... ] Essa enfermidade, que é preciso curar a todo preço e que, podeis crê-lo, nos levará a ção exorcizando sem retorno a era das revoluções do século XX, no desvio totalitário
todos, ouvi bem que digo todos, se não cuidarmos disso, é o estado em que se encontram o espírito que as conduziu ao colapso final:' (p. 1) Com a expressão "a revolução acabou" Furet
público, os costumes públicos. Eis onde se acha a enfermidade; [... ] os costumes públicos [... ] exprimia, ele mesmo o afirma, "uma resolução e uma realidade" (idem).
já estão profundamente alterados; alteram-se cada vez mais todos os dias; [... ] Olhai o que se
4. Vovelle historiciza essa mutação que não é apenas de Furet. Foram grandes as
passa no seio das classes operárias, que hoje reconheço, estão tranquilas. É verdade que não
são atormentadas pelas paixões políticas propriamente ditas, mas não vedes que pouco a pouco decepções que as práticas da burocracia stalinista impuseram aos subalternos propi-
se propagam em seu seio opiniões, idéias, que de modo algum irão derrubar apenas tal lei, tal ciando, assim, farta munição aos inimigos da revolução:
ministro, tal governo, mas a sociedade, a abalá-la sobre as bases nas quais ela hoje repousa? Não
lhe dá a grande força da qual faz prova em relação aos outros. Ela pesa sobre a estreiteza do espírito e
ouvis que entre elas se repete constantemente que tudo o que se acha acima delas é incapaz e a apatia desses últimos que, enfim obrigados a abandonar sua indolência em benefício da realidade,
indigno de governá-las? Que a divisão dos bens feita até o presente no mundo é injusta? Que a saíram de uma para entrar em outra e talvez (como a profundidade íntima do sentimento se conserva
propriedade repousa sobre bases que não são equitáveis? E não credes que, quando tais opiniões na ação externa) superaram seu mestre". Carta a Zellmann, Châtelet, 1968, p. 21. Grifo nosso.
tomam raízes, quando se propagam de uma maneira quase geral, quando penetram profundamente 175 "[ ... ] este Estado que me acolheu que, por sua preponderância intelectual, elevou-se à impor-
nas massas, devem cedo ou tarde, não sei quando acarretar as mais terríveis revoluções? [... ] creio tância que lhe convém no mundo real e político, tornando-se igual em potência e em independência
que dormimos no momento em que estamos sobre um vulcão [... r: 173 aos Estados que lhe tinham sido superiores por seus meios externos. [... ] [a] cultura e o desabrochar
das ciências é um dos elementos mais essenciais na vida do Estado. É necessário também que nesta
Universidade, a Universidade do centro, o centro da cultura do espírito de toda ciência e de toda a
o mesmo se passou na Alemanha levando inclusive Hegel a passar do liberalismo 174
verdade, a Filosofia, encontra seu lugar e, por excelência, um objeto de estudo:: Aula inaugural em
173 A democracia na América, pp. 579,581-582. Grifos nossos, lucidez de classe dele. O mesmo Heidelberg, outubro de 1818, in idem, pp. 25-26. Grifo nosso.
Tocqueville, em carta a seu amigo Kergolay, fala que "a Revolução francesa é uma doença, um vírus 176 "[ ... ] a proposição de Carl Schmitt de que a prerrogativa final, definidora, de soberania é o direi-
perigoso, uma espécie de loucura coletivà'. (citado por Barcelona, p. 140. Grifo nosso). to de excluir [... r: citado por Bauman, p. 85. Grifo nosso. Ele afirmava que o "Führer cria o Direito"
174 "Graças ao banho de sua revolução a Nação francesa não só se libertou das instituições que o (citado por Jean-Pierre Faye, na introdução à Chomsky e Herman:' (1975, p. 2). Trata-se do chamado
espírito humano saído da infância tinha ido além, e que consequentemente pesavam sobre ela como totale Staat.
sobre as outras assim como cadeias absurdas; mas por outro o indivíduo despojado do medo da mor- 177 Para a compreensão da trajetória de Furet é particularmente relevante ver sua entrevista publi-
te e do modo habitual da vida, ao qual a mudança de circunstâncias retirou toda solidez; eis o que cada no Brasil em 1988. Ver também Vovelle, 2002.
128 Revolução passiva e modo de vida 129
Edmundo Fernandes Dias

pela competitividade, e que em toda a Alemanha, que até ontem apontou mesmo sobre a repartição
5. Estabilizada, mas ainda poderosa, a referencia do país da Revolução socialista
do trabalho que o problema é reduzir não apenas o trabalho [... ] mas o seu custo, isto é, salários
realizada, conservando um tempo seu poder de sedução, a imagem da URSS começa e proteção social, como já fizeram o Reino Unido, França e Espanha e, naturalmente, Itália, devo
a se modificar a partir sobretudo de 1956 e do relatório Krutchev e a suscitar mais perguntar-me o que isto trará para a natureza civil das sociedades européias. (Rossanda, pp. 199-200.
interrogações e confusões que atração até a implosão final. Substitutos tomaram o Grifo nosso)
lugar, a China, Cuba ou as guerrilhas da América Latina com a figura mítica do Che
Guevara, mas o fracasso destas ilustra o recuo da esperança da passagem ao ato que Questão essencial: xenofobismo, eliminação dos imigrantes, defesa mais e mais
encontra suas últimas expressões paroxísticas na ação dos grupos terroristas na Ale- dos proprietários, eliminação dos direitos sociais e das chamadas liberdades demo-
manha ou na Itália - exército vermelho ou brigadas vermelhas. (pp. 3-4) cráticas. Na prática isso implica em um processo de fascitização das sociedades.
6. Muitos esperaram que os movimentos de 68 produzissem efeitos mais fortes. Na sua luta pelo assenhoreamento do sistema político necessário à sua dominação
Estes foram não apenas reprimidos mas "a reentrada na ordem de uma parte dos a burguesia travou a luta em dois momentos: contra os senhores feudais, por um
quadros da geração sessenta e oito, e a erosão rápida nos novos jovens da lembrança lado, e contra as massas urbanas emergentes e contra o campesinato, por outro. O ca-
desse episódio" (p. 4) acabaram por neutralizar totalmente qualquer possibilidade pitalismo criou a abstração máxima do indivíduo, do cidadão com direitos e deveres
levantada naquele que foi o maior ataque ideológico às instituições e ao modo de iguais perante a lei sem declarar, no entanto, que esta era a sua lei e não uma manifes-
vida burguês. Os chamados novos filósofos rapidamente se converteram em reacio- tação da razão meta-histórica que o legitimou e ainda o legitima. Codificou, discipli-
nários guardiães da ordem, outros se tornaram regulacionistas. 178 A historiografia nou, educou, preferentemente pela forma ideológica. Quando isto não foi possível,
não ficou impune. Era necessário reler a própria revolução francesa. Edgard Morin usou a repressão baseada na sua lei ou na violência aberta, pura e simplesmente.
falou, no Le Monde de janeiro de 1989 que era necessário ((desmistificar, remistificar É necessário afirmar com Kohan (2007) que esse processo apesar de ter encon-
a Revolução francesa': (Vovelle, p. 4). Síntese: Abaixo Albert Soboul, viva Furet! Pro- trado, pela ação dos subalternos, resistências imensas, tornou-se senso comum dos
gramática do silenciamento dos momentos de rebelião. subalternos ao longo dos dois últimos séculos. Na memória e no imaginário do mo-
7. A corrente crítica à leitura jacobina ((clássica" da Revolução (de tempos em vimento dos trabalhadores politizados o processo democrático é obra sua - não dos
tempos fala -se revisionista, mas o termo se presta a confusões) foi ilustrada pela obra burgueses - e tende, por isso, a assumi-lo independentemente desta ((democracia
de François Furet a partir de 1965 (La Révolution française, de D. Richet e F. Furet), abstrata" negá-lo como classe. A aceitação do conceito e das práticas da cidadania
depois pelos seus ensaios ulteriores (Làtelier de l'Histoire) até o dicionário crítico que burguesa pelos trabalhadores desarma -os. Somos todos iguais perante a lei, logo a
ele coordenou em 1989, onde se viu o fim de uma ilusão. (p. 5. Grifos nossos.) luta sai do campo do movimento para o campo institucional onde eles não são nada,
8. Para a plena compreensão de porque, como diz Vovelle, as sociedades do embora pretendam ser o poder, ou pelo menos o governo. Tudo acaba por ser redu-
mundo capitalista estavam preparadas para ese discurso, é preciso ter clareza das zido ao ... direito de ter direitos, o que na prática é a aceitação dos limites como algo
grandes mutações que o mundo do capital impôs ao mundo dos trabalhadores: legítimo, caminho fácil para o reformismo 179 • Essa negação - concreta, real- tem a
aparência de igualdade, sendo, portanto, desejável. Direito a ter direitos. Estamos no
domínio das abstrações vazias. Desloca-se do plano das necessidades reais para uma
um campesinato em crise, senão em vías de extinção, uma classe operária colocada em questão pelas
revoluções tecnológicas, enfim um setor terciário onde o desenvolvimento dos quadros acentua a afirmação genérica que não toca a vida concreta de mulheres e homens reais, vale
evolução para um individualismo [... ]. [... ] o peso crescente da exclusão e da marginalização social e dizer, das classes.
cultural de uma franja crescente da população criou um novo Lumpenproletariado que não pode se dar Este processo aqui descrito é decisivo para que se compreenda como se deu essa
ao luxo de uma consciência de classe, nem de referentes culturais enraizados em uma memória. (pp. 6-7) dominação: trata-se da captura da subjetividade dos antagonistas. A burguesia tratou,
com grande êxito, de transformar-se em horizonte ideológico, político e econômico
O capitalismo para existir, mesmo sem um antagonismo internacionalmente cen- da história. Tudo e todos estavam (e estão) submetidos a este processo de naturalização,
tralizado, exige essa passivização que hoje assume a forma da necessidade objetiva de de deshistoricização. A vida é a vida burguesa, como burguesas são a família, a escola
uma reestruturação, dita produtiva. e o trabalho, lugares privilegiados de socialização, onde os subalternos são moldados.
Quando leio no "Le Monde" que na próspera Alemanha a Mercedes-Benz, em dificuldade, se 179 "a pequena história do movimento operário é o reformismo. No sentido de que o reformismo
reestrutura jogando todo o trabalho para fora [... ] no Leste ou no subdesenvolvimento, coagida já é implicitamente o reconhecimento de uma derrota:' Afirmou Tronti (2006). No mesmo texto
ele salienta que ''A burguesia tinha tido uma longa história de classe hegemônica. A classe operária,
178 Por exemplo "Bernard-Henry Lévy novo filósofo, conselheiro do presidente Nicolas Sarkozy)" pelo contrário, vinha de uma longa história de classe subalterna:' (idem) Sobre isso ver o debate com
(Leymarie e Robert, 2001). Mordenti (2011).
130 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 131

Obviaménte todos esses espaços, contraditórios, expressam tendencialmente o modo de era, e é, incompatível com a produção, só cabendo aí a "liberdade capitalistà: a da
vida burguês. Tenta-se permanentemente construir a impossibilidade dos subalternos extração legalizada do mais-valor. Os capitalistas não têm dúvidas: Na fábrica não
falarem. A história que se ensina é a história dos vencedores. A economia, a medici- pode haver dois poderes, afirmou Gino Olivetti, o grande organizador da organização
na, o direito que as universidades ensinam são necessárias e adequadas à ordem do sindical dos industriais italianos no começo do século passado, em reação ao movi-
Capital. mento dos Conselhos de Fábrica. Este movimento operário de vanguarda afirmava
Atenção! Não estamos afirmando a tese das instituições como meramente repro- que sob o imperialismo o capitalista exercia apenas uma função policial sobre a pro-
dutoras. Em uma sociedade classista, elas contêm as contradições destas socieda- dução sendo, portanto, desnecessário para sua realização. Sob o estímulo da possi-
des, mas a tendência reprodutivista é dominante. É exatamente pelo processo aci- bilidade de gerir a nova sociedade os operários turineses ocuparam as fábricas e as
ma, brevemente descrito, que o discurso dos dominantes (que apresentam também geriram autonomamente. Conhecimento técnico e projeto hegemônico permitiam
contradições no seu interior) acaba por tentar apagar ou interditar o discurso dos o avanço da figura do operário-comunista. O movimento foi vencido pelas forças do
subalternos. capital (estado + empresariado + formas organizativas da própria classe subsumidas
A reestruturação é a permanente tentativa de resposta do capital à sua crise. Ao plenamente ao capital). Operação radical de silenciamento dos subalternos que pre-
apresentar-se como produtiva ela elimina a caracterização de "capitalistà: fazendo- tenderam o "assalto ao céu': a construção da nova sociabilidade. Tudo isto marcado
-se passar por neutra. Ora quem não é a favor de uma reestruturação que "melho- pela radical cisão entre economia e política. Na primeira, nenhuma liberdade era
rà' a situação de todos? O problema é que sendo capitalista ela amplia o capital e possível sob os regulamentos de fábrica. De Palma fala em um ''código autoritário"
nega a subjetividade e a historicidade das classes trabalhadoras. O capital tem que que deve ser entendido como
construir/destruir/reconstruir a força de trabalho alterando, assim, sua composição
orgânica. Ele liquidou tão logo lhe foi possível, o controle que os artesãos tinham aquela regulamentação social cujas normas são formuladas pelo capitalista e que constituem o
instrumento organizativo de seu poder sobre o trabalhador. Tal código é autoritário porque se faz
sobre o processo de trabalho e criou o moderno operário, o trabalhador coletivo por
valer de maneira coercitiva. "O código fabril no qual o capital formula, como legislador privado
excelência e criou, para seu uso e abuso, uma nova espécie de artesão para liquidar e arbitrariamente, o poder autocrático sobre seus trabalhadores, sem levar em consideração
a solidariedade possível e necessária, dos operários-massa quando isto lhe restringia esse regime de divisão dos poderes que a burguesia gosta tanto [... ] é simplesmente a caricatura
as possibilidades de acumulação e extração do mais valor, isto é, da sua liberdade de capitalista da regulamentação social do processo de trabalho". (Marx, 1959, p. 351, citado por De
classe. Destruiu formas culturais, modos de vida, classes sociais. Eliminou direitos Palma, p. 28)
consuetudinários 180, direitos locais, direitos das gentes, substituindo-os por um di-
Aqui entra a famosa questão da cidadania. No campo da política a liberdade (for-
reito positivado, baseado em uma suposta natureza humana, eterna e imutável, pro-
mal, não importa) é vista como uma realidade, obviamente depois de muita luta dos
cesso necessário para construir sua racionalidade de classe. Na França esse processo,
subalternos. Ou seja, o que é impossível no plano da economia é, em tese, o próprio
contraditório, da criação do trabalhador coletivo pelo patronato foi feito através de
da política. Por isso Marx falava em caricatura: a burguesia desrespeita suas próprias
políticas que privilegiavam as dimensões coletivas de gestão, sobretudo com a instauração do
instituições, teorias e ideologias, sempre que isto lhe interessar e continua(rá) a fazê-lo.
aumento de salários por antiguidade, as classificações por postos de trabalho e horários idênticos
A cultura dominante tende a transformar a democracia em um atributo do Estado: este pode ser
para todos. Em busca de economia de escala, criou imensas concentrações de operários no interior
também democrático quando adota uma técnica de seleção da camada política baseada sobre consultas
de fábricas impressionantes. Esse tipo de política de facto impôs condições similares de vida no
eleitorais. Esta cultura vem de longe, é ainda o Leviatã de Hobbes. É o Estado que produz o povo, não é
trabalho, gerou uma igualdade entre os operários e favoreceu formas de adaptação e de resistência
orientadas para a solidariedade, a ajuda mútua, a elaboração de valores e de identidades comuns.
o povo que produz o Estado [... ]. Frente ao Estado está uma sociedade informe, cheia de contradições,
(Linhart,2009) incapaz de estruturar-se, que se dá uma forma natural de existência através do mercado.
A articulação entre Estado e democracia é cancelada porque a soberania popular não tem
consistência fora do Estado. A própria distinção entre autoridade e liberdade faz um curto-circuito:
O capitalismo, por suas próprias necessidades, afirmou a liberdade abstrata dos
de mais valia; em particular controla e reprime o comportamento de resistência dos subordinados.
indivíduos-mônadas. Critica-se ao marxismo que este não se preocupa com a liber- As atividades do trabalho devem ser reguladas por normas que regulamentem o desenvolvimento
dade. Losurdo (2008) recusa essa "crÍticà' relembrando a posição de Marx no Capital do trabalho e o uso dos instrumentos" (De Palma, p. 9). Estas são um requisito típico da produção
quando este falava da luta pela supressão do despotismo fabriP 81 • A democracia plena capitalista. Segundo Marx, "enquanto as normas de controle constituem a condição necessária de
qualquer organização produtiva e é sempre possível discriminar suas funções técnicas da função
180 Cf. Thompson, 1998. social, as normas de repressão tem exclusivamente um significado social e seu campo de validez está
181 Sobre a questão do despotismo fabril ver: Marx (1959), Panzieri, (1961) e De Palma (1966). A circunscrito aquelas formas de cooperação que se constituem sobre a base da separação exclusiva
direção autoritária é "função de exploração dos trabalhadores para obter a maior quantidade possível entre as funções de execução e as funções de direção." (citado por De Palma, p. 10. Grifo nosso)
r 132 Edmundo Fernandes Dias

que significa liberdade se ela depende da autoridade subordinada ao Estado que a produz?"
(Barcelona, p. 123. O primeiro grifo é nosso).

Lembremos que o capital produz e reproduz as relações sociais de produção, isto é,


classes. Barcelona nos mostra que o Estado burguês - forma de comando da totalida-
de social - produziu o povo. Atuou e atua como organizador coletivo da racionalidade
capitalista.
A crise de 29 equivocadamente apontada pela IH Internacional como ((crise geral
do capitalismo" colocou novos problemas para a burguesia. Do ponto de vista da AINDA SOBRE A LINGUAGEM E O ESPAÇO DA POLíTICA
produção e reprodução material ela responde com o Taylor-fordismo. Isto não basta.
Permanece a questão da política:
Que má sorte tem os que quiseram, / que o homem pela linguagem se
A resposta à crise de 29 produz [... ] algumas modificações importantes [... ] (na) sociedade civil. dividisse / Quando o homem compreende seus interesses / o planeta
[... ] uma reorganização dos aparelhos de hegemonia, uma modificação nas formas da política, na
diminui e seu idioma cresce. / Ninguém me diga que em tantas viagens / tive
organização dos partidos, na relação partidos-instituições, na relação entre os poderes do Estado
(executivo-legislativo, etc.) e assim por diante, que teve depois conseqüências significativas mesmo problemas com minha mensagem, / os povos mais distantes na paisagem /
no plano do papel dos intelectuais, das ideologias, etc. (Barcelona, 1994, p. 22) sonham, vivem e lutam em minha linguagem.
Que má sorte têm os que quiseram, / que os povos do mundo não se enten-
Taylor-fordismo e fascismo são formas de respostas à crise, formas de revolução dessem! / Quando no Chile o fascismo ria em inglês / em espanhol chorava
passiva (Gramsci, 1975). Eles exigem uma adequação institucional: o governo das mais de um francês. / Bravos linguistas do dicionário / sigam juntando voca-
massas e o governo da economia têm que ser reconstituído. O fascismo não é, como bulário / que há de chegar o dia se é necessário, / em que se fale uma lingua-
queria Benedetto Croce, um parênteses mórbido entre dois momentos do liberalis- gem interplanetária.
mo e da democracia. São possibilidades reais e efetivas da Ordem do capital: nada
tem de ((mórbido" sendo, pelo contrário, uma tendência objetiva e necessária, uma Alfredo Zitarrosa
das formas da sua ((normalidade':
Essas adequações ao longo do século passado assumiram várias formas: o nazismo,
a ((democratização" social-democrata e mais tarde a reestruturação capitalista que Considera-se, do ponto de vista burguês, um processo hegemônico aquele pelo qual
requer o chamado neoliberalismo (da Société Mont -Pellerin aos regulacionistas) e os subalternos pensam, agem e vivem no interior do modo de vida dos dominantes,
seu famoso ((pensamento único': Característica essencial desse processo é a negação de suas normas e instituições. Além do Americanismo e Fordismo de Gramsci (1975)
da liberdade dos subalternos pelas relações sociais capitalistas ainda que aqui e ali e Problemas de la vida cotidiana (1971) de Trotsky, as obras de Reich (1970, 1972 e
as liberdades formais sejam mantidas. Para os subalternos faz-se necessário eliminar 1981) e de Senett (1999 e 2006) são muito importantes para a compreensão do tema.
essas relações (e as instituições correspondentes) para afirmar sua ((personalidade Para constituir sua hegemonia os burgueses devem impedir os subalternos de construir
históricà' (Gramsci) e criar sua sociabilidade pàra além e contra a Ordem do capital. seu projeto ético-político, fazendo-os permanecer na esfera do econômico-corporativo.
Chamamos a isto o ((embate de projetos hegemônicos': Presos à cotidianidade, à mera produção e reprodução da vida nos limites da ordem
do capital, os subalternos perdem, tendencialmente, sua autonomia. Examinar a crise
capitalista apenas pelos efeitos destruidores sobre a economia, esquecendo ou tratan-
do secundariamente as condições de vida dos trabalhadores, olhá-la localizadamente
no plano da materialidade imediata - por mais que isto seja absolutamente decisivo e
essencial - significa aprisionar as classes trabalhadoras em um círculo infernal: para elas
inexiste qualquer solução real sob a ordem do capital, só a aparência de solução.
Para enfrentar a crise, do ponto de vista dos subalternos, é necessário fazer a crítica
da economia e da política burguesas, atuar no sentido da invenção de sociabilidade
134 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 135

socialista. O grau de maior ou menor abalo sobre a sociabilidade capitalista decorre As contradições, fissuras e fraturas de uma estrutura determinada clarificam-se
da maior ou menor presença e força dos seus antagonistas históricos: as forças do nas crises, revelam-se, e é por esse revelar-se que temos mais facilmente o mapa da
trabalho, o conjunto das classes subalternas. Nada há de eterno ou natural no pro- mina. Nada automático, porém. A ação crítico-prática torna-se mais inteligível -
cesso histórico. A caracterização gramsciana de que" o velho morre, mas o novo não pensável e praticável - aos olhos das classes e de seus intelectuais. E isso se acentuava
. consegue nascer" (Gramsci, 1975, p. 311. Grifo nosso) nos mostra que se trata de um pela concepção de que a verdade residia abstratamente no partido. Luperini (2001a)
processo mais global: a questão da hegemonia, a luta entre conservação e revolução. salienta:
Pensar essa passagem como automática é uma visão absolutamente antidialética e
destruidora do potencial revolucionário dos subalternos. crer que o homem possa sair dos próprios condicionamentos biológicos e temporais por tender
a um progresso sem limites em nome do qual se sacrificar o particular. O absoluto abstrato do
no estudo de uma estrutura é necessário distinguir dois movimentos orgânicos (relativamente universal, identificado no partido e na ciência do proletariado encarnada nele, foi erigida contra a
permanentes) dos movimentos que se pode chamar de conjuntura (e se apresentam como concretude do particular, do homem, aqui e agora.
ocasionais, imediatos, quase acidentais). Os fenômenos de conjuntura são certamente dependentes
também eles dos movimentos orgânicos, mas o seu significado não é de um grande alcance histórico: o comunismo - único projeto capaz de conduzir as classes subalternas à sua eman-
dão lugar a uma crítica política miúda, do dia a dia, que investe os pequenos grupos dirigentes cipação - teve sua possibilidade revolucionária esterilizada ao ter sido praticado
e as personalidades responsáveis imediatamente pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar meramente como um produto da "crise final do capitalismo" ou como sinônimo de
à crítica histórico-social, que investe os grandes agrupamentos, daí às pessoas imediatamente
responsáveis e daí ao grupo dirigente. No estudar um período histórico aparece a grande
planificação e estatização, dois momentos da concepção determinista tornada ide-
importância desta distinção. Verifica-se uma crise, que por vezes se prolonga por dezenas de anos. Esta ologia da internacional estalinizada. Correlato a isto estava a ideia da estagnação
duração excepcional significa que na estrutura se revelaram (vieram à maturidade) contradições capitalista, da putrefação das forças produtivas sob o capital e o chamado terceiro
insanáveis e que as forças políticas operantes positivamente à conservação e defesa da própria período (classe contra classe). Toda esta "teorià' teleológica e absolutamente fora
estrutura se esforçam por sanar dentro de certos limites e de superar. Estes esforços incessantes e
do real conduzia o conjunto dos subalternos à pura defesa da mãe pátria do "socia-
perseverantes (dado que nenhuma força social quererá nunca confessar estar superada) formam o
terreno do 'ocasional' sobre o qual se organizam as forças antagonistas que tendem a demonstrar lismo': a perda de suas historicidades em nome de uma pretensa universalidade do
(demonstração que em última análise desemboca apenas e é "verdadeirà' se [se] torna uma nova construto estalinista, vale dizer à passividade e a derrota, não obstante o heroísmo
realidade, se as forças antagonistas triunfam, mas desenvolve-se imediatamente em uma série de de milhares de militantes. Só para não perdermos a memória histórica: a ideologia
polêmicas ideológicas, religiosas, filosóficas, jurídicas, etc. cuja concretude é avaliável na medida do social-fascismo jogou trabalhadores contra trabalhadores e favoreceu o nazis-
em que parecem convincentes e deslocam o pré-existente deslocamento das forças sociais) que já
existem as condições necessárias e suficientes para que determinadas tarefas possam e então devam
mo. O que ocorria com o capitalismo? Vivia o momento de sua máxima ofensiva
ser resolvidas historicamente (devem, porque cada falta ao dever histórico aumenta a desordem no plano universal.
necessária e prepara graves catástrofes.) Gramsci (1975, pp. 1579-1580) Crise final como consequência automática, como fatalismo, e não como inter-
venção consciente dos antagonistas. Foi construída, e não apenas pelos burgueses
o pensamento burguês sempre afirmou que crise é sinônimo de caos, desordem. A acei- inimigos da classe, uma naturalização do real para tornar esse processo inaudível
tação dessa perspectiva pelos subalternos já é, em si mesma, prova de subordinação e de e invisível aos olhos dos subalternos. Quando se fala em cidadania, forma clássica
heteronomia. A teoria marxista contradita essa visão. Crise etimologicamente significa da institucionalidade liberal do século vinte, em igualdade perante a lei, como se
criação, transformação; ela é sempre um momento heurístico significativo. Mesmo nas si- não existissem opressores e oprimidos, dominantes e subalternos, como se todos
tuações ditas normais onde a permanente crise do capital não se manifesta abertamente, fossem unidades de uma mesma humanidade indiferenciada, esse processo fica
essas diferenças e contradições são brutais, apesar de aparecerem como ocultas. muito mais claro. O uso de uma anfibologia permite um deslizar de um significado
para outro muitas vezes totalmente oposto. Falamos, por exemplo, em desenvolvi-
O fato mais relevante é que os Estados Unidos, ininteruptamente desde a Segunda guerra mundial,
mento econômico, escamoteando sua determinação classista, como se não refletis-
geriram militarmente o ciclo econômico. É interessante notar que as diversas fases do ciclo econômico
seguem as diversas ondas das campanhas militares dos USA, que sustentam a retomada econômica se as classes, suas lutas e suas contradições. Esta ideologia (leitura constituidora do
com a intervenção militar, as despesas das encomendas de guerra, o investimento público no complexo real) autorizou, e vem autorizando, a identificação das soluções capitalistas para a
militar-industrial. Em definitivo, aparece cada vez evidente como a despesa militar e a guerra sejam crise como as únicas possíveis.
instrumentos fundamentalmente para a política econômica dos Estados Unidos. Basta considerar Este texto pretende começar a responder a uma indagação vital para todos os "mi-
que, quando a economia estadunidense está em crise, depois de dois ou três trimestres consecutivos
de contração, eis que, em geral seis meses depois, desencadeia-se uma guerra. (Modugno, in
litantes do futuro" que recusam o determinismo e o militantismo cego. Esvaziadas
Modugno e Giacché, 2007. Grifo nosso) no seu conteúdo e resignificadas, as palavras socialismo e comunismo, como vul-
136 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 137

garmente usadas, não são conceitos e acabam por ocultar o significado e o caráter exemplo é dado pela "nouvelle vulgate planétaire", ou seja, pela linguagem
da democracia em benefício tanto da sua identificação com a planificação econô- neoliberal:
mica (o socialismo realmente inexistente), quanto com a administração do estado
Em todos os países avançados, patrões e altos funcionários internacionais, intelectuais midiáticos
burguês. Essas denominações, pela ambiguidade semântica, polissêmica e politi- e jornalistas de alto prestígio puseram-se de acordo em falar uma estranha novilíngua cujo
camente construída, não permitiram e nem permitem clarificar o projeto de uma vocabulário, aparentemente surgiu do nada, está em todas as bocas: 'mundialização e 'flexibilidade';
sociabilidade para além da ordem do capital; e muito menos ajudar a criá -la. 'governançà e 'empregabilidade'; 'underclass' e 'exclusão; 'nova economià e 'tolerância zero;
As palavras podem potenciar, esclarecer, orientar, possibilitam nossas ações em- 'comunitarismo, 'multiculturalismo e seus primos 'pós-modernos: 'etnicidade: 'minoridade,
bora frequentemente também ocultem nossas debilidades. As palavras, os discur- 'identidade: 'fragmentação, etc.
A difusão desta nova vulgata planetária - da qual estão notavelmente ausentes capitalismo,
sos, as imagens traduzem sempre a visão de mundo que as fundam e que lhes dão classe, exploração, dominação, desigualdade, do mesmo modo que vocábulos peremptoriamente
sentido. Estes são os limites do nosso campo de intervenção. Obviamente não se revogados sob o pretexto de obsolescência ou de impertinência presumidas - é o produto de um
trata aqui de um trabalho de linguista, mas de proceder à análise política indissoci- imperialismo propriamente simbólico:' (Bourdieu e Wacquant, 2000)
ável da questão teórica. Marx recusou o cardápio de frases feitas contidas no Progra-
ma de Gotha, praticado por quem não estudara o real e fazia proclamações sonoras, Gramsci, na cadeia fascista, ao examinar os graves problemas da sua época fez
mas que fundamentalmente permaneciam vazias de conteúdo real para aqueles a um acurado trabalho sobre a linguagem. Problemas que persistiram e se agravaram.
quem poderiam destinar-se. Ele afirmou que nada disto faria a classe trabalhadora Uma leitura redutiva da vida gramsciana faz com que o vejamos apenas como uma
dar passos sequer do tamanho do salto de uma pulga em direção à ordem demo- vítima do fascismo. Na realidade - apesar do encarceramento - ele foi e será sempre
crática que ela necessitava e queria. Uma democracia distinta e superior àquela um dos campeões das classes trabalhadoras, um pensador universal que soube tra-
possível no interior dos regimes capitalistas. balhar a problemática da classe e da nação no amplo espectro de um mondo grande
A linguagem, decisiva nesse processo, é uma arma política para as classes e terribile. (Gramsci, 1965, Carta a Tatiana Schucht, 20-2-1928).
em presença, um dos loci da hegemonia 182. Libertar-se da ideologia bur- Nossa reflexão busca apreender o processo político da dialética entre a expressão do
guesa, dizia Gramsci, era o primeiro passo para construir a classe trabalha- real e sua transformação, passando pela vida concreta de mulheres e homens. O modo de
dora' sua subjetividade e historicidade, ultrapassando a situação de classe vida é um conceito vital nesse processo e remete ao fato de que todos somos intelectuais.
instrumental a serviço dos dominantes. Libertar-se dessa ideologia implica Para os militantes do futuro a tarefa é aprender como o real se move para transformá-lo,
autonomizar-se da fala dos dominantes. Fazer com os subalternos e não sobre o que requer e requererá sempre o abandono das frases feitas e das palavras de ordem
eles a invenção da fala, a criação da sua própria linguagem. Da universa- ocas. O mundo não caminha para o socialismo se a classe (homens e mulheres) não lutar
lidade à particularidade a linguagem explicita não apenas relações sociais e construir a emancipação do conjunto das classes trabalhadoras, aqui e agora, no planeta
fundamentais, mas, também, modos de vida que traduzem na cotidianida- como um todo. É uma arma política para as classes em presença, um dos lugares privi-
de a forma de como elas são vividas pelas classes. Modo de vida entendido 1egiados da hegemonia. A perspectiva do espetáculo que é um dos maiores poderes dos
como espaço de luta e não como rotina. É um ponto de ancoramento entre as dominantes. Debord (1992) enfatiza o papel do espetáculo em relação ao todo social:
macro-determinações sociais e a experiência de indivíduos, grupos e classes,
como historicidade em ação. A linguagem é elemento vital da constituição da o espetáculo se apresenta ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da
sociedade e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente
sociabilidade: ela traduz as práticas permite ou impede a ação das classes. o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Do próprio fato de que este setor é separado,
Calar os subalternos ou fazê-los falar a linguagem (e a prática dos dominan- ele é o lugar do olhar abusado e da falsa consciência; e a unificação que ele realiza não é senão uma
tes) é exercer, saibam ou não os que assim procedem, uma ditadura ainda linguagem oficial da separação generalizada. (Tese 3, p. 16. O lo e o 30 grifos são de Debord, os
que esta não tenha abertamente a aparência do uso da força l83 • Um belo outros são nossos)184.

182 Gramsci afirma: "A língua deve ser tratada com uma concepção de mundo, como a expressão ciais, determina uma maneira de escrever, uma escolha de referências comuns aos agentes do mundo
de uma concepção de mundo: o aperfeiçoamento técnico da expressão seja quantitativa (aquisição literário, uma representação do papel e do trabalho do escritor. (Aron)
e novos meios de expressão), seja qualitativa (aquisição de nuances na significação e de uma ordem 184 Debord (2003) reitera ser o espetáculo "o reino autocrático da economia mercantil, tendo ace-
sintática e estilística mais complexa) significa a ampliação e um aprofundamento da concepção de dido a um estatuto de soberania irresponsável, e o conjunto das novas técnicas de governo que
mundo e de sua história [... ]" (1975, p. 664) acompanham este reino. As alterações de 1968, que se prolongaram em diversos países no decurso
183 Em Les Français fictifs (1974), Renée Balibar mostra [... ] que as escolhas linguísticas e estilísticas dos anos seguintes, não derrubaram em nenhum lugar a organização existente da sociedade, donde
dos escritores permanecem dependentes da maneira pela qual eles aprenderam seu ofício no univer- o espetáculo brota como que espontaneamente; ele continuou, portanto, a reforçar-se por todos os
so escolar atravessado por contradições e escolhas do conjunto da sociedade. Esta mediação, que se lados, quer dizer, ao mesmo tempo em que se estendeu até os extremos em todas as direções, aumen-
observa concretamente nos exercícios propostos pelos professores, nos manuais, nas instruções ofi- tou a sua densidade no centro:' (Grifos nossos) Pasolini - comentando seu SaIo o Le 120 giornate
138 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 139

Os grifos nos mostram o significado da ação do espetáculo: ele «concentra todo produção de Shakespeare para ver como ela de algum modo antecipou conhecimen-
olhar e toda consciência': pode ser o « instrumento de unificação': a «linguagem oficial tos que só mais adiante as chamadas ciências histórico-sociais revelarão l87 .
da separação generalizada" e, portanto, o lugar da «falsa consciência': A obra de De- Apesar e contra o pensamento dominante encontra-se na arte possibilidades de
bord é importante para que possamos avançar na compreensão do espetáculo e da expressão: esta é a questão do caráter de classe da arte, da linguagem (inclusive as
alienação/fetichismo que o acompanha. «O espetáculo não é um conjunto de imagens, imagens) que ela utiliza. Por isso é preciso, para os dominantes, permanentemen-
mas uma relação social entre pessoas, midiatizado pelas imagens" (Tese 4, p. 16. Grifo te, censurar 188 a produção artística, a fala. O apagamento das linguagens artísticas
nosso). É «ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente" nada tem de puramente simbólico. A arte vive, aqui e agora, seu momento maior de
(Tese 6, p. 17. Grifo nosso), uma forma fetichizada: mercadoria. O controle multinacional desse mercado coloca de forma exponencial
um problema já vivido anteriormente. Canclini (2005) nos oferece dados expres-
Considerado segundo seus próprios termos o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação sivíssimos sobre o assunto:
de toda a vida humana, isto é, social, como uma simples aparência. Mas a crítica que atinge a
verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como uma negação da vida
[... ] nos Estados Unidos a indústria audiovisual ocupa o primeiro lugar nos lucros por exportações
tornada visível. [... ] o espetáculo não é senão o outro do sentido da prática total de uma formação
com mais de 60 bilhões de dólares, o que em vários países latino-americanos abarca cerca de 4 a
econômico-social, seu emprego do tempo. (Tese 10, p. 19).
7% do PIB, [... ], mais que a indústria da construção, a automotriz e o setor agropecuário no México.
O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Não diz nada
(p. 1. Grifo nosso.)
de mais que "o que aparece é bom, o que é bom aparece': A atitude que ele exige por princípio é
esta aceitação passiva que de fato já foi obtida pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu
monopólio da aparência. (Tese 12, p. 20), "[ ... ] reflexo fiel da produção das coisas e a objetivação São dados oficiais: não podemos, portanto, ser acusados de esquerdismo. O pro-
infiel dos produtores". (idem, Tese 16, p. 22. Grifo nosso). blema maior sequer é o do peso econômico tomado abstratamente, mas suas con-
sequências práticas. As formas de pensar e produzir são cada vez mais heterônomas
O espetáculo é uma forma privilegiada da linguagem e da tentativa de hegemoni- em relação às possibilidades das nações subordinadas na ordem financeirizada e das
zação. A simples possibilidade da neutralização do outro pelo fato de ter a seu favor possibilidades dos subalternos destas nações afirmarem seus projetos. Tomemos o
a impossibilidade da ação contraditória: no Brasil se não deu no Jornal Nacional, não acesso ao mundo cibernético como ilustração desse processo:
aconteceu 185; a mesma lógica do magistrado que afirma «se não está nos autos não
existe': Apagam-se diferentes concepções de mundo (weltanschauung) e de ciência 97% dos africanos não têm acesso às novas tecnologias de informação e comunicação, enquanto
pelo simples fato de não serem faladas/publicadas. Sartre afirmou que «para boicotar a Europa e os Estados Unidos concentram 67% dos usuários de Internet. A América Latina, que
conta com 8% da população mundial e contribui com 7% do PIB global, participa no ciberespaço
um espetáculo, a burguesia basta apenas fazer uma coisa: não comparecer:'186 Por
apenas com 4%. (p. 2)
isso ela, em tese, não precisaria censurar os espetáculos teatrais, o preço cobrado por
si só já resolvia, em grande medida, a questão. As novas tecnologias não são um videogame, mas poderosas armas de guerra, nas
Arte, linguagem é. Pode traduzir relações sociais, lutas, poderes, expressar sen- palavras de Reginaldo Morais (1992). As informações disponíveis sobre a mercanti-
timentos, modos de vida, superioridade e subalternidade. Basta examinar, p. ex., a lização da cultura são ainda mais significativas. O universal é imposto pela mediação
di Sodoma - afirmava que a televisão "mostra [... ] os modelos de vida e concretiza os valores através do particular subalternizado e pela monopolização econômica.
da sua linguagem que, sendo pura representação, não admite réplicas lógicas': (Ponzio)
185 Fórmula que explicita outra: 'i\quilo que existe já não tem necessidade de ser falado': Le Monde,
de 19 de setembro de 1987 citado por Debord, 2003. Ou, dito de outro modo: "Em breve valerá 187 Shakespeare fala sobre o ouro em Timon de Atenas: "Ouro! Ouro vermelho, fulgurante, pre-
mais a pena examinar os assuntos que não chamam a atenção': (idem) 'i\quilo que o espetáculo cioso! / Uma porção dele faz do preto, branco; do feio, bonito; / Do ruim, bom, do velho, jovem, do
pode deixar de falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra coisa covarde, valente, do vilão, nobre / ... Ó, deuses! Por que isso? Por que isso deuses; / Ah, isso afasta o
qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, em suma, existe:' Milhares de exemplos poderiam ser sacerdote do altar / E arranca o travesseiro do que nele repousa; / Sim, este escravo vermelho ata e
citados, mas o texto que Susana Rinaldi interpreta Carta a Júlio Cortazar (Werniche, 2004) é abso- desata / Vínculos sagrados; abençoa o amaldiçoado; / Faz a lepra adorável; honra o ladrão, / Dá -lhes
lutamente fantástico. Comenta as variações da imprensa sobre um ator (desde sua desmoralização títulos, genuflexões e influência. / No conselho dos senadores; / Traz à viúva carregada de anos pre-
até sua glorificação após sua morte). Pode-se assim, tranquilamente, pautar a sociedade falando e tendentes; / ... Metal maldito, / És da humanidade a comum prostituta:' Citado por Marx, O Capital.
calando, calando e falando: "o que Gardel fez é mágico [... ] tenho a suspeita que em nosso país há Crítica da Economia Política, Vol. 1,Livro 1., Nova Cultural, São Paulo, 1988, p. 111.
que se morrer para que te perdoem, porque se estás vivo molestais, pensais, tendes ideias, sois uma 188 Ou como afirmou Pasolini: "É tão óbvio que até uma criança entende que a censura é princi-
testemunha, opinais, te indignais': Cf. o slogan da BBC: "Em um mundo inundado de informação, palmente uma questão política, onde o sexo é uma simples e descarada ilusão. A censura intimida,
em um mundo de confusões e de contradições, a BBC Television e a BBC World Service dá sentido ameaça, mostra para o público um falso objetivo, distorcendo completamente a sua capacidade de
ao conjunto:' (Watkins, 2009) compreensão. Joga sobre o autor descrédito, escândalo e menosprezo, o fazendo perder respeitabili-
186 Sartre, 1965, p. 121. dade e credibilidade. E esse é realmente o resultado mais diabólico:'
140 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 141

Muitas corporações tradicionais, de Hollywood à MTV, para expandir-se buscam, mais que das grandes redes de fast-food que os efeitos mais intangíveis da globalização podem começar a
multiplicar o mesmo produto, atender os variados gostos de etnias e nações, distintas maneiras serem reconhecidos em sua forma mais dramática. (Jameson, p. 39)
de conceber a família e elaborar [... ] diversas concepções da memória e do corpo. (Canclini, p. 3) De fato é muito fácil habituar-se um público não-americano aos estilos hollywoodianos de
violência e proximidade física, e o prestígio dessas formas é ainda mais realçado pela imagem
de uma modernidade ou até de uma pós-modernidade americana. (idem, p. 23)
Usa -se sofisticadamente o material do imaginário dos subalternos dentro do [Os Estados Unidos são] a pátria da indústria cultural, e, portanto, o conteúdo principal de
universo simbólico dos dominantes. Cala -se sua voz fazendo-a "falar': a "aparecer" todos os televisores e walkman do planeta. É a pátria dos logotipos e da publicidade. E, enfim,
no produto final. Trata-se de forjar uma valorização fictícia que oculta um apaga- coisa que veremos estritamente correlacionada, se auto- representa como o país da liberdade.
mento real. (Martinez, 2005)
Jameson trabalha a sobre determinação da economia sobre as formas do entrete-
nimento mostrando como o domínio cultural se realiza via políticas econômicas: E não apenas de liberdade, mas da realização da vontade de Deus. 189
Sabíamos que já desde os anos 20 do século passado Hollywood agia desta forma.
Os Estados Unidos fizeram um enorme esforço, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para Talvez não soubéssemos seu alcance e possibilidades. A realidade superou qualquer
assegurar a dominação de seus filmes em mercados estrangeiros - isso foi conseguido, por via perspectiva pessimista.
política através da inclusão de cláusulas específicas em tratados e pacotes de ajuda econômica. Na
maioria dos países europeus - e a França se destaca por sua resistência a essa forma particular de Desde a década de 1990, seis empresas transnacionais se apropriaram de 96% do mercado mundial
imperialismo cultural - as indústrias cinematográficas nacionais foram forçadas a se colocar na da música (as majors EMI, Warner, BMG, Sony, Universal Polygram e Philips) e compraram
defensiva por tais acordos obrigatórios. As tentativas sistemáticas dos Estados Unidos de derrotar pequenas gravadoras e editoras de muitos países latino-americanos, africanos e asiáticos. O poder
as "políticas protecionistas" são apenas parte de uma estratégia mais geral e mais globalizante das de difusão mundial dessas empresas facilita que músicas de uma nação sejam conhecidas em muitas
corporações, hoje localizada na WTO [Organização Mundial do Trabalho] e em seus esforços - tais outras, mas sua seleção é mais mercantil que cultural e só priva de seus direitos intelectuais aos
como o projeto abortado do MIA [Acordo Multilateral de Investimento] criadores. [... ] Até Hermeto Paschoal e Milton Nascimento, para tocar suas obras em apresentações
[O MIA deveria] sobrepujar as leis locais com estatutos internacionais que favoreçam as empresas têm que pedir permissão às majors que dispõem de seus direitos se não querem cair na ilegalidade
americanas, com leis de copyright de propriedade intelectual, de patentes (de, por exemplo, materiais de ser denunciados pirateando a si mesmos. (idem, pp. 3_4)190
das florestas nativas ou das invenções locais), ou com estratégias para abalar a auto-suficiência
nacional em alimentos. (pp. 23-24)
Além do controle econômico
o que está em jogo é o modo de vida, a construção de uma natureza humana ciber- as novas estratégias de divisão do trabalho intelectual, de acumulação simbólica e econômica
nética mais do que simplesmente impor um domínio econômico. O jogo jogado é através da cultura e da comunicação, concentram nos Estados Unidos, Europa e Japão os lucros
terrível: busca -se criar uma hegemonia baseada na construção de uma concepção de de quase todo o planeta e a capacidade de captar e redistribuir a diversidade [... ] (idem, p. 4. Grifo
vida e cultura ditas universais. O Big Brother não é apenas uma fantasia orwelliana, nosso).
paranoide ou paranoica, nem um reality show da TV Globo: é uma realidade em
rápido e contínuo desenvolvimento. Trabalha-se no interior do campo da subjetivi- Traduzindo: exerce-se uma ditadura invisível pela criação de um modo de vida, tor-
dade subalternizada falando-se a grupos e nações distintos, traduzindo a linguagem nado possível pelo apagamento mercantil-simbólico de formas culturais expressivas de
universal - a do mercado capitalista - nas linguagens dos subalternos produzindo outras formações sociais; pelo controle político da diversidade. Tudo em nome, é claro,
assim uma cumplicidade que em longo prazo é muito mais eficaz que intervenções da liberdade de conhecimento e do acesso à cultura. As velhas definições sobre o que
militares ou golpes de estado. O segredo é simples: falar dos subalternos, com eles, mas é comunicação perdem o sentido. São pálidas representações do seu poder. Debord
transmitindo mensagens que não são as deles. (2003) enfatiza que se pretende
A imposição do american way oflife naturaliza um domínio que se quer, ao mesmo
tempo, total e "democrático': A naturalização é, sem dúvida, um poderoso elemento 189 "Dizem-me que hoje se desenvolvem dezenas de milhares de reuniões de orações, e disto sou
de bloqueio da diferença. O capitalismo aparece como o único horizonte diante do profundamente grato. Nós somos uma nação sob Deus, e eu creio que Deus quis que fôssemos livres.
qual tudo o mais seria non sense. Unicidade, Eleição, Missão. E Deus como comandante supremo:' (Discurso de Ronald Regan, citado
por Martinez, 2005)
No mesmo sentido Clinton, em discurso (1997) chegou a afirmar: ''A América é a única nação indis-
O que dizer então da resistência política no nível cultural, que inclui uma defesa de "nosso modo de pensável do mundo. Guiados pela antiga visão de uma terra prometida, dirigimos nosso olhar em
vidà'? [... ] na substituição da literatura nacional pelos best-sellers internacionais ou americanos, no direção a uma terra de promessa nova:' (idem).
colapso da indústria cinematográfica nacional, sob o peso de Hollywood, ou da televisão nacional 190 Canclini (2002) cita aqui a José Jorge de Carvalho, "Las culturas afro americanas en lberoaméri-
invadida por importações americanas, no fechamento de restaurantes e bares locais com a chegada ca: lo negociable y lo inegociable".
142 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 143

designar [com] um simples instrumento, uma espécie de serviço público que geriria com um Claro que sim. Debate televisivo? Informação em tempo real? Na prática esses de-
"imparcial" profissionalismo a nova riqueza da comunicação de todos através dos mass media, bates funcionam como reiteração daquilo que se quer fazer crer. Pobre Orwell! Ima-
comunicação enfim chegada à sua pureza unilateral, onde se faz admirar sossegadamente a decisão
já tomada. Aquilo que é comunicado são ordens; e, muito harmoniosamente, aqueles que as deram
ginou estar denunciando um totalitarismo. Vivesse hoje seguramente diria: como fui
são igualmente aqueles que dirão aquilo que pensam delas. ingênuo! Ainda Watkins:

Pensais que vivemos em uma sociedade realmente pluralista, onde o público pode aberta e
Watkins (2009) falando sobre os mass media áudio-visuais (MMAV) comenta que es-
plenamente tomar consciência dos problemas como a mudança climática, o declínio das liberdades
tes pretendem que seu papel seja apenas ((de divertir e de informar... e de dar ao público democráticas e a desigualdade, compreendê-las, debatê-las e captá-las?
o que ele espera: afirmam ser ((objetivos l9P: ((justosl 92 ': ((equilibrados1 93 ': ((imparciais 194': Ou bem estas questões estão sob o controle dos poderes centralizados como os governos, as
((neutros"195. Os mass media dizem que o público gosta mesmo é de uma ((cultura popu- instituições financeiras, as multinacionais e as agências de segurança?
lar" que é identificada a ((séries televisivas, dramas, os policiais, tele-realidade" - estes úl- [... ] As Constituições e as Declarações dos Direitos inscrevem geralmente o direito das mídias à
liberdade de expressão, mas não mencionam senão raramente o direito do público a esta mesma
timos são os populares realities show - coisas ((não apenas inofensivas mas propriamente
liberdade, muito particularmente quando se trata dos direitos do público face aos MMAV (idem)
democráticas, porque falam uma linguagem universal, que nasce do interesse das pessoas
pelos personagens, acontecimentos e celebridades': Grifo nosso. Ele fala ainda da linguagem adequada a esse processo totalitário:
Watkins (s/d) vai mais além e analisa as formas técnicas desse tipo de produção:
"Monoformà' é o nome que dei, há uns vinte anos, à linguagem central utilizada (no nível da
Em geral uma mensagem ou um assunto transmitido pelos MMAV veicula bem mais que seu montagem, da estrutura narrativa, etc.) pela televisão e o cinema para transmitir suas mensagens. É
conteúdo aparente. Há uma maneira pelo qual ele é montado, um modo pelo qual a câmera é uma torrente de imagens e de sons, montagem nervosa, uma estrutura compósita cujos elementos
utilizada, o que ela mostra (ou não mostra), o tipo de som que se escuta, as palavras que são são reunidos sem costuras aparentes e que, no entanto, é fragmentada; [... ] compreende também
ditas, que imagem é associada a qual outra (a justaposição), a duração durante a qual a imagem densas camadas de música, reconstituições de ruídos que acompanham a ação e os efeitos vocais,
permanece na tela, o tipo de estrutura narrativa empregada (hollywoodiana clássica ou outra), etc. cortes bruscos de som destinados a criar um efeito de choque, inumeráveis cenas saturadas de
[... ] Se certo tipo de mensagens (assuntos) inteiramente diferentes são apresentados empregando música, de formas de diálogo ritmados e repetitivos, uma câmera em perpétuo movimento que se
sempre a mesma forma-linguagem e os mesmos procedimentos, dia após dia, noite após noite, isto precipita, se desloca, se agita, descreve círculos, etc. 196
poderia influenciar a maneira pela qual se perceberá cada mensagem tomada individualmente?

191 "Um jovem locutor da BBC louvava as virtudes da economia californiana. Tinha acabado de
O impacto disto é brutal. Jameson aborda a questão por outro ângulo:
falar um empresário do Silicon Valley, que descrevia a economia mundial como uma economia fun-
dada sobre os 'computadores, a informação mundial e a diversão' (!!), e empregava milhares de pes- É muito fácil destruir esses sistemas culturais tradicionais que incluem os modos como as pessoas
soas:' (BBC Word Service Radio, 10 de agosto de 1997). Nenhum comentário crítico. (Watkins, 2009. se relacionam com seus corpos, usam a linguagem, lidam com a natureza ou com os outros. Uma
Grifo nosso) vez destruído, esse tecido social não pode ser mais recomposto. (p. 54)
192 "Um cientista descrevendo a região ártica, declarava, que por causa do aquecimento do planeta, O espaço concedido pela mídia ao trivial é afrontoso. Qualquer banda de rock reles estrangeira tem
daqui a 2050, o inverno polar seria de 10 a 15 graus mais quente do que hoje. 'É alguma coisa que destaque na televisão. O lançamento de um CD vagabundo ganha primeira página. Estamos nos
deveria nos causar preocupação, ou alguma coisa que tenhamos necessidade de nos preocupar?'
pergunta a reporter claramente desinteressada da BBC' (BBC World Radio, 5 de janeiro de 1999, 196 Viale (2010) fala da passagem da "cultura escrita dos livros, dos jornais e das revistas à cultura audio-
Watkins, 2009. Grifo nosso). visual da televisão e da internet': Comenta: "[ ... ] a página escrita requer atenção, esforço, reflexão, convida
193 Diante do anúncio de uma droga suíça anti depressiva para cães com stress por ausência dos a construir esquemas [... ]. O audiovisual é muito mais volátil; consente - quando não necessariamente
donos o locutor da BBC comenta: "Isto poderia ser uma oportunidade formidável para o mercado". impõe - uma recepção mais passiva; não comporta, a não ser em casos raros, um esforço de aprendizagem
(BBC World Radio, 23 de janeiro de 1999. Watkins, 2009. Grifo nosso.) e menos ainda de interpretação ou de 'tradução'; permite passar de um tema a outro - ou talvez de um
194 "o dia que os dinamarqueses tinham votado ruidosamente em favor do 'não' em resposta à universo a outro - com o simples pressionar de um controle remoto; sobretudo renova-se cada dia, apa-
questão da sua adesão à União Européia. O entrevistador da BBC lança questões ao comentar em Co- gando ou relegando ao esquecimento aquilo que foi dito ou comunicado ainda ontem. [... ] O que se perde
penhague, insistindo com ardor furioso para saber se não reinava um 'clima de medo' na Dinamarca, é, sobretudo, a tensão para construir um universo cognitivo e unitário. Como se sabe Berlusconi foi o mais
resultante de sua decisão contra a EU. O entrevistador da BBC passa o essencial do seu tempo subli- rápido em compreender e apropriar-se deste mecanismo:' (Grifos nossos)
nhando os aspectos negativos e o destino funesto desta escolha, apesar do fato que seu interlocutor Gracco (2011) reforça: '1\s características da comunicação são as mesmas: brevidade, ligeireza, simplicidade
assinalasse claramente que era uma decisão com a qual os dinamarqueses se sentiam confortáveis:' da linguagem. Frases de efeito [... ] sem a preocupação de criar uma ordem lógica, perfeitamente integradas
(BBC World Radio, fim de setembro de 2000. Watkins, 2009. Grifo nosso) em um meio televisivo que é uma coleção de fragmentos. [... ] o percentual das pessoas totalmente estranhas
195 La Comunne (2000) é uma importante obra de Watkins. Nesta obra, ao mesmo tempo em que à leitura de qualquer meio de imprensa aumentou de 33,9% de 2006 a 39,3 em 2009, que os usuários da
narra a questão da Comuna, ele mostra as entranhas da "produção" das notícias. Produção no duplo internet dobraram sua desafeição pelos meios impressos (eram 5,7% em 2006 tornaram-se 12,9% em 2009)
sentido de fabricação das versões (ver a TVNacional-Versailles, as contradições entre os repórteres e que o percentual dos jovens que usam regularmente a internet mas nem lêem jornais, nem revistas, nem
da TV Comume, etc.) e produção no sentido técnico (montagem, etc.) . Mostra como a segunda livros é de 28,7%, a conclusão é desarmante: só 35,8% dos italianos goza plenamente do pluralismo das
forma depende enormemente da primeira. fontes no âmbito da informação:' (Grifos nossos)
144 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 145

matando culturalmente. É uma leviandade institucionalizada. A consequência educacional, cultural 680 graças aos incentivos fiscais às suas empresas e ao controle oligopólico dos mercados nacionais
é horrível. (Muniz Sodré, p. 8. O grifo é nosso) e [...] estrangeiros. O México, pelo contrário, que na década anterior havia filmado 747 películas,
reduziu sua produção nos dez anos posteriores a 1994 para 212 longas-metragens. (Canclini,2000,
Construir a hegemonia pelos dominantes implica na destruição das formas cul- p. 9, Grifo nosso).
turais vigentes nas populações/nações subalternizadas. Isto vai muito mais além da
pura incorporação de palavras ou expressões anglófilas (dominação cultural atual). Tanto o cinema quanto a televisão realizam uma poderosa ação transformista, ab-
Estamos falando do apagamento de linguagens culturais, como as cinematográficas solutamente necessária à Ordem, de conversão do desejo em necessidade. Pasolini re-
brasileiras, francesas, italianas, etc., em benefício do espetáculo hollywoodiano. A força essa ideia 198 • O cidadão-consumidor vive plenamente essa contradição de uma
questão não é menor. Não é uma mera questão de gosto, mas da combinação entre realização no puro plano do imaginário. O desejo está sempre na cena. As necessidades
formatação ideológica e processo de acumulação. são deslocadas para o fundo da cena. E isto é vivido como impotência e culpa por parte
da massa sem recursos para realizar o maravilhoso mundo das compras. A aparência
No final do século XX os Estados Unidos, a Alemanha, a Grã-Bretanha e o Japão abarcavam quase (desejo dominante) conforma e neutraliza práticas sociais. Cria o cidadão-consumi-
60% das exportações dos bens culturais no mundo. 50% das importações também se concentrava dor passivo, impotente, mas desejante.
nesses países. [... ]
A situação mais desigual é a do cinema. A Itália satisfaz as necessidades de seu mercado nacional, A atitude pequeno-burguesa diante da vida se tipifica por um otimismo sem idéias e sem críticas.
a Espanha somente 10%, a Alemanha 12,5% e a França, 28,2%. Os Estados Unidos, ao contrário, Crêem que em última instância não tem importância as diferenças sociais e, de acordo com isso,
cobre 92,5% de seu mercado nacional, ou seja, recebe pouquíssimas películas de outros países necessitam ver nos quais as pessoas passem, simplesmente de um estrato social a outro. A esta classe
enquanto faz predominar sua cinematografia em quase todos os mercados externos. 197 média o cinema proporciona o cumprimento do romantismo que na vida nunca se comprova e que
[... ] 85% das películas difundidas nas salas de todo o mundo procedem de Hollywood, o déficit é os livros jamais se realizam como os cinemas com seu ilusionismo.( ... ) Arnold Hauser, História
sempre favorável aos Estados Unidos. [... ] e a cada ano o controle estadunidense da produção, da social de la literatura e y el arte, citado por Martinez, v. 14, p. 23, 2010,
circulação e da exibição deixa menos espaço ao cinema latino-americano. (Canclini, p. 4) O imaginário capitalista, ocidental e planetário, se generaliza em conjunto ao processo de
globalização. É um processo que não foi examinado pelos intelectuais de esquerda [... ]. A
Insisto: para além da questão mercantil o fundamental é a imposição de um hori- globalização, de fato, não é verdade que estenda o mercado e torne acessível a todos o consumo
opulento l99 , porque favorece em modo estranho a decomposição entre sistemas produtivos e
zonte ideológico. Padrões mentais que se traduzem em modos de vida decidem, em
formação das necessidades: quem vive no gueto da Cidade do México tem o imaginário de um inglês
grande medida, da possibilidade ou não da soberania dos subalternos, de culturas, de Londres, mas não pode dispor de nada porque mesmo o seu pão é produzido na América e sequer
povos e nações. Lembremos que enquanto a tiragem de um autor de pais hegemô- tem os meios para matar a fome. (Barcelona, p. 13. Grifo nosso).
nico, ou de obras publicadas naqueles idiomas, é da ordem de vários milhares de
exemplares, a edição, em nosso país, de autores nacionais (salvo os chamados best o papel da televisão é, regra geral, conservador quando não abertamente reacioná-
sellers) quando muito se publica de um a três mil exemplares. rio. Seu mote é a despolitização ou a politização favorável aos dominantes.
Jameson (2001) confirma essa afirmação e mostra as limitações impostas pela
política imperialista aos países subalternos: "[a passagem] da cultura para a Em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação (quase pânica de
economia. [... ] representad[a] pela indústria do entretenimento, uma das maiores e divertir a qualquer preço, a política está condenada a aparecer como um assunto ingrato, que se
mais rentáveis exportações dos Estados Unidos (juntamente com alimentos e armas):' exclui tanto quanto possível dos horários de grande ausência, um espetáculo pouco excitante, ou
(p. 23. Grifos nossos) Essa ditadura invisível é multifacética. Ainda sobre cinema e mesmo deprimente, e difícil de tratar, que é preciso tornar interessante a qualquer preço. Daí a
subordinação político-econômica. tendência que se observa por toda parte, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa de sacrificar
cada vez mais o editorialista e o repórter-investigador em benefício do animador-comediante,
Alguns dados sobre o declínio do cinema mexicano a partir da assinatura do Tratado de Livre a informação, análise, entrevista aprofundada, discussão de conhecedores ou reportagem em
Comércio da América do Norte indicam que a liberalização dos mercados não cumpriu as favor do puro divertimento e, em partícular, das tagarelices insignificantes dos talk shows entre
promessas de dinamizar a economia nesta como em outras áreas. [... ] [comparemos] os distintos interlocutores credenciados e intercambiáveis [... ]. Para compreender verdadeiramente o que se
efeitos das políticas culturais com que Canadá e México situaram seu cinema em relação com o diz e sobretudo o que não pode ser dito nessas trocas fictícias, seria preciso analisar em detalhe as
TLC a partir de 1994. Os canadenses, que excetuaram sua cinematografia e destinaram mais de 400
milhões de dólares, produziram na década posterior uma média constante de 60 longas-metragens 198 "É através o espirito da televisão que se manifesta concretamente o espirito do novo. Não há
a cada ano. Os Estados Unidos fizeram crescer sua produção de 459 a no início da década de 90 para dúvida [... ] que a televisão seja autoritária e repressiva como nenhum meio de informação [do] mun-
do:' (1973b)
197 Canclini (2005) cita aqui a Paul Tolila, "Industrias culturales: datos, interpretaciones, enfoques. 199 Watkins (2009): "[ ... ] a Grã-Bretanha do século XXI se transformou (segundo as palavras de um
Un punto de vista europeo': in Industrias culturales y desarrollo sustentable, México, S.R.E., OEI, autor recente a propósito do desperdício alimentar) em uma 'sociedade de turbo-consumo: que viu
CONCACULTA. o país quase dobrar seu consumo nos últimos dez anos:'
146 Edmundo Fernandes Dias Revol ução passiva e modo de vida 147

condições de seleção daqueles que são chamados nos Estados Unidos de panelist~OO, estar sempre está mais forte do que nunca. Sua necessidade como correia de transmissão do capi-
disponíveis, isto é, sempre dispostos a participar, mas também a jogar o jogo, aceitando falar de tudo
talismo financeirizado está acima de qualquer dúvida. A revolução não é, portanto,
(é a própria definição do tuttologo) e a responder a todas as perguntas mesmo as mais absurdas ou
mais chocantes, que os jornalistas se fazem. (Bourdieu, 1998a, p. 95) um programa maximalista, mas a condição mesma de existência das classes trabalha-
[... ] os jornalistas [... ] quando o medo de entendiar, e portanto de fazer baixar a audiência, os leva doras. Recusar o discurso neoliberal é permitir-se atuar com o mínimo de eficácia. O
a dar prioridade ao combate ao invés do debate, à polêmica em lugar da dialética, e a empregar chamado ''complexo de vira lata" é a concretização da heteronomia planetária.
todos os meios para privilegiar o enfrentamento entre as pessoas (os políticos, sobretudo) em
detrimento do confronto entre seus argumentos, isto é, do que constitui o próprio móvel do Não há dúvida de que, hoje, o desenvolvimento assustador da cultura de massa nos subjuga cada vez
debate, déficit orçamentário, baixa dos impostos ou dívida externa. Pelo fato de que o essencial mais ao poderio da mídia e da indústria do consenso, tende a sufocar as aspirações de ''espontaneidade''
de sua competência consiste em um conhecimento do mundo político baseado na intimidade dos e portanto de "autonomià' dos grupos subalternos no regime capitalista. Mas, por outro lado, a
contatos e das confidências (ou mesmo dos rumores e dos mexericos) mais que na objetividade degradação da "alta culturà' ou, como dizem alguns teóricos do "pós-moderno: a sua dissolução na
de uma observação ou de uma investigação, eles tendem a levar tudo para um terreno em que são cultura de massa, leva a limitar e até fechar os espaços da função progressiva dos intelectuais "críticos':
peritos, interessando-se mais pelo jogo e pelos jogadores do que aquilo que está em jogo, mais pelas sejam eles "revolucionários" ou "democráticos': Mas quem convocará os grupos sociais "subalternos':
questões de pura tática política do que pela substância dos debates, mais pelo efeito político dos quem os ajudará a municiar-se com as armas da crítica? O "povo: narcotizado pela televisão, é só
discursos na lógica do campo político [... ]. (idem, pp. 96-97)
"de direità'? [... ] Hoje, na Itália, a direita exibe velhos e novos intelectuais, muitas vezes reciclados de
um passado de esquerda: enquanto na esquerda emerge a propensão a decretar, com mal disfarçada
o idioma dos dominantes (linguagens, cultura, política, economia, etc.) cria um complacência, a morte não apenas dos intelectuais tout court, mas dos intelectuais ''críticos''. Estariam,
público cindido entre o desejo (irrealizável) e a realidade (indesejável) que organiza assim, nascendo os "intelectuais diluídos". (Baratta, 2004, pp. 73-74. Grifo nosso)
os "consumidores, de quase todos os países com informação e estilos de vida não
homogeneizados, mas compartidos em um imaginário multilocal constituído por A presença da televisão altera o quadro produzindo efeitos os mais perversos. O
ídolos do cinema hollywoodiano, da música pop e por heróis esportivos [... ]': (Can- fundamental, porém,
clini, 2000, p. 4).
Cidadão de um consum0 201 pretensamente internacional o subalterno convive [... ] está no ter feito do cidadão apenas um espectador, átomo, [... ] sem outra idéia de si que aquela
que recebe do vídeo, e de seus anexos, e docilmente reenviando ao vídeo o mesmo comando que
com a miséria (em qualquer uma das suas formas) no âmbito nacional. Este é into-
aquele lhe sugere, pelo qual cada um reflete o outro até o infinito.
lerável, aquele é o horizonte mutável para o qual, e pelo qual, se dirigem desejos e [... ] a TV, como todas as imagens em movimento, induz sugestões mais que pensamentos [... ]. Quem
consciências. Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira lata" à consideração administra as imagens joga com isto, seja na mensagem explícita, seja na subliminar [... ]. Mas esta
do nacional, daquilo que se faz, aqui e agora, como sendo necessariamente de qua- TV não libera o imaginário, sugere estereótipos construídos sobre a mídia dos desejos simplificados
lidade inferior e à aceitação incondicional do estrangeiro. A chamada globalização (dinheiro, sucesso, sexo) e transgressões consentidas. (Rossanda, 1996, pp. 36 e 37. Grifos nossos)
criou um imenso domínio econômico e procura, cada vez mais, impor o imperia-
A infantilização de jovens e de adultos é uma forma eficaz de dominação. A espe-
listic way of life pela tentativa amplamente exitosa de domínio político e ideológico.
tacularização do crime funciona como um glamour, cada vez que há um tiroteio em
Esta fusão se dá no plano das potências midiáticas:
uma escola ou um sequestro isto não funciona como aviso à sociedade, mas como
A fusão da Time Warner, a maior empresa multimídia, que abarca redes de televisão, cinema um convite a aparecer em escala de massa. A televisão não libera, aprisiona; não es-
e informação, com a America On Line, a principal provedora mundial de acesso à Internet, foi clarece, escamoteia; não ilumina, oculta. Ela diz o que "ocorre(u)':
difundida no início do ano 2000 como uma extraordinária interconexão de todo o planeta. E, ao
mesmo tempo, quando se anuncia que seu capital equivale à metade do Produto Interno Bruto O governo do espetáculo, que presentemente detém todos os meios de falsificar o conjunto da
da Espanha e a quatro-quintos da riqueza anual gerada pelo México, nos perguntamos o que os produção, é senhor absoluto das recordações tal como é o senhor in controlado dos projetos que
cidadãos podem fazer ante tais poderes concentrados. (Canclini, 2000, p. 5. Grifo nosso) modelam o mais longínquo futuro. Ele reina só em todo o lado; ele executa os seus julgamentos
sumários. (Debord, 2003)
A demonstração dessa hegemonia sem hegemonia coloca a necessidade de refle-
tirmos sobre os destinos não apenas das classes trabalhadoras em escala mundial, A técnica de bricolage, presente no dito processo de comunicação faz da história
mas até mesmo da possibilidade de autonomia, mesmo que super-relativizada, dos aquilo que os povos "necessitam" e "devem" saber. Prática universal: dos países cen-
ditos estados nacionais. Contrariamente às teses da morte do estado nacional, este trais do capitalismo até a sua periferia mais distante. O subalterno dos países centrais
é, na prática, reduzido quase à situação do subalterno dos países (re)colonizados
200 Participantes dessas mesas redondas televisivas. Nota do tradutor.
201 Pasolini afirma: "Nenhum centralismo fascista conseguiu fazer o que fez o centralismo da so- ainda que possuam algumas possibilidades a mais daqueles outros.
ciedade dos consumos"( 1973b)
148 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 149

Escrevo esta nota logo após o fim do "TG1" [noticiário do telejornal] das 13.30 desta quarta Insinua-se assim, pouco a pouco, uma filosofia pessimista da história que encoraja a desistência e a
feira. Do universo fez 22 notícias. Oito delitos, mais treze cenários de morte, duas guerras e uma resignação em lugar de estimular a revolta e a indignação. Ao invés de mobilizar e de politizar, uma tal
necrologia inconclusa [... ]. Depois um governo. Um fato privado. Três notícias econômicas. Três de filosofia acaba contribuindo para avivar os temores xenófobos, assim como a ilusão de que o crime e
teatro. No oitavo lugar o primeiro resultado eleitoral da África do Sul: vitória de Nelson Mandela; a violência não param de crescer também favorece as ansiedades e as fobias da visão obnubilada pela
textual: "Os negros bailam': (Rossanda, p. 39)202 idéia de segurança. [... ] É evidente que a mídia é, no conjunto, um fator de despolitização, que age
prioritariamente sobre as frações menos politizadas do público, mais sobre as mulheres que sobre
Watkins (s/d) analisa o procedimento: os homens, mais sobre os menos educados que sobre os instruídos, mais sobre os pobres que sobre
os ricos. (Bourdieu, 1998a, pp. 10 e 109. Grifos nossos)

Os aspectos mais evidentes desta apresentação são as palavras escolhidas pelos comentadores
e jornalistas, o tempo consagrado aos diferentes assuntos, a ordem de importância na qual são Minicuci (2005) fala de uma nouvelle vague semiológica e linguística.
abordados, as pessoas que se vê na tela, o espaço de tempo que elas tem para falar, as imagens
utilizadas para ilustrar a reportagem, etc. Um exame detalhado destes primeiros aspectos já revelará Na época pré-televisiva e pré-globalizada, a maior diferença entre a linguagem política da direita e
os preconceitos editoriais e os métodos de narrativa repetitivos. a da esquerda consistia na contraposição entre emotividade e racionalidade. [... ] agora a oralidade
tem de pactuar com outros códigos semiológicos. O comício quase desapareceu, dando lugar ao
Fundamental nessa construção de um pensamento único via mídia é o processo comparecimento na televisão, principalmente sob a forma da entrevista ou debate (quando não
de formação dos "comunicadores': processo que passa pela formatação dos cursos de luta). Cada vez mais a política vai assumindo as formas do espetáculo, deslocando para diante os
limites da compostura. (Grifos nossos)
universitários, pelo controle das redes em relação aos jovens estudantes e ao brutal
monopólio do qual Ruppert Murdoch, Silvio Berlusconi e Emilio Azcarraga Milm0 203
A política se deslocou das ruas para os meios eletrônicos, a televisão sobre os quais
são exemplos cruciais. O discurso é o da passivização e do silenciamento:
os subalternos não têm o menor controle. Isto é particularmente grave na realida-
A "lógicà' aqui é de uma simplicidade devastadora. [... ] Agrade-nos isto ou não somos regidos de brasileira. A concepção de igualdade perante a lei, no Brasil, é traduzida, por
pelas forças do mercado mundial. Nossa responsabilidade em relação aos estudantes é de ajudá-los exemplo, nos programas eleitorais, ditos gratuitos, em tempos diferenciados a partir .
a encontrar trabalho no quadro desta ideologia. Isto significa persuadi-los a recorrer às imagens das bancadas parlamentares eleitas. Dilma, a candidata do governo, teve direito a
animadas para manipular o público, dar-lhes os instrumentos estruturais (a monoforma e a 10m39s diários (42,6% do total e 230 inserções de 30 segundos); Serra 7m19s (29,2%
narração hollywoodiana), assim como a ideologia necessária para fazê-lo, e aí compreendida a idéia
e 157 inserções); Marina 1m23s (5,6% e 29 inserções); Plínio 1m02s (4,1 % e 23 in-
de que uma relação altamente controlada e hierarquizada entre produtor e público é "normal':
(idem) serções). Aos demais candidatos, coube, a enormidade de 56s!!!. para cada um deles.
Esta é a tradução real de um combate absolutamente desigual. Se considerarmos que
Aqui, como dizia Marx sobre as fábricas, vigora o princípio do "não entre senão Dilma, Serra e Marina já afirmaram ter em síntese o mesmo programa teremos que
for admitido': Obviamente uma ou outra aparição crítica (um dissidente, um que este será defendido com cerca de 77,4% do tempo e 416 inserções. Se somarmos
não consente) é sempre bem-vinda para demonstrar a liberdade de informação. So- o tempo dos vários candidatos de partidos menores, muitos deles governistas ou
mente a exceção que confirma a regra. Democracia é outra coisa. Ela requer, entre pró-governistas ou simplesmente de "aluguel" (com a exceção de um ou outro de
outros elementos, liberdade de informação não redutível ao monopólio liberal da esquerda ou à esquerda do espectro político), teremos (com contradições entre eles)
mídia, mas que, pelo contrário, seja capaz de construir a autonomia necessária para cerca de 22.6% do tempo veremos que a batalha eleitoral, do qual o programa político
mulheres e homens livres: hoje dominante é um mero instrumento, será ganha pelo simples uso das leis eleitorais,
não importando que candidato será eleito. É, sem dúvida alguma, o terreno privilegia-
O homem televisivo mass-midial não é um indivíduo socializado de forma democrática, mas do dos dominantes. Tudo, claro, em nome da liberdade de imprensa, codinome oficial
uma massa que se identifica com uma imagem e mesmo com um chefe. Quem confia em "milagres"
do que antigamente chamávamos liberdade. Oculta-se a decapitação da voz e do sen-
decidiu não ser um cidadão [... ] democrático. [... ] [fazem-lhe] crer ser impotente, que os homens
e os cidadãos não podem decidir, que os operários não podem contar. (Barcelona, p. 154. Grifo tido dos subalternos.
nosso) O espetáculo é uma forma privilegiada da linguagem e da busca de hegemoni-
202 ''Agora é preciso dizer que o jornalismo (na TV brasileira) oscila entre o jornalismo de boutique zação. É o espaço do virtual: vontades ou corpos segmentados, isolados, que não
e o jornalismo de esgoto" (Sodré, p. 8. Grifo nosso) dialogam entre si, mas que "aparecem" como se comunicando universalmente, em
203 Sustentáculo do PRI mexicano (Partido Revolucionário Institucional) Milmo se disse sempre
um "soldado do presidente" e afirmava que "a responsabilidade de uma empresa de televisão era tempo real (sic).
'divertir os pobres e distraí-los de sua triste realidade e de seu futuro difícil~' (Watkins, 2009. Grifo
nosso)
I i

150 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 151

A diferença entre as praças é que a dissidente é autoconvocada, a que aplaude é convocada204• Vale ra, como Medici fizera quando ditador). Futebol, sentimentos, piadas (frequentemen-
também para a praça telemática que tomou o lugar da praça real e verdadeira, onde te cabia levar te machistas, normalmente grosseiras e desqualificadoras), numa incessante busca
teu corpo e te encontravas abraçando ou golpeando ou sendo golpeado, inconveniente que aos
de um consenso instintivo, visceral: isto humaniza a imagem do político, aproxima-o
corpos virtuais não sucede. Na praça telemática és convocado por quem tem o microfone, o éter,
o satélite, o cabo, e esperas que ele te de voz e visibilidade na fração de tempo e espaço que te foi do público, dizem os marqueteiros e... um certo tipo de «jornalistas': Afinal o que
benevolamente concedido. (Rossanda, pp. 63-64. Grifo nosso) existe é um público indiferenciado, homogêneo, amorfo, infantilizado e não mais clas-
ses. Contradições, conflitos, dores e carências desaparecem como que por encanto.
Outros mecanismos substitucionistas se apresentam como esclarecedores, mas E, se necessário, produzem -se filmes de encomenda ((O filho do Brasil") onde sone-
que negam a intervenção política real, como as «sondagens«, «onde és ainda mais gando informações, retocando detalhes, aqui e ali, apresenta-se o governante como
incorporado que no voto. Respondes a perguntas que não fostes tu a formular:' (idem, sendo «um brasileiro igualzinho a você': «indicado" para representar o Brasil na
p. 64. Grifo nosso) Sondagens feitas para melhorar as condições mercadológicas (de premiação do Oscar. Mais claro que isso é impossível. Candidaturas, carros, cigarros,
produtos ou de candidaturas), instrumentos dos mais variados mercados entre os quais detergentes, sabonetes: mercadorias com vendas produzidas pelos marqueteiros da
se encontra o eleitoral. Basso e Perocco (citados por Masi, 2009) falam em «engenhei- moda, que, ouvidos os reais donos do poder, pautam a vida social. Falo em donos
ros da chamada opinião pública" (Grifo nosso) ou os «peritos de legitimação" na feliz (reais) do poder para distingui-los dos governantes (que são normalmente apenas
expressão de Chomsky e Herman (1976, p. 1). personre, máscaras, ainda que tenham possibilidade de fazer política).
Nós os conhecemos bem: são aqueles marqueteiros (tipo Duda Mendonça) que nos Tudo isso é fortalecido pelo monopólio dos meios de comunicação. Berlusconpo7,
vendem candidaturas e ideologias como se fossem mercadorias como outras quais- por exemplo, controla praticamente a opinião pública (sic) italiana. Possui três redes
quer (carros, eletrônicos, modas, sabonetes, fundos de pensão, presidentes, etc.). televisivas (Canale 5, Italia Uno e Retequattro), a maior editora (Mondadori, que con-
Quem lembra as campanhas eleitorais onde Luis Inácio se enfrentou com Collor (a trola 30% das edições de livros). Ele tem 96% do comando do grupo Pininvest que
ameaça de ida para o exterior feita por um dirigente da confederação das indústrias, controla o Il Giornale, um dos maiores do país onde colocou seu irmão como gerente
a acusação de tentar forçar o aborto da filha, etc.) ou com Serra (o «tenho medo" no período da Tagentopoli (1992-1994) e possui relações privilegiadíssimas com a
de Regina Duarte, a ex-namoradinha do Brasil), o uso do «ame-o ou deixe-o': tão poderosa Loggia Massonica «Propaganda 2" responsável pelos atentados praticados
próprio da ditadura, onde o ex-presidente se colocava como emissário de Deus ("Ele pela extrema direita na Itália e que comprou diversos jornais e revistas.
não me traria de tão longe se não fosse para cumprir missões tão importantes")20S Gelli e a Loggia propuseram um Piano di Rinascita Democratica para alterar a or-
não há como estranhar isso. Lembremos seu último programa eleitoral em 2006: dem política italiana. Embora afirmassem que não pretendiam a derrubada do siste-
um belíssimo cortejo de mulheres grávidas apontando-o como o portador do futuro. ma suas medidas eram claras. Atingem diversos setores como, por exemplo,
Associa-se (ou mistura-se?) assim beleza/gênero/política para vender uma merca-
doria eleitoral (mistificada e mistificante). Nada de propostas, apenas imagens que Os sindicatos, sejam confederais CISL e UIL, sejam autônomos, na pesquisa de uma alavanca para
reconduzi-Ios à sua função natural ainda que ao preço de uma cisão e sucessiva constituição de uma
poderiam ser usadas por Luis Inácio, Serra, Maluf ou Dilma!!! Quem tem Duda associação livre de trabalhadores.
Mendonça crê já ter meio jogo ganho. [... ] Partidos políticos, imprensa e sindicatos [... ] A disponibilidade de cifras não superiores a 30 ou
O esporte permitiu tanto o aumento da popularidade de Berlusconi (dono do Mi- 40 bilhões parece suficiente para permitir a homens de boa fé e bem selecionados conquistarem as
lan) quanto de Luis Ináci0 206 (corintiano roxo que dá palpite sobre a seleção brasilei- posições chaves necessárias ao seu controle.
[... ] seleção de homens - acima de tudo - aos que possam ser confiados a tarefa de promover a
204 Lembremos da convocação colorida de uma passeata vestida de verde e amarelo. revitalização de cada um dos respectivos partidos políticos (Pelo PSI, por exemplo, Mancini, Mariani
205 Dias, 2006. e Craxi; pelo PRI: Visentini e Bandiera; pelo PSDI: Orlandi e Amidei; pela DC: Andreotti, Piccoli,
206 Não é nada desprezível o volume dos gastos da Presidência com a propaganda. Sob o título de Forlani, Gullotti e Bisaglia; pelo PU: Cottone e Quilleri; pela Direita Nacional (eventualmente):
institucional os gastos mais que duplicaram no seu segundo mandato saltando de 80,1 milhões de Covelli).
reais em 2007, para 120,2 (2008), 158,1 (2009) e projetados 167 (2010). Em propaganda anunciada
como de utilidade pública foram gastos 152,6 (2007), 294,7 (2008),425,1 (2009) e 532,1 (2010) quase 207 Sobre Berlusconi é elucidativa a opinião de Licio Gelli, Grão Mestre da P2: "um grande homem"
400% de aumento. Se somarmos as duas tabelas passaremos de 232,7 (2007) para 684,7. Nada despre- que "tomou nosso Plano de Renascimento e copiou-o quase todo" (Guerrieri, 2009). Em 2000, no
zível. Dados publicados na Folha de São Paulo de 18 de janeiro de 2010. Esses dados eram estimativas Corrieri della Sera, Berlusconi, por sua vez, afirmou que "ser um piduista não é demérito. (idem)
superáveis visto ser um ano "eleitoral': mantidos os costumes nacionais (o brazilian way of politics, o Piduista significa membro da P2 na qual ele está inscrito (sob o número 1816). Examinaremos a
popular "jeitinho"). Deve também ser considerado o número de concessões do direito de radiofonia posteriori a ação de Gelli e da P2 mais adiante. Lembremos aqui a advertência de Josph Pulitzer - que
de atribuição exclusiva pelo Estado: o peso disto no período pré-eleitoral é imenso. Não nos esque- dá nome ao premio mais importante da imprensa: "Com o tempo, uma empresa cínica, mercenária,
çamos que aos subalternos isto é negado, mas aos políticos da base governamental e da "bancada da demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma:' Citado na edição de abril de
fé" isto é generosamente concedido.
2011 do The Economist.
152 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 153

o bem articulado Piano detalha os métodos de intervenção: o quadro do uso e abuso da informação e da sua concentração financeira e ideo-
lógica a defesa do capitalismo não se restringe aos partidos de direita, conservadores
adquirir alguns semanais de batalha; coordenar toda a imprensa provincial e local através uma e mesmo abertamente reacionários. Partidos que se dizem e se pensem como de es-
agência centralizada; coordenar muitas TV via cabo com a agência da imprensa208 local; dissolver
querda reproduzem e praticam a velha e surrada cantilena capitalista: fora da Ordem
a RAI-TV em nome da liberdade de antena ex art. 21 Constit. No que concerne os sindicatos a
escolha prioritária é entre a solicitação de ruptura, isto é, seguindo as linhas já existentes dos grupos do Capital não há saída, sequer vida inteligente. Nem todos, é preciso ressaltar. A
minoritários da CISL e majoritários da UIL, para depois facilitar a fusão com os autônomos [... ]. institucionalidade burguesa é aceita e defendida por eles como se fosse a única possí-
(Grifos nossos) vel, chegando mesmo, em casos limites, a considerar os críticos do capital como xii-
tas. Nos anos 50 e 60 do século passado a acusação era de pressa pequeno-burguesa.
Ponto crucial dessa alteração da ordem constitucional é dedicada à televisão. E é frequente encontrarmos intelectuais famosos fazendo estas análises «científicas':
Rossanda, em 1995, perguntou/afirmou, com inteira razão: «a centro esquerda é a
Em particular a P2 propunha a dissolução da RAI e a criação de televisões privadas com o objetivo de forma moderna do capital?" (180. Grifo nosso). Guy Hocquenghem, Lettre ouvert à
controlar a opinião pública. [... ] Um dos objetivos principais do Piano di Rinascita era precisamente a
criação de redes privadas, com o objetivo de destruir aRai.
ceux qui sont passés du col Mao au Rotary, Albin Michel, Paris, 1986, citado por La-
Em 1976 a Corte Constitucional permitiu via sentença a liberalização das transmissões para televisões bica (2009, p. 67) fala: «Núpcias pornográficas entre o Capital e o Estado, casamento
e rádios locais. Depois da sentença da Corte, houve uma proliferação de televisões privadas. Foi Silvio da Defesa e dos Direitos Humanos, noivado do Rearmamento e de Deus, [... ] Quem
Berlusconi que lançou a mais séria competição contra a RAI. [... ] [desde] os anos 80 o setor televisivo ainda sabe para que lado está a esquerda e para que lado a direita?':
privado foi praticamente monopolizado por Berlusconi. Em 1980 a "Telemilano" mudou o próprio
Rusconi (2009) ao analisar as eleições alemãs expõe o quadro mais claramente:
nome para "Canale 5" e se tornou visível em toda a nação (em contraste com a sentença da Corte
Constitucional). Em 1983 Berlusconi adquire também a "Italia 1'ê a "Rete 4". recentemente
Quando em 1984 os ministérios públicos do Lazio, Piemonte e Abruzzo sentenciaram o fim das
transmissões dos canais de Silvio, o governo Craxi209 emitiu imediatamente um decreto lei que salvou as principais organizações sindicais, seguindo o exemplo da Ig Metall, o poderoso sindicato dos metal
os canais Mediaset. Sucessivamente, com o "Decreto salva Berlusconi" o status quo torna-se lei e a mecânicos (2,3 milhões de inscritos), renunciaram oficialmente a dar indicações de voto aos próprios
Mediaset podia legalmente transmitir para toda a nação. membros, na previsão das próximas eleições de setembro. É um duro golpe para a Spd, pela sua
A RAI foi obrigada a aceitar a lógica do mercado e perde, pelo menos, parcialmente, sua função de identidade de grande partido dos trabalhadores. É um ato de desconfiança no seu programa social212 .
serviço público. (Guerrieri, 2009). Os sindicatos acusam o aumento da idade para aposentar e contra o corte do seguro desemprego.
Mas não dizem nada de estímulo sobre o esforço feito pela social-democracia ao governo para fazer
frente, com sucesso, à crise dos últimos meses, para guiar com firmeza a política de intervenção do
Isto produziu um efeito especial: Estado no sistema bancário [... ] (Grifos nossos)213

A Itália é o único país do mundo em que o proprietário de um grande pólo de informação (redes de
televisão, jornais, semanários de atualidade, revistas de entretenimento, uma grande casa editora), é Trata-se da mudança radical do discurso dos partidos socialistas que abandona-
também leader de um partido político21 o. Este estado de coisas torna evidente e mesmo paradoxal a ram a antiga menção às teses marxistas: a esquerda majoritariamente substituiu o
mistura entre política e informação211 , e a longo prazo tem o inevitável efeito de abaixar a qualidade dogmatismo estatalista por «um mimetismo, um fideismo de mercado" (Ruffolo, 2009.
de ambas as coisas. (Ingrao e Zanotelli, 2003, p. 23. Grifo nosso) Grifo nosso). Os sectários que viam, anteriormente, o Estado como única possibi-
lidade, passa(ra)m, hoje, genuinamente, a defender - sem fazer a menor autocrítica
208 Três caracterizações sobre a eficácia da imprensa: '''Um jornalista é mais valioso do que vinte - o mercado como o único horizonte possível. Governos que se elegeram com uma
agentes' [segundo um] agente anônimo da CIA:' (Joseph, p. 177), "[A] Propaganda é a forma mais
proposta à esquerda rapidamente se adaptaram aos ditames do capitalismo finan-
efetiva de terrorismo:' (Hitler, citado por idem, p.178) e "Propaganda como terror". (idem, p. 177)
"Desde 1996 a tarefa da CIA de cooptar a mass media ficou mais simples [... ] Mais de duas dezenas ceirizado planetariamente. Trata-se daquilo que Gramsci chama de transformismo.
de corporações controla agora por volta de 90% dos dez mil jornais, revistas e estações de rádio e Vivem a síndrome do violinista: seguram com a esquerda e tocam com a direita.
televisão na América:' (idem, p. 178) Giacche (2011): "no mundo contemporâneo a propaganda, a
Nesse sentido a intervenção política de Luís Inácio, inicialmente menosprezado e
guerra de palavras e de imagens é daqui por diante a própria guerra:'
209 Bettino Craxi, primeiro ministro socialista (1983-1987), era amigo de Berlusconi desde os tem- combatido pelas diversas frações burguesas e posteriormente percebido e elogiado
pos da Universidade. pela sua ação de mobilização/inclusão das classes subalternas à dominação burgue-
210 Em 1993 Berlusconi formatou a Forza Italia o maior bloco parlamentar em articulação com a
Alleanza Nazionale (neofascista) e a Lega Nord. 212 Lembremos que a independência (sic) dos sindicatos em relação ao Partido Socialdemocrata
211 Uma simples demonstração dos efeitos dessa commistione pode ser vista no fato de que "o Go- Alemão é histórica. Sua origem está datada de 1905 quando após a derrota da revolução na Rússia
verno Italiano, sem discussões, sem reflexões, sem que os cidadãos soubessem de nada, arcará com os eles passaram a comandar o relacionamento com o partido. Veja-se o Congresso de Sttutgart de 1907.
gastos do projeto de colaboração da Alenia-Boeing para a realização do escudo espacial", comentam 213 Na mesma perspectiva, mas em outra direção, veja-se a atuação de Centrais, sindicatos e movi-
Ingrao e Zanotelli (idem, p. 24) a partir de um artigo de Manlio Dinucci publicado em il Manifesto. mentos sociais brasileiros na conformação da legitimação governamental.
154 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 155

sa. Luis Inácio e o conúbio sindical/movimentos sociais e as direções das frações da esmagando os setores da sociedade civil do trabalho pela coerção física e ideológica.
classe dominante constituíram uma alternativa política com características relativa- O princípio da governança responsável (que reunia de Bill Clinton à Fernando Henri-
mente novas na política brasileira. Sempre poderiam nos lembrar da ação varguista. que Cardoso e membros da Internacional Socialista, como Brizola) determinava em
A comparação é, no entanto, inadequada. Vargas (nome coletivo) criou uma buro- nossos países uma política de concertación. Vale dizer políticas de pacto social que
cracia altamente qualificada para construir o que se colocava como capitalismo na- garantiam a capacidade máxima de acumulação do capital.
cional autônomo. O resultado da ação da burocracia foi, na prática, a criação do Es- Para Barcelona o projeto de uma esquerda moderna não pode ser o dessa integra-
tado brasileiro. Luís Inácio fez justamente o contrário. Aprofundou a destruição de ção à ordem; mas, pelo contrário, só poderia ser o da autonomia da classe:
importantes setores da economia e da política nacionais. Aprofundou a ópera tucana,
como pode uma sociedade complexa e diferenciada encontrar a capacidade de governar a si mesma,
que já vinha, pelo menos, do (des)governo Collor. Um dos elementos fundamentais
como pode redesenhar uma nova relação entre elaboração de necessidades e reclassificação dos trabalhos
foi a ampliação da burocracia controladora das finanças, deixando terreno livre à úteis; em outros termos, como pode instituir horizonte de sentido e os próprios critérios de valor.
sanha das frações financeiras. Assim ele se diferenciou mais e mais de Vargas. Nunca Trata-se, em outras palavras, de transformar a identificação social das necessidades e dos valores,
trabalhou com a perspectiva de um capitalismo autônomo. No máximo buscou uma que dão significado à existência individual e coletiva, de processos guiados por poderes estranhos e
posição mais confortável para a integração subalterna à mundialização financeira. das lógicas instrumentais ao cálculo econômico a processo de autocriação, de auto-identificação com
toda a sociedade: esta é a tareja de uma nova estratégia democrática. A democracia do autogoverno
Esta ação se deu nos mais diversos planos. Citemos, de passagem, o processo de começa, de fato, do buraco negro de todo cálculo econômico, disto que nenhuma ciência econômica
destruição do serviço público: educação, saúde, seguridade. Nesses campos a entrega nunca conseguiu determinar a priori: quais são as necessidades aos quais uma sociedade pretende dar
ao privatismo foi ampla, geral e irrestrita. No plano universitário, com uma política resposta para ser ela mesma. As necessidades não são determináveis a priori porque elas são o terreno
de pão aos pequeninos ele construiu uma dupla política: por um lado congelou a rede de uma incessante criação social, e ao mesmo tempo o terreno em que se desenvolve o choque entre a
tendência à determinação heterônoma (necessidades vinculadas) e a instância de autodeterminação.
pública (salários, recursos, etc.) criando do nada um pseudo sistema público e, por
Uma sociedade autônoma é uma sociedade que cria conscientemente as próprias necessidades e as
outros, financiando o setor privado afetado pelos baixos salários criando os ProUni, instituições que lhes correspondem, e assim fazendo estrutura a própria identidade e as características
o Ensino à Distância, etc. etc. Universidade pobre para os pobres. do processo de socialização dos indivíduos que nela participam. A verdadeira colocação em jogo da
Esse processo de lulificação expraiou-se por toda a América Latina. Ver, por exem- democracia é o governo consciente do processo de socialização, a instituição da reflexividade e da
plo, os governos de Tabaré Vasquez e Pepe Mujica (ex-Tupamaro)214 no Uruguai, de liberdade dos indivíduos e da sociedade: a consciência que apenas nós somos responsáveis daquilo que
ocorre. Restituir aos indivíduos e aos povos o poder de decidir o próprio destino significa coerentemente
Evo Morales na Bolívia e do ex-bispo Lugo no Paraguai, apesar das particularidades. por em discussão a objetividade do cálculo econômico, a ilusão de um domínio racional do mundo,
Caracterizam -se aqui formas de revolução passiva com a incorporação de figu- o princípio do domínio absoluto sobre a natureza e da produção ilimitada das mercadorias. Não há
ras consideradas (certo ou errado) representantes das classes subalternas. Partidos reforma social no sentido do autogoverno da socialização sem a reforma do saber e sem uma profunda
e movimentos radicalizados antes da sua chegada ao governo, chefiados por perso- modificação dos valores. (pp. 137-138)
nagens de grande legitimidade política e social ao tomar posse praticaram um pro-
grama absolutamente contrário ao que falavam antes. Decapitaram as direções dos A esquerda e os subalternos se defrontam com a questão da linguagem nos frontes
subalternos transformando-nas em administradores ditos modernizantes do Estado os mais diversos. Falamos até agora da televisã0 21s , do cinema. A mídia impressa tem
capitalista e os antigos compagnons de route e movimentos sociais antes partícipes aqui um papel de destaque: trata-se da linguagem dos senhores. Tissot e Tevanian
do mesmo movimento são agora tratados como sabotadores, fracasso maníacos, etc .. (2010) nos falam desse processo. Para eles essa linguagem
Praticaram um giro de 1800 , sem sequer ocultar o fato, embora o negassem no plano
repousa sobre uma lógica binária no fundo muito antiga já em ação na novilíngua totalitária ou
dos discursos para as massas.
colonial descrita por Orwell: eufemização da violência dos dominantes (Estado, patronato, pressão
Outra questão se poderia colocar aqui: nos anos 50 a 90 falava -se muito em mexi- social machista, hetero-sexista e branco-centrista) e hiperbolização da violência dos dominado-a-s ...
canização da política pela condensação do poder nas mãos do PRI (o próprio nome Este duplo movimento de eujemização/hiperbolização estrutura o essencial do comentário
esclarecia: Partido revolucionário institucional). Tratava-se de uma burocracia forte político, mas influencia também amplamente sobre a palavra pretensamente factual dos
jornalistas de informação.
214 Em um debate (9 de novembro de 2001, Porto Alegre) Mujica discutiu com uruguaios emigran-
tes ao ser contestado sobre a punição dos repressores durante a ditadura de 1973 a 1985. Ele afirmou
não ser o "carrasco de anciãos" (sic). O torturado tupamaro afirmou - na metáfora futebolística Mecanismos de sentido e intencionalidade opostos "criam» uma opinião pública. Fre-
- bola para o mato que o jogo é de campeonato: não sou "dono do país" e que não se pode viver su salienta que o que
"angustiado, só olhando para trás. Linguagem trabalhada também por Luis Inácio, o cacicato petista
e.... as forças armadas, uma verdadeira guarda pretoriana que domina o país deste o último quartel 215 "Em minha opinião a televisão é muito educativa. Cada vez que alguém liga o aparelho, vou a
(ironia terrível) do século dezoito. outro cômodo e me ponho a ler um livro:' Groucho Marx, citado por Martinez, 2010, p. 29.
156 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 157

geralmente é entendido como "opinião públicà' está obviamente em conexão com a hegemonia sões em massa isto é apresentado como "plano de salvaguarda do emprego' ou mesmo de
política, como ponto de contato da dialética entre sociedade política e sociedade civil, entre força e "salvação da economia nacional': Quando se cometem violências policiais trata-se da "defe-
consenso. "A opinião pública é o conteúdo político da vontade públicà: É uma função do domínio
político que consiste exatamente no formar uma opinião pública preventivamente para determinadas
sa de bons servidores públicos" contra os bandidos ou agitadores 'conhecidos pelos órgãos de
escolhas, impopulares, do Estado, ela consiste antes de mais nada no organizar e centralizar certos segurança"218 (Grifo nosso). Na realidade, como dizem nossos autores, trata-se de "luta de
elementos da sociedade civil. (2009) classes eguerra de palavras" (Grifo nosso). Nada na política é inocente, muito menos a lin-
guagem que materializa essa forma de comandar a vida das classes, dos povos, dos Estados.
E se traduz, como disse Balzac, na opinião que se publica216 . Quando se trata das prá-
ticas dos dominantes elas são em si mesmo desculpáveis: o mecanismo da eufemização A primeira língua das mídias dominantes não é a língua das mídias, mas a língua dos dominantes: [...l.
"consiste, etimologicamente, em positivar o negativo [... ] em ocultar, minimizar e relati- Uma crítica mais conseqüente das mídias é então, a nossos olhos, indissociável de uma crítica social
vizar uma violência, e assim torná-la aceitável"217. Mas quando se trata dos dominados mais fundamental: a crítica da ordem dominante - uma ordem que, muito frequentemente, se constrói e
inventa sua língua em outro lugar que não nas esferas midiáticas. (idem. Grifo nosso)
processa-se a negativação do positivo, por um "dispositivo de despolitização-psicologi-
zação-patologização-criminalização' (idem): os pobres são sempre irracionais, rebeldes, o poder da ideologia como mediação de projetos hegemônicos pode ser demonstra-
tendencialmente criminosos. do pelos choques da guerra Líbia (segundo Giacche, 2011):
Poderíamos citar milhares de exemplos. As brutalidades cometidas pelo exército is-
raelense em Gaza são narrados como simples "incursões': a reação dos povos invadidos O mosaico das meias verdades (as presumidas atrocidades dos soldados de Khadafi,) enquanto
e com suas culturas destruídas é apontado como "ação terroristà' de "antissemitas': da- obviamente os soldados legalistas esmagados e humilhados pelos revoltosos de Cirenaica são
queles que são o "eixo do mal': etc. mostrados - quando o são - etiquetados como "mercenários") e da pura e simples falsidade [... ] Uma
revolta tribal é transformada em revolução democrática, os choques armados são transformados em
"genocídios [... ] e um dia, de um confiável parceiro de negócios personagem como AdolfHitler e Idi
o bombardeio a Gaza entre 2008 e 2009, com mais de 1300 mortos, e o recente ataque a barcos de ajuda Amin Dada, obviamente, em paralelo à demonização do ditador, isto é a idealização dos inusrretos':
humanitária que navegavam em águas internacionais com 9 mortos e dezenas de feridos, representam
mais um salto no banditismo e na violação das leis internacionais por parte de Israel. [... ]
Com o ataque à flotilha em 2010, chega-se a um grau inaudito de cinismo: um Estado que possui uma Debord (2003) sintetiza as características da sociedade do espetáculo: "a renovação
das forças militares mais poderosas do mundo ataca, via helicóptero, à noite, em águas internacionais, tecnológica incessante; a fusão econômico-estatal; o segredo generalizado; o falso sem
barcos com civis desarmados que levam víveres a uma população enjaulada entre o mar e uma potência réplica; um presente perpétuo: Trata-se de
ocupante que controla todas as suas fronteiras e lhe mantem sob bloqueio. [... ]
A parlamentar do Knesset [... ] Haneen Zoabi [um ministro, Eli Yishai, já submeteu um pedido de que
[... ] fazer desaparecer o conhecimento histórico em geral; [tratar] com maestria a ignorância do que
a cidadania dela seja revogada [... ], durante seu discurso ao legislativo exigiu uma explicação: porque
acontece e, logo [em] seguida, o esquecimento [d] aquilo que pôde apesar de tudo tornar-se conhecido;
Israel não havia publicado as fotografias e os vídeos confiscados dos passageiros e relacionados aos 9
[... ] o próprio acontecimento contemporâneo [... ] se afasta imediatamente a uma distância fabulosa,
mortos e dezenas de feridos? Zoabi foi silenciada aos gritos de "terroristà' e "traidorà' [... ] Um comitê
entre os seus relatos inverificáveis, as suas estatísticas incontroláveis, as suas explicações inacreditáveis
do Knesset aprovou a revogação de seus privilégios parlamentares por sete votos contra um [... ].
e os seus raciocínios insustentáveis. (idem)
(Avelar, 2011)

Sem memória, sem futuro, o processo é o da construção social da desmemoria e,


Toda e qualquer crítica às políticas econômicas, previdenciárias educacionais, em curso
consequentemente, do desespero/passividade da parte dos subalternos219 ; construir o
são coisa de "xiitas': "comunistas" ou no melhor dos casos "obra de sonhadores românti-
sentido é começar a subtrair-se ao projeto dos dominantes.
cos fora do real': Quando as empresas para manter suas taxas de lucro promovem demis-
216 Cf. As Ilusões perdidas. Ver Bourdieu (1973) e Garrigou (2011). "A opinião pública é algo conexo de
modo orgânico com a constituição da burguesia como classe dominante do modo de produção capitalista,
porque sua função específica é a de apresentar como fruto de uma racionalidade ético-política universal 218 Lembremos a cena de Casablanca onde o policial comanda "prendam os suspeitos de sempre': As
Qus naturalismo, contratualismo, utilitarismo, mercado capitalista, etc.) o que, pelo contrário, está ligado de incursões - na guerra, ou mesmo em uma guerra civil não declarada - pruduzem, infelizmente, efeitos
modo particularístico à [sua] própria identidade e aos [seus] próprios interesses históricos:' (Preve, 2002) colaterais lamentáveis, dizem seus autores.
217 Devemos afirmar sempre a revolução como resposta a essa violência. E afirmar a veracidade da fala 219 Eduardo Galeano (1996) formula literariamente - mas de forma absolutamente dura e justa o significado
de Labica (2009, p. 73): "o discurso da segurança e o discurso do terrorismo são violências que geram de subalternos: "Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo
violências. A guerra como política é uma violência. O assédio no trabalho é uma violência. A corrupção é soltos, fodidos e mal pagos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem
uma violência. A justiça de classe é uma violência. A televisão é uma violência. O desemprego e a exclusão artesanato. Que não são seres humanos, são recuros humanos. Que não têm cultura, têm folclore. Que não
são violências. Entre outras formas. Elas provêm todas da mesma matriz: a violência do capital contra o têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas
trabalho:' (Grifo nosso) páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns que custam menos do que a bala que os mata:'
o ESPAÇO COMO LINGUAGEM
(E A LINGUAGEM COMO ARMA OFENSIVA E DEFENSIVA)

"Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?"
"Isso depende bastante de onde você quer chegar': disse o Gato.
"O lugar não me importa muito.. :: disse Alice.
"Então não importa que caminho você vai tomar': disse o Gato.
"... desde que eu chegue a algum lugar': acrescentou Alice em forma de explicação.
"Oh, você vai certamente chegar a algum lugar': disse o Gato, "se caminhar bastante:'

Lewis Carroll

A linguagem como arma pode parecer estranho. Nada mais enganoso. Lembre-
mos que as concepções de mundo, as ideologias, os projetos se materializam tanto na
vida das classes e grupos sociais quanto na linguagem que as veiculam. Estamos, ao
longo deste trabalho, focalizando aquilo que chamamos o silêncio dos subalternos e
a necessidade destes construírem o sentido de suas ações de forma autônoma, vale
dizer como construção de uma sociabilidade para além da ordem do Capital.
Um dos problemas mais relevantes é combater a negação radical de uma "interpre-
tação' do pensamento marxiano que pensa as classes como mero reflexo das relações
materiais da produção e da reprodução. Elas não são uma classificação topológica,
mas articulações de luta, experiências e sociabilidades produzidas conflitivamente na
sua oposição estrutural. De fato pensar que a famosa contradição abstrata entre tra-
balho e capital permita às classes e aos indivíduos entender a história e sua articu-
lação social é, acima de tudo, negar a historicidade das formações sociais e negá -las
como laboratório. Ao fazê-lo produzem uma visão mistificada que atua poderosa-
mente na conservação do status quo.
As classes produzem e são produzidas pelo jogo de oposições na produção e na
apropriação das condições de vida. Entre as macrorrelações (abstração máxima) e as
práticas das classes e indivíduos se constituem muitas outras relações como as cha-
madas relações políticas, ideológicas e, também, a apropriação dos bens materiais e
imateriais, aquilo que chamamos regras de consumo. Estabelecem-se formas de or-
160 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 161

ganização da produção e da reprodução biológica. Constroem-se assim, ao mesmo de "jovens': mas relacionando-os constantemente a seus supostos lugares de habitação, "arredores':
tempo, o cotidiano e o espaço, loei específicos da luta de classes, da história. Coti- "cidades" ou "quartiers (bairros) de exilados"; quanto aos sem teto, deplora-se seu vagabundear
"urbano': A luta contra a pobreza se declara ela mesma por efeitos de anúncio institucionalizante
diano que é visto por nós como o lugar da luta, das conjunturas como atualizadoras
de palavras de ordem tão vagas quanto metafóricas: seria necessário ''acabar com as cidades gueto':
de estruturas, nunca como uma descrição muitas vezes pitoresca do dia a dia de promover o "direito à cidade" ou ainda impulsionar um "Plano Marshall para os arredores': (Tissot e
indivíduos e grupos como gostam de teorizar e praticar os pós-modernos. Poupeau, 2005, p. 5. Grifo nosso)
Falamos em construção de múltiplas mediações. As classes não são grandes cor-
pos homogêneos. Vivem o universo da sua cotidianidade em meio a múltiplas de- A questão das gerações se coloca de forma mais radical. Classes, etnias, formas
terminações como etnias, gêneros, crenças, etc. Nada há de automático nas classes. religiosas são subsumidas ao comando dos anciãos que, na realidade, não são senão
O poder de uma classe usa e abusa dessas mediações como forma de organização/ os articuladores da densa rede institucional.
desorganização dos seus oponentes chegando - com relativa facilidade - a construir
Na realidade os anciãos "dirigem" a vida, mas fingem não dirigi-la, deixando aos jovens a direção;
divisões no seio da classe oponente que se revelam no ocultamento das também a "ficção" é importante nessas coisas. Os jovens vem que os resultados de suas ações são
contrários a suas expectativas, creem dirigir (ou o fingem) e cada vez se mostram mais inquietos e
clivagens de classes [pelo] acento sobre as diferenças culturais, [... ] por tornar a imigração descontentes. O que piora a situação é que se trata de uma crise na qual se impede que os elementos
responsável por um desemprego gerado na realidade pelo rigor orçamentário e [pelas] imposições de resolução se desenvolvem com a celeridade necessária: quem domina não pode resolver a crise,
da construção européia, [na restrição dos] direitos dos imigrados em nome da defesa e da identidade mas tem o poder de impedir que outros a resolvam. (Gramsci, 1975, 1718)
nacional; [... ] dos estratagemas que era e que é sempre importante de apontar, analisar e combater.
(Tevanien e Tissot, 2010)220.
Por isso mesmo os anciãos aparecem como "o" Estado e, para maior eficácia valo-
rizam o sistema opressivo [econômico, político, moral, educacional, etc.] A interven-
As diferentes formas de formatação das classes subalternas passam, em grande me-
ção estatal se caracteriza pela
dida, pelos mecanismos de opressão ligados à origem dos trabalhadores. A servidão e
a escravidão foram elementos constituidores do capitalismo e têm em comum a explo-
renúncia a criar empregos: de agora em diante serão instalados comissariados, provavelmente à
ração manu militari. A servidão, forma clássica, "aparecià' como legitimada por uma espera de construção de prisões. A expansão do aparato policial e penal pode, além disso, trazer uma
ordem jurídico-religiosa que naturalizava a subalternidade. A escravidão, exercida nor- contribuição significativa à criação de postos de trabalho na vigilância dos excluídos e rechaçados
malmente contra povos e etnias distintas das europeias, tinha outra marca distintiva: o do mundo do trabalho: os 20.000 assistentes de segurança e 15.000 agentes locais de mediação, que se
fenótipo. A cor da pele era o símbolo vivo da legitimação dos dominantes e da subalter- prevê concentrar nos "bairros sensíveis" até o final de 1999, representam bem uma décima parte dos
empregos-jovens prometidos pelo governo francês. (Wacquant, 2007, p. 35. Grifo nosso)
nização dos dominados. Mais modernamente os grandes fluxos de populações dos pa- [ ... ] os habitantes das cidades em decadência serão beneficiados com um esforço suplementar de
íses ditos subdesenvolvidos, ainda que europeus, trouxeram uma nova caracterização: encarceramento por parte do Estado: uma política de "ação afirmativà' a respeito da prisão que,
os "imigrantes': Todos esses contingentes humanos foram e são considerados "inferiores", se não se aproxima pela amplitude, não é muito diferente em seu princípio e suas modalidades
portadores de uma "natureza" violenta, tendentes, portanto, a atitudes desviantes quando daquela que atinge os negros de gueto nos Estados Unidos. À "terrível miséria" dos bairros
deserdados222, o Estado responderá não com um fortalecimento de seu compromisso social, mas com
não abertamente criminosas. Isso, contudo, não esgota a questão: pobres, mulheres, ne-
um endurecimento de sua intervenção penal. À violência da exclusão econômica, ele oporá a violência
gros e jovens, por exemplo, são considerados como problemas. da exclusão carcerária. (idem, p. 48. Grifo nosso)223
222 Uma visão do que aparece a muitos habitantes de guetos como seu destino pode ser visto no
A questão da pobreza parece só poder ser dita, descrita e discutida [... ] em um registro espacial e disco Short Dog's in the House, 1990: "Tratando de sobreviver, tratando de manter-se vivo / O gueto,
com a ajuda de categorias territoriais. Fala-se, na França, de "excluídos': de "imigrados"221, ou ainda já que falamos de gueto / Ainda que as ruas tenham buracos, as luzes estejam apagadas / Os amigos
da droga morrem com um cachimbo na boca / Os velhos companheiros da escola não fazem nada
220 Um belo exemplo é o livro de Steinbeck, as Vinhas da Ira, que aborda a dramática existência
bem / Todos os dias é o mesmo e o mesmo todas as noites / Não te dispararia, irmão, mas sim a este
de trabalhadores rurais transformados pela crise em sem terra e a utilização pelos latifundiários de
imbecil / Que não se aproxime para provar se estou calmo / Todos os dias me pergunto como vou
fura-greves e milícia privada.
morrer / O único que sei é como sobreviver". (Too Short, The Ghetto, citado por Wacquant, 2007, p.
221 Rivera (2008) fala do migrante como a "variante proletária do cosmopolita [... ]. [na] formação
33. Grifo nosso)
de 'um perpétuo e clandestino sub ou semiproletário'" (Grifo nosso). O momento atual é o da "época
223 "[a crise econômica entre as indústrias do Norte está empurrando para a ilegalidade milha-
das fronteiras fechadas e do controle, do medo da invasão e do migrante como inimigo, que pela
res de trabalhadores estrangeiros que, perdido o trabalho, não podem mais renovar a permissão de
primeira vez encontram a perfeita sanção nos acordos de Shengen, os quais realizam a superposição
permanência. Tornam-se [... ] formalmente delinqüentes, como o quis o governo com o pacote de
político-administrativa entre fronteira, crime e imigração, contribuindo de tal modo a incremen-
segurança que inventou o crime de clandestinidade. [... ] perdem a possibilidade de inscrever os filhos
tar o processo de estigmatização dos estrangeiros não ricos, alimentando xenofobia e racismo [... ]
na escola, de ter assistência sanitária, de fazer ou renovar as carteiras de motorista, de frequentar
'Clandestinos' é a palavra chave das retóricas majoritárias tendentes a etiquetar, [... ] a desumanizar,
locais públicos, de alugar ou possuir uma casa, um auto, um ciclomotor. E uma vez clandestinos, não
migrantes e fugitivos:' (Wacquant, 2003, p. 5)
podem mais encontrar um trabalho legal, ter um estipêndio legal, fazer valer a própria existência
162 Revolução passiva e modo de vida 163
Edmundo Fernandes Dias

Faz-se necessário nesse processo a construção de um "discurso do crime" que legi- Ao mesmo tempo em que proclamam o "discurso do crime" as chamadas autori-
time a violência policial-repressiva. Vale lembrar que no Brasil assistimos uma onda dades obtêm um efeito contraditório:
de crescimento da violência das forças "da ordem": do treinamento de tropas no Hai-
Enfim, a "policialização" dos bairros segregados225 pode mesmo alimentar a delinqüência,
ti para intervir em conflitos urbanos ao "caveirão" - hoje símbolo deste Estado penal
perpetrando uma cultura de resistência à autoridade. Quanto à prisão, ela ensina aos pequenos
no seio dos subalternos - passando por declarações do presidente mais popular que delinqüentes, sobretudo, a se tornarem melhores criminosos além de desestabilizar seriamente as
o país conheceu e ex -operário: a polícia sobe o morro "para bater em quem tem que famílias e as zonas pobres submetidas ao seu tropismo: é uma formidável fábrica de produção de uma
bater" (Folha de São Paulo, 8 de outubro de 2010, p. A-18). E continuou: "Nós não precariedade sui generis. (idem. Grifo nosso)
vamos mandar a polícia para cá apenas para bater': "O Estado tem que trazer para
cá cultura, educação, emprego, decência" (idem. Grifos nossos). Claro? Bater como Essa sociabilidade criminal amplificada, quando não criada, pela onda repressiva
nunca, apanhar como sempre. tem um efeito político-eleitoral como nos mostra a fala de Luis Inácio acima trans-
A fantástica espetacularização do combate aos traficantes localizada na ação po- crita. Trata-se de "seduzir franjas autoritárias do eleitorado, reafirmando, no plano
licial-militar no Complexo do Alemão mostra o contrário. A ideologia pode ser a simbólico, o papel do Estado como fiador da ordem:' (idem)
da polícia "pacificadorà' - eles gostam muito do sarcasmo como forma de comu- Basaglia e Ongaro, em 1970, já advertiam sobre o sentido dos inadaptados: loucos,
nicação; os efeitos práticos são outros. Dos dezoito reconhecidamente mortos na pobres, negros, migrantes:
operação apenas dois eram brancos, os outros eram negros ou pardos (na linguagem
O inadaptado como problema real que põe em evidência o ponto débil do capital, enquanto rechaça
policial); assaltos, violência contra inocentes (canalhamente classificados como da- seus valores ou expressa sua parcial inoperância, deve converter-se no problema do inadaptado,
nos colaterais) tudo isso é ignorado. Os verdadeiros responsáveis pelo negócio da no sentido das características ideológicas reais de todo problema "científico': que reclama técnicas
droga permaneceram intocados: prenderam - quando o fizeram - os gerentes e os e ideologias adequadas para resolvê-lo. Deste modo se consegue mudar ao inadaptado como
aviõezinhos, mas obteve-se o aplauso de uma população acuada longamente entre expressão do ponto débil do capital pelo problema do inadaptado como uma das tantas caras do
capital vencedor, no sentido de que se integra como problema técnico para o qual estão preparadas
duas violências: a dos traficantes e a da polícia. Tropa de Elite 2 mostra uma acusação
as soluções técnicas mais apropriadas. (in Garcia, pp. 68-69)
genérica ao sistema, fala da corrupção policial, mas mostra que o "herói" tem (essa
é a tese) que usar a violência contra a violência. O resultado? O sistema permanece, Um modo de ocultar essas diferenças, para melhor explorá-las, é a redução dessas
praticamente intocado, atingindo-se um ou outro dos pequenos executores desse diferenças à uma abstração indeterminada: a classe.
sistema corrupto, violento.
Existe uma questão racial, que não é nem a criminalidade dos imigrados, nem o separatismo étnico
Os jovens de subúrbios em ascensão econômica demandam acesso à cidadania econômica e social. nos arredores, mas a discriminação sofrida pelos/pelas seus/ suas habitantes - uma discriminação
Diante da incapacidade de atendimento as suas necessidades, os mesmos são tratados pelo viés que a classe política e a grande mídia mantêm etnicisando as/os ditas/ditos habitantes. [... ]
policial e penal e criminalizados em suas ações, principalmente, pela perspectiva baseada na noção introduzir uma hierarquia entre "a questão social': identificada apenas à questão da classe, e as
(verdadeiramente falsa) de "violências urbanas': que é um non-sense sociológico e estatístico, e que outras questões - de raça, de gênero, de sexualidade - consideradas como simplesmente "societais':
guia, entretanto, a retórica e a ação do governo atual... (Wacquant, 1999)224 (Tevanien e Tissot, 2010)
legal. Não podem fazer nada que requeira registro do próprio nome, cognome, data de nascimento
e documento de identidade" (Gatti, 2010). Eles descobriram que mesmo ganhando uma miséria são Esse processo é ainda mais perverso quando a chamada esquerda (cabe muita
substituídos por "búlgaros e romenos porque, para o trabalho que existe, [estes] aceitam pagamentos
mais baixos: até 50 centésimos por hora contra os 2 euros dos africanos e os 6,20 do mínimo contra- coisa sob esse rótulo) "desconhece" essas determinações. O erro espetacular é o de
tual:' (idem). afirmar essas diferenças "ignorando" a questão das classes. A intervenção das classes
224 "Mas como dar conta do mundo das bandas? Do fim dos anos 1950 às dos anos 1970, podia ser dominantes é feita no sentido da maximização das condições de acumulação de ca-
descrito como o universo da sociabilidade no qual os adolescentes das classes populares gozavam de
licenças concedidas à juventude e fazendo o aprendizado coletivo dos valores da virilidade associado pital que esse processo favorece:
ao uso da força física como força de trabalho. A 'cultura da rua' aparecia assim como o prévio da
,cultura da oficina'. Mas, no meio dos anos 1970, o processo de consolidação da condição salarial do a própria dominação de classe não deixa de recorrer aos subterfúgios do pensamento racista e
pós-guerra deu lugar à uma insegurança social crescente e à desestabilização dos modos de vida das sexista226 : para estigmatizar os "jovens dos arredores" e fazê-los calar, a herança colonial forneceu
classes populares: desindustrialização, desemprego, precarização e degradação do emprego operário,
terceirização dos empregos sem qualificação, reforço da segregação social - espacial, generalização 225 No Brasil tratam-se das favelas, mas não apenas delas. Aqui a tentativa de redução dos subalter-
do ensino escolar, declínio do enquadramento político e consolidação do enquadramento estatal. nos "perigosos" atinge principalmente aos negros, mas também aos pobres e aos jovens.
Ao reforço das políticas de segurança ecoa a institucionalização da figura do estagiário perpétuo:' 226 Há um deslocamento desse debate para o plano da linguagem. Sobre o uso do masculino como
(Mauger, 20110) elemento positivo da ação e da negação do papel do feminino: "que dizer da cruzada desencadeada
por algumas feministas americanas contra o uso impessoal do He e para a difusão de palavras como
164 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 165

seu vocabulário (selvagens ou canalhas) e seus dispositivos de exceção (forças especiais da ordem legitimidade de exportar 'os nossos valores'" [... ] o universalismo se configura hoje
e toques de recolher), e a invenção do problema do véu na escola, construído [... ] na primavera como um universal hierárquico e abstrato, que não consegue dar resposta a socieda-
de 2003, permitiu por um termo definitivo à revolta contra a reforma das aposentadorias. (idem.
des cada vez mais heterogêneas, mais complexas, plurais, cada vez mais atravessadas
Grifo nosso)
por exclusões e marginalidade sociais:' Revela-se, assim, "uma concepção estática e
Calar os subalternos é uma das formas de integração das mais eficientes. A luta
determinística das culturas, entendidas como totalidades fechadas, auto-suficientes,
travada nos quartiers (bairros) "perigosos': por uma juventude magrebina, africa-
imperativas; ocultar o fato que qualquer cultura é atravessada por conflitos entre as
na, migrante, criminalizada pelo fato de ser "o outro': primitivo, perigoso, bárbaro,
classes, as castas, os gêneros, as gerações:' (idem, Grifo nosso) A afirmação dessa con-
coloca em questão a ordem. Rivera (2006) se pergunta se isto não tem os mesmos cepção significa desconhecer o real e preparar novas formas de crise.
componentes e propósitos dos acontecimentos de 1956 em Estocolmo. De Martino,
incapaz de decifrar [... ] o auto-atestado de existência e de humanidade, exigência de reconhecimento
antropólogo italiano, analisou aquela situação em Furore Simbolo Valore como uma e de respeito, [... ] reação contra o desconhecimento e a condenação do silêncio e da invisibilidade
social e política. Uma exigência que as retóricas universalistas e "republicanas': prontas para
pura explosão de furor destrutivo, provocada pela impossibilidade "de participar ativamente da estigmatizar como racaille os "rebeldes sem causa" - ou melhor, sem uma causa que se expresse em
experiência moral que alimenta a democracia laicà' (1980: 232), [... ] cinqüenta mil adolescentes formas reconhecidas - e como ''degeneração com unitarista" qualquer instância que se subtraia à
na noite do fim do ano [... ] desceram às ruas para quebrar vitrines e queimar automóveis; teriam, linguagem dominante, não tem condição de colher e de integrar. (Rivera, 2006. Grifo nosso)
em suma, reafirmado a idéia de que o delírio - portanto também o delírio coletivo - ausente a
comunicabilidade cultural, está destinado a "desarticular" a possibilidade "da dialética risco-
O problema das relações entre culturas/etnias é velho como o colonialismo. No início
reintegração" [... ] [ou talvez seja a] expressão ainda que "elementar': do desconforto, do mal estar
social, e do sofrimento frente à exclusão econômico-social, mas também política e simbólica, a tratou-se da expropriação territorial/extermínio cultural dos povos "não europeus': Isto
revolta "sem palavras" da juventude banlieusarde é, pelo menos, um atestado de existência e uma não aparecia como "problemà' tendo em vista sua localização. Chineses, egípcios e ou-
exigência de reconhecimento da própria humanidade: "Não somos a canalha (racaille), mas seres tros povos eram pensados como primitivos. Um exemplo absolutamente significativo
humanos. Existimos. A prova: os veículos queimam': se expressou na Encyclopédie dos iluministas (1751) no seu artigo Chineses, onde se
afirmou "poder precisar que esta língua é tão pobre que não possui senão trezentas pa-
A resposta via universalismo abstrato não resolve. Rivera (2005) chama a atenção
lavras". (Person, 1973, p. 104. Grifo nosso). Povos como astecas, maias, quechuas eram
para o fato de que hoje no uso político que se faz do universalismo este se revela "cada
simplesmente colocados como fonte de mão de obra e suas culturas como bárbaras,
vez mais particular, cada vez mais submetido à ideia da superioridade da civilização
não obstante os grandes desenvolvimentos científicos aí produzidos. Exemplo? O ca-
ocidental e do seu direito de impor os valores com guerras preventivas" - veja-se, no
lendário maia, o controle da natureza, os sistemas produtivos avançados, etc. Um belo
campo dito científico, Samuel Huntington e sua teoria (sic) bushiana do choque de
relato da tentativa permanente de expropriação encontra-se na obra de Ciro Alegria, EI
civilizações e, no campo da política as intervenções de Angela Merkel, Sarkozye Ber-
mundo es ancho y ajeno. A forma pela qual os europeus colonizaram o mundo mostra
lusconi, entre outros. Angelo Panebianco, em 26 de setembro de 2001, no Corrieri
o apagamento dessas culturas: por exemplo, a forma pela qual os franceses atuaram na
della Sera, proclamou: "Se a guerra contra o terrorismo durar anos, será necessário
conquista da Argélia e na tentativa de sua perpetuaçã0 227 • O mesmo ocorre nas regiões
equipar-se para neutralizar [... ] o principal aliado de Bin Laden e sócios no Ocidente,
mais empobrecidas do território nacional. Sobre isso ver Silone (1980).
a sua mais preciosa 'quinta colunà: o relativismo cultural:' Rivera conclui: "O efei-
Fanon (1968) trabalha em profundidade, na perspectiva da revolução argelina, as
to buscado é [... ] impedir o pobre leitor que ouse cultivar qualquer dúvida sobre a
formas pelas quais o modo de vida da sociedade original daquele país organizava
chairperson e spokeperson, para protestar contra o sufixo man de chairman e spokesman? Uma
cruzada ~ue ~hegou .t~mbém ao continente australiano cujo governo proibiu, a alguns anos, de usar
suas famílias, religião, solidariedade, o uso do véu pelas mulheres, etc. Em um capí-
~as p~bhcaçoes OfiCl~lS termos como sportmanship, workman, statesmanlike, craftsmanship, e que tulo dedicado à estrutura familiar ele demonstra como, no momento revolucioná-
~nduz.lU ~lguns amencanos a escrever a forma man em negrito também em human e em humanity,
227 O modo pelo qual os argelinos são tratados é expresso com clareza por duas falas, entre outras.
para mdICar o perene ocultamento linguístico da mulher:' (Arcangeli, 2004) Alma Sabatini (11 sessis-
''A colonização, no início, não é um ato de civilização [... ]. Ela é um ato de força interessado. [... ] A
mo nella líng.ua italiana, p. 103) propôs: "usar maternidade em lugar de paternidade em expressões
colonização, nas suas origens, não é senão uma empresa de interesse pessoal, unilateral, egoísta, rea-
como patermdade de uma obra, de uma iniciativa mas toda vez que o artífice de turno fosse uma
lizado pelo mais forte sobre o mais fraco:' (Grifo nosso) Discurso de Albert Sarrault, ministro das co-
m~lher e que pro~unha evitar palavras como fraternidade e fratellanza, ainda que fossem referidas
lônias, na abertura dos cursos da Escola Colonial em 5 de novembro de 1923. Citado por Pollmann,
s.e)a ~ mulheres seja a homens e substituí-las por solidariedade (humana). E se não gostassem de so-
2009, p. 36). "Não há nas colônias, igualdade [... ] mas hierarquia ou [... ] subordinação [... ], os indí-
hdanedade (humana) não esqueçamos [... ] que existe também sorellanzà: (idem) Falseia-se, assim, o
genas [... ] são franceses, mas [... ] não cidadãos [... ]. Eles têm menos direitos [... ] são inferiores não
problema: do modo de produção (concreto) a "culpà' passa a ser do macho (genérico). Lembremos
iguais [... ] o conjunto das regras enunciadas para o direito privado, o direito penal, o procedimento
que, na realidade, o machismo é uma relação social histórica e contraditoriamente construída e não
e a organização judiciária não são de aplicação [... ] senão para a população brancà'. René Maunier,
apenas (parcialmente sim, é claro) coisa de homens.
professor na Faculdade de Direito de Paris, citado por Pollmann, p. 35. O livro citado é de 1943!
'!

166 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 167

rio, as relações tradicionais de obediência são quebradas (relações pais-filhos, irmão


e da tentativa de adaptação à uma cultura que não é a sua. Fora da luta de libertação
mais velho-demais irmãos, mulheres-pais, mulheres-maridos, etc) e substituídas por
criou-se aquele a quem Fanon chamou de negro greco-latino em Les Damnés de la
relações novas criadas e amplificadas pelas necessidades da luta. Mostra também
Terre.
as profundas transformações aí operadas: mulheres que usavam o véu por motivos
O problema se colocou na sua gravidade máxima quando os chamados povos pe-
tradicionais e mantiveram essa forma de se vestir como forma de resistência ao do-
riféricos (árabes, magrebinos, turcos e mesmo os portugueses e italianos do sul) re-
mínio colonial, passando, mais tarde, a não usá-lo para confundir os colonialistas
solveram invadir a praia dos países capitalistas europeus e dos Estados Unidos. Veja-se
franceses 228 .
na literatura a obra Cabeça de turco de Günter Wallraff, verdadeiro vade mecum de
As relações entre as medicinas dos "colonizadores" e a tradicional são examinadas:
todas as formas do racismo, mas, também das formas de precarização do trabalho,
as práticas médicas são consideradas "coisas dos colonialistas': na luta e pela luta
de destruição do trabalhador coletivo. Além disso ele mostra como o racismo pene-
tudo é transformado: os remédios, as formas de tratamento foram então incorpo-
trando no seio da classe trabalhadora divide-a e impede a formação de solidariedade
radas, não abstratamente, mas pela sua eficácia. Fanon detalha como a repressão
classista. Os turcos, os magrebinos e mesmo portugueses e italianos meridionais são
colonialista leva a que remédios, cuidados médicos sejam negados aos argelinos. O
"aceitos" quando "sobram" as possibilidades de emprego, normalmente as mais pe-
colonialismo é também a tentativa de imposição de um modo de vida e que as dife-
rigosas e sujas. Em situações de crise aberta eles vêem alterar-se a situação. Acentua-
rentes formas de recepção/recusa desses conteúdos foram determinadas pela revo-
-se o racismo que se confunde com o ódio contra os que "roubam" o emprego de
lução de libertação nacional. As populações que viviam, à época, naquele território alemães, ingleses, franceses, etc.
não eram homogêneas: para além da maioria muçulmana existiam europeus colo-
Louis Malle (1985) já tinha apresentado esse quadro quando os americanos explo-
nialistas (proto-fascistas: general Massu, por exemplo), europeus anticolonialistas e
rados pelo sistema financeiro deslocam seu ódio contra os "vietnamitas comunistas"
judeus. Esse conjunto de contradições molda a própria política nacional francesa.
que lhes "roubam" as condições de vida e de trabalho. O brutal, nesse caso, é que os
A chamada civilização francesa, com sua propalada liberdade de crença e expres- "comunistas" eram nada mais, nada menos que os que fugiram após a vitória dos
são, sucumbiu ao colonialismo. Os argelinos-europeus que esperavam uma atitude
vietcongues e dos norte-vietnamitas. O racismo chega ao paroxismo e os governos
de negação do colonialismo pelo francês encontram a passividade, o interesse da de direita tratam de expulsar os imigrantes, em especial os ciganos (os "rom")231,
população metropolitana pelo seu cotidiano ("cuidar das suas lojinhas")229, mas, com
espera -se" [... ] o pogrom contra os ciganos, os espancamentos contra os gays e [... ] as
exceção de poucos intelectuais, a rejeição do sistema colonial não ocorre. Nem mes-
expedições esquadristas armadas contra os estudantes [... ]:' (Mordenti, 2008)
mo políticos à esquerda do espectro político assumem essa posição. O chefe da re- Na realidade essa é uma tática usada pela direita para deslocar o foco das medidas
pressão colonial, general Massu, será o homem de confiança de De Gaulle na repres-
impopulares para o apoio aos dominantes. A questão da segurança é vital. É o caso,
são aos movimentos de 68 na França. "Manter a ordem" era sua palavra de ordem.
por exemplo, de Sarkozy:
Trabalhando em outra situação histórica desse mesmo colonialismo francês (Gua-
dalupe, Caribe, anos 50) Fanon mostra as formas adaptativas daquelas populações De fato ele espera encontrar a solução desta contradição na articulação de sua temática liberal com
em Peau noire, masques blancs230• O título do livro já indica à situação de impotência seus dois outros temas prediletos de seu discurso e de seu programa. A começar pela sua temática
(in)securitária que ele não deixou de explorar nos últimos anos enquanto ministro do interior.
228 A imposição por Sarkoszy do abandono, pelas mulheres muçulmanas das suas vestes tradicio-
nais e, em especial, do véu cobrindo o rosto, em nome da laicidade e da universalidade dos valores (Bihr, 2007)
ocidentais caminham em duas direções: é uma forma de quebrar a resistência dessas culturas e, por
outro, a tentativa midiática de reeleger-se. O fato de que uma parte da dita esquerda parlamentar A prática do multiculturalismo é colocada, como "respostà' a esse problema.
tenha sido pautada por este "debate" em nome de um republicanismo é, por só indicativo de uma
integração neste processo de revolução passiva. Bourdieu e Wacquant (2000) já tinham chamado a atenção para o fato de que se
229 Sartre, 2007, pp 15-16: "A esquerda metropolitana se sente mal: conhece a verdadeira sorte dos
231 "Inicialmente é importante sublinhar que a ideologia racista é um prod~to, d~ mode:nid~de.
indígenas, a opressão sem piedade de que [estes] são objeto e não condena sua rebeldia, sabendo que
Bem entendido, os grupos humanos sempre se enfrentaram violentamente e a hlstona nos ~a mUlt~s
fizemos tudo por provocá-la. Mas de todos os modos pensa, há limites: esses 'guerrilheiros' deviam
exemplos disto. Mas não é senão na época moderna que esta violência foi justificada pela ldeologla
esforçar-se por mostrar-se cavalheiros; seria o melhor meio de provar que são homens. Repreende-os
racista. Do meu ponto de vista, a ligação entre racismo e modernidade vem do fato de que. ~ mo-
às vezes: 'Vocês vão longe demais, não continuaremos apoiando-vos:" Sartre conclui: "Nossas belas
almas são racistas:' (idem, p. 16. Grifos nossos) dernidade - se bem seja global e universalista - é, na sua prática - polí~ica, soci.al e me~mo ~llhtar -,
fundamentalmente discriminatória. Esta contradição é em parte resolvlda pela ldeologla raclsta, que
230 "Nós conhecemos as ironias, os insultos, os golpes que devíamos sentir de manhã, ao meio dia
designa os grupos a excluir taxando-os de 'diferentes: [... ] hoje, um traço caract~rístico deste pe~íodo
e à noite porque éramos negros. Quem esquecerá que a um negro se dizia 'tu: não certamente como
[é] a ideia de que 'a coesão social' passa por deportações em m~ssa, pel~ desenral~~m,~nto or~amzado
um amigo, mas porque o 'vós' honroso era reservado apenas aos brancos?" (Lumumba, 1960. Grifo
de populações inteiras e que se trata de uma escolha essenClal da açao geopohtlca. (BurglO, 2005.
nosso) Como se sabe Lumumba foi assassinado em uma operação da CIA.
Grifo nosso)
168 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 169

tratava de expressar "as realidades complexas e contestadas de uma sociedade histó-


A insistência sobre as divisões e sobre as diferenças entre grupos étnicos e entre culturas, comporta
rica particular, tacitamente constituída em modelo e em medida de todas as coisas: a
não apenas critérios e símbolos para sua identificação, mas também uma estruturação e uma
sociedade americana da era pós-fordista e pós-keynesiana" (Grifo nosso) que serve limitação das suas relações com o fim de impedir as inevitáveis interações, as contribuições recíprocas,
para mascarar as influências e as negociações. Para permanecerem fiéis à idéia vertical de "nacionalidade" vários
governos europeus acabaram por emaranhar-se em uma rede amontoada de leis sobre imigração
a exclusão continuada dos Negros e a crise da mitologia nacional do 'sonho americano' da baseadas na idéia que a política para tais grupos sejam específicas, alternativas e separadas do
'oportunidade para todos: correlativa da bancarrota que afeta o sistema de ensino público no problema do estado. (idem, Grifo nosso)
momento em que a competição pelo capital cultural se intensifica e onde as desigualdades de classe
crescem de modo vigoroso. A primeira lei de eugenia foi aprovada, em 1901, no estado norte-americano de Indiana. Três
O 'multiculturalismo' americano não é nem um conceito, nem uma teoria, nem um movimento décadas mais tarde, já eram trinta os estados norte-americanos onde a lei permitia a esterilização
social ou político - pretendendo ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso tela do qual o estatuto dos deficientes mentais, dos assassinos perigosos, dos estupradores e dos membros de categorias
intelectual resulta de um gigantesco efeito de alodoxia232 nacional e internacional que engana [a tão nebulosas como "os pervertidos sociais': "os aficcionados do álcool e das drogas" e "as pessoas
todos}. [... ] doentes e degeneradas': Em sua maioria, por certo, os esterilizados eram negros. [... ] na Suécia,
[... ] exporta estes três vícios do pensamento nacional americano que são a) o "grupismo': que fontes oficiais há pouco reconheceram que mais de sessenta mil pessoas tinham sido esterilizados
reifica as divisões sociais canonizadas pela burocracia estatal em princípios de conhecimento e com base em uma lei dos anos trinta que só foi derrogada em 1976. (Galeano, 2002, pp. 61-62.)
de reivindicação política; b) o populismo, que substitui a análise das estruturas e dos mecanismos
de dominação pela celebração da cultura dos dominados e de seu ''ponto de vista" elevado ao nível A "solução" prevista para essas populações é pensada no quadro de políticas onde
de proto-teoria em ato; c) o moralismo, que obstaculiza a aplicação de um saudável materialismo
racional na análise do mundo social e econômico e condena aqui a um debate sem fim nem efeitos
fica clara "a inflação do discurso securitário e a multiplicação dos dispositivos re-
sobre o necessário "reconhecimento das identidades" enquanto, na triste realidade cotidiana, o pressivos tendo por consequência recompor os posicionamentos intelectuais" (Tis-
problema não se coloca de modo algum neste nível; enquanto os filósofos se esgoelam doutamente sot e Poupeau, 2005, p. 6)
do "reconhecimento cultural", dezenas de milhares de crianças saídas das classes e etnias dominadas
são mantidas fora das escolas por falta de lugares (eram 25 000 neste ano {2000} apenas na cidade de as classes populares são submetidas aos efeitos de transformações do mercado de trabalho
Los Angeles), e um em cada dez jovens provenientes de casais que ganham menos de 15000 dólares (desemprego e precarização, manutenção escolar em um contexto de massificação, estigmatização
anuais acede aos campi universitários, contra 94% de jovens de famílias que dispõem de mais de 100 de sua fração saída de imigração), este ocultamento coloca as bases de um olhar miserabilista. E,
000 dólares. (Grifos nossos) sobretudo o fato que estas categorias sejam indissociavelmente territoriais e étnicas, que visam
populações ("imigrados': "jovens" saídos da imigração) tanto quanto espaços que alimentam
uma visão homogeneizante que seriam irredutivelmente diferentes, e à este título justificadoras de
o multiculturalismo é, assim, uma espécie de solução ilusória. Anuncia um pro- dispositivos e de medidas específicas. (idem, p. 8)
blema que nem pode enunciar, muito menos resolver. Retrata a impossibilidade de
alteração do status quo. Desorganiza os subalternos. Malighetti (2002) mostra que
A juventude, em especial, a de imigrantes ou filhos deles, passa a ser estigmati-
esse pseudo-conceito está fundado
zada a partir de sua origem étnica233 • Concordamos com Zarur (2005) quando ele
sobre uma imagem da sociedade como um mosaico formado de monoculturas minoritárias 233 Angela Merkel, chanceler alemã, pronunciou em 17 de outubro de 2010, discurso afirmando
homogêneas e de limites bem precisos, em relação a uma monocultura dominante altamente fechada. que o multiculturalismo tinha falido na Alemanha: "Não temos necessidade de uma imigração que
Baseado ambiguamente em uma neutralidade improvável, sobre a ilusão da igualdade e sobre pese sobre nosso sistema sociar' Disse ainda que "a ideia de que pessoas de extração cultural diversa
o pluralismo, tal conceito reifica e essencializa as culturas, considerando-as como entidades possam viver lado a lado não funcionou". A Alemanha tem necessidade dos imigrantes como força
de trabalho, mas estes devem, segundo Merkel, integrar-se e adotar a cultura e os valores alemães
separadas, propriedade de um grupo étnico ou de uma raça. Em tal modo enfatiza os confins e
(sic). Sondagens recentes mostram que 55% dos alemães não gostam dos muçulmanos (que com seus
a mútua distinção em termos que produzem exigências repressivas de conformidade comum e 4 milhões são 5% da população). Sete anos antes eram 44% os alemães que assim se pronunciavam.
estratégias assimiladoras. [... ] 35% pensa que a Alemanha está "submetidà' aos estrangeiros e 10% sente nostalgia de um "Fuehrer':
Similarmente ao conceito de raça - especialmente na fixação e na imutabilidade da diferença - O livro "A Alemanha se extingue': de Thilo Sarrazin, membro do Partido Socialdemocrata (SPD),
selecionam o que divide os grupos sociais ao invés da sua relação intrínseca. (Grifo nosso) ex-ministro das Finanças e diretor do Banco Central Alemão potenciou o debate sobre a imigração.
Para ele o país "se embrutece" sob o peso dos imigrados muçulmanos. Foi além e falou de um "gene
Malighetti chama a atenção que os estudiosos da tradição volkekunde construí- dos judeus". Não contente afirmou: "A Irlanda tem a honra de ser o único país que nunca perseguiu
os judeus [... ] Porque nunca foi permitido [aos judeus] de entrar". Schelpe (2010) que comenta: "o seu
ram a partir desse conceito as bases ideológicas do apartheid. Mesmo agora sob o sobrenome vem do árabe sharqiyyn (oriental), resultando em sarrazin, no francês medieval, e sar-
governo pós-regime segregacionista verificamos a manutenção de colônias internas raceno, no português:' Com esta postulação ele foi expulso do SPD (sic) o que lhe deu uma posição
afrikaners e a óbvia permanência das relações capitalistas de produção. confortável junto aos conservadores (vejam-se os jornais Bild e Frankfurter Algemeine). O Die Zeit
fala na volta do termo Leitkutur, isto é, cultura dominante, cultura modelo. Isto estaria "desencora-
232 Alodoxia: tomar uma coisa por outra. jando a fertilidade dos imigrados muçulmanos, que relembram os tempos da eugenia" (Guidi, 2010).
170 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 171

sentencia: "O multiculturalismo seria a tradução para a etnocidade do neoliberalismo Tanto o racismo à italiana quanto a conversão securitária do centro-esquerda chegam à maturação
econômico: Observa-se a redução de serviços públicos "sob o impulso das chamadas através de uma longa fase de gestação, durante a qual o mito dos "italiani brava gente': a débil
reformas ' modernizadoras " ou ainda os projetos de novas instituições de gestão dos cultura democrática do país, uma ética declinante impediram de ver quanto os germes da
discriminação e do racismo andasse frutificando pari passu que a imigração - também esta objeto
pobres (como os asilos hoje reclamados por alguns para os clochardst234. (idem) O pro-
por um longo tempo de remoção coletiva - se fazia visível. Do meu ponto de vista o clássico círculo
blema é absolutamente crucial. Rivera (2009, p. 13) chama a atenção para o fato de que vicioso do racismo - a dialética entre dimensões institucionais, médicas, populares - se manifesta
pela primeira vez, de forma exemplar em 1991. Em seguida ao segundo grande desembarque de
se mantêm em evidência o "racismo dos pequenos brancos"235, daqueles que, estando em posição social fugitivos albaneses no porto de Bari que serão objeto de um tratamento à la chilena. [... ] [Constrói-
crítica, desafoga a própria impotência, rancor e raiva em relação a quem ocupa o degrau imediatamente se assim] o processo de normalização do racismo, que vai tornando-se uma cultura, um códice, -
inferior ao seu na escala da condição e do status social: tanto mais desprezíveis quanto mais recordam ainda que, todavia implícita ou inconsciente -largamente compartilhada pelas elites políticas como
aos "pequenos brancos" do passado de precariedade, trabalho duro e sacrifícios. por setores populares e meios de informação. Tem-se a impressão que são daqui por diante as mais
débeis margens de censura e autocensura que até as anos recentes tornavam problemática pública
Rivera (2009) sublinha a relação deste processo com a questão do racismo: explícita do discurso racista: temas como a "associalidade" dos ciganos, a identificação da imigração
com a delinquência, a periculosidade de certas "raças': o convite a afundar as barcas dos migrantes
o dispositivo midiático que permite as orquestrações classistas [racistas] é bem conhecido. - [... ] apanágio da retórica leguista [Lega del norte, nt] são hoje pronunciadas publicamente sem
Selecionam-se e deformam-se fatos da crônica, ainda que menores ou mínimos, cadeia por nenhum pudor, e não apenas por interlocutores de direita. (Rivera, 2011 )237
sua vez tematizada como fenômeno, praga, emergência: de crimes graves, como estupros e
homicídios, a fatos menos graves como incidentes de rua, chega-se [... ] até a práticas sociais
marginais como ofícios de rua e mendicância. De tal modo se sugere a idéia de uma emergência Responder esse desafio implica, para a esquerda francesa, mas não apenas para ela,
que ameaça nossa segurança e se atribui como responsáveis esta ou aquela categoria de dar conta da história, fazer uma profunda e radical autocrítica.
"estrangeiros". Por sua vez, instituições, partidos políticos, governos lucram com as campanhas
alarmistas para introduzir procedimentos discriminatórios e liberticidas destinados a golpear A primeira história é a da reforma do Estado: baseada no referencial neo-liberal, promoção do
não apenas aqueles que são habitualmente inferiorizados e criminalizados como os migrantes e mercado e da gestão como modelo de funcionamento dos serviços públicos, desaparição de uma
minorias, mas, a longo prazo, mesmo aqueles que não se adéquam, não se conformam, dissentem reforma urbana construída a partir da Segunda Guerra mundial por um Estado central em benefício
ou protestam236• (p. 14. Grifo nosso) de agentes diversificados [... ] em situação de competição. A segunda história é a da esquerda
francesa, tanto comunista quanto socialista, e das transformações que a atravessaram durante
Esta formula uma pergunta crucial: ''A Alemanha, assim como os outros países europeus, saberá
estes últimos vinte anos: abandono do paradigma marxista e recomposição ideológica em torno
assegurar o trabalho, a educação, a saúde, aos novos cidadãos?" (idem). "
234 Os clochards são os miseráveis, os mendigos, os moradores de rua, frequentemente pensados de novas palavras de ordem menos conflitivas, inspiradas por alguns pela onda crítica de Maio de
como vagabundos, como potencialmente criminosos e apresentados como associais por definição. 68 (participação, cidadania, sociedade civil, modernização, [... ], mas, também, relações ambíguas
"Limpar" as cidades dos pobres e miseráveis por ocasião de olimpíadas, jogos e presença de per- e freqüentemente impensadas com as classes populares e a imigração. Enfim, a história colonial se
sonagens famosos é uma prática tradicional. Reformas urbanas que jogam os pobres para fora das mostra através da difusão de categorias e de dispositivos renovados de gestão das populações, a
cidades faz parte desse arsenal, às vezes como forma de prevenção militar como no caso da reforma despeito dos princípios republicanos de indiferença às origens. (Tissot e Poupeau, 2005, idem, p. 9)
Haussman em Paris, e a de Pereira Passos no Rio de Janeiro que ao demolir os cortiços do centro
fortaleceu o processo de favelização.
235 "É interessante estudar nesse sentido as ideologias neofascistas dos filhos adolescentes dos es- Uma das formas de enfrentar o problema da pobreza, como já apontamos, foi e é o pro-
tratos médios das classes populares. Em especial nos casos em que agridiram e inclusive assassiram cesso da reforma dita urbana, da "pobreza urbana e de refletir sobre ela, que, paradoxal-
a pessoas ' sem teto' ou a pobres imigrantes. Estes jovens frequentemente associais enredados em si mente, mesmo insistindo sobre a gravidade do "problemà: tem por característica principal
mesmos, mamam a cultura principalmente do sistema publicitário e a mistificação do mundo que
provoca a estetificação publicitária que produz que vejam aos marginais do sistema como 'lixo' que deixar na sombra a origem da dominação social, econômica ou ainda racista. (Tissot,2007).
não deveria existir para que o mundo real coincidisse com a falsa aparência publicitária que eles
acreditam ser real ou pelo menos o ' inicial' o 'lixo' vem logo, antes não estava ali, portanto, há que Esta focalização teve um duplo efeito. Os dispositivos da política dita "da cidade" permitiram
atirá-lo ao 'contendor" Martinez, 2010, p. 27. renovar numerosas cidades, oferecendo um acompanhamento posto em ação localmente por
236 Mordenti (2010, p. 1) chama a atenção para o que ele chama racismo à italiana: "[ ... ] é a verda- profissionais do desenvolvimento social. Ao mesmo tempo, os financiamentos suplementares
deira base do consenso mesmo das formações neofascistas e neorracistas entre a plebe das periferias obtidos e gastos não tomaram nunca a forma de uma redistribuição social e espacial das
urbanas, um consenso hoje já bastante preocupante que me parece todavia destinado a crescer:'
(Grifos nossos) "Em primeiro lugar, a guerra está de novo no coração da Europa, nos Balcãs. E, mais uma sondagem, realizada em março de 2000, mais de 60% dos franceses admitiam ter ideias racistas.
uma vez, ela é considerada como uma ação política possível pelos europeus e os governos ocidentais. O "Monsenhor Giacomo Biffi, arcebispo de Bolonha, declarou claramente que a Itália deveria acolher
Segundo, os fluxos de população e a proteção das fronteiras estão no primeiro nível das preocupações apenas imigrantes que viessem de países cristãos, como os filipinos que são católicos. E o Monsenhor
políticas, em particular as da União Européia, desde a aplicação dos acordos de Schengen em 1995. Biffi não é uma exceção. Um escritor e politólogo eminente, Giovanni Sartori, que viveu muitos anos
Enfim, o racismo reapareceu como uma arma ideológica e pauta de leitura "étnicà' das relações nos Estados Unidos e ensinou na Columbia University, professava as mesmas ideias, em um livro
políticas e sociais, fez-se consenso nas sociedades democráticas ocidentais. Nós o vemos não apenas recente': (Burgio, 2005. Grifo nosso)
na Áustria, na Suíça e na Bélgica, mas também na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França: segundo 237 Ver o estudo de Rivera e Andrisani (2002).
172 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 173

riquezas, suscetível de canalizar o aprofundamento das desigualdades econômicas238 • Malgrado Nos anos mais recentes assistimos a crescente subtração aos indivíduos, em particular aqueles que
os numerosos apelos aos "planos Marshall para os arredores': eles foram limitados. Por outro pertencem a categorias sociais vulneráveis e conotadas etnicamente, do domínio sobre os próprios
lado, golpes severos eram, ao mesmo tempo, infligidos às políticas de direito comum, em matéria corpos, e, mais em geral, a uma retórica pública e a uma práxis política caracterizada pela fixação sobre
de educaçã0239 ou de saúde, nestes mesmos quartiers (bairros) populares. (idem). o corpo [... ]
Quanto aos corpos dos estrangeiros e dos minoritários, eles são percebidos como onipresentes,
Essas políticas não levavam em conta "as realidades econômicas, como o desem- proliferantes, ameaçadores241 e ainda por isto são cada vez mais objeto de expropriação ou de
ferreteamento simbólico: de estigma [... ] (Rivera, 2009, p. 17). [... ] o dispositivo-base da ideologia racista
prego que os habitantes desses quartiers, em grande medida operários e/ou imi- é a naturalização do social e a biologização dos chamados outros [... ]. (idem, p. 18. Grifo nosso)
grados sofriam violentamente. Os 'bairros' atraíram a atenção dos poderes públi-
cos, mas ao preço de outro ' reenquadramento' das dificuldades" (idem). O "novo" A isto se soma toda uma institucionalidade que junta preceitos jurídicos e tecnolo-
modo de olhar a pobreza trabalha com gia sob a palavra de ordem vigiar e punir. Para os dominantes os pobres, em especial
os imigrantes, mas não apenas estes, são sempre "culpados" seja por tradição (pobre
eufemismos para designar habitantes240 não mais em referência ao estatuto social, mas em função de
suas ''origens': nacionais, culturais ou "étnicas': Esta etnicização da questão social [... ] tem por efeito sempre é problema, pensam os dominantes, não cabendo mais sequer a ideia de
apresentar as origens ditas "étnicas" como problemas - e mesmo ameaças - para a sociedade, e não benemerência e caridade, seja porque pobre é sempre, tendencialmente, vagabundo,
como problemas para as pessoas que sofrem o racismo. (idem) quando não abertamente delinquente:
238 '1\ análise dos fatores econômicos e políticos que se combinaram para transformá-los em verdadeiros
'Bantustanes' domésticos revela que os guetos não são entidades autônomas que contenham em si mesmas o Na França, as populações e os bairros pudicamente qualificados como "em dificuldade" estão sendo
princípio de sua reprodução e mudança. Demonstra também que o arriscado Estado dos 'cinturões negros' capturados em um "tentáculo informático" que autoriza uma vigilância rigorosa e, portanto, por um
norte americanos não é o mero resultado mecânico da desindustrialização, dos movimentos demográficos controle maior, de um lado por parte dos serviços sociais e, por outro, pela polícia e pelos tribunais.
ou um 'desajuste' espacial ou de atitudes enraizado em processos ecológicos, e menos ainda o produto da as- Vários conselhos gerais que, desde a lei de descentralização de 1983, são responsáveis pela ação
censão de uma 'novà infra classe in statu nascendi ou já 'cristlizadà como elemento 'permanente' da paisagem social (os aspectos de inserção do RMI [Ingresso Mínimo de Inserção], proteção materna e infantil,
urbana estadunidense" Gaither Loewenstein, "The New Underclass: A Contemporary Sociological Dilemmà: a ajuda social à infância e às pessoas idosas, etc.), já criaram um dossiê único por departamento
The Sociological Quarterly, v. 26, n. 1, primavera de 1985; Chicago Tribune (Staff), The American Millstone:
sobre os indivíduos e as famílias que recebem ajuda graças ao programa de computador ANIS.
An Examination ofthe Nation's Permanent Underclass, Chicago, Contemporary Boos, 1986; Richard P. Na-
(Wacquant, 2001, p. 122)
than, "Will the Underclass Always Be with us?': Society, v. 24, n. 3, março-abril de 1987. (Wacquant, 2007, p.
40) O "fato mais significativo da vida cotidiana do gueto de nossos dias talvez seja a extraordinária preponde-
rância do perigo físico e a aguda sensação de insegurança que enche suas ruas. Só entre 1980 e 1984, os delitos A combinação de bancos de dados do estado policial atual. "denuncià' os "oportunis-
graves se multiplicaram por quatro em Chicago [... ]. A maioria deles foram cometidos por e contra habitantes tas" condenando - sem necessidade de tribunais - aqueles que caíram na "malha finà'
do gueto. Uma grande parte das 849 vítimas de homicídio oficialmente registrados na cidade em 1990 eram
homens jovens afro americanos, a maioria mortos a tiro em bairros pobres totalmente negros. Com a ampla do big brother policial. O estado policial nazifascista e o seu símile estalinista são pálidas
difusão das drogas e das armas de fogo, a mortalidade nas grandes zonas centrais deprimidas alcançou "ín- representações. Não estamos absolvendo os Zager e os guZags, afirmamos apenas que
dices que justificam uma consideração especial, análoga à que se presta às áreas de desastres naturais"; "na eles, com toda a sua brutalidade e extermínio estavam longe do novo estado policial que
atualidade, os varões de Bangladesh têm uma maior probabilidade de sobreviver depois dos trinta e cinco anos
que seus pares do Harlen': C. McCord & H. Freeman, "Excess Mortality in Harlen': New England Journal of observa e recobre todo o corpo social, urb et orbi. Truffault (1966) nos mostra formas
Medicine, v. 323, n.3, 1990. Grifos nossos. [... ] Esta violência destrutiva 'de baixo' não deve analisar-se como a diferentes de repressão. Resistência? À queima dos livros surgem homens e mulheres
expressão de uma "patologià: mas como uma função do grau de penetração e modo de regulação deste terri- livres. Trata-se de uma metáfora ao mesmo tempo que projeto. Essa perpetuação da
tório pelo Estado: uma resposta a diversos tipos de violência 'de cimà e um subproduto do abandono político
das instituições públicas no núcleo urbano:' (Wacquant, 2007, pp. 49 e 50) memória cria corpos (memória, história) nos territórios livres (para além do rio, isto é,
239 Sobre o modo pelo qual a educação francesa se faz em relação aos imigrantes veja-se o belo filme de do poder repressor. Mantendo viva a possibilidade de uma nova sociabilidade.
Cantet (2008). Trata-se de uma análise de como um professor busca demonstrar a superioridade francesa
e a necessidade dos imigrados de dominar esse conhecimento. Mostra, além disso, outro lado da questão: [A Comissão Nacional de Informática e Liberdades enfatizou] em seu relatório de atividades de 1994, seu
os conflitos étnicos entre os próprios imigrantes (marroquino contra senegalês). A insuportabilidade na "grande medo de ver se desenvolver um arquivo global das populações desfavorecidas e, por conseguinte,
vida escolar é tratada como caso de indisciplina e pela expulsão de um jovem imigrante. Na perspectiva das uma espécie de cartografia da exclusão baseada na definição de perfis individuais ou familiares de
diferenças culturais tradicionais (casamentos arranjados, por exemplo) ver Loach (2004).
precariedade" suscetível de reforçar a estigmatização e a discriminação territorial dos mais pobres 242 •
240 "Novos tipos sociais são um outro produto derivado do novo regime de insegurança social: a
[... ] O Sindicato da Magistratura sublinha que seu caráter exaustivo, seus longos prazos de
irrupção dos 'superpredadores' nos Estados Unidos, dos 'feral youth' e dos 'yobs' no Reino Unido,
ou dos 'selvagens' na França (variante social-paternalista do insulto racista em uma linguagem ju- conservação, que anulam de fato o "direito ao esquecimento': e a utilização da noção policial (e não
rídica supondo uma falta de cultura das classes populares) justificou a reabertura ou a extensão dos jurídica) de "implicação" em um processo fazem do Stic [Sistema de tratamento da informação
centros de internação para jovens delinquentes, enquanto todos os estudos existentes deploram sua criminal] um verdadeiro "arquivo da população': Segundo uma verificação efetuada pela Liga dos Direitos
extrema nocividade:' (Wacquant, 2010, p. 210) Lombroso aqui teria orgasmos! Essa "produção" de
241 Cf. Pierre Tevanian, La mécanique raciste, Éditions Dilecta, Paris, 2008.
inadaptados, desviantes pode ser vista em Loach (2006) na narrativa do trajeto de Liam adolescente
242 Cf. Le Monde, 15 de julho de 1999.
desempregado, que acaba por entrar no circuito da criminalidade.
174 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 175

do Homem, em 10 de janeiro de 1997, ele já continha 2,5 milhões de indivíduos "implicados", outras monetária e orçamentária, quase ininterrupta, e do desemprego de massa daí decorrente, mas
tantas vítimas de crimes físicos e meio milhão de vitimas morais, para um total de 6,3 milhões de bem mais simples (e economicamente), uma saudável invocação da autoridade do Estado, a
infrações. firme inculcação da disciplina escolar e familiar e a aplicação rigorosa da lei, nada senão a lei,
As informações catalogadas nesse arquivo, que tudo esquadrinha, compreende(m) os ~as toda a lei. Sobretud? "?a feriferia d~ nossa~ cidades': no seio dessas "aberrações" que são as
delitos e os crimes, mas também inúmeras categorias de contravenção, tais como 'a intrusão zonas d~ povoamento etmco , que o artIgo deSIgna claramente como o incubador do mal, pois
em estabelecimentos escolares", a ''destruição e degradação voluntária de um bem alheio", os seus habItantes sofreriam em primeiro lugar de um déficit não de empregos e de oportunidades
''desacatos à autoridade" ou ainda ''oferta de sexo" e outras incivilidades exageradamente ditas de vida, mas de penalidade - em razão do fim do "respeito ancestral" outrora observado em
urbanas. Segundo inúmeros juristas e segundo o relator do projeto diante da Comissão Nacional relação às figuras (exclusivamente masculinas) da ordem ("o pai, o professor, o prefeito, o
Informática e Liberdades, o vice-presidente (socialista) da Assembléia Nacional, Raymond t~nen~,e, o colega ~e oficina, o funcionário da repartição) - e do "declínio da lei em favor da ação
Forni, há fortes razões para temer que se utilize semelhante arquivo não apenas para fins de dIreta , qua~do nao em favor da "lei do meio" e da "lei da selvà: Regis Debray e seus co-signatários
polícia judiciária, mas também para operações de polícia administrativa, como, por exemplo, as repetem assim - aparentemente sem sequer se dar conta - ponto por ponto, com 30 anos de atraso,
"investigações de moralidade" dos solicitantes de diversos documentos e papéis das autoridades a argumentação defendida por Richard Nixon em face das rebeliões urbanas e dos movimentos de
(pedidos de naturalização, por exemplo), a despeito da proibição da CNIL de uma tal utilização. protesto que sacudiam os Estados Unidos em 1968, breviário da reação social e racial que desde
Por esta razão mesmo o Sindicato Geral da Polícia desaprovou tal criação. (Wacquant, 2001, pp. então esse país conhece. (Wacquant, 2001, p. 130. Grifos nossos.)
123-124. Grifos nossos)
Segundo eles os subalternos, pobres e oprimidos, não o são por conta das políticas
Isto é feito com a colaboração de militantes e ex-militantes socialistas. Impotentes capitalistas, mas por falta de educação. Não respeitam a ordem vigente, não respei-
para enfrentar os problemas colocados pela famosa nova ordem esses atores são pau- tam nada! E como resolução do problema apresenta-se a missão civilizadora em
tados pela teologia do mercado e só podem compreender o presente pela reiteração direção à esses "bárbaros modernos': O mundo, para esses intelectuais "moderniza-
de uma ordem que, apesar de dominante, está em crise e fogem para a frente espe- dos': é paranoicamente dividido entre o bem e o mal. Do lado do bem está a ordem
rando que o tempo "resolvà' os problemas. capitalista diante da qual esses bárbaros (subversivos, criminosos), precisam ser en-
quadrados. Do lado do mal estas "aberrações': as zonas do "pensamento étnico" que
"Mme Guigou [da Justiça] estima que é preciso combinar repressivo e educativo', (Le Monde, só reconhecem a "lei da selvà: Esses animais precisam ser controlados, domesticados,
19 de janeiro de 1999). O educativo é o álibi natural de um partido de esquerda para justificar amordaçados.
a ampliação dos meios e das prerrogativas do aparelho penal na gestão da miséria. Com efeito,
a educação de que se trata aqui nada tem de "preventivà' (senão em caso de uma eventual
reincidência), já que é efetuada depois da condenação, em meio penitenciário ou aberto, mas sob O raciocínio de Debray et aI. repousa no postulado ingênuo segundo o qual a delinqüência seria
a tutela judiciária. Uma verdadeira medida de prevenção caberia à Educação Nacional, antes da a exceção e a conformidade à lei, a regra. Na verdade, é exatamente o contrário: por exemplo,
deriva delinqüente. Mas isso exigiria investimentos muito mais altos para benefícios midiáticos todos os estudos sobre a freqüência de infrações entre os jovens dos países europeus mostram
bem menores. (Wacquant, 2001, p. 170. O grifo da 2a. frase é nosso.) que a imensa maioria dentre eles ao longo de um ano (entre dois terços e nove décimos) comete
ao menos um ato delituoso ao longo de um ano (danos ao patrimônio e vandalismo, porte
de armas, consumo de drogas, rixa ou desordem e violência extra-familiar). Mas, sobretudo,
Falamos em fugir para frente: e assim é. Debray (que pretendeu ser, nos anos ses- seu apelo denota um desconhecimento estarrecedor, mesmo que muito difundido, das realidades
senta do século passado, um teórico da guerrilha latino-americana e porta-voz do urbanas e penalógicas da França contemporânea, já que, por um lado, a suposta "explosão" da
guevarismo - quanto embuste!) hoje se faz porta-voz de uma reação feroz 243 • "violência urbana" nada tem de explosiva [... ] e que, por outro lado, o endurecimento policial
e judiciário que eles exigem a plenos pulmões já aconteceu, sem com isso trazer em sua esteira
"Refundar a Repúblicà'244 requer não uma política ativa de luta contra a insegurança econômica e de o menor sinal de "refundação republicana". A população penitenciária da França dobrou em 20
redução das desigualdades sociais que prosperaram sob o efeito de duas décadas de austeridade anos durante os quais os sintomas de "crise" da república não pararam de se multiplicar [... ].
(Wacquant, 2001, pp. 133-134. Grifos nossos.)
243 Debray "atualmente é um dos maiores defensores da política de tolerância zero, da política re-
pressora e das políticas penais da França. É um caso típico de conversão de todo um setor de inte-
A generosidade (ou será ironia?) de Wacquant toca, a nosso ver, uma questão cen-
lectuais de esquerda que se converteram para uma visão individualista e moralista dos pobres, e eles
mesmos sequer se dão conta dessa conversão para uma versão neoliberal, seguem vendo-se como tral: do desconhecimento real (ou "assumido") sobre a França existente e não sobre
progressistas. Terminaram aceitando especialmente o discurso da responsabilidade individual. Não uma França idealizada. O ex-gauchiste convertido à ordem deve necessariamente
se dão conta que a contrapartida desse discurso de responsabilidade individual é a irresponsabilidade
prender-se ao seu "novo" modo de ver o mundo, mas acima de tudo negar radi-
coletiva, ou seja, um abandono da natureza e dos diagnósticos políticos das causas da insegurança e,
portanto, da solução para a insegurança:' (Wacquant, 2008, pp. 323-324. Grifo nosso) calmente a realidade. Pautado pela teologia do mercado, ele e seus co-signatários, só
244 Régis Debray, Max Gallo, Jacques Juillard, Blandine Kriegel, Olivier Mongin, Mona Azouf, Ani- podem amaldiçoar os que não consentem. Sem estes ou com estes nas cadeias eles se
cet le Pors e Paul Thibaud, "Républicains, n'ayons pas peur!': Le Monde, 4 de setembro de 1998, p. sentem mais confortáveis, mais seguros.
13, citado por Wacquant.
176 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 177

Requer-se não apenas um novo olhar, mas uma nova linguagem. E, acima de tudo, As conseqüências são também morais e culturais. Os indivíduos que tinham uma linguagem operária,
uma nova conformação ideológica. Falamos de uma nova linguagem que oculta as de classe, veiculada e transmitida principalmente pelo Partido Comunista, para expressar e canalizar
o sofrimento social estão hoje desprovidos dela. A linguagem da etnicidade e da nacionalidade veio
contradições. Uma anfibologia que permite o glissement de significados e práticas: substituí-la. A oposição nacionais-estrangeiros veio substituir a oposição ricos-pobres da antiga
linguagem de classe. 246 (Wacquant, 2002. Em inglês no texto. Grifo nosso).
Entretanto, a participação dos habitantes, quando se tornou o remédio milagroso para cuidar do
"mal dos arredores': foi definida de maneira singularmente restritiva: ocultamento das condições
materiais de vida em benefício do ''diálogo'' e da "comunicação"; psicologização e, portanto, Conforma-se, assim, ideologicamente um discurso sobre a criminalidade baseado,
despolitização dos problemas sociais, alimentados por uma representação do bairro como espaço sobretudo, nas ''categorias-detrito'' (Wacquant, 2010, p. 19). Para os que "usam" esse
neutro e pacificador; valorização da boa vontade individual assim como outras soluções modestas discurso os
e pontuais, desvalorização concomitante da conflitividade e das reivindicações muito "políticas".
(Tissot, 2007. Grifo nosso) jovens desempregados e sem domicílio fixo, nômades e dependentes químicos à deriva, imigrados pós-
coloniais sem passaporte e documentos nem relações fixas - subitamente se tornaram proeminentes
o ocultamento das contradições revela-se na sua concretude: no espaço público, sua presença indesejável e suas ações intoleráveis, porque eles são a encarnação viva
e ameaçadora da insegurança social generalizada produzida pela erosão do salário estável e homogêneo
(promovido pelo paradigma de emprego na época das décadas de expansão fordista entre 1945 e 1975)
o termo "bairro': que designava até pouco tempo uma subdivisão no interior de uma cidade, não é
e pela decomposição das solidariedades de classe e de cultura que a estabilidade econômica sustentava
mais utilizado senão para os bairros populares com forte concentração de habitações sociais, forte
em um quadro nacional claramente circunscrito. Com o esgarçamento das fronteiras da nação pela
concentração real ou suposta de imigrados. Finalmente estes bairros são considerados hoje, apenas,
hipermobilidade do capital, a ampliação dos fluxos migratórios e a integração européia, a normalização
como responsáveis pela "insegurançà: (Wacquant, 2002)
do trabalho industrial alimenta no conjunto as sociedades do continente com uma poderosa corrente
de ansiedade. Essa corrente introduz o medo do futuro, a raiva pela queda e crise sociais, e a angústia
o termo "bairro': inicialmente "habitat social" depois "em dificuldade" e enfim "sensível': é carregado
de conotações negativas: descrevem-se estes territórios como necessitando menos o desenvolvimento
por não poder transmitir seu status aos seus filhos em uma competição cada vez mais intensa e mais
de uma ação autônoma que da intervenção de terapeutas. De sorte que a dimensão contestatória, incerta para a obtenção de títulos e postos de trabalho. É essa insegurança social e mental, difusa e
muito presente no apelo à mobilização dos habitantes, se apaga para dar lugar à uma ação pública
multiforme, que atinge (objetivamente) as famz1ias das classes populares desprovidas de capital cultural
racionalizada, com produções estatísticas e cresce um novo setor profissional: o desenvolvimento
requerido para alcançar os setores protegidos do mercado de trabalho, mas que também enche de cólera
social urbano. (idem. Grifo nosso)
(subjetivamente) amplos setores das classes médias, que o novo discurso marcial dos políticos e das mídias
sobre a delinqüência captou para fixá-lo tão somente sobre a questão da insegurança física ou criminal.
Não somente os atores da política da cidade se submetem à este novo quadro político, mas, alguns, (Wacquant, 2010, pp. 199-200. Grifos nossos.)
desejosos de reformar o Estado e não unicamente os quartiers deserdados, querem igualmente
adotar a temática da "modernização dos serviços públicos" que, nas versões liberais dominantes, se Esse processo de segregação étnica e dominação política é extremamente diversifica-
reduz freqüentemente à um simples recuo. Vê-se antigos militantes [...] [construir] uma desconfiança do. Quando houve o famoso furacão Katrina o capital e a população rica da cidade de
crescente em relação aos habitantes acusados de se satisfazer no assistencialismo, e sobretudo New Orleans aproveitaram a tragédia que se abateu sobre a região. Tragédia absoluta-
em relação ao Estado como tal, suspeito de encorajar esse assistencialismo e de não gerar senão
mente previsível e nada natural, visto que foi produzida pelo "colapso dos diques e pela
disfuncionalidades e rigidez. (Tissot, 2007. Grifo nosso)
infra-estrutura inadequada, pelos anos de subinvestimentos" (Wacquant, 2008, p. 325).
Além da sociabilidade criminal fabricada pelo "discurso do crime" outros elemen-
os bairros que ficaram inundados são também os bairros mais pobres, exclusivamente negros, que
tos devem ser considerados. Esse discurso oculta a "perenidade do desemprego de estão num estado que tem o nível mais baixo de assistência social, bem como o nível mais alto de
massa e a precariedade': situações constituidoras da insegurança reinante entre os desigualdade nas escolas e os índices mais altos de violência criminal. O governo dessa região, e do
subalternos sempre criminalizáveis. A insegurança desestabiliza o seu espaço: país, quase desistiu dessa sociedade em particular, literalmente a deixaram apodrecer, como se fosse
uma sociedade separada. O que a catástrofe fez foi forçar os políticos a reconhecerem "este é o nosso
nutre a pequena e média delinqüência. Vê-se desenvolver uma economia informal, paralela, o business
país", e a mídia foi obrigada a mostrar que aquilo não estava acontecendo na África, ou em algum país
feito de rapinas e de roubos. do terceiro mundo e sim nos Estados Unidos. (idem. Grifo nosso.)
[... ] Existe na França, com efeito, uma profunda decomposição dos territórios operários. É necessário
fazer um diagnóstico social e econômico. [A violência] não encontrou linguagem para se expressar. o resultado prático, contudo, foi mais do mesmo. A população pobre e negra foi de-
Os resultados das últimas eleições são em certa medida comparáveis às destruições de máquinas pelos salojada e em alguns casos enviada para outros estados247 • Os que foram saídos tiveram
Ludditas do início do século XIX na Inglaterra. A classe operária, desproletarisada e precarisada, de
algum modo quebrou a máquina eleitoral que, depois de vinte anos, não fez nada por ela. [...)245 tentam "experimentar" outras direções. Trata-se de um momento particular de revolução passiva.
246 Tendência universal. Fala-se hoje no Brasil em "excluídos" em vez de "oprimidos': por exemplo.
245 Ao abandono e traição de seus partidos, gerentes momentâneos do estado, as classes subalternas 247 "Foi espetacular o que o Katrina deixou, mas isso é a realidade que os pobres vivem cotidiana-
178 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 179

assim cortados laços familiares, de vizinhanças e foram relocados em lugares não apenas Em tempos de crise economICa e de erosão do welfare state, apontar bodes expiatórios é
desconhecidos para eles, mas muitas vezes hostis para os que chegaram. O poder munici- particularmente útil para prevenir riscos de perder consenso e votos. Desumanizados e
pal transferiu-se para os brancos em detrimento de uma história de controle da cidade criminalizados, tornados mais vulneráveis e exploráveis por meio de reformas legislativas e
campanhas racistas, as "classes perigosas" podem assim serem apontadas como joguetes das ânsias
pelos negros que vinha desde 1978. Pela primeira vez desde aquela data foi eleito um
coletivas que os poderes não tem meios para aplacar. (Rivera, 2009, p.19)
prefeito branco, na Assembleia Municipal há apenas um negro e mesmo o Conselho de
Educação tem maioria branca. Lance Hill, da Universidade de Tulane afirma: "De 30% Precisamos fazer um estudo aprofundado da questão ecológica como já advertira
a 40% dos pobres nunca voltaram:' (Murta, 2010). O voto da população negra que antes Cerroni. Não se trata de um modismo de uma pseudo social democracia "verde': Na
do Katrina era de 65% na última eleição reduziu-se a 53%. realidade esses desastres estão associados à brutalidade do desenvolvimento capi-
talista seja na versão liberal seja no pretenso socialismo realmente inexistente. Não
As elites norte-americanas descobriram de forma esmagadora aspectos da própria sociedade,
há como ignorar os efeitos sobre a saúde, as condições de vida e de trabalho dos
descobriram algo que elas sabem, mas não prestam atenção, o fato de que existe uma segregação
extrema entre negros e brancos, que é a mesma de cinqüenta anos atrás. Pode-se dizer que se subalternos. Tree Mile Islands, Chernobyl se associam a outros movimentos des-
desmantelou o sistema jurídico da segregação, mas que, na realidade, a segregação residencial entre trutivos como a questão do Césio em Goiás ou na Índia, onde 40 toneladas de metil
negros e brancos ainda é muito forte atualmente. No caso da Louisiana, o que não foi noticiado na isocianato e outros gases letais vazaram da fábrica de agrotóxicos da Union Carbide
imprensa é que esse estado, além de ser um dos mais pobres, com grande segregação racial e ter uma Corporation, em Bhopal, considerado o pior desastre químico da história. Estima-
criminalidade das mais fortes, tem uma taxa de aprisionamento das mais altas dos Estados Unidos.
É o estado líder em casos de prisão. Entretanto, foi a prisão o serviço público que melhor funcionou
-se que entre 3,5 e 7,5 mil pessoas morreram em decorrência da exposição direta
durante o desastre. Não houve mortes nas prisões. Todas elas foram evacuadas sem problemas. aos gases; o derramamento de petróleo nos oceanos (British Petroleon, no golfo do
Em Nova Orleans há uma cadeia com 6.500 presos, e eles foram evacuados sem problemas. Os pobres Máxico e o da Chevron no litoral brasileiro), dos processos de desertificação da con-
e doentes, principalmente os pobres idosos, ficaram sem ser evacuados por mais de uma semana, taminação do aquífero Guarani, etc. E é bom ter sempre presente as condições de
muitos morreram dentro dos hospitais, porque não havia comida, nem água, porque as equipes de
emergência não estavam lá. A polícia montada de Vancouver (Canadá) chegou a alguns lugares da
contaminação dos rios.
Louisiana antes do exército estadunidense, e forneceram ajuda antes das autoridades estadunidenses Last but not least coloquemos o problema dos loucos. O mesmo procedimento de
mandarem suas próprias tropas. (Wacquant, 2008, p. 324. Grifos nossos) isolamento e de consideração de periculosidade249 se aplica também aos chamados
doentes mentais, caso radical de subalternos: estes podem ser trabalhadores destru-
Na mesma linha de alteração da correlação de forças embora os bairros turísticos e ídos pela sua inserção no próprio mercado, podem ser cientistas levados ao stress,
de negócios estejam recuperados o primeiro plano de reconstrução previa a construção ao desespero, à loucura e à síndrome de Burnout, como podem ser os sem-teto (os
de parques nos antigos bairros negros. A população pobre e negra foi expulsa a ponto clochards, os homeless), todos eles inúteis para o mercado-moloch devorador de corpos
de a prefeitura baixar um "toque de recolher" - para evitar o barulho (sic) - nos locais e subjetividades: "[ ... ] é aqui, por trás dos muros dos manicômios, que a psiquiatria
tradicionais de locais de música. Perseguiram policialmente as bandas (como a To Be clássica demonstrou sua falência 2so : no sentido em que em presença do problema do
Continued), na clara tentativa de eliminar o que sempre foi um dos apanágios da cidade: doente mental, ela o resolveu negativamente, excluindo-o de seu contexto social e,
os bairros do jazz, a cultura negra248 • Trata-se aqui de uma forma aberta de racismo portanto, de sua própria humanidade" (Basaglia, 1968a, p. 137), construindo formas
mascarada com a presença ativa dos interesses políticos e imobiliários. de ocultamento das contradições sociais. "O doente mental é um excluído que, em
mente nos Estados Unidos, falta de transporte público, falta de serviços de saúde, falta de escolas,
uma sociedade como a atual, jamais poderá opor-se àqueles que o excluem [... r
falta de habitação, vivendo sob condições muito duras. [... ] Eles não têm nenhum dinheiro, não pos- 249 Concepção que acompanha os "doentes da mente" desde o surgimento da psiquiatria. Ver, por
suem conta em banco, cartões de crédito, sua única fonte de renda vem de um trabalho inseguro em exemplo, as razões de Esquirol: "L garantir a segurança dos loucos e de suas famílias. 2. liberá-los
seu bairro, ou de ajuda pública (cheques do governo), ou de economia ilícita no bairro, então se eles das influências externas. 3. Vencer suas resistências pessoais. 4. submetê-los a um regime médico.
fossem embora, como sobreviveriam mesmo que fosse uma semana? Então, para eles fazia sentido e 5. impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais:' (Amarante, p. 48) A liberdade proposta por
ficar lá:' (Wacquant, 2009, p. 325) Pinel transmutou-se em encarceramento e aniquilação do ego do doente, ou seja, nega a sua própria
248 "Alguns dias depois do desastre ter ocorrido, uma das grandes preocupações da televisão era humanidade.
descobrir onde estavam os ofensores sexuais, se eles tinham sido removidos ou estavam nos abrigos 250 Na luta pela independência argelina confrontou-se com a "teoria" do primitivismo dos indí-
- onde mais poderiam estar? Houve um pânico enorme e os xerifes foram entrevistados para dizer genas, defendida pelos psiquiatras da Escola de Argel. "Em fins de 1966, [Fanon] pediu demissão
quantos abusadores existiam em seu distrito, ao que eles respondiam: 'Temos 6.500, e agora não sa- de seu cargo de médico psiquiatra, numa carta aberta ao Residente Geral Robert Lacoste, na qual
bemos onde eles estão!' Criou-se a mesma mitologia sobre as crianças serem vítimas de predadores escrevia que lhe era impossível querer, a qualquer preço, desalienar indivíduos, 'situá-los de novo
sexuais depois do Tsunami, na Ásia, 'vocês não temem que as crianças sejam vítimas de abusadores?'. em seus lugares num país onde o não direito, a desigualdade e o assassinato se erigem em princípios
Existe uma cidade inteira que foi destruída, e o que se pensa é que os criminosos estão lá para violen- legislativos, onde o autóctone, alienado permanentemente no seu próprio país, vive num estado de
tar crianças, totalmente alheio ao que está ocorrendo:' (idem, p. 326. Grifo nosso.) despersonalização absolutà. Fanon foi expulso da Argélia:' Cherki (2002, p. 10)
180 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 181

(idem) Ele é aquele que se encontra entre os que "já estão perdidos na partidà' (p. O capitalismo forma então seu exército de perdidos já "na partidà': trabalhadores,
124) que "foi por muitos anos, e ainda é, aquele a quem se pode oprimir brutalmente, pobres, drogados, loucos, pretos, imigrantes, "diferentes': Enfim um exército formado
o cidadão privado dos seus direitos. É aquele que pode ser privado de sua liberdade para obter o consentimento: é o clímax de uma egemonia senza egemonia.
pessoal, das suas coisas, das suas relações humanas por tempo indeterminado e que Existem assassinos químicos. Para além da inundação das drogas usadas, por
se pergunta com sofrimento: "o que eu fiz de mal?': É aquele que infringiu a norma, exemplo, contra os dissidentes, contra o Black Panther Party - que é examinada em
é um "desviado" (Pirella, in Basaglia, 1968, p. 206). outro momento deste livro - e da luta pelo controle do comércio das drogas (ver as
guerras no Oriente Médio), conhecemos (sic) algo tão destrutivo quanto aos assassi-
o doente - uma vez internado no hospital - é definido como doente e cada uma das suas ações, nos industriais, seja do corpo seja da subjetividade.
participações, reações é interpretada e explicada em termos de doença: a vida institucional se funda,
então, na ausência de valores, aprioristicamente definida, para o internado, que se presume objetivado A sociedade neoliberal globalizada necessita avaliar-nos e quantificamos em nosos atos, nossas
de modo irreversível pela doença, justificando assim, no plano prático-institucional, a relação condutas, nossos diicursis, nossos pensamentos e padecimentos, infiltrando uma ideologia em
objetivante que é instaurada com ele. Neste sentido a mutação (rovesciamento) de uma instituição total nossas sociedades democráticas. (Punky, 2010)
psiquiátrica deveria consistir, essencialmente, na ruptura do sistema coercitivo e na problematização,
em todos os níveis, da situação geral. (Franca Basaglia Ongaro, in Basaglia, 1968, pp. 323-324)
Procedimentos médicos agem como destruidores/construtores de sociabilidades, cul-
turas, apaziguadoras da luta de classes. E começa pela intervenção contra as crianças.
Localiza-se aí o problema das drogas. Basaglia chama a atenção, para o significado
das drogas nas campanhas moralizantes que não podem ir ao fundo da questão porque A medicalização da infância é um processo contemporâneo. Atualmente na Espanha [... ] calcula-se que
fazem parte de um estoque pseudo medicamentoso. O depoimento de Artaud é brutal: 20% da população infantil poderia estar sendo medicada com metilfenidato, antidepressivos, antipsicóticos
e outras drogas similares como consequência de diagnósticos fudamentados no DSM _4252 • [ ••• ]
o eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, Segundo denuncia o British MedicaI Journal todos os processos normais da vida, nascimento,
faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca de seu ser, como envelhecimento, sexualidade, tristeza, infelicidade e morte, estão sedo submetidos a medicação
um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não quer mais permanente. [.. ] O cansaço, o mal humor, a inapetência, a falta de concentração, a timidez, a
entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta inapetência sexual, a impaciência, as dificuldades de relacionar-se com as pessoas, internet, os
de trabalhar, de pensar e de me sentir ser [... ].251 consoles, os playstation podem receber uma descrição terminológica médica e ser diagnosticadas
como enfermidades para os quais existe o correspondente fármaco. (Pundik,2010)
O que faz o DSM, a bíblia psiquiátrica (manual de enfermidades mentais), é descrever nossas
Para completar veremos que os "usos" das drogas passam não apenas pela mer-
condutas e transformá-las em patologias. [... ] Todos aqueles que não estamos de acordo com que se
cantilização da droga. Não ignoramos como ela foi a responsável pela destruição da droguem as crianças a denominamos de "cocaína pediátricà: [... ] se pegas o DSM encontrarás que
civilização chinesa (ver a Guerra do Ópio), mas também pelas guerras americanas o conflito religioso também é uma patologia como o conflito entre irmãos, o conjugal... todos tem
(guerras? Melhor seria dizer massacres) no Afeganistão, na América Latina. É pre- um número que os distingue como patologia e, portanto, são suscetíveis de ser medicados. [... ] toda
ciso lembrar que a pretexto do combate ao narcotráfico se controla a política e a pessoa sadia é "sadià' porque não foi bem diagnosticada. Para a indústria farmacêutica, todos somos
enfermos. (Pundik, 2009. Grifo nosso)
possibilidade de autonomia.

A chamada loucura e o uso das drogas quando associados às classes subalternas normalmente se Não temos como aprofundar aqui a síndrome do computador. Crianças e jovens
realizam quando as contradições sociais se tornam absolutamente insuportáveis. O fenômeno da passam horas a fio face aos computadores ou jogando, ou escrevendo nas chama-
droga não é de hoje. O problema sempre existiu, apenas hoje é enfatizado. A droga tornou-se um das redes sociais. Muitos deles só conseguem conversar virtualmente. A presença
fato comercial, assim se naturaliza uma coisa que não é verdadeira. do outro é basicamemte virtual (ver o comentário de Rosana Rossanda). Criou-se a
[... ] A droga é velha como o mundo: usavam-na os colonizadores ingleses com os chineses para
dominá-los; tomava-se a muito nos Estados Unidos depois da segunda guerra mundial - um
possibilidade de isolamento social e de obediência virtuaF53. A múltipla articulação
drogado para cada quatrocentas pessoas -, mas então não se enfatizavam as coisas. O problema da de mecanimos de eliminação da infância e juventude, a transformação da personali-
droga - é, pois, o problema dos psicofármacos; daqui por diante seremos todos drogados, ou auto da de é uma questão mercadológica:
drogados ou hetero drogados - é uma necessidade industrial e se explica com a lógica do lucro.
252 "Em 1880 consideravam-se oito categorias dos já denominados 'transtornos mentais'. No
Existe a angústia das nossas gerações e existe a exigência de eliminá-las. A droga permite fazê-lo e
primeiro DSM publicado em 1952 se estabelecem 106 categorias diagnósticas, no DSM-Il (1968)
torna-se o paraíso artificial. [... ] A droga é criminalidade, diz-se, e outras coisas do gênero. A droga,
passam a ser 182, no DSM-IlI (1994) a 297:'(Punky, 2010) O Manual Diagnóstico e Estatístico dos
pelo contrário, é o sucedâneo de uma resposta a uma necessidade, resposta que nunca é dada. transtornos mentais é segundo nosso autor "um manual anticientífico pago pela indústria farmacêu-
(Basaglia, 2004, p. 14) ticà', "manual de totalitarismo': "um ataque à subjetividade". (idem)
251 Carta de Artaud a seu psiquiatra em 1945. Ver CEuvres Completes, XI, Gallimard, Paris, 1974, p. 13. 253 Cf. Truffau, 1966.
Revolução passiva e modo de vida 183
182 Edmundo Fernandes Dias

Um estudo publicado em abril de 2006 em Psychpotherapy e Psichosomatics revelou a relação entre Gran Secreto de la lndustria Farmacéutica ele nos dá um quadro da rentabilidade da
os laboratórios e o DSM. Lisa Cosgrove, psicológa da Universidade de Massachussets e Sheldon indústia da doença, metaforicamente chamada de indústria da saúde:
Krimsky, professor da Universidade Tufts, realizaram um estudo publicado sob o título Nexos
Financeiros entre os Membros do Panel do DSM-IVe a Indústria Farmacêutica. O estudo revelou Para os países ocidentais e sobretudo para os Estados Unidos, a indústria farmaceutica é a jóia da
que mais da metade dos 170 membros do panel de responsáveis pelo DSN tinha nexos financeiros coroa. É, de longe, sua indústria mais rentável: as margens mais rentáveis giram em torno de 70%
ocultos com os laboratórios. E mais alarmante ainda, que 100% dos "especialistas" do panel sobre e até 90% e, segundo os especialistas, sua taxa média de lucros é a mais elevada de todas: alcança
transtornos da personalidade do DSN tinham vínculos econômico-financeiros com a indústria 18,6% contra os 15,8% dos bancos comerciais, que aparecem na segunda posição [... ] No mundo
farmacêutica. [... ] ocidental, o custo total do gasto em medicamentos receitados aumenta cada ano de 6% a 20% [... ]
Atualmente 2,3 milhões de adolescentes norte-americanos consomem metilfenidato e (Punky,201O)
benzodiacepinas. No Reino Unido passou-se de 3000 crianças tratadas com metilfenidato em 1993
a 220.000 em 2002. Na Espanha o consumo de antidepressivos a cargo da Seguridade Social passou
de 7.285.182 frascos para 21.238.858 em 2003. Em 2005 os medicamentos mais consumidos foram Um exemplo vivo desse processo pelo Rubifen. A bula ela própria confirma os
os psicofármacos. [... ] efeitos patológicos deste medicamento. Ela indica como possíveis efeitos colaterais:
Os medicamentos mais vendidos atualmente nos USA incluem antipsicóticos como a risparidona, "vertigem, dor de cabeça, insônia, náuseas, nervosismo, palpitações, reações cutâne-
a quitiapina, a olanzanpina, a aripripazol e a ziprapidona e atualmente são prescritos a mais de as e alterações de pressão arterial. O mesmo prospecto, insisto, adverte que seu uso
um milhão e meio de crianças, com a justificativa de ajudar seus pais a manejar problemas de
comportamento, apesar dos riscos de não ter sido aprovadas para serem usadas em menores, estão
pode gerar dependência de tipo anfetamínicd' (Pundik, 2009) Medicação? Cura?
contraindicadas. Não. Trata-se de um poderoso elemento do maravilhoso (sic) reino das mercado-
[... ] Às vezes, a criança chega a usar quatro, seis drogas diferentes porque uma dá muitos efeitos rias ... (para quem?)
colaterais, a outra não reduz os sintomas e outras as deixam ainda mais doentes.
Drogas antipsicóticas estão claramente associadas ao diabetes e à síndrome metabólica. Estamos
dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade. (Angell, 2011)

Os padrões de saúde e de doença (tanto de ordem médica, quanto de tipos produ-


zidos pela televisão são definidos por padrões estatísticos, de tradição ou da imposi-
ção de um modo de vida. No referente à área dita científica vemos que ela é constru-
ída estatisticamente assumindo assim a epidemiologia como padrão científico. Tudo
fora dos limiares é passível de medicalização:

O mal-estar do ser humano é o sinal de alarme de seu psiquismo, de que há algo no emocional que
se deve enfrentar e resolver e que se manifesta como ansiedade, depressão, angústia e stress, em suas
diferentes denominações e que é o que pode provocar diminuição da presença ativa de dopomina,
de noradrenalina ou de serotonima, reguladora de uma extrema gama de funções psíquicas e
orgânicas que influem no sono, nos estados de animo, emoções, estados depressivos, todo tipo de
desequilíbrios mentais, o funcionamento vascular, das vísceras e músculos, a frequência das batidas
cardíacas e regula a secreção de hormônios como os estrogênios, testosterona e do crescimento.
(Pundik,201O)254

Philippe Pignarre, professor na Universidade de Paris, que durante 17 anos teve


cargos diretivos na indústria farmacêutica, com imenso conhecimento da indústria
da mercantilização da saúde, ou melhor, da produção de doenças. Em seu livro El
254 Sobre o Prozac a informação oferecida pelos fabricantes indicam como possíveis efeitos colate-
rais "ansiedade, nervosismo, insônia, sonolência, astenia, temor, sudorese, anorexia, náuseas, diar-
reia, mareo, cefaleia, secura da boca, dispepsia, vômitos, síncope, arritmia cardíaca, anomalias nas
provas de função hepática, hipo e hipertereodismo, aumento do tempo de hemorragia, síndrome
cerebral aguda e convulsões:' E isto é aplicado a crianças. (Pundik, 2006) Segundo Prakash S Mas-
san.d (c~,tado por Punik, idem) os gastos se "estimam em 23700 milhões por não apenas nos Estados
Umdos.
DETERMINISMO: O CAMINHO DA DERROTA

o conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não


condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas.
É uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a
classe operária alemã que a opinião de que nadava com a corrente.

Walter Benjamin

A teoria não é, nem pode ser um mero ornamento, e muito menos um leito de
Pro custo. Neste amarra-se o culpado em um leito de ferro. O que excede é mutilado,
amputado para que coincida com um real como o queremos. Isto não é uma metá-
fora. Foi o procedimento da direção estalinista255 • A história tinha que combinar com
sua visão estratégica. Um excelente exemplo foi o debate sobre o conceito de modo
de produção asiático256• O determinismo cristalizado como verdade universal, evolu-
cionista, ahistórico afirmava a existência de quatro etapas no desenvolvimento das
sociedades, os modos de produção antigo/feudal/capitalista/ socialista. O debate não
era apenas teórico, mas pelo contrário se referia a estratégia revolucionária.

Em fevereiro de 1931 abre-se em Leningrado uma reunião muito importante, que parece ter tido
um caráter mais político do que realmente científico. Nela os defensores do modo de produçãp
asiático são assimilados aos trotskistas, apesar da distância que separava as teses de uns e de
outros; aqueles consideravam com efeito que a China, no essencial já tinha entrado no estágio do
capitalismo e ultrapassado o feudalismo, [enquanto os outros] consideravam que a China podia
estar ainda em um estágio "asiático': não feudal, e em todo caso que sua estrutura social apresentava
muitas originalidades. (Chesnaux, p. 19)

Vemos assim um duplo movimento: por um lado, nega-se a historicidade real ao


impor um modelo falsificado da realidade (China, Brasil e outros eram apresentados
como na transição feudalismo/capitalismo); por outro et par cause, impõe-se na prá-
255 Tratamos esse assunto variadas vezes. Ver Dias, 1997, 1999, 2001b e 2006.
256 Sobre o modo de produção asiático ver Centre d'Études et de Rechesches Marxistes, 1969.
186 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida
187

tica histórica concreta uma visão que acaba por determinar as estratégias políticas O mercado é a unidade de todos aqueles que não se colocam a tarefa de ruptura do
(se a estratégia estava errada - concientemente, pensamos -, as táticas só poderiam capitalismo (o "assalto ao céu': na linguagem da Comuna de Paris). A burguesia e
levar à derrotas). No caso brasileiro afirmava-se a passagem feudalismo/capitalismo a esquerda redistributivista aparecem e atuam como "parceiras antagônicas": mais
em detrimento de análises concretas e reais. Curiosa ou sintomaticamente esse mo- parceiras que antagônicas. As questões da emancipação são deslocadas para o fundo
delo coincidia com o projeto burguês. Lá como aqui o debate correspondia à teologia da cena; só o mercado é racional, dizem!
laica estalinista. No Brasil o debate foi assumido por Andrew Gunder Prank e Caio ~ i~eia da ~rise. terminal do capitalismo e a da passagem - quase automática - ao
Prado Jr., entre outros. SOCIalIsmo nao fo~ ~~~nas um erro teórico, mas uma brutal derrota estratégica. Rosa,
O exemplo clássico do determinismo como matriz de derrotas foi a incapacidade Trotsky e GramscI Ja tInham denunciado essa perspectiva: sob o nome de socialismo
da Internacional Comunista e de seus teóricos compreenderem as tendências orgâ- praticava -se uma forma particular de capitalismo. A IH Internacional estalinizada
nicas do capital. Eugen Varga apontava para a economia capitalista em 1930 como chegou a afirmar que os anos 30 registravam uma estagnação do capitalismo e que
sendo de estagnação. Gramsci, pelo contrário, apontava que a economia americana che~ara a fase da guerra de classe x classe no exato momento em que o fordismo
vivia um momento de expansão com o fordismo e a criação de um novo tipo de realIzava uma fo~t~ fase ~e reestr~turação do capital e de ampliação do seu poder
homem, de sociedade e de economia, de um novo modo de vida. 257 Visões estratégi- em escala planetana. MaItan analIsa o chamado terzo periodo da Internacional que
cas que produziram táticas diferenciadas. Veja-se, por exemplo, a questão do social- afirmava a existência de
-fascismo, o que lançou as massas operárias alemães nos braços do nazism0258 .
O mito determinista tornou, aparentemente, a ação política das classes antagôni- crises revolucionárias generalizadas a curto prazo e impunha o abandono da política de frente u'n·c
d ' . d ·d I aea
cas uma desnecessidade: a decomposição do capitalismo - afirmavam tanto a social- enun~la os. p~rh os social-~emocratas como social-fascistas. Os frutos, de longe os mais amargos,
destas lffiposlçoes foram colhIdos na Alemanha, onde a orientação do Partido comunista foi um
-democracia, quanto a direção estalinista - seria fatalmente seguida por uma marcha elemento não secundário da trágica derrota diante de Hitler. (Maitan, 1990, p. 23. Grifo nosso)
triunfal e irreversível rumo ao socialismo. Paralelamente a stalinização da Interna-
cional houve uma mutação social-democrata que, na prática, passou a trabalhar na Esta era a posição oficial do V Congresso da Internacional claramente expressada
perspectiva capitalista: pelas palavras de Zinoviev: "O fato essencial é que a social-democracia tornou-se uma
ala do fascismo. "261 A incompreensão sobre a conjuntura dos anos trinta foi mais
Não é por acaso que um dos pontos sobre o qual se insiste [... ] seja este progressivo transformar- grave ainda. A direção da Internacional e os partidos que a acompanharam não se
se da esquerda em esquerda redistributiva [... ]. Isto é de uma esquerda que define o projeto de
outra sociedade (afirmando que podemos viver de outro modo, com outras relações humanas e
prepararam para o combate no campo da materialidade imediata, nem perceberam
sociais)259, [... ] uma esquerda concentrada sobre a intervenção redistributiva, aceitando o pano de o alcance do ataque direto às classes subalternas. O fordismo, forma americana da
fundo que hoje determina uma crise conjunta de identidade, de modelo produtivo e de psicologia re:ol~ção passiva (Gramsci, 1975), a um só tempo, uma reestruturação do capital e a
social: a separação entre o sistema produtivo e o processo de formação das necessidades. Apontando c~laçao do novo trabalhador. Era, também, uma resposta à revolução russa e a irrup-
sobre o momento redistributivo perde-se de vista inevitavelmente a conexão entre produção e
çao das massas na cena histórico-política262 • O que estava em curso era uma
necessidades, e acaba-se por considerá-las duas coisas que podem ser representadas e interpretadas
independentemente. (Barcelona, p. 8)
r~estruturação, que representou um momento de reorganização não apenas "econômica", mas no
nlvel das formas estatais, d~ relaç~~ Estado-economia, sociedade civil-sociedade política, e, portanto,
Ao colocar no primeiro plano de sua intervenção as relações de consumo, o acesso em geral, uma reestruturaçao das }ormas políticas': (Barcelona, p. 47. Grifo nosso)
aos bens materiais, essa esquerda subordinou a perspectiva da totalidade ao momen-
to da particularidade, conduzindo assim os subalternos à integração ativa à ordem Contrariamente às visões economicistas defendidas pela maioria da Internacional
do capitaP60. O pano de fundo é colocado como o "mercado" ao qual tanto a burgue- esse processo constituiu uma nova forma da racionalidade burguesa no período im-
sia quanto a esquerda distributivista rendem homenagem e emprestam suas forças. 261 Citado por Maitan, p. 23. Grifo nosso.
257 Ver Gramsci, 1975 e Dias, 1997. 26~ A an~1i~e. des~e proc~ss? ganha, nos anos 50-60, na Itália, uma leitura decisiva contra as "ideo-
258 Ver Reich, 1970a, 1976. log~as Ob)etIvlstas (Panzlen). Para ele a discussão do capital como poder social era fundamental e
259 Já em 1994 Barcelona nos advertia quanto à ilusão de que "outro mundo é possível" (Cf. Fórum a~sl.m, o g?ve~no er~ mai~ do que um sim~les garantidor do capital, mas o organizador da explora~
Social Mundial) sem a eliminação do capitalismo. . çao, o. capItal la mUlto. a~em de ser a propnedade privada dos meios de produção, as classes não se
260 "a ideologia burguesa demonstrou uma notável capacidade de adaptação aos desenvolvimentos redu~l~m a I?eras pOSlç?eS na _estrutur~ ~ocial de produção. Conceitos como comando capitalista,
da situação, propondo novas e refinadas formas de mistificação ideológica, a cobertura das novas operar~o SOCIal, antag.omsmo sao essenCiaIS e ele os descobre na Seção Quatro do tomo primeiro de
formas de alienação, enquanto o marxismo, cristalizado no fechamento estalinista, demonstrava-se O Cap~tal. Ele se d~dlcou a apreender e elucidar a questão da incorporação da ciência no processo
incapaz de contrapor a sua ação crítica:' (Panzieri, 1973, p. 76) produtivo (Grundnsse) como momento chave do despotismo capitalista e da organização do Estado.
Revolução passiva e modo de vida 189
188 Edmundo Fernandes Dias

perialista: longe de ser um período de estagnação ou de crise terminal o capitalismo facilitou em grande medida a eliminação do projeto socialista, tornando as direções
avançava com uma nova adequação de governo da economia e governo das massas, socialistas objetivamente aliadas do capitalismo em crise e muitas vezes também sub-
uma atualização do bloco histórico capitalista. Isto exigia, do ponto de vista das clas- jetivamente.
ses trabalhadoras, uma A economia não é, nem nunca foi, uma questão técnica. Para além da produção
de mercadorias ela produz e reproduz as classes sociais e o poder dos dominantes,
resposta produtiva de novo tipo [que] tenha condições ao mesmo tempo: 1) de encaminhar uma daqueles que a controlam. Passado quase um século das investigações de Marx o
reorganização setorial e territorial dos aparelhos produtivos; 2) de prospectar uma dimensão stalinismo (nome coletivo) e a esquerda redistributivista viviam sob o domínio ide-
internacional de dar à requalificação profissional [... ]; 3) de colocar em movimento uma
ológico do capital. Panzieri (1961, p. 43) recolocou a questão:
regulamentação democrática da mobilidade do trabalho e de unificação do mercado de trabalho;
4) de experimentar um novo modo de conceber a fábrica, a relação escola-fábrica, trabalho
[... ] pode-se estabelecer entre outras coisas: 1) que o uso capitalista das máquinas não é, por assim
intelectual-trabalho manual; 5) de redefinir radicalmente a relação cidade-campo e mais em geral
dizer, a simples distorção ou desvio de um desenvolvimento "objetivo" em si mesmo racional,
a preparação do território; 6) de enfrentar o nó das fontes de energia. [... ]
mas que tal uso determina o desenvolvimento tecnológico; 2) que "a ciência, as gigantescas forças
Trata-se na prática de construir uma nova racionalidade que trabalhe essencialmente em duas
naturais e o trabalho social de massà' [... ] tem sua expressão no sistema de maquinaria e formam
direções: na direção de colocar em movimento recursos humanos e materiais, hoje inutilizados ou
com ele o poder do "patrão".264 Por conseguinte, frente ao operário individual "esvaziado': o
reduzidos a objeto de assistência, e na direção de uma difusão da ciência política (construção de
desenvolvimento tecnológico se manifesta como desenvolvimento do capitalismo: "como capital e
uma democracia articulada e organizada). Uma racionalidade social (e estatal) que saia claramente
enquanto tal a máquina automática tem consciência e vontade no capitalista:' No cérebro do patrão
do esquema do assistencialismo, mas também do esquema do plano centralizado, como foi
experimentado nos países do Leste. (Barcelona, idem, pp. 52-53) "são conceitos inseparáveis a maquinaria e seu monopólio sobre elà'

Ele mostra que as contradições no interior da O capital atua permanentemente em um processo de recomposição organlca,
como forma de sub sumir o trabalho, para evitar qualquer possibilidade de autono-
grande fábrica com centena de milhares de operários, que, através a linha de montagem, sofriam mia dos trabalhadores e o faz
indubitavelmente uma intensificação da exploração, mas também uma grandiosa e extraordinária
socialização das suas condições de trabalho e das suas formas de consciência, e a atual realidade pelo desenvolvimento capitalista da tecnologia, através das diversas fases da racionalização e
da multinacional que governa um ciclo produtivo disperso sobre a área geográfica do Ocidente, e de formas cada vez mais refinadas de integração, comporta um aumento crescente do controle
mesmo para além dos limites do próprio Ocidente, por meio de um cérebro capitalista que é cada capitalista. O fator fundamental deste processo é o crescente aumento do capital constante
vez mais reduzido em termos de visibilidade estrutural, e que todavia tem de modo inaudito estendido em relação ao capital variável. No capitalismo contemporâneo, como é sabido, a planificação
a própria capacidade de controle sobre vários segmentos do ciclo produtivo que se desloca sobre áreas capitalista se amplia desmesuradamente com a passagem a formas monopolistas e oligopolistas,
diversas. (idem, p. 58. Grifo nosso) que implicam a progressiva extensão da planificação da fábrica ao mercado, a área social externa.
[... ] Isto não significa, que não se acrescentem simultaneamente as possibilidades de subversão
A visão do socialismo meramente como regime político que praticou uma versão do sistema. Porém estas possibilidades coincidem com [... ] o valor totalmente destruidor que
frente ao 'esqueleto objetivo' cada vez mais rígido e independente do mecanismo capitalista, "a
à esquerda do modo capitalista de fazer a economia263 foi fatal. Ignorou-se a profunda
insubordinação operárià' tende a assumir, (idem, p. 44)
articulação de institucionalidade e produção. A identificação de socialismo com pla-
nificação e estatização tornou invisível a revolução passiva nos países do socialismo O mito da tecnologia fez com que o reformismo ganhasse força. "Um simples atra-
realmente inexistente já em curso desde os anos 30, ocultando a lenta restauração do so, uma ausência, ou mesmo apenas uma produção diminuída de um único operá-
capitalismo aí ocorrida. Além das lutas cotidianas de preservação da possibilidade r
rio, podem se refletir sobre toda uma linha de máquinas [... 265 Como não reconhe-
de existência das classes subalternas, o projeto socialista requeria um grande embate cer aqui a ideologia das "ilhas de produção"? Como ignorar que esse processo torna
ideológico para que se concretizasse a possibilidade de uma nova sociabilidade para
264 Marx, 1959, t. 1, p. 350.
além e contra a ordem do capital. 265 Silvio Leonardi, Progresso técnico e reporte di lavoro, Einaudi, Torino, 1957, p. 50, citado por
O resultado concreto foi totalmente diverso do que os deterministas afirmavam. A Panzieri (l968a, p. 10). Cf. I lavoratori e il progresso técnico. Atti deI Convegno tenuto all'Istituto
social-democracia, vencida a brutal experiência nazifascista, possibilitou o chamado Gramsci (a 29 e 30 de junho elo de julho de 1956). Le trasformazione techniche e organizzative del
. rapporto di lavoro nelle fabbriche italiane foi o tema do seminário.
estado de bem-estar social que, se garantiu melhores condições de vida e de trabalho Bologna (1988) mostra um importante elemento nesse momento: "O terreno de análises das novas
para uma pequena parcela das classes trabalhadoras em alguns países da Europa. Ela profissões industriais já estava contaminado pelas primeiras teorias pós-industrialistas segundo as
quais os blue co11ors estavam extinguindo-se e os white co11ors seriam seus substitutos. Estas teorias
263 Ver o stakhanovismo, variante russa do fordismo, e, como este, um aprisionador da subjetivida- pós-industrialistas encontraram um amplíssimo eco, no movimento operário, no estudantil, na cul-
de dos trabalhadores a uma política da qual foram excluídos. tura da esquerda em geral:' Em inglês no texto.
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 191
190

o trabalhador um colaborador e a falta uma culpa, cobrada por outros trabalhadores Aspectos característicos novos assumidos pela organização capitalista são convertidos assim em
estágios de desenvolvimento de uma "racionalidade" objetiva. [... ] o enorme valor de ruptura que
colaboradores? Como não perceber que se instala uma "harmonià' entre capital e na grande empresa moderna - "com uma produção programada e realizada em fluxo contínuo" -
trabalho e como ignorar que todo o processo de industrialização era representado assume a "não correspondência de um operário, de um grupo de operários, a quanto lhes é exigido
"como dominado pela fatalidade 'tecnológica' que conduz a liberação 'd~ homem das em base às previsões feitas no programa de produção da empresà'267 é absolutamente esquecido
limitações impostas pelo ambiente e pelas possibilidades físicas'. " (p. 46)? E importante para por em relevo, em troca, a exigência (naturalmente 'racionar) da chamada relação "moral" entre
empresários e trabalhadores, que é condição efim das denominadas "relações humanas" precisamente
salientar que essa posição representava uma "svolta sindacale': Aqui está colocada
porque unicamente sobre sua base pode-se estabelecer a colaboração. [... ]
claramente a questão. A substância dos processos de integração é aceita, reconhecendo-se neles uma necessidade
intrínseca que derivaria diretamente do caráter da produção "modernà: Simplesmente se coloca
o desenvolvimento das técnicas e das funções conexas ao management, isolado do contexto social a exigência de corrigir algumas "distorções" que o uso capitalista introduziria nestes procedimentos.
concreto em que se produz, i. e., da crescente centralização d~ p~der capi,~alista, é c~nsiderado as_si~ (Panzieri grifou apenas substância)
como o suporte de novas categorias de trabalhadores (os tecmcos, os mtelectuals da produ~a~ ),
que trariam 'naturalmente', como reflexo direto das novas profissões a soluçã~ ~as contradl~o~s
Qualifica-se assim o que chamamos de captura da subjetividade. O trabalhador,
'entre os caracteres e exigências das forças produtivas e as ~elações, d_e produçao. ~ c~nt~adl.ça~
entre forças produtivas e relações de produçã0266 aparece aqm como nao correspondenCla tecmca . se e quando, desprovido de um aprofundamento teórico-político tende a absorver
[... ]" (idem, 46-47) a tecnologia, vista como neutra, que aparece como permitindo um trabalho menos
danoso e uma "qualificação" que dê mais dignidade ao seu trabalho. O adestramento,
Esse debate vai ser potenciado no decorrer da década de setenta. Lá se colocaram apresentado como qualificação, é um mecanismo fundamental nesse processo.
com maior clareza o significado e o perigo das transformações impostas pelo capital
ao mundo dos trabalhadores: A "planificação" capitalista pressupõe a planificação do trabalho vivo e quanto mais ela se esforça
por apresentar-se como um sistema fechado, perfeitamente racional, de regras, tanto mais ela é
Provavelmente [nos anos 76-77] se falava ainda muito da desarticulação do complexo empresarial, abstrata e parcial, pronta para ser usada em uma organização somente de tipo hierárquico. Não é a
isto é, de "novo modo de fazer empresà' e muito pouco de "novo modo de trabalhar': mas a ideia "racionalidade': mas o controle, não a programação técnica, mas o projeto de poder dos produtores
que a classe operária viesse fragmentada sobre o território para enfraquecê-la era clara. As grandes associados podem assegurar uma relação adequada com os processos tecno-econômicos globais.
novidades, no entanto, pareciam concentradas ainda na fábrica fordista, como a passagem do (idem)
trabalho na linha de montagem para a de "ilhas': robotização, etc. Abria-se nos mesmos an~s um
debate _ lamentavelmente caracterizado por forçamentos ideológicos - sobre o fim da centrahdade São recuperados os temas da alienação, da desqualificação do trabalho, a individu-
do "operário massà' e o surgimento na cena de uma nova figura hegemônica, a do "operário social". ação da homogeneização; desmistifica-se a "palavra de ordem da profissionalidade"
(Bologna,2011) . . (Turchetto). O espaço fabril não é neutro. Aqui seria decisivo o papel de sindicatos
No fundo em ambas as concepções que se chocavam, a otimista e a catastrofista, eXIstIa um _dado
comum, uma concepção da economia como objetividade, como fato natural, e uma concepçao do e partidos que se afirmam dos trabalhadores. O neoliberalismo, já em ação aqui,
Estado como máquina, uma concepção do Estado instrumental (nas duas versões, a que apresenta o agudiza e generaliza essa correlação de forças. Diante de um determinismo cego em
Estado como instrumento de domínio de uma classe e a que, pelo contrário, o apresenta como poder torno da ideia do progresso e da brutal avalanche capitalista dos anos 70 em diante,
puramente técnico-administrativo, nas mãos de uma cam~da política): Em a:nb~s as concepções existe o processo tem sido quase sempre de capitulação. Primeiro, como integração passiva
uma incompreensão da relação originária que se institUI na formaçao capltaitsta entre o Estado e a
à ordem; depois como partícipe ativo da nova ordem.
economia e, por isto, provavelmente, o modo de definir a crise é inadequado, já que ou a re~uz aos seus
termos puramente objetivos ou aos seus termos puramente subjetivos. (Barcelona, 16. Gnfo nosso) Esse processo o reencontramos mais recentemente sob as mais diversas formas
em Gorz, Lojkine, Castells, etc. Houve uma profunda mutação na posição destes
Benjamin mostrou em suas Teses sobre o conceito de história, ~ue vere~?s ~ais autores. No momento em que Panzieri produzia sua formulação os movimentos
adiante, o poder reacionário de uma visão economicista, mas sena necessano dizer sindicais e partidários de esquerda estavam em uma relativa ofensiva. Começava o
(e localizar) que o determinismo tem bases profundas. A ideia de que a técnica e processo que culminaria no autunno caldo e por isso ele podia afirmar:
a ciência são possibilidades libertadoras, criou no interior do próprio movimento
operário a crença da sua neutralidade, como se bastasse apenas trocar quem mane-
o nível de classe se expressa não como progresso, mas como ruptura, não como "revelação" da
racionalidade oculta implícita no moderno processo produtivo, mas como construção de uma
java os cordões para alterar a totalidade da~.prática~ soci~is,. t~se clássica ~e .Kau;~ky. racionalidade radicalmente nova e contraposta à racionalidade praticada pelo capitalismo. O que
Panzieri (1961) critica o que ele chama de Ideologias obJetlvlstas, mecanIcIstas. caracteriza os processos atuais de aquisição de consciência de classe nos operários da grande fábrica

267 Leonardi, op. cit." p. 93, citado por Panzieri, 1968a, p. 45.
266 Leonardi, op. cit., p. 82.
[...] "não (é) somente a exigência primária de expansão da personalidade no trabalho, mas uma vez mais complexa e refinada, de adequar a planificação do trabalho vivo aos estágios alcançáveis
exigência motivada estruturalmente de gerir o poder político e econômico da empresa e através dele, via o contínuo crescimento do capital constante, pelas exigências de programação produtiva. Neste
da sociedade".268 (idem. Grifo nosso) quadro é evidente que tendam a assumir cada vez mais importância as técnicas 'informacionais',
destinadas a neutralizar o protesto operário imediatamente insurgente do caráter 'total' que
o quadro da classe mudava rapidamente. Ao assumem os processos de alienação da grande fábrica racionalizada. [... ] sublinhar que é no uso
das técnicas 'informacionais: como manipulação da atitude operária que o capitalismo tem vastas e
Operário profissionalizado, ligado a uma tarefa complexa vai sendo substituído pelo "operário- indefiníveis margens de 'concessão' (melhor seria dizer de 'estabilização'). (idem)
massa, privado de conhecimentos tecno-profissionais, sobre quem pesa uma alienação ainda
maior, mas mediada por algum privilégio socia!:' (Dalmasso, 2004) Naquele momento como hoje é necessário ressaltar que a

Mudaram as condições sociais de existência do capital e do trabalho, mudou a "luta operária se apresenta (... ] como necessidade de contraposição global ao plano capitalista, portanto
forma da empresa, diz Barcelona. Trata-se de um fator fundamental é a consciência, digamos dialética, da unidade dos dois momentos 'técnico' e
'despótico' na atual organização produtiva." (idem. Grifo nosso)
uma mudança que não [é] sem consequências sobre o plano geral das relações políticas e das
relações sociais. Vem se assistindo ao declínio, ao fim da empresa fordista, da empresa orgânica O problema político que se coloca é, portanto, "a subversão operária do sistema e a
caracterizada por uma grande concentração de mão-de-obra, por uma grande concentração de negação de toda a organização na qual se expressa o desenvolvimento capitalista, e em
meios de produção, por um certo tipo de rigidez do produto e por uma estrutura bem determinada
primeiro lugar da tecnologia enquanto ligada à produtividade." (idem. Grifo nosso)
da direção empresarial, colocada [frente ao conjunto dos operários]. Alguns escreveram que da
empresa fordista se passou finalmente ao sistema de empresa em rede, que articula os próprios Negação radical da crença da inevitabilidade da passagem ao socialismo, mas acima
segmentos dando vida a um ciclo produtivo extremamente flexível, caracterizado por uma acentuada de tudo a denúncia das leituras objetivistas - abandono claro e total do marxismo
capacidade de gerir e administrar o risco da inovação e de elaborar e prever as informações sobre - que os teóricos e práticos do PCI e dos sindicatos a ele praticavam. Aqui fica clara
o andamento dos mercados e da demanda. A flexibilidade [... ] dos segmentos do ciclo produtivo afirmação gramsciana disto ser a "teoria da inércia do proletariado': Poder-se ia ven-
levam a empresa como estrutura produtiva a estender-se sobre amplos territórios e a jogar sempre
cer sob essas bases? Poderiam os subalternos falar?
para além dos conflitos nacionais, mantendo todavia um núcleo de comando que foi definido
"sistema autocratà': o centro-cérebro da nova forma de empresa, onde se realiza essencialmente a Panzieri coloca a proposta provisória do "controle operário': Consciente dos seus
organização e o tratamento da informação e elaboração dos dados que provem de vários terminais. limites afirma que ela "constituiria uma fase de pressão máxima sobre o poder capi-
A centralização da empresa nesta forma de controle conjunto da sua própria flexibilidade se talista [... J. O controle operário deve, então, ser visto como preparação de situações
assemelha a uma espécie de ação de monitoração constante que permite ver em tempos quase
de 'dualismo de poder' em relação à conquista política total" (idem).
reais o que poderá ser o movimento da demanda dos bens de consumo e de instituir, por assim
dizer, uma espécie de ligação elástica entre a "produção feità' e a "produção por fazer': incluindo o
processo de comercialização e a avaliação das estratégias de mercado no mesmo local do projeto do
processo produtivo. (Barcelona, 68)

Tudo isto foi, em grande medida, ignorado pelos reformistas. Prisioneira do mito
tecnológico boa parte da esquerda e do movimento operário sequer colocava a ques-
tão da racionalidade econômica capitalista. O problema não estava só aí, mas, tam-
bém, no controle: "não é a programação técnica, mas o projeto de poder dos produ-
tores associados, que podem assegurar uma relação adequada com os processos tecno-
-econômicos globais" (idem. Grifo nosso).

Com efeito, as ideologias sociológicas e organizativas do capitalismo contemporâneo apresentam


várias fases, do taylorismo ao fordismo até o desenvolvimento das técnicas integrativas, human
engineering, relações humanas, regulação das comunicações, etc., precisamente na tentativa, cada
268 Ver também Romano Alquati, Quaderni Rossi, n° 1, 1962. Alquati trabalhou na constituição do
conceito de operário-massa que segundo ele "era a concretização de três fenômenos paralelos: 1) o
fordismo, isto é, a produção de massa e a revolução do mercado; 2) o taylorismo, ou seja, a organiza-
ção científica do trabalho e a linha de montagem; 3) o keynesianismo, isto é, as políticas capitalistas
de longo alcance do Welfare state". (Albertani)
PANZIERI, A SUBJETIVIDADE
ANTAGONISTA E O PODER OPERÁRIO

o caráter de extrema politicidade das lutas operárias, completamente desvin-


culadas das hermenêuticas das tradições tradeunionísticas e leninista; [... ]
os alvos políticos principais das lutas operárias foram a cultura política e a
cultura industrial dominantes.

Antonio Chiocchi

A experiência de luta do operário-massa italiano suscitou comparação com


as dos operários-massa americanos das três primeiras décadas do século passado.
Esse sujeito histórico era jovem, meridional e desprovido de uma socialização polí-
tica, industrial e urbana. As organizações sindicais e políticas tradicionais da classe
trabalhadora estavam sub sumidas à cultura do capital: a democracia era jurídico-
-parlamentar, as questões salariais e de condição de trabalho eram tributárias do
discurso e das práticas capitalistas e o desenvolvimento, mesmo que não se afirmasse
isto, era capitalista. A identificação desenvolvimento capitalista-desenvolvimento e
aquela entre democracia e vot0269 naturalizavam a exploração e a opressão, isto é,
ocultavam as graves questões as quais os trabalhadores estavam subsumidos.

269 É importante lembrar que apesar da propaganda liberal da decisão política pela vontade do elei-
torado que o voto universal nos Estados Unidos só se tornou texto legal na metade dos anos 60 do sé-
culo passado. A fórmula No taxation without representation foi durante muito tempo dominante. O
voto masculino demorou a ser implementado: Grécia (1822), França e Suíça (1848), Espanha 1891),
Noruega (1897), Império Austro-Hungaro (1897), Suécia (1911), Holanda (1917), Bélgica (1919),
Reino Unido (1918), Itália (1919). O sufrágio feminino foi introduzido na Nova Zelandia (1893), na
Finlândia (1906), na Inglaterra em 1918, na Austria em 1919, nos Estados Unidos em 1920, na Espa-
nha em 1931. no Brasil (1932), na França em 21 de abril de 1944. Nesta os argelinos e muçulmanos só
em 1958 e que apenas em 1962, com a independência das colônias complementou-se o voto univer-
sal. É preciso, contudo, ter presente que o sistema francês oculta uma desigualdade ideológica brutal
sob a forma dos distritos eleitorais: em 1958, os comunistas elegiam um deputado com 388000 votos
e os gaullistas com 18400. Em 2006 os gaullistas (UNR) tinha 207 mandatos com 17,6% dos votos e o
PCF 10 mandatos com 18,9% dos votos. Isto autoriza a Michel Balisnki afirmar: "Na França [o voto]
não é universal", Libération, 27 de julho de 2005, citado por Pollmann (2009, p. 34).
196 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 197

Feitas as diferenças relativas, devem-se reconhecer algumas linhas comuns [com o operário-massa e política; a luta pelo re-saneamento do ambiente de trabalho e contra a nocividade. Todo este edifício,
americano], entre as quais a mais importante parece ser a irrupção na cena da ação política e social incrível e colossal se ergue sobre os ombros do operário-massa. (Chiocchi, 2008. Grifo nosso)]
de figuras lavorativas não especializadas, ideológica e culturalmente distantes, senão estranhas, aos
modelos e circuitos da representação política e social tradicional. A crítica de massa que este sujeito
Contrariamente às leituras deterministas - economicistas e/ou politicistas - pra-
exerceu contra a organização do trabalho, os modos de produção e apropriação da riqueza e dos
bens constitui a base potencial de uma repolitização social dos fundamentos e das perspectivas da ticadas pela direção do PCl, Raniero Panzieri produziu uma leitura não apenas do
democracia italiana. A massa crítica das demandas colocadas na ação deste novo sujeito social Capital, mas também dos Grundrisse. A obra publicada nos Quaderni Rossi traz uma
é prevalentemente liquidada, pelo sistema político-cultural dominante, como demonstração visão nova do processo de trabalho na Itália a partir das novas tecnologias, formas
pertinaz de anti-democratismo. Até fazer ilegitimamente assumir, anos depois e ainda hoje,
de trabalho e culturas que iam sendo progressivamente impostas aos trabalhadores.
o biênio 1968-69 como "antessala do terrorismo': A atualidade da categoria e da existência do
operário-massa impactou contra os anacronismos da democracia italiana, tenazmente indisposta
Ele vai falar agora do "ponto de vista operário" que deveria exprimir:
a uma recolocação em discussão dos seus mecanismos fundantes. De imediato a prodigiosa rapidez
da inovação tecnológica e da reestruturação produtiva dos anos 70 tornou inatual o operário massa autonomia do capital e não coincidia com a imediatidade e a autonomia das lutas operárias;
como categoria e como subjetividade; mas não cancelou a radicalidade das suas instâncias de ofensiva e análises dos ataques contra o modo de produção capitalista e às suas formas históricas de
organização e desenvolvimento.
democracia radical. O fato que o operário-massa se consumiu, sem ter sido exitoso em sedimentar
[Contudo para ele as] lutas operárias, mesmo subtraindo-se à "gestão reformista': não garantiam
linhas irreversíveis de modificação dos arranjos econômicos, políticos e sociais do país, fez soprar
por si mesmas a elaboração e a tradução desta necessária estratégia de ataque. [Para ele] a teoria
fortes ventos de restauração e de conservação nos decênios seguintes. Por este complexo de motivos,
e a práxis da revolução operária no neocapitalismo não eram dadas linearmente pelo acúmulo
o operário massa assinalou um umbral altíssimo, talvez inigualado, na história das lutas operárias e
incrementaI das lutas operárias pelo motivo base que para ele a revolução não dependia mais do
sociais e na história da democracia na Itália. (Chiocchi, 2008. Grifo nosso.)
desenvolvimento das forças produtivas. [... ] o ponto alto do desenvolvimento das forças produtivas
não se virava automaticamente na autonomia dos comportamentos operários contra as estratégias
No pós-guerra começaram as mudanças no mundo do capital e no mundo dos do plano do capital. Pelo contrário, [... ] no neocapitalismo as forças produtivas não apenas eram
trabalhadores passando-se do operário fordista, que foi o grande personagem dos plasmadas [apenas] pelas relações de produção, mas se encontravam diretamente implicadas no
Conselhos do primeiro biennio rosso ao operário-massa. interior destas. Por outro lado, continuava exatamente os novos níveis e a nova qualidade da luta
operária [que) encarnavam a crítica prática, definitiva e irreversível da teoria leniniana e leninista da
organização. (idem. grifo nosso)
A centralidade do salário e a centralidade da democracia na fábrica e na sociedade foram, quase
espontaneamente, o fulcro da sua mobilização e da sua ação. Por sua vez a centralidade do salário e da
democracia substanciaram a reivindicação, naqueles tempos verdadeiramente incríveis, de aumentos Panzieri pensava então a questão da hegemonia vista como autonomia política da
iguais para todos. [... ] Centralidade do salário, em particular, significou minoridade do lucro, cujos classe que não podia ser deduzida da autonomia das lutas localizadas, por mais im-
mecanismos tinham articulado um verdadeiro e real sistema de depredação sócia, minimizante do portantes que estas fossem.
custo do trabalho e maximizante do valor assessor a favor das empresas. (idem, 2008)
A [autonomia das lutas] se opõe ao comando capitalista na fábrica e na sociedade; a [autonomia
o que estava em questão era a totalidade do poder capitalista, soubessem ou não política] tem necessidade de um plano de representação política que se confronte critica e
esses novos trabalhadores. Mais e mais se desenvolvia o modo de produção e o modo estrategicamente com o Estado e o sistema político-institucional dominante. Autonomia operária
não é, para Panzieri, exaltação pura e simples da "necessidade operária"; mas conjugação política
de apropriação, mais e mais a unidade economia-política atingia um ápice anterior- das necessidades operárias. O ''ponto de vista" operário, segundo ele, significa, representa e exprime a
mente despercebido pela esquerda política e sindical. Nada que Marx não tivesse autonomia apenas do plano político; que não é e nem pode ser imediatamente o plano das lutas. Pelo
trabalhado e advertido. Aqui o mito determinista, exemplarmente demonstrado nas contrário, é exatamente o plano das lutas que é diretamente impactado pelas estratégias de recuperação
Teses sobre o conceito de História de Walter Benjamin revela sua profunda decifração e adaptação do ''plano do capital". A questão não é, portanto, redutível à mera "organização da luta";
mas reclama a urgência de uma transcendência.
da esfinge capitalista. Marcadas pela ideologia do progresso, acreditando na fatali-
Entre plano político e plano das lutas se dá um vazio que, sustenta Panzieri, só a teoria política
dade do socialismo essas organizações da classe revelam -se praticantes e teóricos da revolução e da organização e as correspondentes estratégias e práxis podem preencher
da inércia proletária, magistrados da legalidade industrial e política, como demiurgos produtivamente. Daí uma "necessidade de teoria" que é, também, "necessidade de estratégia':
das classes fundamentais da sociedade burguesa, como afirmou Gramsci na segun- Teoria e estratégia não implicáveis diretamente pelos ciclos de luta operária; mas, pelo contrário,
da década do século passado. Só se esqueceram de combinar com o técnico do time próprio dessas exigências. No esquema panzeriano a autonomia operária é uma questão política
que sai exatamente das lutas operárias. Daí uma hermenêutica que não reduz as problemáticas
adversário. das lutas operárias a simples e pura "questão de organização"; mas a correlaciona dialeticamente a
temáticas cruciais de teoria e práxis política. (idem. Grifo nosso)
Em torno das temáticas salariais se incorporaram outros motivos e temas de conflito: a redução da
jornada; a recusa da disciplina empresarial; a crítica dos modelos existentes de representação sindical
198 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 199

Para Panzieri é preciso que a teoria e a práxis da revolução sejam escritas e experi- As reformas que a burguesia, pós derrota do movimento de 68, colocavam com
mentadas não abstratamente, mas clareza o projeto burguês.

[... ] dentro de uma processualidade histórica, é necessário que a classe operária se faça autonomamente Linha única de ação: neutralizar o acesso de massa à política, à democracia e à decisão política.
sujeito político e culturalmente além (e por sobre) a autonomia das lutas. A autonomia operária [... ] Objetivo estratégico único: conservar o aspecto elitista da democracia italiana. É por isto que o
está onde a classe se faz sujeito da revolução e, para tal finalidade, aproxima e percorre um traçado que escândalo operário conserva ainda toda a sua atualidade ardente, além dos muitos e decisivos limites
se exprime e representa política e simbolicamente de fora e contra uma troca capital/trabalho vivo. [... ] que a tinham singrado. Toda a política italiana animou-se surdamente como contra ataque face ao
a exigência de forçar estratégica e politicamente os comportamentos operários, para chegar ao umbral 68 operário. O próprio projeto da luta armada compreendeu entre os seus objetivos primários o
novo e descontínuo da subjetividade. As lutas autônomas da classe operária, então, reclamam uma ajuste de contas com as suas instâncias de democracia radical, de discussão pública e democrática;
recomposição política. [... ] Autonomia operária é, portanto, experiência da classe que se faz sujeito político à sua ideia de organização participada e não delegada. (idem. Grifo nosso )270
da sua liberação e vive a revolução como sua liberação total das cadeias do ''despotismo do capital". E é
neste nível que [... ] o "ponto de vista operário' recompõe nas próprias fronteiras as funções intelectuais Ativa, também, se encontra a resposta oferecida pelos grupos extra-parlamentares.
com as funções do saber; as funções políticas com as funções da liberação; as funções da organização
com as funções da revolução. Esta é a política extrema de Panzieri e o seu discurso anticonvencional
A luta armada representou-se a si mesma como contra tendência de transgressão do 68 operário.
sobre o poder e para o poder. Autonomia política, poder político e libertação, nele se encaixam
Daqui o retorno à teoria e práxis da organização combativa, ao "centralismo democrático"
indissoluvelmente. O poder político é a instância primária, o problema dos problemas, para a autonomia
beligerante, à clandestinização da decisão política. A elite armada colocou-se em uma relação de
operária; assim como a teoria/práxis da libertação é a instância primária e o horizonte incomprimível do
alteridade de comando nos confrontos do 68 e dos movimentos mais significativos que saíram do
poder operário. (idem. Grifos nossos)
seu ventre. De 1973-75 em diante, os mesmos grupos da esquerda revolucionária germinados no e
com o 68 operário colocaram a conservação e a reprodução de si mesmo como contra ataque face
Falamos em uma leitura anti determinista e assim era. Contra as leituras que vêem o 68. A camada política dirigente da esquerda revolucionária, segundo modelos e traços estilísticos
a tecnologia como neutra Panzieri localiza aqui não apenas uma "solução" (sic) eco- culturais diversificados, pensou-se e se investiu como elite revolucionária, avocando a si e para si
nômica, mais do que isso localiza nelas a estratégia antioperária dos capitalistas, a titularidade da decisão política e o direito/dever da elaboração política antagonista. (idem. Grifo
aquilo que Barcelona chamará a adequação entre o governo da economia e o gover- nosso)

no das massas.

Para ele, o "plano" e as "políticas de plano" constituem a resposta capitalista para a crise política do
capital, e, ao mesmo tempo, à autonomia dos comportamentos da classe operária. Subjetividade
e racionalidade do capital vão se redefinindo; motivo a mais para proceder à rearticulação da
subjetividade de classe pelo "poder operário" e a "libertação do capital':
[... ] Para Panzieri a dinâmica do "capital social" indica a flexibilidade da incidência da relação
capitalista capaz não apenas de racionalizar e "complexificar" o ciclo, mas também de desestruturar
os comportamentos operários, recuperando-lhe a parcialidade. A dinâmica do neocapitalismo,
observa, busca constantemente converter a qualidade das lutas operárias em quantidade
econômico-política para estabilizar e compatibilizar. As "políticas de plano" têm, neste sentido, o
objetivo precípuo de obstruir para a classe operária a passagem de comportamento a subjetividade
autônoma, de autonomia a poder pela libertação do capital. Então, de por si mesmo, os aumentos
salariais não valem como desestabilização das relações de produção capitalista; pelo contrário
podem ser finalizados para a sua expansão e racionalização. Tanto mais quanto o dispositivo mais- 270 Bourdieu (l998a, p. 16) nos fala da repercussão do maio de 68 francês e dos efeitos produzidos
valor/planificação, submetendo a autonomia e a reestruturação das tecnologias de trabalho social e por ele sobre boa parte dos intelectuais: "A reação de pânico retrospectivo determinada pela crise
da organização do trabalho, aprofunda e dilata socialmente os processos de extração e apropriação de 68, revolução simbólica que abalou todos os pequenos detentores de capital cultural, criou (com
do mais-valor relativo, com a correspondente intensificação da taxa de exploração do trabalho vivo o reforço - inesperado! da derrocada dos regimes de tipo soviético) as condições favoráveis para a
e da taxa média de lucro. Composição social do capital é aqui crescimento contemporâneo da massa restauração cultural, em cujos termos o 'pensamento Ciências Políticas' substituiu o 'pensamento
e da taxa de mais-valor, com a relativa constituição de margens de lucro e da retomada econômica Mao: O mundo intelectual é hoje o terreno de uma luta visando produzir e impor 'novos intelectuais:
portanto uma nova definição da filosofia e do filósofo, doravante empenhados nos vagos debates de
e política do capitalismo. Composição técnica e orgânica do capital, neste processo, tendem a
uma filosofia política sem tecnicidade, de uma ciência social reduzida a uma politologia de sarau
estabilizar e restaurar sua soberania sobre a composição técnica e política da classe operária. Sair eleitoral e a um comentário descuidado de pesquisas comerciais sem método:' Bourdieu usa aqui
das presas desta tenaz [é] concretizar a recomposição política da classe que, partindo das lutas, se "novos" por ser assim que estas personre se apresentam. Na realidade eles são uma visão requentada e
situa em um plano político de autonomia subjetiva que transcende as formas de expressão e de pasteurizada do pensamento burguês. Ainda no mesmo texto (p. 18) Bourdieu é lapidar. Esses novos
comunicação dos comportamentos conflitivos operários. (Ciocchi) intelectuais são: "polígrafos polimorfos, que expelem sua produção anual entre dois conselhos de
administração, três coquetéis para a imprensa e algumas participações na televisão:' Grifos nossos.
LA NUOVA CLASE OPERAIA E L'AUTUNNO CALD0271

Democracia quer dizer: informação, discussão e debate de todos seus proble-


mas comuns, e decidir a luta, e escolher tempos e métodos de luta apenas de-
pois desta discussão comum. Se a democracia não é direta, não é democracia.
Democracia direta quer dizer que todos nós, direta e responsavelmente nos
interessamos pelos nossos problemas e pelo modo de resolvê-los.

Comitê Unitário de Base da Pirelli - 4 de junho de 1969272

o processo histórico que passou à história com o nome de outono quente é produ-
to de uma rica conjuntura sobredeterminada de lutas, a um só tempo, econômicas e
políticas. A massa meridional que chegava a Turim não tinha a socialização política
e industrial da classe operária tradicional. É necessário ter presente uma localização
histórica: Turim como socializadora em termos urbanos, industriais e políticos foi
o local privilegiado e a FIAT o quartel general das tropas capitalistas. Uma segunda
caracterização importante é o papel da teoria e da prática política construída pela
experiência de uma nova geração e a colocação em questão da neutralidade e do
poder das relações capitalistas de produção e apropriação.

o outono quente encontrou nas lutas operárias para a renovação contratual dos metalmecânicos
de 1962 a sua base incubadora mais organicamente estruturante. Um dos efeitos mais vistosos das
lutas operárias foram os consistentes aumentos salariais arrancados aos empresários, distanciados
dos níveis de produtividade e extrapolados os máximos das declaratórias contratuais. As lutas pelo
salário, rapidamente, tornaram-se uma das principais variáveis da conflitualidade operária: uma
espécie de centro motor da mobilização, da organização e das finalizações operárias. Explodiram

271 Para uma cronologia do período 1977-1980 ver "1977-1980: dall'esplosione del movimento deI
'77 alla Marcia dei 40.000': www3.iperbole.bologna.it/asmsmp/77-80.htm Acesso em 13-6-2000.
Para uma leitura crítica do papel das revistas neste período ver Dalmasso, 2004.
272 "A evocação do modelo da democracia direta foi um tramite para a conjugação de formas de
representação e de poder diretamente em mãos dos operários. A perspectiva era politicamente clara:
'poder decisional aos operários'. A forma revelada da democracia direta não podia ser senão uma:
poder operário. A representação política democrática conferia legitimidade e legitimação a este po-
der. Ao contrário, deslegitimava o poder patronal e toda forma de poder delegado. Em particular
o poder patronal era considerado privado de fundação democrática, ancorado unicamente em si
mesmo e sobre sua própria auto-legitimação:' (Chiocchi, 2008)
202 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 203

aqui alguma das principais regras, escritas e não escritas, da democracia italiana: ~ ~ubmis~ão do Vietnã274, em especial a ofensiva do Tet, a resistência interna nos EUA contra essa
férrea do trabalho assalariado ao capital e a prioridade absoluta do lucro face ao salano. CapItal guerra275 , a epopeia e morte de Ernesto "Che" Guevara, a invasão da Tchecoslováquia
e lucro como "variáveis independentes" do sistema econômico e trave mestra do madeiramento
pelas tropas assassinas russas, o maio francês - e suas lutas operárias e estudantis - os
da sociedade italiana: eis uma das determinações reguladoras do "milagre econômico" italiano. A
dura disciplina da fábrica e a vigorosa compressão salarial foram o duro preço que a classe operária assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, a reacionaríssima encíclica
pagou para o relançamento da economia italiana no pós-guerr~. Subordina~ão do salário ao ~ucro e Humanre Vitre que condenava o uso de anticoncepcionais, o massacre na cidade
subsunção do trabalho vivo ao capital financiaram o desenvolVImento do CIclo da acumul~çao [... ]. do México - cuja população só mais tarde tomou conhecimento, dada a censura
As lutas salariais, principiadas em 1962, em torno da autonomia do salário buscaram deSIgnar um do PRI. Mudavam também o cinema (em especial o italiano, mas não só), a música
sistema de pesos e contrapesos sob o signo de uma maior equidade social. (Chiocchi, 2008)
(Beatles, p. ex.) e os comportamentos individuais (o movimento hippie). A militância
dos Direitos Civis nos EUA (movimento que levou ao assassinato, pelos fascistoides
A Europa - e muitos outros países - viviam uma grande agitação operária para além
americanos, de Luther King) , a agitação negra dos Black Panthers 276 ; ocorria também
e acima das diretivas dos sindicatos tornados burocratas da produção. Na década de
60 ocorreram grandes transformações no cenário internacional. A Argélia realiza sua ra-se, mas não se admite. O poder evita as más palavras. No fim de 1996, quando o Supremo Tribunal
de Israel autorizou a tortura contra os prisioneiros palestinos, chamou-a pressão física moderada. Na
independência em 62 depois de uma brutal resistência dos colonialistas franceses e
América Lina, as torturas são chamadas coações ilegais:' (Galeano, 2002, p. 93)
de seu famigerado exército secret0 273 , a famosa revolução cultural chinesa, a guerra 274 "[... ] a nação mais poderosa do mundo - contra uma nação de camponeses [... ] heróicos - amarrada
doze anos no pântano, para depois acabar derrotada e retirar os caixões envoltos na bandeira das estrelas
273 A tortura é um dos mais velhos meios para "obter" (sic) o consenso ou pelo menos o silencia- e tiras. [... ] A agressão americana foi, na realidade, privada de sentido, como revelaram depois os 'Vietnam
mento do antagonista. Em 1376 Frei Nicolau Eymerich produz o Directo~iu~ Inquisitorum (~anu~l Papers: O mesmo, mutatis mutandis, ocorre hoje no Iraque:' (Modugno, in Modugno e Giacché 2007). Ver
do Inquisidor) que junto com o Malleus Maleficarum (Martelo das FetIACeI~as) - 1484 - ~os mqm- Daniel Ellsberg, A memory ofVietnam and the Pentagon Press, Penguin, 1969.
sidores Henrich Kramer e James Spranger e autorizado pelo Papa InocenclO VIII (atraves de Bula 275 Sobre o tratamento dado aos dissidentes internos em relação à guerra é importante ver Watkins,
datada de 9 de dezembro daquele ano) constituem o vade mecum da tortura eclesial. ~ais tarde, em 1971. Cf. o surgimento do movimento dos estudantes para uma sociedade democrática. (SDSS, 1962)
1541, surgiu o Torturre Gallicre Ordinarire. Pietro Verri (1804) escreve um br~~e opusculo cond:- 276 Segundo Gambino (1996) o Black Phanters Party (BPP) fundado por Huey P. Newton e Bobby
nando a tortura: Osservazioni sulla tortura. A propósito dos poderes da InqulSlção e da castraçao Seale em 1966 fazem sua primeira aparição política de uma forma bem americana: protestavam con-
do pensamento filosófico e científico são exemplares os processos contra Galileo e Giordano Bruno. tra a restrição ao seu direito constitucional de portar armas. Eram militantes dos guetos americanos.
Sobre isso ver Cavani (1968) e Montaldo (1973). Diferenciavam-se dos grupos religiosos como a Nação do Islã. Lutavam contra a violenta vigilância
As obras de Levi (1968,1997 e 1999) mostram o drama dos judeus sob o domínio nazi onde a tortura da polícia ganhando assim a simpatia dos habitantes dos guetos. No final dos anos sessenta as cha-
é o cotidiano desses prisioneiros. Ver - em capítulo anterior deste trabalho - a questão da elim~nação madas forças da ordem - em especial o FBI - recorreram a "provocações e a todos os meios legais
pretendida da humanidade dos judeus pela linguagem. Frantz Fano~ (1968 e 197~), o,s escntos de e ilegais" contra eles. Os mass media participaram dessa ação. O resultado foram mortes, anos de
Sartre e o antológico de Pontecorvo (1965). A tortura gera uma relaçao entre os dOIS pol?s: tortura- prisão e exílio para seus militantes. Não houve ligações maiores entre eles e a velha esquerda ame-
dores e torturados são profundamente impactados. Sobre isso ver Fanon (1970). BenedettI em alguns ricana. Sua formação política passava pelo niilistas russos, por algumas obras de Lenin, tentativas
contos nos mostra o impacto dessas relações. de compreender obras de Marx, Mao, discursos de Malcolm X, dos últimos escritos de C. Wright
Sobre a questão da tortura sobre e contra os militantes argelinos a o~ra clássica é a de Alleg (~959 e Mills e textos da nova esquerda. Tampouco tiveram um trabalho comum com os jovens do SNCC
2001). ''A 'questão' era o nome que os paraquedistas franceses davam a tortura [: ..}- E~tre o~ metodos (jovens estudantes afro-americanos). Estes estavam mais ligados à problemática internacional (Viet-
que eles utilizaram também estavam o lançamento de helicópt~ro~ ~o mar de plslOn.elros v~vos com 5 nã, África do Sul, mas não com os países do socialismo realmente inexistente). Destes últimos o BPP
pés cimentados) e o desaparecimento de pessoas. O mesm~, fOI utIlI~ado ano~ d.epOls no -yle.tna e na procurou sempre manter distância.
maior parte da América Latinà' (Alleg, 2004). Ainda mais: Um ofiCIal colomalIsta do exercIto fran- ''A transformação do gueto em um lugar de auto governo, a implantação de uma instrução aberta a
cês revelou no Le Monde que todas as mulheres capturadas e aprisionadas pelos militares franceses, todos, a conquista de um espaço político de debate sobre as grandes questões sociais pareceram por
em uma escala de 90% foram sistematicamente violadas. [... ] Na tradição argelina e árabe mais em um breve espaço de tempo estar ao alcance do BPP': afirma Paolo Bertella Farnetti, '''Denunciare,
geral pensa-se que uma mulher violada está humilhada e suja. Não ap~nas ela, com~ pessoa in~ividu­ disgregare, screditare'. rFBI contre le Pantere nere", citado por Gambino. As ações estatais combina-
a!, mas pensa-se que toda a família está humilhada:' (Alleg, 2004. Gnfo nosso) Dal que e~as ~Iveram das com a máfia e o encharcamento de drogas nos guetos, depois de muitos assassinatos, incêndios
que sofrer em silêncio essa violência. Tortura simbólica além de física. Só para. ter uma IdeI~ desse de sedes dos movimentos, etc., acabaram por destruir o partido. Hoje muitos daqueles militantes,
genocídio citemos uma cifra monstruosa: 3026 argelinos desapareceram em dOIS meses e melO ape- que sobreviveram, estão destruídos pela droga e pela repressão, outros desistiram da luta e alguns
nas em Argel! Por fim, mas não menos impo~tant~: "O ~enera~ P~ul Aussar~s~es,.o corone~ Bernard poucos continuam militantes ativos. Um deles Mumia Abu-Jamal continuava no corredor da morte
e outros genocidas franceses da guerra colomal sauam a luz publIca para relvmdICar os metodos da por mais de três décadas. Em 26 de abril de 2011 quatro juízes federais consideraram o julgamento
tortura na Argélia. A justiça burguesa abriu processos judiciais, não pelo que fizeram, mas por ~polo­ como inconstitucional e mandaram rever o processo. ''A perseguição do Black Panther Party ins-
gia verbal da violência! Seu crime não é, aos olho~ dAa burgues~a ~ra~~esa, ter torturado e ~ss~ssmado creve-se no complexo de ações repressivas por parte do Estado nos confrontos a todo o movimento
a centenas de milhares de argelinos ... mas por dIze-lo em publIco. (Kohan e Herrera, m Idem) A de protesto nos Estados Unidos, branco e negro, pacifista e violento, radical e reacionário. [... ] Os
tortura segue funcionando. McCoy (2006) e Rech (2006), entre outros, falam sobre ~ uso da tortura métodos clandestinos e ilegais que foram adotados para esmagar a oposição encontraram a sua má-
pelos Estados Unidos. Lembremos os casos exemplares de Guantanamo e Abu GhraI~. . xima expressão no programa secreto de espionagem, Cointelpro, organizado e dirigido pessoalmente
"Por volta do ano de 1252, o papa Inocêncio IV autorizou o suplício contra os suspeitos de hereSIa. pelo diretor do FBI J. Edgard Hoover. Sobre a ação do Cointelpro uma Comissão de Investigação
A Inquisição desenvolveu a produção da dor, que tecnologi~ .do s~culo ,v~nte elevou a níveis de pro- do Senado, em 1976, assim se pronunciou: 'Muitas das técnicas usadas seriam intoleráveis em uma
dução industrial. A Anistia Internacional documentou a pratICa sIstematIc~ de tortu~a com.choques sociedade livre": (Gambino, idem) O ódio que se criou sobre o BPP está vigente até hoje:' Sobre
elétricos em cinqüenta países. No século treze, o papa falava sem papas na lmgua. HOJe em dIa, tortu-
204 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 205

na Europa o fortalecimento das teses dos conselhos operários (Pannekoek, Gorter, sucessivamente vieram qualificando-se os conteúdos desta luta operária; isto é buscávamos dar-
lhe um conteúdo qualificante de poder280 •
Korsch, Ruhle e Matick), das teses e polêmicas Bordiga-Gramsci e, também, das
guerrilhas palestinas de George Habbasch na resistência contra Israel depois da
Qual era o cenário da luta? Como era Turim e qual a relação da FIAT com a cidade
guerra de 1967. Ao mesmo tempo ocorria a crise do petróleo pós-guerra do Yon
e a classe operária? Era
Kippur, saturação dos mercados ocidentais, entre outros movimentos.
As lutas inglesas mostravam que 95% das greves foram espontâneas, a chamada ma- a cidade italiana em que os processos de transformação se manifestam com os contornos mais claros
latia inglesa. "Entre setembro e outubro de 1969 as greves se estenderam investindo as e mesmo com um sinal antecipador das tendências mais gerais de desenvolvimento do nosso país
indústrias automobilísticas, as siderúrgicas, as mineiras, os serviços públicos': (idem )277 [... ] [lugar onde] de modo mais visível, emblemático e mesmo traumático a característica prevalente
O mesmo ocorreu na Alemanha: as indústrias de mineração (Saar, Ruhr), de produção do chamado "milagre econômico" italiano, isto é, de um desenvolvimento econômico e industrial
que atuou fora de qualquer regra programática que lhe atuasse os aspectos mais negativos [... ] esta
de aço (Westfalia, Baviera), estaleiros de Kiel, setor carbo-siderúrgico da Renania-Wes-
cidade "laboratório" e "de fronteirà' tivesse constituído 'um ponto de observação privilegiado para
tfalia, na Mannesman de Dortmund, etc. Na França formatava-se nova forma de greve a reconstrução das diretrizes principais da história econômica e social da Itália contemporâneà. 281
onde se paralisava toda a fábrica pela greve em setores essenciais da produção.
O pano de fundo desta profunda alteração da correlação de forças passou não Vai se constituindo uma nova classe operária a partir da chegada dos meridionais.
apenas por um surto inflacionário, déficits das balanças, comercial e de pagamen- Vários autores trabalham as condições de sua inserção na cidade. Ao examinar a Fiat
to, mas também pelas ações de um centro-esquerda a nível nacional. Existiram as condições de vida e de trabalho dos operários da Fiat e a repressão antisindical
grandes mobilizações populares e os setores ditos dinâmicos do capital perce- nela praticada282 , ao descrever a política interna à fábrica e as ambições de controle
beram com clareza a necessidade de alterações no plano da produção e da po- do território pela própria empresa, as relações sindicais e a perspectiva sociaF83, as
lítica, as lutas do movimento estudantil278 contra o autoritarismo universitário, variações do emprego, da renda e dos consumos ocorridos a partir dos últimos anos
dos recém chegados migrantes do sul por emprego, moradia, qualificação escolar, na cidade, as metas de emigração, os trabalhos massacrantes284, as repressões, como
contra o sistema de pensões (logo tornado uma das questões centrais) e, last but a da piazza Statuto (julho de 1962), as formas de integração e as polêmicas com os
not least, as dificuldades nas organizações da classe operária de entender o que partidos e sindicatos e o modo com que isso é tratado pela mídia285 esses autores,
ocorria279 . Lucio Magri, em um seminário interno do PCI, em Rimini, 1973, ilus- ainda que não o designem como tal, estudam o novo modo de vida operário.
tra a situação: Poderíamos seguir mencionando o modo como esses estudos foram feitos, como
os migrantes meridionais se integraram à cidade, suas dificuldades de adaptação, as
Buscamos fazer das lutas operárias o eixo de uma nova ação de massa afirmando que o capitalismo,
exatamente porque estava se desenvolvendo, devia ser atacado nos seus pontos nevrálgicos,
formas de rejeição que sofreram no interior da velha classe operária. Ter ou não a
que a tendência teria sido uma cada vez maior concentração de realidade operária, e que isto vivência das lutas dos antigos militantes, o fato de recusarem uma disciplina con-
deveria ser o eixo fundamental da política de massas do partido. Esta temática [... ] atacada suetudinária com o PCI e as estruturas sindicais longamente separadas da classe.
como obreirista, foi ao centro da conferência operária de 1960-61 do Pcr. Contemporânea e Diferenças históricas em relação àqueles que tinham a experiência das lutas contra
isso ver o extremamente documentado Farnetti, 2006. Sobre a percepção da proposta de integração o fascismo. Também a imaginada possibilidade de negar - ainda que individual-
pelo movimento negro é elucidativa a fala de Julius Lester, em Vestido de liberdade: "Não odeio os
brancos. Não é isto. Apenas que algumas vezes me enraiveço. Falam de integrar e falam sempre que 280 Citado por Dalmasso, 1999.
nós devemos nos integrar com eles. Não pensam nunca que talvez eles deveriam se integrar conosco. 281 Aldo Agosti (org), I muscoli della storia. Militanti e organizzazioni operaia a Torino 1945-1955,
[... ] Eu não quero me integrar, quero apenas que nos deixem paz:'(Torneri, 2008, p. 3. Grifo nosso) Milão, Franco Angeli, 1987. Citado em Di Giacomo, 2009, p. 2.
277 Giachetti mostra o quadro internacional da luta de classe no período 1968-1972: Em 1968 282 Giovanni Carocci, "Inchiesta alla Fiat': in "Nuovi Argomenti': n. 31-32,1958.
(França), 1969 (Itália, Irlanda, Canadá, 1970 (Canadá, Austrália, Bélgica, Nova Zelândia, Dinamarca, 283 Adalberto Minucci e Sandro Vertone, n grattacielo nel deserto, a, 1960.
Noruega, Holanda), 1971 (Grã-Bretanha, Austrália, Japão, Finlândia, Alemanha ocidental, Suécia, 284 R. Cominotti e Sergio Garavini, Ocupazione, redditi e cosumi in um grande centro industrial,
Suíça) e 1972 (Grã-Bretanha, Japão). Cf. M. Shalev, "Bugie, buggie sfacciate e statistiche': Analisi Milano, 1962
delle tendenze dei conflitti industrial, in Conflitti in Europa (org. por C. Crouch e A. Pizzorno), 285 Dario Lanzardo, La rivolta di Piazza Statuto, Milão, 1962. Veja-se o manifesto "Agli operai della
Etas libri, Milano, 1977, p. 325. Lutas de densidade e importância diferenciadas, certamente. Mas a FIAT" publicado pelos Quaderni Rossi. (materiali resistenti, 2003). Ver a posição da CGIL sobre
tendência é clara. esses acontecimentos em n Giorno de 9 de julho de 1962 que se refere à "presença de provocadores
278 "Nasce assim o slogan: 'A Universidade é o nosso Vietnam'; os guerrilheiros vietnamitas com- que atuam no plano do banditismo de modo totalmente estranho e mesmo rechaçados pela grande
batem contra o imperialismo, os estudantes fazem a sua revolução contra o poder e o autoritarismo massa dos trabalhadores em greve". Foram além e afirmaram que esses indivíduos chegaram às ruas
acadêmicos:' In Alessando Silj, Malpaese, Criminalità, corruzione e politica nell'ltalia della prima "em luxuosos automóveis com placa de Cuneo, Torino Ferrara. [... ] E foram estes 200 ou 300 rapazes
Republica 1943-1994, Donzelli editore, a, 1994, p. 92, citado por Ezechiele, 2009. a lançar-se, por volta das 22,30, ao assalto contra a polícia com a fúria cega dos Kamikazes': Grifo
279 Sobre todo o período anterior ao autunno caldo veja-se Dalmasso, 1999. nosso. Um velho método stalinista ainda em uso no momento atual.
206
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 207

mente - toda 'd h 'b'


FIAT . d' ~ VI a, a ItOS e cultura de regiões agrárias, a relação deles com a Essa assembleia realizada em 5 de julho redige um manifesto onde se denuncia os
(l ba In ustna par ,ex~ellence de Turim, os ritmos brutais a que devem se adaptar choques entre policiais e manifestantes realizados no Corso Traiano - 70 policiais
. em remo- ~o~ do classlCo texto gramsciano sobre Americanismo e Fordismo) tudo feridos e 160 manifestantes presos - e posiciona-se contra a ação dos sindicatos:
~~~ s~ cOnStIt~Ir como .elemento explicativo da recusa/incapacidade sindical!~arti-
adna e endten er o conjunto de transformações do mundo do capital e em especial A jornada de 3 de julho não é um episódio isolado ou uma explosão incontrolada de revolta.
as o mun o d os trabalhador . A • ' ,
Vem após cinquenta dias de luta que congregou um enorme número de operários, bloqueou
tYb . . . . es. o puro terreno economlCo-corporativ0286 • "Em 1976
completamente o ciclo produtivo, assinalou o ponto mais alto de autonomia política e organizativa
a a nca da FIat Tonno Mlrafiori adotou a primeiro sistema autômato para [fabricar]
até agora atingido pelas lutas operárias, destruída toda capacidade de controle sindical.
carros e suas partes mecânicas junto. [... ] Em 1978 os 't d d d-
I · . me o os e pro uçao foram Expulsos totalmente da luta operária, os sindicatos tentaram desviá-la da fábrica para o exterior, e
revo uClOnanzados com a introdução do Robogate o . ' . . reconquistar-lhe o controle, proclamando uma greve geral de 24 horas [... ]. É hora de despedaçar
reuni- d [ ] . , . ' pnmelro SIstema mundIal de
.. ao. o ... SIstema nas fabncas da Fiat Rivalta e Caassinà:(Chiosi 2002) Q I esta conjura de silêncio, de sair do isolamento, de comunicar a todos, com a força dos fatos a
onglnalIdade desse processo? ' ua a experiência da Mirafiori. (Assembleia operária di Torino, 1969)

qual foi o país da Europa no qual I T E propõem: "recusa da organização capitalista do trabalho, recusa do salário li-
digo: da Fiat de Turim, da Alfa R~~:od~~~~ã:'_oS ~perários de uma grande cidade .d? ~orte - gado às exigências do patrão, recusa da exploração dentro e fora da fábrica:' (idem)
de um desenvolvimento dos investimentos que se co ~~aran: em sua pla~aforma a reIvIndICação
específic S 1" rea lze nao em sua cIdade, e em sua fábrica Este claro programa anticapitalista obviamente exigiria uma revolução para ser
. a, ~as no u, e que dIscutam as características específicas e qualificadas a at 'b . realizada. Haviam medidas mais imediatas: "100 liras de aumento sobre o salário
novos InvestImentos, seus reflexos sobre fi t d n UIr a esses
E onde ocorre que a ação reivindicar a ~ er a e emprego, as formas de um controle coletivo? base igual para todos, [... ] reduções reais de tempo de trabalho, [... ] equiparação
conflitiva com o patrão? Onde tudo i::~ ~eai~~envolva em torno dessas reivindicações, em relação normativa imediata e completa entre operários e empregados" (idem). Tratava-se
e de decisão de massa? (Dalmasso, Idem) a que com esforço - se tornou matéria de discussão
de uma agenda complexa marcada pelo igualitarism0 291 e pela ideia de tempo livre
Do 68/69 as novas formas de conflito mud I-
das lutas dos primeiros anos sessenta era u : ~~:~:ç~es de força ~a fábrica: ~e a espo~taneidade estudantes que buscou "realizar uma contínua mobilização no interior da fábrica, vista como processo
radical combatividade operária, da tomada d . ~ luta defensIva, a~ora e expressa0 da mais
A
de subjetivação contínuà' e de permanente colocação em crise do capitalismo. Já o Potere Operaio vê
desenfreada. Escolhe-se a luta contínua "e c~nsCle_nCla ~ue o tr~,balho nao torna livre e da miséria a classe operária como "sujeito central e hegemônico da luta revolucionárià'. Sua perspectiva aponta
todos os setores da produção), em lug~rad~~:t:a:~~~ :tIcula~a (uma.vietna~iz~ção d~ luta em
para "a reivindicação política do aumento salarial, sobre a análise da fábrica que se torna sociedade e a
sociedade que se torna fábricà: 11 Manifesto é, inicialmente, uma tendência de militantes da esquerda
~~::e:r!~ :l~~i~~~r~~~:::a:~~~::f:~ contr~tUalCO ~~~:t~ ~~~::'::~i~;~~%:::~::~~ do PCI, entre eles Rossanda, Magri, Pintor. Busca trabalhar "o momento de luta que nasce de uma velha
subjetividade, a classe operária, inserida em novos contextos sociais de lutà: Tratava-se de uma "ten-
do próprio trabalho. [... 1 10 operano, com a Insubordinação difusão, com a recusa
tativa de resposta, sobretudo ideológica e cultural': Acabam por ser expulsos do PCI. Já a Avanguardia
O encontro marcado da asse bl' d ' Operaia, que reuniu os operários considerados mais combativos, estudantes, alguns técnicos e funcio-
meIa autonoma e operarios-estudantes 287 em julho '69288 d t
A

.
uma ruptura sobre o ponto estratégico da luta: "a uma e ,. ' . ' e ~rmIna nários evitou um confronto "excessivamente aberto com o sindicato" propunha-se com "uma posição
capazes de desarticular o plano do capital d ' r strategla q~e. quer IdentIficar objetivos de centralidade na luta de classe operária sem querer desfazer a relação com os estudantes". (11 '77:
e os torrienses contra õem um . e e lmp lcar a recusa operana do trabalho, os toscanos l'anomalia italiana). Sobre isso ver Sbardella (1980). Bologna (1998) refere-se à revista Clase Operaria
consciência anta onist: o erári proJ~to que aponta, ~sse~cialmente sobre o crescimento da como sendo "a única publicação que, naquele período de violenta reestruturação e repressão, reportasse
['anomalia italian~290) p a atraves de uma moblhzaçao contínua e qualificada"289. (Il '77: dados sobre a situação nas fábricas:' Ainda segundo ele os Quaderni Piacentini "estavam fascinados
por Frankfurt e por Berlim, por Krahl e por Dutscke, e ignoraram, como todo o movimento italiano,
286 ~ pa~avra de ordem operária era: "Che cosa vo liamo? ~ l' , " , a importante contribuição [... ] na Alemanha pelas lutas das faculdades técnico-científicas, a crítica da
va de maIS salário e mais democrac' " g . og lamo tutto ... e sublto! na perspectI- ciência e da tecnologia que desencadearam o chamado movimento dos engenheiros e a recusa da pro-
287 "O la. fissão:' Com toda essa diversidade foram essas revistas que colocaram em debate temas como a ruptura
primeiro encontro de mas t ' .
cidência de dois movimentos imp;~:~:seeoPderanos e ~studlantes foi em março de 1968, com a coin- sino-soviética, a chamada revolução cultural proletária, as guerrilhas latinoamericanas, a luta do povo
, d' ., , as respectIvas utas' o momento d . d do Vietnam, os Black Panther, a nova esquerda americana que ou nunca antes fora feita pelos órgãos
JU IClana contra o movimento estudantil (13 mandatos d ,_. a maiS ura repressão
sobre as aposentadorias:' (Rieser, 1998) e pnsao) e a greve da CGIL contra o acordo oficiais do PCI ou quando apresentadas nunca com o rigor e a força que mereceriam. O enorme debate

sição varia desde "um panfleto da VIL contra ot,


288 Os sindicatos tradicionais reagem contra a rese d
fi l~~ ~s ,~st~dantes nas lutas operárias. Sua po-
'fedentina de grupelhos extremistas', à tentativas de !aior ~bPa , a desconfiança da ~G IL que sente a
ideológico entre as revistas externas ao PCI pode ser visto com mais atenção em Dalmasso, 2004.
291 Para que se tenha ideia da força da temática do igualitarismo basta dizer que ele representava
um ponto decisivo na luta da sociedade italiana, não era uma ideologia esquerdizante. Rieser (1998)
um panfleto unitário muito pesado faz um anfl t " ertura da FIM que, depOIS de ter assinado comenta: "Recordo, por exemplo, dos guardas diante do Palazzo Campana: 'tendes, de fato, razão
do maio francês reforça o impulso ~studantK em ;e?/~~P;:~ mais fav~r~v~~ ao~ estudantes. A explosão nos vossos discursos sobre o autoritarismo: mas o sistema autoritário em que estais inseridos são
289 Rossana Rossanda, Thrda d'oro citado e Il '77 'I'
Ç
utal~ o~er~nas. (Rleser, 1998) Grifo nosso. rosas e flores em confronto com o nosso; a crítica do autoritarismo aplica-se à nossa situação muito
290 L' , , m . anoma la ItalIana mais que à vossa. ", Ainda Rieser; ''À análise crítica do igualitarismo se ligava estreitamente a análise
ImItar-nos-emos aqui a indicar os ru .
detalhar sua intervenção dados os limitesgd pos que atuaram nesse processo sem, contudo, poder dos mecanismos sociais e ideológicos pelos quais a autoridade se mantinha, se estabilizava e se justi-
fi . o nosso texto' Lotta Continu P t O ' 1 ficava. Neste quadro se colocava a denúncia e a crítica das desigualdades: a análise dos mecanismos
esto, Vmone dei Comunisti e Avanguard' O . L' , a, o ere peralO, I Mani-
la perala. otta ContInua era constituída por operários e de seleção de classe na escola se ligava assim à análise das desigualdades no sistema de fábrica vistas
208 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 209

"para poder viver a própria vida, para poder fazer política, etc:' (Ezechiel, 2009). Nos controle, conhecimento e poder nos locais de trabalho, tornando transparente o nexo entre fábrica e
dias 26 e 27 realizou-se no Palasport de Turim sociedade. (Meriggi, 2008, Grifo nosso)292

[... ] uma assembleia nacional [com] as vanguardas operárias de toda a Itália, um momento de Toda a movimentação operária encontrava nas burocracias sindicais ("i sindacati
protagonismo da classe operária que se pode assistir apenas em um momento de forte crescimento pompieri")293 e partidárias (PCI) uma incompreensão das profundas transformações
da combatividade operária, como foi precisamente o outono quente. (idem) que atravessavam o mundo do capital294 e das formas que o processo produtiv0295
implementava. Não percebiam os novos agentes do processo operário: desconfiavam
A importância dessas lutas pode ser documentada pela fala dos capitalistas. Em 14 dos terroni, dos recém chegados do Sul e sem tradição fabril: os desqualificados que
de setembro de 1969 La Stampa publica um edital (EEuropa''salvaggia'j afirmando buscavam a miragem do bem estar negando o processo de vida pobre e empobrece-
que a "luta dos operários da FIAT nos colocaram diante dos olhos [... ] as greves sel- dor das estruturas agrárias do Sul.
vagens" (Giachetti). A radicalidade era tal que Na prática era uma nova Questão Meridional. O que os novos personagens encontra-
ram? Quais suas reivindicações? Todas subversivas na ótica capitalista: aumento igual
Vários editorialistas dos jornais nacionais pediam, com mais ou menos insistência, o reforço da
para todos, passagem de categoria para todos, redução consistente no horário de tra-
presença sindical na fábrica de modo que o patronato pudesse dispor de um interlocutor sério
e forte para a contratação. Indro Montanelli intitulava um editorial no "Corrieri della Sera" de balho, paridade entre operários e funcionários, alugueis mais baratos, casas populares,
26 de setembro I timori dell'autunno caldo, convidando o patronato a ajudar o sindicato, fazendo- livros escolares, transportes públicos gratuitos, entre outros. Várias foram as conquistas.
lhe concessões na renovação dos contratos, para evitar o perigo de uma vantagem de hegemonia no Entre elas convém ressaltar o direito às 150 horas pagas pelo patronato para a formação
interior das filas operárias ao extremismo revolucionário. (idem. O 2°. Grifo é nosso) cultural e política dos operários. Não era pequeno o desafio. Elas deveriam

A luta contou com a firme presença estudantil. Este movimento retoma, no outo- 292 O direito permanente ao estudo uma vez afirmado a nível de massa implica de fato uma pro-
funda revolução na concepção atual que separa o estudo do trabalho (ainda que temporalmente na
no-inverno, ao mesmo tempo em que se travava a luta operária na Lancia vida de um homem) e que reconduz o estudo em função de reconhecimentos formais tendentes à
reprodução da estratificação social, cujo critério fundamental permanece a distinção classista entre
sobre terrenos diferentes daquele originário das faculdades humanísticas e de arquitetura: primeiro trabalho manual e trabalho intelectual. "O direito ao estudo como direito de massa e permanen-
a onda imponente da luta dos estudantes das escolas médias (em particular dos institutos técnicos te impõe, pelo contrário, uma escola 'aberta', uma escola radicalmente transformada em contínua
e profissionais), depois o movimento estudantil de medicina com a ocupação do maior hospital de evolução, com uma gestão social por parte de todos os seus operadores que são em conjunto e dia-
Turim. Ambos os movimentos oferecem impulsos potencialmente ricos para a relação com as lutas de leticamente aqueles que aí ensinam e aqueles que aí aprendem. Uma escola que deverá estar aberta
fábrica, que, contudo, tiveram uma realização limitada. [... ]a que por vezes primitiva, crítica da ciência seja para quem pretende conseguir diplomas, cuja função deveria ser principalmente a de atestar o
conhecimento de algumas técnicas (a contabilidade, o cálculo matemático, o desenho, a cirurgia e
e da tecnologia). O movimento da medicina vê como um dos seus temas centrais a nocividade na fábrica e
assim por diante), seja aos que pretendem freqüentá-la independentemente do interesse específico
a prevenção, e se conecta sobre este terreno à temática já desenvolvida na CGIL turinesa (inserida em uma de aprendizagem de técnicas particulares e à obtenção de um título formal; aberta, em outros termos,
mais geral, aindaque por vezes primitiva, crítica da ciência e da tecnologia. (Rieser, 1998. Grifo nosso) a todos aqueles que tentam elaborar a própria experiência prática em termos de reflexão histórica,
teórica, científica, dedicando para este fim uma parte do tempo de trabalho diário ou anual, sem por
o projeto era subversivo do ponto de vista do capital, mas o era também para as isto estar interessado em um diploma de tecnologia, de sociologia, de história ou de filosofia política':
(Lettieri, 1973)
formas organizativas institucionalizadas das classes trabalhadoras com sua inércia e 293 Em documento do CUB da Pirelli (Bicoca), IBM e Siet -Siemens se afirma: "Do ponto de vista da
rotina. Implicava uma brutal alteração da relação de forças, não apenas na fábrica, representatividade operária é característico desta fase o slogan 'somos todos delegados: que significa
mas na sociedade. "Em 1976 a fábrica da Fiat Torino Mirafiori adotou a primeiro a recusa de qualquer mediação sindical e a imposição ao patronato de uma relação direta com as
lutas operárias." (Ezechiele, 2009)
sistema autômato para [fabricar] carros e suas partes mecânicas junto. [... ] Em 1978 "[ ... ] os sindicatos são 'profissionais da contratação' que escolheram 'em conjunto com os chamados
os métodos de produção foram revolucionarizados com a introdução do Robogate, partidos dos trabalhadores o caminho das reformas, isto é, o caminho do acordo global e definitivo
o primeiro sistema mundial de reunião do [... ] sistema nas fábricas da Fiat Rivalta e com os patrões": Documento citado por Alessando Silj, Mai piu senza fucile, Vallechi, Firenze, 1977,
pp. 82-84. In Ezechiele, 2009.
Cassinà: (Chiosi, 2002) 294 A formulação clássica na literatura fala em "mundo do trabalho". Isto acaba por identificar tra-
balho e capital, facilitando os discursos e as práticas reformistas. Usaremos a fórmula "mundo dos
Duas vezes se realizou um assalto ao céu, nos anos Vinte e nos anos Setenta, no curso do qual os trabalhadores" para indicarmos a práxis das classes subalternas.
trabalhadores associaram lutas pelo salário e pela satisfação das necessidades cotidianas e lutas pelo 295 "Toda a análise crítica dos processos reprodutivos implica a distinção entre o plano das formas
aparentes e o da lógica constitutiva do modo de produção: permanece sendo esta última (para quem
acima de tudo (talvez com uma acentuação unilateral) como 'diferenças criadas artificialmente para continua a referir a valorização do capital à sua relação antagonista com o trabalho vivo), aquelas que
dividir', e mesmo aqui se determinava uma saldatura entre consciência ( 'sentido comum ') operária mudam em continuação, registrando no tempo também profundas modificações seja na organização
e estudantil:' dos processos, seja no que concerne a constituição dos sujeitos:' (Burgio e Grassi, 2002)
Revolução passiva e modo de vida 211
210 Edmundo Fernandes Dias

Superar a parcialização das tarefas imposta pelo taylorismo. A divisão entre trabalho intelectual de perder as inscrições ao sindicato, as carteiras (tessere) do partido. ("Salute e lavoro", in Basaglia,
e trabalho manual que dá lugar às hierarquias. Para por a nu e virar pelo avesso a presunção de 2000. Grifo nosso)
objetividade de uma técnica escolhida e utilizada intencionalmente para dividir os trabalhadores e
expropriar-lhe o saber (Farinelli) As lutas operárias do período colocaram em questão as formas organizativas da
classe. Dalmasso (1999) salienta que
A tecnologia revela assim seu caráter de classe. A fala gramsciana segundo a qual
"a hegemonia nasce na fábricà' referia-se a um contexto onde a historicidade feu- a questão contratual supera definitivamente estruturas operárias radicadas no tempo como as
dal, a expansão tornada possível, as contradições entre as diferentes etnias tudo isso comissões internas, em favor dos conselhos de fábrica, instrumentos de participação de base,
combinado com um estado liberal- sem a existência de um enorme exército de pa- menos sujeitos ao burocratismo, e de delegados que eram eleitos diretamente, inicialmente sem
nenhum filtro sindical.
rasitas. Na Europa essa tentativa de hegemonia é a matriz de novas contraditórias e
diferenciadas só resolvidas pelo gume da espada de Alexandre Magno. A construção
A luta abria novas contradições no interior da própria classe (interesses a curto,
e ou recuperação da identidade dos subalternos produzia esse ataque ao coração do
médio e longo prazo, por um lado e, por outro, perspectivas estratégicas e táticas). As
capitalismo. E este respondia com a reestruturação do capital.
burocracias sindicais não pareciam ter sequer uma visão próxima do que deveria ser
o '69 era verdadeiramente marcado por uma contestação pontual da organização de fábrica e de a luta e, portanto, sequer poderiam imaginar a violentíssima resposta da burguesia.
suas hierarquias , de formas de luta fundadas sobre o conhecimento do ciclo e dos nós cruciais
da produção, de uma autonomia que recusava qualquer delegação, da reivindicação e prática de [Às passeatas promovidas pelos sindicatos, os operários] preferem os cortejos i~ternos,. a .luta
liberdades individuais e coletivas. O primeiro ator, uma geração de jovens operários muito diversa frontal com o chefete do turno e com o patrão: é o operário, em plena autonomIa, a deCIdIr os
pela proveniência social e níveis daquela de jovens estudantes do primeiro sessenta e oito, mas ritmos da luta recusando o salário como mercadoria de troca com o próprio trabalho e com a
similar na recusa da autoridade, no desejo de transgressão e liberação, na convicção de poder mudar própria saúde. [... ] , .
o mundo. Parecia soprar o mesmo vento, para os operários-estudantes-unidos-na-Iuta. (idem) Em 69 o poder muda de estratégia: o uso cada vez mais massivo da violência das forças de pohCla,
a utilização dos grupos neofascistas e dos "corpos separados': o emprego frequente do nunca
Contra esse assalto ao céu, o movimento tem que enfrentar a totalidade das formas abolido Códice ROCC0 298 para golpear as liberdades de expressão e de associação. Sobretudo as
bombas e a fácil equação anarquista-terrorista, são utilizadas com a finalidade de compactar a
organizativas da burguesia ... o sistema fabril, a totalidade do corpo político - po- burguesia moderada contra o proletário. É o próprio poder que jogando a carta da guerra civil nega a
deres executivo, legislativo e judiciário - as confederações patronais - e... graças às possibilidade de um confronto sobre o plano da política. (Il '77: l'anomalia italiana, idem. Grifo nosso)
tradições reformistas e corporativas dos sindicatos e dos partidos "operários" o mo-
vimento do autunno caldo repete a primeira edição dessa luta: os consigli di fabbrica o que estava em jogo não é mais apenas a forma de redistribuição salarial ou a luta
do biennio rosso. imediata contra o poder dos chefes e patrões. Trata-se, agora, de recomposição de
classe e recusa do trabalho.
Por muitos anos os partidos políticos e os sindicatos tinham feito legislações visando aumentar
o salário do trabalhador 296 • Isto é sem dúvida muito importante, mas infelizmente por muito Estas duas noções eram substancialmente novas no âmbito do marxismo. [... ] a estrutura produtiva
tempo sequer foi tomado em consideração o problema de transformar o local de trabalho, a fábrica, e tecnológica dos anos 20 dava vida a experiências de tipo conciliar. l!~a fábric~ [... ] e~ que a
a qual paga pouco, é instrumento de alienação e faz também adoecer, pela via das condições de relação homem -máquina era relativamente personalizada, na qual a habIhdade se dIferenClava e na
trabalho. Este problema fundamental não é levado em consideração suficiente pelos partidos qual os conselhos reivindicavam o direito de gerir e controlar o trabalho e eram orgulhosos da sua
políticos e pelos sindicatos ainda que queiram a emancipação do trabalhador. O sindicato e os função produtiva. (idem)
partidos políticos têm duas preocupações fundamentais: a primeira é a de fazer a política sindical A recusa ao trabalho é uma resposta às brutais condições vividas pela classe:
que responda às necessidades dos trabalhadores do ponto de vista materia[297; a segunda é o medo O que muda profundamente com as lutas do autunno caldo são exatamente as relações de for~a na
296 "sendo a produção um fenômeno determinado e a tecnologia desenvolvendo a faculdade da fábrica. O operário explorado e humilhado pelos ritmos do trabalho, pelos controles, pelas contmuas
produção, é possível conceber uma diminuição da jornada de trabalho, não como conquista sindical, punições, desenvolve uma conflitualidade cotidiana contra o patr~o. A iniciat~va operária não se
mas como tempo de vida por um lado, e por outro tempo de cultura, de ciência, de associação, de move mais somente sobre quantas horas de greve fazer, mas tambem como faze-lo. Desenvolve-se
liberdade. (Badaloni, 2005, p. 29)" Grifo nosso. logo uma lógica de recusa ao trabalho que corresponde a um comportamento d~ :ecusa a ~o.laborar
297 "Enquanto no início alguns dos seus grandes líderes se batiam contra o controle total da eco- com os destinos da fábrica permanecendo fortemente ligado à defesa das condlçoes operanas. Isto
nomia por parte dos industriais, agora o movimento sindical combate por reivindicações salariais produz uma nova lógica de como conduzir uma greve qu~ aponta a produzir, c0r.n um mínimo de
[... ] o movimento se dirige aos patrões não mais [pelo] controle da produção, mas sobre partes dos esforço da parte operária, o máximo de danos ao patrão. E a greve a gatto selvaglO segundo a qual
lucros. [... ] A classe operária norte-americana goza dos frutos dos trabalhadores do Terceiro Mundo:'
Carmichael, pp. 70-71. Grifo nosso. Ele falou em um momento em que a luta dos operários italianos 298 Alfredo Rocco, ministro fascista da Justiça (sic), foi o autor do código extremamente r~pressivo
começava a radicalizar-se: 1967. e base de toda a institucionalidade mussoliniana, preservado mesmo após a derrota do regIme e da
proclamação da nova constituição dita democrática.
212
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 213

faz greve apenas um restrito grupo de operários de cuja atividade depende, todavia o inteiro ciclo que se começa a discutir a necessidade do "partido re;olucionário':~OO (Il '77: l'anomalia itali~~a)
de produção. Mudando por turnos o grupo que entra em greve, se consegue bloquear a fábrica, A resposta capitalista a partir dos anos Oitenta do seculo XX realIzou-se - se?undo a analIse ~e
mais e mais vezes, com um mínimo de "custo': (Ezechiel, 2009) Burgio - por um duplo ataque. A globalização mercantil e fi~anc:ira produzI~ a reestrut~raç:o
O taylorismo tinha apagado tudo isto e nos anos 60 a fábrica tinha se tornado absolutamente oligárquica dos centros de decisão. Os deslocamentos, as externalIzaçoes: as mutaç~es na orgamzaçao
antissocial, a separação física e o barulho tornando impossível a comunicação e a exploração do trabalho contribuíram para provocar uma desagregação corporativa da socIedade, em que o
despótica e repetitiva criavam um homem cada vez mais mecânico. (Il '77: l'anomalia italiana) conflito de classes fundamentais é ideologicamente relido como fricção, como concorrência entre
A recomposição de classe parte desta desumanização: camadas e grupos. (Meriggi, 2008)
"Se devo ser de todo desumanizado, se não devo ter uma alma, um pensamento, uma individualidade
eu o serei até o fundo, decidida, ilimitada e despudoradamente. Não participarei mais no processo do
trabalho, serei estranho, frio, destacado. Serei brutal, violento, desumano como o patrão quis que eu Tudo isto formou o quadro de uma profunda agitação política e cultural. O mo-
fosse. Mas o serei até o ponto de não conceder mais sequer um pingo da minha inteligência, da minha vimento estudantil também entra em ebulição, em especial em Trento, Milão, Tu-
disponibilidade, da minha intuição ao trabalho, à produção:' rim e Roma. As lutas estudantis põem em questão o autoritarismo universitário e
"Toda humanidade à lutà': assim o operário se dedica totalmente à sabotagem, recusa a contratação depois caminharam para a crítica ao capitalismo, ao Estado, à 'pátria, a. família, a
e se recompõe exatamente nas sessões.
religião, os partidos de esquerda vistos como peças fundamentaIs do regIIr~e. T~do,
O momento do máximo contra-poder nas fábricas, a fase culminante do operário-massa, se
entrelaça inevitavelmente com a reestruturação tecnológica pós-fordista que encontrará plena absolutamente tudo, estava em questão. O clímax da situação é dado pela junçao -
realização com a inflação e a onda de demissões da década sucessiva. consciente ou não - de todos esses movimentos. E, acima de tudo, síntese e matriz
O capital ganhou muito com a recusa ao trabalho transformando-o em poupança pela inovação desse processo, tornava-se absolutamente claro aquilo que neoliberais e regulacionis-
tecnológica. (idem. O segundo grifo é nosso)
tas chamavam de ''engessamento das condições de acumulação" decorrentes da luta
de classes na produção. [e] a migração do sul é o maior fenômeno social. dos anos 50
Outro elemento central dessa estratégia de luta foi a redução da produção. Batista
e 60. Centenas de milhares de italianos mudam de trabalho, modo de vlda e mesmo
Santhià, militante operário, afirmava em 1974: eram
de escolha político-eleitoral" (Dalmasso, 2000. Grifo nosso).
formas muito complexas de auto-redução da produção, formas que requeriam uma participação e uma
unidade extraordinárias de todos os trabalhadores, compreendidos aí os técnicos299 • as modificações do sistema produtivo não requerem mais figuras profissionalizadas, ainda lig~das
ao velho "artesão de ofício" sobre os quais se construíra a estrutura sindical e a qual estava amda
Era a primeira vez no pós-guerra que estratos da força de trabalho que tradicionalmente tinham
ligada a CGIL, mas a um trabalhador cada vez mais massificado, flexível, privado de específicas
sido usadas em função anti-operária e tinham sido o veículo social da disciplina patronal na fábrica
rompiam seus laços de dependência e escolhiam o caminho da solidariedade de classe. capacidades profissionais; [... ]
ao centro do novo ciclo de lutas, ainda aberto aos trabalhadores profissionalizados (os
Todas as energias acumuladas, os empurrões do imaginário, as reflexões teóricas, os novos códigos de
eletromecânicos, mas não apenas) está então o operário de linha, frequentemente jovem e, e~
comunicação, se fundem em uma síntese que só pode ser definida como "nova composição política
de classe'; onde estão todos, estudantes e operários, técnicos e empregados, no coração da produção numerosas realidades, meridionais, não ligados, portanto, à história (e frequentemente m~s~o ~s
derrotas) do movimento sindical, portador de uma cultura e necessid~d~s d~versa~ das tradIC~OnaIs.
industrial, no coração da formação da força de trabalho qualificada para a indústria. (Bologna, 1998)
À oposição à disciplina e ao regime de fábrica resumem as, contra~lço~s mduzI~as pel.a v~da do
imigrado (o desenraizamento, a falta de casa, os serviços ... ) e as geraCIOnaIS (as quaIS a aceItaçao dos
Este foi o núcleo central da luta de classes na produção. Nada tem a ver com o modelos de vida, a vontade de rebelião ... ). (idem)
idílico panorama dos burocratas sindicais e partidários. Proposta subversiva não
apenas para o capital, mas também para aquelas organizações da classe (partidos, A luta que se colocava era pela hegemonia. Elemento fundamental ~esse processo
sindicatos) que educados na cultura industrial-militar, não conseguiam entender era o componente igualitarista. Quando o movimento coloca a questao do processo
nem o que se passava, nem aceitar que a nova classe operária estava se construindo. produtivo o patronato o percebe de modo corporativo.
Aqui estamos ultrapassando o limite das propaladas parcerias antagônicas, limite
que confirma a undécima tese benjaminiana. [Ele] estava em certa medida disponível para um instituto que fosse inserido no qu~d~o
tradicional do enriquecimento da profissionalidade de cada um dos tr~balhadore~ em relaçao as
E é principalmente pelo choque provocado pela repressão difusa, das dezenas e dezenas de exigências empresariais; o sindicato, pelo contrário, se batia em conqUIstar u~a ~lberdade plena
proletários assassinados, das obscuras "tramas de estado" que nasce a necessidade da organização, de fruição deste pacote de horas remunerado, como reconhecimento de um ?lre~to perma~ente
ao estudo por parte de todos os trabalhadores independente de cada finahzaçao profiSSIOnal.
299 Panzieri já em 1965 advertia sobre a necessidade de compreender "as transformações da classe
operária: essencialmente sob o perfil das novas relações que se estabelecem entre operários e técni- (Lettieri, 1973)
cos, da constituição de novas categorias e das transformações na composição da própria classe operá-
ria. [... ] [examinar as] situações de luta dos dois níveis, [... ] as tendências provocadas na consciência
da classe operária e dos técnicos pelas transformações do seu 'status':' (l968b, pp. 114-115) 300 Nani Balestrino e Primo Moroni, LOrda d'oro, citado em (11 '77: l'anomalia italiana).
214 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 215

A questão para os operários era a do poder. A ideia de qualificação ia muito além contra toda forma abstrata de igualitarismo, isto é, em defesa daqueles setores profissionalizados que
do mero adestramento. Abolir as fragmentações impostas como forma de divisão da constituem o núcleo duro da CGIL e recusa uma disputa generalizada sobre as 40 horas, considerando
que esta deva ser o fruto da contratação articulada, categoria por categoria. (idem)
classe, a instrução como preparação para o controle da produção. E a constituição da
famosa aliança operário-estudantil.
Passado o período do autunno caldo301 e sua radicalidade, assistimos uma retomada
da ordem burguesa. Aqui a tecnologia (robotização, micro eletrônica, processos de tra-
Na realidade o sentido da conquista das 150 horas é o de uma aquisição coletiva dos trabalhadores
que se inscreve na estratégia de igualdade e de unidade dos trabalhadores que parte do fim dos anos balho reestruturados) permitiram uma redefinição da relação de forças. Por outro lado
60 para o igualitarismo salarial para caminhar em direção à contestação da organização capitalista do o capital atacou pesado com a "strategia della tensione", com um conjunto de atentados
trabalho e do velho sistema de qualificações. O enquadramento único entre operários e funcionários e assassinatos praticados pelos serviços secretos do Estado italiano entre 1969302 e 1980.
encontra assim uma sanção de princípio e prática na afirmação de um direito permanente ao estudo
como recusa da divisão estrutural entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre produção e
A 'strategia dela tensione' não quer desestabilizar; pelo contrário quer consolidar um sistema de
ciência. Neste contexto as 150 horas não podem ser finalizadas redutivamente nem às passagens
poder stragista piduista e mafioso (o mesmo que em 1962 eliminou Mattei, em 1968 De Mauro e em
individuais de categoria, nem aprendizado de cravo, para permanecer no âmbito da emblemática
1971 Pietro Scaglione) [o] movimento das bombas dos anos setenta à tomada de poder com outros
"provocação patronal': Trata-se de uma conquista para usar politicamente para a apropriação
meios dos nossos dias. A chave da leitura deste eixo criminoso político-econômico tentacular está
coletiva de parte dos trabalhadores de instrumentos de conhecimento e controle tanto sobre o tudo em Petrolio, o profético romance-verdade, incompleto e mutilado, de Pier Paolo PasolinP03
processo produtivo interno quanto sobre a relação fábrica-sociedade.
que é massacrado pelo réu confesso Pino Pelosi, e mais por 'três sicilianos' ; no meio tempo outros
[... ] Para dar concretude a este objetivo que se coloca em uma mais complexa estratégia de unidade trataram de suprimir de Petrolio o capítulo Lampi sull' Eni, 'que do homicídio hipotetizado de
e de h[e] da classe operária é necessário que o próprio objetivo e os instrumentos para conseguí-Io Mattei guia ao regime de Eugenio Cefis, aos 'fundos negros', aos stragi de 1969 a 1980, e agora
sejam geridos por aquele sujeito coletivo que é o conselho de fábrica. (idem)
sabemos ao Tangentópolis, ao Enimont, à mãe de todos os tangenti. (Giovannetti, 2010)

Todo esse processo de luta desperta a sanha da direita. Em novembro de 68 após Com a absoluta conivência dos governos e a participação legitimatória do PCp04.
comício operário em Milão a polícia ataca os manifestantes (os "extraparlamentares"). Lembremos dois casos emblemáticos: as mortes de Aldo Moro e do editor Giangiacomo
Nessa repressão morre um policial, pretexto para uma repressão ampliada: Feltrinelli. A situação no interior do PCI nada tem de cômoda. Depois de ter marginali-
zado a tendência Ingrao (no seu XI Congresso, 1966) ele tem agora pela frente uma dura
Segue a primeira grande reação da direita, com a caça aos extremistas, mas, sobretudo
com a recomposição dos setores conservadores e moderados. A manifestação nacional dos
revisão da sua posição. São, para Delmasso (idem), três questões nas quais ele se debate:
metalmecânicos (Roma, 28 de novembro) assinala a maior prova de força dos trabalhadores e do
movimento sindical. Duas semanas depois, as bombas na Piazza Fontana, o fracasso da política 301 Os limites da consciência operária são demarcados na análise da questão: pelo artigo 9 do Estatuto "Os
de reformas, a não conclusão da unidade que parecia em reta de chegada, os próprios resultados trabalhadores, pela sua representação têm o direito de controlar a aplicação das normas para a prevenção de
eleitorais das administrativas (junho 1970) testemunharam a não imediata transposição em nível acidentes das doenças profissionais e de promover a pesquisa, a elaboração e aplicação de todas as medidas
global do protesto da fábrica e o início de uma fase involutiva. É óbvio, portanto, que: destinadas a vigiar a saúde e sua integridade física. [... ] O artigo 28 do Estatuto que prevê a possib~idade
- o outono italiano assinala, pelo número e pelo alcance dos conflitos sociais, uma combatividade dos sindicatos de recorrer ao juiz contra qualquer comportamento antisindical do patrão, e que tena po-
operária única na Europa; dido ser utilizado cotidianamente como instrumento constante de controle da prepotência patronal na
- as formas de luta, sua radicalidade e o seu conteúdo colocam em discussão a tradicional impostação fábrica - teve aplicações apenas excepcionais e esporádicas, dado que os recursos dos juízes partidários dos
do sindicato e mesmo a dos partidos que, todos, caíram parcialmente do cavalo; sindicatos têm sido pouquíssimos: Pode-se dizer o mesmo para todas as legislações sobre a prevenção de
- a aspiração da unidade sindical manifesta um forte estímulo de base e a necessidade de um acidentes do trabalho e sobre o controle da higiene e da saúde na fábrica: trata-se de leis que prevêem uma
quantidade inumerável de medidas de segurança e prevenção [... ]. (Ferrajoli, p. 119, in Basaglia et allii 1978)
instrumento de ação política de classe;
302 Quando das manifestações de 1969 o anarquista e ferroviário Giuseppe Pinelli foi "suicidado"
- a demanda de mudança dirigida às forças políticas para obter respostas ainda que apenas parciais. pela polícia de Milano em 15 de dezembro daquele ano. Isto deu origem à obra de Dario Fo, Morte
(Dalmasso, 1999)
accidentale di un anarchico.
303 "Pasolini com Petrolio escreveu a crítica da economia política dos stragi na Itália, prefigurando a passagem do
A classe operária segue sofrendo transformações quantitativas: 59 mil meridio- regime de Cefis (na sombra) ao regime de CAF e depois de Berlusconi" (D'Elia, 2006). A morte. de Pasolini, qu~
ex-militantes da esquerda extra parlamentar como Adriano Sofri tentaram reduzir a um puro cnme sexual. Sofri
nais chegam a Turim apenas em 69. A FIAT incorpora 15 mil deles. Novas lutas são chega ainda em 2005 a afirmar criminosa e preconceituosamente que 'Pasolini andava fazendo amor naquela noi-
travadas: multiplicam-se os fechamentos de fábricas "inclusive pelas formas de lutas te!: A morte de Pier Paolo respondeu a problemas muito diferentes. Em Petrolio existia um capítulo Lampi sull'Eni
introduzidas" (Dalmasso, 2000). Em 12 de junho ocorre na Universidade a primeira onde a morte de Mattei era examinada. As folhas desse capítulo foram roubadas, desapareceram dos arquivos.
304 Prática continuada. Berlinguer em programa televisivo após a maioria do partido ter se posi-
assembleia operário-estudantil que virá a se reunir todo sábado. Diante da situação cionado pela invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do pacto de Varsóvia em 1968 afirmou que o
Agostino Novella, secretário da CGIL, fala em seu congresso ser "Socialismo pode bem ser construído sob o guarda-chuva da NATO:' Chilosi, 2002. "De 1971 a 1987
nenhuma lei foi aprovada contra a forte vontade da oposição:' (idem)
Revolução passiva e modo de vida 217
216 Edmundo Fernandes Dias

- as escolhas internacionais para as quais se pede um juízo crítico sobre a URSS e o socialismo As classes subalternas, perdido esse momento vital da luta, são profundamente
realizado e uma maior atenção à política chinesa; golpeadas. A reestruturação capitalista, forma da recomposição orgânica do capital
- a soluÇã~ a dar às lutas operárias e estudantis, mesmo depois do maio francês, que a Itália e tem como meta não apenas o reassenhoramento do controle do sistema produtivo.
a França sao um dos polos de um processo revolucionário potencial em escala mundial e que a
Muito mais do que isso o processo capitalista tratou de eliminar qualquer nova pos-
qualidade do choque político implique uma revisão total de estratégia na esquerda majoritária;
- a democracia interna do partido em que deve ser reconhecido o direito de expressão do sibilidade de antagonismo: desestruturar as classes trabalhadoras, até mesmo nas
dissenso. (idem) formas organizativas que não negavam a ordem do capital. Essas modificações pro-
duziram consequências terríveis para o movimento dos trabalhadores:
Este debate foi «resolvido" burocrática e disciplinarmente no Congresso de Bolo- As transformações ocorreram em um momento e em um lugar determinado.
nha (1969). Rossana Rosanda, Luigi Pintor, Aldo Natoli, Caprara e Lucio Magri - o Corresponderam, por um lado, a uma derrota política e econômica da classe traba-
núcleo do futuro Il Manifesto - são acusados de fracionistas e eliminados do partido 1hadora no plano da produção e, por outro, pelo projeto de integração à ordem do
«exatamente no auge das lutas pelos contratos, quase a testemunhar, simbolicamen- principal partido dito de esquerda. Tiveram como contrapartida a ideia e a prática
te, a separação do PCl e dos sindicatos em relação à uma nova esquerda que vem da cidadania liberal.
surgindo [... ]" (idem)
O embate de projetos hegemônicos foi decidido a favor da burguesia. Ao anunciar Depois do divisor de águas representado pela derrota na Fiat no outubro de 1980, e por alguns
anos ainda, os inspiradores destas análises [sobre as transformações do mundo do capital] tinham
o «fim da história" esse projeto hegemônico do capital capturou a subjetividade da devido pensar em se exilar pela onda repressiva, alguns tinham acabado dentro, estavam na cadeia
n:aioria. das_direções e de boa parte da base social trabalhadora. Desemprego, repres- a espera de processos que se realizaram depois de anos de prisão preventiva, outros estavam no
sao, aceltaçao de uma postura determinista tudo isto levou a que essas direções for- exterior. Os militantes operários, que estiveram em contato mais direto com as transformações do
madas na lógica do capital não tivessem resposta a oferecer. A crise não foi a parteira trabalho, estavam dispersos e muitíssimos demitidos, alguns, não poucos, sugados pelas armadilhas,
tinham acabado na cadeia. Os sindicalistas mais combativos tinham sido marginalizados e alguns
de novas saídas estratégicas.
tinham sofrido traumas, verdadeiros e reais, pela derrota. Quando nos anos 80, a pesquisa sobre
as transformações do sistema produtivo e sobre o novo modo de fazer empresa começa a retomar-
1973 [assinalou] o fim do ciclo das lutas do operário-massa e o início de uma profunda reestruturação se, sobretudo em âmbito acadêmico o signo político do discurso está completamente arruinado.
do modo de produção, que tirará da fábrica a centralidade no sistema produtivo empurrando as
(Bologna, 2011)
lutas operá~i~s na fábrica ~ara a defensiva. Iniciará assim seja uma longa cadeia de demissões seja
uma estrategla de superaçao da produção industrial, pela difusão da produção no tecido social. [... ]
A emersão depois de decênios de desemprego, de uma inflação galopante e a retomada das Não apenas foram reprimidos pelo governo e pelo capital, mas, também, por parte
demissões nas fábricas; o capital busca reorganizar o ciclo produtivo que lhe fugiu das mãos, como dos partidos da esquerda parlamentar. Derrotados os operários deixaram de ser in-
no ~er~odo da. reconstrução procurou não manter central a figura do operário profissional porque teressantes para a maioria do mundo acadêmico:
mUIto ldeologlzado e estruturado, agora se busca descentralizar a produção, para evitar grandes
aglomerações operárias, não mais controláveis. É o período das externalizações, se reestrutura a Não se analisa mais "do ponto de vista operário' [... ]. A subjetividade do trabalhador não teria mais
cadeia ~e .montagem e se começa a ~xperimentar a ilha de montagem, baseada em pequenos grupos o valor heurístico que tinha antes. Toda a ênfase era carregada sobre a inovação capitalista, seja
de op~rarlOs que coop~ram e orgamzam o trabalho, se investe muito na tecnologia e no capital fixo, entre os sociólogos do trabalho e do território, seja entre os economistas, dominava "o modelo" dos
para movar e automatlzar o trabalho da fábrica. (lI '77, l'anomalia italiana. Grifo nosso) distritos na Emilia Romagna, Veneto, Toscana, Marche - a chamada "Terceira Itálià' - onde teria
Depois de 73 o ciclo de lutas operárias entra em uma fase descendente. O espectro da recessão
nascido uma inédita forma de capitalismo democrático. (sic)
econômica, que se torna evidente com a crise petrolífera, funciona como pesada arma de chantagem
[Desenvolveu -se na teoria e na prática algo que parecia ser um sistema de acumulação eficiente, em
para fazer passar uma nova reestruturação produtiva. As novas tecnologias informáticas e eletrônicas
condições de garantir empregos e bem-estar em áreas do país não pertencentes à tríade da grande
não estão ainda no horizonte ou apenas despontam, das virtuosidades do "modelo japonês" não
industrialização (Lombardia, Piemonte, Ligúria), não havia dúvida. Mas a entusiástica admiração
se fala ainda: isto é que no momento se propôs uma reestruturação entendida sobretudo como
pelos distritos, a ideia que representassem uma nova forma sustentável de capitalismo, ide ia que
racionalização e redimensionamento das estruturas produtivas existentes, com pesado preço a
havia contagiado também ilustres estudiosos estadunidenses [... ]. A esquerda foi exposta sem
pagar, em termos de salário e emprego, para a classe operária. A reestruturação, por outro lado,
meios termos a ideologia distrital, porque parecia dizer que na Emilia Romagna, na Toscana, nas
:edefine .um sistema de tarefas e qualificações (emblemático o chamado Enquadramento Único Marche - na "Terceira Itálià: nas regiões governadas por tantos anos pelos partidos de esquerda,
mtroduzldo pela FIAT) que despedaça o igualitarismo das lutas dos anos 60 e dá fôlego à velha
mais socialmente sustentável. [... ] isto resguardava a componente reformista e moderada do PCI,
linha sindical da defesa da "profissionalidade": esta de uma função defensiva passa a um significado
aquela que sempre vira com extrema desconfiança e com preocupação a radicalidade das lutas do
decididamente reacionário, tornando-se o veículo para fazer passar uma nova divisão operária e,
operário massa [... ]. E a outra componente mais "militante': que reivindacava uma continuidade
sobretudo, para obter a mobilidade da força de trabalho. (Turchetto)
com 68 e admitia a própria derrota, em que direção andava?
Buscava se apoiar para fazer política em muitas coisas diversas, sobretudo o ambiente, as questões
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 219
218

de gênero, a questão da complexidade, mas todas sempre distantes e separadas do trabalho. Não marxiano, mas a vertente da social democracia reformista. A estabilidade foi vivida como parte da
ousava dizê-lo abertamente, mas falar de trabalho parecia impedir-lhe de fazer política; nos seus ideologia dos "trinta anos gloriosos" que muitos à esquerda continuam a proclamar. A referência
ambientes se dizia que "o trabalho não cria mais identidade': [... ] gente convencida que o grande internacional de uma classe proletária portadora da revolução era proclamada discursivamente, mas
problema no futuro seria "o que fazer no tempo livre"? (idem) negada na sua prática concreta. A perda do projeto emancipador atuou poderosamente no sentido de
reforçar as classes trabalhadoras como subalternas.

Abandonados pelos partidos que se diziam seus representantes, vítimas de um deter-


No plano internacional a guerra fria atuava poderosamente. A construção ideológica,
minismo tecnológico e de uma visão liberal da política constituiu-se, então, o trabalha-
reiterada, do perigo vermelho funcionava como poderoso elemento de repressão e, por
dor do capital, o trabalhador flexível, o "colaborador': o operário-patrão. Rieser (2010)
outro lado, a esquerda - comandada pelas forças da URSS e dos partidos comunistas
analisando uma pesquisa feita por ele com os trabalhadores de Brescia afirmou:
a ela aliados - buscou em escala mundial uma coexistência pacífica, vale dizer recuou,
Acima de tudo nenhum dos entrevistados vive os seus "percursos em um mundo flexível" nos cedendo espaço para o avanço imperialista. Mas houve mesmo esse famoso perigo?
termos em que são apresentados pelas ideologias-apologias liberistas. Nenhum os vive como uma
entusiasmante aventura de "empreendedor de si mesmo" [... ] Todos, ou quase, vivem [de forma] Em 1948 a URSS tinha saído da guerra como grande potência, que depois de ter detido os alemães
explícita) prevalentemente de modo esmagador, com pouquíssimas exceções [... ]: os partidos no Leste e retomado Berlim, tinha o controle sobre a Polônia, a Tcheco Eslováquia, a Hungria,
são todos iguais, pensam apenas nos próprios interesses, etc. Mas muito frequentemente é uma a România, a Bulgária, e por um pouco a Iugoslávia e os países Bálticos. A ameaça soviética era
extremidade pura e simples: não me interesso pela política, mesmo porque não penso que possa bastante menor do que o que se diz, pelas desastrosas condições nas quais a invasão alemã tinha
mudar as coisas. Processo que ganha maior eficácia a ponto de que quando "a guerra fria deix( ou) de deixado o Leste e porque Yalta tinha fortemente determinado as áreas de influência em favor da
ser a grande discriminante das consciências europeias, a reconstrução está realizada, uma geração intacta potência militar e econômica americana; mas se podia temer, pelo menos na Itália e na
saiu de cena e outra entrou': (Rossanda, p. 133)3°5 Essa derrota estratégica de longo alento - ainda França, uma hegemonia dos partidos comunistas. [Estes tinham] se tornado fortes nas frentes
que transitória - adia, mas não elimina, a colocação em termos concretos da questão da sociabilidade populares, tinham praticamente dirigido a resistência, o fascismo causava horror, um vendaval de
socialista. Domesticou-se o conjunto das lutas sociais, partidos306 e sindicatos socialdemocratas esquerda sacudia [a] velha Europa. (Rossanda, p. 12)
governaram - direta ou indiretamente - o Estado burguês para o capital e realizou-se não o projeto
305 "Quando se diz que 'não se combate assim a guerra ao terror: não se dá conta que assim, se Apesar do avanço das forças comunistas a direção estalinista patrocinava a tese da
aceita o próprio pressuposto da 'guerra ao terror: Fazem-se próprios alguns corolários insustentá- necessidade de defender a "mãe pátria do socialismo': desarmando os partidos comu-
veis: o terrorismo exclui a atividade dos exércitos regulares, como se esses não se considerassem
responsáveis de episódios de terrorismo (basta ver a Palestina); se aceita a metáfora da 'guerrà para
nistas apagando as historicidades nacionais ao subsumi -las à burocracia estalinista que
combater o terrorismo e que este seja 'autônomo', esquecendo-se que é simplesmente uma tática que cumpria rigorosamente o combinado em Yalta, assumindo uma postura geopolítica
pode servir ao serviço de fins muito disparatados. Em suma, aceitar a guerra ao terror e à 'espiral de autodefesa, abandonando os aliados à própria sorte. Exemplar foi o fechamento da
guerra-terrorismo' significa entregar a vitória ao Pentágono, no sentido de que hoje a grande vitória
fronteira com a Grécia o que permitiu aos ingleses procederem ao genocídio contra os
dos aparelhos estadunidenses é a de ter imposto um léxico e uma agenda, às quais não conseguimos
nos subtrair. comunistas helênicos. 307 A guerra fria ocultou em grande medida dois processos conco-
Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, depois da primeira guerra do Iraque, em 1991, e, mitantes: de um lado a destruição do mito do socialismo realmente existente; do outro o
poucos meses depois, o fim da URSS, enquanto Fukuyama fabulava o 'fim da histórià, Maastrich em
1992 decide-se dar vida à moeda única europeia. Ativa-se uma espécie de 'exemplo escolar' de con-
avanço das reestruturações capitalistas em escala mundial.
flitualidade interimperialista, com uma ativação de eventos impressionante. Depois de 89, o mundo Esse conjunto articulado de relações sociais e de suas contradições se materiali-
entra em um plano inclinado todo encastelado de guerras: Iraque (1991), Somália (1992), Bósnia zaram naquilo que Gramsci e Trotsky chamam de modo de vida, forma pela qual
(1993), Kosovo (1999), Afeganistão (2001), ainda hoje Iraque e, talvez amanhã, Irã:' (Giacché, in
essa totalidade se torna cotidiano, locus especial da luta de classes. Cada modo de
Modugno e Giacché, 2007)
306 Berlinguer (1981) lhes sintetiza o esvaziamento: "Os partidos de hoje são, sobretudo, máquinas produção dominante, em uma formação social determinada, gera um tipo de "ho-
de poder e de clientela: escasso ou mistificado conhecimento da vida e dos problemas da sociedade mem': Aquilo que ironicamente muitos socialistas atacavam (o homo reconomicus)
e da gente, ideias, ideais, programas poucos ou vagos, sentimento e paixão civil, zero. Gerem inte-
nada mais é do que a representação mítica do tipo de individualidade capitalista.
resses os mais disparatados, os mais contraditórios [... ] sem nenhuma relação com as exigências e as
necessidades humanas emergentes, ou mesmo distorcendo-os, sem perseguir o bem comum. A sua O mercado nada mais é do que o conjunto articulado das relações sociais capitalistas
própria estrutura organizativa se conformou sob este modelo, e não são mais organizadores do povo, sendo usado na ideologia capitalista como padrão único de racionalidade. Os traba-
formações que lhe povam a maturação civil e a iniciativa: são muito mais federações de correntes, de
camarilhas, cada uma com um 'boss' e 'sub-boss'. A carta geopolítica dos partidos é feita de nomes
lhadores' no interior desse modo de produção, ao não se rebelar ficam praticamente
e lugares:' Crítica correta - e válida também para nossos partidos - o que não impediu, porém ao condenados a reproduzir o conjunto das relações capitalistas (técnicas, políticas, ide-
PCI de buscar a unidade com a DC, partido arquetípico do modelo descrito. Unidade batizada como ológicas). Decifrar os conceitos da sociabilidade capitalista torna possível revelar as
compromesso storico em nome do qual o PCI combateu todos os grupos de esquerda que se lhe opu-
nham. Ver a criminalização da esquerda extra-parlamentar e o apoio de Berlinguer e do seu partido
práticas sociais que corporifica e oculta.
à aprovação das leis antiterror. 307 Sobre isso ver Claudin, 1983.
A DEMOCRACIA DA GLÁDIO

Um torturador não se redime quando se suicida, mas algo é algo.

Mário Benedetti

Quando, nos anos sessenta, na fábrica [. .. J os movimentos da esquerda avançaram


impetuosamente e modificaram-se os equilíbrios centristas, os governos, obrigados
a ''abrir-se'', ampliaram o acordo com a OTAN e tarefas de estruturas clandestinas
destinadas a fazer frente não só a já de todo improvável invasão soviética, mas à
uma mudança de direção, uma verdadeira ''alternância'' na Itália. Foram assim
deixados fazer atentados e massacres, pelo contrário sugeridos e garantidos
por cobertura, vinte e seis anos de uso de explosivos e de cadáveres, de 1960 e
seguintes. Para agitar uma presumida instabilidade e disseminar a dúvida e a
divisão sobre o movimento que avança potentemente, especialmente depois de 68 e
de 69, acusando-o de carregar o terror dentro de si. Desta repugnante operação os
governos estavam ao corrente, conheciam o mapa de quem agia e o protegeu.

Rosana Rossanda

A situação italiana foi marcada decisivamente pela presença de um exército clan-


destino e de suas ramificações com as forças armadas, a Gládio 308 que atuava na Itália
308 A Gládio fazia parte de uma rede de terrorismo estatal em muitos países. Os seus membros eram
conhecidos como The Brotherhood of Death. "De acordo com um Relatório do Senado, datado de
1976, do Comitê Church sobre a CIA o programa [Stay behind] foi inicialmente concebido pelo US
Joint Chiefs of State [... ] e colocado em funcionamento em 1948 pelo National Security. Essencial-
mente a CIA estava usando Nazis, Neo-Nazis oficiais das SS e terroristas treinados pela CIA para
assassinar indiscriminadamente europeus (homens, mulheres, crianças) ou por outros meios remo-
ver ou eliminar comunistas, socialistas e políticos de esquerdà'. (Joseph, p. 179) Para mais detalhes
além da obra de Ganzer ver em idem, nota 16 (p. 204) e nota 32 (idem, pp. 205-206).Era coordenada
pelo Allied Clandestine Committee e pelo Clandestine Planing Committee da OTAN. Chamava-
-se SDR8/STCmob, na Bélgica, Absalon, na Dinamarca, TD BJD, na Alemanha, LOK, na Grécia,
1&0, na Holanda, ROC, na Noruega, Aginter Press, em Portugal, SDECE, na França, P26, na Suíça,
Counter-Guerrilla, na Turquia, OWSGV na Áustria e Stay Behnd em Luxemburgo. Seus nomes na
222 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 223

com pleno conhecimento e conivência do governo. Em 1990, o primeiro ministro A esquerda cometeu o erro de subordinar-se demasiadamente a esta trama ideológica (governo
tripartite 1944-47), da qual resultou ser colocada em urna posição de progressiva marginalidade.
italiano confirmou que os Stay Behind309, os "deixados-atrás': existiram, pelo menos,
Consequentemente, após poucos anos, ela foi expulsa das coalizões governamentais. (Chiocchi,2008)
desde 1958 e atuavam com a aprovação dos governos italianos. O fascismo fora batido em 1945. Corno cadáver insepulto - ver a participação de muitos
Em 1949, a ClA atuou decisivamente na construção da unidade de inteligência dos seus membros nos governos posteriores, nas forças armadas, etc. 3ll - ele volta para cobrar os
secreta italiana das forças armadas (o SlFAR [Servizio lnformazioni Forze Armate]), direitos eternos de urna burguesia incontrastada e que se pretendia incontrastável.
incorporando antigos membros da polícia secreta do estado fascista. O SlFAR teve A cultura política dominante, que se espalhou transversalmente sobre todos os partidos políticos
constitucionais italianos, parece fascinada por este axioma fundante: o "consumo" de democracia
seu nome alterado para SlD [Servizio lnformazioni Difesa]. Um velho colaborador leva à extinção do conflito social. Daí a surpresa e o terror face ao crescimento do potencial de
nazista Licio Gelli foi recrutado pelo corpo de contrainformação do exército dos conflito, garantido pela própria sociedade democrática. Segundo o referido axioma a democracia
EUA quando ia ser executado pela sua atuação junto aos nazistas na guerra. Nos teria devido ser urna sociedade perfeitamente aconflitiva, isto é, perfeitamente integrada. [... ] A
anos 50, ele foi recrutado pelo SlFAR e, em 1969, desenvolveu laços íntimos com realidade se encarregou de demonstrar, rapidamente, que quanto mais bens (e, portanto, quanto
mais riqueza social e democracia) os operários ''consumiam': tanto mais conflitivos e rebeldes se
o general Alexander Haig, então assistente de Henry Kissinger, Conselheiro de Se-
tornavam. O autunno caldo não seria explicável, sem esta posterior ampliação da esfera de felicidades
gurança Nacional dos Estados Unidos. Através desta rede, Gelli transformou-se no e das exigências políticas, em comparação com épocas históricas precedentes. (Chiocchi, 2008)
principal intermediário entre a ClA e o General De Lorenzo, chefe da SlD31O.
Em 1960 Gênova vê a luta insurrecional para impedir o congresso do Movimen- Em 1968 nascem os primeiros Comitês Unitários de Base (CUBs) organização
to Sociale Italiano (fascista). Mortes nas fileiras das classes subalternas em Reggio horizontal com autonomia em relação aos sindicatos e aos partidos. No princí-
Emilia, Licata, Palermo e Catania. A impossibilidade de conter a revolta derruba o pio dos anos 70, diante do avanço do PCl o governo construiu uma 'estratégia
governo Tambroni. Greves em Turim 1962, na Fiat e em pequenas fábricas. Produ- da tensão'312 usando a rede do Gládi0 313 . Em 1972 durante uma reunião extrema-
zem-se os chamados fatti que conduziram à piazza Statuto. "Explode o modelo de
311 Esse mesmo quadro encontramos na "derrotadà' Alemanha. Os grandes capitais foram manti-
'correia de transmissão' entre sindicato e partido que tinha sido o centro da hegemo- dos, seus políticos também. E muitos dos quadros nazistas vão prestar serviços à chamada democra-
nia comunista entre as massas" (Careri). O PCl condena os acontecimentos como cia liberal. Ver entre outros Werner Von Braum e o programa aeroespacial americano.
312 Dois momentos iniciais dessa estratégia podem ser localizados na repressão de julho de 1960
ação de "provocadores fascistas': No ano seguinte forma-se o primeiro governo de
e da Piazza Statuto, em julho de 1962 em Turim. Os movimentos de 60 se espalharam por toda a
centro-esquerda (participação dos socialistas). Na realidade a esquerda parlamentar, Itália. Mortos e feridos fazem o teste da reação estatal. Em 62 é reprimida urna passeata operária pela
em especial o PCl, era prisioneira de uma tenaz ideológica fortíssima: a questão da renovação dos contratos. Por dois dias 6.000 a 7.000 operários enfrentaram as chamadas forças da
ordem em batalha campal. "Dirigentes do PCI e da CGL, entre os quais Pajetta e Garavini, procura-
ordem e da democracia. ram convencer os manifestantes a dispersarem, mas sem sucesso. Milhares de manifestantes foram
presos e vários denunciados. A maior parte eram jovens operários, a maioria meridionais:' La rivolta
A democracia italiana nasceu nesta trama, em cujo desenho o primado do sistema político sobre a operaia di piazza Statuto deI 1962 (http://lotteoperaie.splindr.com/p/5219182/La+rivolta+operaia+
sociedade civil foi um ponto de desenvolvimento essencial. O "estado de exceção" sobre o qual se di+piazza+S) e "[ ... ] o Unità de 9 de julho definirá a revolta 'tentativas bandidescas e provocadoras:
inseriu a "reconstrução nacional" recalca duramente o conflito no cenário: o "interesse nacional" e os manifestantes 'elementos incontroláveis e exasperados', 'pequenos grupos de irresponsáveis: 'jo-
fez rigidamente o primado sobre os interesses dos estratos sociais mais avantajados, coincidindo vens baderneiros: 'anarquistas, internacionalistas": (idem. Grifo nosso, citado por Exechiele, 2009).
deterministicamente com a reconstrução econômico-industrial. [... ] Com isto se desconstrói o pacto "Em 25 de abril [1969] duas bombas explodem em Milão [ferindo 20 pessoas]. Em 12 de maio 2
de unidade contra o fascismo e o nazismo, pouco após de formulado o pacto constitucional, os quais artefatos explosivos em Turim não explodem por acaso. [... ] Em 24 de julho um explosivo similar aos
usados em Turim [... ] não explodem no palácio da Justiça em Milão. Em 8 e 9 de agosto oito atenta-
eram declinados corno pacificação intensiva e extensiva da fábrica e da sociedade.
dos ferroviários [... ] Em 4 de outubro, em Trieste, um artefato é colocado em urna escola elementar
[... ] A democracia é assimilada à ordem e, reciprocamente, a ordem - corno "valor em si" - foi assimilado
para explodir na hora da saída das crianças [... ] Em Pisa, 27 de outubro, o balanço de urna jornada
à democracia. Em sentido oposto, o conflito - corno "desvalor em si" - é equiparado à desordem. de choques entre policiais e manifestantes [... ]. em 12 de dezembro quatro artefatos explosivos são
Finlândia, Espanha e Suécia não eram conhecidos quando da publicação da entrevista de Ganser explodidos [... ] o de Milão, na piazza Fontana frente ao Banco da Agricultura, provoca 16 mortos
(setembro de 2006). e oito feridos. [... ] Inicia-se, assim, para a Itália, aquilo que é eficazmente definida a longa noite da
309 Nas palavras do Dictionary of Military and Associated Terms, do US Department of Defense, República': (Ezechiel, 2010)
2005, os stay behind eram "agentes ou organização de agentes estabelecidos em um país para serem 313 Mordenti (2008) fala das violências do período: o assassinato do estudante Paolo Rossi (2 de
ativados no caso de eventos hostis ocorrerem ou outras circunstâncias sobre as quais o acesso normal abril de 1976) na Universidade de Roma e o impedimento da participação de Ferrucio Pari em um
possa ser negado". Eram redes clandestinas ligadas à OTAN, durante a Guerra Fria. Foram implan- seminário. Obra dos estudantes do FUAN, vitoriosos nas eleições estudantis em coligação com os
tadas em 16 países da Europa Ocidental. Essas células visavam deter a ameaça de urna ocupação por liberais e os democratas cristãos de direita. Entre os dirigentes da FUAN encontravam -se Gianfranco
países do Bloco do Leste e estavam sempre prontas para agir no caso de invasão pelas forças do Pacto Fini (seu dirigente e membro da coalizão berlusconiana dos anos recentes), estava o MSI (de Almi-
de Varsóvia. William Colby (ex-diretor da CIA) e Peter Forbath publicaram essas e outras informa- o rante), a Ordine Nuovo (direita radical) a Avanguardia Nazionale, etc .. Todos no quadro da estratégia
ções nos Trente ans dans la CIA, Presses de La Renaissance, Paris, 1958. de tensão que ensanguentou a Itália. "Nos jovens fascistas de agora podemos testemunhar tudo isto
310 Cf. Arthur E. Rowse, "Gladio: 'lhe secret US War to subvert Italian democracy': Covert Action a um país privado de memória (porque privado de consciência civil) e poderemos também teste-
Quarterly: December 1994. munhar, nome a nome, que exatamente os jovens esquadristas e neofascistas de então se encontram
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 225
224

mente secreta do Gládio, um oficial sugeriu que se fizesse "um ataque preventi- Moro foi "sacrificado" pela "estabilidade" da Itália, afirmou Steve Pieczenik, espe-
cialista em crises internacionais e negociador do Departamento de Estado, enviado
vo" aos comunistas.
A Gládio esteve presente nos silenciosos golpes de estado da Itália, quando o ge- por Jimmy Carter no dia em que Moro foi sequestrado pelas Brigadas Vermelhas.
neral Giovanni de Lorenzo forçou os ministros socialistas italianos a deixar o gover- Prisioneiro por 54 dias ele teve sua morte anunciada em um comunicado falso que,
n0 314 • Em 12 de dezembro de 1969, uma bomba explode no banco agrário nacional, segundo Pieczenik, tinha a finalidade de preparar os italianos para o pior (sic) e mos-
matando 17 pessoas e ferindo outras 88. Nessa mesma tarde, mais três bombas ex- trar às Brigadas a decisão de não negociação por considerar Moro já assassinad0 320•
plodem em Roma e em Milão. A inteligência dos Estados Unidos era informada Atribui -se essa decisão a Cossiga e também a Giulio Andreotti, o primeiro minis-
com antecedência sobre os atentados, mas não informava as autoridades italianas •
315 tr0 321 • Isto de fato ocorreu no dia seguinte. O corpo foi deixado em um ponto que se
Em 2000, um antigo General do Serviço Secreto Italiano afirmou que a eIA ''deu sua situava entre as sedes do PCI e da Democracia Cristã.
tácita aprovação a uma série de atentados à bomba na Itália nos anos 60 e nos anos
Na manhã de 2 de agosto de 1980, a Itália experimentou seu pior ataque terrorista da historia
70.''316 (Grifo nosso) Estabeleceu -se que os atentados tinham ligações a dois neofas- na estação de trem de Bolonha, que matou 85 pessoas, e feriu mais de 200 outras. Foi feita uma
cistas e a um agente do SID317 • longa e complicada investigação e, eventualmente, deu-se início a um julgamento. Em 1988, quatro
A Gládio participou ativamente dos stragi dos anos 60-70. Praticamente a imensa terroristas de direita foram sentenciados à prisão perpétua. Outros dois réus foram condenados
maioria desses atentados foi atribuído à esquerda extraparlamentar, em especial às por difamação à investigação, "Francesco Pazienza, um antigo financista ligado a diversos casos
criminosos na Itália, e Licio Gelli, antigo grão-mestre da notória Loja Maçônica P2:'322 [... ] mais
Brigadas Vermelhas. Contudo em tarde Gelli foi absolvido dos crimes.

[... ] depoimento em tribunal durante julgamento de quatro homens acusados da participação em


atentados à bomba em bancos durante 1969 em Milão, o general Gianadelio Maletti, antigo líder da Em 1990, Giulio Andreotti, primeiro ministro afirmou: "Sim, é fato, o exército se-
contrainformação militar de 1971 a 1975, indicou que sua unidade descobriu evidências de que os creto existiu, mas foi para proteger o estado e lutar contra os russos se eles atacassem
explosivos foram fornecidos pela Alemanha a um grupo terrorista italiano de direita, e que a inteligência a Itália, não foi nada de ilegal, foi uma coisa boa" (Ganser, 2006). Se à época do fim
dos Estados Unidos pode ter ajudado na transferência dos explosivos. Foi dito que ele declarou que a CIA,
da guerra isto já era uma grosseira mistificação, nos anos 90 era a confissão mais
"seguindo as diretrizes orientadoras de seu governo, quis criar um nacionalismo italiano capaz de sustar o que
foi considerado como uma guinada à esquerda e, com esta finalidade, pode ter sido empregado terrorismo de deslavada da ação terrorista estatal. Em março de 2008, passada já a guerra fria, em
direita," e que, 'eu acredito, isso foi o que também aconteceu em outros países."318 (Grifo nosso) um documentário da televisão francesa, Francesco Cossiga, à época ministro do in-
terior323 , admitiu que um comitê de crise, chefiado por ele e do qual Pieczenik fez
Aldo Moro era peça chave na formatação do compromesso storico, da grande alian- parte, tinha tomado a decisão do falso comunicado. Rossanda comenta:
ça DC-PCI -PS, que visava garantir a governabilidade e sair do impasse criado por
por Chiarante (2009, p. 41): "um colóquio que Kissinger conclui com tal dureza a induzir Galloni
mais de trinta anos de governo democrata-cristão. não apenas a comentar, reportando as palavras do dirigente americano [... ] que tais expressões eram
uma condenação muito ameaçadora da política do Presidente da DC; mas também a perguntar-se se,
Quando foi sequestrado, Moro estava no trajeto para o Parlamento para votar na inauguração de além de uma crítica extremamente áspera, aquelas declarações não eram também uma 'condenação
um novo governo, que ele próprio negociou, pela primeira vez desde 1947, para ser apoiado pelo a morte' de Moro:'
Partido Comunista Italiano (PCI). A política de Moro de trabalhar de comum acordo e de trazer os 320 Cf. Malcolm Moore, "us envoy admits role in Aldo Moro killing". 1he Telegraph: March 16,
comunistas ao governo foi delatada pela URSS e pelos Estados Unidos. 2008.
[... ] Quatro anos antes de sua morte, em 1974, Moro estava em uma visita como Primeiro Ministro 321 Cf. Saviona Mane, ''A murder still fresh': Haaretz: May 9, 2008.
Italiano aos Estados Unidos. Em sua visita encontrou-se com o Secretário de Estado dos Estados 322 ~f. AP, '~Four ~et Life in Prison in Bombing in Bolognà: 1he New York Times: July 12, 1988.
323 Marom devena fazer o que fiz quando era ministro do Interior. Em primeiro lugar, deixar
Unidos Henry Kissinger que disse: Moro, "você deve abandonar a sua política de trazer todas as forças
perder os estudantes dos liceus, porque pense o que sucederia se um jovenzinho morresse ou ficasse
políticas em seu país nessa colaboração direta ... ou você pagará caro por ela." 319 gravemente ferido ... Deixar [os universitários] fazer. Retirar as forças policiais das ruas e das Uni-
neste momento nos postos de responsabilidade do Governo e das Comunas, nos jornais, na RAI, nos versidades' infiltrar o movimento com agentes provocadores prontos para tudo, e deixar que por
lugares de poder da Itália berlusconiana:' (idem) uma dezena de dias, os manifestantes devastassem os negócios, incendeiem os carros e submetam a
314 Cf. PHP, "Secret Warfare: Operation Gladio and NATO's Stay-Behind Armies': cidade a ferro e fogo. Depois disso, fortes pelo consenso popular, o som das sirenes das ambulâncias
315 Cf. Philip William, "us 'supported anti-Ieft terror in Italy"'. 1he Guardian: June 24, 2000. deverá sobrepor-se ao dos carros de Polícia e dos Carabineiros. No sentido de que as forças da ordem
316 Cf. CBC, "CIA knew, but didn't stop bombings in Italy - report': CBC News: August 5,2000. não deveriam ter piedade e mandá-los todos para o hospital. Não prendê-los, que logo os juízes os
317 Cf. Peter Dale Scott, "1he Road to 9/11: Wealth, Empire, and the Future of Americà: University colocariam em liberdade, mas bater e bater mesmo os docentes que os fomentam. Sobretudo os do-
of California Press, 2007, p. 18l. centes. Não digo os anciões certamente, mas os jovens professores sim ... esta é a receita democrática:
318 Cf. Philip William, "Terrorists 'helped by CIA' to stop rise ofleft in Italy". 1he Guardian: March apagar as chamas antes que se alastre o incêndio:'
26,200l. Entrevista de Francesco Cossiga. Presidente emérito da República Italiana e senador vitalício.
319 Idem. Grifos nossos. Fato confirmado por Giovanni Galloni, Cinquent'anni con Moro, citado
226 Edmundo Fernandes Dias

Revejo os editoriais de ''LUnità': e de Valiani e de Scalfari, que acusavam as Brigadas Vermelhas


de por em grave perigo as instituições republicanas. O PCl colaborou para tal com o ataque às
o PCI ignorou, consciente ou inconscientemente, a ação da CIA através da Gládio:
organizações ditas terroristas participando inclusive na acusação de que os brigadistas, terroristas
segundo a direita e o partido, foram responsáveis pela morte de Aldo Moro. (Grifo nosso) A Stay behind, mais a "Gládio': é um exemplo da criatividade italiana, armada pelos governos
Um silêncio de chumbo acolheu a investigação do juiz Salvini sobre os massacres da Praça Fontana centristas quando temeram que aquela grande socialdemocracia, popular e moderadamente
em diante. O mesmo [ocorreu] com a ata reservadíssima da reunião do governo depois do massacre avançada, que era o PCl, se conquistassem aquela alternância de cuja ausência reclamam os
de Bolonha em agosto de 1980. [... ] Escolheu-se calar sobre o que já se supunha e agora est[á] mesmos que calam sobre os meios com os quais ela foi impedida. (idem, p. 144. Grifo nosso)
confirmado, [a] amplitude devassantes das responsabilidades dos governos dos anos sessenta até
agora. Logo o mais extremista dos panfletos extremistas dos anos sessenta ficava abaixo da verdade. o partido, para tornar-se partido de governo, colaborou na criminalização dos
Pensaram todos, pensamos todos, que nos serviços secretos fossem infiltrados personagens ou
seus adversários à esquerda. Cúmplice de uma farsa que fortaleceu a direita mais
lobbies ou grupos que agiam com um desenho próprio, mas marginal face às escolhas do executivo,
uma carta louca usada imprudentemente e que acabava por chantagear os governos, os quais antes reacionária, nem mesmo assim ganhou o passaporte para o exercício de um governo
calavam e depois periodicamente buscavam libertar-se dela. Não era assim. Os serviços secretos burguês inteiramente subalterno à ordem do capital.
agiam com o acordo dos governos e da arma dos carabinieri [... ]. (p. 142. Grifo nosso)
A modernização da repressão acabou por aperfeiçoar, em primeiro lugar na experiência piloto da
Mas não parou aí esse conúbio contrarrevolucionário 324
:
Itália sob o nome de "arrependidos': os acusadores profissionais ajuramentados; aquilo que na sua
primeira aparição no século XVII, durante as alterações da Fronda, se chamava de "testemunhas
de ofícid: Este espetacular progresso da justiça povoou as prisões italianas de vários milhares de
Ainda em 1992 o governo mente à Câmara sobre a estrutura Gládio que teve de admitir, mas
condenados que expiam uma guerra civil que não teve lugar, uma vasta espécie de vasta insurreição
de que conta apenas o invólucro externo, 622 nomes de pouca monta destinados a esconder a
armada que por acaso nunca viu chegar a sua hora, um golpismo tecido da juta de que são feitos os
verdadeira estrutura de confiança, aqueles "Núcleos de defesa do Estado" que, pelo que sabemos, sonhos. (Debord, 2003)
continuam [existindo] mesmo agora. Não se liquida em um dia um pequeno exército protegido
pelos carabinieri e aqueles serviços que, de fato, parece difícil processar mesmo se pegos com a mão
na botija. (idem, p. 143) Os arrependidos foram também no Brasil peças essenciais de convencimento polí-
tico e acusadores dos seus ex -companheiros. Mais uma vez o Brasil aprendeu a lição.
324 Segundo Marshall a "[ ... ] CIA financiou e educou grupos de voluntários na Europa ocidental,
de modo que no caso de uma invasão soviética, 'recolhessem a inteligência, abrissem vias de fuga e
E a exportou: veja-se a Operação Condor325 •
formassem movimentos de resistência', trabalhando mais tarde com unidades de inteligência militar 325 Cf. Dinges (2004). Ver também Solo (2003). Alleg (2004) afirma: "Este ensino [da tortura pelos co-
européias ocidentais sob a coordenação de um comitê da OTAN. Em 1990, investigadores italianos e lonialistas franceses] o realizaram nos próprios Estados Unidos, particularmente em Fort Bragg, como
belgas começaram a pesquisar as ligações entre estes 'deixados atrás dos exércitos' e a ocorrência do também na América Latina. Recentemente, no Le Monde, falou-se da participação de [antigos] oficiais
terrorismo na Europa ocidental por um período de 20 anos". Bruce W. Nelan, "Europe Nato's Secret franceses na Operação Condor implementado pelas ditaduras militares do cone sul latino americano
Armies". Time Magazine: 26 de Novembro de 1990. [... ] com a benção e a autorização, naturalmente, do governo francês:' (Kohan e Herrera, in Alleg 2004).
Ainda segundo Marshall: "Estes grupos conspiraram, financiaram e freqüentemente dirigiram orga- Kohan e Herrera (in Alleg, 2004) citam: os livros tanto do general Acdel Edgardo Vilas (Diario de
nizações terroristas durante toda a Europa no que foi denominado uma 'estratégia de tensão' com campana. Tucumán: de enero a diciebre 1975, sem editora, nem data) quanto do general Osiris Ville-
o alvo de impedir uma ascensão da esquerda na política européia ocidental': PHP, "Secret Warfare: gas (Temas para leer y meditar, Buenos Aires, Theoria, 1993). Confirmados esses relatos pelo general
Operation Gladio and NATO's Stay-Behind Armies". Esses grupos terroristas de direita, atuaram em Alcides Lópes Aufranc em depoimento à jornalista francesa Robin (2003). Ver também Torture Made
diversos países. Na Turquia em 1960 trabalhando com o exército turco proveram golpes de estado in USA (2009).
e mataram o primeiro ministro Adnan Menderes, em 1971 após um golpe militar organizaram "o A guerra antisubversiva, matriz e biblía deste tipo de comportamento militar, foi teorizada pelo coronel
terror doméstico" e mataram centenas de pessoas. Na Argélia em 1961 tramaram, com a CIA, um Roger Trinquier que em 1961 publicou La guerre moderne. O general Paul Aussaresses apropriou-se
golpe malogrado contra o governo francês de Argel; na Grécia em 1967 realizaram um golpe e im- da noção de quinta coluna fabricada pelos franquistas para explicitar sua tese do inimigo interno. É
puseram uma ditadura militar. Na Espanha em 1977 realizaram um massacre em Madri. Em 1985 também deste general a criação da expressão esquadrão da morte que passou a ter um uso corriqueiro
na Bélgica assassinaram aleatoriamente pessoas nos supermercados, matando 28. Na Inglaterra, em na América Latina. Essa doutrina militar foi trabalhada na École de Saint-Cyr, no Institut des hautes
1995, revelou-se que o MI6 e o SAS ajudaram na instalação desses grupos terroristas para atuar em études de la Défense national, na École Superieur de guerra e tinha na Revue militaire d' information
toda a Europa ocidental. seu veículo privilegiado. Trinquier, entre outros, foi enviado ao Congo para lutar contra Lumumba.
Em 1954 essa contra-revolução em escala internacional já atuava na forma false flag. O secretário de (Robin, 2004) Dag Hammarksjold, secretário geral da ONU, foi assassinado quando voava em Zambia
defesa de Israel Pinha Lavon negou conhecer uma operação contra o Egito, governado por Nasser. - cf, http://www.sweden.se/eng/Home/Society/Government-politics/Reading/ Dag-Hammarskjold-
Por temerem a ação nasserista militares do serviço secreto israelense colocaram bombas incendiárias -the-Peacemaker/. O general Aussaresses foi adido militar francês em Washington e, com outros
em um posto de correio e em outros locais fazendo parecer que o crime tinha sido cometido pelos veteranos franceses, foi instrutor no Special Warfare Center de Fort Bragg e na escola de infantaria
árabes. A ação visava à manutenção do exército inglês no Egito. Em 1977 dispararam contra mani- de Fort Benning. Outros foram enviados em 1962 para a Espanha onde conheceram a Reynaldo
festantes sindicalistas em Istambul matando 38 e ferindo centenas de outros. Em 1980 o líder deles Bignone, futuro ditador argentino. "Durante a guerra da Argélia o número de estagiários estrangeiros
acabou por tomar o poder. Mais recentemente (setembro de 2005) atuaram na tentativa de explosão na Escola superior de guerra em Paris aumenta (com um pico em 1956-1958), dos quais muitos latino-
de mercados super frequentados em Basra (Iraque). A polícia iraquiana deteve os agentes britânicos americanos (24% de brasileiros, 22% de argentinos, 17% de venezuelanos e 10% de chilenos)" (idem)
da British Special Forces envolvidos na ação. Estavam vestidos de árabes e com carro cheio de explo- Na Argentina ela cita Ramón Dias Bessone (encarregado dos centros de tortura no nordeste argentino),
sivos. Eles foram liberados por intervenção do exército inglês. Albano Harguindeguy (ex-ministro do Interior) e (ex-ditador) entre outros. Fala da solicitação (1960)
228 Edmundo Fernandes Dias

A ESTRATÉGIA DA DERROTA:
O SILENCIAMENTO DOS SUBALTERNOS

Nada é mais perigoso para a democracia que o excesso de democracia.

Norberto Bobbio

Henry Kissinger em 11 de setembro de 1973 afirmou: "Não temos que acei-


tar que um país se torne marxista pela irresponsabilidade de seu povo':

Eduardo Galeano

A democracia formal baseada em uma possível alternância, a cada período pre-


visto constitucionalmente, de propostas políticas e de personalidades e na igualdade
- também formal - de todos perante a lei reduz-se a um quadro institucional que
privilegia os dominantes em detrimento dos demais. Aqui funciona o conceito e a
prática jurídico-política da cidadania. Se todos somos iguais perante a lei os antago-
nismos e deSigualdades desaparecem: um sem-teto e Eike Batista (um dos maiores
milionários do mundo) tem realmente os mesmos direitos? A mutação das regras
do jogo é, contudo, considerada impossível, porque não dizer subversiva. Bobbio
(1986), um dos maiores liberais do século passado, proclamou com a maior tranqui-
lidade a ideia de um pacto social legítimo e desejável. Basso (1976), em uma pales-
do governo americano (John Kennedy-Robert MacNamara) de incorporação de veteranos franceses às
tra sobre as origens do fascismo afirmou a partir da experiência da crise do Estado
escolas militares americanas e o apoio de Valéry Giscard d 'Estang - presidente francês que ao mesmo
tempo em que recebia exilados do cone sul apoiava a Operação Condor. Neste ano, na Argentina, estão liberal:
sendo julgados 820 por crime de terrorismo de estado. Bessone e Harguindeguy estão entre eles e
Bignone foi condenado a prisão perpétua. [... ] para que um regime democrático [... ] possa afirmar-se, é necessário que não existam rupturas
Sobre a participação da escola nos acontecimentos da Irlanda, Ruanda, Tchechenia e Irak, ver Robin, profundas no tecido social: quando estas rupturas se produzem sob o estímulo de tensões muito
2005 e 2009. No dia 20 de setembro de 1996, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos também fortes, de polarizações de classe, quando existam riquezas enormes concentradas em poucas mãos
fez uma confissão pública. Os meios massivos de comunicação não deram maior importância ao caso
frente a classes populares miseráveis, a democracia não pode subsistir porque ou as massas são
e a notícia teve pouca ou nenhuma divulgação internacional. Naquele dia, as máximas autoridades
militares dos Estados Unidos reconheceram ter cometido um erro: tinham ensinado aos militares la- excluídas do poder ou, se dele participam, servem-se dele para subverter o sistema, mas neste caso,
tino-americanos as técnicas de ameaça, extorsão, tortura, seqüestro e assassinato, através dos manuais a aspereza da luta levará à ruptura, à quebra, não ao equilíbrio democrático. Em outras palavras as
que estiveram em uso, entre 1982 e 1991, na Escola das Américas de Fort Benning, na Geórgia e no classes dominantes não consentirão em abrir às classes chamadas inferiores o caminho da participação
Comando Sul do Panamá. (Galeano, 2002, p. 200) no poder a não ser sob a base de uma adesão das próprias classes inferiores aos princípios que regem
230 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 231

o sistema social, que disciplinam a ordem constituída, onde foi justamente escrito que a democracia A abstenção do voto aumentou, mas até agora de maneira não preocupante; de resto, a apatia
vive quando há um consenso em torno dos princípios fundamentais do sistema e há dissenso apenas política não é de forma alguma um sintoma de crise, mas, como habitualmente se observa um sinal
sobre detalhes, o que impede que o próprio sistema seja colocado em jogo a cada eleição. A democracia de sua perfeita saúde: basta interpretar a apatia política não como recusa ao sistema, mas como
pressupõe, assim, um tecido em grande medida homogêneo e a aceitação de apenas uma tábua de benévola indiferença. (Bobbio, 1986, p. 70. Grifo nosso)
valores fundamentais. (pp. 12-13. Grifo nosso )326
Há aqui uma contradição visível sobre a questão da apatia. Como esta pode ser
Apesar de sua profunda crença nos chamados regimes democráticos, Bobbio não "sinal de sua perfeita saúde"? Pode a democracia viver sem a participação da popu-
é cego; é um liberal atormentado segundo Perry Anderson. Este chamou a atenção lação? Afinal de que democracia estamos falando?329
para o fato de que já na metade dos anos 80 Bobbio era "um franco atirador, mais Um belo exemplo dessa democracia é a tentativa, política e econômica, de sufocar
ou menos independente, agora senador vitalício por designação presidencial, uma o site WikiLeakes por este divulgar documentos produzidos por embaixadas ame-
espécie de lord italiano ad honorem; a consciência moral da ordem política italiana:' ricanas onde se revela o modo pelo qual os demais governantes são vistos o que é
(Anderson, in, Tula, 1993, p. 29) É necessário ler as críticas que o próprio Bobbio um dos instrumentos de formatação das políticas estadunidenses. Hillary Clinton
faz sobre a democracia como regra de jogo (procedimentalismo), defendida por confirma a tese de Bobbio, em epígrafe neste capítulo, ao afirmar que
ele, para termos a dimensão dos limites reais das teses liberal-democráticas. Não há
como negar que, dado o formalismo abstrato das instituições capitalistas, a proba- essa divulgação não é apenas um atentado contra os interesses da política externa dos EUA. É
bilidade do domínio do poder econômico e a apatia política são possibilidades que um atentado contra a comunidade internacional, contra as alianças e parcerias, as conversações e as
negociações que protegem a segurança mundial efazem avançar a prosperidade econômica. (Castells,
negam as virtualidades apologeticamente apresentadas por aqueles que defendem a
2011)
chamada democracia representativa.
Confronte-se essa opinião com outra declaração de Hillary, feita em janeiro de
Na sociedade capitalista avançada, onde o poder econômico é cada vez mais concentrado, a
democracia, não obstante o sufrágio universal327, a formação dos partidos de massa, um grau 2010: ''A Internet é a infraestrutura icônica da nossa era... Como ocorreria nas dita-
bastante alto de mobilização política, não conseguiu manter as próprias promessas que eram duras do passado, existem governos que apontam contra os que pensam de forma
sobretudo de três ordens: participação (ou talvez concurso coletivo, e generalizado, mesmo que independe utilizando esses instrumentos?" Com a nova declaração ela compara essa
indiretamente na tomada de decisões válidas para toda a comunidade), controle desde baixo (com divulgação ao terrorismo, outro gadget estadunidense. Trata-se de retrato exemplar
base no princípio que todo poder não controlado tende ao abuso) e liberdade de dissenso. Nos
estados onde as instituições democráticas são formalmente mais aperfeiçoadas, verificam-se dois
da afirmação que a democracia é boa quando está a nosso favor 33o .
fenômenos contrastantes: de um lado, a apatia política, que é a ausência de participação (o que Castells (idem) segue na mesma linha: "O tema chave está em que os governos
vem interpretado sub-repticiamente como a expressão de grau máximo de consenso do sistema), podem espiar, legal ou ilegalmente, os seus cidadãos. Mas estes não têm direitos à
do outro a participação distorcida ou deformada ou manipulada dos organismos de massa que informação sobre quem atua em seu nome, excetuando a versão mais censurada que
têm o monopólio do poder ideológico. O controle torna-se cada vez menos eficaz na medida em
que o centro de poder se desloca, com a consequência que os organismos que o cidadão consegue
controlar são centros cada vez mais fictícios e os vários centros de poder de um Estado moderno, como gimento de um abismo entre a competência - ou melhor, a incompetência - da grande maioria dos
grandes empresas ou os maiores instrumentos de poder real (como o exército, a burocracia) não estão cidadãos e a qualificação de uns poucos que possuem apenas eles, algum conhecimento: é, portanto,
inevitável a formação de uma tecnocracia. E, além disso, no que diz respeito aos cidadãos, existe a
submetidos a nenhum controle democrátic0 328• (Bobbio, 1976, p. 17. Grifos nossos)
tendência das democracias ocidentais a que se afundem cada vez mais na ignorância civil e na apatia.
326 No mesmo sentido: "O termo democracia era, de fato, quase uma blasfêmia política no início do Uma situação astutamente fomentada através dos meios de comunicação predominantes, dirigidos à
século XX: [... ] liberais e socialistas a consideravam burguesa. [... ] A ampliação da cidadania a novos distração comercial e a manipulação política:' (in Tula, 1993, pp. 55-56. Grifo nosso)
sujeitos políticos emergentes provocou uma reação terrível em contraparte. O temor que gerou nesta 329 "Sadam Hussein era bom, e boas eram as armas químicas que empregou contra iranianos ou
e em outras ocasiões demandas excessivas daqueles, fez com que a Europa se convertesse em terreno curdos. Depois degenerou-se. Já se chamava Satã Hussein quando os Estados Unidos [... ] invadiram
de ferozes combates políticos que só poderão ser superados após a Segunda Guerra Mundiar' (Cer- o Iraque porque o Iraque tinha invadido o Kuwait. Bush Pai encarregou-se desta guerra contra o
roni, 2000) "Winston Churchill, pelos anos 20, disse que se vivesse na Itália teria vestido a camisa Mal. Com o espírito humanitário e compassivo que caracteriza sua família, matou mais de cem mil
negra de Mussolini:' (idem. Grifo nosso) iraquianos, civis na sua maioria.
327 O sufrágio universal, apanágio desta forma política, foi conquistado por uma longa e dolorosa [... ] O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe de
luta dos subalternos (ver Kohan, 2007). Cerroni (in Tula, 1993, p. 129) chama a atenção que a De- terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais
claração de 1789 não contemplava na "subjetividade jurídicà' aos colonos franceses, às mulheres e "guerreiros da liberdade" contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência
aos trabalhadores. Cerroni comenta ainda o "atraso da teoria liberal a respeito das igualdades não quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram "o equivalente moral dos Pais Fundadores
'formais' (igualdade entre os sexos, trabalhadores, grupos raciais) e a persistente indulgência teórica da Américà'. (Galeano, 2000, p. 14)
em relação a determinados privilégios (homens, brancos, cristãos, proprietários):' (pp. 129-130) 330 Reza a lenda que existe um ditado secular no Afeganistão que diz: "Bom é quando vamos lá,
328 Para Anderson o problema colocado por Bobbio é ainda mais profundo: "O resultado é o sur- roubamos as terras, as mulheres e o gado deles. Ruim é quando eles fazem isso conosco:'
232 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 233

os governos constroem:'33I Estamos de acordo, mas a conclusão de Castells não nos eles implicam. Os juízes seriam igualmente autorizados à demandar oralmente os dossiês ou à
parece fundada na realidade: a "ciberguerra começou. Não uma ciberguerra entre convidar testemunhas à comparecer. Washington solicitava também um "acesso rápido" aos
dossiês financeiros e bancários "crítico" e exigia que a Europollhe transmitisse diretamente suas
Estados como se esperava, mas sim entre Estados e sociedade civil internauta (sic). informações sobre as pessoas ligadas ao terrorismo ou à criminalidade organizada. (Paye, 2004)332
Nunca mais os governos poderão ter a certeza de manter os seus cidadãos na igno-
rância das suas manobras:' (idem) Parece-nos que Castells é prisioneiro da sua teoria Outra questão sobre a famosa liberdade foi colocada pela tentativa de sufocar eco-
da internet como espaço livre e democrático. Deixemos também de lado a questão nomicamente o debate: a Amazon.com, a PayPal, a Visa, a Mastercard atacaram Ju-
da existência de uma "sociedade civil internautà' que, no mínimo, precisa ser de- lian Assange333 . Não apenas se suspendeu o site, mas pararam de pagar e sequestram-
monstrada, mas caso exista desloca para o plano virtual a materialidade da luta. Os -lhe as contas. Embora, como afirma Castells, isto não impediu a Amazon «de vender
acordos governamentais, contudo, desmentem essa visão iluminista: o conjunto completo dos documentos': (2011) (sic) Democracia quando convêm ...
Desde 1993 por iniciativa do FBI, representantes da polícia da maior parte dos países da União
é claro!
Européia e das nações da UKUSA (aliança das estruturas de escutas da Grã-Bretanha e dos Estados Esses acontecimentos ocultaram, graças à conivência da mídia sobre algo extrema-
Unidos posta em funcionamento em 1947 às quais se juntaram as redes do Canadá, da Austrália mente importante e criminoso: a ação de vigilância clandestina contra os próprios
e da Nova Zelândia) organizam, uma vez por ano, um fórum para falar de suas necessidades em cidadãos americanos. O 'lhe Washington Post, com o conhecimento do governo
matéria de interceptação das comunicações. Mais freqüente através da integração de acordos americano, apurou esse fato. Em uma reportagem intitulada Top Secret USA é relata-
internacionais (principalmente a Convenção do conselho da Europa de 2002 sobre criminalidade
informática), as modificações das legislações nacionais em matérias que resultam de demandas
da a existência de um monstruoso sistema de espionagem.
policiais expressas no curso dessas reuniões.
[... ] A ausência de possibilidade de controle das informações transmitidas caracteriza igualmente a A reportagem é uma descrição minuciosa do complexo sistema de inteligência, vigilância e segurança
cooperação policial. Em 20 de dezembro de 2002 foi estabelecido um acordo de cooperação entre que foi desenvolvido nos EUA após os contra-ataques de 11 de setembro de 2001, mostrando o
a Europol e os Estados Unidos para facilitar a troca de informações "de caráter pessoar: Trata-se inchaço de um conglomerado que contem 1.271 agências estatais e, ainda, 1.931 empresas privadas
de informações sobre "características físicas, fisiológicas, mentais, econômicos, culturais e sociais" terceirizadas pelo governo dispostas em cerca de 10 mil localidades espalhadas pelo país e que
de pessoas suspeitas de pertencer à uma organização terrorista ou de fazer parte da criminalidade abarcam 850 mil cidadãos. Ou seja, numa população de 300 milhões, aproximadamente uma pessoa
organizada. em cada 350 é espiã - com autorização especial para acessar informações confidenciais e realizar ações
Estes acordos estipulam que dados relativos "à raça, às opiniões políticas, às crenças religiosas ou secretas. (Fontes, 2011. Grifo nosso )334
outras, à vida sociar' serão trocados, se estas medidas são julgadas "apropriadas" à uma pesquisa 332 "Repete-se tão freqüentemente, e sem argumentos, que há que arrancar a rede do terrorismo,
sobre um ato criminoso. A transmissão de dados não tem necessariamente um objetivo penal. [... ] destruir sua infra-estrutura, atacar os ninhos dos terroristas (note-se a total desumanização que im-
Em matéria de luta contra o terrorismo, a transmissão de informações têm por objeto a aplicação plica cada uma dessas frases) que se outorgou a Israel o direito de fazer o que lhe agrade, ocasionando
de medidas de prisão, [... ] de confisco de bens, "mesmo quando tais medidas [...I não tem por enorme dano à vida civil palestina, destruição desenfreada e sem motivo, matanças, humilhação,
fundamento uma condenação penar: (Paye, 2004) vandalismo, violência muito tecnificada [... ] Nenhum outro Estado sobre a terra teria podido fazer o
que Tel Aviv fez, com tanta aprovação e respaldo como lhe ofereceu os Estados Unidos. Nenhum foi
tão intransigente e destrutivo, tão fora de suas próprias, como Israel".
Examinando os termos vê-se sua grande ambiguidade o que torna factível indis- [... ] Serge Schmemann [New York Times de 11 de abril de 2002]: "Não há forma de avaliar o dano a
criminado mantendo a fachada de legalidade. O que está em jogo, obviamente, é o cidades e povoados - Ramallah, Belem, Tulkaren, Qalqilya, Nablus, Jenin - que se mantem sob um
pseudo-ataque ao terrorismo. E este é claramente identificado aos islamitas: caracte- estreito estado de sítio; patrulhas e franco atiradores disparam nas ruas. Mas é factível afirmar que
se devastou a infra-estrutura da própria vida e de qualquer futuro Estado palestino - as estradas, as
rísticas físicas, fisiológicas, mentais, econômicas, culturais, sociais, raça, opiniões polí- escolas, as torres elétricas, as bombas de água e o cabeamento telefônico". Que cálculo desumano
ticas, crenças religiosas. «à raça, às opiniões políticas, às crenças religiosas ou outras, à levou ao exército israelita de lançar 50 tanques, 250 ataques diários com mísseis [... ]
vida social" E negado r das autonomias nacionais, mesmo a dos aliados: em [... ] A mais formidável e temível maquinaria de propaganda logrou a monstruosa transformação de
um povo inteiro em pouco mais que "militantes" e "terroristas': [... ]
Desapareceu da memória pública a destruição da sociedade palestina em 1948, semelhante à fabrica-
16 de outubro de 2001, o governo americano tinha dirigido ao presidente da Comissão européia ção de um povo despossuído; a conquista das franjas ocidental e de Gaza, bem como sua ocupação
uma lista de dezesseis proposições. Tratava-se de permitir às autoridades policiais e aos magistrados militar desde 1967; a invasão de 1982, junto com 17500 soldados libaneses e palestinos mortos; os
de cada Estado membro de negociar diretamente com as autoridades judiciais americanas, massacres de Sabra y Chatila [... ]
curtacircuitando os procedimentos nacionais bem como os diferentes níveis de controles que [... ] Em 1948 os palestinos perderam 78 por cento de seu território, e em 1967 ficaram sem 22 por
cento restantes. Em ambas ocasiões em favor de Israel. (Said, 2002)
331 "!al poder p~r~anece preservado porque é opaco. É significativo que a próxima revelação 333 Liberdade? A WikiLeaks teve 95% de suas receitas sequestradas pela Visa, pelo MasterCard,
anun~Iada pelo WI~leaks diga respeito, precisamente ao sigilo bancário. Este poder é como o dos pela PayPa!, pelo Bank of America e pela Western Union. Liberdade desde que não ataque o cerne
vampIros: a l~z os dIssolve, os reduz a poeira. Podemos esperar, que graças aos novos meios digitais,
breve chegara a hora de desvendar o poder econômico e financeiro:' (Ramonet, 2010) Tarefa neces- do sistema.
334 O governo americano teve acesso ao material recolhido pela equipe da reportagem e obtiveram
sária, mas piedoso desejo por enquanto.
234 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 235

A subserviência sueca chegou a pedir a prisão de Assange por acusação de estu- acontece na Itália, onde a presença do poder invisível (máfia, camorra, lojas maçônicas anômalas,
serviços secretos incontroláveis e acobertadores dos subversivos que deveriam combater) é, permitam-
pros, justo no momento da divulgação dos documentos, além da "reação sem pre- me o jogo das palavras, visibilíssima. (1986, p. 29. Grifo nosso)337
cedentes nos EUA, com apelos ao assassinato de Assange por líderes republicanos e
até colunistas do The Washington Post': Puttin e Recep Taypp Erdogan - primeiros Para um partido dito de esquerda penetrar e participar nessa jaula de ferro postu-
ministros da Rússia e da Turquia - fizeram protestos duros. Mas ao invés de atacar lando ser partido de governo é preciso renunciar, na prática, a seus princípios, ou, o
a ação dos Estados Unidos, via seus diplomatas ... reclamaram dos que divulgaram as que dá no mesmo, adaptá-los à ordem vigente. Isto porque como nos adverte Can-
mensagens comprometedoras. fora (2009) as "urnas tornaram-se [... ] o instrumento de legitimação quase imutável,
Porque o escândalo, porque o alarido como se o mundo estivesse em perigo. As de equilíbrios, de camadas, de políticos, não importa o quão diversificado e o como
informações divulgadas nada têm de novo. Eram, contudo, apresentadas, como soe é dividido" (Grifo nosso). Caso emblemático foi a longa e consistente transformação
acontecer, de forma dispersa, o que não permitia a formação de um quadro lógico que ocorrida no Partido Comunista Italiano, que reivindicou sempre as teses gramsciana
revelasse o sentido da ação. A novidade é: esses fatos "agora, eles estão documentados como forma de legitimação, mas negou-a na prática. Da teoria e da prática grams-
publicamente - o que poderá ser usado em juízo - e, ademais foram colocados de cianas queriam apenas a aparência, mas não a proposta concreta.
tal modo que trouxeram uma visão de conjunto' (Fontes, 2011). Montado o quebra- Voltemos à Itália. Com Togliatti o partido inicia sua mutação com a svolta de Saler-
-cabeça o segredo de Polichinelo se revela. Por isso os governos falam do perigo so- no. Aderia a uma linha democrático-institucional e não mais revolucionário-insur-
bre seus agentes e políticas. Ao reacionarismo juntou-se um profundo sentimento de recional. "Tratava-se de uma insurreição contra o fascismo e não pela derrubada do
desrespeito pela inteligência alheia. A Suprema Corte, em junho de 2010, referendou capitalismo, e em colaboração com todas as forças antifascistas" (Maitam, p. 27. Grifo
o Patrioct Act de Bush. nosso). Ante a posição daqueles que se declaravam a "corrente crítica do ponto de
vista da classe" publicada no Stella Rossa, em Turim no ano de 1944, segundo a qual
A procuradora-geral, Helena Kagan, indicada por Obama magistrada vitalícia da Corte Suprema,
resumiu a lei da seguinte forma: "O Hizbollah fabrica armas e também constrói casas - se você o ajuda não bastava "reconstruir o estado burguês antifascista, mas é necessário, pelo con-
a construir casas, também o está ajudando a fazer armas." (idem. Grifo nosso )335 trário, constituir a república soviética italianà' - o que poderia até ser discutível - a
direção do PCI, através do artigo Sinistrismo maschera della Gestapo!, assinado por
Isto parece ser ilógico e mesmo ridículo. Mas quando o ridículo se associa ao po- Pietro Secchia, acusa os militantes do Stella de serem bordiguistas! E que estariam a
der frequntemente gera ações e práticas fascistoides. Isto se dá em um quadro com-
puramente ativo das opiniões individuais; a impor a ideia que existe algo que seria como que a média
plexo onde a presença daquilo que Bobbio chama de poder invisível é fundamental das opiniões ou a opinião média. [... ] esta opinião pública é um artefato puro e simples cuja função
para entender a política: é dissimular que o estado da opinião em um momento dado do tempo é um sistema de forças, de
tensões e que não há nad~ mais inadequado para representar o estado da opinião que uma porcenta-
Diferentemente da relação entre democracia real e poder oligárquico, a respeito do qual a literatura gem:' (Bourdieu, 1973) "E justo afirmar que as sondagens fabricam mais e mais a opinião. [... ] Hoje
trata-se simplesmente de dar cifras. Pouco importa o valor:' (Garrigou, 2011)
é riquíssima, o tema do poder invisível foi até agora muito pouco explorado (inclusive porque
337 Qual democracia? A americana? Zolo argumenta: "Na realidade a sua democracia interna é
escapa das técnicas de pesquisas adotadas habitualmente pelos sociólogos, tais como entrevistas, daqui por diante, bastante longe do standard mesmo de uma noção mínima de democracia [... ].
levantamentos de opiniã0336 , etc.). Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que Basta pensar em fenômenos como a progressiva restrição dos direitos e da previdência social; o
da direção do jornal que certas informações fossem omitidas. Apesar disso os dados são brutais: a emergir de discriminações étnico-religiosas sob a cobertura da luta contra o terrorismo; a negação
Agência de Segurança Nacional passou pós 11 de setembro de 7.500 empregados para 16.500. Apesar dos direitos fundamentais dos prisioneiros de guerra (Guantânamo), dos estrangeiros e dos cidadãos
disso, e de muitos outros elementos, Fontes (2011) salienta, seguindo as informações do jornal, que suspeitos de cumplicidade com o terrorismo (Patriotic Act); o abstencionismo político cada vez mais
essas agências "não conseguiram impedir a tentativa de atentado contra um voo Amsterdã- Detroit difunduido que está reduzindo os eleitores a uma exígua minoria; a ausência de uma opinião pública
no Natal de 2009 - frustrado apenas pelos equívocos dos próprios executores -, bem como o massa- autônoma [... ] face ao enorme poder dos meios de comunicação de massa; a difusão sem precedentes
cre de 2010 em Fort Hood, no Texas, que teve um saldo de treze mortos:' Para que e para quem serve e sem comparações da repressão penal. A taxa de detenção dos Estados Unidos é de longe o mais alto
esse monstruoso exército de informações? Ou melhor, contra quem ele é utilizado? do mundo (mais de dois milhões de detidos, aos quais se acrescentam cerca de quatro milhões de ci-
335 Kohan e Herrera (in Alleg, 2004) sustentam: "Entre os torturadores nazistas da GESTAPO, os dadãos submetidos à medidas penais alternativas ao cárcere, para não falar de seis mil esperando no
torturadores franceses da Argélia, os torturadores norteamericanos no Vietnã e Iraque e os tortura- corredor da morte). Contra este tipo de democracia e contra sua tentativa de impor-se como modelo
dores argentinos da ESMA [Escola Superior de Mecânica da Armada] não há nenhuma diferença. universal é bom que o mundo se defenda e é natural que o faça:' (Grifos nossos)
Uma mesma degradação humana - produto do capitalismo e sua dominação social-, compartilhada E o cárcere? Qual seu poder recuperador, resocializador? Ele "não serve para a reabilitação do en-
pelos 'professores' europeus e 'alunos' americanos, envolve-os a todos na mesma sujeira e imundice:' carcerado, assim como o manicômio tampouco serve para a reabilitação do enfermo mental. Ambos
(Grifo nosso). respondem a uma exigência do sistema social, isto é, do sistema social que tem como fim último a
336 ''A sondagem de opinião é, no estado atual, um instrumento de ação política; sua mais impor- marginalização de quem rompe com o jogo social. A marginalidade do que não aceita a problemática
tante função consiste talvez em impor a ilusão de que existe uma opinião pública como resultado da violência institucionaizada que governa nossa sociedade. (Basaglia, 1989a, pp. 16-17)
236 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 237

serviço da política fascista. Lembremos a associação Bordiga-Trotsky que os stalinis- radicalização sem precedentes. Esta crise [... ] se prolongou, com altos e baixos, por outros cinco
tas afirmavam. Assim, sem debate político, o PCI tratou de liquidar essa divergência. anos, com retomadas e sobressaltos no período sucessivo. Para sintetizar, é neste contexto,
do fim da guerra à metade dos anos 70 que o movimento operário pôde construir, reforçar e
O Stella possuía à época cerca de 2 mil militantes em Turim, o PCI tinha 5 mil. O
manter organizações políticas e sindicais tão fortes (como um vasto e articulado movimento
inimigo principal do PCI eram os ... bordiguistas-trotskistas338 cooperativo), exercer uma notável influência sobre o plano cultural, ocupar sólidas posições em
Poderia até ser uma estratégia de transição, mas o projeto togliattiano era outro. todos os níveis das instituições, mesmo se sua componente majoritária permanecesse excluída
Isto se traduziu em um compromisso no qual as forças de esquerda, das quais o PCI do governo. (p. 13)
era a mais forte, eram conduzidos a uma estratégia de derrota:
A equação liberdades democráticas (burguesas) = desenvolvimento capitalista foi
'As esquerdas acabaram por sacrificar qualquer outra exigência ao esforço bélico, aceitando toda duramente marcada tanto pela luta dos trabalhadores, quanto por uma desneces-
uma série de compromissos sucessivos, que facilitaram a restauração das velhas estruturas e
sidade dos governantes, empresários e sistema financeiro de fazer concessões reais
das velhas forças sociais: A responsabilidade de todo isto incumbia, sobretudo, sobre a 'famosa
mudança de rumo de TogliattC (Maitam, p. 55) àqueles. O que foi construído foi por obra dos trabalhadores.

Nos anos 70 [as ideologias sobre o trabalho] se projetaram e sublimaram na estratégia política dos
Togliatti propunha em 1957 um conjunto de "reformas estruturais, capazes de res- "sacrifícios" e da "austeridade': A esta finalidade e para estas forças o axioma fundante já mencionado
ponder às exigências tecno-econômicas, mas também de produzir um crescimento se subverte, iluminando um postulado de filosofia política assim enunciável: ao menor consumo
da democracia e um deslocamento das relações de força em nível econômico e po- corresponde maior estabilidade democrática. O conflito foi aqui unicamente concebido como razão
lítico" (Dalmasso 2004). O partido atuou com uma estratégia e uma tática de pinça: dirigida de um excesso no uso e no consumo da democracia: para reduzir o conflito devia-se, portanto,
reduzir a democracia. Com o que se declinou uma variante de esquerda desta teoria da democracia
por um lado destacou-se tardiamente das ligações com o regime russ0 339 e, por ou-
corporativista e do elitismo democrático, tornando a restrição da democracia e do quadro democrático
tro, em especial com Berlinguer, artífice do famoso eurocomunismo, transformou-se a finalidade estratégica dos programas políticos. Aqui está o drama maior do objetivo da "solidariedade
em um partido da ordem. nacional" do PCI e de parte do movimento sindical italiano. (Chiocchi, 2008)

Na nova fase que se abre nos anos 60 com o advento da centro-esquerda, quando o PSI torna-se A única possibilidade de realização de um projeto democrático estava centrado na
parte integrante de governos incapazes de realizar [... ] reformas tímidas [... ] o papel do PCI como a
capacidade de luta dos trabalhadores.
única força de oposição com credibilidade e como instrumento mais válido de defesa dos interesses
e das aspirações das massas populares não pôde senão reforçar. (Maitan, p. 17)
A democracia continuou a falar e a crescer apenas nas lutas, no protesto social e nas micro revoltas
cotidianas de toda a década. Ainda uma vez, como já no início do outono quente, lutas sociais e
A Itália vive no final da década de 60 e início dos anos 70 um período de grande conflito se representaram como comunidade impossível: as representações, o imaginário e as concreções
agitação política e sindical, em especial com o autunno caldo. Maitan localiza a crise políticas da oficialidade continuaram, mais do que nunca, a esmagar a democracia à ordem.
política e social dos anos 68-69: A mescla se fez explosiva, [... ] considere-se que a expansão da luta armada nos anos 70 [combinou]
perversamente com a esterilização corporativista da democracia italiana. Na ideologia brigadista,
Se na Itália não houve uma explosão revolucionária concentrada como o maio francês, em p. ex., a ampliação dos consumos e do uso da democracia intenciona a "crise irreversível" do
compensação a crise investiu mais em profundidade estruturas e relações sociais, instituições sistema democrático, incapaz de manter a promessa anteriormente formulada: democratizar
políticas, administrativas e mesmo judiciárias, e relações nos locais de produção, com uma o desenvolvimento capitalista. Por oposição, segundo a democracia corporativista e elitista da
"solidariedade nacional': tratou-se de desacelerar o "desenvolvimento" e reconduzi-Io abaixo do
338 Sobre esse "método" vejamos o que Togliatti (1975, pp. 57-58) falou: "Bordiga vive hoje [1937] umbral crítico suportável naquela fase do "governo democrático': As BR tentavam alavancar o conflito
tranquilamente na Itália, protegido pela polícia e pelos fascistas, odiado pelos operários como deve que não encontrava mais canais adequados de expressão no sistema democrático, para eliminar a
ser odiado um traidor. No princípio da guerra contra a Abissínia, a imprensa italiana comunicava democracia. A "solidariedade nacional" atua unilateralmente a ordem contra o conflito, o conflito
que ele participara numa festa religiosa, fora abençoado pelo padre juntamente com os soldados que contra a ordem. A situação política a que se chega é assim, esquematicamente: no primeiro caso,
partiam para a Abissínia e, à saída da igreja, passou pelo arco formado pelos punhais de uma com-
democracia como ordem sem conflito; no segundo, conflito como ordem sem democracia. Em ambos
panhia de milícias fascistas que lhes prestavam honras. Isto ocorreu no momento em que Gramsci
prisioneiro de Mussolini, lutava até ao fim, no cárcere, sob a bandeira comunista:' (O dirigente da os casos a democracia foi esquizofrenicamente dissociada nos seus componentes constitutivos
classe operaria, publicado em Lo Stato operaio, n. 5-6, maio-junho de 1937. Qual a fonte da acu- fundantes. Apenas as lutas sociais subtraíram, na Itália, o fascínio encantador da ordem política:
sação? Segundo ele a "imprensa fascistà' à qual ele deu crédito irrestrito. Porque? Por precisar de resistiram à integração sufocante que reduzia os espaços da democracia e desviaram felizmente
legitimar-se com a figura de Gramsci, que, naquele momento, era um mito apesar de desconhecido da dinâmica da liquidação da própria democracia pela luta armada. Isto não impediu que estes
da imensa maioria do partido. E para culminar Togliatti afirmou que Gramsci "lançou uma palavra mesmos, por limites internos e incongruências culturais e políticas, permanecessem esmagados
de ordem bastante significativa: 'Trotski é a puta do fascismo':' (idem, p. 65) por esse torniquete inexorável: finalmente, derrotadas de uma crise interna não superada e um
339 Sobre o afastamento do PCI em relação à orientação de Stalin e depois do PCUS ver Maitan. ataque externo concêntrico. (idem, 12008)
238 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 239

Em 1975 Berlinguer apresenta seu relatório ao PCr. Sintomaticamente o primeiro Panzieri acertou em cheio. A desestalinizaçã0 342 feita por stalinistas precedeu de
ponto intitula-se "A necessidade mais premente do mundo a~ua~: construir um sis~e­ muito perto a revolta proletária de Poznan, na Polônia, em junho, concluída com um
ma de coexistência pacífica e de cooperação entre todos os pazses (1975, p. 15. Gnfo balanço de 48 mortos e 145 feridos. Ainda na Polônia, grandes manifestações popu-
nosso). Estamos a menos de meia década dos grandes enfretamentos civis italianos lares tinham ocorrido em concomitância com o retorno de Gomulka ao poder e a
(piazza Fontana340 , entre outros). A perspectiva do Secretário Geral do PCI era a libertação dos revoltosos encarcerados depois dos fatos de Poznan (outubro polaco).
construção de um arco de alianças com a Democracia Cristã, visando assim avan- Não foi fato único. Nessa série de violências acrescente-se a invasão russa na Hun-
çar na construção de uma democracia estável e avançada. Seria isso possível? Quais gria. Iniciada em 23 de outubro, a luta húngara se agudiza em 10 de novembro quan-
eram os pressupostos do programa partidário? A análise de conjuntura feita por Ber- do após a nomeação de Imre Nagy, para Presidente do Conselho e de Janos Kadar
linguer referia-se à crise capitalista (pp. 16-20) e a uma não existência de crise no para secretário do Partido. O dia 4 vê a entrada das tropas soviéticas na Hungria343 •
bloco comunista. Textualmente: O ano de 56 se fechará com as manifestações antissoviéticas de Stettino. (Panzieri,
1973, pp. 58-59)
[... ] em todos os países socialistas se registrou em 1974 e se prevê também no futuro um acentuado Segue-se a isso um êxodo de intelectuais antes favoráveis à URSS: Sartre, Simone
desenvolvimento produtivo. No relatório anual, tornado público recentemente, sobre o andamento de Bouvoir, Howart Fast e Henri Lefevbre entre outros. O marxismo, tal como prati-
econômico nos países do COMECOM resulta que no conjunto desses países, a produção em 1974
cado pela burocracia estalinista perdia sua capacidade expansiva e transformava-se
aumentou 8,5% relativamente a 1973.
[ ... ] É um fato: no mundo capitalista há crises, no mundo socialista, não. [... ].. . . em puro instrumento repressivo: era uma teologia laica que encontrava seguidores
Além do mais, é universalmente reconhecido que nesses países [mundo Soclaltsta] eXlste um cllma nos PCs stalinizados e passava a ser a piece de resistence da direita internacional que
moral superior [... ]. (pp. 18 e 19. Grifos nossos) assumia - falsa, mas eficientemente - o papel de defensores dos direitos humanos e
da liberdade.
Choca ao leitor, mesmo ao leitor daquela época, uma afirmação deste tipo tão pe- Ironias da história? Não. Farsa burocrática. 344 A cena se repete. As tropas russas
remptória que acabava por fazer da URSS o Edem das classes subalternas, puro e invadem a Tchecoslováquia para reprimir as reformas econômicas de Dubeck, as
imaculado. Lembremos que em fevereiro de 1956 Kruschev341 , no XX Congresso do mesmas que mais tarde serão implementadas por Gorbachev. A Primavera de Praga
PCUS, reconheceu os "crimes de Stalin': condenou o culto à personalidade e reco- era "subversivà: A alteração do quadro feita com a subida de Alexander Dubceck ao
nheceu que a luta armada não era necessária para a transição ao socialismo. Ana- governo implementava uma reforma econômica combatida pelo stalinismo, a entra-
lisando com os elementos conhecidos até aquele momento Panzieri (1973, p. 60) da no governo de políticos não-comunistas, o fim da censura, enfim a abertura para
afirma a existência de uma profunda contradição nessa "novà' linha política russa: um pluralismo político: o socialismo com rosto humano. O desequilíbrio que isto
promove nos países do Pacto de Varsóvia superava as reformas stalinistas feitas pelos
[... ] enquanto por um lado traz fortemente a exigência da democratização, da eliminação ~o ~egime
stalinistas na URSS. As tropas russas ocupam o país na noite de 20 para 21 de agosto.
burocrático e policialesco, da afirmação da vida democrática como ação autônoma e cna~l~a das
massas, por outro lado conserva ou parece conservar alguns dos elementos chaves do stahmsmo: Mas, olimpicamente, Berlinguer segue este caminho mesmo após 20 anos da ocor-
a concepção do partido-guia, do Estado-guia, de uma planificação econômica em te~mos forçados rência desses acontecimentos. Também eram conhecidas as deficiências da chamada
face ao desenvolvimento das forças produtivas, a rígida coordenação das economIas dos outros economia socialista (na realidade capitalismo de estado) e a incorporação de medi-
Países socialistas com a União Soviética, etc. (Panzieri, 1973, p. 60) das abertamente capitalistas, coisa que ainda uma vez Berlinguer silencia. Do for-
340 "A amplidão e a violência da 'estratégia de terror' - desde 1969, da chacina da Praça Fontana dismo os russos aproveitaram a lição criando o stakhanovismo, transformando seu
em diante - duma 'trama negrà cujos fios estavam dentro do corpo do Estado (mesm~ antes de 69, operário padrão em herói soviético do trabalho. Afirmava o progresso em todos os
até em termos de preparação de 'golpes'), e assim sendo um prolongado ataq~e terrons~a de marca
'vermelhà além daquela 'negrà, repropuseram na Itália e fora da Itália, graves l?te.rr~ga~lvos sobre a 342 Ver entre outros a obra de Isaac Deutscher, Claudin (1983) entre outros.
solidez da nossa democracià' (Napolitano, 1981, p. 37. Grifo nosso). Note-se a mSIstenCla do PCI de 343 Nagy após breve asilo na embaixada iugoslava em Budapeste foi preso em 22 de novembro.
falar sobre os terrorismos de marca vermelha e de marca negra quase fazendo deles compagnons de Permaneceu preso, julgado secretanente e executado em 26 de junho 1958.
route na luta contra a democracia. . _, . 344 Em 1951 na Tchecoslováquia tivemos uma reedição dos processos de Moscou. O ministro das
341 Comentando a reação dos intelectuais franceses Simone Signoret <A. nostalgza nao ~ maIS Relações Exteriores e um grupo de altos funcionários do Estado são submetidos a prisões arbitrá-
o que era, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, lJ87, citada por Schettmo, p. ~13) afirma: rias, torturas e processos estalinistas e acabam na sua maioria repetindo o perverso ritual da auto-
"Os importunos: os intelectuais de esquerda. Nao c~egavan:.a ser um bat~hao, quando -incriminação já levado à cena dos Julgamentos de Moscou. LAveu é um que retrata o período.
muito um esquadrão: Sartre, Vercors, Claude Ro~. ~er~r? P~IlIpe:, Roger VaIllan entre. out- O ex-ministro depois de passar alguns anos na cadeia é libertado. Vai para o exterior e se recusa a
ros, fizeram um manifesto no qual negavam o dIreito a mdIgnaçao pel.o que acontecIa na escrever sobre o assunto. Em 68 volta a Praga e assiste a brutalidade russa. O filme termina com uma
Hungria a todos aqueles que não tinham levantado a voz no ano antenor, quando a Gua- cena impressionante. Jovens resistentes pixam um muro: "Acorda Lenin, eles enlouqueceram:' Ver
temala havia sido esmagada." Broué, 1988.

c
240 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 241

países socialistas e um acentuado desenvolvimento produtivo. Não havia crise? a isso informações absolutamente falsas.
A crise do mundo capitalista revela -se, dizia, na "redução da área de dominação
e exploração imperialistà' (p. 20) e na "maior combatividade da classe operária dos A Itália teve o seu peso na vida européia e mundial quando a política interna e externa dos seus
governos se apoiou no consenso mais amplo das massas populares e das forças progressistas e quando
países capitalistas, que se sabe defender de forma muito mais aguerrida do que nos
não se contrapôs, mas soube até inserir-se na corrente positiva dos acontecimentos mundiais. Assim
decênios passados" (idem) apesar do crescimento das forças de direita na Europa sucedeu no século passado [século dezenove], quando aformação do Estado unitário italiano coincidiu
(Alemanha, em especial) e nos Estados Unidos. Na Itália aprofunda-se a subordina- com a afirmação de outros [estados] nacionais [... ] (pp. 39-40. Grifo nosso)
ção aos ditames dos organismos internacionais ao que Berlinguer chama de "vício"
(p. 28) do governador do Banco da Itália consistente Berlinguer ao citar implicitamente a questão meridional, analisada por Grams-
ci, sabia, ou deveria saber, que a construção do estado italiano se processou pela
em colocar como pressuposto do seu projeto uma sensível redução das condições de vida das incorporação dos antigos dominantes e pela repressão brutal sobre os subalternos
grandes massas trabalhadoras dos países do ocidente, enquanto o verdadeiro problema é o de
integrar nesses países, novos mecanismos econômicos e sociais mais produtivos e racionais [... ].
acusados permanentemente de banditismo e de subversivismo. A história requer dos
[... ] para garantir às massas trabalhadoras e populares do Ocidente consumos e formas de vida políticos algo mais do que frases altissonantes. Esse consenso amplo jamais ocorreu
diversos dos atuais, mas qualitativamente melhores e, em última análise, menos dispendiosos para principalmente no processo da unidade nacional italiana.
a coletividade nacional e para toda a comunidade mundial. (idem) O PCI apesar de ter comandado uma vasta rede de sindicatos e organizações locais
e de ter uma presença efetiva na vida das massas italianas (chegou a ter aproximada-
Berlinguer considerou como vício aquilo que era a condi tio sine qua non da acu- mente trinta por cento do eleitorad0346 ) apesar do famoso compromesso storico, nun-
mulação capitalista. Seguramente não podemos considerar ser uma questão de igno- ca obteve, no cenário político italiano, legitimidade para governar o país. Falamos da
rância, mas um sintoma da subordinação do PCI à Ordem do Capital. Obviamente vasta rede sindical e popular que o partido teve e de fato o tinha.
uma política redistributivista, como a proposta pelo partido, vital para a melhoria
das condições de vida das populações subalternas, requeria do partido, que se via Os sindicatos operários e as mais diversas categorias de trabalhadores por conta de outrem se
como partido de governo 345, uma posição de força. Ele buscava as alianças necessárias reforçaram posteriormente nestes anos. A CGIL aumentou o número de seus filiados de 2 milhões
para tal. O que Berlinguer propõe leva, contudo, ao inverso do postulado. O projeto 461 mil trabalhadores em 1968 para 3 milhões e 827 mil trabalhadores [... ] Também se reforçou
consideravelmente o movimento cooperativo no decorrer dos últimos anos [... ] que hoje organiza
do PCI era o de uma coalizão com a Democracia Cristã para se estabelecer uma
(cerca de 60 mil), [... ] ([ ... ] 2 milhões e 412 mil pertencem à Liga Nacional dos Cooperativistas e
democracia estável. Baseava-se em uma perspectiva de enfrentamento com setores MutuaHdades), [... ] Nos últimos meses, deram um passo em frente as organizações dos inquilinos e
reacionários da DC e seus aliados aos demais partidos direitistas, o que era real. Se a dos artesãos, dos comerciantes e dos pequenos industriais. (Berlinguer, 1977, pp. 83 e 85-7)
proposta era, pelo menos parcialmente, correta, a tática estava inteiramente fora de
órbita, desequilibrada. O partido que tinha uma rede interna de debate e o concurso de intelectuais reno-
Dialética? Ela está ausente nessa formulação; passa longe. Lembremos de que es- mados acabou apoiando a vis~o dos partidos de direita sobre os acontecimentos da
távamos em plena guerra fria e que essa identificação dos interesses do partido com década de 70, chamando de terrorismo de "marca vermelhà: em especial, ao mais
todas as classes italianas e com todos os povos do mundo era, pura e simplesmente, famoso deles: o sequestro e a morte de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã.
uma capitulação. Não há aqui nenhuma análise séria da correlação de forças, mas a Mas qual é o papel e o peso dos intelectuais no partido. 347
pura expressão de um desejo da burocracia partidária. Pior. Ele parte de premissas
absolutamente falsas para atingir à conclusão que queria: a política do "não contrapor- 346 "O PCI supera os l.750.000 inscritos, registra além de 30% dos votos com pouco menos de 12
-se a nada". Falamos em ausência de uma análise séria da conjuntura: ele acrescenta milhões de eleitores [... ]. É o segundo partido italiano por força eleitoral e é o mais forte partido
comunista do ocidente capitalístico.
345 "Não responde aos interesses e às aspirações mais profundas das massas trabalhadoras e de O nosso partido é a principal força de governo, juntos com os camaradas do PSI e também com
toda a nação colocar-se numa atitude de hostilidade para com a União Soviética ou com os Estados outras forças de esquerda e democráticas, de 6 entre 20 regiões, em milhares de municipalidades, e
Unidos. Por isso temos nos esforçado por afirmar que não colocamos a questão da saída da Itália do antes de mais nada [... ] com as mesmas alianças são por nós governadas as mais importantes cidades
Pacto do Atlântico, [.. ] porque qualquer saída unilateral de um ou de outro bloco, numa situação do nosso país: a, Nápoles, Milão, Genova, Veneza, Torino, Bolonha, Florença:' (Vellani, 1981, p. 6.
como a européia, não só não são realizáveis, mas também porque acabaria por obstruir ou mesmo Grifo nosso)
por arruinar esse processo de distensão internacional que responde aos interesses de todos os povos e 347 Sobre isto é instrutivo reler no Pour Marx a bela introdução: Aujourd'hui. Falando sobre a Fran-
se apresenta concretamente como a única via através da qual se pode chegar a uma gradual superação ça e sobre as carências do PCF Althusser afirmou: "É um traço da nossa história social que os intelec-
dos próprios blocos:' (Berlinguer, 1975, pp. 37-38. Grifos nossos). A antecedência da União Soviética tuais de origem pequeno burguesa, que vieram então ao partido, se sentiram obrigados a pagar em
no contexto da frase já permitia ver a mistificação visto que esta sequer era uma hipótese ainda que pura atividade, senão no ativismo político, a Dívida imaginária que eles pensavam haver contraído
remotíssima. por não terem nascidos proletários:' (p. 17)
242 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 243

Os intelectuais do partido de classe não são um adorno dele, não são escravos dourados aos quais tudo do Estado. [... ] e a aliança antimonopolista deve incluir, além da classe operária e da massa dos
é perdoado enquanto não levantem a mão em direção a arca sagrada dos políticos, não são aliados empregados (incluindo os funcionários, os técnicos e os quadros), uma boa parte do campesinato
privilegiados, companheiros de estrada: são militantes [... ]; os quais [... ] tem a obrigação de participar e parte considerável da pequena e média burguesia, a fim de isolar os grandes monopólios. É por
das lutas e de exprimir um empenho político pleno. Tem certamente responsabilidades particulares e as isso que não convém, durante esta primeira etapa, pôr em causa o regime da propriedade privada.
realizam em uma área particular, a margem do controle dos políticos, mas com a obrigação de verificar (Mandei, 1979, p. 162. Grifos nossos)
suas conclusões no quadro da realidade de classe e da luta geral do partido. (Panzieri, 1973, pp. 221-222)
Sinteticamente poderíamos concluir com Panzieri que:
Porque escolhemos o PCl? Não por uma preferência singular, mas pelo caráter
o autentico atual revisionismo, exclui a luta frontal contra a política hegemônica vendo nele a
emblemático da sua proposta. Vimos algumas limitações da proposta, que vão de
matriz natural da qual sairá automaticamente o socialismo. Os revisionistas vêm no capitalismo
uma indisfarçada colaboração de classe à não intervenção classista no caso dos ata- monopolista moderno como proeminente o dado do progresso técnico, e o identificam
ques da direita às liberdades democráticas, passando pelo privilegiamento do plano simplesmente com o progresso social: [... ] (veja-se as fantasias sobre "operários de colarinho
institucional e pelo abandono da luta contra o capital na tentativa impotente de man- branco: sobre indústrias onde todos são "técnicos") uma eminente desaparição da classe operária;
ter os ganhos materiais que os trabalhadores tinham obtido. O custo foi altíssimo. substituem a luta de classes, do interior, do capitalismo moderno, porque desse pode facilmente e
mais rápido brotar o socialismo. Percebendo-o ou não, pouco importa, os revisionistas, todos tomados
Mesmo mantendo uma aparente distância em relação às posições russas348 o progra- pelos romances de ficção científica sobre o progresso técnico, aceitam como inevitável o monstruoso
ma do eurocomunismo levava as classes trabalhadoras ao desastre. Como as levou, fenômeno do extraordinário crescimento de poder que o capitalismo moderno realiza; crescimento
também, o partido-mãe. de poder que da fábrica, onde o trabalhador é estranhado completamente da produção e reduzido ao
Mandel sintetizou os pressupostos dessa posição: nível da maquina, se transfere na sociedade e forma a base de um regime neototalitário. (1973, p. 171.
Grifo nosso)
É impossível atingir o socialismo nos países industrializados sem o consenso duma larga maioria
da população. Chamamos a isso a estratégia de uma derrota previamente anunciada. Silogismo de-
Com esse objetivo, é preciso conservar as instituições parlamentares burguesas, que gozam do feituoso ou sofisma consciente? Na realidade o programa assim colocado reforçou as
manifesto apoio dessa maioria. ilusões, por um lado, e, por outro, a impotência. Podia-se dizer que se o proletariado
A natureza dessas instituições é tal que podem ser progressivamente esvaziadas do seu conteúdo
isolado desse um assalto ao céu aconteceria naquela ocasião uma profunda derrota;
particular de classe, isto é, deixar de ser os suportes da dominação de classe da burguesia. [... ]349
É preciso evitar a todo o custo um confronto direto entre a burguesia no seu conjunto e o mas não era isto que estava colocado na ordem do dia. Lucio Magri nos oferece uma
proletariado isolado, não só porque semelhante confronto se saldaria com certeza pela derrota visão do impacto dessa prática:
do proletariado, como também porque conduziria inevitavelmente à destruição das instituições
parlamentares burguesas e atrasaria assim por um longo período toda a possibilidade de rotura no o reformismo, pela sua confiança nos órgãos institucionais e o respeito pela legalidade burguesa,
sentido do socialismo. concebeu sempre as lutas sociais como movimentos de opinião que pressionam sobre as forças políticas
Através da conquista de maiorias parlamentares ~ignificativas (apoiadas pela pressão e a mobilização e as assembleias representativas. Por isto o movimento foi sempre muito genérico e desarticulado para
das massas) o movimento operário pode e deve conquistar reformas estruturais que transformarão consentir uma participação de massa, e ao mesmo tempo muito diretamente instrumentalizado pela
por etapas a natureza do regime capitalista e acabarão por mudar a sua própria natureza. luta eleitoral para poder fazer crescer momentos verdadeiramente unitários. 350
A etapa essencial que defrontamos é a da aliança anti-monopolista, ou da "democracia avançadà:
que enfraquecendo primeiro e abolindo depois o poder dos monopólios, dará um golpe decisivo no
capitalismo e permitirá que aumente o peso e o poder das massas laboriosas na sociedade através de
Na verdade tratava-se de deslocar o jogo do campo dos movimentos da classe para
diversos mecanismos de democratização da vida econômica e da participação das massas na gestão um parlamento onde os PCs eram uma minoria que no máximo agitava bandeiras
348 Sequer isso é verdade. O Pravda (1 de maio de 1977) argumenta: "Não há êxito a não ser que a
socializantes. O PCI, com seu um terço do eleitorado, não conseguia avançar. O com-
classe operária, que todas as massas laboriosas transformem o Parlamento de dominação da burgue- promesso storico era a tentativa de constituir um campo avançado (segundo seus
sia, em representante dos interesses do povo trabalhador [... ] Os programas para transformações pro- proponentes) com a Democracia Cristã, partido dos monopólios (Agnelli, entre ou-
fundas de estrutura econômica da sociedade, para a construção dum Estado de aliança democrática,
para um Governo do bloco das forças de esquerda, da democracia anti-monopolista e outros, que
tros) e do que havia de mais reacionário na Itália (vide, entre outros, as lutas sobre o
hoje são propostos por vários partidos comunistas na Europa e noutras partes do mundo, são etapas divórcio e o aborto). Nesse partido Aldo Moro, apesar de apoiar o compromesso, era
intermediárias e formas transitórias na via do socialismo, que levam em conta as condições concretas um ponto fora da curva35l • Deslocar as lutas para o parlamento e alimentar as ilusões
de todos os países:' Citado por MandeI, 1979, p. 191. Os grifos são nossos.
349 Conhece-se algum caso de que o parlamento burguês tenha se transformado em um Estado 350 Lucio Magri, "Dalla fabbrica alla società': "Il Manifesto", n. 3-4, marzo-aprile 1970 citado por
regido por um Governo do bloco das forças de esquerda, da democracia anti-monopolista e outros? Dalmasso, 1999. Grifo nosso.
A posição de Kautsky, defendida a partir da década de 80 do século dezenove, embora igualmente 351 Moro foi para uma boa parte da esquerda uma espécie de nome quase intocável. Se exami-
impraticável, era mais criteriosa e estava assentada em um avanço real das classes trabalhadoras, o narmos, contudo, sua ação como governante veremos um político anti -classe trabalhadora: "[ ... ] o
que sequer era o caso da URSS. governo Moro [... ] em 1964: não parece casual nem secundário, se exatamente naquela situação di-
244 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 245

que ganhando aí uma forte representação poder-se-ia até mesmo mudar a sua natu- pelos PCs, espanhol e francês, propõe uma estratégia defensivista, apesar da aparência
reza e fazer com que, de fato, ele representasse o povo era ignorar as lições da história de força. E importante assinalar que com os acontecimentos chilenos, a derrota dessa
e calar os subalternos, nada mais, nada menos. estratégia, da morte de Allende e de muitos militantes e do estabelecimento da sangui-
Kautsky propôs em 1910, no debate sobre estratégia na socialdemocracia alemã352 nária ditadura de Pinochet, foram decisivos para a formatação da estratégia do PCp55.
a estratégia de desgaste contra a posição de Rosa Luxemburgo que defendia a estra- Mesmo considerando que esse golpe colocava a questão da necessidade de ter
tégia de assalt0 353 . Kautsky partia do acúmulo de forças, do avanço sindical e dos
progressos parciais dos quarenta anos anteriores. Acusaya a Rosa de querer o assalto Consciência contra qualquer ilusão [sobre] o caráter do imperialismo, e do norte-americano
imediato ao poder, o que não era verdadeiro. O resultado da "vitoriosa" tática de em particular, [... ] o estrangulamento econômico e político, o espírito de conquista, a tendência
a oprimir os povos e a privá-los de sua independência, liberdade e unidade cada vez que as
Kautsky foi a derrota das tentativas revolucionárias de 1918 e 1923 e o assassina-
circunstâncias concretas e as relações de força o consintam.
to de Rosa e de Karl Liebknetch em um governo dirigido por um ex-sindicalista [... o golpe] põe em evidência quem são e onde estão nos países do chamado "mundo livre': os
(Noske) 354. inimigos da democracia. (Berlinguer, 1973)
Essa estratégia, da qual o eurocomunismo é uma reedição piorada, não levou em con-
ta a capacidade de a burguesia e suas frações resolverem suas contradições quando ame- Precisava? Ele insiste na tecla da coexistência e o faz a partir da constatação da
açada pelos movimentos dos subalternos. A luta ideológica, a captura da subjetividade necessidade de "contrastar, limitar e deter" essa "tendência" do imperialismo. Obvia-
do antagonista, foi aqui decisiva. A estratégia eurocomunista italiana ocorreu em um mente há aqui, um brutal desconhecimento da natureza do capitalismo. Chama de
cenário em que por um lado a reestruturação capitalista estava em curso e, por outro, o tendência algo que é a natureza mesma do capitalismo. Como combater isso?
movimento operário ganhava um nível de consciência que colocava em questão o po-
der capitalista no seu próprio território - o da fábrica e não apenas nele. Nesse momento A resposta mais simples e também a mais verdadeira: a modificação progressiva das relações de
força em desvantagem dele e a favor dos povos que aspiram a própria libertação e por um novo
quando em várias partes do mundo as lutas populares avançavam o PCl, acompanhado sistema de relações entre os Estados. É exatamente nesta direção que vai o processo histórico mundial
fícil se desenvolvessem 'manobras presidenciais' (concertadas com o 'Plano Solo', elaborado em de quase sessenta anos, desde quando a revolução russa de 1917 despedaçou pela primeira vez a
torno da arma dos carabineiros) tendente a urna 'reviravolta autoritária' [... ]. O segundo gabinete dominação exclusiva do imperialismo e do capitalismo. (idem. Grifos nossos)
Moro, pouco depois de formado, não se revelou de fato resolutor destes problemas, acentuou o seu
'papel de ordem', até o ponto de que um ministro socialdemocrata se fez portador da proposta de Nesta leitura do real a dialética não encontra o espaço. Examinemos a tese. Falar de
um decreto anti-greve, para reprimir a luta dos alfandegários em curso; sobre essa proposta o gover-
no arriscou a crise. Em 1965, o governo Moro empenhou-se em um 'braço de ferro' com as lutas um processo histórico como ele o faz escamoteia-se as contradições e elementos que
operárias desenvolvidas um pouco em todas as partes do país, com a finalidade de dar urna 'prova negam diretamente a tese. Entre 1917 e o golpe chileno não houve apenas esse processo
de firmeza' e para recuperar parte da credibilidade perdida nos confrontos com a Confindustria, evolutivo positivo (o mundo caminha para o socialismo?), mas houve também o nazi-
guiada pelo extremista Costa. Moro assegurou que o governo teria sabido 'dizer não' às exigências
operárias. Corno expressão desta linha governamental foram: a) denunciadas, por terem exercitado -fascismo, o avanço do americanismo e fordism0 356, o wellfare state e, não esqueçamos
o direito de greve, 5000 pessoas entre operários (ferroviários, garis, trabalhadores de hospital, vigi- o autunno caldo e a brutal repressão à chamada esquerda extraparlamentar (inclusive
lantes urbanos) e dirigentes sindicais; b) consumadas agressões contra operários gazistas de Nápoles, com o apoio do PCI). Tudo o que de fato representou o avanço do imperialismo que
Florença e contra os operários Sirma de Veneza por parte das forças da ordem; c) usados os guardas
fiscais contra os alfandegários, em urna função declaradamente anti-greve. [Ainda] em 1965, foi em- é reconhecido no corpo da tese, mas subestimado no seu interior. Não falaremos, por
blemático o destino que encontrou a proposta do governo Moro de cortar as despesas para a previ- desnecessário, do significado político do progressivo que de fato chamando a atenção
dência que provocou a mobilização unitária dos operários ao lado dos aposentados, selada por urna para as dificuldades sequer menciona a possibilidade revolucionária.
greve geral. Não teve melhor sorte o IH gabinete Moro em 1966: as pressões incitadas por Costa em
direção ao governo restauram sem confronto político eficaz, enquanto o front empresarial começou Mesmo reconhecendo os "fatti cileni" Berlinguer insiste na colocação geográfica
a dar sinais de divisão interna. Os propósitos governamentais de "congelamento da despesa públicà' da tese da coexistência.
e de disciplinamento restritivo do exercício do direito de greve foram amplamente contornadas e
derrotadas pela luta operárià'. (Chiocchi, 2008. Grifos nossos.) 355 Cf. o artigo de Berlinguer, "Imperialismo e coesistenza alla luce dei fatti cileni", Rinascita de 28
de setembro de 1973.
352 Ernst Bloch em seu Princípio Esperança, na década de 50, localizou bem o problema: "a social-
democracia silencia a respeito do fato de o socialismo pressupõe a revolução, cuja ausência permite 356 É preciso ter sempre em mente a desigualdade desse processo. Gambino (2010) nos lembra
o nascimento do capitalismo de Estado': Citado por Labica (2009, p. 38) que: "Desde a metade dos anos '30 até o início da Guerra Fria (1947) o quadro institucional do New
353 O debate sobre a tática estava referido à questão da greve de massas. O conjunto do debate foi Deal de Roosevelt tinha diminuído a desigualdade nas condições de trabalho e nas rendas em vastas
~reas do país aonde o sindicalismo industrial ia afirmando-se. Permanecia excluída grande parte do
publicado na série Debate sobre La Huelga de Masas (Aricó e Feldman, 1975-1976). Ver também
Salvadori, 1981. Sul e do Sudoeste, onde a longa sombra da escravidão e do racismo se projetava sobre o fundo do
354 Será urna maldição histórica ou mais urna confirmação da tática de Kautsky: ex-sindicalistas New Deal. Atuando sobre o racismo anti-sindical e sobre muitos dos representantes políticos de tais
destruindo sindicatos e movimentos sociais, atrelando-os a si ou lutando pelo seu extermínio? regiões, urna lei de limitação do poder sindical (lei Taft-Hartley, 1947) golpeava os setores e as zonas
escassamente sindicalizadas:'
246 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 247

cia aos aborígenes: a sua exclusão da vida social! O governo britânico negou -lhes
A política da distensão, na perspectiva da coexistência pacífica, é acima de tudo o caminho obrigado toda cidadania tornando-os ' invisíveis' ao resto do mundo:'
para garantir um objetivo primário, de interesse vital para toda a humanidade e para todos os Uma conjuntura rica em contradições, mas nem assim Berlinguer e o PCI se po-
povos: evitar a catástrofe da guerra nuclear e termonuclear, assegurar a paz mundial, afirmar o
princípio da negociação como único meio para resolver as controvérsias entre os Estados. (idem)
sicionaram de forma positiva. Nada ou quase n\da de estratégia. Apesar de falar em
ampla campanha de solidariedade com os chilenos termina reduzindo tudo à... via
Trata-se seguramente da expressão de uma ideologia (fundamentalmente elabo- italiana. A etapa dita de "acúmulo de forças': "de transição" ou qualquer outra no-
rada pelo PC soviético) que trabalha com abstrações vazias: humanidade, povos, menclatura que se use para designá-la foi, e é ainda hoje, proposta como uma prepa-
tudo abstrato, sem nenhuma concreção. Humanidade e povos sem contradições. ração ideológica dos subalternos. Nada mais louvável seria se assim fosse.
Parece mais um piedoso desejo do que uma tática e uma estratégia políticas. Ber-
linguer chega mesmo a afirmar que esta proposta passa por construir uma Europa o capitalismo dispõe de imensos redutos de defesa à volta da sua fortaleza e no próprio seio do
corpo social supostamente sitiante [os subalternos]. Esses meios defensivos não permitem qualquer
e um Mediterrâneo "autônomo(s), pacífico(s), democrático(s)': Isto não quer dizer agrupamento prolongado nem qualquer assédio de longa duração. Podem ser desmanteladas, mas
"colocar tal Europa, e nela a Itália, em uma posição de hostilidade ou em relação à unicamente em ocasiões precisas, quando um conjunto de circunstâncias momentaneamente
União Soviética e os outros países socialistas ou em relação aos Estados Unidos:' enfraquece ou até paralisa a capacidade do seu uso pelo inimigo. Essas ocasiões não são, porém, de
Curiosa (para sermos elegantes) proposta de quem quer combater o imperialismo e longa duração; chamam-se "crises revolucionárias': (MandeI, p. 165. Grifo nosso)

suas tendências brutais. Rossanda, com ironia e razão, lembrou: "Nos anos setenta,
considerando os acontecimentos do Chile, Enrico Berlinguer fez saber ao Estado, Justa no conteúdo a crítica de MandeI parece ter um tom fatalista. Gramsci traba-
no qual desejava entrar, que não teria procurado modificar nenhum dos equilíbrios lha situações como essa pela dialética "guerra de movimento/guerra de posição': A
militares, nem internos nem internacionais:' (1996, p. 145) tese da hegemonia de Gramsci está articulada com o pressuposto de que um partido
Depois de tudo isso, concluindo seu artigo, Berlinguer - em poucas linhas - afirma pode ser dirigente antes mesmo da conquista do poder. Isto exige, contudo, que as
forças dos subalternos estejam permanentemente mobilizadas e sem ilusões sobre
as diferenças entre Chile e Itália. E finaliza:
a possibilidade da democratização seja do Estado, seja do Capital. As lições da Co-
Mas juntamente com as diferenças existem analogias, e em particular aquelas que os comunistas e muna de Paris mereceriam uma análise mais profunda pelos eurocomunistas. E não
socialistas chilenos tinham se proposto ao perseguir uma via democrática ao socialismo. apenas estas, mas todas aquelas contidas na Crítica do Programa de Gotha. As ilusões
Do complexo das diferenças e das analogias é necessário tirar uma motivação para aprofundar e pagam-se caro. Mandel explicitando sua crítica afirma:
precisar melhor em que consiste e como pode avançar a via italiana ao socialismo. (idem)
Não é porque os Ebert-Noske, Otto Wels, Prieto, Thorez, Berlinguer, Allende e Mário Soares
Era um momento de relativa debilidade estadunidense: jurarem que o exército é "nacional", "democrático': "acima da luta de classes" e "respeitador da
Constituição': que os "putchs" de Kapp, de Von Papen, de Mola-Franco, de De Gaulle, de Pinochet
Quando finalmente acabou a guerra do Vietnã, em 1975, os Estados Unidos tinham sofrido uma e de Eanes foram evitados. (idem, p. 169)357
enorme derrota no que, sem contar com a Guerra Fria ideológica, era claramente uma guerra
imperialista. A derrota coincidiu com um súbito abrandamento na taxa de crescimento da economia MandeI vai mais além e toca a questão que nos parece essencial:
capitalista americana e mundial no período dos anos 70, quando reapareceu a velha ameaça de
estagnação do sistema. A grande exportação de dólares para o estrangeiro associada com a guerra
e com o crescimento do império criou um gigantesco mercado eurodólar, que desempenhou um 357 Um tema retoma sempre: houve ou não traição das direções? Solução extremamente simplificada
papel fundamental na decisão do presidente Richard Nixon de desligar o dólar do ouro em Agosto para um problema grave. Rieser salienta que o ofuscamento da consciência de classe apresenta duas
de 1971, acabando com o padrão dólar-ouro. Isto marcou o declínio da hegemonia econômica dos possibilidades: a primeira é devida "ao fato de que as organizações do movimento operário tenham
EUA. A crise energética que atingiu os Estados Unidos e outros importantes estados industriais abandonado uma perspectiva de classe (é a clássica hipótese do complô-traição)"; a segunda fala na
quando os países do Golfo Pérsico cortaram as suas exportações de petróleo em resposta ao apoio "conseqüência inevitável das mudanças estruturais (e não apenas estruturais) do capitalismo". Nenhu-
ocidental a Israel na guerra de Yom Kippur de 1973, revelou a vulnerabilidade dos EUA dada a sua I ma das duas, por si só, explicam o problema. A primeira embora tenha base na realidade acabou por
independência do petróleo estrangeiro. (Foster, 2011) esterilizar-se na pura denúncia. A segunda centra sua explicação na "questão da composição de classe"
sem, contudo, avançar na "análise concreta de situações concretas" permanecendo assim uma abstração
puramente formal, reportando, além disso, forte carga determinista. Rieser avança a explicação de que,
Uma dimensão realista da situação é apresentada por Moretti: "Nos anos 30 [do hoje, as "mudanças na composição de classe não são redutíveis a mudanças na composição profissional
século XX] 84,5% da superfície emersa do globo era constituída por colônias e ex- (ao declínio de algumas figuras e ao emergir de outras) ou na composição setorial (mais trabalhadores
no terciário e menos na indústria), mas através da desregulamentação das relações de trabalho, intro-
-colônias. [... ] Na Constituição Australiana redigida em 1900 há uma única referên- duzem elementos de divisão mais profunda e de 'distorção' na estratificação da classe':
248 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 249

A luta de classes é reduzida exclusivamente ao seu aspecto político - melhor: político-parlamentar. eficiência, seriedade e justiça; isto é, o contrário de tudo o que conhecemos e pagamos até agora, e
As relações entre as classes são no essencial reduzidas apenas às relações entre partidos políticos - que nos levou à crise gravíssima cujos estragos se acumularam desde anos e que hoje se manifesta
melhor: entre as direções dos partidos políticos. Um punhado de "chefes" é considerado como capaz de na Itália em todo o seu dramático alcance.
representar e articular validamente os interesses sociais de milhões de pessoas, com todos os seus mais [... ] Assim concebida a austeridade se torna uma arma de luta moderna e atualizada seja contra
complexos entrelaçamentos, e isso como simples efeito dos resultados eleitorais. Essas classes sociais - os defensores da ordem econômica, seja contra os que a consideram como a única sistematização
isto é milhões e, nos grandes países, dezenas de milhões de pessoas - são consideradas como em posição possível de uma sociedade destinada organicamente a permanecer atrasada, subdesenvolvida
de ''sentido'' perante esses chefes oniscientes, marchando ou estacando segundo a ordem dada, agindo [... ] cada vez mais desequilibrada, cada vez mais carregada de injustiças, de contradições, de
como autômatos manipulados por um mecanismo que, estritamente, os cOf'ltrola. (idem, pp. 169-170. desigualdades. (Berlinguer, 1977, Grifos nossos.)
Grifo nosso )358
Ele vai mais longe e afirma que a política de levar a "abandonar a ilusão que seja
Isto implica em manter os subalternos ... subalternos. Alterar o sinal negativo para possível perpetuar um tipo de desenvolvimento fundado na artificiosa expansão
positivo sem mudar as relações de forças existentes é manter a situação vigente. Gra- dos consumos individuais que é fonte de desperdícios, parasitismos, privilégios, dis-
msci nos anos dez do século passado falava que a burocracia sindical se transformara sipação de recursos" e "ter como meta [... ] instaurar justiça, eficiência, ordem, e,
em magistratura da "legalidade industrial", convertendo-se, assim, em "demiurgo das acrescento uma nova moralidade': Com essa análise é possível propor um tipo de
classes em luta". Igual formulação se poderá utilizar para caracterizar a burocracia estratégia abstrata, vazia, mas que requererá, "certas renúncias e sacrifícios", mas terá
partidária. Um exército revolucionário não pode ser uma massa passiva e obedien- 'ao mesmo tempo [um] significado renovador e torna-se, com efeito, um ato libera tório
te. Assim como o educador deve ser educado também os comandantes devem eles para as grandes massas" (idem. Grifo nosso )360.
mesmos ser educados. Para Gramsci um partido democrático é aquele na qual cada A estratégia é retomada em Austerità, occasione per transformare l'Italia 361 •
"soldado" possa vir a ser "general': isto é, que o saber e as experiências das massas
fecundem e sejam fecundadas pelo saber das direções. Trata-se da unidade teoria- É [o impulso dos povos do terceiro mundo] que abala pouco a pouco todos os equilíbrios passados
/ e presentes [... ]. É esse impulso, ou pelo menos é ele principalmente que, agindo em profundidade,
-prática, unidade indissolúvel que só pode ser separada metodologicamente. faz explodir as contradições de toda uma fase de desenvolvimento capitalista do pós-guerra e
A proposta de pacto social berlingueriano, baseada na composição política que, determina em diferentes países condições de crise nunca atingidas. (citado por MandeI, p. 197. Grifos
longe de fazer avançar a luta dos subalternos, tinha como questão central a salvação deMandeI.)
do capitalismo em crise. Aqui, para variar, o PCI joga na lata do lixo mais de um
século de investigação marxista sobre a crise. Berlinguer avança a "hipótese" (sic) Ele ignora, conscientemente, tanto a teoria marxista da crise, quanto a crise de 29.
de que a crise decorria de duas causas fundamentais: "a inflação e a 'transferência O que ele sabe fazer? A pequena política de subordinação das massas trabalhadoras
de recursos' dos países industrializados para os países do 'terceiro mundo' (isto é, a ao capital. Como pode proclamar a si e ao partido como seguidores de Gramsci? Essas
alta dos preços das matérias-primas e, antes de mais nada, a do petróle0 359 )" o que é "teses" tinham a função de fazer as massas trabalhadoras aceitar as teses do "inte-
a ideologia burguesa pura e simples. A tendência da queda da taxa de lucros sequer resse geral': do "destino da nação': do sacrifício necessário para salvar a Itália. O que
é mencionada, como também não o é o antagonismo das classes. A reestruturação significa mistificar a realidade ao afirmar a homogeneidade de interesses das classes,
orgânica do capital e as novas tecnologias, que atuaram poderosamente sobre esse posição que é aquela defendida pela teoria liberal da cidadania: "por razões estraté-
antagonismo, não merece dele sequer uma reflexão, quanto mais uma reflexão séria. gicas e táticas, a ideologia do 'interesse geral' deve prevalecer, o marxismo é lançado
Lembremos que o pacto entre as classes era decisivo no seu discurso estratégico. Isto ao lixo': afirma MandeI (p. 199). Os economistas partidários (como, por exemplo,
fica ainda mais claro no encerramento da Conferência dos intelectuais do partido Sergio Zangirolami) procederam ao contorcionismo mais completo, um verdadeiro
em janeiro de 1977. Nessa conferência ele coloca a austeridade como estratégia par- haraquiri teórico-prático, ao defender essas posições em Economia política marxista
tidária: e crisi attuale, Ed. Riuniti, Roma, 1977, o mesmo ocorre com dirigentes, como Napo-
litano, ao defender expressamente que isto era necessário para aumentar o emprego
Para nós a austeridade é um meio para contrastar as raízes e colocar as bases da superação de um produtivo,
sistema que entrou em uma crise estrutural e de fundo, não conjuntural, daquele sistema cujos
360 "Quero dizer com toda franqueza que quando se pedem sacrifícios ao país e se começa a pedir -
caracteres distintivos são o esbanjamento e o desperdício, a exaltação de particularismos e do
como de costume - aos trabalhadores, enquanto se tem às costas uma questão como a P2, é bastante
individualismo mais desenfreado, do consumismo mais insensato. A austeridade significa rigor, difícil receber audiência e ser críveis. Quando se pedem sacrifícios à gente que trabalha requer-se um
grande consenso, uma grande credibilidade política e a capacidade de golpear privilégios exorbitan-
358 "Em primeiro lugar há a figura e o papel do 'chefe (capo) do partido'; um personagem longínquo tes. Sem estes elementos, não se pode, a operação não pode ter êxito:' (Berlinguer, 1981).
e mítico ao qual é delegado a elaboração da política [... ]:' (Panzieri, 1973, p. 207) 361 Berlinguer, Riuniti, 1977.
359 Relatório de outubro de 1976 do PCI citado por MandeI, p. 196.
250 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 251

e de contr~partidas, ~gora - mudada a situação - se representa em uma versão "débil': em que


[para] suscitar na indústria uma procura de mão-de-obra [... ] é preciso [... ] afrontar de modo as concessoes e os VInculos superam claramente as contrapartidas e as margens de iniciativa
draconiano o problema da situação econômica dessas empresas com referência particular ao custo autônoma. A CISL, engata nisto uma sua ideologia da "participação': enquanto a CGIL relança
do trabalho. (publicado pelo Rinascità, de 20 de maio de 1977, citado por Man~el, p. 219). ta:dia~ente u~ model.o de "co-determinação" (onde a análise "de classe' não comparece) quando
nao eXIstem maIS condIções de realizá-lo, pelo que permanece no papel. A consequência prática de
Berlinguer já falara da neutralidade do Estado e do Parlamento, fala agora da neu- todo isto é que os sindicatos "gerem o refluxo': em uma impostação puramente defensiva mesmo
tralidade da técnica, visto que a austeridade, para além de uma ideologia de subalter- quando as condições objetivas reabririam possibilidades de contraofensiva. (Rieser)
nização das massas, é também uma forma técnica de praticar a economia do capital.
Logo nada há de espantoso que ele nos afirme: "Nós não desejamos a transição ime- Não é sem uma grande ironia que Rossanda (1996) solicita: "Espero ainda que al-
diata para o socialismo. As nossas propostas não visam semelhante transição:' (idem, p. guém me explique, porque quando Andreotti estava na barra dos tribunais, o PCl o
203. Grifo nosso)362 O que se quer é a transformação de um capitalismo clientelístico tenha absolvido do impeachment em 1983': (idem, p. 218) É preciso entender porque
e parasitário em um capitalismo racionalizado e competitiv0363 . Os sacrifícios foram um partido que se afirmava como sendo "a expressão e a consciência da classe operá-
feitos: a escala móvel foi modificada e atenuada e foram suprimidos set~ feriados 364 . ria e do povo" (Berlinguer, 1977, p. 118. Grifo nosso) e com sólidas raízes no seio das
O que resultou dessa mutilação?
I
m~ssas populares e imaginar que estas "não são apenas indestrutíveis, mas por sua vez
alzmentam a nova força e a sua contínua renovação" (idem. Grifo nosso) possa ter se
Desapareceram [... ] as antigas estruturas capitalistas? E o emprego, o grande argumento que no auto dissolvido em pouco mais de uma década. Gramsci (lI partito comunista (lI),
fundo justifica os sacrifícios aos olhos dos trabalhadores menos conscientes? O emprego recuou ON, 9-10-1920) chamava a atenção para esse tipo de construção: o povo é indestru-
de 1,1% em relação ao primeiro trimestre de 1976, apesar dum aumento da produção de 10,9%365. tíveL Segundo ele isto traduzia a intervenção dos pequenos burgueses que minavam
Erosão do poder de compra dos salários mais perdas de emprego, igual a pronunciado aumento de
produtividade, isto é da mais-valia relativa, isto é, dos lucros. (MandeI, p. 215)
o partido e as massas italianas, despreparando-as para os choques reais.

Solução clássica do capitalism0366. O processo tem uma ampla repercussão em


todo o movimento dos trabalhadores:

o PCI "resiste" até que Berlinguer [... ] e sua deriva liberista sofre uma aceleração pela "reviravoltà'
de Occhetto [... ] (não por acaso em 1989). Mais complexa é a evolução dos sindicatos. A CISL é a
primeira "a fazer as contas" com a derrota de 89, com uma clara reviravolta à direita. A CGIL evita
fazer explicitamente um balanço crítico, e mantêm elementos de débil continuidade com a fase
precedente. De fato os sindicatos não podem assumir organicamente um esquema liberista que
está em contradição com sua própria natureza e função: terminam então com uma impostação
"concertativà: que é a reproposta de um modelo de relações industriais, a seu tempo, chamado de
"neocorporativo': amadurecido na última fase do fordismo. Mas, se era então um mix de concessão

362 "Não queremos seguir os modelos de socialismo que foram até agora realizadas, refutamos uma
planificação da economia rígida e centralizada, pensamos que o mercado possa manter uma função
essencial, que a iniciativa individual seja insubstituível, que a empresa privada tenha um espaço seu
e conserve um papel importante próprio. Mas estamos convencidos que toda esta realidade, dentro
das formas capitalistas - e, sobretudo hoje, sob a capa de chumbo do sistema centrado em torno da
DC - não funcionam mais, e que então se possa e se deva discutir de que modo superar o capitalismo
entendido como mecanismo, como sistema, já que ele, hoje, está criando massas crescentes de de-
sempregados, de marginalizados, de explorados. Está aqui o fundo, a causa não apenas da atual crise
econômica, mas de fenômenos de barbárie, do difundir-se da droga, da recusa ao trabalho, do tédio,
do desespero:' (Berlinguer, 1981) Só agora?
363 Tese conhecida pelos brasileiros: de Mario Covas ("choque de capitalismo)" a Luis Inácio (trans-
formação do capitalismo selvagem), passando por Collor. A vantagem (sic) é que aqui pelo menos
nenhum dos seus proponentes se propunha comunista.
364 in Le Figaro, 31 de maio de 1977, citado por MandeI, p. 215.
365 in Neue Zuercher Zeitung, de 24 de maio de 1977, citado por Mandel, p. 221.
366 O mesmo ocorreu no Brasil com a introdução das famosas Câmaras Setoriais.
TRABALHO SOB O NEOLIBERALISMO: AUTÔNOMO OU PENOSO?

'I!,
'I As habilidades e conhecimentos que até então estruturaram suas profissões e
1

1',1
'

ocupações, também foram colocados em questão e passaram a ser avaliados


I:,
com referência numa escala fixada entre a defasagem profissional e a inutili-
I dade. Mas isto não significou o desaparecimento da experiência do trabalho.
II 1

,I ,i, I.,. ,
Questão relevante é conhecer e discutir sobre essa nova condição dos trabalha-
dores num mundo onde sua formação laboral parece não encontrar mais lugar.
"

li,',
'. I:
1I Antonio Bosi
'I
I: I
I, A Itália e a França viveram anos de rebelião dos subalternos no final da década
i!
dos 60 e início dos 70 do século passado. Na Itália o patronato, os órgãos de segu-
',.1,

1
,i
'I rança, os partidos de direita, a CGL e o PCI para enfrentar o autunno caldo, as lutas
:1 dos diversos movimentos sociais (dos jovens, das mulheres, lutas por habitação,
11

i
etc., criaram, cada qual a seu modo, o duplo cenário da "estratégia da tensão" e
I,;
da recomposição industrial, para quebrar a espinha dorsal daqueles movimentos.
Mesmo após esse período as medidas de destruição dos direitos dos trabalhadores
foi promovido por um governo dito progressista: o primeiro governo do Ulivo
introduziu o trabalho interinale. O ministro do trabalho era um quadro da CGIL
e o governo era sustentado pela Rifondazione Comunista. Na França o quadro foi
semelhante:

A modernização do trabalho caracterizou-se essencialmente por uma individualização sistemática


da ordem industrial capitalista. E isso em resposta à grande comoção de maio de 68, que pôs
em perigo os próprios fundamentos da ordem industrial capitalista. Na França, maio de 68 foi
efetivamente não apenas uma revolta jovem e estudantil, mas também e, sobretudo, uma greve geral
de três semanas que causou profunda inquietação no patronato e no poder político (o general de Gaulle
desapareceu por três dias durante os quais foi certificar-se com o general Massu da confiabilidade e
da fidelidade do exército). Desde seu congresso nacional de 1973 em Marseille, o patronato havia
articulado um contragolpe, a individualização. (Linhart, 2009. Grifo nosso)

Tudo isso sob a proteção e omissão, direta ou indireta, do Estado.


EDMUNDO FERNANDES DIAS

REVOLUÇÃO PASSIVA E MODO DE VIDA:

ENSAIOS SOBRE AS CLASSES SUBALTERNAS,


O CAPITALISMO E A HEGEMONIA

São Paulo, 2012


DETERMINISMO: O CAMINHO DA DERROTA

o conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não


condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas.
É uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a
classe operária alemã que a opinião de que nadava com a corrente.

Walter Benjamin

A teoria não é, nem pode ser um mero ornamento, e muito menos um leito de
Pro custo. Neste amarra-se o culpado em um leito de ferro. O que excede é mutilado,
amputado para que coincida com um real como o queremos. Isto não é uma metá-
fora. Foi o procedimento da direção estalinista255 • A história tinha que combinar com
sua visão estratégica. Um excelente exemplo foi o debate sobre o conceito de modo
de produção asiático256• O determinismo cristalizado como verdade universal, evolu-
cionista, ahistórico afirmava a existência de quatro etapas no desenvolvimento das
sociedades, os modos de produção antigo/feudal/capitalista/ socialista. O debate não
era apenas teórico, mas pelo contrário se referia a estratégia revolucionária.

Em fevereiro de 1931 abre-se em Leningrado uma reunião muito importante, que parece ter tido
um caráter mais político do que realmente científico. Nela os defensores do modo de produçãp
asiático são assimilados aos trotskistas, apesar da distância que separava as teses de uns e de
outros; aqueles consideravam com efeito que a China, no essencial já tinha entrado no estágio do
capitalismo e ultrapassado o feudalismo, [enquanto os outros] consideravam que a China podia
estar ainda em um estágio "asiático': não feudal, e em todo caso que sua estrutura social apresentava
muitas originalidades. (Chesnaux, p. 19)

Vemos assim um duplo movimento: por um lado, nega-se a historicidade real ao


impor um modelo falsificado da realidade (China, Brasil e outros eram apresentados
como na transição feudalismo/capitalismo); por outro et par cause, impõe-se na prá-

255 Tratamos esse assunto variadas vezes. Ver Dias, 1997, 1999, 2001b e 2006.
256 Sobre o modo de produção asiático ver Centre d' Études et de Rechesches Marxistes, 1969.
DETERMINISMO: O CAMINHO DA DERROTA

o conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não


condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas.
É uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a
classe operária alemã que a opinião de que nadava com a corrente.

Walter Benjamin

A teoria não é, nem pode ser um mero ornamento, e muito menos um leito de
Pro custo. Neste amarra-se o culpado em um leito de ferro. O que excede é mutilado,
amputado para que coincida com um real como o queremos. Isto não é uma metá-
fora. Foi o procedimento da direção estalinista255 • A história tinha que combinar com
sua visão estratégica. Um excelente exemplo foi o debate sobre o conceito de modo
de produção asiático256• O determinismo cristalizado como verdade universal, evolu-
cionista, ahistórico afirmava a existência de quatro etapas no desenvolvimento das
sociedades, os modos de produção antigo/feudal/capitalista/ socialista. O debate não
era apenas teórico, mas pelo contrário se referia a estratégia revolucionária.

Em fevereiro de 1931 abre-se em Leningrado uma reunião muito importante, que parece ter tido
um caráter mais político do que realmente científico. Nela os defensores do modo de produçãp
asiático são assimilados aos trotskistas, apesar da distância que separava as teses de uns e de
outros; aqueles consideravam com efeito que a China, no essencial já tinha entrado no estágio do
capitalismo e ultrapassado o feudalismo, [enquanto os outros] consideravam que a China podia
estar ainda em um estágio "asiático': não feudal, e em todo caso que sua estrutura social apresentava
muitas originalidades. (Chesnaux, p. 19)

Vemos assim um duplo movimento: por um lado, nega-se a historicidade real ao


impor um modelo falsificado da realidade (China, Brasil e outros eram apresentados
como na transição feudalismo/capitalismo); por outro et par cause, impõe-se na prá-
255 Tratamos esse assunto variadas vezes. Ver Dias, 1997, 1999, 2001b e 2006.
256 Sobre o modo de produção asiático ver Centre d'Études et de Rechesches Marxistes, 1969.
186 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida
187

tica histórica concreta uma visão que acaba por determinar as estratégias políticas O mercado é a unidade de todos aqueles que não se colocam a tarefa de ruptura do
(se a estratégia estava errada - concientemente, pensamos -, as táticas só poderiam capitalismo (o "assalto ao céu': na linguagem da Comuna de Paris). A burguesia e
levar à derrotas). No caso brasileiro afirmava-se a passagem feudalismo/capitalismo a esquerda redistributivista aparecem e atuam como "parceiras antagônicas": mais
em detrimento de análises concretas e reais. Curiosa ou sintomaticamente esse mo- parceiras que antagônicas. As questões da emancipação são deslocadas para o fundo
delo coincidia com o projeto burguês. Lá como aqui o debate correspondia à teologia da cena; só o mercado é racional, dizem!
laica estalinista. No Brasil o debate foi assumido por Andrew Gunder Prank e Caio ~ i~eia da ~rise. terminal do capitalismo e a da passagem - quase automática - ao
Prado Jr., entre outros. SOCIalIsmo nao fo~ ~~~nas um erro teórico, mas uma brutal derrota estratégica. Rosa,
O exemplo clássico do determinismo como matriz de derrotas foi a incapacidade Trotsky e GramscI Ja tInham denunciado essa perspectiva: sob o nome de socialismo
da Internacional Comunista e de seus teóricos compreenderem as tendências orgâ- praticava -se uma forma particular de capitalismo. A IH Internacional estalinizada
nicas do capital. Eugen Varga apontava para a economia capitalista em 1930 como chegou a afirmar que os anos 30 registravam uma estagnação do capitalismo e que
sendo de estagnação. Gramsci, pelo contrário, apontava que a economia americana che~ara a fase da guerra de classe x classe no exato momento em que o fordismo
vivia um momento de expansão com o fordismo e a criação de um novo tipo de realIzava uma fo~t~ fase ~e reestr~turação do capital e de ampliação do seu poder
homem, de sociedade e de economia, de um novo modo de vida. 257 Visões estratégi- em escala planetana. MaItan analIsa o chamado terzo periodo da Internacional que
cas que produziram táticas diferenciadas. Veja-se, por exemplo, a questão do social- afirmava a existência de
-fascismo, o que lançou as massas operárias alemães nos braços do nazism0258 .
O mito determinista tornou, aparentemente, a ação política das classes antagôni- crises revolucionárias generalizadas a curto prazo e impunha o abandono da política de frente u'n·c
d ' . d ·d I aea
cas uma desnecessidade: a decomposição do capitalismo - afirmavam tanto a social- enun~la os. p~rh os social-~emocratas como social-fascistas. Os frutos, de longe os mais amargos,
destas lffiposlçoes foram colhIdos na Alemanha, onde a orientação do Partido comunista foi um
-democracia, quanto a direção estalinista - seria fatalmente seguida por uma marcha elemento não secundário da trágica derrota diante de Hitler. (Maitan, 1990, p. 23. Grifo nosso)
triunfal e irreversível rumo ao socialismo. Paralelamente a stalinização da Interna-
cional houve uma mutação social-democrata que, na prática, passou a trabalhar na Esta era a posição oficial do V Congresso da Internacional claramente expressada
perspectiva capitalista: pelas palavras de Zinoviev: "O fato essencial é que a social-democracia tornou-se uma
ala do fascismo. "261 A incompreensão sobre a conjuntura dos anos trinta foi mais
Não é por acaso que um dos pontos sobre o qual se insiste [... ] seja este progressivo transformar- grave ainda. A direção da Internacional e os partidos que a acompanharam não se
se da esquerda em esquerda redistributiva [... ]. Isto é de uma esquerda que define o projeto de
outra sociedade (afirmando que podemos viver de outro modo, com outras relações humanas e
prepararam para o combate no campo da materialidade imediata, nem perceberam
sociais)259, [... ] uma esquerda concentrada sobre a intervenção redistributiva, aceitando o pano de o alcance do ataque direto às classes subalternas. O fordismo, forma americana da
fundo que hoje determina uma crise conjunta de identidade, de modelo produtivo e de psicologia re:ol~ção passiva (Gramsci, 1975), a um só tempo, uma reestruturação do capital e a
social: a separação entre o sistema produtivo e o processo de formação das necessidades. Apontando c~laçao do novo trabalhador. Era, também, uma resposta à revolução russa e a irrup-
sobre o momento redistributivo perde-se de vista inevitavelmente a conexão entre produção e
çao das massas na cena histórico-política262 • O que estava em curso era uma
necessidades, e acaba-se por considerá-las duas coisas que podem ser representadas e interpretadas
independentemente. (Barcelona, p. 8)
r~estruturação, que representou um momento de reorganização não apenas "econômica", mas no
nlvel das formas estatais, d~ relaç~~ Estado-economia, sociedade civil-sociedade política, e, portanto,
Ao colocar no primeiro plano de sua intervenção as relações de consumo, o acesso em geral, uma reestruturaçao das }ormas políticas': (Barcelona, p. 47. Grifo nosso)
aos bens materiais, essa esquerda subordinou a perspectiva da totalidade ao momen-
to da particularidade, conduzindo assim os subalternos à integração ativa à ordem Contrariamente às visões economicistas defendidas pela maioria da Internacional
do capitaP60. O pano de fundo é colocado como o "mercado" ao qual tanto a burgue- esse processo constituiu uma nova forma da racionalidade burguesa no período im-
sia quanto a esquerda distributivista rendem homenagem e emprestam suas forças. 261 Citado por Maitan, p. 23. Grifo nosso.
257 Ver Gramsci, 1975 e Dias, 1997. 26~ A an~1i~e. des~e proc~ss? ganha, nos anos 50-60, na Itália, uma leitura decisiva contra as "ideo-
258 Ver Reich, 1970a, 1976. log~as Ob)etIvlstas (Panzlen). Para ele a discussão do capital como poder social era fundamental e
259 Já em 1994 Barcelona nos advertia quanto à ilusão de que "outro mundo é possível" (Cf. Fórum a~sl.m, o g?ve~no er~ mai~ do que um sim~les garantidor do capital, mas o organizador da explora~
Social Mundial) sem a eliminação do capitalismo. . çao, o. capItal la mUlto. a~em de ser a propnedade privada dos meios de produção, as classes não se
260 "a ideologia burguesa demonstrou uma notável capacidade de adaptação aos desenvolvimentos redu~l~m a I?eras pOSlç?eS na _estrutur~ ~ocial de produção. Conceitos como comando capitalista,
da situação, propondo novas e refinadas formas de mistificação ideológica, a cobertura das novas operar~o SOCIal, antag.omsmo sao essenCiaIS e ele os descobre na Seção Quatro do tomo primeiro de
formas de alienação, enquanto o marxismo, cristalizado no fechamento estalinista, demonstrava-se O Cap~tal. Ele se d~dlcou a apreender e elucidar a questão da incorporação da ciência no processo
incapaz de contrapor a sua ação crítica:' (Panzieri, 1973, p. 76) produtivo (Grundnsse) como momento chave do despotismo capitalista e da organização do Estado.
Revolução passiva e modo de vida 189
188 Edmundo Fernandes Dias

perialista: longe de ser um período de estagnação ou de crise terminal o capitalismo facilitou em grande medida a eliminação do projeto socialista, tornando as direções
avançava com uma nova adequação de governo da economia e governo das massas, socialistas objetivamente aliadas do capitalismo em crise e muitas vezes também sub-
uma atualização do bloco histórico capitalista. Isto exigia, do ponto de vista das clas- jetivamente.
ses trabalhadoras, uma A economia não é, nem nunca foi, uma questão técnica. Para além da produção
de mercadorias ela produz e reproduz as classes sociais e o poder dos dominantes,
resposta produtiva de novo tipo [que] tenha condições ao mesmo tempo: 1) de encaminhar uma daqueles que a controlam. Passado quase um século das investigações de Marx o
reorganização setorial e territorial dos aparelhos produtivos; 2) de prospectar uma dimensão stalinismo (nome coletivo) e a esquerda redistributivista viviam sob o domínio ide-
internacional de dar à requalificação profissional [... ]; 3) de colocar em movimento uma
ológico do capital. Panzieri (1961, p. 43) recolocou a questão:
regulamentação democrática da mobilidade do trabalho e de unificação do mercado de trabalho;
4) de experimentar um novo modo de conceber a fábrica, a relação escola-fábrica, trabalho
[... ] pode-se estabelecer entre outras coisas: 1) que o uso capitalista das máquinas não é, por assim
intelectual-trabalho manual; 5) de redefinir radicalmente a relação cidade-campo e mais em geral
dizer, a simples distorção ou desvio de um desenvolvimento "objetivo" em si mesmo racional,
a preparação do território; 6) de enfrentar o nó das fontes de energia. [... ]
mas que tal uso determina o desenvolvimento tecnológico; 2) que "a ciência, as gigantescas forças
Trata-se na prática de construir uma nova racionalidade que trabalhe essencialmente em duas
naturais e o trabalho social de massà' [... ] tem sua expressão no sistema de maquinaria e formam
direções: na direção de colocar em movimento recursos humanos e materiais, hoje inutilizados ou
com ele o poder do "patrão".264 Por conseguinte, frente ao operário individual "esvaziado': o
reduzidos a objeto de assistência, e na direção de uma difusão da ciência política (construção de
desenvolvimento tecnológico se manifesta como desenvolvimento do capitalismo: "como capital e
uma democracia articulada e organizada). Uma racionalidade social (e estatal) que saia claramente
enquanto tal a máquina automática tem consciência e vontade no capitalista:' No cérebro do patrão
do esquema do assistencialismo, mas também do esquema do plano centralizado, como foi
experimentado nos países do Leste. (Barcelona, idem, pp. 52-53) "são conceitos inseparáveis a maquinaria e seu monopólio sobre elà'

Ele mostra que as contradições no interior da O capital atua permanentemente em um processo de recomposição organlca,
como forma de sub sumir o trabalho, para evitar qualquer possibilidade de autono-
grande fábrica com centena de milhares de operários, que, através a linha de montagem, sofriam mia dos trabalhadores e o faz
indubitavelmente uma intensificação da exploração, mas também uma grandiosa e extraordinária
socialização das suas condições de trabalho e das suas formas de consciência, e a atual realidade pelo desenvolvimento capitalista da tecnologia, através das diversas fases da racionalização e
da multinacional que governa um ciclo produtivo disperso sobre a área geográfica do Ocidente, e de formas cada vez mais refinadas de integração, comporta um aumento crescente do controle
mesmo para além dos limites do próprio Ocidente, por meio de um cérebro capitalista que é cada capitalista. O fator fundamental deste processo é o crescente aumento do capital constante
vez mais reduzido em termos de visibilidade estrutural, e que todavia tem de modo inaudito estendido em relação ao capital variável. No capitalismo contemporâneo, como é sabido, a planificação
a própria capacidade de controle sobre vários segmentos do ciclo produtivo que se desloca sobre áreas capitalista se amplia desmesuradamente com a passagem a formas monopolistas e oligopolistas,
diversas. (idem, p. 58. Grifo nosso) que implicam a progressiva extensão da planificação da fábrica ao mercado, a área social externa.
[... ] Isto não significa, que não se acrescentem simultaneamente as possibilidades de subversão
A visão do socialismo meramente como regime político que praticou uma versão do sistema. Porém estas possibilidades coincidem com [... ] o valor totalmente destruidor que
frente ao 'esqueleto objetivo' cada vez mais rígido e independente do mecanismo capitalista, "a
à esquerda do modo capitalista de fazer a economia263 foi fatal. Ignorou-se a profunda
insubordinação operárià' tende a assumir, (idem, p. 44)
articulação de institucionalidade e produção. A identificação de socialismo com pla-
nificação e estatização tornou invisível a revolução passiva nos países do socialismo O mito da tecnologia fez com que o reformismo ganhasse força. "Um simples atra-
realmente inexistente já em curso desde os anos 30, ocultando a lenta restauração do so, uma ausência, ou mesmo apenas uma produção diminuída de um único operá-
capitalismo aí ocorrida. Além das lutas cotidianas de preservação da possibilidade r
rio, podem se refletir sobre toda uma linha de máquinas [... 265 Como não reconhe-
de existência das classes subalternas, o projeto socialista requeria um grande embate cer aqui a ideologia das "ilhas de produção"? Como ignorar que esse processo torna
ideológico para que se concretizasse a possibilidade de uma nova sociabilidade para
264 Marx, 1959, t. 1, p. 350.
além e contra a ordem do capital. 265 Silvio Leonardi, Progresso técnico e reporte di lavoro, Einaudi, Torino, 1957, p. 50, citado por
O resultado concreto foi totalmente diverso do que os deterministas afirmavam. A Panzieri (l968a, p. 10). Cf. I lavoratori e il progresso técnico. Atti deI Convegno tenuto all'Istituto
social-democracia, vencida a brutal experiência nazifascista, possibilitou o chamado Gramsci (a 29 e 30 de junho elo de julho de 1956). Le trasformazione techniche e organizzative del
. rapporto di lavoro nelle fabbriche italiane foi o tema do seminário.
estado de bem-estar social que, se garantiu melhores condições de vida e de trabalho Bologna (1988) mostra um importante elemento nesse momento: "O terreno de análises das novas
para uma pequena parcela das classes trabalhadoras em alguns países da Europa. Ela profissões industriais já estava contaminado pelas primeiras teorias pós-industrialistas segundo as
quais os blue co11ors estavam extinguindo-se e os white co11ors seriam seus substitutos. Estas teorias
263 Ver o stakhanovismo, variante russa do fordismo, e, como este, um aprisionador da subjetivida- pós-industrialistas encontraram um amplíssimo eco, no movimento operário, no estudantil, na cul-
de dos trabalhadores a uma política da qual foram excluídos. tura da esquerda em geral:' Em inglês no texto.
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 191
190

o trabalhador um colaborador e a falta uma culpa, cobrada por outros trabalhadores Aspectos característicos novos assumidos pela organização capitalista são convertidos assim em
estágios de desenvolvimento de uma "racionalidade" objetiva. [... ] o enorme valor de ruptura que
colaboradores? Como não perceber que se instala uma "harmonià' entre capital e na grande empresa moderna - "com uma produção programada e realizada em fluxo contínuo" -
trabalho e como ignorar que todo o processo de industrialização era representado assume a "não correspondência de um operário, de um grupo de operários, a quanto lhes é exigido
"como dominado pela fatalidade 'tecnológica' que conduz a liberação 'd~ homem das em base às previsões feitas no programa de produção da empresà'267 é absolutamente esquecido
limitações impostas pelo ambiente e pelas possibilidades físicas'. " (p. 46)? E importante para por em relevo, em troca, a exigência (naturalmente 'racionar) da chamada relação "moral" entre
empresários e trabalhadores, que é condição efim das denominadas "relações humanas" precisamente
salientar que essa posição representava uma "svolta sindacale': Aqui está colocada
porque unicamente sobre sua base pode-se estabelecer a colaboração. [... ]
claramente a questão. A substância dos processos de integração é aceita, reconhecendo-se neles uma necessidade
intrínseca que derivaria diretamente do caráter da produção "modernà: Simplesmente se coloca
o desenvolvimento das técnicas e das funções conexas ao management, isolado do contexto social a exigência de corrigir algumas "distorções" que o uso capitalista introduziria nestes procedimentos.
concreto em que se produz, i. e., da crescente centralização d~ p~der capi,~alista, é c~nsiderado as_si~ (Panzieri grifou apenas substância)
como o suporte de novas categorias de trabalhadores (os tecmcos, os mtelectuals da produ~a~ ),
que trariam 'naturalmente', como reflexo direto das novas profissões a soluçã~ ~as contradl~o~s
Qualifica-se assim o que chamamos de captura da subjetividade. O trabalhador,
'entre os caracteres e exigências das forças produtivas e as ~elações, d_e produçao. ~ c~nt~adl.ça~
entre forças produtivas e relações de produçã0266 aparece aqm como nao correspondenCla tecmca . se e quando, desprovido de um aprofundamento teórico-político tende a absorver
[... ]" (idem, 46-47) a tecnologia, vista como neutra, que aparece como permitindo um trabalho menos
danoso e uma "qualificação" que dê mais dignidade ao seu trabalho. O adestramento,
Esse debate vai ser potenciado no decorrer da década de setenta. Lá se colocaram apresentado como qualificação, é um mecanismo fundamental nesse processo.
com maior clareza o significado e o perigo das transformações impostas pelo capital
ao mundo dos trabalhadores: A "planificação" capitalista pressupõe a planificação do trabalho vivo e quanto mais ela se esforça
por apresentar-se como um sistema fechado, perfeitamente racional, de regras, tanto mais ela é
Provavelmente [nos anos 76-77] se falava ainda muito da desarticulação do complexo empresarial, abstrata e parcial, pronta para ser usada em uma organização somente de tipo hierárquico. Não é a
isto é, de "novo modo de fazer empresà' e muito pouco de "novo modo de trabalhar': mas a ideia "racionalidade': mas o controle, não a programação técnica, mas o projeto de poder dos produtores
que a classe operária viesse fragmentada sobre o território para enfraquecê-la era clara. As grandes associados podem assegurar uma relação adequada com os processos tecno-econômicos globais.
novidades, no entanto, pareciam concentradas ainda na fábrica fordista, como a passagem do (idem)
trabalho na linha de montagem para a de "ilhas': robotização, etc. Abria-se nos mesmos an~s um
debate _ lamentavelmente caracterizado por forçamentos ideológicos - sobre o fim da centrahdade São recuperados os temas da alienação, da desqualificação do trabalho, a individu-
do "operário massà' e o surgimento na cena de uma nova figura hegemônica, a do "operário social". ação da homogeneização; desmistifica-se a "palavra de ordem da profissionalidade"
(Bologna,2011) . . (Turchetto). O espaço fabril não é neutro. Aqui seria decisivo o papel de sindicatos
No fundo em ambas as concepções que se chocavam, a otimista e a catastrofista, eXIstIa um _dado
comum, uma concepção da economia como objetividade, como fato natural, e uma concepçao do e partidos que se afirmam dos trabalhadores. O neoliberalismo, já em ação aqui,
Estado como máquina, uma concepção do Estado instrumental (nas duas versões, a que apresenta o agudiza e generaliza essa correlação de forças. Diante de um determinismo cego em
Estado como instrumento de domínio de uma classe e a que, pelo contrário, o apresenta como poder torno da ideia do progresso e da brutal avalanche capitalista dos anos 70 em diante,
puramente técnico-administrativo, nas mãos de uma cam~da política): Em a:nb~s as concepções existe o processo tem sido quase sempre de capitulação. Primeiro, como integração passiva
uma incompreensão da relação originária que se institUI na formaçao capltaitsta entre o Estado e a
à ordem; depois como partícipe ativo da nova ordem.
economia e, por isto, provavelmente, o modo de definir a crise é inadequado, já que ou a re~uz aos seus
termos puramente objetivos ou aos seus termos puramente subjetivos. (Barcelona, 16. Gnfo nosso) Esse processo o reencontramos mais recentemente sob as mais diversas formas
em Gorz, Lojkine, Castells, etc. Houve uma profunda mutação na posição destes
Benjamin mostrou em suas Teses sobre o conceito de história, ~ue vere~?s ~ais autores. No momento em que Panzieri produzia sua formulação os movimentos
adiante, o poder reacionário de uma visão economicista, mas sena necessano dizer sindicais e partidários de esquerda estavam em uma relativa ofensiva. Começava o
(e localizar) que o determinismo tem bases profundas. A ideia de que a técnica e processo que culminaria no autunno caldo e por isso ele podia afirmar:
a ciência são possibilidades libertadoras, criou no interior do próprio movimento
operário a crença da sua neutralidade, como se bastasse apenas trocar quem mane-
o nível de classe se expressa não como progresso, mas como ruptura, não como "revelação" da
racionalidade oculta implícita no moderno processo produtivo, mas como construção de uma
java os cordões para alterar a totalidade da~.prática~ soci~is,. t~se clássica ~e .Kau;~ky. racionalidade radicalmente nova e contraposta à racionalidade praticada pelo capitalismo. O que
Panzieri (1961) critica o que ele chama de Ideologias obJetlvlstas, mecanIcIstas. caracteriza os processos atuais de aquisição de consciência de classe nos operários da grande fábrica

267 Leonardi, op. cit." p. 93, citado por Panzieri, 1968a, p. 45.
266 Leonardi, op. cit., p. 82.
[...] "não (é) somente a exigência primária de expansão da personalidade no trabalho, mas uma vez mais complexa e refinada, de adequar a planificação do trabalho vivo aos estágios alcançáveis
exigência motivada estruturalmente de gerir o poder político e econômico da empresa e através dele, via o contínuo crescimento do capital constante, pelas exigências de programação produtiva. Neste
da sociedade".268 (idem. Grifo nosso) quadro é evidente que tendam a assumir cada vez mais importância as técnicas 'informacionais',
destinadas a neutralizar o protesto operário imediatamente insurgente do caráter 'total' que
o quadro da classe mudava rapidamente. Ao assumem os processos de alienação da grande fábrica racionalizada. [... ] sublinhar que é no uso
das técnicas 'informacionais: como manipulação da atitude operária que o capitalismo tem vastas e
Operário profissionalizado, ligado a uma tarefa complexa vai sendo substituído pelo "operário- indefiníveis margens de 'concessão' (melhor seria dizer de 'estabilização'). (idem)
massa, privado de conhecimentos tecno-profissionais, sobre quem pesa uma alienação ainda
maior, mas mediada por algum privilégio socia!:' (Dalmasso, 2004) Naquele momento como hoje é necessário ressaltar que a

Mudaram as condições sociais de existência do capital e do trabalho, mudou a "luta operária se apresenta (... ] como necessidade de contraposição global ao plano capitalista, portanto
forma da empresa, diz Barcelona. Trata-se de um fator fundamental é a consciência, digamos dialética, da unidade dos dois momentos 'técnico' e
'despótico' na atual organização produtiva." (idem. Grifo nosso)
uma mudança que não [é] sem consequências sobre o plano geral das relações políticas e das
relações sociais. Vem se assistindo ao declínio, ao fim da empresa fordista, da empresa orgânica O problema político que se coloca é, portanto, "a subversão operária do sistema e a
caracterizada por uma grande concentração de mão-de-obra, por uma grande concentração de negação de toda a organização na qual se expressa o desenvolvimento capitalista, e em
meios de produção, por um certo tipo de rigidez do produto e por uma estrutura bem determinada
primeiro lugar da tecnologia enquanto ligada à produtividade." (idem. Grifo nosso)
da direção empresarial, colocada [frente ao conjunto dos operários]. Alguns escreveram que da
empresa fordista se passou finalmente ao sistema de empresa em rede, que articula os próprios Negação radical da crença da inevitabilidade da passagem ao socialismo, mas acima
segmentos dando vida a um ciclo produtivo extremamente flexível, caracterizado por uma acentuada de tudo a denúncia das leituras objetivistas - abandono claro e total do marxismo
capacidade de gerir e administrar o risco da inovação e de elaborar e prever as informações sobre - que os teóricos e práticos do PCI e dos sindicatos a ele praticavam. Aqui fica clara
o andamento dos mercados e da demanda. A flexibilidade [... ] dos segmentos do ciclo produtivo afirmação gramsciana disto ser a "teoria da inércia do proletariado': Poder-se ia ven-
levam a empresa como estrutura produtiva a estender-se sobre amplos territórios e a jogar sempre
cer sob essas bases? Poderiam os subalternos falar?
para além dos conflitos nacionais, mantendo todavia um núcleo de comando que foi definido
"sistema autocratà': o centro-cérebro da nova forma de empresa, onde se realiza essencialmente a Panzieri coloca a proposta provisória do "controle operário': Consciente dos seus
organização e o tratamento da informação e elaboração dos dados que provem de vários terminais. limites afirma que ela "constituiria uma fase de pressão máxima sobre o poder capi-
A centralização da empresa nesta forma de controle conjunto da sua própria flexibilidade se talista [... J. O controle operário deve, então, ser visto como preparação de situações
assemelha a uma espécie de ação de monitoração constante que permite ver em tempos quase
de 'dualismo de poder' em relação à conquista política total" (idem).
reais o que poderá ser o movimento da demanda dos bens de consumo e de instituir, por assim
dizer, uma espécie de ligação elástica entre a "produção feità' e a "produção por fazer': incluindo o
processo de comercialização e a avaliação das estratégias de mercado no mesmo local do projeto do
processo produtivo. (Barcelona, 68)

Tudo isto foi, em grande medida, ignorado pelos reformistas. Prisioneira do mito
tecnológico boa parte da esquerda e do movimento operário sequer colocava a ques-
tão da racionalidade econômica capitalista. O problema não estava só aí, mas, tam-
bém, no controle: "não é a programação técnica, mas o projeto de poder dos produ-
tores associados, que podem assegurar uma relação adequada com os processos tecno-
-econômicos globais" (idem. Grifo nosso).

Com efeito, as ideologias sociológicas e organizativas do capitalismo contemporâneo apresentam


várias fases, do taylorismo ao fordismo até o desenvolvimento das técnicas integrativas, human
engineering, relações humanas, regulação das comunicações, etc., precisamente na tentativa, cada
268 Ver também Romano Alquati, Quaderni Rossi, n° 1, 1962. Alquati trabalhou na constituição do
conceito de operário-massa que segundo ele "era a concretização de três fenômenos paralelos: 1) o
fordismo, isto é, a produção de massa e a revolução do mercado; 2) o taylorismo, ou seja, a organiza-
ção científica do trabalho e a linha de montagem; 3) o keynesianismo, isto é, as políticas capitalistas
de longo alcance do Welfare state". (Albertani)
PANZIERI, A SUBJETIVIDADE
ANTAGONISTA E O PODER OPERÁRIO

o caráter de extrema politicidade das lutas operárias, completamente desvin-


culadas das hermenêuticas das tradições tradeunionísticas e leninista; [... ]
os alvos políticos principais das lutas operárias foram a cultura política e a
cultura industrial dominantes.

Antonio Chiocchi

A experiência de luta do operário-massa italiano suscitou comparação com


as dos operários-massa americanos das três primeiras décadas do século passado.
Esse sujeito histórico era jovem, meridional e desprovido de uma socialização polí-
tica, industrial e urbana. As organizações sindicais e políticas tradicionais da classe
trabalhadora estavam sub sumidas à cultura do capital: a democracia era jurídico-
-parlamentar, as questões salariais e de condição de trabalho eram tributárias do
discurso e das práticas capitalistas e o desenvolvimento, mesmo que não se afirmasse
isto, era capitalista. A identificação desenvolvimento capitalista-desenvolvimento e
aquela entre democracia e vot0269 naturalizavam a exploração e a opressão, isto é,
ocultavam as graves questões as quais os trabalhadores estavam subsumidos.

269 É importante lembrar que apesar da propaganda liberal da decisão política pela vontade do elei-
torado que o voto universal nos Estados Unidos só se tornou texto legal na metade dos anos 60 do sé-
culo passado. A fórmula No taxation without representation foi durante muito tempo dominante. O
voto masculino demorou a ser implementado: Grécia (1822), França e Suíça (1848), Espanha 1891),
Noruega (1897), Império Austro-Hungaro (1897), Suécia (1911), Holanda (1917), Bélgica (1919),
Reino Unido (1918), Itália (1919). O sufrágio feminino foi introduzido na Nova Zelandia (1893), na
Finlândia (1906), na Inglaterra em 1918, na Austria em 1919, nos Estados Unidos em 1920, na Espa-
nha em 1931. no Brasil (1932), na França em 21 de abril de 1944. Nesta os argelinos e muçulmanos só
em 1958 e que apenas em 1962, com a independência das colônias complementou-se o voto univer-
sal. É preciso, contudo, ter presente que o sistema francês oculta uma desigualdade ideológica brutal
sob a forma dos distritos eleitorais: em 1958, os comunistas elegiam um deputado com 388000 votos
e os gaullistas com 18400. Em 2006 os gaullistas (UNR) tinha 207 mandatos com 17,6% dos votos e o
PCF 10 mandatos com 18,9% dos votos. Isto autoriza a Michel Balisnki afirmar: "Na França [o voto]
não é universal", Libération, 27 de julho de 2005, citado por Pollmann (2009, p. 34).
196 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 197

Feitas as diferenças relativas, devem-se reconhecer algumas linhas comuns [com o operário-massa e política; a luta pelo re-saneamento do ambiente de trabalho e contra a nocividade. Todo este edifício,
americano], entre as quais a mais importante parece ser a irrupção na cena da ação política e social incrível e colossal se ergue sobre os ombros do operário-massa. (Chiocchi, 2008. Grifo nosso)]
de figuras lavorativas não especializadas, ideológica e culturalmente distantes, senão estranhas, aos
modelos e circuitos da representação política e social tradicional. A crítica de massa que este sujeito
Contrariamente às leituras deterministas - economicistas e/ou politicistas - pra-
exerceu contra a organização do trabalho, os modos de produção e apropriação da riqueza e dos
bens constitui a base potencial de uma repolitização social dos fundamentos e das perspectivas da ticadas pela direção do PCl, Raniero Panzieri produziu uma leitura não apenas do
democracia italiana. A massa crítica das demandas colocadas na ação deste novo sujeito social Capital, mas também dos Grundrisse. A obra publicada nos Quaderni Rossi traz uma
é prevalentemente liquidada, pelo sistema político-cultural dominante, como demonstração visão nova do processo de trabalho na Itália a partir das novas tecnologias, formas
pertinaz de anti-democratismo. Até fazer ilegitimamente assumir, anos depois e ainda hoje,
de trabalho e culturas que iam sendo progressivamente impostas aos trabalhadores.
o biênio 1968-69 como "antessala do terrorismo': A atualidade da categoria e da existência do
operário-massa impactou contra os anacronismos da democracia italiana, tenazmente indisposta
Ele vai falar agora do "ponto de vista operário" que deveria exprimir:
a uma recolocação em discussão dos seus mecanismos fundantes. De imediato a prodigiosa rapidez
da inovação tecnológica e da reestruturação produtiva dos anos 70 tornou inatual o operário massa autonomia do capital e não coincidia com a imediatidade e a autonomia das lutas operárias;
como categoria e como subjetividade; mas não cancelou a radicalidade das suas instâncias de ofensiva e análises dos ataques contra o modo de produção capitalista e às suas formas históricas de
organização e desenvolvimento.
democracia radical. O fato que o operário-massa se consumiu, sem ter sido exitoso em sedimentar
[Contudo para ele as] lutas operárias, mesmo subtraindo-se à "gestão reformista': não garantiam
linhas irreversíveis de modificação dos arranjos econômicos, políticos e sociais do país, fez soprar
por si mesmas a elaboração e a tradução desta necessária estratégia de ataque. [Para ele] a teoria
fortes ventos de restauração e de conservação nos decênios seguintes. Por este complexo de motivos,
e a práxis da revolução operária no neocapitalismo não eram dadas linearmente pelo acúmulo
o operário massa assinalou um umbral altíssimo, talvez inigualado, na história das lutas operárias e
incrementaI das lutas operárias pelo motivo base que para ele a revolução não dependia mais do
sociais e na história da democracia na Itália. (Chiocchi, 2008. Grifo nosso.)
desenvolvimento das forças produtivas. [... ] o ponto alto do desenvolvimento das forças produtivas
não se virava automaticamente na autonomia dos comportamentos operários contra as estratégias
No pós-guerra começaram as mudanças no mundo do capital e no mundo dos do plano do capital. Pelo contrário, [... ] no neocapitalismo as forças produtivas não apenas eram
trabalhadores passando-se do operário fordista, que foi o grande personagem dos plasmadas [apenas] pelas relações de produção, mas se encontravam diretamente implicadas no
Conselhos do primeiro biennio rosso ao operário-massa. interior destas. Por outro lado, continuava exatamente os novos níveis e a nova qualidade da luta
operária [que) encarnavam a crítica prática, definitiva e irreversível da teoria leniniana e leninista da
organização. (idem. grifo nosso)
A centralidade do salário e a centralidade da democracia na fábrica e na sociedade foram, quase
espontaneamente, o fulcro da sua mobilização e da sua ação. Por sua vez a centralidade do salário e da
democracia substanciaram a reivindicação, naqueles tempos verdadeiramente incríveis, de aumentos Panzieri pensava então a questão da hegemonia vista como autonomia política da
iguais para todos. [... ] Centralidade do salário, em particular, significou minoridade do lucro, cujos classe que não podia ser deduzida da autonomia das lutas localizadas, por mais im-
mecanismos tinham articulado um verdadeiro e real sistema de depredação sócia, minimizante do portantes que estas fossem.
custo do trabalho e maximizante do valor assessor a favor das empresas. (idem, 2008)
A [autonomia das lutas] se opõe ao comando capitalista na fábrica e na sociedade; a [autonomia
o que estava em questão era a totalidade do poder capitalista, soubessem ou não política] tem necessidade de um plano de representação política que se confronte critica e
esses novos trabalhadores. Mais e mais se desenvolvia o modo de produção e o modo estrategicamente com o Estado e o sistema político-institucional dominante. Autonomia operária
não é, para Panzieri, exaltação pura e simples da "necessidade operária"; mas conjugação política
de apropriação, mais e mais a unidade economia-política atingia um ápice anterior- das necessidades operárias. O ''ponto de vista" operário, segundo ele, significa, representa e exprime a
mente despercebido pela esquerda política e sindical. Nada que Marx não tivesse autonomia apenas do plano político; que não é e nem pode ser imediatamente o plano das lutas. Pelo
trabalhado e advertido. Aqui o mito determinista, exemplarmente demonstrado nas contrário, é exatamente o plano das lutas que é diretamente impactado pelas estratégias de recuperação
Teses sobre o conceito de História de Walter Benjamin revela sua profunda decifração e adaptação do ''plano do capital". A questão não é, portanto, redutível à mera "organização da luta";
mas reclama a urgência de uma transcendência.
da esfinge capitalista. Marcadas pela ideologia do progresso, acreditando na fatali-
Entre plano político e plano das lutas se dá um vazio que, sustenta Panzieri, só a teoria política
dade do socialismo essas organizações da classe revelam -se praticantes e teóricos da revolução e da organização e as correspondentes estratégias e práxis podem preencher
da inércia proletária, magistrados da legalidade industrial e política, como demiurgos produtivamente. Daí uma "necessidade de teoria" que é, também, "necessidade de estratégia':
das classes fundamentais da sociedade burguesa, como afirmou Gramsci na segun- Teoria e estratégia não implicáveis diretamente pelos ciclos de luta operária; mas, pelo contrário,
da década do século passado. Só se esqueceram de combinar com o técnico do time próprio dessas exigências. No esquema panzeriano a autonomia operária é uma questão política
que sai exatamente das lutas operárias. Daí uma hermenêutica que não reduz as problemáticas
adversário. das lutas operárias a simples e pura "questão de organização"; mas a correlaciona dialeticamente a
temáticas cruciais de teoria e práxis política. (idem. Grifo nosso)
Em torno das temáticas salariais se incorporaram outros motivos e temas de conflito: a redução da
jornada; a recusa da disciplina empresarial; a crítica dos modelos existentes de representação sindical
198 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 199

Para Panzieri é preciso que a teoria e a práxis da revolução sejam escritas e experi- As reformas que a burguesia, pós derrota do movimento de 68, colocavam com
mentadas não abstratamente, mas clareza o projeto burguês.

[... ] dentro de uma processualidade histórica, é necessário que a classe operária se faça autonomamente Linha única de ação: neutralizar o acesso de massa à política, à democracia e à decisão política.
sujeito político e culturalmente além (e por sobre) a autonomia das lutas. A autonomia operária [... ] Objetivo estratégico único: conservar o aspecto elitista da democracia italiana. É por isto que o
está onde a classe se faz sujeito da revolução e, para tal finalidade, aproxima e percorre um traçado que escândalo operário conserva ainda toda a sua atualidade ardente, além dos muitos e decisivos limites
se exprime e representa política e simbolicamente de fora e contra uma troca capital/trabalho vivo. [... ] que a tinham singrado. Toda a política italiana animou-se surdamente como contra ataque face ao
a exigência de forçar estratégica e politicamente os comportamentos operários, para chegar ao umbral 68 operário. O próprio projeto da luta armada compreendeu entre os seus objetivos primários o
novo e descontínuo da subjetividade. As lutas autônomas da classe operária, então, reclamam uma ajuste de contas com as suas instâncias de democracia radical, de discussão pública e democrática;
recomposição política. [... ] Autonomia operária é, portanto, experiência da classe que se faz sujeito político à sua ideia de organização participada e não delegada. (idem. Grifo nosso )270
da sua liberação e vive a revolução como sua liberação total das cadeias do ''despotismo do capital". E é
neste nível que [... ] o "ponto de vista operário' recompõe nas próprias fronteiras as funções intelectuais Ativa, também, se encontra a resposta oferecida pelos grupos extra-parlamentares.
com as funções do saber; as funções políticas com as funções da liberação; as funções da organização
com as funções da revolução. Esta é a política extrema de Panzieri e o seu discurso anticonvencional
A luta armada representou-se a si mesma como contra tendência de transgressão do 68 operário.
sobre o poder e para o poder. Autonomia política, poder político e libertação, nele se encaixam
Daqui o retorno à teoria e práxis da organização combativa, ao "centralismo democrático"
indissoluvelmente. O poder político é a instância primária, o problema dos problemas, para a autonomia
beligerante, à clandestinização da decisão política. A elite armada colocou-se em uma relação de
operária; assim como a teoria/práxis da libertação é a instância primária e o horizonte incomprimível do
alteridade de comando nos confrontos do 68 e dos movimentos mais significativos que saíram do
poder operário. (idem. Grifos nossos)
seu ventre. De 1973-75 em diante, os mesmos grupos da esquerda revolucionária germinados no e
com o 68 operário colocaram a conservação e a reprodução de si mesmo como contra ataque face
Falamos em uma leitura anti determinista e assim era. Contra as leituras que vêem o 68. A camada política dirigente da esquerda revolucionária, segundo modelos e traços estilísticos
a tecnologia como neutra Panzieri localiza aqui não apenas uma "solução" (sic) eco- culturais diversificados, pensou-se e se investiu como elite revolucionária, avocando a si e para si
nômica, mais do que isso localiza nelas a estratégia antioperária dos capitalistas, a titularidade da decisão política e o direito/dever da elaboração política antagonista. (idem. Grifo
aquilo que Barcelona chamará a adequação entre o governo da economia e o gover- nosso)

no das massas.

Para ele, o "plano" e as "políticas de plano" constituem a resposta capitalista para a crise política do
capital, e, ao mesmo tempo, à autonomia dos comportamentos da classe operária. Subjetividade
e racionalidade do capital vão se redefinindo; motivo a mais para proceder à rearticulação da
subjetividade de classe pelo "poder operário" e a "libertação do capital':
[... ] Para Panzieri a dinâmica do "capital social" indica a flexibilidade da incidência da relação
capitalista capaz não apenas de racionalizar e "complexificar" o ciclo, mas também de desestruturar
os comportamentos operários, recuperando-lhe a parcialidade. A dinâmica do neocapitalismo,
observa, busca constantemente converter a qualidade das lutas operárias em quantidade
econômico-política para estabilizar e compatibilizar. As "políticas de plano" têm, neste sentido, o
objetivo precípuo de obstruir para a classe operária a passagem de comportamento a subjetividade
autônoma, de autonomia a poder pela libertação do capital. Então, de por si mesmo, os aumentos
salariais não valem como desestabilização das relações de produção capitalista; pelo contrário
podem ser finalizados para a sua expansão e racionalização. Tanto mais quanto o dispositivo mais- 270 Bourdieu (l998a, p. 16) nos fala da repercussão do maio de 68 francês e dos efeitos produzidos
valor/planificação, submetendo a autonomia e a reestruturação das tecnologias de trabalho social e por ele sobre boa parte dos intelectuais: "A reação de pânico retrospectivo determinada pela crise
da organização do trabalho, aprofunda e dilata socialmente os processos de extração e apropriação de 68, revolução simbólica que abalou todos os pequenos detentores de capital cultural, criou (com
do mais-valor relativo, com a correspondente intensificação da taxa de exploração do trabalho vivo o reforço - inesperado! da derrocada dos regimes de tipo soviético) as condições favoráveis para a
e da taxa média de lucro. Composição social do capital é aqui crescimento contemporâneo da massa restauração cultural, em cujos termos o 'pensamento Ciências Políticas' substituiu o 'pensamento
e da taxa de mais-valor, com a relativa constituição de margens de lucro e da retomada econômica Mao: O mundo intelectual é hoje o terreno de uma luta visando produzir e impor 'novos intelectuais:
portanto uma nova definição da filosofia e do filósofo, doravante empenhados nos vagos debates de
e política do capitalismo. Composição técnica e orgânica do capital, neste processo, tendem a
uma filosofia política sem tecnicidade, de uma ciência social reduzida a uma politologia de sarau
estabilizar e restaurar sua soberania sobre a composição técnica e política da classe operária. Sair eleitoral e a um comentário descuidado de pesquisas comerciais sem método:' Bourdieu usa aqui
das presas desta tenaz [é] concretizar a recomposição política da classe que, partindo das lutas, se "novos" por ser assim que estas personre se apresentam. Na realidade eles são uma visão requentada e
situa em um plano político de autonomia subjetiva que transcende as formas de expressão e de pasteurizada do pensamento burguês. Ainda no mesmo texto (p. 18) Bourdieu é lapidar. Esses novos
comunicação dos comportamentos conflitivos operários. (Ciocchi) intelectuais são: "polígrafos polimorfos, que expelem sua produção anual entre dois conselhos de
administração, três coquetéis para a imprensa e algumas participações na televisão:' Grifos nossos.
LA NUOVA CLASE OPERAIA E L'AUTUNNO CALD0271

Democracia quer dizer: informação, discussão e debate de todos seus proble-


mas comuns, e decidir a luta, e escolher tempos e métodos de luta apenas de-
pois desta discussão comum. Se a democracia não é direta, não é democracia.
Democracia direta quer dizer que todos nós, direta e responsavelmente nos
interessamos pelos nossos problemas e pelo modo de resolvê-los.

Comitê Unitário de Base da Pirelli - 4 de junho de 1969272

o processo histórico que passou à história com o nome de outono quente é produ-
to de uma rica conjuntura sobredeterminada de lutas, a um só tempo, econômicas e
políticas. A massa meridional que chegava a Turim não tinha a socialização política
e industrial da classe operária tradicional. É necessário ter presente uma localização
histórica: Turim como socializadora em termos urbanos, industriais e políticos foi
o local privilegiado e a FIAT o quartel general das tropas capitalistas. Uma segunda
caracterização importante é o papel da teoria e da prática política construída pela
experiência de uma nova geração e a colocação em questão da neutralidade e do
poder das relações capitalistas de produção e apropriação.

o outono quente encontrou nas lutas operárias para a renovação contratual dos metalmecânicos
de 1962 a sua base incubadora mais organicamente estruturante. Um dos efeitos mais vistosos das
lutas operárias foram os consistentes aumentos salariais arrancados aos empresários, distanciados
dos níveis de produtividade e extrapolados os máximos das declaratórias contratuais. As lutas pelo
salário, rapidamente, tornaram-se uma das principais variáveis da conflitualidade operária: uma
espécie de centro motor da mobilização, da organização e das finalizações operárias. Explodiram

271 Para uma cronologia do período 1977-1980 ver "1977-1980: dall'esplosione del movimento deI
'77 alla Marcia dei 40.000': www3.iperbole.bologna.it/asmsmp/77-80.htm Acesso em 13-6-2000.
Para uma leitura crítica do papel das revistas neste período ver Dalmasso, 2004.
272 "A evocação do modelo da democracia direta foi um tramite para a conjugação de formas de
representação e de poder diretamente em mãos dos operários. A perspectiva era politicamente clara:
'poder decisional aos operários'. A forma revelada da democracia direta não podia ser senão uma:
poder operário. A representação política democrática conferia legitimidade e legitimação a este po-
der. Ao contrário, deslegitimava o poder patronal e toda forma de poder delegado. Em particular
o poder patronal era considerado privado de fundação democrática, ancorado unicamente em si
mesmo e sobre sua própria auto-legitimação:' (Chiocchi, 2008)
202 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 203

aqui alguma das principais regras, escritas e não escritas, da democracia italiana: ~ ~ubmis~ão do Vietnã274, em especial a ofensiva do Tet, a resistência interna nos EUA contra essa
férrea do trabalho assalariado ao capital e a prioridade absoluta do lucro face ao salano. CapItal guerra275 , a epopeia e morte de Ernesto "Che" Guevara, a invasão da Tchecoslováquia
e lucro como "variáveis independentes" do sistema econômico e trave mestra do madeiramento
pelas tropas assassinas russas, o maio francês - e suas lutas operárias e estudantis - os
da sociedade italiana: eis uma das determinações reguladoras do "milagre econômico" italiano. A
dura disciplina da fábrica e a vigorosa compressão salarial foram o duro preço que a classe operária assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, a reacionaríssima encíclica
pagou para o relançamento da economia italiana no pós-guerr~. Subordina~ão do salário ao ~ucro e Humanre Vitre que condenava o uso de anticoncepcionais, o massacre na cidade
subsunção do trabalho vivo ao capital financiaram o desenvolVImento do CIclo da acumul~çao [... ]. do México - cuja população só mais tarde tomou conhecimento, dada a censura
As lutas salariais, principiadas em 1962, em torno da autonomia do salário buscaram deSIgnar um do PRI. Mudavam também o cinema (em especial o italiano, mas não só), a música
sistema de pesos e contrapesos sob o signo de uma maior equidade social. (Chiocchi, 2008)
(Beatles, p. ex.) e os comportamentos individuais (o movimento hippie). A militância
dos Direitos Civis nos EUA (movimento que levou ao assassinato, pelos fascistoides
A Europa - e muitos outros países - viviam uma grande agitação operária para além
americanos, de Luther King) , a agitação negra dos Black Panthers 276 ; ocorria também
e acima das diretivas dos sindicatos tornados burocratas da produção. Na década de
60 ocorreram grandes transformações no cenário internacional. A Argélia realiza sua ra-se, mas não se admite. O poder evita as más palavras. No fim de 1996, quando o Supremo Tribunal
de Israel autorizou a tortura contra os prisioneiros palestinos, chamou-a pressão física moderada. Na
independência em 62 depois de uma brutal resistência dos colonialistas franceses e
América Lina, as torturas são chamadas coações ilegais:' (Galeano, 2002, p. 93)
de seu famigerado exército secret0 273 , a famosa revolução cultural chinesa, a guerra 274 "[... ] a nação mais poderosa do mundo - contra uma nação de camponeses [... ] heróicos - amarrada
doze anos no pântano, para depois acabar derrotada e retirar os caixões envoltos na bandeira das estrelas
273 A tortura é um dos mais velhos meios para "obter" (sic) o consenso ou pelo menos o silencia- e tiras. [... ] A agressão americana foi, na realidade, privada de sentido, como revelaram depois os 'Vietnam
mento do antagonista. Em 1376 Frei Nicolau Eymerich produz o Directo~iu~ Inquisitorum (~anu~l Papers: O mesmo, mutatis mutandis, ocorre hoje no Iraque:' (Modugno, in Modugno e Giacché 2007). Ver
do Inquisidor) que junto com o Malleus Maleficarum (Martelo das FetIACeI~as) - 1484 - ~os mqm- Daniel Ellsberg, A memory ofVietnam and the Pentagon Press, Penguin, 1969.
sidores Henrich Kramer e James Spranger e autorizado pelo Papa InocenclO VIII (atraves de Bula 275 Sobre o tratamento dado aos dissidentes internos em relação à guerra é importante ver Watkins,
datada de 9 de dezembro daquele ano) constituem o vade mecum da tortura eclesial. ~ais tarde, em 1971. Cf. o surgimento do movimento dos estudantes para uma sociedade democrática. (SDSS, 1962)
1541, surgiu o Torturre Gallicre Ordinarire. Pietro Verri (1804) escreve um br~~e opusculo cond:- 276 Segundo Gambino (1996) o Black Phanters Party (BPP) fundado por Huey P. Newton e Bobby
nando a tortura: Osservazioni sulla tortura. A propósito dos poderes da InqulSlção e da castraçao Seale em 1966 fazem sua primeira aparição política de uma forma bem americana: protestavam con-
do pensamento filosófico e científico são exemplares os processos contra Galileo e Giordano Bruno. tra a restrição ao seu direito constitucional de portar armas. Eram militantes dos guetos americanos.
Sobre isso ver Cavani (1968) e Montaldo (1973). Diferenciavam-se dos grupos religiosos como a Nação do Islã. Lutavam contra a violenta vigilância
As obras de Levi (1968,1997 e 1999) mostram o drama dos judeus sob o domínio nazi onde a tortura da polícia ganhando assim a simpatia dos habitantes dos guetos. No final dos anos sessenta as cha-
é o cotidiano desses prisioneiros. Ver - em capítulo anterior deste trabalho - a questão da elim~nação madas forças da ordem - em especial o FBI - recorreram a "provocações e a todos os meios legais
pretendida da humanidade dos judeus pela linguagem. Frantz Fano~ (1968 e 197~), o,s escntos de e ilegais" contra eles. Os mass media participaram dessa ação. O resultado foram mortes, anos de
Sartre e o antológico de Pontecorvo (1965). A tortura gera uma relaçao entre os dOIS pol?s: tortura- prisão e exílio para seus militantes. Não houve ligações maiores entre eles e a velha esquerda ame-
dores e torturados são profundamente impactados. Sobre isso ver Fanon (1970). BenedettI em alguns ricana. Sua formação política passava pelo niilistas russos, por algumas obras de Lenin, tentativas
contos nos mostra o impacto dessas relações. de compreender obras de Marx, Mao, discursos de Malcolm X, dos últimos escritos de C. Wright
Sobre a questão da tortura sobre e contra os militantes argelinos a o~ra clássica é a de Alleg (~959 e Mills e textos da nova esquerda. Tampouco tiveram um trabalho comum com os jovens do SNCC
2001). ''A 'questão' era o nome que os paraquedistas franceses davam a tortura [: ..}- E~tre o~ metodos (jovens estudantes afro-americanos). Estes estavam mais ligados à problemática internacional (Viet-
que eles utilizaram também estavam o lançamento de helicópt~ro~ ~o mar de plslOn.elros v~vos com 5 nã, África do Sul, mas não com os países do socialismo realmente inexistente). Destes últimos o BPP
pés cimentados) e o desaparecimento de pessoas. O mesm~, fOI utIlI~ado ano~ d.epOls no -yle.tna e na procurou sempre manter distância.
maior parte da América Latinà' (Alleg, 2004). Ainda mais: Um ofiCIal colomalIsta do exercIto fran- ''A transformação do gueto em um lugar de auto governo, a implantação de uma instrução aberta a
cês revelou no Le Monde que todas as mulheres capturadas e aprisionadas pelos militares franceses, todos, a conquista de um espaço político de debate sobre as grandes questões sociais pareceram por
em uma escala de 90% foram sistematicamente violadas. [... ] Na tradição argelina e árabe mais em um breve espaço de tempo estar ao alcance do BPP': afirma Paolo Bertella Farnetti, '''Denunciare,
geral pensa-se que uma mulher violada está humilhada e suja. Não ap~nas ela, com~ pessoa in~ividu­ disgregare, screditare'. rFBI contre le Pantere nere", citado por Gambino. As ações estatais combina-
a!, mas pensa-se que toda a família está humilhada:' (Alleg, 2004. Gnfo nosso) Dal que e~as ~Iveram das com a máfia e o encharcamento de drogas nos guetos, depois de muitos assassinatos, incêndios
que sofrer em silêncio essa violência. Tortura simbólica além de física. Só para. ter uma IdeI~ desse de sedes dos movimentos, etc., acabaram por destruir o partido. Hoje muitos daqueles militantes,
genocídio citemos uma cifra monstruosa: 3026 argelinos desapareceram em dOIS meses e melO ape- que sobreviveram, estão destruídos pela droga e pela repressão, outros desistiram da luta e alguns
nas em Argel! Por fim, mas não menos impo~tant~: "O ~enera~ P~ul Aussar~s~es,.o corone~ Bernard poucos continuam militantes ativos. Um deles Mumia Abu-Jamal continuava no corredor da morte
e outros genocidas franceses da guerra colomal sauam a luz publIca para relvmdICar os metodos da por mais de três décadas. Em 26 de abril de 2011 quatro juízes federais consideraram o julgamento
tortura na Argélia. A justiça burguesa abriu processos judiciais, não pelo que fizeram, mas por ~polo­ como inconstitucional e mandaram rever o processo. ''A perseguição do Black Panther Party ins-
gia verbal da violência! Seu crime não é, aos olho~ dAa burgues~a ~ra~~esa, ter torturado e ~ss~ssmado creve-se no complexo de ações repressivas por parte do Estado nos confrontos a todo o movimento
a centenas de milhares de argelinos ... mas por dIze-lo em publIco. (Kohan e Herrera, m Idem) A de protesto nos Estados Unidos, branco e negro, pacifista e violento, radical e reacionário. [... ] Os
tortura segue funcionando. McCoy (2006) e Rech (2006), entre outros, falam sobre ~ uso da tortura métodos clandestinos e ilegais que foram adotados para esmagar a oposição encontraram a sua má-
pelos Estados Unidos. Lembremos os casos exemplares de Guantanamo e Abu GhraI~. . xima expressão no programa secreto de espionagem, Cointelpro, organizado e dirigido pessoalmente
"Por volta do ano de 1252, o papa Inocêncio IV autorizou o suplício contra os suspeitos de hereSIa. pelo diretor do FBI J. Edgard Hoover. Sobre a ação do Cointelpro uma Comissão de Investigação
A Inquisição desenvolveu a produção da dor, que tecnologi~ .do s~culo ,v~nte elevou a níveis de pro- do Senado, em 1976, assim se pronunciou: 'Muitas das técnicas usadas seriam intoleráveis em uma
dução industrial. A Anistia Internacional documentou a pratICa sIstematIc~ de tortu~a com.choques sociedade livre": (Gambino, idem) O ódio que se criou sobre o BPP está vigente até hoje:' Sobre
elétricos em cinqüenta países. No século treze, o papa falava sem papas na lmgua. HOJe em dIa, tortu-
204 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 205

na Europa o fortalecimento das teses dos conselhos operários (Pannekoek, Gorter, sucessivamente vieram qualificando-se os conteúdos desta luta operária; isto é buscávamos dar-
lhe um conteúdo qualificante de poder280 •
Korsch, Ruhle e Matick), das teses e polêmicas Bordiga-Gramsci e, também, das
guerrilhas palestinas de George Habbasch na resistência contra Israel depois da
Qual era o cenário da luta? Como era Turim e qual a relação da FIAT com a cidade
guerra de 1967. Ao mesmo tempo ocorria a crise do petróleo pós-guerra do Yon
e a classe operária? Era
Kippur, saturação dos mercados ocidentais, entre outros movimentos.
As lutas inglesas mostravam que 95% das greves foram espontâneas, a chamada ma- a cidade italiana em que os processos de transformação se manifestam com os contornos mais claros
latia inglesa. "Entre setembro e outubro de 1969 as greves se estenderam investindo as e mesmo com um sinal antecipador das tendências mais gerais de desenvolvimento do nosso país
indústrias automobilísticas, as siderúrgicas, as mineiras, os serviços públicos': (idem )277 [... ] [lugar onde] de modo mais visível, emblemático e mesmo traumático a característica prevalente
O mesmo ocorreu na Alemanha: as indústrias de mineração (Saar, Ruhr), de produção do chamado "milagre econômico" italiano, isto é, de um desenvolvimento econômico e industrial
que atuou fora de qualquer regra programática que lhe atuasse os aspectos mais negativos [... ] esta
de aço (Westfalia, Baviera), estaleiros de Kiel, setor carbo-siderúrgico da Renania-Wes-
cidade "laboratório" e "de fronteirà' tivesse constituído 'um ponto de observação privilegiado para
tfalia, na Mannesman de Dortmund, etc. Na França formatava-se nova forma de greve a reconstrução das diretrizes principais da história econômica e social da Itália contemporâneà. 281
onde se paralisava toda a fábrica pela greve em setores essenciais da produção.
O pano de fundo desta profunda alteração da correlação de forças passou não Vai se constituindo uma nova classe operária a partir da chegada dos meridionais.
apenas por um surto inflacionário, déficits das balanças, comercial e de pagamen- Vários autores trabalham as condições de sua inserção na cidade. Ao examinar a Fiat
to, mas também pelas ações de um centro-esquerda a nível nacional. Existiram as condições de vida e de trabalho dos operários da Fiat e a repressão antisindical
grandes mobilizações populares e os setores ditos dinâmicos do capital perce- nela praticada282 , ao descrever a política interna à fábrica e as ambições de controle
beram com clareza a necessidade de alterações no plano da produção e da po- do território pela própria empresa, as relações sindicais e a perspectiva sociaF83, as
lítica, as lutas do movimento estudantil278 contra o autoritarismo universitário, variações do emprego, da renda e dos consumos ocorridos a partir dos últimos anos
dos recém chegados migrantes do sul por emprego, moradia, qualificação escolar, na cidade, as metas de emigração, os trabalhos massacrantes284, as repressões, como
contra o sistema de pensões (logo tornado uma das questões centrais) e, last but a da piazza Statuto (julho de 1962), as formas de integração e as polêmicas com os
not least, as dificuldades nas organizações da classe operária de entender o que partidos e sindicatos e o modo com que isso é tratado pela mídia285 esses autores,
ocorria279 . Lucio Magri, em um seminário interno do PCI, em Rimini, 1973, ilus- ainda que não o designem como tal, estudam o novo modo de vida operário.
tra a situação: Poderíamos seguir mencionando o modo como esses estudos foram feitos, como
os migrantes meridionais se integraram à cidade, suas dificuldades de adaptação, as
Buscamos fazer das lutas operárias o eixo de uma nova ação de massa afirmando que o capitalismo,
exatamente porque estava se desenvolvendo, devia ser atacado nos seus pontos nevrálgicos,
formas de rejeição que sofreram no interior da velha classe operária. Ter ou não a
que a tendência teria sido uma cada vez maior concentração de realidade operária, e que isto vivência das lutas dos antigos militantes, o fato de recusarem uma disciplina con-
deveria ser o eixo fundamental da política de massas do partido. Esta temática [... ] atacada suetudinária com o PCI e as estruturas sindicais longamente separadas da classe.
como obreirista, foi ao centro da conferência operária de 1960-61 do Pcr. Contemporânea e Diferenças históricas em relação àqueles que tinham a experiência das lutas contra
isso ver o extremamente documentado Farnetti, 2006. Sobre a percepção da proposta de integração o fascismo. Também a imaginada possibilidade de negar - ainda que individual-
pelo movimento negro é elucidativa a fala de Julius Lester, em Vestido de liberdade: "Não odeio os
brancos. Não é isto. Apenas que algumas vezes me enraiveço. Falam de integrar e falam sempre que 280 Citado por Dalmasso, 1999.
nós devemos nos integrar com eles. Não pensam nunca que talvez eles deveriam se integrar conosco. 281 Aldo Agosti (org), I muscoli della storia. Militanti e organizzazioni operaia a Torino 1945-1955,
[... ] Eu não quero me integrar, quero apenas que nos deixem paz:'(Torneri, 2008, p. 3. Grifo nosso) Milão, Franco Angeli, 1987. Citado em Di Giacomo, 2009, p. 2.
277 Giachetti mostra o quadro internacional da luta de classe no período 1968-1972: Em 1968 282 Giovanni Carocci, "Inchiesta alla Fiat': in "Nuovi Argomenti': n. 31-32,1958.
(França), 1969 (Itália, Irlanda, Canadá, 1970 (Canadá, Austrália, Bélgica, Nova Zelândia, Dinamarca, 283 Adalberto Minucci e Sandro Vertone, n grattacielo nel deserto, a, 1960.
Noruega, Holanda), 1971 (Grã-Bretanha, Austrália, Japão, Finlândia, Alemanha ocidental, Suécia, 284 R. Cominotti e Sergio Garavini, Ocupazione, redditi e cosumi in um grande centro industrial,
Suíça) e 1972 (Grã-Bretanha, Japão). Cf. M. Shalev, "Bugie, buggie sfacciate e statistiche': Analisi Milano, 1962
delle tendenze dei conflitti industrial, in Conflitti in Europa (org. por C. Crouch e A. Pizzorno), 285 Dario Lanzardo, La rivolta di Piazza Statuto, Milão, 1962. Veja-se o manifesto "Agli operai della
Etas libri, Milano, 1977, p. 325. Lutas de densidade e importância diferenciadas, certamente. Mas a FIAT" publicado pelos Quaderni Rossi. (materiali resistenti, 2003). Ver a posição da CGIL sobre
tendência é clara. esses acontecimentos em n Giorno de 9 de julho de 1962 que se refere à "presença de provocadores
278 "Nasce assim o slogan: 'A Universidade é o nosso Vietnam'; os guerrilheiros vietnamitas com- que atuam no plano do banditismo de modo totalmente estranho e mesmo rechaçados pela grande
batem contra o imperialismo, os estudantes fazem a sua revolução contra o poder e o autoritarismo massa dos trabalhadores em greve". Foram além e afirmaram que esses indivíduos chegaram às ruas
acadêmicos:' In Alessando Silj, Malpaese, Criminalità, corruzione e politica nell'ltalia della prima "em luxuosos automóveis com placa de Cuneo, Torino Ferrara. [... ] E foram estes 200 ou 300 rapazes
Republica 1943-1994, Donzelli editore, a, 1994, p. 92, citado por Ezechiele, 2009. a lançar-se, por volta das 22,30, ao assalto contra a polícia com a fúria cega dos Kamikazes': Grifo
279 Sobre todo o período anterior ao autunno caldo veja-se Dalmasso, 1999. nosso. Um velho método stalinista ainda em uso no momento atual.
206
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 207

mente - toda 'd h 'b'


FIAT . d' ~ VI a, a ItOS e cultura de regiões agrárias, a relação deles com a Essa assembleia realizada em 5 de julho redige um manifesto onde se denuncia os
(l ba In ustna par ,ex~ellence de Turim, os ritmos brutais a que devem se adaptar choques entre policiais e manifestantes realizados no Corso Traiano - 70 policiais
. em remo- ~o~ do classlCo texto gramsciano sobre Americanismo e Fordismo) tudo feridos e 160 manifestantes presos - e posiciona-se contra a ação dos sindicatos:
~~~ s~ cOnStIt~Ir como .elemento explicativo da recusa/incapacidade sindical!~arti-
adna e endten er o conjunto de transformações do mundo do capital e em especial A jornada de 3 de julho não é um episódio isolado ou uma explosão incontrolada de revolta.
as o mun o d os trabalhador . A • ' ,
Vem após cinquenta dias de luta que congregou um enorme número de operários, bloqueou
tYb . . . . es. o puro terreno economlCo-corporativ0286 • "Em 1976
completamente o ciclo produtivo, assinalou o ponto mais alto de autonomia política e organizativa
a a nca da FIat Tonno Mlrafiori adotou a primeiro sistema autômato para [fabricar]
até agora atingido pelas lutas operárias, destruída toda capacidade de controle sindical.
carros e suas partes mecânicas junto. [... ] Em 1978 os 't d d d-
I · . me o os e pro uçao foram Expulsos totalmente da luta operária, os sindicatos tentaram desviá-la da fábrica para o exterior, e
revo uClOnanzados com a introdução do Robogate o . ' . . reconquistar-lhe o controle, proclamando uma greve geral de 24 horas [... ]. É hora de despedaçar
reuni- d [ ] . , . ' pnmelro SIstema mundIal de
.. ao. o ... SIstema nas fabncas da Fiat Rivalta e Caassinà:(Chiosi 2002) Q I esta conjura de silêncio, de sair do isolamento, de comunicar a todos, com a força dos fatos a
onglnalIdade desse processo? ' ua a experiência da Mirafiori. (Assembleia operária di Torino, 1969)

qual foi o país da Europa no qual I T E propõem: "recusa da organização capitalista do trabalho, recusa do salário li-
digo: da Fiat de Turim, da Alfa R~~:od~~~~ã:'_oS ~perários de uma grande cidade .d? ~orte - gado às exigências do patrão, recusa da exploração dentro e fora da fábrica:' (idem)
de um desenvolvimento dos investimentos que se co ~~aran: em sua pla~aforma a reIvIndICação
específic S 1" rea lze nao em sua cIdade, e em sua fábrica Este claro programa anticapitalista obviamente exigiria uma revolução para ser
. a, ~as no u, e que dIscutam as características específicas e qualificadas a at 'b . realizada. Haviam medidas mais imediatas: "100 liras de aumento sobre o salário
novos InvestImentos, seus reflexos sobre fi t d n UIr a esses
E onde ocorre que a ação reivindicar a ~ er a e emprego, as formas de um controle coletivo? base igual para todos, [... ] reduções reais de tempo de trabalho, [... ] equiparação
conflitiva com o patrão? Onde tudo i::~ ~eai~~envolva em torno dessas reivindicações, em relação normativa imediata e completa entre operários e empregados" (idem). Tratava-se
e de decisão de massa? (Dalmasso, Idem) a que com esforço - se tornou matéria de discussão
de uma agenda complexa marcada pelo igualitarism0 291 e pela ideia de tempo livre
Do 68/69 as novas formas de conflito mud I-
das lutas dos primeiros anos sessenta era u : ~~:~:ç~es de força ~a fábrica: ~e a espo~taneidade estudantes que buscou "realizar uma contínua mobilização no interior da fábrica, vista como processo
radical combatividade operária, da tomada d . ~ luta defensIva, a~ora e expressa0 da mais
A
de subjetivação contínuà' e de permanente colocação em crise do capitalismo. Já o Potere Operaio vê
desenfreada. Escolhe-se a luta contínua "e c~nsCle_nCla ~ue o tr~,balho nao torna livre e da miséria a classe operária como "sujeito central e hegemônico da luta revolucionárià'. Sua perspectiva aponta
todos os setores da produção), em lug~rad~~:t:a:~~~ :tIcula~a (uma.vietna~iz~ção d~ luta em
para "a reivindicação política do aumento salarial, sobre a análise da fábrica que se torna sociedade e a
sociedade que se torna fábricà: 11 Manifesto é, inicialmente, uma tendência de militantes da esquerda
~~::e:r!~ :l~~i~~~r~~~:::a:~~~::f:~ contr~tUalCO ~~~:t~ ~~~::'::~i~;~~%:::~::~~ do PCI, entre eles Rossanda, Magri, Pintor. Busca trabalhar "o momento de luta que nasce de uma velha
subjetividade, a classe operária, inserida em novos contextos sociais de lutà: Tratava-se de uma "ten-
do próprio trabalho. [... 1 10 operano, com a Insubordinação difusão, com a recusa
tativa de resposta, sobretudo ideológica e cultural': Acabam por ser expulsos do PCI. Já a Avanguardia
O encontro marcado da asse bl' d ' Operaia, que reuniu os operários considerados mais combativos, estudantes, alguns técnicos e funcio-
meIa autonoma e operarios-estudantes 287 em julho '69288 d t
A

.
uma ruptura sobre o ponto estratégico da luta: "a uma e ,. ' . ' e ~rmIna nários evitou um confronto "excessivamente aberto com o sindicato" propunha-se com "uma posição
capazes de desarticular o plano do capital d ' r strategla q~e. quer IdentIficar objetivos de centralidade na luta de classe operária sem querer desfazer a relação com os estudantes". (11 '77:
e os torrienses contra õem um . e e lmp lcar a recusa operana do trabalho, os toscanos l'anomalia italiana). Sobre isso ver Sbardella (1980). Bologna (1998) refere-se à revista Clase Operaria
consciência anta onist: o erári proJ~to que aponta, ~sse~cialmente sobre o crescimento da como sendo "a única publicação que, naquele período de violenta reestruturação e repressão, reportasse
['anomalia italian~290) p a atraves de uma moblhzaçao contínua e qualificada"289. (Il '77: dados sobre a situação nas fábricas:' Ainda segundo ele os Quaderni Piacentini "estavam fascinados
por Frankfurt e por Berlim, por Krahl e por Dutscke, e ignoraram, como todo o movimento italiano,
286 ~ pa~avra de ordem operária era: "Che cosa vo liamo? ~ l' , " , a importante contribuição [... ] na Alemanha pelas lutas das faculdades técnico-científicas, a crítica da
va de maIS salário e mais democrac' " g . og lamo tutto ... e sublto! na perspectI- ciência e da tecnologia que desencadearam o chamado movimento dos engenheiros e a recusa da pro-
287 "O la. fissão:' Com toda essa diversidade foram essas revistas que colocaram em debate temas como a ruptura
primeiro encontro de mas t ' .
cidência de dois movimentos imp;~:~:seeoPderanos e ~studlantes foi em março de 1968, com a coin- sino-soviética, a chamada revolução cultural proletária, as guerrilhas latinoamericanas, a luta do povo
, d' ., , as respectIvas utas' o momento d . d do Vietnam, os Black Panther, a nova esquerda americana que ou nunca antes fora feita pelos órgãos
JU IClana contra o movimento estudantil (13 mandatos d ,_. a maiS ura repressão
sobre as aposentadorias:' (Rieser, 1998) e pnsao) e a greve da CGIL contra o acordo oficiais do PCI ou quando apresentadas nunca com o rigor e a força que mereceriam. O enorme debate

sição varia desde "um panfleto da VIL contra ot,


288 Os sindicatos tradicionais reagem contra a rese d
fi l~~ ~s ,~st~dantes nas lutas operárias. Sua po-
'fedentina de grupelhos extremistas', à tentativas de !aior ~bPa , a desconfiança da ~G IL que sente a
ideológico entre as revistas externas ao PCI pode ser visto com mais atenção em Dalmasso, 2004.
291 Para que se tenha ideia da força da temática do igualitarismo basta dizer que ele representava
um ponto decisivo na luta da sociedade italiana, não era uma ideologia esquerdizante. Rieser (1998)
um panfleto unitário muito pesado faz um anfl t " ertura da FIM que, depOIS de ter assinado comenta: "Recordo, por exemplo, dos guardas diante do Palazzo Campana: 'tendes, de fato, razão
do maio francês reforça o impulso ~studantK em ;e?/~~P;:~ mais fav~r~v~~ ao~ estudantes. A explosão nos vossos discursos sobre o autoritarismo: mas o sistema autoritário em que estais inseridos são
289 Rossana Rossanda, Thrda d'oro citado e Il '77 'I'
Ç
utal~ o~er~nas. (Rleser, 1998) Grifo nosso. rosas e flores em confronto com o nosso; a crítica do autoritarismo aplica-se à nossa situação muito
290 L' , , m . anoma la ItalIana mais que à vossa. ", Ainda Rieser; ''À análise crítica do igualitarismo se ligava estreitamente a análise
ImItar-nos-emos aqui a indicar os ru .
detalhar sua intervenção dados os limitesgd pos que atuaram nesse processo sem, contudo, poder dos mecanismos sociais e ideológicos pelos quais a autoridade se mantinha, se estabilizava e se justi-
fi . o nosso texto' Lotta Continu P t O ' 1 ficava. Neste quadro se colocava a denúncia e a crítica das desigualdades: a análise dos mecanismos
esto, Vmone dei Comunisti e Avanguard' O . L' , a, o ere peralO, I Mani-
la perala. otta ContInua era constituída por operários e de seleção de classe na escola se ligava assim à análise das desigualdades no sistema de fábrica vistas
208 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 209

"para poder viver a própria vida, para poder fazer política, etc:' (Ezechiel, 2009). Nos controle, conhecimento e poder nos locais de trabalho, tornando transparente o nexo entre fábrica e
dias 26 e 27 realizou-se no Palasport de Turim sociedade. (Meriggi, 2008, Grifo nosso)292

[... ] uma assembleia nacional [com] as vanguardas operárias de toda a Itália, um momento de Toda a movimentação operária encontrava nas burocracias sindicais ("i sindacati
protagonismo da classe operária que se pode assistir apenas em um momento de forte crescimento pompieri")293 e partidárias (PCI) uma incompreensão das profundas transformações
da combatividade operária, como foi precisamente o outono quente. (idem) que atravessavam o mundo do capital294 e das formas que o processo produtiv0295
implementava. Não percebiam os novos agentes do processo operário: desconfiavam
A importância dessas lutas pode ser documentada pela fala dos capitalistas. Em 14 dos terroni, dos recém chegados do Sul e sem tradição fabril: os desqualificados que
de setembro de 1969 La Stampa publica um edital (EEuropa''salvaggia'j afirmando buscavam a miragem do bem estar negando o processo de vida pobre e empobrece-
que a "luta dos operários da FIAT nos colocaram diante dos olhos [... ] as greves sel- dor das estruturas agrárias do Sul.
vagens" (Giachetti). A radicalidade era tal que Na prática era uma nova Questão Meridional. O que os novos personagens encontra-
ram? Quais suas reivindicações? Todas subversivas na ótica capitalista: aumento igual
Vários editorialistas dos jornais nacionais pediam, com mais ou menos insistência, o reforço da
para todos, passagem de categoria para todos, redução consistente no horário de tra-
presença sindical na fábrica de modo que o patronato pudesse dispor de um interlocutor sério
e forte para a contratação. Indro Montanelli intitulava um editorial no "Corrieri della Sera" de balho, paridade entre operários e funcionários, alugueis mais baratos, casas populares,
26 de setembro I timori dell'autunno caldo, convidando o patronato a ajudar o sindicato, fazendo- livros escolares, transportes públicos gratuitos, entre outros. Várias foram as conquistas.
lhe concessões na renovação dos contratos, para evitar o perigo de uma vantagem de hegemonia no Entre elas convém ressaltar o direito às 150 horas pagas pelo patronato para a formação
interior das filas operárias ao extremismo revolucionário. (idem. O 2°. Grifo é nosso) cultural e política dos operários. Não era pequeno o desafio. Elas deveriam

A luta contou com a firme presença estudantil. Este movimento retoma, no outo- 292 O direito permanente ao estudo uma vez afirmado a nível de massa implica de fato uma pro-
funda revolução na concepção atual que separa o estudo do trabalho (ainda que temporalmente na
no-inverno, ao mesmo tempo em que se travava a luta operária na Lancia vida de um homem) e que reconduz o estudo em função de reconhecimentos formais tendentes à
reprodução da estratificação social, cujo critério fundamental permanece a distinção classista entre
sobre terrenos diferentes daquele originário das faculdades humanísticas e de arquitetura: primeiro trabalho manual e trabalho intelectual. "O direito ao estudo como direito de massa e permanen-
a onda imponente da luta dos estudantes das escolas médias (em particular dos institutos técnicos te impõe, pelo contrário, uma escola 'aberta', uma escola radicalmente transformada em contínua
e profissionais), depois o movimento estudantil de medicina com a ocupação do maior hospital de evolução, com uma gestão social por parte de todos os seus operadores que são em conjunto e dia-
Turim. Ambos os movimentos oferecem impulsos potencialmente ricos para a relação com as lutas de leticamente aqueles que aí ensinam e aqueles que aí aprendem. Uma escola que deverá estar aberta
fábrica, que, contudo, tiveram uma realização limitada. [... ]a que por vezes primitiva, crítica da ciência seja para quem pretende conseguir diplomas, cuja função deveria ser principalmente a de atestar o
conhecimento de algumas técnicas (a contabilidade, o cálculo matemático, o desenho, a cirurgia e
e da tecnologia). O movimento da medicina vê como um dos seus temas centrais a nocividade na fábrica e
assim por diante), seja aos que pretendem freqüentá-la independentemente do interesse específico
a prevenção, e se conecta sobre este terreno à temática já desenvolvida na CGIL turinesa (inserida em uma de aprendizagem de técnicas particulares e à obtenção de um título formal; aberta, em outros termos,
mais geral, aindaque por vezes primitiva, crítica da ciência e da tecnologia. (Rieser, 1998. Grifo nosso) a todos aqueles que tentam elaborar a própria experiência prática em termos de reflexão histórica,
teórica, científica, dedicando para este fim uma parte do tempo de trabalho diário ou anual, sem por
o projeto era subversivo do ponto de vista do capital, mas o era também para as isto estar interessado em um diploma de tecnologia, de sociologia, de história ou de filosofia política':
(Lettieri, 1973)
formas organizativas institucionalizadas das classes trabalhadoras com sua inércia e 293 Em documento do CUB da Pirelli (Bicoca), IBM e Siet -Siemens se afirma: "Do ponto de vista da
rotina. Implicava uma brutal alteração da relação de forças, não apenas na fábrica, representatividade operária é característico desta fase o slogan 'somos todos delegados: que significa
mas na sociedade. "Em 1976 a fábrica da Fiat Torino Mirafiori adotou a primeiro a recusa de qualquer mediação sindical e a imposição ao patronato de uma relação direta com as
lutas operárias." (Ezechiele, 2009)
sistema autômato para [fabricar] carros e suas partes mecânicas junto. [... ] Em 1978 "[ ... ] os sindicatos são 'profissionais da contratação' que escolheram 'em conjunto com os chamados
os métodos de produção foram revolucionarizados com a introdução do Robogate, partidos dos trabalhadores o caminho das reformas, isto é, o caminho do acordo global e definitivo
o primeiro sistema mundial de reunião do [... ] sistema nas fábricas da Fiat Rivalta e com os patrões": Documento citado por Alessando Silj, Mai piu senza fucile, Vallechi, Firenze, 1977,
pp. 82-84. In Ezechiele, 2009.
Cassinà: (Chiosi, 2002) 294 A formulação clássica na literatura fala em "mundo do trabalho". Isto acaba por identificar tra-
balho e capital, facilitando os discursos e as práticas reformistas. Usaremos a fórmula "mundo dos
Duas vezes se realizou um assalto ao céu, nos anos Vinte e nos anos Setenta, no curso do qual os trabalhadores" para indicarmos a práxis das classes subalternas.
trabalhadores associaram lutas pelo salário e pela satisfação das necessidades cotidianas e lutas pelo 295 "Toda a análise crítica dos processos reprodutivos implica a distinção entre o plano das formas
aparentes e o da lógica constitutiva do modo de produção: permanece sendo esta última (para quem
acima de tudo (talvez com uma acentuação unilateral) como 'diferenças criadas artificialmente para continua a referir a valorização do capital à sua relação antagonista com o trabalho vivo), aquelas que
dividir', e mesmo aqui se determinava uma saldatura entre consciência ( 'sentido comum ') operária mudam em continuação, registrando no tempo também profundas modificações seja na organização
e estudantil:' dos processos, seja no que concerne a constituição dos sujeitos:' (Burgio e Grassi, 2002)
Revolução passiva e modo de vida 211
210 Edmundo Fernandes Dias

Superar a parcialização das tarefas imposta pelo taylorismo. A divisão entre trabalho intelectual de perder as inscrições ao sindicato, as carteiras (tessere) do partido. ("Salute e lavoro", in Basaglia,
e trabalho manual que dá lugar às hierarquias. Para por a nu e virar pelo avesso a presunção de 2000. Grifo nosso)
objetividade de uma técnica escolhida e utilizada intencionalmente para dividir os trabalhadores e
expropriar-lhe o saber (Farinelli) As lutas operárias do período colocaram em questão as formas organizativas da
classe. Dalmasso (1999) salienta que
A tecnologia revela assim seu caráter de classe. A fala gramsciana segundo a qual
"a hegemonia nasce na fábricà' referia-se a um contexto onde a historicidade feu- a questão contratual supera definitivamente estruturas operárias radicadas no tempo como as
dal, a expansão tornada possível, as contradições entre as diferentes etnias tudo isso comissões internas, em favor dos conselhos de fábrica, instrumentos de participação de base,
combinado com um estado liberal- sem a existência de um enorme exército de pa- menos sujeitos ao burocratismo, e de delegados que eram eleitos diretamente, inicialmente sem
nenhum filtro sindical.
rasitas. Na Europa essa tentativa de hegemonia é a matriz de novas contraditórias e
diferenciadas só resolvidas pelo gume da espada de Alexandre Magno. A construção
A luta abria novas contradições no interior da própria classe (interesses a curto,
e ou recuperação da identidade dos subalternos produzia esse ataque ao coração do
médio e longo prazo, por um lado e, por outro, perspectivas estratégicas e táticas). As
capitalismo. E este respondia com a reestruturação do capital.
burocracias sindicais não pareciam ter sequer uma visão próxima do que deveria ser
o '69 era verdadeiramente marcado por uma contestação pontual da organização de fábrica e de a luta e, portanto, sequer poderiam imaginar a violentíssima resposta da burguesia.
suas hierarquias , de formas de luta fundadas sobre o conhecimento do ciclo e dos nós cruciais
da produção, de uma autonomia que recusava qualquer delegação, da reivindicação e prática de [Às passeatas promovidas pelos sindicatos, os operários] preferem os cortejos i~ternos,. a .luta
liberdades individuais e coletivas. O primeiro ator, uma geração de jovens operários muito diversa frontal com o chefete do turno e com o patrão: é o operário, em plena autonomIa, a deCIdIr os
pela proveniência social e níveis daquela de jovens estudantes do primeiro sessenta e oito, mas ritmos da luta recusando o salário como mercadoria de troca com o próprio trabalho e com a
similar na recusa da autoridade, no desejo de transgressão e liberação, na convicção de poder mudar própria saúde. [... ] , .
o mundo. Parecia soprar o mesmo vento, para os operários-estudantes-unidos-na-Iuta. (idem) Em 69 o poder muda de estratégia: o uso cada vez mais massivo da violência das forças de pohCla,
a utilização dos grupos neofascistas e dos "corpos separados': o emprego frequente do nunca
Contra esse assalto ao céu, o movimento tem que enfrentar a totalidade das formas abolido Códice ROCC0 298 para golpear as liberdades de expressão e de associação. Sobretudo as
bombas e a fácil equação anarquista-terrorista, são utilizadas com a finalidade de compactar a
organizativas da burguesia ... o sistema fabril, a totalidade do corpo político - po- burguesia moderada contra o proletário. É o próprio poder que jogando a carta da guerra civil nega a
deres executivo, legislativo e judiciário - as confederações patronais - e... graças às possibilidade de um confronto sobre o plano da política. (Il '77: l'anomalia italiana, idem. Grifo nosso)
tradições reformistas e corporativas dos sindicatos e dos partidos "operários" o mo-
vimento do autunno caldo repete a primeira edição dessa luta: os consigli di fabbrica o que estava em jogo não é mais apenas a forma de redistribuição salarial ou a luta
do biennio rosso. imediata contra o poder dos chefes e patrões. Trata-se, agora, de recomposição de
classe e recusa do trabalho.
Por muitos anos os partidos políticos e os sindicatos tinham feito legislações visando aumentar
o salário do trabalhador 296 • Isto é sem dúvida muito importante, mas infelizmente por muito Estas duas noções eram substancialmente novas no âmbito do marxismo. [... ] a estrutura produtiva
tempo sequer foi tomado em consideração o problema de transformar o local de trabalho, a fábrica, e tecnológica dos anos 20 dava vida a experiências de tipo conciliar. l!~a fábric~ [... ] e~ que a
a qual paga pouco, é instrumento de alienação e faz também adoecer, pela via das condições de relação homem -máquina era relativamente personalizada, na qual a habIhdade se dIferenClava e na
trabalho. Este problema fundamental não é levado em consideração suficiente pelos partidos qual os conselhos reivindicavam o direito de gerir e controlar o trabalho e eram orgulhosos da sua
políticos e pelos sindicatos ainda que queiram a emancipação do trabalhador. O sindicato e os função produtiva. (idem)
partidos políticos têm duas preocupações fundamentais: a primeira é a de fazer a política sindical A recusa ao trabalho é uma resposta às brutais condições vividas pela classe:
que responda às necessidades dos trabalhadores do ponto de vista materia[297; a segunda é o medo O que muda profundamente com as lutas do autunno caldo são exatamente as relações de for~a na
296 "sendo a produção um fenômeno determinado e a tecnologia desenvolvendo a faculdade da fábrica. O operário explorado e humilhado pelos ritmos do trabalho, pelos controles, pelas contmuas
produção, é possível conceber uma diminuição da jornada de trabalho, não como conquista sindical, punições, desenvolve uma conflitualidade cotidiana contra o patr~o. A iniciat~va operária não se
mas como tempo de vida por um lado, e por outro tempo de cultura, de ciência, de associação, de move mais somente sobre quantas horas de greve fazer, mas tambem como faze-lo. Desenvolve-se
liberdade. (Badaloni, 2005, p. 29)" Grifo nosso. logo uma lógica de recusa ao trabalho que corresponde a um comportamento d~ :ecusa a ~o.laborar
297 "Enquanto no início alguns dos seus grandes líderes se batiam contra o controle total da eco- com os destinos da fábrica permanecendo fortemente ligado à defesa das condlçoes operanas. Isto
nomia por parte dos industriais, agora o movimento sindical combate por reivindicações salariais produz uma nova lógica de como conduzir uma greve qu~ aponta a produzir, c0r.n um mínimo de
[... ] o movimento se dirige aos patrões não mais [pelo] controle da produção, mas sobre partes dos esforço da parte operária, o máximo de danos ao patrão. E a greve a gatto selvaglO segundo a qual
lucros. [... ] A classe operária norte-americana goza dos frutos dos trabalhadores do Terceiro Mundo:'
Carmichael, pp. 70-71. Grifo nosso. Ele falou em um momento em que a luta dos operários italianos 298 Alfredo Rocco, ministro fascista da Justiça (sic), foi o autor do código extremamente r~pressivo
começava a radicalizar-se: 1967. e base de toda a institucionalidade mussoliniana, preservado mesmo após a derrota do regIme e da
proclamação da nova constituição dita democrática.
212
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 213

faz greve apenas um restrito grupo de operários de cuja atividade depende, todavia o inteiro ciclo que se começa a discutir a necessidade do "partido re;olucionário':~OO (Il '77: l'anomalia itali~~a)
de produção. Mudando por turnos o grupo que entra em greve, se consegue bloquear a fábrica, A resposta capitalista a partir dos anos Oitenta do seculo XX realIzou-se - se?undo a analIse ~e
mais e mais vezes, com um mínimo de "custo': (Ezechiel, 2009) Burgio - por um duplo ataque. A globalização mercantil e fi~anc:ira produzI~ a reestrut~raç:o
O taylorismo tinha apagado tudo isto e nos anos 60 a fábrica tinha se tornado absolutamente oligárquica dos centros de decisão. Os deslocamentos, as externalIzaçoes: as mutaç~es na orgamzaçao
antissocial, a separação física e o barulho tornando impossível a comunicação e a exploração do trabalho contribuíram para provocar uma desagregação corporativa da socIedade, em que o
despótica e repetitiva criavam um homem cada vez mais mecânico. (Il '77: l'anomalia italiana) conflito de classes fundamentais é ideologicamente relido como fricção, como concorrência entre
A recomposição de classe parte desta desumanização: camadas e grupos. (Meriggi, 2008)
"Se devo ser de todo desumanizado, se não devo ter uma alma, um pensamento, uma individualidade
eu o serei até o fundo, decidida, ilimitada e despudoradamente. Não participarei mais no processo do
trabalho, serei estranho, frio, destacado. Serei brutal, violento, desumano como o patrão quis que eu Tudo isto formou o quadro de uma profunda agitação política e cultural. O mo-
fosse. Mas o serei até o ponto de não conceder mais sequer um pingo da minha inteligência, da minha vimento estudantil também entra em ebulição, em especial em Trento, Milão, Tu-
disponibilidade, da minha intuição ao trabalho, à produção:' rim e Roma. As lutas estudantis põem em questão o autoritarismo universitário e
"Toda humanidade à lutà': assim o operário se dedica totalmente à sabotagem, recusa a contratação depois caminharam para a crítica ao capitalismo, ao Estado, à 'pátria, a. família, a
e se recompõe exatamente nas sessões.
religião, os partidos de esquerda vistos como peças fundamentaIs do regIIr~e. T~do,
O momento do máximo contra-poder nas fábricas, a fase culminante do operário-massa, se
entrelaça inevitavelmente com a reestruturação tecnológica pós-fordista que encontrará plena absolutamente tudo, estava em questão. O clímax da situação é dado pela junçao -
realização com a inflação e a onda de demissões da década sucessiva. consciente ou não - de todos esses movimentos. E, acima de tudo, síntese e matriz
O capital ganhou muito com a recusa ao trabalho transformando-o em poupança pela inovação desse processo, tornava-se absolutamente claro aquilo que neoliberais e regulacionis-
tecnológica. (idem. O segundo grifo é nosso)
tas chamavam de ''engessamento das condições de acumulação" decorrentes da luta
de classes na produção. [e] a migração do sul é o maior fenômeno social. dos anos 50
Outro elemento central dessa estratégia de luta foi a redução da produção. Batista
e 60. Centenas de milhares de italianos mudam de trabalho, modo de vlda e mesmo
Santhià, militante operário, afirmava em 1974: eram
de escolha político-eleitoral" (Dalmasso, 2000. Grifo nosso).
formas muito complexas de auto-redução da produção, formas que requeriam uma participação e uma
unidade extraordinárias de todos os trabalhadores, compreendidos aí os técnicos299 • as modificações do sistema produtivo não requerem mais figuras profissionalizadas, ainda lig~das
ao velho "artesão de ofício" sobre os quais se construíra a estrutura sindical e a qual estava amda
Era a primeira vez no pós-guerra que estratos da força de trabalho que tradicionalmente tinham
ligada a CGIL, mas a um trabalhador cada vez mais massificado, flexível, privado de específicas
sido usadas em função anti-operária e tinham sido o veículo social da disciplina patronal na fábrica
rompiam seus laços de dependência e escolhiam o caminho da solidariedade de classe. capacidades profissionais; [... ]
ao centro do novo ciclo de lutas, ainda aberto aos trabalhadores profissionalizados (os
Todas as energias acumuladas, os empurrões do imaginário, as reflexões teóricas, os novos códigos de
eletromecânicos, mas não apenas) está então o operário de linha, frequentemente jovem e, e~
comunicação, se fundem em uma síntese que só pode ser definida como "nova composição política
de classe'; onde estão todos, estudantes e operários, técnicos e empregados, no coração da produção numerosas realidades, meridionais, não ligados, portanto, à história (e frequentemente m~s~o ~s
derrotas) do movimento sindical, portador de uma cultura e necessid~d~s d~versa~ das tradIC~OnaIs.
industrial, no coração da formação da força de trabalho qualificada para a indústria. (Bologna, 1998)
À oposição à disciplina e ao regime de fábrica resumem as, contra~lço~s mduzI~as pel.a v~da do
imigrado (o desenraizamento, a falta de casa, os serviços ... ) e as geraCIOnaIS (as quaIS a aceItaçao dos
Este foi o núcleo central da luta de classes na produção. Nada tem a ver com o modelos de vida, a vontade de rebelião ... ). (idem)
idílico panorama dos burocratas sindicais e partidários. Proposta subversiva não
apenas para o capital, mas também para aquelas organizações da classe (partidos, A luta que se colocava era pela hegemonia. Elemento fundamental ~esse processo
sindicatos) que educados na cultura industrial-militar, não conseguiam entender era o componente igualitarista. Quando o movimento coloca a questao do processo
nem o que se passava, nem aceitar que a nova classe operária estava se construindo. produtivo o patronato o percebe de modo corporativo.
Aqui estamos ultrapassando o limite das propaladas parcerias antagônicas, limite
que confirma a undécima tese benjaminiana. [Ele] estava em certa medida disponível para um instituto que fosse inserido no qu~d~o
tradicional do enriquecimento da profissionalidade de cada um dos tr~balhadore~ em relaçao as
E é principalmente pelo choque provocado pela repressão difusa, das dezenas e dezenas de exigências empresariais; o sindicato, pelo contrário, se batia em conqUIstar u~a ~lberdade plena
proletários assassinados, das obscuras "tramas de estado" que nasce a necessidade da organização, de fruição deste pacote de horas remunerado, como reconhecimento de um ?lre~to perma~ente
ao estudo por parte de todos os trabalhadores independente de cada finahzaçao profiSSIOnal.
299 Panzieri já em 1965 advertia sobre a necessidade de compreender "as transformações da classe
operária: essencialmente sob o perfil das novas relações que se estabelecem entre operários e técni- (Lettieri, 1973)
cos, da constituição de novas categorias e das transformações na composição da própria classe operá-
ria. [... ] [examinar as] situações de luta dos dois níveis, [... ] as tendências provocadas na consciência
da classe operária e dos técnicos pelas transformações do seu 'status':' (l968b, pp. 114-115) 300 Nani Balestrino e Primo Moroni, LOrda d'oro, citado em (11 '77: l'anomalia italiana).
214 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 215

A questão para os operários era a do poder. A ideia de qualificação ia muito além contra toda forma abstrata de igualitarismo, isto é, em defesa daqueles setores profissionalizados que
do mero adestramento. Abolir as fragmentações impostas como forma de divisão da constituem o núcleo duro da CGIL e recusa uma disputa generalizada sobre as 40 horas, considerando
que esta deva ser o fruto da contratação articulada, categoria por categoria. (idem)
classe, a instrução como preparação para o controle da produção. E a constituição da
famosa aliança operário-estudantil.
Passado o período do autunno caldo301 e sua radicalidade, assistimos uma retomada
da ordem burguesa. Aqui a tecnologia (robotização, micro eletrônica, processos de tra-
Na realidade o sentido da conquista das 150 horas é o de uma aquisição coletiva dos trabalhadores
que se inscreve na estratégia de igualdade e de unidade dos trabalhadores que parte do fim dos anos balho reestruturados) permitiram uma redefinição da relação de forças. Por outro lado
60 para o igualitarismo salarial para caminhar em direção à contestação da organização capitalista do o capital atacou pesado com a "strategia della tensione", com um conjunto de atentados
trabalho e do velho sistema de qualificações. O enquadramento único entre operários e funcionários e assassinatos praticados pelos serviços secretos do Estado italiano entre 1969302 e 1980.
encontra assim uma sanção de princípio e prática na afirmação de um direito permanente ao estudo
como recusa da divisão estrutural entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre produção e
A 'strategia dela tensione' não quer desestabilizar; pelo contrário quer consolidar um sistema de
ciência. Neste contexto as 150 horas não podem ser finalizadas redutivamente nem às passagens
poder stragista piduista e mafioso (o mesmo que em 1962 eliminou Mattei, em 1968 De Mauro e em
individuais de categoria, nem aprendizado de cravo, para permanecer no âmbito da emblemática
1971 Pietro Scaglione) [o] movimento das bombas dos anos setenta à tomada de poder com outros
"provocação patronal': Trata-se de uma conquista para usar politicamente para a apropriação
meios dos nossos dias. A chave da leitura deste eixo criminoso político-econômico tentacular está
coletiva de parte dos trabalhadores de instrumentos de conhecimento e controle tanto sobre o tudo em Petrolio, o profético romance-verdade, incompleto e mutilado, de Pier Paolo PasolinP03
processo produtivo interno quanto sobre a relação fábrica-sociedade.
que é massacrado pelo réu confesso Pino Pelosi, e mais por 'três sicilianos' ; no meio tempo outros
[... ] Para dar concretude a este objetivo que se coloca em uma mais complexa estratégia de unidade trataram de suprimir de Petrolio o capítulo Lampi sull' Eni, 'que do homicídio hipotetizado de
e de h[e] da classe operária é necessário que o próprio objetivo e os instrumentos para conseguí-Io Mattei guia ao regime de Eugenio Cefis, aos 'fundos negros', aos stragi de 1969 a 1980, e agora
sejam geridos por aquele sujeito coletivo que é o conselho de fábrica. (idem)
sabemos ao Tangentópolis, ao Enimont, à mãe de todos os tangenti. (Giovannetti, 2010)

Todo esse processo de luta desperta a sanha da direita. Em novembro de 68 após Com a absoluta conivência dos governos e a participação legitimatória do PCp04.
comício operário em Milão a polícia ataca os manifestantes (os "extraparlamentares"). Lembremos dois casos emblemáticos: as mortes de Aldo Moro e do editor Giangiacomo
Nessa repressão morre um policial, pretexto para uma repressão ampliada: Feltrinelli. A situação no interior do PCI nada tem de cômoda. Depois de ter marginali-
zado a tendência Ingrao (no seu XI Congresso, 1966) ele tem agora pela frente uma dura
Segue a primeira grande reação da direita, com a caça aos extremistas, mas, sobretudo
com a recomposição dos setores conservadores e moderados. A manifestação nacional dos
revisão da sua posição. São, para Delmasso (idem), três questões nas quais ele se debate:
metalmecânicos (Roma, 28 de novembro) assinala a maior prova de força dos trabalhadores e do
movimento sindical. Duas semanas depois, as bombas na Piazza Fontana, o fracasso da política 301 Os limites da consciência operária são demarcados na análise da questão: pelo artigo 9 do Estatuto "Os
de reformas, a não conclusão da unidade que parecia em reta de chegada, os próprios resultados trabalhadores, pela sua representação têm o direito de controlar a aplicação das normas para a prevenção de
eleitorais das administrativas (junho 1970) testemunharam a não imediata transposição em nível acidentes das doenças profissionais e de promover a pesquisa, a elaboração e aplicação de todas as medidas
global do protesto da fábrica e o início de uma fase involutiva. É óbvio, portanto, que: destinadas a vigiar a saúde e sua integridade física. [... ] O artigo 28 do Estatuto que prevê a possib~idade
- o outono italiano assinala, pelo número e pelo alcance dos conflitos sociais, uma combatividade dos sindicatos de recorrer ao juiz contra qualquer comportamento antisindical do patrão, e que tena po-
operária única na Europa; dido ser utilizado cotidianamente como instrumento constante de controle da prepotência patronal na
- as formas de luta, sua radicalidade e o seu conteúdo colocam em discussão a tradicional impostação fábrica - teve aplicações apenas excepcionais e esporádicas, dado que os recursos dos juízes partidários dos
do sindicato e mesmo a dos partidos que, todos, caíram parcialmente do cavalo; sindicatos têm sido pouquíssimos: Pode-se dizer o mesmo para todas as legislações sobre a prevenção de
- a aspiração da unidade sindical manifesta um forte estímulo de base e a necessidade de um acidentes do trabalho e sobre o controle da higiene e da saúde na fábrica: trata-se de leis que prevêem uma
quantidade inumerável de medidas de segurança e prevenção [... ]. (Ferrajoli, p. 119, in Basaglia et allii 1978)
instrumento de ação política de classe;
302 Quando das manifestações de 1969 o anarquista e ferroviário Giuseppe Pinelli foi "suicidado"
- a demanda de mudança dirigida às forças políticas para obter respostas ainda que apenas parciais. pela polícia de Milano em 15 de dezembro daquele ano. Isto deu origem à obra de Dario Fo, Morte
(Dalmasso, 1999)
accidentale di un anarchico.
303 "Pasolini com Petrolio escreveu a crítica da economia política dos stragi na Itália, prefigurando a passagem do
A classe operária segue sofrendo transformações quantitativas: 59 mil meridio- regime de Cefis (na sombra) ao regime de CAF e depois de Berlusconi" (D'Elia, 2006). A morte. de Pasolini, qu~
ex-militantes da esquerda extra parlamentar como Adriano Sofri tentaram reduzir a um puro cnme sexual. Sofri
nais chegam a Turim apenas em 69. A FIAT incorpora 15 mil deles. Novas lutas são chega ainda em 2005 a afirmar criminosa e preconceituosamente que 'Pasolini andava fazendo amor naquela noi-
travadas: multiplicam-se os fechamentos de fábricas "inclusive pelas formas de lutas te!: A morte de Pier Paolo respondeu a problemas muito diferentes. Em Petrolio existia um capítulo Lampi sull'Eni
introduzidas" (Dalmasso, 2000). Em 12 de junho ocorre na Universidade a primeira onde a morte de Mattei era examinada. As folhas desse capítulo foram roubadas, desapareceram dos arquivos.
304 Prática continuada. Berlinguer em programa televisivo após a maioria do partido ter se posi-
assembleia operário-estudantil que virá a se reunir todo sábado. Diante da situação cionado pela invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do pacto de Varsóvia em 1968 afirmou que o
Agostino Novella, secretário da CGIL, fala em seu congresso ser "Socialismo pode bem ser construído sob o guarda-chuva da NATO:' Chilosi, 2002. "De 1971 a 1987
nenhuma lei foi aprovada contra a forte vontade da oposição:' (idem)
Revolução passiva e modo de vida 217
216 Edmundo Fernandes Dias

- as escolhas internacionais para as quais se pede um juízo crítico sobre a URSS e o socialismo As classes subalternas, perdido esse momento vital da luta, são profundamente
realizado e uma maior atenção à política chinesa; golpeadas. A reestruturação capitalista, forma da recomposição orgânica do capital
- a soluÇã~ a dar às lutas operárias e estudantis, mesmo depois do maio francês, que a Itália e tem como meta não apenas o reassenhoramento do controle do sistema produtivo.
a França sao um dos polos de um processo revolucionário potencial em escala mundial e que a
Muito mais do que isso o processo capitalista tratou de eliminar qualquer nova pos-
qualidade do choque político implique uma revisão total de estratégia na esquerda majoritária;
- a democracia interna do partido em que deve ser reconhecido o direito de expressão do sibilidade de antagonismo: desestruturar as classes trabalhadoras, até mesmo nas
dissenso. (idem) formas organizativas que não negavam a ordem do capital. Essas modificações pro-
duziram consequências terríveis para o movimento dos trabalhadores:
Este debate foi «resolvido" burocrática e disciplinarmente no Congresso de Bolo- As transformações ocorreram em um momento e em um lugar determinado.
nha (1969). Rossana Rosanda, Luigi Pintor, Aldo Natoli, Caprara e Lucio Magri - o Corresponderam, por um lado, a uma derrota política e econômica da classe traba-
núcleo do futuro Il Manifesto - são acusados de fracionistas e eliminados do partido 1hadora no plano da produção e, por outro, pelo projeto de integração à ordem do
«exatamente no auge das lutas pelos contratos, quase a testemunhar, simbolicamen- principal partido dito de esquerda. Tiveram como contrapartida a ideia e a prática
te, a separação do PCl e dos sindicatos em relação à uma nova esquerda que vem da cidadania liberal.
surgindo [... ]" (idem)
O embate de projetos hegemônicos foi decidido a favor da burguesia. Ao anunciar Depois do divisor de águas representado pela derrota na Fiat no outubro de 1980, e por alguns
anos ainda, os inspiradores destas análises [sobre as transformações do mundo do capital] tinham
o «fim da história" esse projeto hegemônico do capital capturou a subjetividade da devido pensar em se exilar pela onda repressiva, alguns tinham acabado dentro, estavam na cadeia
n:aioria. das_direções e de boa parte da base social trabalhadora. Desemprego, repres- a espera de processos que se realizaram depois de anos de prisão preventiva, outros estavam no
sao, aceltaçao de uma postura determinista tudo isto levou a que essas direções for- exterior. Os militantes operários, que estiveram em contato mais direto com as transformações do
madas na lógica do capital não tivessem resposta a oferecer. A crise não foi a parteira trabalho, estavam dispersos e muitíssimos demitidos, alguns, não poucos, sugados pelas armadilhas,
tinham acabado na cadeia. Os sindicalistas mais combativos tinham sido marginalizados e alguns
de novas saídas estratégicas.
tinham sofrido traumas, verdadeiros e reais, pela derrota. Quando nos anos 80, a pesquisa sobre
as transformações do sistema produtivo e sobre o novo modo de fazer empresa começa a retomar-
1973 [assinalou] o fim do ciclo das lutas do operário-massa e o início de uma profunda reestruturação se, sobretudo em âmbito acadêmico o signo político do discurso está completamente arruinado.
do modo de produção, que tirará da fábrica a centralidade no sistema produtivo empurrando as
(Bologna, 2011)
lutas operá~i~s na fábrica ~ara a defensiva. Iniciará assim seja uma longa cadeia de demissões seja
uma estrategla de superaçao da produção industrial, pela difusão da produção no tecido social. [... ]
A emersão depois de decênios de desemprego, de uma inflação galopante e a retomada das Não apenas foram reprimidos pelo governo e pelo capital, mas, também, por parte
demissões nas fábricas; o capital busca reorganizar o ciclo produtivo que lhe fugiu das mãos, como dos partidos da esquerda parlamentar. Derrotados os operários deixaram de ser in-
no ~er~odo da. reconstrução procurou não manter central a figura do operário profissional porque teressantes para a maioria do mundo acadêmico:
mUIto ldeologlzado e estruturado, agora se busca descentralizar a produção, para evitar grandes
aglomerações operárias, não mais controláveis. É o período das externalizações, se reestrutura a Não se analisa mais "do ponto de vista operário' [... ]. A subjetividade do trabalhador não teria mais
cadeia ~e .montagem e se começa a ~xperimentar a ilha de montagem, baseada em pequenos grupos o valor heurístico que tinha antes. Toda a ênfase era carregada sobre a inovação capitalista, seja
de op~rarlOs que coop~ram e orgamzam o trabalho, se investe muito na tecnologia e no capital fixo, entre os sociólogos do trabalho e do território, seja entre os economistas, dominava "o modelo" dos
para movar e automatlzar o trabalho da fábrica. (lI '77, l'anomalia italiana. Grifo nosso) distritos na Emilia Romagna, Veneto, Toscana, Marche - a chamada "Terceira Itálià' - onde teria
Depois de 73 o ciclo de lutas operárias entra em uma fase descendente. O espectro da recessão
nascido uma inédita forma de capitalismo democrático. (sic)
econômica, que se torna evidente com a crise petrolífera, funciona como pesada arma de chantagem
[Desenvolveu -se na teoria e na prática algo que parecia ser um sistema de acumulação eficiente, em
para fazer passar uma nova reestruturação produtiva. As novas tecnologias informáticas e eletrônicas
condições de garantir empregos e bem-estar em áreas do país não pertencentes à tríade da grande
não estão ainda no horizonte ou apenas despontam, das virtuosidades do "modelo japonês" não
industrialização (Lombardia, Piemonte, Ligúria), não havia dúvida. Mas a entusiástica admiração
se fala ainda: isto é que no momento se propôs uma reestruturação entendida sobretudo como
pelos distritos, a ideia que representassem uma nova forma sustentável de capitalismo, ide ia que
racionalização e redimensionamento das estruturas produtivas existentes, com pesado preço a
havia contagiado também ilustres estudiosos estadunidenses [... ]. A esquerda foi exposta sem
pagar, em termos de salário e emprego, para a classe operária. A reestruturação, por outro lado,
meios termos a ideologia distrital, porque parecia dizer que na Emilia Romagna, na Toscana, nas
:edefine .um sistema de tarefas e qualificações (emblemático o chamado Enquadramento Único Marche - na "Terceira Itálià: nas regiões governadas por tantos anos pelos partidos de esquerda,
mtroduzldo pela FIAT) que despedaça o igualitarismo das lutas dos anos 60 e dá fôlego à velha
mais socialmente sustentável. [... ] isto resguardava a componente reformista e moderada do PCI,
linha sindical da defesa da "profissionalidade": esta de uma função defensiva passa a um significado
aquela que sempre vira com extrema desconfiança e com preocupação a radicalidade das lutas do
decididamente reacionário, tornando-se o veículo para fazer passar uma nova divisão operária e,
operário massa [... ]. E a outra componente mais "militante': que reivindacava uma continuidade
sobretudo, para obter a mobilidade da força de trabalho. (Turchetto)
com 68 e admitia a própria derrota, em que direção andava?
Buscava se apoiar para fazer política em muitas coisas diversas, sobretudo o ambiente, as questões
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 219
218

de gênero, a questão da complexidade, mas todas sempre distantes e separadas do trabalho. Não marxiano, mas a vertente da social democracia reformista. A estabilidade foi vivida como parte da
ousava dizê-lo abertamente, mas falar de trabalho parecia impedir-lhe de fazer política; nos seus ideologia dos "trinta anos gloriosos" que muitos à esquerda continuam a proclamar. A referência
ambientes se dizia que "o trabalho não cria mais identidade': [... ] gente convencida que o grande internacional de uma classe proletária portadora da revolução era proclamada discursivamente, mas
problema no futuro seria "o que fazer no tempo livre"? (idem) negada na sua prática concreta. A perda do projeto emancipador atuou poderosamente no sentido de
reforçar as classes trabalhadoras como subalternas.

Abandonados pelos partidos que se diziam seus representantes, vítimas de um deter-


No plano internacional a guerra fria atuava poderosamente. A construção ideológica,
minismo tecnológico e de uma visão liberal da política constituiu-se, então, o trabalha-
reiterada, do perigo vermelho funcionava como poderoso elemento de repressão e, por
dor do capital, o trabalhador flexível, o "colaborador': o operário-patrão. Rieser (2010)
outro lado, a esquerda - comandada pelas forças da URSS e dos partidos comunistas
analisando uma pesquisa feita por ele com os trabalhadores de Brescia afirmou:
a ela aliados - buscou em escala mundial uma coexistência pacífica, vale dizer recuou,
Acima de tudo nenhum dos entrevistados vive os seus "percursos em um mundo flexível" nos cedendo espaço para o avanço imperialista. Mas houve mesmo esse famoso perigo?
termos em que são apresentados pelas ideologias-apologias liberistas. Nenhum os vive como uma
entusiasmante aventura de "empreendedor de si mesmo" [... ] Todos, ou quase, vivem [de forma] Em 1948 a URSS tinha saído da guerra como grande potência, que depois de ter detido os alemães
explícita) prevalentemente de modo esmagador, com pouquíssimas exceções [... ]: os partidos no Leste e retomado Berlim, tinha o controle sobre a Polônia, a Tcheco Eslováquia, a Hungria,
são todos iguais, pensam apenas nos próprios interesses, etc. Mas muito frequentemente é uma a România, a Bulgária, e por um pouco a Iugoslávia e os países Bálticos. A ameaça soviética era
extremidade pura e simples: não me interesso pela política, mesmo porque não penso que possa bastante menor do que o que se diz, pelas desastrosas condições nas quais a invasão alemã tinha
mudar as coisas. Processo que ganha maior eficácia a ponto de que quando "a guerra fria deix( ou) de deixado o Leste e porque Yalta tinha fortemente determinado as áreas de influência em favor da
ser a grande discriminante das consciências europeias, a reconstrução está realizada, uma geração intacta potência militar e econômica americana; mas se podia temer, pelo menos na Itália e na
saiu de cena e outra entrou': (Rossanda, p. 133)3°5 Essa derrota estratégica de longo alento - ainda França, uma hegemonia dos partidos comunistas. [Estes tinham] se tornado fortes nas frentes
que transitória - adia, mas não elimina, a colocação em termos concretos da questão da sociabilidade populares, tinham praticamente dirigido a resistência, o fascismo causava horror, um vendaval de
socialista. Domesticou-se o conjunto das lutas sociais, partidos306 e sindicatos socialdemocratas esquerda sacudia [a] velha Europa. (Rossanda, p. 12)
governaram - direta ou indiretamente - o Estado burguês para o capital e realizou-se não o projeto
305 "Quando se diz que 'não se combate assim a guerra ao terror: não se dá conta que assim, se Apesar do avanço das forças comunistas a direção estalinista patrocinava a tese da
aceita o próprio pressuposto da 'guerra ao terror: Fazem-se próprios alguns corolários insustentá- necessidade de defender a "mãe pátria do socialismo': desarmando os partidos comu-
veis: o terrorismo exclui a atividade dos exércitos regulares, como se esses não se considerassem
responsáveis de episódios de terrorismo (basta ver a Palestina); se aceita a metáfora da 'guerrà para
nistas apagando as historicidades nacionais ao subsumi -las à burocracia estalinista que
combater o terrorismo e que este seja 'autônomo', esquecendo-se que é simplesmente uma tática que cumpria rigorosamente o combinado em Yalta, assumindo uma postura geopolítica
pode servir ao serviço de fins muito disparatados. Em suma, aceitar a guerra ao terror e à 'espiral de autodefesa, abandonando os aliados à própria sorte. Exemplar foi o fechamento da
guerra-terrorismo' significa entregar a vitória ao Pentágono, no sentido de que hoje a grande vitória
fronteira com a Grécia o que permitiu aos ingleses procederem ao genocídio contra os
dos aparelhos estadunidenses é a de ter imposto um léxico e uma agenda, às quais não conseguimos
nos subtrair. comunistas helênicos. 307 A guerra fria ocultou em grande medida dois processos conco-
Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, depois da primeira guerra do Iraque, em 1991, e, mitantes: de um lado a destruição do mito do socialismo realmente existente; do outro o
poucos meses depois, o fim da URSS, enquanto Fukuyama fabulava o 'fim da histórià, Maastrich em
1992 decide-se dar vida à moeda única europeia. Ativa-se uma espécie de 'exemplo escolar' de con-
avanço das reestruturações capitalistas em escala mundial.
flitualidade interimperialista, com uma ativação de eventos impressionante. Depois de 89, o mundo Esse conjunto articulado de relações sociais e de suas contradições se materiali-
entra em um plano inclinado todo encastelado de guerras: Iraque (1991), Somália (1992), Bósnia zaram naquilo que Gramsci e Trotsky chamam de modo de vida, forma pela qual
(1993), Kosovo (1999), Afeganistão (2001), ainda hoje Iraque e, talvez amanhã, Irã:' (Giacché, in
essa totalidade se torna cotidiano, locus especial da luta de classes. Cada modo de
Modugno e Giacché, 2007)
306 Berlinguer (1981) lhes sintetiza o esvaziamento: "Os partidos de hoje são, sobretudo, máquinas produção dominante, em uma formação social determinada, gera um tipo de "ho-
de poder e de clientela: escasso ou mistificado conhecimento da vida e dos problemas da sociedade mem': Aquilo que ironicamente muitos socialistas atacavam (o homo reconomicus)
e da gente, ideias, ideais, programas poucos ou vagos, sentimento e paixão civil, zero. Gerem inte-
nada mais é do que a representação mítica do tipo de individualidade capitalista.
resses os mais disparatados, os mais contraditórios [... ] sem nenhuma relação com as exigências e as
necessidades humanas emergentes, ou mesmo distorcendo-os, sem perseguir o bem comum. A sua O mercado nada mais é do que o conjunto articulado das relações sociais capitalistas
própria estrutura organizativa se conformou sob este modelo, e não são mais organizadores do povo, sendo usado na ideologia capitalista como padrão único de racionalidade. Os traba-
formações que lhe povam a maturação civil e a iniciativa: são muito mais federações de correntes, de
camarilhas, cada uma com um 'boss' e 'sub-boss'. A carta geopolítica dos partidos é feita de nomes
lhadores' no interior desse modo de produção, ao não se rebelar ficam praticamente
e lugares:' Crítica correta - e válida também para nossos partidos - o que não impediu, porém ao condenados a reproduzir o conjunto das relações capitalistas (técnicas, políticas, ide-
PCI de buscar a unidade com a DC, partido arquetípico do modelo descrito. Unidade batizada como ológicas). Decifrar os conceitos da sociabilidade capitalista torna possível revelar as
compromesso storico em nome do qual o PCI combateu todos os grupos de esquerda que se lhe opu-
nham. Ver a criminalização da esquerda extra-parlamentar e o apoio de Berlinguer e do seu partido
práticas sociais que corporifica e oculta.
à aprovação das leis antiterror. 307 Sobre isso ver Claudin, 1983.
A DEMOCRACIA DA GLÁDIO

Um torturador não se redime quando se suicida, mas algo é algo.

Mário Benedetti

Quando, nos anos sessenta, na fábrica [. .. J os movimentos da esquerda avançaram


impetuosamente e modificaram-se os equilíbrios centristas, os governos, obrigados
a ''abrir-se'', ampliaram o acordo com a OTAN e tarefas de estruturas clandestinas
destinadas a fazer frente não só a já de todo improvável invasão soviética, mas à
uma mudança de direção, uma verdadeira ''alternância'' na Itália. Foram assim
deixados fazer atentados e massacres, pelo contrário sugeridos e garantidos
por cobertura, vinte e seis anos de uso de explosivos e de cadáveres, de 1960 e
seguintes. Para agitar uma presumida instabilidade e disseminar a dúvida e a
divisão sobre o movimento que avança potentemente, especialmente depois de 68 e
de 69, acusando-o de carregar o terror dentro de si. Desta repugnante operação os
governos estavam ao corrente, conheciam o mapa de quem agia e o protegeu.

Rosana Rossanda

A situação italiana foi marcada decisivamente pela presença de um exército clan-


destino e de suas ramificações com as forças armadas, a Gládio 308 que atuava na Itália
308 A Gládio fazia parte de uma rede de terrorismo estatal em muitos países. Os seus membros eram
conhecidos como The Brotherhood of Death. "De acordo com um Relatório do Senado, datado de
1976, do Comitê Church sobre a CIA o programa [Stay behind] foi inicialmente concebido pelo US
Joint Chiefs of State [... ] e colocado em funcionamento em 1948 pelo National Security. Essencial-
mente a CIA estava usando Nazis, Neo-Nazis oficiais das SS e terroristas treinados pela CIA para
assassinar indiscriminadamente europeus (homens, mulheres, crianças) ou por outros meios remo-
ver ou eliminar comunistas, socialistas e políticos de esquerdà'. (Joseph, p. 179) Para mais detalhes
além da obra de Ganzer ver em idem, nota 16 (p. 204) e nota 32 (idem, pp. 205-206).Era coordenada
pelo Allied Clandestine Committee e pelo Clandestine Planing Committee da OTAN. Chamava-
-se SDR8/STCmob, na Bélgica, Absalon, na Dinamarca, TD BJD, na Alemanha, LOK, na Grécia,
1&0, na Holanda, ROC, na Noruega, Aginter Press, em Portugal, SDECE, na França, P26, na Suíça,
Counter-Guerrilla, na Turquia, OWSGV na Áustria e Stay Behnd em Luxemburgo. Seus nomes na
222 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 223

com pleno conhecimento e conivência do governo. Em 1990, o primeiro ministro A esquerda cometeu o erro de subordinar-se demasiadamente a esta trama ideológica (governo
tripartite 1944-47), da qual resultou ser colocada em urna posição de progressiva marginalidade.
italiano confirmou que os Stay Behind309, os "deixados-atrás': existiram, pelo menos,
Consequentemente, após poucos anos, ela foi expulsa das coalizões governamentais. (Chiocchi,2008)
desde 1958 e atuavam com a aprovação dos governos italianos. O fascismo fora batido em 1945. Corno cadáver insepulto - ver a participação de muitos
Em 1949, a ClA atuou decisivamente na construção da unidade de inteligência dos seus membros nos governos posteriores, nas forças armadas, etc. 3ll - ele volta para cobrar os
secreta italiana das forças armadas (o SlFAR [Servizio lnformazioni Forze Armate]), direitos eternos de urna burguesia incontrastada e que se pretendia incontrastável.
incorporando antigos membros da polícia secreta do estado fascista. O SlFAR teve A cultura política dominante, que se espalhou transversalmente sobre todos os partidos políticos
constitucionais italianos, parece fascinada por este axioma fundante: o "consumo" de democracia
seu nome alterado para SlD [Servizio lnformazioni Difesa]. Um velho colaborador leva à extinção do conflito social. Daí a surpresa e o terror face ao crescimento do potencial de
nazista Licio Gelli foi recrutado pelo corpo de contrainformação do exército dos conflito, garantido pela própria sociedade democrática. Segundo o referido axioma a democracia
EUA quando ia ser executado pela sua atuação junto aos nazistas na guerra. Nos teria devido ser urna sociedade perfeitamente aconflitiva, isto é, perfeitamente integrada. [... ] A
anos 50, ele foi recrutado pelo SlFAR e, em 1969, desenvolveu laços íntimos com realidade se encarregou de demonstrar, rapidamente, que quanto mais bens (e, portanto, quanto
mais riqueza social e democracia) os operários ''consumiam': tanto mais conflitivos e rebeldes se
o general Alexander Haig, então assistente de Henry Kissinger, Conselheiro de Se-
tornavam. O autunno caldo não seria explicável, sem esta posterior ampliação da esfera de felicidades
gurança Nacional dos Estados Unidos. Através desta rede, Gelli transformou-se no e das exigências políticas, em comparação com épocas históricas precedentes. (Chiocchi, 2008)
principal intermediário entre a ClA e o General De Lorenzo, chefe da SlD31O.
Em 1960 Gênova vê a luta insurrecional para impedir o congresso do Movimen- Em 1968 nascem os primeiros Comitês Unitários de Base (CUBs) organização
to Sociale Italiano (fascista). Mortes nas fileiras das classes subalternas em Reggio horizontal com autonomia em relação aos sindicatos e aos partidos. No princí-
Emilia, Licata, Palermo e Catania. A impossibilidade de conter a revolta derruba o pio dos anos 70, diante do avanço do PCl o governo construiu uma 'estratégia
governo Tambroni. Greves em Turim 1962, na Fiat e em pequenas fábricas. Produ- da tensão'312 usando a rede do Gládi0 313 . Em 1972 durante uma reunião extrema-
zem-se os chamados fatti que conduziram à piazza Statuto. "Explode o modelo de
311 Esse mesmo quadro encontramos na "derrotadà' Alemanha. Os grandes capitais foram manti-
'correia de transmissão' entre sindicato e partido que tinha sido o centro da hegemo- dos, seus políticos também. E muitos dos quadros nazistas vão prestar serviços à chamada democra-
nia comunista entre as massas" (Careri). O PCl condena os acontecimentos como cia liberal. Ver entre outros Werner Von Braum e o programa aeroespacial americano.
312 Dois momentos iniciais dessa estratégia podem ser localizados na repressão de julho de 1960
ação de "provocadores fascistas': No ano seguinte forma-se o primeiro governo de
e da Piazza Statuto, em julho de 1962 em Turim. Os movimentos de 60 se espalharam por toda a
centro-esquerda (participação dos socialistas). Na realidade a esquerda parlamentar, Itália. Mortos e feridos fazem o teste da reação estatal. Em 62 é reprimida urna passeata operária pela
em especial o PCl, era prisioneira de uma tenaz ideológica fortíssima: a questão da renovação dos contratos. Por dois dias 6.000 a 7.000 operários enfrentaram as chamadas forças da
ordem em batalha campal. "Dirigentes do PCI e da CGL, entre os quais Pajetta e Garavini, procura-
ordem e da democracia. ram convencer os manifestantes a dispersarem, mas sem sucesso. Milhares de manifestantes foram
presos e vários denunciados. A maior parte eram jovens operários, a maioria meridionais:' La rivolta
A democracia italiana nasceu nesta trama, em cujo desenho o primado do sistema político sobre a operaia di piazza Statuto deI 1962 (http://lotteoperaie.splindr.com/p/5219182/La+rivolta+operaia+
sociedade civil foi um ponto de desenvolvimento essencial. O "estado de exceção" sobre o qual se di+piazza+S) e "[ ... ] o Unità de 9 de julho definirá a revolta 'tentativas bandidescas e provocadoras:
inseriu a "reconstrução nacional" recalca duramente o conflito no cenário: o "interesse nacional" e os manifestantes 'elementos incontroláveis e exasperados', 'pequenos grupos de irresponsáveis: 'jo-
fez rigidamente o primado sobre os interesses dos estratos sociais mais avantajados, coincidindo vens baderneiros: 'anarquistas, internacionalistas": (idem. Grifo nosso, citado por Exechiele, 2009).
deterministicamente com a reconstrução econômico-industrial. [... ] Com isto se desconstrói o pacto "Em 25 de abril [1969] duas bombas explodem em Milão [ferindo 20 pessoas]. Em 12 de maio 2
de unidade contra o fascismo e o nazismo, pouco após de formulado o pacto constitucional, os quais artefatos explosivos em Turim não explodem por acaso. [... ] Em 24 de julho um explosivo similar aos
usados em Turim [... ] não explodem no palácio da Justiça em Milão. Em 8 e 9 de agosto oito atenta-
eram declinados corno pacificação intensiva e extensiva da fábrica e da sociedade.
dos ferroviários [... ] Em 4 de outubro, em Trieste, um artefato é colocado em urna escola elementar
[... ] A democracia é assimilada à ordem e, reciprocamente, a ordem - corno "valor em si" - foi assimilado
para explodir na hora da saída das crianças [... ] Em Pisa, 27 de outubro, o balanço de urna jornada
à democracia. Em sentido oposto, o conflito - corno "desvalor em si" - é equiparado à desordem. de choques entre policiais e manifestantes [... ]. em 12 de dezembro quatro artefatos explosivos são
Finlândia, Espanha e Suécia não eram conhecidos quando da publicação da entrevista de Ganser explodidos [... ] o de Milão, na piazza Fontana frente ao Banco da Agricultura, provoca 16 mortos
(setembro de 2006). e oito feridos. [... ] Inicia-se, assim, para a Itália, aquilo que é eficazmente definida a longa noite da
309 Nas palavras do Dictionary of Military and Associated Terms, do US Department of Defense, República': (Ezechiel, 2010)
2005, os stay behind eram "agentes ou organização de agentes estabelecidos em um país para serem 313 Mordenti (2008) fala das violências do período: o assassinato do estudante Paolo Rossi (2 de
ativados no caso de eventos hostis ocorrerem ou outras circunstâncias sobre as quais o acesso normal abril de 1976) na Universidade de Roma e o impedimento da participação de Ferrucio Pari em um
possa ser negado". Eram redes clandestinas ligadas à OTAN, durante a Guerra Fria. Foram implan- seminário. Obra dos estudantes do FUAN, vitoriosos nas eleições estudantis em coligação com os
tadas em 16 países da Europa Ocidental. Essas células visavam deter a ameaça de urna ocupação por liberais e os democratas cristãos de direita. Entre os dirigentes da FUAN encontravam -se Gianfranco
países do Bloco do Leste e estavam sempre prontas para agir no caso de invasão pelas forças do Pacto Fini (seu dirigente e membro da coalizão berlusconiana dos anos recentes), estava o MSI (de Almi-
de Varsóvia. William Colby (ex-diretor da CIA) e Peter Forbath publicaram essas e outras informa- o rante), a Ordine Nuovo (direita radical) a Avanguardia Nazionale, etc .. Todos no quadro da estratégia
ções nos Trente ans dans la CIA, Presses de La Renaissance, Paris, 1958. de tensão que ensanguentou a Itália. "Nos jovens fascistas de agora podemos testemunhar tudo isto
310 Cf. Arthur E. Rowse, "Gladio: 'lhe secret US War to subvert Italian democracy': Covert Action a um país privado de memória (porque privado de consciência civil) e poderemos também teste-
Quarterly: December 1994. munhar, nome a nome, que exatamente os jovens esquadristas e neofascistas de então se encontram
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 225
224

mente secreta do Gládio, um oficial sugeriu que se fizesse "um ataque preventi- Moro foi "sacrificado" pela "estabilidade" da Itália, afirmou Steve Pieczenik, espe-
cialista em crises internacionais e negociador do Departamento de Estado, enviado
vo" aos comunistas.
A Gládio esteve presente nos silenciosos golpes de estado da Itália, quando o ge- por Jimmy Carter no dia em que Moro foi sequestrado pelas Brigadas Vermelhas.
neral Giovanni de Lorenzo forçou os ministros socialistas italianos a deixar o gover- Prisioneiro por 54 dias ele teve sua morte anunciada em um comunicado falso que,
n0 314 • Em 12 de dezembro de 1969, uma bomba explode no banco agrário nacional, segundo Pieczenik, tinha a finalidade de preparar os italianos para o pior (sic) e mos-
matando 17 pessoas e ferindo outras 88. Nessa mesma tarde, mais três bombas ex- trar às Brigadas a decisão de não negociação por considerar Moro já assassinad0 320•
plodem em Roma e em Milão. A inteligência dos Estados Unidos era informada Atribui -se essa decisão a Cossiga e também a Giulio Andreotti, o primeiro minis-
com antecedência sobre os atentados, mas não informava as autoridades italianas •
315 tr0 321 • Isto de fato ocorreu no dia seguinte. O corpo foi deixado em um ponto que se
Em 2000, um antigo General do Serviço Secreto Italiano afirmou que a eIA ''deu sua situava entre as sedes do PCI e da Democracia Cristã.
tácita aprovação a uma série de atentados à bomba na Itália nos anos 60 e nos anos
Na manhã de 2 de agosto de 1980, a Itália experimentou seu pior ataque terrorista da historia
70.''316 (Grifo nosso) Estabeleceu -se que os atentados tinham ligações a dois neofas- na estação de trem de Bolonha, que matou 85 pessoas, e feriu mais de 200 outras. Foi feita uma
cistas e a um agente do SID317 • longa e complicada investigação e, eventualmente, deu-se início a um julgamento. Em 1988, quatro
A Gládio participou ativamente dos stragi dos anos 60-70. Praticamente a imensa terroristas de direita foram sentenciados à prisão perpétua. Outros dois réus foram condenados
maioria desses atentados foi atribuído à esquerda extraparlamentar, em especial às por difamação à investigação, "Francesco Pazienza, um antigo financista ligado a diversos casos
criminosos na Itália, e Licio Gelli, antigo grão-mestre da notória Loja Maçônica P2:'322 [... ] mais
Brigadas Vermelhas. Contudo em tarde Gelli foi absolvido dos crimes.

[... ] depoimento em tribunal durante julgamento de quatro homens acusados da participação em


atentados à bomba em bancos durante 1969 em Milão, o general Gianadelio Maletti, antigo líder da Em 1990, Giulio Andreotti, primeiro ministro afirmou: "Sim, é fato, o exército se-
contrainformação militar de 1971 a 1975, indicou que sua unidade descobriu evidências de que os creto existiu, mas foi para proteger o estado e lutar contra os russos se eles atacassem
explosivos foram fornecidos pela Alemanha a um grupo terrorista italiano de direita, e que a inteligência a Itália, não foi nada de ilegal, foi uma coisa boa" (Ganser, 2006). Se à época do fim
dos Estados Unidos pode ter ajudado na transferência dos explosivos. Foi dito que ele declarou que a CIA,
da guerra isto já era uma grosseira mistificação, nos anos 90 era a confissão mais
"seguindo as diretrizes orientadoras de seu governo, quis criar um nacionalismo italiano capaz de sustar o que
foi considerado como uma guinada à esquerda e, com esta finalidade, pode ter sido empregado terrorismo de deslavada da ação terrorista estatal. Em março de 2008, passada já a guerra fria, em
direita," e que, 'eu acredito, isso foi o que também aconteceu em outros países."318 (Grifo nosso) um documentário da televisão francesa, Francesco Cossiga, à época ministro do in-
terior323 , admitiu que um comitê de crise, chefiado por ele e do qual Pieczenik fez
Aldo Moro era peça chave na formatação do compromesso storico, da grande alian- parte, tinha tomado a decisão do falso comunicado. Rossanda comenta:
ça DC-PCI -PS, que visava garantir a governabilidade e sair do impasse criado por
por Chiarante (2009, p. 41): "um colóquio que Kissinger conclui com tal dureza a induzir Galloni
mais de trinta anos de governo democrata-cristão. não apenas a comentar, reportando as palavras do dirigente americano [... ] que tais expressões eram
uma condenação muito ameaçadora da política do Presidente da DC; mas também a perguntar-se se,
Quando foi sequestrado, Moro estava no trajeto para o Parlamento para votar na inauguração de além de uma crítica extremamente áspera, aquelas declarações não eram também uma 'condenação
um novo governo, que ele próprio negociou, pela primeira vez desde 1947, para ser apoiado pelo a morte' de Moro:'
Partido Comunista Italiano (PCI). A política de Moro de trabalhar de comum acordo e de trazer os 320 Cf. Malcolm Moore, "us envoy admits role in Aldo Moro killing". 1he Telegraph: March 16,
comunistas ao governo foi delatada pela URSS e pelos Estados Unidos. 2008.
[... ] Quatro anos antes de sua morte, em 1974, Moro estava em uma visita como Primeiro Ministro 321 Cf. Saviona Mane, ''A murder still fresh': Haaretz: May 9, 2008.
Italiano aos Estados Unidos. Em sua visita encontrou-se com o Secretário de Estado dos Estados 322 ~f. AP, '~Four ~et Life in Prison in Bombing in Bolognà: 1he New York Times: July 12, 1988.
323 Marom devena fazer o que fiz quando era ministro do Interior. Em primeiro lugar, deixar
Unidos Henry Kissinger que disse: Moro, "você deve abandonar a sua política de trazer todas as forças
perder os estudantes dos liceus, porque pense o que sucederia se um jovenzinho morresse ou ficasse
políticas em seu país nessa colaboração direta ... ou você pagará caro por ela." 319 gravemente ferido ... Deixar [os universitários] fazer. Retirar as forças policiais das ruas e das Uni-
neste momento nos postos de responsabilidade do Governo e das Comunas, nos jornais, na RAI, nos versidades' infiltrar o movimento com agentes provocadores prontos para tudo, e deixar que por
lugares de poder da Itália berlusconiana:' (idem) uma dezena de dias, os manifestantes devastassem os negócios, incendeiem os carros e submetam a
314 Cf. PHP, "Secret Warfare: Operation Gladio and NATO's Stay-Behind Armies': cidade a ferro e fogo. Depois disso, fortes pelo consenso popular, o som das sirenes das ambulâncias
315 Cf. Philip William, "us 'supported anti-Ieft terror in Italy"'. 1he Guardian: June 24, 2000. deverá sobrepor-se ao dos carros de Polícia e dos Carabineiros. No sentido de que as forças da ordem
316 Cf. CBC, "CIA knew, but didn't stop bombings in Italy - report': CBC News: August 5,2000. não deveriam ter piedade e mandá-los todos para o hospital. Não prendê-los, que logo os juízes os
317 Cf. Peter Dale Scott, "1he Road to 9/11: Wealth, Empire, and the Future of Americà: University colocariam em liberdade, mas bater e bater mesmo os docentes que os fomentam. Sobretudo os do-
of California Press, 2007, p. 18l. centes. Não digo os anciões certamente, mas os jovens professores sim ... esta é a receita democrática:
318 Cf. Philip William, "Terrorists 'helped by CIA' to stop rise ofleft in Italy". 1he Guardian: March apagar as chamas antes que se alastre o incêndio:'
26,200l. Entrevista de Francesco Cossiga. Presidente emérito da República Italiana e senador vitalício.
319 Idem. Grifos nossos. Fato confirmado por Giovanni Galloni, Cinquent'anni con Moro, citado
226 Edmundo Fernandes Dias

Revejo os editoriais de ''LUnità': e de Valiani e de Scalfari, que acusavam as Brigadas Vermelhas


de por em grave perigo as instituições republicanas. O PCl colaborou para tal com o ataque às
o PCI ignorou, consciente ou inconscientemente, a ação da CIA através da Gládio:
organizações ditas terroristas participando inclusive na acusação de que os brigadistas, terroristas
segundo a direita e o partido, foram responsáveis pela morte de Aldo Moro. (Grifo nosso) A Stay behind, mais a "Gládio': é um exemplo da criatividade italiana, armada pelos governos
Um silêncio de chumbo acolheu a investigação do juiz Salvini sobre os massacres da Praça Fontana centristas quando temeram que aquela grande socialdemocracia, popular e moderadamente
em diante. O mesmo [ocorreu] com a ata reservadíssima da reunião do governo depois do massacre avançada, que era o PCl, se conquistassem aquela alternância de cuja ausência reclamam os
de Bolonha em agosto de 1980. [... ] Escolheu-se calar sobre o que já se supunha e agora est[á] mesmos que calam sobre os meios com os quais ela foi impedida. (idem, p. 144. Grifo nosso)
confirmado, [a] amplitude devassantes das responsabilidades dos governos dos anos sessenta até
agora. Logo o mais extremista dos panfletos extremistas dos anos sessenta ficava abaixo da verdade. o partido, para tornar-se partido de governo, colaborou na criminalização dos
Pensaram todos, pensamos todos, que nos serviços secretos fossem infiltrados personagens ou
seus adversários à esquerda. Cúmplice de uma farsa que fortaleceu a direita mais
lobbies ou grupos que agiam com um desenho próprio, mas marginal face às escolhas do executivo,
uma carta louca usada imprudentemente e que acabava por chantagear os governos, os quais antes reacionária, nem mesmo assim ganhou o passaporte para o exercício de um governo
calavam e depois periodicamente buscavam libertar-se dela. Não era assim. Os serviços secretos burguês inteiramente subalterno à ordem do capital.
agiam com o acordo dos governos e da arma dos carabinieri [... ]. (p. 142. Grifo nosso)
A modernização da repressão acabou por aperfeiçoar, em primeiro lugar na experiência piloto da
Mas não parou aí esse conúbio contrarrevolucionário 324
:
Itália sob o nome de "arrependidos': os acusadores profissionais ajuramentados; aquilo que na sua
primeira aparição no século XVII, durante as alterações da Fronda, se chamava de "testemunhas
de ofícid: Este espetacular progresso da justiça povoou as prisões italianas de vários milhares de
Ainda em 1992 o governo mente à Câmara sobre a estrutura Gládio que teve de admitir, mas
condenados que expiam uma guerra civil que não teve lugar, uma vasta espécie de vasta insurreição
de que conta apenas o invólucro externo, 622 nomes de pouca monta destinados a esconder a
armada que por acaso nunca viu chegar a sua hora, um golpismo tecido da juta de que são feitos os
verdadeira estrutura de confiança, aqueles "Núcleos de defesa do Estado" que, pelo que sabemos, sonhos. (Debord, 2003)
continuam [existindo] mesmo agora. Não se liquida em um dia um pequeno exército protegido
pelos carabinieri e aqueles serviços que, de fato, parece difícil processar mesmo se pegos com a mão
na botija. (idem, p. 143) Os arrependidos foram também no Brasil peças essenciais de convencimento polí-
tico e acusadores dos seus ex -companheiros. Mais uma vez o Brasil aprendeu a lição.
324 Segundo Marshall a "[ ... ] CIA financiou e educou grupos de voluntários na Europa ocidental,
de modo que no caso de uma invasão soviética, 'recolhessem a inteligência, abrissem vias de fuga e
E a exportou: veja-se a Operação Condor325 •
formassem movimentos de resistência', trabalhando mais tarde com unidades de inteligência militar 325 Cf. Dinges (2004). Ver também Solo (2003). Alleg (2004) afirma: "Este ensino [da tortura pelos co-
européias ocidentais sob a coordenação de um comitê da OTAN. Em 1990, investigadores italianos e lonialistas franceses] o realizaram nos próprios Estados Unidos, particularmente em Fort Bragg, como
belgas começaram a pesquisar as ligações entre estes 'deixados atrás dos exércitos' e a ocorrência do também na América Latina. Recentemente, no Le Monde, falou-se da participação de [antigos] oficiais
terrorismo na Europa ocidental por um período de 20 anos". Bruce W. Nelan, "Europe Nato's Secret franceses na Operação Condor implementado pelas ditaduras militares do cone sul latino americano
Armies". Time Magazine: 26 de Novembro de 1990. [... ] com a benção e a autorização, naturalmente, do governo francês:' (Kohan e Herrera, in Alleg 2004).
Ainda segundo Marshall: "Estes grupos conspiraram, financiaram e freqüentemente dirigiram orga- Kohan e Herrera (in Alleg, 2004) citam: os livros tanto do general Acdel Edgardo Vilas (Diario de
nizações terroristas durante toda a Europa no que foi denominado uma 'estratégia de tensão' com campana. Tucumán: de enero a diciebre 1975, sem editora, nem data) quanto do general Osiris Ville-
o alvo de impedir uma ascensão da esquerda na política européia ocidental': PHP, "Secret Warfare: gas (Temas para leer y meditar, Buenos Aires, Theoria, 1993). Confirmados esses relatos pelo general
Operation Gladio and NATO's Stay-Behind Armies". Esses grupos terroristas de direita, atuaram em Alcides Lópes Aufranc em depoimento à jornalista francesa Robin (2003). Ver também Torture Made
diversos países. Na Turquia em 1960 trabalhando com o exército turco proveram golpes de estado in USA (2009).
e mataram o primeiro ministro Adnan Menderes, em 1971 após um golpe militar organizaram "o A guerra antisubversiva, matriz e biblía deste tipo de comportamento militar, foi teorizada pelo coronel
terror doméstico" e mataram centenas de pessoas. Na Argélia em 1961 tramaram, com a CIA, um Roger Trinquier que em 1961 publicou La guerre moderne. O general Paul Aussaresses apropriou-se
golpe malogrado contra o governo francês de Argel; na Grécia em 1967 realizaram um golpe e im- da noção de quinta coluna fabricada pelos franquistas para explicitar sua tese do inimigo interno. É
puseram uma ditadura militar. Na Espanha em 1977 realizaram um massacre em Madri. Em 1985 também deste general a criação da expressão esquadrão da morte que passou a ter um uso corriqueiro
na Bélgica assassinaram aleatoriamente pessoas nos supermercados, matando 28. Na Inglaterra, em na América Latina. Essa doutrina militar foi trabalhada na École de Saint-Cyr, no Institut des hautes
1995, revelou-se que o MI6 e o SAS ajudaram na instalação desses grupos terroristas para atuar em études de la Défense national, na École Superieur de guerra e tinha na Revue militaire d' information
toda a Europa ocidental. seu veículo privilegiado. Trinquier, entre outros, foi enviado ao Congo para lutar contra Lumumba.
Em 1954 essa contra-revolução em escala internacional já atuava na forma false flag. O secretário de (Robin, 2004) Dag Hammarksjold, secretário geral da ONU, foi assassinado quando voava em Zambia
defesa de Israel Pinha Lavon negou conhecer uma operação contra o Egito, governado por Nasser. - cf, http://www.sweden.se/eng/Home/Society/Government-politics/Reading/ Dag-Hammarskjold-
Por temerem a ação nasserista militares do serviço secreto israelense colocaram bombas incendiárias -the-Peacemaker/. O general Aussaresses foi adido militar francês em Washington e, com outros
em um posto de correio e em outros locais fazendo parecer que o crime tinha sido cometido pelos veteranos franceses, foi instrutor no Special Warfare Center de Fort Bragg e na escola de infantaria
árabes. A ação visava à manutenção do exército inglês no Egito. Em 1977 dispararam contra mani- de Fort Benning. Outros foram enviados em 1962 para a Espanha onde conheceram a Reynaldo
festantes sindicalistas em Istambul matando 38 e ferindo centenas de outros. Em 1980 o líder deles Bignone, futuro ditador argentino. "Durante a guerra da Argélia o número de estagiários estrangeiros
acabou por tomar o poder. Mais recentemente (setembro de 2005) atuaram na tentativa de explosão na Escola superior de guerra em Paris aumenta (com um pico em 1956-1958), dos quais muitos latino-
de mercados super frequentados em Basra (Iraque). A polícia iraquiana deteve os agentes britânicos americanos (24% de brasileiros, 22% de argentinos, 17% de venezuelanos e 10% de chilenos)" (idem)
da British Special Forces envolvidos na ação. Estavam vestidos de árabes e com carro cheio de explo- Na Argentina ela cita Ramón Dias Bessone (encarregado dos centros de tortura no nordeste argentino),
sivos. Eles foram liberados por intervenção do exército inglês. Albano Harguindeguy (ex-ministro do Interior) e (ex-ditador) entre outros. Fala da solicitação (1960)
228 Edmundo Fernandes Dias

A ESTRATÉGIA DA DERROTA:
O SILENCIAMENTO DOS SUBALTERNOS

Nada é mais perigoso para a democracia que o excesso de democracia.

Norberto Bobbio

Henry Kissinger em 11 de setembro de 1973 afirmou: "Não temos que acei-


tar que um país se torne marxista pela irresponsabilidade de seu povo':

Eduardo Galeano

A democracia formal baseada em uma possível alternância, a cada período pre-


visto constitucionalmente, de propostas políticas e de personalidades e na igualdade
- também formal - de todos perante a lei reduz-se a um quadro institucional que
privilegia os dominantes em detrimento dos demais. Aqui funciona o conceito e a
prática jurídico-política da cidadania. Se todos somos iguais perante a lei os antago-
nismos e deSigualdades desaparecem: um sem-teto e Eike Batista (um dos maiores
milionários do mundo) tem realmente os mesmos direitos? A mutação das regras
do jogo é, contudo, considerada impossível, porque não dizer subversiva. Bobbio
(1986), um dos maiores liberais do século passado, proclamou com a maior tranqui-
lidade a ideia de um pacto social legítimo e desejável. Basso (1976), em uma pales-
do governo americano (John Kennedy-Robert MacNamara) de incorporação de veteranos franceses às
tra sobre as origens do fascismo afirmou a partir da experiência da crise do Estado
escolas militares americanas e o apoio de Valéry Giscard d 'Estang - presidente francês que ao mesmo
tempo em que recebia exilados do cone sul apoiava a Operação Condor. Neste ano, na Argentina, estão liberal:
sendo julgados 820 por crime de terrorismo de estado. Bessone e Harguindeguy estão entre eles e
Bignone foi condenado a prisão perpétua. [... ] para que um regime democrático [... ] possa afirmar-se, é necessário que não existam rupturas
Sobre a participação da escola nos acontecimentos da Irlanda, Ruanda, Tchechenia e Irak, ver Robin, profundas no tecido social: quando estas rupturas se produzem sob o estímulo de tensões muito
2005 e 2009. No dia 20 de setembro de 1996, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos também fortes, de polarizações de classe, quando existam riquezas enormes concentradas em poucas mãos
fez uma confissão pública. Os meios massivos de comunicação não deram maior importância ao caso
frente a classes populares miseráveis, a democracia não pode subsistir porque ou as massas são
e a notícia teve pouca ou nenhuma divulgação internacional. Naquele dia, as máximas autoridades
militares dos Estados Unidos reconheceram ter cometido um erro: tinham ensinado aos militares la- excluídas do poder ou, se dele participam, servem-se dele para subverter o sistema, mas neste caso,
tino-americanos as técnicas de ameaça, extorsão, tortura, seqüestro e assassinato, através dos manuais a aspereza da luta levará à ruptura, à quebra, não ao equilíbrio democrático. Em outras palavras as
que estiveram em uso, entre 1982 e 1991, na Escola das Américas de Fort Benning, na Geórgia e no classes dominantes não consentirão em abrir às classes chamadas inferiores o caminho da participação
Comando Sul do Panamá. (Galeano, 2002, p. 200) no poder a não ser sob a base de uma adesão das próprias classes inferiores aos princípios que regem
230 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 231

o sistema social, que disciplinam a ordem constituída, onde foi justamente escrito que a democracia A abstenção do voto aumentou, mas até agora de maneira não preocupante; de resto, a apatia
vive quando há um consenso em torno dos princípios fundamentais do sistema e há dissenso apenas política não é de forma alguma um sintoma de crise, mas, como habitualmente se observa um sinal
sobre detalhes, o que impede que o próprio sistema seja colocado em jogo a cada eleição. A democracia de sua perfeita saúde: basta interpretar a apatia política não como recusa ao sistema, mas como
pressupõe, assim, um tecido em grande medida homogêneo e a aceitação de apenas uma tábua de benévola indiferença. (Bobbio, 1986, p. 70. Grifo nosso)
valores fundamentais. (pp. 12-13. Grifo nosso )326
Há aqui uma contradição visível sobre a questão da apatia. Como esta pode ser
Apesar de sua profunda crença nos chamados regimes democráticos, Bobbio não "sinal de sua perfeita saúde"? Pode a democracia viver sem a participação da popu-
é cego; é um liberal atormentado segundo Perry Anderson. Este chamou a atenção lação? Afinal de que democracia estamos falando?329
para o fato de que já na metade dos anos 80 Bobbio era "um franco atirador, mais Um belo exemplo dessa democracia é a tentativa, política e econômica, de sufocar
ou menos independente, agora senador vitalício por designação presidencial, uma o site WikiLeakes por este divulgar documentos produzidos por embaixadas ame-
espécie de lord italiano ad honorem; a consciência moral da ordem política italiana:' ricanas onde se revela o modo pelo qual os demais governantes são vistos o que é
(Anderson, in, Tula, 1993, p. 29) É necessário ler as críticas que o próprio Bobbio um dos instrumentos de formatação das políticas estadunidenses. Hillary Clinton
faz sobre a democracia como regra de jogo (procedimentalismo), defendida por confirma a tese de Bobbio, em epígrafe neste capítulo, ao afirmar que
ele, para termos a dimensão dos limites reais das teses liberal-democráticas. Não há
como negar que, dado o formalismo abstrato das instituições capitalistas, a proba- essa divulgação não é apenas um atentado contra os interesses da política externa dos EUA. É
bilidade do domínio do poder econômico e a apatia política são possibilidades que um atentado contra a comunidade internacional, contra as alianças e parcerias, as conversações e as
negociações que protegem a segurança mundial efazem avançar a prosperidade econômica. (Castells,
negam as virtualidades apologeticamente apresentadas por aqueles que defendem a
2011)
chamada democracia representativa.
Confronte-se essa opinião com outra declaração de Hillary, feita em janeiro de
Na sociedade capitalista avançada, onde o poder econômico é cada vez mais concentrado, a
democracia, não obstante o sufrágio universal327, a formação dos partidos de massa, um grau 2010: ''A Internet é a infraestrutura icônica da nossa era... Como ocorreria nas dita-
bastante alto de mobilização política, não conseguiu manter as próprias promessas que eram duras do passado, existem governos que apontam contra os que pensam de forma
sobretudo de três ordens: participação (ou talvez concurso coletivo, e generalizado, mesmo que independe utilizando esses instrumentos?" Com a nova declaração ela compara essa
indiretamente na tomada de decisões válidas para toda a comunidade), controle desde baixo (com divulgação ao terrorismo, outro gadget estadunidense. Trata-se de retrato exemplar
base no princípio que todo poder não controlado tende ao abuso) e liberdade de dissenso. Nos
estados onde as instituições democráticas são formalmente mais aperfeiçoadas, verificam-se dois
da afirmação que a democracia é boa quando está a nosso favor 33o .
fenômenos contrastantes: de um lado, a apatia política, que é a ausência de participação (o que Castells (idem) segue na mesma linha: "O tema chave está em que os governos
vem interpretado sub-repticiamente como a expressão de grau máximo de consenso do sistema), podem espiar, legal ou ilegalmente, os seus cidadãos. Mas estes não têm direitos à
do outro a participação distorcida ou deformada ou manipulada dos organismos de massa que informação sobre quem atua em seu nome, excetuando a versão mais censurada que
têm o monopólio do poder ideológico. O controle torna-se cada vez menos eficaz na medida em
que o centro de poder se desloca, com a consequência que os organismos que o cidadão consegue
controlar são centros cada vez mais fictícios e os vários centros de poder de um Estado moderno, como gimento de um abismo entre a competência - ou melhor, a incompetência - da grande maioria dos
grandes empresas ou os maiores instrumentos de poder real (como o exército, a burocracia) não estão cidadãos e a qualificação de uns poucos que possuem apenas eles, algum conhecimento: é, portanto,
inevitável a formação de uma tecnocracia. E, além disso, no que diz respeito aos cidadãos, existe a
submetidos a nenhum controle democrátic0 328• (Bobbio, 1976, p. 17. Grifos nossos)
tendência das democracias ocidentais a que se afundem cada vez mais na ignorância civil e na apatia.
326 No mesmo sentido: "O termo democracia era, de fato, quase uma blasfêmia política no início do Uma situação astutamente fomentada através dos meios de comunicação predominantes, dirigidos à
século XX: [... ] liberais e socialistas a consideravam burguesa. [... ] A ampliação da cidadania a novos distração comercial e a manipulação política:' (in Tula, 1993, pp. 55-56. Grifo nosso)
sujeitos políticos emergentes provocou uma reação terrível em contraparte. O temor que gerou nesta 329 "Sadam Hussein era bom, e boas eram as armas químicas que empregou contra iranianos ou
e em outras ocasiões demandas excessivas daqueles, fez com que a Europa se convertesse em terreno curdos. Depois degenerou-se. Já se chamava Satã Hussein quando os Estados Unidos [... ] invadiram
de ferozes combates políticos que só poderão ser superados após a Segunda Guerra Mundiar' (Cer- o Iraque porque o Iraque tinha invadido o Kuwait. Bush Pai encarregou-se desta guerra contra o
roni, 2000) "Winston Churchill, pelos anos 20, disse que se vivesse na Itália teria vestido a camisa Mal. Com o espírito humanitário e compassivo que caracteriza sua família, matou mais de cem mil
negra de Mussolini:' (idem. Grifo nosso) iraquianos, civis na sua maioria.
327 O sufrágio universal, apanágio desta forma política, foi conquistado por uma longa e dolorosa [... ] O flagelo do mundo, agora, chama-se Osama Bin Laden. A CIA lhe ensinara tudo o que sabe de
luta dos subalternos (ver Kohan, 2007). Cerroni (in Tula, 1993, p. 129) chama a atenção que a De- terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais
claração de 1789 não contemplava na "subjetividade jurídicà' aos colonos franceses, às mulheres e "guerreiros da liberdade" contra o comunismo no Afeganistão. Bush Pai ocupava a vice-presidência
aos trabalhadores. Cerroni comenta ainda o "atraso da teoria liberal a respeito das igualdades não quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram "o equivalente moral dos Pais Fundadores
'formais' (igualdade entre os sexos, trabalhadores, grupos raciais) e a persistente indulgência teórica da Américà'. (Galeano, 2000, p. 14)
em relação a determinados privilégios (homens, brancos, cristãos, proprietários):' (pp. 129-130) 330 Reza a lenda que existe um ditado secular no Afeganistão que diz: "Bom é quando vamos lá,
328 Para Anderson o problema colocado por Bobbio é ainda mais profundo: "O resultado é o sur- roubamos as terras, as mulheres e o gado deles. Ruim é quando eles fazem isso conosco:'
232 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 233

os governos constroem:'33I Estamos de acordo, mas a conclusão de Castells não nos eles implicam. Os juízes seriam igualmente autorizados à demandar oralmente os dossiês ou à
parece fundada na realidade: a "ciberguerra começou. Não uma ciberguerra entre convidar testemunhas à comparecer. Washington solicitava também um "acesso rápido" aos
dossiês financeiros e bancários "crítico" e exigia que a Europollhe transmitisse diretamente suas
Estados como se esperava, mas sim entre Estados e sociedade civil internauta (sic). informações sobre as pessoas ligadas ao terrorismo ou à criminalidade organizada. (Paye, 2004)332
Nunca mais os governos poderão ter a certeza de manter os seus cidadãos na igno-
rância das suas manobras:' (idem) Parece-nos que Castells é prisioneiro da sua teoria Outra questão sobre a famosa liberdade foi colocada pela tentativa de sufocar eco-
da internet como espaço livre e democrático. Deixemos também de lado a questão nomicamente o debate: a Amazon.com, a PayPal, a Visa, a Mastercard atacaram Ju-
da existência de uma "sociedade civil internautà' que, no mínimo, precisa ser de- lian Assange333 . Não apenas se suspendeu o site, mas pararam de pagar e sequestram-
monstrada, mas caso exista desloca para o plano virtual a materialidade da luta. Os -lhe as contas. Embora, como afirma Castells, isto não impediu a Amazon «de vender
acordos governamentais, contudo, desmentem essa visão iluminista: o conjunto completo dos documentos': (2011) (sic) Democracia quando convêm ...
Desde 1993 por iniciativa do FBI, representantes da polícia da maior parte dos países da União
é claro!
Européia e das nações da UKUSA (aliança das estruturas de escutas da Grã-Bretanha e dos Estados Esses acontecimentos ocultaram, graças à conivência da mídia sobre algo extrema-
Unidos posta em funcionamento em 1947 às quais se juntaram as redes do Canadá, da Austrália mente importante e criminoso: a ação de vigilância clandestina contra os próprios
e da Nova Zelândia) organizam, uma vez por ano, um fórum para falar de suas necessidades em cidadãos americanos. O 'lhe Washington Post, com o conhecimento do governo
matéria de interceptação das comunicações. Mais freqüente através da integração de acordos americano, apurou esse fato. Em uma reportagem intitulada Top Secret USA é relata-
internacionais (principalmente a Convenção do conselho da Europa de 2002 sobre criminalidade
informática), as modificações das legislações nacionais em matérias que resultam de demandas
da a existência de um monstruoso sistema de espionagem.
policiais expressas no curso dessas reuniões.
[... ] A ausência de possibilidade de controle das informações transmitidas caracteriza igualmente a A reportagem é uma descrição minuciosa do complexo sistema de inteligência, vigilância e segurança
cooperação policial. Em 20 de dezembro de 2002 foi estabelecido um acordo de cooperação entre que foi desenvolvido nos EUA após os contra-ataques de 11 de setembro de 2001, mostrando o
a Europol e os Estados Unidos para facilitar a troca de informações "de caráter pessoar: Trata-se inchaço de um conglomerado que contem 1.271 agências estatais e, ainda, 1.931 empresas privadas
de informações sobre "características físicas, fisiológicas, mentais, econômicos, culturais e sociais" terceirizadas pelo governo dispostas em cerca de 10 mil localidades espalhadas pelo país e que
de pessoas suspeitas de pertencer à uma organização terrorista ou de fazer parte da criminalidade abarcam 850 mil cidadãos. Ou seja, numa população de 300 milhões, aproximadamente uma pessoa
organizada. em cada 350 é espiã - com autorização especial para acessar informações confidenciais e realizar ações
Estes acordos estipulam que dados relativos "à raça, às opiniões políticas, às crenças religiosas ou secretas. (Fontes, 2011. Grifo nosso )334
outras, à vida sociar' serão trocados, se estas medidas são julgadas "apropriadas" à uma pesquisa 332 "Repete-se tão freqüentemente, e sem argumentos, que há que arrancar a rede do terrorismo,
sobre um ato criminoso. A transmissão de dados não tem necessariamente um objetivo penal. [... ] destruir sua infra-estrutura, atacar os ninhos dos terroristas (note-se a total desumanização que im-
Em matéria de luta contra o terrorismo, a transmissão de informações têm por objeto a aplicação plica cada uma dessas frases) que se outorgou a Israel o direito de fazer o que lhe agrade, ocasionando
de medidas de prisão, [... ] de confisco de bens, "mesmo quando tais medidas [...I não tem por enorme dano à vida civil palestina, destruição desenfreada e sem motivo, matanças, humilhação,
fundamento uma condenação penar: (Paye, 2004) vandalismo, violência muito tecnificada [... ] Nenhum outro Estado sobre a terra teria podido fazer o
que Tel Aviv fez, com tanta aprovação e respaldo como lhe ofereceu os Estados Unidos. Nenhum foi
tão intransigente e destrutivo, tão fora de suas próprias, como Israel".
Examinando os termos vê-se sua grande ambiguidade o que torna factível indis- [... ] Serge Schmemann [New York Times de 11 de abril de 2002]: "Não há forma de avaliar o dano a
criminado mantendo a fachada de legalidade. O que está em jogo, obviamente, é o cidades e povoados - Ramallah, Belem, Tulkaren, Qalqilya, Nablus, Jenin - que se mantem sob um
pseudo-ataque ao terrorismo. E este é claramente identificado aos islamitas: caracte- estreito estado de sítio; patrulhas e franco atiradores disparam nas ruas. Mas é factível afirmar que
se devastou a infra-estrutura da própria vida e de qualquer futuro Estado palestino - as estradas, as
rísticas físicas, fisiológicas, mentais, econômicas, culturais, sociais, raça, opiniões polí- escolas, as torres elétricas, as bombas de água e o cabeamento telefônico". Que cálculo desumano
ticas, crenças religiosas. «à raça, às opiniões políticas, às crenças religiosas ou outras, à levou ao exército israelita de lançar 50 tanques, 250 ataques diários com mísseis [... ]
vida social" E negado r das autonomias nacionais, mesmo a dos aliados: em [... ] A mais formidável e temível maquinaria de propaganda logrou a monstruosa transformação de
um povo inteiro em pouco mais que "militantes" e "terroristas': [... ]
Desapareceu da memória pública a destruição da sociedade palestina em 1948, semelhante à fabrica-
16 de outubro de 2001, o governo americano tinha dirigido ao presidente da Comissão européia ção de um povo despossuído; a conquista das franjas ocidental e de Gaza, bem como sua ocupação
uma lista de dezesseis proposições. Tratava-se de permitir às autoridades policiais e aos magistrados militar desde 1967; a invasão de 1982, junto com 17500 soldados libaneses e palestinos mortos; os
de cada Estado membro de negociar diretamente com as autoridades judiciais americanas, massacres de Sabra y Chatila [... ]
curtacircuitando os procedimentos nacionais bem como os diferentes níveis de controles que [... ] Em 1948 os palestinos perderam 78 por cento de seu território, e em 1967 ficaram sem 22 por
cento restantes. Em ambas ocasiões em favor de Israel. (Said, 2002)
331 "!al poder p~r~anece preservado porque é opaco. É significativo que a próxima revelação 333 Liberdade? A WikiLeaks teve 95% de suas receitas sequestradas pela Visa, pelo MasterCard,
anun~Iada pelo WI~leaks diga respeito, precisamente ao sigilo bancário. Este poder é como o dos pela PayPa!, pelo Bank of America e pela Western Union. Liberdade desde que não ataque o cerne
vampIros: a l~z os dIssolve, os reduz a poeira. Podemos esperar, que graças aos novos meios digitais,
breve chegara a hora de desvendar o poder econômico e financeiro:' (Ramonet, 2010) Tarefa neces- do sistema.
334 O governo americano teve acesso ao material recolhido pela equipe da reportagem e obtiveram
sária, mas piedoso desejo por enquanto.
234 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 235

A subserviência sueca chegou a pedir a prisão de Assange por acusação de estu- acontece na Itália, onde a presença do poder invisível (máfia, camorra, lojas maçônicas anômalas,
serviços secretos incontroláveis e acobertadores dos subversivos que deveriam combater) é, permitam-
pros, justo no momento da divulgação dos documentos, além da "reação sem pre- me o jogo das palavras, visibilíssima. (1986, p. 29. Grifo nosso)337
cedentes nos EUA, com apelos ao assassinato de Assange por líderes republicanos e
até colunistas do The Washington Post': Puttin e Recep Taypp Erdogan - primeiros Para um partido dito de esquerda penetrar e participar nessa jaula de ferro postu-
ministros da Rússia e da Turquia - fizeram protestos duros. Mas ao invés de atacar lando ser partido de governo é preciso renunciar, na prática, a seus princípios, ou, o
a ação dos Estados Unidos, via seus diplomatas ... reclamaram dos que divulgaram as que dá no mesmo, adaptá-los à ordem vigente. Isto porque como nos adverte Can-
mensagens comprometedoras. fora (2009) as "urnas tornaram-se [... ] o instrumento de legitimação quase imutável,
Porque o escândalo, porque o alarido como se o mundo estivesse em perigo. As de equilíbrios, de camadas, de políticos, não importa o quão diversificado e o como
informações divulgadas nada têm de novo. Eram, contudo, apresentadas, como soe é dividido" (Grifo nosso). Caso emblemático foi a longa e consistente transformação
acontecer, de forma dispersa, o que não permitia a formação de um quadro lógico que ocorrida no Partido Comunista Italiano, que reivindicou sempre as teses gramsciana
revelasse o sentido da ação. A novidade é: esses fatos "agora, eles estão documentados como forma de legitimação, mas negou-a na prática. Da teoria e da prática grams-
publicamente - o que poderá ser usado em juízo - e, ademais foram colocados de cianas queriam apenas a aparência, mas não a proposta concreta.
tal modo que trouxeram uma visão de conjunto' (Fontes, 2011). Montado o quebra- Voltemos à Itália. Com Togliatti o partido inicia sua mutação com a svolta de Saler-
-cabeça o segredo de Polichinelo se revela. Por isso os governos falam do perigo so- no. Aderia a uma linha democrático-institucional e não mais revolucionário-insur-
bre seus agentes e políticas. Ao reacionarismo juntou-se um profundo sentimento de recional. "Tratava-se de uma insurreição contra o fascismo e não pela derrubada do
desrespeito pela inteligência alheia. A Suprema Corte, em junho de 2010, referendou capitalismo, e em colaboração com todas as forças antifascistas" (Maitam, p. 27. Grifo
o Patrioct Act de Bush. nosso). Ante a posição daqueles que se declaravam a "corrente crítica do ponto de
vista da classe" publicada no Stella Rossa, em Turim no ano de 1944, segundo a qual
A procuradora-geral, Helena Kagan, indicada por Obama magistrada vitalícia da Corte Suprema,
resumiu a lei da seguinte forma: "O Hizbollah fabrica armas e também constrói casas - se você o ajuda não bastava "reconstruir o estado burguês antifascista, mas é necessário, pelo con-
a construir casas, também o está ajudando a fazer armas." (idem. Grifo nosso )335 trário, constituir a república soviética italianà' - o que poderia até ser discutível - a
direção do PCI, através do artigo Sinistrismo maschera della Gestapo!, assinado por
Isto parece ser ilógico e mesmo ridículo. Mas quando o ridículo se associa ao po- Pietro Secchia, acusa os militantes do Stella de serem bordiguistas! E que estariam a
der frequntemente gera ações e práticas fascistoides. Isto se dá em um quadro com-
puramente ativo das opiniões individuais; a impor a ideia que existe algo que seria como que a média
plexo onde a presença daquilo que Bobbio chama de poder invisível é fundamental das opiniões ou a opinião média. [... ] esta opinião pública é um artefato puro e simples cuja função
para entender a política: é dissimular que o estado da opinião em um momento dado do tempo é um sistema de forças, de
tensões e que não há nad~ mais inadequado para representar o estado da opinião que uma porcenta-
Diferentemente da relação entre democracia real e poder oligárquico, a respeito do qual a literatura gem:' (Bourdieu, 1973) "E justo afirmar que as sondagens fabricam mais e mais a opinião. [... ] Hoje
trata-se simplesmente de dar cifras. Pouco importa o valor:' (Garrigou, 2011)
é riquíssima, o tema do poder invisível foi até agora muito pouco explorado (inclusive porque
337 Qual democracia? A americana? Zolo argumenta: "Na realidade a sua democracia interna é
escapa das técnicas de pesquisas adotadas habitualmente pelos sociólogos, tais como entrevistas, daqui por diante, bastante longe do standard mesmo de uma noção mínima de democracia [... ].
levantamentos de opiniã0336 , etc.). Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que Basta pensar em fenômenos como a progressiva restrição dos direitos e da previdência social; o
da direção do jornal que certas informações fossem omitidas. Apesar disso os dados são brutais: a emergir de discriminações étnico-religiosas sob a cobertura da luta contra o terrorismo; a negação
Agência de Segurança Nacional passou pós 11 de setembro de 7.500 empregados para 16.500. Apesar dos direitos fundamentais dos prisioneiros de guerra (Guantânamo), dos estrangeiros e dos cidadãos
disso, e de muitos outros elementos, Fontes (2011) salienta, seguindo as informações do jornal, que suspeitos de cumplicidade com o terrorismo (Patriotic Act); o abstencionismo político cada vez mais
essas agências "não conseguiram impedir a tentativa de atentado contra um voo Amsterdã- Detroit difunduido que está reduzindo os eleitores a uma exígua minoria; a ausência de uma opinião pública
no Natal de 2009 - frustrado apenas pelos equívocos dos próprios executores -, bem como o massa- autônoma [... ] face ao enorme poder dos meios de comunicação de massa; a difusão sem precedentes
cre de 2010 em Fort Hood, no Texas, que teve um saldo de treze mortos:' Para que e para quem serve e sem comparações da repressão penal. A taxa de detenção dos Estados Unidos é de longe o mais alto
esse monstruoso exército de informações? Ou melhor, contra quem ele é utilizado? do mundo (mais de dois milhões de detidos, aos quais se acrescentam cerca de quatro milhões de ci-
335 Kohan e Herrera (in Alleg, 2004) sustentam: "Entre os torturadores nazistas da GESTAPO, os dadãos submetidos à medidas penais alternativas ao cárcere, para não falar de seis mil esperando no
torturadores franceses da Argélia, os torturadores norteamericanos no Vietnã e Iraque e os tortura- corredor da morte). Contra este tipo de democracia e contra sua tentativa de impor-se como modelo
dores argentinos da ESMA [Escola Superior de Mecânica da Armada] não há nenhuma diferença. universal é bom que o mundo se defenda e é natural que o faça:' (Grifos nossos)
Uma mesma degradação humana - produto do capitalismo e sua dominação social-, compartilhada E o cárcere? Qual seu poder recuperador, resocializador? Ele "não serve para a reabilitação do en-
pelos 'professores' europeus e 'alunos' americanos, envolve-os a todos na mesma sujeira e imundice:' carcerado, assim como o manicômio tampouco serve para a reabilitação do enfermo mental. Ambos
(Grifo nosso). respondem a uma exigência do sistema social, isto é, do sistema social que tem como fim último a
336 ''A sondagem de opinião é, no estado atual, um instrumento de ação política; sua mais impor- marginalização de quem rompe com o jogo social. A marginalidade do que não aceita a problemática
tante função consiste talvez em impor a ilusão de que existe uma opinião pública como resultado da violência institucionaizada que governa nossa sociedade. (Basaglia, 1989a, pp. 16-17)
236 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 237

serviço da política fascista. Lembremos a associação Bordiga-Trotsky que os stalinis- radicalização sem precedentes. Esta crise [... ] se prolongou, com altos e baixos, por outros cinco
tas afirmavam. Assim, sem debate político, o PCI tratou de liquidar essa divergência. anos, com retomadas e sobressaltos no período sucessivo. Para sintetizar, é neste contexto,
do fim da guerra à metade dos anos 70 que o movimento operário pôde construir, reforçar e
O Stella possuía à época cerca de 2 mil militantes em Turim, o PCI tinha 5 mil. O
manter organizações políticas e sindicais tão fortes (como um vasto e articulado movimento
inimigo principal do PCI eram os ... bordiguistas-trotskistas338 cooperativo), exercer uma notável influência sobre o plano cultural, ocupar sólidas posições em
Poderia até ser uma estratégia de transição, mas o projeto togliattiano era outro. todos os níveis das instituições, mesmo se sua componente majoritária permanecesse excluída
Isto se traduziu em um compromisso no qual as forças de esquerda, das quais o PCI do governo. (p. 13)
era a mais forte, eram conduzidos a uma estratégia de derrota:
A equação liberdades democráticas (burguesas) = desenvolvimento capitalista foi
'As esquerdas acabaram por sacrificar qualquer outra exigência ao esforço bélico, aceitando toda duramente marcada tanto pela luta dos trabalhadores, quanto por uma desneces-
uma série de compromissos sucessivos, que facilitaram a restauração das velhas estruturas e
sidade dos governantes, empresários e sistema financeiro de fazer concessões reais
das velhas forças sociais: A responsabilidade de todo isto incumbia, sobretudo, sobre a 'famosa
mudança de rumo de TogliattC (Maitam, p. 55) àqueles. O que foi construído foi por obra dos trabalhadores.

Nos anos 70 [as ideologias sobre o trabalho] se projetaram e sublimaram na estratégia política dos
Togliatti propunha em 1957 um conjunto de "reformas estruturais, capazes de res- "sacrifícios" e da "austeridade': A esta finalidade e para estas forças o axioma fundante já mencionado
ponder às exigências tecno-econômicas, mas também de produzir um crescimento se subverte, iluminando um postulado de filosofia política assim enunciável: ao menor consumo
da democracia e um deslocamento das relações de força em nível econômico e po- corresponde maior estabilidade democrática. O conflito foi aqui unicamente concebido como razão
lítico" (Dalmasso 2004). O partido atuou com uma estratégia e uma tática de pinça: dirigida de um excesso no uso e no consumo da democracia: para reduzir o conflito devia-se, portanto,
reduzir a democracia. Com o que se declinou uma variante de esquerda desta teoria da democracia
por um lado destacou-se tardiamente das ligações com o regime russ0 339 e, por ou-
corporativista e do elitismo democrático, tornando a restrição da democracia e do quadro democrático
tro, em especial com Berlinguer, artífice do famoso eurocomunismo, transformou-se a finalidade estratégica dos programas políticos. Aqui está o drama maior do objetivo da "solidariedade
em um partido da ordem. nacional" do PCI e de parte do movimento sindical italiano. (Chiocchi, 2008)

Na nova fase que se abre nos anos 60 com o advento da centro-esquerda, quando o PSI torna-se A única possibilidade de realização de um projeto democrático estava centrado na
parte integrante de governos incapazes de realizar [... ] reformas tímidas [... ] o papel do PCI como a
capacidade de luta dos trabalhadores.
única força de oposição com credibilidade e como instrumento mais válido de defesa dos interesses
e das aspirações das massas populares não pôde senão reforçar. (Maitan, p. 17)
A democracia continuou a falar e a crescer apenas nas lutas, no protesto social e nas micro revoltas
cotidianas de toda a década. Ainda uma vez, como já no início do outono quente, lutas sociais e
A Itália vive no final da década de 60 e início dos anos 70 um período de grande conflito se representaram como comunidade impossível: as representações, o imaginário e as concreções
agitação política e sindical, em especial com o autunno caldo. Maitan localiza a crise políticas da oficialidade continuaram, mais do que nunca, a esmagar a democracia à ordem.
política e social dos anos 68-69: A mescla se fez explosiva, [... ] considere-se que a expansão da luta armada nos anos 70 [combinou]
perversamente com a esterilização corporativista da democracia italiana. Na ideologia brigadista,
Se na Itália não houve uma explosão revolucionária concentrada como o maio francês, em p. ex., a ampliação dos consumos e do uso da democracia intenciona a "crise irreversível" do
compensação a crise investiu mais em profundidade estruturas e relações sociais, instituições sistema democrático, incapaz de manter a promessa anteriormente formulada: democratizar
políticas, administrativas e mesmo judiciárias, e relações nos locais de produção, com uma o desenvolvimento capitalista. Por oposição, segundo a democracia corporativista e elitista da
"solidariedade nacional': tratou-se de desacelerar o "desenvolvimento" e reconduzi-Io abaixo do
338 Sobre esse "método" vejamos o que Togliatti (1975, pp. 57-58) falou: "Bordiga vive hoje [1937] umbral crítico suportável naquela fase do "governo democrático': As BR tentavam alavancar o conflito
tranquilamente na Itália, protegido pela polícia e pelos fascistas, odiado pelos operários como deve que não encontrava mais canais adequados de expressão no sistema democrático, para eliminar a
ser odiado um traidor. No princípio da guerra contra a Abissínia, a imprensa italiana comunicava democracia. A "solidariedade nacional" atua unilateralmente a ordem contra o conflito, o conflito
que ele participara numa festa religiosa, fora abençoado pelo padre juntamente com os soldados que contra a ordem. A situação política a que se chega é assim, esquematicamente: no primeiro caso,
partiam para a Abissínia e, à saída da igreja, passou pelo arco formado pelos punhais de uma com-
democracia como ordem sem conflito; no segundo, conflito como ordem sem democracia. Em ambos
panhia de milícias fascistas que lhes prestavam honras. Isto ocorreu no momento em que Gramsci
prisioneiro de Mussolini, lutava até ao fim, no cárcere, sob a bandeira comunista:' (O dirigente da os casos a democracia foi esquizofrenicamente dissociada nos seus componentes constitutivos
classe operaria, publicado em Lo Stato operaio, n. 5-6, maio-junho de 1937. Qual a fonte da acu- fundantes. Apenas as lutas sociais subtraíram, na Itália, o fascínio encantador da ordem política:
sação? Segundo ele a "imprensa fascistà' à qual ele deu crédito irrestrito. Porque? Por precisar de resistiram à integração sufocante que reduzia os espaços da democracia e desviaram felizmente
legitimar-se com a figura de Gramsci, que, naquele momento, era um mito apesar de desconhecido da dinâmica da liquidação da própria democracia pela luta armada. Isto não impediu que estes
da imensa maioria do partido. E para culminar Togliatti afirmou que Gramsci "lançou uma palavra mesmos, por limites internos e incongruências culturais e políticas, permanecessem esmagados
de ordem bastante significativa: 'Trotski é a puta do fascismo':' (idem, p. 65) por esse torniquete inexorável: finalmente, derrotadas de uma crise interna não superada e um
339 Sobre o afastamento do PCI em relação à orientação de Stalin e depois do PCUS ver Maitan. ataque externo concêntrico. (idem, 12008)
238 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 239

Em 1975 Berlinguer apresenta seu relatório ao PCr. Sintomaticamente o primeiro Panzieri acertou em cheio. A desestalinizaçã0 342 feita por stalinistas precedeu de
ponto intitula-se "A necessidade mais premente do mundo a~ua~: construir um sis~e­ muito perto a revolta proletária de Poznan, na Polônia, em junho, concluída com um
ma de coexistência pacífica e de cooperação entre todos os pazses (1975, p. 15. Gnfo balanço de 48 mortos e 145 feridos. Ainda na Polônia, grandes manifestações popu-
nosso). Estamos a menos de meia década dos grandes enfretamentos civis italianos lares tinham ocorrido em concomitância com o retorno de Gomulka ao poder e a
(piazza Fontana340 , entre outros). A perspectiva do Secretário Geral do PCI era a libertação dos revoltosos encarcerados depois dos fatos de Poznan (outubro polaco).
construção de um arco de alianças com a Democracia Cristã, visando assim avan- Não foi fato único. Nessa série de violências acrescente-se a invasão russa na Hun-
çar na construção de uma democracia estável e avançada. Seria isso possível? Quais gria. Iniciada em 23 de outubro, a luta húngara se agudiza em 10 de novembro quan-
eram os pressupostos do programa partidário? A análise de conjuntura feita por Ber- do após a nomeação de Imre Nagy, para Presidente do Conselho e de Janos Kadar
linguer referia-se à crise capitalista (pp. 16-20) e a uma não existência de crise no para secretário do Partido. O dia 4 vê a entrada das tropas soviéticas na Hungria343 •
bloco comunista. Textualmente: O ano de 56 se fechará com as manifestações antissoviéticas de Stettino. (Panzieri,
1973, pp. 58-59)
[... ] em todos os países socialistas se registrou em 1974 e se prevê também no futuro um acentuado Segue-se a isso um êxodo de intelectuais antes favoráveis à URSS: Sartre, Simone
desenvolvimento produtivo. No relatório anual, tornado público recentemente, sobre o andamento de Bouvoir, Howart Fast e Henri Lefevbre entre outros. O marxismo, tal como prati-
econômico nos países do COMECOM resulta que no conjunto desses países, a produção em 1974
cado pela burocracia estalinista perdia sua capacidade expansiva e transformava-se
aumentou 8,5% relativamente a 1973.
[ ... ] É um fato: no mundo capitalista há crises, no mundo socialista, não. [... ].. . . em puro instrumento repressivo: era uma teologia laica que encontrava seguidores
Além do mais, é universalmente reconhecido que nesses países [mundo Soclaltsta] eXlste um cllma nos PCs stalinizados e passava a ser a piece de resistence da direita internacional que
moral superior [... ]. (pp. 18 e 19. Grifos nossos) assumia - falsa, mas eficientemente - o papel de defensores dos direitos humanos e
da liberdade.
Choca ao leitor, mesmo ao leitor daquela época, uma afirmação deste tipo tão pe- Ironias da história? Não. Farsa burocrática. 344 A cena se repete. As tropas russas
remptória que acabava por fazer da URSS o Edem das classes subalternas, puro e invadem a Tchecoslováquia para reprimir as reformas econômicas de Dubeck, as
imaculado. Lembremos que em fevereiro de 1956 Kruschev341 , no XX Congresso do mesmas que mais tarde serão implementadas por Gorbachev. A Primavera de Praga
PCUS, reconheceu os "crimes de Stalin': condenou o culto à personalidade e reco- era "subversivà: A alteração do quadro feita com a subida de Alexander Dubceck ao
nheceu que a luta armada não era necessária para a transição ao socialismo. Ana- governo implementava uma reforma econômica combatida pelo stalinismo, a entra-
lisando com os elementos conhecidos até aquele momento Panzieri (1973, p. 60) da no governo de políticos não-comunistas, o fim da censura, enfim a abertura para
afirma a existência de uma profunda contradição nessa "novà' linha política russa: um pluralismo político: o socialismo com rosto humano. O desequilíbrio que isto
promove nos países do Pacto de Varsóvia superava as reformas stalinistas feitas pelos
[... ] enquanto por um lado traz fortemente a exigência da democratização, da eliminação ~o ~egime
stalinistas na URSS. As tropas russas ocupam o país na noite de 20 para 21 de agosto.
burocrático e policialesco, da afirmação da vida democrática como ação autônoma e cna~l~a das
massas, por outro lado conserva ou parece conservar alguns dos elementos chaves do stahmsmo: Mas, olimpicamente, Berlinguer segue este caminho mesmo após 20 anos da ocor-
a concepção do partido-guia, do Estado-guia, de uma planificação econômica em te~mos forçados rência desses acontecimentos. Também eram conhecidas as deficiências da chamada
face ao desenvolvimento das forças produtivas, a rígida coordenação das economIas dos outros economia socialista (na realidade capitalismo de estado) e a incorporação de medi-
Países socialistas com a União Soviética, etc. (Panzieri, 1973, p. 60) das abertamente capitalistas, coisa que ainda uma vez Berlinguer silencia. Do for-
340 "A amplidão e a violência da 'estratégia de terror' - desde 1969, da chacina da Praça Fontana dismo os russos aproveitaram a lição criando o stakhanovismo, transformando seu
em diante - duma 'trama negrà cujos fios estavam dentro do corpo do Estado (mesm~ antes de 69, operário padrão em herói soviético do trabalho. Afirmava o progresso em todos os
até em termos de preparação de 'golpes'), e assim sendo um prolongado ataq~e terrons~a de marca
'vermelhà além daquela 'negrà, repropuseram na Itália e fora da Itália, graves l?te.rr~ga~lvos sobre a 342 Ver entre outros a obra de Isaac Deutscher, Claudin (1983) entre outros.
solidez da nossa democracià' (Napolitano, 1981, p. 37. Grifo nosso). Note-se a mSIstenCla do PCI de 343 Nagy após breve asilo na embaixada iugoslava em Budapeste foi preso em 22 de novembro.
falar sobre os terrorismos de marca vermelha e de marca negra quase fazendo deles compagnons de Permaneceu preso, julgado secretanente e executado em 26 de junho 1958.
route na luta contra a democracia. . _, . 344 Em 1951 na Tchecoslováquia tivemos uma reedição dos processos de Moscou. O ministro das
341 Comentando a reação dos intelectuais franceses Simone Signoret <A. nostalgza nao ~ maIS Relações Exteriores e um grupo de altos funcionários do Estado são submetidos a prisões arbitrá-
o que era, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, lJ87, citada por Schettmo, p. ~13) afirma: rias, torturas e processos estalinistas e acabam na sua maioria repetindo o perverso ritual da auto-
"Os importunos: os intelectuais de esquerda. Nao c~egavan:.a ser um bat~hao, quando -incriminação já levado à cena dos Julgamentos de Moscou. LAveu é um que retrata o período.
muito um esquadrão: Sartre, Vercors, Claude Ro~. ~er~r? P~IlIpe:, Roger VaIllan entre. out- O ex-ministro depois de passar alguns anos na cadeia é libertado. Vai para o exterior e se recusa a
ros, fizeram um manifesto no qual negavam o dIreito a mdIgnaçao pel.o que acontecIa na escrever sobre o assunto. Em 68 volta a Praga e assiste a brutalidade russa. O filme termina com uma
Hungria a todos aqueles que não tinham levantado a voz no ano antenor, quando a Gua- cena impressionante. Jovens resistentes pixam um muro: "Acorda Lenin, eles enlouqueceram:' Ver
temala havia sido esmagada." Broué, 1988.

c
240 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 241

países socialistas e um acentuado desenvolvimento produtivo. Não havia crise? a isso informações absolutamente falsas.
A crise do mundo capitalista revela -se, dizia, na "redução da área de dominação
e exploração imperialistà' (p. 20) e na "maior combatividade da classe operária dos A Itália teve o seu peso na vida européia e mundial quando a política interna e externa dos seus
governos se apoiou no consenso mais amplo das massas populares e das forças progressistas e quando
países capitalistas, que se sabe defender de forma muito mais aguerrida do que nos
não se contrapôs, mas soube até inserir-se na corrente positiva dos acontecimentos mundiais. Assim
decênios passados" (idem) apesar do crescimento das forças de direita na Europa sucedeu no século passado [século dezenove], quando aformação do Estado unitário italiano coincidiu
(Alemanha, em especial) e nos Estados Unidos. Na Itália aprofunda-se a subordina- com a afirmação de outros [estados] nacionais [... ] (pp. 39-40. Grifo nosso)
ção aos ditames dos organismos internacionais ao que Berlinguer chama de "vício"
(p. 28) do governador do Banco da Itália consistente Berlinguer ao citar implicitamente a questão meridional, analisada por Grams-
ci, sabia, ou deveria saber, que a construção do estado italiano se processou pela
em colocar como pressuposto do seu projeto uma sensível redução das condições de vida das incorporação dos antigos dominantes e pela repressão brutal sobre os subalternos
grandes massas trabalhadoras dos países do ocidente, enquanto o verdadeiro problema é o de
integrar nesses países, novos mecanismos econômicos e sociais mais produtivos e racionais [... ].
acusados permanentemente de banditismo e de subversivismo. A história requer dos
[... ] para garantir às massas trabalhadoras e populares do Ocidente consumos e formas de vida políticos algo mais do que frases altissonantes. Esse consenso amplo jamais ocorreu
diversos dos atuais, mas qualitativamente melhores e, em última análise, menos dispendiosos para principalmente no processo da unidade nacional italiana.
a coletividade nacional e para toda a comunidade mundial. (idem) O PCI apesar de ter comandado uma vasta rede de sindicatos e organizações locais
e de ter uma presença efetiva na vida das massas italianas (chegou a ter aproximada-
Berlinguer considerou como vício aquilo que era a condi tio sine qua non da acu- mente trinta por cento do eleitorad0346 ) apesar do famoso compromesso storico, nun-
mulação capitalista. Seguramente não podemos considerar ser uma questão de igno- ca obteve, no cenário político italiano, legitimidade para governar o país. Falamos da
rância, mas um sintoma da subordinação do PCI à Ordem do Capital. Obviamente vasta rede sindical e popular que o partido teve e de fato o tinha.
uma política redistributivista, como a proposta pelo partido, vital para a melhoria
das condições de vida das populações subalternas, requeria do partido, que se via Os sindicatos operários e as mais diversas categorias de trabalhadores por conta de outrem se
como partido de governo 345, uma posição de força. Ele buscava as alianças necessárias reforçaram posteriormente nestes anos. A CGIL aumentou o número de seus filiados de 2 milhões
para tal. O que Berlinguer propõe leva, contudo, ao inverso do postulado. O projeto 461 mil trabalhadores em 1968 para 3 milhões e 827 mil trabalhadores [... ] Também se reforçou
consideravelmente o movimento cooperativo no decorrer dos últimos anos [... ] que hoje organiza
do PCI era o de uma coalizão com a Democracia Cristã para se estabelecer uma
(cerca de 60 mil), [... ] ([ ... ] 2 milhões e 412 mil pertencem à Liga Nacional dos Cooperativistas e
democracia estável. Baseava-se em uma perspectiva de enfrentamento com setores MutuaHdades), [... ] Nos últimos meses, deram um passo em frente as organizações dos inquilinos e
reacionários da DC e seus aliados aos demais partidos direitistas, o que era real. Se a dos artesãos, dos comerciantes e dos pequenos industriais. (Berlinguer, 1977, pp. 83 e 85-7)
proposta era, pelo menos parcialmente, correta, a tática estava inteiramente fora de
órbita, desequilibrada. O partido que tinha uma rede interna de debate e o concurso de intelectuais reno-
Dialética? Ela está ausente nessa formulação; passa longe. Lembremos de que es- mados acabou apoiando a vis~o dos partidos de direita sobre os acontecimentos da
távamos em plena guerra fria e que essa identificação dos interesses do partido com década de 70, chamando de terrorismo de "marca vermelhà: em especial, ao mais
todas as classes italianas e com todos os povos do mundo era, pura e simplesmente, famoso deles: o sequestro e a morte de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã.
uma capitulação. Não há aqui nenhuma análise séria da correlação de forças, mas a Mas qual é o papel e o peso dos intelectuais no partido. 347
pura expressão de um desejo da burocracia partidária. Pior. Ele parte de premissas
absolutamente falsas para atingir à conclusão que queria: a política do "não contrapor- 346 "O PCI supera os l.750.000 inscritos, registra além de 30% dos votos com pouco menos de 12
-se a nada". Falamos em ausência de uma análise séria da conjuntura: ele acrescenta milhões de eleitores [... ]. É o segundo partido italiano por força eleitoral e é o mais forte partido
comunista do ocidente capitalístico.
345 "Não responde aos interesses e às aspirações mais profundas das massas trabalhadoras e de O nosso partido é a principal força de governo, juntos com os camaradas do PSI e também com
toda a nação colocar-se numa atitude de hostilidade para com a União Soviética ou com os Estados outras forças de esquerda e democráticas, de 6 entre 20 regiões, em milhares de municipalidades, e
Unidos. Por isso temos nos esforçado por afirmar que não colocamos a questão da saída da Itália do antes de mais nada [... ] com as mesmas alianças são por nós governadas as mais importantes cidades
Pacto do Atlântico, [.. ] porque qualquer saída unilateral de um ou de outro bloco, numa situação do nosso país: a, Nápoles, Milão, Genova, Veneza, Torino, Bolonha, Florença:' (Vellani, 1981, p. 6.
como a européia, não só não são realizáveis, mas também porque acabaria por obstruir ou mesmo Grifo nosso)
por arruinar esse processo de distensão internacional que responde aos interesses de todos os povos e 347 Sobre isto é instrutivo reler no Pour Marx a bela introdução: Aujourd'hui. Falando sobre a Fran-
se apresenta concretamente como a única via através da qual se pode chegar a uma gradual superação ça e sobre as carências do PCF Althusser afirmou: "É um traço da nossa história social que os intelec-
dos próprios blocos:' (Berlinguer, 1975, pp. 37-38. Grifos nossos). A antecedência da União Soviética tuais de origem pequeno burguesa, que vieram então ao partido, se sentiram obrigados a pagar em
no contexto da frase já permitia ver a mistificação visto que esta sequer era uma hipótese ainda que pura atividade, senão no ativismo político, a Dívida imaginária que eles pensavam haver contraído
remotíssima. por não terem nascidos proletários:' (p. 17)
242 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 243

Os intelectuais do partido de classe não são um adorno dele, não são escravos dourados aos quais tudo do Estado. [... ] e a aliança antimonopolista deve incluir, além da classe operária e da massa dos
é perdoado enquanto não levantem a mão em direção a arca sagrada dos políticos, não são aliados empregados (incluindo os funcionários, os técnicos e os quadros), uma boa parte do campesinato
privilegiados, companheiros de estrada: são militantes [... ]; os quais [... ] tem a obrigação de participar e parte considerável da pequena e média burguesia, a fim de isolar os grandes monopólios. É por
das lutas e de exprimir um empenho político pleno. Tem certamente responsabilidades particulares e as isso que não convém, durante esta primeira etapa, pôr em causa o regime da propriedade privada.
realizam em uma área particular, a margem do controle dos políticos, mas com a obrigação de verificar (Mandei, 1979, p. 162. Grifos nossos)
suas conclusões no quadro da realidade de classe e da luta geral do partido. (Panzieri, 1973, pp. 221-222)
Sinteticamente poderíamos concluir com Panzieri que:
Porque escolhemos o PCl? Não por uma preferência singular, mas pelo caráter
o autentico atual revisionismo, exclui a luta frontal contra a política hegemônica vendo nele a
emblemático da sua proposta. Vimos algumas limitações da proposta, que vão de
matriz natural da qual sairá automaticamente o socialismo. Os revisionistas vêm no capitalismo
uma indisfarçada colaboração de classe à não intervenção classista no caso dos ata- monopolista moderno como proeminente o dado do progresso técnico, e o identificam
ques da direita às liberdades democráticas, passando pelo privilegiamento do plano simplesmente com o progresso social: [... ] (veja-se as fantasias sobre "operários de colarinho
institucional e pelo abandono da luta contra o capital na tentativa impotente de man- branco: sobre indústrias onde todos são "técnicos") uma eminente desaparição da classe operária;
ter os ganhos materiais que os trabalhadores tinham obtido. O custo foi altíssimo. substituem a luta de classes, do interior, do capitalismo moderno, porque desse pode facilmente e
mais rápido brotar o socialismo. Percebendo-o ou não, pouco importa, os revisionistas, todos tomados
Mesmo mantendo uma aparente distância em relação às posições russas348 o progra- pelos romances de ficção científica sobre o progresso técnico, aceitam como inevitável o monstruoso
ma do eurocomunismo levava as classes trabalhadoras ao desastre. Como as levou, fenômeno do extraordinário crescimento de poder que o capitalismo moderno realiza; crescimento
também, o partido-mãe. de poder que da fábrica, onde o trabalhador é estranhado completamente da produção e reduzido ao
Mandel sintetizou os pressupostos dessa posição: nível da maquina, se transfere na sociedade e forma a base de um regime neototalitário. (1973, p. 171.
Grifo nosso)
É impossível atingir o socialismo nos países industrializados sem o consenso duma larga maioria
da população. Chamamos a isso a estratégia de uma derrota previamente anunciada. Silogismo de-
Com esse objetivo, é preciso conservar as instituições parlamentares burguesas, que gozam do feituoso ou sofisma consciente? Na realidade o programa assim colocado reforçou as
manifesto apoio dessa maioria. ilusões, por um lado, e, por outro, a impotência. Podia-se dizer que se o proletariado
A natureza dessas instituições é tal que podem ser progressivamente esvaziadas do seu conteúdo
isolado desse um assalto ao céu aconteceria naquela ocasião uma profunda derrota;
particular de classe, isto é, deixar de ser os suportes da dominação de classe da burguesia. [... ]349
É preciso evitar a todo o custo um confronto direto entre a burguesia no seu conjunto e o mas não era isto que estava colocado na ordem do dia. Lucio Magri nos oferece uma
proletariado isolado, não só porque semelhante confronto se saldaria com certeza pela derrota visão do impacto dessa prática:
do proletariado, como também porque conduziria inevitavelmente à destruição das instituições
parlamentares burguesas e atrasaria assim por um longo período toda a possibilidade de rotura no o reformismo, pela sua confiança nos órgãos institucionais e o respeito pela legalidade burguesa,
sentido do socialismo. concebeu sempre as lutas sociais como movimentos de opinião que pressionam sobre as forças políticas
Através da conquista de maiorias parlamentares ~ignificativas (apoiadas pela pressão e a mobilização e as assembleias representativas. Por isto o movimento foi sempre muito genérico e desarticulado para
das massas) o movimento operário pode e deve conquistar reformas estruturais que transformarão consentir uma participação de massa, e ao mesmo tempo muito diretamente instrumentalizado pela
por etapas a natureza do regime capitalista e acabarão por mudar a sua própria natureza. luta eleitoral para poder fazer crescer momentos verdadeiramente unitários. 350
A etapa essencial que defrontamos é a da aliança anti-monopolista, ou da "democracia avançadà:
que enfraquecendo primeiro e abolindo depois o poder dos monopólios, dará um golpe decisivo no
capitalismo e permitirá que aumente o peso e o poder das massas laboriosas na sociedade através de
Na verdade tratava-se de deslocar o jogo do campo dos movimentos da classe para
diversos mecanismos de democratização da vida econômica e da participação das massas na gestão um parlamento onde os PCs eram uma minoria que no máximo agitava bandeiras
348 Sequer isso é verdade. O Pravda (1 de maio de 1977) argumenta: "Não há êxito a não ser que a
socializantes. O PCI, com seu um terço do eleitorado, não conseguia avançar. O com-
classe operária, que todas as massas laboriosas transformem o Parlamento de dominação da burgue- promesso storico era a tentativa de constituir um campo avançado (segundo seus
sia, em representante dos interesses do povo trabalhador [... ] Os programas para transformações pro- proponentes) com a Democracia Cristã, partido dos monopólios (Agnelli, entre ou-
fundas de estrutura econômica da sociedade, para a construção dum Estado de aliança democrática,
para um Governo do bloco das forças de esquerda, da democracia anti-monopolista e outros, que
tros) e do que havia de mais reacionário na Itália (vide, entre outros, as lutas sobre o
hoje são propostos por vários partidos comunistas na Europa e noutras partes do mundo, são etapas divórcio e o aborto). Nesse partido Aldo Moro, apesar de apoiar o compromesso, era
intermediárias e formas transitórias na via do socialismo, que levam em conta as condições concretas um ponto fora da curva35l • Deslocar as lutas para o parlamento e alimentar as ilusões
de todos os países:' Citado por MandeI, 1979, p. 191. Os grifos são nossos.
349 Conhece-se algum caso de que o parlamento burguês tenha se transformado em um Estado 350 Lucio Magri, "Dalla fabbrica alla società': "Il Manifesto", n. 3-4, marzo-aprile 1970 citado por
regido por um Governo do bloco das forças de esquerda, da democracia anti-monopolista e outros? Dalmasso, 1999. Grifo nosso.
A posição de Kautsky, defendida a partir da década de 80 do século dezenove, embora igualmente 351 Moro foi para uma boa parte da esquerda uma espécie de nome quase intocável. Se exami-
impraticável, era mais criteriosa e estava assentada em um avanço real das classes trabalhadoras, o narmos, contudo, sua ação como governante veremos um político anti -classe trabalhadora: "[ ... ] o
que sequer era o caso da URSS. governo Moro [... ] em 1964: não parece casual nem secundário, se exatamente naquela situação di-
244 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 245

que ganhando aí uma forte representação poder-se-ia até mesmo mudar a sua natu- pelos PCs, espanhol e francês, propõe uma estratégia defensivista, apesar da aparência
reza e fazer com que, de fato, ele representasse o povo era ignorar as lições da história de força. E importante assinalar que com os acontecimentos chilenos, a derrota dessa
e calar os subalternos, nada mais, nada menos. estratégia, da morte de Allende e de muitos militantes e do estabelecimento da sangui-
Kautsky propôs em 1910, no debate sobre estratégia na socialdemocracia alemã352 nária ditadura de Pinochet, foram decisivos para a formatação da estratégia do PCp55.
a estratégia de desgaste contra a posição de Rosa Luxemburgo que defendia a estra- Mesmo considerando que esse golpe colocava a questão da necessidade de ter
tégia de assalt0 353 . Kautsky partia do acúmulo de forças, do avanço sindical e dos
progressos parciais dos quarenta anos anteriores. Acusaya a Rosa de querer o assalto Consciência contra qualquer ilusão [sobre] o caráter do imperialismo, e do norte-americano
imediato ao poder, o que não era verdadeiro. O resultado da "vitoriosa" tática de em particular, [... ] o estrangulamento econômico e político, o espírito de conquista, a tendência
a oprimir os povos e a privá-los de sua independência, liberdade e unidade cada vez que as
Kautsky foi a derrota das tentativas revolucionárias de 1918 e 1923 e o assassina-
circunstâncias concretas e as relações de força o consintam.
to de Rosa e de Karl Liebknetch em um governo dirigido por um ex-sindicalista [... o golpe] põe em evidência quem são e onde estão nos países do chamado "mundo livre': os
(Noske) 354. inimigos da democracia. (Berlinguer, 1973)
Essa estratégia, da qual o eurocomunismo é uma reedição piorada, não levou em con-
ta a capacidade de a burguesia e suas frações resolverem suas contradições quando ame- Precisava? Ele insiste na tecla da coexistência e o faz a partir da constatação da
açada pelos movimentos dos subalternos. A luta ideológica, a captura da subjetividade necessidade de "contrastar, limitar e deter" essa "tendência" do imperialismo. Obvia-
do antagonista, foi aqui decisiva. A estratégia eurocomunista italiana ocorreu em um mente há aqui, um brutal desconhecimento da natureza do capitalismo. Chama de
cenário em que por um lado a reestruturação capitalista estava em curso e, por outro, o tendência algo que é a natureza mesma do capitalismo. Como combater isso?
movimento operário ganhava um nível de consciência que colocava em questão o po-
der capitalista no seu próprio território - o da fábrica e não apenas nele. Nesse momento A resposta mais simples e também a mais verdadeira: a modificação progressiva das relações de
força em desvantagem dele e a favor dos povos que aspiram a própria libertação e por um novo
quando em várias partes do mundo as lutas populares avançavam o PCl, acompanhado sistema de relações entre os Estados. É exatamente nesta direção que vai o processo histórico mundial
fícil se desenvolvessem 'manobras presidenciais' (concertadas com o 'Plano Solo', elaborado em de quase sessenta anos, desde quando a revolução russa de 1917 despedaçou pela primeira vez a
torno da arma dos carabineiros) tendente a urna 'reviravolta autoritária' [... ]. O segundo gabinete dominação exclusiva do imperialismo e do capitalismo. (idem. Grifos nossos)
Moro, pouco depois de formado, não se revelou de fato resolutor destes problemas, acentuou o seu
'papel de ordem', até o ponto de que um ministro socialdemocrata se fez portador da proposta de Nesta leitura do real a dialética não encontra o espaço. Examinemos a tese. Falar de
um decreto anti-greve, para reprimir a luta dos alfandegários em curso; sobre essa proposta o gover-
no arriscou a crise. Em 1965, o governo Moro empenhou-se em um 'braço de ferro' com as lutas um processo histórico como ele o faz escamoteia-se as contradições e elementos que
operárias desenvolvidas um pouco em todas as partes do país, com a finalidade de dar urna 'prova negam diretamente a tese. Entre 1917 e o golpe chileno não houve apenas esse processo
de firmeza' e para recuperar parte da credibilidade perdida nos confrontos com a Confindustria, evolutivo positivo (o mundo caminha para o socialismo?), mas houve também o nazi-
guiada pelo extremista Costa. Moro assegurou que o governo teria sabido 'dizer não' às exigências
operárias. Corno expressão desta linha governamental foram: a) denunciadas, por terem exercitado -fascismo, o avanço do americanismo e fordism0 356, o wellfare state e, não esqueçamos
o direito de greve, 5000 pessoas entre operários (ferroviários, garis, trabalhadores de hospital, vigi- o autunno caldo e a brutal repressão à chamada esquerda extraparlamentar (inclusive
lantes urbanos) e dirigentes sindicais; b) consumadas agressões contra operários gazistas de Nápoles, com o apoio do PCI). Tudo o que de fato representou o avanço do imperialismo que
Florença e contra os operários Sirma de Veneza por parte das forças da ordem; c) usados os guardas
fiscais contra os alfandegários, em urna função declaradamente anti-greve. [Ainda] em 1965, foi em- é reconhecido no corpo da tese, mas subestimado no seu interior. Não falaremos, por
blemático o destino que encontrou a proposta do governo Moro de cortar as despesas para a previ- desnecessário, do significado político do progressivo que de fato chamando a atenção
dência que provocou a mobilização unitária dos operários ao lado dos aposentados, selada por urna para as dificuldades sequer menciona a possibilidade revolucionária.
greve geral. Não teve melhor sorte o IH gabinete Moro em 1966: as pressões incitadas por Costa em
direção ao governo restauram sem confronto político eficaz, enquanto o front empresarial começou Mesmo reconhecendo os "fatti cileni" Berlinguer insiste na colocação geográfica
a dar sinais de divisão interna. Os propósitos governamentais de "congelamento da despesa públicà' da tese da coexistência.
e de disciplinamento restritivo do exercício do direito de greve foram amplamente contornadas e
derrotadas pela luta operárià'. (Chiocchi, 2008. Grifos nossos.) 355 Cf. o artigo de Berlinguer, "Imperialismo e coesistenza alla luce dei fatti cileni", Rinascita de 28
de setembro de 1973.
352 Ernst Bloch em seu Princípio Esperança, na década de 50, localizou bem o problema: "a social-
democracia silencia a respeito do fato de o socialismo pressupõe a revolução, cuja ausência permite 356 É preciso ter sempre em mente a desigualdade desse processo. Gambino (2010) nos lembra
o nascimento do capitalismo de Estado': Citado por Labica (2009, p. 38) que: "Desde a metade dos anos '30 até o início da Guerra Fria (1947) o quadro institucional do New
353 O debate sobre a tática estava referido à questão da greve de massas. O conjunto do debate foi Deal de Roosevelt tinha diminuído a desigualdade nas condições de trabalho e nas rendas em vastas
~reas do país aonde o sindicalismo industrial ia afirmando-se. Permanecia excluída grande parte do
publicado na série Debate sobre La Huelga de Masas (Aricó e Feldman, 1975-1976). Ver também
Salvadori, 1981. Sul e do Sudoeste, onde a longa sombra da escravidão e do racismo se projetava sobre o fundo do
354 Será urna maldição histórica ou mais urna confirmação da tática de Kautsky: ex-sindicalistas New Deal. Atuando sobre o racismo anti-sindical e sobre muitos dos representantes políticos de tais
destruindo sindicatos e movimentos sociais, atrelando-os a si ou lutando pelo seu extermínio? regiões, urna lei de limitação do poder sindical (lei Taft-Hartley, 1947) golpeava os setores e as zonas
escassamente sindicalizadas:'
246 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 247

cia aos aborígenes: a sua exclusão da vida social! O governo britânico negou -lhes
A política da distensão, na perspectiva da coexistência pacífica, é acima de tudo o caminho obrigado toda cidadania tornando-os ' invisíveis' ao resto do mundo:'
para garantir um objetivo primário, de interesse vital para toda a humanidade e para todos os Uma conjuntura rica em contradições, mas nem assim Berlinguer e o PCI se po-
povos: evitar a catástrofe da guerra nuclear e termonuclear, assegurar a paz mundial, afirmar o
princípio da negociação como único meio para resolver as controvérsias entre os Estados. (idem)
sicionaram de forma positiva. Nada ou quase n\da de estratégia. Apesar de falar em
ampla campanha de solidariedade com os chilenos termina reduzindo tudo à... via
Trata-se seguramente da expressão de uma ideologia (fundamentalmente elabo- italiana. A etapa dita de "acúmulo de forças': "de transição" ou qualquer outra no-
rada pelo PC soviético) que trabalha com abstrações vazias: humanidade, povos, menclatura que se use para designá-la foi, e é ainda hoje, proposta como uma prepa-
tudo abstrato, sem nenhuma concreção. Humanidade e povos sem contradições. ração ideológica dos subalternos. Nada mais louvável seria se assim fosse.
Parece mais um piedoso desejo do que uma tática e uma estratégia políticas. Ber-
linguer chega mesmo a afirmar que esta proposta passa por construir uma Europa o capitalismo dispõe de imensos redutos de defesa à volta da sua fortaleza e no próprio seio do
corpo social supostamente sitiante [os subalternos]. Esses meios defensivos não permitem qualquer
e um Mediterrâneo "autônomo(s), pacífico(s), democrático(s)': Isto não quer dizer agrupamento prolongado nem qualquer assédio de longa duração. Podem ser desmanteladas, mas
"colocar tal Europa, e nela a Itália, em uma posição de hostilidade ou em relação à unicamente em ocasiões precisas, quando um conjunto de circunstâncias momentaneamente
União Soviética e os outros países socialistas ou em relação aos Estados Unidos:' enfraquece ou até paralisa a capacidade do seu uso pelo inimigo. Essas ocasiões não são, porém, de
Curiosa (para sermos elegantes) proposta de quem quer combater o imperialismo e longa duração; chamam-se "crises revolucionárias': (MandeI, p. 165. Grifo nosso)

suas tendências brutais. Rossanda, com ironia e razão, lembrou: "Nos anos setenta,
considerando os acontecimentos do Chile, Enrico Berlinguer fez saber ao Estado, Justa no conteúdo a crítica de MandeI parece ter um tom fatalista. Gramsci traba-
no qual desejava entrar, que não teria procurado modificar nenhum dos equilíbrios lha situações como essa pela dialética "guerra de movimento/guerra de posição': A
militares, nem internos nem internacionais:' (1996, p. 145) tese da hegemonia de Gramsci está articulada com o pressuposto de que um partido
Depois de tudo isso, concluindo seu artigo, Berlinguer - em poucas linhas - afirma pode ser dirigente antes mesmo da conquista do poder. Isto exige, contudo, que as
forças dos subalternos estejam permanentemente mobilizadas e sem ilusões sobre
as diferenças entre Chile e Itália. E finaliza:
a possibilidade da democratização seja do Estado, seja do Capital. As lições da Co-
Mas juntamente com as diferenças existem analogias, e em particular aquelas que os comunistas e muna de Paris mereceriam uma análise mais profunda pelos eurocomunistas. E não
socialistas chilenos tinham se proposto ao perseguir uma via democrática ao socialismo. apenas estas, mas todas aquelas contidas na Crítica do Programa de Gotha. As ilusões
Do complexo das diferenças e das analogias é necessário tirar uma motivação para aprofundar e pagam-se caro. Mandel explicitando sua crítica afirma:
precisar melhor em que consiste e como pode avançar a via italiana ao socialismo. (idem)
Não é porque os Ebert-Noske, Otto Wels, Prieto, Thorez, Berlinguer, Allende e Mário Soares
Era um momento de relativa debilidade estadunidense: jurarem que o exército é "nacional", "democrático': "acima da luta de classes" e "respeitador da
Constituição': que os "putchs" de Kapp, de Von Papen, de Mola-Franco, de De Gaulle, de Pinochet
Quando finalmente acabou a guerra do Vietnã, em 1975, os Estados Unidos tinham sofrido uma e de Eanes foram evitados. (idem, p. 169)357
enorme derrota no que, sem contar com a Guerra Fria ideológica, era claramente uma guerra
imperialista. A derrota coincidiu com um súbito abrandamento na taxa de crescimento da economia MandeI vai mais além e toca a questão que nos parece essencial:
capitalista americana e mundial no período dos anos 70, quando reapareceu a velha ameaça de
estagnação do sistema. A grande exportação de dólares para o estrangeiro associada com a guerra
e com o crescimento do império criou um gigantesco mercado eurodólar, que desempenhou um 357 Um tema retoma sempre: houve ou não traição das direções? Solução extremamente simplificada
papel fundamental na decisão do presidente Richard Nixon de desligar o dólar do ouro em Agosto para um problema grave. Rieser salienta que o ofuscamento da consciência de classe apresenta duas
de 1971, acabando com o padrão dólar-ouro. Isto marcou o declínio da hegemonia econômica dos possibilidades: a primeira é devida "ao fato de que as organizações do movimento operário tenham
EUA. A crise energética que atingiu os Estados Unidos e outros importantes estados industriais abandonado uma perspectiva de classe (é a clássica hipótese do complô-traição)"; a segunda fala na
quando os países do Golfo Pérsico cortaram as suas exportações de petróleo em resposta ao apoio "conseqüência inevitável das mudanças estruturais (e não apenas estruturais) do capitalismo". Nenhu-
ocidental a Israel na guerra de Yom Kippur de 1973, revelou a vulnerabilidade dos EUA dada a sua I ma das duas, por si só, explicam o problema. A primeira embora tenha base na realidade acabou por
independência do petróleo estrangeiro. (Foster, 2011) esterilizar-se na pura denúncia. A segunda centra sua explicação na "questão da composição de classe"
sem, contudo, avançar na "análise concreta de situações concretas" permanecendo assim uma abstração
puramente formal, reportando, além disso, forte carga determinista. Rieser avança a explicação de que,
Uma dimensão realista da situação é apresentada por Moretti: "Nos anos 30 [do hoje, as "mudanças na composição de classe não são redutíveis a mudanças na composição profissional
século XX] 84,5% da superfície emersa do globo era constituída por colônias e ex- (ao declínio de algumas figuras e ao emergir de outras) ou na composição setorial (mais trabalhadores
no terciário e menos na indústria), mas através da desregulamentação das relações de trabalho, intro-
-colônias. [... ] Na Constituição Australiana redigida em 1900 há uma única referên- duzem elementos de divisão mais profunda e de 'distorção' na estratificação da classe':
248 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 249

A luta de classes é reduzida exclusivamente ao seu aspecto político - melhor: político-parlamentar. eficiência, seriedade e justiça; isto é, o contrário de tudo o que conhecemos e pagamos até agora, e
As relações entre as classes são no essencial reduzidas apenas às relações entre partidos políticos - que nos levou à crise gravíssima cujos estragos se acumularam desde anos e que hoje se manifesta
melhor: entre as direções dos partidos políticos. Um punhado de "chefes" é considerado como capaz de na Itália em todo o seu dramático alcance.
representar e articular validamente os interesses sociais de milhões de pessoas, com todos os seus mais [... ] Assim concebida a austeridade se torna uma arma de luta moderna e atualizada seja contra
complexos entrelaçamentos, e isso como simples efeito dos resultados eleitorais. Essas classes sociais - os defensores da ordem econômica, seja contra os que a consideram como a única sistematização
isto é milhões e, nos grandes países, dezenas de milhões de pessoas - são consideradas como em posição possível de uma sociedade destinada organicamente a permanecer atrasada, subdesenvolvida
de ''sentido'' perante esses chefes oniscientes, marchando ou estacando segundo a ordem dada, agindo [... ] cada vez mais desequilibrada, cada vez mais carregada de injustiças, de contradições, de
como autômatos manipulados por um mecanismo que, estritamente, os cOf'ltrola. (idem, pp. 169-170. desigualdades. (Berlinguer, 1977, Grifos nossos.)
Grifo nosso )358
Ele vai mais longe e afirma que a política de levar a "abandonar a ilusão que seja
Isto implica em manter os subalternos ... subalternos. Alterar o sinal negativo para possível perpetuar um tipo de desenvolvimento fundado na artificiosa expansão
positivo sem mudar as relações de forças existentes é manter a situação vigente. Gra- dos consumos individuais que é fonte de desperdícios, parasitismos, privilégios, dis-
msci nos anos dez do século passado falava que a burocracia sindical se transformara sipação de recursos" e "ter como meta [... ] instaurar justiça, eficiência, ordem, e,
em magistratura da "legalidade industrial", convertendo-se, assim, em "demiurgo das acrescento uma nova moralidade': Com essa análise é possível propor um tipo de
classes em luta". Igual formulação se poderá utilizar para caracterizar a burocracia estratégia abstrata, vazia, mas que requererá, "certas renúncias e sacrifícios", mas terá
partidária. Um exército revolucionário não pode ser uma massa passiva e obedien- 'ao mesmo tempo [um] significado renovador e torna-se, com efeito, um ato libera tório
te. Assim como o educador deve ser educado também os comandantes devem eles para as grandes massas" (idem. Grifo nosso )360.
mesmos ser educados. Para Gramsci um partido democrático é aquele na qual cada A estratégia é retomada em Austerità, occasione per transformare l'Italia 361 •
"soldado" possa vir a ser "general': isto é, que o saber e as experiências das massas
fecundem e sejam fecundadas pelo saber das direções. Trata-se da unidade teoria- É [o impulso dos povos do terceiro mundo] que abala pouco a pouco todos os equilíbrios passados
/ e presentes [... ]. É esse impulso, ou pelo menos é ele principalmente que, agindo em profundidade,
-prática, unidade indissolúvel que só pode ser separada metodologicamente. faz explodir as contradições de toda uma fase de desenvolvimento capitalista do pós-guerra e
A proposta de pacto social berlingueriano, baseada na composição política que, determina em diferentes países condições de crise nunca atingidas. (citado por MandeI, p. 197. Grifos
longe de fazer avançar a luta dos subalternos, tinha como questão central a salvação deMandeI.)
do capitalismo em crise. Aqui, para variar, o PCI joga na lata do lixo mais de um
século de investigação marxista sobre a crise. Berlinguer avança a "hipótese" (sic) Ele ignora, conscientemente, tanto a teoria marxista da crise, quanto a crise de 29.
de que a crise decorria de duas causas fundamentais: "a inflação e a 'transferência O que ele sabe fazer? A pequena política de subordinação das massas trabalhadoras
de recursos' dos países industrializados para os países do 'terceiro mundo' (isto é, a ao capital. Como pode proclamar a si e ao partido como seguidores de Gramsci? Essas
alta dos preços das matérias-primas e, antes de mais nada, a do petróle0 359 )" o que é "teses" tinham a função de fazer as massas trabalhadoras aceitar as teses do "inte-
a ideologia burguesa pura e simples. A tendência da queda da taxa de lucros sequer resse geral': do "destino da nação': do sacrifício necessário para salvar a Itália. O que
é mencionada, como também não o é o antagonismo das classes. A reestruturação significa mistificar a realidade ao afirmar a homogeneidade de interesses das classes,
orgânica do capital e as novas tecnologias, que atuaram poderosamente sobre esse posição que é aquela defendida pela teoria liberal da cidadania: "por razões estraté-
antagonismo, não merece dele sequer uma reflexão, quanto mais uma reflexão séria. gicas e táticas, a ideologia do 'interesse geral' deve prevalecer, o marxismo é lançado
Lembremos que o pacto entre as classes era decisivo no seu discurso estratégico. Isto ao lixo': afirma MandeI (p. 199). Os economistas partidários (como, por exemplo,
fica ainda mais claro no encerramento da Conferência dos intelectuais do partido Sergio Zangirolami) procederam ao contorcionismo mais completo, um verdadeiro
em janeiro de 1977. Nessa conferência ele coloca a austeridade como estratégia par- haraquiri teórico-prático, ao defender essas posições em Economia política marxista
tidária: e crisi attuale, Ed. Riuniti, Roma, 1977, o mesmo ocorre com dirigentes, como Napo-
litano, ao defender expressamente que isto era necessário para aumentar o emprego
Para nós a austeridade é um meio para contrastar as raízes e colocar as bases da superação de um produtivo,
sistema que entrou em uma crise estrutural e de fundo, não conjuntural, daquele sistema cujos
360 "Quero dizer com toda franqueza que quando se pedem sacrifícios ao país e se começa a pedir -
caracteres distintivos são o esbanjamento e o desperdício, a exaltação de particularismos e do
como de costume - aos trabalhadores, enquanto se tem às costas uma questão como a P2, é bastante
individualismo mais desenfreado, do consumismo mais insensato. A austeridade significa rigor, difícil receber audiência e ser críveis. Quando se pedem sacrifícios à gente que trabalha requer-se um
grande consenso, uma grande credibilidade política e a capacidade de golpear privilégios exorbitan-
358 "Em primeiro lugar há a figura e o papel do 'chefe (capo) do partido'; um personagem longínquo tes. Sem estes elementos, não se pode, a operação não pode ter êxito:' (Berlinguer, 1981).
e mítico ao qual é delegado a elaboração da política [... ]:' (Panzieri, 1973, p. 207) 361 Berlinguer, Riuniti, 1977.
359 Relatório de outubro de 1976 do PCI citado por MandeI, p. 196.
250 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 251

e de contr~partidas, ~gora - mudada a situação - se representa em uma versão "débil': em que


[para] suscitar na indústria uma procura de mão-de-obra [... ] é preciso [... ] afrontar de modo as concessoes e os VInculos superam claramente as contrapartidas e as margens de iniciativa
draconiano o problema da situação econômica dessas empresas com referência particular ao custo autônoma. A CISL, engata nisto uma sua ideologia da "participação': enquanto a CGIL relança
do trabalho. (publicado pelo Rinascità, de 20 de maio de 1977, citado por Man~el, p. 219). ta:dia~ente u~ model.o de "co-determinação" (onde a análise "de classe' não comparece) quando
nao eXIstem maIS condIções de realizá-lo, pelo que permanece no papel. A consequência prática de
Berlinguer já falara da neutralidade do Estado e do Parlamento, fala agora da neu- todo isto é que os sindicatos "gerem o refluxo': em uma impostação puramente defensiva mesmo
tralidade da técnica, visto que a austeridade, para além de uma ideologia de subalter- quando as condições objetivas reabririam possibilidades de contraofensiva. (Rieser)
nização das massas, é também uma forma técnica de praticar a economia do capital.
Logo nada há de espantoso que ele nos afirme: "Nós não desejamos a transição ime- Não é sem uma grande ironia que Rossanda (1996) solicita: "Espero ainda que al-
diata para o socialismo. As nossas propostas não visam semelhante transição:' (idem, p. guém me explique, porque quando Andreotti estava na barra dos tribunais, o PCl o
203. Grifo nosso)362 O que se quer é a transformação de um capitalismo clientelístico tenha absolvido do impeachment em 1983': (idem, p. 218) É preciso entender porque
e parasitário em um capitalismo racionalizado e competitiv0363 . Os sacrifícios foram um partido que se afirmava como sendo "a expressão e a consciência da classe operá-
feitos: a escala móvel foi modificada e atenuada e foram suprimidos set~ feriados 364 . ria e do povo" (Berlinguer, 1977, p. 118. Grifo nosso) e com sólidas raízes no seio das
O que resultou dessa mutilação?
I
m~ssas populares e imaginar que estas "não são apenas indestrutíveis, mas por sua vez
alzmentam a nova força e a sua contínua renovação" (idem. Grifo nosso) possa ter se
Desapareceram [... ] as antigas estruturas capitalistas? E o emprego, o grande argumento que no auto dissolvido em pouco mais de uma década. Gramsci (lI partito comunista (lI),
fundo justifica os sacrifícios aos olhos dos trabalhadores menos conscientes? O emprego recuou ON, 9-10-1920) chamava a atenção para esse tipo de construção: o povo é indestru-
de 1,1% em relação ao primeiro trimestre de 1976, apesar dum aumento da produção de 10,9%365. tíveL Segundo ele isto traduzia a intervenção dos pequenos burgueses que minavam
Erosão do poder de compra dos salários mais perdas de emprego, igual a pronunciado aumento de
produtividade, isto é da mais-valia relativa, isto é, dos lucros. (MandeI, p. 215)
o partido e as massas italianas, despreparando-as para os choques reais.

Solução clássica do capitalism0366. O processo tem uma ampla repercussão em


todo o movimento dos trabalhadores:

o PCI "resiste" até que Berlinguer [... ] e sua deriva liberista sofre uma aceleração pela "reviravoltà'
de Occhetto [... ] (não por acaso em 1989). Mais complexa é a evolução dos sindicatos. A CISL é a
primeira "a fazer as contas" com a derrota de 89, com uma clara reviravolta à direita. A CGIL evita
fazer explicitamente um balanço crítico, e mantêm elementos de débil continuidade com a fase
precedente. De fato os sindicatos não podem assumir organicamente um esquema liberista que
está em contradição com sua própria natureza e função: terminam então com uma impostação
"concertativà: que é a reproposta de um modelo de relações industriais, a seu tempo, chamado de
"neocorporativo': amadurecido na última fase do fordismo. Mas, se era então um mix de concessão

362 "Não queremos seguir os modelos de socialismo que foram até agora realizadas, refutamos uma
planificação da economia rígida e centralizada, pensamos que o mercado possa manter uma função
essencial, que a iniciativa individual seja insubstituível, que a empresa privada tenha um espaço seu
e conserve um papel importante próprio. Mas estamos convencidos que toda esta realidade, dentro
das formas capitalistas - e, sobretudo hoje, sob a capa de chumbo do sistema centrado em torno da
DC - não funcionam mais, e que então se possa e se deva discutir de que modo superar o capitalismo
entendido como mecanismo, como sistema, já que ele, hoje, está criando massas crescentes de de-
sempregados, de marginalizados, de explorados. Está aqui o fundo, a causa não apenas da atual crise
econômica, mas de fenômenos de barbárie, do difundir-se da droga, da recusa ao trabalho, do tédio,
do desespero:' (Berlinguer, 1981) Só agora?
363 Tese conhecida pelos brasileiros: de Mario Covas ("choque de capitalismo)" a Luis Inácio (trans-
formação do capitalismo selvagem), passando por Collor. A vantagem (sic) é que aqui pelo menos
nenhum dos seus proponentes se propunha comunista.
364 in Le Figaro, 31 de maio de 1977, citado por MandeI, p. 215.
365 in Neue Zuercher Zeitung, de 24 de maio de 1977, citado por Mandel, p. 221.
366 O mesmo ocorreu no Brasil com a introdução das famosas Câmaras Setoriais.
254 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 255

Há empregadores que recusam - e isto ocorre todos os dias - a aplicar as leis sociais e os regulamentos fecha-se. a_ fábr~ca, a ~~presa ou uma parte desta fábrica e depois se vai para um país em que
da legislação social [... ]. No ano de 1975, dois terços das empresas submetidas à legislação não foram as condIçoes sao maIS mteressantes do ponto de vista dos salários e da desregulamentação do
visitadas pela inspeção do Trabalho: mais exatamente sobre 870 000 estabelecimentos, apenas 272 trabalh0 369 • [ ••• ] o que é posto em concorrência, ao mesmo tempo são os modelos sociais. (Husson
2007. O grifo é nosso) ,
000 foram visitadas ... , isto é, 31,3% [... ]. Não é exagerado dizer que na França os empregadores são
cidadãos acima de qualquer vigilância, porque cada empregador ao cometer uma infração corre
somente o risco de um sobre 300 de ser condenado. (Maurice Cohen, in La délinquance patronale, A tese do fim do trabalho industrial - fala-se em capitalismo cognitiv0 370 , socie-
citado por Linhart e Maruani, 1982, p. 30. Grifo nosso)
dade do conhecimento, sociedade pós-industrial et caterva - aparece também no
debate sobre a natureza dos empregos. Os intelectuais do capital, especialmente os
Vários são os mitos sobre o trabalho no mundo contemporâneo. Os apologistas
universitários, silenciam esses grandes e graves problemas nacionais.
do Capital, administradores, cientistas, "formadores de opinião" ou simples repeti-
dores dos discursos da moda falam muito em "trabalho autônomo': "enriquecedor': No que se refere aos estudiosos que se ocupam na universidade desses temas - o trabalho, a
"criativo': "limpo': "fim do taylorismo': etc. Nada disso resiste à análise dos processos economia, as finanças, etc. - direi que 97 a 98% dos economistas, dos sociólogos, dos advogados
produtivos. Aqui a aparência é claramente mistificadora367 • Os processos de traba- trabalhistas, de pessoas que giram ao redor, são meanstream, deixam -se levar pela corrente e aquelas
lho são cada vez mais criadores de uma dependência - inscrita já nas prescrições que procuram andar contra a corrente não despertam mais nenhum interesse. (Gallino, 2009b)
das atividades - em relação ao patronato via gerencias. Passado o período onde as
forças do trabalho estavam em ascensão (final da década dos 60 e anos subsequen- Sarkozy, na campanha eleitoral, falou em "trabalhar mais para ganhar mais" o que,
tes) a violência patronal passa ao ataque. O autunno caldo ou outras formas de luta obviamente, é um estelionato discursivo. Sob o momento atual do capitalismo a ten-
dos trabalhadores não seriam mais aceitas. Em depoimento sobre relações indus- dência é a da crescente destruição do trabalho vivo com a consequência da redução
triais um operário do ABC comentou: "primeiro o discurso, depois as demissões"368. d.os empregos e dos salários. Nessa linha fala-se em empregos no setor serviços espe-
Indicava claramente o fim das tentativas dos RH de manter um "diálogo" com os CIalmente em serviços a pessoas, isto é, empregos domésticos 37l •
trabalhadores. Colocava, muito precisamente, que as fortalezas e casamatas capita-
Por trás deste debate, há uma verdadeira disputa, pois a ideia segundo a qual "não podemos mais
listas continuavam intactas e prontas para o ataque. O trabalho aparece agora como
cri~ empregos" mas~ara o fato de que a alternativa a essa persistência do desemprego 372 seria
desterritorializado: efetIvamente a reduçao do tempo do trabalho, que consiste na utilização normal dos ganhos de
produtividade. [... ]
Um dos efeitos maiores da mundialização é o de colocar em concorrência direta os assalariados,
369 "Trata-se de um mecanismo infinitamente corrosivo para os modelos sociais. Pesa de todos os
talvez pela primeira vez na história do capitalismo. A produção de mercadorias (sobretudo
l~d?~. Na Europa~ pode-se. pegar também o exemplo alemão: de um capitalismo que era regulado,
de mercadorias físicas, mas não apenas) pode agora se fazer em lugares diferentes e, tendo a
cIvIhzado, mas fOI neste paIS que foram feitas as reformas mais brutais, de certo modo de revisão do
desregulamentação suprimido as fronteiras e as comportas, os assalariados podem ser postos modelo sociar' (Husson, 2007) ,
diretamente em concorrência. Isto quer dizer que, se não se aceita uma determinada concessão, 370 ,~odugno, 2010, localiza.a questão e adverte sobre suas consequências: "O procedimento ma-
367 "[ ... ] dos 23 milhões dos postos criados entre 1970 e 1984, claramente 22 milhões correspon- temat~co que transfor~~ a co~sa em pensament~ e o pensamento em coisa [... ] se contrapõe daqui
deram ao setor de serviços e na atualidade mais de três quartas partes dos empregos estão nessa por d~ante como ut_ensIllO umversal ?ar~ a fab~ICa.ção de conhecimentos, como condição objetiva
indústria [esta expressão está na tradução do livro de Wacquant com a qual não concordamos efd]. matenal da produçao, como uma maquma capItahsta que tornou obsoleto e inconfiável o cérebro
Mas quase um terço de todos os empregos gerados na década de oitenta eram de tempo parcial e 75 humano. [... ] A privatização do saber não foi o resultado de um erro dos ministros mas uma tentati-
por cento deles eram ocupados por pessoas que teriam preferido trabalhar durante toda a jornada. va de racionalização capitalista. É de fato antieconômico produzir nas universidades estatais 'novos'
Por outro lado em muitos destes empregos se pagam entre quatro e seis dólares/hora, muito longe da co~h~cimentos ,qu~ as corporation ve~de~ no mercado mundial. Um cybercapital, portanto, que
tarefa de 12 a 15 dólares comum nas manufaturas de bens duráveis, com pessoal sindicalizado. [... ] o?JetIv~ nas maqumas toda a c~~petenC1a dos trabalhadores mentais, que lhes absorve qualquer
Esta mudança na estrutura dos mercados laborais não foi conduzido por alguma modificação pre- vIrtuosIdade com um processo mmterrupto e com uma rapidez sem precedentes, reduzindo-os à
dominante inevitável e tecnologicamente, mas resultou das decisões das empresas americanas de precariedade, à deslocalização, à concorrência mundial entre os trabalhadores:'
favorecer as estratégias de rentabilidade e acumulação de curto prazo por meio de uma redução de 371 "?s_dados do PNAD/IBGE s~br~ 2004 indicaram a existência [no Brasil] de aproximadamente
seus gastos salariais e custos operativos. Um estudo mencionado por Squires calcula que dois terços 6:5 .~Ilhoes de trabalhadores domestIcos, dentre os quais 6 milhões seriam empregadas domésticas,
dos 203.700 empregos perdidos na Grande Chicago entre 1977 e 1981 por causa dos fechamentos e dIVIdIdas entre mensalis,tas e diaristas. Efetivamente, são aproximadamente 12% de toda a força de
"diminuições" empresariais se deveram na realidade à desinversão societária orientada para trans- tr~balho ~cupada no paIs e 26% de todas as mulhere~ econ?micamente ocupadas. Cerca de 4,5 mi-
ferir as atividades para lugares de terrenos menos custosos, pessoal mais barato e menores índices lhoes (7516) dessas empregadas trabalham sem carteIra assmada, recebendo em média menos de 1
de sindicalização, especialmente nos Estados do sul e países do Terceiro Mundo como o México:' salário m!nimo, ~ que as coloca na base da pirâmide salarial, brasileira:' (Bosi, 2011, pp. 42-43) Uma
(Wacquant, 2007, pp. 69-70) A obra citada é: Gregory Squires, Larry Bennett, Kathleen McCourt e observaçao margmal: o termo empregada(o) é sintomático. E o equivalente a usada(o). É um instru-
Philipe Nyden, Chicago: Race, Class and the Response to Urban Decline, Filadelfia, Temple Univer- mento que se usa. Isto mereceria uma atenção maior.
372 "A p~imeira função do desemprego é de fato manter a autoridade do patrão sobre o trabalhador::
sity Press, 1987.
Joan Robmson, Um programma per la piena occupazione (1943), citada por Cavalaro, 2010.
368 Cf. Soares, 2006.
256 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 257

[A expressão sociedade pós-industrial aplica-se] bem na medida em que a parte do emprego modernização das empresas, que procurou romper a dimensão coletiva do trabalho por uma
industrial diminui e a parte dos serviços aumenta, o que corresponde a um fenômeno de polivalência, uma concorrência sistemática, e formas de gestão personalizada: instauração de horários
desmaterialização da atividade econômica. Mas a criação de valor não se reduz à produção de bens variáveis, gratificações individualizadas e depois salários também individualizados, difusão da lógica
físicos; ela depende da produção de mercadorias e de sua venda, e estas mercadorias podem muito da prestação de serviços internamente e, por fim, entrevistas individuais com o N+ 1 durante as quais
bem ser imateriais. (Husson, 2007) cada assalariado deve "negociar" com o superior hierárquico imediato seus objetivos, suas missões, e se
submeter, ao final de um ano, à avaliação de seu desempenho. (Linhart, 2010, p. 3)374
Segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho, a França está "em primeiro lugar
Cavalaro (2010) chama a atenção para o processo da redução do trabalho à de no quesito violência no trabalho: e o INSEE (Institut National de La Satistique et des Études
liberdade da institucionalidade constitucional: Économiques) ''estima que sete milhões de trabalhadores são atingidos por esta pragà: [... ] os
observadores, além disso, não excluem a possibilidade do aparecimento na França, como nos
Liberdade de procurar-se um posto se se o encontra, liberdade de contratar um salário se se consegue, Estados Unidos, de atos de agressão por parte dos assalariados demitidos, retornando ao trabalho
liberdade de sair se não se é expulso antes: não se pode ser outra coisa que isto no mercado capitalista para se vingar': (Labica 2009, pp. 20-21)
do trabalho, precisamente o da "livre concorrêncià: Marx tinha escrito claramente: "o trabalho não
é senão uma mercadoria como as outras" e deve sofrer as mesmas sortes alternativas que o mercado A situação vivida pelos trabalhadores da France Telecom (FT) é ilustrativa não
impõe a todos os fatores produtivos; "seria tolo considerá-lo por um lado como mercadoria, e, por
outro, querer pô-lo fora das leis que determinam o preço das mercadorias."373 apenas da penosidade (tortura psicológica) bem como da destruição física dos tra-
balhadores (caso extremo: os suicídios). E também a associação com o Estado, os
A expropriação do trabalho se dá também no plano das concepções de mundo. É sindicatos e a chamada esquerda plural.
possível pensar conhecimento sem trabalho humano? Em sociedades classistas ele
A FT é uma empresa de porte monstruoso, gozando da sustentação do Estado, tendo rendas de
não realiza nem a liberdade, nem a felicidade e muito menos enriquece a subjetivi- 45,5 milhões de euros em 2010 e uma clientela de 193 milhões de pessoas. [... ] a empresa buscou
dade, antes pelo contrário. equilibrar seu balanço não com a ajuda do Estado, mas à custa dos trabalhadores: o número de
empregados passou de 161700 em 1996 para 103000 em 2009. De acordo com o plano NEXT
o trabalho caracteriza-se pelas pressões que exerce sobre os indivíduos e veicula necessariamente adotado em 2005, a FT tinha por objetivo aumentar a produtividade em 15 por cento em três anos
descontentamentos, dificuldades que repercutem em todas as dimensões da existência. Mas, e suprimir 22000 empregos. (Lantier e Lerougetel, 2011)
de forma muito contemporânea, no âmbito de um mundo do trabalho transformado por uma
modernização espetacular das empresas e do trabalho, a temática das penosidades se intensifica, e A empresa tem um plano com seis etapas de "angústia e depressão" (idem) para
entra em ressonância com o tema onipresente do sofrimento no trabalho.
forçar a submissão e obter que os próprios trabalhadores se demitam:
[... ] [Sofrem também do] estresse, que seria o efeito de um trabalho mais sujeito às pressões da
concorrência, ao peso dos clientes, aos efeitos das novas tecnologias; e haveria as consequências
Após a primeira etapa onde a mudança de emprego é anunciada, a segunda etapa ("recusa de
de um modelo, o da lean production, que submeteria todo mundo aos imperativos combinados do
compreender") seria marcada pela "incompreensão, a negação e a rejeição total:' A terceira etapa
tempo real e da economia de custos. (Linhart, 2010, p. 1)
("resistêncià') se manifestaria pela inércia, a argumentação, a revolta e a sabotagem. A quarta etapa
("descompressão') seria marcada ela "tristeza, ausência de recurso, desespero, depressão". A quinta
Isto atinge todas as formas das classes trabalhadoras: etapa ("resignação") se manifestaria pela "ausência de entusiasmo e de convicções, uma atitude
dubitativa e nostalgia do passado:' Na sexta etapa os quadros da FT esperavam que o trabalhador
[... ] se você é de classe média, há muita competitividade na escola, a competitividade é universal nas se decidisse pela demissão. (idem)
escolas agora, entrar na universidade é muito difícil, e mesmo tendo um diploma universitário não há
garantia de encontrar um emprego, mesmo tendo um emprego não há garantia de ter um bom salário, Para além disso a France Telecom (FT) produz socialmente não apenas o deses-
e mesmo que se consiga um bom emprego e um bom salário, não há garantias de que o emprego
seguirá por muito tempo. (Wacquant, 2008, p. 322. Grifo nosso) pero, mas também intervêm nas condições de insanidade física. Chevalier (2007),
secretário geral do Sindicato Nacional dos Profissionais em Saúde do Trabalho de-
As classes trabalhadoras não foram ao paraíso. Essa "individualização sistemática nunciou em carta à presidência da FT o fato de que entre 1889 e 1995 cinco traba-
da gestão dos assalariados [foi] implantada pelo patronato depois de maio de 68 para lhadores menores de 5 anos, em Saint Nazare, morreram de câncer produzido pelo
restabelecer uma relação de forças que se tornara desfavorável para ele': (Linhart, amianto. Em 1995 uma equipe de médicos produziram um relatório desmentindo
2010, p. 2) Ela mostra o conjunto de questões que se colocam hoje para as forças do as acusações de câncer por amianto na FT. Mais tarde (abril de 2003) afirmou-se que
trabalho (operários, funcionários estatais, professores, etc.). A 374 "[Temos] o direito de pensar que além da multiplicação dos estatutos precários, é a própria
noção de estabilidade no emprego que está em questão e, com ela, a ideia de um núcleo estável e
373 As referências de Marx estão em Salário, Preço e Lucro (1867). intocável:' (Linhart e Maruani, 1982, p. 28. Grifo nosso.)
258 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 259

"Globalmente, a população de assalariados dos serviços técnicos da France Telecom no governo do primeiro ministro socialista (PS) Michel Rocard em 1990, depois sob o governo da
Esquerda plural de 1997 a 2002, compreendendo o Partido socialista (OS), o Partido comunista
não apresenta risco de' câncer que se possa atribuir com certeza às exposições profis-
(PCF) e os Verdes. [... ] A direção sabia que teria a sustentação dos sindicatos, do PS e dos satélites
sionais passadas [... ]" (idem) do PS como o PCF e a "extrema esquerdà: (idem)
Em abril de 2007 um médico do trabalho da FT descobriu referências bibliográfi-
cas em sentido contrário: Linhart (2009) nos descreve o que ela chama de "precarização subjetivà' responsá-
377
vel em grande medida pelo sofrimento e vulnerabilidade operária :
As descobertas sugerem uma associação causal possível entre exposição intermitente ao amianto e
o câncer de pulmão. [... ] Essas descobertas fornecem um argumento suplementar para afirmar que
É o sentimento de não estar "em casà' no trabalho, de não poder se fiar em suas rotinas profissionais,
mesmo os fracos níveis de exposição profissional ao amianto deveriam ser estritamente evitados.
em suas redes, nos saberes e habilidades acumuladas graças à experiência ou transmitidas pelos
antigos; é o sentimento de não dominar o seu trabalho e de precisar permanentemente desenvolver
Alertados os Recursos Humanos da FT nada fizeram, o que levou a um médico do traba- esforços para se adaptar, para cumprir os objetivos fixados, para não se arriscar, nem física, nem
lho da FT a divulgar essas pesquisas (3 de julho de 2007) a outros médicos. Chevalier ressalta: moralmente (no caso de interações com usuários ou clientes). É o sentimento de não ter recurso
em caso de problemas graves de trabalho, nem ao lado dos superiores hierárquicos (cada vez mais
Várias trocas de cartas entre pesquisadores e vossos serviços nos mostram que esses resultados raros e cada vez menos disponíveis), nem do lado dos coletivos de trabalho que se esgarçam com
eram conhecidos pela DRH da France Telecom desde 2005!" [... ] Ocultando durante mais de dois a individualização sistemática da gestão dos assalariados e o estímulo à concorrência entre eles. É,
li i

anos esta descoberta científica, vossos serviços escolheram conscientemente retardar a colocação assim, o sentimento de isolamento e de abandono. É também a perda da autoestima, que está ligada
,11: de meios de prevenção para categorias de assalariados até então considerados como tendo um risco ao sentimento de dominar maIo seu trabalho, ao sentimento de não estar à altura de seu trabalho,
1·,.1·"'1,·1:,':

insignificante de câncer de pulmão pelo fato de sua exposição [... ] ao amianto. (idem. )375 de fazer um trabalho ruim, de não estar seguro de assumir o seu posto. (Unhart, 2009. Grifo nosso)
'lil.l!
1.1

Falamos em associação com o Estado, dos sindicatos e dos partidos e assim foP76. Acima de tudo a "individualização"378 dos trabalhadores na lógica do "cada um por
1,1 A FT foi privatizada parcialmente si" tem a finalidade expressa do isolamento no interior da classe, isto é, da quebra
das regras de solidariedade, profissionais ou sindicais e da captura da subjetividade
375 Sobre isso ver o manifesto Travailler tue en toute impunité: pour combient de temps encore? (Fonda-
tion Copernic, 2009). Nele se afirma: "Na França existe um escândalo do silêncio. Morre-se simplesmente antagonista ou pelo menos sua neutralização visto que o "bem -estar no trabalho" é
porque se trabalha. Morre-se simplesmente porque empresas não respeitam a regulamentação. Morre-se "contra produtivo para a administração moderna:' (Linhart, 2010, p. 6) Bem estar e
porque a justiça considera como quantidade negligenciável e desprezível essas mortes no trabalho. É ne-
lucro não rimam, por isso mesmo é necessário manter os trabalhadores sob tensão.
cessário que essa situação cesse e que nos mobilizemos para que o que é um verdadeiro escândalo e uma
verdadeira negação de justiça em um estado de direito digno desse nome, cesse. [... ] O número oficial das 377 "Acrescentemos ainda uma novidade: o trabalho deixou de ser uma tábua de salvação frente ao
doenças profissionais reconhecidas explodiu: 13658 em 1996, 52979 em 2005. O número de acidentes do desemprego, uma vez que passa a assumir essas formas rebaixadas que os 'trabalhadores pobres' [... ]
trabalho graves e mortais permanece muito elevado: 537 mortos em 2006, ou seja 13% a mais em um ano. encarnam, como os 'bicos: empregos múltiplos, trabalho informal ou, mais amplamente na França,
[... ] Os suicídios diretamente ligados ao trabalho são estimados em 400 por ano, mas a maior parte não os contratos de duração limitada (CD.!., Contrats à durée limitée). O hospital La Timone, em Mar-
são reconhecidos como acidentes do trabalho. Vários milhões de assalariados são expostos, sem nenhuma selha, viu-se obrigado a abrir um atendimento especializado em 'sofrimento no trabalho: Psiquiatras
proteção, a produtos conhecidos por serem cancerígenos, mutagênicos ou tóxicos para a reprodução, con- de Barcelona, diagnosticaram, sob o nome de 'Síndrome de Ulisses: distúrbios psíquicos graves que
tribuindo assim enormemente para as desigualdades sociais face ao câncer: um operário em dez vezes mais afetam especificamente os trabalhadores migrantes:' (Labica, 2009, p. 21) "Não esqueçamos, final-
risco de morrer antes dos 65 anos que um quadro superior:' Toda essa situação é agravada pelas diferenças mente, o subproduto do MPC [modo de produção capitalista], sua rotina: 5.000 mO,:t~s diárias no
classistas: "Enquanto um simples punguista é condenado a 6 meses em prisão fechada diante o menor mundo imputáveis às condições de trabalho, ou seja, 2 milhões de mortes por ano. (Idem, p. 23.
tribunal correcional em comparação imediata o empregador culpável de homicídio dito involuntário em Grifo nosso)
relação ao seu assalariado, após anos de processo, é condenado - o é - a alguns meses de prisão com direito 378 A chamada individualização (ou hiperpersonalização) "[para os capitalistas] tinha uma dupla
a sursis:' (Grifo nosso) Assinam o manifesto, entre outros: Etienne Balibar, Jacques Bidet, Sylvie Catala, vantagem [... ]: de um lado, pretender responder às aspirações manifestadas durante o mês. de maio
Daniele Kergoat, Georges Labica, Daniele Unhart e Michel Lowy. [de 1968], dando mais atenção às expectativas e necessidades de cada um; de outro lado, mstaurar
376 "Cada abertura de capital se efetuou sobre o fundamento da aliança industrial, de cooperações uma atomização suscetível de inverter uma relação de forças que se tornou nitidamente desfavorável,
européias e - nos é necessário insistir sobre este ponto -, com o aval dos sindicatos e do conjunto em razão das grandes concentrações operárias capazes de se organizar e pôr em perigo os interesses
dos parceiros que compunham então a Esquerda plural (notadamente o PCF e os Verdes). O que se do patronato:' (Unhart, 2009)
considerou como sendo simples 'privatização' foram os germes de uma política industrial ambicio- Wacquant (2008, p. 321) chama a atenção para o que designa como "marginalização urbana avança-
sa:: Dominique Strauss-Kahn, La Flamme et le Cendre, 2002, p. 219, citado por Lantier e Lerougetel, da a qual está relacionada, por um lado, às transformações do trabalho, à desorganização do emprego
2011. Strauss- Kahn ex-ministro no governo da Esquerda Plural, ex -diretor do FMI e ex -candidato e ao declínio do sindicalismo, mas também à invariabilidade crescente dos contratos de emprego.
do PS à presidência em 2012. O ex-ministro já tinha reconhecido em uma conferência de imprensa Atualmente, todos os contratos de emprego são contratos individuais, para trabalhadores em dife-
de 21 de julho de 1997 que: "Em quinze anos, a parte dos salários no produto interno bruto francês rentes condições de trabalho, diferentes salários, diferentes tipos, diferentes dur~ções. Então, esse é
tinha passado de 68.8% para 59,9%. [... ] [o desemprego françes] encontra sua fonte numa divisão do um elemento principal, o que eu chamo de dessocialização do trabalho assalanado, esse trabalho
valor agregado muito desfavorável aos assalariados para que as empresas possam beneficiar-se de um assalariado tornou-se, em si mesmo, uma fonte de insegurança e de instabilidade. [... ] é, ele mesmo,
crescimento dinâmico" (citado por Halimi, 2003. Grifo nosso). um vetor de pobreza e insegurança:'
260 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 261

Essa individualização vai mais além: promove a transformação dos clientes em "uma Têm, porém, formas coletivas de solidariedade que estão sob permanente ataque.
(milícià empresarial" (idem, 2010, p. 5) Quando as formas político-patronais de controle da produção ultrapassam os limites
A constituição dessa milícia acaba por criar outro tipo de contradições, como, por da sua ética de ofício (negação objetiva da sua pessoa como produtor), eles sentem
exemplo, clientes X trabalhadores. E muitos desses clientes são eles próprios traba- isso como outra violência para além da violência cotidiana do trabalho: à exploração
lhadores. Investidos, contudo, do seu status de cidadãos-consumidores eles atacam se soma, desapiedadamente, a opressão.
os trabalhadores embora como trabalhadores aqueles possam ser também atacados
As formas de racionalização estabelecidas (individualização, polivalência, mobilidades sistemáticas,
por outros cidadãos-consumidores.
enquadramento cada vez mais estrito de atividades e do tempo em que passa no trabalho com
avaliações e objetivos designados pela hierarquia cada vez mais impositivas, padronização das
Trabalhar não é apenas estar preso às exigências do contrato de trabalho, mas é também encontrar- atividades, diminuição dos meios), que se encontram nos diferentes terrenos, visariam manter
se permanentemente em diálogo com a sociedade em seu conjunto, e quando essa sociedade muda os assalariados em um estado de insegurança e de dependência. Nessas situações de trabalho não
seu olhar sobre esse trabalho (o descrédito crescente dos funcionários e agentes do Estado é um industriais, são as modalidades de organização e de gestão taylorista que enquadram cada vez
exemplo disso), ou, na medida em que se transforma, torna esse trabalho inadaptado ou mais difícil mais a atividade do trabalho. Trata-se de diminuir custos, mas, ao mesmo tempo, de expropriar
de realizar, isto opera em termos de penosidade. aos trabalhadores o domínio do seu trabalho e da capacidade de interpretar sua finalidade e seus
Para os professores, está claro que o ensino médio único em face de fortes desigualdades sociais, fundamentos. O objetivo buscado é minimizar a capacidade dos trabalhadores de se opor, de resistir
assim como a concepção de "reizinho" e os novos direitos atribuídos aos pais de alunos constituem
às exigências das direções. (idem, p. 6. Grifos nossos)
uma fonte de dificuldades e de desafios importantes que podem rapidamente se transformar em
penosidades. A violência dos pais assim como dos alunos exprimem questionamentos da autoridade,
os fracassos escolares interpelam a competência dos professores, mas para os vendedores do centro Para aumentar a dificuldade desses trabalhadores há uma desconfiança deles em
comercial ou para os dos guichês da empresa de transportes Pégase, os problemas são da mesma relação aos sindicatos. Consideram que os sindicatos estão politizados e com isso
natureza: o mal-estar dos clientes, as dificuldades com que se veem confrontados produzem para se perde tanto capacidade de negociação interna: o que importa são os resultados.
os profissionais à mercê de [... ] questionamentos pessoais do mesmo modo que para os professores.
Muitos analisam que com o apoio ao governo na França, por volta de 1981, o sindi-
Pode-se acrescentar a eles, ainda os condutores de trens, que enfrentam a ira dos usuários ou
clientes quando não conseguem, por razões que não dependem deles, assegurar a regularidade e a cato perdeu poder de reivindicar. As estratégias sindicais estariam erradas porque se
pontualidade dos transportes. (Linhart, 2010, pp. 4-5) pede aquilo que se sabe ser muito difícil de conseguir porque a linguagem das orga-
No momento em que os destinatários do trabalho se tornam mais exigentes, impacientes, e às nizações não diz nada, ou quase nada, aos jovens que conseguiram um emprego em
vezes, inclusive, querem se vingar das humilhações ou injustiças que sentem, das desigualdades que uma época de crise. A estrutura fechada do sindicato, segundo o julgamento desses
vivem, esses próprios profissionais estão expostos frequentemente a um ataque em regra dos valores,
finalidades de seu ofício, a um questionamento de sua competência, e a uma defesa de suas identidades jovens, faz com que ele seja uma entidade misteriosa.
profissionais. (idem, p. 5. Grifo nosso)
O que choca mais, sem dúvida, é a exterioridade na qual todos se situam em relação ao sindicalismo,
sejam sindicalizados ou não. [... ] Exterioridade que se manifesta inicialmente nos termos utilizados
o trabalho sempre foi, na sociedade capitalista, produtor de estranhamento, de para designar os sindicatos, os sindicalistas. É sempre ils, eux; jamais on 379 , menos ainda "nós':
fadiga, insalubridade, e afetam a vida privada e familiar dos trabalhadores. mesmo entre os sindicalizados e os militantes. A maioria desses jovens não herdaram de seus pais
uma sensibilidade sindical. (Linhart e Malan, 1988, p. 10)
Às vezes, inclusive, o perigo, os riscos e a violência do ambiente do trabalho instalam um sentimento
de orgulho e de heroísmo, como poderia ser o caso dos mineradores, dos operários da siderurgia, e Ao mecanismo brutal da precarização subjetiva soma-se outro: o da preocupação
talvez ainda dos pilotos de caça, dos bombeiros, etc. (idem, p. 2)
objetiva revelada e atualizada pelas perdas salariais.
Mas, apesar das ideologias do fim do taylorismo, os trabalhadores A cota dos salários no produto interno bruto conheceu uma queda também ela acentuada a partir
de 1981-82 (a tendência à queda que começara na Europa com a grande recessão de 1974-75 [e]
[... ] designam como penosidades as dificuldades que não conseguem, ou não mais, dominar, domesticar, aprofundou-se a partir de 1981). Ao contrário, a cota das rendas embolsadas pelos capitalistas
aquelas que parecem estranhas ao seu ofício, que têm origem em lógicas profissionais diferentes das aumentou.
que os motivam, que se inscrevem em outro registro de valores, que não lhes parecem equitativamente [... ] a cota da renda nacional dos Estados Unidos em favor dos 10% mais ricos cresceu de modo
distribuídas e às quais não conseguem dar sentido. Isto está ligado à individualização que esvaziou de impressionante. O crescimento é particularmente brutal a partir do início dos anos 80. Enquanto em
sua substancia as coletividades e aos novos modos de racionalização que representam um verdadeiro 1982 o decil mais rico açambarcava 35% da renda nacional, a sua cota explode e atinge 50% vinte e
golpe contra o ofício. São penosidades porque lhes parecem injustificadas, porque os ferem em sua cinco anos mais tarde, chegando assim à situação que precedeu ao crack da bolsa de Wall Street de
identidade profissional, em sua autoimagem e porque são vistas como um não reconhecimento de suas 1929. (Toussaint 2009. Grifo nosso)
necessidades de fazer um trabalho. (Linhart, 2010, p. 2)
379 Cito em francês pela quase intradutibilidade dessas expressões.
262 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 263

Na Inglaterra "Hoje, o 0,1 % mais bem pago leva para casa o equivalente a 5% da soma de salários os campos foram de qualquer maneira reestruturados, modernizados, expropriados, transformados
do país, mesmo percentual do início dos anos 40. em canteiros e muitas coisas do gênero. [... ]
[... ] em 1979 o mesmo 0,1 % mais bem pago ficava com 1,3% do total de salários do país, o que Processo que consistiu prevalentemente na sistematização da atividade produtiva, a colocar ou a
denotava maior igualdade. localizar a atividade produtiva aí onde os salários são muito mais baixos, os horários de trabalho
[... ] Agora, projeções apontam que o 0,1% irá abocanhar 10% do conjunto dos salários em 2025 não têm quase limite (60 a 70 horas é a norma); os sindicalistas não existem ou são apenas fachadas
e 14% em 2030. Isso dizem os especialistas, era o retrato do Reino Unido na era vitoriana (1837- do governo, como na China e em outros países; não existem vínculos ambientais; a fiscalidade é
1901) quando a rainha Vitória era a chefe de Estado e o país não consolidara uma classe média. extremamente favorável a empresas que vem do exterior a se instalar em um dado país emergente;
[... ] O salário em média da população subiu 7,2% de 1998 a 2008. O dos mais ricos, 64%. os direitos do trabalho existem no papel mas são praticamente inaplicáveis; ser sindicalista é um
[... ] Nos 13 anos de governo do Partido Trabalhista (1997-2010), [a desigualdade] aumentou, apesar ofício muito perigoso (somente na Colômbia e Bolívia contam-se nos últimos 2 a 3 anos 250
do partido ter discurso mais a esquerda e ser ligado aos sindicatos:' (Marinheiro, 2011) sindicalistas assassinados). [... ], a situação do trabalho relembra a da Revolução industrial de 150
anos e mais 381 .
Para enfrentar esta situação seria necessário que os partidos de esquerda e os que
se dizem tais tocassem a fundo a questão da alteração da correlação de forças, pro- Sobre isso governos, políticos, jornalistas e universitários - com as raras e honro-
blema agravado pela destruição de uma referência classista universal, pela capitula- sas exceções de sempre - calam-se quando não elogiam abertamente a moderniza-
ção da maior parte deles à ideologia do capital. Caso, contudo, eles queiram intervir ção, o avanço tecnológico, a "libertação do trabalho e do trabalhador" concluindo
nesta situação um dos elementos centrais para sua ação deve ser o da distribuição da não apenas pela inexistência de classes nesse "admirável mundo novo': mas também
renda, afirma Husson. pelo caráter livre, criativo e virtual: não mais mãos sujas de graxas, mas o controle
computadorizado da produção; não mais operários, mas uma afluente classe média.
A maioria da esquerda, segundo o uso corrente na França, é social-liberal. Isto quer dizer, em Será? Gallino (idem) mostra outra realidade:
suma, que ela não pensa em tocar muito nas regras do jogo da distribuição de renda, mas propõe
medidas para limitar os efeitos nefastos que isto pode ter sobre a maioria da população. [... ] no A um quilometro ao norte da fronteira estadunidense-mexicana que liga Califórnia e Texas,
caso da jornada de trabalho, reduz-se, mas não se obrigam os patrões a contratar para compensar existem trabalhadores [... ], que custam mais de 60 dólares-hora como custo do trabalho, e que, no
esta diminuição da jornada de trabalho. A aposta social-liberal, no caso francês, [... ] foi a de criar conjunto, têm proteções jurídicas e sindicais notáveis, sobretudo na indústria do automóvel. Menos
empregos, diminuindo a jornada de trabalho, mas compensando imediatamente, para que isto não de um quilometro ao sul existem trabalhadores que ganham de 4 a 5 dólares por dia, são totalmente
aumentasse o custo do trabalho para o patronato. [... ] privados de proteções sindicais (estamos no México)382, fazem jornadas entre 50 a 100% superiores
Mais à esquerda, encontram-se correntes políticas cujo programa repousa sobre a ideia de que não às dos colegas, chamemo-los assim, americanos que estão a dois quilômetros ao norte [... ].
se pode mudar nada sem tocar seriamente na repartição das riquezas e na maneira como funciona Mais de 80% dos PCs, dos computadores portáteis, agora são todos portáteis, são produzidos na
certo número de coisas, tais como a formação dos salários, as normas de emprego, o direito do China e são vendidos depois com a marca IBM, Intel, Acer, HP e algumas outras. Mais de 80%
trabalho (que está em vias de ser esvaziado de seu conteúdo)380. Mas esta esquerda radical continua das vestimentas é produzida nos países emergentes; uma parte relevantíssima do made in Italy
frágil e, no caso francês, se esmerou ela própria em se dividir e se enfraquecer. (2007. Grifo nosso) é produzida nos países emergentes, sobretudo na Índia; [... ] 95% dos brinquedos do mundo
é produzido na China sob o desenho da Mattel e o de outras grandes empresas americanas ou
Não se trata do "caso francês': mas objetivamente é uma tendência internacional europeias.
para gáudio da ordem do Capital. Outros problemas estão ligados à ausência de pos-
tos de trabalho, da jornada, etc. Gallino (2009b) nos fornece alguns elementos: Na França, como no Brasil, criou-se um programa denominado "primeiro em-
prego': Lá, nas palavras de Vercellone (2006), tratava-se de um "modo de regulação"
Na China, por exemplo, nos últimos vinte anos cerca de 300 milhões de pessoas deixaram os de tipo anglo-saxão, decorrência dos tratados de Lisboa, paralela à precarização e
campos para afluir às cidades onde eram ocupadas prevalentemente nas construções e nos serviços.
desregulamentação do trabalho. Em outras palavras a destruição das garantias so-
Desde o início da crise, isto é a pouco mais de um ano [2008], cerca de metade destes 300 milhões
de pessoas perderam o trabalho e estão voltando para os campos onde o trabalho de antes, pobre, ciais antes vigentes. Este autor fala que, na prática, segmentou-se ainda mais a classe
modesto, camponês, pré-moderno, tudo aquilo que seja, mas existia. Hoje não existe mais porque trabalhadora; por um lado uma "'elite' do trabalho intelectual especializadà' (idem)
380 Strauss-Khan, ministro socialista de Jospin, afirmou: ''As camadas sociais reagrupadas sob o
e, por outro, uma "mão de obra cuja qualificação não seria reconhecida. [criava-
termo genérico de 'excluídos' não votam pela (esquerda), por esta simples razão que, muito fre- -se assim] um massivo fenômeno de 'déclassement: isto é, uma desvalorização das
quentemente, não votam. Ao risco da impotência, (a esquerda) se vê na obrigação de encontrar no condições de remuneração e de emprego em relação às competências efetivamente
interior de outras categorias sociais a sustentação suficiente para a sua política" (citado por Halimi,
2003). "Do grupo mais desfavorecida, não se pode infelizmente nunca esperar uma participação 381 Ver Rocca, 2007.
serena em uma democracia parlamentar. Não que ele se desinteresse da história, mas por vezes suas 382 "São os anos em que, com a força dos movimentos objetivos, o capital industrial estadunidense
irrupções se manifestam na violêncià' (idem) expondo, nas palavras de Halimi, uma desconfiança trata cada vez de emancipar-se da maior parte da 'suà classe operária investindo no exterior': Gam-
quase aristocrática. bino, 2009. Grifo nosso.
264 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 265

utilizadas': (idem) Segundo ele o contrato por tempo indeterminado ainda é majori- a contenção punitiva dos pobres nas favelas é o futuro dos Estados Unidos e não
tário, mas os empregos precarizados representavam à época do artigo cerca de 70% o contrário:' (idem)
dos novos postos de trabalho e já eram 14% dos postos existentes383 • A segmentação O futuro dos trabalhadores dos países ditos avançados tendencialmente está - sal-
passa também pelas gerações: vo uma radical supressão da Ordem do Capital - traçado como ilustra o contrato
entre a Fiat e seus dependentes de Pomigliano. A Fait pretendeu "resolver sua crise"
Cada ano, na França, os jovens em formação ou apenas saídos do sistema universitário realizam cerca
de 800.000 estágios geralmente não pagos ou, se remunerados, com remunerações irrisórias, enquanto as com um diktat sobre os trabalhadores:
atividades desenvolvidas são frequentemente as mesmas que poderiam ser cumpridas por um empregado
com um contrato normal de trabalho. A revolta contra esta forma de autentica escravidão do trabalho É neste contexto que nasce a proposta Fiat de transportar a fabricação da Panda de Tychy na
cognitivo esteve recentemente na origem da formação espontânea, a partir de um simples blog, do Polônia386 para Pomigiliano. Perplexidade e dúvidas: e os operários poloneses o que farão? E isto
movimento génération précaire que usa formas de luta e recorre a uma simbologia similar à dos bastará para salvar os napolitanos? No final, o sindicato se divide. Fim-Cisl (de inspiração católica)
invisíveis na Itália. e Uilm-Uil (socialista-reformista) e UgI assinam o acordo com a Fiat. A Fiom-Cgil (de inspiração
Para financiar os próprios estudos e para viver, a maioria dos estudantes deve trabalhar de forma comunista) não assina. Pede-se um referendum (22 de junho) para verificar a vontade operária de
irregular e, em 20% dos casos, esta atividade lavorativa corresponde ao equivalente de um tempo Pomigliano. Vence o sim com 62,25% (2888 votos), o não obtêm 36.08% e o resto são votos nulos.
parcial desenvolvido no ano todo. (Peyrot, 2010).
A coação ao trabalho irregular é acentuada pelo fato que os jovens que tem uma idade inferior aos 25 Na prática os trabalhadores que votaram "sim" com a pistola apontada à cabeça e sob a pressão dos
anos são excluídos da RMI (Renda Mínima de Inserção, por volta de 433€ apenas para uma pessoa). chefes e encarregados, são somente 842 a mais do que aqueles que votaram "não'. A este dado deve
Esta medida discriminatória encontra a sua principal razão na exigência de assegurar um abundante se acrescentar o fato que entre os quadros e funcionários dos escritórios o "sim" atingiu 98% de
reservatório de mão de obra precária e intermitente para os setores da economia dos serviços industriais consenso: isso demonstra que a ampla maioria dos operários votou "não:
(tipo "Mc Donalds") consumidores de uma grande quantidade de força de trabalho composta por [... ] o secretário do PRC (Partito della Rifondazione Comunista) Ferrero não propôs nada além do
estudantes-trabalhadores. recurso à Justiça, lamentando-se do fato que o plano vai contra as leis do Estado e a Constituição...
Enfim: a entrada relativamente tardia no mercado de trabalho e a descontinuidade da carreira (Margiotta, 2010. Grifo nosso)
profissional dos jovens, ritmada pela alternância de períodos de formação, de trabalhos por tempo
determinado, de estágios não pagos, tornam muito mais difícil o acesso às garantias do sistema de
I! O que a Fiat pretendia?
proteção social, como por exemplo, a indenização por desemprego e comprometem para a maior parte
i
dos jovens mesmo a possibilidade de gozar no futuro uma aposentadoria normal. (idem. Grifos nossos )384
I

Com a finalidade de utilizar as instalações por 24 horas por dia e 6 dias por semana, sábado
incluído, no estabelecimento de Pomigliano renovado para produzir o Panda no lugar dos atuais
Wacquant (2010b) mostra que todo esse processo afeta o conjunto das classes Alfa Romeo, todos os encarregados da produção e coordenados (quadros e empregados, além
trabalhadoras: "Eu acho que a periferia do capitalismo é a verdade das tendências dos operários), deverão trabalhar em rotação sobre três turnos diários de oito horas. A última
do capitalismo do centro:' Explicitando: "O Brasil vai na [mesma] direção dos Es- meia hora será dedicada à refeição (o que quer dizer, salvo erro, não comer por pelo menos oito
horas). Todos terão uma semana de trabalho de 6 dias e uma de 4. A empresa poderá exigir 80
tados Unidos, por exemplo, no que se refere à prisã0 385, à tendência de militarizar horas de trabalho extraordinário por cabeça (que fazem duas semanas a mais ao ano) sem prévio
acordo sindical, com um aviso prévio limitado a dois ou três dias. As pausas durante o horário serão
383 "Em 2003 no setor privado os trabalhadores com um contrato precário eram por volta de 13%
reduzidas em um quarto, de 40 a 30 minutos. [...] O ideal [da] WCM [World Class Manufacturing] é
do total, enquanto para os jovens entre 15 e 29 anos a percentagem era de 31 %. No setor público, a
cota relativa aos jovens era verdadeiramente de 40%. A precariedade do contrato de trabalho cami-
o robô, que não se cansa, não reduz nunca o ritmo, não se distrai sequer por um átimo. Com a métrica
nha pari passu às crescentes desigualdades salariais entre as gerações. Por exemplo, em 1975, os as- do trabalho se adestram as pessoas para operarem o máximo possível como robôs. r. .. ] Nome em
salariados de 50 anos ganhavam em média 15% a mais que os trabalhadores com 30% anos de idade. código: produtividade. (Gallino, 2010. Grifos nossos)
Hoje a diferença é de 40%:' (Vercellone)
384 Falando sobre o valor do contrato por tempo indeterminado (CDI) Vercellone afirma: "Teste-
Agregue-se a isso o fato de que
munha-o a multiplicação do número de trabalhadores pobres que mesmo dispondo de um CDI a
tempo pleno pago [com] o Salário Mínimo (o SMIC de cerca de mil euros brutos), aquele que deveria
corresponder às famosas camadas médias, é atualmente próximo a 1420€, enquanto em uma cidade As greves não serão possíveis nos casos em que a empresa tenha requerido o trabalho
como Paris, por exemplo, o mínimo vital para um indivíduo é estimado em 1300€:' extraordinário por exigência dos negócios, recuperação produtiva e crescimento do mercado.
385 O cárcere protege a sociedade do delinquente, o manicômio protege à sociedade da pessoa que Para os operários as retaliações serão pesadas: entrar em greve contra o acordo será punível
também se desvia da norma.
O cárcere não serve para a reabilitação do encarcerado, assim como o manicômio tampouco serve 386 Os trabalhadores poloneses em carta aberta aos operários de Pomigliano afirmaram: "É claro,
para a reabilitação do enfermo mental. Ambos respondem a uma exigência do sistema social, isto porém que tudo isto não pode durar por longo tempo. Não podemos continuar a disputar entre nós
é, do sistema social que tem como fim último a marginalização de quem rompe com o jogo social. os postos de trabalho. Devemos nos unir e lutar pelos nossos interesses internacionalmente. Para nós
A marginalidade do que não aceita a problemática da violência institucionaizada que governa nossa não existe outra coisa a fazer em Tychy que parar de ajoelhar-se e iniciar o combate. Nós apelamos
sociedade. (Basaglia, 1989a, pp. 16-17) aos nossos colegas a resistir e sabotar a empresa, que nos tirou o sangue por anos e agora nos cospe
em cima. Trabalhadores é hora de mudar!" (Margiotta, 2010)
266 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 267

corno infração disciplinar, com medidas que podem chegar até a demissão; a crise agudizou-se ulteriormente e ataca países corno o nosso, caracterizados por um grau menor
Dobram-se de 40 para 80 as horas de trabalho extraordinário obrigatório. Enquanto outras 200 de organização interna dos capitais. Quando Marchione carrega a mão sobre o direito de greve,
horas podem ser solicitadas usando a meia hora de refeição; sobre as pausas de dez minutos [... ] me parece comportar-se corno um manager de urna empresa
Aumento espantoso do ritmo e da flexibilidade; que se considera em plena crise da concorrência européia e que consequentemente tende a intervir
Com a desculpa da luta contra as ausências, a Fiat poderá negar-se a pagar os primeiros três dias de apenas sobre os custos do trabalho. [... ] provavelmente acentua o choque com os trabalhadores
doença quando verificar urna quantidade considerada "anômalà' de atestados médicos; também para evitar discutir as deficiências históricas da FIAT sobre a vertente da economia de
A meia hora de refeição não será mais depois de 6 horas de trabalho, mas no término do turno e escala, dos custos intermediários, da logística, da capacidade de competir na faixa relevante do
poderá ser suspensa completamente por exigência de trabalho extraordinário. (Margiotta, 2010) mercado europeu.
[... ] Depois de termos perdido a informática, a química, a eletrônica de consumo, a eletromecânica,
praticamente a aeronáutica civil, estamos aqui verdadeiramente nos arriscando a perder o setor
Falamos em diktat e assim é. As propostas da Fiat reduzem-se a "calem-se e obedeçam': automobilizo. [... ] nos dois últimos anos foram adotadas 332 novas medidas protecionistas em nível
mundial, das quais 60 pela Rússia, 23 pelos Estados Unidos, 20 pela China, 13 pela Coréia do Sul,
A crítica mais "radical" que Fiom-Fim-Uilm acreditaram dever fazer à Fiat é sobre o presumido 12 pelo Brasil e pela Índia (dados da Comissão Européia). [... ] Paul Samuelson e Paul Krugman
atraso na promoção de "novos modelos': ou sobre a escassa capacidade de defender "marcas - ambos prêmios Nobel e especialistas de modo particular em economia internacional - sempre
prestigiosas" (ilusão esta de que não está livre o próprio COBAS Alfa). Mas ligar a sorte dos precisaram que os famigerados da teoremas a favor do livre cambio perdem relevância em situações
operários ao sucesso dos "novos modelos" equivale a aceitar o plano inclinado de comprometer- de desemprego. Isto significa que mesmo no âmbito da teoria mainstream torna-se difícil justificar
se à sua maior produtividade com tudo o que daí se consegue: reduções salariais, incremento dos urna política de abertura indiscriminada dos mercados. (Brancaccio, 2011)
ritmos e da exploração, diminuição do emprego, etc.
[... ] uma lógica a estender a todas as fábricas do grupo [... ] baseada em: salário reduzido e cada
vez mais ligado à produtividade, uso incontrolado da força de trabalho, emprego reduzido e maior Diante da afirmação de Boldrin, segundo o qual a "Itália é daqui por diante um
produtividade per capita, redução de toda contração sindical, transformação dos sindicatos em simples país 'em vias de subdesenvolvimento'" que soluções ele vê? Não nos surpreendamos:
homologadores das escolhas dela (Fiat). (Che fare, n. 28. Grifo nosso) os neoliberais propõem as mesmas das ortodoxias que já fracassaram:

Isto despertou uma polêmica preciosa para o esclarecimento do momento atual do É necessário reestruturar o setor público de cima a baixo, introduzindo critérios de tipo privatístico-
capitalismo, em especial na Itália. Para os liberistas empresariais na gestão. [... ] Sistema escolar. [... ] digo de modo desejadamente brutal - que seja
necessário abolir o ministério da instrução pública para transformá-lo em urna agência de controle
da qualidade. É necessário tornar os recursos que hoje gastamos com a instrução e colocá-los nas
Para realizar o próprio plano a FIAT não está pedindo subsídios (não pelo menos na Itália onde era
mãos das famílias e dos estudantes (se maiores de idade) sob a forma de "bônus escolà' e "bônus
péssima a atitude da FIAT e de tantas empresas privadas de fazê-lo, com a cumplicidade do mundo
universidade"389 enquanto os professores de escola elementar, média, superior e até da universidade
político-sindical). As outras partes podem ou não aceitar a oferta contratual que a FIAT propõe.
devem organizar-se em cooperativas livres. [... ] colocar as mãos no sistema fiscal. [... ] reduzida
Não é obrigatório aceitá-la; pode-se achar inadequada, inapropriada, mesmo escandalosa. É urna
a pressão fiscaP90 e construídos sistemas para reduzir a evasão. [... ] [Esta deve ser] combatida e
questão de ponto de vista [... ] (Boldrin, 2011)
reduzida por razões de justiça social (sic) e de legalidade, não porque possa milagrosamente curar
Qual é essa famosa oferta? Brancaccio (2011) esclarece:
o nosso déficit e a nossa dívida. (Boldrin, 2011)
Se olharmos as classificações baseadas sobre o EpP87 descobriremos urna realidade diversa da
pintada por Marchione388 [... ] [A Itália está] entre os oito países mais "flexíveis': com um nível geral
de proteção dos trabalhadores que é inferior aqueles que se registram não apenas na Grécia, na Como vemos nada de estrutural, nada que afete os interesses dominantes. Mas,
Alemanha, na França, na Espanha, na Bélgica, mesmo na Polônia. nada que possa efetivamente resolver os graves problemas que afetam os países capi-
talistas. Todos os pontos enunciados por Boldrin podem ser reduzidos a um elemen-
Algo similar ao custo Brasil aparece aqui. Não importam as informações insuspei- to central: a destruição das classes trabalhadoras.
tas produzidas pela OCDE os capitalistas italianos batem pesadamente na tecla da
diminuição dos direitos dos trabalhadores:

De resto quando Marchione tala que lhe convêm produzir nos Estados Unidos ou no Brasil ou
na Polônia ou na Sérvia fala a verdade. Por isto é levado a sério quando ameaça deslocalizar a
produção. Deste modo, independentemente em absoluto das intenções, ele desenvolve um papel no
dumping salarial e dos direitos que desde há muito se alastra em nível mundial. Este dumping com
387 Employment Protection Legislation, índice calculado pela OCDE para medir o grau de prote-
ção normativa e contratual dos trabalhadores e definir - implicitamente - o grau de flexibilidade do 389 Base da Reforma Pinochet no Chile sob inspiração dos Chicago Boys.
mercado de trabalho. 390 Veja-se a política levada a efeito por Bush nos Estados Unidos. Para urna visão da política exter-
388 Delegado executivo da FIAT. na americana ver, entre outros, Solo (2003) e McCoy e Reilly (2011).
CRISE E CLASSES: PROBLEMAS OU SOLUÇÕES?
AINDA SOBRE O SILÊNCIO

A teoria só é possível quando surge como reflexão sobre a própria prática


transformadora. Se não se teoria sobre estas bases, o único que se consegue
é reformular uma nova ideologia que coloca palavras para explicar a doença,
mas que não descobre as necessidades da pessoa doente.

Franco Basaglia

A diferença dos efeitos da crise sobre as classes não desaparece mesmo quando ela
parece estar contornada. O patamar da luta é sempre alterado, nunca se volta pura e
simplesmente ao passado. Contrariamente à opinião de muitos, o desenvolvimento
econômico capitalista tem como tendência fazer com que cada vez mais uma ca-
pacidade menor dos dominados de romper o círculo da pobreza e da miséria seja
real. A utilização de programas assistencialistas não rompe o fosso entre capital e
trabalho, mesmo tendo servido como forma mistificatória, sem qualquer pudor,
para criar a imagem de que se diminui a pobreza. Dilma anunciou que a Bolsa
Família em 2011 terá um aumento médio de 19,4% - em alguns casos chegará
a 45,5%. O programa Bolsa Família atinge 12,9 milhões de famílias, metade das
quais no nordeste. Com o reajuste, o benefício médio pago passará de R$ 96,00
para R$ 115,00. O menor valor pago passa de R$ 22,00 para R$ 32,00 e o maior, de
R$ 200,00 para R$ 242,00. Hoje, uma família com renda mensal de até R$ 70,00 e
com dois filhos de até 15 anos recebe R$ 112,00. Com o aumento, passará a receber
R$ 134,00 (reajuste de 19,6%).
Já o salário mínimo passaria, em 2011, de R$ 510,00 para R$ 545,00 sem ganhos
reais. A manobra é clara. Garante, a pretexto do peso sobre as contas governamen-
tais, que os capitalistas não tenham que dispender maiores somas com salários e,
por outro, manda um recado às centrais sindicais - apesar da quase total submissão
delas ao executivo - de que devem calar-se e continuar a obedecer. Para a massa
desorganizada - mas fiel eleitoralmente - um reajuste insuficiente. Assim caminha a
270 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 271

humanidade? Não. Os destinos do imenso exército dos sem -emprego, sem teto, sem economia brasileira, inclusive com significativo aumento do peso relativo das commodities nas
terra, funcionam como moeda de troca cuja subjetividade é aprisionada. exportações brasileiras. Há evidências de que desindustrialização e maior participação de capital
Hoje, no Brasil, ao lado das aposentadorias, gramas assistencialistas são as bases estrangeiro no aparelho produtivo também ocorreram no período em questão. A crescente
liberalização financeira e o regime de câmbio flexível implicam maior instabilidade. O resultado
da economia (sic) de uma enormidade de pequenas municipalidades. Em 2009, o
é que a crise internacional atingiu fortemente o país em 2009. A queda do PIE real foi de 0,6%.
IPEA391 publicou que a desigualdade social diminuíra entre os trabalhadores. O pró- (idem)
prio Luis Inácio, já cumprido mais da metade do segundo mandato, veio a público e
falou da necessidade de tirar o povo da merda, usando uma expressão que ele consi- Os programas assistenciais que impulsionaram a "legitimidade" de Luis Inácio
dera "popular': Como pode, assim mesmo, falar que deu um imenso salto no com- podem, no máximo, abrandar, ao nível das aparências, levemente as brutais contra-
bate à pobreza? Isto, apesar de tudo, tem obviamente forte impacto na popularidade dições sociais, o que não impede a resposta dos subalternos mais empobrecidos, em
presidencial. No plano virtual as grandes proclamações; no real, frente às massas, favor do establishment, e de grande parcela da mídia falar das virtudes do governo.
reconhece-se a merda em que elas vivem, para afirmar um projeto que represen- Os limites expostos por Gonçalves demonstram que a longo prazo a situação de
te a esperança para elas. Contrariamente ao slogan "a esperança venceu o medo" crise estará presente no cotidiano brasileiro. Os capitalistas não querem - e nem
comprova-se que este venceu aquela. O sintomático é que essa contradição radical podem -, a um só tempo, acumular e redistribuir renda, na medida das necessida-
é calada e recalcada, em especial, pelos meios de comunicação. Mantidas as relações des dos subalternos.
sociais capitalistas não é possível a qualquer programa assistencialista romper a jaula
de ferro da miséria ou da pobreza, impossibilidade criada pela contradição histori- Os dois efeitos duradouros e graves, seculares, da crise, são, por um lado, a injustiça social, isto é
camente determinada e essencial entre capital e trabalho. Como disse o poeta: "se se uma distribuição da renda cada vez mais concentrada, e, por outro, o enorme empobrecimento dos
mueren los pobres, se termina la democracia': bens públicos em relação aos bens privados. Com este tipo de economia, cada vez menos recursos
são alocados aos bens públicos, a instrução, a saúde, a própria segurança. O empobrecimento social é
A análise do período 2003-2010 revelou segundo Gonçalves (2011) algumas "con- o verdadeiro custo que estamos pagando pela crise, não é apenas que a economia se feche ou diminua.
clusões definitivas" sobre a evolução da renda: "fraco desempenho pelos padrões O custo histórico é um empobrecimento social da economia [... ]. [... ] As conseqüências sociais de
históricos do país"; "muito fraco desempenho quando comparado com outros pre- enorme injustiça foram enfrentadas graças às fraudes das pessoas, que aceitaram o mecanismo de
sidentes"; "retrocesso relativo no conjunto da economia mundial"; "país fortemente ganhar seus próprios soldos não do trabalho, mas do crédito e isto sancionou uma forte aliança entre
capitalismo e camadas médias, uma fraude. (Ruffolo, 2009. Grifos nossos)
atingido pela crise global em 2009"; "o processo de ajuste frente à crise global foi
influenciado significativamente pelo ciclo eleitoral e oportunismo político em 2010
Despejar bilhões de dólares em empresas e no sistema financeiro, criadores da pró-
e não se sustenta em 2011-12': Os indicadores apontados por ele são contundentes.
pria crise, além de não resolvê-la, estimula o domínio, a impunidade e a truculência
Tomemos os referentes à posição relativa no cenário econômico internacional se se
dos capitalistas. Estes só podem sobreviver ampliando sistematicamente a exploração e
considera a taxa de variação real do PIB no período 2003-10: "O Brasil ocupa a 96 a a opressão sobre os dominados.
posição no painel de 181 países': Examinando-se o PIB per capita vemos que "o Bra-
sil aumentou de US$ 7.457 em 2001-02 para US$ 10.894 em 2009-10. Entretanto, a Uma montanha de dinheiro foi injetada na economia a partir do Estado, levando a uma explosão
posição do país no ranking mundial piorou. O país passou da 66 a posição para a 71 a do déficit público também sem precedente, sem que o pensamento liberal tenha sido crítico a
posição': (idem) intervenção. Ao contrário, como nas crises passadas, o pensamento liberal justifica tal intervenção
sob a justificativa que se ela não ocorresse, os efeitos da crise seriam desastrosos. Em sua lógica,
o Brasil é um país marcado por forte vulnerabilidade externa estrutural. O passivo externo bruto proteger o capital é justificado, proteger o trabalho é produzir a ineficiência e a preguiça. 392 (Deddeca,
2009, p. 9. Grifo nosso)
ultrapassou US$ 1.292 bilhões no final de 2010. No período 2003-10 houve a reprimarização da
391 Na nota ''Achatamento da 'classe média' reduz desigualdade no Brasil': a Agência DIAP, 7-8- 392 Sobre a questão do risco estrutural do sistema lembremos que esta afirmação fazia parte da jus-
2009 afirma: ''A deterioração do mercado de trabalho, com alta do desemprego nos setores mais tificativa de FHC para o PROER. E quanto à justificativa de ineficiência e preguiça quando se trata da
qualificados e o aumento da informalidade, produziram um efeito colateral aparente~ente con~r~~i­ proteção às forças do trabalho ela foi sempre um mote capitalista contra o socialismo realmente ine-
tório: a diminuição do número de pobres no País. Na verdade, com o achatamento da classe medl~ e xistente e as medidas social-democratas ocidentais. Hayek foi o grande maestro dessa orquestração.
a melhora do salário mínimo, ao lado dos programas assistenciais, houve um nivelamento por baIXo "No caso do desemprego, a teoria dominante na Europa e na Comissão europeia consiste em dizer
do mercado de trabalho brasileiro. [... ] O próprio presidente do IPEA, Márcio Pochmann, disse que que são as indenizações por demais generosas do desemprego (o seguro desemprego) que encorajam
a redução da desigualdade se deu apenas entre os trabalhadores" (DIAP, 2009. Grifo nosso). os desempregados a permanecer nesta condição. Dito de outro modo, o desemprego seria voluntário.
Gallino, op. cit., ressalta: "Muitos dados sobre o crescimento econômico são baseados em pressupos- A ideia, revestida de termos técnicos, visa organizar a transformação de um Estado 'securitário: que
tos não realísticos. O incremento do PIE, por exemplo, resulta mais alto por causa da passagem de protege as pessoas do risco do desemprego, num Estado que as força a assumir qualquer emprego:'
milhões de pessoas da economia informal, não calculada nas estatísticas, à forma!:' (Husson, 2007)
272 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 273

Para os teóricos e práticos do capitalismo a Os contribuintes, já sobrecarregados, viram o seu dinheiro - cujo objetivo seria ajudar os bancos
a realizar empréstimos de modo que a economia pudesse sobreviver - sendo usado para pagar
[... ] igualdade seria [... ] sinônimo de uniformidade. A desigualdade é então defendida em nome do bonificações e dividendos desproporcionais. Dividendos deveriam representar um quinhão dos
direito à diferença, ao custo de uma dupla confusão entre igualdade e identidade por um lado, entre lucros; neste caso, representaram apenas um quinhão da benemerência governamental. (Stiglitz,
2009. Grifo nosso )396
desigualdade e diferença por outro. [... ]. Garantir a cada condição social igual isto desmotivaria
os indivíduos e arruinaria as bases da emulação e da concorrência. Seria então contra produtivo,
tanto para o indivíduo quanto para a coletividade. [... ] Tal é, por exemplo, a posição de Friedrich o supervisor do Tarp, Neil Barofsky adverte em seu relatório que as causas da
Hayek e de seus epígonos. De maneira análoga, a Teoria da justiça, de John Rawls, permite justificar crise não foram solucionadas; pelo contrário algumas delas se agravaram. E que os
toda desigualdade [... ]. [Este discurso] replica, em terceiro lugar, sobre o seu argumento maior:
grandes bancos que supostamente não corriam risco cresceram e continuaram a sus-
a igualdade seria sinônimo de coação, de alienação da liberdade, atingindo principalmente o "livre
funcionamento do mercado". Conduziria inevitavelmente a abrir as portas aos piores infernos tentar a farra de seus executivos. "Barofsky diz que os bancos continuam a incentivar
totalitários. (Bihr e Pfefferkorn, 2006. O último grifo é nosso) que seus executivos assumam riscos porque sabem que o governo irá resgatá-los se
necessário para evitar um contágio no sistema financeiro" (Folha de São Paulo, 31-1-
A realidade não confirma, obviamente, essa ideologia. A desigualdade produziu 2010. B4. Grifo nosso). Precisamos dizer algo mais? Revela-se a contradição entre a
apenas desigualdade, nunca a racionalidade postulada. E os neoliberais que com- ideologia proclamada e a praticada:
batem permanentemente a intervenção estatal recorrem permanentemente a este
sempre que sentem a crise decorrente da sua própria formar de realizar o governo da O resgate expôs uma profunda e generalizada hipocrisia. Aqueles que pregavam a contenção fiscal
quando as propostas se referiam a modestos programas de assistência social aos pobres passaram
economia e o governo das massas.
a apelar ruidosamente pela implementação do maior programa de assistência social do mundo.
Os que defendiam a virtude da "transparência" característica dos mercados abertos terminariam
O Departamento do Tesouro dos EUA pediu ontem [9/12] ao Congress0393 a ampliação de um ano no criando sistemas financeiros tão opacos que nem os bancos eram capazes de compreender seus
prazo do Tarp, programa federal de US$ 700 bilhões criado em 2008 para socorrer o sistema bancário balanços. E o governo se viu induzido a se envolver em formas cada vez menos transparentes de
americano. [... ] há perdas definitivas esperadas na casa dos US$ 42 bilhões. [... ] '1\ economia ainda tem resgate a fim de encobrir sua generosidade para com os bancos. Os que defendiam a "prestação de
desafios significativos. Essa extensão se faz necessária para ajudar as famílias americanas, o mercado contas" e a "responsabilidade" passaram a solicitar o perdão das dívidas do setor financeiro. (Stiglitz.
residencial e pequenos e médios negócios. Ela nos dará a capacidade de responder também a ameaças Grifo nosso)
ainda não concretizadas': disse [o secretário Timothy] Geithner:'394 (Canzian, 2009b)
Nos últimos dias de 2009, o governo Obama anunciou um novo pacote de US$ 75 bilhões destinado
à criação de empregos. [... ] O valor será adicionado ao pacote de US$ 787 bilhões aprovado pelo Aos que reclamam que os brasileiros imitam as coisas de fora devemos lembrar
Congresso em fevereiro de 2009. [... ] A grande incógnita é se o setor privado e os consumidores que o que Stiglitz aponta já teve uma edição nacional anterior de algo semelhante: o
terão força suficiente, ao longo deste ano, para substituir o impulso que as verbas estatais estão PROER, o programa salvacionista dos bancos, de FHC e as políticas ditas de trans-
dando à economia. (Canzian, 2010)
parência travestidas de Responsabilidade Fiscal só servem para impedir aumentos
salariais para os trabalhadores do Estado. Quanto às dívidas do agrobusiness, dos
o que ele não disse é que o Tarp (o PROER americano) socorreu a GM, a Chrysler bancos, etc., bem ... isto é outra história.
e muitas outras empresas falhando "em resolver problemas-chave' no setor finan-
ceiro [como] a eliminação nos balanços dos chamados 'ativos tóxicos' [... (idem) r:
395 Stiglitz especifica as consequências dessa "respostà' capitalista à crise: não foi o

socorro aos prejudicados, mas o socorro aos responsáveis pela crise. Estes ganharam
uma gorjeta gorda pela destruição que provocaram.
393 "O fato é que um tsunami de dinheiro transformou o Congresso, varrendo para longe o velho
sistema de senioridade na seleção das lideranças. Em seu lugar, os partidos aderiram a uma prática
de redes varejistas como o Wal-Mart.
Num caso único no mundo desenvolvido, os partidos representados no Congresso dos EUA cobram
pelas posições-chave no processo legislativo". (Ferguson, professor de Ciência Política da Universi-
dade de Massachusetts, 2011)
394 Timothy Geithner, Lawrence Summers, Peter Orszag, Ben Bernanke e outros homens de con- 396 Rogoff e Reinhart (2010) falam disto como uma "generosidade sem precedentes dos contri-
fiança de Obama tem sua origem em Wall Street ou no alto mundo das finanças. buintes': Apesar disso reconhecem: '1\ menos que tudo seja diferente desta vez e - isto está longe de
395 Desde a quebra do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008 até o início de dezembro de parecer verdade -, a crise financeira de ontem poderia facilmente se tornar a crise da dívida pública
2010 outros 119 bancos faliram ou foram fechados. de amanhã:' Grifo nosso.
CAPITALISMO E LOUCURA397

Ele, daqui por diante, é apenas um corpo institucionalizado que é vivido e


se vive como objeto e que - algumas vezes, enquanto não é completamente
domado - tenta, através de acting-outs aparentemente incompreensíveis,
reconquistar a qualificação de um corpo próprio, de um corpo vivido, recu-
sando identificar-se com a instituição.

Franco Basaglia

Decisivo nesse processo é a crença socialmente difundida de que o capitalismo é


a única forma social possível. Isto não impede manifestações patogênicas, devido
à adoção das práticas capitalistas, muito pelo contrário. Pesquisa realizada com
os residentes na região metropolitana de São Paulo afirma que 45% destes sofre-
ram "algum transtorno mental ao longo da vidà' (Silveira, 2009). Ressalte-se que
nesta pesquisa do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP foram
"excluídos moradores de rua, pessoas que vivem em instituições e presos" (Idem).
Ansiedade, estresse pós-traumático, fobias específicas, transtornos de pânico são
típicas da sociedade capitalista, em especial na sua fase atual. Reveladora é a ob-
servação do Ministério da Saúde segundo a qual "as prevalências dessas doenças
no Brasil seguem as taxas mundiais" (Idem). "O capitalismo mata" não é um slogan
esquerdista.
Cerroni, comentando as modificações do capitalismo vividas nos anos 70 do sécu-
lo passado afirmou a necessidade do:

reexame da questão da temática da estratificação social em relação aos processos de polarização,


salarialização e proletarização tanto quanto a emergência dos elementos subjetivos; estudo da
moderna divisão social do trabalho e coleta de dados das novas variantes que apresentam ofícios
e profissões; avaliação das tendências demográficas em relação à constituição de uma nova
397 Carrano descreve o "ser e sentir-se louco': o da impotência quase total. Ouçamo-lo: "A todo cus-
to, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do quarto. [... ] Já não sei quem sou
e o que sou. Acuado, tento fuga alucinante. Agarrado, imobilizado... Escuto parte do meu gemido.
Quem disse que só se morre uma vez:' Grifo nosso. Ver Bozanski, 2000.
276 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 277

estratificação social; análises das cidades regionais e das implicações socioeconômicas que isto Chegou-se a compreender que, nos confrontos da produção, a morbosidade pode se tornar - exatamente
comporta; incidência das comunicações de massa na formação psicológica e cultural; variantes como a saúde - um dos polos determinantes da economia geral do pais. (Basaglia e Ongaro, p. 21)
pedagógicas induzidas pelas novas técnicas e pelo crescimento de uma escolaridade de massa. [... ]
Trata-se acima de tudo da crescente tensão intelectual e psíquica no trabalho, r. ..] do mal-estar
Amarante (2010, p. 17) chama nossa atenção para o fato de que o preventismo
psicológico característico da vida das grandes metrópoles, do desequilfbrio que coloca em crise
instituições consolidadas como a família, o casamento, a relação entre gerações e entre sexos, a escola, acabou por ser "uma inédita estratégia de patologização e normalização socia140o ,
tanto quanto da crise suscitada pela desproporção entre as novas dimensões sociais da cidade e as fornecendo novas tecnologias e referências para a inscrição do sofrimento psíquico
suas velhas estruturas administrativas, técnicas, sanitárias, culturais. (1975, pp. 45 e 46. Grifo nosso) e do mal-estar social no rol das patologias:' Essa estratégia leva água ao moinho da
"predominância das atividades assistenciais, enquanto as prioridades deveriam ser
Ele chama a atenção para a necessidade teórico-política, em especial para os su- as de prevenção e promoção da saúde mental:' (idem) Segue-se o caminho da prática
balternos, de conhecer o modo de vida imposto pelas transformações do mundo médica em geral, da qual a psiquiatria que "se quer ciência" é tributária. As doenças
do capital. Sem isto estamos nos preparando objetivamente para a derrota, para a não são apenas biológicas, mas marcadas pelo modo de vida (talvez se devesse falar
perpetuação do seu silenciamento. Basaglia já examinara esse conjunto de questões em modo de morte). Embora não se possa ignorar suas bases biológicas devemos ter
em "Salute e lavoro"398. Barcelona, nessa mesma linha de argumentação, chama a clareza que as condições de vida e de trabalho em uma sociedade extremamente vio-
atenção para um campo de luta estranhamente não formulado, nem praticado pelos lenta e patogênica como a capitalista busca relocalizar aqueles que não conseguem
partidos ditos de esquerda: suportar a insuportabilidade do cotidiano nos asilos ou manicômios.401
saúde mental na comunidade:' Ver B. S. Brown, Desinstitucionalization and community systems.
É surpreendente como o tema da saúde mental dos trabalhadores de qualquer ramo, mas National Institute on Mental Hea1th, 1975. Citado por Amarante, 2010, p. 15. Brown era na ocasião
especialmente daqueles vinculados às redes informáticas, não tenha se tornado um terreno de o diretor do Instituto. Basaglia, conheceu esse programa como professor-visitante do Maimonides
luta comum e um tema unificador para uma grande parte do mundo do trabalho dependente. Hospital do Brooklin e de um Comunity Mental Health Center, afirma: ''Aqui - sob uma mesma lei
[... ] os dados sobre os efeitos de dissociação psíquica, de perda de identidade, de perda de sentido, que os informa - agem simultaneamente, as instituições da violência, com o seu significado explici-
de autonomia pessoal dos trabalhadores ligados aos computadores deveria fazer refletir sobre a tamente excludente, discriminante e destrutivo, e as instituições da tolerância as quais, por meio do
subsistência de um forte nexo entre condições de trabalho, modo de produção eprocessos de valorização novo conceito de psiquiatria social e comunitária e da interdisciplinaridade, tendem a resolver tecni-
do capital tecnológico. (1994, pp. 95-96. Grifos nossos) camente os conflitos sociais:' (Lettera da New York - Il malato artificiale, in Basaglia, 2005, p. 152).
400 No processo de constituição da psiquiatria e de sua submissão à anatomopatologia contruiu-se
uma teoria da degeneração mortal como elemento essencial do processo da doença: "Passando de
A relação entre capital e trabalho não é uma questão de pura racionalidade eco- pai para filho, as degenerações terminariam por ocasionar verdadeiras linhagens de degenerados; fa-
nômica. Elas produzem e reproduzem as subjetividades classistas e as formas pelas talidade insofismável que a humanidade deve reconhecer': comenta Amarante, p. 54. Estamos diante
de uma clara colocação de eugenia.
quais estas se conformam na realidade. 401 Qual o seu lugar do doente mental na sociedade? É o asilo "onde nenhuma vida pessoal é pos-
sível, onde tudo vos é confiscado na entrada, roupas, papéis, relógio, aliança, por vezes até mesmo
Foi o impulso destas contradições que obrigou a uma tomada de posição massiva, concretizada na lei óculos e próteses, onde sois espionado e trancafiado em todos os momentos do dia [... ]. O asilo onde
Kennedy de 1963399, que reconhece o problema da saúde mental como problema eminentemente social. cada um dos vossos gestos é relatado no caderno de observação e interpretado com animosidade,
como gesto de doente, gesto sintomático. [Local de] repressão massiva, gratuita, inútil, sádica, seus
398 in Basaglia, 2000. Piersanti chama a atenção para o nexo estudar-combater-Iutar como unidade doentes fechados, acorrentados, freados, e aqueles, daqui por diante, mais numerosos, drogados. O
insolúvel para os dominados. "Que significa, de fato, a auto gestão da saúde? Significa a superação da asilo da dissuasão, da intimidação. [... ] Da privação de saídas, de cinema, de alimentação. Da injeção
divisão social do trabalho mediante a discussão coletiva e a participação nas eleições sobre a saúde utilizada como ameaça. [... ] Do eletro choque como tortura. [... ] O asilo onde vossa palavra não tem
do trabalhador; superação da divisão entre a teoria e a prática em que se baseia toda a prática médica, curso, onde nada que dizeis será verdadeiramente ouvido [... ]." (Gentis, pp. 7-8. Grifo nosso) "O
toda faculdade de medicina e que é indispensável e possível de superar através da participação dos manicômio não fazia outra coisa que capturar estas pessoas indesejáveis e contê-las na instituição,
trabalhadores no processo da construção da saúde. em uma espécie de morte civil:' (Basaglia, 2000. Grifo nosso) Os que observarem o "dia a dia de um
É, portanto, a crítica, a superação e a destruição da faculdade de medicina como corpo superado e internado verão que esse internado nunca recebe uma resposta à suas necessidad.es. P:la manhã .0
agregado na formação dos médicos e na gestão da pesquisa. É, em troca, a participação dos estudan- doente tem levantar em uma hora determinada. Não pode levantar-se quando queIra, nao pode Sair
tes na medicina sob a direção da classe operária em um processo no qual aprender e lutar estejam da cama quando quiser. Logo tomar fármacos, pílulas quando o enfermeiro lhe servem. Em seguida
intimamente ligados um com o outro. Superação da investigação considerada como neutra por uma deve ir para a sala de estar quando o enfermeiro o indicar; mesmo para ir ao banheiro tem uma ~ora
pesquisa que se coloque claramente da parte da classe operária contra a burguesià'. (Piersanti, pp. previamente assinalada. E as diarréias são abundantes, motivo pelo qual muitos doentes se SUjam
102-103, in Basaglia et allii 1978) [... ]. Então são etiquetados "sujos", "o sujo', que é um tipo novo de nosografia psiquiátrica. Se o do-
399 Os princípios fundamentais do Plano de Saúde Mental do governo Kennedy eram: "1. a preven- ente protesta é amarrado.
ção de intervenções inadequadas em instituições psiquiátricas, procurando alternativas comunitá- Logo chega a hora da comida. O doente abre a porta e tudo já está servido; os doentes devem comer
rias para o seu tratamento. 2. retorno para a comunidade de todos os pacientes institucionalizados muito rapidamente; em continuação voltam à sala de estar. Esperam a noite, e a noite chega se~p~e
que tiveram preparo adequado para tal mudança. 3. o estabelecimento e a manutenção de sistemas muito cedo, porque os enfermeiros devem ir e o médico não está, já regressou ao seu consultono
de suporte comunitário para as pessoas não-institucionalizadas que estejam recebendo serviços de privado para atender suas consultas. Mais tarde às cinco, é hora de deitar-se; então se enche aos en-
278 Edmundo Fernandes Dias

Existe a loucura como uma das possibilidades humanas. Devemos, portanto, tomá-la como um fato coisas, das suas relações humanas por tempo indeterminado e que se pergunta com sofrimento: "o
real, como um problema inerente à contradição em que o homem está entre razão e desrazão. que eu fiz de mal?" É aquele que infringiu uma norma. É um "desviado" (Pirella, in Basaglia, 1968,
(Basaglia, 2004, pp. 10-11. Grifo nosso) p.206)
Entendamo-nos, mesmo os ricos são loucos, mas o modo de gerir a loucura de um rico é diferente
da do pobre. Sem direitos, sem afetiVidade, os chamados loucos são os subalternos por definição.
A exclusão nasce do fato que a organização social não dá à pessoa a possibilidade de gerir-se a
si próprio, mas lhe impõe de se fazer gerir por outros em um jogo de mercantilização de si, de
"O louco manicomializado não é o símbolo da alteridade do louco libertado, é ape-
objetivação de si. (idem, p. 11) nas a sua radicalização, seu futuro incontestável:' (Amarante, p. 81) Nas palavras de
Rivera (2006) "a loucura é uma das figuras mais emblemáticas da alteridade". Ainda
A loucura como ruptura - não revolucionária - da norma localiza a função dos segundo ela
doentes da mente (como Basaglia os caracteriza) em uma sociedade regulada pela
A instituição manicomial [... ] realiza exemplarmente ambos os processos: seja de estranhamento
produtividade destruidora de si mesma e dos indivíduos que dela fazem parte. Sob
e de exclusão da sociedade, seja de segregação e de incorporação, sob a forma do disciplinamento,
o capitalismo tudo é mercadoria, a loucura também. Os loucos são o não produ- daqueles outros especiais que são os que são definidos como loucos.
tivo, são Quero chamar a atenção para o conceito de incorporação, que em Basaglia me parece crucial e
que, por outro lado, é um conceito chave de qualquer reflexão atual sobre a dialética identidade/
tratados como coisas inúteis e inutilizáveis. Não produzem nada, não podem dar lucro. O alteridade. A propósito do internado no manicômio, Basaglia sublinha que ele é vítima de uma
seu lucro é a exclusão. Na nossa sociedade não há ninguém que não deva ter um mais-valor. dupla incorporação. 'Possuído' pela doença [... ] o doente acaba por ser possuído também pela
O manicômio tradicional guarda a força-doença, o lucro-doença. O lucro está na escolha de instituição manicomial405 .
dividir os marginalizados. Não se pode deixar a marginalização incontrolável; tornar-se-ia um O doente, que já sofre de uma perda de liberdade que pode ser interpretada como a doença,
elemento subversivo. Assim é desmembrada, denominam-se as categorias, dá-se o nome ao agressor: encontra-se obrigado a aderir a um novo corpo que é o da instituição, negando qualquer desejo,
I' o homossexual, o louco, a puta, o encarcerado, o drogado, etc... Para dominar a marginalização é qualquer ação, qualquer aspiração autônoma que o faria sentir-se ainda vivo e ainda si mesmo.
I

I
I.

I! necessário "cientificizá-Ia". Ao psiquiatra é delegado o controle do louco. O médico no manicômio, Torna-se um corpo vivido na instituição, pela instituição, a ponto de ser considerado como parte
como alhures o assistente social, o psicólogo, o professor etc... somos todos técnicos do controle capilar. integrante das suas próprias estruturas físicas. (idem)
(Basaglia, 2004, p. 12. Grifo nosso)402
Ele(a)s passam a ser aquilo que na linguagem se chamaria de móveis e utensílnios.
Essas instituições totais - como afirma Goffman - constituem em si mesma uma Sem vida própria não existem como homens e mulheres, mas como seres interna-
ordem40 3, organizam um mercado e as profissões a ele conexas. 404 dos para proteger a ordem vigente, para que contradições dessa ordem possam ser
geridas. Nas instituições da violência somos - tendencialmente - profissionais do
O doente mental foi por muitos anos, e ainda é, aquele a quem se pode oprimir brutalmente, o controle406 : a sociologia e a psicologia industriais, a medicina do trabalho, os assis-
cidadão privado dos seus direitos. É aquele que pode ser privado de sua liberdade pessoal, das suas
tentes sociais, em grande medida buscam a "resolução" dos conflitos (do ponto de
fermos de fármacos, de barbitúricos, porque têm que dormir, porque nada deve molestar a calma do vista patronal, é claro). Insisto, tendencialmente. Não esqueçamos de que a univer-
manicômio, a calma do pavilhão (Basaglia, 1989a, pp. 18-19)
402 Ou seja: "O capitalismo avançado produz uma série de novas normas e, consequentemente,
sidade produz profissionais não para as necessidades populares, mas para atender às
de novos desvios que, patologizados pelos saberes científicos, constituem um novo tipo de 'duplo':' exigências da chamada ordem produtiva, codinome do capitalismo.
(Amarante, p. 88) Podemos, na perspectiva gramsciana, afirmar que cada modo de vida produz seu Obviamente isto não é uma determinação mecânica, mas uma engrenagem do ca-
"duplo':
403 "O hospital atual é sempre o asilo e sua mecânica alienante. O asilo (o hospital moderno) com
pital. A realidade, como tudo em uma sociedade classista, é contraditória e existem
seu Superego e seus andares, seus hospitalizados sempre menores, irresponsáveis, perversos poli- 405 "Pensava-se que nos países liberados pela revolução socialista fosse desenvolvida uma psiquia-
mórficos, o asilo com suas grandes marionetes parentais: o Pai castrador, presente-ausente, porta-voz tria diferente, mas infelizmente nestes países, não só os manicômios normais são prisões semelhante
de todas as serralherias simbólicas, - a Mãe envolvente, aberta à todas as regressões e docemente ao Juqueri, mas foi criado um outro tipo de manicômio, o manicômio político:' (Basaglia, 2000.
mortíferà'. (Gentis, p. 12) Uma ordem, no caso a psiquiátrica, supõe sempre quem a mantêm: "Todo Grifo nosso)
mundo ou quase é cúmplice, quero dizer os administradores, os médicos, os enfermeiros, os sindi- 406 "Trata-se de uma relação de poder onde o fato de utilizar uma linguagem reciprocamente in-
catos, as famílias dos doentes, a imprensa, a opinião pública, por vezes os próprios doentes [... (p. r compreensível, não serve para manter incerto o equilíbrio de força, em uma relação na qual o valor
9) E uma utilidade: "Manter uma ordem, preservar um status quo, dissimular verdades inoportunas, dos dois termos não seja verificável. Se a incompreensibilidade do doente mental se revela na relação
interper certas questões penosas ou subversivas, fazer reentrar alguém na ordem. (p. 13) com o psiquiatra, deveria ser colocada em questão tanto o doente que não se faz compreender, quan-
404 "Isto pode suscitar multidões de especialistas. Ergoterapeutas, arte terapeutas, quinesioterapeu- to o psiquiatra que não compreende. Mas se a verdade do psiquiatra e os valores aos quais está ligada
tas, psicoterapeutas de todos os tipos e de toda obediência, monitores de expressão corporal, etc. [... ] são precedentemente estabelecidos como medida de comparação, o psiquiatra se salva garantindo a
É esta hoje a pesquisa em psiquiatria: criar técnicas, inventar novidades, cuidados, suscitar novas possibilidade de estabelecer a sua linguagem como única bloqueando o doente no papel do 'incom-
necessidades de técnicos, de especialistas, fazer crescer o consumo de cuidados': (Gentis, pp. 26-27) preensível: através de um ato de prevaricação:' (Basaglia, 197)
280 Edmundo Fernandes Dias

profissionais que escapam dessa jaula de ferro e assumem o ponto de vista das classes
subalternas. Elas devem colocar na ordem do dia rebelar-se contra essa ordem pro-
dutora de indivíduos desumanizados e quase sempre sem possibilidades de escapar
ao seu domínio, propor-se a construção de políticas que lhes interessem e não aos
dominantes: questões como saúde pública (em todos os seus âmbitos, especialmente
a mental sempre recalcada), agrárias, previdenciárias, de educação requerem políti-
cas realmente públicas. Os subalternos devem combater as políticas governamentais
de privatização, terceirização e liquidação dos direitos sociais. Aquilo que se apresen-
ta normalmente como política pública não é senão a tentativa de construção de uma
o NEOLIBERALISMO MATA
hegemonia burguesa407; não podem, portanto, resolver as graves questões sociais,
pelo contrário, as mantêm e reforçam. O mais grave é que na realidade nos anos 70
There is no alternative
Friedrich A. Hayek, então inspirador da política econômica da administração Reagan, falava dos
direitos econômicos e sociais como de uma invenção ruinosa da revolução bolchevique russa. Margaret Tatcher408
Ele não raciocinava em termos de compatibilidade ou não desses direitos com os meios financeiros
do Estado. Ele atacava, pelo contrário, os direitos em questão na raiz, na sua própria legitimidade.
Hoje, vê-se triunfar a postura de Hayek, [... ] em um contexto onde não há mais o desafio socialista.
(Losurdo, 2008. Grifo nosso)
O neoliberalismo, momento atual do capitalismo, atacou em duas direções: a pri-
meira buscando a deslegitimação do projeto comunista; a segunda, que necessitava
da primeira, liberar todas as relações mercantis409 (da destruição das leis de prote-
ção do trabalho às formas de formação educacional dos subalternos, passando pelas
reformas constitucionais, da previdência410 e até da magistratura)411. A palavra de
408 Para uma visão do regime tatcheriano ver Loach, 1990.
409 "Impondo ao resto do mundo categorias de percepção homólogas às suas estruturas sociais, os Esta-
dos Unidos refazem o mundo à sua imagem: a colonização mental que se opera através da difusão destes
conceitos verdadeiros-falsos não podem conduzir senão a uma espécie de 'Consenso de Washington' gene-
ralizado e mesmo espontâneo, como se pode observar hoje em matéria de economia, de filantropia ou de
ensino da gestão. [... ] serve de instrumento de construção de políticas públicas e privadas, ao mesmo tempo
em que instrumentos de avaliação dessas políticas:' (Bourdieu e Wacquant, 2000. Grifo nosso)
"O ingresso da China na OMC, apenas dez anos após Tiananmen, demonstra que a fórmula econô-
mica segue prevalescendo sobre a política em Pequim, Washington e Europa:' (Cerroni, 2000) Sobre
isso ver Pascuacci, 2008 e 2008a, Giacche, 2010c e Rocca (2007).
410 Neste atoleiro, o ethos do novo capitalismo em matéria de idade passa a desempenhar um papel primor-
dial, minimizando a legitimidade dos necessitados. Recentes pesquisas realizadas entre jovens trabalhadores
constataram que eles não gostam de estar pagando pelos mais velhos, e apesar de minha idade, posso entender
o que sentem. Os jovens não foram convidados a votar sobre redistribuição de renda. (Sennett, 2006, p. 96)
411 Vejam-se alguns dos documentos elaborados pelos organismos supra-nacionais do capitalismo (FMI,
Banco Mundial, Unesco). Uma leitura das páginas destes organismos é altamente ilustrativa. Apenas como
mero exemplo podemos citar os projetos de educação para o Brasil (Education, étude sectorielle. Washing-
ton: Banque Mondiale, 1971; Documento de política sectorial. Washington: Banque Mondiale, [1974];
Education, politique sectorielle. Washington, Banque Mondiale, 1980 (a); Population policy and family
planning programs: trends in policy and administration. Washington: The World Bank staff working pa-
per, n. 411, 1980 (b); Sector lending for education. Washington: The World Bank, 1981; Focus on pover-
ty: a reporto Washington: The World Bank, 1983; Lending for adjustment: an update. Washington: World
Bank News (special report), abro 1988 (a); Protecting the poor during periods of adjustment. Washington:
World Bank News, v.7, n. 36, set. 1988 (b); Improving primary education in developping countries: a review
of policy options. Preparado por Marlaine E. Lockead and Adrian M. Vespoor for the participants at the
Conference on Education for All, in Bangkok Washington: The World Bank, 1990 (a); The dividends of
learning. Washington: The World Bank, 1990 (b ).; Educación técnica y formación profisional. Washington:
407 Dias, 2007a.
282 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 283

ordem está resumida na afirmação citada na epígrafe acima. O capitalismo venceu, condições de realização e do funcionamento da 'teoria'; um programa de destruição
não há alternativa, dizem. metódica dos coletivos". (Bourdieu, 1998), Ele se materializou por uma

A atual fase do capitalismo, caracterizada por uma regressão neo-oligárquica, tende a penetrar política de desregulamentação financeira, em direção à utopia neoliberal de um mercado puro
todos os poros do social, pretendendo dar uma resposta dirigida às necessidades, com um e perfeito, [que] se realizou através da ação transformadora e, é necessário dizê-lo, destruidora
mix de privatização mercantil e complementaridade assistencial que lembra as práticas do de todas as medidas políticas (das quais a mais recente é o AMI, Acordo multilateral sobre o
capitalismo setecentesco, na medida em que obriga os indivíduos e, sobretudo os trabalhadores investimento, destinado a proteger, contra os Estados nacionais, as empresas estrangeiras e seus
[a viver na] condição de indivíduos isolados em uma negociação que a ideologia dominante investimentos), visando por em questão todas as estruturas coletivas capazes de obstaculizar a lógica
pretende paritária e é, pelo contrário, antiparitária e sem regras. (Meriggi, 2008) do mercado puro: nação, cuja margem de manobra não cessa de decrescer; grupos de trabalho,
com, por exemplo, a individualização dos salários e das carreiras em função das competências
Gambino (2010) cita Robert Frank para quem individuais e a atomização dos trabalhadores daí resultantes; coletivos de defesa dos direitos dos
trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; a própria família, que, através da constituição
de mercados por classes de idade, perde uma parte de seu controle sobre o consumo. (idem)
forma-se uma classe de expoentes do capital financeiro que "formaram o seu país virtual... um
mundo fechado em si mesmo, estrangeiros das finanças, criadores de um país próprio no país,
de uma sociedade sua na sociedade e de uma economia sua na economià: Requer a flexibilidade absoluta e regras trabalhistas altamente despóticas. O gover-
no Reagan ressuscitou "uma obscura sentença da Corte Suprema de 1938 que autoriza
O neoliberalismo é uma poderosa arma de guerra. Nas insuspeitas palavras de o emprego permanente de crumiri (juras-greve, efd) durante as greves, uma preciosa
Soros, um dos maiores especuladores mundiais, a sucata à qual nenhum empresário tinha ousado recorrer nos quarenta anos preceden-
tes" (Gambino, 2010). As propostas e necessidades concretas do capitalismo atual
globalização dos mercados financeiros, que ocorreu desde os anos 80, permitiu que o capital financeiro requerem contratos de duração determinada ou que privilegiem a possibilidade de
se movesse livremente pelo mundo, tornando difícil sua tributação ou regulamentação. Isso colocou o
trabalhadores interinos, em especial no serviço público, que se estabeleça
capital financeiro em posição privilegiada: os governos precisavam prestar mais atenção aos requisitos do
capital internacional do que às aspirações de seus povos. (Soros, 2010. Grifo nosso)
no próprio seio da empresa, a concorrência entre filiais autônomas, entre equipes obrigadas à
polivalência e, enfim, entre indivíduos, pela individualização da relação salarial: fixação de objetivos
O neoliberalism0 412 realizou "um imenso trabalho político413 [ ••• ] que visa criar as individuais; cuidados individuais de avaliação permanente; altas individualizadas dos salários ou
outorga de prêmios em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas;
Banco Mundial, 1991; Priorities and strategies for education. Washington: The World Bank, 1995 (a); e o fa- estratégias de "responsabilização" tendendo a assegurar a auto exploração de certos quadros
mosíssimo La ensefianza superior. Washington: Banco Mundial, 1995 (b) e a Declaración de Buenos Aires
que, simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo tidos como
de la Conferencia IberoAmericana de Educación (1995). Sobre essa "experiêncià' de reforma da educação
ver: Krawczyk (1994), os Documentos apresentados pela CTERA (Argentina), pela Confederación dos responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja, etc., como "independentes";
Educadores Americanos, pelo Sindicato Nacional de Trabajadores de La Educación (México) ao I Encontro exigência de "auto controle" que requer a "adesão" dos assalariados, segundo técnicas de
de Organizaciones Gremiales de Educadores de Iberoamérica (Buenos Aires, 1995). "gestão participativà: muito além dos empregos de quadros [... ]; técnicas de sujeição racional que,
412 Deveríamos ter presente a relação entre o chamado neoliberalismo e o pós-moderno. O problema é impondo o superinvestimento no trabalho, e não somente nos postos de responsabilidade, [... ],
sério pelas repercussões político-ideológicas que comporta e atualiza: "(e)nquanto [... ] a esquerda dos par- concorrendo para enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas. (idem)414
i

tidos históricos chafurdam nas fofocas sobre o pós-moderno, o pós-industrial, o pós-fordista, pós e trans
qualquer coisa:' Rossanda, 2010.
413 Ele precisa de um ''cavalo de Tróia de duas cabeças, uma política e a outra acadêmica, na pessoa dual de Aqui estão colocados os elementos decisivos para que se processe no interior da
Tony Blair e de Anthony Giddens, 'teórico autoproclamado da 'terceira via: segundo suas próprias palavras, produção a captura da subjetividade do antagonista: a concorrência entre os traba-
que é necessário citar literalmente, 'adota uma atividade positiva em relação à mundialização; 'tenta (sic) rea- 1hadores, a destruição das formas de solidariedade, a luta "em defesa da empresa':
gir às formas novas de desigualdades' mas advertindo de partida que 'os pobres de hoje não são semelhantes
aos pobres de outrora (do mesmo modo que os ricos de hoje não são como o eram em outros tempos)'; etc. Vestir a camisa da empresa é a síntese do que se requer dos trabalhadores "cha-
'aceita a ideia que os sistemas de proteção social existentes, e a estrutura do conjunto do Estado, são a fonte teação zero': Acrescente-se a isso a ideia do sindicato-cidadão e dos "planos sociais"
dos problemas, e não apenas a solução para resolvê-los'; 'sublinha o fato que as políticas econômicas e sociais como políticas assistencialistas, focalizadas, como os organismos internacionais de-
estão ligadas' para melhor afirmar 'os gastos sociais devem ser avaliados em termos de suas conseqüências
para a economia no seu conjunto; enfim se 'preocupa com os mecanismos de exclusão que ele descobre 'na 414 ''A abolição da escala móvel, os acordos de política de rendimentos de julho de 93 com a relativa
base da sociedade, mas também no alto (sic): convencido que 'redefinir a desigualdade em relação a esses introdução do mecanismo de inflação programada, a implementação do Pacote Treu e a famigerada
dois níveis' está lie acordo com uma concepção dinâmica da desigualdade: Os senhores da economia podem Lei 30, debilitaram progressivamente o poder contratual dos trabalhadores e das organizações sindi-
dormir tranqüilos: encontraram seu Pangloss:' (Bourdieu e Wacquant, 2000). "Estes estratos saíram do catá- cais. Longe de gerar efeitos positivos sobre o emprego, o único resultado tangível destas políticas foi
logo de definições escolares de suas teorias e visões políticas que Anthony Giddens propõe na rubrica 'FAQ o freio ao crescimento dos salários reais, que no melhor dos casos aumentaram menos que o cresci-
(Frequent1y Asked Questions)' do seu sítio na internet: www.lse.ac.u/Gidden_sl.. (idem) mento da produtividade do trabalho:' (Realfonzo, 2007. Grifo nosso)
284 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 285

terminam e os Estados nacionais41s (sic) expressam repetidamente em seus projetos Foundation em Frankfurt, e da ex-Fondation Saint-Simon em Paris), as fundações de filantropia, as
de soberania subalterna, que se caracteriza pela heteronomia quase absoluta. escolas do poder (Science-Po na França, a London Scholl of Economics, no Reino Unido, a Harvard
Kennedy School of Governrnent nos Estados Unidos, etc.) e as grandes mídias, infatigáveis distribuidoras
A instituição prática de um mundo darwiniano da luta de todos contra todos, em todos os níveis da desta língua franca chave, bem feita para dar aos editorialistas apresssados e aos especialistas zelosos da
hierarquia, que encontra os mecanismos da adesão à tarefa e à empresa na insegurança, o sofrimento importação-exportação cultural a ilusão do ultra modernismo. (Bourdieu e Wacquant, 2000)417
e o stress, não poderia sem dúvida ter êxito tão completamente se ela não encontrasse a cumplicidade
das disposições precarizadas que produz a insegurança e a existência, em todos os níveis da hierarquia, Desde logo certo tipo de "esquerdà' concebeu seu próprio crescimento, seja no pla-
e mesmo nos níveis os mais elevados, notadamente entre os quadros de um exército de reserva da no político, seja no plano especificamente eleitoral, como participante do jogo insti-
mão-de-obra docilizada pela precarização416 e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento
último de toda esta ordem econômica colocada sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência
tucional' do exercício das funções executivas e parlamentares; privilegiavam, assim, a
estrutural do desemprego, da precariedade e da ameaça da demissão que ele implica: a condição do governance a qualquer custo418 • Veja-se, por exemplo, a trajetória dos Jospin, na França,
funcionamento "harmonioso" do modelo microeconômico individualista é um fenômeno de massa, a os Dl\lema, na Itália, os Blair, na Inglaterra, e do Partido dos Trabalhadores, da Frente
existência do exército de reserva dos empregados. (idem. Grifos nossos) Amplia uruguaia entre outros. Um objetivo comum, ainda que em uma fase na qual o
peso da "esquerdà' era muito forte, em função dos interesses gerais de um imaginário
Palavras que lembram efetivamente as de Marx. A permanente reestruturação do capitalismo nacional tentando, fortemente, eliminar seus aspectos mais violentamente
capital requer, sempre e progressivamente, a substituição do trabalho vivo pelo tra- antissociais para destiná-los a possíveis políticas de redistribuição.
balho morto. Isto significa a permanente reestruturação do modo de vida do traba- Outro instrumento poderoso nessa articulação foi a dívida externa:
1hador que é, em última instância, a força produtiva por excelência.
[... ] entre 1985 e 2007, com a exceção de 1993 e de 1998, a transferência foi negativa: no fim de
E, entretanto, o mundo está aí, com os efeitos imediatamente visíveis da colocação em ação da contas, os governos dos países em via de desenvolvimento reembolsaram muito mais do que
grande utopia neoliberal: não somente a miséria de uma fração cada vez maior das sociedades as tinham recebido, sem por isso conseguir deixar de dever, pelo contrário.
mais avançadas economicamente, o crescimento extraordinário das diferenças entre as rendas, o [... ] O Plano Marshall para a Europa depois da Segunda Guerra mundial [foi da ordem] de 100
desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural, cinema, edição, etc., bilhões de dólares. A transferência bruta sobre a dívida pública externa no período 1985-2007 [foi]
pela imposição intrusiva dos valores comerciais, mas também e, sobretudo, a destruição de todas as -759 bilhões de dólares.
instâncias coletivas capazes de contra reatar os efeitos da máquina infernal, em primeiro lugar das O aumento do volume da dívida pública e das somas a reembolsar também golpearam duravelmente
quais o Estado [... ] e a imposição, em todos os lugares, nas altas esferas da economia e do Estado, os países mais industrializados, o que conduziu, no Norte, a uma massiva transferência de renda
ou no seio das empresas, deste tipo de darwinismo moral que, com o culto do winner, [... ] instaura dos assalariados em favor dos capitalistas. Os governos, de fato, reembolsaram as dívidas que
como normas de todas as práticas a luta de todos contra todos e o cinismo. (idem) contrataram com bancos privados ou outros investidores institucionais (seguradoras, fundos de
pensão privados, "mutual funds") com uma parte cada vez maior dos impostos pagos principalmente
pelos trabalhadores assalariados. Dos anos 80 a hoje os governos neo ou social-liberistas no
Tudo isto articulado, em escala planetária, pelos chamados Think tank, conserva- conjunto das receitas fiscais destinadas ao pagamento da dívida reduziram constantemente as taxas
dores. Aqui o elenco é grande e variado: pagas pelos capitalistas, aumentando a parte das taxas pagas pelos trabalhadores. (Toussaint, 2009)

eles se apresentam em todos os lugares ao mesmo tempo [como] instâncias pretensamente neutras
do pensamento neutro [... ] os grandes organismos internacionais - Banco Mundial, Comissão
Todo esse processo foi chamado de equilíbrio orçamentário e implementado como
européia, Organização de cooperação para o desenvolvimento econômico (OCDE) - os "boites à idées" superávit primário. Independente disso é preciso diferenciar o reformismo dessa es-
conservadores (Manhatam Institute em New York, Adam Smith Institute em Londres, Deutsche Bank tratégia de uma luta por reformas. O reformismo procura sempre uma modernização
415 "Uma instrução e formação profissional de elevada qualidade são fundamentais para consentir do existente guardando, no fundamental, as relações sociais dominantes. O erro tem
à Europa afirmar-se como sociedade do conhecimento e competir de modo eficaz na economia glo- sido opor, sem mediações, reforma e revolução. A luta, já comentada, pela jornada de
balizada. A política em matéria de instrução é decidida individualmente pelos países da UE, mas eles
fixam em conjunto os objetivos comuns e condividem as melhores práticas. Por outro lado, a UE fi-
dez horas, embora pudesse ser retraduzida pelo capitalismo, continha elementos de li-
nancia numerosos programas para permitir aos seus cidadãos melhor explorar as próprias capacida- mitação do despotismo do capital contribuindo para o avanço orgânico dos trabalhado-
des e as potencialidades econômicas da UE efetuando estudos, seguindo uma formação profissional
ou desenvolvendo uma atividade lavorativa em um outro país': União Europeia, 2009. Grifo nosso. 417 Bourdieu (l998a, p. 43) já chamara a atenção para o longo preparo dessas posições: "Penso
416 Situação que agrava a questão da credibilidade da informação: ''A característica principal des- num estudo sobre o papel da revista Preuves, que, financiada pela ClA, foi apadrinhada por grandes
ta profissão [jornalismo] é, hoje, a precarização. A maior parte dos jovens jornalistas é explorada, intelectuais franceses e que, durante 20 a 25 anos - para que algo falso se torne evidente, leva tempo
muito mal paga. Trabalham por tarefa, muitas vezes em condições pré-industriais. Mais de 80% -, produziu incansavelmente, a princípio contra o pensamento dominante, ideias que pouco a pouco
dos jornalistas recebm baixos salários. Toda a profissão vive sob ameaça constante de desemprego:' se tornaram evidentes:' (Grifo nosso)
(Ramonet, 2010). Mais agravada ainda pelo peso dos editores e dos proprietários de mídia impressa 418 Na imagem de Labica (2009, p. 33): "abutres que só esperavam o melhor momento para virar a
ou televisiva, por exemplo. casaca e transformar em sex-shops as casas do Partido:' (Grifo nosso)
286 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 287

res, não sendo apenas um elemento de minimização dos sofrimentos dos trabalhadores. com os metal mecânicos italianos com a humilhante exclusão da representante da imensa maioria dos
Este processo histórico e político do reformismo fez fermentar, dentro dos comporta- trabalhadores [... ]. [Trata-se da] perda do valor e da identidade social que o trabalho confere à atividade
humana: o oc~lt~mento da luta de classe que, com o conflito social, era a única em condições de dar
mentos sociais da "novà' e "velhà' composição de classe, na Itália perspectIva e sIgnificado ao trabalho. (Wacquant, 2008. Grifo nosso)

a chamada lógica do mínimo esforço a qual, nas várias épocas do conflito considerou possível atingir
compromissos, mais ou menos honrados, entre capital e trabalho sem jamais colocar verdadeiramente
o contrato atuou no sentido do isolamento/deslegitimação/derrota da CGIL e
em discussão as relações sociais dominantes. Não podemos negar que a obtenção deste compromisso, do seu sindicato mais representativo, a FIOM 421 • Trata-se de algo "fortemente de-
muitas vezes, requereu uma luta duríssima com custos humanos também altos. Muitas reformas e sejado pelo Governo, pela CISL e pela UIL para adequá-lo às normas do acordo
conquistas do trabalho custaram lágrimas e sangue. Este resultado, porem, foi possível em uma fase separado sobre o contrato nacional para começar [a] trianualização:' (idem) Der-
na qual o capitalismo estava ainda em constante crescimento e em condição de distribuir alegre e rotada e humilhada a FIOM vê seus dirigentes falarem de
estavelmente os seus superlucros formalizando, em alguns momentos, pactos sociais logo depois
pisoteados e despedaçados apenas os indicadores da crise indicavam problemas. Este dispositivo,
recurso à au~~ridade judiciária para fazer valer as razões que deviam estar claras para todos [... ] Quando
repetido por decênios, e com resultados concretos cada vez menores, minou, em todo o proletariado, a
consciência do próprio [...] potencial de luta e difundiu, a mãos cheias, ilusões de vário(s) tipo(s) as quais, um grupo dzrzgente recorre à magistratura mais do que à luta é porque considera não ter mais nenhuma
possibilidade de [.. .] pelo menos mudar parcialmente a situação. (idem. Grifo nosso )422
junto aos contínuos processos de reestruturação que o capital continuamente desenvolveu para garantir
a sua valorização, aceleraram todos os fatores de desagregação e fragmentação da unidade política e
material da classe com êxitos ruinosos e controláveis até nossos dias. (Franco, 2009. Grifo nosso) Implementar a atual fase do capital implicou também contradições no seio dos
dom~nantes nos planos internacional e nacional. A chamada liberalização da eco-
Ou na precisa formulação de Barcelona: nomIa aumentou, por um lado, o sistema de dependência dos países produtores de
commodities e, por outro, subordinou o sistema produtivo ao controle pelo siste-
Enfim, o conflito entre capital e trabalho não deve reduzir-se à questão da repartição dos lucros,
mas acima de tudo deve medir-se sobre a contraposição entre a lógica do capital que reduz o ma financeiro. Incentivou "uma espantosa espiral de desfiscalização competitiva na
trabalho humano a trabalho alienado e a concepção que opõe a necessidade de um papel ativo qual se encontram envolvidos daqui por diante todos os Estados, assim como todos
dos trabalhadores, não redutíveis a meros destinatários de rendas garantidas [... ]. (p. 147. Grifo os pode~e~ locais ou regionais" (Hirtt, 2004), ou seja, a guerra fiscal. Um exemplo
nosso) . em?lematlco: a luta travada pelos governos da Bahia e do Rio Grande do Sul para
abngar a Ford em troca de incentivos e isenções fiscais.
As consequências são brutais: da perda da identidade afetiva, profissional às Por fim vale a pena lembrar o famoso La France de l'an 2000 (Relatório apresen-
mais radicais reações contra a própria vida: tado ao primeiro ministro) por Alain Minc423 , Comissariado Geral do Plano da
França, sobre os desafios econômicos e sociais de 2000:
o fenômeno preocupante dos suicídios no trabalho (aproximadamente 300 por dia na França, mas não
se dispõe de estatísticas consistentes)419 que começam a ser reconhecidos como acidentes de trabalho420 421 FIOM.- Federazione Impiegati Operai Matallurgici fundada em 18 de junho de 1901 no Con-
desde a decisão adotada por uma Caixa Primária de Seguro Doença em 2007, e da difusão do consumo gresso de LIvorno; CGIL - Confederazione Generale Italiana del Lavoro fundada em 10 de outubro
de tranqüilizantes e neurolépticos nos locais de trabalho (a França está a frente dos países europeus de 19.~6; CI~L - Confederazione Italiana Sindacati Lavoratori, fundada em 30 de abril de 1959; UIL
nesse tipo de consumo). (Linhart, 2009) - .Um~o I~alIana ?o Trabalho, fundada em 5 de março de 1950, se apresenta como "O Sindicato dos
Desde que o trabalho mudou, agora ele é, em si mesmo, inseguro, há subemprego, subsalários, trabalhos CIdadaos a partIr do seu IX Congresso, Firenze, 1985.
temporários ou sem nenhum tipo de segurança empregatícia, você tem um trabalho hoje, mas não sabe se 422, ."Mandar tudo para ~ tr~bunal si~ni~ca [... ] atribuir aos magistrados um papel de árbitros da
terá um trabalho no próximo mês ou no próximo ano. Com todas essas variáveis de emprego, há pessoas polItlCa e da moral, que nao e o seu, sIgmfica dar a todas as relações sociais e pessoais um valor de
troca:' Rossanda, p. 176. Grifo nosso.
que têm férias, outras não, pessoas que têm assistência de saúde, outras não. Então, este novo trabalho
423 ~~s ano~ 80 foi criador da Fundação Saint Simon um dos centros do pensamento único e que
fragmentado é ele mesmo, um vetor de pobreza e insegurança. (Wacquant, 2008, p. 321. Grifo nosso)
reum~ JornalIstas (Serge July, Anne Sinclair, Franz Olivier Giesbert, Christine Ockrent, Jean Daniel,
Jean PIerre Elka~bach), empresários (Christian Blanc, Jean Peyrelevade, Jean Luc Lagardere, Francis
Outras consequências aparecem na tentativa de destruição das identidades so- Mer). A Fu.ndaçao tornou-.se lugar de poção do social-liberalismo. Minc foi conselheiro do patro-
na~o. E amIgo d,e perso~alId~des do mundo midiático (graças sua ação no Le Monde), industrial
ciais, das formas organizativas como no contrato feito (Pmault, B~llore, Maunce L~vy, Edouard de Rotschild, Zacharias, Proglio ... ) e político (Edouard
Balladur, NlColas Sarkozy, ThIerry Breton, Dominique Strauss-Kahn). Minc foi e é um dos assessores
419 "Um relatório publicado sobre os suicídios na FT [France Télécom], publicado pela inspetora de Sarkozy. "Alain Minc simboliza o capitalismo de conivência", afirmou Laurent Mauduit em entre-
do trabalho Sylvie Catala, em fevereiro de 2010, concluiu que o aumento do stress provado pela vi~ta ao Le Express. ''Alain Minc é um dos leading pensadores da França; é um historiador, econo-
'mobilidade coagidà era responsável pelo aumento da taxa de suicídios:' (Lantier e Lerougetel, 2011) mIsta, c~ment~do: social e guru dos negócios': segundo o The Foreign Policy Center que propõe o
420 No Brasil as Lesões por Esforços Repetitivos (LER) foram transformadas em Distúrbios Osteo-muscu- ProgressIve Thmking for A Global Age. Sobre a Fundação Saint Simon veja-se a obra de Ruy Braga
lares Relacionados ao Trabalho (DORT) que, apesar do nome, aparecem como menos importantes. A Nostalgia do Fordismo. '
288 Edmundo Fernandes Dias
.,j
Revelou-se caduco o contrato que nas democracias europeias se instaurou depois de 45 entre
as partes sociais e o estado: era baseado sobre a "compaixão" da coletividade (sic), enraizada no
mito da igualdade, saído diretamente da Revolução francesa com efeitos perniciosos. Imobilizou
a sociedade, freou as forças produtoras mais audazes [... ] Hoje é necessário outro contrato social,
fundado não na igualdade, mas sobre a equidade, isto é, sobre a possibilidade de adequar-se ao
modelo da atual economia de mercado. (Rossanda, pp. 80-81)
modelar os efeitos negativos do capitalismo, construir um capitalismo menos selvagem, menos
violento. Mas um capitalismo, no fim das contas.
[...] São subterfúgios, chamarizes, iscas. O capitalismo humanizado é a utopia de moderar os conflitos
dentro da sociedade capitalista. o GENOcíDIO NEOLIBERAL - OS "p .. : POBRE, PRETO, PRESO
[...] falar de equidade e não de igualdade é manter a injustiça que está no coração desse sistema. Eu
creio que um projeto de mudança social tem que passar pela igualdade. (Kohan, 2011, p. 12. Grifo
nosso)
Desde que assumimos, insistimos nos problemas de segurança. Prevenir e
Quem mais assinou essa análise? ''A esquerda pensante" (p. 81), diz Rossanda. punir são os dois polos da ação que empreendemos. Esses problemas estão
Faltou dizer que era uma ex-esquerda, convertida a um programa mix de social- ligados a graves fenômenos de urbanismo mal planejado, de desestruturação
democracia e neoliberalismo. Quem foi a comissão que trabalhou com Mine? Do- familiar, de miséria social, mas também de falta de integração de uma parte
'·1'
minique Balmary, Claude Bébéar, Jean-Louis Beffa, Jean Boissonnat, Michel Bon, da juventude que vive nas cidades. Aliás, isso não se constitui uma desculpa
Isabelle Bouillot, Paul Champsaur, Michel Debatisse, Jean-Paul Delevoye, Bernard para comportamentos individuais delituosos. Não se deve confundir a so-
Esambert, Luc Ferry, Jean-Paul Fitoussi, Jean-Baptiste de Foucauld, Bertrand Fra- ciologia e o direito. Cada um permanece responsável por seus atos. Enquanto
gonard, Jacques Freyssinet, François Grappotte, Pierre Guillen, Jean-Pierre Landau, aceitarmos desculpas sociológicas e não colocarmos em questão a responsabili-
Bertrand Landrieu, René Lenoir, Yves Lichtenberger, Bertrand Lobry, Gérard Maa- dade individual, não resolveremos esses problemas.
rek, Francis Mer, Edgar Morin, Christian Noyer, Michel Pébereau, Laurent Perpere,
René Rémond, Pierre Rosanvallon, Rolande Ruellan, Louis Schweitzer, Raymond George Bush (Grifo nosso)
1 i
Soubie, Michel Taly, Alain Touraine. Muitos deles conhecidos ex-comunistas, agora
anticomunistas. Claramente presente está aí a Fondation Saint -Simon que pretendeu
fazer um diálogo entre a "direita inteligente" e a "esquerda inteligente" e era conheci- o neoliberalismo exige para poder ser "aceito: uma ideologia que subverta as re-
I!'
da como o "templo do pensamento único: gras mais elementares do pensamento, seja este o senso-comum tradicional, seja
aquilo que se convencionou chamar de ciência. Precisa naturalizar a pobreza, negar
a história e impor a mais deslavada ideologia de classe. Ele responde a necessidades
objetivas do capital: o desengessamento das condições de acumulação, a criminali-
zação das classes subalternas e, acima de tudo, precisa aparecer como um programa
universal. Funciona como um remix dos séculos XVIII a XIX com uma vantagem
adicional: aparentemente não encontra adversários classistas e por isso foi possível
proclamar, ainda que por brevíssimo espaço de tempo, o fim da história. Trata de
identificar história com natureza para poder, de forma eficiente, transformar o efeito
de sua destruição monstruosa em culpa dos pobres, dos subalternos.

Toda identidade vai se descolorindo e perdendo: às de nações, classes, culturas. Toda comunidade
se despedaça. No lugar da sociedade de massa, a solidão múltipla e igual dos indivíduos; no .~os~o
dos lugares, os não-lugares onde todos se encontram e ninguém se conhece; no lugar da expene~~/a
vivida, a virtual; no lugar da democracia, a obediência "espontânea" e imaterial ao comando teleVISIVo
e massmediológico. Falta um centro ideal, um reconhecimento coletivo, um valor unificante. Nesta
290 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 291

situação renascem os fundamentalismos 424, as seitas, as valorizações das etnias, das tribos e dos Segundo The Bell Curve, o quociente intelectual determina não apenas quem entra e tem êxito na
localismos mesmo recriados artificialmente: a pesquisa de uma identidade no passado dado que não Universidade, mas ainda quem se torna mendigo ou milionário, quem vive nos sacramentos do
é mais possível esperá-la no futuro. (Luperini, 2007. Grifo nosso) matrimonio em vez de numa união livre ('as uniões ilegítimas - um dos mais importantes problemas
sociais de nossa época - estão fortemente ligados ao nível de inteligência"), se uma mãe educa
Os «zeladores do Novo Estado neoliberal': na sintética expressão de Wacquant convenientemente seus filhos ou se os ignora, e quem cumpre conscienciosamente seus deveres cívicos
('as crianças mais inteligentes de todas as classes sociais, mesmo entre os mais pobres, aprendem mais
(2001, p. 12), pretendem construir «um arquipélago de ilhotas de opulência e de pri-
rápido como funciona o Estado e são mais suscetíveis de se informar e discutir assuntos políticos e deles
vilégios perdidas no seio de um oceano frio de miséria, de medo e desprezo pelo ou- participar.") Como é de se esperar, o QI também governa a propensão ao crime e ao encarceramento:
tro': (idem, p. 13) Seus ideólogos construíram instituições pseudo-acadêmicas como alguém se torna criminoso não porque sofre de privações materiais. "Muitas pessoas se inclinam a
o Manhattan Institute com a finalidade de não apenas legitimar o neoliberalismo nos pensar que os criminosos são pessoas oriundas dos "bairros ruins" da cidade. Têm razão no sentido de
Estados Unidos, mas internacionalizá -lo: que é nesses bairros que residem de maneira desproporcional as pessoas de baixa capacidade cognitiva.
(idem, p. 15. Grifos nossos)
Em 1984, o organismo criado por Anthony Fischer (o mentor de Margaret Tatcher) e William
Casey (que pouco depois se tornará diretor da CIA) para aplicar os princípios da economia de Este lixo ideológico - que tem a mesma credibilidade das teses racistas hitlerianas -
mercado aos problemas sociais põe em circulação Losing Ground, obra de Murray que servirá entra em choque com uma das mais caras ideologias liberais: a do livre arbítrio. Esta,
de "bíblià' para a cruzada contra o Estado-providência de Ronald Reagan. Segundo esse livro, por seu turno, é a base da teoria da responsabilidade individual. A democracia «genéticà'
oportunamente publicado para dar um aval pseudo-erudito à enérgica política de desengajamento
(!!!) resultante da Bell Curve nega não apenas a história e a ideologia do self made man,
social implementada pelo governo republicano (com o consentimento do Congresso de maioria
democrática), a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos mais pobres seria responsável pela mas fundamentalmente qualquer possibilidade de liberdade política. Todos os concei-
escalada da pobreza nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e induz degenerescência tos de uma sociedade neovitoriana no solo americano são aqui afirmados. A debilidade
moral das classes populares, sobretudo essas uniões "ilegítimas" que são a causa última de todos os e incapacidade são produzidas, para estes pseudocientistas, por características que nada
males das sociedades modernas - entre os quais a "violência urbanà: (idem, 1999, p. 14) tem de naturalidade: «uniões ilegítimas': [... ] «compreensão do Estado" (leia-se aceitação),
«propensão ao crime e ao encarceramento': «pessoas oriundas dos bairros ruins da cidade':
Os pobres não são apenas culpados pela situação em que vivem. Eles são, quase etc. Tudo isso comandado por uma «baixa capacidade cognitiva" que ninguém explica e
que naturalmente, desprovidos de capacidades «cognitivas': Murray que parece uma fatalidade, um destino. Os pobres são assim condenados à negação de
direitos, quando muito «beneficiam-se" (sic) - cada vez menos - de um assistencialismo
alimentou a crônica midiática com este autentico tratado de racismo erudito, escrito em colaboração
com Richard Hemstein, psicólogo de Harvard, que é The Bell Curve: Inteligence and Class Structure
insuficiente para atender suas necessidades. Tudo isso só porque são pobres não tendo
in American Life, que sustenta que as desigualdades raciais e de classe na América refletem as os meios para sair desse inferno.
diferenças individuais de "capacidade cognitivà: (idem, p. 15) Há quem diga que a «origem do crime não é nem demográfica, nem econômica,
nem cultural, nem 'químico-medicamentosà (ligada a toxicomania): sua 'gênese so-
Aqui sem nenhuma prova científica e nos melhores moldes hitlerianos atribui-se ao cial remotà é apenas um embuste, ou um conto-do-vigário, a escolher': (Wacquant,
efeito o estatuto de causa. Pratica normal entre certo tipo de acadêmicos norte-america- 2001, p. 59) Tal é a «doutà' afirmação de Alain Bauer e Xavier Raufer425 , Violências
nos cuja «ciêncià' é a mera «confirmação" (sic) da ideologia dominante. É clássico o caso e insegurança urbanas, Coleção Que Sais Je?, 1999 (citado por Wacquant, 2001, p.
da atribuição de um QI fronteiriço a indivíduos de nações indígenas nos Estados Uni- 58). «Para além de todas as teorias de inspiração sociológica, a origem mais certa do
dos quando se aplicou a elas o teste de Rorschach. Obviamente tal prática - consciente crime é o próprio criminoso." (idem) «David Courtwright, historiador neodarwinista
ou inconscientemente - deixava de lado o simples fato de que esse teste trabalhava com segundo o qual a violência na América seria produto das 'sociedades de celibatários'
valores e associações livres de ideias ao pretender validade universal para o imaginário vivendo em um ambiente de 'fronteira' que dá livre curso à 'bioquímica da espécie hu-
dos indivíduos americanos. QI fronteiriço era tomado praticamente sinônimo de inca- mana": (idem, p. 57. Grifo nossso)
pacidade para a vida civil. Agora se reproduz algo similar. 425 "Raufer é o diretor de estudos do Centre Universitaire de Recherches sur les Menaces Crimi-
nelles Contemporaines (o nome já é em si um programa completo) a Universidade de Paris Panté-
on- Sorbonne e professor do Institut de Criminologie de Paris, mas também - e a contracapa da
424 Rivera (2005b) critica o anti-islamismo como prática social: ao fazer esse movimento ideológico obra omite essa informação - um fundador do grupo de extrema-direita Occident Chrétien. Antigo
de uma sociedade "que ao mesmo tempo encoraja um delírio de massa idólatra quando da morte de vice-presidente da Universidade de Paris Pantéon-Sorbonne, lecionando ciência política também
um papa; ou ainda repreender a esquerda altermundista quando esta pensa que é necessário tentar no Institut des Hautes-Études de Sécurité Intérieure [... ]. Bauer é um participante obrigatório dos
dialogar com os jovens desfavorecidos do próprio banlieu se têm a idéia de se definir como muçul- colóquios sobre a 'violência urbana', onde de passagem recruta a clientela da AB Associates, 'grupo de
mano:' Bush afirmou: "nosso estilo de vida é inegociável" (idem) consultoria em segurança urbanà, do qual é o executivo-chefe:' (Wacquant, 2001, p. 58-59).
292
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 293

Trata-se, portanto, de um genocídio praticado pelo capital com a anuência, tole- terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade social no seio do
rância e interesse do Estado capitalista: Estado. Uma estatística: em 1992, a polícia militar de São Paulo matou 1.470 civis - contra 24 mortos
pela polícia de Nova York e 25 pela de Los Angeles -, o que representa um quarto das vítimas da
A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende redimir com "mais Estado" metrópole naquele ano. É de longe o recorde absoluto das Américas. Essa violência policial inscreve-
policial. e penite~ciário o "menos Estado" econômico e social que é a própria causa da escalada se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda
generalIzada da msegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar,
Segundo Mundo. quando a luta contra a "subversão internà' se disfarçou em repressão aos delinquentes. Ela apoia-se
[... ] a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos - ancorado numa visão numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras
de lo~go 'prazo guiada ~elos va~o~es da justiça social e de solidariedade e seu tratamento penal _ e doutores, os "selvagens" e os "cultos': que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos,
qu~ VIS~ as parce!a~ maIS refratanas do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem.
eleItoraIS e do~ pamcos orquestrad?s por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual Um terceiro fator complica gravemente o problema: o recorte da hierarquia de classes e a
a Eu~~pa se ve, atualmente na esteIra dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente estratificação etno-racial e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e
c~~cIaIs nos paIS~S recentemente industrializados da América do sul, como o Brasil e seus principais judiciária. [... ] Penalizar a miséria significa aqui "tornar" invisível o problema negro e assentar a
VIzmhos, Argentma, Chile, Paraguai e Peru. (Wacquant, 2001, pp. 8-9) dominação racial dando-lhe um aval de Estado. (idem, pp. 5-6)

Wacquant mostra como é possível eliminar os subalternos da vida política. Asilos, Essa oposição entre feras e doutores, selvagens e cultos, possibilita que a popula-
abrigos, cadeias são a sua perspectiva426 • Se o culpado do crime é o criminoso, se a ção, como um todo, confunda marginais, trabalhadores e criminosos, e assim aceite
sociedade não tem nenhuma responsabilidade, se o capitalismo é o reino da liber- como verdadeira uma barbaridade que é a identificação entre manutenção da ordem
dade há que se esperar que algum dia um cientista descubra o "gens da violêncià: de classe e a manutenção da ordem pública. O discurso da barbárie é sempre biná-
da bioquímica da espécie humana. Remember Cesare Lombroso. Isso, contudo, traz rio: positivo/ negativo. A palavra chave é "ordem": mas iguala-se o complemento
um problema em um país dominado pela "mania do direito": se tudo se reduz a Bell "de classe" com o de "públicà: Ordem das classes dominantes = ordem pública. Esse
Curve e aos "gens defeituosos" pode ser gerada uma impunidade criminal de larga deslizamento semântico permite o apagamento simbólico da violência de classe. A
escal~. Ond.e n~o há respo~sabilização por atos o caminho fica aberto para a justi- defesa dos direitos do homem é vista como se fosse uma tolerância em relação aos
ficaçao fasclstOlde da tolerancia zero e similares. Nega-se o que há de mais óbvio: a bandidos que gozariam de privilégios, coisa tornada banal pelos programas de ra-
história continuada da repressão sobre os "p": pobre, preto, presos durante toda a dio e televisão que majoritariamente privilegiam essa perspectiva. Privilégios que na
história brasileira, mas não apenas nela. As estatísticas demonstram claramente essa realidade são exatamente o oposto do que efetivamente ocorre: prisões sem a menor
ditadura de classe e de etnia: condição com excesso de população carcerária (mais de cem presos onde caberiam ape-
nas dez, por exemplo), torturas, sevícias, abusos sexuais.
Assim, ~ ~~tir de 1:89, a morte violenta é a principal causa de mortalidade no país, com o índice
de homlCIdlOS no Rio de Janeiro, em São Paulo e Recife atingindo 40 para cada 100.000 habitantes Uma última razão, de simples bom senso, milita contra um recurso acrescido ao sistema carcerário
ao passo que o índice nacional supera 20.000 para cada 100.000 (ou seja duas vezes o índice norte~ para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos no Brasil. É o estado apavorante das
americano do início dos anos 90 e 20 vezes o nível de países da Europa ocidental). A difusão das armas prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas
~e fogo ~ o desenvolvimento fulminante de uma economia estruturada da droga ligada ao tráfico públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo
mter~aclOnal, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo para alguma função penalógica - dissuasão, neutralização ou reinserção. O sistema penitenciário
do cnme por toda parte no espaço público (idem, p. 5. Grifo nosso) brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma
escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do
Isso vale para a imensa maioria das sociedades capitalistas. No Brasil as chamadas público428 [... ]. (idem, p. 7)
',1

I
forças da ordem têm um papel central e essencialíssimo: agravam a situação já de
por si brutal. E, last but not least, inocentes sem qualquer condenação ou mesmo processo perma-
necem anos a fio, sem qualquer acesso
o uso, r?tin~i~o da vi?lência letal ~;la polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte 428 "Com 170.000 detentos, o Brasil exibe uma população carcerária três vezes maior que a da Fran-
~a polICIa CI-;:l (atraves d_o uso d~ . pimen~~nhà'427 e do "pau-de-ararà' para fazer os suspeitos ça, para um índice de encarceramento nacional de 95 detentos para cada 100.000 habitantes, próxi-
confessarem ), as execuçoes sumanas e os desaparecimentos" inexplicados geram um clima de mo aos índices dos principais países europeus, mas que esconde fortes disparidades regionais: em
426 Sobre isso ver de Wacquant: A raça como crime cívico, Punishing the Poor, Da escravidão ao 1995, data do mais recente censo penitenciário disponível, atingia 175 para cada 100.000 habitantes
encarceramento de massa e Deadly Symbiosis entre outros. no estado de São Paulo, 164 no Mato Grosso do Sul, 150 na Paraíba e perto de 130 em Rondônia, Rio
427 Não nos esqueçamos do uso da "caveirão" nas favelas e comunidades pobres do Rio de Janeiro. de Janeiro e Distrito Federal (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Censo Peni-
tenciário de 1995, Departamento Penitenciário Nacional, 1998):' (citado por Wacquant, 2001, p. 15)
294 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 295

à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde cujo resultado é a aceleração dramática três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das
da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares; violência pandêmica entre responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com a obrigação quantitativa de
os detentos, sob a forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos [... ]. [... ] (cujo resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico
ponto máximo permanece o massacre do Carandiru, em 1992, quando a polícia militar matou 111 consultável em microcomputadores a bordos dos carros de patrulha) que permite a redistribuição
detentos em uma orgia selvagem estatal de uma outra era, e que se desdobra em uma impunidade contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação
praticamente total. (idem) inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os
atentados aos costumes, simples ameaças e "outros comportamentos antissociais associados aos
Os Estados Unidos visto como o "o solo clássico do sistema penitenciário" nas pa- sem teto: segundo a terminologia de Kelling431.
lavras do liberal Alexis de Tocqueville, resolve o conjunto das contradições criadas [... ] O Segundo trunfo de Brantton é a extraordinária expansão dos recursos que Nova York destina
à manutenção da ordem, uma vez que em cinco anos a cidade aumentou seu orçamento para a
pelo neoliberalism0429 pelo "encarceramento dos miseráveis':
polícia em 40% para atingir 2,6 milhões de dólares (ou seja quatro vezes mais do que as verbas
dos hospitais públicos, por exemplo), ostentando um verdadeiro exército de 12.000 policiais para
o novo senso comum penal visando criminalizar a miséria - e, por vezes, normatizar o trabalho um efetivo total de mais de 46.000 empregados em 1999, dos quais 38.600 agentes uniformizados.
assalariado precário - concebido nos Estados Unidos se internacionaliza - sob formas mais ou Comparativamente, nesse período, os serviços sociais da cidade veem suas verbas cortadas em um
menos modificadas e irreconhecíveis, a exemplo da ideologia econômica e social fundada no terço, perdendo 8.000 postos de trabalho para acabar com apenas 13.400 funcionários.
individualismo e na mercantilização, da qual ele é a tradução e o complemento em matéria de [... ] se compararmos os resultados de Nova York aos de San Diego, outra grande cidade que aplica a
"justiçà: (idem, p. 11)
community policing entre 1993 e 1996, a metrópole californiana exibe uma queda da criminalidade
idêntica à de Nova York, mas ao preço de um aumento do efetivo policial de apenas 6%. O número
Estabelece-se, assim, um novo e rentável instrumento de acumulação de capital e de detenções efetuadas pelas forças da ordem diminui em 15% em três anos em San Diego, ao
de concentração de renda. passo que aumenta em 24% em Nova York, atingindo a cifra astronômica de 314.292 pessoas presas
em 1996 (o efetivo de interpelados por infrações menores à legislação sobre drogas duplica, para
Entre essas instâncias, o Ministério da Justiça federal [estadunidense] (que promove periodicamente superar 54.000, ou seja, mais de mil pessoas por semana). Enfim o número das queixas contra a
verdadeiras campanhas de desinformação sobre a criminalidade e o sistema carcerário) e o polícia diminui em 10% na costa do Pacífico, ao passo que cresce em 60% na cidade de Giuliani.
Departamento de Estado ([ ... ] que por intermédio de suas embaixadas, milita ativamente, em (idem, pp. 16, 17 e 18)
todos os países anfitriões, em prol de políticas penais ultra repressivas, particularmente em
matéria de drogas), os organismos para-públicos e profissionais, ligados à administração policial Os resultados não podiam ser melhores.
e penitenciária ([ ... ] American Correctional Association, American Jail Association, sindicatos de
agentes penitenciários, etc.), assim como as associações de defesa das vítimas do crime, as mídias e Segundo a National Urban League, em dois anos essa brigada, que roda em carros comuns e opera
as empresas privadas participantes do grande boom da economia carcerária (firmas de carceragem, à paisana, deteve e revistou na rua 45.000 pessoas sob mera suspeita baseada na roupa, o aspecto, o
de saúde penitenciária, de construção, de tecnologias de identificação e de vigilância, escritórios de comportamento e - acima de qualquer outro indício - a cor da pele. Mais de 37.000 dessas detenções
arquitetura, de seguros, de corretagem, etc.). (idem, p. 13) se revelaram imotivadas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram consideradas nulas
e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções justificadas: uma em
É preciso justificar "cientificamente" as transformações que foram sendo realiza- onze. Uma investigação levada a cabo pelo jornal New York Daily News sugere que perto de 80%
das. Alguns pseudocientistas emprestam, por bons soldos, seus nomes. São os "inte- dos jovens homens negros e latinos da cidade foram detidos e revistados pelo menos uma vez pelas
forças da ordem.
lectuais orgânicos da repressão':
De fato, os incidentes com a polícia se multiplicaram desde a implantação da política de "qualidade
de vidà' uma vez que o número de queixas feitas diante do Civilian Complaint Review Board
o objetivo d[a] reorganização [policial implementada por William Bratton430 ]: refrear o medo das de Nova York aumentou bruscamente em 60% entre 1992 e 1994. [... ] Só os afro-americanos
classes médias e superiores - as que votam - por meio da perseguição permanente dos pobres realizaram 53% das queixas, quando não representam mais de 20% da população da cidade. E 80%
nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô, etc.). Usam para isso dos requerimentos contra violências e abusos por parte dos policiais foram registrados em apenas
21 dos 76 distritos entre os mais pobres da cidade. (Wacquant, 2004, pp. 35-36)
429 Na síntese de Galeano (2002, p. 85): "Os Estados deixam de ser empresários e tornam-se poli-
ciais. / Os presidentes se transformam em gerentes de empresas estrangeiras. / Os ministros da Eco-
nomia são bons tradutores. / Os industriais se transformam em importadores. / Os mais dependentes Embriaguez, jogatina, mendicância, atentados aos costumes e simples ameaças
cada vez mais das sobras dos menos. / Os trabalhadores perdem seus trabalhos. / Os agricultores
perdem suas terrinhas. / As crianças perdem sua infância. / Os jovens perdem a vontade de acreditar.
são um modo fácil de penalizar os pobres e, ao mesmo tempo, mostrar serviço. Os
/ Os velhos perdem sua aposentadoria. / 'A vida é uma loterià, opinam os que ganham:' 431 "Seu (de Kelling) Center for Civic Iniciative, cujo objetivo é 'pesquisar e publicar soluções criati-
430 Segundo Brantton: "'Estou pronto a comparar o meu staff administrativo com qualquer empresa vas para os problemas urbanos baseados no livre mercado~' Entre seus colaboradores estava Richard
da lista Fortune 500: declara com orgulho o novo 'executivo-chefe do NYPD: que examina religiosa- Schwartz, "o arquiteto dos programas de trabalho forçado (workfare) da administração Giuliani e
mente a evolução das estatísticas criminais: 'Conseguem imaginar um banqueiro que não verificasse executivo chefe da Oportunity of America (firma privada de 'colocação de emprego dos destinatá-
suas contas todos os dias?": (Wacquant, 2001, pp. 27-28) rios das ajudas sociais)': (Wacquant, 2001, p. 25. Grifo nosso) Oportunity! ironia maior é impossível!
296 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 297

teóricos da tolerância zero têm a resposta pronta: são «comportamentos antissociais oparadoxo quer que esta tática de acossamento policial se espalhe de uma extremidade a outra do planeta
associados aos sem teto': Não importam os fatos, importa que se limpem as cidades no exato momento em que é seriamente questionada em Nova York, depois do assassinato, em janeiro de
1999, de Amadou Diallo, um jovem imigrante da Guiné de 22 anos abatido por 41 balas de revólver (das
dessa população sobrante, desses homens e mulheres supérfluos que sequer conse- quais 19 acertaram o alvo) por quatro policiais membros da "Unidade de Luta contra os Crimes de Rua"
guem trabalhar, porque trabalho para eles ou não existe ou são trabalhos forçados que perseguiam um suposto estuprador, ao passo que ele estava tranquilo, sozinho, na portaria de seu
que as forças da ordem (do «tirà' da rua ao presidente da república, passando pelos prédio. Esse assassinato policial, que aconteceu depois do 'caso Abner Louima", um imigrante haitiano
magistrados e pelos burocratas de diversa categoria) assim o impõem. vítima de tortura sexual em um posto policial de Manhattan no ano precedente, desencadeou a mais
ampla campanha de desobediência civil que os Estados Unidos conheceram depois de anos. Ao longo
de dois meses, manifestações cotidianas foram realizadas em frente ao escritório da direção da polícia
Em The New Politics ofPoverty: The Nonworking Poor in America, [... ] [Lawrence] Mead argumenta
municipal, quando 1.200 manifestantes pacíficos - entre os quais o antigo prefeito de Nova York David
que a questão social que domina as sociedades avançadas - tanto na América como na Europa
Dinkins, presidente da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), e policiais
(embora com atraso) - não é mais "a igualdade econômicà: noção obsoleta, mas a "dependência dos
aposentados - foram presos, algemados e acusados de "distúrbios à ordem pública". (idem, pp. 34-35.
pobres" incapazes de trabalhar por incompetência social e imperícia moral: "Precisamos de uma
Grifo nosso)
nova linguagem política que faça da competência o objeto e não o postulado do debate. Precisamos
saber como e porque os pobres são merecedores, ou não, e de que tipos de pressão podem
influenciar sobre seu comportamento:' Daí se deduz que uma "nova política do comportamento Falamos em internacionalização da «criminologia neocon" americana. Tanto na
individual': desvencilhada dos restos do "sociologismd' que até aqui viciou toda abordagem do Inglaterra quanto na França a situação se agravou. O problema era o mesmo: a cri-
problema, supondo exageradamente que a miséria tinha causas sociais, suplanta "a reforma social:'
minalização do movimento dos trabalhadores e a liberação (dita eufemisticamente
(Wacquant, 2004, p. 45. Grifo nosso)
de flexibilização) das regras do trabalh0 432 • Um parêntese: o trabalho nunca foi tão
regulamentado como agora, com a diferença de sê-lo a partir das necessidades obje-
o programa repressivo necessita, ainda assim, de uma legitimação ideológica. A
tivas do capital. As soluções? Obviamente as mesmas.
ideia de competência seria «uma nova linguagem políticà' que localizaria o debate e
suas soluções. Avaliar os pobres: «saber como e porque os pobres são merecedores, a redefinição das missões do Estado, que, em toda parte, se retira da arena econômica e afirma
ou não, e que tipos de pensão podem influenciar sobre seu comportamento:' A lógi- a necessidade de reduzir seu papel social e de ampliar, endurecendo-a, sua intervenção penal. O
ca capitalista é levada às últimas consequências: é preciso uma nova institucionali- Estado-providência europeu deveria doravante ser enxugado, depois punir suas ovelhas dispersas
dade baseada na culpabilidade presumida dos pobres. e reforçar a "segurançà: definida estritamente em termos físicos e não em termos de riscos de vida
(salarial, social, médico, educativo, etc.), ao nível de prioridade da ação pública. (idem, p. 18)
Em 1998, os 77 juízes da corte criminal de Nova York, que exercem jurisdição sobre os delitos e
infrações menores (simples misdeamenors passíveis de pelo menos um ano de prisão), examinaram Os pseudo cientistas que programaram as modificações americanas, programam
275.379 casos, ou seja mais de 3.500 cada um, o dobro do número de casos examinados em 1993 agora também as europeias, não importando se, por exemplo, na Inglaterra o gover-
com praticamente os mesmos meios. [00'] (cada public defender cuida em média de 100 casos ao nante seja Tony Blair, dito político da Terceira Via433 • Lembremos que dessa famosa
mesmo tempo) [00']
A sobrecarga dos tribunais só encontra similar nas casas de detenção, uma vez que o fluxo dos 432 No Brasil essa flexibilização, ou melhor essa tentativa largamente exitosa de destruição da pro-
ingressos nas prisões da cidade passou de 106.900 em 1993 para 133.300 em 1997, ao passo que mal teção ao trabalho passou pela "força ideológica presente na conversão de trabalhadores em pequenos
e micro-empresários a Lei 9468/97 instituiu os Planos de Demissão Voluntária (PDV) com a fina-
superava os 85.000 10 anos antes (número já superior ao volume de detenções em toda a França).
lidade de reduzir os quadros de pessoal na administração pública. [00'] a Lei 9601/98 radicalizou a
Mas, sobretudo, confirma-se que um número considerável e incessantemente crescente de detenções
flexibilização dos contratos de trabalho e da legislação trabalhista instituindo o contrato temporário
e prisões se efetivou sem motivo judiciário: assim, sobre 345.130 detenções operadas em 1998 - de trabalho e reduzindo o percentual de contribuição do FGTS de 8% para 2%, estipulando que o tra-
número que, fato inédito, é superior ao número total de crimes e delitos oficialmente registrados balhador contratado sob esta forma não tivesse direito a receber em caso de demissão, nem os 40% de
pelas autoridades naquele ano, ou seja, 326.130 -, 18.000 foram anuladas pelo procurador antes multa sobre o Fundo, nem o aviso prévio. [00'] permitiu ainda a introdução do Banco de Horas, desde
mesmo que as pessoas presas passassem diante de um juiz, e 140.000 outras foram declaradas sem que convencionado entre patrões e trabalhadores:' (Bosi, p. 58), etc., etc. E ainda falam que o Estado
motivo pela corte. (idem, pp. 37-38) não é o gerente coletivo da ordem burguesaoo. Apenas como resultado desse processo - somado com
a reestruturação capitalista e as novas tecnologias - a categoria dos bancários passou de 1 milhão de
trabalhadores em 1986 para 497 000 em 1999 segundo os dados de Liliana Segnini citada por Bosi
Como podem os juízes julgar 3.500 casos? Como podem os defensores públicos (idem, p. 59) e os trabalhadores em indústria automobilística no período 1982-2000 tiveram uma
defender, ao mesmo tempo, 100 casos? Pode chamar-se a isso justiça? Pode-se, desde redução no seu contingente nacional de 107 mil para 89 mil, "enquanto o índice de produtividade
que se acrescente «de classe': Os problemas se multiplicam, independentemente da cresceu de 8% para 19%" nesse período segundo os dados da Anfavea (idem).
433 Wacquant (2010, p. 203) fala dessa política como sendo liberal-personalista "já que ele é liberal e
vontade dos dominantes. permissivo na parte de cima, em relação às empresas e às classes privilegiadas, e paternalista e autori-
tário na parte de baixo, em relação àqueles que [00'] foram capturados pela reestruturação do emprego
e pelo refluxo das proteções sociais ou sua reconversão em instrumentos de vigilância e disciplina:'
298 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 299

"governança responsável" faziam parte de Bill Clinton, Felipe Gonzalez, Massimo Blair faz questão de ser absolutamente claro:
d'Alema, Gerhard Schrõeder, Leonel Jospin, Fernando Henrique Cardoso e, par cau-
se, Anthony Giddens, da London School ofEconomics434 • É importante dizer que já não toleramos mais as infrações menores. O princípio básico neste caso é
dizer que, sim, é justo ser intolerante para com os sem-teto na rua. (citado por Wacquant, 2001, p.
Do lado britânico, o Adam Smith Institute, o Center for Policy Studies e o Institute of Economic 51. Grifo nosso)
Affairs (IEA) trabalharam combinados pela propagação das concepções neoliberais em matéria [Trata-se da supressão da] divisão em classes sociais, vantajosamente substituída pela oposição
econômica e social, mas também pela das teses punitivas elaboradas nos Estados Unidos e técnica e moral entre os "competentes" e os "incompetentes", os "responsáveis" e os "irresponsáveis",
introduzidas sob John Major antes de serem retomadas e ampliadas por Tony Blair. [... ] no final em que as desigualdades sociais já não são senão um reflexo dessas diferenças de "personalidades"
de 1989, o IEA (criado, como o Manhattan Institute, por Anthony Fisher, sob o alto patrocínio [... ] [e sobre a qual] não pode ter influência nenhuma política pública. Essa visão ultra liberal
intelectual de Friedrich Von Hayek) [... ]. (idem, p. 39) coexiste curiosamente com a concepção autoritarista de um Estado paternal que deve ao mesmo
tempo fazer respeitar "civilidades" elementares e impor o trabalho assalariado desqualificado e mal
remunerado àqueles que não o desejem. Trabalho social e trabalho policial obedecem à uma mesma
o acento moralista funciona aqui como uma casamata da ordem. Há que substituir lógica de controle e reeducação das condutas dos membros claudicantes ou incompetentes da
as causas econômico-políticas pela degradação familiar ao estilo das Workhouses, classe trabalhadora. [O que é apresentado como] "perspectivas cristãs sobre uma política pública em
instrumentos de vigilância e reeducação de pobres e mendigos. O sistema prisional crise" [... l. (idem, pp. 47-48. Grifos nossos)
- tipo Panóptico de Jeremy Bentham - estava associado às formas de uma família
castrada e castradora. Para talos ministros de Tory Blair trabalharam ativamente: Isto só é possível pela repressão pura e simplesmente. Instaura-se a

Frank Field, [ ... ] responsável pelo setor do welfare no seio do Partido Trabalhista e futuro ministro dos "tolerância zero': toque de recolher, denúncia histérica da "violência dos jovens" (isto é, dos jovens
Assuntos Sociais de Tony Blair preconiza medidas punitivas visando impedir as jovens mães de terem ditos imigrantes dos bairros435 sob quarentena econômica), foco nos pequenos traficantes de droga,
filhos e pressionar os "pais ausentes" a assumir os encargos financeiros de sua progenitora ilegítima. Vê- relaxamento ou atenuação da fronteira jurídica entre menores e adultos, prisões para jovens várias
se assim desenhar-se um franco consenso entre a direita americana mais reacionária e a autoproclamada vezes reincidentes, privatização dos serviços de justiça, etc. (idem, p. 52)
vanguarda da "nova esquerda" europeia em torno da ideia segundo a qual os "maus pobres" devem ser
capturados pela mão (de ferro) do Estado e seus comportamentos, corrigidos pela reprovação pública e Vale a pena essa política, afirmam não apenas os capitalistas em geral, mas aqueles
pela intensificação das coerções administrativas e sanções penais. (idem, p. 40. Grifo)
que cuidam do sistema penitenciário privado. Veja-se, por exemplo, a

Lawrence Mead, 1he New Paternalism, mostrou que Corrections Corporation of America, primeira firma de encarceramento dos Estados Unidos -
pelo volume de negócios (mais de 400 milhões de dólares), o número de detentos (perto de 50.000)
A política tradicional de luta contra a pobreza adota um enfoque "compensatório": procura remediar e o rendimento de seus títulos no mercado de ações Nasdaq (seu valor se multiplicou por 40 em
os déficits de rendimentos e de qualificações de que sofrem os pobres em virtude das desvantagens 10 anos), que Sir Edward Gardiner, presidente da Comissão de Assuntos Internos da Câmara dos
de seu meio social. [... ] Em contraste, os programas paternalistas insistem nas obrigações. Sua ideia Lordes, conseguiu descobrir as virtudes da privatização penitenciária e instar a Inglaterra a internar-
central é que os pobres precisam de apoio, mas exigem, sobretudo uma estrutura. E compete ao se no caminho dos presídios com fins lucrativos. Isso antes de se tornar ele próprio membro do
Estado fazer respeitar as regras de comportamento. Esse aspecto de "manutenção da ordem" da conselho de administração de uma das principais empresas que dividem o suculento mercado da
política social serve à liberdade da maioria, mas pretende também servir à liberdade dos pobres. punição, uma vez que o número de reclusos nas prisões privadas da Inglaterra aumentou de 200 em
(citado por Wacquant, 2001, p. 45. Grifo nosso) 1993 para quase 4.000 hoje. (idem, p. 54. O livro de Wacquant é de 1996)

Aqui Polichinelo mostra claramente sua vontade: A lição dessa nova penalidade é absolutamente clara e consciente:

os programas paternalistas [... ] têm como objetivo - o que não constitui surpresa nem acaso - Os países importadores dos instrumentos americanos de uma penalidade resolutamente agressiva,
duas populações que, em larga medida, se superpõem e completam: os beneficiários de ajudas adaptada às missões ampliadas que competem às instituições policiais e penitenciárias na sociedade
sociais aos indigentes e os clientes do sistema de justiça penal, ou seja, as mulheres e as crianças do neoliberal avançada - reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele próprio é
(sub)proletariado no que concerne ao welfare, e seus maridos, pais, irmãos e filhos, para o que diz atingido pela impotência econômica, impor ao novo proletariado um salário precário, engaiolar
respeito ao sistema penal. Mead preconiza, portanto, "mais Estado" no duplo plano penal e social, 435 Essa questão é facilitada pelos hábitos culturais, seja pelo ódio da população dita nacional.. Um
mas sob a condição expressa de que este "social" funcione como elemento penal disfarçado, como dos elementos desse processo é a chamada luta entre crucifixos e foulards. Na França essa luta foi
instrumento de vigilância e disciplina dos beneficiários, remetendo-os diretamente a seu homólogo artificialmente maximizada por interesses eleitorais de Sarkozy. Em Milão a deputada pós-fascista
criminal em caso de fraqueza. (idem, pp. 45-46) Daniela Santanché tenta retirar o véu de uma muçulmana. Diante do clamor público ela afirmou ter
agido assim para: "ajudar essas mulheres a libertar-se da coação da burca:'(Rivera, 2010a) Sobre toda
434 Recentemente pego pelo convênio da LSE com o governo Gadafi. essa questão ver o citado artigo de Rivera.
300 Edmundo Fernandes Dias

os inúteis e os indesejáveis da ordem social nascente -, não se contentam em receber passivamente


essas ferramentas. (idem, p. 53)
Se os guetos negros e os barrios mexicanos e porto-riquenhos dos Estados Unidos concentram
tantas "patologias urbanas': é em razão da dupla rejeição de casta e de classe, de que padecem de
saída seus habitantes, e do investimento urbano e social levado a cabo durante 25 anos pelo Estado
americano, e não por efeito de uma dinâmica behaviorista endógena que veria os riachos dos
"pequenos delitos" irem naturalmente fazer transbordar o rio caudaloso das grandes "violências
urbanas': (idem, pp. 60-61)

ESTADO-PENITENCIÁRIO: O PARAíso DO NEOLIBERALISMO

Longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação e falência


do setor público, a irresistível ascensão do Estado penal americano constitui
algo assim como seu negativo - no sentido de avesso, mas também de reve-
lador - porque traduz a implementação de uma política de criminalização
da miséria que é complemento indispensável da impossibilidade do trabalho
assalariado precário e mal pago como obrigação cidadã, assim como da nova
configuração dos programas sociais em um sentido restritivo e punitivo que
lhe é concomitante. No momento de sua institucionalização na América do
Norte de meados do século XIX, "a reclusão era antes de tudo um método
visando o controle das populações desviantes dependentes': e os detentos,
principalmente pobres e imigrantes europeus recém-chegados ao Novo
Mundo. Em nossos dias, o aparelho carcerário americano desempenha um
papel análogo com respeito aos grupos que se tornaram supérfluos ou in-
congruentes pela dupla reestruturação da relação social e da caridade do Es-
tado: as frações decadentes da classe operária e os negros pobres das cidades.
Ao fazer isso, ele assume um lugar central no sistema dos instrumentos do
governo da miséria, na encruzilhada do mercado de trabalho desqualificado,
guetos urbanos e serviços sociais "reformados" com vistas a apoiar a discipli-
na do trabalho assalariado dessocializado.

Lõic Wacquant

De algum modo essa visão concorda com o pensamento do assessor de Fujimori:


pobre é a solução. Não qualquer pobre, é claro, mas aqueles que ou se submetem
à ordem do Capital ativa ou passivamente ou são capturados pelos tentáculos do
estado policial estadunidense. Não é verdade, e nunca o foi, que a classe operária foi
ao paraíso.

Às vezes se esquece um pouco rápido: os opulentos Estados Unidos, que estão prestes a "cruzar a
ponte rumo ao século XXI" sob as exortações entusiastas de William Jefferson Clinton, contam
oficialmente com 35 milhões de pobres, para uma taxa de pobreza duas ou três vezes maior que a
302 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 303

dos países da Europa ocidental e que atinge sobretudo as crianças - para cada cinco crianças norte É verdade que os Estados Unidos - e depois deles o Reino Unido e a Nova Zelândia - reduziram fortemente
americanas de menos de seis anos, uma cresce na miséria, e uma em duas na comunidade negra. A seus gastos sociais, praticamente erradicaram os sindicatos e podaram vigorosamente as regras de contratação,
população oficialmente considerada como "muito pobre': ou seja, sobrevivendo com menos de 50% de demissão (sobretudo), de modo a instituir o chamado trabalho assalariado flexível como verdadeira norma
da quantia do "limite de pobrezà' oficial (limite regularmente reduzido ao longo dos anos), dobrou de emprego, até mesmo de cidadania, via a instauração de programas de trabalho forçado (workfare) para os
entre 1975 e 1995 para atingir 14 milhões de pessoas, e o abismo econômico que a separa do restante beneficiários de ajuda social439• [ ••• ] as verbas sociais destinadas às famílias pobres são as menores dos grandes
do país não cessa de se alargay436. (Wacquant, 2001, pp. 77-78. Grifo nosso). países industrializados [... ] e alcançaram seu mínimo desde 1973. Assim a principal ajuda social (AFDC,
subsídio para mães solteiras) caiu 47% em valor real entre 1975 e 1995, ao passo que sua taxa de cobertura
se reduziu a menos da metade das famílias monoparentais, contra os dois terços que abrangia no início
Esse é o quadro real que está mais para Law and Order, Criminal Minds et caterva desse período. Em 1996, esse programa foi substituído por um dispositivo que estabelece uma cota de
do que para os fabulosos (e patéticos) filmes hollywoodianos. Mesmo sem querer a cinco anos de ajuda acumulados em uma vida e faz do emprego sub-remunerado uma condição para
situação é colocada pela forma consistente pelos seriados policiais, onde criminosos, a assistência, embora não crie nenhum emprego, ao passo que corta em um quinto os orçamentos de
promotores e tribunais ocupam o espaço das TV s, dos cinemas e, acima de tudo, do ajuda. Quarenta e cinco milhões de americanos (dos quais 12 milhões de crianças) estão desprovidos de
cobertura médica [...]. Trinta milhões sofrem de fom~ e desnutrição crônicas. Sete milhões vivem na rua ou
imaginário popular. Não podemos deixar de considerar que o avanço da riqueza e a
sem abrigo adequado, depois que as verbas federais alocadas para o âmbito social foram reduzidas em 80%,
disseminação da miséria nesta "ilha da fantasià' caminham pari passu. desprezando-se a inflação da década de 80. (Wacquant, 2001, pp. 77- 78. Grifo nosso )441

os índices de desemprego efetivo, segundo a própria declaração do Ministério do Trabalho, estão


A intolerabilidade desta situação onde racismo, miséria, inexistência de empregos
mais próximos de 8 do que de 4%, e ultrapassam comodamente 30 a 50% nos bairros segregados
das grandes cidades. Além disso um terço dos assalariados americanos ganha muito pouco para leva a movimentos de resistência (ainda que muitas vezes passivos e impotentes).
transpor o "limite de pobreza" oficial, ou seja, 15.150 dólares por ano para uma família de quatro Pobre, preto, hispano hablante e proletário é uma combinação que se "resolve" pelo
pessoas. É verdade que o salário mínimo de 1997 é inferior em 20% ao de 1967 em valor real, e que a seu encarceramento em massa:
remuneração horária média caiu 16% entre 1979 e 1995 para os operários e 12% para os empregados
de serviços (no caso, homens). A criação de empregos é decerto um sucesso em termos de volume [Em 1984], os efetivos encarcerados haviam saltado para 740.000, antes de superar 1,5 milhão
bruto, mas foi feita em detrimento dos trabalhadores pouco qualificados: estes últimos ganham em
em 1995 para roçar os dois milhões no final de 1998, com um crescimento anual médio de
média 44% menos que seus homólogos europeus, não dispondo, em sua maioria, nem de cobertura
quase 8% durante a década de 90 442 • Se fosse uma cidade, o sistema carcerário norte-americano
médica (para dois terços entre eles), nem de aposentadoria (quatro casos em cinco), ao passo que seria hoje a quarta maior metrópole do país.
trabalham em média cinco semanas a mais por ano 437• [... ] perto de 650 detentos para cada 100.000 habitantes em 1997 - são seis a 12 vezes superiores aos
De fato, os frutos do crescimento americano das duas últimas décadas foram abocanhados por uma
minúscula casta de privilegiados: 95% do saldo de 1,1 trilhão de dólares gerado entre 1979 e 1996 439 "Criminalização das proteções sociais que conduz à substituição do direito coletivo ao seguro contra
caíram nas algibeiras dos 5% mais ricos dos americanos438 . [...] Em 1998, o diretor de uma grande o desemprego e a pobreza pela obrigação individual de atividade (workfare nos Estados Unidos e na Grã-
firma norte-americana típica ganhava 10,9 milhões de dólares anuais, ou seja, seis vezes mais do que -Bretanha, emprego ALE na Bélgica, PARE e RMA na França, reforma Hartz na Alemanha, etc.) com o
em 1990, ao passo que, mesmo com a prosperidade alcançada, o salário operário médio não aumentou intuito de impor o assalariado dessocializado como horizonte normal do trabalho para o novo proletariado
no período senão 28%, isto é, apenas ao ritmo da inflação, para estacionar em 29.267 dólares. Como urbano dos serviços. Reforço e extensão do aparelho punitivo centralizado nos bairros deserdados das
consequência, os diretores de empresas ganham hoje 419 vezes mais do que os trabalhadores braçais, cidades centrais e das periferias, onde se acumulam as desordens e a desesperança engendradas pelo duplo
movimento de retração do Estado nos âmbitos econômicos e sociais:' (Wacquant, 2010, pp. 200-201)
contra ''apenas'' 42 vezes uma década atrás (essa defasagem eleva-se atualmente a 20 contra um e
440 O Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), publicado em 8 de ju-
35 contra um no Japão e na Grã-Bretanha, respectivamente). A remuneração dos quadros de
lho de 2003) é absolutamente claro: "O relatório indica que 54 países são hoje mais pobres do que em 1990.
direção americanos atingiu tais píncaros, sobretudo, por intermédio dos "estoques opcionais': que
Em 21 países, uma proporção maior da população passa fome. Em 14 países, mais crianças morrem antes
até mesmo os chantres midiáticos do capitalismo selvagem, como Business Week e Wall Street, se de atingirem 5 anos de idade. O indicador de desenvolvimento humano (IDH), que mede longevidade e
queixam da rapacidade e da prosperidade dos dirigentes de empresa locais. (Wacquant, 2001, pp. saúde, está em declínio. [... ] Mais de 10 milhões de crianças morrem a cada ano de doenças que poderiam
79-80. Grifo nosso) ser evitadas; mais de 500 mil mulheres morrem durante a gestação ou no parto. Há 38 milhões de pessoas
vivendo com AIDS. A tuberculose faz a cada ano 2 milhões de vítimas:' (Labica, 2009, p. 32)
441 A FAO se reuniu para discutir sobre segurança alimentar e declarou que "depois da crise, em 2007, ela
A desproporção é brutal, mas é a lógica do funcionamento desse american way havia previsto corretamente quando afirmou que, após a crise financeira, mais de 100 milhões de indivídu-
Df death. os alcançariam rapidamente as fileiras daqueles que, a cada manhã, se perguntam se encontrarão alguma
coisa para comer antes da noite:' (Gallino, 2009c. Grifo nosso) A situação piorou. "Hoje também temos o
436 Cf. Children Defense Fund, The State of Americàs Children, Boston, Beacon Press 1998 e La- maior número de famintos em 40 anos, segundo o braço da ONU para a agricultura e alimentação: quase 1
wrence Mishel, Jared Bernstein e John Schmidt, The State of Working America, 1996-1997, Nova bilhão. [... ] Em 2009-2010, o mundo cultivou 2,3 bilhões de toneladas métricas de cereais; Do total, 46% foi
York, M. E. Sharpex, pp. 304-307. Citado por Wacquant, 200l. para a boca de pessoas, 34% foi para animais e 18% foi para máquinas - biocombustível, plásticos. Nosso
437 Richard Freeman, "Le modele économique américain à l'épreuve de la comparaison", Actes de La sistema econômico não precifica gente que passa fome. A fome é economicamente invisível. Não é que não
Recherche en Sciences Sociales, 124, setembro de 1968, pp. 36-48. Freeman era à época economista possamos alimentar as pessoas - com o que se planta agora, poderíamos alimentar de 9 bilhões a 11 bilhões.
de Harvard e diretor do programa de emprego do National Bureau of Economic Research. O problema é que os pobres não têm renda:' (Cohen, 2011)
438 Idem. 442 Segundo as diversas publicações do Bureau ofJustice Statistics do Ministério Federal da Justiça.
I
,li,

I
304 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 305
I
II

dos países da União Européia, ao passo que se situavam em um espectro de um a três vezes há trinta Entre 1979 e 1990, os gastos penitenciários dos estados cresceram 325% a título de funcionamento
anos. Apenas a Rússia, cujo índice dobrou desde a derrocada do império soviético para se aproximar e 612% no capítulo da construção, ou seja, três vezes mais rápidos do que os créditos militares a
de 750 para cada 100.000, está hoje em condições de disputar com os Estados Unidos o título de nível federal, que todavia gozaram de favores excepcionais sob as presidências de Ronald Reagan
campeão mundial do encarceramento. e George Bush. Desde 1992, quatro estados destinavam mais de um bilhão de dólares ao sistema
[... ] De modo que se contam hoje 5,7 milhões de americanos nas "mãos da Justiçà: número que carcerário: a Califórnia (3,2 bilhões), o estado de Nova York (2,1), o Texas (1,3) e a Flórida
representa quase 5% dos homens de mais de 18 anos e um homem negro em cada cinco. (Wacquant, (1,1). No total, em 1993, os Estados Unidos gastaram 50% a mais com suas prisões que com a
2001, pp. 81-82 e 84. Grifos nossos) administração judiciária (32 bilhões contra 21), quando 10 anos antes os orçamentos dessas duas
administrações eram idênticos (em torno de sete bilhões cada uma). E a partir de 1985, os créditos
para funcionamento das penitenciárias superaram anualmente o montante destinado ao principal
Realizar esse processo é criar outra insuportabilidade, a da permanente vigilância e
programa de ajuda social, Aid to Families with Dependent Children (AFDC), ou ainda, as somas
criminalização dessa população supérflua e, tendencialmente criminosa. destinadas à ajuda alimentar às famílias pobres (Food Stamps). (Wacquant, 2001, pp. 86-87)

Resultado da nova sinergia entre as funções de "capturà' e de "observação" do aparelho penal,


Defender o capital tem seus riscos, logo seus agentes de segurança devem ter salá-
existem hoje perto de 55 milhões de "fichas criminais" (contra 35 milhões a uma década), referentes
a cerca de 30 milhões de indivíduos, ou seja, quase um terço da população adulta masculina do rios superiores à média dos trabalhadores. Os educadores pelo contrário vem viven-
país! O acesso a esses bancos de dados está permitido não apenas as administrações públicas, como do um longo processo não apenas dos seus salários, mas das condições de trabalho.
o FBI ou o INS (encarregado da vigilância dos estrangeiros) e os serviços sociais, mas também, em
certos casos, a pessoas e o organismos privados. Esses "rap sheets" são corriqueiramente utilizados, Seu salário médio [de um guarda californiano] era de 14.400 dólares por ano em 1980; eleva-se
por exemplo, pelos empregadores para descartar os aspirantes a emprego com antecedentes. E não atualmente a 55.000 dólares, ou seja, 30% a mais que um professor assistente na Universidade da
importa que os dados que aí figuram sejam frequentemente incorretos, prescritos ou anódinos, Califórnia. Em uma década, a Califórnia engoliu 5,3 bilhões de dólares construindo e renovando
até mesmo ilegais. Sua circulação coloca não apenas os criminosos e os simples suspeitos de delitos celas, e contratou mais de 10 bilhões de dívidas obrigatórias para fazê-lo. Cada novo estabelecimento
na alça de mira do aparato policial e penal, mas também suas famílias, seus amigos, seus vizinhos e custa em média a bagatela de 200 milhões de dólares para 4.000 detentos e requer a contratação
seus bairros. A tal ponto que uma dúzia de estados, entre os quais o Illinois, a Flórida e o Texas, de mil guardas. Nesse período, as autoridades não conseguiram verbas necessárias para inaugurar
disponibilizou esses arquivos em sites da Internet, o que permite a qualquer um ter acesso, sem um novo campus universitário, promessa de longa data, a fim de dar vazão ao aumento contínuo da
o menor controle ou justificação, ao prontuário judicial de um condenado. (Wacquant, 2004, pp. quantidade de estudantes.
84-85. Grifo nosso) [.. ] Assim, enquanto os créditos penitenciários do país aumentavam 95% em dólares constantes
entre 1979 e 1989, o orçamento dos hospitais estagnava, o dos liceus diminuía em 2% e o da
o Estado policial providenciou e providencia a formação de um exército indus- assistência social, em 41 %. (Wacquant, 2001, p. 88. Grifo nosso)
trial-penitenciário de reserva.
Na lógica do "trabalhador como solução" atinge-se ao clímax de sua expropriação
A propriedade da força de trabalho se reduz agora à uma propriedade nua, todos os seus atributos, ao fazer com que o prisioneiro e sua família, marcados pela punibilidade capitalista
seus dados, estão sob o controle das empresas e do Estado. O fim da vida privada, registrada pelo paguem para "morar" na cadeia:
direito penal, se inscreve na organização atual da produção, que faz do conjunto do tempo e do
espaço da vida um elemento de valorização do capital. A redução das liberdades públicas graças duas dezenas de estados e várias dezenas de condados urbanos "faturam" a jornada de detenção
às legislações antiterroristas, assim como o desmantelamento do direito de greve pelo recurso de seus prisioneiros, cobram "gastos com documentação': fazem pagar as refeições e impõem um
sistemático aos tribunais, entravam toda reação coletiva face ao desmantelamento do direito do pedágio para se ter acesso à enfermaria, assim como diversos adicionais para acesso aos serviços do
trabalho e do direito social. Aqui, o direito penal de exceção opera uma inversão do local primordial estabelecimento (lavanderia, oficina, eletricidade, telefone, etc.). (Wacquant, 2001, p. 89)
que ocupava o direito do trabalho durante o primeiro período do estado monopolista.
[... ] Atualmente, a mutação do direito penal, que conduz à supressão do habeas corpus e que
localiza o conjunto das populações sob um controle permanente, transforma profundamente as Não deixa de ser uma ironia perversa considerar direitos garantidos na lei como ser-
modalidades da propriedade da força de trabalho "livre': (Paye, 2009) viços. Gastos com documentação, alimentação e enfermaria são necessidades para os
prisioneiros como para quaisquer outros habitantes, eufemisticamente chamados de
Para tanto é preciso transferir, regressivamente, os recursos públicos: mais cadeias, cidadãos. O sistema penal americano introduz nas penitenciárias cada vez mais os pe-
mais guardas, menos serviços sociais. O famoso (e falso) slogan do Estado mínimo quenos delinquentes: os policiais e todo o Estado-policial precisa mostrar resultados. Os
oculta - o que é visível pela sua translucidez - ser ele o estado mínimo dos direitos e grandes criminosos (p. ex. os banqueiros que levaram à grande crise que se está vivendo
recursos sociais e máximo para a ordem do Capital e de seus agentes privilegiados: são inimputáveis e até ganham benefícios extras). Não estamos negando a existência de
os órgãos de repressão. crimes reais (estupros, assassinatos, etc.), mas alei de classe que rege o sistema acaba por
marcar com o racismo, a criminalização de desempregados (em especial dos negros e
306 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 307

latinos jovens), o preconceito contra os que dissentem a estatística que exclui até mesmo Gera-se assim uma nova forma de enriquecimento e o aparecimento de um novo
do mercado um grande contingente de pessoas. A ramo da burguesia, a que vive dessa punibilidade. Daí o

Inglaterra, cabeça-de-ponte da "norte-americanização" das práticas e das instituições penais na desenvolvimento frenético de uma indústria privada da carceragem. Nascida em 1983, esta já conseguiu
Europa - como demonstra, entre outras coisas, a Lei sobre o crime e a desordem, de 1998, que englobar perto de 7% da população carcerária (ou seja, l32.000 lugares contra cerca de 15.000 em
suprime a doZe incapax para as crianças de 10 a 13 anos, instaura toques de recolher para menores 1990). Fortalecida com uma taxa de crescimento anual de 45%, sua participação no mercado está
de 10 anos, e autoriza o regime de liberdade vigiada para pré-adolescentes a partir de 10 anos e sua destinada a triplicar nos próximos cinco anos para se aproximar dos 350.000 detentos (sete vezes a
detenção a contar dos 12 por motivo de "conduta antissocial': (Wacquant, 2001, p. l35) população carcerária francesa). [... ]
Em 1995, com 22 milhões de adultos, os negros forneciam um contingente de 767.000 detentos, 999.000
condenados colocados em liberdade vigiada e 325.000 outros em liberdade condicional, para uma taxa
o crescimento carcerário é visto como algo interessante porque é voz corrente global de tutela penal de 9,4%. Entre os brancos, uma estimativa alta de 1,9% para 163 milhões de
entre "especialistas" que esse tipo de trabalho dos presos é um modo importante de adultos, ou seja, cinco vezes menos. No que diz ao encarceramento stricto sensu, a defasagem entre
prática produtiva. Esse modelo racista espalhou-se por todas as partes: dos Estados as duas comunidades é de 1 para 7,5% e foi crescendo durante a década passada: 528 contra 3.544
Unidos à Nova Zelândia. para 100.000 adultos em 1985, 919 contra 6.926 10 anos mais tarde. Em probabilidade acumulada na
duração de uma vida, um homem negro tem mais de uma chance sobre quatro de purgar pelo menos
um ano de prisão e um latino, uma chance sobre seis contra uma chance sobre 23 de um branco.
Com efeito, por toda a Europa, os estrangeiros, os imigrantes não-ocidentais ditos de "segunda
geração' (e que justamente não o são) e as pessoas de cor, que compõem as categorias mais (Wacquant, 2001, pp. 90,93-94)444
vulneráveis tanto no mercado de emprego quanto em face ao setor assistencial do Estado, devido
ao seu recrutamento de classe mais baixo e das discriminações múltiplas que lhes são infligi das, E para os que normalmente se "iludem" é preciso afirmar a tese da prova do real,
estão maciçamente representadas no seio da população carcerária - e isso num nível comparável ou seja examinar com atenção o que se passa na sociedade, sem confundir nosso
em muitos lugares à "desproporcionalidade" que atinge os negros nos Estados Unidos. Assim é que
na Inglaterra, onde a questão da criminalidade de rua tende a se confundir, tanto na percepção
desejo com o reaL
pública quanto nas práticas policiais, com a presença visível e reivindicatória dos súditos do
Império chegados das Caraíbas, os negros são sete vezes mais suscetíveis de serem presos do que Paradoxalmente, os governos de esquerda demandam a organização penal mais que os governos
seus homólogos brancos ou de extração asiática (e as mulheres afro-antilhanas 10 vezes mais). Essa de direita, porque convertidos à visão neoliberal em matéria econômica e social, acabam
se colocando em situação de déficit de legitimidade. Reafirma-se o direito à "seguridade"
sobre representação443 é particularmente flagrante entre os detidos "caídos" por porte ou tráfico de
drogas, dos quais mais da metade é negra, e por roubo, onde essa proporção se aproxima de dois com muito mais vigor quando se é incapaz de assegurar o direito ao trabalho, uma vez que,
terços. (Wacquant, 2001, p. 108) nesse domínio, pede-se que sejamos resignados diante do "Estado que não pode fazer tudo".
(Wacquant, 1999)445

A política neoliberal aplicada ao sistema carcerário ocorre em países que o imagi- 444 Trata-se daquilo que Wacquant (2004, p. 99) chama com uma cruel ironia uma "política de affir-
mative action carcerárià'. Cruel mas absolutamente precisa: essa ação afirmativa é praticada à larga,
nário popular vê como liberais ou pelo menos progressistas como a enquanto que as demais - qualquer que seja nosso julgamento - por elas, são abandonadas. O X do
problema? Cui bonos? Sobre a população carcerária americana Labica (2009, p. 18) cita o trabalho
Holanda, líder europeu inconteste em matéria de panoptismo administrativo. Desde sua guinada de Nils Christie, Lindustrie de la punition, Éditions Autrement, Paris, 2003.
neoliberal sob o governo de Wim Wok no início dos anos 90, ela coloca a ênfase nas "obrigações" 445 "Quando a 'guerra à pobrezà de Lyndon B. Johnson foi substituída pela 'guerra da seguridade
das pessoas assistidas pelo Estado, e além de recorrer ao sistema penitenciário (cuja capacidade de social' de Ronald Regan [... ], a questão da conexão social entre raça, classe e pobreza se reformulou
ocupação triplicou entre 1985 e 1995), desenvolveu múltiplos dispositivos que colocam sob supervisão em termos das motivações pessoais, as normas familiares e os valores grupais dos residentes das zonas
permanente os beneficiários de ajudas sociais, os estrangeiros e os jovens considerados "de risco: cêntricas arruinadas das grandes cidades e se adjudicOU à seguridade social o papel de vilão. De ma-
neira correspondente, também se reduziram as metas da política governamental: em vez de perseguir
Assim, os arquivos sociais holandeses estão diretamente conectados aos da administração fiscal, de
a erradicação da pobreza - o objetivo otimista que, de acordo com o programa da Grande Sociedade,
modo a serem capazes de detectar e penalizar os "assistidos'; que aliás, teriam um emprego. Uma série
devia alcançar por volta de 1976 como uma homenagem ao bicentenário da nação - e a diminuição das
de medidas legislativas, culminando na lei sobre a conexão dos arquivos de 1998 (De Kopperlingswet), disparidades raciais, o Estado se conforma hoje com supervisar a contenção da primeira em ruinosos
levou as administrações do Estado a colocarem seus bancos de dados em rede a fim de barrar o acesso enclaves para minorias (e nos cárceres que se construíram em ritmo assombroso na década passada
de imigrantes irregulares ao mercado de trabalho assim como ao conjunto dos serviços públicos, para absorver a seus ocupantes mais dissociadores) e com a 'ignorância benignà das segundas. C?n-
educação, alojamento, cobertura social, saúde. Tendo por efeito perverso mergulhar essas populações sequentemente, o ponto central da investigação social se deslocou da linha de cor urbana aos d~fel~os
na clandestinidade mais adiante, obliterar os direitos elementares (à assistência jurídica, à escolarização individuais dos negros pobres, do gueto como mecanismo de dominação racial e opressão economlCa
dos filhos e à assistência médica de urgência, entre outros) que lhes são reconhecidos pelas convenções [Cf. Kenneth B. Clark, Dark Ghetto: Dilemmas of Social Power, New York, Harper, 1965; Elliot Liebow,
internacionais, nas quais a Holanda figura entre os primeiros signatários, e estimular um vasto comércio Tally's Comer: A Study ofNegro Streetcorner Men, Boston, Little, Brown and Co, 1967; Lee Rainwatte.r,
de documentos falsos. (Wacquant, 2001, p. 126) Behind Ghetto Walls, Chicago, Aldine, 190.], e os impedimentos políticos e econômicos estr~tu,raIs
que obstróem a participação plena desses negros pobres na coletividade nacional, às 'patologIas da
443 A tradução fala em sub-representação o que contradiz o sentido do texto. assim chamada infra classe que presumidamente habita nesse gueto e as medidas punitivas que podem

___________-._______________________________IIR'!!!!'IIIllIi!II!~--"""."'.""'-. "..."..
2

308
Edmundo Fernandes Dias

É. também uma form~ d~ mascarar os índices reais de desemprego: "os Estados


UnIdos mostraram um IndlCe de desemprego superior ao da União Européia em 18
dos últimos 20 anos (1974-94)': (Wacquant, 2001, p. 97) O crescimento exponencial
do sistema carcerário tem efeitos contraditórios: "se por um lado embeleza a curto
prazo a situação do emprego diminuindo a oferta de trabalho, num prazo mais lon-
go só poderá agravá -la, tornando milhões de pessoas praticamente inempregáveis':
(idem)

OS INTELECTUAIS COMO DIREÇÃO DOS SUBALTERNOS

Mas o que é a hegemonia? É produção de sentido comum pela cultura política.


Diferente da produção de opinião pública, enquanto maioria quantitativa do
consenso. Esta não tem necessidade de cultura. Basta a comunicação. [... ] Hege-
monia, produção de sentido comum, intelectual de massa. Terreno delicadíssi-
mo, e estratégico. Porque sobre ele se apoia, se funda a orientação das elites.

Mario Tronti

A questão das direções, dos intelectuais, está colocada. A tarefa dos intelectuais das
classes subalternas é construir com elas, e não sobre elas, a inteligibilidade do real, a
crítica aos mitos imobilizantes, a possibilidade da elaboração de projetos e práticas
de transformação social. Atuar no sentido de que se possa decifrar o procedimento
mistificatório é começar um processo de emancipação ideológico, de construção da
sua própria identidade. Se, pelo contrário, essas direções se recusam a elaborar e tra-
tam de repetir ad nauseam os discursos vigentes, aprofunda-se o desconhecimento
do real, fortalece-se a dominação capitalista.
O mito de um desenvolvimento industrial como portador da emancipação hu-
mana foi proclamado pela socialdemocracia e pelo próprio stalinismo como uma
fatalidade. Sobre isto é sempre salutar a leitura das Teses sobre o conceito de história
de Walter Benjamim, em especial da undécima tese:

o conformismo, que sempre esteve em seu elemento na socialdemocracia, não condiciona apenas
suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. É uma das causas do seu colapso
posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que nadava com a
corrente. [... J Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços
do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do
trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de
tomar-se para minimizar su~ deman~a de re~~rsos coletivos e confiná-los nos segmentos periféricos de
Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como "a fonte de toda
um. mercado laboral e;,cpanslvo de baIXOS salanos [Erol Ricketts & Isabel V. Sawhill, "Defining and Mea-
sunng ~he Unde~class, Journal ofPolicy Analysis and Managemment, n. 7, inverno de 1968 e Lawrence riqueza e de toda civilização': Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui
Me~~, The LOgl~ of ~orkfare: The ,underclass and Work Policy': Annals of the American Academy of outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser o "escravo de outros homens,
PohtlCal and SocIal SClence, n. SOl, Janeiro de 1989.J. (Wacquant, 2007, p. 37) que se tornaram [... J proprietários': Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco
310 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 311

depois Josef Dietzgen anunciava: "O trabalho é o Redentor dos tempos modernos [... ]': Este conceito o capitalismo em crise. Sucedeu que foi o capitalismo que pôs em crise a democracia. [... ] Creio que
de trab~o, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como os seus produtos podem aqui é necessário dar um passo a frente. O capitalismo integrou a democracia [...J. Venceu a ideia
benefiClar trab~adores que deles dispõem. Seu interesse dirige-se apenas aos programas de dominação schumpeteriana do mercado político, como competição entre atores sob o signo de comportamentos
da natureza, e nao aos retrocessos na organização da sociedade. (1993, p. 227, Grifos nossos) economicísticos, privatísticos. (Grifo nosso)

A aparência social-democrática é uma aparência necessária (Gramsci), nada tendo E essa não foi a principal derrota. Gramsci chamou a atenção para o fato de que o
de aleatória. Essa leitura mítica de um "destino" classista requer bases materiais. Para determinismo desarmou o conjunto das classes trabalhadoras. No mesmo sentido
sua maior eficácia praticam-se as chamadas políticas públicas forma pela qual os go- Ingrao salienta:
vernos pretendem impor sua visão de mundo, seu projeto de dominação. Atendem-
-se necessidades populares de modo focalizado sem alterar-se as condições reais que Pagamos pela leitura "evolucionistà' do desenvolvimento capitalista, que estava no fundo daquele
achatamento na rotina e na expectativa passiva, típico do oportunismo social democrata; e pagamos
as produzem, ganhando-se com isso a adesão da massa dos subalternos.
pesadamente também pelo "catastrofismo': pela teoria do "colapso': que caracterizou por longo
tempo a orientação da In Internacional. (pp. 10-11)
Conduzi~ um pro?lema real a uma dimensão ideológica que produzirá uma realidade análoga àquela
que expnme, e o smal da força do capital que tende a totalizar-se ao nível da produção e do controle.
Quando com o Economic Opportunity Act, o presidente dos Estados Unidos declara em 3 de A política, na Ordem do Capital, aparece como universalizadora e uniformizadora
março de 1964, em uma mensagem ao Congresso, "A guerra à pobrezà' como programa nacional, dessa sociedade. Ao propor a igualdade jurídica formal - a cidadania - como padrão
a pobreza americana adquire um papel preciso como objeto das organizações assistenciais: tenta-se da atividade social e ao mostrá-la como algo "natural': escondem-se as cisões, fissuras,
resolver apenas uma face do problema, dando com a mão visível aquilo que se continua a retirar com contradições, lutas447 • Nesta ordem cada indivíduo, sendo igual aos demais, acaba por
a mão escondida. (Basaglia e Ongaro, 1971, p. 72. Grifo nosso)
transformar-se em parceiro. A contradição e a luta metamorfoseiam-se em harmonia.
o comando dessas políticas, na prática, não é compartida com os subalternos, mas A luta de classes é, então, apresentada como algo demoníaco, inventada pelos que que-
o eventual governante, seu partido (que pode apresentar-se fragmentado sob diver- rem destruir a vida social, seus promotores são acusados de comunistas, terroristas, algo
sos nomes) e sua classe (e o bloco de poder que dirige/domina), penetram fundo no pelo estilo. As ideologias dos dominantes nunca são apresentadas como ideologias e sim
solo da afetividade social subalterna. Um exemplo perfeito: as ações de Luis Inácio. como projetos, teorias; as dos antagonistas são sempre malditas, nunca projetos. Inver-
I~to .atualiz~ o clássico: "decifra-me ou te devoro': Decifrar a estrutura da dominação são altamente esclarecedora. Os intelectuais-práticos da burguesia chegaram mesmo a
Significa crzar as condições de iniciar o processo de libertação. E coloca para os inte- chamar os comunistas de reacionários e os liberais de ... modernos.
lectuais das classes subalternas, para nós, a tarefa de construir políticas públicas so- O embate de projetos é apresentado como um choque entre a verdade (dos dominan-
cialistas que encaminhem as necessidades reais do conjunto das classes subalternas e tes) e o erro (dos antagonistas) ou mesmo como uma guerra entre o bem e o ma1448•
preparem sua emancipação: acelerar o futuro na linguagem gramsciana. Tubingem, 1924, p. 209, afirmou: "Deve-se perguntar quem deve temer mais [a tendência à burocrati-
zação]: a sociedade burguesa ou a socialdemocracia? Pessoalmente creio que é a segunda, isto é, aque-
A derrota promovida pelo desenvolvimento capitalista, por um lado, e pela inca-
les elementos que são os portadores da ideologia revolucionária. Algumas dissensões no interior da
pacidade de compreender o seu movimento pela esquerda, por outro, teve efeitos burocracia da socialdemocracia são visíveis desde hoje. E se as contradições de uma parte entre os
nada desprezíveis: interesses materiais dos políticos de ofício e, por outra, a ideologia revolucionária podiam se desenvol-
ver livremente. Se expulsássemos os social-democratas das associações de antigos combatentes, se os
Em uma c?~dição. histórica de grav: te~são que logo desembocará na primeira guerra mundial, aquela admitíssemos na administração das igrejas das quais são excluídos agora, só então, pela primeira vez, se
contraposlçao delmeava duas tendenClas para o socialismo: aceitar uma condição persistentemente colocariam verdadeiros problemas interiores para o partido. Então, a virulência revolucionária enfren-
taria realmente perigos sérios, e veríamos que não foi a socialdemocracia que conquistou a cidade e o
subalterna das massas ou aceitar sua rebelião invocando uma ruptura violenta [... ]. Aceitar reformas
Estado, mas pelo contrário que a cidade e o Estado conquistaram a socialdemocracia:' Citado por J. P.
econômicas sem reformas políticas gerais a largo prazo era a tática pouco fascinante do reformismo, Nett!, La vie et l' reuvre de Rosa Luxemburg, François Maspero, Paris, 1972, pp. 390-391. Grifo nosso.
enquanto rechaçá-las em nome de reformas políticas gerais revolucionárias era a estratégia, a curto 447 "É ainda a situação dos negros nos Estados Unidos: eles se tornam menos ameaçadores, quando
prazo pouco produtora de benefícios do maximalismo. (Cerrroni, 1993, p. 136) se lhes reconhecem os direitos e se lhes admite a exclusão. Mas isto não significa que se assista a um
processo real de transformação: através das ideologias que lhes foram feitas, o negro, o doente da
Em suma, nas palavras de Tronti (2009) mente, o desviante, o pobre - faces diversas do mesmo problema - são reconhecidos na nova socio-
logia como "parte integrante" do sistema social. Mas não se trata da conquista de uma participação
ativa deles. Tornam-se apenas instrumentos úteis a toda a sociedade, nesta função de pertencimento
[.. ) ~ contra~i?ão era. aquela ent~e.vista pelo revisionismo marxista de Bernstein, lugar da origem à "única classe médià' em que é cada vez mais difícil especificar diferenciações e distâncias, reduzida
teonca da pratlca sOClal-democratlca e da consequente tradição reformista446 • A democracia poria como é a uma dimensão homogênea, totalmente controlada por um centro de poder cada vez mais
restrito". (Basaglia e Ongaro, p. 76. Grifo nosso)
446 Weber em conferência publicada no Gesammelte Aufsatze zur Sociologie und Sozialpolitiken,
448 "Existe um outro eixo do mal, além do indicado pelo Presidente Bush: pobreza e ignorância,
312 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 313

A cidadania de campo de luta passa a ser defendida como construtora de consensos. Perderam não apenas as referências políticas centrais, mas também as bandeiras
Os subalternos pensam no interior do campo ideológico-prático-discursivo dos do- concretas. Não se fala mais em miséria, mas em exclusão, em um claro dejá vu ide-
minantes. A cidadania é, portanto, uma das formas privilegiadas de subalternizar ológico e político. Agora, para uma grande parte da esquerda, a luta não é mais pelo
os trabalhadores, as classes instrumentais. Basta, no entanto, examinarmos mais de controle dos instrumentos de produção, qualquer que seja seu âmbito, mas por formas
perto a cena política para ver o que o proposto diálogo entre parceiros se realiza entre de "inclusão" social na ordem do capital.
a guilhotina deles e o nosso pescoço.
Está se realizando, na realidade, a parábola do esvaziamento das palavras chaves da esquerda
A esquerda, ao viver o modo burguês, acabou por perder seus referenciais clas-
européia: a redução progressiva da ideia do direito social, entendido como expressão da cidadania
sistas, tornando-se, ela própria, burguesa. Rusconi fala em crise de representação ativa, do poder coletivo de participação nas decisões sobre "negócios comuns" (participação que
política na esquerda alemã: é realizada através os vários instrumentos como o partido, o sindicato, as associações) à ideia do
direito social como título de legitimação pela atribuição de uma cota de riqueza nacional, digamos
o grande mundo do precariato juvenil, do desemprego, do empobrecimento das camadas médias como uma "contribuição monetárià' do Estado. A forma extrema deste processo de esvaziamento é
não encontra mais representação na socialdemocracia449• [ ••• ] Limitando-se a dizer que não teria [. .. ] a renda mínima garantida que perdeu qualquer conotação de cidadania ativa.
feito mais nenhuma recomendação de voto, antes de ser um ato de acusação contra a Spd, foi Contextual a este esvaziamento é a transformação da participação política, como elaboração coletiva
uma admissão de impotência. [... ] Pelo contrário os sindicatos tradicionais parecem fatalmente de objetivos e projetos, em mero consenso passivo. Na verdade, a teoria constitucional da democracia
obrigados a ter presentes, sobretudo os interesses diretos e concretos dos seus inscritos, que ainda como simples consenso e escolha dos representantes, e a teoria do Estado como expressão da
são relativamente privilegiados emface de milhões de outros trabalhadores4so• (2009. Grifo nosso) unidade do povo, contestou sempre a participação, o pluralismo, a ideia de uma relevância das
forças sociais e das forças políticas como instituto da soberania popular. (Barcelona, pp. 121-122.
doença e poluição, corrupção e opressão política. Podemos destruir o terror nas suas manifestações
O 3°. grifo é nosso)
atuais. Mas se não estivermos atentos às suas raízes, deixaremos um terreno fértil às sementes de ódio
contra os Estados Unidos da Américà'. AI Gore citado por Ingrao e Zanotelli, p. 35.
Foster (2011) cita alguns documentos cruciais para entendermos as estratégias da chamada Pax ame- As propostas do tipo "inclusão digital" em um país onde o número de analfabetos
ricana: Estratégia de Seguraça nacional dos Estados Unidos (outono de 2002) onde ao lado da decla- ainda é enorme, de "bolsas celulares" para famílias que dependem da "bolsa famílià'
ração de que após a queda da União Soviética só existiria "um modelo único sustentável para o su-
cesso nacional: liberdade, democracia e livre iniciativà' e que para tal seria usada a guerra preventiva é emblemática. Tudo com valores absolutamente insuficientes para atender as ne-
contra os inimigos da democracia. Para tal seria preciso "tirar os militares dos escritórios", algo como cessidades reais, mas que servem como moeda de troca451 • Não são implementados
colocá-los na rua, advertia Michael Man (sociólogo da Universidade da Califórnia-Los Angeles). programas de efetiva redistribuição de renda, porque isto afeta as formas de acumu-
Esta estória vem de longe: "u Thant [secretário geral da ONU] declarou que se trata de uma espécie
de 'guerra santa: Os teóricos do Pentágono dizem que é uma operação global para impedir o avanço 1ação de capital; mas políticas que garantem a citada acumulação e a legitimidade
do imperialismo comunista. [... ] Podem ocorrer que se trate de algo muito primitivo [... ] ouvem- dos governantes do momento tão necessários para a estabilidade funcional à ordem
-se declarações extraordinárias dos políticos norte-americanos, como 'Façamos a China Vermelha do Capital. Tudo se deslocou para o domínio da tecnologia vista como garantidora
ajoelhar-se':' (Lang, 1968, pp. 34). Tudo em nome da liberdade e do direito de escolha democrática
dos governantes, é claro! do progresso econômico e social. Tecnologia que tem hoje como um dos seus com-
Carmichael (1968, p. 71) acrescenta: "Sempre que os Estados Unidos querem tomar o país de alguém, ponentes a empregabilidade vista como capacitação decisiva para o ingresso da força
começam a dizer: 'Os comunistas preparam-se para invadir aquele determinado pais, temos a tarefa
de trabalho no admirável novo mundo do capitalismo.
de defender a democracia, enviando milhares de homens para matar os comunistas':' (Grifo nosso).
A atualidade destas análises é claríssima.
449 "E os operários de protagonistas da vida interna do partido tornaram-se apenas os eleitores dos
deputados; de sujeito de uma política tornaram-se objeto de uma política; este era o momento decisi-
vo no qual a social democracia renunciava à sua função específica e aparecia como um partido 'como
qualquer outro: A formação de uma potente e inamovível burocracia de partido tornava-se uma pro-
jeção do mundo burguês no interior do partido de classe. O partido de instrumento da classe se tor-
nava um fim em si mesmo: um instrumento para eleger os deputados, para afirmar o poder daquela
burocracia, e, em definitivo, um elemento de conservação:' (Panzieri, 1973, pp. 190-191. Grifo nosso)
450 Pizzorno (2009) em entrevista fala sobre a tendência dos sindicatos na etapa atual: "Penso que o
sindicato do neo-corporativismo dos anos 1960-1970, e talvez mesmo dos primeiros anos 1980, isto
é, aquele sindicato que conquistava sucessos com os acordos triangulares com a Confindustria e o
Governo, está destinado a perder o posto, se não quer [perder sua influência], para um sindicato que chamam a atenção para o fato de que os "sindicatos e forças políticas que não pertencem ,~ at~al
faz acordos diretos com as várias indústrias e com as direções empresariais. Isto é, deverá ter como maioria seriam favoráveis a uma elevação das contribuições [previdenciárias] até 33 por cento. Gnfo
modelo o que fez o sindicato americano na crise da General Motors que interveio na própria gestão
nosso.
da empresa. Em suma impõe-se um sindicato que tem relações diretas com o mundo financeiro- 451 Luis Gonzaga, o "rei do baião" advertiu já faz mais de meio século: "quando se dá uma esmola a
-industrial da atual realidade. Penso que hoje o sindicato confederal italiano deverá apontar menos um homem que é são, ou o mata de vergonha, ou vicia o cidadão:'
sobre a subjetividade política e mais sobre seu ser sindicato empresariaI:' Bologna e Fumagalli (2010)
POLíTICA COMO CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA

Marx está vivo. É o primeiro em haver captado o estatuto próprio da teoria em


sociedades nas quais a Razão está pensada e praticada, não como ideal, mas
como fato.

François Châtelet

A grave crise atual do capitalismo demonstra liminarmente o que estamos discu-


tindo. Os práticos do capitalismo, investidos em nosso país dos poderes executivos,
formulam a crise de modo burlesco: ela foi apresentada por Luis Inácio ora como um
"tsunami': ora como "marolinha': conforme o seu maior ou menor peso aparente.
Ou seja: ela é natural, não decorre das formas de realizar a materialidade do capital,
nem de suas formas políticas. Berlusconi, o capo mafioso da direita italiana, "tratou"
a questão de forma similar, tanto na caracterização quanto na "solução': A técnica da
descaracterização da crise funcionou (bolha imobiliária, por exemplo), tomando o
efeito pela causa.
Alguns teóricos da esquerda e os intelectuais orgânicos do capital construíram,
proclamaram e acreditaram nessas representações que, por um lado, expressam cla-
ramente a concepção de que o capitalismo é inexorável e que passará por mais essa
crise e, por outro, indicam uma incompreensão do movimento real do capital. Não
é aleatório que os movimentos sociais sejam alvo das políticas capitalistas: a captura
da subjetividade antagonista é uma necessidade para a ordem capitalista assim como
a incorporação de lógicas que não permitam questionamentos estruturais ao seu
estoque teórico-prático.
Essa captura produz um efeito de estabilização do real, é uma necessidade radical
para a preservação da ordem vigente. Porque os burgueses precisam naturalizar a
realidade? Para impedir que os subalternos tenham a clara percepção do que está
em jogo. Além disso, essas políticas governamentais, ditas públicas452 são formas de
reconstruir a relação governo das massas/governo da economia de modo a consoli-

452 Cf. Dias, 2007a.


316 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 317

dar os blocos histórico e de poder existentes. Faz-se necessário criar um ambiente de tudo decorre dela, tudo é natural, logo não existe uma violência classista. As sucessivas
mais liberdade para o capitalismo pela eliminação dos direitos sociais (via reformas e permanentes crises do capital, em especial as do século passado apesar dessa natura-
constitucionais e/ou das legislações anteriores), dos elementos ditos de "proteção ao lidade postulada, obrigaram a que os teóricos e práticos do capital buscassem soluções.
trabalho': As políticas postas em práticas pelo capital - do fascismo e do keynesianismo às
Milton Friedman, em seu clássico Capitalismo e Liberdade, livro de cabeceira dos políticas de ajuste estrutural - visam resolver contradições inter e intra-burguesas e
neoliberais, apontava os sindicatos como inimigos dos trabalhadores por dificultar/ seus desastrosos efeitos práticos. Quando os burgueses, individualmente ou como
impedir a livre circulação da mercadoria trabalho. Exemplar disso é a carta de Fried- Estado, se defrontam com movimentos sociais, algumas formas compensatórias,
man (2006) ao ditador Pinochet ao qual recomenda, entre outras coisas, a chamadas por eles de políticas públicas (como o bolsa-família e o fome-zero), têm
que ser colocadas em ação. São fundamentalmente políticas que tentam implemen-
eliminação da maior quantidade possível de obstáculos, hoje por hoje, entorpecem o desenvolvimento tar a hegemonia burguesa. Essas políticas, mesmo apresentando "benefícios" para
do mercado livre. Por exemplo, suspender, no caso das pessoas que vão empregar-se, a lei atual parcelas das classes subalternas, não resolvem - e nem o poderiam - o problema
[que] impede as demissões dos trabalhadores. Na atualidade, esta lei causa desemprego. Eliminar,
também, os obstáculos à criação de novas instituições financeiras. Eliminar, assim mesmo, a maior
central da adequação entre o modo de governo das massas e o modo de governo da
quantidade possível de controles sobre preços e salários. O controle de preços e salários não serve economia. Elas têm que ser adequadas ao movimento geral do capital, produzindo a
como medida para eliminar a inflação; pelo contrário, é uma das piores partes da doença. vantagem extra de promover uma aliança de classes pela qual os subalternos garan-
tem, na sua maioria inconscientemente, a chamada governabilidade454 • O fato de que
Ao cortar tais proteções libertava-se a acumulação capitalista considerada ele- tivemos como presidente um ex -operário que afirmava ser "um brasileiro igualzinho
mento benéfico da construção da prosperidade universal. A reforma do governo das à você" permite uma identificação das classes subalternas com ele. A crise destas
massas permitia o avanço do governo da economia. Uma e outra reformas são vitais classes se vê reforçada pelo fato de que suas direções foram e são, em sua grande
para a libertação das forças produtivas, do progresso técnico, logo da civilização... maioria, decapitadas e sua subjetividade antagonista capturada.
burguesa, é claro! Pinochet, Menen, FHC, Luís Inácio a mesma linha. A crise continua a atingir as classes trabalhadoras:
Outros mecanismos ideológicos se fazem necessários aos dominantes: o combate
à concepção teórica das classes, da lei do valor, a redução do largo processo histórico Smith muitas vezes pareceu realmente invisível porque não estava lá. A defesa de seus interesses
próprios pelos banqueiros [... ] não conduziu ao bem estar da sociedade; não serviu nem mesmo aos
à repetição nauseante de pequenos acontecimentos sem maior significado. O que
interesses dos acionistas e dos detentores de títulos de bancos.
está em jogo, na realidade, é o momento atual da luta não declarada entre as classes Tampouco serviu bem aos proprietários de casas, que as estão perdendo; aos trabalhadores que per-
sociais. Para a preservação do capital é essencial que política e economia sejam con- deram seus empregos, aos aposentados que viram desaparecer a poupança com que contavam para
suas pensões; e aos contribuintes que tiveram de pagar centenas de bilhões de dólares para socorrer
sideradas esferas separadas e autônomas do processo como um todo. A economia
os bancos:' Stiglitz, 2009.
é apresentada como manifestação a-histórica e universal de forças naturais. Ela é, O exemplo da Grécia é sintomático: ela "cortou 25% da educação pública, 95% da saúde pública,
para o pensamento e a prática dos burgueses, uma micropolítica determinada por deixou a habitação a zero. Nenhum desses setores foi causa da crise. Entre 2002 e 2007, o valor do
estoque de bens financeiros triplicou em termos reais. Cresceu seis vezes mais rápido que o PIB. Es-
um equilíbrio racional exterior ao mundo. Falamos é claro da famosa mão invisível ses planos de resgate têm um elemento anti democrático. Passam a dívida privada para a pública sem
construto inventado pelo filósofo moral Adam Smith. Mão invisível, divina provi- perguntar a ninguém:' (Palma, 2011. Grifo nosso)
dência' progresso são múltiplos os nomes do exercício do capitalismo como algo "De outubro de 2008 ao outubro de 2010 a Comissão da UE (União Européia) aprovou 4.588 bilhões
de euros de ajuda aos bancos europeus [... ]. Desde o início da crise foram os bancos ingleses (850
transcendental. Weber em A Ética protestante e o espírito do capitalismo já "demons- bilhões) a beneficiar-se majoritariamente das ajudas, seguido pelos irlandeses (723 bilhões), dina-
trara" a relação entre racionalidade econômica e atitude religiosa como constituidora marqueses (599 bilhões), alemães (592 milhões), franceses (351 bilhões) e espanhóis (334 bilhões).
desse modo de produção e de vida. A política, sob o modo de produção capitalista, Os bancos italianos beneficiaram-se de 20 bilhões:' segundo despacho da ANSA.
Aposentados: aqueles que acabam dramaticamente "retirando-se sem história, não servem mais"
aparece como sendo o reino das contingências, do movimento de indivíduos (seus (Rossanda, 1996, p. 3. Grifo nosso) de um capitalismo cujo projeto é a superfluidade dos trabalha-
interesses, desejos, ideias) que se entrechocam sem, necessariamente, possuir uma dores.
meta-racionalidade, reduzindo-se a jogos de poder não tão racionais. 454 As leis são modificadas a bel prazer dos governantes: "mas também os regulamentos parlamen-
tares antiobstrucionismo e o abuso da decretação da urgência [medidas provisórias, efd] ([ ... ] uma
A imagem da mão invisível permanece, mesmo sem o vigor de outrora, apesar de mui- 'República ... não mais parlamentar, mas governável') [... ]. Tudo isto foi feito em nome da simplifica-
tos economistas e práticos do sistema financeiro reconhecerem que o automatismo do ção, da rapidez decisional e da eficiência. [... ] O conceito empresarial de governabilidade empresta a
mercado não é real. 453 Ela é um dogma necessário à legitimação do capitalismo, pois se sua lógica aparentemente eficientística e realmente autoritária no âmbito político um pouco em toda
parte, e não é de hoje:' (Grifo nosso) Embora Giacché (2010) esteja falando da Itália não há como não
453 "[ ... ] os mercados não são capazes de auto-correção. De fato, na ausência de regulamentação reconhecer o dna dessas medidas na prática política brasileira.
adequada, tendem ao excesso. Em 2009, vemos mais uma vez o motivo. A mão invisível de Adam
'I

318 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 319

Embora novembro tenha registrado o menor número de demissões (11 mil) em dois anos, o Exemplar disso é a ação do mais brutal aparelho de hegemonia, poderoso constru-
desemprego no país permanecia em 10%. Os EUA têm hoje 15,4 milhões de desempregados.
tor de subordinação: a televisão. Examinamos isto em detalhe quando trabalhamos
Metade perdeu o emprego a partir de dezembro de 2007. (Canzian, 2010, p. B6)455
a questão da comunicação. Mas seja-nos permitido um acréscimo:
Para responder de modo capitalista à chamada crise da economia há que res- [... ] uma equipe de repórteres acompanhava o casal real [sueco] na sua rápida visita a Estônia, alguns
tabelecer seu eixo de intervenção ao custo de transferências globais de capital da anos após o pais ter ganhado sua independência. Analisando a seção de informações televisivas que
sociedade para os capitalistas via Estado. A política regressiva de ampliação da se seguiram, os estudantes [da Escola Secundária de Folclore da Cruz Vermelha Sueca] chocaram-
expropriação do já expropriado é a forma clássica de resposta burguesa à crise. se por alguma coisa estranha em uma cena mostrando aparentemente estudantes estonianos
agitando bandeiras suecas aos visitantes reais. Quando foi questionada a equipe de reportagem sueca
As formas de intervenção estatal, como as implementadas pelo governo Obama
reconheceu que eles tinham trucado a cena, colocando-se de pé diante dos estudantes e estimulando-
e seus congêneres em todo o planeta, demonstram que, por exemplo, diante do os a gritar os hurra para a câmera - enquanto o casal real já estava ocupado alhures. A equipe sueca
perigo, mesmo as mais fortes contradições no interior do pensamento burguês parecia completamente desconcertada pelo questionamento de sua integridade dizendo: "Bem, isto é
(livre mercado x ação do Estado) são respondidas não pelo purismo ideológico, exatamente o que teria se passado se o casal real tivesse passado por lá!" (Watkins, sid. Grifo nosso)
mas pelo sagrado pragmatismo de classe.
A solução capitalista passa pelo incremento da barbárie. Direitos sociais são Pensemos o caso das novelas televisíveis. Em quase todos os capítulos se processa
mais e mais atacados, salários mais e mais comprimidos. A luta de classes, como uma crítica aparente das formas dominantes. Os burgueses são apresentados, nor-
dizia Gramsci, não está sendo proposta pelas forças do trabalho, mas impos- malmente, como oportunistas, violadores dos valores morais (sempre se busca enga-
ta exponencialmente pelo capital. A luta contra essa correlação de forças não é nar o outro, da relação erótica às formas de apropriação da riqueza). Esta é a cena da
uma alternativa, mas uma necessidade radical. Aqui, como antes, a maioria das novela. Contudo o que permanece, no imaginário, é o fundo da cena: os valores bur-
burocracias sindicais e partidárias ditas de esquerda 456 adapta-se voluntariamente gueses. Afirma-se, entre outras determinações, um consumo que à massa da popula-
ao combate à sua própria classe em benefício do Capital (e de seu gerente coletivo, ção é interditado. Na dialética necessidade-desejo, realçam-se os desejos e recalcam-se
o Estado). as necessidades. Os dominados compartem o horizonte subjetivo dos dominantes,
A luta de classes não é como muitos fantasiam o choque de dois exércitos classistas sem terem a menor chance de vivê-lo no cotidiano: quadros vitais aparentemente
abstratos. Essa luta, para a maioria da população, pelo contrário, é exercida clandes- inconciliáveis, soldados pela ideologia da igualdade e do mérito, onde tudo é possí-
tinamente: é a forma pela qual hábitos, saberes e costumes dos dominantes assumem vel. Isto é ocultado e não se resolve em conflito aberto graças a um discurso univer-
o caráter de horizonte ideológico. É no cotidiano, no aqui e agora, que radica o espaço sal, que vai do "sempre foi assim" até o "tem que ser assim': a partir do qual o que é
em que as formas de vida dos dominantes são passadas para os dominados como as violência simbólica e física vira padrão ético, eterno e universal, de comportamento
únicas formas possíveis de pensar, agir, sentir, elaborar conhecimentos e estratégias. que busca transformar conflito em harmonia, em parceria. Trata-se da conformação
O domínio de uma classe (e de seu bloco de poder) determina o que pensar o que de um modo de vida, predispondo as classes trabalhadoras à servidão voluntária. Isto
estudar e até mesmo o que e como amar457 • é fatal? Não, não é.
Romper com essa estrutura orgástico-consumista exige, contudo, uma enorme ca-
455 Comentando a situação o economista AlIain Blinder, Universidade de Princeton, revela-se otimista.
Ele avalia que "a combinação de mais gastos públicos, aumento da produtividade entre os que mantiveram pacidade crítica e um projeto de nova sociabilidade. O mesmo se poderia dizer da fa-
o emprego e gradual reforço do consumo e do investimento poderá trazer de volta o crescimento susten- mília, do aparato escolar e da vida do/no trabalho. Em todos esses âmbitos constrói-
tado para a maior economia do mundo em 2010:' Até agora, fim de dezembro de 2011, isso não passou de -se uma sociabilidade. A captura da subjetividade do antagonista pelos burgueses se
um sonho (ou pesadelo) de uma noite e verão.
456 No máximo pode-se conceder que estejam à esquerda do espectro institucional burguês. revela como impedimento da construção do saber dos subalternos. Isto é decisivo
457 "Existe um aparelho de forças materiais e econômicas com o qual a classe capitalista tem submetido o para a tentativa de construção da hegemonia dos dominantes.
proletariado: é o Estado econômico capitalista que do governo se derrama em uma hierarquia de chefes de Algumas considerações devem ser acrescentadas, como a mudança da base so-
polí~ia, de ques~ores, de tiras, de oficiais, de carabineiros, em uma hierarquia de militares que do Estado-
-maIor chega ate o soldado enquadrado na sua disciplina; é o Estado econômico capitalista que do governo cial da universidade e dos aparelhos técnicos de governo (políticos e econômicos).
se derrama em uma hierarquia de trustes bancários e industriais até os diretores de fábrica e aos menores Embora essas instituições classistas possuam nos seus corpos elementos burgueses,
agentes da polícia do trabalho. Através este aparelho de classe dos exploradores mede aos operários e cam- que exercem funções de comando político, o núcleo central é formado pelos estra-
poneses a quantidade de alimento para sustentá-los, o tempo dedicado ao repouso e à educação, a liberdade
política, o direito à vida e o respeito aos cadáveres. Junto a este aparelho de supremacia física e econômica
tos intermediários, pela classe do excedente458 , como se depreende da obra de Mar-
existe.~ apa.:elho de supremacia espiritual: é a imprensa (jornais e revistas):' Gramsci, "Una lezione a gli tin Nicholaus (1967) aos quais cabem basicamente as funções de direção técnica.
operaI, Avanti!, a. XXIII, n° 338, 8-12-1919. In Gramsci, 1974, p. 93. Grifo nosso. Ver Marx (1928) e Dias
(2007 e 2008). 458 Ou na feliz expressa de Verón: "Vivem das migalhas do mais-valor" (1989, p. 157. Grifo nosso)
320 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 321

São momentos e movimentos desiguais e combinados onde não cabe a separação inerente ao ser humano. Nesse processo apagaram-se as diferenças, obviamente. No
de economia e política: o que vale é o desenvolvimento da totalidade. James Bur- plano mais visível- e repetido ad nauseam - afirma-se que "todos os homens são
nham (A revolução dos gerentes) e Adolf Berle Jr. (A revolução capitalista do século iguais perante a lei': Marx, em 1843-1844, demonstrou, nos Anais Franco-Alemães, a
XX) tentaram mostrar - mistificadamente - como a cisão entre acionistas e gerentes, falsidade dessa assertiva. Para a compreensão da institucionalidade burguesa era, e é,
entre direção política e direção econômica alterava radicalmente a natureza do ca- vital a distinção entre o bourgeois e o citoyen. Nessa separação marca-se a diferença
pitalismo. O capitalismo do centavo, o reino das ações, liquidaria a figura clássica do entre o bourgeois - que exercia o comando da vida social - e o citoyen submetido à lei
capitalista: todos poderiam ser capitalistas. Quando o movimento social se apresenta do bourgeois459•
como alternativa essa classe do excedente pode tender a se colocar em uma perspec- A reivindicação moderna da cidadania, compreendida como decorrência lógica da
tiva mais próxima da transformação social. Gramsci chamou a atenção da atração institucionalidade burguesa, é a forma maior da subordinação sem violência física
que o movimento dos trabalhadores rurais, quando em movimento, exercia sobre os necessária da maioria à minoria. A igualdade abstrata proclamada serve, serviu e
intelectuais. Lembremos do fascínio inicial exercido pelo MST. Na ausência de um servirá, para ocultar a desigualdade concreta. Todo esse processo de construção da
projeto de transformação, a classe do excedente tendencialmente voltou-se para a "igualdade" revela-se produto de uma abstração formal, sem historicidades, sem de-
conservação do status quo. terminações. A deSigualdade real expressa, contudo, uma negação dessa opressão
A investigação da realidade necessita construir a "unidade na diversidade": ir além classista apresentada como "natureza humanà' e como "regra do jogo': A ideia de
das aparências. Uma das facetas da construção da dominação é, nada mais nada "natureza humanà' é decisiva. Por ela calam -se as historicidades reais, concretas;
menos, a transformação do projeto político vigente em horizonte ideológico onde cala-se a voz do subalterno. A experiência social-democrática alemã nos ensinou
se movem as classes em confronto. Se o atual é o único verdadeiro, fica vedada a muito sobre o processo de esvaziamento da cidadania de corte liberal que garantia( e)
própria possibilidade de superação da realidade classista, torna-se impossível pen- aquele calar:
sar a emancipação dos trabalhadores. O direito positivo, com sua afirmação da não
historicidade das regras democráticas, é decisivo nessa estabilidade in contrastada [... ] a república e a constituição de Weimar nascem da crise da ideia e do modelo de estado liberal e
que, todavia, esta ideia e aquele modelo continuam, em minha opinião, a operar subterraneamente
(Bobbio, 1986). Rossanda, pelo contrário, mostra a possibilidade da alteração das
como um princípio motor da evolução das instituições da modernidade. [Trata-se da] ideia do
instituições: Estado como "poder neutro" e ao mesmo tempo como síntese unificante da pluralidade dos
indivíduos livres que, pela representação, realizam democraticamente a "verdade" e assumem
As instituições estão destinadas a mudar sob o impacto da história. Todos os movimentos, quando as decisões coerentes com o interesse geral (Locke, S. Mill). Na teoria liberal se dá, de fato, uma
emergem, encontram na instituição um limite, a denunciam [... ]. [... ] uma das diferenças entre equivalência indiscutida entre representação, discussão política, "verdade" e "direito": o parlamento
direita e esquerda [... ] está no fato de que os movimentos de esquerda tendem à reapropriar-se é o centro da vida política porque subsiste correspondência efetiva entre os representantes e os
daquela participação que a formalidade da representação esmaga, ampliando por assim dizer o representados, e entre corpo parlamentar e vontade geral.
sistema circulatório e injetando sangue novo; os movimentos de direita, pelo contrário, tendem a O pressuposto implícito desta concepção era a homogeneidade social que no modelo liberal era
restringi-la. (p. 172) "protegidà' pelo voto censitário. [... ] (Barcelona, pp. 115-116)

Mordenti (2007) recoloca, a nosso juízo, uma questão essencial: pode o subalterno A cidadania que poderia se exercer era aquela possuidora de uma homogeneidade
falar? O debate que ele propõe, a partir de Gramsci, é exatamente o da supressão pe- que se rompida perde sua eficácia pelo sufrágio universal e pelo acesso à representa-
los dominantes da fala, das historicidades, das experiências, das classes subalternas. ção das classes trabalhadoras e das camadas subalternas:
Quando, por exemplo, alguém fala em "dar voz a quem não tem voz': não apenas
nega que os subalternos possam e devam se expressar enquanto sujeitos, com iden- É sobre este terreno que tem início a crise dos parlamentos e da representação, a redução da discussão
política a retórica vazia, a rituais esvaziados, o deslocamento dos poderes para locais subtraídos ao
tidades próprias, mas vai mais além: dá a sua voz. Isto é, substitui a possibilidade dos
subalternos se constituírem como sujeitos históricos autônomos de um processo de 459 ''A distinção entre economia e política determina por sua vez a subordinação substancial da po-
lítica à economia, quase como se a economia não fosse política, quase como se fosse possível ignorar
emancipação. "Dar voz", apesar das aparências, é o suprassumo do autoritarismo. ainda a lição de Marx, e a de Polanyi. O mercado é a maior instituição da história moderna; a eco-
A matriz da dominação capitalista está, no plano teórico, explicitada na "invenção nomia monetária capitalista não é de fato uma economia natural (como quer fazer crer a literatura
da tradição" (Dias, 2007b). Os liberais transformaram em verdades universais e imu- neoliberista), mas uma instituição política que nasce da articulação da sociedade burguesa em duas
esferas separadas, exatamente para impedir que possa ser colocada em discussão a forma da reparti-
táveis o que era historicamente determinado. Os procedimentos políticos e econômicos ção da riqueza, para impedir que se possa recolocar em discussão o 'direito' de quem é proprietário a
da prática mercantil-burguesa foram plasmados como natureza humana, como algo apropriar-se do trabalho do outro e de decidir por conta de todos o que se deve produzir e consumir:'
(Barcelona, pp. 123-124. Grifo nosso.)
322 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 323

controle parlamentar e à progressiva autonomização do governo e dos aparelhos estatais. [... ] Consent, de Noam Chomsky, produzido pela TV canadense para termos clareza da
A democracia formal como técnica de seleção (eleições) dos governantes e como técnica de
formação da vontade (princípio da maioria) se opõe a democracia como princípio não resolvível em
estratégia de "conquista de corações e mentes': pela qual os dominantes "dão sua voz
uma forma organizativa e, portanto não redutível ao parlamentarismo, daqui para frente privado a quem não tem voz". É na linguagem e por ela que se passa das grandes elaborações
de toda autentica eficácia representativa. O parlamento é um instituto superado pela democracia de ideológicas ao saber das massas. Construção do sentido, da voz, do projeto.
massa. (Barcelona, p. 116)
O polo oposto ao subalterno é evidentemente o poder (gramscianamente: o nó domínio/hegemonia)
Construir a inteligibilidade desse processo significa decifrar a esfinge classista. e como "subalterno" é ausência de palavra, "poder" é também [... ], poder de linguagem e de palavra,
o poder hegemônico de articular um discurso auto-legitimado, de instituir (em vantagem própria)
Como admitir em sã consciência a ideia da harmonia social e da igualdade formal?
um sentido, de dar sentido às coisas (ou melhor: de impô-lo) e de impor tal narrativa política
Podem os não proprietários dos instrumentos básicos da produção comparar-se como ''senso comum" das massas. E Gramsci nos ensina que é em torno do "senso comum" que
com os que dominam nossa sociedade? Pode o "Zé Ninguém': como diria Reich, ser se desenvolve a luta hegemônica entre as classes: é hegemônico quem encontra, controla, gere o
comparável aos multibilionários associados ao capital financeiro mundializado? Se- sentido comum (por isto tal narrativa política compartilhada é o lugar da hegemonia, um órgão
guramente, ao fazermos essa pergunta, veremos um sorriso irônico e amargo no rosto dela, uma articulação decisiva da mesma.
[ ... ] É chegado o momento no qual os revolucionários devem assumir o problema da construção
do oprimido. Mas a repetição constante dessa afirmaçã0460 faz com que as pessoas do sentido como o mais decisivo dos problemas. Senão nos termos da produção de uma narrativa
acabem aceitando esse "modo de pensar" como o seu modo. oposta e especular em relação à narrativa do poder (este é o grande e complicado tema do "contra-
Marx afirmou que o capitalismo é a contradição em processo e que o segredo da poder" [... ]) ao menos como capacidade de criticar a narrativa do poder com a finalidade de livrar-
dominação está na forma pela qual se extrai o sobre valor. Ora é exatamente sobre se dela. (Mordenti, 2011, pp. 90-91)
esses dois pontos que os capitalistas mais atuam ao formular suas ideologias, que
não são um "modo de fazer a cabeçà' dos dominados, mas uma poderosíssima arma, A questão central refere-se ao significado do fazer política. Barcelona, negando a
de conformação da disciplina/obediência461 • Vale a pena ver o vídeo Manufaturing existência de uma natureza humana, nos adverte:

460 Goebells, ministro da propaganda do IH Reich deu forma acabada a esse processo: "Minta, Não significa fazer o ofício de político (como foi afirmado pela ciência política), mas significa formular
minta, minta. Eles acabam acreditando': Um belo exemplo desse processo, do ponto de vista liberal, os problemas e responder de modo adequado ao "sentido social': e aos valores que são socialmente
é a afirmação do preceito constitucional segundo o qual "todo poder emana do povo e em seu nome instituídos; em suma, fazer política significa produzir "sentido comum': Porque as sociedades humanas
será exercido': A continuada repetição dessa frase naturalizou uma contradição entre democracia não tem um sentido inato e os indivíduos não tem um sentido inato. (p. 153)
direta (Rousseau: todo poder emana do povo) e democracia representativa (Montesquieu: em seu
nome será exercida). Anfibologia que recalca a radicalidade do primeiro termo.
461 Sobre a obtenção da obediência há um exemplo estarrecedor. Stanley Milgram, da Universidade de Falando sobre a situação vivida pelos socialdemocratas e comunistas no período
Yale, propôs um experimento que os voluntários supunham ser sobre memória e aprendizagem. Tratava-se, de ascensão do nazismo Reich enunciou a questão da hegemonia:
em suma, de verificar o comportamento desses voluntários diante de uma situação em que se dizia "inves-
tigar os efeitos da punição sobre a aprendizagem [... ]. A 'vítimà foi amarrada em uma espécie de cadeira
A grande pergunta é saber por que [a massa dos trabalhadores] não nos deu ouvidos, porque nossas
elétrica [.. ]. O voluntário-professor foi levado para uma sala adjacente e colocado diante de um instrumento
complexo rotulado gerador de choque. O voluntário sem saber a meta real do experimento deveria receber
organizações se esclerosaram, porque a burocracia nos afogou, porque as massas atuaram contra seus
um choque de 45 volts para demonstrar a autenticidade da máquina. [... ]" (Lang, p. 39). O discípulo-vítima próprios interesses ao levar Hitler ao poder.
ao cometer algum erro recebia choques. E a "experiêncià' chegava até 315 volts. "Um observador relatou: [... ] não falamos a linguagem da grande massa, em parte apolítica e em parte ideologicamente
'Vi um homem de negócios, maduro e a princípio sério que tinha entrado no laboratório sorridente e oprimida, que acabou ajudando finalmente a que a reação obtivesse a vitória. As massas não
tranquilo. Tranformou-se, depois de 20 minutos, em um desgraçado que se aproximava rapidamente do entendiam nossas resoluções nem o que queremos dizer com 'socialismo'; [. ..] liam os nossos jornais
colapso nervoso. Puxava continuamente o lóbulo da orelha e torcia as mãos. Em um dado momento, bateu por obrigação ou não os liam. (1970, pp. 120 e 121. Grifos nossos)
as mãos contra a testa e murmurou: 'Oh, meu Deus paremos com isto!' E todavia continuou a obedecer a
cada palavra do experimentador:' (idem, p. 40). Ver: New York Academy ofScience, 4, 4, pp. 18-20, 1964.
O original encontra-se em Milgram, Behavioural Study of Obedience (1963), Journal of Abnormal and O desconhecimento das questões centrais que mobiliza(va)m as massas e a prepo-
Social Psychology, 67, pp. 371-379. Diante disto resta a pergunta: Quem é louco? A Academia não apenas tência das direções que se imaginam portadores de todo saber levaram a um isola-
aceitou o projeto e a realização da pesquisa, publicou-a e difundiu-a. Este fato é crucial para a compreensão mento que fortaleceu o nazismo e inviabilizou a possibilidade revolucionária.
do processo de lavagem cerebral realizada diuturnamente pela mídia e pelos governos. Observe-se o título
da revista. Reúne a Abnormal Psychology e a Social Psychology Sintomático! Sobre essa "experiêncià' ver
Cerry (s/d), Encina (2003) e o vídeo de Broen (2009). Que em uma assembleia eleitoral somente se lançaram palavras de ordem ou bem, corno ocorria
Os efeitos patogênicos de uma obediência cega, irrefletida, tem uma presença marcada na vida militar. no Palácio dos Esportes (Berlim), se deixasse um funcionário falar horas a fio, com erudição sobre
Os efeitos produzidos pela explosão nuclear em Hiroshima são descritos no fato noticiado pelos jornais: a política financeira da burguesia ou sobre as rivalidades nipo-americanas, isto apagava cada vez
"Claude R. Earterly, ex-Major da Força Aérea Americana, que atuou como 'explorador' no ataque atômico a mais a exaltação e o entusiasmo iniciais, significava supor que a massa tinha interesse e os requisitos
Hiroshima, assaltou, com uma pistola de brinquedo, uma mercearia, roubando cem dólares. Essa é sua oita-
va prisão. Foi internado mais de dez vezes em sanatórios para enfermos mentais:' (Castro, 1964-1965, p. 23)
324 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 325

para assimilar análises econômicas objetivas, e embotava o justamente chamado sentimento de espontaneismo dos mecanismos democráticos, quando são marcados como hoje pela lógica de
classe dos milhares de ouvintes. (1970, p. 126. Grifo nosso) mercado, [... ] se esconde, se cultiva o vírus da anti-política. Esta anti-política, como fenômeno de
massa, é agora o lugar de escolha da hegemonia da direita. Populismo e leaderismo são possíveis
e se tornam praticáveis sob a base deste massificado sentimento anti-político. [... ] Mas, sobretudo,
A esquerda trabalhando no interior da institucionalidade burguesa não conseguiu [a esquerda acreditou na] ideia de sociedade civil, lugar de cultivo das virtudes públicas contra uma
escapar das armadilhas aí colocadas. Reich perguntou: "Poderá a política revolucionária sociedade política lugar do comércio dos vícios privados. Ao invés de elaborar um projeto orgânico de
vencer alguma vez a política burguesa se ela emprega sua linguagem, sua tática e sua reforma do sistema político, ao invés de nos apresentar a superação da forma "estado dos partidos':
estratégia e, em uma palavra, métodos burgueses? Não, não poderá nunca:' (p. 188)462 em uma nova forma de espírito republicano, encarnado em instituições e em organizações
renovadas, para apresentá-lo ao país como solução da crise, os problemas são perseguidos sem
serem resolvidos, ou o que é o mesmo, resolvendo-os um a um, de modo impróprio, sob o choque
a política revolucionária se adaptou a ela, ainda que com conteúdos revolucionários, quanto à forma,
da contingência e da emergência. (Tronti, 2009. Grifo nosso).
a linguagem e as ideias; porque não se dirigiu às massas, mas que as tratou como a uma criança ao
qual se tenta convencer, e esta tem de compreender, finalmente, o que já vai "reconhecendo cada vez
mais': que estão gozando dela. (p. 189. Grifo nosso) A política no sentido que as organizações políticas, de esquerda e de direita, prati-
cam produz ela própria um estranhamento:
A esquerda não conseguiu responder às necessidades objetivas das massas subal-
ternas. Acreditou na democracia e cidadania abstratas e formais, deixando-as entre- a "políticà', vocábulo que atua sobre o simples mortal como um fetiche. Necessitamos acostumar-nos
a levar todos os assuntos que atuam de modo de fetiches à luz deslumbrante de perguntas ingênuas
gues a si mesmas, sem se dar conta dos efeitos do mercado: no
que, como é bem sabido, são as mais penosas, as mais prometedoras e, na maioria das vezes, as mais
462 Assim como neste momento histórico uma parte da classe operária alemã aderiu ao nazismo, profundas. (Reich, 190, p. 179. Grifo nosso)
assim encontraremos em outros momentos essa aproximação aparentemente absurda. Veja-se, sem
paralelismos falsos, a expressiva votação que a classe operária do norte da Itália conferiu à direitis-
ta Lega Nord. Rivera (2008) nos deu alguns elementos de reflexão. Não foi toda a classe, mas um
Se queremos construir uma nova sociabilidade, uma nova hegemonia, temos que
"percentual da classe operária brancà: Mais especificamente: "a massiva presença de trabalhadores mudar as perguntas:
estrangeiros nas faixas de trabalho mais marginais, informais, submersas, consequentemente etni-
cizadas; a discriminação institucional e a gestão policialesca dos migrantes como prática rotineira; O único que importa é colocar perguntas típicas, que interessem a todo mundo e que inicialmente
a aplicação aos estrangeiros - ainda que provenientes dos países neocomunitários - de formas de não estejam programadas, da vida autêntica do indivíduo [... ]. A direção revolucionária não tem
direito especial; a ausente extensão aos extracomunitários de direitos civis e políticos; o fato de que
atualmente tarefa mais importante que buscar os pontos débeis do nacional-socialismo e levar
a maioria dos filhos dos imigrantes e refugiados, nascidos na Itália ou chegados como menores de
a discussão nas massas de tal modo que não se interrompam nunca [... ]. A revolução só pode
idade (freqüentemente definidos 'segunda geração de imigrantes' não tenha acesso à nacionalidade
italiana; enfim, a exclusão dos migrantes e mesmo de seus descendentes de nacionalidade italiana da desenvolver-se a partir das contradições da vida atual, e não de debates sobre os antagonismos norte-
esfera da política oficial)': Por fim "pela primeira vez uma parte da classe operária é constituída de americanos - japoneses ou de exortações a manifestações e greves que ninguém pode levar a cabo.
não cidadãos, de metecos de jure e de facto': (Grifo nosso). (idem, p. 161. Grifo nosso)
O leghismo é segundo Moro (201Oa) produto da articulação dos três grandes desequilíbrios italianos: a
enorme desigualdade Norte-Sul, o peso enorme das pequenas e médias empresas e a intolerância em rela-
Esta reflexão lembra a questão central a partir da qual Gramsci construiu os Qua-
ção ao Estado. A intervenção estatal que nos anos 70 tinha diminuído o fosso Norte-Sul deixa, pelas políti-
cas neoliberais, de continuar essa ação fazendo com que a situação voltasse aos níveis dos anos 50 quando derni: porque perdemos?
a participação do Sul na economia nacional era de 23,9%. A Itália é entre os países europeus aquele em que
as pequenas e médias empresas tem maior peso. Isso se deve em boa medida à reestruturação capitalista (o Estar do lado da razão não é suficiente se a isso não acompanharmos fatos e representações claras,
chamado toyotismo, produção enxuta, externalização). Por um lado isso redefiniu a composição da classe constantes, opostas às do nosso adversário. Não é suficiente que de vez em quando se levante
operária (25,6% em microempresas conta 13% em média na União Européia). Se por um lado isso ajudou algum grito se o ruído de fundo é sempre o mesmo. Nesse mar de palavras lixo, de imagens lixo, de
a segmentação da classe operária, por outro criou uma maior dificuldade dessas empresas de responder à desconfiança generalizada e, em suma, de confusão global, o nosso adversário Berlusconi, tal como
crise (presença do Estado e do sistema bancário em benefício das grandes empresas). Bush, introduz conceitos de clareza elementar e lógica binária: o bem contra o mal, o amor contra o
Moro salienta a intolerância/desconfiança, compartilhada pela burguesia e classe trabalhadora do Nor- ódio, a liberdade contra o comunismo, que não só tranquilizam o ouvinte como põem o adversário
te em relação ao estado, levou aos leghistas à sonegação fiscal, mas recebendo políticas tributárias
constantemente em atitude de defesa, uma vez que este a cada vez tem que demonstrar que [ele] não
privilegiadas, fortes transferências estatais. Aqui nos defrontamos com um problema típico do estado
capitalista: a burguesia reclama da presença do estado, mas requer sua intervenção permanente à é o mal, que não representa o ódio, que já não é comunista, ou então que os comunistas não foram tão
seu favor. Na realidade ela pretende que o estado seja mínimo no plano social, mas seja máximo em maus. Uma esquerda em constante atitude de defesa quando, pelo contrário, teria motivos de sobra
seu benefício. Isto garante uma demagogia pretensamente legitimatória. O chamado separatismo para atacar. (Minicuci, 2009. Grifo nosso)
(Padania, como estado nacional) permite criar um bloco socialleghista que o usa retoricamente para Saber ler a mentira global é a única coisa que nos pode render uma liberdade mais duradoura. Para
enfrentar uma série de outros problemas como a questão dos migrantes (a um tempo necessários - fazê-lo devemos escutar com atenção as palavras e os símbolos dos dominantes, [... ] e os lugares
exército industrial de reserva - e malditos - trabalham com salários baixos o que avilta o salário dos comuns que instalam constantemente em nós.
trabalhadores italianos) o que permite que o projeto assuma a forma interclassista ("estamos todos O ponto fundamental é compreender que o dominante tem o poder de decisão. É ele que cria as
no mesmo barco").
326 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 327

alternativas que nos toca escolher: colocando-se, por exemplo, a pergunta absoluta, estamos do 2010) do alto dos seus 80% de popularidade teve a desfaçatez de proclamar: "Nós não
lado da liberdade ou dos tiranos? (Martinez, 2005) precisamos de formadores de opinião. Nós somos a opinião pública!,,466 (Grifo nosso)
Não se trata, a meu ver, de fazer um contra-discurso, mas de construir um novo: o
A grande questão é a liberdade. Colocada abstratamente, assim como cidadania, do sentido de uma nova sociabilidade. E não nos cobrem que isto é uma mera ques-
direitos, não há quem não concorde. O problema é de que liberdade estamos falando. tão de palavras pouco importante na ação prática, no agir político. Quando falamos
"contrà' algo estamos presos às questões colocadas pelo outr0467 . Quando se respon-
As liberdades americanas estão estreitamente ligadas ao fato de que os Estados Unidos são um país
rico. E [o são] porque têm um capitalismo sem freios, um exército em condição de submeter quem
de às questões colocadas pelo outro, corre-se o risco quase absoluto da dissolução
quer que se lhe oponha e praticamente nenhuma oposição interna. Para garantir a permanência do discurso crítico. É preciso não confundir discurso crítico com discurso polêmico.
desta situação, o direito deve ser certo para as empresas, e, portanto, nenhum governo deve ameaçá- Um discurso crítico afirma suas teses no embate com outros discursos, porque se
las com taxações imprevistas, regulamentações ecológicas ou mudanças na política imperialista. respondesse, ponto a ponto, as ponderações do pensamento que o nega, perderia sua
(idem)
identidade, concedendo ao outro a centralidade da questão, se descaracterizaria e
não construiria seu próprio campo, submetendo seus intelectuais à pulverização das
A esquerda foi colocada no canto do ringue463 . Perdeu a iniciativa. Foi (e é) pauta- ideias e conceitos. É preciso reconhecer que quem determina a pergunta, em grande
da pela direita. Para esta falar claro é manipular emoções e ocultar problemas reais; medida, determina o campo de possibilidade das respostas. Esse embate hegemônico é
para a esquerda, que se pensa como portadora da razão é necessário fazer o debate. decisivo: ao aceitar-se a questão do outro tendencialmente perde-se o horizonte estra-
A política reduzida a um jogo de emoções manipuláveis favorece sempre o status quo tégico. O marxismo não é apenas mais uma interpretação do mundo, é um discurso
ante. As palavras lixo, as imagens lixo aqui são outras: se FHC falava em "fracasso- crítico que se pretende matriz de inteligibilidade das práticas de transformação desse
maníacos': Luis Inácio foi mais incisivo, "querem destruir minha obrà: "imprensa464 mundo e como tal é radicalmente necessário.
é para noticiar e não para investigar"465, etc., etc. E mais recentemente (setembro de O discurso polêmico é, pelo contrário, fonte de confusões ideológicas. Lembremos
463 "Mas porque no país que teve o maior partido comunista e o mais forte movimento operário do o tempo e a energia que se gastou para rebater a celebremente falsa questão da perda
Ocidente, uma cultura de esquerda hegemônica por pelo menos três décadas, uma das manifestações da centralidade do mundo do trabalho, ao invés de afirmar-se o discurso estratégico
mais radicais e prolongadas do '68' e a maior proliferação de grupos da esquerda radical caímos tão
baixo o escárnio de toda a Europa seja de direita, seja de esquerda?': pergunta Viale (2010)
necessário: o da liquidação do capitalismo. Isto não impede, pelo contrário, que se
"Para alguns, porque não foram elaborados aqueles anticorpos que, pelo contrário, permitiram a trabalhem as questões dos outros autores/ críticos/ debatedores. Mas é a partir do
outros povos e países de não ser arrastados - ou pelo menos sê-lo em menor medida - pela onda de método marxista que se deve intervir no debate. A ortodoxia no marxismo refere-se
demagogia e populismo que acompanharam os desenvolvimentos da globalização no curso das duas
simplesmente ao método como Gramsci e Lukács afirmaram468 . Dissolver-se no en-
últimas décadas; e que arrisca ter efeitos ainda mais deletérios com a explosão e o prolongar-se - por
tempo indeterminado - da crise econômica. Para outros, porque a maior parte dos recursos daque- táveis:' (Grifo nosso)
las organizações, ou de uma parte preponderante delas, esteve empenhada, por anos, no conter, no 466 "O Planalto usa a TV pública ilegalmente na campanha de Dilma, tem blog sem autoria para
contrastar, no desacreditar, bastante mais que favorecer, os impulsos sociais de quem pretendiam disseminar o que quer e planta em rádios e jornais do interior peças de propaganda travestidas de
representar; deixando assim livres os germes da reação para estimular sossegadamente toda a sua noticiário. Tem mais: o BB, a CEF e a Petrobras fazem campanha subliminar pró-Lula e pró-Dilma
potencialidade; ou verdadeiramente alimentando-os:' (idem) na TV, e a imprensa regional está dominada pela publicidade federal. Sem contar o incomensurável
464 Recomendação absolutamente desnecessária na medida em que ela já o faz salvo quando asso- espaço que Lula teve na mídia nestes oito anos falando o que bem entendia, contra ou a favor do que
ciada a lobies ou quando o(s) governo(s) se apresemtam como de esquerda. "O campo jornalístico, bem queria. O resultado é que Lula é a opinião publica mesmo. E como não haveria de ser? Não im-
que filtra e interpreta todas as propostas políticas segundo sua lógica a mais típica, a do "a favor" e "do porta a barbaridade que diga a sua verdade se dissemina como verdade nacional. Os fatos? Danem-se
contra e do "tudo ou nadà: tenta impor a todos a escolha débil que se impõe a ela: ser "pela" Europa, os fatos, o que vale é a versão de Lulà'. Catanhêde, 2010. Grifo nosso.
isto é progressista, moderna, liberal; ou não sê-lo, e se condenar assim ao arcaísmo, ao passadismo, 467 Sobre isso ver Macherrey (1969). Um autor da envergadura de Engels (1950) ao buscar res-
ao poujadismo, ao lepenisme': isto é ao anti-semitismo. Bourdieu (1999. Grifo nosso) ponder às objeções de Dühring acabou por fazer do seu discurso um exercício sistemático sem as
465 Ramonet (2011) fala de uma crise da imprensa. "Desdobra-se em perda de credibilidade, diretamente qualidades dialéticas necessárias à construção da racionalidade comunista.
ligada à consangüinidade entre muitos jornalistas e o poder econômico e político que suscita uma descon- 468 A questão da ortodoxia foi colocada para o marxismo a partir da ação dos revi sionistas (Berns-
fiança geral do público. Por fim, há a crise econômica, que provoca uma queda muito forte da publicidade, tein, Kautsky, etc.). Kautsky vinha de uma formação darwinista e positivista e Bernstein defendia o
principal fonte de financiamento das mídias privadas e desencadeia pesadas dificuldades de funcionamen- I
to para as redações': No primeiro vemos relações promíscuas entre jornalistas e assessorias de imprensa de
parlamentares, órgãos do poder, etc., o que compromete a veracidade das informações. No segundo caso, ,! uso da epistemologia neokantiana. Do chamado Bernsteindebat, do "Socialismo neokantiano (1896-
1911) participaram: Hans Jõrg Sandkühler, Herman Cohen, Karl Vorlander, Franz Mehrin~, Conrad
Schimidt, Ludwig Woltmann, Farnz Staudinger (este também sob o pseudônimo de Sadl Gunte:),
como veremos, o financiamento massiço da imprensa pela propaganda oficial "resolve" a crise.

IJ
Max Adler, G. V. Plekhanov, Bernstein, Kautsky, Tugan -Baranowsky. O debate centrava -se na relaçao
A missão histórica da imprensa, analisa Ramonet (idem) de criação do espaço democrático de circulação marxismo-ética. Para acompanhar esse debate vejam-se as coletâneas Marxismo ed etica, ~rg~~izada
das informações foi profundamente alterado. "A mídia procura, ao contrário, domesticar a sociedade e por Emílio Agazzi, (1975) e Socialismo y ética. Textos para um debate, organizado por Vrrglho Za-
evitar qualquer questionamento ao sistema dominante. Os grandes meios criaram um consenso em torno patero. 1980. Esse debate foi retomado por Lucio Colletti (1975).
de certas ideias (a globalização e o livre comércio, por exemplo) consideradas 'boas para todos' e incontes-
328 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 329

frentamento das questões de outras racionalidades significa, de imediato, impedir- tenham sido mantidos nos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos e
-nos de pensar e construir nossas próprias práticas. na Inglaterra 471 " (Deddeca, idem). Produz-se assim a falsificação da diminuição da
Pensemos a questão da chamada perda da centralidade do trabalho como defini- classe trabalhadora.
dora da sociabilidade. Esta "constataçãd: vista como verdade, resume fragmentária Lembremos também a forma do trabalho escravo, amplamente generalizada hoje
e arbitrariamente o real contraditório do processo de trabalho, além de ignorar a em dia em especial nos países asiáticos. O mais-valor absoluto sob o comando do
relação processo de valorização/processo de produção. As aparências da sociedade mais-valor relativo atua pesadamente neste sentido. As formas pretéritas tornam pos-
capitalista, entendidas aqui como necessárias, respaldam a racionalidade dominante sível uma extração ainda mais brutal do mais-valor. Por fim, temos a intervenção da
e dissolvem a totalidade: a crise real do capital aparece como crise do trabalho. As tecnologia, poupadora de trabalho vivo. A história do trabalho aparece como história
famosas sequelas - dessindicalização, precarização, diminuição da classe trabalhado- da técnica, vista esta como a força produtiva por excelência.
ra etc. - aparecem como comprovação empírica. Descontextualizadas, deshistorici-
sadas elas são provas plantadas. No caso da dessindicalização, os teóricos do fim do Na manufatura, igual na cooperação simples, a individualidade física do trabalhador [... ] é uma
trabalho sintomaticamente esquecem que grandes empresas como, por exemplo, a forma de existência do capital. O mecanismo social de produção, integrado por muitos trabalhadores
individuais parcelares, pertence ao capitalista. Por isso a força produtiva que brota da combinação
WalMart proíbem a seus trabalhadores de sindicalizar-se. Poderíamos seguir longa- dos trabalhadores se apresenta como virtude produtiva do capital. (Marx, 1959, V. 1, p. 293)
mente com esta demonstração, mas o exposto já é suficiente.
Vivemos no Brasil na década passada um processo semelhante de perda da ini- Fala-se da técnica como se ela não fosse também produto do trabalho vivo. O
ciativa com a aceitação por sindicatos-cidadãos das terríveis Câmaras Setoriais469 • tão decantado trabalho imaterial não é uma entidade à parte. Marx, nos Grundrisse,
Perda que se traduz no permanecer no âmbito econômico-corporativo tornando já discutia o papel da subsunção do conhecimento científico às determinações das
difícil a construção do discurso estratégico ético-político. Gera -se, assim, um pro- relações capitalistas. Sempre é importante lembrar a questão do general intellect. O
cesso crescente de barbárie que alguns chegaram a chamar de apartheid social. A isso fetichismo da tecnologia, maximizado pelos intelectuais do capital (consciente ou
acrescente-se a destruição universal da legislação trabalhista, em nome da globaliza- inconscientemente) passa a substituir no discurso e na prática dominantes a pers-
ção, da ampliação dos postos de trabalho, da liberdade do mercado. "De modo genera- pectiva de um sujeito revolucionário antagonista ao capital.
lizado, os sindicatos470 têm aceitado a desvalorização dos salários, sem que os empregos
469 As Câmaras setoriais surgiram em função da situação vivida na indústria automotiva. Propostas a "organização cibernético-técnica da ciêncià' [aparece] como um instrumento a disposição
inicialmente por Aloísio Mercadante elas seriam órgãos permanentes de alinhamento de preços e dos intelectuais ainda proprietários autônomos do próprio trabalho, isto é, como meio de livre
salários e supunham o envolvimento de todos os atores do processo. Muito se esperou desse ins- partilhamento de informações, como um espaço de cooperação produtiva extra econômica, em
trumento. Glauco Arbix falou em democratização na tomada de decisões e execução de políticas suma, como possibilidade de libertação. Portanto não como uma máquina que desqualifica os seus
institucionais, uma inovação na implementação de políticas públicas no Brasil. A perspectiva era encarregados, mas como instrumento que requer deles a sua virtuosidade. (Modugno, 2010)
efetivamente a da construção de um pacto social. Pedia-se manter o emprego operário e a trans-
parência nas contas das montadoras. Em troca reduções de impostos eram o preço a pagar-se em
troca daquela pseudo-estabilidade. Efetivamente houve a diminuição da carga tributária, mas não a Ainda sobre o discurso que desloca as questões e as respostas oferecidas a elas
manutenção do emprego. Pelo contrário aumentou a taxa de exploração. Com os cortes dos tributos poderíamos citar a empregabilidade que desloca a questão do desemprego do cam-
as áreas da educação e da saúde no estado de São Paulo foram duramente atingidas, em especial as po das contradições capitalistas para a incapacidade individual dos trabalhadores
universidades públicas estaduais. As Câmaras conotaram a capitulação das direções sindicais. Seria
interessante examinar o papel do DIEESE na construção deste mecanismo de expropriação da subje- (são inempregáveis diziam FHC e a burocracia governamental e isso era plenamente
tividade operária e de suas possibilidades materiais. aceito pela imensa maioria das burocracias sindicais). Para muitos era uma "novi-
"Mas na verdade crise fiscal do estado e regressividade dos impostos são ligadas perversamente pela dade" perversa. Sequer era novidade, embora fosse muito brutaI472 • A solução para
redução da despesa pública. Neste modo assalariados e pensionistas, já penalizados porque pagam
as taxas, porque as pagam de modo proporcionalmente superior à sua capacidade contributiva, e verdadeiro responsável pela sua situação:' (Husson, 2007)
porque vêm aumentar as taxas indiretas sobre bens e as tarifas sobre serviços públicos, são golpea- 471 Sobre a Inglaterra há que ponderar-se que apesar da extrema combatividade pré-ta!cherismo ela
dos uma vez mais pela redução da qualidade e da amplidão dos serviços sociais, que deverão então era uma combatividade dentro da ordem, isto é, não colocava o capitalismo em questao. Mas outra
comprar-se 'no mercado '''o (Giacche, 201Od) No Brasil essa forma de expropriação dos já expropria- questão nos parece decisiva. Como afirma Bourdieu (1998a, p. 49) lá o "~ontrato de trab,~lho era um
dos é extremamente brutal. A privatização da seguridade, da escolaridade, dos serviços médicos - aí contrato de common law, e não como na França, uma convenção garantIda pelo Estado.
compreendido o papel do SUS - é uma forma não declarada da luta de classes. 472 Ver OCDE, Politiques du marché du travail: nouveaux défis. Aprendre à t?ut âge. pour re~ter em-
470 "No caso dos sindicatos, a fragilidade da organização dá-se em nível europeu e mundial. En- ployable durant toute la vie. Reúnion du Comité de I' emploi, du travail e des affaIres sOClales. ParIS, 14-15
quanto os capitais estão quase completamente internacionalizados e põem em concorrência os as- Octobre 1997, OCDE/GD(97)162, www.dglive.be/arbeit/Equal /OCDElebenslangesLernem.pdf; ~~m­
salariados de todos os países, os assalariados de todos os pais continuam a se organizar, tendo como mission Européene, Les objectifs concrets futures des systems d' éducation, Rapport de la CommISIon,
interlocutor o seu patronato nacional, seu Estado nacional, mas, de certa maneira, ele não é mais o COM(2001)59 final, Bruxelas, 31.01.2001, www.info-europe.fr/doc02/233/g00c372.pdf.
330 Edmundo Fernandes Dias

as centrais, cômoda, diga-se de passagem, deixou de ser a luta contra as mais bru-
tais estratégias capitalistas para transformar-se em meros instrumentos de forma-
ção profissional, como se CUT e SENAI não tivessem uma natureza capitalista473 •
De instrumento classista as centrais passaram a ser instrumentos de colaboração de
classe. Em vez da luta contra a opressão e a exploração passou-se a privilegiar a quali-
ficação. Estamos diante do famoso sindicato-cidadão, parceiro, ou o nome que se queira
dar. Isto e mais outros mitos como o da sociedade do conhecimento perpetraram a
descaracterização da luta dos trabalhadores. O resultado não é, contudo, uma maior
qualificação do trabalhador; pelo contrário, nos encontramos em face de uma força A EDUCAÇÃO E A TENTATIVA DE CONSTRUIR O CONSENSO
de trabalho mais e mais segmentada e desqualificada.
Aqui se colocam dois problemas: é possível uma qualificação do trabalho s~b o
capitalismo ou será apenas adestramento? O controle operário sobre o processo de Toda solução puramente técnico-especialista se limita a agir como um simples
trabalho é possível sem o controle sobre as forças produtivas? A solução clássica paliativo, na medida em que o nosso sistema não se revele diretamente interes-
do capitalismo é a da recomposição orgânica do capital em detrimento ao trabalho sado na recuperação de quem foi excluído: o que não será realizável enquanto
vivo. É nesse contexto que a tecnologia necessita da informática, da comunicação, do não se tender a resolver os problemas sociais do desemprego, da pobreza, da
ensino à distância. Tudo isto dá sentido e direção à ação do capital. Outras ilusões miséria escondidos sobre o vulto ambíguo da sociedade do bem estar.
cimentam esta ideologia - constituidora do real - como, por exemplo, o trabalho
limpo, feito em casa, autônomo, enfim a do novo trabalhador parceiro do capital. Franco Basaglia
Nada de autônomo, nada de parceria, nada de fim da exploração. Pelo contrário esta
forma de trabalho amplia a jornada, subsume não apenas o trabalhador, mas sua
família também. Computadores, celulares, carros da empresa, isso além de dar um A educação é peça fundamental nesse processo de deslegitimação das forças do
status diferencial puramente aparente ao trabalhador, são apenas uma "comprovação" trabalho. Quando, p. ex., na América Latina, a burguesia ainda possuía um mínimo
- insisto, para os trabalhadores - da superioridade deste tipo de trabalho. Um pro- de projeto nacional e as classes subalternas ainda não tinham irrompido na cena
blema adicional se coloca: o conflito geracional no interior das classes trabalhadoras. política, uma cidadania restrita exigia um projeto educacional. Argentina, Uruguai
As novas gerações orgulhosas do seu saber depreciam a cultura do trabalho dos seus e Chile testemunham isso. Mesmo nessa época a burguesia no Brasil nunca assumiu
pais como grosseira, rústica empírica. Seus pais são assim desqualificados. O traba- esse projeto de cidadania e de educação, ausência agravada pela migração das massas
lho é virtual, dizem. Limpo, autônomo: rurais para a cidade. No Brasil onde o escravismo escancarado durou quase quatro
séculos e onde os trabalhadores conquistaram com sangue, suor e lágrimas um mí-
Virtual é quase sinônimo de possível, imaginável, mas enquanto substituto. Do que? Do real. nimo de direito social a educação foi sempre, quando muito, profissionalizante, ou
Realidade virtual é, portanto, um oximoro, uma realidade não realidade. Mas porque seria "não seja, uma educação instrumental para o capital. A escola profissionalizante, imposta
real'" aquilo que a mente imagina e traduz no sistema cibernético? É imaginado, portanto é real.
Em que se diferencia esta realidade da outra?
desejada, é a recusa do direito dos trabalhadores ao pleno acesso às experiências
Da ausência do corpo, da materialidade - que palavras inquietantes. Na realidade virtual sois e formas culturais consideradas superiores. A escola dita humanista, de conteúdos
catapultado no vazio, mas o corpo permanece na poltrona [... ]. O não virtual é terrível [... ] clássicos, foi sempre privilégio da burguesia e de seus agregados.
vulnerável. Te aciona, te põe em perigo. O virtual te libera do outro na sua corporeidade, isto é, do A situação piora sensivelmente no momento atual. Após uma ou duas décadas
outro em absoluto [... ]. O virtual é realidade codificada e flexível, e provavelmente revela o inumano
da Universidade parecer ser um caminho para a transformação - quando existiu
da flexibilidade total. (Rossanda, p. 5)
um simulacro de projeto nacional e se desenvolveram cursos de graduação e pós
para além dos tradicionais - ela aparece agora, pela intervenção governamental e
por vontade de muitos dos seus professores, como legitimadora de projetos de uma
maior instrumentalização para o capitaL Uma brutal mudança da base social docen-
te, enquanto subjetividade política, caracterizada pela socialização no incontrastado
programa capitalista e no individualismo pós-moderno, aliada a salários baixos, re-
473 O fato de que ex-dirigentes da CUT apareçam em propagandas do SENAI é exemplar.
332 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 333

cursos escassos e a construção de uma privatização interna via fundações, convê- Nesse sentido a chamada educação à distância é fundamental. Trata-se de ensino e
nios, etc., permitem e garantem essa mudança. E não apenas dos docentes, mas de não de educação. Trata-se de mistificar uma formação que não pode ocorrer de fato.
estudantes e trabalhadores técnico-administrativos. Programas de televisão, internet banda larga, tutores (mas não professores) podem
A busca basicamente eleitoreira de afirmação legitimatória dos governantes via dar a ideia de que sejam formas pedagógicas válidas. Na realidade nos defrontamos
uma pretensa ampliação do acesso à escolaridade superior se faz pela política de pão com a modernização da educação via mercantilização. O pior de tudo, isto é, que
aos pequeninos (Prouni, Reuni, UAB). Em suma, escola pobre para os pobres. A uni- universidades públicas no Brasil se juntam ao baronato da educação privada. De
versidade que o capital precisa se faz pela privatização das grandes universidades pú- onde surge esse acendrado amor do mercado pela educação e dos governos federal e
blicas. Privatização via fundações e financiamento por empresas - como a Petrobrás estaduais pela eLearning?
- que faz dos laboratórios universitários o seu centro de pesquisa e dos docentes, Hirtt (2008) nos fala de documento da Comunidade Francesa onde se advo-
técnico-administrativos e estudantes seus pesquisadores desobrigando-se de fazê-lo ga "competências transversais dos saberes comuns às humanidades profissionais e
às suas próprias custas. Universidade-governo-empresas formam um poderoso mixo técnicas"474. Isto significaria em termos práticos:
Trata-se de um revival dos centros de excelência da ditadura capitalista sob tutela
militar e de seus sucessores. Isto permite, dadas às imensas carências populares, um [... ] "Situar-se no espaço e no tempo", "apropriar-se de uma cultura", "apropriar-se de ferramentas de
comunicação", "tomar consciência das implicações de uma escolha", ''posicionar-se com respeito ao
processo ampliado de subalternização dos movimentos populares transformados, ambiente", ''posicionar-se com respeito às tecnologias e às ciências", "abrir-se à diversidade social e
aqui e agora, em massa de manobra para os dominantes. Capturam-se desejos e cultura!", "agir como consumidores responsáveis", "compreender a organização política e o papel das
necessidades do movimento social, ganham-se direções desses movimentos. Lima instituições" (idem.)
analisando a política educacional do governo Luis Inácio, afirma:
Como exigência do processo de mercantilização da educação levado a efeito pelos
a gente vem vivendo o processo que vem desqualificando a formação profissional e reconfigurando, governos sob o comando do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio
intensamente, o trabalho docente. [... ] [é importante] entender como essa reconfiguração vem e da UNESCO nós o vemos como sendo uma "espécie de gestão empresarial das
transformando o papel da educação em um grande negócio. E, ao mesmo tempo, como, através
dessa importante estratégia de massificação do acesso nessa educação desqualificada, vem se aprendizagens e da avaliação" (idem).
configurando uma importante estratégia de obtenção do consenso para que trabalhadores e filhos A Educação passa a ser no momento atual do capitalismo uma poderosa máquina
de trabalhadores consigam aderir às reformas neoliberais. (2009, p. 3) de guerra. Público e privado se interpenetram promiscuamente sob a batuta do pri-
vado' vale dizer das poderosas corporações multinacionais. Estas necessitam moldar
E quem se forma nesse sistema "educativo"? O trabalhador do século XXI, despo- o novo trabalhador que o capital requer. É preciso romper as barreiras nacionais, as
litizado, sem formação cultural mais ampla e, portanto, uma peça no tabuleiro do tradições corporativas, os modelos educacionais anteriores.
desemprego tendencial, aquele "chateação zero" já mencionado. Joga-se sobre ele
a culpa do desemprego: trata-se de um inempregável. A educação antes vista como A expressão "política educativa européia" [... ] [é] o resultado da profunda identidade das condições
forma de ascensão social é agora apresentada (falsamente) como formadora para o objetivas [... ] e da sua força determinante na evolução das políticas de ensino. Não obstante isto o
estudo dos documentos produzidos pelas diversas instituições europeias em matéria de educação -
emprego capitalista, para o mercado de extração do mais-valor. a Comissão e o Conselho, e mesmo alguns lobbies como a Mesa Redonda Européia dos industriais
- é particularmente iluminadora. Não tendo que prestar contas a nenhuma opinião pública,
Aqui também depois de um longo processo histórico, o capital conquista uma outra esfera da estes organismos dizem clara e explicitamente quando outros podem permitir-se apenas sussurrar
atividade humana, a arte de vender cognições: hoje o capital "produz e vende cognições como privadamente. Eles estão mesmo habilitados, pela sua posição supranacional, a formular os eixos
qualquer mercador que venda alimentos e bebidas': Estas cognições são hoje a mercadoria mais comuns, donde centrais, das políticas educativas, abstraindo-as dos vínculos e das especificidades
vendida, como meio de produção ou de gozo, "avalanche de informações miúdas e de diversões nacionais 47s • (Hirtt, 2004. Grifo nosso)
domésticas': Este processo caminha pari passu com a alienação, a separação do novo trabalhador 474 "De fato a 'mercadorià intelectual que escasseia no mercado [... ] é uma competência lingüístico-
mental desta universalidade dos conhecimentos, torna-se a nova riqueza social "que busca fazer -literária de alto nível, o domínio pleno e verdadeiro das linguagens e das línguas, mas mais ainda
sua e pela qual é engolido': Produzida, trocada, consumida pelas novas máquinas, o conhecimento dos diversos códigos; aquilo que falta, e que nos é demandado é, em suma, uma nova retórica da
agora se lhe contrapõe como condição objetiva da produção que pertence a outros, pela qual foi multimidialidade, como competência não apenas de jornalistas, publicitários, 'comunicadores' de
separado e pela qual é reduzido a apêndice como trabalhador precário. empresa, mas também dos 'criativos', dos gestores das páginas web, e, sobretudo da grande fileira
[... ] Não existe hoje trabalhador que não se seja tornado de algum modo um trabalhador mental dos especialistas de 'conteúdo: em suma daqueles que são chamados a responder à demanda epocal:
porque em qualquer ramo da indústria tem sempre que fazer com uma máquina que manipula 'Agora que temos a rede, que diabo colocamos dentro delà:' (Mordenti, 2008)
signos. (Modugno, in Modugno e Giacché, 2007) 475 Hirtt cita os seguintes documentos: "Educação e competência na Europa. Estudo da Mesa Re-
donda Européia sobre a educação e a formação na Europa (1989)"; "Uma educação européia. Para
332 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 333

cursos escassos e a construção de uma privatização interna via fundações, convê- Nesse sentido a chamada educação à distância é fundamentaL Trata-se de ensino e
nios, etc., permitem e garantem essa mudança. E não apenas dos docentes, mas de não de educação. Trata-se de mistificar uma formação que não pode ocorrer de fato.
estudantes e trabalhadores técnico-administrativos. Programas de televisão, internet banda larga, tutores (mas não professores) podem
A busca basicamente eleitoreira de afirmação legitimatória dos governantes via dar a ideia de que sejam formas pedagógicas válidas. Na realidade nos defrontamos
uma pretensa ampliação do acesso à escolaridade superior se faz pela política de pão com a modernização da educação via mercantilização. O pior de tudo, isto é, que
aos pequeninos (Prouni, Reuni, UAB). Em suma, escola pobre para os pobres. A uni- universidades públicas no Brasil se juntam ao baronato da educação privada. De
versidade que o capital precisa se faz pela privatização das grandes universidades pú- onde surge esse acendrado amor do mercado pela educação e dos governos federal e
blicas. Privatização via fundações e financiamento por empresas - como a Petrobrás estaduais pela eLearning?
- que faz dos laboratórios universitários o seu centro de pesquisa e dos docentes, Hirtt (2008) nos fala de documento da Comunidade Francesa onde se advo-
técnico-administrativos e estudantes seus pesquisadores desobrigando-se de fazê-lo ga "competências transversais dos saberes comuns às humanidades profissionais e
às suas próprias custas. Universidade-governo-empresas formam um poderoso mixo técnicas"474. Isto significaria em termos práticos:
Trata-se de um revival dos centros de excelência da ditadura capitalista sob tutela
[... ] "Situar-se no espaço e no tempo", "apropriar-se de uma cultura", ''apropriar-se de ferramentas de
militar e de seus sucessores. Isto permite, dadas às imensas carências populares, um
comunicação", "tomar consciência das implicações de uma escolha", ''posicionar-se com respeito ao
processo ampliado de subalternização dos movimentos populares transformados, ambiente", ''posicionar-se com respeito às tecnologias e às ciências", "abrir-se à diversidade social e
aqui e agora, em massa de manobra para os dominantes. Capturam-se desejos e cultural", ''agir como consumidores responsáveis", "compreender a organização política e o papel das
necessidades do movimento social, ganham-se direções desses movimentos. Lima instituições" (idem.)
analisando a política educacional do governo Luis Inácio, afirma:
Como exigência do processo de mercantilização da educação levado a efeito pelos
a gente vem vivendo o processo que vem desqualificando a formação profissional e reconfigurando, governos sob o comando do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio
intensamente, o trabalho docente. [... ] [é importante] entender corno essa reconfiguração vem e da UNESCO nós o vemos como sendo uma "espécie de gestão empresarial das
transformando o papel da educação em um grande negócio. E, ao mesmo tempo, corno, através
dessa importante estratégia de massificação do acesso nessa educação desqualificada, vem se
aprendizagens e da avaliação" (idem).
configurando urna importante estratégia de obtenção do consenso para que trabalhadores e filhos A Educação passa a ser no momento atual do capitalismo uma poderosa máquina
de trabalhadores consigam aderir às reformas neoliberais. (2009, p. 3) de guerra. Público e privado se interpenetram promiscuamente sob a batuta do pri-
vado, vale dizer das poderosas corporações multinacionais. Estas necessitam moldar
E quem se forma nesse sistema "educativo"? O trabalhador do século XXI, despo- o novo trabalhador que o capital requer. É preciso romper as barreiras nacionais, as
litizado, sem formação cultural mais ampla e, portanto, uma peça no tabuleiro do tradições corporativas, os modelos educacionais anteriores.
desemprego tendencial, aquele "chateação zero" já mencionado. Joga-se sobre ele
a culpa do desemprego: trata-se de um inempregáveL A educação antes vista como A expressão "política educativa européià' [... ] [é] o resultado da profunda identidade das condições
objetivas [... ] e da sua força determinante na evolução das políticas de ensino. Não obstante isto o
forma de ascensão social é agora apresentada (falsamente) como formadora para o
estudo dos documentos produzidos pelas diversas instituições europeias em matéria de educação -
emprego capitalista, para o mercado de extração do mais-valor. a Comissão e o Conselho, e mesmo alguns lobbies corno a Mesa Redonda Européia dos industriais
- é particularmente iluminadora. Não tendo que prestar contas a nenhuma opinião pública,
Aqui também depois de um longo processo histórico, o capital conquista urna outra esfera da estes organismos dizem clara e explicitamente quando outros podem permitir-se apenas sussurrar
atividade humana, a arte de vender cognições: hoje o capital "produz e vende cognições corno privada mente. Eles estão mesmo habilitados, pela sua posição supranacional, a formular os eixos
qualquer mercador que venda alimentos e bebidas': Estas cognições são hoje a mercadoria mais comuns, donde centrais, das políticas educativas, abstraindo-as dos vínculos e das especificidades
vendida, corno meio de produção ou de gozo, "avalanche de informações miúdas e de diversões nacionais 475 • (Hirtt, 2004. Grifo nosso)
domésticas': Este processo caminha pari passu com a alienação, a separação do novo trabalhador 474 "De fato a 'mercadorià intelectual que escasseia no mercado [... ] é urna competência lingüístico-
mental desta universalidade dos conhecimentos, torna-se a nova riqueza social "que busca fazer -literária de alto nível, o domínio pleno e verdadeiro das linguagens e das línguas, mas mais ainda
sua e pela qual é engolido': Produzida, trocada, consumida pelas novas máquinas, o conhecimento dos diversos códigos; aquilo que falta, e que nos é demandado é, em suma, urna nova retórica da
agora se lhe contrapõe corno condição objetiva da produção que pertence a outros, pela qual foi multimidialidade, corno competência não apenas de jornalistas, publicitários, 'comunicadores' de
separado e pela qual é reduzido a apêndice corno trabalhador precário. empresa, mas também dos 'criativos: dos gestores das páginas web, e, sobretudo da grande fileira
[... ] Não existe hoje trabalhador que não se seja tornado de algum modo um trabalhador mental I dos especialistas de 'conteúdo', em suma daqueles que são chamados a responder à demanda epocal:
porque em qualquer ramo da indústria tem sempre que fazer com urna máquina que manipula
I 'Agora que ternos a rede, que diabo colocamos dentro delà:' (Mordenti, 2008)
signos. (Modugno, in Modugno e Giacché, 2007)
I 475 Hirtt cita os seguintes documentos: "Educação e competência na Europa. Estudo da Mesa Re-
donda Européia sobre a educação e a formação na Europa (1989)"; "Urna educação européia. Para

1
334 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 335

Educação em estados nacionais subalternizados, transformada em mercadoria, é a um terminal de internet, [... ) explicar como se usa um telefone celular, etc. É necessário que saibam
expressão típica do momento atual do capitalismo. ler, mas não Goethe ou Zola. É necessário que saibam escrever, mas que importa se cometem alguns
erros. É necessário que saibam fazer contas, mas não necessariamente uma derivada ou uma equação
Toda reflexão sobre a escola emana desta premissa obsessiva: "ajudar a Europa a tornar-se a
de segundo grau. Então porque pretender que se invista em um ensino de alto nível para todos, visto
que enfim está claro que a economia não poderá utilizar mais do que 20 a 30% de universitários?
economia do conhecimento mais competitiva do mundo': É esta a maior consequência da crise
(Rosa, Grifo nosso)
generalizada do capitalismo, o qual impõe aos poderes públicos de colocar no centro de toda a sua
atenção a demanda constante de competitividade econômica, e isto em detrimento de qualquer
outra consideração. O ensino deve estar a serviço da competitividade e, para fazê-lo, deve adaptar- É preciso destruir a organização dos professores vistos como entraves para esse
se às exigências do ambiente econômico atual. (idem) processo de desmantelamento da educação; as medidas administrativas cobrem um
amplo leque que vai da transformação da escola em uma «pequena empresa autôno-
«Educação" que para ser eficaz necessita a subordinação política dos Estados na- mà' (Balbastre, 2010) à sua transformação num ringue no qual- como nas univer-
cionais aos diktat dos organismos internacionais e até mesmo das grandes empresas sidades - os professores disputam recursos escassos para seus projetos, verdadeiras
dedicadas ao mercado de formação. Rosa (2009) cita a Gérard de Sélys476: «máquinas para fabricar projetos"479 (idem). «Precarizar o estatuto dos professores
para ensinar para as populações precarizadas. É este o 'projeto'?" (idem). Seguindo
O Tratado da CEE prevê urna ação da Comunidade no domínio da educação e da cultura. Este
dispositivo limita as competências nacionais. A educação à distância é explicitamente citada corno uma tradição que nasceu nos Estados Unidos e disseminou-se como praga universal
um dos objetivos da ação da Comunidade477 [ ••• ] O ensino privado à distância é um serviço [... ] essa luta interna na categoria docente não tem, embora o proclame timidamente,
constitui urna das liberdades fundamentais do mercado comum. (idem) qualquer vinculação com o social, a não ser com o mercado (formas ditas de ino-
vação, formação de trabalhadores.com, nome atual dos velhos gorilas amestrados).
Ou seja, é uma mercadoria478 . Que competências, que conteúdos devem ser ensi- Para tanto se trata de «vender" os colégios para os pais dos alunos (isso conhecemos
nados? Os programas educativos (sic) aplicados aos jovens das classes subalternas bem pois aqui compram-se e vendem-se até presidentes):
nos Estados Unidos, na Europa e, especialmente, nos países da periferia capitalista
devem estar na perspectiva acima citada: Assim, para a academia de Lille, La Voix du Nord e Nord Eclair fazem regularmente o elogio deste
tipo de iniciativas: "Urna butique de RC Lens abre no colégio Langevin d'Avion': "Concurso de
[... ) os jovens [são} coagidos, em massa, a aceitar [...} empregos precários, mal remunerados e para os cálculo mental no colégio Michel-de-Swaen': "Educação musical no colégio Camus: um último
quais não se exige nenhuma qualificação particular, mas apenas uma multidão de micro competências: ano em fanfarrà: "No colégio Van-der-Meersch, fala-se excelência e integração': "A educação para
saber pronunciar uma meia dúzia de frases - educadamente - em uma língua estrangeira, conectar-se a ecocidadania no colégio do Westhoek': etc. (idem. grifo nosso)

urna sociedade que aprende" (Mesa Redonda dos Industriais Europeus (1995)"; "Ensinar e aprender.
Livro Branco sobre a educação da Comissão da Comunidade Européia. Bruxelas (1995)"; "Realizar A velha tradição que divide a educação entre uma escola de elite para os domi-
a Europa através da Educação e da Formação. Relatório do Grupo de Reflexão sobre a Educação e nantes e a escola profissionalizante, pobre, instrumental, para os dominados, já de-
a Formação. Sínteses e recomendações. Comissão européia (1996)"; 'l\prender na sociedade da in- nunciada nos escritos gramscianos48o da segunda década do século passado é agora
formação. Plano de ação para urna iniciativa européia no campo da educação 1996-1998, Bruxelas,
Comissão da Comunidade Européia (1996)"; "Para urna Europa do conhecimento. Comunicação da levada ao paroxismo:
Comissão da Comunidade Européia. Comissão Européia (1997); "Memorando sobre a educação e
a formação permanentes SEC (2000) 1832, Bruxelas, Comissão da Comunidade Européia (2000)': Cresce o fosso entre as escolas da elite, centradas na preparação dos filhos da burguesia para as
476 Éducation et Technologies: enjeux et défis pour le secteur de I' éducation publique, Interna- "funções elevadas" que lhes esperam por herança social, e as escolas do povo, as "escolas lixeiras': as
tionale de l'Éducation, Table ronde de 1'IE pour les pays de l'OCDE, Helsinki, 8-10 Octobre 2000. estruturas de ensino técnico e profissional que se contentam em comunicar as vagas competências
www.ei-ie.org/ edu/french/fedhelsinkseyls.html. A Internacional da Educação corresponde à unifi- "transversais" e "sociais" que a economia exige daqui por diante. Sequer a massificação do ensino
cação a partir do sindicalismo americano com a imensa maioria dos sindicatos da educação.
secundário foi realizada - e agora, muito parcialmente em numerosos países europeus - e já se
477 Cf. o artigo 126, parágrafo 2, alínea 6 do Tratado de Maastricht.
abandonam todas as promessas de democratização de que esta massificação se dizia portadora; e eis
478 "Segundo um relatório do banco de negócios norte-americano Merill Lynch, o mercado da edu-
cação e formação representa 10% do PIB da economia dos EUA, embora ('só') menos de 0,2% do que se confinam as crianças do povo em um ensino esvaziado da própria substância emancipadora.
volume do mercado nacional de valores imobiliários [... ] US$ 16 bilhões em US$ 10 trilhões. [... ] Nas funções técnicas e profissionais, mas também na maior parte do ensino superior, a evolução
o setor do ensino oferece agora as características oferecidas pelo setor da saúde há trinta anos: um em curso se traduz em urna subordinação total ao controle e aos diktats emanadas pelos ambientes
'mercado' enorme e fragmentado, com baixa produtividade, com insuficiente nível tecnológico [... ]. patronais. (Rosa)
com insuficiências de gestão profissional e com baixa taxa de capitalização. [... ] Ainda nos EUA, em
1998, o volume do negócio da Educação nesta modalidade [ensino 'online' via internet] atingia já 479 "Bem, senhoras e senhores, a palavra 'projeto' é uma palavra que, insidiosamente, transforma
US$ 82 bilhões/ano". Cf. Michael Barker, E-education is the New Thing, Edinvest, primeiro trimestre nossa vida em um processo de mercadoria:: Franck Lepage, militante de educação popular citado
2000, www.wiredcottages.com/e-commerce/education.htm. in Rosa, 2009. por Balbastre, 2010. Grifo nosso.
480 Ver em especial "Uomini o Machine?" e "La scuola all'officinà', Gramsci, 1980.

1
336 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 337

Formatar o operário consumidor, o operário parceiro que acaba por ser um mili- esses sindicatos. No plano federal o governo tentou liquidar o ANDES-Sindicato
tante do capital: Nacional cassando a carta sindical ao arrepio da própria constituição. Paralelamente
"convida" uma organização de carimbo (o ProIFES) para "representar a categoriá:
Pretende-se que os futuros trabalhadores aprendam a mover-se em um ambiente dominado Suas políticas "educacionais" (Pro UNI, Reuni, controle da pós - pelas condições de
por tecnologias materiais e organizacionais, capazes de dialogar com uma máquina e com uma financiamento). Leva os docentes ao desespero e ao stress (síndrome de Burnout) e
hierarquia, que se habituem a adaptar a rápidas mudanças de instrumentos e de ambientes. Esses
ainda os culpabiliza. A taxa de superexploração (mais alunos e mais pesquisas com
são os ingredientes que se espera de um trabalhador em um mercado de trabalho flexível. [... ] Cada
um deles deverá ser assim capaz de provar a sua competência profissional, aferível em termos de recursos cada vez menores) se amplia. Cada vez mais a
'empregabilidade' e promover seu auto emprego. O proletário do século XIX é representado no início
do século XXI transfigurado em microempresário, e a relação de trabalho entre mestre e aprendiz pressão exercida para aumentar o trabalho dentro da jornada geralmente de 40 horas se concretiza
transfigurada em autoaprendizagem e aprendizagem intergeracional não formal. Quer dizer, para também alicerçada na idéia de que os docentes deveriam ser "mais produtivos': correspondendo
além da aprendizagem formal, a informal, a intergeracional e a compensatória ganham agora, à "produção" a quantidade de "produtos" relacionados ao mercado (aulas, orientações,
neste novo quadro conceptual, maior ou novo sentido e importância. 'eLearning: a região de publicações, projetos, patentes, etc.) expelidos pelo docente. Por um lado, evidencia esse processo
aprendizagem, a comunidade da aprendizagem e o mediador da aprendizagem surgem como novos de direcionamento empresarial da ciência, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento presente
conceitos e novos instrumentos no processo de ensino, ou antes, em sua pretensa substituição. nos editais dos órgãos de fomento à produção científica. [... ] Essa razão instrumental pode ser
(idem. Grifo nosso.)481 facilmente verificada no conjunto dos editais divulgados anualmente, desde, pelo menos a criação
dos Fundos Setoriais. (Bosi, 2011, pp. 66-67. Grifo nosso)
o quadro é, contudo, muito diferente. Na França, fala Michel Devret, professor de
história e geografia e militante sindical: "Os novos professores se encontram diante dos Paralelamente a isso os governos e as instituições mercantis de educação dita su-
alunos por dezoito horas sem nenhum preparo" (Balbastre). Para além disso recursos perior afirmam estar fazendo educação à distância. Farsa ideológica necessária para
e postos de trabalho são suprimidos. ampliar sua faixa de aceitabilidade. Pura mistificação. Lima (2000) questiona: "é edu-
cação à distância ou ensino à distância? Porque o foco não é na educação [... ] é um
Dezesseis mil supressões de postos se somam efetivamente este ano [201OJ aos trinta e quatro mil e processo de formação que está marcado por uma relação de ensino, da transmissão
quatrocentos registrados em três anos. Quanto aos professores estagiários, que até agora tinham de algumas informações:'
uma jornada de seis horas afim de conhecer o ofício e adquirir métodos pedagógicos e didáticos, A educação tornou-se, mais do que nunca, uma arma da guerra do capital, na-
assumem daqui para frente de chofre cursos quase equivalentes aos dos titulares mais velhos.
[... ] Precarizar o estatuto dos professores para ensinar para as populações precarizadas. É este o
cional e internacionalmente, sobre o trabalho ao mesmo tempo em que se atacam
projeto? (idem. Grifo nosso) os educadores e suas organizações. Diz-se que o corporativismo, por um lado, e a
permanência de formas e conteúdos ultrapassados por outro, são responsáveis pela
John Bellamy Foster, no V Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo (Florianó- crise educativa, sem falar, é claro, que a educação só é prioritária no plano da propa-
polis, março de 2011) chamou a atenção para as práticas de privatização das escolas ganda483 • No Brasil, sob um governo autoproclamado "democrático e popular" isto
públicas nos Estados Unidos e, acima de tudo, de tentativa de destruição das organi- foi levado ao paroxismo. Arsenal extremamente diversificado que vai de uma sai
zações docentes 482 • Isto nos é familiar. Governos federal e estaduais voltam-se contra disant Reforma Universitária fatiada aos planos de expansão das universidades, leis
sobre fundações, sobre o sistema nacional de ciência e tecnologia e sobre o plano
481 Para a Comissão Européia: "Na sociedade do conhecimento, os próprios indivíduos são os prin-
cipais protagonistas [... ] os indivíduos devem ter a vontade e os meios de tomarem os destinos nas nacional de educação do Governo. Cobre-se, assim, todo o campo da subsunção do
suas próprias mãos" (Rosa, 2009. Grifo nosso). O documento da Comissão encontra-se em Mémo- trabalho ao capital. Público e privado promiscuamente reunidos festejam sua "vitória",
randum sur I' éducation et la formation tout au long de la vie, SEC(2000) 1832, Bruxelas, 30.10.2000; tudo com o apoio de vastos setores das áreas mencionadas, muitos dos quais se pro-
Communication Réaliser um espace européen de I' éducation et de formation tout au long de la vie,
COM(200 1)678final, Bruxelas, 21.11.1001; http://europa.eu.int/comm/education/policies/lll/life/ clamavam anteriormente progressistas. Alguns deles, por suas práticas, continuam a
indexjr.html;http://europa.eu.int/ comml education/policies/lll/filesl communicationl com_pt. pdf. afirmar-se tal. E talvez com razão: afinal progressista é quem acredita no progresso,
O que se oculta nesses documentos é a desigualdade estrutural entre as classes. não na ruptura com a ordem do capital. O mote dos discursos é, entre outros, o do
482 Com o aplauso da administração Obama (dele e de seu Secretário de Estado da Educação Arne Du-
can) "as autoridades do Estado de Rhode Island anunciaram a intenção de demitir todo o pessoal docente "desenvolvimento com o fim de aliviar a pobreza, com segurançá' (Taffarel), cujo
do único liceu da cidade de Center Falls [... ]. Recentemente eles foram readmitidos sob a condição de acei- 483 E não apenas no Brasil. Esta é uma das formas típicas do capitalismo em seu momento atual.
tar jornadas mais longas e de fornecer além disso ajuda personalizada aos alunos. [... ] A Flórida acaba de Mordenti (2008) comenta sobre a Itália: "o tratamento que os governos que se sucederam e os mass
votar uma lei que interdita a recrutação de professores debutantes, de fazer depender a metade dos seus sa- mídia reservam às nossas escolas (e aos professores em particular), já que o empobrecimento, o
lários dos resultados dos seus alunos, suprime os orçamentos atribuídos à formação contínua e a financiar a impedimento de trabalhar e a culpabilização, em suma, à perseguição (acompanhada, como sempre
avaliação dos alunos retendo 5% do orçamento escolar de cada circunscrição:' (Ravitch, 2010. Grifo nosso) acontece, pela zombaria e pelo ultraje)". Grifo nosso.
338 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 339

substrato é o da busca da "hegemonia dos consensos como a estratégia e tática de escola. °que se considera como 'guerras de culturà refere-se a um dos mais danosos e nocivos
resquícios da Era Reagan.
recomposição do capitaI:' (idem)
Isto não se produz apenas nas universidades, mas em toda a rede pública de edu-
[. . ]° pontapé inicial do atual debate nos Estados Unidos foi dado por William Bennett, que foi
escolhido por Reagan, primeiro como diretor da NEH (National Endowment for the Humanities),
cação. Esses discursos ancoram-se na desresponsabilização do Estado, ineficiente e isto é, uma agência do governo federal para distribuir fundos para pesquisas nas universidades, e,
perdulário, na busca de parcerias484 e coisas do gênero amigos da escola; na depois, como secretário (isto é ministro) da Educação. Num livro intitulado To reclaim a legacy
publicado pela NEH em 1984, que, em seu modo de ver, estava ligado ao mal-estar da sociedade em
geral. Esse mal-estar era atribuído por Bennett ao declínio precipitado dos valores éticos e morais
cooptação dos sindicatos, partidos e organizações dos trabalhadores, pela via também das
tradicionais e à fragmentação do tecido social do país. (Buttgieg)
chamadas 'gestões democráticas' chamando-se pais, alunos, comunidade para aplicar, pela via da
Lei de responsabilidade Fiscal, pela via dos 'orçamentos participativos: as políticas destruidoras
da educação; [... ] o rebaixamento dos conteúdos programáticos, a educação dos mínimos, a Diane Ravitch, vice-ministra da educação da administração George H. W Bush
desinstrução dos filhos da classe trabalhadora com discursos, argumentos e práticas pedagógicas em 1991 defendia
altamente alienantes e alienadoras que contribuem para a internalização de uma subjetividade
humana auto alienadora. [... ] [e pela] quebra do sistema nacional de educação através do uso de o princípio da remuneração do mérito: considerava que os professores cujos alunos obtinham os
um dos segmentos para justificar a prioridade de aplicação de recursos que não são suficientes para melhores resultados deviam ser mais bem pagos que os outros. Sustentava também a generalização
manter o sistema. Por exemplo, os documentos que usam o ensino fundamental (10 a 90 Séries) dos testes de avaliação, que me pareciam úteis para determinar com precisão que escolas tinham
para justificar a aplicação prioritária de recursos contra o 'caro e ineficiente' ensino superior. Tudo necessidade de uma ajuda suplementar. Aplaudi então plenamente quando, em 2001, o Congresso
isso em obediência aos preceitos dos organismos internacionais. (idem )485 vota um texto neste sentido, a lei NCLB ("No Child Left Behind", nenhuma criança deixada para
trás)486, e de novo quando, em 2002, George W Bush assina sua entrada em vigor.
É sempre bom ter em mente que o desmonte do ensino superior e da pesquisa uni- Hoje, observando os efeitos concretos destas políticas, mudei de opinião: considero a partir de
agora que a qualidade do ensino que as crianças recebem prevalecem sobre os problemas de gestão,
versitária se coloca no campo da perda da autonomia nacional (seja lá o que isso for)
de organização ou de avaliação dos estabelecimentos. (Ravitch, 2010)
e das classes subalternas como projeto de inserção subordinada à ordem capitalista
em escala planetária. O aforismo de Paulo Renato (por que temos universidade se
Lei que vai da punição à privatização das escolas públicas que não obtenham na ava-
podemos comprar tecnologia mais barata na Coreia) comprova a tese da dependên-
liação bons resultados no período de cinco anos. Que vai da multa a oferta de transferên-
cia tecnológica estrutural como visão estratégica da integração nacional subalterna
cia de escola para os alunos que obtenham tais resultados. Eficácia da lei? 'J\tualmente,
ao capitalismo internacional.
cerca de um terço das escolas públicas do país (mais de trinta mil) foram catalogadas
Não estamos falando apenas da França, do Brasil e da Itália. Mesmo nos Estados Uni-
como não conseguindo 'progressos anuais satisfatórios:' (idem)
dos, dito potência hegemônica, esse quadro se materializa. A educação foi sempre mar-
cada pela alteridade, pelo confronto com o comunismo (realmente inexistente). A força Malgrado o tempo e o dinheiro investidos, os escores do NAEP [National Assessment ofEducational
da tradição localista e religiosa favorecia esse conservadorismo de base. Progress] não aumentaram muito. Por vezes eles simplesmente estagnaram. Em matemática, os
progressos eram mesmo mais importantes antes da adoção da lei NCLB [... ]. Em leitura, o nível
° debate nos Estados Unidos sobre os problemas da educação e da escola [... ] está no centro de um não teria melhorado para o equivalente CM1. Para o equivalente da quarta, os escores de 2009 são
os mesmos que os de 1998.
fenômeno que foi chamado em inglês de cultural wars [... ]. Essa é uma expressão que indica toda
uma série de posições e de debates que, freqüentemente, têm o seu próprio centro nas questões da
L [... ] A verdadeira vítima [... ] é a qualidade do ensino. A leitura e o cálculo tornando-se prioritários,
os professores, conscientes que essas duas matérias decidirão do futuro da sua escola e... do seu

I
484 "O Tribunal de Contas da União (TCU) aponta as atividades das ONGs, por exemplo, como
emprego, negligenciam as outras. A história, a geografia, as ciências, a arte, as línguas estrangeiras
fator de destruição dos serviços públicos:' (Tafarell)
e a educação cívica são relegadas ao nível de matérias secundárias. (idem )487
485 Tafarell cita alguns: "Declaração Mundial de Educação Para Todos (1999)'; '/\ Unesco e a educação na
América Latina e Caribe: 1987-1997. Santiago do, Chile: Escritório Regional de Educação para América Lati-
na e Caribe, 1998'; 'f\1fabetização como liberdade. Brasília, DF: UNESCO, 2003'; "'Coordinators' notebook: a Na França as soluções propostas passam pela
infância em debate: perspectivas contemporâneas. Brasília, DF: UNESCO; Carapicuíba, SP: Fundação Orsa,
2003'; "De mãos dadas com a mulher: a Unesco como agente potor da igualdade entre gêneros. Brasília, supressão dos institutos universitários de formação de professores (IUFM) tanto quanto por redes
DF: UNESCO, 2002'; "Educação para todos: o mundo está no caminho certo?: relatório de monitoramen-
de ajudas especializadas para alunos com dificuldades (Rased), colocando em questão métodos de
to global 2002. Brasília, DF: UNESCO; São Paulo, SP: Moderna, 2003': "Formação de recursos humanos
para a gestão educativa na América Latina: Informe do Fórum realizado no IIPE. Brasília, DF: UNESCO, 486 Ver o Compromisso Nacional de Educação Para Todos de 1993, obra dos intelectuais orgânicos
2000" e Gênero e educação para todos: o salto rumo à liberdade: relatório conciso. Paris, França: UNESCO, do capital, que seguimos e cujos resultados conhecemos bem: fracasso retumbante. ,
2003"; "Documento sobre Compisso Nacional de Educação Para Todos (1993)': "Declaração de Nova Delhi 487 '/\ntes dos testes, a visão tradicional era que as pessoas iam para escola para aprender a ter cara-
(1993)'; "Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB 9.394 de 20 de dezembro de 1996, "Plano Nacional de ter, persistência, sociabilidade, coisas assim. [... ] É irôpico que o foc_o ~a escola tenha sido revertido
Educação, nos Parâmetros Curriculares Nacionais; nas Diretrizes Curriculares Nacionais': para ensinar apenas os alunos a ir bem nesses testes. E uma subversao. (Heckman, 2011)
340
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 341

leitura, substituindo os cursos das manhãs de sábad0488 por "horas de sustentação': maleabilidade
da carta escolar, etc. (Garcia, 2010) passivização. Eliminam-se as trocas de experiências, isolam-se subjetividades constru-
ídas diferencialmente, enfim elimina-se o debate. Tudo se reduz a uma mera questão
Nos demais níveis de escolarização a mesma proposta: redução para todos da car- técnica. Vale dizer: estamos no reino da modernização, do eterno presente', da imuta-
ga horária de ensino e sua substituição por horas de sustentação escolar e fora da bilidade, da ausência de perspectivas de rupturas.
escola para os alunos com problemas. O governo
As modernizações não vieram de baixo, mas sim de cima. Não foram democráticas nem plebéias,
mas sim oligárquicas e autoritárias. Não foram produto de "revoluções burguesas antifeudais" - como
não faz senão perseguir e reforçar uma política impulsionada desde os anos 80, cujo enquadramento
rezavam certos manuais - mas sim revoluções-restauradoras, revoluções passivas impulsionadas
teórico se apoia mais sobre lugares comuns ("vontade de aprender': "prazer de descobrir, etc:') que
pelas oligarquias aburguesadas. [... ] Mudou a imagem, mudou a encenação, se transformou o
sobre uma reflexão pedagógica avaliando a eficácia dos aprendizados. (idem)
discurso, mas não se modificou o sistema econômico, social e político de dominação. Inclusive se
aperfeiçoou. (Kohan, 2006. Grifo nosso)
Garcia, em artigo provocativo (Et si l'école servait à apprende... ) nos mostra o senti-
do dessa reforma. O sociólogo Dominique Glasson, citado por ele, afirma: Luperini (2010) analisa o quadro em que os docentes, peça fundamental desse
processo e o conjunto da sociedade se move:
não me parece que se possa esperar do acompanhamento escolar mais do que aquilo que se produziu no
seu tempo a pedagogia da compensação nos Estados Unidos, isto é, pouca coisa e nada de reeducação As medidas governamentais490 que se sucederam contribuíram, além disso, para fazer cada vez
das diferenças de sucesso [. .. ] [produção] por processos não desejados [de] conseguir agravar uma mais coincidir a docência com o papel burocrático, enquanto desencorajaram progressivamente a
estigmatização, por vezes organizar uma segregação entre alunos, sobretudo se são pouco eficazes em função do docente enquanto mediador intelectual, capaz de estabelecer uma ligação entre valores
termos de apoio ao trabalho [... )489
e visões de mundo diversas, entre o horizonte do passado e o do presente, e de distribuir não
apenas competências, mas também porções de sentido e de significado. Por outro lado não se pode
Consequentemente com isso desloca-se a responsabilidade - melhor seria dizer a esquecer as consequências negativas para a escola em geral e para a condição juvenil em particular
culpa - desses problemas para as famílias. Em última análise para as classes sociais. produzidas pela degradação da vida pública e pelo próprio declínio da civilidade italiana e pela
difusão de um novo senso comum feito pelos padrões de intolerância, predomínio dos interesses
Famílias e classes têm possibilidades e poderes diferenciados. Isto pode ser verifica-
materiais individuais, do desprezo por tudo que é de comum e coletivo. O triunfo dos mass media e
do sem termos que recorrer à qualquer teoria. da publicidade, da espetacularização da vida, da digitalização produziram um sentido crescente de
extremidade ao texto literário e mesmo ao literário enquanto tal. A cultura do livro e a predisposição
Sob a cobertura do reconhecimento dos parentes e do seu papel educativo se perfila uma dupla dos jovens à leitura quase que desapareceram e a língua literária é cada vez mais percebida pelos
lógica de externalização das missões da escola e de remeter para as famílias - portanto para as estudantes como uma língua estrangeira e hostil. [... ]
desigualdades da herança cultural - as causas do fracasso escolar. (idem) Falta qualquer referência ao momento interpretativo, à relação entre e formação democrática
dos estudantes, à relação entre análise de texto fundada sobre procedimentos descritivos do tipo
objetivo e o momento subjetivo, e fundamente, da pesquisa do sentido (enquanto todo docente
Está, portanto, em questão tanto a possibilidade (ou não) de uma sociedade existir
sabe que dar sentido ao texto é o verdadeiro desafio de toda didática e consegui -lo significa na
sem o aparato escolar de qualidade, quanto a questão sobre a quem interessa a des- realidade ensinar a dar sentido à vida).
moralização da escola e dos educadores. Não se trata aqui de um discurso corpora-
tivista de defesa destes como se problemas não houvesse. Mordenti (2008a) chama a Mordenti (2008a) considera necessário outro projeto intelectual e moral, isto é,
atenção para o fato de que político:
Por que não podemos (devemos) conceber uma sociedade complexa como um conjunto articulado em Chamarei esta escola de "três L: isto é literatura, língua, liberdade. Entendendo por "literatura' a
que algumas grandes agências formativas públicas (e a maior de todas é a escola) tem a tarefa de corrigir fruição consciente do patrimônio histórico-literário da humanidade (não apenas da nação italiana)
distorções e limites, socialmente insuportáveis, induzidos pela espontaneidade do mercado? (idem) e também o assenhoreamento dos densos códigos retóricos que organizam tal patrimônio; por
"línguas" (no plural e não apenas o inglês!), um acesso direto aos textos do mundo, uma saída
Este é um risco que os dominantes não querem correr. O ensino à distância (que para dos asfixiantes confins do provincianismo italiano; e por "liberdade': a liberdade de ensino e de
melhor enganar eles insistem em chamar de educação) é uma forma privilegiada de aprendizagem, isto é, o pluralismo e a autogestão dos processos formativos que apenas a escola
pública e republicana, garantida pela Constituição, pode garantir a todas e a todos.
488 'l\ssim, na escola maternal, criticada em nome da necessidade de avaliar suas contribuições
A respeito deste horizonte problemático a última década assinala um momento de recuo e mesmo
escolares, todas as crianças perderam duas horas, sem qualquer justificativa pedagógica, com a su-
pressão da manhã de sábado. O ensino passou de 936 para 864 horas anuais:' (Garcia, 2010) de restauração. Assiste-se ao retorno a uma concepção passiva de literatura entendida como
489 Dominique Glasman, "Le travail des éleves pour lecole en dehors de l'école': Paris, 2005.
490 Itália, Brasil... as políticas são extremamente similares.
342 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 343

conjunto de noções e competências neutras dadas por um docente cada vez mais enquadrado e fato de que intelectuais ditos de esquerda, das classes trabalhadoras, assumam como
burocratizado e cada vez menos colocado em condições de desenvolver a própria função.
científica a forma de determinismo tecnológico, tradução atualizada das vertentes
positivistas que aliam liberalismo político, liberalismo econômico e cientificismo.
Cabe aos educadores, que se reivindicam dos subalternos, lutar contra esse proces-
Determinismo que vai do ingênuo «o mundo caminha para o socialismo" até formas
so de destruição da universidade e da escola públicas. A estratégia nacional! inter-
mais sofisticadas: relembremos aqui as críticas de Gramsci e de Lukács a Bukhárin.
nacional dos dominantes é o da substituição de grandes políticas que possam bene-
Veja-se como se pretende anular a vontade social dos subalternos: pobre não é
ficiar os subalternos (quaisquer que sejam elas) por medidas focais, compensatórias,
problema, é solução, dizia Hernando de Soto, principal assessor de Fujimori. Para
minimalistas e de alívio da pobreza. Os gastos que aquelas políticas poderiam exigir
ele os pobres são na realidade empreendedores492• Tirar os pobres da ilegalidade ou
devem ser transferidos para os grandes projetos capitalistas. Essa redistribuição ne-
da informalidade, transformá -los em micro proprietários e assim poder tributá -los
gativa de renda atuaria assim no desengessamento da acumulação. Trata -se de eli-
seria um grande aporte aos erários nacionais.
minar o pouco que o chamado welfare state tinha destinado às classes trabalhadoras.
Ação ortopédica! O que dispensa maiores comentários. Muito mais do que isso se Trata-se de trazer à luz os ativos que eles mesmos possuem. Afirma que são astronômicos os valores
busca eliminar a possibilidade do pensamento estratégico dessas classes «perigosas': nas mãos dos pobres, representados pelas propriedades nas quais moram, uma vez que estas não
Capturar sua subjetividade e enquadrá-la no pensamento dominante é questão de estariam adequadamente registradas - sem constituição legal, sem obrigações, sem direito - fato que
impediria o exercício de todo o seu potencial de capitalização. [... ] sem a propriedade adequadamente
segurança para o capital, pois pobre é sempre tendencialmente subversivo na ótica dos
documentada, estes ativos potenciais também não podem ser convertidos em capital493 •
dominantes, é claro.
Este é um pensamento clássico no liberalismo. John Stuart Mill (On Liberty, 1859) Dar título de propriedade e legalizar as habitações tipo favela é um poderoso ma-
afirmava que a educação pública geral «estabelecia um despotismo sobre os espíritos nancial a um só tempo, econômico e político, forçando e garantindo a «inclusão" dos
[dos pobres, obviamente] que, por uma inclinação natural, conduz a um despotismo subalternos. E acima de tudo construir o operário-patrão usando basicamente a tese
sobre os corpos" (Herrera, 2010) e John Davison Rockefeller (1906): do acionariato social: afinal quem fará uma greve contra si mesmo já que por esta
tese e pela participação nos lucros das empresas forma-se uma comunidade de inte-
Não tentaremos fazer dessas pessoas, e de seus filhos, filósofos ou gentes de ciência. [...i elevar, neles,
autores, educadores, poetas ou gentes de letras. Não estamos a procura de grandes artistas, pintores, resses, passando assim do operário padrão ao operário patrão 494 • Tudo isso lastreado
músicos, advogados, doutores, padres, políticos, homens de Estado - estes não nos faltam. Nossa tarefa com a qualificação como condição de pertencimento a esta nova ordem do mundo
é simples. Organizaremos a educação das crianças de tal modo que possamos lhes ensinar a fazer o do capital.
mais perfeitamente possível o que seus pais e suas mães realizam hoje de maneira imperfeita. (idem) A ampliação dos processos de reestruturação produtiva, entendida como momen-
(Grifo nosso)
to atual da subsunção real do trabalho ao capital495 , a globalização, reforma e moder-
nização do Estado, são mecanismos e estratégias que permitem não só a adequação
Romper com o pensamento dominante requer dos intelectuais das classes subal-
das políticas sociais a esse novo arranjo econômico, sócio-político e institucional,
ternas a recusa de todo e qualquer determinismo, seja ele economicista, seja po-
mas, as condições políticas necessárias a legitimar esse quadro de profundas trans-
liticista. O determinismo é acima de tudo a reificação do real, a comprovação da
formações.
leitura capitalista: a verdade existe e é exterior às classes. Ela está dada desde sem-
pre. A história é transformada em um anedotário de pequenos eventos (que os pós- O processo de mundialização da economia [... ] mudou o sinal da relação entre empresa e Estado.
-modernos chamam de fragmentos do cotidiano)491 ou, por outro lado, a vida e os Não no sentido [... ] que o Estado seja menos necessário ou que exista necessidade de menos
conflitos concretos de homens e mulheres são apenas ''astúcias da razão", de uma Estado, mas no sentido de que as várias intervenções públicas e mesmo o próprio aumento da
razão que lhes é superior e exterior. O que é inaceitável, do nosso ponto de vista, é o t 492 Hernando de Soto, O Mistério do Capital. Porque o capitalismo dá certo nos países desenvol-
vidos e fracassa no resto do mundo, Rio de Janeiro, Record, 2001, citado por Nascimento, 2005. "De
491 Siegfried Kracauer (History: the last things before the last, Markus Wiener, 1994, pp. 160-161) lendo Soto utiliza a palavra lucro ao invés de esmola, referindo-se à forma e à capacidade com que esses
Proust afirma: "Com ele, parece, a história não é em absoluto, um processo, mas uma miscelânea de mu- empreendedores auferem 'lucro praticamente do nada'" (Nascimento, p. 125.)
danças caleidoscópicas - algo como nuvens que se juntam e se dispersam de maneira aleatória. [... ] Não 493 idem, pp. 125-126. Nascimento chama a atenção para ações do governo Luis Inácio como o
existe um fluxo do tempo. O que de fato existe é uma sucessão descontínua e casual de situações, ou mun- Projeto Papel Passado: "Esse embrião de patrimonialização, elaborado em 2003, pelo Minist~rio das
dos, ou períodos, que, no caso do próprio Proust, deve ser imaginada como projeções ou contrapartidas Cidades, atua buscando a remoção dos 'obstáculos' para a regularização das referidas propnedades
dos eus em seu ser - mas teremos razão em presumir um idêntico ser interior? - sucessivamente se trans- dos pobres:' (p. 126)
forma. [... ] Cada situação é uma entidade por direito próprio, que não pode ser derivada das anteriores:' 494 Cf. Mota, 1994.
(citado por Bauman, p. 48) 495 Cf. Marx, 1971.
344 Revolução passiva e modo de vida 345
Edmundo Fernandes Dias

Nesse contexto, as organizações sindicais dos trabalhadores se apresentam como "usuários em


despesa pública, necessária para alimentar um ciclo que tem necessidade de estar continuamente
potencial" desses programas, destacando-se, como elemento central dessa discussão, a expressão
em crescimento, venham se deslocando em uma área que, face ao "coração" da empresa, aparece
cada vez mais marginal, menos capaz de incidir sobre as escolhas produtivas e sobre as estratégias objetiva e subjetiva que estes adquirem junto aos trabalhadores e as suas organizações político-
sindicais. Estes, de sujeitos históricos se transformam em consumidores do "mundo das mercadorias':
empresariais. Há necessidade do Estado no sentido da sustentação do ciclo, há necessidade da
com condições cada vez mais precárias de realizar-se mesmo nesta esfera absolutamente restrita da
despesa pública manobrada em função da continuidade da produção, mas o papel do Estado vem
ocupar um posto, no sistema conjunto da economia e da sociedade, que não pode ser representado sociabilidade. (idem)
como central. Enquanto a empresa, através os processos de centralização [... ] tem condições de ver o
conjunto das interconexões que estão na base das estratégias empresariais; o Estado, pelo contrário, Observa-se que de uma política necessária à acumulação de capital, necessária à
é cada vez menos capaz de olhar para a economia e para a sociedade no seu conjunto, de exprimir realização do mesmo essa política, quando praticada pelo movimento sindical, se
uma política que tenha os caracteres da globalidade e da intervenção incisiva e aparecer cada vez transforma em colaboracionismo. Os problemas do capital e do trabalho parecem
mais como um dos atores, como um dos elementos do sistema que interagem com o sistema
identificar-se. As mudanças no mundo do capital, dito do trabalho legitimam uma
econômico, mas que perderam toda a capacidade de definir o quadro conjunto de referência da
atividade econômica. (Barcelona, pp. 69-70)
tendência que vêm se conformando, principalmente entre as Centrais Sindicais, é a construção
de um discurso homogeneizador sobre a urgência do envolvimento dos sindicatos nas propostas
Nesse campo a assim chamada qualificação é decisiva para o capital, o qual referidas, discurso este justificado pelo fato desses processos serem necessários a uma nova
sociabilidade requerida face às profundas transformações no mundo do trabalho.
exercendo com mão férrea o seu domínio e, afirmando seu projeto, vem, através das instituições estatais, As iniciativas desenvolvidas, em especial por estas organizações, revelam que, nos últimos anos, o
constituindo todo um arcabouço técnico, jurídico e administrativo para gerir as iniciativas no campo Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT - têm servido a subsidiar ações no campo educacional
da formação profissional do trabalhador. Vale observar que o setor privado, deteve, historicamente, a e que a constituição, gestão e apropriação dos recursos advindos desse fundo têm sido fortemente
hegemonia na apropriação dos recursos destinados à formação profissional. Mais do que isso: a partir disputadas por diferentes setores da sociedade. [... ] A CUT e a Força Sindical, perversamente, se
dos fundamentos dos "ajustes" - desemprego, recessão, precarização do trabalho, desregulamentação transformam, passo a passo, em alocadoras da força de trabalho numa reedição aggiornata das
dos direitos do trabalho - converte a formação profissional em um dos alvos principais de sua Bourse du Travail francesas do século passad0498 . (idem, p. 34)
intervenção, dando-lhes estatuto de política de emprego. (Amaral, 2001, pp. 30-31.)

Essas políticas fazem parte de um projeto de constituição do trabalhador do capital


Essa política de restauração do capital requer a legitimação e o uso frequente do
e não mais para o capital. Fazem parte também da reforma do estado com a desculpa
progresso técnico. Magaline,496 vê o progresso técnico, como central para a colabora-
de que é preciso dar uma nova forma, melhorada, do serviço público, exatamente
ção de classes. Amaral salienta: no momento em que se assiste a deterioração desses serviços em especial nas áreas
sociais e sua desresponsabilização de intervenção nestes campos. A principal refe-
Nesse sentido, a teoria econômica burguesa, ao tratar o progresso técnico como neutro e autônomo,
não atribui a este as implicações/efeitos que ele exerce em relação à repartição do rendimento global. rência estatal nesse processo de qualificação/requalificação vem das diretrizes de or-
Por isso mesmo, esta aparente neutralidade tem um caráter extremamente político e ideológico: é ganismos internacionais.
condição de uma teoria apologética do crescimento com progresso técnico, no sentido de que "não Por isso é necessário "reformar" (sic) todo o sistema educativo.
só porque faz das condições teóricas de um equilíbrio o centro das suas preocupações, mas porque
faz aparecer o crescimento como um processo igualmente benéfico tanto para os trabalhadores Tais processos não se resumem à aprendizagem de novos conteúdos de trabalho e ao repasse
como para os capitalistas':497 Aqui, as determinações e os antagonismos classistas se apagam, de informações vinculadas à incorporação de novas tecnologias. O que se depreende é que eles
fazendo "desaparecer" também a subordinação do trabalho ao capital. (idem, p. 31) consolidam práticas políticas de classe, isto é, vêm se constituindo enquanto estratégias de caráter
político na medida em que o Estado interpela os sindicatos a apresentarem suas propostas de
o Programa Brasileiro de Produtividade e Qualidade, os programas de qualifica- intervenção nessa área, na condição de "partícipes" da política de qualificaçãolrequalificação
ção e requalificação "adquirem estatuto de política social à medida que se vinculam profissional em uma condição de igualdade formal, mas de subalternidade real. (idem)
à regulação do Estado, através de gestão financeira específica, advinda de um fundo
público, são definidas com base em critérios de cobertura, acesso e formas de inser- Incorporar os sindicatos nesse campo implica acentuar o caráter de espaço de ne-
ção da população usuárià: (idem, p. 32) O modo como isso se implementa permite gociação, de pactos sociais e não espaço de luta, de embate de projetos classistas di-
que entre os diferentes setores que pleiteiam os recursos públicos encontremos o ferenciados como vem sendo praticado desde, pelo menos, a década de 30 do século
movimento sindical. Qualificação e cidadania parecem caminhar pari passu. passado.

496 Magaline, p. 12.


497 Idem, p.156. 498 Século dezenove, é claro.
346 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 347

Os sindicatos, de elementos contratendenciais ao movimento do capital, de forças antagonistas, das cooperativas, dos pequenos negócios, de atividades geradoras de renda, até o discurso da
se transformam em cidadãos coletivos da Ordem do Capital. [... ] Esta estratégia, ao incorporar qualificação, como possibilidade de inserção no mercado de trabalho. (idem, p. 39)
interesses e reivindicações históricas dos trabalhadores, responde a uma dupla necessidade do
Estado na atual conjuntura: como condição de sua legitimidade e como meio de recomposição das
Processo típico de fuga para frente, essas políticas de qualificação (sic) nada mais
suas bases materiais e subjetivas de dominação (idem, pp. 34-35).
são do que a construção de ilusões de curto prazo. Política que trata de realizar para
Esse mecanismo de adestramento, dito de qualificação/requalificação, é, na rea- o capital a reprodução da força de trabalho que ele necessita. Reforça-se, assim, a mi-
lidade um mecanismo de desvalorização da força de trabalho por submeter mais e tologia da empregabilidade, a da culpa objetiva dos trabalhadores por não possuírem
mais o trabalho vivo ao ritmo ditado pelas tecnologias (trabalho morto). Estamos qualificação. Essa prática (e é), no máximo, a preparação de técnicos intermediários
falando da permanente recomposição orgânica do capital acrescida de um plus de capazes de implementar as tecnologias que já vem prontas e acabadas. Para tanto é
adesão pelos trabalhadores dessa ordem. O trabalhador deixa de ser o sujeito histó- necessária a elevação da escolaridade básica, afinal como digitar ou trabalhar em um
rico. A tecnologia (como se ela própria não fosse trabalho) surge como o elemento computador se não se sabe ler? Apesar disso temos que ouvir o argumento de que
decisivo. Quem acredita na mão invisível vê aqui um processo sem sujeito.
devidamente "focadà: a educação profissional é hoje componente essencial da empregabilidade. E,
sobretudo, da constituição do cidadão produtivo, sem o qual nenhuma economia se torna moderna
Os estudos que tratam da dinâmica do mercado de trabalho e das formas que os processos de
e competitiva, nem a sociedade se faz mais aberta e igualitária. 50o (idem)
globalização e reestruturação produtiva assumem no Brasil desde o início da década de 90, mostram
que estes processos reduzem o contingente de trabalhadores, ampliam o desemprego no chamado
núcleo estável, propiciam a proliferação de trabalhadores por conta própria, sem carteira assinada, Amaral esclarece: "Cidadão produtivo é, assim, a nova face da cidadania:' (idem.
com contratos de trabalho temporário e desempregados, agora caracterizados pela condição de Grifo nosso). Mas o que vem a ser o Sindicato Cidadão? Ele é
desempregados ocultos, abertos, por desalento, etc. 499 (idem, p. 38)
fundado nas concepções de ética, solidariedade e participação democrática dos trabalhadores.
A imensa maioria dos sindicatos, pós-queda do socialismo realmente inexistente, Com efeito, os cursos de qualificação/requalificação implementados reforçam essa perspectiva,
da aparente vitória eterna do capitalismo, praticam um substitucionismo impor- que mais parecem levá-los a modificar suas práticas sindicais e atuar, fundamentalmente, no
plano institucionalista. O Sindicato Cidadão aparece aqui na sua determinação essencial: ele é a
tante: de elementos de luta, transformam -se em parceiros do capital, passam a ser anticidadania dos trabalhadores. (idem, p. 40)
sindicatos-cidadãos. A absorção da ideologia da cidadania foi estimulado por um
enorme contingente de intelectuais ("assessores': intelectuais universitários). Muitos Não se pode fazer a reestruturação capitalista sem as auto proclamadas reformas
dentre estes foram extremamente dogmáticos no passado e, agora, diante da derrota do estado, da educação, da previdência, da saúde, mas faz falta
daquilo em que acreditavam passaram a fazer justo o oposto sem sequer explicar-se
diante do seu público. Na situação brasileira isto se agravou quando esta estrutura [... ] uma nova cultura do trabalho, outra racionalidade, que incorpore as necessidades do capital,
sindical se confundiu promiscuamente com o programa de governo de Luis Inácio. mas, ao mesmo tempo, apareça como sendo uma necessidade real do trabalho. Em outros termos,
O nível de tensão diante do qual os sindicatos se encontravam levou -os a acentu- a qualificação alçada a um projeto indiferenciado de classes, em que Estado e trabalhadores
participam da formulação das propostas e da gestão dos seus processos. (idem)
ar suas práticas corporativas justo em um momento em que estas apareciam como
improváveis. Não deram conta de criar políticas para seus filiados desempregados,
mas buscaram aparecer diante da sociedade como preocupados, por exemplo, com Fratura das formas históricas de organização e esgarçamento de uma cultura política
os sem tetos e os meninos que vivem na rua. que comporta alternativas à ordem do capital, eis o projeto. E o que é mais notável: tudo
isso se faz com o dinheiro dos próprios trabalhadores, com o Fundo de Amparo ao
Parece-nos que é exatamente neste terreno fértil que se movimentam as forças hegemônicas Trabalhador (recursos arrecadados pelos programas PIS/PASEP, além de parte da arre-
no sentido da construção de um consentimento ativo dos trabalhadores para atender as atuais cadação do Imposto Sindical) em princípio, de amparo ao trabalhador. Tudo
necessidades do capital de recompor as bases objetivas e subjetivas da sua dominação. As estratégias
utilizadas vão desde o incentivo ao desenvolvimento de novas formas de produção, como é o caso
[... ] parece se transformar no meio através do qual se realiza uma estratégia política que tem como vetor
499 "O Dieese incorporou na sua metodologia de Pesquisa Mensal de Emprego e Desemprego PED- favorecer as necessidades de qualificação do capital, com o endosso dos trabalhadores. Este discurso é,
-Seade/Dieese a categoria 'desemprego por desalento'. Tal classificação define-se pela mensuração aqui, decisivo. Ele é a condição de possibilidade da neutralização da vontade classista. [... ]
do fluxo de pessoas, que, nos últimos 30 dias, em função da pouca probabilidade de obter um novo Mais do que isso, a interpelação que o Estado faz aos sindicatos, particularmente na esfera da
emprego se desencorajam, desistem ou reduzem a intensidade da procura de trabalho. Essas pessoas, formação profissional, os colocam no campo do "horizonte possível': de construção de um
no entanto, apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses': (Amaral, p. 38)
500 Ministério do Trabalho/Sefor, 1996, citada por Amaral, p. 39.
a

348 Edmundo Fernandes Dias

projeto político consensual e partilhado, cujos vetores encerram uma inflexão nos processos de
enfrentamento, de lutas, de contradição, que selam a possibilidade de construção das identidades
políticas das classes trabalhadoras e as subsume enquanto sinônimo de sociedade civil, a qual deve
ser responsável, nesse quadro de dificuldades do capital, por dar respostas favoráveis aos problemas
históricos da desigualdade social. (idem, pp. 41 e 43-44)

CONSTRUIR O SENTIDO, O PROJETO

Marco Polo descreve uma ponte, pedra sobre pedra.


Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Kan.
A ponte não está sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas
pela linha do arco que elas formam.
Kublai permanece silencioso, refletindo. Depois acrescenta: Porque me falas das
pedras? É apenas o arco que me importa.
Polo responde: - Sem as pedras não existe o arco.

Italo Calvino - Ie città invisibili

Mitos como o da cidadania, que não têm, para além da retórica, significado real e
efetivo de liberdade para os subalternos, atuam no sentido de aprisioná -lo à ordem
do capital. A inclusão de ex-militantes à esquerda do espectro político não basta para
provar a existência de uma democracia real, revela-se apenas a forma de tratar as
contradições colocadas aos subalternos. O significado real de um governo não é de-
terminado pela forma institucional, pela realização de eleições de quatro em quatro
anos, ou pela presença ou não de subalternos no seu centro executivo. O significado
real é dado pelo conjunto das políticas que implementa, pela sociabilidade que efeti-
vamente constrói e não a que proclama. Gramsci em uma arguta passagem pergunta:
se existe uma contradição entre o discurso que se fala e o que se realiza, qual é o
verdadeiro? A resposta é clara e imediata: o que se realiza efetivamente. Mais do que
nunca a relação essência-aparência funciona: não é preciso que essa cidadania exista
de fato, basta que os subalternos acreditem. Não temos porque estranhar a presença
de ex -dirigentes sindicais no governo. Eles são necessários para controlar as massas,
para impedir que elas se ponham em movimento. Burocracias e institucionalida-
des tratam permanentemente de capturar a subjetividade antagonista, mantendo ou
criando a subalternidade dos trabalhadores.
O Estado é o instrumento que constrói estrutura e potencia do poder dos dom i -
nantes, dando-lhes organicidade. Já a característica dos subalternos é a sua não-or-
350 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 351

ganicidade, a ausência de instrumentos de construção dos seus projetos. O mito de por sua vez a alimenta, observa para salvar o passado somente para servir ao presen-
um Estado para todos é uma necessidade para o exercício do poder na Ordem do te e ao futuro. Deve-se fazer de modo que a memória coletiva sirva à libertação, e não
Capitalso1 • Esse Estado para todos, independentemente das suas políticas objetivas à sujeição, dos homens:' (Le Goff, p. 62)
se faz senso comum, por exemplo, na ideia do sindicato-cidadão. Se antes o estado Entender como o real se constitui, para além das ideias-forças com que se pretende
aparentemente assistencialista permitia administrar tensões com a substituição de manietá-lo, só é possível pela análise dos movimentos das classes, das suas lutas, das
políticas de geração de postos de trabalho pela generalização de um estado de bem- suas formas-projetos de construção de uma sociabilidade. O real, para os marxistas,
-estar social do jeitinho tupiniquim (o chamado estado de mal-estar social), hoje é a atualização permanente das relações de força e das conjunturas no interior de
isso passa a ser essencial para mistificar as massas pela propaganda políticaso2 • uma determinada formação social. É necessário ter sempre presente a afirmação de
Na Ordem do Capital é impossível resolver a questão da opressão/ exploração. Sé- Marx (em O Dezoito Brumário), segundo a qual os homens fazem a história, mas
culos e séculos de prática social burguesa demonstram que esta só pode existir pela o fazem a partir de condições determinadas. O real é, assim, o produto das lutas de
permanente expropriação subjetiva e objetiva das classes trabalhadoras. Estas têm, classe que determinam os movimentos históricos. A história é, portanto, um precioso
portanto, uma luta de classes crucialmente sobre determinada. O combate não pode laboratório para a construção do novo. Nas palavras de Badaloni: '1\ história é um
ser dado apenas no plano da materialidade imediata. Ele exige fundamentalmente drama, ao qual os contemporâneos pretendem ser os únicos atores, dando aos pró-
a luta ideológica. Deslegitimar a ordem do capital significa acima de tudo organizar prios medos, nomes e formas sempre novas:' (2005, p.31) Não podemos, infelizmen-
a possibilidade de uma nova sociabilidade. Aceitar seus conceitos, suas práticas e te, nos limites deste texto, examinar elementos fundamentais nesse processo, como
sua institucionalidade significa permanecer preso umbilicalmente à subalternidade. ONGs, terceiro setor, economia solidária etc..
Rosanda (p. 19) nos adverte: Toda formação social é um conjunto articulado de estruturas contraditórias que
é necessário conhecer. A primeira delas (a mais abstrata) refere-se ao modo próprio
perdemos porque estamos enfeitiçados pelo adversário. De que matéria teriam sido feitos nossos no qual e pelo qual as condições materiais de existência, as formas de vida, se pro-
sonhos se [acreditássemos] dever e poder mudar este mundo? Sobre que fundaríamos outra duzem e reproduzem as classes e seus antagonismos. O chamado Capítulo Inédito de
comunidade, se já são garantidas nesta as razões da liberdade? [... ] Não se faz política sem
O Capital demonstra que, no capitalismo, o fundamental é a produção e reprodução
necessidade. Não é um optional. (O 10. Grifo é nosso)
das relações sociais capitalistas, das classes. Nele a totalidade se expressa em uma
contradição entre a produção socializada e a apropriação privada dos resultados do
O escravo percebia sua situação como natural e, portanto, eterna porque a via com
trabalho humano. A forma pela qual se dá a extração do sobre trabalho é decisiva na
os olhos do senhor. A sua fala era a fala do senhor. É preciso romper com o olhar e a
decifração do mistério da dominação, das formas e das estruturas a partir das quais
fala naturalizadoras, é preciso afirmar que a escravidão é histórica e, assim, como ela
é possível construir a inteligibilidade do real. A Teoria do Valor, ao demonstrar a
nasceu também pode morrer. O mesmo vale para o capitalismo e para o conjunto
unidade indissolúvel exploração-opressão, marca a forma mais geral do antagonis-
das classes trabalhadoras. Estas só poderão afirmar-se como autônomas se olharem
mo das classes.
para si mesmos com seus próprios olhos, afirmando seus projetos e suas sociabili-
As classes são criadoras e criaturas dessas relações. O antagonismo não é uma in-
dades, historicidades e culturas. O determinismo é o ópio do militante e seu modo de
venção criada por seres que buscam introduzir conflitos no real, como afirmam os
realização é o sectarismo. Recusar o sectarismo e desenvolver a inteligibilidade do real
capitalistas: ele é produzido pelo desenvolvimento desse modo de produção. Não é
são condições absolutamente necessárias para construir o projeto comunista, a nova
uma figura de ficção perversa e pervertida dos contrários à ordem, mas, elemento
sociabilidade. Esta tarefa é exatamente a possibilidade de pensar seu próprio projeto, a
central dessa mesma ordem. O simples ato de produzir marca, não apenas as merca-
construção dos intelectuais dos subalternos.
dorias produzidas, mas, a própria existência das classes (figuras centrais da sociabili-
As lutas se dão também no plano da representação locus privilegiado da memória.
dade da Ordem do Capital). Estas existem e se consubstanciam em relações sociais,
Terreno de disputa onde os dominantes levam a imensa vantagem de não apenas
apesar de serem negadas no plano jurídico-estatal vigente. Ingrao (1981) mostra a
preservar sua memória, experiências e linguagem, mas por fazer com que os subor-
intervenção da burguesia sobre a classe trabalhadora:
dinados se pensem, vivam e atuem em uma memória que não é a deles. Uma das
perguntas cruciais é, portanto, a do sentido da "memória, a que atinge a história, que
A sociedade capitalista, em suas próprias respostas às suas crises, intervém no interior da classe operária,
501 Lembremos que o estado dito soviético quando se proclamou o "estado de todos" vivia, na prá- decompõe-na, condici~na-a e a influencia. A consciência de classe não é um dado fixo, conquistado
tica, o momento máximo de exclusão da possibilidade de proletários e camponeses realmente go- de uma vez por todas. E um dado histórico, móvel, contestado e contestável, que se realiza e se verifica
vernarem. sempre sobre novos conteúdos, ligados às mudanças da sociedade e do choque social. (107)
502 Sobre isso ver Tchakhotine, 1952.
352 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 353

A naturalização do modo de produção dominante vai além da pura esfera da ime- ancora-se em um cotidiano onde os dominantes usufruem abundantemente o fe-
diatidade. Atua sobre o conjunto da formação social no sentido acima explicitado. tiche da igualdade de possibilidades entre todos os indivíduos de uma sociedade
Organiza o espaço social e natural. E também comanda a percepção dos indivíduos determinada.
com rebatimento na redução de classe para o de categoria.
Se o Estado se torna um lugar parcial, um terreno limitado no qual uma camada "especializada"
Fala-se em produtividade; e com razão. Mas que produtividade? Todos nós vemos diante de gere recursos de poder e recursos financeiros em função de vantagens e desvantagens que
nós um tipo de produtividade: o ligado ao "modelo' em ato, que leva - ou melhor, reproduz - à frequentemente coincidem com o sucesso ou o insucesso de uma parte política, o Estado deixa de
marginalização de milhões de jovens e de mulheres do trabalho produtivo, que reduz as zonas ser o terreno comum no qual se definem as regras do jogo da sociedade como um todo e se fixam
internas às áreas assistidas, e que perpetua sob novas formas o desequilíbrio dilacerador entre as condições daquelas que foram na experiência do Estado social as várias formas do compromisso
Norte e Sul; e que implicou e implica a destruição selvagem do território. A produtividade ligada democrático.
a uma visão da fábrica [... ] na qual o operário se sente apenas como fragmento de uma máquina, Este debilitamento da função do Estado tradicional reduzido cada vez mais, mesmo no imaginário
sendo assim educado para o absenteísmo, continuamente empurrado para o terreno corporativo e coletivo, a um "executivo': que determina a "práxis" de relações e redes, ao invés de produzir
para uma luta encerrada no aspecto quantitativo do salário. (idem, 108) inovações normativas ou reformas de estrutura, levou a uma profunda modificação do papel dos
partidos de massa. (Barcelona, p. 71)
Tudo isto produz uma forte determinação na totalidade social concreta. A passivi-
zação do trabalhador atinge mesmo suas condições psicofísicas, atuando na consti- A mutação política se traduz na perda de sentido e efetividade dos partidos.
tuição de elementos patogênicos. Insisto: o capitalismo mata, resta saber se pouco a A democracia sendo reduzida a mera seleção das burocracias partidárias e esta-
pouco ou de uma forma mais acelerada: tais remete os indivíduos - os militantes incluídos - para uma esfera separada
e superior, que determina seus movimentos e interesses independentemente da
De um lado, vai-se a uma forma de organização do trabalho cada vez mais "externà: em relação àquela sociedade.
que tradicionalmente era o "lugar" da produção, e as funções de trabalho aparentemente menos ligadas
às tradicionais prestações manuais, mas substancialmente mais repetitivas passivizantes e parcializadas Precisamente por isso os partidos de massa se organizaram como agregações estáveis e duradouras
(pense-se nas novas doenças sociais, psicoses e neuroses de computador). Tende a desaparecer o operário- em vista dos objetivos que se referiam essencialmente à destinação social dos recursos públicos. O
massa ligada à linha de montagem. "ocultamento" do Estado no sistema e sua redução a ator parcial, a perda da centralidade evidente
Por outro lado, se delineia uma forma de mediação cultural entre produção e vida, entre produção e do Parlamento e dos locais representativos, o debilitamento da política como lugar de manifestação
consumo estruturada sobre os grandes meios de comunicação e sobre os novos papéis dos "feitores de de grandes opções e de grandes agregados de interesses, conduziu os partidos de massa a um
opinião' que legitima segundo modalidades inéditas os valores da produtividade, da competição e do processo de desagregação, face às formas tradicionais de pertença e às tradicionais motivações
sucesso, medido sobre a quantidade de consumos e dos novos símbolos de status. (Barcelona, p. 72. ideológicas, e lhe [... ] homologou os comportamentos aos processos de massificação típicos da
Grifo nosso) atual fase da economia e da sociedade.
[... ] A seleção da camada política dos partidos e das altas burocracias do Estado ocorre
As relações sociais, enunciadas acima, determinam as estruturas e o conjunto de consequentemente de fora da forma de controle que de algum modo se podia atuar no interior do
chamado compromisso social, fundado sobre o reconhecimento da propriedade privada da empresa
relações que as conformam. Falamos aqui das formas contraditórias pelas quais e da legitimação do movimento operário a intervir, através do Estado, sobre o processo distributivo.
as classes se apropriam das mercadorias e das possibilidades materiais: as relações A camada política autonomizou-se, de fato, face às funções de representação-legitimação e tende a
sociais de consumo S03 • Estas determinam formas particulares de inserção das clas- produzir-se e reproduzir-se segundo lógicas internas aos aparelhos de poder existentes no uso dos
ses na totalidade social, tanto pelo consumo de bens supérfluos, quanto daqueles "recursos públicos" (dos financiamentos às intervenções militares) e da capacidade de "negociar"
com os potentados econômicos e com o sistema de informação. (pp. 72-73)
extremamente necessários à vida das pessoas, como saúde, educação, informação.
As contradições classistas têm aqui um momento e uma forma particular de exis-
tência. Se no plano da produção material não há espaço para a igualdade (mesmo A articulação entre Estados nacionais e empresas multi e transnacionais ganha
que puramente formal), aqui, no reino da circulação, esse fetiche da igualdade aqui maior clareza. O Estado não desaparece como afirmam os neoliberais mais tos-
ganha uma centralidade na vida das pessoas. Ao privilegiar sua ação no plano cos e os pós-modernos menos avisados. Ele ganha novo conteúdo e novas formas
da circulação, a esquerda distributivista deslocou(a) a luta do plano da produ-
que a crescente conexão dos diversos segmentos produtivos e das diversas seções do trabalho e a
ção onde o conflito pode ser mais claramente detectado. O que é vulgarmente informação contextual dos níveis estratégicos do processo produtivo tornam de fato as empresas
entendido como política, aí compreendidos os aparelhos privados de hegemonia, supranacionais, colocadas nos níveis estratégicos da inovação, titulares de um poder de "planificação
estratégicà' que assume os sinais de um controle tendencialmente totalizante da vida social.
503 Sobre a relação juventude/consumo ver Jesus e Câmara (2006) Isto não apenas põe em perigo a democracia, entendida como autogoverno social dos homens
354 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 355

livres (e não como mero procedimento), mas tende a anular a própria dialética entre a objetivação de indivíduos (cada vez mais) capazes de autoprodução do sentido. Em segundo lugar, o choque
do processo produtivo e tecnológico e a subjetividade consciente dos indivíduos de carne e osso e a entre escolhas relativas ao modo de como construir os lugares da convivência social: isto é, a
própria forma das relações sociais fundadas sobe a comunicaçãos04 • (p. 93) escolha entre cidades que desaparecem para deixar espaço a uma série de 'condomínios' (villagi)
homólogos entre si, unificados pelo circuito da mídia e dos sistemas informáticos; e cidades que
Cabe aos subalternos - seus intelectuais e suas organizações - desmistificar o que recuperem uma função de lugar de comunicação 'social: em condições de reatribuir ao indivíduo,
assumido na sua socialidade, a dimensão da identidade e das diferenças.
se convencionou chamar de democracia, que tende a identificar-se com o governo
Uma estratégia que aponte sobre uma cidadania "conflitivà' significa a definição de um percurso
dos sábios, dos técnicos, dos competentes. que torne "visível" sobre o plano institucional não apenas a questão dos direitos (de áreas de tutela
dos indivíduos), mas também e, sobretudo a questão dos poderes. Isto é, significa passar de uma
A democracia [... ] não pode ser senão o regime do conflito das opiniões· contra o domínio das concepção da ampliação da cidadania que ocorre apenas "por inclusão" progressiva dentro de um
episteme (certezas absolutas e irrenunciáveis), conflito e também pesquisa de acordos provisórios, quadro estável de situações objetivas, a uma concepção que torne explícita a carga de antagonismo
mas sempre na abertura à interrogação e à criação de novas figuras de sentido. O empenho de uma conflitiva difuso na sociedade entre instâncias não mediáveis não componíveis em meras
esquerda moderna, não dogmática, nem sectária, não pode ser senão o de construir finalmente somatórias que abandonam à participação democrática a tarefa de definir os objetivos e as metas
"a sociedade abertà' de que tanto se falou impropriamente. A sociedade aberta, de fato, é sociais. Participação democrática como alternativa ao poder separado gerido por uma camada de
absolutamente o contrário do triunfante pluralismo da indiferença que deixa nos fatos campo livre "especialistas':
às razões do mais forte. (p. 110) Para reabrir uma perspectiva crítica é necessário discutir a fundo essas premissas e contestar a
redução do homem a ser econômico, a indivíduo privado. É necessário fazer renascer a paixão
Isto significa resgatar a própria noção de política o que implica em por em questão democrática como paixão para a participação nas coisas comuns, nos negócios de todos. É
necessário assumir como tarefa central de uma sociedade a "fabricação" de indivíduos sociais: isto
a chamada objetividade do cálculo econômico racional. A crise que estamos atraves- significa transformar esta socialização que podemos chamar de irreflexiva, em uma socialização
sando demonstra os limites dessa ideologia. O conjunto dos técnicos não se move reflexiva, isto é fazê-la tornar-se a tarefa de uma autoeducação coletiva. (pp. 126-127 e 128)
pelo questionar científico, mas pelo expressar o interesse dos capitalistas. Hobbes, no
Leviatã, já afirmara que quando eu compro tua inteligência, teu saber, tua força e os Acima de tudo faz-se necessário, mais e mais, estudar e decifrar a esfinge capitalis-
coloco a meu serviço eles nada mais são do que a minha inteligência, o meu saber, a ta. Para nós, seguindo a perspectiva gramsciana, o marxismo é ortodoxo por bastar-
minha força. Assim é com a prática das burocracias estatais e empresariais. -se a si mesmo. Ele não necessita de uma epistemologia externa, como aquelas pra-
ticadas pelas leituras neokantianas do final do século XIX ou as do individualismo
Hoje, pelo contrário, aceitamos passivamente que a economia seja um negócio dos "técnicos" e não
metodológico, entre outras, no final do século xx. A tese gramsciana compreende
de todos os cidadãos e que as leis da economia se imponham como leis da natureza. Mesmo o senso
comum acabou com sofrer passivamente esta economicização da vida. Todos os partidos operários a atualidade, real e determinada, do campo teórico-epistemológico marxista como
acabaram por aceitar a lógica de uma esquerda distributivista, que tem dentro a economia como práxis (unidade articulada de teoria e prática transformadoras). E é a partir dessa
"fato natural': Estratégia democrática e gestão social tornaram-se questões separadas. (p. 125) concepção que ele se defronta com os problemas colocados pela luta de classe nas
suas diversas manifestações (por exemplo, classes e suas formas da organização, pro-
Uma nova política, uma nova sociabilidade, requer novos indivíduos políticos, ou cesso do trabalho e suas formas, construção dos intelectuais, análise das conjunturas
seja, aqueles que vivem na polis que se interessam e lutam por ela, que constroem e estruturas, gênero, etnia, questão nacional etc.).
suas necessidades e seus desejos para além e contra a lógica mercantil. Falamos em construção da identidade de classe. Isto é decisivo porque permite
subtrair o conjunto dos trabalhadores - assalariados ou não - ao domínio do
Trata-se, em particular, de pesar e de construir uma forma nova de cidadania, que consinta capital. Fundamental é a construção dos intelectuais da classe. Entendidos estes
"institucionalizar" o 'choque' político sobre decisões fundamentais relativas à organização social:
não como eruditos possuidores de diplomas universitários ou algo semelhante,
em primeiro lugar, o choque sobre a escolha entre uma sociedade que se identifica definitivamente
no crescimento contínuo da riqueza econômica (no incremento sem limites da produção de mas como aqueles que pensam as questões e as práticas de sua classe, elevando-
mais-valor) e uma sociedade que tem, voluntariamente, como objetivo prioritário a construção -se da imediaticidade à construção da racionalidade. Só para termos clareza das
dificuldades do processo, lembremos que os intelectuais das classes dominantes
504 Sobre o papel classista da comunicação (radio, jornais) ver Fanon (1968). A recusa à tecnologia mo-
derna de comunicação pelos argelinos, na luta de independência não apenas por ser o símbolo e a voz do são construídos ao longo de décadas, por um esquema de escolaridade prolongada
dominante vai ser apropriada pelos lutadores anticoloniais. O rádio, por exemplo, permitiu não apenas que e continuada, voltada sempre para a implementação da ordem vigente, entendida
eles tomassem conhecimento do que se passava com os inimigos, mas passou a ser um meio importante como natural e, portanto, única. Sua racionalidade é basicamente econômica. Aqui
de comunicação entre as diversas aldeias, tropas insurgentes e notícias do exterior. A tal ponto que os colo-
nialistas chegaram a proibir a venda de rádios e de todos os elementos necessários para seu funcionamento. se encontra a chave do destaque dos grandes intelectuais em relação ao conjunto
De repressão o rádio passou a instrumento de luta e de emancipação. das classes.
356 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 357

Esses intelectuais se apresentam como desenraizados (Mannheim), quando, na re- Isso significa que a luta de classes tenha que permanecer «clandestina"? Não.
alidade, são classistas, saibam eles ou não. Essa separação permite disponibilizar sua Obviamente, não. Mas para isso é preciso que as classes subalternas construam
capacidade de formulação face à contraditoriedade das classes dominantes e destas os seus intelectuais e o seu saber, projetem estrategicamente a nova sociabili-
com a totalidade social. Diferentemente disto os intelectuais das classes subalternas dade. Um dos lances mais importantes desse processo para os subalternos é o
são construídos na academia cotidiana da luta (movimentos sociais, sindicais, par- permanente trabalho de escapar à captura da sua subjetividade antagonista, da
tidários), para fazer frente aos discursos polêmicos (desconstrução dos discursos, sua permanente redução do pensamento dos subalternos ao nível econômico-
das práticas, das classes trabalhadoras e que terminam por afirmar a racionalidade -corporativo. Tenta -se interditar a possibilidade destes de construírem seu dis-
opressiva das classes dominantes). Aqui, não pode haver, sob pena de absoluta neu- curso emancipador ético-político; com isso tenta-se prendê-los a um cotidiano
tralização, a separação, o fosso entre os intelectuais e as classes trabalhadoras. repetitivo da imediaticidade capitalista, impedi -lo de pensar sua sociabilidade,
Um projeto de transformação social supõe a necessidade da construção das novas seu Estado. Quando os intelectuais das classes subalternas se passam ao campo
individualidades. O cenário é amplo: das relações familiares às mais diversas formas das dominantes, o que ocorre é uma decapitação da direção do movimento. Esta
de afetividade são aqui e agora o grande desafio. Individualidades que se querem de- é a famosa crise de direção.
mocráticas e, portanto, recusam o individualismo, produto da matriz do pensamen- Por fim a construção do saber sobre o real como produto das classes sociais
to economicista, da concepção de natureza humana historicamente indeterminada, revela a necessidade da articulação paixão/vontade/projetos. O contrário do de-
levada ao máximo da contraposição interindividual e interclassista. Torna-se im- terminismo é, para os subalternos, a afirmação de um novo projeto construído
prescindível romper com as formas positivistas de ler o marxismo, que fossilizaram sobre as determinações concretas da formação social. É pelo conhecimento (de
as práticas das classes subalternas na reificação do famoso conflito capital x trabalho, classe) das determinações sociais que podemos decifrar o «mistério" do capita-
tomado como uma abstração vazia que dá razão a todo e qualquer movimento das lismo. A construção dos intelectuais e da teoria revolucionária é, portanto, obra
classes, sem a compreensão das suas múltiplas determinações. E que nega a conjun- urgente, ou então, resta aceitar a barbárie. Esta é a nossa tarefa. «Desafinar o coro
tura como síntese contraditória e transitória das lutas, recusando a tese leninista de dos contentes" (Torquato Neto), ''afinar o coro dos descontentes" (Itamar Assun-
que «a alma do marxismo é a análise concreta de situações concretas': A luta pelas ção) é a síntese poético-musical da construção da nova sociabilidade para além
consciências é uma das formas superiores da luta de classes. O tempo todo, fora os e contra o capital.
períodos de crise orgânica, a cultura dos dominantes trata de pautar os subalternos É preciso responder uma pergunta que atormenta o cérebro dos combatentes
e, em especial, aos seus intelectuais. O que significa pautar e ser pautado? Para as pelo socialismo: Pode o subalterno falar? Pode e deve. O que significa a fala do
classes subalternas, assumir o discurso e as práticas dos dominantes implica perder subalterno? Significa que ele constrói seu projeto. O subalterno ao construir a
a capacidade de formular as perguntas, de saber o que é decisivo para seu processo sua inteligibilidade do real demonstra duas coisas: a) somos todos intelectuais e
emancipatório. que falar com sua voz, olhar com seus olhos, significa a revolução e b) a efetivação
do projeto socialista, único capaz de criar uma nova sociabilidade para além e
Trata-se, em outras palavras, de transformar a identificação social das necessidades e dos valores, contra o capital.
que dão significado à existência individual e coletiva, de processo guiado por poderes estranhos e
por lógicas instrumentais ao cálculo econômico a processo de auto criação, de auto identificação de
Recuperar de uma vez por todas esse pensamento [marxismo] supostamente "fora de modà' não
toda a sociedade: esta é a tarefa de uma nova estratégia democrática. (Barcelona, p. 110)
implica então uma tarefa puramente acadêmica ou erudita, mas principalmente uma necessidade
política impostergável. (Kohan, 1997, p. 70)
A democracia é muito mais do que a alternância de programas partidários; uma Como Édipo nos defrontamos com a esfinge que nos questiona: "decifra-me ou eu te devoro':
cidadaniasos real (não a vigente) é muito mais do que ter direito a ter direitos. O requi- Decifração essa que dependerá do esforço concreto de todos os sujeitos históricos para superar
limitações e propor-se construir uma unidade real baseada na autonomia e na independência de
sito básico para democracia e cidadania verdadeiras é a possibilidade de superação
classes que não exclua nenhum setor do campo da luta e que vem se constituindo nas vanguardas
da heteronomia (subordinação das necessidades e dos desejos à forma mercantil, dos trabalhos e caminha para empolgar amplos setores de massa. A imobilidade, a passividade,
eliminação da separação/ estranhamento de mulheres e homens em relação aos seus na sociedade é apenas uma ilusão. O conflito está dado. Vem se manifestando nas formas mais
trabalhos e criações): é em suma a possibilidade da construção de uma sociedade diversas e inorgânicas, mas também em projetos concretos de intervenção no real. (Dias, 2004a,
autônoma, de p. 33)

505 '~ 'liberdade' moderna - mãe do contratualismo - é uma filha disforme da violência e do po-
der': Kohan, 1997, p. 41.

j
358 Edmundo Fernandes Dias

uma sociedade que cria conscientemente as próprias necessidades e as instituições que lhes
correspondam e assim fazendo a estrutura a própria identidade e os caracteres do processo de
socialização dos indivíduos que dela participem. A criação social das necessidades é instituição
central da sociedade, que faz ser o que é, que lhe define o horizonte de democracia e confere
significado e valor às coisas. A verdadeira colocação em jogo da democracia é o governo
consciente do processo de socialização, a instituição da reflexividade e da liberdade dos indivíduos
e da sociedade: a consciência que apenas nós somos responsáveis pelo que ocorre. Restituir aos
indivíduos e aos povos o poder de decidir o próprio destino significa coerentemente colocar em
discussão a objetividade do cálculo econômico, a ilusão de um domínio racional do mundo, o
princípio da autoridade absoluta sobre a natureza e da produção ilimitada de mercadorias. Não BIBLIOGRAFIA
é reforma social no sentido do autogoverno da socialização, sem reforma do saber e sem uma
profunda modificação dos valores. (p. 111)

ADAMOV-AUTRUSSEAU, Jacqueline. 1972. '''LAufklãrung: le romantisme" in Châtelet et allii.


É no modo de vida que o jogo se dá. Aí se formam as subjetividades e vonta- ADUNICAMP 2007. ''Adunicamp 30 anos: Universidade e Sociedade", ADunicamp, Campinas.
des. Isto não significa reduzir a luta de classes no período atual do capitalismo AGAZZI, Emílio (org). 1975. Marxismo ed ética. Testi sul dibattito interno aI "socialismo neokantiano
à uma mera guerra de posições, vale dizer privilegiar o campo das reformas no 1896-1911 ': Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milano.
ALBERTAMI, Claudio.2009. "La nascita del operaismo", 7 de setembro. http://www.rassegna.it/
interior das formações sociais, a doplinância do modo de produção capitalista articoli/2009/07/09/49638/ piazza-fontana-prove-di-eversione Acesso em7-3-201O.
em detrimento de uma perspectiva revolucionária. Guerra de posições e guerra ALEGRIA, Ciro. 1961. El mundo es ancho y ajeno, Editorial Louzada, Buenos Aires.
ALLEG, Henri. 1959. A Tortura, Edições Zumbi, São Paulo. 2001. A Tortura, Expressão Popular,
de movimentos não são tipos ideais weberianos. Longe disso: elas se sobrede-
São Paulo. 2004. "Los torturadores norteamericanos de Irak son alumnos de los franceses em
terminam continuamente e isto dá à dialética entre "estratégia e táticà', entre Argelia. Entrevista a Néstor Kohan y Rémy Herrerà: 18 de novembro. http://www.rebelio.org/noticia.
"reforma e revolução': Determina, portanto, os movimentos dos exércitos clas- php?id=7785 Acesso em 30-4-2011.
sistas. Reforma e Revolução são possibilidades inscritas historicamente, nunca ALTHUSSER, Louis. 1967. Pour Marx, François Maspero, Paris.
AMARAL, Angela Santana do. 2005a. "Qualificação, sociedade civil e desidentidade de classe':
fotografias do real. Revista Outubro, n° 5, São Paulo. 2005b. Qualificação dos trabalhadores e estratégia de hegemonia:
O fordismo demonstrou isso na prática. É o embate de projetos classistas. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
AMARANTE, Paulo. 2010. O Homem e a Serpente, Editora FIO CRUZ, Rio de Janeiro.
um fato "epocal" que a diminuição do trabalho vivo pareça hoje inerente ao crescimento. Isto
ANCONA, Pietro. 2009. "Suicidi in Francia e Contratti in Italià: 17 de outubro, http://www.pane-
não muda apenas as relações na empresa: permanecem em um sistema dual, capital por um lado, rose.it/files/index.php? c3:0 16005. Acesso em 28-11-2009.
operários de outro, ligados e antagonistas, que cresciam em conjunto com a ampliação da produção ANDERSON, Perry. 1993. "Norberto Bobbio y el socialismo liberal" in Tula, 1993.
para mercados cada vez mais amplos. (Rossanda, p. 130) ANGELL, Marcia. 2003. "Dr. Marcia Angel introducting the National Health Insurance Bill': 4 de
fevereiro http://www.pnhp.org/ facts/angellintro.pdf Acesso em 2-12-2008.
2011. "Estamos dando veneno para as crianças': Folha de São Paulo, 18 de outubro. C8.
Para Henry Ford, os trabalhadores precisavam ser disciplinados, acostumados ANNUNZIATO, Frank. 1989. "Il fordismo nella critica di Gramsci e nella realtà Statunitense
à moralidade protestante, para serem bons trabalhadores. A Família Ford é a so- contemporaneà: Critica Marxista, ano 27, n° 6, novembro-dezen;bro.
cialização, tanto fabril quanto ético-política, dos "seus" trabalhadores. Era preciso ANWEILLER,Oskar. 1972. Les Soviets en Russie 1905-1917, Editions Gallimard, Paris.
ARCANGELI, Massimo. 2004. "La lengua imbrigliata: a margine del politicamnte correto': in
quebrar a "anarquià' - ou seja, a autonomia e a independência desses trabalhado- Italianistica Online, 30 de novembro. http:///www.italianisticaonline/2004/politicamente correto-O 1
res - para submetê-los ao ritmo das máquinas, das cadências, sem deixar tempo Acesso em 15 de maio de 2006. 2004a. "La lengua imbrigliata: a margine deI politicamente correto" (2),
livre para o perigoso hábito operário de pensar. Vemos uma preciosa visão gráfica in Italianistica Online, 1 de dezembro. http:///www.italianisticaonline/2004/politicamente correto-02
deste processo no Tempos Modernos de Chaplin. As obras de Henry Ford estão aí Acesso em 15 de maio de 2006.
ARICÓ, José e FELDMAN, Jorge (orgs). 1975-1976. Debate sobre la Huelga de Masas, 3 volumes,
para quem quiser comprovar como os capitalistas negam a luta de classes: buscam Cuadernos de Pasado y Presente, Córdoba.
eliminá-la no nascedouro. O curioso é que, embora aos marxistas seja feita a acu- ARON, Paul. s/do "De Marx à Bourdieu': http://contextes.revues.orglindex177.htrnl Acesso em 1-5-2011.
ASSAMBLEA OPERAIA DE TORINO.1969. "FIAT: La lotta continuà: 5 de julho. http://www.
sação de destruição da família, o fordismo acabou por fazer isso pela socialização
nelvento.net/archivio/68/operai/ traiano02.htm Acesso 21-12-2010.
de toda a classe (homens, mulheres e jovens), pela inculcação sagaz (ou pela força) ASSIS, Machado de. 1994. Obra Completa, Vol lI, Nova Aguilar, 1994. In http://www.bibvirt.futuro.
de novos hábitos. Em Americanismo e Fordismo Gramsci sugere que também o usp.br. Acesso em 12-12-2010.
AVELAR, Idelber. 2011. "Israel: nova etapa no Terrorismo de Estado". 26 de fevereiro, http://
stalinismo o fez, ao "recriar" a classe trabalhadora russa destruída pelas guerras
civis e pela intervenção externa.
,
I
revistaforum.com;.br/ Acesso em 25-10-2011.

J
360 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 361

BADALONI, Nicola. 2005. "Uma lettera su Marx e Gramsci': à Remo Bodei (inédita), Critica BELLOFIORE, Riccardo. 2007. "Rive gauche due anni dopo': in Essere Comunisti. Acesso em 15-
Marxista, marzo-giugno, Edizioni Dedalo, Bari. 12-2010.
BALBASTRE, Giles. 2010. "Feu sur les enseignants': http://www.monde-diplomatique.frI201O/1O/ BELLUZZO, Luis Gonzaga de Mello. 2004. Ensaios sobre o capitalismo no século XX, São Paulo,
BALBASTRE/1974. Acesso em 10-3-2011. Editora Unesp.
BALIBAR, Etienne. 2005. "La construction du rasciesme': Actuel Marx, 2, n° 38, 2010. "Europe, Final BENEDETTI, Mario. s/d Inventario Uno. Poesia completa 1950-1985, Editorial Sudamericana,
Crisis?" 22 de maio. http://www.flexmens.orgldrupal?q=Etienne_BalibacEurope_ Final_Crisis%3f Buenos Aires.
Acesso em 9-8-2028. BENJAMIN, Walter. 1986. Documentos de cultura, documentos de barbárie, Editora Cultrix-
BARATTA, Giorgio. 2004. As rosas e os Cadernos. O pensamento dialógico de Antonio Gramsci, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo. 1993. Teses sobre o conceito de história, In Obras
DP&A editora, Rio de Janeiro. 2006. "Popolo senza linguaggio, intuizione gramsciane': Alternative - escolhidas, vol. 1: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense.
Rivista per il socialismo, 2 de novembro, http://www.alternativerivistest.it. Acesso em 8-3-2009. BENTES, Ivana. 2008. "Na casa do patrão: entrevista no caderno Mais, Folha de São Paulo, 24 de
BARATONO, Raffaella. 2008. "Il Feminism Americano degli anni '60. Betty Fiedan, Shulamit maio.
Firestone, Kate Millett, Robim Morgan, Frances Beal e Gloria Anzálduâ' in Storicamente, 4, http:// BERLINGUER, Enrico. 1973. "Imperialismo e coesistenza alIa luce dei fatti cileni': Rinascita, 28 de
www.storicamente.orgl05_studi_ricerche/baritono.htm.Acesso em 3-12-2008. setembro. 1975. Unità deI Popolo per salvare l'Italia. Editori Riuniti, Roma. 1977. Do Compromisso
BASAGLIA, Franco. 1964. "The destruction of the mental hospital as a place of institutionalisation': First Histórico ao Eurocomunismo, Edições Antídoto, Lisboa. 1977a. 'Tausterità: occasione per transformare
international congress of social psychiatry. In Basaglia, 2005. 1967. "Che cose la psichiatriâ: http://www. l'Italiá: 15 de janeiro, http://www.greenreport.it/file/ docs/ Berlinguer%20%eliseo%20%.pdf. Acesso em
triestesalutementale.it/letteratura/testi/333cospsi.htm, Acesso em 25-11-2009. In Basaglia, 2005. 1967a. 7-1-2009. 1981. "I partiti sono diventati macchine di potere': La Reppublica, 28 de julho. http://www.
Corpo e Instituição, In Basaglia, 2005. 1968. "Le istituzioni della violenzâ: in Basaglia (org.), 1968. 1969. palmirotogliatti.it/ content/argomenti/articoli/la_questione_morale_di -enrico_berlinguer Acesso em
'~onte de psiquiatria institucional': Recente Progresso in Medicina, Vol. XLVI, n. 5, maio, in Garcia, 1972. 7-1-2001.
1969a. Carta de Nova York: o doente artificial. In Basaglia, 2005.1970. "Le contraddizione della comunità BETTELHEIM, Charles. 1981. A China depois de Mao, Edições 70, Lisboa.
terapeuticá: http://www.triestesalutementale.it/letteratura/ testi/31/ contri.htm Acesso em 25 de novembro BIAGIOHI, Silvano. 1978. "Los temas de la lucha por la salud" in Basaglia et allii, 1978.
de 2009. 1970a. "Le contraddizione della comunità terapeuticâ: http://www.triestesalutementale.it/ BIIHR, Alain. s/do "Os desafios atuais do movimento operário': Lutas sociais, http://www.pucsp.br/
letteratura/ testi/3/ contr.htm. Acesso em 25-11-2009. 1971. "La asistencia psiquiátrica como problema neils/downloads/ v7_ artigo_alain_bihr.pdf. 2007. "La formule Sarkosy': abril. http://forum.aufeminin.
anti-institucional': LInformation Psychiatrique, vol. 47, n. 2, fevereiro, in Garcia,1972. 1971a. "En los locos com/forum/f667/_f832j667-La-formule-sarkozy-par-alain-bihr.html Acesso em 23-3-2011. 2008.
pienso yo: LEspresso, n. 52,26 de dezembro, in Garcia,1972. 1972. "Uma entrevista com Franco Basagliá: "Le triomphe catastrophique du néolibéralisme", nouveau parti anticapitaliste, ler novembre, http:
Rinascita, n. 48, 6 de dezembro, in Garcia, 1972. 1979. Corso di aggiornamento per operatori pshichiatrici. / /www.npa2009.org/content/le-triomphe-catastrophique-du -n %C3%A90lib%C3% A9ralisme -par-
http://www.news-forumsalutementale.it/Franco-Basaglia-Trascrizione-di -due-lezioni -conversazioni- alain-bihr Acesso em 23-3-2011. 2009. "Le neo-liberalisme. Une politique de Classe: Le cas français':
con-gli-infermieridi-Trieste.pdf Acesso em 3-12-2009. 1989. "La institucionalización psiquiátrica de la maio. www.regards-sociologiques.com/wp-content/uploadsI2009/05/rs_21-2001-3.bihr.pdf Acesso
violência, In Basaglia et allii, 2005. 1989. "Psiquiatria o ideologia de la locurá: In Basaglia, 2005. 1991. "La em 23-3-2011. _ _ e PFEFFERKORN, Roland. 1999. "Les riches, terra incógnita des statistiques",
antipsiquiatria y las 'nuevas técnicas": Zona Erógena, n° 3, http://www.educ.ar Acesso em 23-12-2010. Le monde diplomatique, maio, http://www.monde-diplomatique.frI1999/05/BIHRl11987 Acesso em
2000. Conferenze Brasiliane, organizadas por Franca Ongaro Basaglia e Maria Grazia Giannichedda, 1-3-2005. 2006. "Legalité des chances contre legalité': avril, http://lmsi.net/spip.php?article536. Acesso
Raffaelo Cortina Editore, Milano. 2004. "Intervistá: in Pedagogia Clínica, n. 9, janeiro-junho. 2005. em 12-4-2010.
"Escritos selecionados': Garamond Universitária, Rio de Janeiro. 2010. "Entrevistá: Fundación Carl Gustav BOBBIO, Norberto. 1976. Quale socialismo? Discussione di un'alternativa, Giulio Einaudi Editore,
Jung, 17 de junho. http1://fcgjung.com.es/arty_144.html acesso em 28-5-2011. _ _ et allii. _ _o Torino. 1986. O Futuro da Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
(org.). Listituzione negata. Rapporto da un ospedale psichiatrico, Giulio Einaudi Editore, Torino, 1968. BOLDRIN, Michele e Emiliano BRANCACCIO. 2011. "Controversia su Marchione, Illiberalismo
1978. "La salud de los trabajadores. Aportes para una política de la salud': Editorial Nueva Imagen, 1978a. e Il centro-sinistra Che verra: MicroMega, 21 de fevereiro. http://www.sinistrainrete.info/index.
"Segregación y control social" in Basaglia et allii, 1978. 1989. "Razón, locura y sociedad" Siglo XXI. México. php?option=com_content&view=article &ide =1249&Itemid=66. Acesso em 23-2-2011.
1989a. "Mesa Redondà: Siglo XXI. México. _ _ e GALLIO, Giovana. 1979. "Vocazione terapeutica e BO LOGNA, Sergio. 1988. "Teorie operaiste e rivolta studanteca. La nascita dei CUB Pirelli, le agitazioni
lotta di classe. Per un'analise critica della 'via italianá alla riforma psichiatrica (1950-1978)': Acesso em 4 alIa Fiat, il biennio rosso degli operai e degli studenti': http://62.149.226.72/rifondazionepescara/
de dezembro de 2009. _ _ e ONGARO, Franca Basaglia. 1970. "La enfermedad y su doble': La Rivista di modules.php?name= News&file= article&sid=3349 Acesso em 24-1-2011. 2011. "Illavoro cambia. E
Servizio Sociale, ano IV, n. 4, dezembro, in Garcia, 1972. _ _ e ONGARO, Franca Basaglia (org.). 1971. allora che si fa?': Su la testa, 22 de fevereiro. http://www.sinistrainrete.info/index. php? option=com_
La Maggioranza deviante. Lideologia deI controllo sociale totale. Giulio Einaudi Editore, Torino. content&view=article&id=1253&Itemid=66 Acesso 23-2-2011. ___ e Andrea Fumagalli, 2010.
BARCELONA, Pietro. 1994. Diario Politico. Il vento di destra e le ragioni della sinistra, DataNews, "Lavoro autonomo e crisi econômica, indagine su una realtà diffusa ma misconciutá: www. indipedia.
Roma. it/news/sergio-bologna-e-andrea-fumagalli-Iavoro-autonomo-e-crisi-economica-indagine-su-una-
BARZILAI, Martin. 2003. "La connexion française du Condor': L'Humanité, 20 de setembro. In realta-diffusa-ma-misconosciuta. 26 de novembro. Acesso em 6-2-2011
El Corre0, 17 de outubro. http:// www.elcorreo.eu.org/la-connexion-française-du-Condor&lang=fr BOLOGNARI,. Velleda. 2007. "Il razzismo della prosperità nell'Europa contemporanea - Riflessioni
Acesso em 24-5-2011. a margine dei pensiero antirazzista di Walter Lorenz': http://www.socwork.net/2007/festschrift/arsw/
BLACK PANTHER PARTY. 1966. "Rules ofthe Black Panter" http://www2.iath.virginia.edu/sixties/ bolognari Acesso em 30-11-2010.
HTML_docs/Resources/ Primary/ Manifestos/Panthec.html Acesso em 1-10-2011. 1966a. "Black BONELLI, Laurent. 2010. "Belles mouleures et bon lycée': http://www.monde-diplomatique.
Panther Party - Platform and Programo What We Want - What We Believe': October. http://www2.iath. frI2010110/AI19755. Acesso em 10-3-2011.
virginia.edu/sixties/HTML_docs/Resources/Primary/Manifestos / Panther_.html Acesso em 1-10- BONINO, Guido Davico. 1972. Gramsci e il teatro, Giulio Einaudi editore, Torino.
2011. BOUKHARINE, Nicolas. 1967. La théorie du matérialisme historique. Manuel Populaire de
BASSO, Lelio. 1976. "Le origini deI fascismo (Relazione)': in Fascismo e antifascismo (1918-1936). Sociologie Marxiste, Éditions Anthropos, Paris.
Lezioni e testimonianze, Giangiacomo Feltinelli Editore, Milano. BOURDIEU, Pierre. 1973. "Ibpinion publique nexiste pas': Le Temps Modernes, n. 318. Janvier.
BAUMAN, Zygmunt. 2008. Vida para consumo. A transformação de pessoas em mercadoria, Jorge http://www.homme-modene.org/ societe/ sócio/bourdieu/ questions/ opinionpub.html Acesso em
Zahar Editor, Rio de Janeiro. 29-3-2011.1998. "Lessence du néolibéralisme': Le monde diplomatique, março, http://www.monde-
I

'I
rt
362 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 363

diplomatique. fr/1998/ 03/BOURDIEU/10167.html. Acesso em 12-12-2009. 1998a. Contrafogos. CARMICHAEL, Stokely. 1969. "Potere nero': in Cooper 1969.
Táticas para enfrentar a invasão neoliberal, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro. 1999. "Pour um CARO, Guy. 1977. A medicina em causa, Centelha, Coimbra
mouvement social européen': Le monde dipomatique, junho, http://www.homme-modern .org/societe/ CARPINTERO, Enrique. 2011. "La locura deI sujeto normal': Revista Topia, abril, http://www.topia.
sócio/bourdieu/Bmvtsoce.html Acesso em 3-3-2010. _ _ e Lolc Wacquant. 2000. "La nouvelle com/artículos/locura-del-sujeto-normal Acesso em 28-5-2011.
vulgate planétaire': Le monde diplomatique, março, http://www.monde-diplomatique.fr/2000/ 05/ CARUSO,lgor. 1989. "Psicoanálisis y Utopià: in Basaglia et allii, 1989.
BOURDIEUI13727. Acesso em 12-12-2009. CASTELLS, Manuel. 2010. "Se um país não quer mudar, não é a rede que irá mudá-lo': Folha de
BOSI, Antonio de Pádua. 2009. "Avaliação como forma atualizada de dominação e intensificação do São Paulo, Especial 5, 21 de setembro. 2011. "A Ciber-guerra do Wikileaks': 1 de janeiro, http://www.
trabalho?" in Movimento em Debate, a. 2, n.3, maio.ADunicamp. 2011. Precarização e intensificação esquerda.net/artigo/ciber-guerra-da-wikileaks Acesso em 4-1-2011.
do trabalho no Brasil recente. Cascavel. EDUNIOESTE. CASTRO, Luis Paiva de. 1963. Pássaros na alfândega, Rio de Janeiro, Editora Gavião. 1964-1965. O
BRAGA, Ruy. 2003. A nostalgia do fordismo, São Paulo, Xamã. ofício das coisas, Rio de Janeiro, José Álvaro Editor.
BRANCACCIO, Emiliano e Michele BOLDRIN. 2007 in "Rive gauche due anni dopo: in Essere CATANHÊDE, Eliane. 2010. "Paulada na Imprensà: Folha de São Paulo, A2, 21 de setembro.
Comunisti. Acesso em 15-12-2010. 2011. "Controversia su Marchione, 11 liberalismo e 11 centro-sinistra CAUSURANO, Pietro. 2009. "Mondi operai, culture dellavoro e identità sindacali nel Novecento"
Che verrá': MicroMega, 21 de fevereiro. http://www.sinistrainrete.info/index.php?option=com_ Enaip Formazione & Lavoro, n. 1. '
content&view=article&ide =1249&ltemid=66. Acesso em 23-2-2011. CAVALARO, Luigi. 2010. "Quarent'anni fa. E oggC Economiaepolitica. Rivista online di critica della
BRASIL. 2004. "Decreto n. 5205" 14 de setembro. et allii. 1995. "V Conferencia iberoamericana politica econômica, 25 de maio, http://www.sinistrainrete.info/lavoro-e-sindacato/886-luigi -cavallaro-
de Educación': Buenos Aires, 7-8 de setiembre. 1995. "Declaración de Buenos Aires. V Conferencia quarantanni-fa-e-oggi Acesso em 2-6-2011.
iberoamericana de Educación': Buenos Aires, 7-8 de setiembre. ,CENTRE d'Études et de Rechesches Marxistes. 1969. "Sur le "mo de de production asiatique': Centre
BROGI, Danielle. 2011. "Sull' equivalenza narrativ terrorismo: oscurità': Le Parole e le Cose. d Etudes et de Recherches Marxistes, Editions Sociales, Paris, Aceso em 2-1-1999.
Letteratura e realtà, 1 de outubro, http://www.sinistrainrete.info/cultura/ 160 1-daniela-brogi- CENTRO STUDI PER LA PACE. S/Do "Risoluzione di Tonkino: la guerra in Vietnam': WWW.
sullequivalenza-narratia-terrorismooscurita.hml Acesso em 1-12-2011. studiperlapace,it Acesso em 12-9-2011.
BROUÉ, Pierre. 1988. Los Procesos de Moscú. Barcelona. Editorial Anagrama. CERRONI, Umberto. 1975. I1lavoro di um ano, De Donato Editore, Bari.1978. Lessico Gramsciano,
BROWN, Derren. 2009. Milgram Experiment. Video. 23 de maio, http://www.youtube.com/ Roma. Editori Riuniti. 1993. "Hacia un nuevo pensamiento político: in Tula, 1993. 2000. "EI
watch?v=y6GxluljT3w Acesso em 20-4-2011. neoliberalismo no bajó deI cielo: México, http://www.etcetera.com.mxI2000/ 378/ jguc378.html.
BURGIO, Alberto. 1994. "La cultura della violenzà: considerazioni su um ossimoro: in Impegno, a. Acesso em 3-1-2005.
XlV, n. 3, dezembro. http://www.storia900bivc.it/pagine/editorialburgio 394.html. Acesso em 5-3-2008. CHAPUTOT, Johann. 2005. "Nazisme et guerre totale: entre mécanique et mystique" in Senspublic,
1996. "11 razzismo: immagini del pensiero: in Vivarium, 11 de janeiro, Napoli, http://www.emsfrai.it/tv_ 7 de m!lrço. http://www.sens-public.org/spip.php?article857 Acesso 12-3-2008.
tematica/transmissioni.asp?d=383. Acesso em 5-3-2008. 2005. "Le racisme mondialisé': in Actuel Marx, n. CHATELET, François. 1961. La naissance de l'histoire: la formation de La pensée historique. Minuit.
38, 212005. http://socio13.wordpress.com/20 10/09/26/ le-racisme-mondialise-par-alberto-burgio/. Acesso Paris. 1962. Ideolo~ie et Verité, in Les Cahiers du Centre d' Études Socialistes, n° 20,15 de outubro. 1968.
em 23-8-2010. 2005 , "La 'guerre des races ' et le nouvel ordre européen ,,, Actuel Marx, n° 2, n° 38._ _ He~el, Pa~i~, Aux Editions Du Seuil. 1968a. "A propos des erreurs' de ~arx" in En partant du "Capital':
e GRASSI, Claudio. 2002. "Conflito capitale-Iavoro e unità di classe': in :LErnesto, 1 de janeiro, http://www. Pans, Edltlons Anthropos. 1970. La philosophie des professeurs, Editions Bernard Grasset, Paris.
lernesto.it/ index.aspx ?m=77&flDArticolo=4769. Acesso em 23-1-2005. 1989. "Dialética, diálogo y discusión': in Preguntas y Réplicas, México, Fondo de Cultura Económica.
BUTTIGIEG, Joseph A. 1987. "Sulla categoria gramsciana di 'subalterni": Critica Marxista, n. 1, 1996.? Livro I do Capital de Marx (Le Capital, Livre I. Marx), Textos Didáticos, n. 4, IFCH-Unicamp,
gennaio-febbraio. 1999. "As formas chinesas a: da escola retórica à escola democrática:: Gramsci e o Campmas, agosto, 2a edição ampliada, julho. _ _ et allii. 1972. Histoire de La Philosophie. Idées,
Brasil. http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv169.htm Acesso em 12 de junho de 2008. Doctrines, Librairie Hachette, Paris.
CALVINO, Italo. 1974. Las ciudades invisibles, Ediciones Minotauro, Buenos Aires 2009.11 cavaliere CHE FARE. s/do "11 'nuovo modelo Fiat: ... meno occupazione, piu sfruttamento, meno salário: Che
inesistente, Milano. Oscar Mandadori. fare, n. 28, http:// www.che-fare.org/archivcf/cf28/Fiat.html Acesso 1-1-2011.
CÂMARA, Antônio da Silva e Jair Batista da Silva. 2007. "Considerações sobre o racismo no Brasil': CHERKI, Alice. 2002. Prefácio a Frantz Fanon "Os Condenados da Terra': www.editoraufjf.com.br/
ADunicamp, Campinas. v2/degustacao/ condenados daterra.pdf Acesso em 1-5-2011.
CANCLINI, Néstor García. 1983. As culturas populares no capitalismo, São Paulo, Editora Brasiliense. CHERRY, Kendra. s/do The Milgram Eperiment. The Perils of Obedience. http://psycology.about.
2000. "La globalización: ~productoras de culturas híbridas?': Conferencia inaugural aI IH Congreso comI of/historyof psychology/ a/ milgram.htm Acesso em 20-4-20 11.
Latino americano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular, Colombia. 2002. CHESNEAUX, Jean. 1969. "Le mode de production asiatique. Quelques perspectives de recherche" in
(comp.) Iberoamérica 2002. Diagnóstico y propuestas para el desarrollo cultural, México, Santillana. Sur le "mode de production asiatique': Centre d 'Etudes et de Recherches Marxistes, Editions Sociales,
2005. "Todos tienen cultura: ~quienes pueden desarrolarla?': Conferencia aI Seminário sobre Cultura y Paria, 1969.
Desarrollo, Banco Interamericano de Desarollo, Washington, 24 de fevereiro. www.aula intercultural. CHEVALIER, Mireille. 2007. Lettre a Didier Lombard, 21 de dezembro, Sindicat National des
org/IMG/ pdf/0202405canclini.pdf. Acesso em 15-1-2008. Profissionels de la Santé du Travail. Toulouse.
CANFORA, Luciano. 2009. La natura deI potere, Bari, Gius Laterza & Figli. CHIARANTE, Giuseppe. 2009. "Dal 'Caso Moro' a oggi: Come si stravolge uma democrazià: in
CANZIAN, Fernando. 2009 "Taxa de desemprego supera 10% nos EUA': Folha de São Paulo, São Critica Marxista, n. 2.
Paulo, 7 de novembro, B9. 2009a. "EUA querem estender ajuda a bancos': Folha de São Paulo, São CHILOSI, Alberto. 2002. "The Long Marcho fItalian Communjists, from revolution to neoliberalismo:
Paulo, 10 de dezembro, B7. the economic policy pf the italian post -communists in historical perspective" http://eprints.adm.unipi.
CARERI, Gianfranco. s/do "Pinelli, :Latunno caldo e le stragi di stato' http://www.usi-ait.org/ it/433/1/comunisti.pdf
indexo php? option=com_ content &view=article&id=203 :pinelli -lautunno-caldo-e-le-stragi -di- CHIOCCHI, Antonio. 2008. "Operai e Democrazia. Premesseed effetti dell'autunno caldo': in Società
stato&catid=34:archivio-articoli &ltemid=41. Acesso em 12-12-2010. e conflitto, n. 37/38, http://www.Cooperweb.it/societaeconflitto/ operaC68.html Acesso em 12-1-2011.
CARLUCCI, Alessandro. 2007. 'Tinfluenza di Lenin su Gramsci: per um studio degli aspetti CHOMSKY, Noam. 1974. "A Watergate, um ponto de vista cético: in As gravações secretas de
glottopolitici': http://www. uniurb,it/Filosofia /isonomial2007carlucci.pdfin Isonomia, Istituto di Opinião, junho. _ _ e Edward. S. Herman. 1976. Banhos de Sangue. DIFEL/Difusão Editorial, Rio
Filosofia Arturo Massolo, Università di Urbino. de Janeiro-São Paulo.

rt
Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 365
364

CLAUDIN, Fernando. 1972. La crise du mouvement communiste. Du Komintern au Kominform, Brasília. dezembro. 2002. "Gramsci e a política hoje': Universidade e Sociedade. n° 27. Brasília. Junho.
François Maspero, Paris. 1983. A oposição no "socialismo real". União Soviética, Hungria, Polônia, 2003. "Que Fazer? A conjuntura e as nossas tarefas': Universidade e Sociedade, a. XIII, n° 30, Brasília,
Tcheco-eslováquia (1953-1980), Editora Marco Zero, Rio de Janeiro. junho. 2004. "Traição ou Lógica?': Universidade e Sociedade, a. XIIV, n° 32. Fevereiro. 2004a. "Reforma
CLOUTIER, Yvan.1983. "Gramsci et la question de l'idéologie': Phiosophiques, v. 10, n° 2, http:// ou contra-revolução? O governo Lulà: Brasília. Universidade e Sociedade, n° XlV, n° 34, outubro. 2006.
id.erudit/derudit/203228ar, Acesso em 31-1-2009. Política Brasileira: embate de projetos hegemônicos, Instituto José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo.
COGGIOLA, Osvaldo. 2005. "Economia política do comércio internacional de drogas': Universidade 2007. "Dinheiro, Fetichismo e Política: L 'homme et le citoyen. O debate nos Anais Franco-Alemães':
e Sociedade, Brasília, a. Xv, n, 35, fevereiro. Novos Rumos, n° 47, janeiro-março. 2007a. "Políticas públicas sob o neoliberalismo?': Revista da
COIGNARD, Sophie e LANEZ, Emilie. 1995. "Le 'plitiquement correct' à la française': Le Point.fr, 10 ADUNESP-Seção Sindical, agosto, 2007b. "O liberalismo e a invenção da tradição: in Lombardi,
de junho, http://www.lepoint.fr/archives /article. php/ 7868. Acesso em 12-1-1998. José Claudinei, Sanfelice, José Luis (Orgs). Liberalismo e Educação em Debate, São Paulo, Autores
COHEN, MareeI. 1956. Pour une sociologie du langage. Éditions Albin Michel, Paris. Associados. 2007c. "Gramsci, Intelectuais e crise': in Jorge Nóvoa (org) Incontornável Marx, EDUFBA
COHEN, Joel. 2011. "Perfil populacional dos próximos anos é receita para desastre': 7 de novembro, ~Editora ~a Universidade Federal da Bahia)/EDUNESP (Editora da Unesp), Salvador/São Paulo. 2008.
O DeZOIto: um golpe e sua decifração (Para uma crítica da Política)': in Tempos Históricos, Vol, 12,
Foha de São Paulo, A12.
COLLETTI, Lucio. 1975. Intervista politico-filosofica, Gius Laterza & Figli, Roma-Bari. n° 1, a X, Edunioeste, Cascavel. 2009. "Outro projeto é possível': Revista Inscrita. Conselho Federal de
COLLETTIVO SP2. 2009. "Il '77: l'anomalia italianà: http://www.uniriot.org. Acesso em 25 de Serviço Social. Brasília. Obs: a editoria da revista alterou o nome do artigo cujo original era "Crise do
capitalismo e alternativa socialistà: 2010. "Projetos hegemônicos: a propósito da crise': Universidade
setembro.
COOK, Fred. 1966. O Estado Militarista, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. e Sociedade. Ano XIX. Número 45. ANDES-Sindicato Nacional. Brasília. Janeiro. 201Oa. Revolução
COOPER, David (org.). 1969. Dialettica della Liberazione, Giulio Einaudi Editore, Turim. e História: das Teses ao Manifesto, Instituto José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo. , Celi
COMBA, Letizia Jervins. 1968. "C donne: l'ultimo reparto chiuso: in Basaglia, 1968. Taffarel e Mauro Iasi. 2011 :'Educação, Consciência de Classe e Estratégia Revolucionárià' ,V Encontro
CONFEDERACIÓN DE EDUCADORES AMERICANOS - CEA. 1995. "Documento borrador de la Brasileiro de Educaçãoo e Marxismo, Associação Brasileira de Educadores Marxistas, Florianópolis, l3
Declaración de Organizaciones Magisteriales del Iberoaméricà: Buenos Aires, setiembre. de abril, vídeo.
COUTINHO, Carlos Nelson. 1990. ''A 'cidadania brasileira' do marxista italiano Antonio Gramsci': DIAMANTI, Ilvo. 2008. "La geogradia política di BerlusconC La Repubblica, 19 de maio. http:www.
demos.it/a00103.php Acesso em 20-10-2009.
Teoria e Debate, n° 9, jan-mar.
CONFEDERACIÓN DE LOS TRABAJADORES DE LA EDUCACIÓN DE LA REPÚBLICA DIAP - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. 2009. ''Achatamento da 'classe
ARGENTINA (CTERA). 1995. "Documento borrador de la Declaración de Organizaciones média' reduz desigualdade no Brasil': In Agência DIAP, 7 de agosto. http://www.diap.org.br/índex.
php/ agencia -diap/ 10212-ipea -achatamento-da -classe-media -reduz-desigualdade-no- brasil. Acesso
Magisteriales deI Iberoaméricà: Buenos Aires, setiembre.
COSTA-GAVRAS, Constantino 2009. "Entrevista à Folha de São Paulo': l° de maio. em l3-12-2009.
COSSIGA, Franceso. s/ d. "Entrevistà: http://www.jacopofo.com/cossiga_studenti_provocatori_ D'ELIA, Gianni. 2008. "Il Petrolio degli stragC Il primo amore, 20 de fevereiro. http://www.pasolini.
net/ sagistica petroliodelle stragi _D Elia.htm. Acesso 21-5-2011.
berlusconi_strategia_ tensione Acesso em 6-6-2011.
D'ELIA Gianni. 2010. "Pier Paolo Pasolini - 'Ladri di 'Petrolio: il manifesto, 4 de março, http:// DI GIACOMO, Michelangela. 2009. "Migrazioni, industrializzazione e transformazione sociali
www.stroboscopio.com pasolini -petrolio-Ieni -e-dellutri/20 10/03/02/ Acesso 19-5-2011. nella Torino del 'miracold. Uno stato degli studC Storia e Futuro. Rivista di storia e storiografia, n. 21.
DALMASSO, Sergio. 1997. "La parabola di Giovane Criticà: in "Per il '68': n. l3. 1998. "Il cinema Novembro.
politico di Gianmaria Volonté': in "Per il '68': n. 16. 1999. "Lotte operaie, partiti, sindacatC in "Per il Di VITTORIO, Pierangelo e GENCHI, Mariella. 2005. "Psichiatria Democratica aI Forum Sociale
'68': ns. 17/18. 2000. "Il secondo biennio rosso. Per uma riflessione. Trent'aani dopo': in Città d'utopia, Europeo di Parigi': s/ d, http://wwwpsichiatriademocratica.com/recensioni/FSE-Parigi.htm. Acesso
n. 9, maio, http://www.sergiodalmasso.net/documenti/ Articoli/Citta-d-utopia. Acesso em l3-7 -2006. em 30-8-2005.
2004. "Quegli indimenticabili anni' 60': in "Il Protagorà: n. 4, luglio-dicembre. http://www.sergio DINGES, John. 2004. Os anos do Condor. Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul,
dalmasso.net/ documenti/Estratti/Quegli %20indimenticabili %20anni %2060. pdf Acesso em 3 -3-2006. Companhia das Letras, São Paulo.
DE PALMA, Armando. 1972. "L'organizzazione capitalistica dellavoro nel Capitale de Marx': DION, Mario. 2007. "Lutte à la pauvreté et intervention de quartier en Outaouais urbain: le ecas du
Quaderni di Sociologia, vol. XI, Torino, 1966, in Cuadernos de Pasado y Presente, n° 32, Córdoba. quartier Jean-Dallaire/Front': Centre d'étude et de recherche em inntervention sociale,janeiro. Acesso
DEBORD, Guy. 1992. La Société du Spectacle, Paris, Editions Gallimard. 2003. Comentários sobre a em 23-4-2009.
Sociedade do Espetáculo, www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 Acesso em 10-3-2010. DRI, Rubén R. 1990. "La nueva evangelización en la etapa neoliberar: Utopias del Sur n. 5, Buenos
DEDDECA, Claudio Salvadori. 2009. ''A crise, os liberais e seu pensamento de plantão: In Jornal da Aires, primavera.
DURANTE, Lea. s/ d. "Nazionale-Popolare': http://62.149.226.72/rifondazionepescara/modules.
ADunicamp. A. 2, n° l3. Novembro.
DE PAOLO, Raffaele. 2004. "Intervista inedita aI Prof. Franco Basaglià: Pedagogia clinica, n 09, php?name=News&file =article& sid=2172 Acesso em 25 de abril de 2010.
ECO, Umberto. 2004. "Il politicamente corretto che divide destra e sinistrà: 6 de novembro. http://
Gennaio-giugno.
DEUTSHER,Isaac. 1971. Los sindicatos soviéticos, Ediciones Era, México. ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2004/11/06/il-politicamente-corretto-che-divide-
DIAS, Edmundo Fernandes. 1991. "Rabo preso: Teoria e Debate, n° 14, abr-junh. Obs: a editoria da destra-sinistra-html Acesso 20-11-2010.
revista alterou o nome do artigo cujo original era: "Gramsci no Brasil: o rabo do diabo: 1994. "Sobre EISENHOWER, Dwigth D. 1961. Farewell Address to Nation, 17 de janeiro.
a leitura dos textos gramsciano: usos e abusos': Ideias, IFCH-Unicamp, jan-jun. 1996. "Cidadania e ENCINA, Gregorio Billikopf. 2003. Milgram's Experiment on Obedience to Authority, http://www.
Racionalidade de Classe': Universidade e Sociedade. ano 6, n° 11, Brasília. junho. 1997. ''Americanismo cnr.bereley.edu/ucce50/ag-Iabor/ 7article35. htm Acesso em 20-4-2011.
e Revolução Russa: formas da revolução passivà: Universidade e Sociedade, ano 7, n° 13, junho de 1999. ENGELS, Friederich. 1950. Anti-Dühring. M. E. Dühring bouleverse la science, Éditions Sociales,
A Liberdade (im)possível na ordem do capital, 2a edição revista e ampliada, Textos didáticos, n° 29, Paris.
Setembro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. 2000. Gramsci emTurim, São Paulo, ESSERE COMUNISTI. 2007. "Rive gauche due anni dopo", Esseri Comunisti, a. 1, n. 3. http://www.
Xamã. 2001. "Da Violência como parteira da acumulação". Universidade e Sociedade. n° 23, São Paulo. esserecomunisti.it/index. aspx? m =77&f=get_filearticle&IDArticolo=21214. Acesso em 15-12-2010.
Fevereiro. 2001a. "Justiça Infinita: Strange Love': Universidade e Sociedade. n° 25. Brasília. dezembro. EZECHIELE.2009. "LAutunno caldo 1969 in Italia, un momento della ripresa storica della
2001b. ''A mistificação como 'virtude, a virtude como necessidade" Universidade e Sociedade. n° 25. lotta di classe (1)", in Rivista Internazonale, n. 31, http://itinternazionalism.org/node/865/ Acesso em

$
366 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 367

1-3-2010.2010. 'TAutunno caldo 1969 in Italia, un momento della ripresa storica della lotta di classe GALEANO, Eduardo. 1996. Ellibro de los abrazos, Siglo Veintiuno Editores, Mexico. 2002. De
(11)", in Rivista Internazonale, n. 32, http://it.internazionalism.org/node/865/968Acesso em 1-3-2010. pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso, L&PM Editores. Porto Alegre. 2008. "O teatro do bem e
EYMERICH, Nicolau. 1993. Directorium Inquisitorium. Manual dos Inquisidores, Editora Rosa dos do mal': L&PM Editores. Porto Alegre.
Tempos - Editora da Universidade de Brasília. Brasília. GALLI~O: Luciano. 1999. "Diso~u~azzione ~ecn,?logi~a: quanta.e quale perdita di posti di lavoro puo
FAGUNDES, Álvaro. 2010. "Desemprego nos EUA atinge o maior patamar desde abril", in Folha de essere attnbmta alIe nuove tecnologle mformatlche , Tonno, 13 de Janeiro. http://www.mediamente.rai.
São Paulo, 4 de dezembro. B19. 2011. "Nunca foi tão difícil conseguir um emprego: in Folha de São it/home/bibliote/ intervis/g/gallin02. htm. Acesso em 21-12-2008. 2009a. "Luciano Gallino: Il crack coi
Paulo, A14, 31 de julho. nostri solde entrevista a Left-avvenimenti-settimanale, 8 de março, http://www.avvenimentionline.
FANON, Frantz. 1968. Sociologie d'une révolution, Paris, François Maspero. 1970. Les damnés de it/index2.php?ption=com.content&task_view&id=28188 pop= 18page=okItemid=693. Acesso em 18-
la terre, Paris, François Maspero. 1971. Peau noire, masques blancs, Paris, Editions du Seuil. 2007. Los 11-2009. 2009b. "Ripensare la centralità dellavoro. Note su 'illavoro non e una merce": in Circoli
condenados de la tierra. Koletivo "Ultimo recurso': http://www.elortiba.org janeiro. Acesso em 4-5-2011. Dossetti, 18 de abril. http://www.dossettLcom/corso/corso%202009/200907gallino.html# gallino.
FARNELLI, Fiorela. s/do "Le 150 Ore': 150 horas, http://www.europeanmemories.eu/fre/Uchastvajte/ Acesso em 3-12-2009. 2009c ''A economia, os governos e a fome no mundo: in La Repubblica, 20 de
Le-150-ore2, Acesso em 25-11-2011. novembro, http://www.ecodebate.com.br/2009/11/24/ a -economia -os-governos-e-a -fome- no-mundo-
FARNETTI, Paolo Bertella. 2006. "Pantere Nere. Storia e mito del Black Panther Party", ShaKe artigo-de-luciano-gallino/. Acesso em 3-1-2010. 2010. "Fiat, ricatti e sfruttamento sotto il velo della
Edizioni, Milano. globalizzazione': in La Repubblica, 14 de junho. http://temLrepubblica.it/micromega-online/fiat_
FEIXA, Carles. 199I:'De las bandas a las culturas juveniles", http://pt.scribd.com/doc/8753074/ ricatti-e-sfruttamento-sotto-il-velo-della-globalizzazione/. Acesso em 8-9-2010.
Carles-Feixa-De-Jovenes-Bandas-y-Tribus, 2009. "Generacción replicante", El Pais, 18 de setembro. GALLO, Elisabetta. 2006. "Masse e intellettuali in Gramsei': Critica Marxista, n. 2, março-abril.
http://www.elpais.com/articulo/ opinion/ Generacion/ replicante/ elpepiopi/20090918elpepiopi_13/Tes GAMBINO, Ferruccio. 1996. "Pantere Nere': in Il manifesto, 14 de janeiro, http://www.shae.it/
FERGUSON, Thomas. 2011. "Metas como as do Wal-Mart estão impedindo o acordo sobre a dívidà: indexo php ?id= 181 Acesso em 10-1-2011. 2009. "La mele deI Kansas': in Alias, 24 de outubro, http://
in Folha de São Paulo, A12, 30 de julho. www.infoaut/articolo/le-mele-del-ansas-di-ferruccio- gambino. Acesso em 10-1-2011. 2010. "Crisi di
FERRAJ O LI, LuigL 1978. "Defensa de la salud en la fábrica y artículo 9 deI estatuto de los trabajadores" sistemà: in Su la testa, n. 1, fevereiro, http://www.controlacrisi.org/joomla/index.php? option=com_co
in Basaglia et allii, 1978. ntent&view=article&id=6040&catid=35&ltemid=68 Acesso em 10-1-2011.
FERRARA, GiannL 2011. "Solo um Leviano puo salvarei': 28 de agosto, http://www.lasinistra. GANSER, Daniele. 2002. "Há 40 anos, a crise dos mísseis .. :', in Le Monde Diplomatique Brasil - 1
net/2011/08/30/solo-un-leviatano-puo-salvarci-di-gianni-ferrara-un-mese-fa-rossana-rossanda-ri/ de Novembro, http://diplomatique. uol.com.br/acervo.php?id=481 &tipo=acervo&PHPSESSID= 1c600
Acesso 10-10-2011. c9cdba_6724467_6ea7 f7398227ad Acesso em 1-9-2008.2004. "Exércitos secretos da NATO ligadas
FERRARIS. Pino. 1998. "Delegati Operai e Democrazia Diretta in Fiat nel '69", vis-à-vis, n. 6. ao terrorismo?': in ISN Security Watch, dezembro 15, www.globalresearch.ca17 de dezembro, 2004
FERRONI, Giulio. 2007. "Gramsci e os modelos intelectuais no século XX': La Insignia. 13 de março. Acesso em 1-9-2008.2005. NATO's SecretArmies: Operation Gladio and Terrorism in Western Europe:
www.lainsignia.org/ 2007/ marzo/cult_018.htm Acesso em 2-3-2008. . An Approach to NATO's Secret Stay-Behind Armies. Cass, London. 2005a. "Terrorism in Western
FINELLI, Roberto. s/do "As contradições da subjetividade: Americanismo e Fordismo em AntonIo Europe: An Approach to NATO's Secret Stay-Behind Armies': in The Whitehead Journal ofDiplomacy
Gramsci': Gramsci e o Brasil. http://www.artnet.com.br/gramsci/ arquiv 192.htm Acesso em 23 de junho and International Relations, Winter/Spring. 2005b. "The Secret Side of International Relations: An
de 2008. approach to NATO's stay-behind armies in Western Europe': Paper by Daniele Ganser to be presented
FONDATION COPERNIC. 2009. "Travailler tue em toute impunitá: pour combien de temps at the PSA conference in Leeds on April7, www.psa.ac.ukl journals/pdf/5/2005/Ganser.pdf Acesso em
encore?': 1 de junho. http://www. fondation -copernic.org Acesso em 25-5-2011. 1-9-2008. 2006. "Operation Gladio: Interview': in Diplo Norway, 9 de novembro http://911blogger.
FONTES, Yuri Martins. 2001. "O Império está nu': Brasil de Fato, 6 de janeiro, http://www. com/node/2582 Acesso em 1-9-2008. 2007. "Terrorismo reale. Daniele Ganser, Gli eserciti segreti della
brasildefato.com.br/node/5413 Acesso em 1-1-2011. NATO. La guerra segreta in Italia, da: "Reseau Voltaire" 2007, 01 di 02': http://storiasoppressa.over-
FORD, Henry. 1954. Os Princípios da Prosperidade, Rio de Janeiro, Editora Brand. blog.it/ article-democrazia -reale-daniele-ganser -les-armees-secretes-de-I-otan -la -guerre-secrete-en-
FOSTER, John Bellamy. 2006. "The Household Debt Bubble", Monthly Review, V. 58, N. 1, maio italie-44571261.html Acesso em 1-9-2008. 2007a. "The Strategy ofTension NATO's Hidden Terrorism':
http://www.monthly review.org/ 0506jbf.htm Acesso em 11-11-2009. 2011. "Naked Imperialism': 22 de janeiro, in www.voltairenet.org/ article 144748.html Acesso em 1-9-2008.2008. "Le débat sur le
Monthly Review, September 2005, Volume 57, Number 4, http:// monthlyreview.org/2005/09/01/ 11 septembre senvenime': 7 de março, http://mecanopolis.wordpress.com/2008/03/ 07/ le-debat-sur-
naked-imperialism Acesso em 25-4-2011. _ le-11-septembre-s%E2%80%9genvenime/ Acesso em 1-9-2008. 2009. "President Sarkozy has accepted
FOUCAULT, Michel. 1971. rOrdre du discours, Editions Gallimard, Paris. the dominance of the United States': 2 de abril, in http://www. voltairenet.org/article159569.html
FRANCO, Michele, 2009. "Una piccola riflessione dal quadrante italico dello scontro globale': http:// Acesso em 13-9-2010.
www.política_e_classe. org/política/le%20lotte%20contro%20la%20la%20crisLhtml. Acesso em 18-8- GARCIA, Ramón. 1972. Psiquiatria o ideologia de la locura?, Editorial Anagrama, Barcelona.
2009. GARCIA, Sandrine. 2010. "Et si lecole servait à aprendre .. :' http://www.monde-diplomatique.
FRESU, GiannL 2007. "Americanismo e fordismo: l"uomo filosofo e il 'gorilla amaestrado": NAE fr/20101l0/GARCIAIl9754. Acesso em 10-3-2011.
Rivista trimestrale di cultura, a. V, n. 18/2007, http://giannifresu.it/Saggi/americanismoefordismo. GAROFALO, Sabina. 2011. "Feminismo mussulmani e migrazione: uma buona ocasione"., Jura
doc Acesso em 13-7-2009. 2009. "Stato, società civile e subalterni in Antonio GramscC Convegno Gentium, Rivista di filosofia del diritto Internazionale e della política globale, VII, n° 1. http://www.
Internazionale di studi - Gramsci in Asia e Africa, Cagliari, 12 e 13 febbraio. www.resistenza.org Acesso juragentium. unifi.it/forum/ feminism/it/ garofolo.htm Acesso em 28-12-20 11.
em 2 de abril de 2011. GARRIGOU, Alain. 2011. "Le regime dopinion': Le monde diplomatique, 28 de março, http://blog.
FRIEDMAN, Milton. 1988. Capitalismo e Liberdade, São Paulo, Nova Cultural. 2006. "Carta a mondediplo.net/2011-03-28-Le- regime-d-opinion. Acesso em 29-3-2011.
Augusto Pinochet Ugarte': http://www.elcato.org/milton -friedman-y-sus- recomendaciones-chile. GATTEI, Giorgio. 2007. "Rive gauche due anni dopo: in Essere Comunisti. Acesso em 15-12-2010.
Acvesso 17-10-2011. GATTI, Fabrizio. 2010. "La rivolta degli schiavC in rEspresso, 14 de janeiro, http://www.
FURET, François. 1988. "O Historiador e a História: um relato de François Furet': Estudos Históricos, italiarazismo.it/index. php ?view= article&catid=40%3Anero-lavoro-nero&id=678&3Ala -rivolta-
Rio de Janeiro, n. 1. deglii -schiavi&format=pdf &option=com content&ltemid=54 Acesso em 4-1-20 11.
GABUTTI, Diego. 1995. "Pantere: da rivolta aI mito": in 11 Giorno, 31 de dezembro. http://www.shae. GENOVESE, Rino. 2011. "E finite un governo, non il berlusconismo': in Le parole e le cose, 14 de
it/ indexo php ?id= 181 Acesso em 10-1-2011. novembro. http://www.leparoleelecose.it/?p= 1971 #comment -2114 Acesso 22-11-2011.
368 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 369

GENTIS, Roger. 1973. La psychiatrie doit être faite/réfaite par tous, François Maspero, Paris. http://www.skolo. org spip. php?article981&lang=fr Acesso em 28-11-2009. 2008. '~ avaliação por
GIACCHÉ, Vladomiro. 2002. "La vera storia dela guerra in Afhanistan. Le risorse energetiche e il 'grelhas de competêncià': L' école démocratique (Aped), 25 de julho, http://ferrao.org 12008/08/nico-
controlo dell' Asia Centrale': L 'Ernesto toscano, Firenze, lug-ago. www.contraddizione.it/vera~erra_ hirtt-avaliao-por-grelhas-de.html Acesso em 28-11-2009.2010. "En Europe, les compétences contre le
afghanistan.rtf Acesso em 12-3 2009. 2008. "Crisi econômica e crisi del 'ideologia neoliberalê: Proteo. savoir': www.monde-diplomatique.fr/2010/10/HIRTT/19756Acesso em 10-4-2011.
N. 3. http://proteo.rdbcub.it/article. php?idarticle=709. Acesso 12-7-2009.2009. "La crise di Karl- Lo HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor Wiesegrund. 1971. Dialética del Iluminismo, Editorial
spettro della bolla che si aggira per la realtà': il manifesto, 4 de outubro. Acesso 10-10-2009. 2009a. Sur, Buenos Aires.
"Oltre la diarchia euro-dollaro. Dieci tesi su cri si, egemonia valutaria e imperialismo': Marxismo HOUDEBINE, Jean-Louis. 1977. Langage et Marxisme, Éditions Klincksieck, Paris.
Oggi, 1/2009, L'Ernesto online-rivista comunista. Acesso em 10-10-2009. 2010. "Crisi economica e HUSSON, Michel. 2003. "Como pagar as aposentadorias?': "Le Monde Diplomatique': 1 de maio,
derive autoritarie. I presupposti economici dell'attaco alIa Costituzione': http://www. Sinistrainrete. ano 4 número 40 http://diplo.dreamhosters.comI2003-05,a635.html acesso 22.5.2007. 2007. "Travailler
info/ component/ content/articlr/92-economia/943-vladimiro-giacche-crisi - economica -e-derive- plus pour gagner moins': Le Monde Diplomatique, Abril, http://www.monde-diplomatique.fr/2007 /04/
autoritarie Acesso 1-1-2011. 201Oa. "Le parole che non ti ho detto: La crisi, come (non) ce l'hanno HUSSON/14581 acesso 22-10-2009. 2007a. "O preço do trabalho na Françà: Le Monde Diplomatique,
raccontatà: Proteo, 19 de janeiro, http://www.sinistrainrete.info/crisi-mondiale/732-le-parole-che- a. 7, n. 87, 29 de abril, http://diplo.uol.com.br/acervo.php?id=2012. Acesso 16-2-2009. 2007b. "Os
non _ti _ho-detto-la-crise-come-non -ce-lhanno- raccontata Acesso em 15-1-2011. 201Oc. "La nuova Desafios do Trabalho e dos Sujeitos Políticos na Europà' Revista em Pauta, Revista da Faculdade de
Cina che abbiamo sottovalutato': Il Fatto Quodiano, 17 de agosto info/estero/995-vladimiro-giacche-la- Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, N. 20, http://www.e-publicacoes.uerj.
nuova-cina-che-abiamo-sottovalutato Acesso 20-4-2011. 201Od. "Fisco, populismo e lotta di classe in br/ index.php/revistaempauta/article/viewFile/163/188 Acesso em 12-6-2009. 2007c. '~s fábricas da
Italià' Democrazie e diritto, n° 3-4. 201 C'La fabbrica del falso e la guerra in Libià: Essere Comunisti, 17 ideologià: http://resistir.info/franca/husson-nov07.htm Novembro.
de maio, http://www.sinistrainrete/info/politica. http://www.sinistrainrete./ 1376-vladimiro-giacche- INGRAO, Pietro. 1981. Crise e Terceira Via, Livraria Editora Ciências Humanas, São Paulo. e
la-fabbrica-del-faso-e-la-guerra-in-libia. html Acesso 12-12-2011. ZANOTELLI, Alex. 2003. Non ci sto! Appunti per un mondo migliore, Piero Manni. --
GIACHETTI, Diego. s/do "Scioperi 'salvaggi' nell'Europa del1969': http://www.laquestionesociale. JAMESON, Frederic. 2001. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização, Editora Vozes.
org/LQS/LQS_1/itQS1_13 grevessauvages.pdf Acesso 2-3-2010. Petrópolis.
GIOVANNETTI, Giovanni. 2010. "Pasolini, Petrolio, l'Eni e... dell'Ultri': 2 de março http://www. IVES, Peter. 2006. "Traduzindo a revolução: as metáforas linguísticas de Gramscf: Novos Rumos, a.
ilprimoamore.com/testol728. html Acesso em 19-5-2011. 21, n. 46.
GONÇALVES, Reinaldo. 2011. Evolução da renda no Governo Lula: Cinco conclusões definitivas, JENKINS, Peter. 1974. "Retrato de uma presidêncià: in As gravações secretas de Nixon, Opinião,
http://www.ie.ufrj.br/hpp/ intranet/pdfs/ evolução_ da_renda_no~overno_lula_cinco_ conclusoes_ junho.
defitivas_ 4_marco_ 2011.pdf 4 de março. Acesso em 19-3-2011 JESUS, Altair e Antônio da Silva Câmara. 2006. '~juventude e a ideologia da sociedade de consumo"
GORZ, Andre. 1972. "Techniques, techniciens et lutte de classes': Les Temps Modernes, Paris, 1971, Universidade e Sociedade, Brasília, a. XVI, n. 38, junho
in Cuadernos de Pasado y Presente, n° 32, Córdoba. JERVIS, Giovanni. 1968. "Crisi della psichiatria e contraddizione istituzionale': in Basaglia, 1968.
GRACCO, Giovanna. 2010. "L'umo massa e suo fratello, aI voto': Paginauno, a. IV, n° 17, abr-jun, 1969. "Prefazione" à Cooper, 1969.
http://www.sinistrainrete.info/index. php ?option=com_content&view=article&id= 1374&ltemid=68 JOSEPH, Rhawn. 2003. '~merica Betrayed': University Press. San José. Califórnia.
Acesso em 25-4-2011. KLEIN, Naomi. s/do Baghdad Year Zero. 2003. "Traigan a Halliburton a casà: London School of
GRAMSCI, Antonio. 1965. Lettere daI Carcere, Giulio Einaudi Editore, Turim.1971. '~lcuni Temi Economics. 2003a. "Free trade is wqr': The Nation, 13 de setembro. 2003b. "La gran hipocrisia de
della Quistione Meridionale': in La costruzione del Partito Comunista 1923-1926, Giulio Einaudi Casa Blancà: La jornada. 2003c. "Bom Before You': Betwen the Lines. 2003d. "La miséria planeadà:
Editore, Turim. 1974. Per la veritá, Giulio Einaudi Editore, Turim. 1975. Quaderni deI carcere, Giulio The Guardian, 2004. "Reparaciones aI revés': Pensamiento Libre, outono. 2004a. "Em el escândalo
Einaudi Editore, Turim. 1980. Cronache Torinesi (1913-1917), Giulio Einaudi Editore, Turim. 1982. La de Irak. Donde están los iraquies': 2004b. "Uma mentira que podemos usar:' 2004c. "Los retazos del
Città futtura (l917-1918), Giulio Einaudi Editore, Turim. 1987. L'Ordine Nuovo (l919-1920), Giulio mie do" 2004d. "The Mother of All Anti-War Forces': Globe and Mail. 8-7. 2005. "Brand USA is in
Einaudi Editore, Turim. 1988. Il rivoluzionario qualificato. Scritti 1916-1925, Delotti editore, Roma. trouble, so take: a lesson from Big Mac:' The Guardian. 2007. "Después del shock': El viejo topo, n°
GREEN, Marcus. 2002. "Gramsci Cannot Speak: Presentations and Interpretations of Gramsci's 237. 201O:'Milton Friedman não salvou o Chile':. New York Times. 4 de dezembro. http://noticias.uol.
Concept of the Subaltern': Rethining Marxism, V. 14, n 3, Fall. com,br/blogs-colunas/colunas-do-new-york-times/naomi-klein/2010/04/12/milton-fried,am-naso
GUERID, Djame. 2011. "Le printemps de la signora Annamaria Riverà' 25 de outubro. http://www. salvou -o-chile.jhtm. Acesso em3-1-2011.
lanation.info/Les-printemps-de-la -signora -Annamaria -Rivera_a412.html Acesso 29-10-2001 KOHAN, Nestor. 2006. "Crise orgânica e revolução passiva: o inimigo toma a iniciativa. A
GUERRIERI, Federico. s/ d. "LInformazione in Italia. Dalla P2 al Presidente Berlusconf: http://www. governabilidqde do capitalismo periférico e os desafios da esquerda revolucionárià: Rebelión, 28
euroalter.com/itI2009/ Informazione-in-italia-dalla-p2-al-presidente-berlusconi/. Acesso em 13-8- de outubro, http://www.ocomuneiro.com/nr_06_ nestorkohan,htmal Acesso em 25-4-2008. 2007.
2010. "Gramsci e Marx: Hegemonia e poder na teoria marxistà: Tempos Históricos, Volume 10, 1° semestre,
GUIDI, Lucilla. 2010. "Merkel, Sarrazin e il dibattito sull 'immigrazione in Germanià: Caffe Europa. Edunioeste, Cascavel. 2009. "Contra-hegemonia na América Latinà' Revista Política. Saúde, Educação,
18 de novembro. http://www.caffeeuropa.it/index.php?=2.483 Acesso em 9 de maio de 2011. Trabalho, Ano 1, n. 3, janeiro/fevereiro.
GUSTERSON, Hugh. 2009. "O império das mil bases': 18 de março. http:www.globalresearch.ca/ KRAMER, Heinrich e James SPRENGER. 2010. O Martelo das Feiticeiras, Editora Rosa dos Tempos,
index.php?context=va&aid= 12785 Acesso 23-6-2011. Rio de Janeiro.
HALIMI, Serge. 2002. "Flamme bougeoise, cendre prolétarienne': Le monde diplomatique. Março. KRAWCZYK, Nora. 1994. '~ utopia da participação: a posição dos movimentos docentes na
http://www.monde-diplomatique.fr/2002/03/HALIMII16193 Acesso em 5-5-2011. formulação da política educativa na Argentinà: Educação Brasileira, a. 16, n. 33,2. Semestre.
HERRERA, REMY. 2010. "Menace ou opportunité': http://www.monde-diplomatique. KRUGMAN, Paul. 2010. '~ terceira depressão': Esquerda.Net, 30 de junho. http://www.esquerda.
frI201O/10/A/19758. Acesso em 10-3-2011. net/dossier/paul-krugman-alerta -para-terceira-depressao%C3%A30 Acesso 2-3-2011. 2011. "Pedir
HECKMAN, James. 2011. "Ênfase em testes empobrece a qualidade da eduucaçã, dzNobel" Folha de centrismo é tirar o corpo forà: in Folha de São Paulo, A18, 30 de julho.
São Paulo, 17 de outubro, A12. LABICA, Georges. 2003. "Del imperialismo a La mundialización': Temas, n. 33-34, abril-setembro.
HIRTT, Nico. 2004. "L' educazione europea e la crisi mondiale deI capitalismo': Contributo aI 2009. Democracia e Revolução, Editora Expressão Popular. São Paulo.
seminario "Educazione e globalizzazzione in Europà: Fórum Social Europeu, Londres, 16 de outubro. LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. 1961. Il Gattopardo. Giangiacomo Feltrinelli editore, Milano.
370 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 371

LANG, Ronald D. 1969. "llivvio': in Cooper, 1969. LUKACKS, Gyorgy. 1965. La Pensée de Lenin, EDI, Paris.
LANGER, Maria. 1989. "Vicisitudes deI movimento analítico argentino': in Basaglia et allii 1989. LOWY, Michael. 1990. "EI comunismo no há muerto porque aun no nasció:: Utopias del Sur n. 5,
LANTIER, Alex e Antoine Lerougetel. 2011. "Un employé de France Télécom s'imole par le feu. Les Buenos Aires, primavera.
raisons': http://www.michelcol1on.info/Un -employe-de-France-Telecom -s.html ?lang=fr Acesso em LUMUMBA, Patrice. 1960. "Discours à La cérémoine de l'indépendance congolaise, Léopoldville':
6-5-2011. etoilerouge.chez-alice.fr/ docrevinter2 /lumumba1.pdf Acesso em 1-5-2011.
LANOUZIERE, Hervé. s/do "I caso France Telecom: dove arriva la responsabilità dela dirigenza?" LUNGHINI, Giorgio. 2007. "Rive gauche due anni dopo': in Essere Comunisti. Acesso em 15-12-2010.
http://www.sicurezaonline.it/homep/infcro2010/infcr0201006/infcr020100612.htm#Telecom Acesso LUPERINI, Romano. 2001. "Essere comunisti oggi. La società odierna': www.prcvinchio.org./
24.5.2011 pdf/Essere%20comunisti %20 oggi.doc Acesso em 17-1-2011. 2001 a. "Crisi del comunismo nel
LE GOFF, Jacques. 1982. Memoria, Giulio Einaudi editore, Torino. Novecento e dele odierne società neoliberiste': L 'Ernesto. n. 3, http://www.lernesto.it/index.
LENIN, Vladimir Ilich Ulianov. 1976. Que fazer? Obras completas, t. V. Akal editor, Madrid. aspx?m=77&f=2&IDArticolo=4577 Acesso em 19.1.200l. 2007. "La condizione degli intellettuali':
LESTER, Jeremy. 2007. "Lost in Translation: The Revolution Against 'The Southern Question": 13 de Prolusione tenuta in novembre per l'apertura dell'anno accademico 2007-2008, Università degli studi
julho, http://www.gramscitalia.it/html/lester.pdf Acesso em 29-10-2011. di Siena, http://www.aetnanet.org/modules.php? name= News&file=article &sid=9534. Acesso em 4-3-
LETTIERI, Antonio. 1970. "Qualifiche scuola e orari di lavoro': Problemi deI Socialismo, n 49, Roma, 2009.2008. "Essere comunisti oggi': 12 de novembro. http://spazioperaio.splinder.com/post/18845630.
in Cuadernos de Pasado y Presente, n° 32, Córdoba, 1972. 1973. "Verso la ricompozione di lavoro e Acesso em 4-3-2009. 2008a. "La Riforma Gelmini e l'insegnamento scolastico della letteraturà: Meno
estúdio. 150 ore e dopo': http://fc.retecivica.milano.it/rcmweb/ edaweb/ mioweb/lettieri.htm Acesso em di Zero, a. I, n. 3, ottobre-dicembre.
25 de abril de 2000. MACCACARO, Giulio. 1978. "Clase y salud" in Basaglia et allii, 1978.
LEYMARIE, Philippe e Anne-Cécile Robert. 2011. "Melanges des genres" Le Mande diplomatique, MACHERREY, Pierre. 1969. "Lire 'Le Capital"', in VVAA, Le Centenaire du "Capital': Mouton, Paris-La
15 de novembro. http://www.monde-dipplomatique.fr/mav.120/LEYMARIE/46998. Acesso em 1-12- Haye.
2011. MACPHERSON, C. B. 1971. La théorie politique de l'individualisme possessif de Hobbes à Locke,
LEVI, Primo. 1968. É isto um homem? Rocco, Rio de Janeiro. 1997. A trégua. Companhia das Letras. Éditions Gallimard, Paris.
São Paulo. 1999. Se não agora, quando? Companhia das Letras. São Paulo. MAGALINE, A. D. 1977. Luta de classes e desvalorização do capital, São Paulo, Moraes.
LIMA, Carlos. 2011. "Violência e esvaziamento humano na dominação do capital fictício (um breve MAGRIS, Claudio. 2003. "Maestri e allievi a scuola di torturà: 8 de setembro, Corrieri dela Sera,
olhar )'',http://xa.yimg.com/kq/ groups/ 13444070/92728897/name/viol%C3%AAncia +e+esvaziame http://www.Veritagiustizia.it/oldrassegna_stampa/corrieri_della_sera_maestri_e_allievi_a_scuola_di_
nto+humano+na+domina%C3%A7%C3%A30+do+capital+fict%C3%ADciuo%5B 1%5D.pdf 14 de tortura.php Acesso 24.5.2011.
fevereiro. Acesso 6-10-2011. MAITAN, Livio. 1990. AI termine d' una lunga marcia. Dal PCI aI PDS, Erre emme edizioni, Roma.
LIMA, Kátia. 2004. "Terceira via ou social-liberalismo: bases para a refundação do projeto burguês de MALIGHETTI, Roberto. 2002. "Il tragico ossimoro: note sulla deriva monoculturale del
sociabilidade': Universidade e Sociedade, a. XlV, n. 34, outubro. 2007. "Educação a distância e contra- multiculturalismo': Passagi. Rivista Italiana di Scienze Transculturali, n. 4, www.novecento.org/ita/doc/
reforma da educação superior': ADunicamp, Campinas. 2009. "Entrevistà' In Jornal da ADunicamp. Malighetti_06RE.rtf. Acesso 12 de julho de 2009.
A. 2, n° 13. Novembro. MANDEL, Ernest. 1978. Crítica do euro-comunismo, Edições Antídoto, Lisboa.
LINHART, Daniele. 2009. "Modernisation et précarisation de la vie au travail': Papeles del Centro MANNHEIN, Karl. 1954. Ideologia e Utopia, Editora Globo, Porto Alegre.
de Estudios sobre la Identidad Colectiva, Universidad deI Pais Vasco, n. 43, V. 2009/1. Março, http:// MARAZZI, Christian. 2011. "Diario economico-politico': 29 aprile. http://www.sinistrainrete.info/
www.ldentidadcolectiva.es/pdf /43.pdf. Acesso em 23-2-2010. 2010. "Uma abordagem sociológica das index.php? option=com _content& view=article&id=1352&Itemid=70 Acesso 4-5-2011.
novas penosidades no trabalho': _ _ e Margarete Maruani. 1982. "Précarisation et déstabilisation des MARGIOTTA, Davide. 2010. "Pomigliano: somente com a luta podemos dobrar a Fiat e a
emplois ouvriers': in Travail et Emploi, n. 11._ _ e Anna Malan. 1988. "Individualisme professionel Confindustrià: 13 de junho, http://www.litci.org/ PT /índex. php? option =com&view=article&id= 1946
des jeunes et action collective': in Travail et Emploi, n. 36-37. acesso em 2 de março de 2011.
LINTON, Ralph, 1936. "TheStudy om Man: na Introduction" APPLETON-CENTURY-CROFTS, MARINHEIRO, Vaguinaldo. 2011. "Reino Unido caminha para a desigualdad do século 19': Folha
NEWYORK. de São Paulo, 7 de junho, p.A19.
LOGIUDICE, Edgardo. 1990. "La democracia no elimina el yugo de classe:: Utopias del Sur n. 5, MARSHALL, Andrew G. s/do O "sacrifício" de Aldo Moro, http://www.globalresearch.ca/index.
Buenos Aires, primavera. php?context=va&aid= 9556. Acesso 31-1-2010.
LO PIPARO, Franco. 1987. "Studio dellinguagio e teoria gramscianà: in Critica Marxista, n. 2-3, MARTINEZ, Miguel. 2005. '''La sola nazione indispensabile del mondo': La retórica della libertà
marzo-giugno. americanà: Eretica, n. 1, jul-set. http://www.kelebekler.com Acesso em 11-6-2011.
LOGGIA PROPAGANDA DUE. s/do "Piano di Rinascita Democraticà: in www.misteriditalia.com MARTINEZ, 201O:'Estização e mistificação da vida do sistema publicitário': Tempos Históricos, V.
Acesso em 20-9-2010. 14, setembreo
LOI LE CHAPELIER. 1791. http://www.lexinternet.net/lois/loi_du_14juin_1791_(loi_le_ MARX, Karl. 1928. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Éditions Sociales Internationales, Paris.
chapelier).htm Acesso 7-4-2010. 1959. El Capital. Crítica de la Economia Política, Fondo de Cultura Económica, México-Buenos
LOSURDO, Domenico. 2002. "Stato razziale ed eugenetica, gli USA e Il Terzo Reich': in Per uma Aires. 1971. EI Capital, Libro I, Capítulo VI (Inédito), Ediciones Signos, Buenos Aires. 1972. Misere
critica delIa categoria di totalitarismo, rivista Hermeneutica. http://www.kelebeler.com Acesso de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la Misere. Réponse à la Philosophie de la Misere de M.
em 23-8-2008.2004. "Towards of a Critique of the category Totalitarismo". Historical Materialism, Proudhon, Paris, Editions Sociales. 1976. 'i\nais Franco-Alemães", in Karl Marx & Friedrich Engels,
vol. 12, n° 2, Leiden. 2006. Antonio Gramsci, do liberalismo ao "comunismo crítico", Editora Opere (1843-1844), vol, 3, Roma, Editori Riuniti. _ _ e ENGELS, Friederich, 1951. Manifiesto Del
Revan, Rio de Janeiro. 2007. "Marx, Cristovão Colombo e a revolução de outubro. Materialimo Partito Comunista, in Obras Escogidas, Ediciones en Lenguas Extranjeras, Moscou, 1968. LIdeologie
histórico e análise das revoluções': http://mauriciograbois.org.br/portal/revista.int.php?id_ Allemande, Éditions Sociales, Paris.
sessao=509=50&id_pubçicacao=208&id_indice= 1741 Acesso em 12-9-2008. 2008. "Entretien MASI, Edoarda. 2003. 'i\lle radici delI' ultima crociata. DalIa lotta aI comunismo a quelIa aI
a Laurent Etre': L'Humanité, 30 de junho de 2008, http://www.humanite.fr/Entretien-avec- terrorismo. La nuova ideologia globale aggiorna illinguaggio di un antico obiettivo: la giustificazione
Domenico-Losurdo. Acesso em 20-4-2009. 2008. "A revolução, a nação e a paz': Estudos Avançados, 'filosofica» del controlIo deI mondo': il Manifesto 27 dicembre. http://www.criticamente.com/bacheca/
a. 22, n° 62. bachecaattualita/ Masi_Edoarda-AlIe radici _delL ultima_ crociata.htm Acesso em 7-11-2009.

t
372 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 373

MATERIALI RESISTENTI. 2003. ''Agli operai delIa FIAr: 19 de maio, http://www. e competizione Internazionale", Marxismo oggi, n. 2. http://www.proteo.rdbcub.it/article.php3?id_
materialiresistenti.blog.dada.net/post/ 10723/ AGLI + OPERAI + DELLA + FIAT%3A+ Piazza+Statu article=300, Acesso em 10-12-2009.2009. "La crisi non é finanziaria ma dello capitale': Marxismo Oggi,
to+1962 Acesso em 1-1-2011. 9 de abril. 2009a. "Oggetto: ESTADOS UNIDOS, e vera decadenza?': resistenze.org de 25 de novembro.
MATHIEU, Anne. 2009. "Frantz Fanon, uma voz dos oprimidos': http://www.psyonline.com. Acesso em 15-12-2010.2010. "Le basi economiche del federalismo leghista': Relazione per Il convegno
br/ portal/idex. php? option= com contents&View=article&ide=282:frantz-fanon -uma -voz-dos- dell'Associzione Marx XXI: 'Neoliberalismo e attacco Allá Consituzione: Roma, 12 de junho. http://
oprimidos&catid=29: psicologia&Itemid=107 Acesso em 30-4-2011. www.sinistrainrete.info/societa/ 955-domenico-moro-Ie-basi -economiche-del-federalismo-leghista
MAUGER, Gérard. 2011. "RITES DE PASSAGES OU DELINQUANCE? Eternel retourdes bandes de Acesso 15-1-2011.
jeunes" Le Monde Diplomatique maio.http://www.monde-diplomatique.fr/2011/05/MAUGER/30482 MOTA, Ana Elizabete da. 1994. "Do Operário Padrão ao Operário Patrão': Temáticas, Campinas,
Acesso em 12-11-2011. Ano 2, n° 3, 10 semestre.
McCARTHY, Mary. 1974. ''A minhoca de Watergate': in As gravações secretas de Opinião, junho. MURTA, Andrea. 2010. "Em 5 anos, Nova Orleans renasce branca': Folha de São Paulo, p. A24, 8 de agosto.
McCOY, Alfred W 2010. "The US. has a history of using torture': History News Network, 4 de MUSSO, Stefano. 2008. "Il sindacato nel neoliberalismo", Nuvole, n. 34, outubro.
dezembro,http://www.zcommunications.org/the-u-s-has-a-history-of-using-torture-by-alfred-w- NAPOLITANO, Giorgio. 1981. "Originalidade e força da democracia italiana': Almanaco del PCI
mccoy Acesso em 22-3-2011. _ _ e Brett Reilly. 2011. "E se o Império perder os dentes?" http://www. 1981, in Vellani, 1981.
outraspalavras.net/20 11/04/25/e-se-o-imperio-perder-os-dentes/ Acesso em 26-4-2011. NASCIMENTO, Claudio Albuquerque. 2005. E o Juro te libertará. Análise do Microcrédito como
McPHERSON, Jessica. 2007. "Frantz Fanon: psychiatry as revolution; revolution as psychiatry". ferramenta social, Tese de Doutorado. Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Summer. www.med.uotawa.ca/historyof medicine/hetenyi/mcpherson.html Acesso em 30-4-2011. Janeiro, Rio de Janeiro.
MENEZES, Sonia. 2010. "Os vendedores do passado: a escrita e a história': Tempos Históricos, 2° NICOLAUS, Martin. 1967. "Proletariat and middle class in Marx: Hegelian choreography and the
semestre, v. 14, n. 2,a. XII. Cascavel. capitalist dialetic': Studies on the Left, New York.
MERRIGI, Maria Grazia. 2008. "Conflitto e produzione di soggettività con Gramsci tra 'rivoluzione NOTTI, Erica. 2008. "Condizione storiche dem~gemonia linguistica" in Metábasis Filosofia e
passiva' e nuove forme di egemonia': Essere Comuniste, 5/2008, 10 de fevereiro. http://www. Comunicazione. Rivista Internazionale di filosofia on line, a. III, n. 5, maio.
esserecomunisti.it/index. aspx?m=77&f=2&IDArticolo= 25225. Acesso em 31-3-2010. OLIVEIRA, William Vaz de, Cecília de Castro Rocha e Mara de Souza Leal. s/do ''As relações de poder
MILGRAM, Stanley. 1974. "The Perils of Obedience", Harper's Magazine. http://home.swbell.net/ e a construção da loucura: Uma análise do livro Canto dos Malditos de Austregésilo Carrano Bueno':
revscat/perilsOfObedience. html Acesso em 25-3-2011. Texto da web.
MINICUCI, Marina. 2005. ''A linguagem política" in http://resistir.info/varios/marina_linguagem. ONGARO, Franca Basaglia. 1968. "Rovesciamento istituzionale e finalità comune" in Basaglia, 1968.
html. maio. Acesso em 18-11-2009. _ _ e GIANNICHEDDA, Maria Grazia. 2000. "Franco Basaglia: Conferenze Brasiliane", Raffaelo
MILLER, Arthur. 1997. As Bruxas de Salém, Ediouro. Rio de Janeiro. Cortina Editore. Milano.
MODERN, Rodolfo E. 1961. História de la literatura alemana, Fondo de Cultura Económica, OPINIÃO. 1974. ''As gravações secretas de Nixon': Opinião, junho.
México-Buenos Aires. PACCHETO TREU 1967. Legge 24 giugno 1997, n. 196 - "Norme in materia di promozione
MODUGNO, Enzo. 2010. "Sul feticismo della scienza e il cosidetto general intelIect': in Il manifesto, dell'occupazione". (G. U n. 154 del4 luglio 1997 - s.o. n. 136) http://digilander.1ibero.it/csg/web/L196.
15 de julho. http://sollevazione.blogspot.com/20 10/07/contro-il-mito-del-Iavoro-cognitivo-e.html. htm Acesso 22-3-2000.
Acesso em 12-11-2010._ _ e GIACCHÉ, VIadimiro. 2007. "Marx oggi. I compiti dei movimenti PALMA, Gabriel. 2011. "Resgate grego é forma de neocolonialismo': Folha de São Paulo, 8 de
di liberazione e loro pressuposti teorici': in Essere Comunisti, 3-2007. http://www.esserecomunisti.it/ novembro, A13.
índex.aspx?m=77&f=2&IDArticolo=21212. Acesso em 3-12-2009. PANZIERI, Raniero.1961. "Sull' uso capitalistico delle macchine nel neocapitalismo", Quaderni Rossi,
MOGGIA, Corrado. 1988. "Introduzione" a Gramsci, 1988. n° 1, in Panzieri e Lanzardo, 1968a. 1965. "Uso socialista dell'inchiesta operaia" in Quaderni Rossi, n°
MONCADA, Alberto. 2005. ''A militarização da política americana': Universidade e Sociedade, a. 5, in Panzieri e Lanzardo, 1968b. 1973. Scritti 1956-1960. Lampugnani Negri Editore. Milano. _ _ e
Xv, n° 36, Brasília, junho. LANZARDO, Dario. 1968. Luttes ouvrieres et capitalisme d ' aujourd 'hui, François Maspero, Paris.
MONTEIRO, Érica Gomes Daniel. 2010. ''A guerra como slogan: visualizando o advertising Project PASCUCCI, Angela. 2008. "La lunga corsa della Cina I: La política energetica interna': Cartografare il
na propaganda comercial da Revista Seleções do Reader' s Digest': Tempos Históricos, 2° semestre, v. presente, 1 de novembro. http://www.cartografareilpresente.org/article345.html Acesso em 20-4-2011.
14, n. 2,a. XII. Cascavel. 2008a. "La lunga corsa della Cina II: Sicurezza energetica e política estera". Cartografare il presente, 13
MORAES, Reginaldo C. Corrêa. 1962. "Exterminadores do futuro: a lógica dos neoliberais': de novembro. http://www.cartografareilpresente.org/ article412.html Acesso em 20-4-2011.
Universidade e Sociedade, n° 6, Brasília, junho. PASOLINI, Pier Paolo. 1973. "Il folIe slogan dei jean Jesus. Analisi lingüística di uno slogan",
MORDENTI, Raul. 1996. "Quaderni daI carcere" di Antonio Gramsci, Giulio Einaudi Editore, Turim. Corrieri della Sera, 17 de maio. 1973a. ''Aboliamo la tv e la scula dell ' obbligo': Corrieri dela Sera, 18 de
2007. Gramsci e la rivoluzione necessária, Editori Riuniti, Roma. 2008. "Neo-fascismo e antifascismo, outubro. http://www. coriere.it/special/pasolini/scuola.html. Acesso em 15-2-1995. 1973b. "Contro la
un'Italia senza memoria': in il manifesto, 1 de junho. http://www.ilmaifesto.it/argomenti-settimana/ televisione" ': Corrieri dela Sera, 9 de dezembro .. http://www.coriere.it/special /pasolini/ scuola.html
articolof62c4bOf8a6d83883e68flcde Of5b89. html Acesso em 15-1-2010. 2008a. "Insegnare a leggere Acesso em 15-2-1995.
e a scrivere nelI'epoca deI computer. La scuola delle ter 'L': http://www. treccantit/ Portale/ sito/ scuola/ PAYE, Jean-Claude. 2004. "La coopération policiere et judiciaire usa-eu: um rapport impérial': la
in_aulallingua_e letteratura/A_cosa_serve_la_ letteratura/ mordenti.html. Acesso em 15-1-2010. rivista deI manifesto, n. 52, julho-agosto. 2009. "Dictadure ou état d'exception permanent?" http://www.
2008b. "italianistica e internt': I'ntervista htttp.italiano.letras.ufrj.br?index.php?option=com_content& multitudes.samizdat,net/Dictadure-ou -etat -d -exception. Acesso em 12-10-2010.
view=carticle&id=56:raul-mordente&catid= 15:interviste-in _italiano&Itemid=8. Acesso em 23-06- PERLINI, Tito. 1969.''Autocritica della ragione iluministica': in Ideologie. Quaderni di storia
2011. 2010. "Commento': in Su La Testa, maio, http://www.controlacrise.org/joomla/index.php?view contemporânea, n. 9-10.
=article&catid. 39&idformat=pdf&option=com_content&Itemid=68. Acesso em 30-9-2010. 201I. PERSON, Yves. 1973. 'Tidéologie de l'unité': Les Temps Modernes, a. 23, n. 324-325-326. agosto-
"Homo faber: para uma antropologia filosófica gramsciana': Revista Outubro. N. 19. São Paulo. setembro.
MORETTI, Luca. s/do "L'empire writs back. Introduzione alla letteratura postcoloniale': http:// PIERSANTI, Felice. 1978. "La autogestión de la salud" in Basaglia et allii, 1978.
aborigeni.interfree.it/letteratura/ intro.html Acesso em 1-12-2011 PEYROT, Bruna. 2010. ''A Itália de Pomigliano': http://suI21.com.br/jornal/201O/08/a-italia-di-
MORO, Domenico. 2003 "Il movimento dei lavoratori difronte ai blocchi USA ed UE tra crisi pomigliano/ Acesso em 2 de março de 2011.
374 Edmundo Fernandes Dias Revolução passiva e modo de vida 375

PIZZORNO, Alessandro. s/do "Democrazia, politica, sindacato e globalizzazione: quale futuro?':


"Relativisme culturel. Concept scientifique et arme idéologique': Colelctif Les mots sont importants,
Entrevista com Ivo CAMERINI, in "Conquiste deI Lavoro-Supplemento culturale Via Po': http://
juillet. Acesso em 23 de abril de 2011. 2006. "De Martino e Basaglia: la dialletica del sé e dell'altro': in
pollosellavaldichiana.splinder.com/ post/20933088 /Intervista +col+sociólogo+Aless. Acesso em 14-
"11 de Martino" http://www.iedm.it/ned rivista-php, n. 18. Acesso em 12-7-2010.2007. "Intervista: 11
12-2009.
governo e gli altrf: Pagina Uno, n. 4, ottobre-novembre. http://www.rivistapaginauno.it/Annamaria-
POLLMANN, Christopher. 2009. "Le príncipe degalité: tremplin ou impasse pour lemancipation Rivera-intervista.php. Acesso em 10-7-2010. 2008. «Meteci transmigranti e fantasmi locali. Appunti
humaine': Revue ASPECTS, n 3.
per una fenomenologia dellesperienza migratoria», Terzo Stato. http://terzostato.ilcannocchiale.
POLO, Gabriele e SABATTINI, Claudio. 2010. "Torino 1980, dove fini la democrazia operaià: In it/2008/7/28/meteci_transmigranti_ejantasm. html Acesso em 15-7-2010. 2008a. "La normalizzazione
"Restaurazione italianà: 2a. ed, LAncora deI Mediterraneo, http:/www.controlacrise.org/joomla/índex.
deI razismo': in Grazia Naletto (org.) Sicurezza di chi? Como combaterei 1razzismo, Edizioni deI Asino,
php?option=com_content&view+article &id= 8485&catid=36&Itemid=68 Acesso 21-12-2010. Roma. 2010. "Intervista ad Annamaria Rivera, antropologa e attivista antirazzista': 16 de junho. http://
PORTELLI, Alessandro. 2011. "Memória e globalização: A luta contra o fechamento da www.albanianews.it/italia/ migrazioni/item/1196-intervista-annamaria-rivera. Acesso em 12-7-2010.
ThyssenKrup em Terni, 2004-2005': in Antonio Bosi e Rinaldo Varussa, Trabalho e Trabalhadores na 2010a. "Crufix contre foulards: La guerre des symboles em Italie': Colelctif Les mots sont importants,
contemporaneidade: Diálogos Historiográficos, Edunioeste. Cascavel. juillet. Acesso em 23 de abril de 2011. 2011. "Les barbelés de notre médiocrité': Colelctif Les mots
PREVE, Constanzo. 2002. "Sulla questione degli intellettuali. Note per la discussione': In sont importants, 14 de abril. Acesso em 23 de abril de 2011. 2011 a. "11 retorno dela neolingua razzistà'
Indipendenza, n.12,junho-julho.http://www.rivistaindipendenza.org/Teoria%20nazionalitaria/ 20 de abril, http://blog-micromega.blogautore.espresso.repubblica. it/20 11 /04/201 annamaria -rivera -il-
Sulla%20questione%degli%20 intellettuali% 20n.% 2012% 20giugno-luglio%202002.htm. Acesso em ritorno-dei-vu-cumpra/ Acesso 6-6-2011. 2011b. "Le sursaut de la gauche italienne et nos Bouazizi':
23-3-2009. Colelctif Les mots sont importants, 13 de junho. Acesso em 23 de agosto de 2011. 2011 c. "Milizie nere
PRIEST, Dana e William M. Arkin. s/ d. ''A hidden world, growing beyond control': Washington Posr, e milizie verdi: Qual é la differenzà: blog-micromega.blogauore.espresso. repubblica.it 25 de agosto.
http://projects.washingtonpost.com/top -secret -america/ articles/ a -hidden -world -growing -beyon- Acesso em 12-10-2011. 2011 d. "Lampedusa: ma quale 'guerra tra poveri '1" 24 de setembro. http://
control/7/ Acesso 20-5-2011 blog-micromega. blogautore. espresso.repubblica.it/20 11 109/25/annamaria -rivera -lampedusa -ma-
PRUDENZI, Angela e Elisa Resegotti, 2006. Cinema político italiano. Anos 60 e 70, Cosac Naify e quale-guerra-tra-poveri/ Acesso 15-10-2011 . 2011e. "15 ottobre il corte o di popolo il tumulto no future
Mostra Internacional de Cinema, São Paulo. e lo stato di polizià' http://blog-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/20 11 I1OI 18/annamaria-
PUNDIK, Juan. 2006. "Plataforma contra la medicalizaión deI nino': Revita Eletronica de la Nueva rivera-15-ottobre-il-corteo-di-popolo-il-tumulto-no-future-e-lo-stato-di-polizial Acesso em 1-11-
Escuela Lacaniana, 31 de Julho, Madrid, psy-ab&source=hp&pbx=l&oq=Plataforma+contra+la+Me 2011. 2011f. "Gheddafi: l' osceno linciaggio in mondovisione e il cadavere del diritto internazionale':
dicalizaci%C3% B3n+del+ni%C3% B10&aq=f&aqi=&aql=&gs_sm=&gs_upl=&bav=on.2,or.r~c.c e lo stato di polizià' http://blog-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/20 1111 0/251 gheddafi-
pW.,c Acesso em 23-11-2006.2009. "No attender en clase no es una enfermedad", El Pais, 29 de dezembro, losceno-linciaggio-in -mondovisione-ilcadavere-putrefatto Acesso em 3-11-3011. _ _ e Paola
http://lacomunidadelpais.com/blasgarciamarin/2009 / 12/28/juan -pundik -knapheis- psiquiatria -y- Andrisani. 2002. ''Analytical study on discrimination and racista violence in Italy: 2000-2002': National
psicoanalista-no-atender Acesso em 23-12-2011. 2010. "El DSM La Biblia deI Toaritarismo': Revista Focal Point - Italy, Cooperazione per lo Sviluppo dei Paesi Emergenti _ _ et alli. si d. "Libro bianco
Topia, a. XX, n° 59, agosto-setembro. sul razzismo in Italià: Roma, antirazzismo@lim,aria.org Acesso 1-11-2011
RAITER, Alejandro. 1990. "El discurso de La derechà: Utopia deI Sur, n. 5, Primavera. ROBIN, Marie-Monique. 2004. "Entretien avec Marie-Monique Robin': Hommes & Libertés, n. 128
RAMONET, Ignacio.201O. "Entrevista de Ignacio Ramonet a Frédéric Durand no rHumanité. " Out-nov, http://www.ldh-toulon.net/spip.php?article1778 Acesso em 25-5-2011. 2005. "Escadrons de
20 de abril. http://wwwoutraspalavras.net/2011104/20/ignacio-ramonet-descreve-%E2%80%9Ca- la mort. L' école française': Offensive, n. 7, outurbo. http://offensive.samizdat.net/ Acesso em 25-5-2011.
explosao-do-jornalismo% E2%80%9D Acesso em 20-4-2011. 2009. "Escadrons de la mort. L' école française': 27 de fevereiro. http://socio 13. wordpress.com/2009 /02/
RAMPELL, Catherine. 2010. ''Americanos têm problemas para voltar ao mercado de trabalho", in 27/marie-monique-robin -escadrons-de-la-mort -lecole-francaise/ Acesso em 25.5.2011. 2011. "De la
Folha de São Paulo, 4 de dezembro. B19. 'guerra sucia' a la comida envenenadà: 15 de abril. http://upsideworld.org/main/ en -espatopmenu-
RAVITCH, Diane. 2010. "Volte-face d'une ministre américaine': http://www.monde-diplomatique. 81/3001-el-mundo-segun-marie-monique-robin-de-la-guerra-sucia-a-la-comida-envenenada Acesso
fr/201O/1O/RAVITCH/ 19750. Acesso em 10-3-2011. em 24-5-2011.
REALE, Elvira. 1985. "11 posto dele donna nella storia dela psichiatrià' in Deviazione & Emarginazione, ROCCA, Jean-Louis. 2007. ''A China redescobre a questão social': 7 de maio. http://pt.mondodiplo.
8, IV http://www.salutementaledonna.it/psichiatria-storia.htm Acesso 3-12-2010. com/spip.php?article411 Acesso em 15-3-2011.
REALFONZO, Riccardo. 2007. "Rive gauche due anni dopo': in Essere Comunisti. Acesso em 15- RODRIGUEZ, l1eana. 2004. "Hegemonia y Domínio: Subalternidad, um significado flotante':
12-2010. in Globalización. Revista mensual de Economia, Sociedad y Cultura, http://www.rcci.net/
REICH, Wilhelm. 1970. La révolution sexuelle, Union Génerale d'Éditeurs, Paris. 1970a. Materialismo globalizacion/2004/fg441.htm Acesso em 25-9-2010.
dialéctico y psicoanálisis, Siglo XXI Editores, México. 1972. La psychologie de masse du fascisme, ROGOFF, Kenneth e REINHART, Carmen. 2010. "Crescimento em meio a dívidas", Folha de São
Éditions Payot, Paris. 1972a. La lutte sexuelle des jeunes, François Maspero, Paris. 1981. Escuta, Zé Paulo, 31 de janeiro, p. B5.
Ninguém!, Livaria Martins Fontes Editora, Lisboa. ROlO, Marcos Del2007:'Gramsci e a emancipação do subalterno. Revista de Sociologia e Políticà:
RECH, Marcelo. 2010. "Os voos secretos e a tortura nas prisões da CIA:: Defesanet. 5 de maio. Curitiba, n. 29.
RESSEGOTI, Elisa e Angela Prudenzi. 2006. Cinema político italiano. Anos 60 e 70, Cosac Naify e ROSA, Rui Namorado. 2003. "Flexibilização do trabalho, flexibilização do ensino': 15 de outubro.
Mostra Internacional de Cinema, São Paulo. http://www.janelanaweb.com/digitais/rui_rosa31.html Acesso em 3-12-2009.
RIESER, Vittorio. 1988. "11 rapporto studenti-operai fu uno dei caratteri del bienio rosso 1968-69 ROSSANDA, Rossana. 1996. Note a margine, Bollati Boringhieri, Torino. si d. "Planeta operaio': www.
in Italià: in il manifesto, março. http://www.contropiano.org/Documenti/2011/Gennaioll/04-01- sinistrainrete.info/storia/866-rossana -rossanda -planeta -operaio Acesso 2112-2010. 2011. "L 'Europa e
11RapportoStudenti Operai.htm Acesso em 26 de janeiro de 2011. 2010. "Sulla coscienza di classe noi, tra passado e futuro': il manifesto, http://www.sinistrainrete.info/1969-rossana -rossanda -leuropa-
nell'atuale fase del capitalismo" http://www.sinistrainrete.info/teoria/ 1004-vittorio-rieser-sulla- w-noi-tra-presente-e-futuro.html Acesso 30-11-2011. "
conscienza-di-classe-nelle-attuale-fase-del-capitalismo Acesso em 23-12-2010. ROTELLI, Franco. 1988. ''A instituição inventadà: Rivista "Per la salute mentale/For mental health, n. 1.
RIVERA, Annamaria. 2005. "Com l'arma impropria dell'universale': rUnità, 22 de abril. http://www. RUFFOLO, Giorgio. 2009. "11 debito deI capitalismo. Marco d'Eramo intervis~a Giorgio .Ru.ffolo':
imediata.com/devirl ANNAMARIA%20RIVERA_relativismo/indexl htm. Acesso em 12-7-2010. il manifesto, 1 de novembro, http://temi.repubblica.it/micromega-online/il-debIto-del-capItahsmo-
2005a. "La guerra dei simboli. Veli postcoloniali e retoriche sull' alterità" Edizione Dedalo, Bari. 2005b. marco-deramo-intervista -giorgi o-ruffolo/. Acesso em 28-11-2009.

b
376 Edmundo Fernandes Dias

RUSCONI, Gian Enrico. 1969. Teoria Crítica de la Sociedad. Ediciones Martinez Roca, Barcelona. org.br/5com/pop-up/ custo_da~erra_no_iraque.htm, 2009. "As duras lições de 2009" Folha de São
2009. Quante insidie per La SPD, La Stampa, 3 de agosto. http://circolorossellimilano.blogspot.com/ Paulo, São Paulo, 27 de dezembro. B5. '
Acesso em 11-12-2009. . STONE, I. F. 1974. "Por que Nixon tem medo de renunciar': in As gravações secretas de Opinião,
SALVADORI, Massimo L. 1981. Saggi su socialdemocrazia e comunismo, Giulio Einaudi Editore, Junho.
Torino. STUDENTS FOR A DEMOCRATIC SOCIETY. 1962. "The Port Huron Statemment ofthe Students
SAID, Edward. 2002. "Lo que há hecho Israel': Rebelión, 17 de abril. 2003. "O papel público de for a Democratic Society': http://coursesa.matrix.msu.edu/ - hst306/documents/hurn.html Acesso em
escritores e intelectuais': in Cultura e Política, Boitempo, São Paulo. 22 de maio de 2009.
SALVATI, Michele e BECCALLI, Bianca, 1970. "Divisione dellavoro - Capitalismo, socialismo, SUAREZ, Armando. 1989. "Freudomarxismo: Pasado y presente': in Basaglia. Et allii, 1989.
utopiâ: Quaderni Piacentini, n° 40, Piacenza, in Cuadernos de Pasado y Presente, nO 32, Córdoba, 1972. SZASZ, Thomas. 1989. "EI mito de la enfermedad mental': in Basaglia. Et allii, 1989.2000. "Does
SALVADORI, MASSIMO L. 1991. "L'utopia caduta. Storia del Pensiero Comunista da Lenin a insanity cause crime': Ideas on Libert, 50, pp 31-32. Março.
Gorbachov': Laterza, Roma-Bari. TAFFAREL, Celi Zulke. 2008. "Faculdades e Centros de Educação e os cursos de Pedagogia: A ponta do
SANTORO, Livio. s/do "Per uma reforma deI soggeto. Basaglia e Il percurso delle fenomenologie': iceberg da destruição da educação pública. Desafios e Tarefas (Uma contribuição ao debate)': 26 de março.
Tese de Doutorado em Sociologia e Pesquisa Social. Università degli Studi di Napoli "Federico Ir: http://www.faced.ufba.br/rascunho_digitalltextos/730.htm Salvador, Bahia. Acesso em 1-6-2010.
SARTE, Jean-Paul. 1963. "Preface a Jean Van Lierde, La pensée politique de Patrice Lumumbà: Editions TARl, Marcello. 2003. "Gli Studi Subalterni (e postcolonili) ci riguardano?': DeriveAprodi, n. 23
Présence africaine, Paris-Bruxelles, http://www.lepotentiel.com/xd232726.htm Acesso em 29-2010. 1965. http://www.nazioneindiana.com/2004/03 /06/ gli -studi -subalterni -e-postcoloniali -ci -riguardano
''Além do teatro burguês': in Tempo Brasileiro, a. III, n. 7, outubro. 2007. Prefacio a "Los condenados de la Acesso em 25 de setembro de 2009.
tierra". Koletivo "Ultimo recurso", http://www.elortiba.org janeiro. Acesso em 4-5-2011. TCHAKHOTINE, Serge. 1952. Le viol des foules par la propagande politique, Éditions Gallimard, Paris.
SBARDELLA, Raffaele. 1980. "La NEP di Classe Operaiâ: Classe, n. 17, Giugno. Republicado em THERBORN, GÔran. 1984. "La escuela de Frankfurt': Editorial Anagrama, Barcelona. 1989. l Como
http://web. tiscalnetit/vis avis /totonn08. pdf. Acesso em 23-11-2009. domina la clase dominante?, México, Siglo XXI.
SCALIA, Gianni. 1971. "La ragione della foliâ: in Basaglia e Ongaro (org.). 1971. THIOLENT, Michel J. M. 1985. Critica metológica, investigação social e enquete operária, Polis, São Paulo.
SCHELPE, Diego. 2010. "Thilo Sarrazin: uma teoria perigosâ: Revista Veja, 15 de setembro, http:// THOMPSON, E. P. 1998. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional,
planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/banqueiro-alemao-thilo-sarrazin-livro- Companhia das Letras, São Paulo.
racismo-veja-597071.shtml Acesso em 4-10-2010. TISSOT, Sylvie. 2007. "L' invention des 'quartirs (bairros) sensibles": Le Monde diplomatique,
SCHETTINO, Paulo B. C. 2005. "Pasolini: trinta anos, este ano': Universidade e Sociedade, Brasília, Outubro, http://www.monde-diplomatique.fr/2007/1O/TISSOTI15252. Acesso em 14-4-2010. e
a. Xv, n, 35, fevereiro. POUPEAU, Franck. 2005. "La spatialisation des problemes sociaux': Actes de La recherche em sciences
SCREPANTI, Ernesto. 2009. "La grande crisw e l'mperialismo globale': http://www.sinistrainrete. sociales, n° 159, abril. _ _ e TEVANIAN, Pierre. s/do "La langue des maitres et as fabrique. Retour
info/crisi-mondiale/804-la-hrande-crisi-e-limperialismo-globale Roma, 1 a 3 de maio. Acesso em 30 sur dix ans de rhétorique réactionnaire': http://www.lmsi.net/spip.php?article1030. Acesso em 15-4-
de agosto. 2010. s/da. "Qu' est-ce que 'la question sociale '? Sexe, race et classe': http://www.alterinfo.net/Qu-est-
SENNETT, Richard. 1999. A Corrosão do caráter, Record. 2006. "A cultura do novo capitalismo': ce-que-Ia-question -sociale-Sexe-race-et -classe_a44424.html. Acesso em 2-5-2010.
Editora Record, Rio de Janeiro. TOGLIATTI, Palmiro.1975. Antonio Gramsci, Seara Nova, Lisboa.
SEOANE, Maria. 1990. "Fundaciones neoliberales como laboratórios de proprietários:: Utopias del TORNERI, Silvia. 2008. "Tra femminismo e Black power: nascita della soggettività femminista nera':
Sur n. 5, Buenos Aires, primavera. http://aula-c.noblogs.org/gallery/399/Tra%20femminismo%2Oe%20black %20power:%20nascita%20
SIGONA, Nando. 2009. "I rom nell'Europa neoliberale: antiziganismo, povertà e i limiti dell a%20soggettivit%C3%AO%20femminista%20nera%20-%20Silvia%20Torneri.pdf. 15 de abril.
dell ' etnopoliticâ: in Razzismo Democratico, http://www.meltingpot.org Acesso em 20-11-2011. Acesso em 20-3-2011.
SIGNORELLI, Assunta. 2002. "Centro Donna-Salute Mentale Genere e Potere: Convivenza TOUISSANT, Eric. s/do "Au Sud comme au Nord, de la grande transformation des années 1980 à la
Imposibile?" in I Generi dele violenza. Tipologie di violenza contro donne e memori e politiche di crise actuelle': 14 de setembro, http:// www.voltairenet.org/articleI62008.html. Acesso em 15-9-2010.
contrasto, http://www.triestesalutementale.it/letteratura/testi/centrodongenpot.htm Acesso 1-11-2011. TRONTI, Mario. 2006, "Marx non e stato inferiore a la grandeza swl Novecento': Centro per la
SILONE,Ignazio. 1980. Fontamara, Oscar Mondadori, Milano. Riforma dello Stato, março. http://www.sitocomunista.it/marxismo/Marx/marx.novecento.html
SILVEIRA, Juliane. 2009. "45% da Grande São Paulo já manifestou transtorno mental': Folha de São Acesso 23-4-2009.2009, "Política e cultura, oggi. Culture e pratiche politiche nei mutamenti della sfera
Paulo, São Paulo, 7 de novembro. C6. pubblicâ: 25 de novembro, http://www.centroriformastato.it/crs/trash/Tronti/oggi. Acesso 24-12-2009.
SINDICATO NACIONAL DE TRABALHADORES DE LA EDUCACIÓN - SNTE-MÉXICO 2011. "Illavoro aI 'tramonto della politicâ: Polemos, 12 de aprile. www.centroriformastato.org/vis 2/
1995. "Documento borrador de la Declaración de Organizaciones Magisteriales del Iberoaméricâ: IMG/pdf/5-2-Tronti_rev.pdf Acesso em 12-11-1011
Buenos Aires, setiembre. TROTSKY, Leon. 1971. "EI nuevo curso" e "Problemas de la vida cotidianâ: Cuadernos de Pasado y
SOARES, José de Lima. 2006. Sindicalismo no ABC paulista, Universa, Brasília. Presente, n° 27, Córdoba.
SODRÉ, Muniz. 2011. "Estamos bos matand culturamente': Jornal da ADUFRJ-Seção Sindical. A. X, TULA, Jorge (org.), 1993. Liberalismo, Socialismo, Socialismo Liberal, Editorial Nueva Sociedad,
n° 728, 7 de janeiro, Rio de Janeiro. Caracas.
SOFRI, G. 1966. "Sul 'modo de produzione asiatico ': appunti e storia de uma controversiâ: Critica TURCHETTO, Maria. s/do "Dall"'operaio massa all'imprenditorialità comune"; la sconcertante
Storica, novembro. parábol~ del operais~o italiano': http://www.intermarx.com/temi/oper1.html Acesso em 23-12-2010.
SOLO, Tony. 2003. "As seqüelas da Operação Condor': Resistir.info. http://resistir.info/eua/ UNIAO EUROPEIA. 2010. "Gettare le basi per un futuro dinamico': in Il portale deU 'Unione
operacaocondor.html Acesso em 15-3-2011. europea, http://europa.eu/pol/ educ/ index_it.htm Acesso em 17-12-2009.
ST-ONGE, Jean-Claude. 2006. "O outro lado da pílula ou os bastidores de indústria farmaceuticà: agosto, VACCA, Giuseppe. 1985. Il Marxismo degli intelettuali, Editori Riuniti, Roma.
http://www.conass.org.br/admin/arquivos/abrascojacesocultasjeanclaude.pdf Acesso em 3-12-2009. VASCON, Nino. 1968. "Introduzione documentariâ' in Basaglía, 1968.
SPNAK, Gayatri Chakravorty s/d "Estudios de La Subalternidad: Desconstuyendo la Historiografiâ: La Paz. VEIGA, José Eli da. 2011. "Osso muito duro de roer': Folha de São Paulo, 1 de janeiro.
STIGLITZ, Joseph. 2008. Quais são os custos milionários da inépcia? Associação dos Docentes VELLANI, Remo (org). 1981. Idéias e forças para o socialismo, Departamento "Imprensa, propaganda
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ADUR-SSin), 2 de abril, Seropédica, http://www.adur-rj. e informação" do PCI. 1981a. Introdução': in Vellani, 1981.

L
378 Edmundo Fernandes Dias

VERCELLONE, Carlo. 2006. 'l\.nalisi sulle lotte contro CPE in Francià: 11 Manifesto. 7 de abril.
http://multitudes.samizdal. net/ Analisi -sulle-Iotte-contro-CPE-in Acesso em 1-7-2010.
VERGES, Françoise. 2005. "Le Négre n' est pas, Pas plus que le Blanc. Frantz Fanon, esclavage, race
et racisme:' In Actue Marx, n° 38m
VERNANT, Jean-Pierre. 1962. Les origines de La pensée greque, François Maspero, Paris.
1965. Mythe et pensée chez les greques. Étude de psychologie historique, François Maspero. Paris.
VERRI, Pietro. 1992. Observações sobre a tortura, Martins Fontes, São Paulo.
VIALE, Guido. 2011. 'TItalia, fabbrica cacciavite della Fiat': il manifesto, 10 de fevereiro, http://www.
sinistrainrete.info/ lavoro-e-sindacato/ 1233 -guido-viale-litalia-fabbrica -cacciavite-della-fiat Acesso
22-5-2011.
VOVELLE, Michel. 2002. "Que reste-t-H de La Révolution Française': in Storia e Futuro, n. 1, Aprile.
VVAA. 1972. "La divisione dellavoro in fabbricà: 11 Manifesto, n° 5-6, Roma, in Cuadernos de FILMOGRAFIA
Pasado y Presente, n° 32, Córdoba. VilCoyote.
2007. "Rétablissons la loi Le Chapelier': http://www.optimum-blog.net/post/2007/06/15/
Rétablissons-Ia -loi -le-Chapelier, Acesso 7-4-2010. BABENCO, Hector. 2002. Carandirú.
WACQUANT, Lolc. 1999. 'l\. criminalização da pobreza': in MaisHumana, dezembro, www.maishumana. BEATTY, Warren. 1981. Reds.
com.br/loic1. htm. Acesso em 20-12-2009. 2001. As prisões da Miséria, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro. BELLOCHIO, Marco. 1965. I pugni in tasca 1965. La Cina evicina,
200 la. "Deadly symbiosys. When ghetto and prison meet and mash': in Punishment and Society, 3-1, BIANCHI, Sérgio. 2005. Quanto vale ou é por quilo.
January. http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/wacquancpdf!DEADLYSIMPRIS GHETTO.pdf BODANZKI, Lais. 2000. Bicho de sete cabeças,
Acesso em 5-4-2008.2002. "Le débat sur la 'sécurité': pour une approche rationnelle': in Nouveaux Regards, CANTET, Laurent. 2008. Entre les Murs.
automne, http:// www.institut.fsu.fr/nvxregards/19/19-interview_wacquant.htm. Acesso em 13-10-2005. CAVANI, Líliana, 1965. La Donna Italiana nella lotta contro il fascismo, 1968. Galileo e 1974. Il
2oo2a "Da escravidão ao encarceramento de massa Repensando a 'questão racial' nos Estados Unidos': New portiere di notte.
Left Review, jan-fev de 2002. http://www.scribd.comldoc/36097554/Da-escravidao-ao-encarcerament0- CHAPLIN, Charles. 1936. Modern Times e 1940. O grande ditador.
de-massa-LOIC-WACQUANT. Acesso em 5-5-2007. 2004. Los cárceles de la miseria, Manatial, Buenos CHOMSKY, Noan. s/do US/Israeli Crimes against Palestine 1992. Consenso Fabricado e 2003
Aires. 2004a "Introdução à edição brasileirà' de As prisões da miséria, http://www.sabotagem.orgl Coletivo Moralidade Distorcida. .
Sabotagem. 2004b 'l\. raça como crime cívico': Colóquio sobre Desigualdade e Cultura, Princeton University, COHEN, Peter. 1989-1992. Arquitetura da Destruição.
1 de março. http://ler.letras.up.luploads/ficheiros/3716.pdf Acesso em 13-10-2005.2006. "Punishing the COPPOLA, Francis Ford. 1979. Apocalipse now.
Poor': Duke University Press, 2006, www.hks.harvardedu/inequality/Seminar/ Papers/ Wacquant05. CORVI, Gabriel e Gustavo de Jeus. 2006. Errepé.
pdf Acesso em 30-11-2007. 2007. Parias urbanos. Marginalidad en la ciudad a comienzos del milenio. COSTA-GAVRAS, Constantino 1970. LAveu. 1982. Missing.
Manantial. Buenos Aires. 2008. 'l\. Segurança criminal como espetáculo para ocultar a insegurança social': in COUTINHO, Eduardo. 1987. Notícias de uma guerra particular.
Fractal. Revista de Psicologia, v. 20, n. 1, Janeiro-Junho de 2008.2010. "Insegurança social e surgimento da ELLSBERG, Daniel. 2004. 'CChomme qui a fait tomber Nixon - Daniel Ellsberg et les dossiers secrets
preocupação com a segurançà: Panóptica, a. 3, n. 19. Julho-Outubro de 2010. du Pentagone" e 2009. El hombre más peligroso de América.
WAHNICH, Sophie. 2010. "La nationalité ne fait pas le citoyen': LHomme et la société, Paris, n. 175. _ _ e Julian Asssange. 2010. Whisteblowing. Then and Now.
WALLRAFF, GÜnter. 1988. Cabeça de Turco, Editora Globo, Rio de Janeiro. FERGUSON, Charles. 2007. No end in sight e 2010. The Inside Job.
WATKINS, Peter. s/do "La crise des MMA (Mass-Média Audiovissuels)': s/d, http://www.zelea.org / FORMAN, Milos. 1978. Um estranho no ninho.
ungi/communication /textes references/crisemma/html Acesso 5-3-2010. FULLER, Samuel. 1982. White Dog,
2009. "La crise des Médias: une lettre ouverte et des questions': Divergences, N. 17, novembre. In GANSEL, Denis. 2008. A Onda.
http://divergences.be/ spip. php?article 1632&lang=fr Acesso 5-3-2010. TV GLOBOn - ARQUIVO N. 2011;Rio-Centro.
WERNICHE, Maria. 2004. "Julio Cortazar desde el tango': 9 de junho, Teatro. GUZMAN, Patrício. 1975-1976-1979. A batalha do Chile,
WOODWARD, Bob e Carl Bernstein.1974. "Nixon tentou 'manter a rolha na garrafà': in As gravações HAMBURGER, Caio. 2006. O ano que meus pais sairam de férias.
secretas de Opinião, junho. HARTOG, Simon. 1993. Muito além do Cidadão Kane.
ZAPATERO, Virgílio (org). 1980. Socialismo y Etica: Textos para um debate, Editorial Pluma- .JARECKI, Eugene .. 2006. Why we fight, 2008. The American way of war e 2011. Reagan. _ _ e Alex
Editorial Debate. Bogotá. Glbney. 2002. The Tnals of Henry Kissinger
ZARUR, George 2005. "Nação e Multiculturalismo em Cuba: Uma comparação com os Estados KATITCHI, Katerina e Aris Hatzistefanou. 2011. Debtocracy.
Unidos e o Brasil" FLACSO-Brasil Cadernos, http://www.georgezarur.com.br/artigos/lOlInacao-e- KLEIN, Naomi. 2007. No Log. 2009. A doutrina do choque. _ _ e Ari Lewis. 2004. La Presa.
multiculturalismo-em -cuba-uma -comparacao-com -os-estados-unidos-e-o-brasil, Acesso em 15-1- KUBRICK, Stanley. 1964. Dr. Strange Love: how I learning to stop worrying and Love the Bomb e
2007. 1987. Nascido para matar.
ZOLO, Danilo. 2010. "Violenza, democrazia, diritto e diritto internazionale': Jura Gentium, LIZZANI, Carlos. 1977. Fontamara.
13 de outubro, www.sinistrainrete.Info/geopolítica/ 1048/danilo-z-Io-violenza -democrazia- LOACH, Ken.1990. Hidden Agenda, 1995. Terra e Liberdade e 2004. Just a Kiss e 2006. Sweet Sixteen
dirittointernazionale Acesso em 2-3-2011. LOW-LEE, Lee. 1997. Todo o poder para o povo: o Partido dos Panther e além.
LEE, Spike. 1992. Malcolm X,
MALLE, Louis. 1985. Alamo Bay.
MO ORE, Michael. 2004. Farenheit 11 de setembro e 2009. Capitalism: a love story.
MORROW, Edward R. 2005. Boa noite e boa sorte.
MONTALDO, Giuliano. 1971. Sacco e Vanzett e 1973. Giordano Bruno.

b
380 Edmundo Fernandes Dias

PEEBLES, Mario Van. 1995. Panther,


PARKER, Allan. 1964. Burning Mississipe.
PECK, Raoul. 2000. Lumumba.
PETRI, Elio. 1969. Indagine su um citadino aI di sopra de ogni sospetta, 1970. Ipotesi su Giuseppe
Pinelli, 1971. La cvlase operaia va in paradiso, e 1976. Todo modo.
PILGER, John. 1997. The Long Secret Alliance: Uncle Sam and Pol Pot, 2002. The Colder War, 2005.
The Fall of Saigon, An Eye Witness Report, 2006. The new rules of the world, 2006. 2007. Year zero,
2010 In Palestine, a War on Children. 2010. Flying the flag 2010 The war you don 't see, e 2010. Porque
o WikiLeaks deve ser protegido e 2011. WikiLeaks e o fracasso do jornalismo.
PONTECORVO, Giulio. 1965. A batalha de Argel.
PUENZO, Luis. 1985. La história oficial.
ROBIN, Marie-Monique. 2003. "Escadrons de la mort. L' école française, 2008. O mundo segundo a OUTRAS OBRAS DA EDITORA SUNDERMANN
Monsanto e 2009a. "Torture Made in USA':
ROSI, Francesco. 1962. Salvatore Giuliano, 1965. Le mane sulla cità': 1972. Il caso Mattei e 1997. La
Tregua. A classe operária vai ao campus
SCOLA, Ettore. 1977. Una giornata particolare. Carlos Bauer
SHERIDAN, Jim. 1993. Em nome do pai.
STILL, Williams. 1996. Mestres do dinheiro. A Natureza Autoritária do Estado no Brasil Contemporâneo
SOTO, Helvio. 1975. Chove sobre Santiago. Carlos Bauer
STONE,Oliver. 1989. Born on Fourth July. 1991. JFK. A pergunta que não quer calar, 1995. Nixon
2010. Wall Street: Money never sleeps
TAVIANI, Vittorio e Paolo Taviani, 1977. Padre Padroni.
TENDLER, Silvio. 2010. Utopia e Barbarie. Os homens do passo certo - o PCB e a esquerda revolucionária no Brasil
TRUFFAUT, François. 1966. Farenheit 451. (1942-1961)
VILLAR, Catalina. 2001. Une histoire chilienne. Frederico José Falcão
WATKINS, Peter. 1959. The Diaryofum unknown Soldier, 1965. The War Game. 1971. Punishment
Park e 2000. La Commune de Paris. Um reformismo quase sem reformas - Uma critica marxista do governo Lula em
WELLES, Orso, 1941. Cidadão Kane. defesa da revolução brasileira
WOOD, Andrés. 2004. Machuca. Valério Arcary
ZAVOLI, Sergio. 1989. La notte della repubblica. Le strage di Bologna.
Sociedade de classe, direito de classe
Juary Chagas

Transgressoes: As ocupações de reitoria e a crise das Universidades Públicas


Alvaro Bianchi

tr

Você também pode gostar