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O outro lado de Deus.

A maior parte de nós, ocidentais, somos cristãos ou ao menos tivemos em


algum ponto de nossas vidas um ensinamento desse tipo. Seja indo à missa aos
domingos ou escutando uma avó rezar a Ave Maria às seis da tarde, ou em
conversas com amigos, de alguma forma a ideia de um Deus benevolente chega
até nós. No meu caso, minha mãe fazia questão que eu participasse das aulas de
evangelização infantil em um Centro Espírita Kardecista, ao qual ela já
frequentava há muitos anos. Eu, uma criança, por mais que depois de um tempo
argumentasse que não queria ir mais, não tinha escolha.
Assim, fui ensinada que Deus era um cara bondoso, todo poderoso,
onisciente, que devia ser louvado e respeitado, e que esse Deus tinha sempre
razão, pois o mal é a ausência do bem. Ou seja, aprendi que o mal como princípio
não existe, é apenas o bem que ainda se encontra em desenvolvimento. Nesse
momento estou questionando tudo isso... Com o livro “Resposta a Jó”, de Jung
(2012), me deparei pela primeira vez com o conceito de Deus como uma
antinomia, ou seja, como dois pontos que se contrapõem e que necessitam um
do outro para coexistir. Nas palavras de Jung (2012, p. 21, grifo do autor) “Javé
não se acha dividido, mas constitui uma antinomia, isto é, uma oposição interna
total, que é a condição preliminar e necessária de seu imenso dinamismo
intrínseco, de seu poder e ciência infinitos”. Mas é importante ressaltar, como Jung
nos lembra, que devemos estar conscientes de que apenas esboçamos
psiquicamente uma imagem de Deus, ou seja, significa que o objeto
transcendental em si pode ser muito diferente do que pensamos ou sentimos. Para
entendermos melhor essa explicação, recorro a uma canção de Gilberto Gil, que
reflete sobre o que é Deus e termina assim: “Que ao findar vai dar em nada, nada,
nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada do que eu
pensava encontrar”. (Se eu quiser falar com Deus, 1981)
Com a discussão proposta por Jung sobre uma antinomia em Deus,
entende-se que Deus é bom e mal, simultaneamente. E isso, para alguém tão
doutrinada como eu, às vezes me faz sentir como se eu estivesse cometendo um
sacrilégio, como algo que mereceria alguma punição. Por outro lado, comecei a
pensar se, na verdade, essa reflexão não poderia ser entendida como um sinal de
ampliação da minha consciência, trabalhando para me libertar da possível
ingenuidade associada à crença da privatio boni (privação do bem), que muitas
religiões ensinam, ou seja, que não há o mal em si, mas apenas a ausência do
bem.
Segundo Jung (2012 p. 36) Javé, é “um fenômeno e não um homem”.
Jung reflete que seria ingênua uma hipótese que considera o Criador do mundo
uma entidade consciente, um deus exclusivamente bom, que é incapaz de praticar
ações más, e continua: “A natureza inconsciente e irreflexa de Deus permite, pelo
contrário, adotar um ponto de vista que subtrai o agir de Deus ao julgamento moral
e impede que surja um conflito entre sua bondade e seu caráter temível” (JUNG,
2012 p. 36).
Jung (2012 p. 66) traz a reflexão de que nossa história conta, no Antigo
Testamento, por exemplo, que desde tempos imemoriais, temos um Deus que de
vez em quando é tomado por acessos devastadores de cólera, apesar da sua
generosidade; assim, como de repente, Deus se tornaria a quintessência do bem,
o Summum Bonum, o bem supremo? Estando a nossa psique mergulhada no
inconsciente coletivo, e, também, na consciência coletiva, que guardam em si
todos os temores, súplicas e oferendas que nossos antepassados viveram em
relação a “Deus”, impossível não carregarmos marcas inconscientes de tudo isso
em nossa alma ainda hoje, seja de forma parcialmente consciente ou não. O que
nos é ensinado a respeito de um Deus que é só amor, que enviou seu filho Jesus
Cristo para a remissão dos pecados, teria como objetivo, na verdade, nos libertar
do medo de Deus, segundo Jung (2012, p.71; 74, grifos do autor): “O que a obra
da redenção pretende, portanto, é libertar o homem do temor de Deus”. Jung
continua: “A crença em Deus como o Summum Bonum é impossível para uma
consciência reflexiva. Ela não se sente absolutamente liberta do temor de Deus...”.
Por fim, Jung traz à reflexão o Provérbio 1:7 da Bíblia que diz: “O temor
do senhor é o princípio da sabedoria” e junto com esse provérbio Jung lembra que
a bondade, o amor e a justiça de Deus precisam também ser reconhecidos como
experiências autênticas, nas suas palavras Jung sintetiza, “pois, Deus é uma
coincidentia oppositorum (coincidência de opostos). Tanto o amor como o temor
de Deus são legítimos.” (JUNG, 2012, p. 75, grifos do autor).
Já caminhando para o final deste texto, acho importante trazer mais um
trecho de Jung que reflete sobre o sofrimento da dúvida que temos em relação a
Deus:
Quem possui convicções religiosas positivas, isto é, quem
“crê”, não somente encara a dúvida como coisa muito
desagradável e penosa, mas também a teme. É por isso que
não gostamos de analisar o objeto da fé. O indivíduo que não
tem concepções religiosas não gosta de reconhecer-se como
portador de um déficit; antes apela para a sua mentalidade
esclarecida ou, no mínimo, para a franqueza do seu próprio
agnosticismo. Quem se fixa neste ponto de vista dificilmente
admitirá o caráter numinoso do objeto religioso... pois pode
acontecer – o que para ele não é nada agradável – que sua fé
no iluminismo ou no agnosticismo seja abalada. (JUNG 2012,
p.111)

Cada um de nós carrega suas dores, seja na doença de um filho, na morte


prematura dos pais, em um relacionamento amoroso que nunca se realiza, em
uma vida profissional que não “decola”, em uma infinidade de motivos que geram
nossas angústias e sofrimentos psíquicos, os quais nos atravessam podendo
produzir muito mal-estar, dificuldades interpessoais, entre outros tantos desafios.
Segundo Jung (2012 p.18) é melhor que a pessoa admita a existência do afeto e
se submeta à sua violência do que se afaste dele por operações mentais abstratas
ou estados emocionais de fuga, a fim de que a pessoa se curve à ação do afeto,
tomando conhecimento do que o afetou para, enfim, adquirir algum conhecimento.
Jung (2012 p. 61) nos diz: “Foi necessária uma situação extremamente crítica,
uma peripécia plena de afetos, sem o que não se pode atingir um nível superior
de consciência.” Dessa forma, ao invés de sucumbirmos em função de nossas
dúvidas, frustrações, fracassos, angústias, parece ser mais criativo e saudável
para nós mesmos encararmos tais desafios de frente, dialogarmos com eles, e
procurarmos ampliar nossa visão a partir do que nos afeta, talvez olhando o
sofrimento como um convite para ampliação de consciência.

Referências:
JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó Psicologia e Religião Ocidental e Oriental.
10ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
SE eu quiser falar com Deus. Intérprete: Gilberto Gil. Compositor: Gilberto Gil. In:
Luar. Warner, 1981, LP, faixa 10 (4’47”)

TARSILA DE NÍCHILE – Analista em formação pelo IJEP


tarsilanichile@gmail.com

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