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03 D 720
03 D 720
do trabalho pedagógico em
Sexualidades e Educação Sexual se
faz urgente diante às intensas, e cada
vez mais rápidas, transformações
sociais e políticas.
Vivenciamos a emergência de novas
configurações identitárias,
subjetividades, modos plurais de ser,
agir e praticar a sexualidade, o gênero
e a experiência do corpo saudável.
Diante disso, este livro reúne
capítulos produzidos por
pesquisadores da área de
Sexualidades e Educação Sexual que
foram convidados para produção
destes a partir de seus trabalhos
originalmente apresentados no V
Congresso Brasileiro de Educação
Sexual – UNESP – UEL – UDESC e
VII Simpósio de Sexualidade e
Educação Sexual – Paraná – São
Paulo – Santa Catarina, ocorrido na
Universidade Estadual de Londrina
(UEL) em novembro de 2018.
Tais capítulos são diversos, assim
como o campo de pesquisa, e
compreendem relatos de experiência,
pesquisas e inovações em temas afins
das sexualidades e educação sexual.
Assim, convidamos todes para
experimentar e saborear essas
páginas cheias de conhecimentos,
inovações e singularidades que
podem despertar caminhos a outras
possibilidades.
Sexualidades e
Educação Sexual
práticas, pesquisas e inovações
Ricardo Desidério
Vinícius Colussi Bastos
Virgínia Iara de Andrade Maístro
(Organizadores)
Sexualidades e
Educação Sexual
práticas, pesquisas e inovações
LONDRINA-PARANÁ
2020
Capa e identidade visual: Vinícius Colussi Bastos
Editoração eletrônica: Ricardo Desidério e Vinícius Colussi Bastos
Revisão: os conteúdos dos capítulos aqui apresentados são de exclusiva
responsabilidade das autoras e dos autores.
V CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO SEXUAL UNESP – UEL – UDESC
VII SIMPÓSIO DE SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO SEXUAL
PARANÁ – SÃO PAULO – SANTA CATARINA
COMISSÃO CIENTÍFICA
Presidente:
Paulo Rennes Marçal Ribeiro (Unesp - Araraquara/SP)
Membros:
Álvaro Lorencini Junior (UEL – Londrina/PR)
Ana Cláudia Bortolozzi Maia (Unesp – Bauru/SP)
Ana Cláudia Figueiredo Rebolho (UNICEP – São Carlos)
Andrea Martelli (Unioeste – Cascavel/PR)
Andreza Marques de Castro Leão (Unesp – Araraquara/SP)
Célia Regina Rossi (Unesp – Rio Claro/SP)
Eliane Rose Maio (UEM – Maringá/PR)
Fabiana Carvalho (UEM – Maringá/PR)
Fátima Elisabeth Denari (UFSCar – São Carlos/SP)
Filomena Teixeira (CIDTFF – U. Aveiro e ESEC – Coimbra – Portugal)
Franciele Monique Scopetc dos Santos (UFMA – Codó/MA)
Graziela Raupp Pereira (UDESC – Florianópolis/SC)
Isaias Batista de Oliveira Junior (UNESPAR – Apucarana/PR)
Lara Roberta Rodrigues Facioli (UEL – Londrina/PR)
Luana Pagano Peres Molina (UEL – Londrina/PR)
Márcio de Oliveira (UFAM - Manaus/AM)
Maria Alves de Toledo Bruns (USP – Ribeirão Preto/SP)
Maria Lúcia Correa (SEED-NRELondrina – Londrina/PR)
Mary Neide Damico Figueiró (UEL – Londrina/PR)
Patrícia de Oliveira e Silva Pereira Mendes (UDESC – Florianópolis/SC)
Ricardo Desidério da Silva (UNESPAR/Apucarana e PPG Educação Sexual –
Unesp/Araraquara)
Samilo Takara (UNIR – Rolim de Moura/RO)
Sónia Maria Martins de Melo (UDESC – Florianópolis/SC)
Vera Márcia Marques dos Santos (UDESC – Florianópolis/SC)
Vinícius Colussi Bastos (UEL – Londrina/PR)
Virgínia Iara de Andrade Maistro (UEL – Londrina/PR)
Yalin Brizola Yared (UNISUL – Tubarão/SC)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................... 8
PREFÁCIO ........................................................................................... 9
SEXUALIDADES NA EDUCAÇÃO: TRANSGREDIR COMO
PRÁTICA DE ENSINO ..................................................................... 9
Ricardo Desidério
Vinícius Colussi Bastos
Virgínia Iara de Andrade Maístro
(Organizadores)
8
PREFÁCIO
SEXUALIDADES NA EDUCAÇÃO:
TRANSGREDIR COMO PRÁTICA DE ENSINO
Samilo Takara1
1
Professor do Departamento de Educação e da Especialização em Gênero e
Diversidade na Escola no Campus Rolim de Moura e do Programa de Pós-
Graduação em Educação no Campus José Ribeiro Filho da Universidade
Federal de Rondônia.
9
dissonâncias e provocações como é característica da Universidade e da
curiosidade científica.
Reconhecendo os fundamentos das diferentes áreas de
conhecimento e a necessidade de pensar a Educação como campo
formativo, a sexualidade e suas diferentes experiências e expressões são
características constituintes de uma formação para o pleno
desenvolvimento da pessoa e seu exercício para a cidadania. É feliz o
trabalho que empreendem as pessoas que organizam e as autorias em
propor olhares por outras perspectivas.
Entretanto, as próximas páginas não inauguram e não finalizam
os debates sobre sexualidades e as múltiplas formas de expressão de
gênero e sexuais. Em outra direção, essa obra oportuniza e fomenta o
debate, convida a leitura ao envolvimento e ao conhecimento de
perspectivas que permitam problematizar o que é papel da Educação e
das discussões sobre sexualidades nos tempos que nos encontramos.
Retomo o texto “A coragem de ser você mesmo” que faz parte
das crônicas de travessia do pensador trans/queer Paul B. Preciado (2019,
p. 135) em que ele narra o convite para falar da coragem de ser ele
mesmo. Em uma articulação que nos expõe a necessidade de reconhecer
que essa coragem é a invisibilidade de um sistema machista, misógino,
sexista, heteronormativo, racista, xenófobo e referenciado pelas
proposições da intelectualidade europeia – da qual ele participa e
contribui/confronta – ele nos diz que a coragem é parte desse processo
que faz a manutenção das normas. “A coragem, como a violência e o
silêncio, como a força e a ordem, está do lado de vocês” (PRECIADO,
2019, p. 135).
Ao invés de seguir a coragem, ele nos estimula que aceitemos
perder toda a coragem e “[...] loucos de covardia, desejo que inventem
novos e frágeis usos para seus corpos vulneráveis. É por amá-los que os
desejo frágeis e não corajosos. Porque a revolução atua através da
fragilidade” (PRECIADO, 2019, p. 136). As transformações que estes
textos podem contribuir não é para fortalecer a norma, mas para fragilizá-
10
la. Contribuem para que reconheçamos as assimetrias de poder e o papel
da Educação em ser transgressora.
Para tal transgressão, convidamos para uma outra prática
pedagógica. Transgredir como prática de ensino é uma tática de ensino
que convida quem aprende a reconhecer os traumas, os preconceitos, os
limites e as dificuldades impostas por esse sistema. Produzir modos de
vida outros perpassa a difícil tarefa de reconhecer que esse sistema
inferioriza, silencia, fragiliza. Caso venha de outros campos do saber,
saiba que seu papel também é pedagógico. Ser outro modo de viver no
mundo corrobora com tantas outras formas de vida que não têm
referências para se compreender como vida possível.
Esperamos que o prazer seja tão delicioso como o que se pode
tornar-se. Educar para as sexualidades é transformar o mundo de muitos
modos. Transgredir-se.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
Acesso em: 14 jul. 2020.
11
01
PRÁTICAS EM
SEXUALIDADES E
EDUCAÇÃO
SEXUAL
12
A METODOLOGIA LOGOPÁTICA NO
ENSINO DE CONCEITOS
RELACIONADOS A HIV/AIDS
Thiago Henrique Ramari
Erick Leonardo Naiverth Antonechen
(Universidade Estadual de Londrina)
13
THE LOGOPATHIC METHODOLOGY IN TEACHING HIV/AIDS-
RELATED CONCEPTS
Enquadramento teórico
De acordo com o O livro dos símbolos (2012), a noção de
enfermidade é interpretada de diferentes maneiras pelas culturas
existentes. De modo geral, no entanto, é vista como um mal, um
padecimento ou um descontentamento, independentemente da origem –
divina ou não. “Associamos a enfermidade ao esgotamento orgânico ou
ao sucumbir, mas também à invasão, ao excesso, à míngua, à desordem,
ao desequilíbrio e à corrupção” (ARCHIVE FOR RESEARCH IN
ARCHETYPICAL SYMBOLISM, 2012, p. 732). Por essas referências
14
genéricas, é comum que a doença seja encarada pelas sociedades, em
maior ou menor medida, como um sinal indubitável da mortalidade
humana e de outros seres vivos. Quando abordada em salas de aula
brasileiras, espaço social enfocado neste artigo, tal concepção carrega a
potencialidade de gerar desconfortos e constrangimentos. É possível que,
além da tradição positivista do processo de ensino-aprendizagem, essa
noção genérica faz com que o conceito de enfermidade seja debatido
frequentemente através de um prisma científico estrito, na tentativa de
afastar qualquer envolvimento emocional, em prol da racionalidade.
Dentre as doenças que assolaram/assolam a civilização, a Aids
(Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), causada pelo HIV (Vírus da
Imunodeficiência Humana), matou milhões de pessoas, desde a década
de 1980. Segundo a Unaids (2018), 77,3 milhões se infectaram e, destes,
35,4 milhões morreram até 2017, na soma global. Segundo Soares (2001,
p. 11), o índice de mortalidade fez com que a doença tomasse do câncer
o título de “mal do século”, em referência ao século XX. Sontag (1989,
p. 20) segue pelo mesmo raciocínio: “[...] o câncer perdeu parte de seu
estigma devido ao surgimento de uma doença cuja capacidade de
estigmatizar, de gerar identidades deterioradas, é muito maior”. Os dados
e as análises dos estudiosos delineiam a importância de se abordar a
temática de HIV/Aids junto aos alunos de diferentes níveis de
escolarização, a fim de estimular a conscientização e a prevenção. Além
disso, ações e campanhas devem ser realizadas pelos governos
continuamente, com o objetivo de orientar aqueles que já não frequentam
instituições de ensino.
A história da síndrome ajuda a compreender por que ela se
tornou tão temida na sociedade. No início da epidemia, não se sabia qual
era o agente causador da misteriosa doença que estava levando pessoas
à morte. Nos hospitais, os pacientes apresentavam quadros clínicos
semelhantes: os óbitos eram causados por outras patologias,
oportunistas, após um colapso do sistema imunológico causado pela
enfermidade desconhecida. Em 1983, o vírus HIV foi identificado por
uma equipe de pesquisadores franceses e essa descoberta levou à
15
conclusão de que qualquer pessoa poderia se infectar, além de uma
delimitação precisa quanto às formas de transmissão - através do sexo
desprotegido, da transfusão de sangue, do compartilhamento de seringas,
de acidentes com objetos perfurocortantes, do parto e da amamentação.
Surgiu então a Aids, que se tornou a IST (Infecção Sexualmente
Transmissível) mais temida desde a sífilis. Conforme Jeolás (2007, p.
57), as duas doenças “[...] articularam o temor da morte e do contágio ao
tabu do sexo, formando uma tríade com forte enraizamento no
imaginário ocidental, alimentada pelos valores cristãos referentes à
sexualidade”.
Atualmente, a transfusão de sangue não é mais um risco,
devido ao rigor de análise dos materiais coletados. Assim, a transmissão
do HIV se dá por quatro vias: através do sexo desprotegido, do
compartilhamento de seringas, de acidentes com objetos
perfurocortantes e de mãe para filho no decorrer do parto ou da
amamentação. Os tratamentos, por sua vez, evoluíram: se, nos anos
1980, os medicamentos não eram eficazes e provocavam inúmeros
efeitos colaterais, a terapia atual é capaz de eliminar o vírus do sangue e
dos fluidos sexuais do paciente, tornando-o incapaz de infectar outras
pessoas através do sexo. Assim, considera-se que, com aulas de educação
sexual nas instituições de ensino, é possível conscientizar acerca de
práticas seguras e combater o preconceito contra pessoas que vivem com
o HIV. Este segundo item, no entanto, exige uma abordagem pedagógica
que vá além do científico, afinal, o preconceito implica uma profunda
carga emocional – conforme define Mezan (apud SILVA, 2003, p. 2),
preconceito “é o conjunto de crenças, atitudes e comportamentos que
consiste em atribuir a qualquer membro de determinado grupo humano
uma característica negativa, pelo simples fato de pertencer àquele grupo
[...]”.
Diante desse cenário e dos desafios atuais da educação,
delineia-se o problema norteador da pesquisa apresentada neste artigo:
como ensinar de modo eficaz e empático os conceitos e a história do
HIV/Aids a universitários? Como objetivo geral, reflete-se o conceito de
16
razão logopática em Cabrera (2006) como base de uma metodologia
capaz de aprofundar, por meio do estímulo à razão e à emoção, o
processo de ensino-aprendizagem de discentes acadêmicos. O objetivo
específico, por sua vez, baseia-se no relato da aplicação e dos resultados
do conceito tomado como método junto a um grupo de pesquisa formado
por estudantes de Jornalismo e Relações Públicas, na Universidade
Estadual de Londrina (UEL), durante o segundo semestre de 2018. Como
será visto a seguir, quando o professor faz uso do logos e do pathos, isto
é, dos aspectos racional e emocional, no conteúdo programático, os
alunos se veem implicados na conjuntura apresentada e, a partir disso,
demonstram interesse pelo tema, sentem-se estimulados para as leituras
e os debates em sala de aula e se tornam multiplicadores da
conscientização em outros espaços sociais.
Método
A metodologia logopática, baseada no conceito de razão
logopática em Cabrera (2006), direcionou a abordagem das definições e
da história relativas ao HIV/Aids nos encontros do grupo de pesquisa “A
práxis do webjornalismo na era da conectividade: modelos de mercado,
rotinas de redação e produtos de destaque”, durante o segundo semestre
de 2018, na Universidade Estadual de Londrina. Com coordenação do
professor Thiago Henrique Ramari, o grupo de pesquisa, composto por
alunos de Jornalismo e Relações Públicas da instituição, trabalhou a
temática do HIV/Aids a partir de referências bibliográficas e
cinematográficas para, ao longo de 2019, construir e lançar um site sobre
a síndrome para o público brasileiro. O objetivo da página na internet é,
além de apresentar informações atualizadas, oferecer acolhimento a
pessoas que vivem com o HIV e combater a sorofobia, isto é, o
preconceito contra soropositivos.
Cabrera pensou o conceito de razão logopática no âmbito da
Filosofia, expondo-o no livro O cinema pensa: uma introdução à
filosofia através dos filmes, cuja primeira edição brasileira saiu pela
editora Rocco em 2006. Trata-se, com efeito, de uma razão que, em vez
17
de se apoiar apenas em aspectos racionais (logos), considera e valoriza
também os aspectos emocionais (pathos) para o aprendizado. Nesse
contexto, o autor afirma que o cinema tem uma razão naturalmente
logopática, pois, além de permitir reflexões racionais, envolve os
espectadores em uma rede emocional que é, por si só, pedagógica. Em
uma análise aprofundada, defende que o cinema não é um produto de
entretenimento capaz apenas de emocionar a audiência: pelo contrário,
os filmes trazem uma articulação racional que considera o aspecto
emocional, este promovendo sempre uma redefinição daquele.
Importante sublinhar, essa característica não está atrelada à qualidade
dos filmes: obras alternativas, de baixo orçamento ou do gênero trash,
por exemplo, são capazes de provocar reflexões tão ou mais
contundentes do que aquelas multipremiadas em eventos de repercussão
mundial, como o Oscar, a Berlinale e o Festival de Cannes.
Para utilizar o conceito de razão logopática em prol dos
propósitos do grupo de pesquisa, foram necessários, no entanto, dois
deslocamentos: o primeiro, definindo-o como base de uma metodologia,
a fim de possibilitar a aplicabilidade pedagógica; e o segundo,
transferindo-o do campo de conhecimento da Filosofia para o da
Comunicação, mais especificamente o da Comunicação em Saúde. Com
base nesses ajustes, o coordenador do grupo de pesquisa selecionou
longas-metragens sobre HIV/Aids, que foram apreciados pelos
estudantes em suas respectivas casas e debatidos posteriormente em sala
de aula, com vistas à construção futura do site. Desse modo, na
concepção desta pesquisa, a metodologia logopática é aquela que utiliza
o cinema como ferramenta para o processo de ensino-aprendizagem,
considerando a apreciação de filmes adequados ao conteúdo
programático e a posterior discussão guiada em sala de aula, a fim de
entrelaçar reflexões racionais e emocionais e desenvolver, com isso,
habilidades cognitivas e empáticas nos participantes. Afinal, conforme
defende Cabrera (2006, p. 21, destaques do autor),
a racionalidade logopática do cinema muda a
estrutura habilmente aceita do saber, enquanto
18
definido apenas lógica ou intelectualmente. Saber
algo, do ponto de vista logopático, não consiste
somente em ter “informações”, mas também em
estar aberto a certo tipo de experiência e em aceitar
deixar-se afetar por uma coisa de dentro dela
mesma, em uma experiência vivida. De forma que
é preciso aceitar que parte deste saber não é dizível,
não pode ser transmitido àquele que, por um ou
outro motivo, não está em condições de ter as
experiências correspondentes.
19
ainda três técnicas cinematográficas que permitem essa relação
complexa entre impressão de realidade e razão logopática: a
pluriperspectiva, isto é, a capacidade de variar da primeira para a terceira
pessoa, explorando as subjetividades dos personagens; a manipulação
ilimitada de tempos e espaços em uma narrativa verossímil, assim como
se observa, a partir de diferentes mecanismos, nos sonhos e nos
pesadelos; e o corte cinematográfico, que conecta uma imagem à outra
coerentemente, estabelecendo também ritmos diversos.
Diante dos conceitos explicitados nesta seção e da
possibilidade de aplicação de uma metodologia logopática, avalia-se que
uma abordagem estritamente racional do HIV/Aids no grupo de pesquisa
seria insuficiente para contemplar os objetivos do site. Apesar de dar
conta das definições e do histórico da síndrome, uma postura apenas
científica reduziria (e talvez até anularia) o estímulo à implicação dos
estudantes no cenário epidemiológico brasileiro, ao trabalho de
acolhimento e aconselhamento pretendido e, mais largamente, ao
combate à sorofobia. O fato de o cinema apontar para uma universalidade
da Possibilidade delineia um caminho para que os alunos compreendam
sensivelmente o fato de que o vírus HIV pode infectar qualquer pessoa
que se submeta ou seja submetida a situações de risco,
independentemente de raça, religião, escolaridade, gênero, orientação
sexual e frequência de prática sexual – eles inclusos, evidentemente. Essa
percepção desmonta preconceitos há muito arraigados, que são, segundo
Jeolás (2007), alimentados por valores religiosos referentes à
sexualidade perpetuados de geração em geração.
Assim, propor e discutir com os alunos filmes que abordam
dignamente o dia a dia de personagens soropositivos, sejam eles fictícios
ou inspirados em pessoas vivas ou falecidas, é um meio de promover o
desenvolvimento da empatia e o aprofundamento do conhecimento sobre
a vida com HIV. Essa experiência fílmica, logopática em essência porque
não abdica de reflexões racionais, científicas e até filosóficas, capacita-
os para a realização de uma comunicação responsável, humanitária e
acolhedora, perfil pretendido para o site a ser lançado brevemente. Como
20
afirma Cabrera (2006, p. 16), “para se apropriar de um problema [...],
não é suficiente entendê-lo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele,
dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que
nossas bases habituais de sustentação são afetadas radicalmente”. Por
esse motivo, no projeto de pesquisa, optou-se por trabalhar com
referências bibliográficas e cinematográficas, a fim de estimular o
comportamento empático dos participantes, delineando uma
metodologia logopática.
21
masculinos adultos). O objetivo, com essa seleção, foi destacar pontos
históricos e o fato de que qualquer pessoa pode contrair o vírus, caso se
submeta ou seja submetida a situações de risco, desconstruindo a noção
antiga de grupos de risco. Os filmes foram assistidos e debatidos em uma
ordem em que os três primeiros abordavam com mais ênfase os aspectos
históricos e os cinco últimos focavam em dramas particulares, alguns
baseados em fatos reais. Nas duas tabelas abaixo, apresentam-se os oito
filmes selecionados, de acordo com a ordem das discussões: na primeira,
com os dados de produção fílmica; e na segunda, com uma breve sinopse.
22
120 batimentos por minuto Grupo Act Up Paris exige, no início dos
anos 1990, ações do governo e das
empresas farmacêuticas para combater a
epidemia de Aids.
The normal heart Ativista homossexual luta para
conscientizar norte-americanos sobre
HIV e Aids no início da década de 1990.
Filadélfia Advogado demitido por ser soropositivo
leva empresa a julgamento com o
auxílio de um advogado homofóbico.
Clube de Compras Dallas Em 1985, eletricista diagnosticado com
Aids age à margem do sistema para
fornecer remédios a outros
soropositivos.
A cura Amizade leva os meninos Erik e Dexter,
este soropositivo, a viajar sozinhos em
busca de uma cura para a doença.
Yesterday Depois que descobre ser soropositiva,
Yesterday luta para viver o máximo
possível, a fim de ver a filha começar a
trajetória escolar.
Angels in America Dividido em oito episódios, o telefilme
mostra a crise da Aids nos anos 1980 a
partir de personagens separados, mas
conectados entre si.
23
tinham assistido como preparação para o encontro. Além de trazer
informações sobre a obra fílmica, os estudantes responsáveis podiam
destacar os pontos mais importantes em relação à doença e expressar as
impressões e sensações que tiveram em função do enredo. Os outros
acadêmicos, por sua vez, tinham a tarefa de participar ativamente do
debate, também ressaltando pontos do roteiro e sentimentos que
observaram durante a projeção. Ao professor cabia garantir a
organização durante a execução da atividade, referendar ou corrigir
informações, acrescentar dados relevantes e lançar questionamentos
provocativos.
O debate sobre cada longa-metragem durou, em média, uma
hora. Como resultados, observou-se que, com a aplicação da
metodologia logopática, alcançaram-se um aprofundamento do
conhecimento dos alunos em relação ao conteúdo relativo a HIV/Aids,
visto em aulas expositivas antes das discussões cinematográficas; e o
desenvolvimento de uma forte relação empática para com pessoas que
vivem com a síndrome. Em relação ao primeiro tópico, eles
compreenderam melhor uma realidade que, até então, não lhes era
familiar, devido à idade e também ao método de ensino tradicional nos
níveis anteriores: o início da crise provocada pelo HIV/Aids, com o
crescente número de mortes, com a eclosão do preconceito contra
determinados grupos e com os jogos de interesses entre cientistas,
governos e empresas farmacêuticas. Os filmes 120 batimentos por
minuto, E a vida continua e The normal heart apresentam retratos
contundentes desse período, juntamente de dados técnicos, aos quais os
acadêmicos não se sentiram indiferentes. No segundo tópico, eles
acompanharam histórias particulares, baseadas ou não em fatos reais, o
que lhes deu uma dimensão mais nítida do que é viver com uma síndrome
tão estigmatizada na sociedade. Assim, emocionaram-se e indignaram-
se com os dramas vividos por Andrew Beckett (Filadélfia), Dexter (A
Cura), Prior Walter e Roy Cohn (Angels in America), Ron Woodroof
(Clube de Compras Dallas) e Yesterday Khumalo (Yesterday). Vários
24
deles admitiram, durante os encontros, que choraram enquanto assistiam
aos filmes em casa.
Com a metodologia logopática baseada no cinema, foi
possível, por um lado, nivelar o conhecimento dos estudantes a respeito
do HIV/Aids, aprimorando e aprofundando o conteúdo visto nas aulas
expositivas; e, por outro lado, fez com que eles se tornassem defensores
das pessoas que vivem com a síndrome, questionando sistemas,
atendimentos e tratamentos. Se, no primeiro encontro, as mulheres
declararam que nunca haviam feito o exame para detecção do vírus e
outros manifestaram receio de beijar alguém sabidamente soropositivo,
com os debates houve mudanças: as alunas, por iniciativa própria,
realizaram o exame e passaram a cuidar melhor da própria vida sexual;
no segundo caso, os participantes compreenderam que tinham medos
infundados e se sentiram seguros para revelar que, caso se apaixonassem
por alguém que vive com o HIV, manteriam relacionamentos
sorodiferentes. Eles também passaram a olhar criticamente o tratamento
dado pela imprensa às notícias relacionadas à área, que nem sempre é
isenta de preconceito, reforçando muitas vezes estereótipos já superados,
como o da existência de grupos de risco.
Após o fim do ciclo cinematográfico, os participantes
conversaram, por duas horas, com o médico Erick Leonardo Naiverth
Antonechen, em 3 de outubro de 2018. O objetivo desse encontro foi
permitir que, com base em tudo o que haviam aprendido com as aulas
expositivas e com os filmes e respectivos debates, eles pudessem
esclarecer dúvidas que, porventura, ainda persistissem. Ficou evidente,
durante esse bate-papo, que os alunos passaram a se preocupar com o
bem-estar das pessoas que vivem com HIV e com a qualidade do
tratamento oferecido gratuitamente pelo governo, defendendo um
atendimento que seja digno e respeitoso. Eles também questionaram,
entre outros pontos, sobre a premissa científica divulgada nos últimos
anos pelo movimento conhecido como Undetectable = Untransmittable
(Indetectável = Intransmissível), abordada durante as aulas expositivas e
os debates: a de que soropositivos em tratamento e com carga viral
25
indetectável há pelos menos seis meses são incapazes de transmitir o
vírus durante práticas sexuais, mesmo que não haja uso de preservativo.
Com as aulas, os filmes, os debates e o bate-papo com o profissional de
saúde, sedimentou-se um conhecimento que, acredita-se, será de grande
utilidade para o site a ser lançado em 2019.
Como se pode observar diante dos resultados, a metodologia
logopática valorizou tanto os elementos racionais, como os elementos
emocionais, garantindo conhecimento científico e desenvolvendo
relações empáticas frente às questões postas pelo HIV/Aids. Defende-se,
com isso, que o processo de ensino-aprendizagem, em qualquer nível de
educação, não se restrinja aos dados científicos, pois, apesar de
proporcionar conhecimento, não estimula necessariamente posturas
cidadãs diante da realidade social, ainda permeada de exclusões e
preconceitos. Para os objetivos do site a ser lançado, a formação cidadã
é condição sine qua non: os participantes precisam compreender os
dramas vividos por pessoas soropositivas a fim de lhes oferecer
acolhimento e informações adequados – o que só é possível com a
estimulação dos aspectos páticos. Como diz Cabrera (2006, p. 39-40), o
cinema talvez mostre como é superficial “[...] argumentar
indefinidamente, com conceitos-idéia somente lógicos, em favor ou
contra certos assuntos (como guerra ou racismo) em vez de, por uma
conceitualização sensível adequada, fazer sentir o absurdo da guerra ou
do racismo [...]”. Entendemos que, dentre os assuntos que precisam ser
tratados logopaticamente, está o HIV/Aids, uma vez que, devido aos
preconceitos que sustentam a sorofobia, a exclusão social ainda é uma
realidade lamentável.
Considerações finais
A experiência com a metodologia logopática, baseada no
conceito de razão logopática em Cabrera (2006), junto ao grupo de
pesquisa “A práxis do webjornalismo na era da conectividade: modelos
de mercado, rotinas de redação e produtos de destaque”, demonstra que
os processos de ensino-aprendizagem podem ser otimizados com a
26
exploração de aspectos páticos, isto é, emocionais, além daqueles de
ordem científica. Com essa metodologia, conteúdos de indubitável
relevância para a conscientização e para a construção de uma sociedade
mais inclusiva e igualitária, como aqueles que abordam as crueldades do
racismo, da homofobia, do machismo, da xenofobia e, destaca-se, da
sorofobia, são tratados através de um prisma que vai além do científico
e alcança a esfera cidadã. Assim, acredita-se que apenas com
movimentos dessa ordem, estendidos em direção à vida em sociedade, as
injustiças poderão ser combatidas com mais vigor por aqueles que,
atualmente, sentam-se em carteiras escolares. Afinal, conforme pontua
Cabrera (2006, p. 16-17), se não for assim, “[...] mesmo quando
‘entendemos’ plenamente o enunciado objetivo do problema, não
teremos nos apropriado dele e não teremos realmente entendido”. O
desenvolvimento da capacidade empática para com o outro e para
consigo próprio, defende-se, é condição fundamental para a formação de
cidadãos conscientes e é algo que pode ser trabalhado e estimulado
dentro de sala de aula.
No início dos trabalhos do grupo de pesquisa, notou-se que
muitos alunos sabiam pouco sobre HIV/Aids. A despeito de todo o
esforço educacional e governamental para se conscientizar a população
a respeito da síndrome, supõe-se que esse cenário deriva, entre outros
fatores, de práticas educacionais focadas apenas em dados e conduzidas
em meio a vários problemas e carências, dificultando a assimilação do
conteúdo pelos estudantes e ignorando as questões sociais relacionadas.
Desse modo, compreende-se por que alunos chegam ao ensino superior
sem nunca ter feito exames para detecção de HIV e, ainda mais
preocupante, sem saber se Aids tem cura. Com a metodologia logopática
baseada no cinema, encontrou-se um caminho para resultados efetivos
entre os alunos, aprofundando o conteúdo científico e desenvolvendo a
postura cidadã ao mesmo tempo. No grupo de pesquisa, o conhecimento
sobre HIV/Aids foi nivelado e atualizado e os participantes passaram a
se preocupar com o bem-estar daqueles que vivem com síndrome. Este é
27
o resultado que se considera ideal e que, acredita-se, contribuirá para a
construção de um site útil para a população brasileira em 2019.
Evidentemente, para a adoção da metodologia logopática em
sistemas diferentes do de um grupo de pesquisa universitário, são
necessárias adaptações nas dinâmicas e nos planos de ensino. Nos
calendários do ensino médio, por exemplo, os professores costumam ter
pouco tempo para trabalhar cada conteúdo, o que resulta em lacunas no
processo de ensino-aprendizagem. Assim, as direções pedagógicas e as
secretarias de Educação têm o desafio de repensar o trabalho realizado,
com o objetivo de garantir não apenas a assimilação do conteúdo, mas
também a formação de cidadãos preocupados com questões sociais. No
âmbito do HIV/Aids, um trabalho com esse enfoque é preventivo e social
ao mesmo tempo, pois os alunos visualizam a importância de adotar
práticas seguras e de defender os direitos daqueles que precisam. Afinal,
não é necessário viver com o vírus HIV para se combater a sorofobia:
defende-se que a educação eficiente é aquela que estimula todos a
lutarem pelos direitos de todos.
Referências
120 BATIMENTOS por minuto. Direção: Robin Campillo. França:
Imovision, 2017. 1 DVD (144 min).
28
CLUBE de Compras Dallas. Direção: Jean-Marc Vallée. Estados
Unidos: Focus Features, Truth Entertainment, 2013. 1 DVD (117 min).
29
. The normal heart. Disponível em:
<https://www.imdb.com/title/tt1684226/?ref_=fn_al_tt_1>. Acesso em:
05 fev. 2019.
30
A PRÁTICA DE ENSINO DE SOCIOLOGIA
NO COMBATE À LGBTFOBIA E NO
DEBATE SOBRE DIVERSIDADE SEXUAL
Marina Pedersen
(Universidade Estadual Paulista/Marília)
Eva Aparecida Silva
(Universidade Estadual Paulista/Araraquara)
31
THE TEACHING OF SOCIOLOGY AS A MANNER TO TACKLE LGBT
DISCRIMINATION AND DEBATE ABOUT SEXUAL DIVERSITY.
Enquadramento teórico.
Aqui é apresentada uma experiência de prática de ensino de
Sociologia desenvolvida a partir da temática que envolve diversidade
sexual e sexualidade, no âmbito do PIBID - Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência, em particular no subprojeto da UNESP,
PIBID Ciências Sociais.
Esse subprojeto teve como objetivo aproximar o (a) licenciando
(a) de Ciências Sociais da prática de ensino de Sociologia, em suas
metodologias e recursos didático-pedagógicos (filmes, charges, textos
jornalísticos, obras de arte, etc), e, a partir dos diversos temas propostos
32
para o currículo do ensino médio, promover o exercício que deve
articular teorias, conceitos e temas. Neste caso, os temas de referência,
entre os muitos possíveis para as Ciências Sociais na disciplina de
Sociologia, foram relações raciais, de gênero e orientação sexual, em
virtude das demandas da escola.
Segundo relatos da coordenação pedagógica são cotidianos os
casos de discriminação racial, machismo e LGBTfobia, principalmente
na relação aluno-aluno. Para essa última discriminação foi mencionada
a presença de um aluno transexual, que, entre outras situações,
vivenciava dificuldades no uso do banheiro.
A proposta desenvolvida pelo PIBID Ciências Sociais foi
organizada em quatro módulos temáticos, distribuídos ao longo do ano
letivo, quais sejam: 1) Igualdade, diferenças e desigualdade 2) Gênero 3)
Racismo – origem e repercussões 4) Diversidade sexual e Sexualidade.
Neste trabalho nos dedicaremos ao relato e impressões sobre o
quarto módulo, que abordou a diversidade sexual, tomando como
referência alguns conceitos, tais como homossexualidade,
heterossexualidade, bissexualidade, transexualidade, identidades de
gênero, etc., de forma a desconstruir estereótipos desvalorizativos e
posturas LGBTfóbicas.
Na tentativa de articular teorias, conceitos e temas como
princípio metodológico no ensino de Sociologia, para a abordagem da
diversidade sexual e sexualidade realizou-se um mapeamento do perfil
identitário e sociocultural dos alunos dos primeiros e terceiros anos do
ensino médio de uma escola estadual de Araraquara, através da aplicação
de um questionário anônimo e facultativo. O objetivo era conhecer os
alunos e poder traçar um perfil dos mesmos. Para isso, as perguntas, em
sua maioria, tangiam as temáticas abordadas no subprojeto, como
autoidentificação racial, de gênero e de orientação sexual2. Também
2
No tocante à orientação sexual as opções presentes no questionário
eram: heterossexual - pessoa que sente atração física, sexual e afetiva por
pessoas do gênero oposto; homossexual - pessoa que sente atração por pessoas
33
foram realizadas perguntas sobre a relação dos alunos com o ambiente
escolar e sobre seus perfis de atividades extracurriculares.
Através das respostas obtidas foi possível a realização de um
banco de dados, que conta com 50 respostas de alunos dos primeiros anos
e 73 respostas dos alunos dos terceiros anos.
Nos gráficos3 a seguir podemos observar, separados por
primeiros ou terceiros, alguns resultados:
34
Os números evidenciam que, entre todos os alunos que
responderam o questionário, a maior parte se identifica como
heterossexual, sendo bissexual a segunda orientação sexual tanto para os
alunos dos primeiros quanto para os dos terceiros anos.
O fato de a heterossexualidade se mostrar como sexualidade
predominante não é uma mera coincidência ou acaso, pois ela é social e
historicamente construída em nossa sociedade. E, quando ganha o status
de normal e esperada, a heterossexualidade é normatizada: é natural ser
heterossexual, logo, qualquer manifestação que se distinga é anormal,
inaceitável – desta forma, ao mesmo tempo em que se positiva a
35
heterossexualidade, que é considerada normal, as outras formas de
sexualidade e orientação sexual são estigmatizadas4:
4
Erving Goffman realizou um estudo em torno do estigma (2015), no
qual ele explora suas origens históricas - de ser definido por uma marca física
que indicava o status moral e social de pessoas que deveriam ser evitadas - e o
transforma de uma perspectiva física para uma perspectiva sociológica. O
estigma então passa a ser entendido enquanto uma marca social, que demarca
quais pessoas devem ser evitadas na sociedade, em detrimento das que são
normais. Entre os exemplos de portadores de estigma Goffman diz das pessoas
homossexuais.
36
Constituindo-se a escola como um espaço sociocultural, repleta
de sujeitos socioculturais (negros, brancos, mulheres, homens,
heterossexuais, homossexuais...) em constante relação social, é nela que
muitos alunos experimentam boa parte de suas vidas afetivas, colocando-
a como um terreno de experimentações e expressões da diversidade de
orientações sexuais, e também das maneiras de ser homem e ser mulher
(SEFFNER, 2013.).
Logo, se ela é um espaço de expressão da sexualidade e a
sexualidade dada como norma é a heterossexual, outras formas de
sexualidade encontram desafios em serem demonstradas. Já que a norma
está presente nas práticas do cotidiano e em todos os espaços do ambiente
escolar, o heterossexismo e a homofobia também estão, seja de maneira
sorrateira ou de maneira ostensiva (JUNQUEIRA, 2012.), se
manifestando
37
demonstrando as diferenças entre elas e sua importância no mundo
contemporâneo, como essas questões permeiam a vida dos estudantes em
todos os âmbitos e a necessidade de entendê-los para respeitar a
diversidade.
O relato de experiência
No módulo em que foram abordadas diversidade sexual e
sexualidade buscamos elaborar aulas e intervenções que pudessem fugir
do modelo tradicional de ensino - dessa forma optamos por atividades
dinâmicas, jogos, recursos audiovisuais, relacionamos esse conteúdo
com notícias e situações ocorridas na região do município de Araraquara
e no mundo. Ao articular teorias e conceitos com o trabalhado, pudemos
conectá-los à realidade dos nossos alunos e da escola, dando maior
dinamicidade às nossas aulas.
Através desta proposta, os bolsistas/licenciandos participantes
puderam ter a experiência prática de que a atividade docente não se limita
- e tampouco se inicia - dentro da sala de aula. Foram meses de preparo,
durante os quais lemos e pesquisamos sobre as temáticas que nos cabiam,
para então iniciarmos os processos de construção da aula a ser aplicada
na escola, processos esses que envolvem a preocupação com a
metodologia, materiais didáticos, elaboração de atividades e avaliações,
buscando por práticas que fujam do modelo tradicional de aula
expositiva, o que possibilita instigar nossos alunos para as temáticas
expostas e para o aprendizado de Sociologia.
Para introdução dos temos expostos foi proposta uma atividade
baseada em situações-problema, bem como a realização de um trabalho
primário de sondagem dos conhecimentos e das experiências que os
alunos previamente já possuem sobre diversidade sexual e sexualidade.
As situações-problema colocadas na lousa objetivaram estimular que os
alunos as imaginassem e dessem suas opiniões sobre elas, tendo como
referência personagens imaginários, sem revelar seus gêneros e
sexualidades. O intuito também foi mostrar para os alunos que a
heteronormatividade está introjetada como nossas categorias de análise
38
e nosso imaginário, já que sempre que tentassem resolver as situações
pensariam em pessoas heterossexuais.
Para ilustrar melhor a atividade realizada damos exemplos de
situações colocadas para os alunos: “No final dos anos 2000, um casal se
une em união civil, têm um filho e, alguns anos depois, uma das pessoas
do casal morre. A outra encontra dificuldades: não consegue a guarda do
filho e não consegue o direito a ficar com os bens que adquiriram durante
a relação. Por que isso aconteceu?”; “Uma pessoa doa seu sangue,
porém, ele é descartado. Por que isso aconteceu?”. Nota-se que foi
tomado o cuidado de evitar as palavras que denunciassem o gênero das
pessoas em questão, buscando sempre a “neutralidade”.5
A partir disso, os alunos foram motivados a discutir as hipóteses
de resolução do problema, e, na maioria das vezes, as respostas dadas
por eles foram anotadas na lousa e nelas não levavam em consideração a
sexualidade das personagens, mas sim outros fatores como doenças,
modificações corporais, uso de drogas (na situação da doação de sangue)
ou problemas com a justiça e brigas familiares (na situação da morte de
uma das pessoas do casal).
Foram poucas as vezes que os alunos consideravam a hipótese
das personagens não serem heterossexuais e esse ser um aspecto
relevante para as situações colocadas. Mas isso não foi um obstáculo no
aplicar a atividade, pelo contrário, já que o objetivo era mostrar, na
prática, que, ao pensarmos em um casal ou em uma pessoa, sempre
tendemos a pensar em casais e pessoas heterossexuais, e isso se dá
porque nosso imaginário, construído socio-historicamente, o discurso
religioso, o discurso midiático e normativo, com os quais estamos
constantemente em contato, estão submetidos e subjugados pela
heteronormatividade.
Alguns outros recursos didáticos foram utilizados para auxiliar
nos debates que se iniciavam após as situações-problema, como
5
Todas as situações-problema foram elaboradas pelos
alunos/licenciandos/bolsistas PIBID Ciências Sociais.
39
quadrinhos, vídeos e exposições teóricas feitas pelos bolsistas PIBID
Ciências Sociais. Desta forma foi possível dialogar sobre a doação de
sangue por homossexuais6, o casamento igualitário7, as lutas por direitos
da população LGBT e das mulheres, a representatividade na mídia, a
patologização da homossexualidade8 e da transexualidade9.
Nas semanas que antecederam as aulas em questão dois
acontecimentos externos foram importantes, e eles foram apontados por
alunos em todas as salas, contribuindo para as nossas discussões. O
primeiro deles foi a presença de uma personagem transexual em uma
novela exibida em televisão aberta. A personagem em questão nasceu
biologicamente mulher, mas no decorrer de sua vida identificou-se com
a identidade de gênero masculina e passou a viver conforme a mesma,
6
Segundo a Portaria Nº 5 do Ministério da Saúde, que consolida as
normas sobre as ações e serviços de saúde do SUS, no seu Artigo nº 64, fica
estabelecido quem não pode doar sangue pelo período de 12 meses, e consta
entre eles “IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou
as parceiras sexuais destes;”. Contudo, na mesma Portaria, no Art. 2º, § 3º, fica
estabelecido que “Os serviços de hemoterapia promoverão a melhoria da
atenção e acolhimento aos candidatos à doação, realizando a triagem clínica com
vistas à segurança do receptor, porém com isenção de manifestações de juízo de
valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero,
hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia,
dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor.” Disponível em:
<http://www.prosangue.sp.gov.br/uploads/legislacao/Portaria5.pdf> (Acesso
em Abril de 2018.)
7
No ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça vedou a recusa de
celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/images/resol_gp_175_2013.pdf> Acesso em Abril de
2018.
8
Foi somente no ano de 1990 que a Organização Mundial da Saúde
retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Cinco anos antes a homossexualidade foi retirada da condição de desvio sexual
pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil.
9
A transexualidade ainda é considerada um distúrbio pela CID.
Disponível em: <http://www.icd9data.com/2015/Volume1/290-319/300-
316/302/302.5.htm> Acesso em Abril de 2018.
40
logo, passou-se a se identificar enquanto um homem transexual - essa
questão foi trazida pelos alunos em todas as salas de aula, muitas vezes
foi o exemplo usado para explicar aos colegas que ainda não tinham
compreendido a transexualidade, ou então a diferença entre orientação
sexual e identidade de gênero.
O segundo, infelizmente, não foi obra de ficção: o juiz federal
Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal, tomou decisão em
caráter liminar de suspender a Resolução Nº 001/9910 do Conselho
Federal de Psicologia (CFP), que estabelece as normas de atuação dos
psicólogos em relação às questões de orientação sexual. A suspensão da
mesma abriria espaço para que psicólogos exercessem tratamentos e
pesquisas de reorientação sexual em seus pacientes.
Entre as considerações previstas na citada Resolução, colocou-
se que a sexualidade é parte da identidade dos sujeitos e deve ser
compreendida em sua totalidade, assim como a homossexualidade não é
uma doença, distúrbio ou perversão. Algumas considerações sobre o
papel da Psicologia e do psicólogo frente a essas questões também são
explicitadas, tais como a de que “(...) há, na sociedade, uma inquietação
em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida
socioculturalmente” (CRP, Resolução Nº 001/99) e de que “(...) é papel
da Psicologia contribuir para os esclarecimentos sobre a sexualidade, de
forma a permitir a superação do preconceito e da discriminação”. O que
ficou então resolvido: o profissional não pode patologizar a
homossexualidade, tampouco colaborar com serviços e eventos que
proponham tratamento/cura para a homossexualidade.
Ambas as questões foram trazidas pelos alunos como forma de
contribuir com o debate e expressar suas opiniões sobre o assunto:
majoritariamente se colocaram contra a decisão do juiz, criticando-a e
10
Resolução do CFP Nº 001/99. Disponível em:
<http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>
Acesso em Abril de 2018.
41
colocando em pauta que a homossexualidade não é uma escolha e que a
homofobia deve ser combatida. Contudo, quando discutiam sobre
transexualidade e o caso da novela, muitos se mostravam confusos e
sentiam dificuldade em diferenciar identidade de gênero de orientação
sexual. Este, que era um dos nossos objetivos enquanto professores, não
foi ao todo atingido, visto que alguns alunos ao final das aulas ainda não
conseguiam fazer a diferenciação com clareza, o que diz de temas
complexos. Este fato não foi encarado por nós como uma derrota ou
falha, já que no geral os debates foram produtivos.
Outras intervenções foram feitas pelos alunos no decorrer das
atividades através de seus relatos pessoais. Durante as aulas foi
perceptível o envolvimento emocional de alunas e alunos LGBT ou
sensíveis à causa, com teor às vezes de desabafo, às vezes de denúncia,
à medida que relataram acontecimentos de suas vivências dentro e fora
da escola, sendo elas, em grande parcela, situações de preconceito,
intolerância e violência.
Finalizadas nossas aulas, aproveitamos a ocasião de uma semana
cultural na escola para organizarmos uma mostra dos trabalhos
realizados pelo PIBID ao longo do ano. Para isso, pedimos que os alunos
realizassem uma investigação sobre cientistas mulheres e LGBT,
apontando a importância de suas pesquisas e descobertas, bem como a
representatividade desses grupos dentro da ciência, que ainda se mostra
um ambiente hostil, machista, homofóbico e racista.
Com o resultado dos trabalhos realizados pelos alunos foi
possível a organização de uma exposição com cartazes que também
continham fragmentos/frases/relatos orientados pelo questionamento -
“O que eu aprendi com o PIBID?” - tangenciando as temáticas raciais,
de gênero e de sexualidade.
Considerações finais
Ao final das atividades desenvolvidas para tratar sobre a
temática da diversidade sexual e sexualidade constatou-se a importância
dessa abordagem frente ao desconhecimento dos alunos, ou da maioria
42
deles, acerca das identidades de gênero e seus significados, embora
muitos desses alunos já tinham ouvido a menção, no cotidiano das
relações sociais, a terminologias como heterossexualidade,
homossexualidade, bissexualidade, transexualidade.
Por outro lado, o contato com esse tema provoca nos alunos a
curiosidade, a possibilidade de esclarecer dúvidas, compartilhar
experiências e construir um conhecimento específico. Conhecimento não
elaborado como proposta do currículo escolar.
Quando observamos os conteúdos presentes nas disciplinas das
Ciências Humanas, em especial a Sociologia, percebemos que a
diversidade sexual e a sexualidade não se fazem temas selecionados para
o ensino médio. Elas aparecem nos Cadernos de Sociologia, material
didático implementado pela Secretaria Estadual de Educação de São
Paulo, como parte do Programa São Paulo Faz Escola, apenas como
ilustração e exemplificação ao tratar sobre Movimentos Sociais.
Sendo assim, as atividades desenvolvidas pelo PIBID Ciências
Sociais vieram preencher uma lacuna no currículo escolar do ensino
médio, na disciplina Sociologia, ainda que numa escola e com sete
turmas (cinco primeiros e dois terceiros anos), com uma média de trinta
e cinco alunos, nos anos de 2016 e 2017, totalizando por volta de
quinhentos alunos atendidos.
Sem contar que essa lacuna também é representativa do não
reconhecimento da diversidade sociocultural que caracteriza alunos,
professores e a sociedade brasileira, que, uma vez não reconhecida e
valorizada, pode promover relações e situações de discriminação e
exclusão social, tais como as diariamente produzidas e reproduzidas.
Referências
CARRARA, Sérgio; HEILBORN, Maria Luiza; ROHDEN, Fabíola;
ARAÚJO, Leila; e BARRETO, Andreia. (org.) Gênero e diversidade
na escola: formação de professoras/es em Gênero, Sexualidade,
Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Caderno de atividades.
43
Rio de Janeiro: CEPESC, 2009. Disponivel em: <http://www.e-
clam.org/downloads/Caderno-de-Atividades-GDE2010.pdf> Acesso: agosto
de 2017.
44
ENTRE GAROTAS: UM PROJETO DE
EMPODERAMENTO FEMININO NA ESCOLA
45
The field of sexuality has experienced many social transformations. The
school is a privileged place in this debate. Promoting sex education is
essential to fighting sexual violence and in understanding one's own
body. There is a big demand in relation to these contents. In this context,
girls are the main victims of a lack of dialogue. Women's spaces where
experience is exchanged are rare. Domestic violence and sexual abuse
are realities in many contexts. This project is born with the objective of
contributing to the transformation of this scenario, functioning as a first
step in the empowerment of these girls. The topics covered are:
objectives and expectations; gender stereotypes and feminism; female
body and sexuality; standards of beauty and self-esteem; relationships;
harassment; sorority. Several methodologies are employed, aiming at
creating a welcoming environment, where they can share experiences
and strengthen themselves. By the end of the course, the students
involved have demonstrated a more empowered posture on their day-to-
day lives, their acceptance of their own bodies and in the development of
their self-stem. Promoting the socialization of experiences is
fundamental to halt the rape culture. The basic goals of the project are
to offer women’s spaces, allow reflection on what is harassment and
sexual violence, develop empathy amongst women and advocate on
sorority.
Key words: Women's empowerment, sexual education, prevention,
sorority, harassment
Enquadramento teórico
Inserido dentro de teorias pós-críticas em educação, não se
pretende aqui, garantir a neutralidade do pesquisador. Entende-se, na
verdade, que o posicionamento do mesmo é ferramenta primordial para
a interpretação dos fenômenos e criação de uma narrativa engajada
(GASTALDO, Denise 2014). Estudar gênero e educação, buscando
entender as formas de opressão e a instituição das diferenças, aliado ao
entusiasmo por mudanças sociais, se constitui também uma “apaixonante
questão política” (LOURO, Guacira Lopes 2003).
46
Entendendo que o “pessoal é político”, começo então por uma
breve contextualização. Eu me chamo Isadora, sou formada em Ciências
Biológicas, pela Universidade de Brasília, leciono há quase dez anos. O
desejo de ser professora vem ainda dos tempos de menina, por exemplos
familiares e por um anseio de contribuir positivamente para o mundo.
Por causa desse desejo, a escolha do mestrado se deu entre a Educação
Ambiental e o Ensino de Sexualidade. O primeiro acabou sendo
escolhido, por razões diversas, mas o trabalho com o segundo nunca foi
abandonado. Ao contrário, ganhou cada vez mais força. Esse projeto é
consequência desse empenho.
Os conteúdos relacionados à sexualidade como sistema genital,
métodos contraceptivos e infecções sexualmente transmissíveis integram
os conteúdos de ciências e biologia. Ao longo desses anos, pude constatar
o grande interesse por parte dos jovens nessa temática e a carência de
ambientes para discussão desses assuntos. Várias metodologias foram
utilizadas com o objetivo de mapear os principais tópicos sob ponto de
vista juvenil. Dinâmicas envolvendo perguntas dos adolescentes sempre
acabavam despertando esses temas, ainda cercados de tabus, vergonhas
e receios. As transformações da puberdade, hormônios, menstruação,
relacionamentos, incluindo a primeira relação sexual, foram os
conteúdos apontados com maior frequência.
Acredito em uma construção social do conhecimento e uma
educação libertadora. Independente do tema, a sala de aula é um espaço
de discussão, troca de ideias. Nada deve ser imposto. Os alunos são livres
para construírem suas visões de mundo com as novas ferramentas
adquiridas no cotidiano escolar. Penso também que nossa missão como
professor, vai além dos conteúdos específicos de cada matéria. Somos
exemplos de respeito, educação, tolerância, entre outros valores passados
através da nossa conduta dentro e fora de sala.
Nesse sentido, a prática pedagógica precisa ser constantemente
revista para buscar questionar as relações de gênero, não naturalizar
situações de violência e promover a tolerância com as diferenças.
Portanto, desconstruir o machismo presente em nosso discurso é uma
47
tarefa árdua e diária de todos os professores comprometidos com a
formação de melhores cidadãos. Acreditando ser possível uma
contribuição para além da minha prática diária e sentindo a necessidade
de realizar um trabalho focado nas meninas, comecei a pensar nesse
projeto.
A Educação Sexual ainda é um campo de muitas discussões. Trata-se de
uma questão de âmbito privado ou deve haver participação da escola?
Caso sejam discutidas na escola, devem ser abordadas em uma disciplina
específica ou ter um caráter multidisciplinar? Qual o caráter dessas
aulas? Que tipo de formação os professores devem ter? São algumas das
questões levantadas por Louro (2003). Ela completa ainda que
possuímos poucas informações sobre como as escolas brasileiras
desenvolvem suas práticas ligadas à Educação Sexual, mas é possível
supor ser uma área tratada ainda com bastante cautela, buscando refúgio
no “científico” - que pode ser entendido como um estreito biologismo,
não abarcando as transformações sociais e culturais (LOURO, 2003).
Durante a minha experiência, pude perceber que os aspectos
biológicos da sexualidade funcionam como um cenário a partir do qual
os adolescentes refletem sobre o lado social da sexualidade. Entender
sobre as mudanças psicológicas durante a puberdade, sobre afetos e
relacionamentos, são temas ansiados pelos jovens. Muitos buscam, em
sala de aula, uma conversa que não acontece em casa, sobre suas
expressões, identidades, amores, amizades, paixões, frustrações, desejos,
sexo. Falar sobre esses assuntos, numa perspectiva educativa, é
fundamental para debatermos informações corretas, mas também para
pregarmos a tolerância e o respeito.
Iniciativas como o curso Gênero e Diversidade na Escola - GDE, do qual
um livro texto e um caderno de atividades foram resultado, demonstram
a importância de trabalhos com o debate sobre sexualidade. Numa
iniciativa de evitar que a escola seja um ambiente de reprodução de
preconceitos e sim um espaço de promoção e valorização das
diversidades, fortalecendo o papel dos profissionais da educação como
48
promotores da cultura do respeito e garantia dos direitos humanos, da
equidade étnico-racial e de gênero (BARRETO, Andréia 2009).
A UNESCO (2014) publicou um material adaptando ao contexto
brasileiro orientações didáticas para o ensino de sexualidade, tendo como
base outro documento publicado pela mesma instituição com orientações
internacionais. O documento reforça o papel da escola nesse campo.
Evitar a temática resulta no despreparo dos adolescentes em lidar com a
própria sexualidade, com a prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e com a gravidez indesejada. O texto ainda critica a ênfase
dada por grande parte das iniciativas escolares no discurso biologizante
e científico, silenciando questões importantes como o prazer, o desejo e
a diversidade sexual.
A ausência de diálogo sobre esses temas é prejudicial para ambos os
gêneros. A sexualidade feminina ainda é considerada um tabu, carregada
de preconceitos e estereótipos. O gênero masculino também sai em
desvantagem com a construção e incentivo de masculinidades tóxicas.
Porém, as mulheres ainda são as principais vítimas desse discurso que as
objetifica e naturaliza todo tipo de assédio e violência.
Enquanto professores, somos preparados para focar no conteúdo
de nossas disciplinas, e precisamos de uma atenção cuidadosa sob toda a
nossa prática, não apenas para a explicação desse ou outro tema. Ao
abordarmos assuntos considerados polêmicos, o cuidado com o discurso
precisa ser ainda maior, para não impormos nenhum ponto de vista e
criarmos um ambiente de respeito e tolerância, desconstruindo
preconceitos. Silenciar sobre determinados temas e questionamentos
também é se posicionar.
Acreditando na importância da temática, o trabalho realizado em sala
busca incentivar a autonomia dos jovens, o respeito às decisões, e
também a criação de responsabilidade no cuidado com os corpos. A
partir das demandas surgidas em sala e de outras leituras (como as aqui
citadas e outras), discussões sobre assédio, relacionamentos, virgindade,
prevenção e outros temas de impacto social se tornaram frequentes. Com
essa perspectiva, foi ficando evidente a diferença de familiaridade com a
49
temática em uma comparação entre os gêneros e a necessidade de um
trabalho mais aprofundado, com foco nas meninas.
Em 2016 conheci um projeto chamado ‘Precisamos falar do Assédio’. O
projeto adaptou uma van - estúdio e na Semana da Mulher ouviu
depoimentos de mulheres de diferentes área do Rio de Janeiro e São
Paulo dispostas a contarem suas histórias, sem nenhum tipo de
interlocutor. Ao final, 140 mulheres, de 14 a 85 anos, deram seus relatos,
totalizando 12h de material. O projeto virou um documentário longa-
metragem e um site, onde ainda hoje é possível contar novos
depoimentos. As histórias “vão desde cantadas feitas por desconhecidos
no transporte público ou na rua, até estupros cometidos por parentes e
dentro da própria casa, quando elas eram crianças” (SACCHETTA,
Paula 2016).
No mesmo ano, fundamos um grupo de amigas para se encontrar
ocasionalmente, discutir feminismo e trocar experiências. Eram
mulheres de diferentes lugares e variados níveis de amizade. Porém, o
grupo permitiu a criação de uma rede de apoio feminina que se mostrou
extremamente forte. Com o surgimento dessa rede, histórias de abusos e
outras violências foram contadas, experiências partilhadas. Algumas
histórias vieram à tona pela primeira vez. Outras, desconhecidas por
grande parte das mulheres ali, também ganharam voz. O mais
importante, instituiu-se a sensação de pertencimento, de não ser única
enquanto vítima, muito menos responsável de alguma forma por
situações de assédio. O documentário citado também busca desenvolver
uma identificação com as vítimas, fornecendo subsídios para outra
análise das próprias experiências.
Mesmo se tratando de mulheres adultas, com condições sociais
privilegiadas, foi preciso um grupo feminino para que esses relatos
surgissem. Culpa, vergonha, medo e outros sentimentos ruins ainda
estavam presentes. Foi possível perceber na prática a importância e força
do apoio feminino. O conceito de rede de enfrentamento e a necessidade
de uma atuação articulada entre diversos setores para lidar com a
50
complexidade da violência doméstica foi definido pela Secretaria de
Políticas para as Mulheres em 2003.
Recentemente, a Câmara dos Deputados divulgou o Mapa da
Violência Contra a Mulher 2018, feito pela Comissão de Defesa dos
Direitos da Mulher. Além dos dados alarmantes, o texto enfatiza a
importâncias de ações como a aqui descritas:
“Para coibir o estupro, cada vez mais estamos cientes que é necessária a
implantação de um conjunto de medidas que fortaleçam as mulheres e
meninas sobre seus direitos. As escolas, os postos de saúde, o ambiente
de trabalho, as relações solidárias de amizades, as associações
comunitárias, os grupo de mulheres, os operadores do direito. Enfim,
formar rede para o enfrentamento à cultura do estupro que viola a
dignidade física e emocional das mulheres. (p. 15)”
A violência sexual acontece em todos os níveis sociais, nas diferentes
faixas etárias, em diversos contextos. Apesar de todas as suas variáveis,
o denominador comum é claro - nós, mulheres, vítimas, ainda temos
vergonha de falar sobre o assunto. A cultura do estupro faz um excelente
serviço ao culpabilizar a vítima. Algo tão enraizado no nosso dia-a-dia
que, guardamos todas essas histórias cotidianas, nos envergonhamos
delas e seguimos sofrendo em silêncio.
Compartilhar experiências - falar!, passa a ser um ato muito poderoso
para mulheres vítimas de violência. Para isso, faz-se necessário um
ambiente de acolhimento e segurança. A ajuda profissional é de extrema
importância, mas é preciso inicialmente que a vítima admita o ocorrido,
para então buscar ajuda. A troca de vivências entre mulheres permite
diminuir a sensação de solidão e culpa carregada pelas vítimas. Ao
perceberem que suas histórias, infelizmente, não são únicas, é possível
ter outro olhar sobre suas vivências, reconhecendo assédios e violências
até então ignorados ou escondidos.
O projeto surge como um primeiro passo no empoderamento
feminino, na discussão do assédio e das mais variadas formas de
violência as quais mulheres são submetidas desde muito cedo. Apesar de
o foco inicial ser a prevenção e acolhimento, os objetivos do projeto vão
51
além. Discutir padrões de beleza, fortalecer a auto-estima, conversar
sobre corpo e sexualidade, tudo isso é trabalhado com as meninas.
Dentro desse contexto, entender gênero como uma construção social,
baseado em uma relação assimétrica de poder, é imprescindível para
buscar as raízes das violências sexuais e questionar os padrões sociais
vigentes. Esta é uma premissa básica para todo o trabalho aqui
desenvolvido. Diversos autores respaldam essa discussão, como Guacira
Louro, Judith Butler, Valeska Zanello, Maria Amélia de Almeida Teles,
Jane Felipe de Souza, entre outras. Trabalhos como Unesco (2014) e
Gênero e Diversidade na Escola - GDE (2009) também corroboram esse
tipo de projeto.
Método
Entre Garotas - nome escolhido pelas primeiras integrantes,
aconteceu em duas escolas públicas da Secretaria de Educação do
Distrito Federal (SEE-DF). Surgiu no Centro de Ensino Fundamental 05
de Taguatinga (CEF 05 de Taguatinga) e se estabeleceu no Centro de
Ensino Fundamental 404 de Samambaia (CEF 404 de Samambaia) onde
ainda está sendo realizado. A violência sexual não é, de forma alguma,
exclusividade da periferia, mas em situações de vulnerabilidade,
trabalhos como esse são ainda mais importantes.
O projeto surgiu inicialmente como uma oficina na Semana de
Educação para a Vida, que integra o calendário escolar anual da SEE-
DF. A organização da semana temática fica a cargo do corpo docente de
cada escola. Em parceria com o professor de ciências, realizamos seis
oficinas, com duração de 75 minutos cada. O professor ficou responsável
pelas atividades com os meninos, enquanto eu orientava as meninas.
Cada grupo contou com a participação de aproximadamente 20 pessoas
cursando o 7º e 8º ano do Ensino Fundamental.
O objetivo era promover uma conversa sobre temas centrais
para o empoderamento feminino, incentivando a participação e a
reflexão sobre situações cotidianas. Para tal, foram utilizadas imagens,
dados de pesquisas, clipes e vídeos. O ambiente foi preparado buscando
52
trazer segurança e a percepção de que estávamos juntas, com as carteiras
substituídas por tapetes e almofadas, sentando todas em roda.
A oficina foi dividida em cinco momentos: 1) Apresentação:
momento inicial para que as estudantes pudessem falar um pouco de si e
a sua perspectiva do que representa ser uma garota; 2) Momento “quebra-
gelo”: com um clipe para que todas dançassem; 3) Feminismo: conversa
sobre o conceito e vídeo chamado ‘Por que você precisa do feminismo?’
da revista juvenil Capricho (02h45min); 4) Assédio: conversa sobre o
que é assédio, cultura do estupro e a importância de não se calar. Vídeo
da youtuber JoutJout Prazer, ‘Vamos fazer um escândalo’ (09h22min);
5) Sororidade: debate sobre estereótipos em relação à amizade feminina
e definição do termo; 6) Encerramento: momento das meninas
comentarem sua experiência, incentivando a empatia e a colaboração
entre mulheres.
Com o grande sucesso das oficinas e uma constante busca das
alunas por uma segunda edição, decidi criar um projeto. Todas as
estudantes do colégio foram convidadas para um dia da semana em
horário contrário às aulas. Esse espaço seria uma continuação das
atividades realizadas nas oficinas.
A princípio, o projeto foi visto como algo informal.
Apenas uma disponibilidade da professora de utilizar o seu horário de
coordenação para se encontrar com as alunas. Apesar dos encontros
serem sempre muito produtivos, alguns problemas surgiram. Existiram
dificuldades na organização da escola, por vezes não respeitando o
espaço, utilizando a sala destinada para outras atividades, ou ainda da
não disponibilidade do material reservado como projetores, caixas de
som ou outros. A falta de compromisso das estudantes também foi um
ponto negativo. Havia uma variedade grande no número de presentes de
um encontro para o outro, o que dificultava o planejamento das
atividades de cada encontro. O fato de acontecer no contra turno também
demandava alguma atenção, pois várias estudantes moravam longe da
escola, não tendo condições de ficar para o turno vespertino, uma vez
que não era oferecido almoço por parte da escola.
53
Em 2018, passei a lecionar no CEF 404 de Samambaia. Tendo
como forte objetivo a continuidade do projeto e visando solucionar os
obstáculos anteriores, um acordo foi estabelecido com a direção para a
realização do projeto. Com a exigência de um espaço fixo reservado para
tal atividade. Em 2019 o projeto passou a integrar o Plano Político
Pedagógico da Escola, conferindo caráter oficial ao projeto.
Houve um grande interesse das alunas em participarem, sendo
exigido, portanto um comprometimento das estudantes contempladas.
Com a alta procura, foram criadas duas turmas (uma por semestre), com
oito encontros de aproximadamente 1h30 de duração. Algumas
adequações foram realizadas do primeiro para o segundo semestre, mas
os objetivos permanecem os mesmos. Para o ano de 2019, ainda na
mesma escola, os encontros passarão às 3h de duração, sendo reduzidos
a quatro momentos por turma. Diminuir o número de visitas à escola visa
solucionar as dificuldades de locomoção e permanência das alunas.
Todas as integrantes precisam assinar um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido com autorização dos pais.
As metodologias utilizadas em cada encontro são
constantemente revistas, mas trabalham sempre com a perspectiva de um
tema gerador para orientar a discussão, tendo a professora como
mediadora durante todo o processo. Vídeos, redes sociais e outros
materiais associados a tecnologia costumam despertar o interesse e são
bons dispositivos para iniciar ou finalizar a discussão. Sites e outras
fontes confiáveis de informação eram sempre mostrados como forma de
continuar o trabalho em casa. Alguns materiais também foram
produzidos por elas como cartazes e textos.
No primeiro semestre, os encontros foram divididos nas
seguintes temáticas: 1) Abertura; 2) Feminismo; 3) Relações de gênero;
4) Padrões de beleza; 5) Assédio; 6) Sororidade e 7) Encerramento. Para
o segundo semestre, houve a inclusão de momentos sobre
Relacionamentos e Corpo feminino, em virtude de demandas surgidas na
primeira turma. Sendo assim organizados: 1) Abertura, dinâmica inicial;
2) Feminismo/Relações de Gênero; 3) Padrões de
54
Beleza/Relacionamentos, 4) Relacionamentos/Sexualidade; 5)
Sexualidade/Corpo feminino; 6) Assédio; 7) Sororidade e 8)
Encerramento;
Os encontros foram pensados buscando integrar as demandas
percebidas na sala de aula com temas vistos como imprescindíveis para
o empoderamento. A construção de cada encontro teve como fonte de
inspiração inicial o material produzido no Chile chamado de
‘Desprincesamento’, adaptado para a faixa etária em questão. Cursos de
formação continuada, palestras, textos e outras fontes de pesquisa,
conversas com outros profissionais e a contribuição fundamental de
quatro amigas - duas psicólogas e duas biólogas, sendo uma mãe de
menina, formam a base dessa produção. Nenhum tema ou encontro é
estanque e têm metodologias fixas, todos se relacionam e as discussões
permeiam todo o projeto.
55
Ao ser confrontada com estereótipos de gênero, a grande
maioria soube citar diversos exemplos. Todos vividos dentro de casa e
no ambiente escolar. Ser menino esteve sempre associado a uma maior
liberdade em todos os aspectos, enquanto ser meninas exigia uma
obediência maior às regras. Segundo elas, mulheres ainda desempenham
melhor funções domésticas e de cuidado, enquanto homens são melhores
em funções de liderança, uso de cálculos e direção de veículos.
Ao falarmos sobre feminismo, fica evidente uma definição
distorcida do termo. Quando questionadas se homens e mulheres
deveriam ter os mesmos direitos, ganhar salários iguais ao
desempenharem as mesmas funções, ter segurança… Todas afirmavam
que sim. Porém, várias não queriam ser feministas. Feminismo no
imaginário de muitas se trata de algo exagerado, para diminuir os
homens, interferindo nos padrões de beleza e comportamento de maneira
negativa. Porém, ao conduzir a discussão para esclarecer o termo,
contando a história do movimento, citando exemplos de posturas e
mulheres feministas, todas refletiram sobre suas próprias concepções.
Conquistas como o direito ao voto, ao divórcio e a criminalização da
violência doméstica não são percebidas como conquistas femininas, e
sim, verdades que sempre existiram.
Ao abordarmos padrões de beleza, o consenso apontado por
elas é um padrão branco, magro, cabelo liso. Porém, várias estudantes
disseram gostar dos seus atributos fora do padrão, como cor da pele e
cabelos cacheados, tendo a consciência de serem diferentes. Apesar
dessa positividade em relação a um ou outro atributo, elas já apresentam
consciência dos padrões inatingíveis impostos pela sociedade. A
gordofobia é um tema merecedor de atenção especial, sendo encaixado
nas versões de 2018 do projeto.
A aparência é uma preocupação constante da maior parte dos
adolescentes, tendo relação direta com a criação da sua identidade, sua
maneira de se expressar. As meninas, desde muito cedo, já percebem os
impactos desses padrões, apresentando sérias consequências disso na sua
auto-estima. Sabemos que tal questão não é exclusiva da adolescência,
56
mas apresenta maior impacto nessa fase. Discutir e promover a auto-
aceitação é fundamental para criarmos mulheres empoderadas, capazes
de resistir a tantas exigências.
O encontro sobre assédio é visto por mim como o mais
importante. Porém, abordar o tema em um grupo que não tenha tanta
familiaridade gera resultados diferentes. Quando elas se sentem à
vontade para partilhar experiências, a troca é muito produtiva. Mesmo
em idade tão jovem, elas já apresentam várias experiências, contando
relatos também sobre violências domésticas.
Ao ouvir as histórias, é perceptível o quanto essas meninas já
se responsabilizam pelos assédios sofridos, questionando se poderiam ter
evitado as situações de alguma forma
A insegurança da impunidade dos agressores e a certeza de que
outras situações de assédio podem ocorrer também se faz presente.
Muitas se perceberam sozinhas em suas histórias, sem saber como
procurar ajuda ou para quem poderiam contar. As posturas familiares
nem sempre são as melhores, sendo comum a responsabilização da
jovem pelo ocorrido ou o descrédito por sua história.
Todos esses aspectos apontam para a importância de trabalhos
como esse, onde a cultura do estupro seja questionada e haja um amparo
às vítimas. Mais uma vez, reafirmo a importância de ajuda profissional.
Reconheço as limitações do projeto, mas ele funciona como um primeiro
passo. Um primeiro apoio para que elas percebam que não estão sozinhas
e não devem ser culpadas por nenhuma situação.
Ao perceberem a minha postura feminista, de intolerância a
brincadeiras discriminatórias e casos de assédio, as meninas passam a me
ver como uma aliada e contam suas histórias. Começam a denunciar
posturas indevidas dos colegas de sala e até de professores. O aumento
do número de denúncias é algo extremamente positivo, mas também
indica a ausência de espaços/pessoas onde elas possam denunciar, uma
vez que as denúncias são endereçadas a mim. Ficam então alguns
questionamentos: Por que essas denúncias não estão sendo feitas aos
pais/responsáveis? Como criar outros espaços de denúncia? Fora da
57
escola, onde elas podem ir? Como possibilitar um aumento do número
de denúncias? Quais outras maneiras de amparar essas vítimas?
Infelizmente, a legislação é extremamente falha para casos de
assédio. Mas conseguimos, com a correta orientação, o afastamento de
um professor com uma denúncia formal feita pelos pais, por exemplo.
Outras meninas contaram sobre assédios sofridos por familiares e com o
apoio da orientação escolar foram assistidas corretamente.
Os meninos, apesar de não fazerem parte do projeto, também
percebem essa minha postura, passando a refletir sobre brincadeiras
inapropriadas e modificando sua forma de tratar aos colegas.
O projeto cria uma rede de apoio que vai além dos encontros.
As estudantes passam a ser multiplicadoras, prestando apoio umas às
outras, incluindo alunas que não participaram. Elas passam a perceber as
situações de assédio de outras maneiras, como algo não natural, que não
deveria acontecer. Entendem também a importância da união feminina,
de não sermos rivais.
Por isso, sororidade é o tema do encontro final. Sendo colocado
como um mecanismo para lutarmos contra essas situações. As próprias
estudantes no início reproduzem o discurso de que mulheres são falsas,
ciumentas, e outros atributos negativos. É comum ver entre as
adolescentes a busca por amizades masculinas, para validar o sentimento
de serem diferentes das outras meninas. Ao final, é possível ver um
aumento da empatia entre elas e novas amizades se formando.
A menstruação foi um tópico incluído depois, ao perceber a
enorme quantidade de dúvidas sobre esse tema e que as aulas de ciências
não seriam suficientes. Exaltar a natureza cíclica, entendendo e
acolhendo cada etapa, mostrando que a menstruação é um sinal de que o
corpo está saudável, foram tópicos chave para diminuir os aspectos
negativos desse fenômeno.
O tópico sobre relacionamentos também foi adicionado
posteriormente, em virtude do grande número de relacionamentos
abusivos relatados por elas por familiares e pessoas próximas. A lei
Maria da Penha foi explicada, assim como as diferentes formas de
58
violência. A violência doméstica é uma realidade na vida de vários
estudantes e precisa ser mais debatida, é tão naturalizada que apenas a
violência física é considerada agressão. Violência moral e psicológica,
por exemplo, não eram percebidas como violências.
Passamos um tempo também comentando sobre
relacionamentos saudáveis e debatendo a sexualidade feminina. O
conceito de virgindade é há muito ultrapassado e falocêntrico, porém
ainda está vigente. A relação sexual ainda é percebida por muitas como
uma forma de agradar os possíveis parceiros, não uma fonte de prazer
para si. A autonomia foi muito questionada, desmistificando o sexo como
“moeda de troca” nos relacionamentos. Abordar positivamente a
sexualidade também é fundamental para a construção de mulheres
autônomas, cientes do próprio prazer.
Os efeitos do projeto são inúmeros e muito variados. Cada
estudante o percebe de uma maneira única, mas todas afirmam gostar e
pedem, inclusive, a continuidade do mesmo. Diversos exemplos de
resultados poderiam ser mostrados, a título de ilustração, transcrevo aqui
o texto de uma participante:
59
experiências, e ouvir experiências de pessoas que
entendem, pelo simples fato de passarem as
mesmas coisas, de compreender que somos
diferentes, temos aparências diferentes, e não há
problema algum nisso, e que temos de tentar nos
unir cada vez mais, e não competir para pertencer à
alguém, ou algo parecido, até porque somos
AUTO-SUFICIENTES, e não devemos associar
nossa felicidade à alguém… enfim, foram tantas
coisas concluídas, tantas coisas esclarecidas, me
faltam palavras para descrever como foi bom
participar deste projeto. E agora queria dedicar
meus agradecimentos à professora Isadora, por ter
reservado um espaço do seu tempo, nos
proporcionando um lugar de conforto e por ser tão
maravilhosa! (A.A).
Considerações finais
Iniciativas como essa ainda são pontuais, mas geram resultados
positivos não só nas integrantes, mas em toda a comunidade escolar. Se
posicionar, também questiona posturas junto aos professores e corpo
diretor da escola. Permitindo, talvez, com o tempo, uma mudança global
do ambiente escolar. O apoio da orientação educacional, e se possível
também do psicólogo escolar, faz toda a diferença. Possíveis alianças
com o conselho tutelar também podem ser de valor inestimável para
situações mais críticas que podem surgir. Trabalhos interdisciplinares
com a participação de vários professores também seriam de grande
estima.
Apesar de separar os estudantes de maneira binária e realizar
um trabalho apenas com as meninas, tem-se claro que as identidades de
gênero são plurais e diversas. Ao estabelecer essa divisão, não significa
dizer que está se adotando também um padrão do que é ser mulher. Ao
contrário, essas diversas possibilidades dentro do gênero feminino são
exploradas, buscando, inclusive, romper essa polarização que sobrepuja
um gênero ao outro. Mas entendo que, nas mais variadas formas de ser
60
do gênero feminino, este é, em vários espaços, tido como inferior, sendo
a grande maioria das vítimas de exploração sexual.
Os meninos também pedem por iniciativas como essas.
Faz-se importante realizar um trabalho de base que discuta
masculinidades tóxicas, permitindo reflexões sobre as implicações do
gênero masculino, admitindo seus privilégios e veiculando
possibilidades de ação. Refletir sobre a objetificação das mulheres e o
papel masculino nesse processo também é fundamental. Acima de tudo,
ensinar o respeito ao corpo e às vontades de outra pessoa, sobretudo às
mulheres que têm seus corpos constantemente violados.
As identidades de gênero não se encontram dissociadas dos
demais recortes dos estudantes. Um viés interseccional e multicultural
permeia esse tipo de trabalho. Esses vários marcadores sociais
constituem também todo e qualquer educador. Estar ciente das suas
próprias razões e responsabilidades enquanto educador é fundamental
para uma prática pedagógica libertadora.
Um professor me disse recentemente em um e-mail que “a área
de estudos de gênero e sexualidade, especialmente em sua interface com
a educação, virou um verdadeiro campo de batalha”. Faz-se necessário
então, clareza para decidir de que lado queremos estar nessa guerra.
Referências
BARRETO, Andréia; ARAÚJO, Leila; PEREIRA, Maria Elisabete
(Orgs.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es
em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de
conteúdo. Rio de Janeiro: CEPESC, 2009.
61
GASTALDO, Denise. Pesquisador/a desconstruído/a e influente?
Desafios da articulação teoria-metodologia nos estudos pós-críticos. In:
MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Orgs.).
Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. 2ª ed. Belo
Horizonte: MAZZA EDIÇÕES, 2014. p.9-13.
62
O PANORAMA ATUAL DA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA RELACIONADA A
COMUNIDADE LGBT, DIVERSIDADE DE
GÊNERO E SEXUALIDADE PRODUZIDA
PELA UNESP: UMA ANÁLISE DO REPOSITÓRIO
Simão Marcos Apocalypse
Maria José Vicentini Jorente
(Universidade Estadual Paulista)
63
THE CURRENT PANORAMA OF SCIENTIFIC PRODUCTION
RELATED TO THE LGBT COMMUNITY, GENDER DIVERSITY
AND SEXUALITY PRODUCED BY UNESP: AN ANALYSIS OF
THE REPOSITORY
Introdução
A universidade é um lugar social que deve promover atividades
com a finalidade de dialogar a sociedade como um todo. Neste lugar,
segundo Nogueira (2005) a produção científica deve abordar questões
64
pertinentes a toda sociedade, gerar pensamento crítico, articular saberes,
produzir conhecimento, formar profissionais e atuar em outras atividades
que pertencem ao âmbito social. Para o autor são os fatores históricos e
sociais que baseiam os interesses que a universidade deve buscar, o corpo
que forma a instituição é a sociedade, não sendo a primeira desconexa da
outra.
Entende-se que a universidade reflete questões advindas dos
contextos histórico, social e cultural e o comportamento dos seres
humanos mediante as diversidades ou regras reflete as relações sociais.
Dentre estas relações, estão a diversidade de gênero e a diversidade
sexual. Entretanto, como afirma Planella Ribeira (2017) devido a fatores
históricos e culturais de nossa sociedade, algumas temáticas relacionadas
a camadas sociais que se encontram à margem social, como a
comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais),
diversidade de gênero e sexualidade, são pouco abordadas no âmbito
acadêmico, somadas a pouca visibilidade deste grupo o
compartilhamento e disseminação das produções científicas
relacionadas, ou que versem seus interesses é prejudicada. Planella
Ribeira (2017) aponta que as produções científicas acerca dessas
temáticas necessitam ser abordadas com mais frequência na academia, a
fim de produzir conhecimento teórico que possibilite o aprofundamento
no debate e os resultados de pesquisa necessitam ser compartilhados com
a sociedade.
De maneira convergente, as transformações das Tecnologias de
Informação e Comunicação (TIC), pós Segunda Guerra Mundial
trouxeram consideráveis mudanças referentes à produção, acesso e
compartilhamento de informações à comunidade. Como apontam Jorente
e Santos (2014, p.193) “[...] as tecnologias de informação e comunicação
e as mídias, que, por meio delas, circulam, perfazem um meio de
tramitação da informação e do conhecimento em exponencial
movimento de expansão”.
Essas transformações traduziram-se a criação de recursos, como
os Repositórios Institucionais (RI) que possuem além da função de
65
armazenar e preservar a informação produzida pelas Instituições de
Ensino Superior (IES) de forma segura e permanente, disponibilizar esse
material a toda comunidade. A produção científica produzida pela
Universidade Estadual Paulista - Unesp, atualmente, é convergida no RI
da instituição, caracterizando-se como o principal meio de acesso ao
conhecimento científico da universidade.
Neste contexto, a problemática apresentada no presente capítulo,
consiste em identificar e apresentar o panorama atual da produção
científica relacionada à temática LGBT, diversidade de gênero e
sexualidade, produzidas pela Universidade Estadual Paulista – Unesp.
A presente pesquisa objetivou, de modo geral, estudar as
diferentes abordagens referentes às temáticas LGBT, diversidade de
gênero e sexualidade, ao longo da história, a necessidade de que a mesma
seja constantemente discutida nos ambientes universitários e que os
resultados dessas discussões sejam compartilhados a sociedade. Como
objetivos específicos buscou-se identificar a frequência com que as
temáticas referentes à comunidade LGBT, diversidade de gênero e
sexualidade, têm sido abordadas pelas diferentes áreas de conhecimento
da instituição.
Ao considerar o poder transformador do conhecimento
produzido pelas universidades, a pesquisa justifica-se pela necessidade
de estudos voltados para o compartilhamento de conteúdos
informacionais produzidos nesses ambientes e pertinentes a toda
sociedade. Nesse escopo, inserem-se estudos relacionadas à comunidade
LGBT, diversidade de gênero e sexualidade. Embora discussões acerca
dessas temáticas, nos dias atuais, tenham sido crescentes em ambientes
universitários, na sociedade conteúdos informacionais desses segmentos
ainda possuem grande entrave quanto ao seu compartilhamento, sendo a
pesquisa necessária.
Planella Ribeira (2017) ressalta que a produção científica e o
acesso a materiais voltados às temáticas relacionadas à comunidade
LGBT, diversidade de gênero e sexualidade são pertinentes a toda
sociedade. Uma análise acerca da produção científica referente a tais
66
temáticas e a forma com que a mesma se constitui dentro dos ambientes
universitários é necessária. As características referentes a essa produção
carecem de estudos para o fomento de meios que viabilizem o acesso e
possibilitem maior visibilidade aos trabalhos deste segmento,
armazenados e preservados em RI.
Metodologia
Para a realização do estudo a metodologia utilizada foi de caráter
qualiquantitativo, teórico e exploratório, consistindo em um
levantamento bibliográfico referente às temáticas abordadas e um estudo
exploratório e quantitativo das produções convergidas no RI da Unesp.
Os procedimentos metodológicos realizados consistiram na busca e
seleção de referencial teórico referente às temáticas abordadas
perpassando por clássicos e autores contemporâneos a fim de
sistematizar as discussões já produzidas.
Posteriormente, efetuou-se a coleta de dados referente a
produção científica que perpassa a comunidade LGBT, diversidade de
gênero e sexualidade no RI da instituição. Para a realização da coleta de
dados foram escolhidos os termos: LGBT, diversidade de gênero e
diversidade sexual. Utilizou-se para a união dos termos os operadores
booleanos. Por meio das buscas foram levantados indicadores primários
referente a produção científica convergida no ambiente considerando as
variáveis: data da produção, área do conhecimento e tipo de produção.
67
1984), mais precisamente sua obra intitulada A história da sexualidade
(1988, 1984 e 1985). Seus estudos representam um marco acerca das
concepções de gênero, sexo e sexualidade, isso devido ao pensador ser
um dos primeiros teóricos a resgatar a perspectiva de que estes são
construídos socialmente.
Foucault (1988) aborda as noções normativas dos indivíduos:
68
Ressalta-se o papel exercido instituições religiosas e sua pontual
influência na manutenção de tais dispositivos:
69
pertencentes a essa camada da sociedade passaram a existir, tornando
possível então a luta pela aceitação de seus corpos e expressões. A partir
do reconhecimento da existência de sexualidades destoantes do
considerado normal até o século fim XIX, indivíduos até então renegados
iniciaram um movimento em busca de reconhecimento e aceitação de
seus corpos e comportamentos.
Desse modo, após o trabalho propulsor de Michel Foucault,
estudos com a finalidade de compreender a construção normativa dos
corpos e das concepções sobre gênero e sexualidade tomaram espaço em
meio aos conhecimentos produzidos pela academia. Afloraram também
movimentos sociais tendo como protagonistas membros da comunidade
LGBT.
Ao fim da década de 1980, o termo queer constituiu-se um
campo de estudos referentes a identidades de gênero e sexualidade que
não se enquadravam nos padrões de homossexualidade alinhadas a
gêneros normativos e binários. A fim de melhor contextualizar o
surgimento dos estudos queer, cabe pontuar o prelúdio do termo e como
ele passa a ser utilizado nas lutas por direitos igualitários.
De acordo com Ribeiro Junior:
70
Butler (2014) trata em seus estudos dos gêneros e sexualidades,
apontando o reducionismo das concepções vigentes:
71
identidades sexuais e de gênero. (RIBEIRO
JUNIOR, 2016, p. 57).
72
Gráfico 1 - Busca pelo termo LGBT
73
Gráfico 2 - Busca pelo termo DIVERSIDADE DE GÊNERO
74
Gráfico 3 - Busca pelo termo DIVERSIDADE SEXUAL
75
Tabela 1 - Busca pelos termos no Repositório - Recuperados por período -
2007-2018.
PERÍODO LGBT DIVERSIDADE DE DIVERSIDADE
GÊNERO SEXUAL
2007 - 2009 9 1 0
76
escolar e 16 ao programa de pós graduação em Educação sexual;
Faculdade de Ciências e Letras – Assis com 44 itens, sendo 26
pertencentes ao programa de pós graduação em Psicologia; Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação - Bauru com 40 itens, dentre estes
20 TCC e 14 pertencentes ao programa de pós graduação em
Comunicação; Faculdade de Filosofia e Ciências – Marília com 35 itens
sendo 18 pertencentes ao programa de pós graduação em Ciências
sociais.
Tais unidades de ensino e programas de pós-graduação
correspondem aos maiores números resultantes da busca pelo termo
LGBT, demonstrando que as discussões referentes a esta temática tem
seu maior crescimento em meio às humanidades e ciências sociais
aplicadas. A busca pelo termo Diversidade de Gênero e Diversidade
Sexual, embora configurem um número muito baixo de itens recuperados
em relação aos trabalhos recuperados com o termo LGBT e que se
enquadram no contexto da atual pesquisa, também se encontram, em sua
maioria, relacionados a áreas das Ciências Humanas e Ciências Sociais
Aplicadas.
Considerações finais.
Mediante a revisão de literatura, ao resgatar as principais
colocações teóricas referentes aos pontos que emergiram durante a
efetivação da pesquisa é pertinente pontuar que a abordagem das
temáticas referentes à comunidade LGBT, diversidade de gênero e
sexualidade, em ambientes acadêmicos, configuram um panorama
contemporâneo, sendo um fenômeno bastante atual.
Dada a imersão no Repositório Institucional da Unesp e a busca
pelos termos LGBT, diversidade de gênero e diversidade sexual foi
possível estabelecer o panorama atual da produção científica em torno
da temática investigada. Constatou-se que, embora pesquisas estejam
emergindo, os trabalhos que perpassam a temática ainda configuram um
número muito baixo de recuperações em relação a todo conteúdo
convergido no ambiente.
77
Compreende-se a necessidade de que estudos referentes à
comunidade LGBT, diversidade de gênero e sexualidade sejam
abordados no contexto acadêmico e os resultados de pesquisas
compartilhados de maneira adequada. Tais conhecimentos são
imprescindíveis para que o contexto de vulnerabilidade em que se
inserem os indivíduos pertencentes a essa camada da sociedade possa ser
reparado. Assim sugere-se que futuras pesquisas busquem identificar a
ocorrência das de temáticas relacionadas a sujeitos em vulnerabilidade
social no âmbito das IES, bem como formas de melhorar a visibilidade
das pesquisas e dos grupos sociais quais se inserem.
Referências
BOSO, A. K . Repositórios de instituições federais de ensino
superior e suas políticas: análise sob o aspecto das fontes
informacionais. 2011- 150 f. Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação. Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Informação. Florianópolis, 2011.
Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/95776/296890.
pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 05 de mar. 2018.
78
Informação, v.19, n.1, p.190-206, jan./mar., 2014. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/pci/v19n1/12.pdf >. Acesso em: 19 de
set.2017.
79
SEXUALIDADE E OPRESSÃO: UMA
INVESTIGAÇÃO SOBRE AS OPRESSÕES DOS
CORPOS E A PRÁTICA DA EDUCAÇÃO
SEXUAL EM SALA DE AULA, DIÁLOGOS
ENTRE O TEATRO E A HISTÓRIA
80
de práticas escolares interdisciplinares que proporcionem uma ampliação
de olhares sobre os espaços, corpos, tempo e educação sexual.
Palavras-chave: Educação Sexual, Sexualidade, Escola, Direitos
Humanos.
81
Enquadramento teórico
Com base em nossa experiência de campo, na execução de
oficinas com a temática Direitos Humanos, na Escola Básica Júlio Costa
Neves, na cidade de Florianópolis/SC, em virtude da aplicação do projeto
de extensão do Laboratório de Educação e Sexualidade (Labedusex), do
Centro de Educação a Distância da Universidade Estadual de Santa
Catarina - CEAD/UDESC, em parceria com o Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina -
NEAB/UDESC. Apresentamos essa comunicação no eixo temático: T01
- Investigação e práticas em sexualidade e educação sexual.
Esse trabalho insere-se nas discussões do Labedusex e do
Projeto WebEducaçãoSexual, grupos de estudo e reflexões sobre a
educação sexual nos espaços escolares e a formação de professores/as
com a proposta de sensibilizá-los/las para trabalhar a sexualidade como
dimensão humana.
Cientes da possibilidade de uma proposta onde extensão e
pesquisa são indissociáveis, definimos por realizar nesse contexto de
extensão, sistematizar um espaço de pesquisa, dado a latência dos
questionamentos que surgiram durante as oficinas. Assim, percebemos
que tínhamos nesse quadro um objeto de pesquisa, que perpassa “a
sexualidade, a opressão dos corpos e a prática da educação sexual, bem
como a promoção do pensamento histórico, afetivo, estético e
consequentemente sensível em sala de aula, tendo como base as
atividades e estudos das artes cênicas, mais precisamente o Teatro-
Educação, Teatro do Oprimido e Licenciatura em História”. Surge então,
o questionamento que passou a nos inquietar: Práticas pedagógicas de
educação sexual podem contribuir com a formação cidadã de professores
e professoras, a partir da prática docente?
Nosso o objetivo geral foi perceber como práticas pedagógicas
de educação sexual na escola, que sejam relevantes para professores/as,
alunos/as e comunidade, podem ou não ampliar a discussão de um tema
que é fundamental para a formação cidadã, especialmente na formação
de professores/as, pois segundo Mendes e Santos:
82
No trabalho de formação docente, em uma proposta
de diálogo sobre a educação sexual e suas
implicações nos espaços educativos encontramos
possibilidades na luta contra as violências, no
combate a toda forma de discriminação e
preconceito dentre outros11. (MENDES e
SANTOS, 2018, p. 38)
11
Grifo nosso.
83
temos que o trabalho realizado a partir da Orientação Sexual, entendida
como educação sexual,
[...] também contribui para a prevenção de
problemas graves, como o abuso sexual e a
gravidez indesejada. Com relação à gravidez
indesejada, o debate sobre a contracepção, o
conhecimento sobre os métodos anticoncepcionais,
sua disponibilidade e a reflexão sobre a própria
sexualidade ampliam a percepção sobre os
cuidados necessários quando se quer evitá-la. Para
a prevenção do abuso sexual com crianças e jovens,
trata-se de favorecer a apropriação do corpo,
promovendo a consciência de que seu corpo lhes
pertence e só deve ser tocado por outro com seu
consentimento ou por razões de saúde e higiene.
Isso contribui para o fortalecimento da auto-estima,
com a conseqüente inibição do submetimento ao
outro. Com a inclusão da Orientação Sexual nas
escolas, a discussão de questões polêmicas e
delicadas, como masturbação, iniciação sexual, o
“ficar” e o namoro, homossexualidade, aborto,
disfunções sexuais, prostituição e pornografia,
dentro de uma perspectiva democrática e pluralista,
em muito contribui para o bem-estar das crianças,
dos adolescentes e dos jovens na vivência de sua
sexualidade atual e futura. (PCN - 1998)
84
crianças e velhos nas diferentes sociedades
historicamente constituídas. (PCN - 1998)
Método
A metodologia de trabalho com os/as alunos/as da E. E. B.
Júlio Costa Neves se deu por meio de aula expositiva e jogos teatrais.
Iniciamos com a apresentação da proposta dos Programa de Extensão
LabeduSex e NEAB/UDESC, esclarecendo sobre a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão, e sobre as possibilidades de troca de
experiências e informação nesta oficina, lembrando que também
estávamos em uma posição de aprendizado.
85
O 1º jogo foi conduzido pelo acadêmico Guilherme. Em uma
roda de mãos dadas, convidamos os/as alunos/as a andarem pelo espaço
em diferentes velocidades, percebendo os colegas e o local onde estamos.
Em círculo todos falavam seu nome em voz alta, após cada discente vai
até o centro da roda e fala seu nome com um gesto característico, que
todos teriam de imitar. Neste momento trabalhamos a fim de quebrar o
gelo e proporcionar integração no grupo.
O 2º jogo consistiu em ouvir e dançar as seguintes músicas:
Taca Cachaça que ela libera, Vidinha de Balada, Me Lambe e Diretoria.
Neste momento trabalhamos as diferentes formas de percepção, pois
convidamos os/as alunos/as a expressão corporal, dançando
individualmente, em duplas ou em pequenos grupos. Após
aproximadamente 15 minutos de atividade, convidamos os/as alunos/as
a se reunirem em pequenos grupos. Nesse momento distribuímos as
letras das músicas anteriormente ouvidas e dançadas. O desafio naquele
momento constitui-se em reconhecer ou não na letra das músicas,
elementos que remetessem a sexualidade e opressão dos corpos. Essa
etapa do jogo gerou importantes reflexões que foram apresentadas nos
resultados e discussões.
Na sequência convidamos os grupos a apresentarem uma
improvisação sobre suas impressões referentes aos trechos das músicas
e o que mais os impactou. Depois de cada apresentação, fizemos uma
revisão da cena verificando o que conseguimos captar e se conseguimos
reconhecer qual foi a música apresentada, encerrando com um debate
geral. Neste momento, trabalhamos a expressão corporal, as percepções
sensíveis e o afeto entre o grupo.
O 3º jogo iniciou-se com o vídeo “Essa é bem rosinha, b*ceta
rosa”, caso de assédio ocorrido na copa da Rússia em 2018. Após assistir
o referido vídeo dividimos a turma em dois times/grupos, formados de
forma aleatória com meninos e meninas. A cada grupo foi entregue a
missão de defender ou apontar a perspectiva de um dos lados da história,
qual seja a mulher e os homens que aparecem no vídeo. Cada grupo teve
dez minuto para pensar e 5 minutos para colocar seu ponto de vista em
86
relação a um dos lados da história. Neste momento trabalhamos a
organização do espaço de diálogo, pois no tempo que cabia a um grupo
apresentar seu ponto de vista, o outro grupo não poderia interromper.
Oportunizamos a pluralidade de ideias e a discussão de fatos cotidianos
dos/as alunos/as, suscitados a partir do vídeo e do debate gerado em torno
deste.
Na sequência, noutra atividade de assistimos o vídeo do Chá -
Consentimento é tudo. Não significa Não. Nele aparecem diversas
situações em que uma pessoa oferece chá para outra e corre o risco de
não ter o convite aceito. “Se enquanto estava bem, ela falou que não
queria chá e depois desmaiou, não a obrigue a tomar chá e a leve para
um lugar seguro”, para refletir sobre consentimento, onde “não é não” e
respeito ao corpo. Nesse momento convidamos a reflexão amparados nas
discussões anteriores sobre o vídeo de assédio, estimulando o
entendimento e pensamento crítico.
Para finalizar, oferecemos aos discente um grande pedaço de
papel kraft, no qual eles expressaram suas percepções e aprendizado que
as atividades proporcionaram, usando diferentes materiais para desenhar
e colorir. Esta intervenção artística ficou exposta na escola.
O local utilizado para a realização das atividades foi uma sala
ou espaço amplo com possibilidade que todos pudessem ficar em círculo
e se movimentar com liberdade. Também utilizamos aparelho de som
para tocar as músicas do jogo 1, folhas de papel A4 e lápis ou caneta para
anotação, data show e computador para o jogo 4, fita adesiva para colar
o papel Kraft na parede, papel kraft, canetinhas coloridas, giz de cera,
tinta guache e pincel.
Com base na participação e respostas no questionário aplicado
aos alunos/as entendemos que a escolha do tema e atividades
contribuíram positivamente para os/as discentes para dirimir suas
dúvidas, ou qualificarem as suas percepções e compreensão sobre a
temática. O desenvolvimento das dinâmicas ocorreu com a participação
intensa e interação entre os sujeitos, discutindo e refletindo os temas
usando outras formas de percepção como o corpo, expressando e
87
compreendendo conteúdos e ideias não só com a fala e audição, mas
também com a expressão corporal. Nossas principais dificuldades
estavam ligadas ao individualismo, desconfiança com o tema e olhar
rígido. Construímos com os/as alunos/as os recursos para superá-las,
com a proposição de novos olhares e posicionamentos. Percebemos uma
resistência inicial e permanência em estado de ausência de movimentos,
e/ou inibição ao participar de algumas atividades, entretanto a
participação e suporte dos próprios colegas contribuiu para vencermos
esta resistência até o final das atividades. Ao longo das atividades,
observamos que o envolvimento da turma se intensificou, especialmente
quando foram convidados/as a expor sua opinião sobre um caso como
assédio, bem como, nos jogos de improvisação.
88
A discussão sobre machismo ocorreu principalmente no jogo
3, na qual o grupo que abordou o fato sobre a visão da mulher, apontou
situações do próprio cotidiano nas quais sentem-se atravessadas/os de
forma opressora por valores machistas. Importante frisar que no referido
grupo haviam meninas e meninos, e ambos fizeram estes apontamentos.
O grupo incumbido de apresentar o ponto de vista dos homens, sentiu-se
incomodado desde o início em representá-los, pois justificavam que não
havia o que ser defendido. Entretanto orientados pelo acadêmico
Guilherme e acadêmica Janine, participaram da dinâmica entendendo
que tinham o papel de apresentar as justificativas que este lado da história
apresentou e não de defesa. Janine e Guilherme foram questionados por
um aluno sobre o fato de estarem sendo doutrinadores ou tendenciosos,
ao aplicar uma atividade na qual os participantes teriam de defender o
ponto de vista dos assediadores. Explicamos ao aluno que não se tratava
de defender pontos de vista mas sim de apresentá-los e dialogar, pois
entendemos: “a Educação Sexual como luta, é preciso estar convencido/a
de que os problemas da sexualidade refletem a sociedade da qual somos
parte.”(MENDES e SANTOS, 2018, p. 40)
Neste mesmo jogo um aluno levantou a questão de LGBTfobia,
sofrida e presenciada por ele, comparando com as opressões e
brincadeiras ofensivas desferidas por pessoas nos diferentes espaços
sociais. O acadêmico Guilherme teve a oportunidade de refletir junto a
este discente sobre a oportunidade, legitimidade e empoderamento
experienciado pelo aluno nesta atividade.
A discussão racial ocorreu especialmente nas discussões sobre
a condição das mulheres negras em nossa sociedade, e ainda com relação
às mulheres negras e trans. Entretanto percebemos uma discussão tímida
em relação aos alunos/as, mesmo ao trabalhar com a música Diretoria
que traz uma crítica a questão da violência e opressão aos corpos negros.
Talvez isso explique-se pela pouca representatividade de diversidade
étnica nas turmas. Segundo Muniz Sodré:
O racismo é, historicamente, um modo de organizar
povos dominados. O racismo doutrinário foi, desde
89
fins do século XIX, uma opressiva manifestação de
consciência da universalidade dessa pele: a fantasia
do homem branco europeu como valor equivalente
universal de toda humanidade possível, donde a
imposição de um critério racial de classificação
hierárquica das classes sociais. Negros, índio,
mestiço e mulato seriam, por conseguinte, formas
incompletas do “homem pleno”, modelado pelo
europeu.(SODRÉ, 2012, p.50)
90
Sendo assim, convém uma citação poética onde Rudolf Van
Laban diz “O teatro é a tribuna na qual a luta no seio dos valores humanos
é representada artisticamente”. Assim, podemos também dizer que a arte,
mas principalmente o teatro, promovem a igualdade de forma sublime,
como nenhuma outra linguagem alcançará, uma vez que a educação é
carente de afeto dentro de suas relações estruturais, dada as
circunstâncias de sua época, no que diz respeito ao avanço tecnológico,
rápido acesso a informação, que na maioria das vezes não contribui como
construção de conhecimento, dada a manipulação midiática atual
juntamente com as trincheiras ideológicas do regime democrático
capitalista, faz-se necessário um olhar para si, para o sensível e para o
outro, pois segundo Augusto Boal:
Toda ação humana modifica a sociedade e a
natureza. A arte e a ciência modificam a natureza
de uma forma organizada, não-episódica, segundo
suas próprias leis. Mas há uma diferença
fundamental entre a ciência e a arte. Quando
Fleming descobriu a penicilina, não precisou da
consciência do doente para curá-lo. A ciência atua
diretamente sobre a realidade, modificando-a. Pelo
contrário, a arte modifica os modificadores da
sociedade, transforma os transformadores. Sua
ação é indireta, exerce-se sobre a consciência dos
que vão atuar na vida real. (BOAL, 1991,p. 22)
Considerações finais
91
Constatamos nesta atividade de extensão, o diálogo possível
entre Teatro-Educação e a Licenciatura em História, haja visto, a
possibilidade de trabalhar tanto a perspectiva histórica, quanto a estética
sensível da Arte, contemplando práticas escolares interdisciplinares. As
oficinas proporcionaram uma ampliação de olhares sobre os espaços, os
corpos, o tempo e a educação sexual na escola. Registramos que esse
contexto, nos proporcionará ainda, um espaço de pesquisa, considerando
a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Daremos
continuidade ao trabalho aplicando esta prática com professores/as, bem
como aprofundando os estudos sobre feminismo, “interseccionalidade”
(OLIVEIRA, 2017) e diversidade sexual.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto:
Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série
Legislação Brasileira).
92
LABAN, Rudolf von. Domínio do movimento. São Paulo, SP: ed.
organizada Lisa Ullmann. 1978
You Tube. Canal: Igo. Essa é bem rosinha, b*ceta rosa. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=VFw6m-FHs6A
93
You Tube. Canal: Douglas Tartarotti. Edy Lemond - Taca cachaça
(Live Music). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Pj9Wafc9yuA
94
XI - COLÓQUIO DO GRUPO DE
PESQUISA FORMAÇÃO DE
EDUCADORES E EDUCAÇÃO SEXUAL.
DIÁLOGOS SOBRE SEXUALIDADE E
EDUCAÇÃO SEXUAL COM VISTAS À
EMANCIPAÇÃO: 11 ANOS DO PROGRAMA
EDUCAÇÃO SEXUAL NAS ONDAS DA RÁDIO UDESC
95
para que possamos potencializar a efetivação de práticas emancipadoras,
fortalecer as redes de apoio para a concretização de projetos no campo
da Educação Sexual e avançar na compreensão de ricas temáticas que
nos afetam não apenas nos espaços educativos, mas que nos fazem
refletir sobre o lugar da emancipação na sociedade que construímos e
vivemos. Entendemos a rádio como um veículo potente na disseminação
e sensibilização acerca da educação sexual que almejamos construir e na
qual lutamos para manter o importante diálogo em nossa sociedade que
vivencia nos dias atuais lamentáveis retrocessos que nos fazem ratificar
ainda mais a importância dos temas afetos a sexualidade e a educação
sexual. No momento já são 100 participantes inscritos na ação, os
resultados dessa proposta intencional de diálogos sobre educação sexual
em uma perspectiva de Direitos Sexuais como Direitos Humanos
Universais é o que intencionamos compartilhar.
Palavras-chave: Educação Sexual Emacipatória – Direitos Sexuais -
Colóquio – Rádio
96
October 22-24, invited to attend educators, representatives of NGOs and
of the Feminist Movement, and researchers who were interviewed and
participated in the Action Radio Program “Sex Education in Debate: in
the waves of Radio UDESC” to compose debate tables, take part in
conferences with the intention of making possible for undergrad
students, educators, and participants to start a dialogue based on the
programs already aired, so we can maximize effective emancipatory
practices, strengthen the support networks to achieve projects in the area
of Sex Education, and advance in the understanding of enriching themes
that affect us not only in educational settings, but which make us think
about the role emancipation plays in the society we are building and
living. We understand the radio as a means of powerful dissemination
and awareness about the kind of sex education we hope to build and as
a platform in which we fight to maintain this important dialogue in our
society, which nowadays experiences an unfortunate setback that make
us legitimize even more the importance of the themes related to sexuality
and sex education. In this moment there are 100 participants enrolled in
the Action; the results of this intentional proposal of dialogues about sex
education from a perspective of Sexual Rights as Universal Human
Rights is what we intend to share.
Keywords: Emancipatory Sex Education – Sexual Rights – Colloquium
– Radio
Introdução.
O presente artigo relata a Ação Evento de Extensão XI
Colóquio do Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e Educação
Sexual - Diálogos sobre Sexualidade e Educação Sexual com vistas à
Emancipação: 11 anos do Programa Educação Sexual nas Ondas da
Rádio UDESC, ocorrido nos dias 22, 23 e 24 de outubro de 2018 nas
dependências do campus I da Universidade do Estado de Santa Catarina
- UDESC, organizado pelo grupo de pesquisa Formação de Educadores
e Educação Sexual - EDUSEX - CNPQ/UDESC, liderado pela
professora Dra. Sônia Maria Martins de Melo.
97
O Colóquio se constitui em uma das ações do Programa de
Extensão Formação de Educadores e Educação Sexual: Interfaces com
as tecnologias etapas XI e XII, subsidiado pelos recursos do Edital PAEX
02/2017 da Pró-Reitoria de Extensão da UDESC. Este programa é uma
ação intercentros e em 2018 esteve em sua XI edição. É um evento
gratuito e aberto à ampla participação da comunidade de educadores e
educadoras das redes municipais e estaduais de Florianópolis e Grande
Florianópolis.
Nesse programa, outras duas ações de extensão estão
contempladas, sendo elas: 1. Educação Sexual em Debate nas ondas da
Rádio UDESC e o curso A Educação Sexual Começa na Infância,
desenvolvido gratuitamente em um ambiente online através da
plataforma Moodle; 2. O programa de rádio denominado Educação
Sexual em Debate: nas ondas da rádio UDESC que vai ao ar às sextas-
feiras na Rádio UDESC 100.1 FM, às 10:30 com reprises às quartas
feiras às 23:30 e também na Rádio Comunitária da Pinheira (município
da Grande Florianópolis) nas sextas feiras às 9 horas e sábados às 8:30.
O Programa de Extensão Formação de Educadores e Educação
Sexual: Interfaces com as Tecnologias Etapas XI e XII foi idealizado
pela professora Dra. Sônia Melo, líder do Grupo de Pesquisa Formação
de Educadores e Educação Sexual CNPQ/UDESC. A professora há mais
de 30 anos efetiva ações por meio do Grupo de Pesquisa EDUSEX na
direção de uma educação sexual numa perspectiva emancipatória,
compreendendo que direitos sexuais são direitos humanos universais,
conforme a Declaração dos Direitos Sexuais como Direitos Humanos
Universais. Dessas pesquisas, e da compreensão de educação e
sexualidade adotada por este grupo, promove-se formações continuadas
sobre uma educação sexual emancipatória, consciente e intencional para
professoras e professores das redes públicas de educação e busca-se
compartilhar, por meio de veículos de informação como o rádio e a
internet, os conhecimentos e discussões que envolvem a educação sexual
na perspectiva emancipatória, sobretudo nas circunstâncias sociais-
políticas do atual cenário educativo brasileiro.
98
Em 2018, o evento XI Colóquio esteve voltado para a
celebração dos 11 anos da Ação de Extensão Educação Sexual em
Debate, tendo como título XI - Colóquio do Grupo de Pesquisa Formação
de Educadores e Educação Sexual Diálogos sobre Sexualidade e
Educação Sexual com vistas à Emancipação: 11 anos do Programa
Educação Sexual nas Ondas da Rádio UDESC. Na programação das
mesas e conferências, para o evento, foram convidados/as
entrevistados/as do Programa Educação Sexual em Debate: nas ondas da
rádio UDESC. Dessa maneira, estiveram presentes no evento
pesquisadoras e pesquisadores da educação, professoras de escolas da
rede pública, mestras e doutoras/es em Educação, participantes do
movimento popular feminista e graduandas, todos/as entrevistados/as
nos programas de rádio, pessoas envolvidas com as temáticas da
sexualidade e educação, preocupadas em estreitar o diálogo com a
comunidade e demais profissionais de suas áreas de atuação e estudos.
Estiveram no colóquio cerca de 90 inscritos, sendo por dia
aproximadamente 30 participantes presentes. Os diálogos foram
empolgantes e produtivos, fato que nos possibilita afirmar que
cumprimos com os objetivos traçados para o evento. Outro fato
interessante é que o colóquio contou com a abertura artística teatral feita
por um grupo de estudantes do 3º ano do ensino médio de uma escola da
rede pública, orientado pela Orientadora Educacional Mestre Enemari
Poletti e pela professora Dra. Jaqueline Maria Ramos da Silva, sendo que
a Orientadora Educacional é membro do Grupo de Pesquisa Formação
de Educadores e Educação Sexual – Grupo EDUSEX. Os estudantes
trouxeram para o público uma bela apresentação artística sobre o amor e
o respeito às diferenças.
99
com a dimensão de sua sexualidade e corporeidade com beleza e
inteireza. O que isso significa? Significa ampliar a compreensão da
sexualidade como uma dimensão do humano que somos, livre de
preconceito e de entendimentos que reduzem a sexualidade a um
problema, encarando essa rica dimensão como algo feio, sujo,
promíscuo, apartada da beleza do existir. A educação sexual, na
concepção emancipatória, diz respeito à consciência do corpo como um
todo (sempre sexuado), da própria sexualidade (sempre no entendimento
de que é algo inerente a vida humana), envolvendo questões de gênero,
orientação sexual, biológicas etc. Por isso, a educação sexual também
contempla o respeito aos LGBTQ’s - Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais ou Transgêneros, às prostitutas e aos portadores
do vírus da AIDS (FIGUEIRÓ, 2009), o que permite visualizar e
(co)mover-se pelas minorias, sendo então uma educação das relações
humanas e interpessoais. A educação sexual vê a mesma potência em
todas as pessoas, sem classificá-las por gênero, orientação sexual, etnia
ou classe. Para dar início à uma educação sexual, Maria Ignez Saito e
Marta Miranda Leal nos dão uma dica valiosa:
100
educadoras na compreensão de que enquanto sujeitos sociais e históricos,
ainda precisamos desconstruir mitos e tabus ligados ao entendimento da
sexualidade. Sabedore/as da presença de inúmeros preconceitos nos
espaços educativos, assim como identificamos sentimentos e memórias
negativas dessa dimensão no relato de educadoras e educadores, fruto
de uma sociedade que há séculos condena a sexualidade e a entendem
como ruim, suja, vergonhosa e imoral é que ratificamos a importância de
espaços de diálogo serenos e honestos sobre educação sexual.
Na busca pela efetivação de uma educação sexual
emancipatória temos a clareza de que de um modo geral a educação
sexual, sem consciência e intencionalidade se manifesta muitas vezes
tanto nos espaços educativos formais como nos não-formais. Alertamos
que uma educação sexual informal - não planejada acaba por endossar os
preconceitos, mitos e tabus nos quais já referendamos. É preciso
instaurar o diálogo e intencionalmente abordar temáticas no campo da
sexualidade.
É diante dessas questões da educação que o grupo se preocupa
anualmente na feitura do colóquio sobre educação sexual, cuja XI edição
é o assunto deste artigo.
101
Objetivos
Como já descrito anteriormente, além da intenção de ampliar
os entendimentos acerca das temáticas da sexualidade e educação na
perspectiva de garantia dos Direitos Humanos, o evento objetivou
também a potencialização de práticas intencionais de educação sexual
em uma perspectiva emancipatória integradas ao fazer pedagógico dos
profissionais da educação.
Metodologia
O Evento contou com 01 Conferência de Abertura tratando das
Políticas Públicas para a Educação nos últimos dez anos, inclusa a
BNCC, 06 mesas de debate compostas por participantes entrevistadas/os
pelo Grupo EDUSEX no programa Educação Sexual em Debate: nas
ondas da Rádio UDESC e 01 Roda de Conversa com Líderes de Grupo
de Pesquisa voltados para Sexualidade e a Educação Sexual.
Os diálogos aconteceram num espaço auditório, na forma de
palestras com debates e rodas de conversa.
A mediação das falas foi feita pelas integrantes do grupo, de
modo a não isolar a apresentação do evento a uma só pessoa, mas
envolver cada uma na realização do evento, visto que ele é resultado de
um trabalho feito por todo o Grupo EDUSEX.
A divulgação foi feita através das redes sociais, por meio da
página oficial do evento no site Facebook; do site da universidade, sendo
destaque na página do Centro de Ciências Humanas e da Educação; do
e-mail institucional através do quaa universidade informa a comunidade
acadêmica; da Secretaria de Educação de Florianópolis; de folders
colados em toda parte no campus universitário e através do WhatsApp.
Foi feita em uma plataforma online sendo 100 pessoas inscritas.
Um panorama da programação do evento pode ser vislumbrado
no quadro a seguir:
102
103
Resultados
O evento oportunizou ricos diálogos e trocas significativas no
campo da educação sexual com vistas à emancipação. Envolveu
profissionais comprometidos com as transformações sociais por meio da
educação e da promoção dos Direitos Humanos. E, também contou com
a presença de Grupos de Pesquisa ligados a temática da educação sexual
em Londrina, Tubarão e Ribeirão Preto, das respectivas Instituições de
Ensino Superior: UEL – Universidade Estadual de Londrina, UNISUL –
Universidade do Sul de Santa Catarina e USP – Universidade de São
Paulo.
104
O envolvimento e a participação dos alunos da Escola de Jovens
e Adultos Jacó Anderle, foi de suma importância para o evento,
indicando a extensão universitária no cumprimento da função social de
uma instituição de ensino superior como a UDESC.
Foram feitas pesquisas de satisfação dos ouvintes onde foram
registrados feedbacks positivos e sugestões construtivas ao evento. A
grande maioria se mostrou afetada com as discussões, reiterando a
importância de diálogos acerca da educação sexual e de eventos como o
Colóquio para a disseminação desse conhecimento, além de afirmarem
que estarão presentes em próximos encontros envolvidos com as
temáticas da sexualidade e educação sexual. O XI Colóquio convidou os
participantes a contribuírem com doações de jogos e brinquedos para
crianças de um hospital da Grande Florianópolis e recebeu uma
quantidade significativa de apoio. Os debates foram efetivos e ocuparam
os momentos principais das mesas, onde se notou grande sensibilidade e
desejo pela emancipação humana.
Conclusão
A emancipação humana e a consciência bio-psico-social da
sexualidade é algo que se trabalha em um grande processo de educação,
autoconhecimento e diálogo. Sabemos das circunstâncias sociais e
políticas em que vivemos, e por isso mesmo insistimos na ocorrência de
projetos e ações voltados às referidas temáticas. É um processo
desafiador e um tanto resistente diante das conjunturas políticas, mas os
profissionais da educação estão familiarizados com a resiliência, ou à
flexibilização de suas práticas e fazeres educativos diante de obstáculos
impostos no processo. Não se trata de uma passiva conformação, mas da
persistência no desejo de uma sociedade consciente e emancipada, e na
luta pelos direitos desta mesma sociedade.
Compreendemos com Juçara Teresinha Cabral (1995, p.153)
que “educar o outro é fundar a ação pedagógica acerca da própria
educação [...] o educador ao se apropriar de um conhecimento passa por
105
um processo de autotransformação, o que possibilita a produção e
transmissão de novos conhecimentos”, por isso envidamos esforços na
efetivação de espaços de diálogos sobre uma educação sexual com vistas
à emancipação.
Referências:
CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental.
Campinas, SP: Papirus, 1995.
106
02
MÍDIAS,
SEXUALIDADES E
EDUCAÇÃO
SEXUAL
107
A “CONFISSÃO”: AS POSSIBILIDADES PARA
PENSAR A VIRTUALIDADE DOS CORPOS
108
THE "CONFESSION": THE POSSIBILITIES TO THINK THE
VIRTUALITY OF BODIES
Notas Introdutórias
Este manuscrito insurge de uma inquietação: Como os corpos
fazem-se nas virtualidades? Inquietação que movimenta dois jogos de
significações: os corpos e as virtualidades.
As virtualidades trazidas a cena visto seu olhar contemporâneo:
Estamos em tempos de rede, Encontramo-nos no virtual, Ah mas isso
109
aconteceu na virtualidade... Nunca falou-se tanto do virtual, por
falarmos tanto deste ele atravessa nossos poros do presente. Mas no que
consistiria o virtual? Apenas as redes sociais, as dinâmicas do
ciberespaço? Compreende-se que o difundir de novas tecnologias das
informações e comunicações modificam as dinâmicas, o contato
enunciativo e o narrar com a produção do ciberespaço modula as relações
e as culturas: aparentemente não temos barreiras, aparentemente
podemos nos conectar com mais frequência com aqueles que se
identificam conosco.
É assim que Pierre Levy (1996, 2000) concede o ciberespaço: as
barreiras físicas ruíram, as informações encontram-se a um clique de
distância e, posso selecionar quais destas quero acessar. O tempo agiliza,
a seletividade das informações também, as dinâmicas sociais e
epistêmicas são deslocadas com esta dinâmica acelerada e de
acessibilidade, uma cultura outra passa a vigorar: as ciberculturas.
O meio virtual passa a ser tratado como uma referenciação das
dinâmicas demandadas nos ciberespaços, nas relações ciberculturais,
todavia, a virtualidade é um conceito anterior a essa eventualdiade. Neste
sentido a virtualidade é retomada nas filosofias e colocada em questão
na contemporaneidade, exportam-se conceitos de virtualidade a exemplo
de vertentes Aristotélicas, Agostinianas (LEVY, 1996; NEGROPONTE,
1995), Espinosistas e Niezscheanas (NIETZSCHE, 1974), sendo trazida
a questão O que é virtual?.
A virtualidade assim é arrastada para o seu campo filosófico,
virtual é tomado então como um espaço em que as desorganizações
mantem-se no campo das possibilidades, da caoticidade, o que aproxima-
se de um pensamento dionisíaco – descrito por Friedrich Nietzsche
(1974). Nesse sentido, a virtualidade consiste em o espaço da criação, da
potência, de onde qualquer possibilidade pode-se fazer possível, mas
ainda não se fez. A virtualidade, assim, não se oporia à realidade, mas ao
tempo: O que é virtual é o que não se encontra presente, mas pode se
fazer presentíficavel. O processo da presentificação do virtual consiste
110
no processo de atualização – o que se faz presente é atual, mas pode-se
fazer virtual, novamente.
O processo de presentificação pode ser entendido como um
processo de organização da caoticidade, fazendo-o presente a partir de
um crivo no caos. Para Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997) múltiplas
são as formas de crivar o caos, e a organização faz-se por técnicas, a
exemplo: a arte criva o caos e o organiza pelas sensações, a filosofia por
conceitos, as ciências pelas funcionalidades... A presentificação, via
ordenamento, dá-se por técnicas/tecnologias que possibilitam fazer o
crivo – uma apolínea (NIETZSCHE, 1974).
Tais técnicas e tecnologias consistem em modos de produção,
segundo Michel Foucault (2014a), e podem ser organizadas por seus
efeitos
1. as técnicas de produção por meio das quais nós
podemos produzir, transformar e manipular
objetos; 2. as técnicas de sistemas de signos, que
permitem a utilização dos signos, dos sentidos, dos
símbolos ou da significação; 3. as técnicas de
poder, que determinam a conduta dos indivíduos,
os submetem a alguns fins ou à dominação,
objetivam o sujeito; 4. as técnicas de si, que
permitem aos indivíduos efetuar, sozinhos ou com
a ajuda de outros, pensamentos, suas condutas, seu
modo de ser; transformar-se a fim de atingir certo
estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de
perfeição ou de imortalidade. (FOUCAULT, 2014,
p. 266).
111
operante presentificado tem uma potencialidade: afetar e ser afetado.
Característica de afetação do que é nomeado como corpo.
Os corpos são diversos, são múltiplas suas formas e tentativas de
conceitua-lo. O que reúne esses na categoria corpo!? É algo que se faz
presente, ou seja, é organizado e crivado a partir do caos, tendo a
capacidade de afetar e ser afetado.
Os campos disciplinares disputam e fundam-se sob a noção de
corpo: corpos celestes, corpos cartesianos, corpos do conhecimento,
corpos performáticos, corpos das ciências, corpos das educações, corpos
biológicos, corpos estranhos, corpos do Eu.... Fundamos campos de
saberes em conjunto a noção de corpos que constituímos, assim, nada é
tão disputado quanto a constituição dos corpos.
Neste sentido, compreendendo uma relação direta entre as
virtualidades, o ciberespaço e os corpos, o interesse do questionamento
do qual deriva-se este manuscrito: Como os corpos produzem-se na
virtualidade?
Tal problemática foi levada ao ciberespaço, a um grupo na rede
social facebook que aqui é nomeado (fictício) como Vale dos
Homossexuais, até mesmo pela autoidentificação do grupo com este
nome. O Vale tem dinâmicas específicas, sua própria ecologia – ou seja,
modos dos corpos se produzirem e interagirem – e tem permeabilidade
seletiva a Outros corpos em seu espaço. Suas características como grupo:
a) consideravelmente numeroso, com ondulações em um milhão de
membros; b) busca acolhimento e a faculdade de ouvir, sendo um grupo
fechado e que proíbe vazamento de narrativas desenvolvidas em seu
interior, a fim de preservar a integridade de seus membros e criar um
espaço de reconhecimento e escuta; c) identifica-se como um espaço
aberto as diversidades sexuais, étnico-raciais, regionais e de classe,
atendendo em sua maioria o grupo jovem; d) entende-se como um espaço
de humor não ofensivo; e) organiza-se por eras, de modo que quando os
membros do grupo tornam um espaço de não acolhimento, o mesmo é
arquivado e criado um novo Vale, em uma nova Era; e f) é apresenta
112
constante interação, com uma mediana de mil à mil e quinhentas
publicações por dia.
Neste espaço foram perceptadas, via óptica do diagnóstico do
presente (FOUCAULT, 1986; ARTIÈRES, 2004), em suas dinâmicas a
técnica da confessionalidade como eixo guia dos processos de
corporificação nas virtualidades. A apresentação desta dinâmica de
corporificação na virtualidade via técnicas da confessionalidade é
objetivo deste ensaio.
113
O corpo nesse sentido põe-se a confessar a fim de acessar uma dada
plataforma, de acionar um espaço. A confissão neste sentido modula a
corporificação de si nesse espaço, via movimentos confessionais e
produção de si a medida que se registra: faz-se, pois, é preciso fazer para
interagir com outrem.
Ao adentrar na plataforma da rede social facebook, os
instrumentos são dados: as possibilidades de criar publicações, postagens
que mesclam textos, fotos, vídeos, áudios, figuras animadas e endereços
eletrônicos; de reagir a essas publicações com curtir, amei, haha, uau,
triste e grr; interagir com as publicações por meio de comentários
(apresentando as mesmas características combinatórias das publicações
– ou de compartilhamento das publicações.
Um aparato que convida o corpo a fazer-se à medida que ele
publica: O que está pensando!?
Neste sentido o convite é centrado no situar o corpo à medida
que constitui um determinado pensamento sobre este, ou seja, o corpo
faz-se ao pontuar seu modo de pensar: o que está sentindo, o que gosta,
o que acha que é importante ser enunciado, o que quer compartilhar, o
que quer reagir... O corpo neste sentido não apenas faz-se enquanto
corpo, mas também enquanto subjetividade, enquanto um Eu que se
pontua. O corpo assim criva o caos e se presentifica ao passo que
posiciona um corpo-Eu.
Deste modo o posicionamento dos corpos no ciberespaço,
derivando-se da virtualidade à atualidade, dá-se à medida que o mesmo
constitui uma verdade sobre si e expõe-se como uma subjetividade
autêntica (SIBILIA, 2016). Uma subjetividade autêntica que se efetua ao
curso da produção de uma verdade sobre o corpo-Eu por si mesmo, ou
seja, a medida que este confessa. E confessa por meio de micro contos
de si, à medida que tem seus desejos agenciados ou que agencia o desejo
do Outro (POLIZEL; OLIVEIRA, 2018).
Veja que esta técnica confessional é uma composição que arrasta
consigo resquícios das confessionalidades gregas, medievas e modernas,
114
é uma insurgência atualizada da técnica de confessionalidade no
contemporâneo mediada pelas dinâmicas da cibercultura.
Veja, Michel Foucault (19992; 2014a; 2014c; 2015) aponta que
as técnicas de produção de si a medida que se coloca em narrativa tem
uma história, integra e deriva diferentes modus operante no curso das
acontecimentalidades. Vê-se a exemplo as dinâmicas gregas da produção
de seus atos narrativos, em que instrumentos íntimos eram utilizados no
processo do fazer-se escrito e examinar a si. Os diários íntimos dos
hypomnematas e as cartas aos amigos, de Sêneca, retratam este modus
operante de confissão, algo que era autorizado ao corpo-Eu olhar, ou a
outros corpos que olhariam o corpo-Eu com um reconhecimento amigo.
As narrativas e produções de si davam-se no âmbito privado, revisitados
em processos contínuos de exame e de negociação de si para consigo
mesmo. Não que este processo se desse de modo livre, pelo contrário o
olhar a si e o produzir a si é atravessado pelo coletivo e as significações
movimentadas neste. O exame de si aqui e a corporificação tem como fio
condutor as condutas e os usos dos prazeres.
Os deslocamentos deram-se no período medieval, em que a
narrativa de si passou ao campo de uma episteme cristã: a) Exomologese,
voltada ao reconhecer publicamente a verdade de sua fé cristã,
reconhecendo-se como pecador ou como penitente, marcando seu corpo
à brasa, se necessário – ato teatral de reconhecimento; e b) Exagoreusis,
focalizada na verbalização constante de seus pensamentos e
testemunhos. O ato de confessar é arrastado para o campo do público,
para a constância teatralizada, e para o veredicto do Outro membro da
mesma comunidade para qual se confessa. Um exame centrado no olhar
dos membros de uma mesma religiosidade, publicamente, e da renúncia
de si e dos desejos da carne.
Na modernidade uma modalidade Outra, uma episteme cientifica
dos corpos: são aos especialistas que os corpos-Eu confessarão, serão
analisados e marcados com uma verdade institucionalizada e disciplinar.
As biologias, medicinas, psicologias, pedagogias e economias que agora
passarão a veredictar aquilo que o corpo fala, e que ao falar faz-se. O
115
corpo fala, os especialistas escrevem e legitimam a escrita por meio de
suas especialidades, nesta combinação produz sua confissão.
O que vemos com a inserção das redes sociais é uma hibridização
das distintas formas de confissão. Agora o corpo encontra-se
posicionado, o corpo confessa a si mesmo e a seus amigos próximos, em
sua intimidade, ou ao público que frequenta o mesmo espaço? O corpo
confessa a um especialista, a um padre ou a um vínculo afetivo? O quarto
é público ou privado? Fala de si para se visitar e reorganizar condutas,
seus prazeres, para firmar sua confissão na carne, ou para circunscrever
em um aval de especialistas? Perguntas difíceis de serem respondidas
com as fronteiras criadas, mais difíceis ainda pelo borrar das fronteiras
no tempo contemporâneo. A confissão agora é público-privada, a
amigos-indiferentes, a si-sacerdote-especialista, a prazeres-carnes-
burocratas, à confissão não se mantem apenas em uma esfera, mas deriva
entre as ranhuras deixadas por essas.
Essas hibridizações têm seus efeitos discursivos no ato do corpo
fazer-se: O corpo cria uma verdade sobre si a medida que se narra, e
coloca-se como subjetividade autentica, pronta a ser consumida e julgada
(SIBILIA, 2016). O próprio corpo fazer-se narrado, com veredicto de si,
é seu atestado de verdade. Suas relações dão-se com as três epistemes
anteriores: a) O narrar a si autentico é a possibilidade de se visitar a todo
momento e de ser visitado por amigos que o aconselhará, a rede social
torna-se para alguns um espaço do íntimo, do reconhecimento e
acolhimento; b) O narrar a si autentico é a possibilidade de se expor
constantemente, marcar na carne – e/ou em uma pós-organicidade – e de
sentir-se parte de uma idolatria coletiva que se une para conclamar acerca
de uma entidade em comum; c) O narrar a si autentico é possibilidade de
se veredictar por si mesmo, do tornar-se especialista em si mesmo, do
julgar a própria autenticidade e a autenticidade do Outro – a crise aos
especialistas e a intelectualidade situa-se ai, na interiorização das
estruturas de conhecimento especifico por propagandas continuas e
acesso a informação que faz com que o sujeito sinta-se especializado em
sua superficialidade.
116
Neste sentido o corpo faz a si, à medida que enuncia e escreve a
si, que confessa e ao confessar atesta uma suposta verdade e
autenticidade da própria subjetividade. O corpo produz-se enquanto Eu
assim, ele não é apenas um corpo que se escreve, mas um autor de si
mesmo.
117
tréplicas, quádruplas. As provas são os registros de que aquele corpo ao
menos transitou por aquele espaço e deixou suas marcas.
Os diários íntimos escritos pelos hypomnematas, as cartas a
amigos, os registros pontífices, as marcas na carne, os prontuários
médicos e pedagógicos, o que reúne acontecimentos de confessar-se de
diferentes epistemes: produzem provas e registros de si (FOUCAULT,
1992; 2014a; 2014c). Agora estes são registros deixados para além do
orgânico e da materialidade percebida via tato, estes encontram-se agora
em um banco de dados deixados nas virtualidades. Banco de dados que
os confere o aspecto de prova.
Destarte o corpo faz ao constituir uma verdade sobre si, e deixa
uma prova sobre si no ciberespaço: assim sua confissão opera. Quando
falamos em prova, falamos de uma episteme derivada das ciências –
dentre elas das ciências jurídicas. Tais provas consistem na produção de
uma evidência concreta de que determinado corpo, ou narrativa, são
verdadeiros. Todavia, toda prova pode ser submetida a testes e análises,
afim de considerar sua legitimidade (FOUCAULT, 2005).
Neste sentido, o corpo no ciberespaço faz-se ao deixar seus
rastros: publicações, comentários e/ou reações. E outros corpos
interagem com estes, em relações dinâmicas das quais as verdades são
mantidas ou, ao encontrarem com suas controvérsias derivam-se
transformando em outas. Em tal dinâmica as provas sobre o corpo que se
faz são mantidas, ou modificadas, dando outros sentidos a este.
O corpo que se fez como evidencia e credibilizado por uma
subjetividade autêntica que o assina, cria uma prova sobre si a medida
que confessa e firma sua verdade, mas também interage para manter tal
narrativa e defende-la. Neste tocante o corpo não apenas faz-se confesso,
mas defende a sua confissão em outros atos confessos. Na subjetividade
contemporânea, derivadas das – e nas – relações do ciberespaço, o corpo
constitue-se em verdade e também defende-se enquanto tal (SIBILIA,
2016).
118
O corpo faz-se da virtualidade, e faz-se ao constituir uma
verdade narrativa sobre si, deixar suas marcas e defender a si nas relações
e interações dadas nas plataformas em que o presentificar do corpo se dá.
Tais rastros arrastam consigo uma subjetividade dada como autêntica.
Assim, o corpo não apenas fa-ze, mas faz-se como um corpo e um Eu:
um corpo-Eu.
A produção de um corpo-Eu dá-se na relações de produção de
signos que são assimilados ou não, no posicionar-se enquanto constituído
juntamente com identificações e diferenciações. Identifica-se com aquilo
em que vê consonância, ou seja, naquilo no qual se ve; e diferencia-se
em relação aquilo que se vê dissonante, que não se reconhece ali – ou
que se reconhece em demasia mas busca recalcar, suprimir tal
reconhecimento via a eliminação-negação daquilo que pretende se
diferenciar (SILVA, 2014).
O corpo-Eu ao fazer-se, então se faz: a) Processualmente, ou
seja, está sempre no ato de fazer-se em meio as construções sociais,
culturais e simbólicas; b) Altero, à medida que só é possível fazer-se em
relação ao Outro, nos processos de reconhecimento; e c) Contrastivo, de
modo que ao voltar seu olhar ao Outro e reconhece-lo, opera por
processos de identificação e diferenciação (HALL, 2002; SILVA, 2014).
Assim, o corpo-Eu produz-se ao passo que verdades sobre si são
narradas e evidenciadas, que uma tecnologia do olhar é acionada e
permite o ver ao Outro e ver a si neste quadro de referências dos valores
constituídos. O corpo-Eu ao fazer-se visita ao Outro e revisita a si, e
nestes deslocamentos, reconhece o Outro e a si mesmo. Nos processos
de reconhecimento estes corpos são enfim veridictados, pois não apenas
o processo de confessar e defender é dado, mas um Outro endossa essa
existência como legitima e ocorrente. Esse reconhecimento não é uma
recepção passiva, é um efetuar coletivo, em que um esforço é realizado
nas negociações do reconhecer-se. No próprio silêncio dos corpos-Eu
dados no ciberespaço, muitas vezes o reconhecimento ocorre (BUTLER,
2015).
119
O ato de reconhecimento, e a possibilidade de visitar a si e ao
Outro, de deslocar defesa de si a também defesa – ou ataque – do Outro,
é um processo de cuidado. O cuidado de si apresentado por Michel
Foucault (1992; 2014c) consiste na prática de (auto)exame,
aconselhamentos, e derivas nos modos de existência, afim de garantir
uma continuidade daquele modo de existir. Quando voltamos os olhares
a episteme cristã há a preocupação de renúncia de si, mas do existir em
um outro mundo prometido – a preocupação do corpo-Eu fazer-se em
outra vida e para isso precisar renunciar está. A preocupação moderna
volta-se ao cuidado com a existência de um corpo coletivo, de um corpo-
espécie, afim de garantir sua existência. A preocupação contemporânea
volta-se a garantia da existência de um corpo que se faz, se vê – mesmo
que nos olhos do Outro – e se admira, envolvendo o cuidado do corpo-
Eu que se faz no aqui e agora. Corpos que se fazem, e no processo de
reconhecimento e alteridade, cuidam de si.
Vê-se a exemplo redes sociais que são buscadas como forma de
encontro com outros corpos-Eu semelhantes, nas buscar por dividirem
suas angustias e aconselhamentos, no investimento por identificações..
Procuram nas plataformas virtuais reconhecimento dos Outros,
reconhecimento de si e espaços de acolhimento que garantam a
manutenção de sua existência.
Considerações corporificadas...
Evidencia-se a tecnologia da confissão, recalibrada na
contemporaneidade como modo do corpo fazer-se na virtualidade.
Tecnologia modulada pelas próprias ferramentas dadas pelas
plataformas virtuais, nas redes sociais. Vê-se um estimulo na produção
de narrativas sobre si, e neste ato o atestado de que a confissão é um
modo da produção de relatos autênticos e representacionais sobre os
corpos: que o insere em um espaço-tempo, em dinâmicas experiênciais.
O corpo nesse sentido confessa-se, e produz assim uma narrativa
de verdade compartilhada com uma comunidade que tem acesso a esta,
uma marca, um rastro do corpo que por ali passou e se fez. Esta produção
120
de verdade é visitada, e representa uma evidência do corpo e de sua
subjetividade. Ao ser (re)visitada, é colocada em teste, em
questionamento, na interação com outros corpos, e assim convidada a
defender-se nos tribunais virtuais como uma subjetividade autêntica.
Nos processos de encontro dos corpos, que se fazem e defende-
se no júri popular, a céu aberto, as identificações e diferenciações são
colocadas em proximidade – mesmo que tal proximidade seja produção
de modos outros de se relacionar com o espaço-tempo, via fluxos
informacionais. Nestes (des)encontros das identidades e diferenças, o
corpo-Eu se produz processualmente, alteramente e contrastivamente. O
corpo-Eu nestes processos os reconhecem, e nos reconhecimentos uma
possibilidade de um desenvolvimento de cuidados de si e dos Outros.
Tais reconhecimentos e cuidados não são recepções passivais, mas
efetuações negociadas, na busca pela manutenção das existências e de
modos outros de existir. Na reiteração ou contestação das normas em que
os corpos fazem-se.
Referências
ARTIÈRES, Philippe. Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em
Michel Foucault. In: GRÓS, Frédéric. Foucault: a coragem da verdade.
São Paulo: Parábola Editorial, 2004, p. 15-38
121
__________. As verdades e as formas jurídicas. 3 ed. Rio de Janeiro:
NAU, 2005.
122
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença.
In: __________. (Orgs) Identidade e diferença: a perspectiva dos
Estudos Culturais. 15 ed. Petrópolis-RJ: Autêntica, 2014, p. 73-102
123
ADOLESCÊNCIA E “13 REASONS WHY”: UMA ANÁLISE DO
SERIADO E SEU DISCURSO A PARTIR DAS TEMÁTICAS
SEXUALIDADE E SUICÍDIO
Este artigo tem como objetivo investigar entre o seriado “13 Reasons
Why”, o adolescente e as questões sexuais que circulam em torno da
temática suicídio, a partir do que é disposto visivelmente ao adolescente,
que o recebe. O questionamento que circula este estudo, compete em qual
o tipo de discurso que é transmitido pelo seriado “13 Reasons Why”, em
sua fala sobre sexualidade e suicídio, na intersecção com o adolescente,
a partir de verdades que incutem saberes e poderes, desdobrando seu o
olhar para este pensamento na adolescência. Desta forma, o mesmo
apresenta um desdobramento metodológico, proporcionando a pesquisa
bibliográfica associada a análise do discurso perante essa obra
audiovisual, tratando de uma análise com o olhar transversal, na coleta
de “verdades” disseminadas sobre a sexualidade, educação, adolescência
e suicídio. Esta análise também usufrui de um referencial teórico
respaldado com os discursos foucaultianos, com a intenção de colaborar
para elaboração de um conhecimento favorável aos vínculos
educacionais e orientar o pensamento, comportamento do sujeito
adolescente sobre os fragmentos imagéticos deste seriado, que aborda de
forma impactante as narrativas do suicídio, sexualidade, adolescência e
educação. Com este parecer, os elementos apresentados nesta série
podem influenciar os adolescentes através de suas imagens, movimentos,
linguagens, verdades e discursos a partir de um legado de porquês
deixados por uma jovem suicida que assinala justificativas para tal ato.
Palavras-chave: Adolescência. Seriado. Sexualidade. Suicídio.
124
ADOLESCENCE AND “13 REASONS WHY”: AN ANALYSIS OF
THE SERIES AND ITS DISCOURSE FROM THE THEMES
SEXUALITY AND SUICIDE
This article aims to investigate between the series "13 Reasons Why", the
adolescent and the sexual issues that circulate around the subject
suicide, from what is visibly disposed to the adolescent, who receives it.
The question that circulates in this study competes in which type of
discourse that is transmitted by the series "13 Reasons Why", in its talk
about sexuality and suicide, at the intersection with the adolescent, from
truths that instill knowledge and powers, unfolding its the look to the teen
guy's thinking. In this way, it presents a methodological unfolding,
providing the bibliographical research associated with the analysis of
the discourse before this audiovisual work, dealing with an analysis with
the transversal view, in the collection of disseminated "truths" about
sexuality, education, adolescence and suicide. This analysis also uses a
theoretical framework supported by the Foucaultian discourses, with the
intention of collaborating to elaborate a knowledge favorable to the
educational links and to orient the thought, behavior of the adolescent
subject on the imaginary fragments of this series, that approaches in a
striking way the narratives of suicide, sexuality, adolescence and
education. With this opinion, the elements presented in this series can
influence adolescents through their images, movements, languages,
truths and speeches from a legacy of whys left by a suicidal young woman
who points out justifications for such an act.
Key words: Adolescence. Series. Sexuality. Suicide.
Enquadramento teórico
Em toda humanidade, não é estranho pensar em relação a sua
morte, como a sua vida chegará na completude e como a mesma
terminará, provocando então, o acontecimento chamado morte.
O seu humano, no decorrer de sua vida, transmite pensamentos
que entrelaçam sua morte, como será, sua forma, quando e onde,
constituindo então, idealização e espaços que remetem ao seu
acabamento. Nesse encontro, o suicídio, aparece de maneira autoritária
125
e direcionada no que diz a sua própria morte, estipulando seus limites,
autoconhecimento e ideações suicidas.
Destarte, a ideação suicida é estabelecida por Fogaca (2018)
como algo construído por um meio que a vítima pratica atos com o
desígnio de dar fim a sua própria existência, almejando o êxito e
efetivando a sua morte como uma vontade própria.
Com este parecer, a temática sobre o suicídio, está sendo
articulada por diversas produções cinematográficas, televisivas e
literárias, tornando-se de forma responsável e discursivo, disposições e
elementos contributivos na sociedade para questionamentos diante da
morte, incluindo a condição da ideação suicida.
Com o olhar direcionado para a temática sobre suicídio, mídia e
adolescência, analisamos de modo discursivo o seriado “13 Reasons
Why”, que se origino a partir da livro de Jay Asher (2009), sendo está
obra adaptada para a televisão.
Essa série norte-americana, vem sendo apresentada pela mídia
brasileira, pelo qual sua primeira temporada foi disponibilizada em 31 de
março de 2017 pela plataforma de streaming, a famosa Netflix, que se
faz presente na vida dos jovens brasileiros. A série apresenta uma
disposição de por quês e causas da adolescente Hannah Baker praticar a
morte autoprovocada.
No entanto, é de conhecimento que o suicídio se condiz como
um problema de saúde pública. Assim, o suicídio é um tema que
transborda por mitos e crenças elencadas na e pela sociedade. Com os
apontamentos que direcionam sobre as circunstâncias que levaram tal
sujeito a cometer tal ato e, também pensamentos sobre o que acontece
com o invidividuo suicida após cometer este ato, envolvendo, crenças,
diálogos, e religiões.
“13 Reasons Why”, também infringi várias regras dispostas pela
OMS (Organização Mundial de Saúde), que proporciona consentimentos
sobre “A prevenção do suicídio: Um manual para profissionais da
mídia”, advertindo normas e orientações que ajudam os profissionais da
126
mídia a tratarem o tema suicídio, indicando a não propagação e
incentivos ao suicídio através da mídia.
Com este parecer, retiramos a visão míope que muitos têm na
sociedade e abrimos o olhar para uma amplitude dos contextos que essa
série transmite, diante de uma análise discursiva.
Assim, essa pesquisa tem como objetivo investigar entre o
seriado “13 Reasons Why”, o adolescente e as questões sexuais que
circulam em torno da temática suicídio, a partir do que é disposto
visivelmente ao adolescente, que o recebe.
O questionamento que circula este estudo, compete em qual o
tipo de discurso que é transmitido pelo seriado “13 Reasons Why”, em
sua fala sobre sexualidade e suicídio, na intersecção com o adolescente,
a partir de verdades que incutem saberes e poderes, desdobrando seu o
olhar para o pensamento do sujeito adolescente.
Método
Este estudo apresenta um desdobramento metodológico,
proporcionando a pesquisa bibliográfica e documental, associada a
análise do discurso perante essa obra audiovisual, tratando de uma
análise com o olhar transversal, na coleta de “verdades” disseminadas
sobre a sexualidade, educação, adolescência e suicídio.
Esse procedimento tem a intenção de colaborar para elaboração
de um conhecimento favorável aos vínculos educacionais e orientar o
pensamento, comportamento do sujeito adolescente sobre os fragmentos
imagéticos deste seriado, que aborda de forma impactante as narrativas
do suicídio, sexualidade, adolescência e educação.
Diante deste olhar, o estudo parte da leitura de textos voltados
ao assunto e assimilação das entrelinhas articuladas no seriado, focando
no modo que essa sexualidade é transmitida e associada ao adolescente,
olhando as construções sociais e trazendo a pertinência do tema suicídio.
Assim, dispondo para que o respaldo teórico seja fortificado de forma
primordial, apresentando o discurso, diálogo e verdades incutidas neste
seriado que se expandem nas paredes escolares.
127
Contudo, este trabalho contempla em diversos momentos do
pensamento foucaultiano, conferindo por meio de contextos e teorias
essências a contribuir para uma melhor análise discursiva, assim como,
compreensão, entendimento e visão que cerca os pontos, gerando
embasamento e sustento no diálogo que remete ao seriado, a sexualidade,
a educação, a adolescência e o suicídio.
A seguir, começamos um diálogo e olhar de maneira transversal
sobre os enredos, discursos e verdades dispostas nos vários fragmentos
que a série dissemina.
128
e adolescência. Atribuímos de forma essencial, uma breve alusão sobre
a ideologia e narrativa que é circulada a história de “13 Reasons Why”.
A narrativa começa quando Clay Jensen encontra um pacote de
fitas cassetes deixadas por Hannah Baker à sua porta um dia em que ele
retorna casa da escola. Este fato se passa já semanas seguintes após o
suicídio de Hannah.
A personagem era sua colega de classe, mas também a garota
que ele amava muito. Neste momento, a história da série começa nas fitas
que são narras pela própria Hannah. Os capítulos vão se desenvolvendo
conforma Clay vai ouvindo-as, no total são sete fitas e cada uma
contempla lado A e B, gerando no total treze episódios, trezes por quês.
Nas fitas, Hannah relembra as coisas que os dois fizeram juntos,
revelando também seus segredos e desesperos em buscar ajuda e todos
se demonstrarem omissos, sua voz sufocada dá espaço para uma
sustentação de justificativas que fizeram a praticar a morte
autoprovocada. Ela descreve as coisas que aconteceram e que a fez
desistir da esperança diante do ambiente pelo qual convivia.
São treze razões pelas quais é uma narrativa triste, sufocante,
preocupante e forte em quesitos emocionais, revelando o lado mais
sombrio do comportamento humano e dialogando questionamentos da
adolescência, suicídio, sexualidade e relacionamentos. Com o intuito de
quebrar o silêncio sobre o suicídio na sociedade e provocando a reflexão
o modo como as pessoas tratam uns aos outros e lidam com a vida e seus
problemas.
Neste encontro, personagens são um elemento importante na
narrativa da série, pois a eles são atribuídas as circunstâncias das treze
razões. Há um número considerável de sujeitos participantes do círculo
do suicídio autoprovocado de Hannah Beker, sendo cada um destes
aferindo a um impacto na vida da mesma. A seguir, apresentamos os
personagens que circularam de forma oriunda as principais razões pelas
quais Hannah cometeu o suicídio.
129
Caracterização dos personagens de “13 Reasons Why” – Modelo adaptado de
(Fung, 2009)
Fonte:
http://student.thestandard.com.hk/liberal/PDF/s/file_20090901164516070554.pdf
Com este parecer, sabemos que Hannah não optou pela melhor
maneira de segurar e lidar com seus problemas. A personagem idealizou
uma fuga por meio do suicídio, culpando sua infelicidade em pessoas ou
contextos. Porém, sua história contempla o pensamento que se
colocarmos no lugar dos outros, teríamos a capacidade de evitar
conflitos, incompreensões e até mesmo suicídios.
130
familiar, bem como separação ou morte parental, contextos de abuso
físico ou sexual, transtornos familiares e interpessoais, bullying. Já os
fatores psiquiátricos/psicológicos, circulam em transtornos mentais
(depressão, ansiedade, déficit e hiperatividade), consumo excessivo de
álcool e drogas, baixa autoestima, desesperança.
Com estas verdades, sabemos que várias destas também se
enquadram na moldura e no discurso que a série expõe diante dos olhos
do adolescente, buscando por identificações, assimilações, acolhendo e
orientando o adolescente sobre o seu sentimento e pensamento.
Para Baronas (2006), na sociedade atual, como forma
multimidiática, é necessário compreender o discurso e sua função e
disposição para com a mídia como uma configuração de produção,
captação, recepção e circulação de saberes e poderes.
Como a base teórica deste estudo, contemplamos a Análise do
Discurso na ótica de Foucault, encontrando neste olhar as regularidades
discursivas, os recursos de linguagem imagética, tal como os sentidos
que se encontram camuflados nas cenas e vozes que transmitem verdades
sobre o abuso/violência sexual, questões sobre gênero e sexualidade.
No encontro de dialogar a série como um dispositivo de poder
midiático as raízes da adolescência que se encontra em processo de
formação escolar, cultural e também conhecimento sexual. Dispomos do
olhar para o discurso produzido por “13 Reasons Why” na luz da voz
foucaultina, entrelaçando por intermédio de vosso pensamento, uma
disposição de poderes, saberes e perigos, junto da força de eventos
incontroláveis articulados na trama, bem como o ocultismo das forças
verídicas que disseminam o círculo social, atribuindo evidencias a
fragmentos internos e externos.
Com este parecer, focamos nossa análise para a série diante de
uma ordem discursiva através da conferencia da palavra, ou seja, o tabu
do objeto. Essa trama demonstra o suicídio de uma forma transversal e
justificada aos olhos da personagem, dispondo das razões para que
fizesse a cometer tal ato e, quebrando o silêncio que sufocava o tema
suicídio na sociedade.
131
A série também rompe tabus sobre o abuso e violência sexual,
em modo de não se calar e expor as consequências e fragilidades da
vítima, interpondo os transtornos psicológicos que a vítima pode aderir
após este acontecimento, bem como a morte autoprovocada. Momentos
e cenas bem difíceis de serem visualizadas e assimiladas no decorrer da
narrativa, como imagens de estupro e omissão por parte de terceiros.
A trama também passa por caminhos que correspondem a
sexualidade, preconceito e aceitação, em termos de gênero e orientação
sexual, demonstrando de forma clara as marcas carregadas pelo
adolescente que convive com essa questão.
Em verdade, o discurso se afere entre a língua e o mundo, entre
um indivíduo e o seu interlocutor, sendo neste momento que se confere
“a ordem do discurso”. Para tanto, o objeto de estudo neste caso, traça
pontos em que os temas midiáticos (seriado), adolescência, suicídio,
sexualidade e escola, se encontram e desencontram no decorrer da trama,
com o foco na ordem discursiva e verdades.
Então, focamos essa discussão para o que a série emana por meio
de suas verdades, vozes, pensamentos e ideologias acerca do tema
suicídio e sexualidade na adolescência.
Com isto, a ordem discursiva da série é debatida “[...] uma vez
que a própria personagem descreve seu suicídio enquanto resultado de
uma série de práticas capazes de inviabilizar a existência humana
pautada por uma situação de dor coletivamente construída em seu micro
espaço de convivência social.” (FOGACA, 2018, p. 114).
Em outra concepção, a relação do indivíduo, os adolescentes,
com o outro, sendo este a série abordada, isto afere a um indivíduo e o
seu interlocutor, se conferindo neste momento uma ordem discursiva,
que deve em ser dialogada e averiguada sobre quais verdades são
produzidas na e pela trama, circulando os saberes e poderes.
Entretanto, o poder não é uma coisa, é uma prática social, o que
existe são práticas de relação de poder, há uma produção do gesto, do
corpo, sendo assim, o poder se exerce não se possui. Aos olhos de
Foucault (2001), pode-se pensar que não existe verdade fora do poder.
132
Portanto ao conceber essa verdade, concebe também o poder que dela
emana.
No entanto, não é a produção de quaisquer verdades, mas são em
especial aquelas que produzem subjetividades, a fim de “fabricar” um
tipo de sujeito moldado, onde se percebe o poder incutido na moldura de
concepções e personalidades.
Destarte, o sujeito adolescente se identifica com a mídia, ele
encontra neste contexto o seu "eu", a sua subjetividade, sua identificação,
enxerga no enredo midiático um acolhimento instantâneo, que vai se
moldando no decorrer do tempo.
Para Foucault (2011), o poder, em síntese, é algo que se exerce,
desdobra, envolvendo táticas, estratégias e manobras, emergindo num
lugar e tempo dados, entrelaçando que o exercício que remete ao poder
constitui-se em administrar condutas. O autor ainda confere que o saber
como um instrumento de poder, consistindo em instrumentos reais da
constituição e acumulação do saber.
Em verdade, neste momento, articulamos algumas das possíveis
verdades de modo analítico e colaborativo nas vertentes que a série
transmite, sem a pretensão de tornar este estudo algo que se esgote, mas
sim que se transborde, abrindo também para novas possibilidades ao
olhar de cada sujeito que visualiza essa trama, obtendo percepções e
analises muitas vezes subjetivas.
Assim, concebemos a seguir uma teia de “verdades”, que podem
representar aspectos negativos e/ou positivos, mas elencadas aqui estão
algumas das narrativas que “13 Reasons Why” impulsiona.
A série articula uma exibição e aflição social, diante do ato
suicida e conduta na adolescência. Desta forma, a série transmite o
suicídio como uma ruptura do silêncio sobre o assunto na mídia,
sociedade e ambiente escolar.
A falta do diálogo, interpondo o suicídio, de forma trágica, mas
evidente na sociedade. O suicídio como superação do sofrimento da vida
da personagem, sendo esta declinada pelo seu círculo social. O olhar
133
sobre as vítimas que praticam a morte autoprovocada, não procurando
um auxílio e ajuda necessária para o momento.
Com o impulso do seriado, a temática sobre sexualidade e
suicídio tomou forma e passou a ser mais discutida no âmbito social.
Nasce um sentimento de solidariedade e empatia por aqueles sujeitos que
tem o pensamento suicida.
Amplitude da família e escola acerca dos assuntos que circulam
a sexualidade, bem como um direcionamento da essência escolar e
familiar sobre a conduta do sujeito na adolescência. A prevenção e
informação se dispondo pelo diálogo aberto sobre o assunto na
sociedade.
Em outra vertente, o sofrimento da vítima do bullying,
abuso/violência sexual e preconceitos, geram passos para um possível
suicídio. A falha escolar por meio de sua omissão perante os
acontecimentos.
Algumas pessoas articulam vertentes diferentes sobre a
influência da séria diante do suicídio, umas apontam como uma ideação
suicida e outras, como um apoio e incentivo a buscar a ajuda.
Em várias faces, a série articula o cyberbullying como uma
disposição a praticar a morte autoprovocada e ao mesmo tempo, um
pensamento reflexivo sobre o tema.
Como resulto de sua dor e sofrimento constituídos em seu meio
social, Hannah decide narrar e justificar por meio das fitas cassetes seu
ato, articulando de forma clara o suicídio como uma forma de poder e
saber.
Com as várias verdades articuladas pela série, dispomos algumas
vozes e direções para o qual a série inclina, relacionando de maneira
conscientizada e reflexiva, bem como a intenção de orientar a escola,
sociedade e família. No encontro sobre o que os adolescentes estão
aderindo ao visualizar essa trama, entrelaçando muitas vezes por meio
das vozes que a série fala, um sofrimento que talvez não seja
compreendido.
134
Entretanto, assim como nas fitas cassetes apresentadas existem
lado A e B, aqui também relacionamos outro lado da narrativa. De acordo
com o site ESTADÃO (2017), a série resultou em algo positivo. Após
seu lançamento, ocorreu um aumento de 445% no número de e-mails de
pessoas aderindo a ajuda ao Centro de Valorização da Vida (CVV), bem
como elevação de 170% na contagem dos visitantes do site. Com isto,
houve uma ampla repercussão sobre o assunto nas redes sociais,
dispondo sua influência de forma negativa e positiva. Portanto, torna-se
perceptível que as pessoas que assistem a série, acreditam que ela
influência de modo positivo. (BARBOSA et. al. 2018, p. 473).
135
Com este olhar, a série idealiza que é melhor demonstrar,
debater, dialogar e falar sobre o assunto do que permanecer no silêncio,
constatando que apesar de ser demonstrado em uma obra fictícia, essas
cenas fazem parte da realidade da sociedade.
Com isso, podemos visualizar um aspecto considerável em
relação ao impacto da série perante um compasso dinâmico entre os
adolescentes e seus familiares, considerando que essa temática passou a
ser incluída na narrativa familiar e social, desmembrando o silêncio antes
instaurado. Além deste contexto, emerge um sentimento de solidariedade
e empatia com aqueles que se encontram em situações similares, sendo
estes, vítimas de bullying, depressão, abuso e violência sexual
(FOGACA, 2018).
A série vem de encontro com uma transmissão de contextos
antes silenciados na família, a fim de discutir esses assuntos de forma
emergencial e como percussora de uma possível conscientização e
prevenção, contribuindo para um diálogo favorável sobre a sexualidade
no círculo familiar, social e escolar.
Este contexto, deve implicar no maior acompanhamento e
direcionamento por parte do núcleo familiar e dos aspectos sociais que
circulam o jovem, contribuindo para a eliminação de quaisquer agravos
inerentes à saúde emocional, assim como a integridade física deste
sujeitos (FOGACA, 2018).
Em outra vertente, a força do cyberbullying exposta na série,
também é algo agravante para a morte de Hannah. Este enredo é
transmitido, entrelaçando a sexualidade da personagem e apontada pelos
personagens.
A sexualidade de Hannah é colocada em pauta na internet, seja
como um beijo gay ou na exposição de seu corpo, gerando firmamentos
de que ela seja uma garota promiscua (BARBOSA et. al., 2018).
Este declínio de informações geradas por meio de cyberbullying
e circulando a exposição da sexualidade de Hannah, é visualizada pela
personagem como mais uma motivação que a faz cometer o suicídio.
136
A discrepância e intolerância dos personagens em disseminar o
ódio pela diferença ou exposição sexual de Hannah perante os demais,
gera conflitos em seu psicológico, pelo qual diversas vezes a
personagens articula transtornos e dificuldades em assimilar de forma
mais racional e sensata o que está ocorrendo ou como deve conduzir a
situação, sendo este enredo também um dos fatores agravantes que a faz
declinar para a ideação suicida.
Destarte, a sexualidade está entrelaçada de forma explicita com
a ideação suicida da personagem, colocando em pauta os apontamentos,
julgamentos e o ato de denegrir a imagem do sujeito devido a sua
sexualidade, vinculando também o cyberbullying como um condutor
dessas vozes, incutindo em Hannah aspectos de sofrimento emocional,
dúvidas, transtornos psicológicos e a morte.
Considerações finais
Com as possibilidades, discursos, poderes e saberes que “13
Reasons Why” transmite ao público adolescente, torna-se visível a
identificação que este mesmo público tem com a produção audiovisual,
abraçando o comportamento do sujeito na adolescência e por meio de
sua narrativa compreendendo-o com seu pensamento.
Diante dos estudos aqui dialogados, declaramos que alcançamos
o objetivo proposto, investigando a série com o adolescente diante das
questões sexuais que circulam em torno do assunto suicídio, dispondo de
visões e discursos sobre o assunto. Com a disposição de um encontro nos
contextos disseminados pela série e principalmente pela voz da
personagem Hannah Baker.
Com este parecer, o foco deste estudo visa em transbordar o
diálogo, não pretendemos esgotar o olhar sobre esse assunto e chegar ao
ponto final, mas sim de colocar uma vírgula e disseminar o
conhecimento, sentimento e orientações que possam ajudar/colaborar
com o sujeito adolescente e o campus educacional.
Com este olhar analítico, deixamos assim, um pensamento de
reflexão e conscientização acerca do assunto, direcionando para
137
possíveis contribuições e diálogos que fazem refletir a Educação Sexual
e a ideação suicida no campus escolar.
Referências
ASHER, Jay. Os 13 porquês. Tradução de José Augusto Lemos. São
Paulo: Ática, 2009.
138
FUNG, Sam. 13 Reasons Why In: The Student Standard. Books x
SBA - September 2009. Disponível em: <
http://student.thestandard.com.hk/liberal/PDF/s/file_200909011645160
70554.pdf>. Acesso em 01 out. 2018.
139
AIDS E LINGUAGEM: A METAFORIZAÇÃO
DA DOENÇA E SUAS IMPLICAÇÕES NA
“MORTE ANUNCIADA” DE CAZUZA NA
REVISTA VEJA
140
Many diseases are categorized from war metaphors. This happened to
some illness like tuberculosis, cancer and, posteriorly, Aids. Although it
may seem not significant, the use of war metaphors, regarding the
diseases, can bring serious social consequences, as the stigmatization of
the illness and the sick person. Therefore, this scientific paper focus on
analyzing the use of these metaphors regarding to Aids. Based on
Sontag’s book, Aids and its metaphors (2007), the paper has as research
object the polemic article A victim of Aids agonizes in public square,
about the Brazilian singer and songwriter Cazuza, published at Veja
magazine in April 26, 1989, and intends to answer the following
question: how the militar metaphorization of Aids, pointed out by Sontag,
is presented in the article about the singer Cazuza at Veja magazine?
For the study, the method used is the content analysis, based on Bardin
(1977) and Sontag (2007) writings. As a result, it is observed the intense
use of war metaphors in the analyzed article and, because of it, the
consequences to Cazuza’s life, such as his announced social death.
Key-words: Aids; metaphors; Cazuza; Veja magazine.
Enquadramento teórico
De acordo com O livro dos símbolos (2012), a enfermidade é
interpretada de maneiras variadas pelas diferentes culturas e povos
espalhados pelo globo. Entretanto, de maneira geral, e principalmente no
Ocidente, a doença é vista como um mal, algo que antecede e está
estritamente relacionado à morte, assim como Sontag (2007, p. 95)
afirma: é “[...] demasiadamente forte a associação entre doença e morte”.
Dentre as várias doenças que já assolaram a civilização ao longo
da história, a Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), causada
pelo HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), tornou-se pandêmica na
década de 1980 e matou milhões de pessoas desde então. De acordo com
dados da Unaids (2018), 77,3 milhões de pessoas foram infectadas pelo
vírus HIV até 2017, o que acarretou em 35,4 milhões de mortes. Em
decorrência da epidemia e da gravidade da, até então, nova enfermidade,
Soares (2001, p. 11) fala que a Aids tirou do câncer o título de “mal do
141
século” e que, possivelmente, poderia vir a ser considerada o “mal do
milênio” e, não obstante, “o maior mal da história da humanidade até
hoje”.
No início da epidemia, os estudiosos nada sabiam sobre a nova
doença: formas de contágio, vírus, práticas de risco, entre outras
características e dados. O único fator que indicava uma possível nova
doença era a semelhança dos quadros clínicos das vítimas: todas as
mortes eram causadas por patologias oportunistas, que até então não
eram suficientes para levar uma pessoa adulta e relativamente saudável
à morte. Como a maioria dos casos da doença naquela época foi descrita
entre homens homossexuais e usuários de drogas intravenosas, Soares
(2001, p. 23) afirma que os pesquisadores começaram a supor que “[...]
algum tipo de microorganismo fosse o agente etiológico da doença, que
seria transmitida por contato sexual ou por sangue contaminado”.
A primeira descoberta significativa sobre a Aids só aconteceu
em 1983, quando a pesquisadora Françoise Barré-Sinoussi e o
pesquisador Jean-Claude Chermann, liderados por Luc Montagnier,
analisaram a biópsia de um linfonodo retirado de um determinado
paciente norte-americano, no Instituto Pasteur de Paris. Com o
isolamento do vírus, foi possível determinar a causa da Aids, o chamado
HIV.
Em 1986, a mesma equipe do Instituto Pasteur isolou um outro
vírus, diferente do primeiro analisado. O novo microrganismo, que
também causava a Aids, era proveniente de pacientes de Guiné-Bissau,
na África. Depois disso, e como afirma Soares (2001, p. 24), os dois vírus
descobertos foram chamados de HIV-1 (isolado em 1983) e HIV-2
(isolado em 1986).
Com essas descobertas e o crescente número e diversificação de
pacientes que apresentavam a doença, conclui-se que a Aids poderia
infectar pessoas de qualquer cor, gênero e orientação sexual. Além disso,
as pesquisas mostraram como era possível contrair a doença: por meio
do sexo desprotegido, uma vez que há contato com sangue e fluídos
142
corporais; do compartilhamento de seringas; da transfusão de sangue; de
acidentes com objetos perfurocortantes; pelo parto e pela amamentação.
Com a descoberta dos meios de transmissão e com a consciência
de que a Aids não atingia somente homossexuais e, portanto, não poderia
ser denominada “câncer gay”, os pacientes começaram a ser segregados
de acordo com a forma de infecção. Pessoas que contraíram o vírus por
meio de transfusões de sangue, como hemofílicos e crianças, eram vistas
como vítimas inocentes. Já usuários de drogas intravenosas e
homossexuais eram potenciais vítimas culpadas, que estavam doentes
porque precisavam ser castigadas de alguma forma por seus hábitos. Para
Sontag (2007, p. 52), essa diferença ocorre porque “toda sociedade, ao
que parece, precisa identificar uma determinada doença como o próprio
mal, uma doença que torne culpadas as suas ‘vítimas’ [...]”.
Essa visão sobre a Aids influenciou a maneira como a mídia
abordou a doença. Muitos veículos, nacionais e internacionais, após a
superação do termo “grupos de risco”, passaram a tratar sobre os
comportamentos de risco. Com base nesses comportamentos, a mídia
conseguia segregar as formas de contágio da doença e,
consequentemente, definir como determinado paciente seria tratado.
Segundo Lima (2000, p. 4), a Aids é uma doença com “um terreno fértil
de metáforas médicas, políticas, religiosas [...] e de discriminação e
estigmatização, constituindo-se, também numa questão aberta a uma
discussão sob a perspectiva do discurso-comportamento politicamente
correto”.
Conforme explica Thompson (1990), a mídia pode ser entendida
como um sistema cultural complexo que envolve duas dimensões: uma
simbólica e outra contextual. Desse modo, no começo da epidemia de
Aids, segundo Spink, Medrado, Menegon, Lyra e Lima (2001), a mídia
contribuiu significativamente para a construção do repertório da doença.
Segundo estes autores, a mídia foi responsável por fazer a Aids
existir na sociedade com todos os preconceitos e estigmas conhecidos.
De acordo com Sontag (2007), todas as doenças são pensadas de
forma metafórica. Com a Aids não foi diferente. Entretanto, a autora
143
ressalta que o uso de algumas metáforas, especialmente as palavras
trazidas de um contexto de guerra para falar sobre doenças (combate,
luta, inimigo, derrota, por exemplo), contribuem para a estigmatização
da doença e do doente.
Neste sentido, Mann et al. (1996, p. 173) dizem que
144
exemplo, os doentes são transformados em vítimas, mas vítimas que nem
sempre são inocentes.
Com a Aids, o modo de contágio determinava se uma vítima
seria tratada como inocente ou culpada: se era homossexual, profissional
do sexo ou usuária de drogas, era vítima culpada; se era hemofílica ou
criança, era inocente. Essa narrativa, que foi fomentada pelo uso das
metáforas militares que se referiam à Aids como uma praga, dividiu a
sociedade, como apontado por Sontag (2007): potenciais transmissores
da doença eram vistos como inimigos da chamada sociedade em geral.
Exemplos dessa linguagem que culpabilizava as vítimas da
doença podem ser vistos em todo o mundo, principalmente no início da
epidemia. Segundo Biancarelli (1997, p. 137-147, grifo nosso), “a
imprensa imprimiu um caráter sensacionalista à epidemia, chegando a
chamá-la de peste gay”. Outro exemplo, este objeto central deste artigo,
é a reportagem de capa da revista Veja de 26 de abril de 1989, estampada
por uma foto de Cazuza com Aids. A foto é tão chocante quanto a
manchete: “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”.
Sobre a capa da Veja, Ribeiro (2017, recurso eletrônico) afirma
que
145
A pergunta que rege esta pesquisa é a seguinte: como a
metaforização militar da Aids, apontada por Sontag, apresenta-se na
reportagem sobre o cantor Cazuza, publicada na revista Veja de 26 de
abril de 1989? O objetivo é analisar a utilização de metáforas referentes
à Aids, especialmente as que foram retiradas do campo semântico bélico,
e os efeitos de sentido produzidos por elas.
Método
Para responder à pergunta citada acima, a metodologia se ampara
em uma análise de conteúdo, especialmente semântico e linguístico, com
base em um cruzamento dos estudos de Bardin (1977) e Sontag (2007).
Segundo Bardin (1977), as fases da análise de conteúdo são
organizadas em torno de três polos cronológicos: a pré-análise, a
exploração do material e o tratamento dos resultados, as inferências e as
interpretações. Na fase de pré-análise, que pode ser definida como a fase
da organização, existem três missões: escolher os documentos que serão
analisados, formular hipóteses e elaborar indicadores que vão
fundamentar a interpretação final. No caso desta pesquisa, o documento
analisado é a reportagem de capa da edição de 26 de abril de 1989 da
revista Veja, sob a ótica da teoria de Sontag (2007), com a seguinte
hipótese: o uso das metáforas militares, extraídas do campo semântico
bélico, foram responsáveis pela morte social e anunciada de Cazuza.
Quanto às outras duas fases, Bardin (1977) explica que só é
possível passar a elas quando a pré-análise for concluída. Na exploração
do material, o pesquisador deve se debruçar sobre o objeto e realizar “[...]
operações de codificação, desconto ou enumeração, em função de regras
previamente formuladas” (BARDIN, 1977, p. 101). Na última fase, a de
tratamento dos resultados obtidos e interpretação, Bardin (1977) afirma
que é quando o pesquisador avaliará toda a análise e, ao dispor os
resultados em tabelas, poderá “propor inferências e adiantar
interpretações a propósito dos objetivos previstos, ou que digam respeito
a outras descobertas inesperadas” (BARDIN, 1977, p. 101).
146
Como dito acima, a teoria selecionada para a análise é a de
Sontag (2007). Segundo a autora (2007, p. 6), os humanos nascem com
uma espécie de dupla cidadania: a que se tem quando se está saudável
(que chama de reino dos sãos) e a que se tem quando se está doente (reino
dos doentes). Para a autora, todos os seres humanos transitam entre esses
dois reinos e, para isso, devem aprender a conviver com as fantasias
criadas para se viver no reino dos doentes.
Nos livros Doença como metáfora (2007) e Aids e suas
metáforas (2007), Sontag explica que muitas doenças são envoltas por
diversas metáforas. Dois exemplos são a tuberculose e o câncer. A
tuberculose, doença incurável no século XIX que gerou uma epidemia
gravíssima, era vista de forma romantizada pela população:
147
Citados os exemplos da tuberculose e do câncer, faz-se
necessário falar também de outra doença, a que é o assunto principal
desta pesquisa: a Aids. Assim como as outras duas, a Aids também conta
com uma massiva quantidade de metáforas militares. Para muitas
pessoas, essa questão pode parecer pífia e sem importância significativa.
No entanto, Sontag (2007, p. 50) explica que “as metáforas militares
contribuem para a estigmatização de certas doenças e, por extensão,
daqueles que estão doentes”.
No caso da Aids, o uso das metáforas e as consequências sociais
trazidas por elas são ainda mais graves. No começo da epidemia de Aids,
na década de 1980, a doença atingia, na maioria dos casos, homens
homossexuais. Desse modo, a doença era encarada por alguns como a
“peste gay” ou o “câncer gay”; outros enxergavam na doença um castigo
divino vindo à Terra contra os pecadores. Com a Aids, as metáforas
militares mais generalizadas, as que encaram a doença como invasora da
sociedade, ganham destaque e, cada vez mais, palavras como luta,
combate, guerra, mal e tragédia passam a ser utilizadas para se referir à
enfermidade (SONTAG, 2007).
Sobre a influência do vocabulário bélico nas metáforas utilizadas
para se referir às doenças, Han (2017, p. 8) diz que
148
de 1989, que mostra o cantor e compositor Cazuza magro e abatido pela
Aids, juntamente da manchete: “Uma vítima de Aids agoniza em praça
pública”. O tom da capa se repete nas oito páginas internas destinadas à
reportagem.
149
Imagem 1 - Capa da edição 1.077 da revista Veja, de 26 de abril de 1989.
150
Na tabela a seguir, encontram-se todas as metáforas militares
e, também, as metáforas que estabelecem uma relação direta entre a Aids
de Cazuza e a sua morte inevitável.
151
2-k) “‘[...] como uma espécie de
testamento, de últimas
palavras’” (p. 85)
2-l) “[...] e venha a morrer
dentro do estúdio” (p. 86)
152
De acordo com Sontag (2007, p. 50), o uso abusivo da metáfora
militar talvez “[...] seja inevitável numa sociedade capitalista, uma
sociedade que cada vez mais restringe o alcance da credibilidade do
apelo aos princípios éticos, que acha absurdo o indivíduo não sujeitar
suas ações ao cálculo do interesse próprio e do lucro”. E, além do uso
das metáforas militares e das relações entre Aids e morte, a revista faz
muitas associações entre o comportamento de Cazuza e sua doença,
levando os leitores a enxergarem-no como uma vítima culpada.
Exemplos dessas associações podem ser vistos nas seguintes
frases publicadas pela revista: “A história das artes está repleta de
drogados [...], de alcoólatras [...] e de promíscuos sexuais [...]. O
problema, nos anos 80 do século XX, é que a combinação desses fatores
facilita a contaminação com o vírus da Aids” e “O cantor é o primeiro a
reconhecer que foi um menino-problema, um adolescente-problema, um
jovem-problema, um homem-problema e é hoje um doente-problema”.
Esses trechos fazem referências à bissexualidade e o uso de álcool e
drogas por Cazuza. Sobre isso, Sontag (2007, p. 57) diz:
153
pelo uso dessas duas. Devido à reportagem da Veja, pode-se dizer que as
consequências sociais geradas foram: a estigmatização da doença, que
aparece várias vezes vinculada ao comportamento dito promíscuo e
inconsequente do cantor; a estigmatização de Cazuza, que teve sua vida
exposta nas páginas da revista e, também, a sua morte anunciada.
Considerações finais
Sontag (2007) recomenda que, além de suspender o uso, as
metáforas militares devem ser desmascaradas, criticadas, atacadas e
desgastadas. Como demonstrado neste artigo, o uso dessas metáforas da
guerra é muito presente na mídia, gerando consequências profundas,
sobretudo no âmbito da estigmatização de doenças e de doentes. Com
isso, é indispensável dizer que o jornalista deve estar sempre atento com
as palavras que escolhe para escrever, por exemplo, uma reportagem, a
fim de evitar o uso das metáforas militares e, também, o reforço de
preconceitos e estigmas.
Sobre o efeito negativo provocado pelo uso das metáforas da
guerra para a Aids e para os doentes, Sontag (2007, p. 87) afirma:
154
de peso para o processo de excomunhão e
estigmatização do doente.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Paris: Presses
Universitaires de France, 1977.
BIANCARELLI, Aureliano. Doença em foco: as reportagens sobre aids
publicadas pela Folha de São Paulo. Revista USP, São Paulo, n. 33,
mar.-maio 1997.
155
MANTOVANI, Flávia. Iêmen: a guerra esquecida. G1. Disponível em:
<http://especiais.g1.globo.com/mundo/2016/iemen-a-guerra-
esquecida>. Acesso em: 24 fev.2018.
156
UNAIDS. Estatísticas globais sobre HIV 2017. 2018. Disponível em:
<https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2018/07/2018_07_17_Fact-
Sheet_miles-to-go.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.
157
AS PRINCESAS DA DISNEY: REFLEXÕES
SOBRE GÊNERO
This study aims to analyze the concept of gender presented in the film
narrative Brave (2012) and Disney’s advertising campaign video
"Dream Big, Princess" (2016). Through the analysis of the profile of the
characters and actions experienced in Brave, the study aims an
approach on the role of the protagonist and the connection with the
princesses presented by Disney. Interpretation and analysis of the
158
concepts and prejudices involved around the researched topic are also
performed from a sociological perspective. In Brave (2012), different
notions of gender may be found, and the characters are constructed with
different individualities; the unfolding of the film narrative, as well as
the campaign, contribute to the problematization and discussion on the
theme. It is understood, mainly from authors such as Ribeiro (1996),
Garcia (2009), Ferreira (2009) and Louro (2003; 2009; 2010), that the
idea of gender passes through different institutions as family, church and
school. A denaturation of what gender is necessary and so is an
understanding of it as a social construction, in order to conceive a new
comprehension in our pedagogical practice, which needs to be reflected
in an education with respect to gender diversity.
Keywords: Child Education. Gender. Film narratives. School
Introdução
Princesas, príncipes, rainhas, reis, guerreiros e donzelas
remetem-nos a conceitos e preconceitos de gênero estabelecidos em
nossas experiências, carregados de símbolos e signos resultados de uma
construção social e cultural, e reproduzidos a cada um e cada uma por
meio da família, amigos, escola, histórias, regras, filmes e ações.
Gênero caracteriza-se como uma construção histórica e social, o
qual pode, e deve, ser abordado na Educação Infantil, pois é inerente aos
seres humanos e, portanto, constitui a nossa formação desde a mais tenra
idade (GARCIA, 2009). Deste modo, faz-se necessário repensar, na
nossa prática pedagógica, situação em que são produzidos e reproduzidos
padrões hegemônicos de gênero, para a construção de novos caminhos a
fim de tecer a discussão sobre essas temáticas na rotina escolar.
Trabalhar com atividades relacionadas à sexualidade e gênero
na Educação Infantil é um desafio, uma vez que foi criado em torno
dessas temáticas um campo minado de preconceitos e tabus que visa
censurar e limitar o trabalho docente. Diante desse cenário, buscaremos,
por meio da narrativa fílmica, alternativas pedagógicas para trabalhar
com o assunto no cotidiano.
159
Em nosso estudo, abordaremos gênero como as características
sexuais que são compreendidas e representadas na prática social.
Portanto, a sua construção ocorre no processo histórico e nas relações
vividas formando masculinos e femininos (RIBEIRO, 1996; GARCIA,
2009; FERREIRA, 2009; LOURO, 2003; 2009; 2010). A escola, como
espaço social, também participa dessa formação, haja vista que meninas
e meninos permanecem nessa instituição grande parte de seu dia, onde
vivenciam diferentes discursos, práticas e representações, construindo
assim suas maneiras de compreenderem e interagirem com as pessoas e
o mundo a sua volta.
Ao compreendermos que gênero é construído e desconstruído a
partir de nossas vivências, afirmamos que esses aspectos não são dados
e acabados (LOURO, 2003), mas estão inteiramente ligados à forma
como compreendemos o mundo e como tecemos nossas relações e
práticas sociais. Conforme Ribeiro (1996):
160
outros; esse movimento impulsiona, desenvolve e interage com as
diversas personas que somos em nossas vidas.
Parafraseando Louro, acreditamos que a escola é o lócus de
produção e socialização de saberes e conhecimentos, por meio de um
processo sistemático e intencional de formação múltipla dos sujeitos
(LOURO, 2010). A complexidade em torno do gênero, por vezes, remete
insegurança aos profissionais da educação, principalmente ao que tange
à Educação Infantil.
A carência na formação inicial e/ou continuada sobre a
temática é apontada pelos profissionais de Educação Infantil como
principal barreira no desenvolvimento do trabalho com crianças, e, aliada
a essa questão, citamos a resistência por parte de algumas famílias das
crianças e alguns dos profissionais da educação sobre o tema, uma vez
que compreendem que este não é pertinente de ser tratado nessa etapa da
infância. Contudo, as crianças passam a desvendar as diferenças e
semelhanças ao se reconhecerem como menina ou menino, e ao
estruturarem as suas compreensões sobre as experiências vividas.
Barbosa e Magalhães (s/d) defendem que:
161
agora passamos a ver o desenvolvimento como
resultado das experiências que a criança vive, de
sua atividade e de sua aprendizagem. Se antes
entendíamos que o desenvolvimento acontecia
naturalmente, hoje entendemos que devemos
intencionalmente provocá-lo, querendo que as
crianças se desenvolvam ao máximo, que
reproduzam as máximas qualidades humanas
(MELLO, 2015).
162
da Disney “Sou princesa, Sou real” (2016) para analisar os conceitos de
gênero presentes nos desenhos animados.
163
podem ser remodeladas. Merida não se enquadra nos padrões impostos
como essenciais para o referido título, afinal, socialmente, o mesmo
exige delicadeza, uma coroa, roupas exuberantes e um mundo cor de
rosa, assim como vemos no conto da Bela Adormecida, por exemplo.
Merida não tem a graciosidade de uma princesa, troca sua coroa por arco
e flecha, seu vestido é azul, e seus cabelos não possuem um penteado
sofisticado.
Desde criança, ela demonstrava seu interesse pelo tiro com
arco, recebe o incentivo de seu pai, o rei Fergus, para a prática deste
esporte, o que não é aprovado pela mãe, que acredita não ser apropriado
a uma princesa. Leonor aprendeu a tradição de sua família, na qual o
esporte e a aventura não são deveres de uma princesa, desejo que propõe
a sua filha, mesmo sem obter êxito.
Em uma das falas, Merida expressa o seu desejo pela aventura,
momento em que poderia explorar o reino, sem regras, sem proibições,
somente ela, seu arco e seu cavalo. O desejo da princesa é possuir a
liberdade que é concedida aos seus três irmãos caçulas, que, embora
crianças, podem realizar qualquer brincadeira, pois são meninos.
Embora a protagonista manifeste o seu desejo de construir uma
nova maneira de ser princesa, a tradicionalidade expressa pela rainha e
pelos costumes do reino ressaltam que, mesmo na dinâmica de inovações
de práticas sociais, a disciplina sobre ser menino e ser menina ainda está
presente e ecoa nas ações observadas.
A campanha iniciada pela Disney em 2016, “Sou Princesa, Sou
Real”, retrata a ruptura nos padrões de comportamento, uma vez que
mostra caber às próprias meninas a escolha de como agir e portar-se,
exibindo a figura de princesas anteriormente retratadas em narrativas
fílmicas e compiladas com imagens de meninas, realizando atividades
antes estereotipadas como masculinas. O vídeo demonstra que nem todas
as princesas são iguais, independentemente de usarem arco e flecha ou
sapatos de cristal, cada personagem constrói o seu futuro a partir de suas
escolhas.
164
A partir de Valente (2012), é possível tecer a discussão sobre a
construção de gênero, pois a princesa tende a refutar os padrões de
comportamento demonstrados pelas princesas em outras animações que
a própria Disney consolidou. Desse modo, transmite-se a ideia que as
características padronizadas como feminino ou masculino passam a ser
questionadas, possibilitando um comportamento alternativo à princesa
em contradição com as anteriores.
Nesse sentido, observamos que a noção de gênero tem sido
delineada nas relações sociais e transmitida de geração a geração no
decorrer dos anos. Na narrativa fílmica, essa situação é evidente nos
momentos de ensinamento da rainha Eleonor para com a princesa
Merida, as falas entre mãe e filha detalham a herança cultural repassada:
“Uma princesa deve demonstrar conhecimento sobre seu reino, […] deve
cedo levantar, deve ter compaixão, é paciente, cautelosa, asseada, e,
acima de tudo, uma princesa busca a perfeição”.
Os modos de ser menina e de ser menino são vistos de diferentes
ângulos e compreendidos nas suas peculiaridades conforme a cultura de
cada um; ao atentarmos para imaginário de princesa, sob a ótica da mãe
de Merida, percebemos que o mesmo foi construído por meio de suas
vivências, carregado de signos e significados por ela apreendidos, os
quais buscam replicar para a filha. Contudo, esse imaginário pode mudar,
e ser reconstruído com outras compreensões, outros desejos, outros
medos.
Considerando o contexto cultural vivido nos espaços sociais da
atualidade, percebemos ainda nas falas das crianças a construção de dois
mundos paralelos, um de meninas e outro de meninos, como se estes não
se misturassem, não se entrelaçassem, concebidos com ideias contrárias,
impossibilitando viver ao mesmo tempo nos dois mundos. De um lado,
a delicadeza e o colorido da menina, cheio de fitas, flores, balé, bonecas
e vestidos; do outro, azul, futebol, carros, gravatas e heroísmo. Às
meninas são pensadas profissões delicadas; aos meninos profissões mais
reconhecidas socialmente. No entanto, é preciso desmistificar essa
noção, afinal, compreendemos que:
165
[...] as noções de gênero e de identidade de gênero
têm sido, cada vez mais, questionadas; o que
significa ser macho ou fêmea, masculino ou
feminino, em contextos sociais e culturais
diferentes, pode variar enormemente, e a identidade
de gênero não é claramente redutível a qualquer
dicotomia biológica subjacente. Todos os machos e
fêmeas biológicos devem ser submetidos a um
processo de socialização sexual no qual noções
culturalmente específicas de masculinidade e
feminilidade são modeladas ao longo da vida. É
através desse processo de socialização sexual que
os indivíduos aprendem os desejos, sentimentos,
papeis e práticas sexuais típicos de seus grupos de
idade ou de status dentro da sociedade, bem como
as alternativas sexuais que suas culturas lhes
possibilitam (Louro, 2000, p 96).
166
que se dá a constituição de seu ser. Nesse sentido, consideramos que ao
se construir socialmente o rosa, o delicado e o frágil às meninas, o azul,
o forte e heroico aos meninos, são delimitados espaços e
comportamentos, que se tornam, em algumas situações, barreiras no
desenvolvimento da criança e, por vezes, forçando-as a se enquadrarem
ao que lhes é imposto. Diante desse contexto, é necessário desnudar as
regras e apresentar um mundo de escolhas.
A Educação Infantil pode ser esse mundo de escolhas, uma vez
que é a base da construção da personalidade das crianças, e possibilita a
elas conhecer, decidir e criticar, amparando-as para o mundo.
167
[...] o direito da criança à brincadeira, à atenção
individual, à convivência em um ambiente
aconchegante, seguro e estimulante; o direito à
desenvolver sua curiosidade, imaginação e
capacidade de expressão; o direito à proteção, ao
afeto e à amizade; o direito ao movimento em
espaços amplos; o direito à expressar seus
sentimentos, a uma especial atenção durante seu
período de adaptação à escola da infância; à
desenvolver sua identidade cultural, racial e
religiosa; a uma alimentação sadia e ao contato com
a natureza (CHAVES; CIRINO; CASAGRANDE,
2015, p.15)
168
Ressaltamos que para se entender como homem e mulher se
relacionam em uma sociedade não é necessário atentar apenas às
características sexuais biológicas, mas todo o contexto que envolve as
suas convicções. Fragmentos do passado permanecem, e percebemos
ainda, em determinados grupos sociais, como família, trabalho e escola,
a presença de expectativas influenciam, tais como:
169
referencial masculino é um exemplo do movimento social, o que em um
dado momento é relacionado a determinado gênero, em outro pode tomar
forma diferente, o que não irá interferir na sua interação social nem no
desenvolvimento da sociedade.
Louro (2003) elenca que as concepções de gênero são
permeadas pelo movimento de mudança, e se diferem com os momentos
históricos e com a transformação de sociedade. Ao analisarmos a
campanha publicitária da Disney (2016), percebemos que as noções de
princesas que presenciávamos em nossa infância sofreram uma
alteração, estas que antes expressavam sua delicadeza e fragilidade,
doravante assumem um papel de protetoras, heroínas, aventureiras e/ou
guerreiras. Ao analisar a Campanha Publicitária da Disney “Sou
Princesa, Sou Real” (2016) percebemos um novo paradigma para a
caracterização das personagens, se outrora as princesas buscavam o seu
príncipe e dependiam deste para o intitulado final feliz, agora elas
enfrentam suas aventuras, superam seus medos e se realizam nas suas
conquistas. Essa nova roupagem construída para as personagens da
Disney, é impulsionada pela sociedade, não é um ato isolado, os
desenhos animados expressam aquilo que é vivenciado, devem ser
considerados instrumentos de grande valia na constituição moral e leitora
da criança (ELSNER, 2009).
A transgressão realizada por Merida impulsiona a
questionarmos os padrões impostos pela sociedade como sendo
adequados para menina e menino ou mulher e homem. Por mais que o
contexto cultural diferencie o feminino e o masculino, a criança tende a
se identificar ou não com o que lhe é imposto, ou ao que é dirigido ao
seu sexo biológico, delineando a partir de seus desejos a sua própria
forma de ser.
170
princesas e heróis, o que causa inquietação e traz o desejo de tornar-se
igual à determinada personagem.
171
problemas cotidianos, por servir como uma forma
de avalição e análise dos conteúdos que
transmitem, e, além disso, por estimular a formação
de novos modos de compreender e ver o mundo.
(ELSNER, 2009, p. 2).
172
uma princesa Disney pode estar relacionada com os movimentos e lutas
feministas na busca pela sua própria identidade, a busca pela igualdade
entre os gêneros e valorização social da mulher.
Considerações finais
Ao longo dos anos, os desenhos animados criaram um padrão
para as princesas, que se destacavam pela beleza, obediência, e
necessidade de serem protegidas. Merida se diferencia do grupo de
princesas da Disney pela sua valentia, aventuras e gosto por esporte, sua
feminilidade se expressa de outra maneira. Ela não deixa de ser princesa,
contudo, não se limita aos vestidos encantadores e penteados
exuberantes, ela caracteriza-se pela busca da liberdade e sonha pela
conquista de seu próprio lugar.
Por meio dos desenhos animados, é possível vermos uma
forma de transmissão de cultura, pelos quais se propagam mitos,
costumes, valores e tradições sociais, sendo uma fonte de orientação no
contexto cultural. Em Valente (2012), Merida é uma princesa com
características próprias, sem normas, sem etiqueta, sem a perfeição
esperada pela rainha. Ela se diferencia da tradicionalidade e dá vida à
criação de uma individualidade, com aparência desleixada, estilo
próprio, causando um movimento no imaginário coletivo de princesa e
fornecendo recursos para a formação de uma nova identidade na qual a
aparência, o jeito de ser e a imagem substituem elementos como a ação
e o compromisso na constituição da identidade.
A identidade de gênero, como vimos, é construída nas relações,
torna-se móvel, múltipla, pessoal, reflexiva e sujeita a mudanças e
emoções. O vídeo da campanha da Disney apresenta diferentes tipos de
princesas, cada uma com suas características para vestir-se, falar, pensar
e agir. Na narrativa fílmica abordada neste trabalho, as representações
das e dos personagens adotam comportamentos distintos, uma princesa
que gosta de armas e esporte, príncipes que não são bons na pontaria, reis
com dificuldade no discurso e uma rainha que preza pelos costumes de
seu reino. Essas personagens masculinas e femininas demonstram que
173
não há, de fato, uma única forma para ser, agir e pensar, desconstruindo,
assim, o imaginário de rótulos sociais predisposto aos aspectos
biológicos.
Em nossa sociedade, há ainda presente na cultura um ideal do
feminino e do masculino desde o seio materno, a organização do enxoval,
a escolha do nome, tudo é preparado para a chegada de um novo membro
da família pensando no seu sexo biológico. Contudo, não é raro
observamos formas de resistência à normatização imposta pela
sociedade. Ponderamos que o feminino e o masculino são construções
sociais, e não nos cabe impor qual cor é adequada a qual gênero, se deve
ou não apreciar arte ou esporte, mas, sim, a nós, profissionais da
educação cabe possibilitar o respeito pela diversidade.
A princesa Merida foi escolhida como sujeito deste estudo,
pois pressupomos que sua personagem, com sua figura colorida,
dinâmica, lúdica, rebelde e convicta, provoca nos espectadores
questionamentos e problematizações na desconstrução da figura de
princesa, e, logo, nas noções sobre o feminino.
Referências
174
www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&
ved=0ahUKEwjw6tjBtIjTAhXFHpAKHVtpB3wQFggcMAA&url=http
%3A%2F%2Fwww.bocc.ubi.pt%2Fpag%2Fboynard-ana-desenho-
animado-formacao-
moral.pdf&usg=AFQjCNGmOxbq4lD4RJTGDOHwTKluuNyCIg&sig
2=meWTCpSwXRB7CrwRptcn5g acesso em 03 de abr de 2017.
175
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma
perspectiva pós estruturalista. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
176
SCHINDHELM, Virginia Georg. A sexualidade na Educação
Infantil. In Revista Aleph Infâncias. Na V Nº 16, novembro de 2011.
177
DESMARGINALIZAÇÃO ARTÍSTICA DA
DRAG QUEEN E SUA REPERCUSSÃO
SÓCIO-EDUCACIONAL
Lua Lamberti de Abreu
Eliane Rose Maio
(Universidade Estadual de Maringá)
A arte Drag, que pode subverter construções de gênero, nem sempre tem
a visibilidade e o respeito merecidos. Paralelamente, a comunidade trans
sofre com diversas formas de opressões e marginalizações. Esta pesquisa
visa historicizar as questões artísticas do/da ator/atriz crossdresser e
relacionar essas situações com alguns dos problemas sociais da
comunidade LGBTI, por meio de pesquisadores/as do teatro, teóricas
feministas e pensadores/as da educação. Acredita-se que a arte e a
educação são fortes aliadas para desmarginalizar pessoas desse meio e
conquistar voz e protagonismo dentro da arte, do meio acadêmico, ou do
espaço que as essas pessoas tentarem se inserir.
Palavras-chave: Drag Queen; Teatro; Educação.
Drag art, which can subvert gender constructs, does not always have the
deserved visibility and respect. At the same time, trans Community
suffers from various forms of oppression and marginalization. This
research aims to historicize the artistic questions of the actor/actress
crossdresser and relate these situations some of the social problems of
the LGBTI Community, through theather researchers, feminist theorists
and education thinkers. It is believed that art and education are Strong
allies to demarginalize people from this space and gain voice and
protagonism within the art, the academic environment, or the space that
these people try to insert themselves.
178
Key words: Drag Queen; Theatre; Education.
Enquadramento teórico
Essa pesquisa tem por objetivo buscar desmarginalizar a
performer Drag Queen, possibilitando dar mais visibilidade às pessoas
que são apagadas da hegemonia atual. Contextualizar a trajetória do
transformismo dentro do teatro, e buscar meios de romper a distância
entre o/a12 artista que transgride normas de gênero e a plateia, para além
do meio LGBTI13, buscando validar essa forma artística, muitas vezes
desprezada ou até esquecida por parte da sociedade.
Drag Queen é a personagem que surge com a transfiguração de
um/uma ator/atriz transformista. Não é intrínseca à identidade de gênero
ou à sexualidade de quem o faz. Travestis são diferentes de Drag Queens;
Nem só homens fazem personagens Drag; Nem sempre travestir-se para
interpretar um/uma personagem do gênero oposto está ligado à
sexualidade de quem o faz. Uma travesti transcende os palcos e leva a
subversão de gênero para todos os aspectos da vida, podendo alterar seu
corpo permanentemente, assumindo nome e identidade novas
(MESQUITA, 2011). Já a performer Drag não vive sua vida como sua
personagem. Fica restrita aos palcos, apresentações, espetáculos ou
qualquer manifestação artística. (AMANAJÁS, 2015).
Acredita-se que a educação seja fundamental nesse processo,
tentando dar conta de diminuir a ignorância e a segregação, que são
12
Opta-se, neste trabalho, pelo uso de ambas as formas para englobar tanto
homens quanto mulheres, cis ou não, e por falta de uma forma mais
abrangente para pessoas não binárias ou que não se identifiquem com as
leituras sociais hegemônicas de gênero.
13
Sigla referente a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais,
Transgêneros/as, Interssexos, mas pode englobar toda e qualquer sexualidade
ou identidade de gênero não heterocisnormativa que não esteja representada por
estas nomenclaturas mas entenda-se parte dela.
179
nítidas atualmente, mas já houve cenários diferentes na história do teatro
e do fazer artístico de maneira geral.
Não é segredo que homens se travestiam para interpretar papéis
femininos nos primórdios do teatro. De fato, esta prática se estendeu por
séculos, até o Renascimento, como nos trazem diversas/os autoras e
autores teatrais, entre elas/es, Margot Berthold (2011) e Dario Fo (2004).
Entrementes, basta analisar a produção artística e midiática atual para
constatar que a subversão de gênero, a transgressão de suas normas
socialmente impostas, é algo muitas vezes mal visto e até reprovável em
grande parte da sociedade, quando não usada de maneira pejorativa em
programas humorísticos ou de entretenimento superficial.
Mas, se o ato de se travestir faz parte da história do fazer artístico
teatral, como pode ser omitido e reprimido atualmente? A figura do/a
artista que performa outro gênero, que não o atribuído à sua genitália
biológica de nascença, é comumente jogada à margem e atrelada às
minorias LGBTI, onde, ainda assim, está sujeita à discriminação e
opressão dentro do meio. A performer Drag passa por altos e baixos na
história da arte, poucas vezes chegando ao topo, porém atingindo o
fundo, a marginalização, diversas.
Método
Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pelo método de
revisão bibliográfica, em diálogos com a metodologia feminista para
pautar as discussões e problematizações acerca da temática.
180
machismo e a intolerância mudaram o foco para o ator que transgredia
seu gênero, e este perdeu seu espaço e foi colocado à margem, por
preconceito.
E, apesar disso, até hoje não há um grande número de
dramaturgas, diretoras ou encenadoras reconhecidas mundialmente, com
poucas exceções, evidentemente. Mesmo já sendo aceita social e
culturalmente uma mulher artista, ainda há o predomínio masculino nas
referências teatrais, decorrência do machismo entranhado em tais
estruturas. E, no caso do teatro, homens atuando como mulheres não é
algo recente ou inédito. Como muitos/as pesquisadores/as nos trazem,
em diversos momentos da história do teatro, esse fato era comum
(GASSNER, 2010).
No teatro oriental, a tradição sempre se fez mais rígida e presente
que no teatro Ocidental. O artista que interpretaria papéis femininos já
os fazia desde criança, algumas vezes chegando a extremos de ser
castrado para evitar a produção de hormônios masculinos (BERTHOLD,
2011). Giroux (2012), em seu livro Zeami: Cena e Pensamento Nô, sobre
a vida e obra de Zeami, cita diversos atores, compositores e dramaturgos
japoneses, majoritariamente homens, com pouca menção às mulheres.
Nos anexos do livro, algumas fotos mostram cenas dos
espetáculos, e todos os fotografados são atores, independente de estarem
interpretando homens ou mulheres. Nas peças escritas/compostas por
Zeami, também não há menção de mulheres, e existem obras específicas
de personagens femininas.
Magot Berthold (2011) também explana sobre os atores
transformistas no Oriente, em diversas culturas. E como, muitas vezes, a
persona feminina transcendia dos palcos para a vida real.
Esse costume também aparecia no Ocidente. Inclusive, uma das
hipóteses do termo Drag é que surgiu nas obras de Shakespeare,
abreviação da expressão Dressed as a Girl (Vestido como uma garota).
O icônico beijo de Romeu e Julieta não foi, de fato entre um garoto e
uma garota, mas sim entre dois atores, um interpretando um papel
masculino, e outro, um papel feminino.
181
A história da humanidade apresenta inúmeras
passagens em que o ato de se vestir (montar) em
drag, além de um posicionamento artístico e
político, foi uma necessidade cênica imposta pela
sociedade e pela moral vigente. Desde a Grécia
clássica até os dias atuais, homens personificam a
imagem feminina em diferentes aspectos, da
maneira mais realista ao total estilizamento da
forma. A drag queen sofreu metamorfoses reais
tanto em sua estética como em sua função, mas
nunca perdeu seu principal objetivo – a grande arte
do estranhamento. (AMANAJÁS, 2015, p. 01).
14
Cisgênero é o termo usado para se referir ao indivíduo que se identifica
com a leitura de gênero socialmente atribuída à sua genitália de nascença.
Cisexismo é discriminação para com mulheres, pessoas trans, não binárias
etc.
182
movimento de contracultura da década de 70, 13 homens, entre eles
Lennie Dale e Wagner Ribeiro, deram origem ao grupo de dança, teatro
e música, que expunha experimentações de gênero sob o bordão “Nem
rainha, nem valete, sou um Dzi Croquette”. A transgressão de gênero era
feita de maneira realmente subversiva, mesclando elementos de leitura
social masculina e feminina num mesmo indivíduo (ISSA e ALVAREZ,
2009).
Apesar do sucesso e da repercussão até os dias de hoje, tendo
influenciado grupos musicais, artistas de dança e teatro, tais como Secos
e Molhados, as Frenéticas, Cláudia Raia, Miguel Falabella, entre outros,
não se encontra com facilidade referências acadêmicas sobre o grupo, e
mesmo no meio teatral, não é um estudo comum.
Pensando sobre isso, pode-se questionar o motivo desse apagamento.
Outros grupos da mesma época e de importância talvez semelhante, são
até hoje estudados e respeitados por teóricos/as do teatro. Mas pouco se
discute sobre o grupo de transformistas que dançava na época da
Ditadura, período de militarismo no Brasil, com grande repressão às
minorias e grupos de oposição às ideologias impostas. Foram engolidos
pela sombra do machismo cisexista?
O silenciamento e a invalidação de figuras LGBTI não é,
infelizmente, reclusa ao âmbito das artes. Como acontece em diferentes
sociedades e períodos históricos, a arte funciona como um termômetro
social, ou seja, está sempre em diálogo com a realidade cultural do tempo
e espaço em que se situa (FO, 2004). Portanto, pode-se deduzir que não
há espaço para a comunidade LGBTI em muitos âmbitos sociais.
O Conselho Nacional de Combate à Discriminação, em seu
documento Brasil sem Homofobia (CONSELHO, 2004), traz um
exemplo bastante concreto desse apagamento que gays, lésbicas,
bissexuais, intersexuais, travestis e transgêneros/as sofrem.
Segundo este documento, Janaína César Dutra Sampaio foi a
primeira travesti advogada filiada à OAB. E, entrementes, não há
literatura de fácil acesso ou conhecimento comum sobre sua carreira
militante; e o fato de ter sido a primeira, na década de 1980, evidencia a
183
discrepância entre uma pessoa cis e uma pessoa trans conquistarem o
mesmo reconhecimento.
E essa realidade não se resume apenas ao meio acadêmico,
obviamente. Atuar ou performar transgredindo as normas de gênero é
algo negligenciado pelas mídias e por grandes partes dos meios
artísticos. Porém, o/a artista que o faz tem todo o direito de ser
reconhecido/a por seu trabalho, com todo o valor artístico que tem. O
transformismo não é, necessariamente, algo inerente à pessoa que o faz,
ou seja, performar como Drag Queen não é sinônimo de ser travesti ou
transexual, nem um limitante de sexualidade (AMANAJÁS, 2015).
Alípio de Sousa Filho (2009), nos traz que sexualidade e
identidade de gênero não são definidas por fatores genéticos, e podem
ser construídas e alteradas durante a vida do indivíduo. O autor denuncia
a homofobia por trás do discurso eu nasci assim, defendendo a liberdade
de escolha das pessoas não heterossexuais e cisgêneros/as.
Portanto, atuar como o gênero oposto, ou numa confusão de
signos sociais atribuídos aos gêneros, pode sim ser uma opção que vem
a mudar no decorrer da vida, mas, independentemente disso, não muda o
teor artístico de sua performance, ou desmerece o trabalho que há nesta
ação.
Baseada em conservadorismo e
heteronormatividade, a sociedade tem dificuldade
em perceber que montar-se de drag trata-se de uma
expressão artística da vontade do indivíduo em se
vestir de outra maneira que não a designada para
seu gênero, tampouco dentro das normalidades.
Muitas vezes confundidas com transexuais, o ato de
se montar sempre foi associado como atividade de
pessoas gays, o que as fez por muito tempo
permanecerem em guetos onde eram aceitas.
(LEAL, et all, 2015, p. 07).
184
branco, cisgênero, heterossexual, classe média alta etc. e escolhe
performar uma mulher, está traindo todos esses privilégios. A
feminilidade deve ser ceifada desse indivíduo, pois não se pode aceitar
alguém que, por opção ou não, abandone seu lugar de superioridade
hierárquica para se colocar no lugar de oprimido/a.
Também sobre isso, temos Judith Butler (2003), filósofa e um
dos principais nomes da teoria queer, que questiona se a construção de
gênero não pode ser revertida ou reinterpretada. Ao subverter a
construção social imposta à sua genitália, o indivíduo tido como homem,
não estaria colocando-se dentro do gênero feminino, e assim, sendo alvo
de machismo e opressões patriarcais?
185
dos outros estados brasileiros (MARINGÁ, 2015). Como esperar uma
educação abrangente se não o tema é vetado na instância municipal?
E essa soberania masculina não se faz presente somente na arte
ou na educação. Muito pelo contrário, é apenas um reflexo social. Joan
Scott (1989) afirma que a subordinação feminina é anterior ao
capitalismo, calcada na origem do patriarcado, na qual a mulher é a
reprodutora e o homem está hierarquicamente acima disso. Segundo a
autora, a mulher vem sendo submissa em diversos sentidos, sem uma
causa nítida. Outros/as autores/as também explanam a diferenciação
sexual baseada em conceitos biológicos, que tentam justificar essa
desigualdade entre homem e mulher.
186
históricos, havia um interesse por trás do feito. Com pouco acesso à
leitura e ao treinamento de artista, a mulher estava no palco por fetiche e
objetificação por parte do homem, que a certo ponto não se satisfazia
mais com “outro homem” atuando como uma mulher. Portanto, a Drag
ainda coexistiu com a mulher, a primeira como atriz, a segunda como
objeto de desejo. (AMANAJÁS, 2015).
Com o advento das lutas feministas, mais e mais a mulher veio
conquistando direitos, apesar de ainda ter um longo caminho para a
equidade proposta. E, por outro lado, mais e mais a figura da travesti, da
Drag Queen, da subversão de gênero, foi caindo no esquecimento, no
isolamento, na repressão, resultado da violência simbólica do patriarcado
para com as figuras femininas. E se, segundo Scott (1989), não há um
marco para o começo dessa opressão, como seria possível ir contra isso?
Vê-se na educação uma ferramenta poderosa para problematizar e
desconstruir alguns desses paradigmas.
Uma estrutura assim é inegavelmente heteronormativa15 e
machista. E, uma vez que a luta feminista veio conquistando pouco a
pouco o lugar da mulher, a opressão masculina sobre corpos lidos como
masculinos que subverte às normas de gênero intrínsecas à sua genitália
vem tendo mais visibilidade. Não que seja maior ou menor do que já foi
um dia, talvez só esteja mais em pauta graças às discussões do feminismo
e da teoria queer, que vêm ganhando destaque em espaços de educação
formal e informal.
Queer é tudo isso: é estranho, raro,
esquisito. Queer é, também, o sujeito da
sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais,
transexuais, travestis e drags. É o excêntrico que
não deseja ser ‘integrado’ e muito menos
‘tolerado’. Queer é um jeito de pensar e de ser que
não aspira o centro nem o quer como referência; um
jeito de pensar que desafia as normas regulatórias
da sociedade, que assume o desconforto da
15
Heteronormatividade é a imposição de padrões heterossexuais, excluindo
ou oprimindo outras formas de sexualidade.
187
ambiguidade, do ‘entre lugares’, do indecível.
Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina (LOURO, 2012, apud
AMANAJÁS, 2015, p. 08).
188
teor regulatório direcionado aos papéis de gênero e
sexualidade. Como parte do processo performativo,
a escola cria mecanismos que dividem e definem de
modo inflexível, os locais aos quais meninas e
meninos devem pertencer através do adestramento
de hábitos e a construção subjetiva de ideais de
“masculinidade” e “feminilidade”. (VILARINS,
2014, p. 25-26).
Como esperar que haja espaço acadêmico para essas pessoas se,
desde as bases educacionais, já são excluídas e enfrentam mais
adversidades que os/as colegas heterossexuais e cisgêneros/as? Não é de
se surpreender que o espaço reservado à essas pessoas seja a margem. A
falha é estrutural, acima de tudo. Políticas públicas e sistemas
educacionais que não contemplam quem não está dentro da heteronorma
cisexista (BRASIL, 2007).
Entre os/as artistas Drag e a população trans, é comum o
aparecimento de famílias por amadrinhamento, numa estrutura familiar
única, como o grupo Dzi Croquettes vivia. Laços socioafetivos unem
pessoas excluídas da sociedade, e nesses núcleos, há a sensação de
pertencimento e responsabilidade entre irmãs e mãe, muitas vezes
dividindo o lar, os materiais e as experiências, suprindo necessidades não
contempladas pelo sistema heteronormativo em que vivemos.
189
sociocultural do país. A invisibilidade da arte subversiva de transgressão
de gênero é apenas um reflexo deste cenário transfóbico (ARRAES,
2004).
Educar gera visibilidade, e essa visibilidade é necessária. Quanto
menos se fala sobre, menos esse grupo existe socialmente. Para outros
grupos sociais, Drags, travestis, transgêneros/as e transexuais estão
distantes de sua realidade. Tal omissão gera uma série de problemas,
desde marginalização do indivíduo até casos de violências.
Apesar da intolerância individual, muitos desses problemas têm
como raiz comum a ignorância. Não ter contato com essa outra pessoa
que vive de maneira diferente de mim faz com que ela não exista.
190
negligenciados, como a evasão escolar por parte da comunidade trans*,
crimes transfóbicos, diversas formas de intolerância etc. Educar é o
caminho para desconstruir esses preconceitos, e a visibilidade artística é
algo que anda de mãos dadas com a educação. Uma coisa catalisa a outra.
Arte Drag não é, e nem deve ser, restrita ao meio LGBTI. E, por outro
lado, escolas e instituições de ensino devem ter espaço para esse meio,
porque todos/as temos direito à educação. Logo, abrir o panorama, tanto
artístico quanto educacional, é algo com um potencial subversivo e
revolucionário incrível.
Referências
AMANAJÁS, Igor. Drag Queen: Um percurso histórico pela arte dos
atores transformistas. 2015. Disponível em <
http://www.belasartes.br/revistabelasartes/downloads/artigos/16/drag-
queen-um-percurso-historico-pela-artedos-atores-transformistas.pdf>
Acesso em 29 jan. 2019.
191
CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem
Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra
GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília : Ministério da
Saúde, 2004.
FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2004.
192
XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais – Salvador, BA,
2011.
VILARINS, André Luiz Rodrigues. Se não for pra causar, nem saio
de casa: Drag Queen como potência pedagógica. Brasília, DF. 2014.
193
LAERTE-SE: A FLUIDEZ DE UM CORPO QUE
SE TORNA FEMININO
Kaoana Sopelsa
Silvana Vaillões
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná)
194
by hegemonic discourse in contemporary Brazil - it reads
heteronormativity, and enables reflection on the body and identity fluid.
This interdisciplinary analysis aims to demonstrate that performativity
is a historical construction, susceptible of re-reading and which breaks
paradigms, ruled on human subjectivity. The selected strips are part of
the Muriel Total series, which are available on the author's page.
Keywords: Performativity. Heteronormativity. Muriel Total.
16
“Essa tira do Hugo foi a minha tira batedora, ela foi na frente e foi ela que
atraiu o olhar de uma querida amiga, Maria Paula, que me escreveu um e-mail
dizendo: Eu acho que você possa ser um crossdresser. [...] Muitas vezes eu fiz
o Hugo se travestir e todo mundo sabe que até o Pernalonga, não há desenho
que não se travista. Não quer dizer que o autor esteja fazendo isso de forma
consciente, mas foi a partir daí que eu percebi.” Entrevista Laerte para o Roda
Viva. Exibido em 07 de fevereiro de 2012. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=vNT6kWzloWM. Acesso em: 01 mar.
2019.
195
militar pela causa trans, levando conhecimento sobre um tema tão
relevante e atual.
Laerte, brasileira de atuação profissional como cartunista,
retratou, em sua página chamada Muriel Total17, como um corpo
atravessado pela heteronormatividade demonstrou sua subjetividade e
fluidez ao tornar-se feminino. A cartunista entende sua identidade como
mulher trans, deslocando-se da performatividade masculina construída
socialmente para ela, em um exemplo de corpo não-binário, que
enfrentou (e continua enfrentando, como os quadrinhos demonstram) o
discurso hegemônico brasileiro de grande parte do século XX e início do
século XXI.
Hugo e Muriel são os personagens trazidos por Laerte,
utilizados como fonte, demonstrando como Hugo foi atravessado pela
performatividade masculina por muitos anos, devido à genitália
biológica pênis, considerada masculina. Neste ínterim, Hugo é colocado
em situações de cobrança pelos amigos homens, quando a fluidez de sua
identidade e corpo começam a tornar-se Muriel, mulher trans que
personifica Laerte na atualidade.
Entretanto, o enfrentamento não cessa. Se havia cobranças
sobre a identidade heteronormativa masculina, no corpo de
performatividade feminina elas continuam existindo; assim, conceitos
como “mulher de verdade” são trazidos pela cartunista, que se desloca
para “Muriel de verdade”, na fluidez performática e identitária.
O Brasil dos séculos XX e XXI normatizou os corpos como
binários, ou seja, aceitando apenas como performatividades o padrão
heteronormativo. Sobre isso:
17
Disponível em: http://murieltotal.zip.net/. Acesso em: 01 mar. 2019.
196
gênero faz parte ou depende da “natureza”; existe
uma relação mimética do gênero com a
materialidade do corpo. (NOGUEIRA e
COLLING, In. COLLING e TEDESCHI, 2015, p.
357).
197
Um corpo pretendido pela heteronormatividade como
masculino, que se torna feminino, faz menção à afirmativa de Beauvoir
(2015) de que não se nasce mulher, mas torna-se, a partir da
subjetividade que se identifica como feminina, com “atos, gestos e
atuações” expressos “e inscritos sobre a superfície dos corpos, então
parece que os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, mas
somente produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a
identidade primária e estável” (BUTLER, 2018, p. 235-236). Assim,
pode-se afirmar que o gênero é construído pelo discurso, pela linguagem,
muito mais do que pelo corpo físico e sua materialidade. Até por isso há
modificações nas citações aos gêneros, de acordo com a mudança
cultural ou histórica. O gênero constrói-se com base na norma adequada
a cada tempo.
198
facilidade o batom e o rímel. Esse ritual de maquiar-se marca o ato
performativo do gênero feminino. Qual o motivo, então, do
questionamento sobre não ser mulher de verdade, se a performatividade
feminina está presente?
A arbitrariedade presente na tirinha gira em torno do fato de que,
diante de uma concepção biológica, um corpo com pênis jamais poderá
ser feminino, ou seja, não se pode ser mulher se não for biologicamente
provida de órgãos reprodutores de fêmea.
199
Diante disso, os atos performativos de um gênero evocam a
possibilidade de que sejam efetivados por qualquer pessoa, ainda que ela
não possua os atributos físicos biológicos, explicitados como “naturais”
pela sociedade. Ser mulher independe de ter a biologia feminina, do
contrário, seriam menos mulheres aquelas que precisam retirar os órgãos
reprodutores, por causa de doenças como o câncer? Uma mulher sem
seios é menos mulher do que uma que possua seios? Uma mulher sem
seios não é uma mulher “de verdade”?
A palavra gênero, na construção conceitual, é “uma espécie de
imitação persistente, que passa como real” (BUTLER, 2018, p. 9), que
traz consigo a afirmação de que os sujeitos não são “estáveis ou
permanentes” (p. 18), mas produzidos, regulamentados. Portanto, como
expõe Butler (Idem), “Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é
tudo o que esse alguém é; (...) porque o gênero nem sempre se constituiu
de maneira coerente e consistente nos diferentes contextos históricos” (p.
21).
Onde o binarismo e a ordem compulsória dos gêneros pretendem
formar os sujeitos, a normalização é vista através de “enquadramento”,
“subordinação” e “regulamentação” (BUTLER, 2018b, p. 99). Essas leis,
regras e repetições performativas, apesar de pretenderem generalizar-se,
não encontram a passividade total. Isso significa, para Butler (Idem), que
“a resistência aparece como efeito do poder, como parte do poder, como
subversão dele mesmo” (p. 100).
Ser uma “mulher de verdade”, na heteronormatividade, mais do
que ter um corpo com genitália feminina, o qual tem o poder de
reprodução por causa do útero, é “ser boa mãe, ser um objeto
heterossexualmente desejável, ser uma trabalhadora competente, em
resumo, (...) uma variedade de demandas diferentes, tudo ao mesmo
tempo” (BUTLER, 2018, p. 251); a ofensiva apresentada é a resistência
do discurso hegemônico pela manutenção do status quo, ao observar um
corpo que excede, desafia sua ordem (Idem, p. 250).
Assim, “[...] uma pessoa é um gênero e o é em virtude do se sexo,
de seu sentimento psíquico do eu, e das diferentes expressões desse eu
200
psíquico, a mais notável delas sendo a do desejo sexual” (BUTLER,
2018, p. 51).
201
que é preciso repetir atos, às vezes até mecânicos, para ser uma
“verdadeira” mulher ou um “verdadeiro” homem.
Considerações finais
Diante dessa breve análise, há que se pensar na abrangência que
o gênero possui, quando é ele quem define o sujeito e como viverá sua
vida. A aceitação social depende muito de ser identificado em um gênero,
de forma que há sempre a noção de que um gênero precisa ser uma ou
outra possibilidade. O corpo fluido, apresentado por Muriel
(consequentemente, por Laerte), tende a ser refutado, tendo em vista que
não se enquadra na imposição binária vigente na atualidade: HOMEM
ou MULHER.
Nesse caso, ainda há a imposição de um padrão do que é
considerado ser “mulher de verdade”, que não seria qualquer mulher.
Como estar dentro desse enquadramento? Uma das primeiras bases para
isso seria possuir a biologia de fêmea, coisa que Muriel não possui.
Ademais, é preciso também exercer os atos performativos de acordo com
o que nos foi ensinado, no decorrer da vida. Ainda, atender aos requisitos
citacionais limitantes e abusivos de ser boa mãe, boa esposa, bonita,
bem-sucedida, boa amiga, ou seja, atender a tudo, de forma perfeita. Ao
homem, as noções de gênero atropelam em termos de sensibilidade, pois
não é assim que um macho “de verdade” deve ser visto: bom pai,
amoroso, que cuida dos outros, que chora, que tem empatia, que escuta,
que dialoga.
Entender como é nocivo esse enquadramento em uma das duas
possibilidades já ajuda para que se possa questionar tais “verdades”. O
gênero é social, não é natural, por isso, um corpo que desafia a imposição
binária de gênero é um corpo que resiste, que transgride e que questiona.
Dessa forma, Laerte expressa sua identidade de gênero de maneira a
questionar a imposição binária de gênero (ademais, por não ter feito
modificações corporais de ordem cirúrgica), o que confirma a
performatividade de seu corpo em detrimento de um corpo físico binário.
202
Referências
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
203
PREVENÇÃO COMBINADA EM LIBRAS: A
PRODUÇÃO DE UM RECURSO DIDÁTICO PARA
A EDUCAÇÃO SEXUAL
Felipe Tsuzuki
Giovanna Camargo do Carmo
Francine Nagay Yamassato
Vinícius Colussi Bastos
(Universidade Estadual de Londrina)
204
COMBINATION PREVENTION IN LIBRAS: THE PRODUCTION
OF A DIDACTIC RESOURCE FOR SEXUAL EDUCATION
Contextualização
No passado, era comum a prática de esconder os filhos surdos
da sociedade, isto era decorrente da vergonha e do medo de ter concebido
um indivíduo diferente do padrão socialmente aceito como normal e
saudável. Portanto a maioria dos indivíduos surdos não saíam de suas
casas ou sempre estavam acompanhados dos pais para tal (MONTEIRO,
2006).
205
Neste contexto, a comunicação entre a família ouvinte e os
indivíduos surdos era bastante complexa, pois, ainda não era popular a
Língua de Sinais, ou, pouco aceita pelas pessoas que a conheciam. A
resistência no não uso da Língua de Sinais se dava, pois, culturalmente
era tido como “feio” fazer “gestos” ou “mímica” como forma de
comunicação com outras pessoas, e consequentemente, a Língua de
Sinais não era aceita como possibilidade de primeira língua de alguém
(MONTEIRO, 2006).
Diante deste cenário, os surdos eram isolados da sociedade e
permaneciam quase sem comunicação. Por muito tempo, a própria
comunidade surda não compreendia a importância da comunicação
através da Língua de Sinais para desenvolver o processo de construção
de suas identidades culturais, cognição e linguagem propriamente dita
(LEITE, 2004).
Atualmente, é possível observar um processo de mudança em
relação ao olhar da sociedade para a comunidade surda e suas
especificidades. Porém, tal processo ainda se dá de forma bastante lenta
dentro das políticas educacionais no Brasil. Há alguns anos atrás a
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) ainda possuía status de
linguagem, o que ocasionava certo preconceito e tabu. Hoje, a LIBRAS
possui status de Língua (MONTEIRO, 2006).
No que se refere ao histórico, a LIBRAS, evoluiu no século
XIX em contato com a Língua Francesa de Sinais (LSF) pelas mãos do
professor surdo francês E. Huet. Ele chegou no Rio de Janeiro em 1855
com a intenção de ideia de iniciar uma escola para surdos, e, com o apoio
de D. Pedro II, fundou o instituto Imperial de Surdos-Mudos em 1857,
que nos dias atuais é o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)
(DINIZ, 2010).
Já em 1875, emergiu a Iconographia dos Signaes dos Surdos-
Mudos, como reprodução do dicionário da LSF – proposta que seria para
facilitar a comunicação entre alunos surdos e professores ouvintes do
INES. Contudo, a liberdade em se expressar através da Língua de Sinais
foi brutalmente cessada quando foi divulgada a decisão tomada durante
206
o Congresso Internacional de Educação de Surdos: esta decisão refere-
se à rejeição das línguas de sinais nas escolas de surdos, permanecendo
o foco apenas para a língua oral, considerada como superior à Língua de
Sinais (DINIZ, 2010).
Por esta razão a LIBRAS passou a ser desvalorizada e
desprezada pela sociedade e na educação. Em resistência, os alunos
surdos do INES continuaram se comunicando através da LIBRAS de
maneira escondida, em todos os locais. Anos à frente, esta língua de
sinais já estava formada com um sistema linguístico, e então foi
difundida para o Brasil, visto que os alunos do INES não consistiam
apenas em pessoas nascidas no Rio de Janeiro. A medida que os alunos
voltavam para seus Estados natais, levavam com eles a LIBRAS (DINIZ,
2010). A LIBRAS é, atualmente, cada vez mais reconhecida pela
sociedade, na legislação, nas escolas, universidades, empresas e outros
setores.
Pensando nos esforços dos últimos anos no campo da
prevenção contra novas infecções pelo HIV e da organização do cuidado
das pessoas que vivem com o vírus, faz-se extremamente necessário
discutir e conscientizar a necessidade de politizar todos os espaços e
todos os públicos.
A prevenção tem sido uma questão crucial para os programas
de controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Nas décadas
passadas, o desconhecimento acerca desta temática era grande e era
evolvida de estigmas, preconceitos com a comunidade LGBTQIA+ 18 e
fundamentos religiosos, em um universo que associava as infecções à
promiscuidade e falta de cuidado. Com o desenvolvimento científico,
lutas de movimentos sociais, criação de políticas públicas e entre outros,
houve um aumento significativo no conhecimento acerca das IST, e
principalmente, sobre HIV e AIDS, como suas interações com o
18
Sigla que identifica as populações de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transgêneras, Transexuais e Travestis, Queer, Intersexo, Assexuais e Pessoas
que Vivem com HIV ou AIDS.
207
organismo, epidemiologia, tecnologias de tratamento e prevenção.
Ressalta-se, um grau elevado de conhecimento atingido acerca do
controle dos efeitos nocivos do HIV sobre o organismo humano.
A prática consistente do sexo seguro e a adesão à medicação
ou aos serviços de saúde, na maioria das vezes implicam em um desafio
permanente, dia após dia, situação após situação e pessoa após pessoa
(PAIVA, 2002). Diante desse desafio, a prevenção combinada se mostra
uma estratégia pertinente e promissora.
A prevenção combinada é uma estratégia que possibilita o uso
simultâneo de diferentes abordagens de prevenção, sendo elas,
biomédica, comportamental e estrutural. Tais abordagens podem ser
aplicadas em diferentes níveis, ou seja, individualmente, nas
parcerias/relacionamentos, comunitária e socialmente, com a finalidade
de atender às especificidades de todos os segmentos populacionais e de
formas de transmissão do HIV.
As intervenções biomédicas consistem em ações e práticas
voltadas para a redução do risco à exposição, mediante intervenção na
interação entre o HIV e a pessoa passível de infecção. As estratégias
desta categoria podem ser divididas em: intervenções biomédicas
clássicas, que consistem nos métodos de barreira física ao vírus, como as
camisinhas peniana e vaginal, já amplamente utilizadas no Brasil e o gel
lubrificante; e intervenções biomédicas baseadas no uso de
antirretrovirais (ARV), como o Tratamento Para Todas as Pessoas (TPP),
a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP).
As intervenções do tipo comportamentais se referem às ações
que aumentam as informações e a percepção do risco de exposição ao
HIV e para sua consequente redução, mediante incentivos a alterações
nos padrões comportamentais da pessoa, comunidade ou grupo social em
que está inserida. Como exemplos, tem-se: o incentivo ao uso de
preservativos peniano e vaginal, aconselhamento sobre IST e incentivo
à testagem como forma de prevenção.
Já as intervenções estruturais são ações focadas nos fatores e
condições socioculturais que influenciam diretamente na vulnerabilidade
208
ao HIV de indivíduos ou grupos sociais específicos, envolvendo a busca
por transvalorar o estigma historicamente construído do HIV e da AIDS,
preconceitos, discriminação ou qualquer outra forma de exclusão e
alienação no que se refere aos direitos e garantias fundamentais à
dignidade humana. Neste sentido é possível citar exemplos como:
práticas de enfrentamento e combate ao racismo, sexismo,
LGBTQIA+fobias, fomento e defesa dos direitos humanos, campanhas
e ações educativas e de sensibilização.
As novas estratégias de prevenção surgem como ferramentas
que podem complementar o enfrentamento da epidemia de HIV,
ampliando a gama de opções que os indivíduos terão para se prevenir
contra a infecção pelo vírus e oferecendo mais alternativas para que seja
possível que todos os públicos se previnam da maneira mais confortável
e eficiente possível.
Quando alguém fala ou ouve a palavra saúde, quase que
instantaneamente é relacionada com a condição geral do corpo. Porém
ela vai muito além que o bem ou mal estar do corpo físico do indivíduo,
pois, ela inclui também a saúde mental e a social. Com a preocupação de
haver uma saúde pública eficiente, em 1986 houve a primeira
conferência Internacional sobre promoção da Saúde e nela é citado que
a saúde não é responsabilidade somente do setor da saúde, ela é dever de
todos independente do ambiente.
No art. 196, assegura que “a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”. Porém, o que deveria por Lei ser direito de todos, não são
todas as pessoas que podem usufruir desses direitos, pois muitos
profissionais que deveriam estar preparados para atender as diferenças,
como por exemplo a comunidade surda, com o conhecimento sobre a
Língua de Sinais Brasileira. Por esse motivo, muitas pessoas que estão
inclusas nessa comunidade, necessitam de um acompanhante familiar ou
209
tradutor para o que deveria ser muitas das vezes alguma consulta muito
particular.
A partir desse contexto, é de suma importância que essa
educação se dê nas escolas também e seja inclusiva, pois esses alunos
que portam alguma deficiência auditiva, assim como outros alunos, eles
passam grande parte de suas vidas dentro do ambiente escolar, o período
que eles vivenciam no mesmo, que seria desde criança até sua
adolescência, é exatamente quando eles começam uma maior interação
social, transformações do corpo, iniciação da atividade sexual, busca de
identidade, entre outras. Com isso professores tem o papel de construir e
estimular atitudes e valores reflexivos, conduzindo o jovem a tomar
decisões e ações para que ele tenha uma saúde física, mental e social
saudável, mas que não se limite a ele e sim que possa intervir nos
indivíduos que o rodeiam.
Uma vez que o déficit na disseminação da LIBRAS intensifica
a dificuldade de acesso à saúde pela comunidade surda, pode-se
considerar que este fato aumenta as vulnerabilidades desta população,
tornando-se uma questão de saúde pública. Nesse contexto, este trabalho
teve como objetivo a produção e a avaliação de um recurso didático
visual que busca promover a saúde sexual e a prevenção combinada.
Método
Para a produção de um recurso didático que atendesse e
incluísse a população surda, foi escolhido a modalidade visual, e para
tanto foi necessário realizar uma análise crítica das diversas tecnologias
disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a prevenção de
Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e HIV e AIDS, seus modos
de uso, locais que os disponibilizam e o uso combinado desses
instrumentos. Para o registro dos vídeos, utilizou-se uma câmera digital
semiprofissional (Canon Powershot Sx530 Hs), os quais foram
posteriormente editados, unidos e legendados pelo programa VEGAS
Pro 15.
210
O processo criativo e a iniciativa se deram na disciplina de
LIBRAS, que é ofertada aos estudantes do curso de licenciatura em
Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL), na
qual foi proposto a produção de uma videoaula de algum conteúdo
referente a biologia em LIBRAS. Por meio de pesquisas e da atuação no
projeto de extensão “Educação para a Sexualidade: Diálogo entre UEL e
a Educação Básica”, os autores e as autoras encontraram a realidade
relatada neste trabalho e voltaram-se ao trabalho em Educação Sexual e
Saúde.
211
tentativa de associação entre os termos em língua portuguesa e em
LIBRAS, tornando explícito a necessidade de sinais que compreendam
uma abrangência maior no vocabulário. Entretanto, não cabe a este
trabalho ou aos autores deste, que não são pessoas surdas, criarem esses
sinais, isto seria impositivo e afetivamente distante. Acreditamos que por
meio de uma Educação Sexual e em Saúde para todos essa produção irá
emergir com a própria comunidade surda e ser feito em colaboração com
diferentes áreas do conhecimento como no estudo de Souza (2014).
Diferentemente de outros trabalhos feitos nesses moldes,
optou-se pelo recurso de legenda durante o vídeo. Isto, pois, desta forma
o recurso didático pode ser inclusivo e não exclusivo. Assim, em uma
sala de aula com estudantes ouvintes e surdos, o vídeo produzido pode
ser apresentado na língua de ambos os grupos de estudantes. Com isso,
assume-se que esta ferramenta tem potencial de promover a saúde sexual
por meio da disseminação destes conhecimentos de forma inclusiva.
Considerações finais
De acordo com o que foi exposto, encontra-se um paradigma:
há uma necessidade explícita de mais materiais didáticos como este e,
concomitantemente, a presença de barreiras e impedimentos da própria
língua de sinais que dificultam a comunicação pela escassez de
vocabulário, assim tornando mais trabalhoso a produção de vídeos como
este.
Considerando que esta ferramenta tem potencial de facilitar o
acesso à informação, acredita-se que este vídeo contribua com o
aprendizado crítico de assuntos acerca da temática e proporcione o
acesso a saúde sexual. Logo, a divulgação deste material didático nas
plataformas visuais disponíveis na internet faz com que tais saberes
cheguem a mais pessoas da comunidade surda, bem como a mais
profissionais da educação e da saúde.
Referências
212
AYRES, J.R.C.M. Educational practices and the prevention of
HIV/Aids: lessons learned and current challenges, Interface _
Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.11-24, 2002.
213
OLIVEIRA, Janine Soares de et al. Análise descritiva da estrutura
querológica de unidades terminológicas do glossário Letras-Libras.
2015.
214
O ARTIVISMO QUEER-TRAVECO-
TERRORISTA DE LINN DA QUEBRADA E
A FRATURA EXPOSTA DA CIS E
HETERONORMATIVIDADE
Matheus Zaffani Borges
(Universidade Estadual Paulista/ Bauru)
Luiz Henrique Moreira Soares
(Universidade Estadual Paulista/São José do Rio Preto)
215
Among a series of artists who produce about/on the sexual dissidences,
the artistic and musical performances of Linn da Quebrada are
configured as ethical-political proposals of queer intervention on the
heteronormativity. On stage and in her lyrics, the artivism of Linn
problematizes about the many stray bodies that inhabit the south of the
Ecuador, through irreverent (re)creations that produce powerful
(de)teachings for (re)thinking the fabrication of the still identities, of
gender and sexualities (COUTO JÚNIOR; SILVA, 2018). Consequently,
this study aimed to analyze Linn da Quebrada's artivism, with the lyrics
of "(+ Muito) Talento" and "Bomba Pra Caralho", tracks featured on
her album “Pajubá”, from 2017. Based on the postulates of the queer
studies, in the figures of Judith Butler (2003) and Paul Beatriz Preciado
(2017), we can perceive the fingers that Linn points towards the cis and
heteronormativity, exposing its oppression actuation, but also its
fragility and fracture.
Keywords: Artivism. Lyrics. Media. Sex Education. Queer theory.
Introdução
As flexibilizações identitárias, produzidas pela modernidade,
têm dado dinâmicas constantes às diversas posições de sujeito. Pelo
menos no Brasil, na última década, tem-se assistido ao (res)surgimento
de uma série de novas e novos artistas, imbuídos por linguagens variadas
e experimentações que questionam e problematizam hegemonias,
violências e os discursos naturalizantes de gênero e de sexualidades. A
literatura, a música, o cinema e a pintura têm sido suporte dessas
experimentações, muitas vezes como forma de confronto à heteronorma
e à reafirmação política.
Para Leandro Colling (2017), a proliferação de novas(os) artistas
LGBT+ é produto de movimentos muito específicos, como: o
crescimento dos estudos de gênero/sexualidades e os estudos queer no
país; o advento das mídias sociais; o espaço adquirido pelas discussões
de gênero/sexualidades na TV e a consequente visibilidade de
identidades até então excluídas dos espaços de poder; bem como o
216
contexto sócio-político de avanço dos conservadorismos e das diversas
formas de aniquilação política.
No cenário musical atual, é possível elencar, entre as(os)
várias(os) que produzem sobre/nas dissidências sexuais: As Bahias e a
Cozinha Mineira, Banda Uó, Danna Lisboa, Glória Groove, Horrorosas
Desprezíveis, Jaloo, Johnny Hooker, Lia Clark, Liniker e os
Caramelows, Linn da Quebrada, Lulu Monamour, Mulher Pepita, Não
Recomendados, Pabllo Vittar, Quebrada Queer, Rico Dalasam, Solange
Tô Aberta, Valéria Houston, Verónica Decide Morrer, e Zerzil.
Essas novas discursividades e poéticas, além de produzirem
espaços de luta nas ruas e na produção cultural e acadêmica, também
produzem “processos de invasão”. Em outras palavras, por meio das
experimentações do pop, do brega, do funk e da música eletrônica, tem-
se produzido discursos de questionamento do regime heteronormativo.
Apesar de ritmos, estilos e sonoridades distintas, todas(os)
essas(es) artistas advogam da mesma possibilidade e potência de
questionamento da heterossexualidade e das naturalizações de gênero e
de sexualidades: o artivismo, entendido nas palavras de Colling, Sousa
e Sena (2017, pp. 200-201) como uma “expressão política que
problematiza, através das artes, as mais diversas questões sem o corrimão
das identidades fixas e que privilegia a experiência do corpo em
trânsito”.
Assim comentam Rafael Guimarães e Cleber Braga (2017, p.
30):
217
pessoas trans, travestis, drags, viadas, sapatões, e
também artistas interessadas em colocar em dobra
suas vidas e suas obras, coletivamente.
218
interior do estado, nas cidades de Votuporanga e São José do Rio Preto.
“Bixa, louca, preta, favelada” (QUEBRADA, 2017). Foi criada por sua
tia, em contato com a religião jeovista; no começo, enfrentou muitos
preconceitos da família e da comunidade religiosa ao assumir-se
homossexual e, posteriormente, transexual/travesti (PEREIRA, 2016).
Com isso, abandonou a religião, saiu da casa da família e voltou para a
capital. Passou então a dedicar-se a diversos ramos da arte, incluindo a
música, realizando shows e performances em boates e bares.
Durante alguns anos, Linn esteve em quimioterapia, enfrentando
um tumor testicular, justamente no símbolo da masculinidade que
buscava destruir. Essa história de epifania de mortalidade,
incompreensão e submissão médica, recuperação e instabilidade, ela
relata em uma publicação de rede social (QUEBRADA, 2016).
Durante o ano de 2016, lançou suas primeiras músicas autorais,
alcançou sucesso de visualizações nas plataformas digitais, adentrou a
carreira musical por meio do nome artístico “MC Linn da Quebrada”,
sendo o prefixo “MC” retirado algum tempo depois. Desde então,
embarcou em turnês nacionais e internacionais, apresentou-se em
programas televisivos (como “Amor & Sexo”, da Rede Globo),
concedeu várias entrevistas e reportagens a revistas e projetos (Vogue,
Elle, Melissa), fez aparição em documentário e em filme. Muito
recentemente, uma reportagem de janeiro de 2019 do jornal alemão
Deutsche Welle (DW) publicou sobre sua liderança na resistência trans-
negra no ‘Brasil de Bolsonaro’ (SMUGMAN, 2019), o que mostra sua
influência já se alastrando pelo mundo e com cunho político forte em
favor das(os) LGBT+.
Suas músicas contam sua história e a de outras(os), manifestam
a teoria queer e a contrassexualidade, empoderam os corpos mais
marginalizados dentro das LGBT+. O jogo de palavras em suas
composições é uma de suas características mais marcantes, ainda mais
usando vocabulário e gírias próprias das(os) LGBT+. Está, inclusive,
presente até em seu nome artístico: Linn da Quebrada… linda quebrada.
A Linn que vem da quebrada (periferia pobre e violenta) paulista. E as
219
lindas quebradas, as bixas pretas, partidas e miseráveis (SMUGMAN,
2019). “Tô bonita?/ Tá engraçada…/ Eu não tô bonita?/ Tá engraçada…/
Demorei tanto pra ser aplaudida,/ mas até agora só deram risada”
(QUEBRADA, 2017). Linn canta sobre a opressão, a quebra emocional
e social, a desconstrução, a reconstrução e colagem das peças, a
transformação e a intervenção. Afinal, “Ser viado não é só close,/ batom,
glitter e purpurina” (QUEBRADA, 2017).
Um ponto marcante de aplausos foi o lançamento, em 2017, de
seu álbum audiovisual de estreia, o “Pajubá”, contendo as músicas já
lançadas, mais algumas novas, que Linn percorre mundo a fora
divulgando até a data presente.
O título faz referência ao dialeto (ou socioleto) Pajubá (ou
Bajubá) que é linguagem de resistência, construída a partir de
palavras/expressões africanas, usada por praticantes de religiões afro-
brasileiras como o candomblé; a partir da ditadura militar, passou a ser
usada também por travestis e grande parte da comunidade LGBT+, como
código (BARROSO, 2017). O termo significa “fofoca”, “novidade”,
“notícia”. O dialeto inclui inúmeras expressões curiosas que facilmente
podem ser encontradas e traduzidas pela internet. Em 2018, o ENEM
apresentou uma questão mencionando o Pajubá, fato que foi muito
notável na luta progressista, mesmo tendo gerado polêmicas.
“Eu chamo esse álbum de Pajubá porque, para mim, ele é
construção de linguagem e invenção, é ato de nomear. É mais uma vez
resistência”, explica Linn em entrevista (GENTE, 2017), “A ideia é
produzir um espaço de intervenção sexual, uma rede de apoio e
fortalecimento entre o feminino, independente em que corpo estiver”.
O álbum foi lançado como um projeto de crowdfunding
(angariação coletiva). Em 11 de abril de 2017, Linn lançou em uma
plataforma digital a possibilidade de fãs e investidores doarem verba,
recebendo em troca recompensas, desde merchandising a shows
particulares. A angariação excedeu a quantia necessitada, mostrando a
grande aposta no seu trabalho. Para Oliveira (2017), o fato de o álbum
ter sido crowdfunding o insere em novas formas de produzir e divulgar
220
trabalho: o copyleft, um sistema alternativo ao copyright, uma forma de
trabalhar as produções artísticas, científicas, culturais, entre outras, a
partir da perspectiva do compartilhamento em recursos abertos (open
source), em oposição à privatização e centralização da informação.
Assim, vai ao encontra da demanda e/ou do acesso das pessoas mais
marginalizadas.
Com direção de BadSista, o álbum conta com dezesseis faixas, a
saber, na respectiva ordem: “(+Muito) Talento”, “Submissa do 7º Dia”,
“Bomba Pra Caralho”, “BixaTravesty”, “Transudo”, “Necomancia”
(com participação de Gloria Groove), “Coytada”, “Pare Querida”, “Dedo
Nucué” (com participação de Mulher Pepita), “Enviadescer”, “Pirigoza”,
“Tomara”, “Serei A” (com participação de Liniker), “A Lenda”, “Bixa
Preta” e “Mulher” (QUEBRADA, 2017).
Eleito pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA)
como um dos melhores álbuns brasileiros de 2017, o Pajubá é definido,
segundo a própria Linn como um disco “afro-funk-vogue”, valorizando
elementos sonoros trans-nacionais.
Em seu website, Linn compara seu álbum de debut com o álbum
de 2016 da afro-americana feminista Beyoncé: “Era um Lemonade
Transvyada que vocês queriam, meninas?” (QUEBRADA, [s.d.]). E
qualifica-o como “celebração e (re)existência […]. É sobre nossas vidas.
É nossa.” (QUEBRADA, [s.d.]). Nele, ela afirma: “Eu falo de mim, mas
em essência falo também de várias questões ligadas ao feminino e ao que
sinto dentro da comunidade TLGB. Solidão, erro, afeto, corpos
preteridos, eu queria um novo vocabulário para tudo isso”
(QUEBRADA, [s.d.]). Ainda completa: “Estivemos sempre de joelhos
dobrados nessa sociedade, senão diante da oração, da ereção. Em Pajubá
eu refaço tudo isso: tiro o macho do centro e dou o foco total aos corpos
de essência feminina e a seus desejos” (QUEBRADA, [s.d.]).
Para Silva e Meireles (2018), “Pajubá” é uma obra de tom, corpo
e caráter que resistem uma vez mais pela palavra como ação no mundo.
Suas letras
221
constituem pontos de vista de subjetividades
(re)negadas cujos desejos são interpelados pela
norma social binária de gênero e pela
masculinidade hegemônica. Em suas composições,
tais subjetividades reclamam seus lugares de
enunciadoras e tornam visíveis, audíveis e
explícitas suas demandas, negações, intensidades e
potencialidades ao desestabilizar as ordens sobre
suas experiências sexuais afetivas. As
reelaborações das experiências de sexo anal
compreendem um discurso que, entre expressões
lexicais do pajubá, imagens, vozes e sons,
subvertem, através da linguagem, as restrições e
ordens nas experiências anais (p. 1).
222
Sobre o terrorismo no seu trabalho, Linn argumenta, em várias
publicações (TRÓI, 2018; PEREIRA, 2016; SMUGMAN, 2019): a
violência para corpos como o seu, pretos, transviados, de quebrada, está
posta, então é necessário responder também com ‘terror’, colocando o
corpo como arma, protesto, manifesto, pólvora.
223
estabelecimento de políticas brasileiras pensadas
pela e para agências trans. Autópsias autoaplicadas
sendo também uma forma de se pensar táticas de
ocupação política dos campos normativos da
sociedade. Eu amo a traveco-terrorista-etc. acho
que porque sou dessas.
Método
Este estudo se caracteriza como qualitativo, de natureza básica e
caráter descritivo. O objeto de estudo são as letras de duas músicas de
Linn da Quebrada, “(+ Muito) Talento” e “Bomba Pra Caralho”, faixas
do seu álbum “Pajubá”, do ano de 2017, que foram coletadas do encarte
224
do álbum e adaptadas conforme a música ouvida.
A análise foi feita com base nos estudos queer, principalmente
nas figuras de Judith Butler (2003) e Paul Beatriz Preciado (2017).
225
como ordem que legitima a sujeição de certos
corpos a outros. A contrassexualidade é. Em
primeiro lugar: uma análise crítica da diferença de
gênero e de sexo, produto do contrato social
heterocentrado, cujas performatividades
normativas foram inscritas em corpos como
verdades biológicas (Judith Butler, 2001). Em
segundo lugar: a contrassexualidade aponta para a
substituição desse contrato social que
denominamos Natureza por um contrato
contrassexual (PRECIADO, 2017, p. 21).
226
2 Que eu não vou te chupar escondida no14 Que tava pra ser extinto
3 banheiro 15 Que não adiantava nada
4 Você sabe, eu sou muito gulosa, 16 Bancar o machão se valendo de pinto
5 Eu não quero só pica, quero corpo inteiro 17 Tu se achou o gostosão, né?
6 Nem vem com esse papo 18 Pensou que eu ia engolir
7 Feminina tu não come? 19 Ser bicha não é só dar o cu
8 Quem disse que, linda assim, 20 É, também, poder resistir
9 Eu vou querer dar meu cu pra homem? 21 E eu vou te confessar
10 Ainda mais da sua laia 22 Que, às vezes, nem eu me aguento
11 De raça tão específica 23 Pra ser tão viado assim, precisa ter
12 Que acha que pode tudo 24 muito…
Na força de deus e na glória da pica Muito, muito, muito, ma(i)s muito
talento
Fonte: QUEBRADA (2017), adaptado.
227
Linn, ao rejeitar o discurso heterocentrado, baseado em uma
relação sexual figurada pela presença (necessária e primordial) de um
pênis, rejeita também uma relação de poder e submissão do seu corpo a
outro: versos 5 a 12.
Os binarismos e as naturalizações do corpo, da sexualidade e do
gênero estabelecem-se como esferas de atribuição do conceito de
“normal” e “anormal” – produz o “anormal” a partir do momento em que
instaura o significado na normalidade. Linn, por meios discursivos,
“aterroriza” os critérios normativos de atribuição dessa normalidade
(versos 3, 19 e 20). A “raça tão específica” (verso 10), da qual fala Linn,
pode ser interpretada não como um corpo em específico, mas uma
ordenamento heteronormativo que é privilegiado nos processos de
submissão/dominação; um ordenamento definido como “normal”,
aquele que não precisa se esconder, que é (re)conhecido e inteligível pela
ordem social.
O que parece operar nas letras de Linn da Quebrada, a partir da
primeira pessoa do singular (“nem eu me aguento”, verso 22), é a
produção de um espaço singular de resistência (também como
experiência de recusa e exposição), fazendo da abjeção, simbolizada por
seu corpo, sua voz e sua escrita, estratégia de “despedaçamento” da
norma. Judith Butler (2003; 2000), filósofa americana, define a abjeção:
228
sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, “dentro”
do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio
(BUTLER, 2000, p. 153)
229
11 Morto, vivo, morto, morto, morto, viva! 26 passado
12 Bomba pra caralho 27 Presente futuro-mais-que-perfeito
13 Bala de borracha 28 Em cima do muro
14 Censura fratura exposta, fatura da viatura 29 Em baixo de murro, no morro, na
15 Que não atura pobre preta revoltada marra
16 Sem vergonha, sem justiça, tem medo de30 Quem morre sou eu?
nós? Ou sou eu quem mata?
Não suportam a ameaça dessa raça Quem mata, quem multa, quem mata
Que, pra sua desgraça, a gente acende, sou eu?
(a)ponta Ou sou eu quem mata?
Mata a cobra, arranca o pau
Fonte: QUEBRADA (2017), adaptado.
230
determinada ideia de jogo presente no discurso. A “morte” a “vida”
aparecem intrincadas, estar “morto” e estar “vivo” não é mais captável
pela linguagem, que não consegue dar conta dos processos simbólicos de
aniquilação social enfrentados pelas experiências trans. O recurso ainda
é utilizado em outras passagens como nos versos 9 a 13, ao enfocar
vocábulos que usam as letras “p”, “b” e “t” (bomba, borracha, fratura,
fatura, viatura, pobre, preta, revoltada) e intensificar, linguisticamente, o
sentido de violência no próprio corpo do texto.
O enfrentamento e a resistência de Linn, nesse sentido, são
exemplificados pela maneira como se organiza o discurso: versos 14 a
16. Ao “acender”, “(a)pontar”, “matar a cobra” e “arrancar o pau”,
estabelece-se um processo não só de subversão da criação divina de um
“homem” e de uma “mulher” (mito de Adão e Eva), uma vez que a
“cobra”, segundo o mito, simbolizaria a ascensão do mundo ao pecado
(e, logo, a produção do bem e do mal) e o “pau”, o símbolo de uma
masculinidade exemplar, hegemônica e primeira (Adão, o primeiro
homem); mas também de um processo de subversão da própria
linguagem (“mata a cobra e mostra o pau” é uma expressão popular que
significaria “provar a realidade dos fatos”).
Podemos dizer que, ao “matar a cobra” e “arrancar o pau”, Linn
desconfigura noções como “natureza”, “verdade” e “normalidade”, além
da falsa estabilidade de “homem” e de “mulher”. Mas a produção de Linn
parece propor a não apenas a ideia de desfiguração, mas também de
supressão. Nos versos 17 a 21, alguns fonemas parecidos aparecem em
conjunto, integrados, sustentando esteticamente a fragmentação da
linguagem e da própria identidade do sujeito, entendida como uma
produção descontínua e contingente (HALL, 2000).
Ao utilizar repetidamente o recurso de repetição fonética (passa,
fumaça, chuca, sol, ócio, ofício, polícia, comércio), típico do rap, e
também ao jogar com as palavras (“faça chuca ou faça sol”, em vez de
faça chuva ou faça sol), o discurso de Linn tenta fugir de tradicionalismos
da linguagem para criar seu próprio espaço de (re)existência. Uma das
potências do queer é justamente a produção de uma nova gramática que
231
abrigue outros corpos. Nesse sentido, o trabalho de Linn com a
linguagem se estabelece em um processo de desconfiguração e
desconstrução discursiva.
Nos versos finais, 23 a 30, a voz discursiva retorna ao jogo do
início da música (morto-vivo), qualificando a sua ação com a palavra
como “destruidora”: agora, ao colocar-se na primeira pessoa do singular,
utilizando-se de um discurso que se autorrecicla, autocompõe e
autossustenta, na “guerra” de morrer ou viver, morrer ou contra-atacar.
Também nos faz repensar: a fratura exposta é da pobre preta revoltada?
Ou é a da masculinidade, da cis e heteronormatividade? Torcer a
linguagem é torcer as formas de representação estanques, as formas de
visão estanques, colocando em xeque as noções de “autenticidade”,
“organicidade” e “naturalidade”.
(In)conclusões
Assim como Linn se descreve como inacabada, inconclusa, em
obras, não estática, em trânsito, trans, suspenderemos este estudo com
algumas considerações finais que não encerram uma análise, uma artista
e um tema com tantas possibilidades.
A partir de um breve olhar investigativo sobre as canções “(+
Muito) Talento” e “Bomba Pra Caralho”, observou-se a maneira como a
performance linguístico-discursiva de Linn, nas letras em questão, revela
os processos de controle e regulação dos corpos (organizados por
complexas marcações de gênero/sexualidade, etnia/raça e classe social)
e desloca o olhar do modelo euro-cis-hetero-centrado de ver o mundo.
A faixa que abre o álbum de estreia de Linn, “(+ Muito)
Talento”, que se assemelha a um discurso/manifesto em sua sonoridade,
enfoca as relações sociais-afetivas-sexuais, rejeitando o ‘normal’ e o
falocentrismo impostos, e erguendo a voz da contraposição, da
resistência, da contrassexualidade. Enquanto isso, a terceira faixa,
“Bomba Pra Caralho”, também se aproximando de um discurso, mas
roçando o território musical do rap, enfoca a violência literal e
epistêmica, tanto física quanto psicológica/moral, portando o grito da
232
sobrevivência, do contra-ataque. E ambas as músicas vão se encontrar no
que toca ao acusar as imposições das verdades, ao ir contra as normas;
ao puxar a manga e os curativos e revelar as cicatrizes e os ferimentos
sofridos; e ao expor as feridas também nos agressores, apontando o dedo
(enfiando-o, na verdade) à fragilidade e fratura da cis e
heteronormatividade, que predomina e domina, mas não vinga, tem
falhas e está desabando.
As experimentações estéticas e linguísticas da Linn também se
estabelecem como potências na medida em que ela busca um espaço
possível para falar de si (e não só), performando processos de
subjetivação constantes. Linn se coloca como produtora de um discurso
sobre si, em reconstrução e reinvenção constante; poetizando a crise da
essencialidade, refundando o seu próprio “eu” (ou “eus”), fazendo do
caráter abjeto uma matéria/método/estética de desconfiguração das
normas, e isso se dá no caráter do discurso, uma vez que ela desconfigura
a linguagem (masculinizada) e se reinventa.
Ao utilizar a linguagem sob formas desconfiguradas da tradição,
intenta-se a produção de um espaço habitável, empreendida pelo corpo.
O artivismo de Linn, nesse sentido, produz outras realidades, de
enfrentamento e resistência, e é investido a partir de processos potentes
de desconfiguração de imagens e discursos hegemônicos e binários,
processos traveco-terroristas de gênero (LUSTOSA, 2016), que revisam
os espaços sócio-históricos e culturais demarcado para os corpos negros,
periféricos e transviados, que podem ser entendidos, segundo Larissa
Pelúcio (2012, p. 399), como propostas e esforços queer de “prover outra
gramática, outras epistemologias, outras referências que não aquelas que
aprendemos a ver como verdadeiras”.
Assim, aproveitando os termos ‘artivismo’, ‘intervenção queer’,
‘terrorista de gênero’ já muito (auto)atribuído a Linn, e “traveco-
terrorista” explicado por Lustosa (2016), denominamos a produção de
Linn da Quebrada como artivismo queer-traveco-terrorista, pois se
configura nessa manifestação contrassexual e da teoria queer, a favor
principalmente das identidades trans, contra as normatizações impostas.
233
Que faz tanto de forma ‘agressiva’, ativa, na sua performance e na sua
poesia, expondo e atacando os fatores marginalizantes, e incentivando
outras(os) a fazerem o mesmo; quanto de forma ‘pacífica’, ‘passiva’,
apenas sendo a Linn e encorajando outras(os) a se serem…, a se
buscarem, se aceitarem e se afirmarem. Tão importante nos dias de hoje,
em que o conservadorismo político e religioso ameaça desabar
conquistas e barrar lutas. Assim, Linn fala por quem não tem voz, mas
também passa o microfone a corpos diversos oprimidos que também
querem cantar, gritar.
Referências
BARROSO, Renato Régis. Pajubá: o código linguístico da
comunidade LGBT. Dissertação (Mestrado em Letras e Artes).
Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, 2017.
234
COUTO JUNIOR, Dilton Ribeiro Couto.; SILVA, João Paulo de
Lorena. Corpos transviados ao sul do Equador: o que Linn da Quebrada
tem a nos (des)ensinar? Revista COCAR, Belém, v.12, n.23, 2018, pp.
318-241.
235
PEREIRA, Néli. De testemunha de Jeová a voz do funk LGBT, MC
Linn da Quebrada se diz 'terrorista de gênero'. BBC Brasil / G1. 12
set. 2016. Disponível em:
<http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/09/de-testemunha-de-jeova-
voz-do-funk-lgbt-mc-linn-da-quebrada-se-diz-terrorista-de-
genero.html>. Acesso em 18 out. 2018.
TRÓI, Marcelo de. Obra das travas: entrevista com Linn da Quebrada.
In Periódicus. Revista de estudos indisciplinares em gêneros e
sexualidades, n. 10, v. 1. Salvador: UFBA, 2018-2019. pp. 446-457.
236
<https://www.linndaquebrada.com/>. Acesso em 20 out. 2018.
237
O MEME DE INTERNET: O REFORÇO DE
ESTEREÓTIPOS SOBRE A POPULAÇÃO
LGBTI+
Guilherme Popolin
(Universidade Estadual de Londrina)
238
meme as a potential source of misinformation, depending on the way in
which it's used. By replicating a meme without proper reflection of it’s
content, the individual may intentionally or not contribute to the
reinforcement of stereotypes and to increase hate speech about the
LGBTI+ population.
Key words: Internet memes; stereotypes; LGBTI+
Enquadramento teórico
Os memes de internet podem funcionar como instrumento de
contestação sobre fatos e notícias tendenciosas, ou até como uma simples
piada carregada de ironia. Ao mesmo tempo em que existem memes
produzidos para romper os estereótipos – de gênero, político ou social –
, existem aqueles que os reforçam. Este trabalho analisa memes de
internet de discussão pública (CHAGAS et al., 2017), coletados na
página O Retrógrado, no site de rede social Facebook, identificada como
uma página de direita, em postagens que buscam emitir opiniões e
valores sobre a população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Travestis e Intersexuais). Limor Shifman (2014) define os
memes de internet como grupos de itens com características semelhantes,
os quais são, com possibilidades de imitação e recriação, reflexos de
vozes coletivas e de vozes individuais, isto é, “(a) Um conjunto de
elementos digitais que partilham características comuns de conteúdo,
forma e/ou (b) foram criados com consciência uns dos outros, e (c) foram
disseminados, imitados e/ou transformados pela Internet por muitos
usuários”19 (p. 41, tradução nossa).
A reprodução de um padrão de opressão pelos memes faz com
que ideias conservadoras, tradicionais e preconceituosas continuem a
transitar pelo imaginário das pessoas que se identificam com esses
mecanismos de opressão como forma de defesa de uma moral,
19
“(a) a group of digital items sharing common characteristics of content, form,
and/or stance, which, (b) were created with awareness of each other, and (c)
were circulated, imitated, and/or transformed via the Internet by many users”.
239
geralmente calcada em valores tradicionais e religiosos. Essa forma de
defesa dos valores tradicionais pode levar à reprodução de um discurso
de ódio, que carrega também ideias preconceituosas e intolerantes. Ideais
conservadores levam à reprodução de estereótipos, explorados neste
trabalho sob as perspectivas de Peter Burke (2004) e Stuart Hall (2016).
A replicação dos memes analisados reforçam os estereótipos sobre a
população LGBTI+ no Brasil. O embasamento sobre gênero e identidade
fica por conta dos estudos de Laura Moura de Quadros (2015), que
explora as contribuições de Judith Butler em sua análise. Os memes
analisados foram coletados e arquivados em um backup pelo autor; não
foi possível colocar o link específico de cada meme porque a página
original foi excluída.
Método
A metodologia contempla três etapas: coleta e catalogação dos
memes; revisão bibliográfica; e análise de conteúdo. Foram coletadas
2.947 imagens postadas pela página do site de rede social Facebook O
Retrógrado, no período de 17/07/2016 até 18/08/2017. Do total de 2.947
arquivos, imagens repetidas e imagens de cunho publicitário foram
deletadas. Restaram 2.596 imagens: 69 imagens foram alocadas na
categoria Gênero e sexualidade. A coleta das imagens na página
supracitada foi feita com o auxílio da ferramenta DownAlbum, uma
extensão do Chrome Web Browser. De maneira preliminar, os conteúdos
postados pela página O Retrógrado identificam-se com as pautas da
direita20.
Após a coleta e categorização, a metodologia contempla a
revisão bibliográfica (GERHARDT & SILVEIRA, 2009). Essa etapa
20
O binômio direita e esquerda sintetiza propostas de políticas antagônicas
(BOBBIO, 2001). A polarização entre direita e esquerda enfrentada pelo Brasil
atualmente combina velhas e novas questões. Resumidamente, a esquerda busca
a igualdade entre os seres humanos e a mudança da ordem social. Já a direita
considera a desigualdade como inerente aos seres humanos, ao mesmo tempo
em que valoriza o apego às tradições.
240
apresenta os conceitos que norteiam a pesquisa a partir de autores que
pensaram diretamente ou indiretamente sobre o tema abordado. Além
disso, sua validade reside na exposição e na articulação das visões de
diferentes pesquisadores sobre o corpus deste artigo. Em seguida, a
análise de conteúdo (HSIEH & SHANNON, 2005), com caráter
qualitativo, busca compreender e interpretar os objetos da pesquisa,
codificando os significados expostos, de acordo com a revisão
bibliográfica. A análise de conteúdo segue uma linha interpretativa,
composta pela descrição dos objetos, identificação de temas e padrões.
241
latente, e, geralmente, materializam-se a partir de uma imagem estática
com legendas sobrepostas ou com a adição de elementos característicos
das fotomontagens. Ademais, “flertam com a ironia e o humor
subversivo, dessacralizam e deslocam sentidos.” (p. 95)
O percurso teórico segue com Peter Burke (2004), que estuda
a construção do estereótipo como resultado do choque de culturas
diferentes. Para o autor, “o estereótipo pode não ser completamente falso,
mas frequentemente exagera alguns traços da realidade e omite outros.”
(p. 155) Neste artigo, a compreensão de Burke (2004) sobre o estereótipo
é aplicada sobre os memes que representam o choque entre a
heteronormatividade e a população LGBTI+. Na maioria dos
estereótipos verifica-se formas hostis e desdenhosas de tratar o Outro,
uma vez que o distanciamento do eu para com o Outro é fortemente
evidenciada por meio de imagens e signos – carregados de estereótipos
e preconceitos – que mediam a visão que se tem de outra pessoa. A
estereotipagem impõe um limite entre o que é “normal” e o que é
“pervertido”, entre o “aceitável” e o “inaceitável”; entre o “pertencente”
e o não pertencente, no caso, o “Outro”; a manutenção simbólica e social
é fomentada pela estereotipagem e “envia para o exílio simbólico todos
Eles, “os Outros”, que são de alguma forma diferentes, “que estão fora
dos limites.”” (HALL, 2016, p. 192)
De acordo com a pesquisa de Laura Moura de Quadros (2015),
as instituições dominantes – o Estado, a Igreja e o sistema capitalista –
regularam as sexualidades ao longo dos anos, por meio de seus discursos
hegemônicos. Foi a partir do século XIX que o corpo e a sexualidade
humana foram moralizados perante a vida social. Um movimento de
hierarquização das sexualidades ascendeu – conforme a consolidação do
capitalismo e da burguesia, distinguindo o que seria correto, adequado
aos padrões e que deveria ser estritamente seguido. Formas de
sexualidade que não estavam em conformidade com a
heterossexualidade receberam a alcunha de imorais e patológicas, de
modo que práticas diferentes da heterossexualidade e os indivíduos que
as praticavam eram considerados impróprios, inadequados à sociedade.
242
O discurso hegemônico levou à discriminação, à criminalização, à
punição e à patologização de comportamentos sexuais que não seguiam
o padrão heteronormativo (PRADO; MACHADO, 2008).
O gênero como construção social foi demonstrado por Judith
Butler, visto que o que é masculino e o que é feminino extrapolam o
conceito de sexo binário biológico. A noção de gênero e suas
possibilidades ultrapassam, assim, o aspecto morfológico, pois entende-
se a heterossexualidade como um regime de poder e discurso, enquanto
a homossexualidade tem um valor menor. A homossexualidade é muitas
vezes ligada à ininteligibilidade cultural, à dessexualização do corpo
feminino – no caso das lésbicas – e considerada inadequada. Butler
denomina como “performance” os comportamentos que mulheres e
homens praticam e que são considerados como adequados pela sociedade
(BUTLER, 2014).
No campo das representações sociais, Serge Moscovici (2011)
analisa as “formas assumidas forçadamente por coisas ou pessoas para
que se encaixem em categorias determinadas na realidade social, caso
contrário, podem não ser compreendidas ou decodificadas
adequadamente pela sociedade” (apud QUADROS, 2015, p. 19). As
representações feitas e impostas sobre algo são construídas ao longo dos
anos, com o passar das gerações, por meio da união de um sistema de
imagens, da memória coletiva e de reproduções na linguagem. Com as
representações compreende-se e comunica-se uma ideia a uma imagem
ou uma imagem a uma ideia.
243
grossa e pelos, no caso de travestis. (QUADROS,
2015, p. 20)
244
2004). É possível identificar dois estereótipos nesse meme: o primeiro
está ligado ao padrão heteronormartivo, em que para que um casal seja
reconhecido como tal ele precisa ter a capacidade de se reproduzir. Um
casal formado por dois homens não pode se reproduzir biologicamente
e, muitas vezes, esse argumento é utilizado para invalidar os
relacionamentos homossexuais, reduzindo um casal ao aspecto da
procriação. Entretanto, existem outras formas de conceber e gerar uma
família, como a adoção ou a maternidade de substituição; o segundo
estereótipo está relacionado com as condutas inadequadas para a
heteronormatividade.
Ao trazer dois homens se abraçando e se beijando na parte de
baixo, o meme reforça a ideia de que dois homens não podem demonstrar
carinho um pelo outro sem que sejam caracterizados como
homossexuais. No caso das imagens utilizadas no meme, o ex-deputado
federal Jean Wyllys é gay e o deputado federal Marcelo Freixo é hétero.
Na concepção de quem emitiu esse meme, um homem hétero não pode
trocar afeto com um homem homossexual sem que tenha segundas
intenções, como desejar um ato sexual que não leva à reprodução. Isso
reforça mais um padrão da heteronormatividade, com aspectos também
religiosos, em que um casal teria função exclusiva de reprodução.
245
Figura 2 – Redução da transexualidade
246
se sinta oprimida por precisar assumir esses papeis de maneira
praticamente forçada, já que é algo extremamente naturalizado pela
sociedade capitalista, cristã e burguesa. Caso contrário, essas pessoas são
compreendidas ou decodificadas como inadequadas pela sociedade.
É o que demonstra o meme (Figura 2), o qual busca retratar
uma mulher trans na parte inferior da imagem. A pessoa trans é entendida
como inadequada, logo, a transexualidade é jogada à margem da
sociedade. Os problemas enfrentados pelas pessoas trans, como é o caso
do nome social, é visto como um problema menor que o desemprego e a
saúde pública precária do país. Entretanto, o problema social que envolve
a população de transexuais e travestis, logo, a população LGBTI+ é tão
grave quanto o problema do desemprego, da saúde e da educação, já que
a idade média da população trans no Brasil é de 35 anos21 – menos da
metade da média nacional que é 75 anos. A expectativa de vida está
relacionada à violência que essa população está exposta, mas não
somente. Muitas pessoas trans quando ficam doentes não se sentem
confortáveis para procurar atendimento médico, por saberem que
sofrerão discriminação. A questão do nome social é tão importante para
uma pessoa trans quanto um emprego para um desempregado, e ambos
os casos devem ser atendidos por políticas públicas eficazes.
21
Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-
cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-
media-nacional. Acesso em 5 de fevereiro de 2019.
247
Figura 3 – O exagero
248
Figura 4 – Heteronormatividade e agressividade
249
Considerações finais
Os memes objetos deste artigo contribuem para a reprodução
de ideias conservadoras e preconceituosas no imaginário de parte da
população brasileira. Os memes são sintomáticos acerca das maneiras
com as quais a população LGBTI+ é compreendida por uma parcela da
população, sobretudo por aquelas pessoas que acompanham a página O
Retrógrado no site de rede social Facebook. Os memes coletados e
analisados possuem conteúdos que beiram o grotesco e a replicação nas
mídias sociais indica uma conexão estabelecida entre os atores e um
grupo social, que partilham conhecimentos mútuos sobre o fato que
gerou os memes. A análise neste artigo permite compreender o uso do
meme como fonte potencial de desinformação, dependendo da maneira
na qual é utilizado, pois, ao replicar um meme sem a devida reflexão de
seu conteúdo, o indivíduo pode, intencionalmente ou não, contribuir para
o reforço de estereótipos e de um discurso de ódio sobre a população
LGBTI+.
O que aparentemente é apenas uma piada, significa violência e
discriminação quando não se leva em conta o contexto social de parte da
população LGBTI+. Os memes analisados exageram alguns traços da
realidade e omite outros, em prol da heteronormatividade e em
detrimento da população LGBTI+. A análise mostrou formas hostis e
desdenhosas para tratar a população LGBTI+, a qual pode ser
compreendida sob o viés do “Outro” (BURKE, 2004; HALL, 2016). A
estereotipagem é um mecanismo utilizado para tratar a
heteronormatividade como normal e aceitável, enquanto as vivências da
população LGBTI+ são tratadas como inaceitáveis e inadequadas à
sociedade. Os memes analisados demonstram o distanciamento dos
emissores para com o Outro, permitindo assim o reforço dos estereótipos.
Os receptores desses memes constroem a imagem do Outro por meio
deles e podem replicá-los sem refletir sobre seus conteúdos – mas
também de forma intencional, com o objetivo de atacar a população
LGBTI+, contribuindo para a replicação de estereótipos e preconceitos.
250
Referências
BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e significados de uma
distinção política. São Paulo: Unesp, 2001.
251
PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana.
Preconceitos contra homossexualidades: a hierarquia da
invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.
252
SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA: MITOS E
PRECONCEITOS NO FILME COLEGAS
253
SEXUALITY AND DEFICIENCY: MYTHS AND PREJUDICES IN
THE FILM COLLEAGUES
Introdução
O conceito de deficiência intelectual preconizado pela AAIDD
(American Association on Intellectual and Developmental Disabilities)
caracteriza-se por “limitações significativas, tanto no funcionamento
254
intelectual, assim como no comportamento adaptativo, como também,
nas habilidades adaptativas conceituais, sociais e práticas. Esta
deficiência origina-se antes dos 18 anos” (AAIDD, 2010 p. 209).
Atualmente, vigora a Lei n° 13.146, intitulada como Estatuto da
Pessoa com Deficiência, sancionada em 06 de julho de 2015, o artigo 2°
da referida lei, trata da definição de deficiência, apreendendo-a como
sendo “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais
barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condições com as demais pessoas”.
Em consonância com esse enfoque, diferentes autores (Denari,
1997; França Ribeiro, 2001) vêm apresentando a pessoa com deficiência
intelectual como sujeitos de direitos, dentre os quais se inclui o exercício
da sexualidade. Para tanto, vem sendo discutida a melhor forma de
prepará-los para a concretização efetiva da salvaguarda desse respectivo
direito.
A Sexualidade é fenômeno biopsicossocial, e faz parte do
crescimento e personalidade da pessoa. É a maneira de ser, compreender
e viver o mundo através do nosso ser, como homens ou mulheres, assim
como se expressa através da integração entre corpo e mente enquanto
como elemento básico para a feminilidade ou masculinidade do
indivíduo (GLAT, 2004).
Desta forma podemos dizer a que a sexualidade é algo intrínseco
ao ser humano, que vai além dos aspectos biológicos e genitais e não se
restringe apenas ao ato sexual.
Ainda, de acordo com Denari (2002), refere-se às formas de
sentir, pensar e agir, que são aspectos imprescindíveis ao entendimento
do ser humano em todas as suas dimensões. Nesse sentido podemos
entender a sexualidade dentro de uma dimensão plural, que envolve
aspectos culturais, biológicos e psicossociais. Devendo assim, ser
respeitada conforme a individualidade de cada indivíduo (MAIA;
CANOSSA, 2003). A questão sexual dessas pessoas muitas vezes é
inibida e são considerados fora da norma padrão, sendo excluídos da vida
255
social e sexual. Sendo assim, desenvolvem sua identidade, e sua
personalidade de maneira incompleta, fragmentada, considerada
“excepcional”, consequência da vida estigmatizada em que vivem.
Desta maneira, o objetivo dessa pesquisa foi discutir e analisar
as manifestações da sexualidade de adolescentes com síndrome de Down
a partir do longa metragem Colegas, filme brasileiro do ano de 2013
produzido por Marcelo Galvão, que traz como protagonistas três
personagens adolescentes com síndrome de Down (Stallone, Aninha e
Márcio) que rejeitados por suas famílias foram deixados em uma
instituição, ainda quando bebês.
Nesta instituição, quando adolescentes e enfadados com a rotina
regrada a qual eram submetidos, Stallone, um amante do cinema e que
tinha o filme Thelma & Louise (Scott, 1991) como preferido, convida
seus dois amigos (Aninha e Márcio) para aventurarem-se para além
desses muros, inspirados neste clássico em que as protagonistas cansadas
de suas vidas abandonam tudo e saem sem destino pelo mundo.
256
acima dos 35 anos têm mais probabilidade de gerar uma criança com
Síndrome de Down.
De modo geral, as crianças com a síndrome são sociáveis e
carinhosas, mas algumas delas são desafiadoras quanto qualquer criança
pode ser (MOTTA, 2009). Em relação ao preconceito e a discriminação,
não é diferente em relação aos portadores da síndrome de Down, pelo
fato de terem características físicas típicas e algum comprometimento
intelectual não significa que tenham menos direitos e necessidades que
outras pessoas (VARELLA, 2014). Dormael (1996) expressa que eles
talvez sejam os corretos seres humanos e nós, “normais”, apenas o
esboço de uma criação maior, sendo as pessoas com a síndrome
brincalhonas, amam incondicionalmente.
Historicamente, indivíduos com SD têm sido considerados
portadores de características comportamentais peculiares e de
deficiência mental. Langdon Down atribui a esses indivíduos poder de
imitação, obstinação, amabilidade e sociabilidade. Collacott (1998)
descreve características como bom humor e temperamento agradável,
confirmando o estereótipo comportamental, ressaltando também a
escassez de distúrbios de adaptação nos portadores dessa síndrome.
Estes autores referem que fatores de natureza social, psicológica
e biológica podem estar relacionados ao fenótipo comportamental, a
exemplo da redução do nível de serotonina, associada a anomalias
estruturais do cérebro. Já, outros pesquisadores não encontraram
diferenças de comportamento em crianças com SD quando comparadas
a outras com deficiência mental ou a controles normais da mesma faixa
etária. Fidler & Hodapp (1999) acreditam que os estereótipos
comportamentais estejam relacionados à aparência craniofacial infantil,
observando que portadores da síndrome que apresentam a “face de bebê”
mostram mais frequentemente comportamento imaturo. Quanto ao
retardo mental, embora tenha sido considerado característica típica da
síndrome, nem sempre é observado.
Ao assistir o filme Colegas, onde três amigos adolescentes com
SD que moram em um orfanato tem o desejo de “sair para o mundo” e
257
realizar o sonho de cada um, há o questionamento com relação a fase do
adolescer junto a uma deficiência intelectual e busca-se entender a
importância dessa fase para o adolescente portador da síndrome, os
medos, as vontades, os desejos, as angústias, a importância do carinho e
da compreensão das pessoas que os cercam.
A deficiência e a puberdade
A puberdade acontece em momentos diferentes não somente
para meninas e meninos, como também para indivíduos diferentes do
mesmo sexo. As meninas de um modo geral, iniciam a puberdade de 12
a 18 meses antes que os meninos. As evidências têm mostrado que a
puberdade está iniciando cada vez mais cedo, ou seja, a idade para a
puberdade para ambos os sexos diminuiu em três anos completos no
período correspondente aos dois últimos séculos, devido a melhores
padrões de saúde e nutrição (UNICEF, 2011).
Deste modo, as meninas em especial e alguns meninos chegam
à puberdade vivenciando mudanças físicas e psicológicas associadas à
adolescência, antes mesmo de serem considerados como adolescentes
pelo critério da Organização das Nações Unidas (ONU), ou seja
indivíduos de 10 a 19 anos de idade (UNICEF, 2011).
Um dos fatores complicador para a definição de adolescência
está na grande oscilação das leis nacionais que estabelecem limites
mínimos de idade (maioridade civil) para a participação em atividades
exclusivas de adulto como, por exemplo: votar; casar; servir o exército;
consumir álcool; dirigir (UNICEF, 2011).
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) a adolescência é
um processo essencialmente biológico, durante o qual o
desenvolvimento cognitivo e a estruturação da personalidade são
intensificados. Compreende as idades entre 10 e 19 anos, divididas em
duas etapas pré-adolescência, dos 10 aos 14 anos e adolescência, dos 15
aos 19 anos (OMS/OPS, 1985).
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei
8.069, de 1990, estabelece a adolescência entre 12 e 18 anos de idade
258
(BRASIL, 1990). Conforme Yazlle; Duarte; Gir (1999 apud YAZLLE;
FRANCO; MICHELAZZO, 2009, p.477): “a iniciação sexual acontece
frequentemente neste período, o que tem sido motivo de preocupação,
seja pela possibilidade de ocorrerem gestações indesejadas ou pela
disseminação de doenças sexualmente transmissíveis”.
Glat (1996) afirma que “a sexualidade da pessoa com deficiência
mental (a não ser nos casos neurologicamente mais prejudicados) não é
qualitativamente diferente das demais” e refere que sempre que essa
colocação é feita em público leva inevitavelmente a expressões de
espanto, descrença e frequentemente à franca oposição.
Podemos observar no filme o momento em que os adolescentes
com SD se apaixonam, descobrem e vivenciam esse sentimento da
mesma forma que ocorre com jovens que não possuem a síndrome, esse
amor que despertou entre os dois os levam ao ato sexual.
Giami & D’ Allones (1984) pesquisaram as representações que
pais e educadores faziam da sexualidade de adolescentes com deficiência
mental e referiram que os educadores entrevistados viam a sexualidade
do deficiente mental como “selvagem” (práticas masturbatórias,
voyerismo, exibicionismo, homossexualidade e condutas agressivas,
sem afetividade) ou então incompletas, não finalizadas.
Os pais, por sua vez, consideravam seus filhos “sexualmente
infantis”, com atitudes assexuadas ou essencialmente fundadas na
afetividade. Pode-se observar no filme uma questão muito comum que
ocorre com o jovem que possui uma deficiência intelectual, que apesar
da idade, ou seja já é um adolescente, os cuidadores do orfanato talvez
por um carinho muito grande, os tratam como crianças.
A sexualidade está submetida a regras sociais e deve ser
orientada de acordo com as normas da sociedade. A educação sexual
deve ser considerada parte do processo de educação global da criança e
do adolescente com SD, como para qualquer pessoa, com metodologia
adequada à sua capacidade cognitiva e à faixa etária. Pessoas com SD,
como quaisquer outras, requerem o desenvolvimento de aspectos como
autoestima, responsabilidades e valores morais, para se tornarem seres
259
sexualmente saudáveis. A capacidade de manifestar e sentir amor
constitui a essência básica da sexualidade. Demonstrações de ternura,
simpatia e atração exprimem amor e afeto e revelam a natureza do
indivíduo como ser sexuado.
260
A experiência da sexualidade e da
corporalidade de modo geral, (...) é fator
integrante do processo de formação de
identidade, que por sua vez é determinado, em
grande parte, pelas mensagens que o indivíduo
recebe no convívio com outras pessoas. (GLAT,
2004, p.7).
261
Pode-se concluir que, a construção da identidade não acontece
espontaneamente, por vontade própria e de forma harmoniosa, sendo
que, ela é influenciada pelo poder, dominação e por grupos considerados
hegemônicos, no qual, os diferentes não são valorizados e/ou incluídos.
Sendo assim, o conflito social entre as classes estabelecidas pode
ser direcionada de duas formas, pela “identidade social virtual” que seria
os atributos que a sociedade impõe, e a “identidade social real”, que é
aquela que engloba a diversidade de características dos serem humanos,
sejam elas físicas ou não.
Diga-se então, que a oposição destas identidades, causam
conflitos relacionais, no qual, tornam os grupos geralmente incorporados
pelos estigmas, auto excluindo-se do convívio social, prejudicando sua
imagem corporal, autoestima e qualidade de vida (GOFFMAN, 1988).
Nestes aspectos, Maia (2011) diz que: “compreendemos por autoestima
a maneira pela qual os indivíduos aceitam sua própria identidade,
incluindo aí uma boa imagem corporal e uma aceitação dos aspectos
afetivos e sociais inerentes a sua existência” (MAIA, 2011, p.55).
Entretanto, o conflito maior, se estabelece na concepção de que
os preceitos da normalidade se modificam com o tempo, mas nem
sempre evoluem. Os conceitos do que é aceito de acordo com a
normalidade na sociedade depende de contextos históricos, culturais e
sociais. Neste contexto, Magalhães e Cardoso (2010, p.30), relatam que:
“o significado do que é ‘normal’ não passa de uma construção social, em
diferentes culturas e em determinados momentos históricos”.
Conclui-se assim que, de acordo com Goffman (1988), os
conflitos de identidade, seriam menos prejudiciais caso fossem criadas
de acordo com uma “linguagem de relações”, e não por atributos e
estereótipos. Ou seja, os jovens com deficiência podem e devem seguir
uma vida normal seguindo seus desejos e prazeres sexuais desde que
tenham uma educação sexual direcionada para evitar problemas como
abuso ou doenças.
262
Procedimentos Metodológicos
Este texto caracteriza-se por uma pesquisa descritiva, tipo
documental, que tem por objetivo descrever e analisar o filme Colegas
produzido por Marcelo Galvão (2013) a partir de seu conteúdo.
Resultados
Comumente nos deparamos com discursos que discorrem de
maneira errônea e equivocada quando sobre a sexualidade da pessoa com
deficiência intelectual, descrevendo os comportamentos sexuais destas
pessoas como verdadeiras aberrações. Nesse sentido Maia e Ribeiro
(2011) destacam a importância de esclarecer esses mitos e preconceitos
é tarefa importante na sociedade uma vez que “incentivam as relações de
discriminação” e de dominação.
No filme, umas das cenas Márcio está sentado ao lado de um
garoto e mostra uma revista com fotos de mulheres nuas e a mãe do
garoto ao perceber a situação levanta e dirige-se até os dois e diz para
seu filho não conversar com retardado e na sequencia da cena Márcio
está com um pirulito nas mãos e o mergulha várias vezes no açúcar
levando a mãe do garoto a supor que está se masturbando. Isso traduz
numa série de preconceitos sociais, “mitos” ou crenças generalizadas, de
influência poderosa, que se dão por certas e evidentes, irrefletidas ou
inquestionáveis, destacando-se a premissa de que as pessoas com
deficiência possuem uma sexualidade exacerbada. Maia (2006, p. 100).
A despeito dessas dificuldades, Assumpção Junior (1988), destaca que a
maioria dos distúrbios de conduta decorre de dificuldades ambientais e
educativas e não de problemas inerentes à deficiência intelectual e por
isso destaca a importância da criação de condições educacionais e sociais
para que essas pessoas possam expressar, de maneira adequada, seus
direitos sexuais.
Para Amor Pan (2003) abordar o tema sexualidade humana em
circunstâncias normais já não é fácil, e este tema se torna ainda mais
complexo no caso das pessoas com deficiência intelectual, à medida que
a manifestação sexual nessa população foi quase sempre vista como um
263
“problema” e não como um atributo humano “positivo”. Assim, uma
mudança de olhar em relação a essas pessoas é necessária, a fim de que
estes encontrem seu lugar no laço social, questão que concerne tanto à
sociedade, como à família.
Contudo, evidencia-se um desafio e ao mesmo tempo uma
urgência em buscar refletir e modificar a visão da sociedade sobre o
padrão de normalidade e como a pessoa com deficiência é reconhecida
pela mesma. É preciso, a partir de uma visão otimista valorizar os
aspectos positivos em detrimento dos preconceitos, dos mitos e tabus que
abarcam a sua sexualidade da pessoa com deficiência.
Considerações Finais
Por meio da análise do filme Colegas e dos apontamentos
científicos estabelecidos, é evidente que a sexualidade do adolescente
com deficiência não é diferente das demais que não apresentam
deficiência, podemos identificar que muitas vezes, ela se manifesta de
maneira considerada socialmente como inadequada em virtude tanto da
carência de programas e processos educativos oferecidos a essas pessoas
como da dificuldade das pessoas em relação à própria sexualidade. Neste
âmbito, Maia (2006, p.166) considera que a maior dificuldade não está
na deficiência em si, mas nos tabus, estereótipos e preconceitos que se
somam quando assunto é a sexualidade do deficiente e o reconhecimento
destas dificuldades pode contribuir para balizar um debate sobre as
questões mais polêmicas apontadas acerca da sexualidade humana. Para
Ribeiro (2009), negar a expressão sexual destas pessoas dificulta a
possibilidade delas exercerem sua sexualidade em interação social com
outras pessoas.
Referências
AMERICAN ASSOCIATION ON INTELLECTUAL AND
DEVELOPMENTAL DISABILITIES. Intellectual disability: definition,
classification, and systems of supports, 2010.
264
AMOR PAN, J.R. A Afetividade e sexualidade na pessoa portadora de
deficiência mental. Trd. Maria Stela Gonçakves. São Pualo: Loyola,
2003. In MAIA, A. C. B. Sexualidade e deficiências. São Paulo: Ed.
da Unesp, 2006. p. 99-100.
265
FARIAS, N.; BUCHALLA, C.M.A Classificação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial da
Saúde: Conceitos, Usos e Perspectivas. Revista Brasileira de
Epidemiologia, São Paulo, v. 8, n. 2, 2005.
266
MAIA, A.C.B. Sexualidade e Inclusão: análise da afetividade e da
saúde sexual e reprodutiva em pessoas com deficiência. (Processo
2011/07400-9), Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências
- Departamento de Psicologia, Bauru, SP, 2011.
267
UNICEF. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação mundial
da infância 2011. Brasília (DF): Escritório de Representação da
UNICEF no Brasil, 2011.
268
03
FORMAÇÃO
DOCENTE EM
SEXUALIDADES E
EDUCAÇÃO
SEXUAL
269
A EDUCAÇÃO SEXUAL ESCOLAR E A
CONSTRUÇÃO DE CONCEPÇÕES
ACERCA DA SEXUALIDADE E DO PAPEL
DO PROFESSOR DE CIÊNCIAS E
BIOLOGIA COMO EDUCADOR SEXUAL
Bruna Larissa Ramalho Diniz
(Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Marcelo Maia Cirino
(Universidade Estadual de Londrina)
270
conhecimentos vivenciados pelos graduandos em um dos momentos
mais importantes da construção das concepções sobre Educação Sexual:
a formação escolar. Esperamos que as reflexões e discussões realizadas
ao longo desse artigo contribuam para que uma visão completa da
sexualidade, que evoca a subjetividade e nos faz vivenciar as bases mais
exigentes e contraditórias do ser humano, como paixão, amor,
sensualidade e sensibilidades, possa chegar às escolas, aos alunos e aos
professores livre de tabus e preconceitos.
Palavras-chave: Educação Sexual. Escola. Concepções.
271
experienced by the students in one of the most important moments of the
construction of the conceptions about Sexual Education: the formation
school. We hope that the reflections and discussions carried out
throughout this article will contribute to a complete view of sexuality,
which evokes subjectivity and allows us to experience the most
demanding and contradictory bases of the human being, such as passion,
love, sensuality and sensibilities. schools, students and teachers free of
taboos and prejudices.
Key words: Sexual Education. School. Conceptions
272
conhecimento de informações básicas, seja em
nível de conhecimento e/ou discussões e reflexões
sobre valores, normas, sentimentos, emoções e
atitudes relacionadas à vida sexual. Para ser
completa e eficaz, principalmente quando faz parte
de um programa educacional, a Educação Sexual
deve abranger tanto o componente informativo
quanto o formativo.
273
Portanto, a Educação Sexual não deve ser vista como uma ação
que ocorre à parte da educação global do indivíduo e sim, entendida
como parte desta. Trata-se de um processo permanente de construção das
concepções que cada indivíduo possui a respeito da sexualidade, dos
relacionamentos sexuais e interpessoais dos quais participa e que
acontece em várias instâncias sociais, dentre as quais está a escola
(FIGUEIRÓ, 2010).
274
Acrescentamos a esses fatores de marginalização da Educação
Sexual o fato de que, ainda nos dias de hoje, os professores de Ciências
e Biologia são usualmente responsabilizados pela abordagem da
sexualidade na escola, o que limita, na maioria das vezes, as discussões
sobre a temática à anatomia e fisiologia dos sistemas reprodutores e às
discussões preventivas sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis
(ISTs) e gravidez precoce, já que esses profissionais, devido à sua
formação limitada em assuntos relacionados à sexualidade, não
conhecem outra forma de trabalhar o tema em sala de aula.
Todavia, esse caráter normativo-institucional e biologizante da
Educação Sexual é objeto de críticas de muitos autores no campo das
políticas educacionais, que afirmam que essa anato-funcionalidade do
corpo, da reprodução e do sexo irá excluir os aspectos subjetivos,
identitários e étnicos da construção da sexualidade (CARVALHO,
2015).
Assim sendo, mesmo que a Educação Sexual se destaque nas
aulas de Ciências, estas não são suficientes para atingir os objetivos tão
complexos dessa temática, que envolve um processo histórico-cultural e
compreende diferente significados durante todo o processo histórico.
Além disso, grande parte dos cursos de licenciatura em Ciências
Biológicas não prepara devidamente os seus acadêmicos para serem
educadores sexuais, uma vez que, durante a graduação, não há uma
disciplina obrigatória que trate da sexualidade humana para além do
enfoque biológico e estes indivíduos, quando em sua vida profissional,
precisam ministrar aulas sobre o tema, sentem-se inseguros diante da
tarefa (DINIZ, 2015).
Diante do exposto, o presente artigo busca investigar como foi a
Educação Sexual escolar de graduandos de um curso de Licenciatura em
Ciências Biológicas e como a abordagem da temática contribuiu para a
construção das concepções sobre sexualidade e Educação Sexual, bem
como sobre o papel do professor de Ciências e Biologia do trato da
temática na escola.
275
Metodologia
Este artigo é um pequeno recorte de uma pesquisa de mestrado
intitulada "Formação de Educadores Sexuais no curso de Ciências
Biológicas da UEM: a concepção dos graduandos sobre a atuação do
professor de Ciências e Biologia na Educação Sexual”, que foi
desenvolvida na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no campus
de Maringá, Paraná, com estudantes do curso noturno de Licenciatura
em Ciências Biológicas.
A amostra de investigação da pesquisa foi constituída por 12
graduandos (10 do sexo feminino e 2 do sexo masculino), sendo 6 da
turma de 3º série e 6 da turma de 5º série do curso, regularmente
matriculados e com idades variando de 20 a 26 anos. O critério de
escolha das turmas foi por conta dos graduandos já terem feito pelo
menos uma das disciplinas de estágio docente obrigatório e possuírem
vivência nos espaços escolares no papel de professores.
Quanto à coleta de dados, optamos por utilizar a entrevista
semiestruturada, composta e os dados coletados foram fragmentados em
unidades de significados, categorizados, tabelados, analisados e
discutidos em forma de metatextos a fim de construir novos significados
para as respostas do sujeito, segundo o referencial teórico-metodológico
da Análise Textual Discursiva (ATD), proposta por Moraes (2003) e
Moraes e Galiazzi (2006).
Neste artigo, utilizaremos para análise apenas as questões que
fizeram parte da categoria denominada “Formação Escolar”.
As questões que compõem a categoria supracitada são descritas
abaixo:
1. Você teve Educação Sexual na escola? Em que série(s)? Escola
pública ou particular?
2. Você acredita que a Educação Sexual que teve na escola foi válida e
suficiente, ou não?
3. Você acha necessário que a Educação Sexual seja trabalhada nas
escolas? A partir de que séries? Por quê?
276
4. Qual é, em sua opinião, o profissional que deveria ser responsável pela
Educação Sexual na Escola?
5. Por que, em sua concepção, a Educação Sexual é delegada usualmente
aos professores de Ciências e Biologia?
Resultados principais e discussões
Segundo Figueiró (2011), a Educação Sexual se faz presente na
escola, na família e na sociedade em geral. Dessa forma, entendemos que
as concepções sobre a temática são frutos de tudo o que aprendemos,
ouvimos e vivemos nessas instâncias sociais. Consideramos, então, que
a concepção atual dos sujeitos desta pesquisa acerca da Sexualidade e
Educação Sexual, bem como do papel do professor de Ciências e
Biologia frente à Educação Sexual na escola advêm das informações e
noções sobre a temática, recebidas, entre outras instâncias, na escola, o
que explica a escolha da categoria de análise para este artigo.
Na apresentação dos dados coletados, optamos por nomear cada
graduando com a letra G, seguida do número de ordem da concessão da
entrevista. Assim sendo, o primeiro graduando entrevistado foi
denominado G1, o segundo G2 e assim sucessivamente. Todavia,
selecionamos para nossa análise nesse artigo apenas as falas mais
significativas dentro da categoria “Formação Escolar”.
Análise da categoria “Formação Escolar”
Questão 1: Você teve Educação Sexual na escola? Em que série(s)?
Escola pública ou particular?
(G1): “[...] Dentro da disciplina de Biologia tive aparelho
reprodutor masculino e aparelho reprodutor feminino”; (G2): “[...] Em
Ciências estudei a vida, a reprodução, o nascimento e estrutura corporal
[...]”; (G6): “[...] Eu tive nas aulas de Biologia o órgão reprodutor
[...]”; (G7): “Não, só sistemas reprodutores [...]”; (G8): “[...] a gente
só vê aparelho reprodutor, anatomia [...]”; (G9): “[...] Quando a gente
ia estudar a sexualidade era só o pênis e a vagina [...]”; (G11): “[...] Só
o sistema reprodutor.”; (G12): “[...] Minha professora de Biologia mal
explicou os contraceptivos, tipo camisinha”.
277
Representações próximas a essas afirmações também podem ser
percebidas nas falas de: (G5): “[...] Mas, foi só sobre DST [...]”; (G7):
“[...] Sobre DST lembro que foi em algumas oficinas [...]”; (G10): “[...]
Já tive palestra na área da saúde que só falava na parte de doença,
prevenção [...]”.
Fica evidente nas falas selecionadas que, durante o período de
sua formação escolar, os assuntos relacionados à Educação Sexual foram
trabalhados em uma abordagem predominantemente biológica, nas
disciplinas de Ciências e Biologia. Eles não consideram, entretanto,
segundo nossa interpretação, essas aulas como sendo Educação Sexual.
Para eles, eram apenas conteúdos programáticos que deviam ser tratados
dentro das disciplinas de Ciências e Biologia como qualquer outro.
Essa responsabilização dos professores dessa área de
conhecimento no trato da temática na escola se dá por conta da
aproximação da sexualidade com os conteúdos de Ciências,
principalmente no que se refere aos temas relacionados à reprodução
(ALTMAN, 2007).
Cabe registrar que consideramos inegável a importância dos
aspectos biológicos no trato das questões relacionadas à Educação
Sexual. Entretanto, esta temática não deve ser restrita a uma abordagem
meramente anato-funcional do corpo, da reprodução e do sexo, uma vez
que a compreensão biológica da sexualidade, de maneira isolada e
fragmentada, é uma explicação reducional e insuficiente para que os
alunos entendam a complexidade do tema (BONFIM, 20012).
Questão 2: Você acredita que a Educação Sexual que teve na escola foi
válida e suficiente, ou não?
(G1): “[...] Não. De forma alguma”; (G2): “[...] Não. [...] Nas
aulas de fisiologia alguma coisa foi citada, mas só o que envolve a
fisiologia dos órgãos”; (G7): “Não. Na época eu não prestava muita
atenção”; (G8): “[...] Com certeza não foi suficiente”; (G9): “[...] Para
o vestibular sim, para a vida não”; (G10): “[...] Não. Tive palestra que
só falava na parte de doença, prevenção”; (G11): “[...] Não. Eu não me
278
lembro de Educação Sexual na escola, só sistema reprodutor”; (G12):
“Eu acho que não [...]”.
De acordo com as falas analisadas, os assuntos relacionados à
Educação Sexual que foram trabalhados em suas escolas não podem ser
considerados suficientes, justamente por terem ficado restritos aos
aspectos biológicos. Essa abordagem é válida para provas, concursos e
vestibulares, como afirma (G9), todavia, é insuficiente, no sentido que
limita as oportunidades de aprendizado e reflexão sobre todos os outros
aspectos que a sexualidade envolve.
Para (G3), (G4), (G5) e (G6), a Educação Sexual recebida na
escola foi avaliada como válida: (G3): “Foi, foi bem válida [...] Desde
transmissão de doenças, a parte de fisiologia mesmo, do ciclo
menstrual”; (G4): “Sim. Em relação ao ato sexual, sim”; (G5): “[...]
tudo o que acontece no corpo e as formas de prevenção, no caso, sim”;
(G6): “Válida pode ter sido [...] Mas, eu fiquei com muita dúvida”.
Contudo, apesar de ter sido avaliada positivamente por eles, as
falas destacadas deixam claro que, mais uma vez, apenas o aspecto
biológico foi priorizado. Voltamos a enfatizar que a abordagem biológica
da sexualidade, embora importante, não deve ser a única trabalhada no
ambiente escolar. As informações biológicas são fundamentais, mas não
são suficientes para uma Educação Sexual emancipatória e de qualidade
(DINIZ, 2015).
Questão 3: Você acha necessário que a Educação Sexual seja trabalhada
nas escolas? A partir de que séries? Por quê?
(G1): “Eu acho legal ser trabalhado [...]”; (G2): “Com certeza.
Desde o ensino fundamental. Os alunos têm que se conhecer melhor para
eles se cuidarem melhor desde pequenininho”. (G3): “Sim.
Fundamental. Porque não tem outro lugar para eles aprenderem isso.
[...]”. (G4): “Importantíssimo. A gente vê hoje em dia muita adolescente
grávida. Falta informação. [...]”. (G5): “Sim. Muito necessário. Para
os alunos conhecerem a questão do preconceito. A importância da
contracepção, como reagir diante de determinadas situações. Tem que
ser trabalhado em todas as séries [...]”. (G7): “Eu acho. Desde pequena
279
a criança tem que saber. Lógico que não tem que falar a coisa toda, mas
de acordo com a idade delas. Tem que ser abordado tudo a partir do
sistema reprodutor”. (G8): “Com certeza. Dá pra se trabalhar isso
desde os primeiros anos do ensino fundamental. Faria uma grande
diferença na sociedade depois”. (G10): “Com certeza. Tem que ensinar
desde pequeno. Quanto mais cedo melhor”.
De acordo com as falas analisadas, não há dúvidas para os
graduandos quanto à importância da Educação Sexual na escola e muitos
defendem que ela deveria ser iniciada desde os primeiros anos escolares.
Assim, ao entendermos a Educação Sexual como “um processo
de vida inteira” (SUPLICY, 1990, p.19), lento e progressivo, que vai se
interiorizando e exteriorizando conforme a criança vai sendo orientada
verbalmente ou não, concordamos com os graduandos que o tema deve
ser inserido na escola desde a Educação Infantil, pois a criança é um ser
sexuado, e tem direito a ter suas dúvidas e inquietações respondidas, de
modo que possa construir concepções positivas sobre sexualidade e
assumi-la livre de medo ou culpa, preconceito, vergonha, bloqueios ou
tabus (BRAGA, 2002).
Gostaríamos de ressaltar que em alguns recortes (G4 e G5), fica
evidente que para eles a Educação Sexual deve respaldar-se em um
discurso médico-biológico, cumprindo seu papel ao reproduzir conceitos
e explicações sobre a anatomia e fisiologia do corpo, contracepção e
doenças.
Questão 4: Qual é, em sua opinião, o profissional que deveria ser
responsável pela Educação Sexual na Escola?
(G1): “Eu acho que esse assunto diz respeito à área biológica
[...]”; (G2): “[...] Tem que ter no mínimo um trabalho conjunto, com
psicólogo e biólogo”; (G3): “Eu acho que o professor de Ciências e
Biologia mesmo [...]”; (G4): “O professor de biologia lidera [...]”;
(G5): “[...] É o professor de Ciências e Biologia [...]”; (G6): “[...] é
justamente o professor de Biologia [...]”; (G7): “[...] Todo mundo fala
que é função do professor de Biologia”; (G8): “[...] Professor de
Biologia no ensino médio e no ensino fundamental o professor da turma
280
(regente) mesmo”; (G9): “[...] o biólogo é o mais focado”; (G11): “[...]
Na parte reprodutiva, o professor de Biologia”.
Segundo dez dos doze graduandos, a responsabilidade sobre a
Educação Sexual na escola é, quase sempre, do professor de Ciências e
Biologia.
Como justificativa para esta responsabilidade, (G5) e (G6)
dizem que: (G5): “[...] porque é o que está com a matéria mais próxima
ao tema sexualidade”; (G6): “[...] Ele (professor de Ciências e
Biologia) é o que tem a matéria mais próxima ao tema. O conhecimento
que o biólogo tem do corpo humano e das áreas da saúde é muito
amplo”.
Segundo Foucault (1988), a sexualidade e os assuntos a ela
relacionados estão direcionados por uma forma de saber desenvolvida
graças ao conhecimento médico e científico. Assim sendo, durante muito
tempo, a sexualidade humana esteve baseada em uma medicina do sexo,
que se apoiava somente na Biologia dos corpos e tinha como principal, e
talvez único, objetivo, a reprodução e perpetuação da espécie.
Embora esta abordagem médica e biológica da sexualidade tenha
sofrido inúmeras contestações devido a novas concepções apresentadas
pelas ciências humanas e sociais, ainda nos dias de hoje, como já foi
discutido anteriormente, é este discurso que prevalece nas práticas de
Educação Sexual no ambiente escolar, o que para nós, justifica a
homogeneidade das declarações dos graduandos sobre a
responsabilidade (quase exclusiva) delegada aos professores de Ciências
e Biologia no trato desta temática na escola.
Outros profissionais também foram citados pelos graduandos
como responsáveis pela abordagem da temática na escola: (G1): “[...] O
professor de ciências, o de Biologia e até o de Educação Física e
Química [...]”; (G2): “[...] Psicólogo e biólogo”; (G4): “[...] Acho
legal trazer profissionais da saúde, profissionais da enfermagem, da
medicina, da farmácia”; (G5): “[...] Se for possível, trabalhar com
alguém da área da saúde ou um médico que possa dar uma palestra ou
algo do gênero”; (G10): “[...] Acho que a escola deveria ter um
281
conteúdo, ter um psicólogo ou uma pessoa especialista na área da
sexualidade para ter um conjunto na escola”.
Segundo Figueiró (2011), não existe um profissional específico.
É o contato diário com os alunos, sejam eles crianças ou adolescentes,
que é, na verdade, a grande “força propulsora” para que profissionais
conscientes e preparados, de qualquer área, se disponham a trabalhar a
Educação Sexual.
Questão 5: Por que, em sua concepção, a Educação Sexual é delegada
usualmente aos professores de Ciências e Biologia?
(G1): “Porque eu acho que eles confundem isso (Educação
Sexual) com sexo e com reprodução e como isso é um conteúdo da grade
curricular de Biologia, acaba sobrando para o professor dessa
disciplina”; (G2): “Pelo próprio estudo da vida, do nascimento à morte,
da estrutura corporal, hormônios”; (G3): “[...] Na Biologia já se estuda
a reprodução de tantos organismos e ver a reprodução de nós mesmos é
fundamental”; (G4): “Acho que por causa do estudo do ser humano, da
vida e dos animais”; (G5): “[...] devido ao conteúdo ser mais próximo
à sexualidade”; (G6): “Por causa da gama de conteúdos que a Biologia
abrange”; (G7): “Porque a gente trabalha com organismos, corpo
humano”; (G8): “Porque é a matéria mais próxima do assunto, né?
Fisiologia, anatomia, essas coisas”; (G9): “[...] A gente estuda corpo e
sexualidade é corpo, né?”; (G11): “Porque o professor de Ciências já
fala do Sistema Reprodutor, então, acaba tendo que falar do resto”;
(G12): “Uma porque trabalhamos corpo humano [...]”.
Essas afirmações vêm ao encontro do esperado por nós, previsto
pela literatura e apontado em outros pontos desta análise. Mais uma vez,
fica evidente o quanto a sexualidade está restrita, na concepção dos
sujeitos desta pesquisa, aos limites do corpo e à abordagem biológica.
Consideramos que a trajetória escolar desses graduandos, na qual a
Educação Sexual, quando existente, foi vista apenas sob o olhar da
biologia, é responsável, em parte, por essa visão que eles têm hoje do
que é sexualidade e de como ela é, e deve ser, trabalhada nas escolas.
282
Dois deles, (G10) e (G12), afirmam que essa responsabilidade
recai sobre esses professores porque eles têm menos vergonha de falar
sobre o tema do que os professores de outras disciplinas: (G10):“[...]
Acho que é porque o professor de Biologia tem menos vergonha de falar
no assunto”; (G12): “[...] outra é porque os professores têm vergonha
de falar sobre isso”.
Todavia, não consideramos assim. Os professores de Ciências e
Biologia, assim como todos os outros profissionais da educação, são
frutos de uma sociedade repressora e moralista nos assuntos referentes à
sexualidade. O medo, a vergonha e o constrangimento, por certo,
também fazem parte da rotina desses professores quando o assunto sexo
está em pauta. Entretanto, como na maioria das escolas, a
responsabilidade de tratar os assuntos relacionados a essa temática
recaem sobre essa área de conhecimento, eles se veem obrigados a
“colocar sua vergonha no bolso” e enfrentar o desafio, mesmo não tendo
sido preparados devidamente para abordar a temática em sala de aula.
Considerações finais
Ao considerarmos que as concepções particulares de cada
indivíduo são frutos de sua formação nas mais diversas instâncias da
sociedade, buscamos, ao longo deste trabalho discutir a formação escolar
dos graduandos com relação aos assuntos relacionados à Educação
Sexual, de modo a analisar como a abordagem da temática contribuiu
para a construção das concepções sobre sexualidade e Educação Sexual,
bem como sobre o papel do professor de Ciências e Biologia do trato da
temática na escola.
Assim, a fim de atender aos objetivos elaborados, selecionamos
algumas falas classificadas dentro da categoria “Formação Escolar” e
percebemos durante a análise que muitos graduandos se sentem
insatisfeitos com a forma como a Educação Sexual foi tratada em suas
escolas. Percebemos em suas falas que os temas relacionados à
sexualidade foram trabalhados, quando trabalhados, apenas nas
disciplinas de Ciências e Biologia ou em eventuais palestras, em uma
283
abordagem meramente biológica e preventiva, a qual tratava
exclusivamente temas como DST, gravidez precoce e reprodução.
Observamos com satisfação que os graduandos reconhecem a
importância da Educação Sexual no ambiente escolar para a formação
dos alunos, mas, consideram que ela deve respaldar-se no discurso
médico-biológico, mesmo tendo criticado essa abordagem
anteriormente.
Diante do exposto e, ao longo de toda a análise, constatamos que
a concepção que os graduandos apresentam sobre o papel do professor
de Ciências e Biologia frente à Educação Sexual na Educação Básica é
que esse profissional é o maior responsável pela temática no espaço
escolar, justificando esse compromisso pelo fato de a Biologia ter em
seus conteúdos programáticos tópicos como anatomia e fisiologia
humana, entre outros, que aproximam essa área do conhecimento daquilo
que entendemos como corpo.
Consideramos que essa concepção se dá, em parte, pela forma
como a temática foi/é tratada no período de formação escolar dos
graduandos. A Educação Sexual no espaço escolar é geralmente
abordada (quando abordada) apenas em seu viés biológico e por
professores de Ciências e Biologia.
Conhecer e modificar essa realidade são, portanto, grandes
desafios.
Esperamos que as reflexões e discussões realizadas ao longo
desse artigo contribuam para que uma visão completa da sexualidade,
que evoca a subjetividade e nos faz vivenciar as bases mais exigentes e
contraditórias do ser humano, como paixão, amor, sensualidade e
sensibilidades, possa chegar às escolas, aos alunos e aos professores livre
de tabus e preconceitos.
Referências
ALTMAN, H. Sobre a educação sexual como um problema escolar.
Linha, v. 7, n. 1, 2007.
284
BONFIM, C. R. S. Desnudando a Educação Sexual. 1 ed. Campinas:
Papirus, 2012.
285
GUIRADO, M. Sexualidade, isto é intimidade: redefinindo limites e
alcances para a escola. In: AQUINO, Julio Groppa. Sexualidade na
escola: alternativas teóricas e práticas. 3.ed. São Paulo: Summus, 1997.
p.25-42.
SUPLICY, Marta. Papai, mamãe e eu. 1 ed. São Paulo: FTD, 1990.
286
ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES: IMPLICAÇÕES NA
FORMAÇÃO DOCENTE
287
SEXUAL ABUSE AGAINST CHILDREN AND ADOLESCENTS:
IMPLICATIONS IN TEACHING TRAINING
This study aims to analyze the importance of school in coping with sexual
violence, as well as the discussion of this phenomenon in teacher
education. According to some studies, in cases of domestic, physical,
psychological or sexual violence, the school becomes the refuge for the
escape of this phenomenon that occurs in both intrafamilial and
extrafamilial relationships, in order to understand this complex
phenomenon, we opted for the research of qualitative approach and we
use as Oral History methodology. The option for this path was only
possible due to the collaboration of a young woman, victim of sexual
abuse as a child, her interview was the epicenter of the research. After
the interview and the completed narrative, the same was analyzed with
the theoretical reference researched. This analysis pointed out that the
children show some signs that can be evidenced by the teacher or other
professional of the school, however, many of these professionals are not
prepared to deal with this issue due to lack of training, many do not know
how to proceed in cases of suspected or confirmed sexual abuse. We also
noticed that the school plays an important role in preventing and coping
with violence, especially in the case of sexual abuse. Therefore, we ratify
the need to work with this theme in teacher training courses, whether
initial or continuing.
Key words: School. Sexual abuse. Teacher Training.
Introdução
O presente estudo teve por finalidade analisar a importância da
discussão sobre o fenômeno do Abuso Sexual dentro do ambiente escolar
e universitário, especificamente, na formação de
professores/professoras. Para o desenvolvimento desta pesquisa optou-
se pela metodologia da História Oral, através de uma entrevista realizada
com uma jovem de 21 anos, vítima de abuso sexual na infância. Por se
tratar de uma narrativa as falas serão pronunciadas em primeira pessoa,
e o nome fictício de Beatriz, escolhido pela colaboradora.
288
Posteriormente, faremos o entrecruzamento da entrevista com a revisão
bibliográfica.
O tema abordado nessa pesquisa é um assunto pouco discutido
no curso de Pedagogia, porém, o abuso sexual assim como a violência
física, psicológica e afetiva, exercem influência negativa e devastadora,
que interfere no desenvolvimento integral das crianças e adolescentes,
devendo ser objeto de discussão em todas esferas sociais e,
principalmente, na educação.
Buscamos com a elaboração deste trabalho, contribuir na
formação dos pedagogos e das pedagogas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná - UNIOESTE e demais Instituições de Ensino, com o
intuito de instrumentalizá-los, para que saibam como agir ao se
depararem com situações de abuso, bem como, elaborar um corpus
teórico da temática estudada.
Método
Em nossa pesquisa utilizamos como metodologia a pesquisa
bibliográfica e a História Oral, como o próprio nome diz privilegia a
oralidade e, mais do que isso, destaca e concentra sua análise nas
narrativas das experiências vivenciadas. Cabe ressaltar que essa
metodologia se difere de outras que usam entrevistas, uma vez que possui
particularidades, as quais serão mais definidas no decorrer dessa seção.
289
são necessários três elementos: o pesquisador/pesquisadora, o/a depoente
também chamado de colaborador/colaboradora, e um instrumento
fundamental: a máquina de gravar para captar a entrevista. Todos esses
elementos irão gerar textos escritos, elaborados através de métodos
estudados.
No Brasil, a História Oral desenvolveu-se a partir da década de
1980, Meihy ressalta três situações que contribuíram para a prática da
mesma:
290
segundo afirma Meihy, (2006, p. 194) “Se buscarmos o sentido social do
conhecimento, percebemos que a História Oral é um recurso de
transformação, não meramente um recurso de conhecimento.” Vale
ressaltar que esse processo de investigação baseia-se nas memórias e
histórias narradas pelo colaborador/colaboradora. A pesquisa acontece
através dos relatos, gravação, transcriação, e pôr fim a legitimação pelo
entrevistado/entrevistada. Segundo Alvito (2012):
291
em nossa pesquisa: “Lançar a vida para dentro da história.”
(THOMPSON,1992, p. 44 Apud ALVITO, 2012)
Conforme Meihy (1994, p. 55), podemos classificar a História
Oral em três ramos: História Oral de Vida, História Oral Temática e
Tradição Oral. A História Oral de Vida é geralmente caracterizada por
entrevistas longas e que devem captar o sentido da experiência
vivenciada pelo colaborador/colaboradora. De acordo com Meihy (2008,
p.146) “Vale lembrar que em entrevistas assim, mais do que perguntas
pontuais são cultivados estímulos capazes de alimentar continuidades.”
As entrevistas são mais do que perguntas e respostas, são estímulos que
fazem com que o colaborador/colaboradora sinta vontade de relatar sua
história, sem sentir-se pressionado ao fazê-lo.
Essa metodologia tem como fundamento a necessidade de
transmissão de uma moral de vida, por isso, sempre que possível deve-
se dar espaço ao colaborador/colaboradora para que demonstrem seus
argumentos pessoais tendo maior liberdade para contar sobre sua
experiência. Para Meihy (2008, p.147) “Não compete ao entrevistador
provar nada, pelo menos na fase de captação da história” neste sentido,
as informações obtidas devem ser livres de julgamentos morais,
principalmente por parte do pesquisador/pesquisadora.
A História Oral Temática segundo Meihy (2008, p. 147) “[...]
acontece em recortes de assuntos específicos, ou, como o diz o próprio
nome, temas captados e entrevistas organizadas, planejadas, atentas a
cumprir um fim”. Ou seja, é caracterizada com a abordagem de um
assunto mais específico, com questões intencionais, objetivas e com
caráter mais documental. Além disso, o texto traduzido também deve ser
o mais próximo da fala.
Já a Tradição Oral, aborda o colaborador/colaboradora enquanto
transmissor de tradições antigas, como ressalta Meihy (2008, p. 148)
“preferentemente voltada a grupos de oralidade primária, ou seja,
segmentos isolados e sem contato com a prática escrita ou midiática”. O
autor afirma (2008, p.148) ainda que “A Tradição Oral é apontada como
292
recurso para a compreensão de grupos ágrafos ou sem história escrita”
sendo quase sempre indígenas ou africanos.
As narrações coletivas são bastante comuns nesta pesquisa, já
que conforme afirma Meihy (2008, p.149) “a transmissão oral se
fundamenta exatamente na articulação argumentativa que varia pouco de
geração para geração” e as histórias referentes ao passado longínquo são
transmitidas de pais para filhos ou entre os indivíduos oralmente.
Outra característica importante, é que a Tradição Oral exige que
os/as pesquisadores/pesquisadoras tenham contato, convivendo com o
grupo estudado, depois de observados seus hábitos é que as entrevistas
irão acontecer. Porém, cabe ressaltar que em algumas situações pode não
haver captação de entrevistas, pois para esse método este instrumento
não é uma regra. Em relação à transcrição das entrevistas, quando
houver, Meihy (2008, p.149) afirma que “Os trajetos de fala, as
repetições, irregularidades, tudo, faz parte do registro” portanto, as
entrevistas devem ser transcritas tal e qual foram ditas pelo
colaborador/colaboradora sem nenhuma alteração.
As entrevistas passam por esses momentos: a transcrição, a
textualização, a transcriação e a legitimidade pelo
colaborador/colaboradora. Primeiramente, a transcrição é caracterizada
por reproduzir fielmente o que foi dito pelo entrevistado/entrevistada. Na
textualização, as falas e as perguntas do entrevistador/entrevistadora são
omitidas e a narrativa do colaborador/colaboradora se dará em primeira
pessoa. Já, a transcriação é o texto escrito a partir da transcrição, em que
o pesquisador/pesquisadora precisa ser coerente, textualizando as ideias
e fazendo com que aquele texto tenha sentido.
Ao transcriar o entrevistador/entrevistadora assume o papel de
mediador/mediadora entre a história vivenciada e contada aos leitores do
texto, no sentido de passar as emoções e sensações para a escrita. O que
é dito é de suma importância, porém o pesquisador/pesquisadora não
deve se prender somente a isso, pois os detalhes, os silêncios, a
respiração, o choro, o sorriso, tudo isso deve ser observado atentamente
para que em outro momento o pesquisador/pesquisadora possa transmitir
293
todas as emoções ao texto; isso é transcriar. O novo texto transcriado,
valoriza a narrativa e lança vida àquilo que foi escrito. É neste texto que
o pesquisador/pesquisadora deve colocar as emoções sentidas e captadas
durante a entrevista; aquilo que não foi falado, mas foi dito de alguma
forma é transcriado para o papel.
Em seguida, o entrevistador/entrevistadora entrega a narrativa já
transcriada ao colaborador/colaboradora, e o mesmo/mesma deve
analisá-lo para saber se identifica-a com sua própria história de vida,
legitimando ou até mesmo alterando alguma fala, alguma parte e/ou
suprimindo outras, para ser divulgado conforme as normas e diretrizes
éticas internacionais que asseguram salvaguardar a dignidade, os
direitos, a segurança e o bem-estar do participante da pesquisa.
A História Oral pode ser considerada uma metodologia, utilizada
para coletar entrevistas baseado em fontes orais, memórias, e
recordações sobre o passado da pessoa entrevistada, como uma forma de
captar um instante da própria história.
Para nosso processo de investigação, compreendemos que a
História Oral se constituiu como metodologia, entrecruzaremos a
metodologia da História Oral de Vida e da História Oral Temática , pois
a entrevista baseada na História Oral de vida segundo Meihy (1994, p.
56 e 57) “remete ao registro da experiência pessoal” e História Oral
Temática que “por sua vez está vinculada ao testemunho e abordagem de
um assunto específico” assunto esse que neste trabalho já foi
previamente estabelecido, servindo como base para a entrevista:
Compreender as consequências que o abuso sexual pode causar na vida
de uma pessoa.
294
Portanto, enquanto pesquisadores/pesquisadoras devemos estar
cientes de que conforme orienta Meihy (2006, p.195) “durante todas as
fases de execução da história oral temos um compromisso com a
transformação sem o que a história oral não tem razão de ser.” ou seja, a
História Oral possui um caráter transformador, compromissado com o
social.
Para realização desta pesquisa, foi necessária a submissão do
projeto no comitê de ética e pesquisa da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. Após alguns meses, o projeto submetido foi aprovado para a
realização da entrevista, posteriormente, entramos em contato com a
colaboradora marcando o dia e o horário para coletar a narrativa. A
Colaboradora assinou um termo de esclarecimento autorizando que a
pesquisa fosse gravada e utilizada neste trabalho.
Tínhamos um roteiro pré-determinado que serviu como base
para a realização da entrevista, contudo, conforme a metodologia
explicada anteriormente, o roteiro serviu como um estímulo para que a
colaboradora se sentisse a vontade para relatar suas vivências. A
entrevista foi encharcada de emoções e lembranças dolorosas, a
colaborada se emocionou várias vezes. Depois de coletar a narrativa, nos
debruçamos para escrever a transcrição literal; trabalho árduo, onde
tivemos que escutar a entrevista várias e várias vezes, não deixando de
passar para o papel nenhuma sequer palavra; tudo o que foi dito, até
mesmo os vícios de linguagem tal e qual maneira foram pronunciados.
Em seguida, fizemos a transcriação. Outro trabalho que exigiu
muito tempo e dedicação. Neste momento buscamos com outras palavras
passar para o papel todos os sentimentos que observamos na entrevista,
sempre deixando a essência da entrevista intacta. Procuramos passar para
os leitores, toda a emoção sentida e vivenciada, para que os mesmos se
sintam presentes na narrativa. Após esse processo, encaminhamos a
transcriação para a colaboradora, que se identificou com o texto, fazendo
assim a legitimação. Depois que o texto foi legitimado, passamos então
para a análise da narrativa com a bibliografia que estava sendo estudada
para a elaboração deste trabalho.
295
Analisando os dados
O/a professor/professora precisa, além de transmitir
conhecimento científico, atuar também como agente na identificação e
prevenção do Abuso Sexual, pois conforme diz Lima (2013, p. 81)
“afinal, ninguém melhor que o/a professor/a para reconhecer
comportamentos incomuns em seus/suas alunos/as.”, tendo em vista o
tempo de convivência, principalmente, no magistério infantil e da
relação de afinidade, muitas vezes, construídas nas escolas. Em vista
disso, ressaltamos que a discussão sobre esse tema é tão importante na
formação inicial e continuada desses/dessas profissionais.
296
Para tanto, a formação pedagógica do/a professor/a
é essencial para que se percebam os sinais. Claro
que somente identificá-lo não é suficiente para
afirmar o ocorrido, mas é um alerta e não omissão
da violação de direitos, para que aquele fato se
perpetue na vida da criança que terá certamente
consequências duradouras e terríveis. (LIMA,
2013, p. 88)
297
Não é normal não se comunicar nem ter contato
com ninguém...Se está isolada em algum canto,
alguma coisa tem, um problema de família ou
alguma situação que esteja sofrendo, penso que os
professores podiam identificar e falar: O que você
tem que não está bem e nem conversou com
ninguém? (BEATRIZ, 2017)
298
Desta maneira, já que os professores/professoras tem bastante
contato com as crianças principalmente na primeira infância onde esse
vínculo afetivo se torna mais próximo, é de extrema importância que o
professor/professora crie um vínculo de confiança, de modo que as
crianças se sintam seguras e confortáveis para conversar. O
professor/professora não deve se preocupar somente com a
aprendizagem escolar de seus alunos/alunas e, sim, com tudo aquilo que
envolve a vida desses alunos/alunas, uma vez que vítimas de Abuso
Sexual apresentam dificuldades na aprendizagem. Entretanto, neste caso
a realidade era diferente, pois conforme afirma Beatriz (2017) “A única
coisa que eles ressaltavam eram as minhas faltas, mas estavam
preocupados porque eu perdia conteúdo e não o motivo delas. Talvez se
eles perguntassem o que estava acontecendo, eu teria contado.”
Nesta perspectiva, o/a profissional que identificar ou suspeitar
da violência, deve antes de tudo, se colocar no lugar do outro, respeitar
a criança e/ou adolescente, criar um vínculo de confiança para que a
vítima se sinta segura ao relatar suas vivências.
299
Dentro deste contexto torna-se necessário que o
professor deixe de se ver como especialista de uma
determinada disciplina para se ver como educador
de uma forma mais ampla, com consciência sobre
o caráter político de sua atuação que se articula em
torno dos conceitos de cidadania, democracia,
comunidade, solidariedade e emancipação
individual e social, assim como o conhecimento
que adquirir durante a sua formação deve ser o mais
abrangente possível, não se restringindo a
procedimentos técnicos e teorias previamente
estabelecidas, indo além dos aspectos relativos a
aprendizagem do conteúdo formal. (SANTOS,
2011, p. 37)
300
medo, trauma, tristezas, enfim, seres dotados de sentimentos. Da mesma
forma,
Considerações finais
Percebemos que a violência sexual se faz presente em toda a
sociedade e a escola enquanto instituição social é um meio eficaz na luta
e enfrentamento deste fenômeno. Podemos considerar que a instituição
escolar exerce sobre a vida das pessoas é muito significativa,
funcionando também como um mecanismo de superação dos traumas
causados pela violência.
Contudo, também podemos destacar e problematizar em nosso
trabalho, a falta de formação e informação que os/as profissionais da área
da educação têm sobre a temática da violência sexual. A pobreza de
formação inicial e continuada, para que esse professor/professora saiba
como identificar e interpretar os sinais que seus alunos/alunas podem
evidenciar, bem como saibam como lidar em situações de suspeita e/ou
confirmação de violência. A capacitação, seja ela durante a formação ou
continuada, irá auxiliar os/as profissionais da área da educação a
abordarem essa temática delicada através de eixos estruturantes de forma
301
a proporcionar aos alunos/alunas abertura e confiança suficiente para se
abrirem se necessário.
Neste sentido, o papel que a escola e que os profissionais da
educação exercem em relação a prevenção das violências, sejam elas
manifestadas das diferentes formas, é um dos mais significativos, pois as
instituições de ensino podem e devem elaborar projetos de intervenção,
bem como campanhas educativas visando levar informações sobre o
tema da violência sexual para toda a comunidade escolar. Os professores
podem orientar seus alunos, e criar propostas de intervenção para lidar
com os casos de abuso sexual já confirmados, além de contribuir no
sentido de prevenção a novas violências.
Não podemos fechar os olhos perante esses abusos; é inaceitável
compactuar com essa prática cruel, como cidadãos precisamos defender
nossos direitos e principalmente os direitos das nossas crianças, que
devem ser respeitadas em sua individualidade, bem como lutar contra a
prática da violência que é um crime contra a vida. São raros os
professores e professoras que estão capacitados à orientar seus alunos e
alunas no sentido de prevenção e enfretamento à essa violência que
infelizmente cresce cada vez mais.
As políticas públicas e sociais também precisam ser cumpridas a
fim de punir os agressores, e prevenir os abusos garantindo às crianças
acesso a saúde, educação, lazer e todos os seus direitos previstos em lei,
e agindo de forma eficaz na luta e prevenção a todo e qualquer tipo de
violência.
Referências
ALVITO, Marcos. Apostila História Oral. Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:<
https://uff.academia.edu/MarcosAlvito> Acesso em: 23 jul.2017
302
da corporeidade: um estudo fenomenológico. Revista Escola
Enfermagem Usp, São Paulo, p.401-407, 2010.
303
VAGLIATI, Ana Paula. IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
EDUCAÇÃO SEXUAL. O PROFESSOR COMO AGENTE NA
PREVENÇÃO E NA IDENTIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA
SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. Maringá:
2015.
304
ANÁLISE DA TEMÁTICA SEXUALIDADE
NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO
FUNDAMENTAL I: O QUE (NÃO) ESTAMOS
ENSINANDO?
305
ANALYSIS OF THE THEMATIC SEXUALITY IN THE DIDACTIC
BOOKS OF FUNDAMENTAL EDUCATION I: WHAT ARE WE
(NOT) TEACHING?
The present work aimed to analyze the contents that permeate the
sexuality proposed by Primary School Science I books adopted by a
municipality in the interior of the State of Paraná. For that, three
collections of textbooks were selected for the years of elementary school.
These collections were previously selected by the teachers residing in the
four schools of the municipality. The books of each collection were
initially analyzed for the presence of content on sexuality, therefore, the
content analysis and description of the concepts regarding diversity,
gender and development / reproduction were carried out. Among the
analyzed books, one can identify the scarcity of pre-established concepts
of analysis, however, some specific approaches have been identified,
such as family diversity, gender differences and paternal care. The
phases and changes in the body presented shallow concepts, while
reproduction was only addressed in animals, in short, most of the books
presented only biological concepts. Therefore, in view of the absence of
content, it is considered important to reiterate the great difficulty of
teachers to discuss these concepts, since sexuality is still a taboo within
the school environment either by absence in textbooks, unsuccessful
placement of certain subjects, or by personal influence in the choice of
books.
Key words: Sexual education; years of elementary school; PNLD.
Enquadramento teórico
Contextualização do problema
A sexualidade é pertencente aos indivíduos desde seu
nascimento, mas, também, configura-se por meio das relações sociais,
históricas e culturais. Logo, o ambiente escolar, cujo alunos estão
inseridos, incide diretamente sobre o acesso às informações e a
promoção de uma educação libertadora, crítica e consciente quanto as
306
diferenças, principalmente na infância, na qual os estereótipos dos
gêneros e as relações de poder são reforçados pela escola.
Apesar dessa notoriedade, muitos obstáculos ainda dificultam a
educação sexual, bem como trabalhos sobre diversidade e questões de
gênero, tais como: a influência pessoal, religiosa ou cultural dos
docentes; a precariedade da formação inicial e continuada dos
professores; resistência familiar e escolar e a ausência de material
didático adequado. Nesta perspectiva, o livro didático apresenta-se como
um material de fácil acesso, frequentemente consultado pelos docentes
e, por vezes, de uso exclusivo, portanto, necessariamente deve conter
informações corretas e atentar-se as necessidades do conteúdo,
disponibilizando não somente conceitos biológicos, mas também
reflexões, a fim de extrapolar a memorização conceitual, estendendo-se
para a construção individual e social dos indivíduos.
Frente ao contexto supracitado, o presente trabalho objetivou
analisar os conteúdos que permeiam a sexualidade propostos por livros
didáticos de Ciências dos do ensino fundamental I adotados por um
município do interior do Estado do Paraná.
307
[...] Desde cedo as crianças [...] vão descobrindo o
próprio o corpo, e vendo a diferença entre o sexo
masculino e feminino. Até mesmo o próprio bebê
faz as suas próprias descobertas, podendo-se notar
pelo interesse e entusiasmo que eles brincam com
os próprios pés e mãos. Um pouco mais tarde, eles
acabam achando mais divertido e prazeroso tocar
outras partes do seu corpo, inclusive os genitais.
308
(SANTOS; RUBIO, 2013), podendo trazer novos significados às
possíveis distorções construídas pelos alunos (RODRIGUES;
WECHSLER, 2014). Neste sentido, a educação fornecida no contexto
escolar deve ser libertadora, permitindo que os alunos se liberem das
amarras daquilo que é reprimido e passem a ter uma visão mais ampla e
mais clara sobre a naturalidade da sexualidade em todos os seus aspectos
(PIASENTIM; BRAGA, 2009).
O ensino do tema sexualidade pelas escolas se torna uma ação
imprescindível para o desenvolvimento do aluno, pois não somente
propicia conhecimentos e entendimentos sobre o próprio corpo do
indivíduo, mas fornece aportes para que os alunos reflitam e discutam
sobre padrões e normas de comportamento preestabelecidos
(PIASENTIM; BRAGA, 2009).
Ainda que tão esclarecedora a conversa sobre sexualidade,
Piasentim e Braga (2009, p. 14) ressaltam as dificuldades docentes para
a discussão do tema pois:
309
relação a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, omitindo
tudo que pode causar maiores desconfortos para os pais e para os
próprios professores que determinam na maioria das vezes que no
período da infância, abordar o tema sexualidade é inadequado e ofensivo
(FIGUEIRÓ, 2009; FURLANI, 2011; FIORINI, 2016).
Em contrapartida ao medo e da negatividade da sociedade/pais
pelo tratamento do tema é imprescindível que o educador conheça o
embasamento legal que o ampare ao tratar a temática na sala de aula, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
Este documento oficializou a partir do final da década de 90 a
discussão do tema sexualidade como um tema transversal para o trabalho
didático, norteando as discussões sobre a mesma e também a
estruturação de currículos no ensino básico, tratando entre outros
aspectos, sobre orientação sexual, ficando então disposto legalmente
que:
310
e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma
sistemática, regular e gratuita [...] (BRASIL, 2017). Para a avaliação dos
livros didáticos, foram criadas comissões específicas para a análise das
disciplinas curriculares e ao fim essas avaliações são disponibilizadas um
guia digital contendo uma visão geral a descrição, a análise e as
possibilidades que a obra propõe como atividades em sala de aula.
Entre os critérios de análise dos livros didáticos, está a
observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção
da cidadania, ao respeito à diversidade e ao convívio social republicano,
assim são excluídos dessa seleção livros que:
Método
A presente pesquisa constitui-se como qualitativa e foi realizada
em quatro escolas municipais do ensino fundamental I (1º ao 5° ano) da
rede pública de ensino do interior do estado do Paraná, Brasil.
311
Foram selecionadas três coleções de livros didáticos de ciências
adotadas pelo município (Quadro 1), disponibilizadas pelo Programa
Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e escolhidas
previamente pelos professores efetivos das referidas escolas.
Buriti mais
Natália Leporo; Mônica
interdisciplinar –
B Torres Cruvinel; Fernanda 1 Moderna 2017
Ciências, História e
Pereira Righi
Geografia
312
conteúdo correlato, ainda que, nenhuma das coleções exiba capítulos
específicos sobre as temáticas, estando dispersas ao longo dos capítulos.
Em linhas gerais, não foi verificada a relação da existência desses
conteúdos com os anos nos quais foram encontrados.
É possível afirmar que a escassez de conteúdos relacionados a
sexualidade se mostrou evidente durante o presente estudo, o que
possibilitou que as categorias a serem analisadas fossem definidas pela
frequência em que o assunto foi abordado. Também foram inseridos os
trechos e imagens encontrados nos livros analisados, a percepção e visão
geral dos livros e capítulos, bem como de seus detalhes.
A seguir serão apresentados e discutidos os conteúdos elencados
a partir da análise das coleções correspondente a este estudo.
1. Diversidade
Em relação a diversidade, na coleção A, não foram encontrados
trechos ou figuras que pudessem ser considerados como abordagem de
questões acerca da diversidade para além das características físicas.
Na coleção B (livro do primeiro ano do ensino fundamental I),
diferentemente das demais, a Unidade 2 intitulada “As famílias”,
apresenta, por meio de figuras, a diversidade familiar, representada pela
foto de uma família formada por duas mulheres e duas crianças (Figura
1). Porém não foi encontrada outra denominação ou outras configurações
de famílias compostas por dois homens. Esta imagem mostra a tentativa
dos autores de introduzirem de forma subliminar os diferentes contextos
familiares de forma significativa, diante da inexistência nos outros livros,
porém não traz outros exemplos masculinos para retratar tal contexto.
Para Oliveira (2015) multiculturalismo e diversidade são temas
transversais que fazem parte do contexto escolar com função social.
Portanto, é importante que a escola possa romper padrões, hierarquias,
estereótipos e segregação, pois, considerando a existência desses
atributos negativos, o ambiente escolar torna-se prejudicial,
classificando as crianças simplesmente por suas características, sendo
elas físicas ou não (FREITAS; BRÊTAS, 2016).
313
Figura 1. Imagem das diferentes configurações familiares
314
preferências e seu modo de ser” (LEPORO, CRUVINEL; RIGUI, 2017,
p. 15).
Mas, neste caso, os autores fazem menção as características
físicas, levando os leitores à uma interpretação errônea de que as demais
diferenças não são normais, ainda que o mesmo cite as diferenças entre
as preferências e modo de ser, o que também pode propiciar uma má
interpretação ou julgamento dos demais indivíduos que não atendem aos
padrões de normalidade socialmente impostos.
Os livros de ciências ainda se encontram apegados aos conteúdos
estritamente biológicos, anatômicos e pouco se atentam aos conteúdos
referentes a diversidade, por exemplo, que são necessários a formação
cidadã e social dos alunos, visto que a longo prazo estes se tornem
compreensivos as diferenças (LASCOSKI, 2016).
2. Gênero
De maneira geral, questões relacionadas a gênero não foram
frequentemente encontradas. Iniciando pela coleção A, há uma imagem
representando o cuidado paterno. A referida imagem é apresentada no
capítulo “Uma fase de mudanças” no livro do 1º ano (Figura 2). A
imagem retrata além do que é habitualmente representado, o cuidado
materno.
315
Figura 2 - Imagem do cuidado paterno da criança.
316
e tecnologia”, capítulo “População” do livro do 5º ano. O box se atenta
a apresentar alguns marcos históricos que conferiram direitos as
mulheres no Brasil, viabilizando discussões acerca da igualdade entre
homens e mulheres.
Ainda na mesma coleção, desta vez no livro do 1º ano, na
Unidade “As famílias”, um trecho apresenta as diferentes configurações
familiares ao longo do tempo (Figura 3), demonstrando os novos papeis
assumidos pelas mulheres. Entretanto, curiosamente, o autor propõe
atividades de fixação e memorização sobre essas configurações. Na
coleção C não foi verificado registros de conteúdos sobre gênero.
317
Fonte: Leporo, Cruvinel e Rigui, 2017, p. 54.
318
Sendo assim, considera-se fundamentalmente importante a
existência de textos e imagens deste caráter a fim de contribuir para o
rompimento de padrões de gênero pré-estabelecidos.
3. Desenvolvimento/Reprodução
Por fim, nesta categoria, esperava-se encontrar conteúdos
relacionados ao sistema reprodutor e desenvolvimento humano, mas,
diferentemente dos demais sistemas apresentados nos livros, nenhuma
das coleções abordaram essas questões. As fases do desenvolvimento do
humano, quando mencionada, traz informações sobre a adolescência e a
vida adulta, de forma rasa que pouco agrega como novos conceitos.
A coleção A, capítulo “Reprodução dos Animais” do livro do 3º
ano, apresenta imagens e breves textos sobre as fases da vida humana
(fases relacionadas à cronologia). A infância é bastante evidenciada, a
adolescência é descrita como fase intermediária, enquanto na fase adulta,
é evidenciada como uma etapa em que as pessoas estão preparadas para
ter filhos. Neste momento, considera-se importante ressaltar a escassez
de informações sobre transformações do corpo na adolescência, trazendo
a informação da gravidez como algo que acontece exclusivamente da
vida adulta.
Para Ludovico e Maistro (2017), a sexualidade é intrínseca a
existência humana e deve ser abordada nos livros didáticos, assim como
os professores também devem realizar discussões acerca do tema. Todo
indivíduo, seja na infância ou não, possui dúvidas sobre sexualidade, e
quando não esclarecidas corretamente, a busca por informações pode se
dar de forma equivocada (SANTOS; RÚBIO, 2013).
A coleção B, não apresentou conteúdos de reprodução ou
desenvolvimento em nenhum dos seus livros. A coleção C, é traz uma
imagem sobre a reprodução dos animais (Figura 4), embora essa
abordagem seja também utilizada em outros livros, coube trazer aqui
apenas um exemplo. Inserida no capítulo “O desenvolvimento dos
animais” no livro do 2º ano, o ato reprodutivo em diferentes animais é
descrito como um encontro que pode resultar em reprodução, sem outras
319
informações, podendo levar os alunos a pensarem que a aproximação
com outros indivíduos poderá gerar descendentes, o que é um absurdo.
320
iniciais do Ensino Fundamental, foi observado em diferentes momentos
de suas falas, ainda que ingênuas, o preconceito, estigmas e o próprio
bullying em relação aos seus alunos.
Diante do exposto, alguns questionamentos surgiram com a
realização desta pesquisa, tais como: se consideramos que muitas
dúvidas e questionamentos são evidenciados pela comunidade escolar e
sociedade civil sobre como abordar o tema sexualidade nas escolas,
como atender corretamente aos anseios dos alunos? Se o livro didático é
o meio mais acessado pelo professor e alunos para o acesso às
informações, porque não abordam os conceitos de sexualidade de forma
curricular onde os professores possam utilizar como material didático
suficiente para trabalhar esses conceitos?
Portanto, destaca-se a importância de trabalhos de formações
iniciais e continuada que rompa os tabus socialmente construídos
(FIGUEIRÓ, 2009) e fomentem o senso de desigualdade ocasionado
pelas relações de gênero, a fim de promover reflexões sobre suas
concepções atuantes (OLIVEIRA; ADI, 2018). Salienta-se também a
necessidade de pesquisas e investimento na área educacional e de
políticas públicas de forma assistencial, defendido pela constituição no
tripé, Educação, Saúde e de Seguridade Assistencial.
Considerações finais
Dentre as coleções avaliadas, todas apresentaram pouco ou
muito conteúdo acerca de questões sobre sexualidade, entretanto, a
coleção B, foi a que mais se atentou aos tópicos analisados. A maioria
dos livros apresentaram somente conteúdos meramente biológicos, como
a reprodução em animais, não havendo uma atenção considerável dos
autores para a diversidade, seja ela familiar ou de gênero.
Frente a essa ausência de conteúdo considera-se importante
reiterar a grande dificuldade de os professores discutirem esses
conceitos, seja por ausência nos livros didáticos, colocação malsucedida
de determinados assuntos, ou por influência pessoal na escolha dos
livros. Ainda, salienta-se que sexualidade é um tabu dentro do ambiente
321
escolar, que muitas vezes atua como perpetuadora de padrões de
normalidade, relações de poder e discriminação.
Considera-se também que, trabalhar os vários assuntos da
sexualidade na infância permite o desenvolvimento saudável dos
infantes, que passam a entender a escola como acolhedora e
esclarecedora de dúvidas, também permite o estabelecimento de relações
de igualdade entre os gêneros, bem como visa minimizar a discriminação
e a segregação. Contudo, a disponibilidade de materiais didáticos
adequados, a participação da família, bem como uma formação docente
de qualidade é crucial para o sucesso do processo educativo.
Referências
BRASIL. Decreto nº 9099, de 18 de julho de 2017. Dispõe sobre o
Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Brasília: Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), 2017. Disponível
em: <http://www.fnde.gov.br/acesso-a-
informacao/institucional/legislacao/item/10941-decreto-
n%EF%BF%BD-9099,-de-18-de-julho-de-2017>. Acesso em 20 fev.
2019.
322
DE FREITAS, M. J. D.; BRÊTAS, J. R. S. Estigma e preconceito na
educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Revista
Gênero, v. 17, n. 1, 2017.
323
OLIVEIRA, C. A. N.; ADI, A. S. Questões de gênero e sexualidade:
implicações na docência. Revista Periódicus, v. 1, n. 9, p. 479-499,
2018.
324
CONTEÚDOS DE SEXUALIDADE EM
UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA A
FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES NA PERSPECTIVA DA
EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA
325
Portanto, evidencia-se predominância da abordagem dos direitos
humanos.
Palavras-chave: Sexualidade; Mídias Educacionais; Formação
Continuada de Professores de Biologia.
326
Enquadramento teórico
Trabalhar o tema sexualidade nas escolas é uma prática de
suma importância, para professores da rede básica de ensino, pois é
imprescindível que os jovens possam encontrar nas aulas e nas escolas,
espaços e momentos de reflexão sobre os diversos conteúdos abrangidos
por esse tema, como conhecimentos em relação aos órgãos sexuais tanto
femininos como masculinos (para ambos os sexos), ISTs, gravidez
indesejada, aborto, além de terem noção sobre questões de gênero,
orientação sexual, abuso sexual, etc., uma vez que, nem sempre os pais
tratam sobre esses assuntos com os filhos com problemas de conotação
sexual enfrentados pelos jovens e pela própria família.
No entanto, muitos professores acabam optando por não
trabalhar com tal tema, tendo em vista a falta de preparo e até mesmo por
insegurança dos mesmos em como abordar e se posicionar diante de
diversas dúvidas e situações que possam surgir na sala de aula. Nesse
contexto verifica-se a importância de apresentar aos professores
atuantes, propostas de formação continuada para professores em
Ciências e Biologia, que busque contemplar discussão acerca da
educação sexual, e que proponha estratégias didáticas diferenciadas a fim
de prepara-los para lecionar essa temática nas escolas.
Sendo assim, este trabalho objetivou analisar uma proposta de
intervenção pedagógica sobre o tema sexualidade e gênero, utilizando
filmes, em um contexto de formação continuada de professores na
perspectiva da educação à distância. Para as análises, foram levadas em
consideração 8 abordagens contemporâneas, descritas por Jimena
Furlani (2011), em relação à educação sexual, de acordo com o princípio
ideológico.
327
volta das décadas de 20 e 30, onde os problemas considerados “desvios
sexuais”, eram julgados como crime e passaram a ser tratados como
doenças (ALTMANN, 2001). Dessa forma, a escola tornou-se um espaço
de intervenções preventivas da medicina higiênica, cabendo a ela cuidar
da sexualidade das crianças e adolescentes para que produzam
comportamentos considerados “normais”. No entanto, o tema
sexualidade só foi efetivado no currículo escolar a partir da implantação
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), no final da década de
1990, com aulas e projetos na educação básica (CÉSAR, 2009).
De acordo com o PCN: Tema Transversal Orientação Sexual
(BRASIL, 1997), a implementação do tema Orientação Sexual, como um
tema transversal a ser trabalhado na escola, deu-se devido à preocupação
dos profissionais da educação com a ocorrência crescente de gravidez
indesejada entre adolescentes e ao risco da infecção pelo HIV na época.
Assim, o documento aponta como justificativa a promoção da saúde de
crianças, adolescentes e jovens, ao intervir na prevenção de ISTs, como
a AIDS, além de contribuir para a prevenção de problemas graves, como
gravidez indesejada e abuso sexual, e para o conhecimento e valorização
dos direitos sexuais e reprodutivos. Dessa forma, a discussão de assuntos
considerados polêmicos e delicados pela sociedade, tais como
masturbação, iniciação sexual, o “ficar” e o namoro, homossexualidade,
aborto, disfunções sexuais, prostituição e pornografia, contribui muito
para o bem-estar das crianças, adolescentes e jovens quanto à vida sexual
atual e futura.
Em contrapartida, um problema enfrentado na educação
sexual, é a ideia que alguns profissionais da educação têm de que cabe
somente à família tratar sobre sexualidade com os filhos, assim ignoram,
ocultam e reprimem qualquer abordagem de sexualidade, ou apenas
ensinam na perspectiva biológica, trabalhando apenas o aparelho
reprodutivo, lembrando, no entanto que, como o tema sexualidade é
transversal, este deve ser contemplado pelas diversas áreas do
conhecimento (BRASIL, 1997).
328
Ainda de acordo com o documento, a escola tem a função de
abordar os pontos de vista, valores e crenças com relação à sexualidade,
presentes na sociedade, a fim de auxiliar o aluno na construção de um
ponto de auto referência através de reflexões, ou seja, para que os
próprios alunos construam suas próprias opiniões e tirem suas
conclusões para escolherem seu caminho, a partir dos diversos
conhecimentos construídos com o professor. Ressalta ainda que não há
intenção alguma em substituir ou concorrer com a função da família, mas
sim complementar. Contudo, a prática docente deve ser minuciosamente
planejada, visto que a abordagem desse assunto trata-se de um processo
formal e sistematizado. Ademais, é necessário que as diversas temáticas
da sexualidade sejam trabalhadas dentro do limite da ação pedagógica,
evitando invadir a intimidade e o comportamento dos alunos e
professores.
329
2006; BOMFIM, 2009). Para Silva e Santos (2011), há a necessidade de
uma formação voltada para o sentido amplo da sexualidade, de maneira
que esta abranja todas as questões envolvidas, ultrapassando influências
do contexto cultural e biológico.
Rodrigues e Sales (2011) também acreditam que o processo de
formação continuada é uma das saídas imediatas para a formação de
educadores sexuais, que se comprometam com a saúde sexual e
reprodutiva dos alunos, contribuindo para a vivência da sexualidade com
respeito e sem discriminação em relação à orientação afetivo sexual.
Para Silva e Neto (2006) o professor deve preparar-se para a
intervenção prática mediante leituras e discussões, devendo ter um
espaço grupal de supervisão continuada e sistemática que propicie uma
reflexão sobre essa prática e sobre seus próprios valores e limites, o que
o auxiliará na amplificação da sua consciência em relação à sexualidade
e à visão de mundo, assim como na adoção de uma postura ética na sua
atuação.
A temática “sexualidade” pode ser um ponto capital na
formação continuada, isto é, na busca de crescimento pessoal e
profissional do professor. Além disso, é possível haver significativo
progresso no relacionamento professor-aluno e no processo de ensino-
aprendizagem como um todo, considerando o desenvolvimento da
formação continuada tendo a sexualidade como tema central
(FIGUEIRÓ, 2006).
330
escolar deve favorecer a superação de visões distorcidas e reducionistas
sobre tais temas, propiciando a construção de uma sociedade mais justa.
Um bom professor é aquele que busca novas estratégias e
possibilidades de ensino e aprendizagem, assim, fazendo a diferença em
prol da educação (NÓVOA, 2007). Neste sentido, o uso de filmes sobre
sexualidade e gênero, configura-se como uma estratégia metodológica
que contribui para a construção de uma visão mais embasada sobre o
assunto, e visa possibilitar o despertar de emoções e tomada de
consciência, além de vivenciar experiências e emoções, e expor uma
realidade mais próxima aos alunos , mesmo que as situações abordadas
no filme não sejam diretamente vivenciadas por eles, mas fazem parte da
realidade da sociedade em que vivem (ROCHA et al, 2015; GARCIA e
LOUREIRO, 2017).
Altmann (2013) também afirma que possibilidades educativas
ligadas à diversidade sexual podem ser construídas a partir da arte, como
por exemplo filmes, uma vez que contribui para uma abordagem da
sexualidade muito além da sua dimensão biológica. No entanto,
considerando que filme está ligado ao contexto de lazer e entretenimento,
muitos professores utilizam filmes em sala de aula para “descanso” ou
apenas no momento de substituir algum outro professor que falta. Para
os alunos, a exibição de filmes também acaba tendo esse significado, o
que modifica a postura e as expectativas em relação ao seu uso (LEAL,
2010).
Diante disso, para Rocha et al (2015) apenas o ato de exibir um
filme não torna a educação um processo mais significativo, pois ele é
uma tecnologia que precisa ser habilmente utilizada para se converter em
propiciadora das experiências almejadas. Dessa forma, é necessária a
mediação docente, onde o professor deve ter técnica para aproveitar
todas as vantagens do filme, sendo então um agente que sugere reflexões
e aponta episódios úteis para serem analisados e para interpretar seus
fatos. Além disso, ressalta que essa mediação deve ser feita a partir de
um planejamento prévio de como trabalhar os temas sexualidade e
gênero, de forma que possibilite a discussão sobre relações de gênero;
331
desigualdade de gênero; preconceito de gênero; papéis sociais e a
construção social do gênero, por exemplo.
332
A terceira abordagem, a terapêutica, esta é voltada ao caráter
psicológico do indivíduo, e busca “causas” que expliquem as vivências
sexuais consideradas “anormais”, ou “problemas sexuais”, afirmando
poder “curar” as pessoas. Geralmente, propõe conclusões simplistas,
imediatistas, genéricas e universais para os fenômenos da vida sexual.
Para alguns defensores da terapia sexual, a homossexualidade
poder ser causada por possessão demoníaca, ou por desvio de conduta ou
estilo de vida alternativo, ou ainda por falta de amadurecimento
emocional psicossexual devido à ausência ou violência do pai durante a
infância de um menino, pois segundo esses defensores, é necessário que
o pai dê amor, aceitação e confirmação ao seu filho para que seu processo
de crescimento psicossexual, segundo seu gênero, seja bem
desenvolvido. Já em relação às meninas, elas devem fazer o processo de
identificação com uma mãe que aprove e confirme sua feminilidade, caso
o contrário, resulta em lesbianismo. Assim, a abordagem em questão,
comumente pode estar ligada a instituições religiosas, ocupar a mídia e
consultórios de aconselhamento e orientações, utilizando-se de técnicas
de terapia individual ou grupal e de psicodrama para alcançar a “cura”
sexual dos homossexuais (FURLANI, 2011).
A próxima abordagem é a religioso-radical, caracterizada pelo
apego às interpretações literais da bíblia, defendendo o discurso religioso
com “verdade incontestável” acerca da sexualidade “normal”. Tem a
finalidade de pregar a manutenção da família patriarcal, e a volta da
“submissão da mulher”, seguindo como era relatado nas antigas
escrituras. Assim, trata-se de uma abordagem fundamentalista, haja vista
que a bíblia é adotada como referência única de ética e moral, visando o
conservadorismo e obediência rigorosa e literal em relação aos princípios
básicos escritos. Dessa forma, a vida sexual de casais e jovens é regulada,
onde o sexo deve ser feito com a finalidade de reprodução, caso o
contrário, é considerado como pecado, assim como as práticas
homoafetivas.
A quinta abordagem, referente à educação sexual dos direitos
humanos, explicita, problematiza e desconstrói representações negativas
333
socialmente impostas aos indivíduos e suas identidades “excluídas”
(gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais), tratando-se de um
processo educacional político que se compromete em construir uma
sociedade melhor e menos desigual.
Já a abordagem dos direitos sexuais, baseada na Declaração
dos Direitos Sexuais, enxerga a sexualidade como parte integral dos
seres humanos estando presente no seu desenvolvimento, sendo que os
direitos sexuais são direitos humanos fundamentais e universais,
embasado na liberdade, igualdade e dignidade de todos os seres
humanos. Nessa declaração, estão contidos os direitos à liberdade sexual;
à autonomia sexual, à integridade sexual e à segurança do corpo sexual;
à privacidade sexual; à justiça (equidade) sexual; ao prazer sexual; à
expressão sexual emocional; à livre parceria sexual; a fazer escolhas
reprodutivas livres e responsáveis; à informação baseada na investigação
científica; à educação sexual integral; e à atenção à saúde sexual. Em
suma, é uma abordagem voltada ao reconhecimento da diversidade
sexual, de gênero e étnico-racial, apresentando as causas dos direitos
sexuais das mulheres e levantando discussões para a questão de gênero e
movimentos LGBTI, bem como infância e adolescência.
A penúltima abordagem é a emancipatória, a qual caracteriza-
se como sendo sócio-histórico-crítica, tendo como influência o
marxismo. Ela pressupõe que a construção da cidadania começa com a
formação da identidade do sujeito, cuja representação, sujeito-pleno, está
ligada à “liberdade de escolha” que deve ser proporcionada pela
educação sexual emancipatória. Ademais, a ideia de emancipação está
atrelada ao esclarecimento (consciência) que remeterá à liberdade de
escolha de cada indivíduo.
A oitava e última abordagem descrita por Furlani (2011), é a
da educação sexual Queer, derivada da Teoria Queer, cuja origem vem
da cultura intelectual gay e lésbica a partir de meados da década de 1980.
Critica a política de identidade, questionando o caráter, limites e
fronteiras da identidade homossexual, e exclui visões de identidades
fixas e únicas, trocando-as por uma política da diferença. Assim, rejeita
334
formas normativas, recusando a adoção de estereótipos, permitindo que
as identidades dos sujeitos sexuais e de gênero possam ser inseridas no
espaço educacional sem julgamentos.
Percurso Metodológico
Para este trabalho, foram analisados planos de aulas de 23
alunos matriculados em um curso de especialização, ou seja, de formação
continuada de professores de Ciências e Biologia, de uma Instituição de
Ensino Superior Estadual do interior do Paraná, Brasil, na perspectiva da
modalidade à distância. Dessa forma, o público analisado nesse trabalho
tratou-se de profissionais graduados na área de Ciências Biológicas e
Saúde, além de áreas afins, interessados na docência em nível básico,
técnico e/ou superior.
O curso possui uma disciplina voltada para a Educação Sexual
na Educação Básica, de onde foram obtidos os planos de aula elaborados
pelos professores como requisito de atividade proposta pela disciplina.
A atividade de número 3 consistia em analisar um vídeo proposto pelo
professor, que aborda temas relacionados à sexualidade onde os alunos
deveriam utilizar “filmes com potencialidades para uso em uma
intervenção em Educação para as Sexualidades e Gêneros”.
Quanto aos critérios de análise verificou-se se todos os alunos
realizaram a atividade proposta, se cumpriram as exigências da
atividade, sendo estas: público alvo, objetivos da aula, conceitos
trabalhados, momento da aula onde o vídeo seria utilizado e uma
proposta de situação; e se foram condizentes objetivos e propostas. Além
disso, analisou-se o plano como um todo, identificando em qual ou quais
abordagem(ns) da educação sexual o mesmo fora elaborado.
Como referencial para a análise desse material foi utilizado a
classificação de Jimena Furlani, descrita em ”Educação sexual na sala de
aula: relações de gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial
numa proposta de respeito às diferenças” (2011), que aborda a educação
sexual em diversas abordagens de acordo com o princípio ideológico,
sendo estas: direitos humanos, biológico-higienista, direitos sexuais,
335
moral-tradicionalista, entre outras já mencionadas, mas que não foram
identificadas no material selecionado para a análise deste trabalho.
Resultado e Discussão
Buscou-se analisar a atividade com maior participação dos
alunos matriculados. Foram entregues 23 planos de aula dos 25 alunos
matriculados na disciplina (92%), o que nos levou a inferir que a
praticidade do uso dos filmes e imersão do espectador na realidade do
mesmo, favorece a reflexão do tema abordado, tanto para o educador
como educando. Contudo, apenas 13 dos 23 planos de aula entregues
(aproximadamente 56%) abordavam todas as exigências propostas. Por
outro lado, 14 deles (aproximadamente 60%) foram condizentes quanto
às propostas e objetivos, havendo limitações desse critério de análise
para atividades onde não cumpriam itens necessários para a mesma.
Já quanto às divergências de abordagens, classificadas por
Furlani (2011), verificou-se os seguintes dados: 11 professores optaram
pela abordagem dos direitos humanos; 3 pela biológico-higienista; 1 pela
dos direitos sexuais; 1 pela moral-tradicionalista e 6 optaram por uma
mescla entre as abordagens dos direitos humanos e direitos sexuais (fig.
1). Portanto, dos 23 planos de aula, 22 foram classificados quanto à(s)
abordagem(ns), pois uma proposta não apresentava material necessário
para que o plano de aula fosse classificado.
336
Figura 1 - Abordagens da educação sexual contemporânea identificadas
nos planos de aula analisados.
337
Quanto aos Direito Sexuais, Professor 20, cita:
338
homossexuais, além de entender a sexualidade como parte integral do ser
humano, devendo ser vivida em plenitude sem coação ou abuso.
Considerações finais
A partir das análises realizadas, podemos identificar que há a
predominância de planos de aula com a abordagem relacionada aos
direitos humanos, onde se pode ver a ênfase em problemas sociais
relacionados à sexualidade, como, principalmente a pedofilia e abuso
sexual, devido à preocupação que estes casos trazem à sociedade e à
sabida necessidade de prevenção a esses tipos de violência.
Outro tópico que deve ser considerado é que o curso de
formação continuada ministrado já afetou a percepção de sexualidade
dos profissionais-alunos, lembrando que a atividade analisada era a
terceira da disciplina, portanto, pode ter sido por este motivo que houve
uma menor propensão a propostas com a abordagem biológico-higienista
do que o esperado, uma vez que esta é a abordagem mais comum
identificada no ensino formal tradicional.
Com isso, evidencia-se que, realmente, políticas públicas que
incentivem a formação continuada de professores são de fundamental
importância para a educação sexual, promovendo a desmitificação de
conceitos relacionados e elaboração de propostas de intervenção para os
contextos educacionais, buscando opções fora do ensino formal
tradicional.
Referências
ABREU, Andrezza Romenia Lima de. Educação sexual e a formação
de professores: uma proposta para a formação inicial dos
licenciandos em Ciências Naturais (FUP). 2017. 64 fls. Dissertação
(Mestrado Profissional em Ensino de Ciências). Universidade de
Brasília, Brasília. 2017.
339
ALTMANN, Helena et al. Diversidad sexual y educación: desafíos para
la formación docente. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 13, p. 69-82,
2013.
340
MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi et al. Orientação Sexual para
professores: formulário para avaliar a aquisição de conhecimento sobre
sexualidade infantil. Revista Mimesis, Bauru, v. 27, n. 2, p. 107-123,
2006.
341
EDUCAÇÃO EM SEXUALIDADES
CRÍTICA: ONZE FALAS E ONZE DÚVIDAS DE
ESTUDANTES ANALISADAS EM DEFESA DE
UMA PRÁXIS TRANSFORMADORA
342
Based, theoretically and methodologically, on the historical-dialectical
materialism, we began with the understanding of the reality dialectically
conditioned by material relations to look at the problematics about
(gender and) sexualities in society and in education, with the concern
with breaking the status-quo and to drive towards transformation. This
study is a clipping of the monograph entitled "Critical Education in
Sexualities: an experience in a public school in the pioneer north of
Paraná" (BORGES, 2017), written by the first author here and
orientated by the second one, which had aimed to comprehend the social
practice – focusing on sexualities education –, from high school students
of a school in the pioneer north of Paraná, and intervene with elaborated
knowledge. In this article, we aimed to analyze statements and questions
from students about sexualities, that would permit to problematize social
practice and identify the logics that they reproduce.
Keywords: Historical-Critical pedagogy. Historical-dialectical
materialism. Public school. Sex Education. Teacher training and teacher
practice.
Introdução
Nossa sociedade vive, historicamente, um cenário de
desigualdade e injustiça, recentemente acirrado com o fortalecimento das
ondas conservadoras. Segundo relatório britânico de 2017, a respeito da
desigualdade socioeconômica no Brasil, 5% da população mais rica
detém a mesma fatia de renda que o restante 95% (OXFAM, 2017). Nos
últimos meses, novos obstáculos surgiram de embate contra o
progressismo, as políticas públicas e a educação pública, o que
significam consequências em especial para a classe trabalhadora.
Partindo de uma visão crítica, com a lente do materialismo
histórico-dialético (MHD) e, assim, entendendo a realidade
condicionada dialeticamente pelas relações materiais, estas questões
estão associadas às lógicas exploratórias e alienantes que dominam na
sociedade, ainda em vigor com o modo civilizatório capitalista. São
lógicas que marginalizam e normatizam a humanidade em diversos
343
âmbitos, inclusive quanto às questões de gênero/sexualidades, que
perfazem o foco deste estudo.
As sexualidades (corpos, gêneros, identidades, afetos,
erotismos) passaram, pela história, e ainda hoje passam, por diversas
opressões, influências e normatizações sociais, no âmbito da religião, da
política, da economia, da educação, e até mesmo da ciência. Atualmente,
ainda vemos essa herança, como no preconceito e na violência
culturalizados. Segundo relatórios brasileiros, 68 mil casos de violência
contra mulheres foram contabilizados apenas no primeiro semestre de
2016, e 347 LGBT+ foram mortas(os) violentamente no mesmo ano
(BRASIL, 2016; JULIÃO, 2017). Na nossa sociedade, com o
conservadorismo em ascensão supramencionado, tem prevalecido o
machismo, a cis/heteronormatividade e a LGBTfobia, configurando-se
lutas contra as mulheres e as pessoas LGBT+ (BORGES, 2017);
recentemente, projetos têm movido reações contra o estudo e o ensino
sobre sexualidades em escolas, ameaçando destruir conquistas sociais e
censurar a pesquisa científica e a atuação docente.
Estas questões de normatização dos corpos, identidades e
relações sexuais/afetivas, assim como de enfraquecimento da educação,
impossibilitam o gênero humano de alcançar a humanização na sua
forma mais plena, pois estão relacionadas à alienação e exploração do
modo de produção capitalista (BORGES, 2017).
Neste cenário, faz-se necessária uma prática revolucionária
articulada a uma teoria revolucionária, no sentindo de buscar ações
mediatas que rompam com a lógica hegemônica e transformem, pela
raiz, o modelo de civilização. Ao encontro disso, está o MHD, aporte
teórico-metodológico para compreender o real, aqui escolhido como
lente para entender o gênero humano, o trabalho, a sociedade, a
educação, etc., inclusive as questões de sexualidades, e buscar
transformações sociais.
Esta revolução não se limita à escola, mas, inevitavelmente, em
alguma medida, passa por ela, pois é o espaço em que a formação
humana obtém as mais elevadas produções culturais de forma
344
sistematizada (MAIA, 2015). A Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) é
uma abordagem dialética da educação (fundamentada no MHD) que
supre essa demanda; histórica por entender os conhecimentos
historicamente acumulados, e crítica por permitir a consciência filosófica
para o enfrentamento do modo capitalista de produzir a vida (SAVIANI,
2008; 2013). Para tratar em específico a temática de sexualidades com
essa visão transformadora, existe a Educação em Sexualidades Crítica
(ESC) (BIANCON, 2016; BORGES, 2017), baseada na PHC.
Ante o exposto, preocupou-se com a prática social
desqualificada, em específico no que toca às questões de sexualidades, e
a defesa de uma práxis transformadora, possível com a ESC e suas
objetivações últimas consequentes de sua fundamentação, na qual aqui
se respalda.
O presente trabalho apresenta-se como um recorte da pesquisa
da monografia intitulada “Educação em Sexualidades Crítica: uma
experiência em uma escola pública do norte pioneiro do Paraná”
(BORGES, 2017), com autoria do primeiro autor e orientação do
segundo, realizada em 2017, que objetivara “compreender a prática
social, com enfoque nas questões de sexualidades, a partir de estudantes
do Ensino Médio de uma escola pública do norte pioneiro do Paraná, e
intervir com conhecimentos elaborados” (p. 21), onde se atuou junto a
95 estudantes participantes, nas suas aulas de Biologia, coletando dados
de suas compreensões e ações sobre a temática.
Neste artigo, utilizando um recorte dos dados da pesquisa
original, o objetivo foi analisar algumas falas e dúvidas de estudantes
sobre assuntos inerentes às sexualidades, que permitissem problematizar
a prática social e identificar as lógicas que reproduzem.
345
ideias (materialismo), compreende que as coisas (matéria, mundo) e a
realidade existem, e nós interagimos com elas, sendo por elas
influenciadas(os) e influenciando-as, ao mesmo tempo, num processo de
contradição e movimento (dialética) (LESSA; TONET, 2011).
À luz do MHD, o ser humano tem biologicamente garantida sua
existência apenas na sua forma biológica, na sua natureza animal: como
hominídeo. Enquanto que sua segunda natureza, a social, é preciso ser
produzida para que possa existir como humano. O processo de
humanização acontece através da transformação da natureza: o trabalho
(no seu sentido ontológico), material ou não-material. Nesse processo, o
humano, para suas necessidades, realiza prévias-ideações (elabora algo
na sua mente de forma complexa, baseado no que já existe) e
objetivações (ação/produção do idealizado) e, assim, transforma a
natureza materialmente e imaterialmente; por consequência, transforma
a realidade e, ao mesmo tempo que isso acontece (porque é dialético),
transforma-se si mesmo (LESSA; TONET, 2011).
O trabalho de um conjunto de seres humanos, vivendo em
sociedade, gera produtos materiais (ferramentas, etc.) e não-materiais
(como conhecimento), que são ditos socialmente produzidos e
historicamente acumulados. Eles caracterizam a cultura, que é por
excelência humana. Enquanto o que é físico pode deixar de existir na sua
forma elaborada (a matéria é manipulável e destrutível), o conhecimento
permanece nas mentes. E a educação, escolar ou não escolar, permite a
sua transmissão. A função da educação, portanto, é garantir o acesso a
conhecimentos nas suas formas mais elaboradas, permitindo a
humanização. O ato de educar é o ato de humanizar (SAVIANI, 2008;
2013).
No sentido de o ser humano ser um ser social, determinado pela
sociedade e determinante dela – logo, constituindo-se humano e
desenvolvendo-se conforme as relações sociais –, o modo como funciona
a sociedade determina o modo como se produz a vida. Assim, este
processo de objetivação para suas necessidades só ocorre plenamente e
só resulta em humanização na medida em que isso for oportunizado.
346
No modo de vida capitalista (em que há uma divisão social em
classes com interesses antagonistas, que travam constantes lutas – as
lutas de classes), a produção segue a sua lógica. Nela, o trabalho é, em
geral, dividido, desigual, injusto, exploratório, objetivado ao lucro de
quem detém o meio de produção. E, assim, em geral, não permite
humanização; desfigura-se de sua essência ontológica e assume caráter
alienante em diversos níveis (para ambas as classes, embora as condições
de vida sejam diferentes). A educação e a escola, neste modo de vida,
corriqueiramente utilizando pedagogias acríticas (SAVIANI, 2008),
forma para o mínimo necessário para o mercado de trabalho, aprofunda
a desigualdade, a exploração, a alienação e a marginalidade,
reproduzindo a lógica burguesa e mantendo a hegemonia.
Porque as relações sociais são dialéticas, existe a possibilidade
de movimentar-se contra a hegemonia, promovendo criticidade,
libertação da opressão, emancipação e transformação social. Ou seja,
uma revolução, que acontecerá de forma dialética, rumo a um novo modo
de vida em sociedade: sem classes, justa, igualitária e sustentável.
Para uma prática revolucionária, faz-se necessária uma teoria
revolucionária (SNYDER, 1974). Daí o aporte no MHD, cujos
complexos de conceitos permitem ascender ao concreto, enxergar o real
e trilhar o caminho de transformação social. O MHD, corresponde a uma
ferramenta importante para entendermos o humano, o trabalho, a
sociedade, a educação e a escola, em sentidos gerais e, também, em
sentido aplicado às questões de sexualidades e à educação em
sexualidades.
Ainda que a escola não faça a revolução, a revolução passa por
ela. Pois é o local privilegiado para a função de socializar os
conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados, na
sua forma mais elaborada, e permitir o ser humano alcançar a consciência
filosófica, e qualificar sua prática social (SAVIANI, 2008; 2013).
Daí a fundamentação na Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), que
compartilha dos fundamentos do MHD para defender o resgate dessa
essência da educação na escola, pensar os conteúdos necessários e a
347
forma qualificada de formar à criticidade. A PHC dá grande atenção aos
conteúdos, que devem, em primeiro plano, ser os conhecimentos
clássicos (que resistiram ao tempo e fazem-se necessários); científicos,
artísticos e filosóficos; na sua forma mais elaborada; vivos, reais,
dinâmicos e concretos; isto é, o conhecimento que permita à(ao)
oprimida(o) libertar-se da condição de opressão. E defende estimular a
atividade e inciativa das(os) estudantes, levando em conta seus
interesses, ritmos de aprendizagem e desenvolvimento psicológico, mas
sem perder de vista a sistematização logica dos conhecimentos pela(o)
docente, nem o objetivo mediato de transformação social (SAVIANI,
2008; 2013).
348
desenvolvimento normal (não reprimir ou enfraquecê-lo) (VIGOSTKI,
2003), até a idade adulta; para que “conheçam, desde a idade mais tenra,
o critério científico sobre a vida sexual” (p. 95).
Contudo, sua compreensão, liberdade e educação, nos dias
atuais, tem sido obstruída pelo preconceito e pela violência, reprodução
das lógicas opressoras/conservadoras nos vários âmbitos da sociedade,
herdadas historicamente. Quando as sexualidades adentraram a educação
escolar, após lutas sociais a longo prazo, foi por meio da medicina à
lógica da época, então adquiriu caráter biologicista, higienista e
normativo. Essas características e práticas ainda se veem presentes na
sociedade e na escola atualmente. Inclusive, quando a temática (ou parte
dela, como as diversas identidades e orientações não-normativas) sofre
silenciamento (BIANCON, 2016), está sendo alvo de uma normatização.
Na educação brasileira, o documento que marcou a inserção da
temática no currículo foi o “Orientação Sexual” dos PCNs (BRASIL,
1997). Ele tem extrema importância, pois adotou a temática como
transversal e dá certa visibilidade à diversidade de sexualidades. Mas
também recebeu poucas atualizações e duras desaprovações, pois, com
um olhar crítico, enxerga-se sua contaminação pela lógica biologicista,
higienista e normativa, assim como pelas tendências pedagógicas que
reproduzem o relativismo do conhecimento e a lógica de mercado na
educação e, em maior instância, corroboram a lógica exploratória e
alienante capitalista. Ele contém definições vagas, usa teorias
pseudocientíficas, enfatiza mais a responsabilidade do que o prazer,
defende subjetividade, equipara valores familiares ao conhecimento
científico, e resguarda a facultatividade das aulas com este tema (DA
SILVA, 2015).
Buscando suprir as necessidades das questões das sexualidades
e superar o modo como estas são tratadas na educação, mas também
compreendendo a necessidade de ir à raiz dos problemas
socioambientais, algumas(uns) pesquisadores aproximaram a educação
sexual com as teorias críticas da sociologia, da psicologia e da educação.
É o caso da Educação em Sexualidades Crítica (ESC)
349
(BIANCON, 2016), que se apresenta como um “‘escape’ ao status-quo”
(BORGES, 2017, p. 39) da educação sexual biologicista, normativa,
superficial e intimidadora, mostrando-se uma proposta
político-pedagógica possível ao enfrentamento contra a hegemonia
dominante que oprime e marginaliza (BORGES, 2017).
A PHC, ao discutir os processos educacionais, tem trabalhado
diante de perspectivas emancipatórias, buscando instrumentalizar para a
libertação de qualquer forma de alienação, o que justifica o mergulho nas
questões sexualidades; pois, na concepção marxista, pessoas alienadas
são pessoas negadas (BIANCON, 2016).
Afinal, as sexualidades, tendo uma esfera social, que inclui
questões econômicas (e, sendo tudo na vida humana, inclusive o
biológico e psicológico, condicionado pelo social), também estão
determinadas dialeticamente pelas relações materiais.
A ESC compartilha dos fundamentos da PHC (e do MHD) para
socializar conhecimentos críticos e emancipatórios sobre sexualidades:
devem ir além dos saberes de biologia, e contemplar as diversas
identidades e orientações sexuais/afetivas, assim como os inúmeros
assuntos a tudo isso relacionado, que se fazem tão urgente e não se
encontram previstos no currículo escolar.
Da Silva (2015) defende que educar sobre/para as sexualidades
não pode depender da existência de um projeto de educação sexual na
escola, pois esses conhecimentos são parte indispensável do
conhecimento sobre a sociedade atual e o ser humano. Para o mesmo
autor, ao se instrumentalizar as(os) estudantes com os clássicos
universais (proeminentes para a PHC) que apresentem questões sobre
relações afetivas, sexuais, de gênero, etc., estas(es) estariam não só
aprendendo sobre sexualidades, mas também se apropriando da cultura
clássica.
Pela obviedade de que as sexualidades são inerentes a todo o
gênero humano e que a temática tangencia diversas áreas do
conhecimento, a(o) responsável para esta tarefa não requer ser uma(um)
especialista, nem se limita à(ao) docente de Ciências e Biologia.
350
Todas(os) deveriam ser qualificadamente formados e empenhadas(os)
em socializar estes conhecimentos às(aos) estudantes. Para tal, também
a formação docente inicial e continuada precisa movimentar-se para
atender esta demanda.
É importante ressaltar que a ESC principia a compreensão do
grupo social oprimido das pessoas LGBT+ juntamente com os outros
tantos grupos sociais oprimidos, todos unidos como classe trabalhadora,
desfragmentando, assim, sua luta e tornando mais eficaz a ida à raiz dos
problemas (BIANCON, 2016; BORGES, 2017).
Deste modo, a ESC objetiva, dialeticamente, humanizar para
transformar a realidade, e transformar a realidade para se alcançar uma
em que é possível ser-se humana(o). Uma realidade em que a sociedade
é justa, igualitária, sem classes e sustentável, como já foi dito, mas
acrescenta-se: uma realidade em que as(os) humanas(os), libertas(os) de
preconceitos, normatizações e categorizações, possam viver plenamente
seus corpos, suas identidades, seus desejos, seus prazeres, suas fantasias,
seus afetos, seus amores.
Método
Esta pesquisa qualitativa, de natureza básica e caráter descritivo
é um recorte da pesquisa que se desenvolveu no ano de 2017, junto a 95
estudantes de Ensino Médio de uma escola estadual no norte pioneiro do
estado do Paraná, durante suas aulas de Biologia, aquando das
intervenções do pesquisador realizando Estágio Supervisionado.
Para o estudo original, foram coletados dados das compreensões
e ações das(os) estudantes sobre a temática que pudessem representar a
prática social, assim como seus dados socioeconômicos, através de
questionário semiestruturado e de anotações em caderno de campo dos
debates em sala de aula durante toda a atuação (que teve um momento
de ‘aferição’ e um momento de intervenção pedagógica sobre os
conteúdos de Educação em Sexualidades Crítica necessários para
qualificar a prática social).
Para este recorte, delimitaram-se os dados em onze falas
351
(afirmações) e onze dúvidas (questionamentos) de variados assuntos
inerentes às sexualidades, selecionando aquelas que permitissem uma
representação de prática social desqualificada.
As falas e dúvidas não foram rotuladas individualmente às(aos)
estudantes participantes, mas sim tratadas como um todo das turmas que
representavam sujeitos de sua classe social. Esta possibilidade é aberta
pela pesquisa qualitativa, que tem, ainda, importância nos estudos
sociais, pois “permite que as vozes” das pessoas oprimidas – como as
das mulheres, da comunidade LGBT+, das raças e etnias, etc. – “sejam
ouvidas e que os objetivos sejam concretizados” (FLICK, 2009, p. 78;
BORGES, 2017).
Para a análise, utilizou-se o método do materialismo histórico-
dialético, que se caracteriza pelo movimento do pensamento através da
materialidade histórica da vida em sociedade, isto é, trata-se de descobrir
(pelo movimento do pensamento) as leis fundamentais que definem a
forma organizativa das pessoas em sociedade através da história (PIRES,
1997). É método de interpretação da realidade, visão de mundo e práxis;
utilizando-o, é possível percorrer uma análise da realidade concreta e
objetiva, sem fragmentá-la, com as relações do indivíduo e a sociedade
com base no momento histórico e social vigente (PIRES, 1997;
TOZONI-REIS, 2008). Para Biancon (2016), ele permite pensar na
educação e, neste caso específico desta pesquisa, a educação e sua
relação com a temática de sexualidades, com compromisso político,
recorrendo-se ao movimento dialético do pensamento, partindo do
empírico (o concreto aparente), passando por abstrações (elaborações do
pensamento, reflexões teóricas), e chegando ao concreto pensado (a
compreensão mais elaborada do que há de essencial no objeto).
352
tinham de 14 a 20 anos, com maior número (37,8%) nos 17 anos; 48,4%
era de raça/etnia branca; 62,5% de religião católica; 60,0% residia na
periferia de seu município; 25,4% exercia atividade renumerada; 65,2%
integrava famílias de configuração nuclear; e 45,3% de suas(eus)
responsáveis tinha o nível de escolaridade de Ensino Fundamental.
As 11 falas selecionadas apresentam-se numeradas de F1 a F11
no Quadro 1.
353
‘emprego’. Ao longo da história, o trabalho que o humano realiza perdeu
sua essência humanizadora e, no capitalismo, atinge um maior nível de
exploração e alienação, continuando a não permitir a humanização.
A F3 indica falta de conhecimento sobre as relações sociais
desiguais, associadas, nesta sociedade capitalista, ao modo de produção
e ao trabalho, o que gera uma incoerência e carência significativa
destas(es) estudantes que são filhas(os) de trabalhadoras(es) e integram
a classe social trabalhadora, que é explorada, oprimida, alienada e
manipulada pela classe social burguesa dominante conforme suas
demandas.
De F4 a F6, as falas abarcam o assunto de feminismo, mostrando
que não ficou compreendido seu significado e reproduziram-se frases
reacionárias e machistas, muito repetidas durante o período em que a
pesquisa foi realizada, momento de corrida política e de ascensão do
conservadorismo. Não ficou claro a estes estudantes que o feminismo
não se resume ao que se viu em alguns protestos na mídia, que ser
feminista não se resume às mulheres; desconhecem as razões da
importância do feminismo, e seu significado de busca pela igualdade
social, política e econômica entre os gêneros.
Por fim, de F7 a F11 discursou-se sobre identidades de gênero,
orientações sexuais/afetivas e as pessoas LGBT+. As falas revelam
preconceito, exclusão e uma preocupante violência verbal; demonstram-
se reproduções do senso comum conservador. As(Os) estudantes
entendem suas opiniões como igualitárias ao conhecimento científico.
Em suma, as falas selecionadas revelam negação, ignorância
e/ou relativização de conhecimento científico (biológico e sociológico).
Reafirmam uma prática social despreparada, insuficiente para entender a
realidade dialeticamente condicionada.
As 11 dúvidas selecionadas apresentam-se numeradas de D1 a
D11 no Quadro 2.
354
Quadro 2 – Onze dúvidas
DÚVIDAS
D1 “O que é vulva?” [perguntado por várias estudantes do gênero feminino]
D2 “Como que se faz sexo oral protegido?”
D3 “O homem, quando perde a virgindade, sangra como a mulher?”
D4 “Meninas de 11 anos podem ficar grávidas?”
D5 “HIV é gripe suína?”
D6 “Mas como é um eunuco?”
D7 “Existe bastantes hermafroditas [intersexuais] no mundo?”
D8 “Como é uma pessoa agênero?”
D9 “O que é redesignação de sexo? Existe no Brasil?”
D10 “Heterossexual significa o quê? [perguntado por um estudante heterossexual]”
D11 “A escola deveria ensinar isto [assuntos de sexualidades] para crianças?”
Fonte: as(os) autoras(es)
355
A D4 também remete a uma curiosidade, e pode alertar para
possíveis incidentes de relações sexuais/afetivas inseguras e sem
métodos contraceptivos por quais as(os) jovens podem ter passado.
Na D5, reforça-se o desconhecimento de uma questão mundial
da saúde humana, que é o HIV, também alertando para possíveis
ocorrências de práticas sexuais inseguras.
As D6, D7 e D8 permitem pensar que as(os) estudantes tiveram
contato pela primeira vez com os termos “eunucos”, “intersexuais” e
“agênero”, já que o conteúdo de educação sexual habitual apenas
menciona órgãos reprodutores binários e gêneros binários. Revela-se,
aqui, o silenciamento da diversidade de sexualidades.
A D9 trata de uma curiosidade pertinente, podendo também
indicar possíveis casos de pessoas trans entre as turmas carecendo de
informações.
A D10 assemelha-se à questão D1, mostrando desconhecimento
de sua própria essência: um estudante do gênero masculino perguntou o
que significa “heterossexual” e, após a resposta, deixou claro que se
identificava com tal orientação sexual. Esta dúvida serve, também, para
reafirmar a necessidade do tema na escola, indo contra as acusações de
relação exclusiva entre educação sexual e LGBT+; pessoas
heterossexuais (ou seja, que correspondem à norma imposta) também são
alienadas, desinformadas e carentes de conhecimento, e a educação em
sexualidades tem igual importância para elas. Dito isto, há necessidade
de quebrar o status-quo de que existe um ‘eu, normal, sem nome para
minha sexualidade’ e ‘as outras pessoas, anormais, diferentes, com
sexualidades nomeadas’.
Por fim, a D11 foi a dúvida que inspirou todo o motivo deste
estudo. As(os) estudantes, após debates e apropriações acerca de
identidade e sexo/afeto, questionaram se tais assuntos deveriam ser
ensinados na escola. Pois estes exemplos dados neste estudo, de falas e
dúvidas que mostram falta de conhecimento, são apenas alguns que
demonstram a importância de uma educação sexual (crítica) na escola.
A educação sexual já é prevista por lei, mas tem falhado por
356
diversas razões já citadas, que têm a ver com seu desdobramento teórico-
metodológico e com os obstáculos sociopolíticos, impedindo-a de se
distanciar da lógica opressora, normativa e alienante. Destarte, como já
dito, carece-se de uma teoria revolucionária e transformadora para haver
uma práxis revolucionária e transformadora.
Considerações finais
As falas e as dúvidas analisadas, que representam uma prática
social desqualificada, são desprovidas da criticidade para pensarem as
questões das sexualidades e toda a realidade, e contêm elementos que
indicam conceituações distorcidas, alienadas e do senso comum,
afastadas do trilho de uma humanização plena, emancipação ou
transformação. Pelo contrário: esta prática social, como se presenciou,
leva a preconceitos e a ações inseguras e violentas.
Os resultados revelam que as(os) estudantes, que estão dentro de
grupos sociais marginalizados, em geral, enunciam falas higienistas e
normativas, algumas preconceituosas e violentas, reproduzindo
discursos da educação sexual biologicista que ainda sobram na escola,
assim como discursos opressores, normatizadores e conservadores que
ainda vagueiam pela sociedade. E apresentaram dúvidas e curiosidades
sobre assuntos que são conhecimentos básicos e importantes para sua
vida e de qualquer humano, principalmente sobre humanidade e
sociedade, corpo humano, relações afetivas e sexuais seguras e livres.
Esta situação demonstra as consequências da lógica capitalista
exploratória, marginalizante e alienante sobre a sociedade e a educação,
assim como aponta que esta prática social desqualificada produzida
corrobora e reproduz a mesma lógica, fechando o ciclo das engrenagens
desta maquinaria desumanizante que é a sociedade estruturada segundo
tais condições dialéticas.
Foi alarmante encontrar saberes cientificamente distorcidos e
afirmações preconceituosas, com a pesquisa. Compreende-se que o
conhecimento que as(os) estudantes demonstraram ter são insuficientes
para uma(um) jovem viver uma adolescência e suas relações
357
afetivas/sexuais de forma livre, seguras e saudáveis, quanto muito para
elevá-la(o) à consciência filosófica e qualificar sua prática social.
Este estudo importou para reforçar que as ações docentes em
educação sexual não têm dado conta das necessidades das(os) jovens,
nem cumprido seu papel, ou a temática tem sido silenciada; e para
reafirmar que a educação básica pública não tem verdadeiramente se
preocupado em socializar os conhecimentos na sua forma mais
elaborada, nem se preocupado com a temática de sexualidades e outras
questões sociais no sentido de resolver problemas socioambientais.
Afinal, além dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos sobre
a sociedade, em geral, e sobre as sexualidades, não previstos no
currículo, eram escassos os conhecimentos biológicos e superficiais
previstos e recorrentes.
O que se verifica na educação pública são amenizações dos
problemas através de políticas públicas e ações progressistas paliativas,
que camuflam a realidade e os condicionantes sociais, visam consenso e
minimização da luta de classes (BIANCON; MAIA; COSTA, 2014). Se
não permitem a compreensão na totalidade, não emancipam, não
quebram o status-quo, e, por consequente, reproduzem lógicas que
atendem aos interesses econômicos conservadores, alienantes e
opressores do capitalismo.
Destarte, preocupando-se com as problemáticas socioambientais
que se vivem neste modo de sociedade, defende-se a ação e a formação
docente fundamentadas em teorias como o MHD e a PHC, para que o ato
educativo seja qualificado e objetivado à superação do modo de
produção, no âmbito da educação.
Quanto às questões de sexualidades, em especial, há necessidade
de se abordar com mais imponência esta temática nesta articulação, de
modo menos pontual e mais mediato. Deve-se trazê-los também para
primeiro plano, por serem assuntos essenciais da vida das(os) jovens.
Em específico, a Educação em Sexualidades Crítica (ESC)
reivindica a defesa de que a sexualidade está presente desde a infância
na vida humana, e necessita ser trabalhada desde essa idade na escola,
358
qualificadamente. Busca trabalhar as questões de sexualidades inserida
nos clássicos e/ou através de clássicos. Compreende o grupo social
oprimido LGBT+ juntos com outros grupos sociais oprimidos, unidos
como classe trabalhadora, desfragmentando assim sua luta. Objetiva a
transmissão de saberes elaborados que permitam criticidade,
emancipação e transformação social. Logo, defende ações mediatas para
revolucionarmos o modo civilizatório atual, em vistas a um outro, no
qual as diversas sexualidades (leia-se: diversos corpos, diversas
identidades, diversas formas de se relacionar e satisfazer afetiva e
sexualmente) sejam celebradas, afirmadas e incluídas com igualdade,
permitindo a humanização em níveis mais plenos e a criticidade em
níveis mais próximos à totalidade. Isto sendo condição para libertação da
opressão de modo radical (pela raiz) e para a formação de uma sociedade
verdadeiramente justa.
Antes de ser Educação em Sexualidades, a ESC é Educação; em
uma sociedade injusta e desigual como a nossa, resgatar o papel de
humanização e libertação da educação é mister para erradicarmos os
problemas socioambientais que são fruto (e base) do modo civilizatório
capitalista vigente.
Referências
BIANCON, M. L. Educação em Sexualidades Crítica: formação
continuada de professoras(es) com fundamentos na Pedagogia
Histórico-Crítica. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência e a
Matemática). Universidade Estadual de Maringá, 2016.
359
em uma escola pública do norte pioneiro do Paraná. 2017. 78 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Biológicas –
Licenciatura) – Universidade Estadual do Norte do Paraná.
Jacarezinho-PR, 2017.
BRASIL. Ligue 180 registra mais de 555 mil atendimentos este ano.
Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-
justica/2016/08/ligue-180-registra-mais-de-555-mil-atendimentos-este-
ano>. Acesso em 18 out. 2018.
360
ining_sexual_health.pdf>. Acesso em: Acesso em 18 out. 2018.
OXFAM. por Rafael Georges. A distância que nos une: um retrato das
desigualdades brasileiras. São Paulo: Brief Comunicação, 2017.
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-
brasileiros-tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milhoes-mais-pobres>.
Acesso em 18 out. 2018.
361
EDUCAR NÃO É COISA DE MULHER: UM
ESTUDO ACERCA DO ATUAL CENÁRIO DO
HOMEM COMO PROFESSOR NO ENSINO
INFANTIL E NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Washington Lombarde
Rosilene dos Santos Oliveira
Neide Maria Michelan Kiouranis
(Universidade Estadual de Maringá)
362
Palavras-chave: Educação Infantil; Gênero; Esfera Produtiva; Esfera
Reprodutiva.
363
Introdução
A sociedade sempre foi e tem sido marcada pelas diferenças de
gênero. Quando nos referimos ao termo gênero, estamos falando das
construções e expectativas sociais sustentadas em relação aos homens e
mulheres, mais especificamente, à forma como nossa sociedade constrói
representações sobre ser homem e ser mulher, pressupondo que estas
sejam naturalmente estabelecidas (GESTÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS EM GÊNERO E RAÇA, 2010).
Estas questões são facilmente visualizadas quando verificamos
a divisão sexual do trabalho, definida por Hirata e Kergoat (2007), como
a divisão do trabalho social resultante das relações sociais que se
estabelecem entre os sexos; ou ainda mais além, constitui-se em um fator
primário para a manutenção destas relações. O que por sua vez é fruto de
uma construção histórica e social, caracterizada pela “[...] designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções
com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)”
(HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599).
Diante desse contexto as atividades da Educação Infantil e dos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental, tal como são verificadas
atualmente, estão intrinsecamente relacionadas “[...] ao papel sexual e
reprodutivo, desempenhado tradicionalmente pelas mulheres,
caracterizando situações que reproduzem o cotidiano, o trabalho
doméstico de cuidados e socialização infantil”. Dessa forma, a estas
atividades eram atribuídas características afetivas e de obrigação moral,
dispensada de remuneração, considerando erroneamente que o trabalho
desempenhado por este profissional requer pouca qualificação e também
menor valor salarial (KRAMER, 2001).
A este respeito, Ferreira e Carvalho (2006), pontuam que são
raros os homens inseridos no ambiente da Educação Infantil e dos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, já que esse “[...] segmento constitui um
campo de trabalho tipicamente feminilizado, aparentemente consolidado
como natural: a educação de crianças é coisa de mulher” (p. 151). Nesta
364
perspectiva, torna-se necessário o investimento de políticas públicas na
educação, favorecendo assim a formação continuada de professores na
tentativa de compreender as relações sociais de sexo e gênero.
A presença masculina na docência, nos primeiros anos de
escolarização consiste em um desafio a ser alcançado, o qual aponta para
caminhos ainda pouco explorados em pesquisas (FERREIRA;
CARVALHO, 2006). Portanto, os homens educadores devem possuir
convicções fortes para poderem alcançar seus propósitos, pois terão que
“se confrontar com muitas pressões sociais, quer de tipo familiar quer do
tipo mais geral, que identificando o exercício desta profissão com o
gênero feminino, não aceitam a inscrição de homens na mesma”
(SARMENTO, 2004, p. 105).
Assim, fica evidente que a ocupação do homem nesses espaços,
tidos como algo incomum perante a sociedade, é de extrema importância
na luta para que o gênero não defina as atribuições profissionais e as
funções sociais. Contrapondo a crença, arraigada na sociedade, “de que
o sexo define as funções da vida em sociedade” (SAYÃO, 2005, p. 71).
Diante do exposto, o presente trabalho busca investigar qual o
cenário atual do homem como professor no Ensino Infantil e nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental.
Percurso metodológico
A presente pesquisa é caracterizada como de natureza
qualitativa interpretativa, a qual busca responder a questões muito
peculiares, pois se preocupa com aspectos da realidade que não podem
ou não deveriam ser expressos quantitativamente (MINAYO;
DESLANDES; GOMES, 2009). Isto é, “[...] trabalha com o universo dos
significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das
atitudes” (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2009, p. 21).
Dessa forma, para a realização da coleta de dados utilizou-se
um questionário online composto por 7 questões discursivas de autoria
própria. O referido questionário foi destinado a homens professores da
Educação Infantil e/ou dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Os
sujeitos de pesquisa foram contatados individualmente por meio da rede
365
social e também em um grupo fechado de homens pedagogos que atuam
na Educação Infantil.
A utilização da internet para contatar os sujeitos de pesquisa
apresenta algumas vantagens, dentre as quais podem ser destacadas:
possibilidade de acessar pessoas em diferentes espaços geográficos, o
que dispensa a presença física do pesquisador e pesquisado; a
flexibilidade em relação ao preenchimento dos questionários, de modo
que o pesquisado não precisa fazê-lo de imediato; as informações obtidas
são disponibilizadas já na forma de texto, não precisando ser transcrito
(BRYMAN, 2012). Em contrapartida, é preciso considerar algumas de
suas desvantagens, dentre as quais se destaca principalmente o pequeno
número de indivíduos que se disponibilizam a participar do estudo e a
desconfiança/receio em relação à sua confidencialidade (BRYMAN,
2012).
As informações obtidas foram analisadas mediante a Análise
de Conteúdo de Bardin (1977), a qual se estrutura em três etapas, sendo
elas: 1) pré análise - na qual procedeu-se a leitura aprofundada dos
questionários de modo a realizar sua organização 2) exploração do
material – compreende a fase de análise propriamente dita, na qual é
realizada a codificação e categorização por meio das unidades de
contexto e unidades de registro identificadas; 3) tratamento dos
resultados obtidos e interpretação – consiste na interpretação dos
resultados brutos de maneira a torná-los significativos e válidos.
Resultados principais e discussões
Os resultados obtidos nesta pesquisa serão dispostos em
tabelas, com a posterior interpretação dos dados. A referida pesquisa
contou com participação de 04 professores, sendo 03 atuantes na
Educação Infantil (PEI-2; PEI-3; PEI-4) e 01 com atuação nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental (PEF-1).
Ao que diz respeito ao perfil de idade dos professores
pesquisados, foram obtidos os resultados expressos na Tabela 1.
366
Tabela 1 – Perfil de idade dos professores pesquisados
Idade Quantidade
29 anos 1 (PEF-1)
23 anos 1 (PEI-2)
46 anos 1 (PEI-3)
55 anos 1 (PEI-4)
Fonte: Autoria própria.
367
e por fim, apenas 01 dos professores apontou ter 39 anos de atuação
docente, o que por sua vez indica uma carreira já consolidada.
Ao serem questionados a respeito do que os levou a escolherem
a docência no Ensino Infantil e/ou nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental, foram obtidas respostas que remeteram a aspectos como
concurso público, identificação com a profissão e as crianças, conforme
expresso nas categorias apresentadas na Tabela 3.
22
Os excertos apresentados encontram-se ipsis literis.
368
principais responsáveis pela decisão de ser professor” (PEI-4), o que
demonstra sua afinidade com o público atendido.
Em relação às dificuldades que permearam o início da
profissão dos referidos professores, foram elencadas as categorias
apresentadas na Tabela 5.
369
da época a maior barreira. As dificuldades financeiras não me permitia
comprar o livro que queria ler” (PEI-4); “SALÁRIO E FALTA DE
RESPEITO DOS ALUNOS COM OS COLEGAS E PROFESSOR”
(PEF-1).
Das dificuldades mencionadas destacam-se os relatos que
mencionam o estranhamento dos pais e de colegas de profissão em
relação à presença do professor, enquanto figura masculina, em sala de
aula, o que é decorrente do fato desse espaço ser ocupado
predominantemente por mulheres. Além disso, como podemos verificar
foram pontuadas pelo PEI-3, as dificuldades pedagógicas, que envolve
o sentir-se não qualificado o suficiente para exercer atividades referentes
à função docente, e sociais que demonstram a resistência existente
quanto à sua atuação. Em contrapartida, os demais professores fizeram
menção à fatores econômicos/financeiros. Além disso, o PEF-1, pontua
o desrespeito sofrido em sala, tanto entre os alunos quanto destes com o
professor. Conforme pode ser verificado, o referido docente apresenta
um discurso um tanto diferente dos demais, o que pode ser justificado
pelo fato de lecionar nos anos iniciais da Educação Fundamental, na qual
as crianças atendidas já não são tão pequenas.
Quando questionados se já passaram por alguma forma de
rejeição, seja por parte dos pais dos alunos ou de colegas de profissão,
nota-se que a maioria dos docentes mencionaram já ter vivenciado esse
tipo de situação, conforme os dados apontados na Tabela 6.
370
Dessa forma, seguem os relatos dos professores que pontuaram
ter se deparado com algum tipo de rejeição: “Dos pais, dizendo onde está
a responsável pela sala? Que eu não poderia fazer trocas por ser
homem...” (PEI-2); “A maior resistência encontrada foi por parte das
colegas do trabalho. Em vários momentos eu era aconselhado a assumir
um papel de direção dentro da escola, um cargo de chefia, pois a salas
de educação infantil não era o melhor lugar para que eu pudesse
trabalhar. Diziam "uma pessoa como você, que estudou e se preparou
muito... não merece trabalhar na educação infantil como professor. O
ideal era você se candidatar a um cargo de chefia" ou "vamos ver até
quando ele vai aquentar a trabalhar com as crianças". Eram
comentários "naturais", sem qualquer ataque explícito, mas que refletia
o inconsciente de algumas profissionais da Umei23. Em relação aos pais,
fui chamado uma vez na coordenação para conversar com uma mãe que
dizia que seu filho tinha muito medo da minha pessoa. Me achava muito
rígido pra com ele. Segundo a mãe a criança não estava dormindo
direito e não queria ir para a escola. A diretora da Umei, que também
era psicóloga, mediou a nossa conversa e chegou a conclusão de que o
medo que a criança tinha a meu respeito era uma espécie de
transferência que ele fazia em relação ao seu pai. Foi realizado um
trabalho específico com a criança e, depois de alguns meses o medo dela
foi dissipado. Os pais quando me viam pela primeira vez nas turmas,
acreditavam que eu era um dos funcionários da Umei e não professor.
Sempre me referiam como outro funcionário da escola. Em alguns
momentos sugeriram que eu fosse chamar a professora da turma para
eles tirarem algumas dúvidas com ela. Quando eu dizia que eu era o
professor da turma, eles levavam um susto. Houve um caso no início do
meu trabalho nas Umeis que um pai sugeriu que eu não realizasse a
higiene da sua filha que na época tinha dois anos. Fora estes casos não
me lembro de outros momentos. O certo que eu sempre desconfiei que
alguns pais procuravam a direção da escola para questionar a minha
23
Unidades Municipais de Educação Infantil.
371
presença na Umei. Mas as diretoras com todo profissionalismo
coordenavam a situação explicando que eu era um profissional
preparado academicamente para a função e que eu tinha entrado para
a Umei através de um concurso público. Desta forma eu tinha todas as
qualificações para exercer a função” (PEI-3); “Em parte sim. Não era
o professor de sala de aula propriamente dito. Exercia a função de
professor de Educação Física, mas todos os dias estava com crianças.
Percebia em alguns momentos estranhos olhares sobre o meu trabalho,
como se fosse uma pessoa que não devia estar com as crianças” (PEI-
4).
Diante destes discursos, podemos verificar situações em que
não caberia ao professor realizar as trocas das crianças, pelo fato do
mesmo ser homem, haja vista que isto requer o contato com o corpo da
criança, causando desconfiança e reafirmando determinados
preconceitos sociais. O que por sua vez é fortalecido no relato de um dos
professores quanto ao fato de que por possuir determinada qualificação
profissional deveria assumir um cargo de destaque, chefia, e não em uma
sala de aula da Educação Infantil. Essa visão nos remete ao pensamento
de uma divisão sexual do trabalho, a qual estabelece as profissões que
devem ser exercidas pelas mulheres e pelos homens. Deste modo, as
funções atribuídas ao homem ainda são compreendidas enquanto
superiores àquelas que são direcionadas às mulheres. Além disso, estas
são vistas como mais pacientes/afetivas/sensíveis que os homens, o que
justifica o apontamento trazido pelo professor PEI-3, ao dizer que
colegas de trabalho o desafiavam acerca de até quando aguentaria as
crianças.
Outro ponto interessante apresentado em um dos referidos
discursos refere-se quanto à necessidade da criança ter contato tanto com
a figura feminina quanto masculina, o que fica evidenciado quando o
professor PEI-3, menciona que um menino havia dito à mãe que sentia
medo dele, de modo que após o acompanhamento psicológico com a
criança, descobriu-se tratar de uma transferência que a mesma fazia do
372
docente em relação ao seu pai. Situação esta que foi resolvida após o
devido acompanhamento psicológico desse aluno.
Verifica-se ainda que o apoio da direção da Unidade Municipal
de Educação Infantil (UMEI), exerceu um papel de grande importância
na significação do exercício docente do PEI-3, pois o mesmo confessa
desconfiar que pais tenham questionado sua presença na instituição,
contudo por saber de sua qualificação profissional, sabiam controlar a
situação com o profissionalismo necessário.
Indo ao encontro desse aspecto, o PEI-4, corrobora em seu
discurso com a questão da desconfiança percebida nos olhares estranhos
que lhe são lançados, o que por sua vez, o induzem a pensar que não
deveria estar com as crianças, mesmo que não fosse professor de sala de
aula, ou seja, demonstrando o pensamento preconceituoso que,
infelizmente, encontra-se incutido no imaginário social.
Somente o PEF-1 disse não ter passado por algum tipo de
rejeição: “NÃO” (PEF-1). O que por sua vez pode estar relacionado ao
fato deste professor atuar nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e não
no Ensino Infantil propriamente dito.
Ao serem indagados acerca do porquê vemos tão poucos
professores atuando na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, os
referidos docentes pontuaram aspectos relacionados à: preferência por
outros campos de atuação; preconceito; baixa remuneração; manutenção
de estereótipos de gênero, conforme pode ser verificado na Tabela 7.
373
O PEF-1 mencionou: “NA MINHA ÁREA (EDUCAÇÃO
FÍSICA), PORQUE A MAIORIA TEM PREFERENCIA POR
ACADEMIAS E ESTUDIOS. E TAMBEM POR TODAS AS
DIFICULDADES QUE SÃO CONHECIDAS PELA SOCIEDADE QUE
O PROFESSOR SOFRE” (PEF-1). O PEI-2 pontuou: “Devido ao
preconceito por parte dos responsáveis, que acarreta ao medo de
exercer a profissão” (PEI-2). O PEI-3 mencionou: “São dois pontos
importante para a presença/ausência dos homens professores na
educação infantil. Um deles é os baixos salários. Nós homens fomos
criados para sermos os "chefes da família", ou seja, teríamos que ter um
salário melhor para mantermos a casa. Esta educação fica impregnada
em nós, mesmo contra a nossa vontade. Em alguns momentos pensei em
sair da Educação Infantil com o objetivo de se conseguir um emprego
com melhor remuneração. Minha esposa sempre me apoiou na minha
decisão, mas quando a crise financeira sondava nossa família...
costumava ouvir: Você precisa de um emprego melhor, um emprego que
faça jus a sua capacitação profissional. Em contrapartida ao conversar
com minhas colegas de trabalho, percebia que para algumas delas o
exercício da profissão na Educação Infantil era temporário devido aos
salários baixos. Algumas delas esperavam conseguir "uma coisa
melhor", diziam elas. Mas por enquanto dá para "eu continuar nesta
profissão pois meu marido tem sustentado a maior parte financeira da
casa". Percebi que para algumas pessoas... aquele espaço era
temporário e de "quebra galho". O outro ponto importante é por a
Educação Infantil ser concebida com um espaço feminino. Algumas
pessoas ainda acreditam que este espaço pertence somente as mulheres
por elas terem mais "habilidades" com as crianças pequenas. Até hoje
as pessoas ao meu redor quando ficam sabendo que eu trabalho como
professor para a Educação Infantil questionam como é trabalhar num
espaço dito feminino e seu eu exerço as mesmas "tarefas" das
professoras. Acredito que para muitos de nós homens professores da
Educação Infantil o maior obstáculo de presença/ausência na Educação
Infantil esteja ligado a parte financeira. Se os salários fossem maiores...
374
com certeza teríamos mais professores. Para as demais pessoas,
acredito que o maior obstáculo que elas vêm em nossa presença na
Educação Infantil, esteja relacionado aos papéis de gênero” (PEI-3). O
PEI-4 pontuou: “Atribuo duas hipóteses básicas à baixa participação
dos homens na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental. A primeira é o desconhecimento da profissão de
professor, a segunda a manutenção de estereótipos associados a
construção da masculinidade. Duas hipóteses que se articulam e dão ao
sujeito homem um lugar estranho e desaconselhado de trabalho.
Somam-se a estas hipóteses ou estão a elas relacionadas, ideias
preconcebidas de gênero que reforçam papéis sociais díspares para
homens e mulheres” (PEI-4).
Em síntese, conforme apontado pelos referidos docentes, a
ausência ou rara presença de homens atuando enquanto professores na
Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental deve-se a
aspectos relacionados à: baixa remuneração da profissão; preconceitos
dos responsáveis; preferência por outras áreas; desconhecimento desse
campo de atuação; a manutenção de estereótipos que reforçam os papeis
sociais de gênero.
Como podemos observar este aspecto envolve mais a questão
estrutural das relações de gênero constituídas e estabelecidas na
sociedade do que propriamente a capacitação destes sujeitos.
Considerações finais
Diante dos resultados apresentados neste trabalho, podemos
verificar por meio dos relatos das vivências dos professores pesquisados,
que, ainda persistem em nossa sociedade as resistências quanto à
inserção/presença da figura masculina no segmento da Educação Infantil
e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
O fator preponderante dessa realidade, envolve principalmente
estigmas sociais referentes aos papeis de gênero e sexo, os quais
determinam na divisão sexual do trabalho, qual é o papel social da
mulher e do homem, designando assim, quais cargos devem ocupar.
Dessa forma, à mulher designa-se funções que envolvam afetividade,
375
sensibilidade, de pouco reconhecimento, com baixos salários e, em
contrapartida, ao homem são atribuídos cargos que requerem maior
qualificação e remuneração.
Percebemos nesta pesquisa, que as dificuldades apresentadas
pelos homens que optam por esta carreira, dizem respeito justamente a
estes aspectos, que por muitas vezes, causa estranhamento/desconfiança
por parte dos pais e até mesmo de colegas de profissão. Pontos que
contribuem para a manutenção discriminatória das relações de gênero.
Assim, nota-se a necessidade de se desenvolver mais pesquisas
que contemplem e propiciem maiores discussões a respeito do assunto e,
assim, a elaboração de políticas públicas que minimizem as diferenças
sexistas e de gênero, pois a capacidade de homens e mulheres não
podem, de forma alguma, serem determinadas por seu sexo biológico.
Referências
BRYMAN, A. E-research: using the internet as object and method of
data collection. In: BRYMAN, A. Social research methods. New
York: Oxford University Press, p. 654 – 682, 2012.
376
Janeiro. Rio de Janeiro: Ravil, 2001, 160 p. (Relatório de Pesquisa
CNPq/FAPERJ). p. 89-104.
377
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E
EDUCAÇÃO SEXUAL NA
ADOLESCÊNCIA: INTERLOCUÇÕES ENTRE
TRÊS PESQUISAS DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
378
TEACHER TRAINING AND SEXUAL EDUCATION IN
ADOLESCENCE: INTERLOCUTIONS BETWEEN THREE
RESEARCH MASTERS IN EDUCATION
Enquadramento teórico
As dissertações que norteiam essa discussão, foram realizadas
concomitantemente no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em
Educação da UNIOESTE – Francisco Beltrão PR no período de 2015 –
379
201824. As pesquisadoras atuaram como educadoras sexuais em um
projeto de extensão promovido pelo LAB GEDUS25, projeto este
intitulado Laboratório de Educação Sexual Adolescer26. Embora as
atuações das pesquisadoras tenham ocorrido em momentos distintos, a
experiência de docência em Educação Sexual com pré-adolescentes e
adolescentes de 9 – 17 anos de idade, contribuiu significativamente para
compor a problematização das três pesquisas apresentadas ao PPGE da
UNIOESTE.
A partir deste momento passamos a tratar os textos como
Pesquisa 1 – Sexualidade e Agressividade entre adolescentes no
contexto escolar: contribuições psicanalíticas; Pesquisa 2 – Sexualidade,
Adolescência e Educação Sexual a partir dos quereres e poderes da
internet e Pesquisa 3 - A Educação Sexual na formação do/a pedagogo/a
no estado do Paraná.
24
As dissertações estão disponíveis em:
http://tede.unioeste.br/handle/tede/2988 ,
http://tede.unioeste.br/handle/tede/2992 e
http://tede.unioeste.br/handle/tede/3326.
25
O LABGEDUS (Laboratório e Grupo de Pesquisa Educação e Sexualidade),
é um grupo de pesquisas e estudos interdisciplinares, composto por professores
efetivos e colaboradores e acadêmicos da graduação e pós-graduação das áreas
de Ciências Humanas e Ciências da Saúde. Foi criado em 2003 por afinidade
teórica e empírica de professores do Curso de Pedagogia, Campus Francisco
Beltrão e ampliado para a área da Saúde, com a implantação do curso de
Medicina no mesmo campus, em 2013. Por conta da qualificação dos seus
membros, o LABGEDUS tem interesse de investigação e aprofundamento
conceitual para as questões da sexualidade, infância, adolescência, violências,
educação em saúde, estudos de gênero e formação de professores. Disponível
em http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7032512543597148 Acesso em
07/09/2018.
26
O Laboratório de Educação Sexual adolescer: espaço de construção de
conhecimento e saberes sobre sexualidade é um projeto de extensão permanente
que atua na Educação Sexual de crianças e adolescentes, bem como na formação
docente.
380
As pesquisas 1 e 2 apontam para a necessidade de discussões que
tratem de Educação Sexual, Sexualidade e Adolescência no campo
científico em pleno século XXI. A Pesquisa 1 considera o vínculo entre
agressividade e sexualidade entre adolescentes no contexto escolar. Com
base na teoria psicanalítica, tanto a agressividade quanto a sexualidade
são pulsões, ou energias vitais que nos acompanham por toda a vida,
desta forma precisamos conhecer a dimensão destas energias e suas
manifestações no decorrer da existência humana. A Pesquisa 2 visou
entender como era realizado o uso da internet pelos adolescentes e ou
professores dentro do espaço escolar, bem como se já haviam participado
de aulas de Educação Sexual, entendendo quais eram as compreensões
pela temática. Assim foi possível visualizar os papéis de cada um na
educação sexual dos adolescentes, quais as influências que sofriam e os
motivos que levavam a estas. Na pesquisa 3, o objetivo consistiu em
identificar, nas matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia - das
universidades públicas do Paraná, elementos ou componentes
curriculares relacionados à Educação Sexual na formação inicial dos/as
professores/as, uma vez que é preciso formação adequada ao/à
professor/a.
As pesquisas 1 e 2 apontaram a necessidade da desconstrução de
preconceitos sobre a Sexualidade por parte dos professores que atuam no
cotidiano escolar o que reforçaram a problemática que sustenta a
pesquisa 3. Todas reafirmam a necessidade de formação inicial e/ou
continuada desses professores. Pois, segundo Furlani (2009), a docência
pode tanto servir para a manutenção ou à transgressão dos estereótipos
construídos em relação à Sexualidade e a sua diversidade. Seja devido à
formação “insuficiente”, seja por questões familiares e pessoais, valores
introjetados na forma de pensar.
Pensando no caminho percorrido durante as pesquisas, é possível
entender que no processo de adolescer, a escola ocupa uma posição
relevante na constituição dos indivíduos que compõem este espaço,
principalmente, no que se refere à compreensão da Adolescência, o que
demanda conhecimentos por parte dos professores e demais agentes
381
educativos para um processo educativo-formativo qualificado. Assim,
corroboramos com Figueiró (2013) ao afirmar que “[...] quando se quer
desenvolver um trabalho de Educação Sexual na escola é importante que
os vários profissionais que ocupam o espaço da instituição também
participem dos grupos de estudos ou de reuniões para debater o tema” (p.
42).
A adolescência é um momento intenso de descobertas e
transformações significativas, embora esta se apresente como um
processo difícil, confuso e doloroso, é neste período que se vivenciam as
construções e identificações de novas ferramentas emocionais para
estabelecer a relação com o mundo. Entendemos a adolescência, para
além da transição biológica da infância à vida adulta, considerando os
aspectos psicossociais a ela associados. Corroborando com Pimentel
(2017) ao apresentar que à medida que o adolescente estabelece relações
com pessoas diferentes, visualiza novas concepções acerca do ambiente
social e, aos poucos, constitui sua identidade. A escola não está imune
ao processo de adolescer, Aquino (1997) afirma que os adolescentes
requerem a verbalização do tema sexualidade, com a seguinte
observação:
382
Além das manifestações da sexualidade nas práticas escolares
citadas por Aquino, na atualidade contamos com outro instrumento
comum aos adolescentes, trata- se das ferramentas midiáticas, dentre elas
a internet, utilizada como fonte de informações, comunicação ou
expressão por parte das pessoas. Neste sentido, na internet a sexualidade
geralmente está associada a publicações de materiais pornográficos,
porém é necessário lembrar que é possível encontrar postagens,
divulgações, blogs e sites que tratam de conteúdos educativos que visam
uma Educação Sexual Emancipatória, contribuindo para a formação dos
adolescentes.
As pesquisas 1,2 e 3 concordam que a garantia de Educação
Sexual intencional planejada e voltada para a emancipação dos sujeitos
pode auxiliar os adolescentes no processo de adolescer e empoderá-los
para a vivência dos conflitos deste período da vida, conflitos estes que
são ao mesmo tempo inevitáveis e, superáveis, pois a medida que a
superação destes conflitos se estabelece, o adolescente encontra formas
de se relacionar com o mundo e consigo mesmo fortalecendo assim a sua
própria constituição frente ao mundo.
383
Concomitantemente, a sexualidade ocupou um lugar de destaque
na preocupação dos sujeitos da pesquisa 1. O espaço escolar aparece
como último lugar para recorrer quando o assunto é sexualidade;
contraditoriamente, apresentaram-na como o segundo espaço
responsável pela Educação Sexual, ficando atrás, somente, da família.
Neste sentido, Silva (2009) ressalta a necessidade de uma formação
continuada para professores acerca da Educação Sexual enfatizando que
grande parte dos docentes considera o tema relevante, mas sentem-se
despreparados para explanar o mesmo. Para Silva (2009) a Educação
Sexual compreende
[...] toda ação que envolve uma aprendizagem
sobre sexualidade humana, que esteja inserida
em um conjunto de representações, valores,
vivências e regras, pertencentes a todo gênero
humano. Para isto, faz- se necessário que os
educadores, possam desenvolver diretrizes e
princípios filosóficos, éticos e políticos
emancipatórios, a partir da consideração da ação
de resistência e afirmação de novas culturas e
valores presentes na sociedade brasileira atual,
com o reconhecimento de que há uma marcha de
cidadãos e cidadãs em busca de seus direitos e
identidades, dando condições para compreender
e viver positivamente a sexualidade (p. 88-89).
384
aplicação de questionários semi abertos para todos os participantes por
meio de dez (10) perguntas cada.
As respostas dos adolescentes e dos professores muitas vezes
foram divergentes ao nos reportarmos a Educação Sexual, nos deixando
a entender que novamente para os adolescentes os assuntos trabalhados
apenas em Ciências e/ou Biologia seria Educação Sexual, enquanto os
professores percebiam que este trabalho era apenas pontual e não
suficiente.
Durante a pesquisa em uma determinada pergunta para
diferenciar sexo e sexualidade os alunos em totalidade e a maioria dos
professores não entendiam a separação, para eles a sexualidade era
meramente o sexo. Com isso após o preenchimento do questionário foi
realizada a explicação da diferença e complementação sobre as
temáticas.
Desta forma, foi possível entender a urgência e a necessidade de
formação inicial e continuada para os professores, pois na grande maioria
demonstraram nas falas o medo pelo temo por não saber de que forma
deveriam lidar com a temática e principalmente como responder aos
questionamentos dos adolescentes em sala de aula.
A pesquisa 3, consistiu em traçar o percurso histórico das
políticas públicas à educação no Brasil com o intuito de compreender
como se materializaram as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Curso de Pedagogia (DCNCP, 2006), a qual passou a ter a docência
como base de sua identidade e se o/a pedagogo/a vem recebendo
formação histórica e embasamento teórico necessário, para trabalhar a
Sexualidade Humana no exercício da docência. Foram identificados
trinta e um (31) cursos de graduação em Pedagogia, dos quais, entre as
matrizes curriculares, identificamos apenas duas (02) disciplinas, na
modalidade optativa, relacionadas à Educação Sexual. As disciplinas
abrangem quatro (04) dos trinta e um (31) cursos e são ofertadas em uma
das universidades estaduais e na universidade federal.
A Pesquisa 3 estudou as matrizes curriculares e ementas das
disciplinas que compõem a grade curricular vigente, dos cursos de
385
graduação em Pedagogia das universidades públicas do Paraná, uma vez
que a formação acadêmica da pesquisadora foi nesta área e as indagações
foram ganhando forças no exercício da profissão. O objetivo foi
identificar o contingente de inferências e determinantes econômicos,
éticos, políticos, religiosos, tecnológicos e sociais, que levaram à
materialização das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Pedagogia (DNCCP, Resolução CNE/CP n. 1/2006, de 15/05/2006).
Buscou ainda, compreender as relações existentes entre a estrutura social
e o sistema político brasileiro na construção da identidade e
desenvolvimento da história da Educação Sexual institucionalizada no
Brasil, especialmente na formação dos/as Pedagogos/as.
No decorrer da pesquisa, através do levantamento bibliográfico,
constatamos, que falar sobre Sexualidade ainda é algo revestido de
preconceitos. Quando acontece está se caracteriza como uma abordagem
heteronormativa, binária e relacionada à função biológica e/ou
reprodutiva com ênfase na prevenção da gravidez na adolescência e à
prevenção das doenças sexualmente transmissíveis - DSTs. Geralmente,
o tema é abordado nas aulas de Ciências ou, então, de forma
interdisciplinar, pelos professores que fizeram algum curso, ou que
participam de grupos de estudos relacionados à temática.
Corroborando com as Pesquisas 1 e 2 , a Pesquisa 3 reafirma a
importância de uma continuidade na abordagem da Educação Sexual,
que valorize a relação e a interação entre professores, alunos,
comunidade escolar e, principalmente, a família contrapondo-se ao
hábito de recorrer às abordagens pontuais e a terceirização da Educação
Sexual a profissionais externos ao ambiente escolar.
Neste sentido, as três pesquisas apontam a urgência em uma
formação adequada e qualificada em Educação Sexual para que os
profissionais da educação, possam desenvolver a capacidade de saber
relacionar-se, organizar-se, compreender e compreender-se, uma vez
que, o professor, ao mesmo tempo que é formador, está aprendendo no e
com o processo de ensino aprendizagem.
386
Considerações finais
Ressaltamos a urgência de investimentos na formação dos
professores em Educação Sexual, seja ela inicial ou continuada, afinal é
por meio da formação que endossamos a prática pedagógica no dia a dia.
Nesse sentido, o conhecimento é inesgotável e, mediante as políticas
públicas que regem a educação do nosso país na atualidade, a Educação
Sexual se torna um ato de resistência.
387
Para promover Educação Sexual de qualidade, defendemos que
esta deve abranger questões biológicas, psicológicas, históricas, sociais
e culturais, levando em consideração a participação do educando como
agente do processo educativo. Às vésperas da segunda década do século
XXI, passamos por turbulências múltiplas no campo educativo, manter
erguida a bandeira da Educação Sexual Intencional nos espaços formais
é um ato de resistência, mais do que isso, é denunciar o descaso, que ora
presenciamos, com a sexualidade humana enquanto característica
primordial daquilo que nos constitui como humanos, o desejo, a
capacidade de aferir afetos em nossas relações cotidianas.
Uma vez que a Educação Sexual se insere no campo das relações
estabelecidas com o outro, consigo mesmo e com o mundo, educar
pessoas para exercer relacionamentos saudáveis é um compromisso
social, para a promoção de uma sociedade justa, democrática, igualitária
e plural. Compromisso este que precisa encontrar espaço principalmente
nos locais de formação básica e continuada de docentes.
Referências
AQUINO, Julio Groppa. Sexualidade na escola: alternativas teóricas e
práticas. São Paulo: Summus, 1997.
388
_______________. Formação de educadores sexuais: adiar não é mais
possível. 2. ed. Londrina: Eduel, 2014.
389
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O
TRABALHO DOS CONTEÚDOS DE
GÊNERO COM CRIANÇAS EM IDADE
ESCOLAR E PRÉ-ESCOLAR
390
TEACHER TRAINING AND WORK OF GENDER CONTENTS
WITH CHILDREN AT SCHOOL AND PRESCHOOL
Enquadramento teórico
O presente trabalho se justifica devido à situação atual nas quais
se encontram as populações ditas como minorias e a possibilidade de
modificar a atual situação por meio do trabalho com crianças pré-
escolares e escolares, por meio das brincadeiras infantis. Devido à
amplitude da temática, destacamos o elevado número de violências
sofridas por mulheres, considerando a desvalorização no mercado de
trabalho, como uma forma de violência.
Atualmente no Brasil os índices de violência contra as mulheres
têm se mostrado alarmantes. Segundo dados do Mapa da Violência
(2015), de 1980 a 2013 os índices de assassinatos de mulheres
391
aumentaram cerca de 2,3% ao ano e, no período de 2007 a 2013, houve
um crescimento de 23%, número expressivo quando considerado o curto
período de tempo. Quando comparados os dados nacionais com os
presentes, em países desenvolvidos, o Brasil apresenta 48 vezes mais
feminicídios que no Reino Unido; 24 vezes mais que na Irlanda e
Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão e Escócia (WAISELFISZ,
2015).
Waiselfisz (2015) ressalta ainda, com relação às violências
sofridas pelas mulheres, que o feminicídio, consequência máxima de
descaso social, é apenas uma das modalidades de sofrimento da mulher,
observando também violências físicas, psicológicas e sexuais, praticadas
em sua maioria por familiares. Das 2.433.867 mulheres agredidas, 22,6%
são feitas por seus parceiros e 12,5%, por ex-parceiros. Em referência às
violências praticadas por pessoas conhecidas, 57,3% das mulheres
sofreram pelo menos uma vez violência física e 37,3% violência
psicológica27. Outros dados também afirmam que 36,9% sofreram de 8 a
11 vezes violência sexual (WAISELFISZ, 2015).
O Mapa também revela que a violência mais comum praticada
contra as mulheres é a psicológica (47,8%), seguida de violência física
(43,1%) e sexual (0,5%). E quando a sociedade se silencia perante a essa
situação, a mulher paga com sua vida como ocorreram com 4.762
mulheres, sendo que destas 2.394 foram assassinadas por um familiar e
1.583 foram mortas pelos seus parceiros ou ex-parceiros.
Além disso, o referido documento cita que o perfil preferencial
das mulheres vítimas de violência são mulheres negras, com idades entre
18 e 30 anos (WAISELFISZ, 2015). Em relação a essa situação, Saffioti
(1987) argumenta que a dominação e exploração do gênero feminino está
relacionada a outras formas de dominação e exploração presentes na
27
Violência psicológica é definida por Saffioti (2015) como toda conduta que
cause dano emocional e diminuição da autoestima, que objetivem degradar ou
controlar ações, se utilizando de ameaças, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância, perseguição, chantagem e ridicularização.
392
sociedade, tais como a étnica e de classe. Em outras palavras, a luta pela
emancipação feminina não consiste em uma sobreposição de um gênero
a outro, mas sim em uma luta conjunta (gênero-etnia-classe) pela
emancipação humana.
Em relação à situação da mulher no mercado de trabalho,
destacam-se pesquisas realizadas pelo IBGE28 em 2016, que mostram
que as mulheres ganham 23,5% menos que os homens em cargos que
não exigem ensino superior e 36,6% a menos em cargos que exigem
ensino superior, sendo esta uma das formas de violência contra a mulher,
segundo Saffioti (1987).
Saffioti (1987; 2013) considera que a atual situação da mulher
no mercado de trabalho consiste em uma estratégia do sistema
capitalista, que visa a maior taxa de lucro. Para tanto, justifica a atual
situação da população feminina e de outros grupos marginalizados a
partir de ideologias, dentre elas a meritocracia.
Ao vislumbrarmos os dados e reflexões anteriormente
explicitadas, não podemos ignorar um fator para a permanência desse
ciclo, a educação. Deste modo, relacionamos que as práticas exercidas
socialmente também são reforçadas dentro do ambiente escolar quando
o/a professor/a mediador/a está lidando com os jogos de papéis, período
de apropriação dos conceitos de gênero. Compreendendo gênero como a
dimensão cultural a qual o sexo biológico se manifesta (SAFFIOTI,
2015; 2015).
Assim, no que se refere à relevância de discutir as questões de
preconceito contra a mulher nas brincadeiras infantis, destaca-se que na
teoria de referência, as brincadeiras são consideradas a forma como a
criança interpreta o mundo. Conforme Leontiev (2001b), nesse momento
a criança toma contato com ideias, conceitos e valores, principalmente,
28
Disponível in: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-
agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-
ganha-menos-do-que-o-homem.html. Acesso in Set. 2018.
393
na brincadeira de papeis, na qual ocorre a apropriação dos papéis sociais
de gênero presente em nossa sociedade.
É possível pensar que esse contexto, de desigualdade, se reflete
na escola, gerando várias manifestações violentas generalizadas (tanto
entre alunos/as, quanto entre professores/as e alunos/as), como o
bullying, por exemplo. Além disso, há um desconhecimento acerca do
debate sobre gênero e sexualidade, o que contribui para a violência.
Pensando na escola enquanto um dos locais de reprodução dessa
violência, não se pode deixar de lado, contraditoriamente, a função
humanizadora da mesma e assim, considerá-la enquanto um lócus de
grande importância para o combate da violência de gênero.
Considera-se que a função de trabalhar gênero, sexualidade e os
preconceitos presentes nestas temáticas são da escola, já que esta é a
responsável pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos
verdadeiros29. Ou seja, acredita-se que o trabalho na Educação Infantil
pré-escolar, relacionado a apropriações que rompam com a lógica
presente em nossa sociedade, pode ser uma forma de modificar a situação
atual de violência e preconceito de gênero e em torno da diversidade
sexual.
Adentrando na função da escola, uma das possibilidades de
trabalho da Psicologia e Pedagogia no enfrentamento da violência de
gênero é o trabalho com formação de professores/as. A formação é uma
estratégia para instrumentalizar o/a professor/a diante das dificuldades
encontradas no contexto de seu trabalho. E no âmbito das discussões de
gênero e sexualidade encontra-se muito despreparo e preconceito por
parte da comunidade escolar, nesse sentido, para realizar discussão sobre
gênero e sexualidade nas escolas é imprescindível instrumentalizar o/a
docente para tal.
29
Conceitos verdadeiros, de acordo com Vigotski (2001) são o último estágio
do desenvolvimento do pensamento abstrato, no qual os/as sujeitos/as conhecem
a essência dos fenômenos. Os mesmos são conquistados apenas por meio de
uma educação formal e de qualidade.
394
Dessa forma estabelecemos como objetivo geral deste trabalho,
realizar um estudo teórico sobre a relevância da formação de
professores/as da pré-escola, na perspectiva da Psicologia Histórico-
Cultural. Na referida abordagem é possível justificar um ensaio sobre
esta temática, como uma possibilidade de enfrentamento da realidade
que mostra grandes potencialidades de transformação.
A relevância acadêmica e social do estudo consiste em contribuir
para a modificação da situação de naturalização da desigualdade,
preconceito e violência contra a mulher, construídos ao longo da história
e reforçados pelo sistema capitalista, assim como discutir a relevância
dos processos educativos e o papel da escola para à superação dos dados
apresentados.
Método
O método utilizado neste texto consiste em um ensaio. Na
concepção de Severino (2000) o ensaio consiste em uma modalidade de
exposição lógica-reflexiva com ênfase na argumentação e interpretação
dos autores.
395
direcionamento intencional do ensino. A intencionalidade é
imprescindível, visto que por meio da mesma ocorre o desenvolvimento
dos conceitos espontâneos (cotidianos e provenientes da experiência) aos
científicos (desenvolvidos historicamente pela humanidade), além de
promover a formação crítica dos/as alunos/as (ASBAHR, 2005;
PASQUALINI, 2016). Nas palavras de Pasqualini (2016, p. 3),
396
Levando em consideração tais inferências, a formação
continuada se faz premente, devido a possibilitar o exercício contínuo do
retorno à intencionalidade. Possibilita também a oportunidade de
desenvolvimento de temas atuais vivenciados em seu cotidiano, sob o
viés de conceitos científicos.
Neste trabalho, buscamos desenvolver e promover a reflexão em
relação à intencionalidade da atividade docente na Educação Infantil e
escolar (anos iniciais), relacionadas aos conteúdos de gênero e
sexualidade. Para que tal objetivo seja alcançado, torna-se necessária a
compreensão da periodização do desenvolvimento e do/a professor/a
como agente ativo/a nesse processo, assim como a sua relação com os
conceitos de gênero e sexualidade.
No que tange à periodização do desenvolvimento, a partir do
ponto de vista da Psicologia Histórico-Cultural somos seres constituídos
por meio das relações sociais e históricas (FRANCO, 2016). Tal
afirmação inclui também a inferência de que nós desenvolvemos durante
toda a vida, de forma não linear, incluindo momentos estáveis e de crise.
Nesse sentido, Elkonin (2012) argumenta que o
desenvolvimento humano ocorre por meio das divisões de épocas e
períodos do desenvolvimento. As épocas são a primeira infância,
infância e adolescência, como exemplificadas na tabela a seguir.
397
Título: Periodização do Desenvolvimento Psíquico
.
398
neoformações de cada idade e, também, por mudanças na personalidade,
enquanto a atividade presente na linha acessória se caracteriza por
realizar todas as outras mudanças parciais no psiquismo. O autor infere
ainda que ambas as atividades em determinado ponto do
desenvolvimento, no qual existe a contradição entre as potencialidades e
a atividade presente, se invertem, de forma que a atividade presente na
linha central se torna secundária e uma atividade secundária se torna a
atividade dominante do período.
No que tange nosso objeto de estudo, destacaremos a seguir as
atividades principais das brincadeiras infantis e idade escolar. Na idade
pré-escolar (3 a 6 anos) a atividade principal são as brincadeiras infantis,
nestas se desenvolvem as apropriações de regras, estereótipos, valores.
Para Elkonin (1998), as significações e compreensão das
relações sociais pela criança, consistem em um processo de
desenvolvimento da consciência infantil (incluindo as associações
relacionadas ao gênero). Tal processo se estrutura nas ações que a criança
realiza no mundo, dentre as quais se destacam inicialmente os processos
lúdicos presentes nas brincadeiras. Estas permitem à criança se
desprender da realidade imediata por meio de atividades abstratas, tais
como a compreensão das relações entre as pessoas, ou seja, das relações
de gênero presentes em nossa sociedade. Essa compreensão se torna mais
complexa, assim como o conhecimento do significado social dos objetos,
a autoconsciência e o sentimento de pertencimento social que
reestruturam a consciência (ELKONIN, 1998).
Vigotski (2008) e Elkonin (1998) ressaltam a origem da
atividade principal das brincadeiras infantis, está relacionada com a
contradição presente entre a necessidade de fazer o que os adultos fazem,
mas não possuir condições físicas para tal. A partir desta contradição as
brincadeiras surgem como forma de realizar desejos irrealizáveis,
provenientes de afetos generalizados. O mesmo ocorre, devido à criança
ser capaz de compreender as relações sociais e reagir às mesmas por
meio de afetos.
399
Os afetos, apesar de estarem presentes nas brincadeiras e
direcionarem seu conteúdo, não são inicialmente conscientes à criança.
Esta não compreende porquê brinca, nem dos motivos que a levaram a
executar a atividade. A presente compreensão se desenvolve durante a
execução da atividade, que é composta por uma situação imaginária e
regras a serem seguidas (LEONTIEV, 2001a; VIGOTSKI, 2008). As
regras são compostas de comportamentos sociais observados pela
criança, dentre esses a representação do que em nossa sociedade se
define como feminino e masculino (SAFFIOTI, 1987).
Em relação à idade escolar, Pasqualini (2013) argumenta que
durante a atividade de estudo predomina a necessidade de conhecer o que
os adultos conhecem, por meio do conteúdo escolar. Nesse momento,
existe a troca da predominância da relação criança-adulto social para
criança-objeto social, assim como a modificação do objetivo da
atividade, do processo para o resultado.
A atividade de estudo inicialmente nasce como uma linha
acessória presente na atividade principal anterior, das brincadeiras
infantis. Enquanto atividade acessória, podemos identificá-la em
momentos no qual se têm a orientação para o resultado, como o desenho
e modelagem. Nessas atividades, presentes durante as brincadeiras, a
criança desenvolve o que se denomina de atividade produtiva e orientada
para o resultado.
Neste momento, as significações sociais de gênero continuam a
se desenvolver mediadas pelo significado da palavra. Dito de outra
forma, a criança ampliará a sua significação sobre as relações humanas,
dentre elas as relações entre os gêneros, por meio de palavras e da
compreensão de seu significado social.
As apropriações de gênero (feminino e masculino) que ocorrem
nas brincadeiras infantis e na idade escolar são compreendidas por
Saffioti (1987; 2013; 2015) como um processo amplo que envolve
múltiplas relações e não se limita à diferença entre os sexos. Trata-se da
dimensão cultural na qual o sexo biológico se manifesta.
400
Considera-se também que o termo gênero é um conceito a-
histórico e ideológico. É considerado a-histórico, devido ao conceito
representar a possibilidade de relações iguais ou desiguais. E em si, não
explicar a desigualdade presente na sociedade entre homens e mulheres
(SAFFIOTI, 2013).
Devido ao caráter ideológico do termo gênero, Saffioti (2013;
2015) afirma que o conceito precisa ser utilizado em conjunto com o do
patriarcado30, pois este, explica historicamente e na materialidade a
desigualdade entre os gêneros. O patriarcado exerce influência
ideológica na compreensão do tema, sendo esta mais uma razão para a
utilização de ambos os conceitos na compreensão e explicação da
temática.
Saffioti (2015) argumenta que a ideologia expressa pelo
patriarcado ocorre em duas esferas: material e abstrata. A partir da
materialidade, consiste em pensar como a sociedade constrói o feminino,
e como suas regras recaem sobre o corpo da mulher. Essa face da
ideologia é o que possibilita a educação do corpo feminino voltado para
a submissão, levando a limitação do desenvolvimento da personalidade
feminina.
Em referência às apropriações do gênero masculino, Saffioti
(1987) argumenta que os meninos são ensinados (na educação informal)
a assumirem o papel oposto ao feminino (de passividade e submissão),
propiciando um desenvolvimento voltado à racionalidade, força,
competitividade e agressividade.
Estas apropriações também se caracterizam como limitadoras do
desenvolvimento, visto que excluem outras possibilidades de constituir
enquanto sujeito do gênero masculino. No entanto, ressalta-se que apesar
de os meninos possuírem limitações no desenvolvimento da
30
Sistema de heranças que institui a transmissão de bens por meio da linhagem
paterna. Tal modalidade de transmissão é originado devido a instauração da
propriedade privada e visa, a sua manutenção por meio de ideologias
relacionadas ao corpo feminino, propagadas e mantidas pela cultura (ENGELS,
1997; SAFFIOTI, 1987;2013; 2015).
401
personalidade, a esfera de maior limitação e dominação recai sobre o
gênero feminino e, por isso, justifica-se a pesquisa a partir das violências
sofridas por esse gênero.
As características supracitadas, que se voltam para a submissão
(feminina) e para a dominação (masculino), são apropriadas em diversos
momentos da vida. Assim, para Saffioti (1987; 2013; 2015), se destacam
as apropriações que ocorrem no período pré-escolar e escolar, devido a
este ser o momento de internalização das regras sociais, e
consequentemente, das regras impostas ao corpo feminino (ideologia do
patriarcado) e masculino (limitação da afetividade).
A criança está internalizando quem ela é e como deve agir
socialmente, é neste bojo que ocorrem as apropriações que atuam na
construção de características psicológicas voltadas ao dito feminino e
masculino. Isso ocorre por meio da delimitação de comportamentos
socialmente definidos a cada sexo. Em outras palavras, de forma alienada
e ideológica se definem maneiras como as mulheres e homens devem se
comportar, estabelecendo regras rígidas, que complementam as
apropriações ideológicas voltadas a expressão do corpo, de forma mais
intensa ao corpo feminino (SAFFIOTI, 2013; 2015).
Desta forma, por meio da compreensão de que se atribuem
características sociais a cada sexo biológico, Saffioti (2013) se refere ao
gênero como uma categoria indissociável do sexo. Em suas
considerações, destaca a necessidade de considerar ambos, em unidade,
pois não é possível analisar a sexualidade desprendida da realidade
material, na qual é vivenciada. Neste momento, a autora enfatiza a
necessidade de compreensão histórica da unidade gênero e sexo
biológico.
Perante a presente realidade de desigualdade entre os gêneros na
educação informal, é necessário explorar o potencial de transformação
da realidade presente na educação formal. Para Martins (2011), na
sociedade, a escola se destaca como a instituição responsável por
desenvolver conceitos científicos a partir de conceitos espontâneos. Ou
seja, a escola possui a responsabilidade de desenvolver o pensamento
402
teórico (conceitos científicos), fundamentado nos conhecimentos
historicamente produzidos pela humanidade, a partir da experiência
prática dos sujeitos (conceitos espontâneos). O ensino, portanto, deve ser
crítico, inserir a contradição e compreensão dos processos históricos que
levaram a presente realidade.
Considerando que o conceito de gênero deve ser desenvolvido
na escola, objetivando a modificação da realidade atual de preconceitos
e estereótipos, se utilizando como meio da atribuição de novas relações
qualitativas e conceituais ao significado da palavra. O significado da
palavra é um elemento essencial para interpretar a realidade, já que
revelam psiquicamente generalizações, conceitos e a história social das
relações humanas, existindo relação entre o desenvolvimento da palavra
e o desenvolvimento psíquico (VIGOTSKI, 2001; TOFFANELLI,
2016).
Dessa forma, a palavra possui um sentido mutável conforme as
transformações sociais. Por meio do seu significado, durante o
desenvolvimento a criança pode transformá-la, ressignificando
apropriações presentes na educação informal, por meio da mediação
presente na educação formal (MARTINS, 2011).
No que se refere às apropriações presentes na educação informal,
Saffioti (1987; 2013; 2015) argumenta que ambos/as os/as genitores/as
educam as crianças, por meios diretos e indiretos em relação ao que
compreendem pertencer ao gênero feminino e masculino. Estas
apropriações (conceitos espontâneos) são permeadas pela ideologia do
patriarcado, levando à propagação de estereótipos e preconceitos de
gêneros, que são reproduzidos pela criança na escola.
Nesse aspecto, a realidade material gera a necessidade de
planejamento de ações formais (ensino de conceitos científicos) que
modifiquem a situação atual de alienação, possíveis por meio do
desenvolvimento do pensamento conceitual de gênero, tanto para
alunos/as quanto para professores/as.
Na docência, a formação continuada se destaca como a
oportunidade de desenvolver conceitos verdadeiros em relação à
403
temática gênero para professores/as, possibilitando que estes/as saibam
identificar e intervir de forma emancipadora durante sua atuação. Dessa
forma o/a professor/a pode identificar situações desiguais de gênero e
mediar reflexões e ações que rompam com a reprodução das diversas
violências que são reproduzidas na escola. Em outras palavras, a
formação continuada de professores/as na temática de gênero, deve
possibilitar os/às mesmas/os a refletirem nas relações de gênero, tal
como significado da palavra mutável e historicamente construída.
Considerações finais
A partir do exposto acima, podemos inferir que a compreensão
do desenvolvimento infantil e gênero como socialmente construídos.
Para a Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento humano
depende da historicidade e da cultura a qual a pessoa está inserida.
Nesse aspecto as brincadeiras infantis e relações escolares, são
consideradas apropriações culturais relevantes ao desenvolvimento do
psiquismo, pois possibilitam apropriações de regras sociais, assim como
de estereótipos e preconceitos de gênero. O gênero, também deve ser
compreendido como socialmente definido, assim como os papéis
estereotipados, que são apropriados por meio da cultura e reproduzidas
na escola.
Uma vez compreendidas as relações entre a atuação do/a
professor/a dentro de sala de aula com alunos/as na idade pré-escolar e
escolar e as apropriações, torna-se possível desenvolver estratégias de
combate ao feminicídio, LGBTQfobia31, racismo, entre outros, a partir
de uma conscientização deste/a profissional do seu papel de mediador do
desenvolvimento dos/as estudantes, dos/as quais é responsável.
Dessa forma, gera-se a possibilidade de modificação dos
estereótipos, como exemplo os de gênero, por meio de mediações desse/a
profissional conscientizado/a, que proporcione oportunidade de
31
A LGBTfobia consiste em violências físicas e psicológicas exercidas contra
lésbicas, gays, bissexuais e travestis (SAFFIOTI, 2013).
404
brincadeiras e significações diferentes das estereotipadas,
ressignificando a linguagem presente nas apropriações relacionadas a
diferenças de gênero.
Referências
ASBAHR, F. S. F. A pesquisa sobre a atividade pedagógica:
contribuições da teoria da atividade. Revista Brasileira de Educação,
N/c, v. 29, n. 2, p.108-119, fev. 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n29/n29a09>. Acesso em: 09 fev.
2019.
405
LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-
escolar. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.& LEONTIEV, A. N.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone,
2001b, p. 119-142.
406
TOFFANELLI, A. C. Educar para a diferença: uma análise das
relações de gênero presentes na literatura infantil sob o olhar da
Psicologia Histórico Cultural e do feminismo de orientação marxista.
2016. 127 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade
Estadual de Maringá, 2016.
407
FILMES INFANTIS NA ABORDAGEM DE
GÊNERO E SEXUALIDADE EM SALA DE
AULA
408
CHILDREN FILMS ON THE GENDER AND SEXUALITY
APPROACH IN CLASSROOM
Introdução
Pensar no desenvolvimento da criança é sem sombra de
dúvidas, pensar em sua sexualidade e na forma como a vivencia na
família, no grupo de amigos, na escola, na igreja, etc. Entretanto, ela
ainda é permeada por tabus, medos, inseguranças e receios. “A
construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras
aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, e é
empreendida de modo explícito ou dissimulado (...)” (LOURO, 2008, p.
18). A sexualidade extrapola o ato sexual e as questões biológicas,
representa e inclui aspectos históricos, culturais e pessoais. Cada sujeito
possui uma forma singular de expressar a sua sexualidade e, portanto,
409
não existe o correto ou incorreto, mas diferentes formas de vivê-la
(JESUS, 2007).
Dentre as diferentes questões que envolvem e constituem a
sexualidade estão as relativas a gênero. Segundo Louro (1997), o
conceito de gênero é a forma de compreender ou representar as
características sexuais ou como estas são trazidas para as práticas sociais.
Gênero constitui-se em sistemas e formas de ser, pensar e agir nas
relações sociais, como as relações de poder entre homens e mulheres,
que são resultados da cultura e, não, das diferenças biológicas dos corpos
femininos e masculinos. Para Anacleto e Maia (2009), atualmente
sexualidade é um tema recorrente na área da educação e envolve não
somente os aspectos biológicos, mas também aspectos psicológicos e
sociais. O sujeito reflete as influências do meio em que está inserido,
então por meio da educação se pode contribuir para uma formação com
respeito às diversidades e diferentes formas de se viver a sexualidade.
A escola tem como uma de suas funções a formação humana
em seus diferentes aspectos, moral, intelectual, social, psicológico,
físico, entre outros. Nesse sentido, torna-se um espaço importante para a
discussão de gênero e sexualidade. Na escola há condições de promover
o respeito as diferenças, a quebra de tabus e preconceitos, incentivando
formas de pensar e agir que desmistifiquem os padrões politicamente
corretos impostos pela sociedade. É na convivência mútua e troca de
experiências que meninos e meninas podem superar as desigualdades,
sexismo, machismo e a misoginia (FURLANI, 2009), a escola, é,
portanto, local ideal para promover a educação sexual.
Os assuntos relacionados à educação sexual perpassam todas
as relações sociais e fases da vida e são parte constituinte dos sujeitos e
suas identidades (FURLANI, 2009), curiosidades e dúvidas sobre o
corpo, relacionamentos, etc. são exemplos. Nesse processo, a escola
educa os corpos e padroniza comportamentos, em todas as suas
especificidades a partir das formas pelas quais ensina, avalia, pune e
define masculino e feminino (DIAS, 2013). Assim, cabe à escola
possibilitar aos alunos e alunas reflexões sobre gênero e sexualidade a
410
partir de atividades desenvolvidas de forma intencional e planejada,
minimizando barreiras, movimentando paradigmas, desmistificando
crenças e mitos que, na maioria das vezes, podem conduzir a
preconceitos e discriminações resultando em situações de conflitos e
violências.
“A sexualidade é uma das questões que mais tem trazido
dificuldades, problemas e desafios aos educadores no seu trabalho
cotidiano de ensinar” (FIGUEIRÓ, 2006, p. 6). A curiosidade e vontade
de conhecer e desvendar as sensações, prazeres e mudanças do próprio
corpo e do contato com o corpo do outro ou outra, leva alunos e alunas a
questionar e buscar respostas em casa e também no espaço escolar.
Contudo, segundo Figueiró (2006, p. 6), isso “é um fator intrigante para
o próprio educador que, na maior parte das vezes, não tem sabido, ou não
aprendeu, a ensinar sobre a mesma”, ou seja, a falta de conhecimento e
informação de professores e professoras pode levar a não abordagem de
questões relativas a gênero e sexualidade.
Estes/as profissionais precisam de acesso a conhecimentos
científicos, formação inicial e continuada referentes a essas temáticas
para trabalharem com as manifestações da sexualidade, problematizando
as questões e dúvidas dos alunos e alunas, promovendo reflexões e a
produção de suas próprias respostas. Afinal, independente do preparo ou
não destes e destas profissionais, questões relativas sexualidade e gênero
estão presentes no cotidiano escolar e, intencionalmente ou não,
professores e professoras promovem educação sexual.
A abordagem das temáticas em voga nas salas de aula pode ser
realizada por meio de livros didáticos, materiais pedagógicos, livros de
literatura e filmes. Os filmes infantis são artefato cultural contemporâneo
usado com frequência na educação de crianças32 e podem trazer em seu
32
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (LEI Nº 8.069, DE 13 DE
JULHO DE 1990), Art. 2º Considera-se criança a pessoa até doze anos de idade
incompletos.
411
enredo questões relacionadas a gênero e sexualidade, auxiliando no
trabalho destas temáticas.
Nesse sentido, as narrativas fílmicas33 são um produto
contemporâneo de ampla circulação que transmite conhecimentos e
valores (CARDOSO et al., 2015), usadas como recurso didático nas salas
de aulas, podem ser um meio utilizado pelos e pelas profissionais da
educação para problematizar os conceitos de gênero e sexualidade
infantil na escola.
As narrativas fílmicas infantis trazem para o mundo das
crianças uma mistura de fantasia e diversão, que influenciam os modos
de se comportar e agir em casa, na escola e nos mais diversos espaços
sociais. Estas animações saem da telinha e influenciam as crianças em
seus comportamentos e escolhas, haja vista que ofertam uma gama de
artigos desde camisetas, sapatos, jogos eletrônicos, cadernos, mochilas,
dentre outros (SABAT, 2001). Por meio desses veículos são
disseminadas influências posturais, escolhas, hábitos, o que são objetos,
cores e atitudes de menino e de menina.
Segundo Sabat (2001), é comum narrativas fílmicas infantis
construírem diferenças de gênero e sexuais como naturais, influenciando
a construção hierárquica do feminino e do masculino como decisivas e
inalteráveis. Compreender e problematizar essas construções e trazer
para a sala de aula é importante para a formação das crianças, a fim de
promover uma educação sexual que coloque em movimento tabus,
preconceitos, diferenças e falta de compreensão diante das diversidades
e liberdade de cada sujeito.
Método
Realizamos a seleção dos filmes infantis com base em pesquisas
realizadas em site de busca34, com a palavra chave “filme infantil”, que
412
resultou na seleção de seis filmes infantis. No Blog da Leiturinha35 foram
selecionados três filmes infantis e por sugestões de profissionais da área
da educação, integrantes do Grupo de Estudos sobre Educação e
Sexualidade (GEPEX), foram selecionados dois filmes infantis. Essas
buscas e sugestões resultaram em um total de 11 filmes infantis e
aproximadamente 14 horas de narrativas fílmicas assistidas.
O primeiro contato com os filmes infantis foi realizado antes da
leitura do referencial teórico, que nortearia as análises e discussões
futuras. A escolha dessa metodologia se deve ao fato de acreditarmos que
dessa forma nosso conhecimento poderia influenciar nas escolhas e na
forma como essas narrativas fílmicas infantis seriam vistas.
Na sequência realizamos o levantamento bibliográfico da
temática e estudo do mesmo. O material selecionado e consultado foram
artigos científicos, livros, capítulos de livros, teses e dissertações, que
abordavam a temática gênero e/ou sexualidade e problematizavam
artefatos culturais (filmes, desenhos animados, livros de literatura,
programas de televisão) que permitiriam o trabalho com as temáticas na
escola.
Realizada a leitura e estudo do material bibliográfico, os filmes
infantis selecionados foram assistidos novamente, com atenção a
maneira como esses filmes abordavam gênero e sexualidade e as
possíveis problematizações a partir de suas narrativas.
Resultados e Discussão
Os filmes infantis assistidos estão listados na tabela 1. As
narrativas fílmicas infantis selecionadas para problematizar os conceitos
de gênero e sexualidade infantil foram: Zootopia – Essa Cidade é o
Bicho, Moana – Um Mar de Aventuras, Valente e Os Smurfs e a Vila
Perdida, por permitirem problematizar questões de gênero e sexualidade
em primeiro plano, facilitando a compreensão e envolvimento dos alunos
e alunas. Os demais filmes infantis, embora permitam discussões e
35
http://leiturinha.com.br/blog/20-filmes-infantis-para-assistir-em-familia/.
413
problematizações, requerem um nível de análise e compreensão mais
elaborado e sistematizado, sendo que na nossa avaliação poderia tornar
inviável seu uso para abordagem da temática com crianças.
414
Nesse sentido, a importância de trabalhar com as crianças gênero
e sexualidade está em fazê-los problematizar os porquês de determinados
comportamentos, costumes e atitudes, com o intuito de refletirem e
questionarem esses padrões, pois, isso coloca em movimento hábitos,
costumes e crenças passadas de geração a geração.
Em Moana – Um Mar de Aventuras, enquanto a jovem Moana
sonha com o dia em que conseguirá entrar em um barco e ir além dos
corais, seu pai argumenta sobre a importância e necessidade da jovem
permanecer onde está e aceitar seu destino, como a nova líder da aldeia.
Apesar da dominação masculina ainda estar presente na sociedade
moderna, é imprescindível destacar que as mulheres estão cada vez mais
participantes e ativas nas decisões de suas necessidades (LOURO et al.,
2000).
O trabalho sobre essa temática na escola possibilita o
conhecimento e a compreensão do espaço e dos direitos da mulher na
sociedade. A narrativa fílmica, Moana – um mar de aventuras, traz uma
situação em que a personagem principal é tratada como incapaz ou sem
direito de decidir sobre seu destino, pois este está traçado pela tradição.
Essa situação possibilita questionar aos alunos e alunas como
compreendem tais situações.
Certo dia as crianças estão ouvindo a vó de Moana contar a
história da origem do povo da aldeia, quando seu filho, pai de Moana,
interrompe a história da mãe, alegando não passar de invenções. Ele pega
Moana no colo e diz: “Ninguém vai além dos recifes. Estamos seguros
aqui. (...). Não há nada depois dos recifes, além de tempestades e mares
agitados. Enquanto ficarmos em nossa ilha muito segura, ficaremos bem
(...)” (MOANA, 2016). Na cena seguinte ao encontrar Moana sozinha
próxima ao mar, ele ordena que ela retorne para a aldeia e começa a
discursar sobre o destino da menina, o que pode ser verificado na fala
que segue:
415
Mãe: - E fará coisas maravilhosas, minha
pequenina.
Pai: - Claro que sim, mas primeiro você precisa
saber em que lugar você é destinada a estar
(MOANA, 2016).
416
mas há, agora, abundantes evidências de que tal privilégio não é
inevitável nem imutável” (LOURO, 2000, p. 41). Nesse contexto, é
possível deixar as crianças pensarem e falarem sobre os seus desejos e
vontades, expressando suas opiniões.
Refletir sobre as relações e divergências entre homens e
mulheres a partir de narrativas fílmicas pode ser uma forma lúdica e
acessível no trabalho sobre gênero e sexualidade em sala de aula. Para
Louro et al. (2007, p. 16), “ao longo da vida, através das mais diversas
instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e
mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico
(...)”. A partir do filme Moana é possível incentivar alunos e alunas a
pensarem e refletirem sobre esses papéis possibilitando a construção de
novas masculinidades e feminilidades.
Estes enredos, Zootopia – Essa Cidade é o Bicho, Moana – Um
Mar de Aventuras, Valente e Os Smurfs e a Vila Perdida, nos permitem
discutir com alunos e alunas as relações de poder, as diferenças e os
papéis que homens e mulheres desempenham em nossa sociedade, uma
sociedade patriarcal. Para Louro (2007, p. 204) “(...) sujeitos são
acolhidos ou desprezados conforme as posições que ocupem ou ousem
experimentar”.
“Zootopia – essa cidade é o bicho” permite debater gênero e
sexualidade a partir da personagem Judy, representada por uma coelha
que, mesmo diante da descrença e falta de apoio dos pais, não desiste de
ser uma policial. Em conversa com os pais sobre sonhos, Judy é alertada
sobre os riscos que enfrentará,
417
Judy: - Eu gosto de tentar.
Bonnie: - O que seu pai quer dizer é que pode ser
difícil, praticamente impossível que você seja uma
policial. Nunca houve um policial coelho.
Gil: - Não, nunca. Coelhos não fazem isso.
Judy: - Então acho que serei a primeira. Porque eu
farei do mundo um lugar melhor (ZOOTOPIA,
2016).
418
O nome de cada Smurff representa o que ele é ou faz, mas
Smurfette não remetia a nada, e aí começa o dilema de encontrar algo
que a representasse. Essa situação a deixava deslocada e com um
sentimento de exclusão. “É relevante refletir sobre os modos como se
regulam, se normatizam e se vigiam os sujeitos de diferentes gêneros
(...)” (LOURO, 2007, p. 204). Pensar a necessidade e obrigatoriedade
que nos é colocada de respondermos aos ditames da sociedade, ou seja,
a imposição de papeis que correspondam ao nosso gênero.
No filme Valente, Elinor (mãe de Merida), reprova a atitude do
marido Fergus quanto ao presente de aniversário que ele dá a filha,
exclamando: - “Um arco, Fergus? Ela é uma dama” (VALENTE,
2012). Isso deixa em evidência sua concepção de que existem objetos
e atividades femininas e masculinas. “Os pais constroem o primeiro
ambiente de brinquedos da criança, antes que ela comece a fazer suas
escolhas” (KISHIMOTO; ONO, 2008, p. 210). É assim, que desde o
nascimento o ambiente, principalmente o familiar, vai influenciando as
escolhas e decisões das crianças.
Com a história do filme Valente é possível abordar o respeito as
diversas formas de se ver, viver e fazer escolhas. As narrativas fílmicas
permitem colocar em movimento as divergências que existem no
binarismo feminino e masculino, existente em nossa sociedade. Afinal,
“aprendemos a ser um sujeito do gênero feminino ou masculino,
aprendemos a ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais (...)”
(LOURO, 2011, p. 64). Os ambientes (casa, escola, igreja, bairro, etc.),
em que as crianças estão inseridas moldam e influenciam
comportamentos, atitudes, hábitos, etc.
O debate e a reflexão sobre os conceitos e conhecimentos que
alunos e alunas trazem para sala de aula é uma forma de propiciar que
eles/elas coloquem em movimento suas crenças e saberes. Isso favorece
a formação de sujeitos críticos, reflexivos e capazes de compreender e
aceitar as diferenças e diversidades presentes em nossa sociedade.
As narrativas fílmicas infantis permitem abrir diálogos sobre
regras, costumes, crenças, conceitos. A personagem Merida, no início do
419
filme “Valente”, apresenta seus três irmãos, os príncipes Hamish, Hubert
e Harris que, segundo ela, podem tudo e não seriam pegos nem se
cometessem um assassinato. Merida diz,
420
se resume ao ato sexual, logo, é importante trabalhar todos os demais
aspectos que a envolvem como o afeto, a amizade, gênero, prazer, amor,
etc.
Com o filme “Os Smurfs e a vila perdida” é possível propor
conversas sobre a importância das amizades em nossas vidas, pois, foi
com a ajuda de seus amigos que Smurfette encontrou o bosque das
Smurfs e as avisou que Gargamel viria atrás delas. É possível trabalhar a
relação de igualdade entre meninos e meninas, afinal, “meninos e
meninas ainda não possuem o Sexismo da forma como ele está
disseminado na cultura construída pelo adulto” (FINCO, 2003), e
também na vivência familiar.
“Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de
ver, ouvir e sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos,
implicadas na concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar”
(LOURO, 1997, p. 59), além de trabalhar a importância e necessidade de
nossas emoções e sua influência na construção de conceitos, e também
do respeito a si e ao próximo. “Os significados atribuídos aos gêneros e
às sexualidades são atravessados ou marcados por relações de poder e
usualmente implicam em hierarquias, subordinações, distinções”
(LOURO, 2011, p. 64). É possível a partir dos filmes infantis dialogar
sobre conceitos, crenças e conhecimentos que nos levam a conceber as
distinções, preconceitos e diferenças como normais e aceitáveis.
“Meninos e meninas são escolarizados para compreenderem o
que é ser menino e menina, quais lugares, papéis, atitudes que devem ter
ou reproduzir, criando‐se discursos e artefatos culturais que auxiliem
nesse processo” (CARDOSO et al., 2015, p. 245). Isso torna natural e
imperceptível aos olhos de muitos, os mecanismos de “formação” dos
costumes, hábitos e regras do que é aceitável e desejável em cada
sociedade. “A escola, servindo-se de símbolos e códigos, afirma o que
cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui” (LOURO, 1997,
p. 58). Daí a necessidade de trabalhar gênero e sexualidade na escola,
desde a educação infantil, como forma de amenizar as distinções e
preconceitos estabelecidos e cristalizados ao longo do tempo.
421
Utilizar filmes infantis em sala de aula é rico e proveitoso desde
que sejam promovidas situações que levem os alunos e as alunas a pensar
sobre o porquê das situações presentes na história, porque agimos dessa
ou daquela forma, porque pode isso e não aquilo. As narrativas fílmicas
infantis podem ser um meio de contribuir para a emancipação das
crianças, para que se tornem sujeitos capazes de compreender as
diversidades que os cercam.
A mulher pode alcançar seus objetivos e sonhos independente de
uma relação afetiva, uma vez que o cotidiano atual oferta espaços para
as mulheres decidir suas próprias vidas (LOURO et al., 2000). No filme
Valente, a protagonista sente-se realizada, feliz e satisfeita ao não ser
mais obrigada a casar com o pretendente escolhido por seus pais. Seus
pais deixam que ela assuma o poder de decisão, afinal por mais jovem
que fosse, ela tinha seus desejos e vontades próprias. Segundo Louro
(1997), homens e mulheres se constroem a partir de práticas e relações
que envolvem gestos, modos de ser e estar no mundo. “Os estereótipos
dos papéis sexuais, os comportamentos pré-determinados, os
preconceitos e discriminações são construções culturais, (...) ainda não
conseguiram contaminar totalmente a cultura da criança” (FINCO, 2003,
p. 95).
É possível trabalhar a partir dos filmes infantis abordar as
diferentes possibilidades e caminhos que as crianças podem seguir ou
escolher, ou seja, deixar em evidência sua capacidade de decisão e
autonomia. A escola, ao possibilitar que as crianças possam escolher
diferentes brincadeiras, brinquedos ou acesso a artefatos culturais, como
as narrativas fílmicas, que transgridam o que é pré-determinado para
cada sexo se torna um espaço propício para o não Sexismo, preconceitos,
diferenças e exclusões.
Considerações finais
422
mas que partindo de situações fictícias podem facilitar a abordagem,
compreensão e participação de alunos e alunas nas discussões e
construção de conhecimentos. Proporcionar momentos de debates e
conversas com alunos e alunas é uma forma de promover reflexões de
forma que se conheçam e reconheçam seus conceitos, costumes e
crenças.
Professores e professoras podem a partir dos filmes infantis
colocar em pauta as relações de poder existentes entre o feminino e o
masculino, o que alunos e alunas acreditam ou pensam sobre essas
relações e as diversas formas de ser menino ou menina em nossa
sociedade. É possível inferir questionamentos sobre a necessidade do
casamento, do seguir tradições, das relações afetivas e sociais entre
homens e mulheres, do satisfazer as vontades dos pais ou responsáveis
colocando em segundo plano seus anseios.
O trabalho da escola na abordagem de questões relativas a
sexualidade e gênero, por meio de artefatos culturais é um meio de
contribuir com a formação de sujeitos capazes de colocar em movimento
seus preconceitos, crenças, diferenças, etc. Afinal, acreditamos que as
crianças se encontram expostas aos ditames, preconceitos,
discriminações e sexismo que existe em nossa sociedade, e a vivência
com os adultos e sua cultura que os faz acreditam e internalizarem
crenças, diferenças, relações de poder, o certo e errado, o pode e não
pode. No entanto, também acreditamos que na infância é possível
trabalhar questões de sexualidade e gênero de forma emancipatória,
dando-lhes a oportunidade de falar, pensar e questionar sobre suas
vontades, desejos e anseios.
Referências
ANACLETO, A. A. A.; MAIA, A. C. B. Gênero na infância: análise do
filme “La Vie In Rose” como instrumento pedagógico em educação
sexual. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v. 4, n. 3, p. 1–11, 2009.
423
CARDOSO, H. DE M.; OLIVEIRA, A. L.; DIAS, A. F. Marcas e
aprendizagens da heteronormatividade em filmes infantis. Espaço do
Currículo, Paraíba, v. 8, n. 2, p. 244–253, 2015.
424
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas
às tensões. Educar em Revista, Curitiba, v. 1, n. 46, p. 201–218, 2007.
LOURO, G. L. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-
Posições, Campinas, v. 19, n. 2, p. 17–23, 2008.
425
HETERONORMATIVIDADE NAS
ESCOLAS: REFLEXÕES E EFEITOS
PRODUZIDOS
426
standardizing and preserving the normal characteristics of society
makes the diversities invisible. The heteronormativity is found within the
school and can be perceived in the curriculum in a subtle way, is used to
guide its conduct with the faculty and student. This study aims to reflect
on the effects produced by heteronormativity in schools, using
bibliographical research as a method. The results showed that
heteronormativity imposes on oppression, the silencing of sexual
orientation, submission, the invisibility of women vis-a-vis man and that
the binarism between the feminine and the masculine determines the
naturalization of sexuality. By making the individual who behaves
differently to this logic be understood as abnormal. We conclude,
therefore, that schools must find mechanisms to reflect on this theme,
problematizing practices, attitudes, values and norms that invest in
segregation, in the naturalization of differences, in the essentialization
and fixation of social identities, in the (re) production of hierarchies.
Key words: Heteronormativity; Sexism; School.
Enquadramento teórico
A escola tornou-se um espaço em que rotineiramente perpetua
preconceitos e discriminações que produzem efeitos. A possibilidade de
padronizar e conservar as características ditas normais da sociedade faz
com que as diversidades sejam invisibilizadas.
A dificuldade que a escola apresenta em aceitar a diversidade
sexual e de gênero segundo Bassan (2017, p. 88) está ligada a uma esfera
política e social, que é motivada por uma visão histórico-cultural
construída na trajetória da sociedade, em que as classes dominantes
determinavam os padrões de comportamento. As pessoas que seguem
uma orientação sexual diferente daquela que impera na sociedade, se
tornaram sujeitos hierarquizados a partir de discursos sociais em que a
heterossexualidade é o normal, o que chama-se de heteronormatividade.
Esse estudo tem por objetivo refletir sobre os efeitos produzidos
pela heteronormatividade nas escolas.
427
Temos visto consolidar-se uma visão segundo a
qual a escola não apenas transmite ou constrói
conhecimento, mas o faz reproduzindo padrões
sociais, perpetuando concepções, valores e
clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus corpos
e suas identidades), legitimando relações de poder,
hierarquia e processos de acumulação. Dar-se conta
de que o campo da educação se constituiu
historicamente como um espaço disciplinador e
normalizador é um passo decisivo para se caminhar
rumo à desestabilização de suas lógicas e
compromissos. (JUNQUEIRA, 2009, p. 13)
428
mãos dadas, a atitude de “abrir o coração” para a
amiga/parceira são práticas comuns do gênero
feminino em nossa cultura. Essas mesmas práticas
não são, contudo, estimuladas entre os meninos ou
entre os homens. A “camaradagem” masculina tem
outras formas de manifestação: poucas vezes é
marcada pela troca de confidências e o contato
físico, ainda que seja plenamente praticado em
algumas situações (nos esportes, por exemplo), se
dá cercado de maiores restrições entre eles do que
entre elas (não só quanto às áreas do corpo que
podem ser tocadas como do tipo de toque que é
visto como adequado).
429
Sendo assim a heteronormatividade pode ser entendida enquanto
um campo normativo e regulador das relações humanas, que se sentem
autorizados a corrigir corpos desviantes, com humilhações, piadas,
violências. Novas formas de atuação nas escolas vêm se fazendo
necessárias, pois enquanto a escola permanecer sustentada na
heteronormatividade, pessoas serão silenciadas, tendo suas experiências
negadas, potencializando a homofobia nos espaços escolares, reforçando
estereótipos e estigmas.
Faz-se necessário falar sobre as relações de gênero para
compreender sua construção, que segundo Joan Scott (1995, p. 85- 86
apud PINHO; PULCINO, 2016, p. 672), essas relações:
430
investimento que, freqüentemente, aparece de
forma articulada, reiterando identidades e práticas
hegemônicas enquanto subordina, nega ou recusa
outras identidades e práticas; outras vezes, contudo,
essas instâncias disponibilizam representações
divergentes, alternativas, contraditórias. A
produção dos sujeitos é um processo plural e
também permanente. (LOURO, 2000, p. 16-17)
431
A desconstrução desse binarismo segundo Guacira Lopes Louro
(2010, p. 31-32 apud BRAZ; VIEIRA; BUSSOLETTI, 2013, p. 29), “se
faz necessária para compreendermos a pluralidade na constituição das
feminilidades e masculinidades contemporâneas por um viés não
hierarquizante, que abranja também as identidades não hegemônicas.”
Ou seja, é fundamental “desnaturalizar e desconstruir o caráter
permanente das oposições binárias masculino/feminino e
homossexual/heterossexual” (SOUZA; PEREIRA, 2013, p. 83)
Segundo Magalhães (2010 apud SILVA; JESUS, 2015, p. 08) “a
construção/imposição das sexualidades/gêneros começam na família,
perpassando todo o universo escolar, desde a educação infantil até o
ensino básico”. A construção desses papéis são aprendidos e
condicionados desde a infância, como se as crianças estivessem
preparando-se para um destino já determinado, num futuro próximo.
(SILVA; BRABO 2017, p. 133)
Tanto na escola quanto no ambiente familiar, que reproduzem
discursos voltados a uma educação heteronormativa.
A imposição de condutas sociais tidas como legitimas
reconhecem relações sociais válidas e as não válidas e aceitas,
delimitando e controlando as relações sexuais dentro e fora do espaço
escolar, e dessa forma vamos ocupando e reconhecendo nossos lugares
sociais:
432
É possível observar que o processo de vigilância sobre os sexos
é intenso, constantemente controlado por diversas instâncias.
Estabelecendo-se hierarquias e opressões, impondo um padrão de
sexualidade perfeita, criando-se sexualidades marginais. Além do
silenciamento da orientação sexual, existe também a submissão e a
invisibilidade da mulher frente ao homem, através de uma sociedade
sexista.
433
A diferença é uma das primeiras marcas que aprendemos no
processo escolar, e isso poderia ser substituído pelo respeito às
diferenças. Bassan (2017, p. 88) fala de alguns desafios da escola:
434
que muitas vezes também sobre com a imposição do modelo
heteronormativo. Junqueira (2013, p. 487):
435
heterossexuais, nos fazem rejeitar a feminilidade e homossexualidade.”
Nesse sentido Junqueira (2009, p. 91-92) afirma que:
436
Silva; Brabo (2017, p. 132) fala que as regras sociais tem seu
início na infância, onde é nos ensinado certos comportamentos e
condutas para meninos e meninas, e sobre a a necessidade de expressão
correta de seu gênero, em consonância com seu sexo, é construída,
gradualmente, como uma verdade inquestionável durante todo o
crescimento, através de uma norma social. Em conformidade com os
mesmos autores (2017, p. 138) é preciso trabalhar para que as relações
sociais de gênero, desde a educação infantil, sejam pautadas no respeito,
na ideia de que todos e todas são sujeitos de direitos.
Seria importante se a escola se dedicasse à:
437
identidades e as práticas curriculares. (CAETANO;
GOULART; SILVA, 2016, p. 644)
Método
Essa pesquisa tem como método a pesquisa bibliográfica.
438
violências causadas pela heteronormatividade. Portanto professores
também são vítimas desse processo.
Sendo assim as práticas heteronormativas são muito comuns em
sala de aula, e no ambiente escolar de forma geral, como vimos isso deve
ser problematizado, o contexto escolar muitas vezes reproduz discursos
e práticas heteronormativos, contudo este ambiente também é rico para
debates e práticas que promovam a desconstrução disso.
Considerações finais
Concluímos, portanto, que escolas devem encontrar mecanismos
para refletir sobre essa temática, problematizando práticas, atitudes,
valores e normas que investem nas segregações, na naturalização das
diferenças, na essencialização e fixação de identidades sociais, na
(re)produção de hierarquias. Fazendo-se necessário mais estudos sobre a
temática.
Referências
BASSAN, R. Q. . A Escola e a sua função social: Um olhar sobre o
gênero e a diversidade sexual. In: Encontro Nacional de Ensino,
Pesquisa e Extensão ? ENEPE, 2017, Presidente Prudente. Anais do
Encontro Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão (ENEPE), 2017.
439
dos feminismos : anais eletrônicos. Florianópolis: Universidade Federal
de Santa Catarina, 2013. p. 1-7.
440
PETRY, A. R.; MEYER, D. E. Transexualidade e heteronormatividade:
algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos (Porto Alegre),
v. 10, n. 1, p. 193-198, 2011.
441
homossexuais por homossexuais. Revista de Administração
Mackenzie, v. 14, n. 4, p. 76-105, 2013.
442
PROGRAMA DE EXTENSÃO FORMAÇÃO
DE EDUCADORES E EDUCAÇÃO
SEXUAL: INTERFACES COM AS TECNOLOGIAS
ETAPA XI E XII
443
vistas à Emancipação: 11 anos do Programa Educação Sexual nas Ondas
da Rádio UDESC. Esta ação, que ocorrerá nos dias 22 a 24 de outubro,
foi planejada contando com a participação em mesas redondas, palestras
e conferências de pesquisadores e pesquisadoras, educadoras/es no geral,
que corroboraram com o Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e
Educação Sexual - EDUSEX CNPq/UDESC, concedendo entrevistas e
partilhando suas experiências na luta por uma educação sexual com
vistas à emancipação. Este evento se destina a todos/as que envolvidos/as
com a educação compreendem a importância do diálogo acerca da
educação sexual pautada em um paradigma emancipatório. Salienta-se
que todas essas ações neste Programa de Extensão se desenvolvem
voltadas para a sensibilização de toda a comunidade, escolar ou não,
objetivando uma Educação Sexual Emancipatória, promovendo uma
interação significativa entre os membros da universidade, comunidades
escolares e profissionais da área, na busca de minimizar estigmas e
desigualdades sociais, por meio da ampliação do repertório social,
cultural e político da população e do enriquecendo do conhecimento
fazendo uso das mídias e tecnologias disponibilizadas pelo Grupo de
Pesquisa EDUSEX. Destaca-se também a extensão universitária como
recurso frente às ações de efetivação de uma Educação Sexual pautada
nos Direitos Sexuais como Direitos Humanos Universais.
Palavras-Chave: Extensão Universitária – Tecnologias – Educação
Sexual Emancipatória – Direitos Humanos.
444
Formation and Sex Education”. In 2018, Action 1:Sex Education in
Debate: in the waves of Radio UDESC brought guests which represent
different areas of education, human rights, feminist movements, and
NGOs, who talked about their research works and practical experiences
aimed at educational actions in formal and non-formal educational
settings. To the present moment, over 20 interviews were made,
transmitted live at Radio UDESC and replayed at Radio UDESC and at
a Community Radio from a town near Florianópolis; Action 2: Course
“Sex Education begins in childhood”, lectured by a Professor in the area
of Education and Sexuality, unifying the usage of Information
Technologies and Communication, is being developed in the virtual
environment “Moodle” with 96 participants interacting and improving
studies in the field of sex education in childhood. As means of celebrating
11 years of the action developed by Radio UDESC, this yearwill see the
development of Action 3: the XI Colloquium Educators Formation:
Interactions about Sexuality and Sex Education aiming at Emancipation:
11 years of the Sex Education in the Waves of Radio UDESCProgram.
This action, which will happen on October 22-24, was planned
envisaging the participations in round tables, lectures, and conferences
of researchers, educators who take part in the Research Group
“Educators Formation and Sex Education – EDUSEX-CNPq/UDESC”,
giving interviews and sharing their experiences in their fight for an
emancipatory sex education. This event is dedicated to all involved in
education who understand the importance of a dialogue regarding sex
education based on an emancipatory paradigm. It is highlighted that the
actions ofthis Extension Program were developed aiming to touch the
whole community, academic or not, aspiring to an Emancipatory Sex
Education, promoting a significative interaction between university
members, school communities, and professionals in this area, searching
to minimize stigmas and social inequalities by means of broadening the
population’s social, cultural, and political repertoire and producing
knowledge by making use of media and technologies made available by
the Research Group EDUSEX. Also, it emphasizes university extension
as a resource for effective actions for a Sex Education guided by Sexual
Rights as Universal Human Rights.
Keywords: University Extension – Technologies – Emancipatory Sex
Education – Human Rights
445
Contextualização
O presente artigo pretende informar sobre um trabalho essencial
para a formação docente, que, há 11 anos, alia ensino, pesquisa e
extensão em um projeto intercentros, realizado e idealizado pelo Grupo
de Pesquisa EDUSEX Formação de Educadores e Educação Sexual
CNPq/UDESC, que, em seus mais de 30 anos de história, vem lutando
por uma Educação Sexual Emancipatória e intencional na educação
básica.
O Programa de Extensão Formação de Educadores e Educação
Sexual surgiu em 2007, idealizado pela Professora Doutora Sonia Maria
Martins de Melo36, também idealizadora e líder do Grupo de Pesquisa
EDUSEX Formação de Educadores e Educação Sexual CNPq/UDESC.
O programa Intercentros surgiu conforme a necessidade de ampliar as
discussões já iniciadas na disciplina de Educação Sexual, presente no
currículo do Curso de Pedagogia presencial, no Centro de Ciências
Humanas e da Educação/FAED, e no curso de Pedagogia à distância, no
Centro de Educação à Distância/CEAD na Universidade do Estado de
Santa Catarina – UDESC.
A partir de 2011, o programa começou a ser coordenado pela
Professora Doutora Patrícia de Oliveira e Silva Pereira Mendes37,
docente na disciplina de Psicologia e vice-líder do Grupo EDUSEX e, no
presente ano, conta com duas bolsistas de Extensão.
446
O programa possui 3 ações bianuais e está em sua XI etapa,
tendo como objetivos principais: sensibilizar as comunidades escolares,
acadêmicas e não acadêmicas, acerca da importância de uma Educação
Sexual intencional e, acima de tudo, emancipatória; ampliar o
conhecimento a respeito da temática; alcançar diversos perfis de
profissionais, possibilitando trocas de conhecimento e usar as
tecnologias como apoio primordial nessa caminhada.
Metodologia
Este Programa, como já mencinado, acontece a partir do
desenvolvimento de três ações, a saber:
1. Ação Rádio
Comemorado 11 anos de história e mais de 300 programas, o
Programa Educação Sexual em Debate: nas Ondas da Rádio UDESC,
coordenado pela Professora Dra. Sonia Maria Martins de Melo, vai ao
ar, ao vivo, na Rádio UDESC, frequência 100.1 FM, semanalmente às
sextas-feiras às 10 horas da manhã, com reprise, nas quartas-feiras, às
23h30 e na rádio Comunitária da Pinheira38 nas sextas às 9h e sábados às
8h30. Os programas são divulgados pelo Facebook, rede social onde
possui uma página própria, administrada pelas mestrandas e doutorandas
da Professora Sonia Melo, que conta com 387 seguidores até o presente
momento.
O programa é coordenado pelas integrantes do Grupo EDUSEX
com apoio dos técnicos, bolsistas e jornalistas da rádio UDESC.
Além disso, é uma ação interativa que visa a participação e
interação do público alvo, e os ouvintes podem se comunicar durante o
programa via SMS, Whatsapp, e-mail e Facebook, por meio de
mensagens na página ou inbox. Os programas, após gravados, ficam
disponíveis online para que possam ser revisitados.
38
Comunidade localizada no Município de Palhoça, Santa Catarina.
447
Destacamos alguns dos programas gravados em 2018 no quadro
abaixo:
2. Ação Curso
Disponibilizado via Ambiente Virtual de Aprendizagem
MOODLE, O Curso online gratuito: A Educação Sexual Começa na
Infância: a sexualidade infantil de 0 a 6 anos, foi realizado, neste ano, do
dia 24 de setembro ao dia 02 novembro, em encontros quinzenais com
duração de 1h e 30 minutos cada. A ação, idealizada pela professora
Gabriela Dutra de Carvalho39, em parceria com a professora Dra. Dhilma
39
Graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná, com especialização em Análise
Semântica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, possui Mestrado em Educação,
Comunicação e Tecnologia pela Universidade do Estado de Santa Catarina e é doutoranda na
Universidade do Minho. Atualmente, é professora na disciplina de Educação Sexul no Centro de
Educação à Distancia CEAD/UDESC. (Fonte: Plataforma Lattes)
448
Lucy de Freitas40, que também é ministrante do curso, foi organizada em
4 encontros e dividido em 4 módulos, e é destinado à pais, mães,
docentes da educação infantil, estudantes das áreas da educação,
3. Ação Colóquio
Em comemoração aos 11 anos da rádio, foi realizado, no ano de
2018, nos dias 22, 23 e 24 de outubro, o XI Colóquio dos Grupos de
Pesquisa Formação de Educadores e Educação Sexual - Diálogos Sobre
Sexualidade e Educação Sexual com Vistas à Emancipação: 11 Anos do
Programa Educação Sexual nas Ondas da Rádio UDESC. Para compor
essa ação, foram convidados 24 profissionais, dentre as mais diversas
40
Graduada em Pedagogia, com especialização em Educação Sexual pela Universidade do Estado
de Santa Catarina, possui Mestrado em Educação e cultura pela mesma universidade e Doutorado
pela Universidade de Lisboa. Atualmente trabalha com formação continuada no Espaço de
Formação e Educação Sexual (EducaSex). (Fonte: Plataforma Lattes)
449
áreas, que já foram entrevistados no Programa Educação Sexual em
Debate, para dialogar sobre temas ligados a Educação Sexual. As
apresentações foram divididas em 9 mesas temáticas que discutiram
temas como: Direitos Humanos, as relações entre os
adolescentes/crianças e as mídias sociais, práticas pedagógicas,
movimentos feministas e coletivo de mães.
Esta ação tem o objetivo de sensibilizar cada vez mais a
comunidade acadêmica e não acadêmica acerca das temáticas que se
entrelaçam intimamente com a da Educação Sexual. Através dos
diálogos que se constroem por meio deste encontro, pode-se conceber
uma nova forma de olhar e trabalhar essas questões dentro e fora da sala
de aula e das instituições de ensino superior.
Destacamos a imagem que expressa o teaser do evento.
450
Resultados e Discussões
Por meio dessas três ações já explicitadas o Grupo de Pesquisa
Formação de Educadores e Educação Sexual segue aliando pesquisa,
ensino e extensão em uma universidade pública brasileira do sul do
Brasil.
Sabemos que o Programa Educação Sexual em Debate: nas
ondas da rádio UDESC permanece nesta rádio por 11 anos, é um
programa inédito em uma rádio educativa, pois se propõe a dialogar
sobre temáticas importantes e pertinentes para uma educação sexual
numa perspectiva emancipatória. Entendemos que os programas
gravados semanalmente e que compõem hoje um grande acervo (com
331 programas gravados) com diálogos e entrevistas que podem ser
utilizados como recursos didáticos e como consulta para educadores e
educadoras da educação básica. Assim, como o fato desses programas
estarem disponibilizados em uma rede social como o facebook
possibilitando para a comunidade em geral o acesso ao entendimento de
uma educação sexual com vistas à emancipação e atingindo a
comunidade de pais, mães, educadores/as e todos/as que se interessarem
sobre temáticas afetas a educação.
Destacamos que a relevância dessas três ações também se
expressa nos estudos que dão origem a dissertações e teses, sob a
orientação da professora Dra. Sonia Maria Martins de Melo, no
Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE/UDESC. Os
programas de rádio já veiculados foram tema de estudo no Mestrado
desenvolvido pela hoje Doutoranda Márcia de Freitas41, que segue em
seu doutoramento estudando possibilidades educativas via a mídia rádio.
Assim como há pesquisas que são desenvolvidas a partir dessas ações e
outros estudos de tese e dissertações que expressam e endossam a
41
Título da Dissertação: Programa Educação Sexual em Debate na Rádio UDESC Florianópolis:
espaço de sensibilização sobre as possibilidades de uma educação sexual emancipatória. Dissertação
defendida em 2014. PPGE/FAED.
451
caminhada do Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e Educação
Sexual em seus projetos e ações no campo da extensão.
Salientando os resultados da ação curso, enfatizamos a
possibilidade de por meio desta ação, abrir diálogos intencionais, com o
uso da plataforma moodle abrangendo educadores e educadoras na
intenção de aprofundar conhecimentos no campo da educação sexual em
uma perspectiva emancipatória. Atualmente esse curso está em sua
segunda versão voltado para a temática da sexualidade e educação sexual
na infância.
Com relação ao Colóquio realizado no Centro de Ciências
Humanas e da Educação e com apoio do Centro de Educação à Distância,
que se propõe ao longo desses anos a dialogar com Grupos de Pesquisa
que também aliam ensino, pesquisa e extensão e corroboram para o
campo da formação de professores/as e educação sexual em uma
perspectiva emancipatória. Neste XI Colóquio, participaram de sua
elaboração educadores e educadoras da rede municipal e estadual de
ensino partilhando boas práticas e experiências intencionais de educação
sexual.
Considerações Finais
O Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e Educação
Sexual CNPq/UDESC vem atuando todos esses anos com bastante
ênfase nas aproximações possíveis entre a temática da educação sexual
e o uso das novas tecnologias de informação e comunicação.
Com a caminhada, temos percebido que é possível avançar na
produção de conhecimento na área de educação sexual em uma
universidade pública, realizando com qualidade atividades de ensino,
pesquisa e extensão, utilizando as novas tecnologias de informação e
comunicação, explorando o uso de diferentes tecnologias (rádio,
computador, celular, mídias sociais), desta forma, além de ampliar suas
plataformas de divulgação, também está possibilitando a expansão da
temática para todos os públicos.
452
Essa atuação contribui na criação, desenvolvimento,
implantação e implementação de novas metodologias e na produção de
materiais pedagógicos em várias linguagens midiáticas reunindo Grupos
de pesquisa do Brasil e outrora do Exterior, estreitando assim, o diálogo
sobre a educação sexual em uma perspectiva emancipatória.
Entendemos que a continuação do resgate e o registro
sistemático integrado dessa caminhada já realizada e em andamento, com
ênfase na perspectiva das novas tecnologias de informação e
comunicação, pode qualificar positivamente o processo de formação
docente em uma universidade pública como a UDESC e pode corroborar
com boas ações no campo de uma educação sexual compreensiva,
consciente e intencional nos âmbitos educativos.
A pretensão do grupo é atingir um público cada vez maior e
ampliar ainda mais a visibilidade, o entendimento e a sensibilização da
temática nas diferentes plataformas virtuais, possibilitando que a
Educação Sexual não seja mais vista como um tabu e sim como um tema
de grande importância para a construção sócio cultural de cada indivíduo,
visto que todo processo de educação sexual também é um processo
educativo.
Seguimos no Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e
Educação Sexual – Grupo EDUSEX compreendendo que a educação
sexual em uma perspectiva emancipatória é nosso sonho possível e um
sonho que permanecemos comprometidas em sua efetivação.
Referências
FREITAS, Márcia de. Programa Educação Sexual em Debate –
Rádio UDESC – Florianópolis: Momentos de Sensibilização de
Educadores/ Educadoras para uma Educação Sexual em uma
Perspectiva Emancipatória?. Florianópolis, 2015. Disponível em:
<http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/19350_11396.pdf>.
Acesso em: 08 dez 2018.
453
Sexual e as Novas Tecnologias: Reflexões sobre o Programa
Educação Sexual em Debate nas Ondas da Rádio UDESC.
Florianópolis, 2011. Disponível em:
<http://www.sies.uem.br/trabalhos/2011/183.pdf>. Acesso em: 08 dez
2018.
454
RELATO DE UM ESTAGIÁRIO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: HOSTILIDADE POR
ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO
455
REPORT OF A TRAINEE IN THE NURSERY SCHOOL:
HOSTIITY BY GENDER STEREOTYPES
Enquadramento teórico
Em nossa cidade, Maringá, é muito difícil encontrar homens
trabalhando na educação infantil. Nem como cuidadores, já que o
concurso público é apenas para o público feminino para esse cargo, e
muito poucos professores. Ainda que poucos, homens estão em cursos
de Pedagogia nas Universidades e passam por período de estágio
supervisionado obrigatório para conseguir formar-se pedagogos. Então,
como é o período de estágio supervisionado na Educação Infantil para
homens que estão cursando Pedagogia?
Por meio de um relato de experiência de um dos autores deste
artigo, Etienne, iremos mostrar como pode ser esse período de prática
456
educativa em um espaço tão cristalizado nas questões de gênero, em que
o feminino é visto como sinônimo de cuidado e confiança enquanto o
masculino como ameaça e inseguro.
Em seguida, discutiremos sobre o fato relatado por meio de três
referências teóricas. A primeira, Guacira Lopes Louro (2003) discutindo
sobre a disciplina e a imagem de professoras e professores exigida pela
escola em uma sociedade patriarcal. A segunda, a Angela Cristina
Gomes da Silva (2014) com sua monografia sobre o homem professor na
educação infantil, para entendermos o contexto desse profissional dentro
de um espaço não comum a eles. A terceira, Júlio Régis da Silva e
Viviane Lima Martins (2016), que será mais destacada, com o artigo da
revista Intr@ciência, refletindo acerca de conceitos de preconceito,
estereótipos e masculinidade, cuja problemática é essencial para
compreendermos a violência e machismo no fato.
Acreditamos que censurar um professor homem por dedicar
atenção e afeto para as crianças da educação infantil é algo que deve sem
problematizado. E para isso, atravessaremos essas discussões por meio
das nossas lentes feministas.
Método
O artigo parte da inquietação particular que aconteceu no
período de estágio de um dos autores deste, Etienne, durante sua
graduação em Pedagogia. Em conversas na universidade entre ele e eu,
Clara, percebemos o quanto essas situações violentas não podem ficar
silenciadas entre quatro paredes, mas sim deve transbordar e transgredir,
então, colocamos em prática o propósito de escancarar na academia sobre
o fato, além de possibilitar a troca de conhecimentos e experiências por
meio da apresentação.
Sendo assim, escolhemos narrar em primeira pessoa, já que um
dos autores vivenciou e escolheu compartilhar academicamente suas
reflexões, discutindo e abrangendo sobre como se dá o espaço da
Educação Infantil para estagiários pedagogos masculinos. Antes disso,
pontuamos que todas as nomenclaturas foram inventadas para distanciar
457
do nome original das pessoas envolvidas nos fatos a fim de preservar
suas identidades.
Iniciemos com uma breve contextualização do local em que
ocorrem os fatos a serem relatados. Foi em um Centro Municipal de
Educação Infantil (CMEI) localizado em uma área valorizada de
Maringá, assim acolhendo diversas crianças com situação financeira
estável e elevada comparada a outros centros da cidade. É
consideravelmente pequeno, atendendo uma turma de Infantil I, II e IV
e duas turmas de Infantil III e V, sem uma idade exata, mas a idade
máxima é cinco anos.
Os fatos ocorreram no primeiro semestre do 3º ano de
Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá (UEM) – Campus Sede,
no ano de 2018, cursando a disciplina Estágio Curricular
Supervisionado em Educação Infantil III, sendo a terceira vez que eu
entrava em contato com a Educação Infantil. Foram realizados sete
encontros, no período vespertino, em que quatro contavam com somente
observação participativa, um com observação participativa junto de
atividade de uma hora, e por fim, duas intervenções no horário completo
do estágio realizado. Os encontros todos em uma turma de Infantil IV,
contanto com 27 alunos, sendo 6 meninos e 21 meninas, além da
professora regente da turma formada em Pedagogia. As atividades foram
realizadas em dupla com uma aluna de minha turma de Pedagogia, tal
como geralmente ocorre nas turmas da UEM.
Os fatos relatados posteriormente constam de um dia de
observação participativa, em que compõe a observação do ambiente
escolar e as atividades propostas pela professora regente, juntamente
com o auxilio caso requerido pela mesma.
No quinto dia de observação dentro do ambiente escolar houve
o início corriqueiro, semelhante aos outros dias. A turma um pouco
agitada como nos outros dias, em que gradativamente no decorrer da
tarde perde o interesse com a aula ou outras atividades que não envolvam
Lego. Nossas atividades iniciaram às 13 horas e 30 minutos, como
planejado. Ao chegarmos à sala de aula, pedimos licença para
458
adentrarmos o lugar. Após alguns minutos da nossa entrada, a professora
entregou a água para as crianças como parte da rotina.
A atividade do dia estava relacionada com uma maquete que
estava sendo produzida com as crianças, em que a professora iniciou
pedindo para que desenhassem cadeiras e mesas em metade de uma folha
sulfite, mostrando para nós e à professora os desenhos. Em seguida foram
dadas, pela professora regente, peças de montar para os/as alunos/as com
o comando de formar cadeiras e mesas com peças de lego para colocar
na maquete como forma de localizar onde futuramente ficariam as
cadeiras e mesas. Depois dessa atividade, permaneceram brincando com
Lego enquanto interagíamos com as crianças em resposta aos
questionamentos delas. Chegando o momento do jantar, próximo às
quatro horas, movemos-nos para o refeitório, realizaram a refeição e
retornamos para a sala.
Como nova atividade, foram liberadas bonecas para que
brincassem, enquanto a minha dupla de estágio teve a ideia de vestir sua
mão como uma personagem chamada Clarice e brincar com as crianças.
Permaneci conversando com os/as demais alunos/as para dar atenção a
todos/as. Enquanto isso, a professora precisou se ausentar da sala, e para
isso pediu para que outra professora (que estava em hora atividade) para
não deixar os/as estagiários/as sozinhos/as (normas de controle que
envolve a observação). A sala permanecia bastante agitada por estarem
brincando com as bonecas. Duas alunas iniciam uma discussão, no
momento são repreendidas pela professora. Uma das alunas começa a
chorar passando a ser confortada pela mesma professora que havia
repreendido, ficando em seu colo ao tempo que chora, transmitindo
bastante afeto como forma de reconfortar a menina que ali chorava.
Nesse momento, o aluno Luan dialoga comigo em tom de desafio,
questionando minha força. São respondidas as provocações à altura das
perguntas, dizendo a capacidade de erguê-lo sem dificuldade por ser
grande. Assim, Luan pediu para que fosse levantado no colo como forma
de desafiar o estagiário, que atendeu ao pedido. O aluno demostrou
surpresa, ao mesmo tempo em que achava divertido. Outras cinco
459
crianças pediram para serem erguidas e demonstraram muito felizes com
o ato, abrindo mais para diálogos e atenção. Por estarem em idades
diversas, mas que estão próximas de 4 anos de idade, tornam-se cada vez
menos recorrentes os atos de levantar do chão, em que no máximo temos
o reconforto no colo em uma demonstração de carinho como forma de
acalmar choros, semelhante a atitude da professora de hora atividade que
estava na sala. Ao pegar no colo os/as alunos/as, apresentou uma
mudança do significado do ato, pois retoma um momento de diversão
e/ou entretenimento, algo próximo da brincadeira, sendo assim outra
forma de transmitir carinho com o mesmo ato.
Antes de ocorrer essa interação de levantar as crianças, havia
bastante relutância delas comigo, sempre tendo uma relação com poucos
diálogos e sempre me observando como se fosse muito diferenciado,
algo até de certo ponto compreensível por haver poucos profissionais
masculinos na Educação Infantil, na posição de professor.
Seguindo as atividades, precisei ausentar-me da sala por um
momento. A professora regente já havia retornado e a outra professora
saído da turma para realizar as próprias atividades. Ao que retorno para
a sala, me deparo com um recado da minha parceira de dupla de estágio,
dizendo que não era para que levantasse as crianças novamente, sendo
esse um pedido da nossa professora da turma de estágio, Débora. Isso me
deixou bastante constrangido ao mesmo tempo confuso, pois estava em
uma turma com crianças de 4 anos, aproximadamente, e o pedido poderia
ocorrer novamente já que foi observado pelos/as educandos/as a
liberdade para uma interação mais afetiva comigo, em posição de
professor dentro do CMEI. Ao final das atividades, encontrei a
professora Débora no corredor e, de forma afastada e “discreta” (a qual
não foi bem sucedida), novamente atentou para que não ocorresse
novamente um maior contato com os/as estudantes.
No dia de encontro realizado na universidade, a professora
Débora retomou o acontecimento, relatando que a direção foi informada
(a pessoa que passou a informação não foi colocada no diálogo, focando-
se somente na “bronca”) de que o estagiário havia pegado no colo alguns
460
dos alunos e que tal ação não deveria acontecer novamente. Quando a
Débora questiona a direção, é respondida com o argumento de que as
crianças de quatro anos já falam, e por isso não poderia pegá-las no colo,
pois elas podem conversar com os pais42. Deixando-me desolado, já que
estava limitado a interagir com os/as alunos/as, além da fala ser
direcionada especificamente a mim, pois para as colegas mulheres não
havia problema e para outro homem que estava na turma não houve
reclamações por estar lidando com crianças de 1 ano. Posteriormente,
durante o estágio, foi pedido colo, mas devido ao comando da professora,
neguei o pedido o que levou a um pequeno distanciamento das crianças
comigo.
42
Ignorando o contexto familiar plural, onde é centrada a figura paterna,
enquanto há diversos/as outros/as membros/as além do pai na
responsabilidade da criança.
461
A educação infantil historicamente configurou-se
como um espaço feminino, no qual a figura
masculina é de certo modo rejeitada, pela própria
comunidade escolar. Por outro lado, a cada ano
aumenta o número de homens inscritos em cursos
de formação de professores em nível médio e nos
cursos de Pedagogia e é quase consensual que é
salutar o convívio de crianças em formação na
educação infantil com professores do sexo
masculino. (SILVA, 2014, p.8)
462
Sendo o cuidar e educar atividades consideradas femininas
socialmente, não são comuns serem executadas por homens (SILVA;
MARTINS, 2016; SILVA, 2014). E quando eles decidem romper com
esses estereótipos, abala na sociedade o conceito de masculinidade
cristalizado e intocável.
Ao apresentar os conceitos de estereótipos e masculinidade,
voltamos a Silva e Martins (2016) cuja produção apresenta discussões
sobre a presença do professor masculino em salas da Educação Infantil,
refletindo sobre os conceitos de preconceito, estereótipos e
masculinidade, que discutiremos para que nos possibilite compreender
sobre o fato relatado não como algo que seja comum em um estágio
supervisionado, mas algo que precisa, sim, ser destacado, refletido e
denunciado porque tais atitudes refletem uma sociedade machista, cujos
estereótipos sobre o “masculino” e o “feminino” servem apenas para
propagar preconceitos e, consequentemente, violência.
Ao retratar sobre preconceito, a autora e o autor abordam certa
complexidade quanto ao conceito, buscando diversas fontes para
explicitar a perspectiva compatível com a discussão proposta. É possível
compreender preconceito como constituído de ideias passivamente
aceitas sem necessariamente passarem por uma avaliação racional, de
forma a não questionar a validade dessas ideias.
No relato em questão, percebemos a situação de preconceito
por meio da violência velada quando a professora de estágio exige que
tenha que interromper contatos físicos com as crianças, que demonstram
carinho e cuidado, mas que passa significar ameaça apenas por se tratar
de um homem, sem ao menos refletir sobre sua atitude nem dialogar com
o autor deste trabalho enquanto estagiário.
Aliado ao preconceito, temos os estereótipos, explorado por
meio das referências do artigo aqui referido, resumidos seu conceito em
um trecho significativo e sucinto de Silva e Martins (2016, s/p):
Estereótipos também são formas de classificar
determinados grupos da nossa sociedade, seja ele
qual for, roqueiros, emos, ricos, pobre, etc.,
463
gerando, assim, a generalização de atitudes e
costumes de uma pessoa que se enquadre a
determinado grupo.
464
de “a função de manter a lei, a ordem e zelar pela segurança e bem estar
da família, levando sempre a questionamento qualquer homem que ouse
fugir desse padrão.” (SILVA; MARTINS, 2016, s/p).
Ao observar essa construção, também é atentada pelo autor e
pela autora, a necessidade desse ser masculino de se provar a todo
momento para permanecer nos moldes tradicionais de “macho frio,
seguro e bem sucedido” (SILVA; MARTINS, 2016, s/p). Ao final da
discussão, Silva e Martins (2016, s/p) relacionam as reflexões sobre
masculinidade apresentado.
465
Ao pensarmos estereótipos de masculinidade, podemos
observar a presença do pedagogo masculino como um afronte por iniciar
uma quebra do padrão machista que envolve os homens, além de
contribuir com uma visão não sexista das profissões, presando
principalmente pela capacidade e formação da pessoa. Uma vez
adentrando espaços que envolvam o cuidar e educar, possibilita-se uma
nova visão de masculinidade que não depende da frieza e /ou virilidade
como aportes para sua função.
Considerações finais
Através do relato, podemos perceber quão hostil a educação
infantil pode ser para homens pedagogos, ainda que de forma velada.
Nos CMEIs de nossa cidade predominam quase totalmente mulheres. E
ainda desconfia-se da presença masculina, não identificando no
pedagogo masculino a finalidade de educar e cuidar, como se o homem
fosse incapaz ou leviano nessas intenções, denunciando quão machista
nossa sociedade ainda é.
Denunciamos, aqui, uma postura machista que aconteceu com
o autor deste em um curso de pedagogia. Por meio de uma situação de
violência velada, aponta que os cursos que capacitam e formam
professoras e professores para a atuação na educação infantil são
machistas e enraizados na cultura de estereótipos de gênero e
preconceituosos.
Louro (2003) aponta que o mais urgente é desconfiar de que é
dado como “natural”. E de fato, concordamos. É “natural” que apenas
mulheres ocuparem os espaços de educação infantil? É “natural” que
sejam carinhosas e apenas delas partam os carinhos? Talvez, ou de fato,
tenhamos que “adotar uma atitude vigilante e contínua no sentido de
procurar desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade com
o "natural"; isso implica disposição e capacidade para interferir nos jogos
de poder.” (LOURO, 2003, p. 86). É necessário que denunciemos, que
produzamos conhecimento, que reflitamos, que questionemos, que
466
argumentemos. Mas, principalmente, que desestabilizemos o que é dado
como “natural” a fim de romper com preconceitos e estereótipos.
Referências
467
SEXUALIDADE, EDUCAÇÃO SEXUAL NO
ENSINO MÉDIO E FORMAÇÃO DE
PROFESSORES: PRODUÇÕES E INVESTIGAÇÕES
ATUAIS
Rinaldo Correr
Juliana Marques Castilho de Matos
(Universidade Estadual Paulista/Araraquara)
468
construção de um “pânico moral”, a partir da uma narrativa acusatória
da ideologia de gênero. Observa-se que, as práticas em educação sexual,
se apoiam em fundamentos reducionistas, vinculadas apenas à
sexualidade enquanto caráter preventivo de infecções sexualmente
transmissíveis – ISTs. Os trabalhos destacam, a falta de coerência entre
a maioria das ações realizadas no âmbito escolar, como aquelas propostas
nos Parâmetros Curriculares Nacionais, em relação à transversalidade do
tema. Conclui-se, por meio deste breve levantamento de literatura, a
necessidade de discussões e pesquisas sobre o impacto do momento
político atual nas concepções e ações dos professores, especificamente
em relação à educação sexual e no ambiente escolar de adolescentes do
ensino médio. Nessa perspectiva, a ação investigada nessa seara deverá
desvelar os processos políticos que sustentam os processos educacionais.
A ação docente necessita de horizontes balizados por reflexões
científicas que levem a superação de práticas discriminatórias.
Palavras-chave: Sexualidade, Educação Sexual, Ensino Médio,
Formação de Professores.
469
conservatism. In this universe, where political and ideological issues
cross pedagogical issues, they surface in disputes about sexual politics
in the school space. Thus, the discussions indicate the need to emphasize
the complexity of the current challenge: how to develop pluralistic
actions for sexuality in the education of young people and adolescents?
In this analytical and reflexive process, the inclusion or non-inclusion of
content related to gender and sexuality in the National Education Plan
is an emerging agenda. At the center of the polarizations, according to
the studies observed, questions regarding the threat of elimination of
existing guidelines at the state and municipal levels regarding gender,
gender identity and sexual orientation are being imposed. In these
themes the discussions point to the construction of a moral panic, based
on an accusatory narrative of gender ideology. It is observed that the
practices in sexual education are based on reductionist foundations,
linked only to sexuality as a preventive character of sexually transmitted
infections - STIs. The papers highlight the lack of coherence between
most of the actions carried out in the school context, such as those
proposed in the National Curricular Parameters, in relation to the
transversality of the theme.
Keywords: Sexuality, Sex Education, Secondary Education, Teacher
Training.
Enquadramento teórico
O presente estudo tem como objetivo realizar uma revisão de
literatura sobre as produções e investigações atuais, relacionadas à
sexualidade, educação sexual nas escolas brasileiras, em especial, as
ações desenvolvidas no ensino médio e a formação de professores. Ao
falarmos de educação sexual, devemos reconhecer a complexidade do
tema que é permeada pela história e pelos valores de cada pessoa,
observando, assim a necessidade de preparo do profissional que atuará
junto a esta temática.
Conforme Maia e Ribeiro (2011), a sexualidade humana é
composta de componentes biológicos, psicológicos e sociais, é expressa
por cada ser humano, em sua subjetividade, de modo singular, e em modo
470
coletivo, por meio dos padrões sociais, que são aprendidos e apreendidos
durante a socialização. Exemplos de padrões sociais relacionados à
sexualidade, são as atitudes e valores, comportamentos e manifestações,
que fazem parte da história de cada indivíduo desde o seu nascimento.
Constituem assim, os elementos básicos do processo denominado
educação sexual. Este processo ocorre inicialmente, na família e depois
em outros grupos sociais. Sendo desta forma, o modo pelo qual
desenvolvemos nossos valores sexuais e morais, os discursos religiosos,
midiáticos, literários fazem parte da construção e constituição desses
valores. Não havendo um código universal de valores morais ou sociais
sobre sexualidade, cada sociedade faz as suas regras de comportamentos
sexuais, sofrendo mudanças no tempo e na história.
Este processo ocorre, inicialmente, de modo informal, a partir
das relações com o ambiente, em que a família é a referencia inicial. Em
seguida, com a entrada das crianças nas escolas, esses processos têm
início de modo formal, por meio de práticas pedagógicas. Foi no início
do século XX, que as práticas voltadas à educação sexual começaram a
ser desenvolvidas no âmbito escolar. Neste contexto, as ações se
orientam pela meta de controle epidemiológico. Os discursos que
permeavam o desenvolvimento de práticas voltadas à educação sexual,
eram embasados nos pressupostos da moral religiosa, sendo muitas
vezes, repressivos e fortalecidos pelo caráter higienista das estratégias de
saúde pública. O avanço das discussões políticas em relação aos direitos
sexuais e reprodutivos, e também com a expressiva participação dos
movimentos feministas, contribuiu para o aumento de discussões
referente à sexualidade, extrapolando a visão apenas biologicista,
passando a ser compreendida como prática aliada à saúde física e mental.
(FURLANETTO; LAUERMAN; COSTA; MARIN, 2018).
Para os referidos autores, em relação aos avanços e contribuições
políticas referentes à sexualidade, recebe destaque, os documentos
decorrentes das conferências realizadas no Cairo e Pequim, na década de
1990, que incorporaram discussões e reflexões sobre temas como direitos
humanos, liberdade sexual, saúde e educação.
471
Em decorrência deste contexto, segundo Furlanetto et al. (2018,
apud GAVA, VILELA, 2016; GESSER, OLIRAMARI; PANISSON,
2015), a educação de crianças e adolescentes foram impactadas de
maneira decisiva. A sexualidade passou a ser compreendida como
constitutiva dos sujeitos desde a mais tenra idade, sendo portanto, a
escola, o ambiente considerado ideal para as políticas e projetos que
assegurem os direitos reprodutivos e sexuais de seus alunos no ambiente
da educação.
Avaliamos, em consonância com a literatura citada, que a
instituição escolar, pelo caráter intencional e instrumental que possui, é
o espaço da democratização e universalização dos direitos adquiridos por
todos os cidadãos. Na escolarização, universalizada como direito
inalienável, os saberes, incluindo aqueles relacionados à sexualidade, são
fundamentados em conhecimentos acerca dos processos de
aprendizagem, que estão inseridos nos processos de desenvolvimento
humano.
Como fruto deste processo de avanços, no ano de 1996, ocorreu
a aprovação da terceira e mais recente Lei das Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), que subsidiou a origem dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). Considerando a importância de abordar o
tema sexualidade no ambiente escolar, dentre os 10 cadernos que
organizam o PCN, um é referente à orientação sexual. O documento
aborda a educação sexual como elemento fundamental para o exercício
da sexualidade, considerando-se as esferas mais amplas de ser e
conviver, com prazer, saúde e responsabilidade. Nesta orientação
político-pedagógica, a ação educativa deve ser pautada na proposta da
transversalidade do tema, sendo abordada em todas as disciplinas,
fundamentada em visão ampla de sexualidade, incluindo seu caráter
cultural social e histórico. (FURNANETTO et al., 2018).
Na publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), a
proposta transversalização da temática sexualidade na escola, esbarrou
na falta de preparo e capacitação dos atores envolvidos na cena
educacional. Assim, em relação ao tema e à abordagem transversal, essa
472
proposta não se efetivou. Campos, (2015) pontua a falta de consenso nos
meios acadêmicos e no cotidiano escolar, tanto em relação à maneira de
abordar o tema, o que abordar e quem abordar.
Nessa lacuna, entre o discurso que embasou os PCNs e as
dificuldades de internalizar aspectos éticos, políticos e filosóficos, a
prática da educação sexual no espaço da escolarização não avança. Nesse
cenário, observa-se a perpetuação de práticas reacionárias, que
reafirmam condutas e conceitos historicamente construído. A ênfase
reside em aspectos biológicos da sexualidade e métodos contraceptivos.
O que se constata é a manutenção de um “currículo sexual oculto” que
atua em relação à valorização da normalização das expressões de gênero,
excluindo orientações sexuais diferentes, mantendo a lógica de exclusão
e preconceito. (CAMPOS, 2015).
A construção pessoal e social da sexualidade, se constitui ao
longo da vida, sendo um processo contínuo e complexo, articulando
aspectos biológicos, fisiológicos, psicológicos, sociais, culturais e
históricos. Nas visões de homem e de sociedade que desconsideram os
aspectos pontuados, o indivíduo é desconsiderado, e sua identidade
sexual se aproximará ou se afastará dos padrões dogmáticos e
predominantes na ideologia hegemônica. Ao se restringir a sexualidade
humana, o único horizonte possível são as a abordagens reducionistas,
focalizadas apenas ao aspecto do corpo, “que possibilita reprodução, que
engravida, que adoece que se previne”. (CAMPOS, 2015, p. 2). Como
mencionado por Maia et al. (2012), o processo de educação sexual,
devendo ser compreendido com um processo sistemático e contínuo no
qual, não as informações cientificas sobre sexualidade, seriam
convertidas em pontos de partida para possibilitar espaços de reflexão e
diálogo e que levem a superação de práticas anacrônicas e prejudiciais.
Ao fazer a crítica dos processos de implementação e dos percalços
enfrentados, muitos autores, defendem a iniciativa de educação sexual
que ultrapasse a esfera meramente informativa-descritiva-profilática,
que mire em atividades de ampla educação para compreender a
473
sexualidade e a saúde sexual como uma questão inerente da vida social
e política.
Maia e Ribeiro (2011) partem do princípio de que a educação
sexual na escola deve ser um processo propositado, planejado e
organizado. Nessa proposta, os caminhos pedagógicos e didáticos
deveriam possibilitar uma formação que envolva o indivíduo na sua
totalidade. O conhecimento, a reflexão e o questionamento, deve visar
mudança de atitudes, por meio da flexibilização das concepções e dos
valores; Somente encarando a sexualidade como uma das dimensões da
vida humana e que o processo educacional conseguirá promover o
desenvolvimento da cidadania ativa, em que todos possam ser
respeitados. Dessa maneira; a educação sexual representa um importante
caminho para a e instrumentalização da sociedade para o combate à
homofobia e à discriminação de gênero.
Atualmente, no campo político, com o surgimento do
movimento “Escola sem partido”, torna-se bastante nítido, muitos
retrocessos em relação à orientação sexual, sendo solicitado em projetos
de lei que tramitaram e tramitam no Congresso Nacional e casas
legislativas, a exclusão dos termos orientação sexual e gênero dos Planos
Nacionais de Educação (PNE) e Bases Nacionais Comum Curriculares
(BNCC). Furlanetto et al. (2018, apud por BRASIL, 2017). Esse
posicionamento tem gerado debates acalorados. A sociedade parece
conviver com posições antagônicas, que ora denunciam o obscurantismo
e dogmatismo, que ignoram a lógica e as evidências científicas, como é
o caso dos defensores dos Direitos Humanos e por outras vezes,
endossam de maneira efetiva ou fervorosa os discursos reacionários.
Para Maia et al. (2012, p. 3)
474
construção social e, como tal, impõe certos padrões
de como devemos nos comportar.
Método
Neste trabalho buscou-se investigar, por meio da revisão da
literatura recente as temáticas que estão sendo estudadas em relação à
sexualidade, educação sexual no ensino médio e formação de
professores. Foram analisados artigos científicos publicados nos últimos
dois anos. A estratégia metodológica utilizada foi à busca sistemática na
base de dados Scielo, com a utilização das palavras-chave: sexualidade,
educação sexual, ensino médio e formação de professores. Inicialmente
foi realizada à leitura dos resumos, analisando o conteúdo e sua
relação com as palavras-chave pesquisadas. Em seguida, foram
selecionados cinco artigos completos para serem analisados de
maneira sistemática. Observou-se a predominância de estudos que
abordam o debate público atual sobre a educação sexual, referentes à
475
inclusão dos conteúdos que envolvem a questão de gênero e sexualidade
no Plano Nacional de Educação.
476
também as ações desenvolvidas no espaço da escola em relação à
educação sexual no ensino fundamental e médio e os profissionais
responsáveis por estas ações. Outro artigo avaliou, exclusivamente, o
impacto do Programa Saúde nas Escolas, de quatro escolas na cidade do
Rio de Janeiro, destinado a alunos do ensino médio.
Segundo as reflexões apresentadas por Brandão e Lopes (2018),
nos últimos anos, houve ampla divulgação pela mídia, no Brasil, em
relação às polêmicas que envolvem a aprovação do Plano Nacional de
Educação (PNE) e dos planos estaduais e municipais. Posições contrarias
a sua aprovação, devido à inclusão de categorias sociais no art. 2, em que
se versa sobre a “superação das desigualdades educacionais”, com ênfase
na promoção da desigualdade racial, regional, de gênero e de orientação
sexual.
Em 2014, intensificam-se intensos debates na sociedade
brasileira, devido à menção das categorias “gênero” e “orientação
sexual” no texto do segundo PNE (projeto de lei nº 8.035/2010), o que
provocou o retorno do texto final à Câmara dos Deputados (BRANDÃO;
LOPES, 2018).
As referidas autoras, refletem sobre as conseqüências do atual
cenário de retrocesso político no Brasil. A inexistência de discussões no
espaço da escola à respeito de gênero e sexualidade, contribui para a
manutenção e persistência das desigualdades, discriminações sociais e
manifestações de violências, no espaço escolar e em outros ambientes
sociais. Refletir e discutir sobre esta temática, certamente, somará forças
para fortalecer a luta pela afirmação dos direitos humanos no Brasil.
Para Brandão e Lopes (2018, p. 102)
477
abandono escolar por razões que não competem
somente a adolescentes.
478
No entanto, a pesquisa realizada, pelos autores, de modo geral,
identificou que as atividades desenvolvidas caracterizam intervenções
temporárias, realizadas, por profissionais que não pertencem ao quadro
escolar. Ações realizada, com apenas uma parcela da população escolar,
sendo 75% das ações no ensino fundamental (5º ao 9º ano) e 25% n
ensino médio. Voltadas apenas ao gênero masculino ou feminino.
Em relação as característica metodológicas e pedagógicas,
Furlanetto et al. (2018), identificam diversidade de modalidades de
intervenção. A modalidade de oficinas foi apontada em 50% das
estratégias. Também foram citadas: conversação com os alunos, leitura
de livros infantis, elaboração de peça teatral, dinâmicas de grupo,
atividades lúdicas, intervenções psicoeducativas, círculo de cultura e
grupos operativos.
Os predomínios das temáticas abordadas nas intervenções são
relativos a abordagens médico-informativa, relacionados à prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis e gestação. Foi pontuado ações
voltadas ao fornecimento de informações sobre biologia do sexo e
estudos que envolvem discussões relacionadas à normas e gênero,
identidade, preconceitos e aspectos culturais e familiares.
(FURLANETTO et al., 2018).
Segundo os referidos autores, existe distancia da forma como a
temática é abordada no âmbito escolar em relação ao preconizado pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Muitas intervenções
continuam a enfatizar temas relativos à área da saúde sexual e
reprodutiva e não abordam a sexualidade como construção social e
histórica.
A ausência de formação continuada e o despreparo dos docentes
para abordar e entrar em contato com os questões sobre gênero e
sexualidade, foi apontado em alguns estudos pesquisados. Em relação
aos profissionais que desenvolvem as ações na educação sexual nas
escolas, indicam ser realizadas pelos seguintes profissionais: professores
de ciências e biologia (16,6%); profissionais de enfermagem (37,5%).
479
Este último é responsável por intervenções externas, de caráter
temporário (FURLANETTO et al., 2018).
A escola é um espaço que cumpre uma função social, sendo
responsável pela evolução intelectual, física, social e cultural dos alunos.
A sexualidade, perpassa por todas as fases do desenvolvimento dos
indivíduos. A educação sexual, precisa ser trabalhada por profissionais
qualificados, com o objetivo de diminuir conflitos e visões pessoais. No
entanto, apesar de existirem estes documentos oficiais, que orientam e
abordam sobre gênero e sexualidade, os professores, muitas das vezes,
não tem acesso às estes documentos e também não tem recebido meios
de capacitação (FURLANETTO et al., 2018).
Os autores atentam para a importância da abordagem sócio-
histórica da sexualidade. Toda estratégia de educação sexual carrega uma
contribuição social, pois se existe comprometimento com a
transformação social, podem levar a desconstrução de padrões de
comportamento sexual excludentes. (FIGUEIRÓ, 2010; FURLANI,
2011; GOLDBERG, 1988; LOURO, 2008 apud FURLANETTO et al.,
2018). Portanto as estratégias em educação sexual, embasadas no resgate
histórico e cultura, apresentam caráter emancipatório, contextualizadas
com a realidade em que os sujeitos estão inseridos. Estas estratégias
devem ser abrangentes, comtemplar aspectos formativos e informativos,
prover o respeito à diversidade sexual e de gênero, possibilitar o alcance
de direitos sexuais e reprodutivos, reflexões e possibilidades de vivencia
da sexualidade com liberdade e responsabilidade. (FIGUEIRÓ, 2010
apud FURLANETTO et al., 2018).
Considerações finais
Em relação aos artigos analisados, identifica-se, que os trabalhos
realizados no âmbito da educação sexual na escola, distanciam-se do
preconizado nos PCN, em relação à transversalização do tema, nos
diversos níveis de ensino. (Furlanetto, et. al., 2018).
Conclui-se, portanto, por meio deste breve levantamento de
literatura, a necessidade de discussões e pesquisas sobre o impacto desse
480
momento político atual nas concepções e ações dos professores,
especificamente em relação à educação sexual e no ambiente escolar de
adolescentes do ensino médio. Nessa perspectiva, a ação investigada
nessa seara deverá desvelar os processos políticos que sustentam os
processos educacionais. A ação docente necessita de horizontes
balizados por reflexões científicas que levem a superação de práticas
discriminatórias.
Referências
BRANDÃO, E. R.; LOPES, R. F. F. (2018). “Não é competência do
professor ser sexólogo” O debate público sobre gênero e sexualidade no
Plano Nacional de Educação. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 18
(1), 100-123. https://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2018.1.28265
481
Educacional , 22 (1), 27-35. https://dx.doi.org/10.1590/2175-
35392018011566
482
TÓPICOS SOBRE SEXUALIDADE NA
FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DE BIOLOGIA:
(DES)CONSTRUINDO CONCEITOS
483
TOPICS ON SEXUALITY IN THE CONTINUING EDUCATION
OF BIOLOGY TEACHERS: (DE)CONSTRUCTING CONCEPTS
Enquadramento teórico
A sexualidade é intrínseca aos animais e toma maiores
proporções nos seres humanos por suas características biopsicossociais.
Mesmo neste contexto, a sociedade adquiriu uma postura repressora à
temática tornando a prática do silêncio “civilizatória”, estigmatizando a
conversa sobre o corpo no ambiente social e escolar. O trabalho com a
temática na escola incorre na (des)construção de saberes acerca de si
484
próprio por parte dos alunos dando-os ferramentas para expressão de
suas essências e cuidados com seus corpos.
São diversos os obstáculos da conversa sobre sexualidade no
ambiente escolar e entre eles destaca-se nos discursos docentes a
ausência de formação para discuti-la, culminando em uma sensação de
insegurança para o tratamento do assunto pelos professores. Este cenário
culminou, nos últimos anos, na criação de componentes curriculares para
esta formação em graduações e pós-graduações, que agora contam com
recursos tecnológicos que permitem a superação de algumas barreiras
físicas pela Educação a Distância (EaD), possibilitando novos espaços
para o trabalho com esta temática e a formação destes docentes.
A consciência da necessidade de trabalhar estes conceitos na
educação básica é de suma importância para o ensino de biologia, uma
vez que a sexualidade é inerente aos seres humanos e relaciona-se, entre
outras vertentes, intimamente com a saúde. Sua abordagem no ambiente
escolar promove um espaço para a reflexão docente e discente, ao
primeiro, reflexões acerca de estratégias metodológicas para ensino de
sexualidade e saúde corroborando para a quebra da cultura do silêncio o
que constitui uma ajuda pedagógica empática baseada no respeito a
diversidade, e para os alunos, reflexões que corroborem para o
conhecimento de si próprios, seus corpos e cuidados para estes.
Este trabalho objetivou analisar os principais conceitos sobre o
tema elencados para o trabalho escolar na educação básica (EB) por
professores em formação continuada para o ensino de Biologia.
485
profissionais da saúde para falaram “do assunto” nas escolas
(OLIVEIRA; FARIA, 2011). Verifica-se, portanto, que a abordagem do
tema na escola restringe-se muitas vezes aos cuidados a saúde física,
sendo pouco abrangidos aspectos sociais, psicológicos e legais. Mediante
essa realidade e comportamentos nota-se uma forte influência religiosa,
cultural, de crendices e valores socialmente construídos apoiados na
heterossexualidade, permeando as noções de sexualidade das pessoas e
seus grupos (OLIVEIRA; FARIA, 2011; SOUZA, 2010).
Para esta sociedade é inescusável a necessidade de corpos
enquadrados nas normas convencionais, estereotipados e com lugares
bem definidos para homens e mulheres, mais uma vez respaldados por
processos de doutrinação, civilizatórios e “educativos” (DIAS et al.,
2015). Nesta perspectiva convém resgatar as relações de poder,
dominação e desigualdade envolvidas que, atreladas aos demais fatores
influenciadores supracitados, atuam como silenciadores.
Segundo Oliveira e Batalha (2017) é crucial perceber e entender
que as imposições dos gêneros socialmente e culturalmente construídas
culminam na desigualdade de poderes, sendo assim, concedem
autoridade a determinadas pessoas, e essa é sempre determinada pelo
sexo biológico. Welter e Grossi (2018) corroboram com os autores,
afirmando ainda que essas divergências, muitas vezes, são meios de
viabilizar privilégios e camuflar preconceitos e discriminações. Ainda,
os autores reconhecem as diferenças de gênero como reprodutoras da
desigualdade e meio para sustentar a dominação masculina existente.
Nicolino e Paraíso (2017) mencionam a sexualidade como questão
política que deve ser analisada enquanto histórica e sociológica.
No trabalho de Almeida Neto (2003) intitulado como “Um olhar
sobre a violência contra homossexuais no Brasil”, o autor considerou os
avanços conseguidos a partir da década de 60, no que diz respeito a
cidadania e igualdade de direitos, bem como a elevação nas pesquisas e
estudos acadêmicos sobre a temática, concluindo que, atualmente a
“cultura heteronormativa” ainda se sobressai e, juntamente dela, o
preconceito, a violência e a discriminação. Apesar do referido avanço e
486
dos conhecimentos científicos por ele trazidos, muitas pessoas insistem
em utilizar a expressão “opção sexual”, por exemplo, insinuando, mesmo
que indiretamente, a decisão particular e intransferível do indivíduo
acerca de sua sexualidade, excluindo a influência social (CONSUL;
AMORIM; NETO, 2016).
Neste momento, cabe refletir sobre o papel da escola enquanto
instituição social, inserida no contexto social e cultural e que, produz e
reproduz conteúdos e identidades culturais (FERREIRA, 2006;
WELTER; GROSSI, 2018). Oliveira e Faria (2011) concordam,
afirmando o envolvimento da escola com a construção das identidades
de gênero. É inegável a importância do ambiente escolar na promoção
de debates sobre sexualidade, em especial no Ensino Fundamental, onde
os estudantes encaram as maiores mudanças em seus corpos e,
juntamente com essas, grandes dúvidas e inquietações (OLIVEIRA;
FARIA, 2011).
Estas ações promovidas pelas escolas, além das questões já
mencionadas, também contribuem para o desenvolvimento individual
(de autocuidado), bem como para o reconhecimento das diferenças,
questões de igualdade e consciência social e coletiva (DIAS et al., 2015).
São essas medidas que buscam modificar as imposições e
preconceitos sociais, culturais e historicamente enraigados, visando uma
mudança de olhares e percepções. Segundo Consul, Amorim e Neto
(2016), essas questões não podem ser esquecidas, visto que é no espaço
escolar que a diferença deve ser discutida e vivida.
487
Em contrapartida, as novas propostas formativas se opõem ao
modelo supracitado e, baseiam-se em uma formação reflexiva. Esta
fornece subsídios teórico-metodológicos para que o professor a lide com
situações não corriqueiras e também auxilia seu potencial criativo, bem
como lhe prepara para questionamentos aos currículos e garantam,
apesar de tudo, sua liberdade docente dentro do sistema educacional.
Essa perspectiva é fomentada, entre outras situações, pelo estágio
curricular supervisionado que possibilita esse contato, reflexão inicial e,
também a prática docente, independentemente do conteúdo trabalho
(OLIVEIRA; FARIA, 2011).
Ainda que a formação inicial seja completa, trata-se apenas de
uma introdução ao meio docente, sendo necessária uma formação
continuada que agregue conhecimento nas diversas temáticas, em
especial a sexualidade. Para a formação continuada em sexualidade,
deve-se considerar os professores enquanto sujeitos em construção e que
podem ser influenciados por concepções religiosas e morais, podendo
embasar-se apenas em discursos biológicos (GESSER et al., 2012).
Gesser et al. (2012) aponta o quão necessário é o pensar no
processo de formação de professores enquanto espaço para refletir sobre
as políticas educacionais para sexualidade, visto que por meio deste, os
docentes reinterpretam o currículo e suas diretrizes sob um novo olhar,
desta vez reflexivo e incrementado. Os mesmos autores também
propõem uma formação pautada na perspectiva étnico-política da
sexualidade, ou seja, este trabalho deve viabilizar a construção de formas
intensificadas de agir, pensar e refletir acerca da sexualidade, não
permitindo que as determinações religiosas, políticas, culturais, morais,
sociais e educacionais se sobressaiam.
Pensando em formação docente, é importante analisar o contexto
em que os educadores estão inseridos, pois, é nítida a resistência ainda
enfrentada na atualidade, seja ela política, religiosa ou cultural. Oliveira
e Batalha (2017) relembram a tentativa de censura aos professores
através do projeto “Escola sem partido” (Projeto de Lei 193/2016) que
prevê a neutralidade dos professores quanto a problematização e
488
instigação da criticidade, encarregando-os somente de reproduzirem
conteúdos meramente conceituais, semelhante ao modelo inicial de
formação mencionado no início do texto. Por esse e outros fatos, o
caráter reflexivo e crítico das formações é enormemente relevante, uma
vez que perante situações como esta, cabe aos professores resistirem e
lutarem por uma educação emancipatória e de qualidade.
É, também, importante estar ciente dos documentos que visam a
manutenção da saúde bem como dos direitos humanos, estes respaldam
a atuação profissional no campo da sexualidade nas escolas, dentre eles
Gesser et al. (2012) cita, por exemplo, os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), que é considerado um marco que legitimou a
discussão da sexualidade nas escolas a partir de 1998, sugerindo a
abordagem como tema transversal.
Método
O presente estudo foi desenvolvido seguindo os preceitos da
pesquisa qualitativa onde o foco é a interpretação do contexto observado,
tendo seu interesse voltado principalmente aos significados de um
processo investigativo, não meramente seus resultados (OLIVEIRA,
2008).
Os sujeitos deste estudo foram alunos do curso de pós-graduação
(lato sensu) em ensino de Biologia na modalidade de educação a
distância (EaD) ofertado por uma instituição de ensino superior do
interior do estado do Paraná.
O curso é gratuito, voltado a profissionais da licenciatura, com
ênfase em professores de Biologia e Ciências que buscam novas
formações capazes de contribuir para suas práticas educativas. Ele atende
8 polos no estado do Paraná, possuindo duração de 24 meses (450 horas).
A carga horária é dividida em 4 módulos, onde no último módulo há uma
disciplina intitulada “Tópicos Especiais para Ensino de Educação Sexual
para Educação Básica” com duração de 30 horas. Dentro desta disciplina
foram aplicadas 4 atividades avaliativas que utilizavam vídeos e filmes
para promover discussões e elaborações didático-pedagógicas pelos pós-
489
graduandos para a aplicação em situações escolares com o objetivo maior
de fomentar a discussão sobre o assunto neste ambiente.
Para a investigação acerca dos conceitos que os docentes
creditaram importância para a abordagem no ensino básico foram
analisadas as produções de 52 alunos matriculados em um dos polos do
curso de pós-graduação. A produção escolhida foi resultado de uma das
atividades avaliativas, na qual, a partir de uma lista de vídeos pré-
definidos pelo professor responsável pela disciplina, os alunos deveriam
elaborar uma intervenção em educação para as sexualidades e gêneros,
contendo: a) público alvo, b) objetivos, c) conceitos trabalhados, d)
contextos dos vídeos e e) situação problema. Assim, foi analisado apenas
o item “c” de cada produção individual.
Na atividade foram disponibilizados 4 vídeos, encontrados na
plataforma digital YouTube, os quais tratavam dos seguintes assuntos:
490
Gráfico 1 – Relação das escolhas dos vídeos pelos pós-graduandos.
20 19
17
Número de escolhas
15
10
7
6
5 3
0
1 2 3 4 Outros
Vídeos
491
[...] Como as mulheres, desde as sociedades mais
antigas, sempre foram marginalizadas e até mesmo
tratadas como aberração ou como um ser
incompleto, torna-se evidente e necessário ir além
de apenas nomear as grandes, mas sim a história de
muitas que permanecem invisíveis à história da
humanidade.
492
como um instrumento de cunho pedagógico para discussões acerca de
condições sociais, políticas, econômicas e culturais (DORIGONI;
SILVA, 2007). Ensinar sobre o uso da mídia no cotidiano é também
muito importante, pois os alunos convivem com inúmeros meios de
comunicação nos mais diversos ambientes.
Agora dentro do ambiente escolar, especificamente tratando da
disciplina de biologia é crucial que os docentes superem o tratamento do
conteúdo em sua forma meramente anátomo-fisiológica, proporcionando
aos alunos a uma posição crítica e reflexiva acerca dos temas
relacionados a sexualidade que sim, tangenciam as bases biológicas,
porém não são restritos somente a estes (RODRIGUES-JÚNIOR, 2013).
Em suas propostas os alunos do curso de pós-graduação
analisados demonstraram intervenções sobre o tema sexualidade de
forma transdisciplinares, não se restringindo a conteúdos meramente
biológicos, embora estes estejam inseridos nas discussões como quando,
por exemplo, tratam de mudanças na adolescência e aspectos biológicos
do sexo.
Em relação ao vídeo 2 sobre a temática “Terapias de reversão
sexual e suas repercussões (“cura gay”)” foram escolhidos os conceitos
de legislações, decisões judiciais e suas implicações, homossexualidade
e outras sexualidades (distinguindo-as de IST’s e psicopatias
[patologias]). Conceitos de orientação sexual egodistônica, relações
homoafetivas, padrões sociais de gêneros e sexualidades, incluindo
machismo e preconceito, valorizando o respeito, valores, espiritualidade,
profissionalismo e empatia. Os conceitos de normalidade e
anormalidade, comunicação familiar e os impactos do tratamento
psicológico destas terapias também foram mencionados.
É importante elencar discussões na escola para que os alunos
conheçam mais uns aos outros buscando descontruir estereótipos que
muitas vezes são aceitos por serem discursos transmitidos e aceitos sem,
de fato, conhecer o outro e sua realidade.
Refletir com os alunos sobre orientações sexuais na escola e
ainda questões relacionadas a gêneros é de extrema importância, pois há
493
uma diversidade de essências neste ambiente. Souza (2010) ressalta que
um passo importante seria a discussão sobre a situação dos indivíduos
que não seguem os padrões sociais impostos, refletindo sobre políticas
públicas, sua aplicação e sua “real eficácia”, o que fica claro quando o
autor discorre sobre países com políticas públicas para a aceitação de
indivíduos homoafetivos: “A primeira consideração a ser feita é de que
políticas de aceitação e tolerância a homossexualidade não indicam
necessariamente que em tais países os homossexuais sejam tolerados e
aceitos.” (SOUZA, 2010, p. 37).
Neste contexto, os alunos de pós-graduação elencaram conceitos
para discussão no ambiente escolar capazes de proporcionar uma
aproximação e maior entendimento da situação em que o outro vive,
explorando a despatologização das sexualidades. Elas não são infecções
sexualmente transmissíveis ou psicopatias, as “terapias do armário”
(“cura gay”) são práticas da sociedade conservadora-binária-
heteronormativa e devem ser questionadas em relação a suas bases
ideológicas e os modelos de identidades impostos (LOURO, 2000;
SOUZA, 2010). Souza (2010, p. 44) afirma que: “[...] a desconstrução
da pedagogia heteronormativa possibilita o rearranjo dos discursos sobre
sexualidade, tornando-os plurais, flexíveis e menos normativos.”
Sobre a temática 3 foram elencados conceitos de gênero e
identidade, cultura, conduta, família, religião, política e questões acerca
do machismo.
Neste vídeo retomaram-se diversos conceitos trabalhados
anteriormente, retratando mais uma vez o desejo docente pela crítica ao
modelo educacional tradicional separatista em relação aos sexos, que
impõe atividades, ações e comportamentos historicamente transmitidos
pelas construções sociais históricas e culturais, naturalizando os “papeis
de gênero” culminando na ideia de imutabilidade desta situação devido
as raízes históricas e persistentes (SILVINO; HENRIQUE, 2017).
Ressalta-se a importância da política neste processo que é também
utilizada por segmentos sociais conservadoristas como porta de entrada
494
para o controle do sistema educacional visando perpassar seus ideais para
o mesmo.
Em relação a temática 4 foram elencados conceitos acerca de
comportamentos socialmente impostos e as reais, e diferentes formas de
expressão, conceitos e preconceitos, o gênero sob a ótica do que é
“normal” e “anormal”, a essência do indivíduo e o papel da família e
cultura. Novamente, a discussão destes conceitos é fundamental e pode
promover a desconstrução de ideologias nocivas e que tendem a exilar
determinados grupos (OLIVEIRA; BATALHA, 2017).
Para Ew e colaboradores (2017, p. 52):
495
sobre as possibilidades de vivência da(s) sexualidade(s) e sobre o
respeito as diferenças, em relação aos outros e a si mesmos (EW et al.,
2017).
Considerações finais
Em contrapartida a sensação de despreparo dos docentes para a
discussão sobre sexualidade no ambiente escolar têm sido criados
componentes curriculares que previssem uma formação que capacitasse
os professores a entender e abordar esta temática e também os motivos
pelos quais a educação sexual e para sexualidades é imperativa na
formação de indivíduos críticos, conscientes e empáticos.
Os componentes curriculares que abordam este ensino ainda são
poucos, muitas instituições de ensino superior enfrentam inúmeros
obstáculos para que estes componentes entrem em vigência, muitos deles
relacionados ao preconceito e a postura silenciadora sobre “aquele
assunto”. Ainda que existam cursos na modalidade EaD, como o de pós-
graduação citado nesta pesquisa, que trabalham o exercício da docência
para sexualidades, estes encontram-se restritos a algumas regiões do
país, sendo necessário que cada vez mais os currículos sejam criados e
repensados visando à formação dos alunos para além dos conhecimentos
teóricos, mas para que eles sejam cada vez mais capacitados para
entender o mundo que os cerca e o seu próprio mundo (seus corpos).
A partir dos conceitos elencados pelos estudantes de pós-
graduação foi possível identificar a importância do uso de vídeos (e
mídias em geral) na elaboração de propostas didáticas sobre o tema
sexualidade e da capacitação de professores que atuam no ensino básico,
promovendo espaços reflexivos sobre a temática.
As reflexões incorporadas pelos docentes em suas propostas de
intervenções são cruciais para o ensino de sexualidade, contribuindo para
a quebra do silêncio civilizatório fornecendo aportes para que os alunos
da educação básica reflitam sobre a sociedade que vivem e sobre si
próprios de forma crítica, promovendo um entendimento, aceitação e
496
reflexão sobre questões acerca das diversas manifestações da
sexualidade em seus mais diversos âmbitos.
Conclui-se que espaços de formação e discussão para docentes e
discentes são necessários para capacitar ambos a discussão sobre
sexualidade.
Referências
ALMEIDA-NETO, L. M. Um olhar sobre a violência contra
homossexuais no Brasil. Revista Gênero, v. 4, n. 1, 2012.
497
possível. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 11, n. 2, p. 51-60,
Jul./Dez. 2017.
498
PESSÔA, L. C.; PEREIRA, R.; TOLEDO, R. Ensinar gênero e
sexualidade na escola: desafios para a formação de professores. Revista
de Estudos Aplicados em Educação, v. 2, n. 3, 2017.
499
UM OLHAR SOBRE A SEXUALIDADE
INFANTIL: A CONCEPÇÃO DE DIRETORAS
ESCOLARES DO ENSINO FUNDAMENTAL I –
ANOS INICIAIS
500
Keywords: Child Sexuality, School Direction and Conception
Introdução
A Cultura Escolar, as relações que se estabelecem no que diz
respeito à sexualidade e ao gênero, bem como a necessidade de se pensar
em uma educação sexual, são algumas reflexões que se fazem
necessárias no cotidiano escolar. Não raro, estas são algumas queixas,
dentre muitas outras, do corpo docente da Rede Municipal de Educação
e Cultura em uma pequena cidade do interior paulista, em que são
realizadas as devidas orientações para que tais profissionais possam
assim repensar suas práticas, atuações e relações entre professor,
instituição e aluno no cotidiano da escola. Assim, os conteúdos
manifestos, os conteúdos latentes da instituição e da formação grupal que
nela se inserem são fontes de estudo e intervenção e, tal como preconizou
Bleger (1984) a exteriorização da subjetividade e a reflexão dos
processos, que muitas vezes encontram-se inconscientes, são ações
imperativas na tentativa de proporcionar a psicohigiene.
Certas de que as instituições escolares apresentam dificuldades
em abordar o tema da sexualidade, a necessidade de reflexões e
discussões se mostra evidente e cada vez mais urgente. É sabido que esse
tema é polêmico e que traz à tona uma fragilidade, além da instituição,
mas também dos próprios funcionários que ali trabalham – e aqui incluo
o professor, o diretor e também os funcionários em geral. É sabido
também que a figura da direção no contexto escolar representa uma
importante função que, dentre outras, a gestão do corpo docente, a
mediação de conflitos entre pais, alunos e professores, bem como a
integração da escola com a comunidade são os destaques que nos cabe
neste presente momento. Com isso, a concepção sobre a sexualidade
infantil apresentada por essas diretoras representam um aspecto de
extrema valia, uma vez que, na atribuição de suas funções diárias, tais
concepções são repassadas ao corpo docente, aos pais, aos alunos e aos
funcionários. É interessante lembrar que estas concepções são
501
transmitidas, além da fala expressa verbalmente, mas, igualmente e não
menos importante, através de comportamentos não verbais, tais como
gestos, atitudes, expressões faciais, entre outros.
Corroborando com esta ideia, Bleger (1984) coloca que os
grupos e as instituições são construídos à base das relações inter e
intrapessoais e que nestas relações encontram-se os conteúdos, tanto
manifestos, quanto os conteúdos latentes. Este mesmo autor postula que
a vida dos seres humanos transcorre em instituições e:
Fundamentação teórica
Para abordar sobre o tema da sexualidade infantil se faz
necessário discorrer brevemente sobre o conceito de criança e de infância
historicamente.
502
O tema infância é encontrado, nos achados históricos,
relativamente recente. Essas referências tardias tornam a infância quase
que invisível e, quando aparece “[...] é como memória infiel ou como
legatária de uma tradição, de um poder ou de bens a prosseguir como
herança familiar” (SARMENTO, 2007, pg. 27). Esses mesmos autores,
porém, descrevem uma menção à criança, encontrada nos registros
históricos, referindo-se à imagem sagrada de um menino-Deus. Contudo,
essa descrição contém características de uma pessoa adulta, isto é,
descrevem uma criança mais sábia que os sábios, com presença de barba
e uma cabeça relativamente grande quando comparado ao corpo. Assim,
a criança e a infância, propriamente dita, não encontram lugar na História
da Humanidade, já que são referidas sempre com algo relacionado à
incompletude ou um adulto em miniatura. Nesse sentido, Sarmento
(2007) usa a expressão ‘ser em devir’ referindo-se às crianças e isso
denota que as particularidades e características próprias desta fase não
eram reconhecidas.
A esse respeito, Ariès (1981) já havia afirmado a inexistência
do ‘sentimento da infância’, referindo-se à ideia e a imagem de infância
marginalizada durante a maior parte da História. Contudo, é preciso
deixar claro que a referência que este autor faz da inexistência do
sentimento da infância, não significa que as crianças eram
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas.
503
Essa afeição pode ser observada nos escritos do referido autor
ao mencionar uma expressão utilizada no século XVII, “A pequena não
contava porque podia desaparecer. ‘Perdi dois ou três filhos pequenos,
não sem tristeza, mas sem desespero’”. (ARIÈS, 1981, p. 99-100 grifo
nosso). O número da mortalidade infantil era muito grande e se fez um
grande vilão naquela época. Esse mesmo autor também descreve a
indiscriminação das crianças em relação aos adultos e que poderia ser
vista sob diversas atividades sociais: como por exemplo, os jogos e as
brincadeiras, os trajes, as profissões e também sob a sexualidade.
Mais especificamente sobre o aspecto da sexualidade, que é o
tema deste estudo, Ariès (1981, p. 77) descreve essa indiscriminação no
século XVI:
504
A autora cita que, embora tenham se intensificado e expandido os
estudos nessa área, são raros ainda os que relacionam o gênero e a
infância. E ela contribui, ao preencher, um pouco, esse vazio.
Já no século XIV, segundo Ariès (1981), uma tendência já
começa e ser expressa através da arte, na iconografia e na religião e assim
é possível verificar certas características e particularidades com um
sentido poético e familiar ao se referir às crianças. Isto denuncia um novo
sentimento que, como conseqüências, as mudanças na atitude, nos trajes
e nas ‘paparicações’ pôde ser perceptível.
Atualmente, a infância e a criança se apropriaram de um lugar
único, sendo compreendida com suas características e particularidades
próprias do desenvolvimento humano.
505
tratamentos clínicos em seu consultório e observando transtornos
psicológicos de seus pacientes já adultos, postulou a existência de uma
sexualidade na infância.
Inicialmente, para o referido autor, a sexualidade infantil era
concebida, como um instinto e as manifestações sexuais eram advindas
de seduções do meio externo e os transtornos psíquicos eram decorrentes
deste episódio. Em 1897, Freud abandona essa Teoria da Sedução e
desenvolve o conceito de pulsão, afirmando a existência de zonas
erógenas nas crianças desde muito pequenas, independentemente de
estimulações externas e seduções. Já em 1905, “Os Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade” foi o título utilizado para expor sobre esse tema
e chocou a sociedade da época que possuía uma ideia de não existência
de uma sexualidade nesta faixa etária. Nesse sentido, de acordo com o
fundador da psicanálise, Freud (1905/2016, p. 77-78) descreve que a
sexualidade está presente em todos os seres humanos desde o nascimento
e que sua existência é de extrema importância na Constituição do
Psiquismo:
506
excitação sexual como ‘uma segunda zona erógena,
ainda que de menor valor.
507
escolar parece amedrontar e assombrar todos aqueles que trabalham na
instituição, permeando assim toda uma concepção intrínseca de cada um,
bem como as fragilidades e processos inconscientes contidos na
instituição. Nesse sentido, a indagação de Freud (1907/1976, p. 74) é
pertinente para esta nossa reflexão:
Método
O presente estudo caracteriza-se por ser uma Pesquisa Descritiva
e Exploratória que, de acordo com Gil (1991), suas funções são
descritivas e exploratórias, o que nos permite familiarizar com o assunto,
aprimorar a ideia e, no final, levantar novas hipóteses e sugerir novas
investigações.
508
A forma de sistematização foi qualitativa, sendo que a
observação decorre da qualidade do fenômeno e não necessariamente da
quantidade em que ocorre. Assim, um estudo qualitativo explora aquilo
que é subjetivo e pessoal e, segundo Gephart (2004), esse tipo de estudo
fornece uma narrativa da percepção dos indivíduos investigados, além
de enfatizar detalhes institucionais, permitindo assim uma descrição dos
processos.
• PARTICIPANTES
Participaram deste estudo todas as diretoras da Rede Municipal
• INSTRUMENTO
Foram realizadas entrevistas seguindo-se um “Roteiro de
Temas”, elaborado especialmente para o presente estudo, contendo os
seguintes temas:
✓ Concepção de sexualidade infantil
509
✓ Abordagem em situações envolvendo a sexualidade
infantil
As entrevistas foram feitas individualmente e conforme
menciona Bleger (1980), a entrevista é uma técnica de investigação
científica e, seguindo a técnica de entrevistas semi-estruturada, OCampo
e Arzeno (1979) descrevem sobre a flexibilidade do entrevistador e a
possibilidade de intervenções, uma vez que permite assinalar possíveis
lacunas, bloqueios, paralisações, distorções, controvérsias e também
esclarecer alguns pontos obscuros.
• LOCAL / AMBIENTE
As entrevistas com as diretoras para coleta de dados foram
realizadas no ambiente escolar da Rede Municipal de Ensino, em salas
apropriadas, privativas, sem interferência de pessoas ou outras
estimulações que pudessem interferir na fala e raciocínio das
entrevistadas.
• PROCEDIMENTO
As diretoras foram contatadas e, de acordo com a disponibilidade
de cada uma, foi realizado o agendamento de horário. Já no contato
pessoal, foi explicado o propósito do referido trabalho acadêmico e
também sobre a legislação brasileira, suas garantias de respeito e
privacidade (conforme Resoluções 466 e 510). Além disso, o “Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE” foi assinado, conforme
legislação brasileira – Ministério da Saúde do Brasil (BRASIL, 2012)
Após a realização das entrevistas com as diretoras escolares e a
transcrição das mesmas, o procedimento de análise foi feito por análise
de conteúdo, e distribuído em categorias e subcategorias de análise,
conforme preconiza Bardin (2009).
Resultados e discussão
510
Após a realização das entrevistas realizadas com as diretoras das
cinco Unidades Escolares de Ensino Fundamental I – Anos Iniciais, o
conteúdo foi analisado e categorizado conforme os quadros abaixo:
511
Quadro III – Categoria: Conduta frente as Manifestações Sexuais Infantis
512
O tema sobre gênero é uma temática que ganhou espaço nas
questões políticas e sociais e, neste momento, vale a pena uma breve
conceituação descrita por Louro (1997, p. 22):
513
A palavra “natural” é citada pelas participantes, levando-nos a
pensar na definição da sexualidade posta por Laplanche e Pontalis (2001,
p. 476):
Na experiência e na teoria psicanalítica,
‘sexualidade’ não designa apenas as atividades e o
prazer que dependem do funcionamento do
aparelho genital, mas toda uma série de excitações
e de atividades presentes desde a infância que
proporciona um prazer irredutível à satisfação de
uma necessidade fisiológica fundamental
(respiração, fome, função de excreção, etc.), e que
se encontram a título de componentes na chamada
forma normal do amor sexual.
514
Além disso, é tido como patológico quando há uma manifestação
sexual nas crianças “a gente tira ela de brincar com os meninos...”
(participante 1) e “foi chamada a psicóloga” (participantes 2 e 3).
A concepção de uma sexualidade fruto do desenvolvimento
biológico e natural é também compreendida, referindo-se como uma
“curiosidade natural”, “descoberta da sexualidade” (ambas falas da
participante 1); “ela se despertando pra sexualidade” (participante 4). É
necessário, no entanto, considerar o papel do ambiente externo para o
desenvolvimento psicosexual e não conceber tais manifestações fruto de
um aspecto puro e exclusivamente biológico. Outro ponto interessante
descrito nesta concepção naturalista refere-se “que ela vai
amadurecendo” (participante 3) e “acho que eles não são maduros o
suficiente pra entender aquilo que você tá falando” (participante 4). Esta
concepção nos faz remeter à história social da criança e da infância
descrita por Ariès (1981) que, a partir de documentos históricos, chama
a atenção para a inexistência do “sentimento da infância” e sua
marginalização; podendo ser vista sobre diversas atividades sociais:
como por exemplo, os jogos e as brincadeiras, os trajes, as profissões e
também sob a sexualidade. Sarmento (2007) utiliza o termo
“invisibilidade”, referindo-se que a criança e a infância não encontram
lugar na História da Humanidade, já que são referidas sempre com algo
relacionado à incompletude.
Respostas que expressam algumas ideias como interacionistas –
concebendo a sexualidade como influência do meio externo e do
biológico conjuntamente – também são fornecidas. Contudo, pelo
discurso da entrevista em si, é possível perceber que a frase não
representa sua concepção a cerca desse tema. No entanto, continuamos a
chamar de visão interacionista diante de algumas palavras isoladas, como
por exemplo, ajuda a despertar e a maioria do meio (grifos nossos).
Já na categoria “Conduta Escolar”, todas as cinco diretoras citam
que há uma abordagem com as crianças, seja de maneira punitiva ou
orientadora e explicativa.“a gente tira ela de brincar com os
meninos”(participante 1), “foi passada algumas informações pra ela...”
515
(participante 2). No entanto, nem todas expressem essa conduta de forma
muito explícita e o discurso nos remete a pensar que as crianças são
ouvidas, ou pelo menos observadas e percebidas individualmente diante
de um contexto coletivo, neste caso, a escola.
Interessante observar que não há contradições nos discursos das
entrevistas. Ou seja, a concepção tida pelas diretoras – mesmo de
maneira distorcida ou até mesmo equivocada – é condizente com as
condutas adotadas no cotidiano escolar. Exemplificamos: as respostas da
participante 1, que atribui o desenvolvimento sexual com uma visão
naturalista, os pais são abordados no intuito de orientar os filhos. As
participantes 2 e 4 que atribui o desenvolvimento sexual com uma visão
ambientalista, os pais são chamados no intuito de questionar o que está
acontecendo em casa. Vale a pena pensar que suas condutas também são
terceirizadas para conduzir as situações escolares, neste caso, chamando
a psicóloga e/ou seguindo orientações especializadas. Já a participante 3,
a conduta se pauta na orientação aos alunos e os pais não são chamados
para esta finalidade. E por fim, a participante 5 diz inicialmente que não
há situações envolvendo a sexualidade no dia a dia da escola, mas ao
longo da entrevista assume, não de uma maneira explícita, que a
sexualidade não está presente nas crianças e, com intervenções, acredita
em uma visão ambientalista da sexualidade infantil. Esta última
participante não apresenta a conduta de chamar a família para abordar
sobre este tema.
Considerações finais
A partir do presente estudo, conclui-se que há uma variedade e
diversidade de respostas no que se refere à compreensão e abordagem
sobre a sexualidade infantil e alguns conceitos (o gênero, a opção sexual,
as manifestações sexuais e os sentimentos tidos pelas crianças) são
traduzidos como sinônimos, o que evidencia uma dificuldade de
compreensão e/ou compreensão distorcida acerca da sexualidade e
desenvolvimento sexual infantil. A falta de entendimento e formação
516
nesse tema é outro fator presente em todos os sujeitos participantes,
contribuindo diretamente para estas distorções.
As concepções são baseadas, em sua grande maioria, em uma
visão ambientalista a respeito da sexualidade infantil, o que significa que
o ambiente externo é inteiramente responsável pelo surgimento e
manifestações sexuais. Muito além disso, esta concepção apresentada
pelas diretoras, que permanecem presas nas questões puramente sociais
e culturais, excluindo os fatores biológicos e desenvolvimentistas, não as
permitem refletir sobre as necessárias orientações às crianças no
cotidiano da escola, culpabilizando somente os pais, a violência e a
sociedade como a única vilã para o desenvolvimento da sexualidade em
si. Desta forma, as condutas frente ao comportamento sexual das crianças
nas instituições são centradas principalmente na punição, o que não
contribui para a formação do indivíduo de maneira integral. No entanto,
o discurso nos remete a pensar que as crianças são ouvidas, ou pelo
menos observadas e percebidas individualmente diante de um contexto
coletivo, neste caso, a escola.
Assim, é importante conceber que a sexualidade está presente
em todos os seres humanos desde o nascimento. Para tal, a(in)formação
se faz necessária, visando a possibilidade de discussões sobre a
sexualidade infantil no ambiente escolar, tendo em vista que o tema traz
à tona dificuldades institucionais, pessoais, sociais e culturais. De fato,
falar de educação sexual perpassa por uma mudança de ideologia, valores
e crenças e a escola como instituição responsável pela formação do
indivíduo para o convívio em sociedade deve refletir e (re)conhecer as
dimensões que a sexualidade infantil perpassa.
Referências
ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro:
LTC, 1981
517
BLEGER, J. Psico-higiene e Psicologia Institucional. Porto Alegre,
RS: Artes Médicas. 1984
518
GIL, A. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6. ed. São Paulo:
Atlas,1991.
519
UM RECORTE DA CAMPANHA “FAÇA
BONITO 2018”: O PAPEL DO EDUCADOR NO
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL
INFANTO-JUVENIL
520
A CUT OF THE "MAKE BEAUTIFUL 2018" CAMPAIGN:
THE ROLE OF THE EDUCATOR IN COPING WITH SEXUAL
VIOLENCE AGAINST CHILDREN AND YOUTH.
Introdução
Atualmente as ocorrências de violência sexual infanto-juvenil
têm preocupado não apenas os pais, mas também a comunidade escolar
e a sociedade de um modo geral. Constantemente a mídia noticia casos
de violência sexual, demonstrando que essa prática contra crianças e
adolescentes é uma realidade que não podemos nos abster.
Pensando no contexto educacional, o professor é apontado como
um profissional que pode auxiliar no diagnóstico e, sobretudo na
521
prevenção, sendo esta ação muito importante, porquanto visa atuar para
a não incidência desta violência.
A ocorrência desta agressão com mais veemência é devido a
desinformação de crianças e adolescentes acerca de seus corpos.
Conforme acenam Spaziani e Maia (2015), a ingenuidade e a
desinformação das crianças que alimentam a sua condição de
vulnerabilidade e a desproteção ante a violência sexual.
A informação sobre o corpo e a sexualidade torna a criança
menos vulnerável à violência sexual, porquanto desenvolve a
competência e habilidade para buscar auxílio caso esteja sofrendo este
tipo de agressão, ou encontre-se em situação de risco (MEYER, 2017).
Para Leão (2009) é preciso possibilitar que ela tenha acesso a
informações de sexualidade para que possa aprender a discriminar
incursões apropriadas ou não a seu corpo por outras pessoas,
compreendendo que tem direito sobre seu corpo e que apresenta, dentro
disso, o direito de negar as tentativas de explorações ou incursões a ele.
Landini (2011, p. 96) enfatiza “para falar sobre prevenção é necessário
falar justamente sobre este tema: sexualidade”.
A educação sexual é uma ferramenta de prevenção primária da
violência sexual, sendo a forma de desenvolver conceitos relevantes de
proteção, tornando a criança menos vulnerável ao abuso e a todas as
formas de exposição indevida de seu corpo (ABRAPIA, 2002).
Crianças e adolescentes que não tem acesso à educação sexual estão
sujeitos a receber informações incorretas, distorcidas e enviesadas por
parte dos meios de comunicação e de seus pares, enquanto que as que
têm acesso são menos suscetíveis à violência sexual e aprendem que seu
corpo lhes pertence, como cuidar dele e como solicitar ajuda quando
necessitam (SANTOS, 2011). Assim, a educação sexual é um fator de
proteção no que diz respeito à prevenção da violência sexual, sendo
preciso, para tanto, professores informados para saberem implementá-la.
A prevenção da violência sexual envolve educar para a sexualidade
ensinando a criança desde tenra idade a discernir um ato de violência,
bem como, se auto proteger, assegurando o seu direito de dizer não as
522
investidas sexuais do perpetuador da violência e a questionar as relações
sociais de poder (MEYER, 2017).
A aquisição de conhecimentos adequados sobre seu corpo contribui
para que crianças e adolescentes possam ter mais segurança para dizer
não às situações constrangedoras suspeitas ou que geram desconforto a
elas (SANTOS, 2011).
Cabe explicar que a educação sexual consiste no processo
intencional, sistemático, com tempo e objetivos traçados, assim como
devidamente planejado, visando a formação específica em sexualidade
(LEÃO, 2009). Todavia, esta educação acende várias manifestações
contrárias por vários setores da sociedade, e o mesmo pode ser dito
acerca do contexto educacional. Não se percebe a relevância da educação
sexual enquanto instrumento de prevenção à violência sexual.
Método
Pensando nisso, e tendo como base a Campanha Faça bonito
2018, a prefeitura municipal de Bauru, cidade localizada no interior do
estado de São Paulo, disponibilizou a comunidade uma série de eventos
voltados ao tema, no intuito de sensibilizar e informar a população. Neste
artigo, será relatada a palestra ocorrida no teatro municipal nomeada: “O
papel do educador no enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil”.
Assim, esta ação social e pedagógica objetivou oferecer uma
atividade direcionada aos professores que atuam nas unidades escolares
públicas, tanto municipais quanto estaduais, particulares e também aos
alunos de cursos de Pedagogia, bem como as demais populações
interessadas.
Como ferramenta para o desenvolvimento dos assuntos do
encontro, foram utilizadas explanações e projeção de slides, além do uso
de materiais pedagógicos, fazendo com que os ouvintes se
conscientizassem em relação a prevenção da violência sexual infanto-
juvenil.
Discussões
523
A atividade foi iniciada com uma apresentação de slides de
forma individual de um dos oradores que, inicialmente, tratou da
importância de se abordar a temática da violência sexual infanto-juvenil,
apresentando notícias vinculadas pela mídia escrita, a respeito de casos
de violência registrados em diversas cidades e estados brasileiros.
Alguns dados chamaram a atenção dos presentes, como por
exemplo os dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), que indica
que os casos de abuso sexual envolvem todas as classes sociais, culturas,
etnias e religiões. Outro marcador importante mencionado refere-se que
é bem maior o número de casos de violência sexual do que o número de
casos notificados e que, infelizmente, em nosso país, a cada oito minutos
uma criança é violentada sexualmente.
Percebe-se, desta forma, que infelizmente tem-se muita
violência sexual infanto-juvenil em nosso país, permanecendo velada e
desconhecida do grande público nacional. Concluindo sua participação
no evento, o pesquisador evidenciou a definição de violência sexual,
afirmando que a mesma abrange todo ato, exploração, jogo ou
vitimização de crianças e adolescentes por um adulto, adolescente ou
uma criança mais velha, utilizando-se do poder, da diferença de idade e
de conhecimento sobre o comportamento sexual, visando o prazer e a
gratificação própria.
Expressou-se também sobre as diversas classificações de
violência sexual existentes atualmente. Segundo o palestrante, temos a
violência ocorrida fora do meio familiar, denominada extrafamiliar,
praticada por desconhecido, vizinho, médico ou mesmo algum
conhecido da família.
Já a violência sexual intrafamiliar envolve pessoas próximas
como pai, padrasto, mãe, madrasta, tios, avós, primos, ou seja, pessoas
que aparentam serem “ de total confiança”.
Destacou também a chamada violência institucional que pode
ser praticada por cuidadores das crianças, como por exemplo
professores. É considerada violência sexual institucional quando ela é
524
praticada por pessoas que deveriam cuidar das crianças e transmitir
alguma espécie de auxilio, cuidado ou formação.
O abuso sexual com contato físico envolve algumas ações,
podendo citar: atentado violento ao pudor, estupro (definido como
conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com menor de 14
anos de idade), corrupção (ato libidinoso) além da exploração sexual que
tem por fim o comércio da pratica sexual com crianças e adolescentes.
Após as colocações iniciais, foi feita uma abordagem sobre a
anatomia e fisiologia do sistema reprodutor humano, dando-se ênfase aos
aspectos conceituais e pedagógicos envolvidos com o tema.
Descreveu-se a constituição anatômica do Sistema Reprodutor
Masculino, revelando seus órgãos formadores e sua fisiologia, dando
ênfase aos testículos que são as gônadas masculinas responsáveis pela
produção de gametas e testosterona. Relatou-se também a anatomia da
mulher e deu ênfase ao ciclo menstrual, abordando momentos como
menstruação, ovulação e período pós ovulatório. Ilustrou-se modelos
anatômicos de bonecos sexuados feitos de tecido, que serviram para
demonstrar de forma lúdica a ação pedagógica que pode ser efetuada com
crianças pequenas.
A análise e demonstração de modelos anatômicos visou atingir
o objetivo de demonstrar aos professores aspectos lúdicos que podem ser
usados na análise e discussão do tema junto ao corpo docente e discente
das unidades escolares, pois sabe-se que o estudo de conteúdos ligados à
Sexualidade Humana e a Educação Sexual podem trazer muitas
dificuldades para serem vivenciados e discutidos em sala de aula, uma
vez que existem muitos tabus, inverdades e medos para análise e
discussão em momentos de aprendizagem na sala de aula.
Dando prosseguimento, abordou-se o perfil de quem comete o
ato de violência sexual infanto-juvenil, destacando as seguintes
características:
-pessoas conhecidas pela criança e que de alguma maneira
podem a controlar;
-pessoas que a criança gosta e confia;
525
-sujeitos capazes de persuadir as crianças, convencendo-as a
participar de algum tipo de atividade de cunho sexual.
- pessoas que falam e expõem as crianças a momentos de
recompensas ou de ameaças em troca de seu silencio a segredos.
O tema aliciamento também foi abordado neste momento,
destacando-se sua definição, ou seja, o caminho empregado pelo
abusador sexual para entrar em contato com a criança a fim de prepará-
la para o ato do abuso sexual. Este ato tem forte sedução emocional,
objetivando como fim último alcançar o ato do abuso sexual.
Em sequência, foram expostas algumas consequências e
impactos que a violência ou abuso sexual causam na criança, tais como:
- manifestar comportamento agressivo e ataque de raiva;
- ter pesadelos ou problemas de sono;
- mudanças repentinas de personalidade;
- regressão de comportamentos (exemplo: volta a fazer xixi na
cama);
- demonstrar conhecimento sexual e usar linguagem sexual de
maneira explícita e não compatível com a idade.
- medos inexplicáveis e mudanças de hábitos alimentares.
Nomeou-se essas mudanças de comportamento apresentadas em
decorrência do abuso ou violência sexual infanto-juvenil como
indicadores e os dividiu em corporais e/ou comportamentais. Explicou-
se que essas mudanças nem sempre são ocasionadas por violência sexual,
mas também relaciona-se a outros tipos de traumas.
Para concluir a ação os oradores forneceram ao púbico os
procedimentos a serem seguidos pelos familiares, amigos e educadores
com relação à criança que sofreu violência e abuso sexual, ou até mesmo
quando existe a desconfiança de que possa haver algum tipo de abuso.
Pode-se citar como ação:
- ouvir o que a criança tem a dizer, permitindo com que ela possa
falar do ocorrido ao seu tempo, sem apressá-la ou interrompê-la.
- procurar não ampliar a angústia da criança, evitando
demonstrar espanto, surpresa ou revolta quando ela iniciar seu relato;
526
- Demonstrar que o fato ocorrido não foi causado pela criança,
retirando dela assim o fardo de se sentir culpada, ou até mesmo
responsável pelo abuso ocorrido.
Para finalizar, relatou-se as três formas de prevenção da
violência sexual que, segundo Gauderer (1993) são: Prevenção primária,
secundária e terciária.
A prevenção primária é realizada através da educação e
conscientização do que se trata o abuso sexual infanto-juvenil,
repertoriando a criança de conceitos que podem evitar um futuro abuso,
ou até mesmo dando suporte para identificar a tentativa do mesmo e
denunciá-lo para algum responsável, conforme corrobora o Guia
Escolar: rede de proteção à infância (2011):
527
A prevenção terciária tem como meta o acompanha
mento integral de crianças e adolescentes em
situação de violência sexual e do autor de violência
sexual. Diante do fato consumado, deve-se
trabalhar para que o ato não se repita (GUIA
ESCOLAR: REDE DE PORTEÇÂO A
INFANCIA, 2011 , p.19 )
528
Após a apresentação e desenvolvimento deste último tema os
palestrantes se dirigiram aos participantes e momentos de perguntas
foram acontecendo.
Estes questionamentos proporcionaram importantes momentos
de esclarecimento das dúvidas por parte dos professores e participantes.
Inúmeros aspectos foram analisados e percebeu-se que o assunto
foi importante para esclarecer dúvidas quanto a presença da violência
sexual na vida dos discentes e como deve ser o tratamento do tema em
sala de aula.
Percebeu-se que os professores saíram motivados para tratar do
assunto em salas de aula de suas respectivas Unidades Escolares.
Considerações finais
Notou-se que os resultados obtidos foram satisfatórios, pois
tanto no desenvolvimento da palestra quanto no momento de abertura
para análise e discussão de perguntas e dúvidas, houve interesse e
participação da comunidade presente.
Questionamentos sobre o sistema reprodutor humano; a ação do
violador/abusador sobre a criança e adolescente; os traumas e
consequências nefastas geradas, e de que maneira ocorre a aproximação
do estuprador foram temas muito discutidos.
Os participantes solicitaram que novas atividades fossem
desenvolvidas, pois lacunas ainda se faziam presentes, tanto em seus
aspectos de conteúdo quanto no aspecto metodológico de como atuar
profissionalmente caso tratem deste tema na prática do dia a dia .
Por se tratar de um tema que envolve privacidade, compete
grande envolvimento por parte dos professores, aceitação pelos gestores
escolares e vontade de participar e envolver a comunidade extraescolar
e pais.
Sabe-se que o envolvimento de toda comunidade escolar poderá
facilitar o desenvolvimento do tema sem causar momentos de atrito e
tensão pedagógica.
529
Ressalta-se que alguns docentes presentes na platéia e que atuam
no ensino público municipal solicitaram que recursos pedagógicos
fossem obtidos junto à Prefeitura Municipal de Bauru, visando a
aquisição de materiais lúdico-pedagógicos expostos. Foi solicitado
ainda, e isso ficou bastante evidente na fala dos professores da Rede
Municipal de Ensino, que além da Secretaria do Bem Estar Social de
Bauru (SEBES), houvesse por parte da Secretaria de Educação de Bauru
outros momentos semelhantes ao ocorrido nesta noite. Os professores
foram bem explícitos ao dizerem que apresentam grandes lacunas, tanto
no conhecimento do tema quanto na forma de abordá-lo em sala de aula.
Espera-se assim que tais reivindicações sejam ouvidas pelos
órgãos competentes e postas em práticas para que futuras ações de
prevenção à violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes
possam ser realizadas.
Referências
ABRAPIA, (2002). Associação Brasileira Multiprofissional de
Proteção a Infância e Adolescência. Disponível em:
<www.abrapia.org.br>. Acesso em 28 fev. 2019.
530
de sexualidade e orientação sexual na formação de seus alunos.
2009.
531
UMA ANÁLISE DE ARTIGOS SOBRE
SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
532
apresentadas, recomendamos que são necessários maiores estudos sobre
estratégias e metodologias que possibilitem o trabalho da sexualidade
ainda na educação infantil, contemplando o cuidado com o corpo,
prevenção de violências e até mesmo para a formação inicial e
continuada docente.
Palavras-chave: Formação de Professores; Educação Sexual;
Diversidade; Gênero
533
that allow the work of sexuality in early childhood education, in
approaches on body care, prevention of violence and even in relation to
initial and continuing training for teachers.
Key words: Teacher Training; Sexual Education; Diversity; Gender.
Introdução
534
voltado para o ato sexual e as características biológicas (LOURO 1998).
Nas escolhas do que é um esporte ou uma brincadeira de menino, e de
menina, ou ainda, como uma menina deve se portar, e como deve ser as
atitudes do menino, são construídas as concepções de feminilidades e
masculinidades que atravessam os ambientes escolares.
Compreendemos que a escola também tem o seu papel nas
discussões em torno da sexualidade, além do processo
educacional. Foucault (2017) nos relembra que no ambiente educacional
ocorre um disciplinamento de corpos, no qual condiciona formas de agir,
pensar, relacionar, em geral, na forma de sermos e exercermos nossas
sexualidades, nos apontando o que é “certo” e “errado”. Louro (1998)
reforça que o ambiente educacional é um ambiente sexualizado e
generificado, no qual existem padrões pré-estabelecidos construídos
culturalmente que são disseminados por todos os sujeitos sociais que
atuam no processo educativo, sejam os educandos e educandas ou os
educadores e educadoras, assim, a instituição se torna uma constituidora
ativa de sexualidades.
Trabalhar sexualidade na educação infantil sempre foi um
desafio, e diante do panorama social atual, as barreiras a serem
enfrentadas são ainda maiores. Grande parte desta dificuldade se
expressa pelo tabu criado em torno da temática, expresso por vezes por
discussões de polêmicos conceitos, por vezes, “dogmáticos,
especulativos, preconceituosos, limitados e conservadores” (SANTOS;
ARAUJO, 2009, p. 15). No entanto os discursos e as ações das meninas
e meninos nas salas de aula revelam as manifestações da sua sexualidade,
em momentos de descobertas corporal e afetiva (FURLANI, 2009).
Logo, em consonância com Furlani (2009), acreditamos que a
educação sexual deve ser integrante da grade curricular na infância, posto
que o conhecimento proporcionado é imprescindível para a formação da
criança. A sexualidade, assim como a etnia, a religião, e a origem, são
formadoras da identidade cultural de cada ser humano, se manifestando
desde a sua infância. A descoberta do corpo ocorre em todas as etapas da
vida, em cada uma delas conquistamos um novo conhecimento, na
535
educação infantil é normal que as crianças tenham curiosidade em
conhecer seu corpo e as sensações prazerosas que ele produz, “aprender
noções acerca de intimidade e privacidade pessoal, entendendo o
momento e o local apropriado para tais manifestações” (p. 46).
Considerando a Educação infantil enquanto a primeira etapa da
educação básica, a qual tem o intuito de proporcionar “o
desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação
da família e da sociedade” (BRASIL, 1996, art. 29), compreendemos que
é dever social docente oferecer aos alunos e alunas uma educação que
vise o respeito e a valorização das diversidades, e a busca de uma prática
social, “considerando a intencionalidade e as relações de poder existente
na produção dos saberes” (SANTOS; ARAUJO, 2009, p. 15). Diante do
exposto, intencionamos reconhecer as produções que estão sendo
geradas no meio acadêmico sobre a temática sexualidade e a educação
infantil.
Metodologia
A opção pelo estado da arte (FLICK, 2009) se justifica por
possibilitar ao pesquisador, a noção do que está sendo produzido sobre o
tema, permitindo uma ampla visão do que os demais pesquisadores já
investigaram sobre a temática. Por meio dele observamos as
metodologias, temas, resultados e conclusões gerados nas publicações
estudadas.
Para o desenvolvimento deste trabalho e alcançarmos seu
respectivo objetivo de levantar indicativos de como a sexualidade é
abordada dentro da Educação Infantil, realizamos uma busca no portal
“Periódicos CAPES”, na qual utilizamos duas palavras-chave, sendo elas
‘sexualidade’ e ‘educação sexual’. Tal levantamento ocorreu em Agosto
de 2018.
Realizamos um recorte para apenas artigos de periódicos, sendo
que no resultado de buscas foi encontrado um total de 66 artigos. Além
disto, realizamos mais um recorte no qual os artigos analisados seriam
536
apenas os pertencentes a revistas de Qualis A1 e A2 (Quadriênio 2013-
2016) em educação, diminuindo nossa amostra para 21 artigos. Após tal
recorte, realizamos uma análise dos títulos e resumos nos quais, as duas
palavras-chave (sexualidade e educação sexual) deveriam se fazer
presentes ou de palavras intimamente associadas a elas, como, gênero e
educação de crianças.
Após tal leitura, obtivemos 7 artigos (Quadro 1). Estes foram
lidos e analisados na íntegra de forma a obter as principais considerações
trazidas pelas autoras e autores. Assim, consideramos tal trabalho, como
uma pesquisa qualitativa a qual possibilita analisar dados juntamente
com seus contextos e relações (FLICK, 2009). Assim, nesta pesquisa,
para facilitar as discussões, cada artigo é representado pela letra ‘A’
seguido pelo seu número correspondente.
Masculinidades e docência na
Estudos Feministas A1 2017
educação Infantil
As roupas e os gêneros: as
Acta Scientiarum estampas de brinquedos e de A3 2015
brincadeiras
537
Gênero e Sexualidade: O que
Archivos Analíticos de dizem as professoras de
A5 2012
Políticas Educativas Educação Infantil de Canoas,
Brasil?
Crianças, Gênero e
Sexualidade: realidade e
Estudos Feministas A6 2011
fantasia possibilitando
problematizações
Resultados e discussões
O artigo A1 nos traz uma reflexão sobre as e os profissionais
atuantes neste nível de ensino, no qual, em sua maioria, se trata do gênero
feminino, o que foi um obstáculo para a realização da pesquisa, devido a
dificuldade em encontrar sujeitos de pesquisa. O artigo relata uma série
de perspectivas que remetem tanto a preconização de mulheres nesta
etapa, como também o fato dos homens não optarem por tal ambiente de
trabalho (JAEGER; JACQUES, 2017).
Ainda segundo as autoras, existem estereótipos de “homem” que
tendem a ser seguidos e reproduzidos por este gênero, o que possibilita
538
ainda mais o afastamento destes da Educação infantil. Mas o estereótipo
feminino também se faz presente, como, o mito do amor materno, no
qual segundo Badinter (1985), as mulheres são influenciadas desde
crianças a realizarem atividades que possibilitam a maternidade. Louro
(2003) discorre que nas representações do magistério as professoras
sejam vistas enquanto mães espirituais, e associadas à ação docente a
doação e a entrega, e os professores homens são ligados ao conhecimento
e a autoridade.
Jaeger e Jacques (2017) nos enfatizam que devemos considerar
que existem diferentes masculinidades, e todas são legítimas em suas
particularidades, e que as discussões de gênero poderiam ser realizadas
ainda no campo do ensino superior, possibilitando aos e às docentes em
formação, a compreensão dos processos em que construímos nossas
identidades.
O segundo artigo analisado (A2), deveria possibilitar uma
reflexão sobre raça e gênero, todavia, o enfoque trazido no trabalho foi
para as questões de discriminação que acabaram por trazer, em sua
maioria, discussões de etnia. Todavia, alguns aspectos gerais foram
importantes no processo em que analisaram as construções históricas e
culturais que são internalizadas pelas crianças e acabam sendo
reproduzidas por elas, em especial, quando utilizam características
físicas dos e das colegas consideradas “fora do padrão”, para ofender,
apenas por serem diferentes (GUIZZO; ZUBARAN; BECK, 2017).
Diante disto, as autoras também reforçam a importância de se
analisar as concepções de socialização que são remetidas nos currículos
escolares, incluindo as relações de gênero, para que se possível, ocorra
uma desnaturalização de tais compreensões.
As autoras Símili e Franqui (2015), no artigo A3, nos
possibilitam uma reflexão que perpassa pela Educação Infantil, que são
as roupas das crianças, discutindo como os brinquedos e brincadeiras
estampados nas vestimentas infantis podem influenciar na construção de
gênero dos indivíduos em formação. Após um amplo histórico da moda
e as relações de gênero, as autoras realizam a análise de roupas de uma
539
determinada marca infantil, nos apresentando que até mesmo as cores
são estrategicamente pensadas de acordo com o gênero das crianças.
Em uma roupa considerada de gênero masculino, com cores azul
e amarelo, se trazia a frase “Dia de Sol é bom com amarelo” e abaixo a
palavra “aventura”, no qual a imagem como um todo se remete ao céu, a
uma amplitude, a uma liberdade de se correr, brincar e se alegrar. Já a
roupa considerada feminina trazia uma gangorra com duas meninas com
cores destaques para rosa e verde que remetem a natureza, a qual pode
ser vista como um símbolo de fertilidade. Ainda nesta última, a gangorra
representa uma brincadeira/brinquedo mais ameno, que possibilita a
menina se manter mais limpa, mais delicada, em um espaço menor
(SÍMILI; FRANQUI, 2015).
O artigo A4 traz uma reflexão sobre a importância da Educação
Infantil quanto a discutir as diferenças entre as crianças, todavia, o
enfoque também perpassa pelos contextos de desvalorização desta etapa
de ensino, no qual por vezes é visualizada com caráter assistencialista e
não educativo, além de não receber os devidos investimentos por parte
das autoridades políticas (ABRAMOWICZ; TEBET, 2017).
De acordo com as autoras, percebe-se também o crescimento de
um discurso da diversidade que na realidade não leva em conta as
diferenças, ou seja, as individualidades, como aparece na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) que relata a existência de uma unidade na
multiplicidade (BRASIL, 2017). Este enfoque reforça o discurso de que
todos somos iguais, todavia, não aprofunda a discussão de que a equidade
não é equivalente a igualdade, omitindo que as pessoas possuem
necessidades individuais, corroborando para um discurso de padrões, de
normalidade.
As compreensões de gênero e sexualidade por parte de algumas
professoras de Educação Infantil foram trazidas por Silva, Sarmento e
Fossatti (2011) no artigo A5, e possibilita a quem circula por estes
ambientes, facilmente identificar algumas falas trazidas pelos sujeitos de
pesquisa. O artigo inicialmente aborda a necessidade e paralelamente a
resistência em trabalhar sexualidade e gênero na formação de
540
professores, reconhecendo a escola na construção de corpos e nas
relações de poder, conforme já apresentamos inicialmente algumas
reflexões de Foucault (2017).
Conforme percebemos também neste trabalho, o artigo A5 nos
apresenta a escassez de pesquisas sobre sexualidade e gênero no âmbito
da Educação Infantil, mas o foco central do mesmo, era em apresentar
uma série de imagens para professoras da referida modalidade de ensino
sendo elas: menina com carrinhos; menina brincando de cozinha; menino
com cozinha; menina com roupas masculinas; menino e menina
analisando os próprios genitais.
Claramente as duas últimas imagens foram alvo de maiores
discussões segundo o autor e autoras, o que para ele e elas, apenas
reforçou a importância do debate destes temas na formação dos
professores, em especial, que estão em atuação. Vale destacar que estes
também trouxeram as preocupações das professoras na questão familiar,
destacando que para que tais temáticas sejam discutidas em sala de aula,
os familiares responsáveis pelas crianças precisam estar cientes do que e
como os mesmos serão apresentados devido a toda complexidade que os
circunda nas questões sociais (SILVA; SARMENTO; FOSSATTI,
2011).
O artigo A6 (RIBEIRO, 2011) relata a análise da sexualidade de
crianças em de 3 filmes: “A ostra e o vento”, “A teta e a Lua” e “Hin
Helgu Vé”. A autora teceu uma análise dos filmes relacionando com
ações de crianças que participaram de um projeto de gincana, que
abordaria as temáticas gênero e sexualidade.
O primeiro possui muitas particularidades ao remeter a criança
como um ser assexuado e restrito de se descobrir, que é o que
visualizamos cotidianamente em nossa sociedade (FOUCAULT, 2017).
No segundo filme, segundo a autora, o personagem central do filme é um
homem em 3 etapas diferentes da vida (criança, adolescente e adultos)
que desperta diferentes ações e pensamentos sobre os seios43 femininos
43
Nomenclatura utilizada no artigo analisado.
541
que são diferentes a cada etapa. No último filme, é abordado como
diferentes mulheres (uma mãe, uma amiga de mesma idade, e uma amiga
adolescente/jovem) são visualizadas por um mesmo menino (7 anos)
dentro de seu círculo de vivências (RIBEIRO, 2011).
Importante ressaltar que Ribeiro (2011) enfatizou a importância
da participação da família durante as atividades infantis, para que possam
auxiliá-la em seus desejos e descobertas, e para isso, também se faz
necessárias atividades voltadas apenas para os familiares, dentro de um
enfoque informativo.
Um enfoque mais curricular é dado no artigo A7, o qual seria o
combate às desigualdades de gênero desde a Educação Infantil (FINCO,
2015). A autora também relata que as crianças aprendem desde cedo a
diferenciar atributos masculinos de femininos, o que implica na maioria
das vezes em estereotipar o que compete a cada gênero.
De acordo com Finco (2015), a escola deve ser um lugar de
respeito às diferenças, de não discriminação e de desconstrução de
estereótipos, todavia, existe uma carência (já trazida em outros artigos)
da temática sexualidade e gênero ainda na formação docente.
Apesar desta necessidade trazida, é refletido sobre a falta de
propostas educativas e também curriculares para o trabalho com os
temas, em especial que preconizam a igualdade de gênero na Educação
Infantil, sendo necessárias maiores visibilidades e formulações de
documentos legais e metodológicos que auxiliam no respaldo diretivo e
na formação inicial e continuada dos e das profissionais que trabalham
com esta etapa de ensino (FINCO, 2015).
Verificamos assim a pluralidade de assuntos abordados sobre
sexualidade e gênero na Educação Infantil. Temas que trataram de
aspectos formativos, educacionais, comportamentais e profissionais.
Diante de nossa temática não poderíamos deixar de levar em
consideração que dos 14 autores que escreveram os trabalhos analisados,
13 eram mulheres (nomes construídos socialmente como femininos) o
que nos implica refletir sobre os gêneros dos pesquisadores desta área.
542
Sobre estas reflexões gostaria de apontar duas delas, a primeira
pelo fato de mulheres predominarem nas pesquisas científicas (ao menos
desta área) o que é significante, uma vez que as mesmas precisam
perpassar por alguns obstáculos contemporâneos devido a sociedade
patriarcal. Todavia, a segunda reflexão é que especificamente nesta área,
o público masculino possui uma série de estereótipos que são propagados
e diminuem a participação dos mesmos nesta etapa de ensino.
Considerações finais
Em consonância os artigos analisados apresentam a preocupação
com a formação inicial e continuadas de professores das licenciaturas em
geral. Registrou-se nos estudos o relato da carência da temática
sexualidade nas graduações e formações docentes, ora, se não é ofertado
aos e às docentes o embasamento teórico para o desenvolvimento do
trabalho sobre sexualidade, estes e estas profissionais possivelmente
terão uma carência nas práticas educacionais, dada a complexidade de
construção desse conhecimento crítico sem a mediação de seus
formadores.
Apontamos, neste sentido ser de grande valia a inserção do
aprofundamento teórico-metodológico na formação do magistério,
proporcionando assim o desprendimento das práticas minimizadoras e
superficiais que relacionam a sexualidade a atividades pontuais,
fragmentadas e relacionadas à ideia biologista.
Imersos em uma sociedade em constante movimento, na qual
ideias e ideais são construídos e reconstruídos continuamente, nos vemos
ainda envoltos em tabus, medos e incógnitas quando o assunto está
relacionado à sexualidade e às crianças. A temática sexualidade não se
encontra na margem da sociedade e sim inserida em todas as ações dos
sujeitos, compreendemos que a sexualidade não se resume somente ao
biológico, sendo muito além disso, ela está em nossa maneira de agir,
falar, se portar, vestir, interagir, e ver o mundo a nossa volta, por
conseguinte, as instituições de ensino se apresentam enquanto lócus de
reflexão e criticidade para o rompimento de estereótipos.
543
Ao enfrentar o desafio docente de engendrar caminhos para
oferecer as diferentes personalidades, representadas nos olhares curiosos
de meninos e meninas, a problematização das práticas sociais, o
professor e a professora em alguns momentos precisa de uma dose de
ousadia e coragem, ou toma a decisão de ignorar a necessidade de
abordar o tema.
Atualmente os conservadores têm agido com intolerância aos
pensamentos e ideias contrárias às suas, ‘tachando’ os e as docentes
como doutrinadores. Uma temática importante como a sexualidade
ganha proporções avassaladoras e negativas quando compreendidas
erroneamente.
Ao defendermos que a educação infantil é lugar de trabalhar
sexualidade, não negamos aos pais e mães o direito e o dever de orientar
os seus filhos, e tampouco queremos impor nossos desejos individuais,
de outro modo, intuímos desconstruir os preconceitos em torno desta
temática, pois para nós a “sexualidade não pode ser separada dos
aspectos social, político, cultural e econômico, tampouco associada
apenas a determinadas fases da vida humana” (FERREIRA; LUZ, 2009,
p. 35).
Com o advento das chamadas fake news, abordar a presente
temática é resistência, neste panorama, até mesmo brincadeiras e
brinquedos são questionados dentro de sala de aula. No entanto,
acreditamos que é necessário educar meninos e meninas a respeitar as
diversidades sejam elas quais forem, precisamos quebrar o imaginário de
dois mundos, sendo um “azul” para os meninos e um “rosa” das meninas,
vivemos em um mundo colorido, no qual cada um tem o direito de
escolher a sua própria cor. Furlani (2009) reforça que o brinquedo e a
brincadeira proporcionam a interação social da criança, porém não
determinam gênero. Pensamos que as instituições educacionais devem
promover estratégias para reflexão das práticas sociais, e rompimento
dos padrões pré-estabelecidos pela sociedade, destacando as relações de
respeito e o direito de cada ser (FERREIRA; LUZ, 2009).
544
Uma das táticas de trabalho que compreendemos ser eficaz é o
aprimoramento da relação família escola. Há uma linha tênue entre as
instituições escolares e familiares, a participação da segunda nas
atividades de seus filhos e filhas nem sempre é cumprido, algumas vezes
o discurso destoa da prática, contudo, ao realizar esta aproximação, é
possível divulgar o teor das dinâmicas, das teorias, e paulatinamente
superar a resistência familiar.
Julgamos importante a sexualidade na educação infantil, e para
além da formação docente inicial e continuada, da atuação da família
junto a escola, da participação da comunidade escolar no processo
reflexivo, é necessário também que ocorram políticas educacionais que
sejam amparo aos professores e às professoras na atuação, intervenção e
promoção de mudanças nas práticas sociais.
Referências
ABRAMOWICZ, A.; TEBET, G. G. C. Educação Infantil: um balanço
a partir do campo das diferenças. Pro-Posições. Campinas, v. 28, suppl.
1, p. 182-203, 2017.
545
FERREIRA, B. M. M. L.; LUZ, N. S. Sexualidade e gênero na escola.
Construindo a igualdade na diversidade: gênero e sexualidade na escola
organização: LUZ, N. S.; CARVALHO, M. G.; CASAGRANDE, L. S.
– Curitiba: UTFPR, 2009.
546
RIBEIRO, C. M. Crianças, gênero e sexualidade: realidade e fantasia
possibilitando problematizações. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 605-614, 2011.
547
04
INVESTIGAÇÕES
EM
SEXUALIDADES,
GÊNEROS E
DIVERSIDADE
548
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES DE
GÊNERO A PARTIR DO BRINCAR
Nathaly Cristina Fernandes
(Faculdade de Jandaia do Sul)
549
Bicalho (2013, p.46), that during children's play children express ways
of acting that transgress and break this logic of binary (male / female)
thinking and reveal folly of this arbitrary and rigid association, children
take over the culture, which is marked by unequal constructions in
relation to the sexes, and there is the stereotyping of play. We come to
the understanding through this study that play is important in childhood,
but that boys and girls are encouraged from a very early age to separate
themselves in children's play, reinforcing and provoking the
incompatibility between the female and male universe, where gender
stereotypes influence or playing children.
Key words: Gender identity; Play; Childhood.
Enquadramento teórico
Vivemos em uma sociedade marcada pelas diferenças, onde
estamos constantemente sendo vigiados e controlados, por mecanismos
que nos direcionam a ocupar um lugar “conveniente/adequado”. A forma
como estamos estabelecendo essas diferenças está fazendo com que
construamos ambientes preconceituosos, que determinam e reforçam
estereótipos de gênero além de limitarem as ações e especialmente o livre
brincar das crianças.
Objetivou-se de modo geral com este estudo compreender a
construção de identidades de gênero, sob a influência das brincadeiras
infantis. Tendo como objetivos específicos: compreender a relação
existente entre brincadeiras infantis e gênero e estudar a construção de
masculinidades e feminilidades a partir do brincar.
Método
Essa pesquisa trata-se de uma revisão bibliográfica.
550
meninos e meninas. Essas diferenças de gênero são muito presentes em
nosso dia a dia:
551
representações, e são estas que elas desenvolverão.
Confirmar a identidade significa dizer “o que
somos” e “o que não somos”, sempre manifestando
distinções. Os depoimentos sobre identidade e
diferença demonstram quem está incluído e quem
está excluído, quem pertence e quem não pertence,
marcando fronteiras e declarando relações de
poder. (SOUZA, 2008, p.154 apud JUNGES;
SCHWERTNER, 2017, p. 270)
552
culturais, sociais e históricos. Assim, “podemos
perceber que é as representações do que é
“feminino” e “masculino”, não são determinados
biologicamente, mas sim, pelas relações sociais
(NASCIMENTO, 2014, p.260 apud ARAÚJO;
BEZERRA; FERREIRA, 2017 p. 584)
553
brincar de casinha, bonecas, pois atividades como essas são tidas
enquanto femininas.
554
Muitas vezes, instituições como família, creches e
pré-escolas orientam e reforçam habilidades
específicas para cada sexo, transmitindo
expectativas quanto ao tipo de desempenho
intelectual considerado “mais adequado”,
manipulando recompensas e sanções sempre que
tais expectativas são ou não satisfeitas. Meninas e
meninos são educados de modos muito diferentes,
sejam irmãos de uma mesma família, sejam alunos
sentados na mesma sala, lendo os mesmos livros ou
ouvindo a mesma professora. A diferença está nas
formas aparentemente invisíveis com que
familiares, professoras e professores interagem
com as crianças. (VIANNA; FINCO, 2009, p. 273)
555
Os pais de meninos devem prestar atenção, porque
brincar com bonecas ou cuidar de bebês trazem
muitos ganhos. Brincar de boneca e encenar os
papéis de pai e mãe reforça habilidades sociais e
emocionais: cuidar de outras pessoas, levar em
conta suas necessidades e atendê-las, bem como
perceber o que elas estão sentindo. (ELIOT, 2013,
p.155)
556
Existe, portanto a limitação de ações de crianças, a partir do
exposto acima podemos ver como meninas podem ter sua identidade de
gênero questionadas se preferem brincadeiras de “meninos”, assim como
meninos que gostam de brincar com as meninas ou de brincadeiras de
“meninas”. Os pais reagem diferentemente aos tipos de brinquedos que
as crianças parecem apreciar. “Os pais respondem mais positivamente
quando a criança escolhe um brinquedo adequado ao seu gênero, por
exemplo, quando o menino pega o martelo e a menina empurra um
carrinho de compras.” (ELIOT, 2013, p.134)
557
Ou seja, na criança que brinca com bonecos de superheróis são
estimuladas/desenvolvidas habilidades como coragem e força, e na
criança que brinca de boneca, desenvolve o cuidado. Nas brincadeiras
existe controle disciplinar de meninas e meninos, que estão
intrinsecamente relacionadas ao controle do corpo, dentro dos limites
entre feminino e masculino e ao reforço de características socialmente
esperadas para cada gênero.
“Meninas e meninos desenvolvam seus comportamentos e
potencialidades no sentido de corresponder às expectativas quanto às
características mais desejáveis para o masculino e para o feminino”
(VIANNA; FINCO, 2009, p. 275), sendo assim o brincar também
influencia nas construções de identidades de gênero.
Considerações finais
Chegamos ao entendimento através desse estudo de que as
brincadeiras são importantes na infância, mas que meninos e meninas
são estimulados desde muito cedo a se separarem nas brincadeiras
infantis, reforçando e provocando a incompatibilidade entre o universo
feminino e o masculino, onde estereótipos de gênero influenciam o
brincar infantil.
As crianças vêm sendo educadas a partir de uma educação
sexista, onde feminilidades e masculinidades são atribuídas de maneira
binária, calando a multiplicidade. Educação essa que transformam as
diferenças entre homens e mulheres em desigualdades, justificativas
ancoradas como se essas diferenças estivessem estabelecidas
biologicamente.
No que se refere aos brinquedos infantis, na nossa sociedade
eles estão relacionados aos papéis de gênero, em que as atividades
ligadas ao lar e maternidade são atribuídas como papeis femininos,
enquanto, as brincadeiras e brinquedos masculinos estão relacionados ao
espaço público, se distanciando da paternidade e atividades domésticas.
558
Frente a isso podemos afirmar que brinquedos e brincadeiras
refletem a lógica da ideologia patriarcal, o que contribui para a contínua
reprodução dessa lógica, que impõe papéis sociais, posições a serem
ocupadas de acordo com o sexo, exemplo disso é a divisão sexual do
trabalho, pois, essas brincadeiras e brinquedos associados ao cuidado,
incentivam as meninas a serem delicadas, boas esposas, submissas e
donas de casa. A educação de meninos é totalmente distinta, para eles
são reservadas atividades associadas à criatividade, aventura e ao
desenvolvimento de habilidades.
Vemos, portanto, como papel feminino e masculino é
construído socialmente, se iniciando na infância, pela divisão sexual dos
brinquedos e brincadeiras apresentados para as crianças, que dizem
muito sobre todos nós, produz aquilo que somos ou deveríamos ser,
contribui, portanto, para a construção da nossa identidade. Nesse
cenário, acreditamos que a estratégia para romper com a ideologia
patriarcal e sexista no processo educativo das crianças é a mudança
baseada em uma perspectiva igualitária, na qual todos (as) possam
brincar juntos, socializando, desconstruindo barreiras em suas vivências,
valorizando a diversidade e diferença.
Referências
ARAÚJO, Tâmara T. C.; BEZERRA, Beatriz D. G.; FERREIRA,
Gleyson H. L. Educação sexista e suas influências na definição das
brincadeiras infantis. 2017, Rio Grande do Norte. Revista Includere,
v.3, n.1, 2017.
559
BÍSCARO, C. R. R. A construção das identidades de gênero na
educação infantil. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação)–
Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2009.
560
SIMÃO, Márcia B. Gênero como possibilidade ou limite da ação
social: um olhar sobre a perspectiva de crianças pequenas em um
contexto de Educação Infantil. Florianópolis, Revista Brasileira de
Educação, v. 18 n. 55 out.-dez. 2013, p. 939-1064.
561
A PESSOA TRANS NA UNIVERSIDADE: O
QUE PENSAM OS COLABORADORES DE UMA
INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR
562
TRANS PERSON IN THE UNIVERSITY: WHAT DO
COLLABORATORS OF A HIGHER EDUCATION INSTITUTION
THINK
Enquadramento teórico
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa inédita realizada
pelo Observatório de Violências nas Escolas que aborda a compreensão
sobre o tema da transexualidade no Ensino Superior, a partir da
compreensão de colaboradores de uma instituição privada no interior do
estado de São Paulo.
563
Historicamente, observa-se que a transexualidade é vista como um
fenômeno não natural, identificado e discriminado. Geralmente, no
ocidente, no âmbito familiar quando os pais percebem comportamentos
divergentes do padrão do gênero ao nascimento, a família sente-se
insegura e logo teme uma suposta homossexualidade, nem sempre
aceitam a criança e suas expressões ou procuram acompanhamento
psicoterapêutico, para a resolução do que consideram um grave
problema. A literatura nos mostra que diante da frustração pela
incompreensão do fenômeno, a família começa a reprimir os
comportamentos que não julga corretos, o que pode gerar marcas
profundas na personalidade da pessoa.
A pessoa transgênero, segundo Ávila e Grossi (2010), é aquela
que se identifica com o gênero oposto ao atribuído ao nascimento, ou
aquela que se identifica com ambos os gêneros ou a nenhum deles, no
qual se incluem as travestis, transexuais, intersexuais, Drag Queens e
Drag Kings. As pessoas transexuais anseiam poder viver de acordo com
a sua identificação, ou seja, identidade de gênero.
A sociedade brasileira, em parte significativa, demonstra
adversidade à população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Travestis e Intersexuais), entretanto, a população trans é a
parcela que tem essa hostilidade mais evidenciada. Dados do Grupo Gay
da Bahia (GGB) demonstram que a violência contra essa população
aumentou 30% do ano de 2017 em relação ao ano de 2016.
564
Pessoas transexuais, em sua grande maioria, começam a sofrer
desde a infância pela não realização de comportamentos tidos como
“normais” pela sociedade, a própria família, em geral, é responsável pela
perpetuação da violência, tanto física quanto psicológica, muitas vezes
expulsando as pessoas trans de casa. É comum no ambiente escolar,
alunos, professores e gestores também não respeitarem o nome social a
maneira de se expressar no mundo, o que incorre em mais humilhações
e sofrimento, até mesmo o abandono da escola. Sem moradia, estudo e
apoio da sociedade, a depressão e tentativa de suicídio entre a população
transexual cresce significativamente a cada ano que passa. Segundo
Bento (2014, p. 177):
565
a discriminação e o reconhecimento dos direitos civis dos mesmos. Silva,
Almeida e Ramos (2014) mostram que, na Alemanha nazista, tem-se
registros de que foi o primeiro país a segregar os homossexuais, sendo
tratada como uma condição absoluta de patologia, sujeitando os
indivíduos à crueldade. Em campos de concentração, diversos
homossexuais morreram devido a espancamentos e experimentos para a
localização do, até então, “Gene gay”.
O dia do orgulho LGBT se consolidou em decorrência aos
acontecimentos no bar conhecido como Stonewall Inn, nos Estados
Unidos da América (EUA), em 28 de junho de 1969. Este bar era,
predominantemente, frequentado por gays, lésbicas, travestis e drag
queens. Segundo Silva, Almeida e Ramos (2014):
566
encontro, há a luta pela despatologização da homossexualidade e a
inclusão da Educação Sexual nas matrizes curriculares das escolas.
(FACCHINI, 2011)
567
diagnóstico, tinha-se como pressuposto básico que o indivíduo
permanecesse, por pelo menos dois anos, o interesse constante em
adequar seu corpo da maneira que este se sentisse por dentro. Na quarta
edição do Manual (DSM-IV) de 1994, troca-se o termo Transexualismo
por Transtorno de Identidade de Gênero.
Na quinta edição do Manual DSM-V, lançada em 2013, é possível
ver a adoção da expressão “Disforia de Gênero” para mencionar os
fenômenos da transexualidade, nesta edição, esta disforia possui os
seguintes critérios para o seu diagnóstico:
568
(Associação Americana de Psiquiatria, 2014,
p.452-453)
569
travestis sentem a necessidade de realizar uma modificação do próprio
corpo, tais quais como a cirurgia de redesignação sexual.
A Transexualidade e a Educação
A instituição educacional, a escola, é reconhecida como um
ambiente no qual se dá a formação e preparo para o convívio social e
acadêmico das pessoas. Esta não somente se limita no contexto
educacional e de trocas de conhecimentos, mas também no contexto
emocional, no qual há a relação e criação de laços afetivos externos à
família começam a ser formados.
Cada criança reage a este fenômeno de uma maneira distinta, para
alguns pode ser uma simples adaptação ao passo que para outras pode
ser um profundo marco traumatizante. Neste sentido, não somente os
professores, mas todos os envolvidos neste processo devem estar atentos
e aptos a identificar os sinais demonstrados pelos alunos com relação a
sua adaptação a, não somente o ambiente, mas também ao contato com
diversas outras maneiras de ser apresentadas pelos demais participantes
deste meio.
Diehl e Vieira (2017) mostram que estudos da ABGLT (2016)44,
Organização Reprolatina e o Ministério da Educação e Cultura (MEC)
apontam que escolas são ambientes hostis para jovens gays e trans, onde
professores demonstram dificuldades em trabalhar a diversidade sexual,
não tendo o preparo e educação necessária para o mesmo. Pela fala destes
professores, vê-se a existência de um preconceito velado ao dizerem que
apenas “toleram” a orientação sexual se não há a demonstração clara da
mesma.
44
Estudos da ABGLT. Parceria com o Ministério da Educação e Cultura e a
Organização Reprolatina, em 2016, com adolescentes e jovens lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) sobre as experiências que tiveram
nas instituições educacionais relacionadas a sua orientação sexual e/ou
identidade/expressão de gênero.
570
O bullying homofóbico realizado, tanto por professores quanto por
alunos, em instituições de ensino geram, na esmagadora maioria, decaída
na saúde mental e psicológica das vítimas do mesmo, tais como
depressão, ansiedade, isolamento social e diversos outros indícios. Estes
alunos que sofrem bullying devido a sua orientação sexual ou a sua forma
de expressar no mundo têm maior tendência a comportamentos
autodestrutivos e até mesmo ao suicídio.
Este mesmo bullying está diretamente ligado à evasão escolar,
pois a falta de conhecimento sobre sexualidade e afins destes professores
e, consequentemente, dos alunos, gera a hostilidade ao que é tido como
“diferente” do padrão. A evasão escolar pode se dar aos poucos, com
faltas excessivas a aulas, e também de maneira súbita. Esta, influencia
suas futuras possibilidades de emprego, devido à falta de qualificação
profissional e a não possibilidade de frequentar uma instituição de ensino
superior.
Faz-se necessário a conscientização e prevenção do bullying no
ambiente escolar, tanto para os professores quanto para os alunos.
Conforme a UNESCO (2013), é importante o treinamento da equipe
escolar que haja essa conscientização e para que saibam como agir e
intervir caso ocorram estes incidentes. É necessário também haver o
processo de suporte a vítima, para que esta possa se abrir e procurar
ajuda.
571
que a comunidade escolar como um todo apoie a
mensagem de que o bullying homofóbico, tanto
quanto a violência e o assédio sexual, é inaceitável
no ambiente escolar. (UNESCO, 2013, p. 36)
Método
Para alcançarmos o objetivo proposto, foi realizado um estudo do
tipo exploratório-descritivo, survey de corte transversal. O método
adotado procurou obter e demonstrar os dados a partir de informações
sobre as características, ações ou opiniões de determinado grupo de
pessoas, por meio de um instrumento de pesquisa, como por exemplo um
questionário investigativo sobre um determinado fenômeno (FREITAS;
OLIVEIRA; SACCOL; MOSCAROLA, 2000).
Este método exploratório-descritivo, segundo Freitas et al. (2000),
tem como objetivo se familiarizar e conhecer mais sobre determinado
tópico, no qual busca descrever a distribuição de determinado fenômeno
entre a população ou uma parte da mesma. O corte transversal na
pesquisa survey qualifica a coleta de dados somente em um determinado
período de tempo, no qual descreve e analisa as variáveis somente em
um só certo momento.
O instrumento foi construído à partir da leitura de artigos
científicos, adaptado de pesquisas sobre transfobia e de uma pesquisa
com a população portuguesa (Oliveira, 2013). O instrumento final ficou
dividido em em quatro partes : 1) Caracterização do Participante, 2)
Compreensão do fenômeno, 3) Percepção da Transexualidade e 4)
Sentimentos e ações. Todas as questões são fechadas e organizadas em
escala Likert com as seguintes opções : (1) Discordo totalmente (2)
Discordo (3) Indeciso (4) Concordo (5) Concordo totalmente.
Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa,
conforme orienta a Resolução 196/9645, iniciou-se a coleta de dados.
45
Resolução publicada pelo Conselho Nacional de Saúde que versa sobre as
exigências éticas e científicas para o desenvolvimento de pesquisas
envolvendo seres humanos.
572
Participaram deste primeiro momento do estudo 60 colaboradores de
diversos setores presentes na instituição.
573
Segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT, 2015)46,
73% dos jovens estudantes LGBT relatam já terem sofrido algum tipo de
violência no ambiente escolar, sendo que, no Brasil, o número de evasão
escolar por pessoas trans é de 82%, resultado de falta de políticas
inclusivas e da hostilidade da comunidade para com essas pessoas,
inclusive pais, colegas e gestores.
A intolerância para com as pessoas trans está presente em todas
as esferas da sociedade, não se restringindo somente ao contexto escolar.
Conforme dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transexuais) e IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação), foram
registradas e divulgadas pela mídia até o mês de setembro de 2018, 117
mortes de travestis e transexuais em todo o país.
Portanto, os dados da pesquisa, a princípio, indicam um
distanciamento entre o discurso dos participantes e as evidências
científicas e estatísticas de estudos que compuseram a revisão de
literatura, uma vez que apontam que a experiência educacional e
institucional das pessoas trans é carregada de preconceitos e estigmas.
Quanto à 2ª. questão selecionada, “Pessoas transexuais devem
esconder a sua situação para não serem discriminadas”, a análise sugere
demonstra que 60% dos participantes discordam totalmente da afirmação
de que pessoas trans devem esconder a situação para evitarem a
discriminação, 5% concorda totalmente e 6,67% indicou estar indeciso.
Esses resultados demonstram também uma divergência nos dados
divulgados pela mídia, no contexto atual do mercado de trabalho
referentes a pessoas trans. Conforme revela Giorgi, Barbosa e Borges
(2017), dados da Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo
Mineiro (Triângulo Trans) indicam que 95% da população total de
transexuais estão na prostituição e apenas 5% estão no mercado formal
46
Cf. https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/11/1834166-73-dos-
jovens-lgbt-dizem-ter-sido-agredidos-na-escola-mostra-pesquisa.shtml
574
de trabalho, sendo este similar aos dados da ANTRA47, que demonstram
que 90% da população trans exerce a prostituição como única fonte de
renda. Essa situação agrava-se devido ao alto índice de evasão escolar
entre pessoas trans.
Os dados descartam a hipótese de que as pessoas trans busquem,
por uma escolha pessoal e/ou vocacional, a prostituição como atividade
profissional, e o alto índice de pessoas trans atuando nessa dimensão
evidencia a vulnerabilidade a que essa população está exposta.
Segundo Teixeira (2000 apud RONDAS, MACHADO, 2015, p.
195) “a falta de formação profissional reforça as barreiras existentes no
mercado de trabalho e aumenta as dificuldades para encontrar emprego
fora das esferas tradicionais de atividade profissional em que são
aceitas”. Cazerre (2015) traz um relato sobre a dificuldade da inserção
das pessoas trans no mercado de trabalho devido à transfobia:
47
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é uma rede
nacional que articula em todo o Brasil 127 instituições que desenvolvem
ações para promoção da cidadania da população de Travestis e Transexuais,
fundada no ano de 2000, na Cidade de Porto Alegre.
575
assalariadas, nesta condições, realizavam atividades pouco valorizadas
socialmente, pouco exigentes de qualificação profissional e que lhes
conferiam renda relativamente baixa.” (RONDAS, MACHADO, 2015,
p.196).
Os resultados da 3ª questão, “A temática da transexualidade
deve ser abordada mais amplamente nos meios de comunicação, para
que mais pessoas estejam informadas sobre esta realidade”, que compõe
a terceira parte do instrumento, demonstram que 41,67% dos
participantes concordam totalmente com a afirmação, 13,33% estão
indecisos e 3,33% discordam totalmente. Pode-se reconhecer através
destes dados o distanciamento com a realidade, na qual, uma parcela
significativa da população brasileira se posiciona contra48 a educação
sexual49 nas escolas e também pela falta de estatísticas oficiais de crimes
motivados pela transfobia, seguido por uma quantidade ainda menor de
ações punitivas e medidas preventivas, o que perpetua o histórico de
violência, marginalização e exclusão social da população trans. Segundo
Chagas e Nascimento (2017, p. 6):
48
Cf. https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/projeto-contra-educacao-
sexual-para-criancas-alcanca-20-mil-apoiadores-no-site-do-senado-
8pvnj6qsiuci4uyrf4hs59444/
49
“[...] a educação sexual tem a ver com o direito de toda pessoa de receber
informações sobre o corpo, a sexualidade e o relacionamento sexual e, também,
com o direito de ter várias oportunidades para expressar sentimentos, rever seus
tabus, aprender, refletir e debater para formar sua própria opinião, seus próprios
valores sobre tudo que é ligado ao sexo. No entanto, ensinar sobre sexualidade
no espaço da escola não se limita a colocar em prática, estratégias de ensino.
Envolve ensinar, através da atitude do educador, que a sexualidade faz parte de
cada um de nós e pode ser vivida com alegria, liberdade e responsabilidade.
Educar sexualmente é, também, possibilitar ao indivíduo, o direito a vivenciar
o prazer.” (FIGUEIRÓ, 2009, p. 163)
576
grupos de religiosos que as tratam como seres
anormais, pecadores e doentes que precisam de
cura. Para o mercado de trabalho, que não as insere
no campo do trabalho formal, fazendo com que
90% dessas pessoas recorram à prostituição como
fonte de renda. Para a sociedade civil, em sua
grande maioria, que não as aceita e as excluí de uma
convivência social harmoniosa. Problematizamos
ainda o fato de que essas pessoas são visíveis para
quem as fetichiza, as tornam alvo de chacotas e de
preconceitos. (CHAGAS, NASCIMENTO, 2017,
p. 6)
577
que geralmente exige mão de obra qualificada. Existe discriminação e
violências praticadas tanto pela instituição quanto pelos próprios alunos
e professores.
Considerações finais
A invisibilidade da população trans pode estar relacionada à falta
de políticas públicas direcionadas às mesmas. Por outro lado, o aumento
significativo de ocorrências de crimes de ódio e discriminações
transfóbicas, aponta que o pouco espaço de trânsito e pertencimento da
população trans já a coloca como um grupo mais vulnerável. Nesse
sentido, vale ressaltar as orientações da UNESCO sobre o tema.
O documento Jogo Aberto (UNESCO, 2017) mostra que todas as
formas de discriminação e violência são um obstáculo para o direito
fundamental à educação de qualidade Respostas eficazes do setor de
educação à violência homofóbica e transfóbica requerem uma
abordagem abrangente e com uma abordagem que inclua todos os
seguintes elementos: políticas eficazes, currículos e materiais de
formação relevantes, formação e apoio para todas as pessoas envolvidas
com a instituição escolar, apoio a estudantes e suas famílias, informações
e parcerias estratégicas, bem como monitoramento e avaliação.
578
p. 8).
579
Referências
ALMEIDA, Aline. Evasão escolar entre travestis é bem maior. Diário
de Cuiabá, Cuiabá, 23 mai2016.
580
Questão Social, 4, 2013, Fortaleza. Anais...Fortaleza: Universidade
Estadual do Ceará, 2013, p. 313-324.
581
MOTT, Luiz. A construção da cidadania homossexual no Brasil.
Democracia viva, nº 25, 2005, p. 98-102.
SALDAÑA, Paulo. 73% dos jovens LGBT dizem ter sido agredidos na
escola, mostra pesquisa. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 nov. 2016.
582
A POTÊNCIA DA FIGURAÇÃO DRAG
PARA SUBVERSÃO DAS POLÍTICAS
IDENTITÁRIAS
Gustavo Barrionuevo
Roberta Stubs
(Universidade Estadual de Maringá)
Due to the great exposure that drag performance has been gaining in the
media, we ask ourselves: how does the proposition of a drag figuration
aid us in the problematization and subversion of identity politics? We
seek to question the essentialism of the subject contained within the logic
of identity, having as a point of problematization the drag figuration.
Contributed in feminist theorists and queers, we discuss what would be
583
a drag figure, a figure of subjectivity that is understood as nomad and
cyborg, which is created aesthetically and subjectively between the
territories of what we consider masculine and feminine. We perceive,
then, the urgency of thinking about non-essentialist identity politics,
which account for discussing and understanding the demands of subjects
that do not fit and do not seek to fit norms and standards.
Key words: Essentialism of the subject. Performance drag. Drag
Queen.
Enquadramento teórico
Embora tenha uma grande evidência nos dias atuais, a
performance drag não é uma linguagem artística nova – essa prática, a
personificação da imagem feminina, sendo ela realista ou caricata, se
insere em diversos contextos e nos remete, a princípio, a prática cênica
grega (AMANAJÁS, 2014). Se o ato de personificar a imagem feminina
é tão antigo, quais os motivos dessa linguagem artística reaparecer no
contemporâneo? Drag Queens como Divine, nos Estados Unidos, Leigh
Bowery, em Londres, e o grupo Dzi Croquetes, no Brasil, já faziam e/ou
flertavam com o movimento drag que conhecemos hoje, entretanto, uma
das possíveis causas é o reality show americano chamado “RuPaul’s
Drag Race”, comandado pela drag queen RuPaul, que é cantora, modelo
e atriz, e fez sucesso da década de 1990 por aparecer em diversos
programas e filmes.
Desde 2009, devido à primeira temporada do reality show, a
performance drag está cada vez mais presente na mídia. As competidoras
do programa começaram a lançar músicas, aparecer em filmes – algumas
delas protagonizando seus próprios filmes – e esse movimento foi
abrindo caminho para que drag queens de outros lugares e países
começassem a se tornar visíveis. Nosso exemplo mais próximo é a Pabllo
Vittar, drag queen que começou lançando um clipe na internet e hoje em
dia é reconhecida mundialmente – lançando músicas com vários artistas
584
nacionais e internacionais e chegando a ser a Drag Queen mais seguida
na rede social Instagram, ultrapassando as competidoras do reality show.
A inserção de drag queens na mídia tem um efeito positivo para
a comunidade LGBT que é a representação, ter acesso a sujeitos e
sujeitas que participem e comunguem do lugar da abjeção ao longo de
sua vida é importantíssimo para a formação de crianças, adolescentes e
até adultos que um dia poderão se identificar como lésbicas, gays,
bissexuais e/ou transsexuais. Entretanto, a presença constante na mídia
tem seu lado negativo devido a necessidade de identificação e
catalogação que temos socialmente. Em vez de lidarmos com a
ambiguidade da drag, que brinca com os limites dos gêneros, temos a
necessidade de classifica-las e encaixa-las em modelos de
comportamento. Uma vez classificadas, as drag queens, kings e queers
entram na lógica das políticas identitárias essencialistas – e a partir disso,
nos perguntamos: como a proposição de uma figuração drag nos auxilia
na problematização e subversão das políticas identitárias? Assim,
objetivamos questionar o essencialismo do sujeito contido dentro da
lógica da identidade, tendo como ponto de problematização a figuração
drag.
Método
O presente texto é um recorte de uma pesquisa mais ampla,
apresentada como Trabalho de Conclusão do curso de licenciatura em
Artes Visuais, pela Universidade Estadual de Maringá, intitulada “A
Performance Drag como Estética da Existência: pensando em
subjetividades pós-identitárias”. A metodologia utilizada é a
A/r/t/ografia, metodologia que surge da necessidade de se pensar
maneiras da pesquisa científica dar vasão às problematizações das
pesquisas em Artes. A a/r/tografia coloca a criatividade à frente no
processo de pesquisa, ensino e aprendizagem, pois além de metodologia,
é também uma pedagogia que foca em como desenvolver relações entre
o fazer artístico e a compreensão do conhecimento (DIAS, 2013). Sua
elaboração veio da incorporação do método cartográfico, que trata de um
585
conhecimento situado e parcial, buscando criar novas formas e
circunstâncias para desenvolvimento de novos conhecimentos, sentidos
e, porque não, visualidades.
A/R/T é uma metáfora para: Artist (artista), Researcher
(pesquisador), Teacher (professor) e graph (grafia:
escrita/representação). Na a/r/t/ografia, fazer, saber e realizar se fundem
para pensar em uma nova forma de se apresentar o conhecimento,
priorizando tanto a imagem como o texto em suas diversas formas de
hibridização.
586
subjetividade padrão – a do homem, branco, cisgênero, heterossexual –
para adentrarmos em um novo território subjetivo.
A figura de sujeito que iremos tratar aqui são as figurações
ciborgue e nômade, criadas, respectivamente, por Harraway (2013) e
Braidotti (2002). Ambas falam de uma visão descentralizada, multi-
dimensionada e entendem o sujeito enquanto ser dinâmico e mutante.
O ciborgue refere-se a uma nova subjetividade formada na
relação da mulher/homem com a máquina, com a natureza e com o
mundo, é um organismo híbrido formado pela realidade social e pela
ficção. Segundo Haraway (2013), o mundo contemporâneo está cheio de
ciborgues, criaturas que, ao mesmo tempo, são animais e máquinas. A
figura do ciborgue se apresentaria como uma figura pós-gênero, criando
uma quebra da noção binária de gênero, por se deslocar das limitações
de masculino/feminino, e consequentemente, uma quebra na sexualidade
“natural” humana.
587
homogeneização, renunciar e desconstruir a noção de uma identidade
fixa e estável, possuir uma consciência crítica que se nega a se ajustar
aos modos de pensamentos já estabelecidos. A autora ainda coloca que o
nômade tem a ver com transições, destinos não determinados, habilidade
de transitar por outros lugares, reterritorializar sua subjetividade,
conforme o trânsito no qual o sujeito se insere – por isso colocamos que
o nômade faz alusão a um ato, um ato de se entender e experimentar
enquanto devir, do que a uma representação figurativa “fixa”.
A pré-figura que antecede ambas figurações trata de
subjetividades conscientes do seu deslocamento e da sua habitação entre
as fronteiras de um sistema binário de identidade – de um sistema que
presa e pede para que o sujeito adentre em apenas uma camada e um
nível de experiência, um sistema que poda as inventividades de vida.
Quando nos referimos a sexualidades, o hibridismo do ciborgue e a
movimentação do nômade seriam uma figura “pós-identitária” que
desloca o sistema heteronormativo dos polos masculino e feminino e os
lançam em um campo mais apegado às experimentações do que às
representações de si (STUBS; TEIXEIRA FILHO; PERES, 2014),
utilizando imagens pré-fabricadas como figuras de autoidentificação.
Inspirados pela ideia de ser composto por outros fluxos, nos
perguntamos sobre a possibilidade de também criar outras figurações
para a subjetividade e para o sujeito. O objetivo que carregamos com
toda essa discussão é de se pensar uma nova forma de subjetividade, uma
hibridização da subjetividade nômade e ciborgue, por meio da
performance drag.
Nossa primeira concepção de drag é enquanto uma linguagem
artística, em que o artista incorpora um personagem, variando (ou não)
entre seu gênero, imitando ou não uma celebridade, atribuindo
comicidade, vieses políticos e até mesmo fantásticos à performance. Os
modos mais conhecidos de se fazer drag são as drag queens, quando um
homem incorpora um personagem feminino, e os drag kings, quando
uma mulher incorpora um personagem masculino. No entanto, achamos
que os modos mais conhecidos de se fazer drag são os únicos possíveis,
588
não lembramos que existem outros modos que são tão interessantes e tão
políticos quanto.
As tradicionais drag queens e drag kings possuem uma
infinidade de irmãs – como as que se denominam enquanto drag queers
e drags tranimals. Se pensarmos por níveis de experiência – já que
estamos falando em subjetividades – chegaremos a considerar que: a
drag queen seria uma aproximação a experiência feminina, a drag king
seria uma aproximação a experiência masculina, a drag queer seria a
atualização da experiência da artista estando em um entremeio entre os
gêneros, nem masculino, nem feminino, mas ambos – ou nenhum deles,
enquanto a drag tranimal aparece subvertendo toda essa lógica,
renunciando a sua subjetividade humana, a tranimal busca uma
experiência voltada aos outros seres – plantas, monstros não
humanoides, animais etc.
Louro (2016) salienta que a drag escancara a construtividade dos
gêneros perambulando e desestabilizando territórios muito bem
delimitados, como o masculino e o feminino, mas vemos que a
performance drag consegue desestabilizar até mesmo a fronteira do
humano e não-humano. Por isto, percebemos que “a drag é mais de um.
Mais de uma identidade, mais de um gênero, propositalmente ambígua
em sua sexualidade e em seus afetos” (LOURO, 2016, p. 21).
Inserimos a performance drag no enfoque da subjetividade por
pensar que esse ato performático pode, potencialmente, gerar um novo
tipo de figuração para a subjetividade, um hibridismo entre o nômade e
o ciborgue. Ao “se montar”, uma drag se movimenta entre os territórios
designados como masculino ou feminino, ela os atravessa,
permanecendo ou não na fronteira dos territórios de gênero. A
transitoriedade de territórios que a drag cria ao se montar remete a
complexidade e as multicamadas que Braidotti (2002, p. 10) destaca
quando faz referência ao sujeito nômade, “[...] a noção de nomadismo se
refere à ocorrência simultânea de muitos deles [lugares] de uma vez”. O
corpo de homem e o corpo de mulher, os lugares de práticas de
performances dissidentes, todas elas juntas e vividas por um mesmo
589
sujeito, camadas de experiências que se justapõem. Homem ou mulher,
quando montadas/os, possui a experiência de estar em outro lugar, de ser
outro do que se é.
Da mesma maneira, podemos pensar na subjetividade ciborgue.
A drag só se materializa por meio das maquiagens e indumentárias
usadas na “montação” – perucas, roupas, saltos, brincos, colares – e as
transformações não são somente visuais, mas físicas. Podemos
exemplificar isso com a drag king que precisa enfaixar os peitos para que
se esconda o volume do busto, mas, ao mesmo tempo, acrescentasse
volume no meio das pernas para imitar um falo. Drags queers e tranimals
utilizam uma infinidade de materiais como plásticos, plantas, pedaços de
metais, tudo colado, grudado e fixado ao corpo – uma bricolagem que
faz o sujeito adentrar outros níveis de experiência pela reconfiguração
que seu corpo vai ganhando, pela nova relação que esse corpo estabelece
com os outros sujeitos que o cercam. Podemos considerar tais acessórios
e práticas como acoplamentos, próteses, e processos de remodulação do
corpo, que caracteriza a subjetividade ciborgue apresentada por Haraway
(2013), uma forma de associação de homem-mulher-máquina, homem-
mulher-planta, ou somente, homem-mulher-tudo.
Como apresentado em trabalhos anteriores (BARRIONUEVO;
STUBS, 2017), forma-se assim, uma subjetividade drag, que permanece
na fronteira entre uma subjetividade masculina/feminina e até mesmo da
subjetividade humana, uma fusão da subjetividade nômade, encarando o
ato de se montar e se desmontar, com a subjetividade ciborgue,
encarando o acoplamento de materiais e a remodulação do corpo para se
criar a personagem. Delimita-se assim uma outra forma de sujeito, pós-
identitário, que se apoia na pré-figura existente atrás das figurações
nômades e ciborgues, a desterritorialização. Uma figuração drag, que se
forma juntamente na potência criativa de se imaginar um novo corpo e
uma nova imagem de si.
Essa lógica criada a partir de duas figurações pré-existentes – ou
melhor – as duas figurações que antecedem a conceitualização de uma
“figuração drag” já não cabem em uma lógica essencialista da
590
subjetividade e da identidade – portanto, com a figuração drag não é
diferente. Peres (2014, p. 144), nos coloca que uma visão essencialista é
aquela “[...] em que o corpo é observado, explicado, classificado e
disciplinado de acordo com a genitália [...]”. Afirma-se a partir dessa
visão uma relação que está em vigor desde o crescimento do
cristianismo, a consagrada conformidade sexo-gênero-sexualidade. Tal
lógica implica que determinado sexo designa seu gênero e o induz a uma
única forma de desejo – masculino-homem-hétero / feminino-mulher-
hétero.
50
Referência ao livro Bodies Thas Matter (1993) de Judith Butler.
591
temos acesso a outros campos de experiência. As políticas identitárias,
de acordo com Fernando Seffner (2011, p. 74), preferem seguir a máxima
“[...] de uma coisa ou outra, e por vezes apenas uma coisa, com total
exclusão da outra”. Essas políticas tomam nossos corpos como algo
cristalizado, encarando-os como um produto finalizado que não pode ser
mexido e tocado. Esse processo é ilustrado quando Guacira Lopes Louro
(2016, p.15) coloca que:
592
híbridos e pós-identitários, que se compõem por movimentos de
singularização, recorrendo menos a modelos normativos pré-existentes.
Afinal, para Milkolci (2011, p.39), “em termos políticos, a perspectiva
queer constitui uma proposta que se baseia na experiência subjetiva e
social da abjeção como meio privilegiado para a construção de uma ética
coletiva”.
A figuração drag funciona, nesse sentido, como uma linha de
fuga que auxilia o sujeito a não se deixar capturar pela regulação
biopolítica, que tende a fazer com que nossos corpos sejam agenciados a
se fixar e cristalizar em identidades prontas, fechadas, restritas, sexuais
e de gêneros totalizantes (PERES, 2014). As políticas identitárias
essencialistas auxiliam esse agenciamento, tomando normas sociais
como dadas e buscando uma assimilação conformista – além de acabar
tornando-se cúmplice de discriminações e desigualdades que essa
política tende a reforçar e não confrontar (MISKOLCI, 2011).
Considerações finais
Ao longo da pesquisa confirmamos a hipótese de que as políticas
identitárias que predominam a lógica de subjetivação atual não
comportam os dissidentes, as drag queens. Notamos que uma
subjetividade queer, nômade, ciborgue e, agora, drag não são
contempladas por uma política identitária que preza a fixação e a
territorialização definitiva da subjetividade. Na verdade, acreditamos
que essas políticas nunca se depararam com uma drag queen! Essa figura
caricata, e política, que na medida em que se cria, burla e quebra as
normas sociais de gênero, pode nos servir de exemplo de resistência à
uma lógica que tende a produzir identidades e subjetividades em massa,
padronizadas. Além do mais, como afirma Louro (2016, p.16), “mesmo
que existam regras, que se tracem planos e sejam criadas estratégias e
técnicas, haverá aqueles e aquelas que rompem as regras e transgridem
os arranjos”.
Percebemos a urgência, então, de se pensar em políticas
identitárias não essencialistas, que deem conta de discutir e entender sob
593
bases éticas, estéticas e políticas as demandas de sujeitos que não se
encaixam e não buscam se enquadrar em normas e padrões. De acordo
com Suely Rolnik (1993), uma prática ética-estética-política é assim
denominada, pois entendemos que: a prática é ética na relação que
estabelecemos em procurar as diferenças que se encontram em nós e nos
outros, uma relação de alteridade, afirmando o devir a partir dessas
diferenças; é estética, pois compreendemos que essa prática é do campo
da criação, criar uma estilística própria que se inscreve e se desenha no
nosso próprio corpo, como uma obra de arte; e é política, pois
concebemos que tal prática é um conjunto de ações que lutam contra as
forças que cessam o devir ao estratificar os sujeitos e subjetividades em
identidades fixas, essencialistas e fechadas ao que destoa à norma.
As fronteiras que territorializam nossa concepção de masculino
e feminino podem, e devem, ser ultrapassadas. Resistir a uma lógica de
homogeneização está no cerne das problematizações que uma drag
queen pode apresentar, pois, em sua “imitação” do feminino ou do
masculino, em sua negação da humanidade, essa linguagem artística
performática pode ser revolucionária. Apesar de tudo que foi colocado,
não queremos que todas e todos virem uma drag queen, um drag king,
queer ou tranimal.
594
identidades, antes mesmo de Gayatri Spivak falar sobre “essencialismo
estratégico. Para o filósofo, as identidades deviam ser usadas
politicamente, por um curto período de tempo, e que a longo prazo,
deveríamos pensar em estratégias políticas não pautadas na identidade,
questionar a imposição social que assume a sexualidade do indivíduo
como sua identidade. Nosso desejo é que cada um crie sua própria
trajetória, sua própria materialidade e visualidade – se existem políticas
que não tangenciam essas novas formas de vida, elas que se renovem,
que se coloquem em trânsito e que se redesenhem outras.
Referências
AMANAJÁS, Igor. Drag Queen: um percurso histórico pela arte dos
atores transformistas. Revista Belas Artes, nº 16, 2014.
595
PERES, Wiliam Siqueira. Corporalidades, desejos e políticas de
subversão. Revista Teoria e Prática da Educação, v. 17, p. 141-149,
2014.
596
EDUCAÇÃO SEXUAL E DE GÊNERO NA
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO E
DA EMANCIPAÇÃO: ARTICULAÇÕES
POLÍTICAS E PEDAGÓGICAS PARA A
CIDADANIA
597
Palavras-chave: Educação Sexual; Gênero; Políticas Públicas;
Educação.
Introdução
Pensando que a escola se trata de um espaço de encontro e
efetivação de toda expressão social, os acontecimentos na organização
social tendem a influenciar na estruturação do ambiente escolar de
maneira direta, assim como feitos políticos, sociais e econômicos.
598
Mediante a isso, é inválido pensar em educação e não pautar questões
políticas, logo, como objetivo de pesquisa, buscou-se examinar as
Políticas Públicas educacionais criadas para promoção da educação
sexual e de gênero em ambiente escolar na contemporaneidade,
analisando por um viés social suas particularidades.
Ante a isto, apresenta-se como compreensão inicial,
especificidades acerca de sexualidade e gênero, como aspectos sociais e
culturais, os quais são pertinentes para a articulação de reflexões em
torno da Educação Sexual e, de sua aplicabilidade como integrante do
currículo escolar. Refletindo em torno dos mecanismos envoltos pelas
temáticas, elencaram-se expressões políticas e normativas destinadas a
atender tais quesitos, discernindo sobre o ensino acerca das temáticas
sexuais, tomando como vista os Direitos Humanos e a relevância dos
mesmos.
A metodologia apresentada refere-se a uma pesquisa com caráter
de revisão bibliográfica, tendo entre os resultados análises de Leis
voltadas para o campo educacional e que repercutem na concepção de
educação sexual e de gênero. Dentre os referenciais abordados,
destacam-se os estudos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
(BRASIL, 1998), a Lei Maria da Penha Nº 11.340/06 (BRASIL, 2006) e
a Lei 18.447/2015 (BRASIL, 2015), efetivando a abordagem das
temáticas de diversidade, gênero, sexualidade e Educação Sexual. Para
além destes documentos, foram englobados: a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH) (1948) (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU,
1948), o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) (BRASIL,
1985), o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio
(PNLEM) (BRASIL, 2004), a Política Nacional de Saúde Integral à
População LGBT (BRASIL, 2011) e o Programa Brasil sem Homofobia
(BRASIL, 2006). Para além, são contempladas concepções de
privilégios, os quais mantêm-se instaurados junto ao poder e utilizados
por determinadas classes.
Ao falarmos de cidadania e direitos humanos, iminentemente
pensamos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
599
(ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948), a qual reconhece que todos
os indivíduos possuem os mesmos direitos. Refletir em torno deste
documento nos permite compreender direitos básicos inegáveis à
condição humana, os quais, costumam ser invalidados quando o
patriarcado se impõe frente a grupos vistos como minoritários. Essa
imposição de poder patriarcal e hierarquizante, oprime e cala diversos
públicos. Diante disso, criam-se ações governamentais para proteger e
amparar essas classes, tornando-se necessário ampliar as informações a
respeito das políticas criadas e dos motivos que levaram à criação das
mesmas.
A respeito dos informes em torno das leis citadas até o momento,
salienta-se a entrada destes discursos no ambiente escolar formal – o
qual, como já mencionado anteriormente, é o campo apropriado para a
fomentação de debates e elucidações – potencializa a compreensão
dos/as alunos/as sobre cidadania, política e igualdade de direitos. Assim,
pensando na educação como direito a todo ser humano, previsto na
Constituição Federal (BRASIL, 1988), a educação sexual enquadra-se
neste mesmo viés, amparada no Direito Internacional dos Direitos
Humanos como dignidade humana, se caracterizando um direito
inegável, conforme expõe Muñoz (2010). Almeja-se então, a partir do
diálogo e de respaldos teóricos adequados, resultar em debates que
contribuam para a conscientização dos/as estudantes quanto a igualdade
social e aos direitos civis, investindo assim, na construção individual do
sujeito e da sociedade.
600
entendido como classificação, utilizado para categorizar masculino e
feminino. Neste sentido, Scott (1995), expõe o termo gênero como
caracterização das relações sociais entre os sexos, definindo-os
socialmente.
A multiplicidade de sentidos do termo gênero em âmbito
sociocultural, tende a acomodar os sujeitos a incumbências sociais,
delimitadas de acordo com a identidade de gênero. Para Maio e Nezo
(2017) a identidade de gênero se trata de identidades sociais, logo,
compreendemos que ser mulher por exemplo é uma expressão da
construção social.
Gênero e sexualidade estão atrelados, posto que é imprescindível
ao falar de um, englobar o outro, pois, ambos tratam de construções nas
relações sociais. Partindo desse critério, destaca-se que a sexualidade é
vivida por todos os seres humanos, do nascimento até a morte, sendo
parte inerente de cada um/a, em que ao mesmo tempo que molda, é
moldada pela conjuntura social. Furlani (2009, p. 14) aponta que “a
sexualidade pode ser vista como constituída e constituinte das relações
sociais”. Isto posto, pode-se afirmar que as diversas conjunturas
históricas, em âmbito político, social e cultural, moldaram a sexualidade,
tal como a entendemos e conhecemos, reiterando com Furlani (2009) que
a compreensão em torno das vivências da sexualidade humana,
impactaram a sociedade, resultando em mudanças sociais.
Partindo do exposto que gênero e sexualidade são construções
históricas e sociais, fomentar o debate em torno destas contribui para a
construção dos sujeitos, educando-os subjetivamente e construindo
cidadania a partir do conhecimento de si próprio. Isto posto, evidencia-
se que a cidadania está atrelada à construção social e cultural dos
indivíduos membros da sociedade, exercitando a participação dos
mesmos, de maneira que o respeito e a igualdade são fundamentais. Em
consonância, integra-se com Maio (2011, apud CAVASIN, 2017) que a
abordagem da sexualidade no espaço escolar prediz a um assunto
urgente, necessitando estar vinculado aos aspectos culturais, sociais,
históricos e pedagógicos.
601
Articulando Políticas Públicas, Educação e diversidade
Para a discussão é necessário situar alguns aspectos referentes às
Políticas Públicas, as quais dizem respeito a “[..] tudo que um governo
faz e deixa de fazer, com todos os impactos de suas ações e de suas
omissões” (AZEVEDO, 2003 apud OLIVEIRA, 2010, p. 38). Em outras
palavras, para Aragusuku e Lopes (2014 apud CHAGAS, 2017), as
Políticas Públicas tangem as ações tomadas pelo Estado a fim de
gerenciar relações sociais e econômicas, postas no sistema de
organização capitalista. Mediante aos expostos, compreendendo que se
tratam de ações governamentais, ressalta-se que a importância das
políticas públicas criadas no viés da diversidade está voltada para a
garantia e cumprimento efetivo dos direitos, atendendo as necessidades
de um determinado público.
Atualmente, ao se pensar em políticas públicas que abarcam as
minorias, são envolvidos aspectos como raça, etnia, gênero e classe
social. Cavasin (2017), destaca que entre as categorias discriminadas
encontram-se negros/as, indígenas, idosos/as e homossexuais. Para além,
podemos citar o público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais), mulheres e crianças entre outras categorias de
cruzamentos, às quais por sua extensão não caberiam ao longo deste
trabalho. Cabe especificar que as esferas classificadas como minoritárias,
independem da quantificação do grupo, referindo-se então as minorias
políticas (TIBURI, 2018).
Em conformidade, Chagas (2017) revela que o público LGBT
sobretudo travestis e transexuais, tem sido ao longo dos anos
marginalizados/as, sendo colocados/as em situação de vulnerabilidade e
exclusão, conjuntura posta diante da ausência de políticas públicas
brasileiras destinadas a essa população. Chagas (2017) pondera que as
políticas públicas pensadas para atender o público LGBT, visam efetivar
a garantia de direitos e de cidadania, de modo que a falta de legislações
reforça a violência estrutural naturalizada. Torna-se viável mencionar
que as decisões tomadas em âmbito político para as camadas
minoritárias, bem como a participação desses grupos nestes cenários,
602
atuam como modos de afirmação da identidade dos/as mesmos/as, como
expõe Tiburi (2018).
A partir destes expostos, ao pautar questões políticas, bem como
de direitos civis, torna-se viável abranger a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948) (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948),
devido a sua definição como um marco dos direitos civis e de cidadania,
motivo de empregar o documento na construção do trabalho em questão.
Na DUDH (1948), se reconhece que todos os indivíduos têm os mesmos
direitos, logo, a interpretação prediz que independente da identidade de
gênero, se tem a garantia dos direitos individuais, enxergando a todos/as
como pessoas de direitos.
A DUDH (1948) apresenta que todos/as somos iguais perante a
lei. Isto posto, cabe refletir que a sociedade patriarcal e opressora
invalida essa igualdade de direitos, sobrepondo seus privilégios às
minorias e tratando-as de maneira desigual, não respeitando a
individualidade humana. Para mais compreensão acerca do que são os
ditos privilégios, entende-se com Tiburi (2018) que são condições
vantajosas desiguais, de um grupo ou indivíduo sobre os/as outros/as.
Essa desigualdade como forma de violência se impõe como discurso
opressor, conforme exibem Maio e Nezo (2017), manifestando-se com
práticas de imposição de poder, atuando e controlando os sujeitos de
maneira hierárquica, impondo assim, padrões que evidenciam diferenças
e rejeitam a igualdade entre os indivíduos.
A partir dessas desigualdades instauradas, torna-se necessária a
criação de políticas públicas para legitimidade, validação e cumprimento
de direitos civis. Por conseguinte, com base em Tiburi (2018), reitera-se
que a busca por direitos civis parte da luta política, a qual requer postura
ética e democrática, livre de contradições sociais, violência de poder
opressor e o moralismo oriundo da burguesia.
É válido repensar que as posturas heteronormativas, machistas e
misóginas naturalizadas junto à sociedade, reproduzem complicações
para a efetivação de políticas públicas destinadas a atender a população
LGBT, como revela Chagas (2017). Diante das posturas citadas, Farah
603
(2004 apud MELLO; MAROJA; BRITO, 2010) afirma que as ações
governamentais pensadas para atender carências ditas universais,
reafirmam as desigualdades existentes, além de menosprezarem
necessidades de determinados segmentos, logo, estas políticas
universalistas tendem a compactuar com as opressões e discriminações.
Chagas (2017) complementa que a ausência de legislações que
garantam a segurança do público LGBT, atribui ao Brasil a colocação de
país com maior índice de mortes de pessoas trans. Diante deste contexto,
Mello, Maroja e Brito (2010) defendem que a criação de políticas
públicas visa a superação de opressões sexuais e de gênero.
Buscando a superação de tais violências, entende-se que a
educação torna-se um mecanismo para isso, logo, é válido inteirar que a
escola é o lugar capacitado para tirar dúvidas e construir saberes; a
educação das temáticas sexuais em ambiente escolar visa possibilitar
ao/à aprendiz conhecer-se, entender e respeitar seu corpo e, os corpos
dos/as outros/as, bem como a identidade de cada indivíduo. Para tanto,
Martin (2017) defende que a escola tem como incumbência proporcionar
a educação integral de qualidade, englobando diversos assuntos, a fim de
formar cidadãos/ãs de direito.
Em se tratando de ações governamentais destinadas a atender as
minorias políticas, Mello, Maroja e Brito (2010) apontam que isto se deu
em razão da transição democrática dos anos 1980, possibilitando a
implementação de políticas públicas sociais. Em complemento,
compreende-se com Chagas (2017) que a Política Nacional de Saúde
Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política
Nacional de Saúde Integral LGBT) do Sistema Único de Saúde – SUS,
Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011), refere-se
a um marco histórico na elaboração de políticas públicas destinadas a
esta comunidade. Através da autora, entende-se que, como mecanismo
de combate à homofobia e transfobia, essa normativa concentra-se
direcionada às questões de saúde, abrangendo a utilização do nome
social, a hormonioterapia e a cirurgia de transgenitalização, desta
604
maneira, atuando em prol da cidadania e dos direitos humanos da
população LGBT.
A historicidade das pautas em torno de igualdade de gênero no
contexto brasileiro, bem como internacionalmente, voltadas para atender
preocupações com a educação intensificam-se na década de 1990, como
ressalta Cavasin (2017), visando o desenvolvimento mundial. Com estas
novas necessidades, a autora dialoga que as decisões normativas voltadas
para as instituições escolares, objetivaram adequar-se ao princípio
democrático de igualdade de condições, de acesso e de permanência,
firmando o trabalho pedagógico em atividades teórico-práticas com
abordagem pertinente ao contexto vigente.
A partir destas urgências, o decênio de 1990 compõe para a
educação os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), nesse
documento, é obrigatória a abordagem das discussões acerca da
educação sexual, por meio de profissionais capacitados/as e que
dominem o assunto.
O PCN (BRASIL, 1998) para a Educação Fundamental,
apresenta as temáticas sexuais como Temas Transversais, abrangendo no
volume 10 a Orientação Sexual, que recebe aqui o sentido de instruções,
“[..] a implantação de Orientação Sexual nas escolas contribui para o
bem-estar das crianças e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual
e futura” (BRASIL, 1998, p. 79). A formulação desse material,
desmistificado de tabus ou cargas pejorativas, tem a mesma importância
que os demais instrumentos normatizadores para a educação, almejando
entre os resultados, garantir a interação dos/as alunos/as com o meio e a
cultura.
Martin (2017) reitera que ao propor educação sexual, o PCN
(BRASIL, 1998) apresenta pautas acerca do trabalho de gênero. Isto
posto, de acordo com esse material “a discussão sobre relações de gênero
tem como objetivo combater relações autoritárias, questionar a rigidez
dos padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar
para sua transformação” (BRASIL, 1998, p. 99). Logo, compreende-se
que as questões de gênero presentes no material, ofertam subsídios para
605
a igualdade e a superação de violências e preconceitos presentes no
espaço educacional.
Com base no cenário político e social brasileiro delineado ao
longo dos anos, construído com base em posturas moralistas e
patriarcais, percebe-se a carência da criação de políticas públicas
educacionais voltadas para as questões da igualdade de gênero. Isto
posto, buscando atender essa demanda, destaca-se a Lei Nº 11.340/06
(BRASIL, 2006), que se propõe a refrear a violência doméstica e familiar
contra as mulheres, apresentando medidas integrais de prevenção para
assistência daquelas que se encontram em situações de risco. A Lei Maria
da Penha, em seu Artigo 8º, aborda questões pertinentes à educação,
como a interação com diferentes áreas, o fomento de estudos e pesquisas
voltados para gênero, bem como o estímulo de campanhas educativas e
programas educacionais. O presente artigo prediz ainda, que a Lei em
questão deve manter-se entre os currículos escolares, logo, é observável
a comunicação entre essa política e a educação.
Como respaldo, articula-se por meio de Cavasin (2017) que o
cotidiano escolar apresenta constantes desafios, dessa forma, entender a
igualdade de gênero no território escolar pode possibilitar compreender
a complexidade social vivida dentro e fora da escola.
Cabe expor que a urgência de abordagem das questões de gênero
em espaço educacional formal, sobretudo acerca das manifestações de
poder do homem sobre as minorias, fomentou a Lei Nº 18.447 (BRASIL,
2015), criada em 18 de março de 2015. Originária da Lei Nº 11.340/06
(BRASIL, 2006), o Estado do Paraná estabeleceu a Lei 18.447 (BRASIL,
2015), instituindo a realização da Semana Estadual Maria da Penha nas
escolas durante o mês de março, buscando proporcionar respeito,
igualdade e direitos humanos, sobretudo a reflexão e a conscientização
do combate a violência contra a mulher. A elaboração da Lei 18.447
(BRASIL, 2015), reforça a necessidade de reflexão e debate em torno
das desigualdades de gênero, sobretudo em âmbito educativo.
A ação do governo do estado do Paraná com relação à
abordagem da educação no viés de gênero, reitera o que Muñoz (2010)
606
expõe como competência dos Estados, pois, para o autor, tange aos
governos estaduais garantir que o acesso à informação não seja limitado,
bem como concerne à escola incitar o pensamento crítico dos/as
estudantes, as expressões acerca da sexualidade e as relações
interpessoais, pois, a educação sexual está amparada no Direito
Internacional dos Direitos Humanos como dignidade humana, assim, se
caracterizando como direito inegável. Para Cavasin (2017) a escola
prediz a um espaço de formação integral, que fomente uma instrução
crítica, em prol de diminuir violências. Posto isto, por meio das
articulações de Cavasin (2017), compreende-se que as ações educativas
reflexivas tendem a contribuir para a superação de divisões históricas.
Não obstante ao que se refere às políticas para a educação, com
amparo em Vieira, Matsukura e Vieira (2017), destaca-se o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) e a Lei de Diretrizes
e Bases (LDB) (BRASIL, 1996). O ECA (BRASIL, 1990), Lei Nº 8.069,
de 13 de julho de 1990, como política pública voltada para atender
crianças e adolescentes, visa garantir os direitos destes/as sujeitos/as,
caracterizando-os/as como pessoas de direitos e responsabilidades.
Quanto à LDB (BRASIL, 1996), esta mantém-se voltada para a
educação, pautando disciplinas escolares, conteúdos e transversalidade.
Além das políticas voltadas para atender as necessidades
educacionais, bem como infanto-juvenis de maneira ampla, como as
anteriormente citadas, destaca-se que no território político foram
elaborados instrumentos específicos para introduzir as temáticas sobre
gênero e sexualidade no terreno escolar. As discussões em torno de
gênero, sexualidade e direitos humanos percorrem diferentes esferas,
repercutindo em tentativas de implementação de políticas. Como
resultado, Marcon, Prudêncio e Gesser (2016) apontam o surgimento do
Programa Brasil sem Homofobia (BRASIL, 2004), elaborado em 2004.
Esta ação visa introduzir no meio escolar a temática diversidade sexual,
possibilitando debater orientação sexual, igualdade e identidade de
gênero, como direitos inerentes aos seres humanos. Mello, Maroja e
Brito (2010) apontam a institucionalização do Programa Brasil sem
607
Homofobia articula-se às políticas públicas direcionadas à saúde da
população LGBT no Brasil, envolvendo saúde e educação.
Em continuidade, Marcon, Prudêncio e Gesser (2016)
descrevem que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o
Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM),
atuam como mecanismos para a promoção e garantia da diversidade
sexual em livros didáticos, pois, o PNLD e o PNLEM são incumbidos da
elaboração de materiais didáticos para o ensino público, como exibem
Rios e Santos (2008 apud VIEIRA; MATSUKURA; VIEIRA, 2017).
Mediante a isto, ao incluir as temáticas sexuais nos materiais didáticos,
busca-se contribuir para uma educação integral, com base na cidadania e
nos direitos humanos.
Pensando nisto, é válido questionar as barreiras postas diante da
educação sexual e de gênero, invalidando as tentativas e os avanços de
uma educação integral e emancipatória articulada a estas questões. Em
respaldo, compreende-se com Muñoz (2010) que a relutância frente às
temáticas sexuais advém das condições impostas pelo patriarcado,
ditando a supremacia de homens sobre as mulheres, pois, como
argumenta Martin (2017), ao longo dos tempos o poder se concentrou
exclusivamente junto ao homem ‘macho’. Historicamente o território
público era destinado apenas aos homens brancos, livres, de modo que,
mulheres e escravos se limitavam à participação privada, evidenciando
marcações de gênero e classe, desse modo, segregando espaços de
participação política ao longo da história (TIBURI, 2018).
Ao designar o território político e social como unicamente
masculino, concentra-se o poder nas mãos dos homens (a destacar que se
tratam da parcela hegemônica: homens brancos, heterossexuais e
cisgêneros), fomentando a desigualdade entre os gêneros. Para Tiburi
(2018), essa divisão desigual de poder, promove culturalmente a
manifestação da violência doméstica, pois, “a equação política continua
evidente: de um lado estão as mulheres e a violência doméstica, de outro,
estão os homens e o poder público” (TIBURI, 2018, p. 107). Postula-se
que a crítica em questão refere-se ao fato de que embora passaram-se
608
séculos, o mesmo grupo permanece atuando junto às causas políticas,
negociando maneiras de continuar concentrando o poder para si e
invisibilizando pautas políticas e sociais acerca de gênero e sexualidade,
pois, como reitera a referida autora, quanto maior o domínio de poder,
maiores são os privilégios de quem os detém.
Como dispositivo de superação, Tiburi (2018) alega que para
adentrar à esfera política, é necessário romper a blindagem de poder
instaurada, como mecanismo de transformação para a luta política. Essas
medidas e definições estão voltadas para o trabalho em prol da igualdade
de gênero e do respeito, pois, partindo da concepção social de gênero e
da sobreposição de poder imposta sobre as minorias, conceitua-se a
educação nesse viés, como um mecanismo de empoderamento, capaz de
destruir desigualdades.
Para que que a desconstrução de fatores hierárquicos e
hegemônicos no ambiente educacional de fato ocorra, são necessárias
conversas contextualizadas, que envolvam aspectos humanos subjetivos
e atendam aos princípios educacionais e pedagógicos basilares da
instituição escolar, articulados em saberes e atitudes para alcançar a
emancipação humana.
Isto posto, Junqueira (2010 apud CAVASIN, 2017) revela que
diferentes discursos inundam o território da escola, de modo que,
variados temas necessitam compor o currículo, pois, como completa Da
Silva (2013 apud CAVASIN, 2017) aprendizagens sociais e culturais
cotidianas na escola participam do currículo de forma oculta, mesmo
ausentes das formalidades dos planos pedagógicos. Dito isso, Muñoz
(2010) expõe que a oferta de educação sexual escolar, requer o exercício
de se habituar as diferenças culturais e etárias dos/as educandos/as, por
meio de estratégias educacionais.
Em suma, a escola é o local apto para subsidiar diferentes
conteúdos e fomentar a aprendizagem de alunos e alunas, com base em
uma formação humana integral e de qualidade, capaz de fomentar
igualdade, respeito, autonomia e cidadania. Para tanto, a instauração de
discussões acerca das temáticas sexuais necessita articular-se
609
teoricamente, sendo problematizadas de forma efetiva como integrante
curricular. Com isto, pondera-se a necessidade de repensar legislações
voltadas para o ambiente educacional, como forma de garantir a oferta
de educação sexual e de gênero, e assim, superar violências.
Considerações finais
Com base no objetivo de pesquisa, o estudo perpassou por
questões socioculturais como sexualidade e gênero, visando
compreender como estas discussões são repercutidas no espaço escolar e
consequentemente empregadas como mecanismos de superação de
desigualdades e violências, contribuindo para a emancipação humana e
o empoderamento.
Ante as análises realizadas, evidenciando que diferentes
discursos adentram ao território escolar, por vezes trazidos por alunos/as,
bem como agentes escolares, enfatiza-se a necessidade da completude do
currículo, possibilitando a abordagem integral de diferentes assuntos,
logo, apontou-se a necessidade de contextualizar gênero e sexualidade.
Mediante a isso, propõe-se que, para compreender a construção
da sexualidade humana, deve-se identificá-la como parte inerente do ser
humano, concomitantemente, se define gênero como uma composição
histórica, social e cultural. Diante disso, vinculam-se os discursos, sendo
inviável afastar um aspecto do outro, ou seja, ao falar de sexualidade se
discute gênero. Partindo dos debates acerca das influências advindas das
temáticas sexuais, possibilitou-se retratar parcialmente o campo da
educação sexual em ambiente escolar para a promoção de cidadania e
igualdade. A fim de promover elucidações acerca da temática sexual,
compreende-se a necessidade da formulação de políticas públicas
próprias, criadas com base na igualdade de direitos.
Para possibilitar a entrada dos discursos de gênero nos ambientes
educativos, validando e legitimando as falas, torna-se necessária a
elaboração de políticas que amparem o assunto. A partir disso, o trabalho
em questão englobou o PCN, a Lei Maria da Penha Nº 11.340/06 e a Lei
18.447/2015, que abordam diversidade, trabalhando gênero, sexualidade
610
e Educação Sexual. Com destino ao território escolar, evidenciou-se
também o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa
Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM),
responsáveis pela garantia da diversidade sexual em livros didáticos de
escolas públicos.
Como marco para a conquista de direitos universais, se
apresentou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). No
âmbito da educação, constam o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) (BRASIL, 1990) e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL,
1996). Como mecanismo de atuação em prol da cidadania e dos direitos
humanos da população LGBT, abordou-se a Política Nacional de Saúde
Integral à População LGBT, além do Programa Brasil sem Homofobia.
Em suma, estes mecanismos respaldados em lei, garantem o
acesso das temáticas gênero e sexualidade na escola, logo, fomenta-se a
crítica quanto à invalidação destes materiais e a tentativa de exclusão dos
temas defendidos, bem como a existência de discursos opressores
proferidos, pois, ao invalidar as falas sobre gênero e sexualidade, se
promove a segregação de grupos minoritários, calando-os.
Reconhecendo a necessidade de abordar gênero e sexualidade no
ambiente de ensino, orienta-se quanto as práticas pedagógicas, a
implantação de diálogos livres de preconceitos ou constrangimentos.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
611
CAVASIN, Maria de Fatima Soares. O gênero na função do/a agente
educacional – uma escola sem um homem é como um peixe sem uma
bicicleta. In: MAIO, Eliane Rose (Org.). Educação, gênero e
feminismos: resistências bordadas com fios de luta. Curitiba: CRV,
2017, p. 79-92.
612
MELLO, Luiz; MAROJA, Daniela; BRITO, Walderes. Políticas
Públicas para população lgbt no Brasil: um mapeamento crítico
preliminar. Anais do 9º seminário internacional Fazendo Gênero -
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Santa Catarina, SC, Brasil,
2010.
613
GÊNERO E DIVERSIDADES NO ENSINO
MÉDIO: EMBASAMENTOS CURRICULARES
PARA O ENSINO DE ARTES E DE SOCIOLOGIA
614
destas questões, defende-se entre os resultados, que ensinar no Ensino
Médio conteúdos sobre gênero, sexualidade e diversidades, nas suas
múltiplas dimensões, é um direito dos professores, assim como aprendê-
los, sob uma vertente crítica e focada na redução das diversas formas de
exclusão e de desigualdades, é um direito das juventudes.
Palavras-chave: Gênero. Diversidades. Políticas Curriculares.
Sociologia. Artes Visuais
The text shows that, despite the suppression of sexuality and gender
content in Law nº13.005/14 and, in the case of Paraná, Law nº18.492/15,
as well as the regressions with Law nº13.415/17, some teachers are
unaware of reference curriculum documents, legal backing to work with
such content. These bases are found fundamentally in CF/1988 and Law
nº9.394/1996. In the case of Basic Education, in addition to the
PCNs/1998 of Sexual Orientation and Resol.CNE nº4/2010, demanding
the work with the diversities in the schools, Resol.CNE nº1/2012 that
establishes National Guidelines for the Education in Human rights.
When it comes specifically to secondary education, it can be seen that
there are curricular bases for the insertion of the representations and
knowledge of the different sociocultural subjects, both in the assumptions
of the National Curricular Guidelines (2012) and the OCNs/2008 of
Sociology and Arts. Still focusing on these disciplines, in the case of
Paraná, the historical-critical conceptions persist in the State Curricular
Guidelines (2008), supporting more inclusive pedagogical practices.
Beginning in 2015, in the context of attacks from neoconservative
movements that try to suppress the teachers' social right to teach, this
debate gained new impetus with the publication of Resolution CNE/CP
nº. 02/2015, which defines National Curricular Guidelines for initial and
continued. In this context, after using documentary analysis as a
methodological procedure, from a qualitative methodology perspective,
the text proposes to theorize sociologically and from the point of view of
the Visual Arts, the relevance of the insertion of the contents of sexuality,
615
gender and diversity, with a focus on the reduction of inequalities. In the
light of these issues, it is defended among the results, it is argued that
teaching in content in the multiple dimensions of gender, sexuality and
diversity in the high school is a right of teachers, as well as to learn them,
in a critical and focused way in reducing the various forms of exclusion
inequalities, it is a right of young people to.
Key-words: Genre. Diversities. Curricular Politics. Sociology. Visual
Arts.
Introdução
Dentro da proposta do “V Congresso Brasileiro de Educação
Sexual UNESP/UEL/UDESC”, intitulado “Interseccionalidade e
Transgressões em Educação Sexual”, que ocorreu no período de 01 a 03
de novembro de 2018 na UEL (Universidade Estadual de Londrina), de
mostrar a relevância da educação sexual como necessidade interventiva
na escola, decorrente de uma formação tanto curricular quanto
continuada, alicerçada na interdisciplinaridade, no questionamento, na
cidadania e no direito, este artigo “Gênero e diversidades no Ensino
Médio: embasamentos curriculares para o ensino de Artes e de
Sociologia”, apresentado como comunicação oral no Eixo Temático 05
“Sexualidade, gênero e diversidade”, tem a intenção de relembrar os
pressupostos de documentos educacionais referenciais em vigência,
conquistados com a participação política de professores e estudantes,
mostrando que estes podem embasar tanto o trabalho pedagógico
cotidiano quanto a defesa daqueles que estão sendo atualmente atacados
nos seus direitos de ensinar e de aprender os conteúdos relativos às
diversidades, às identidades, às diferenças e aos pertencimentos,
especialmente nas disciplinas de Artes Visuais e de Sociologia nas
escolas públicas de Ensino Médio do Paraná.
Para tanto, o artigo parte rapidamente das reflexões acerca das
supressões dos conteúdos de sexualidade e de gênero na Lei nº13.005/14
que trata do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e na Lei
nº18.492/15 que se refere ao Plano Estadual de Educação do Paraná
616
(2015-2025), dialogando-as com os retrocessos decorrentes da
publicação da mais recente Reforma do Ensino Médio materializada na
Lei nº 13.415/17, especialmente no que tange à desvalorização das
disciplinas da área de Ciências Humanas, que se tornam “estudos e
práticas de...”.
Na sequência, apresenta os respaldos legais que os professores
ainda possuem para trabalhar com tais conteúdos, buscando-as
fundamentalmente na Constituição Federal de 1988 e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9.394/1996). No caso da
Educação Básica, lembra os Parâmetros Curriculares Nacionais de
Orientação Sexual (PCNs/1998) e a Resol.CNE nº 04/2010 que trata das
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, além do valioso
documento que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em
Direitos Humanos pela Resol.CNE nº 01/2012, onde os conteúdos
relacionados às sexualidades, às diversidades de gênero, às identidades,
às diferenças e a todos os pertencimentos socioculturais com foco na
redução de todas as formas de desigualdades ganham respaldo legal,
apoiando a relevância dos saberes e das representações de todos os
sujeitos históricos nos currículos escolares.
No que diz respeito especificamente às disciplinas de
Sociologia e de Artes no Ensino Médio, busca-se embasamentos
curriculares nos pressupostos das DCNs/2012, das Orientações
Curriculares Nacionais (OCNs/2008) e nas concepções histórico-críticas
das Diretrizes Curriculares Estaduais do Paraná (DCEs/2008). No caso
do respaldo desse trabalho pedagógico com as diversidades nos cursos
de licenciaturas de Artes Visuais e de Sociologia/Ciências Sociais, apoia-
se nas exigências da Resolução CNE/CP nº02/2015, que define as mais
novas diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial e
continuada dos profissionais do magistério, trazendo em seu Artigo 13,
entre outras contribuições, a obrigatoriedade da inserção dos conteúdos
de diversidades sexuais e de gênero na formação desses profissionais.
O artigo vale-se da análise documental como procedimento
metodológico, na perspectiva da metodologia qualitativa e busca teorizar
617
sociologicamente e sob o ponto de vista das Artes Visuais, a importância
da inserção dos conteúdos de sexualidade, gênero e diversidades, com
foco na redução das desigualdades na formação dos estudantes do Ensino
Médio. Como destacado no resumo, defende que o ensino desses
conteúdos é um direito dos professores, assim como aprendê-los, sob
uma vertente crítica e focada na redução das diversas formas de exclusão
e de discriminação, é um direito das juventudes.
618
No caso das supressões dos conteúdos de gênero no PEE/PR,
por uma questão de recorte, resumimos tais retrocessos comparando o
documento elaborado pelas associações, sindicatos e demais entidades
representativas, encaminhado ao Legislativo51 do Paraná, com o texto
final publicado como Lei, sob o nº 18.492/15. Fazendo-se uma análise
documental mais apurada de comparação entre os dois documentos,
percebe-se que no lugar de “questões de gênero” ou de categorias sociais
correlatas, nas estratégias das metas do novo PEE/PR foi inserida a
expressão “respeito entre homens e mulheres”, desconsiderando o
sentido sociohistórico, político, científico e cultural do conteúdo, assim
como as representações dos saberes e das lutas desses sujeitos por uma
sociedade menos injusta, menos excludente e menos preconceituosa.
Destaca-se que esses retrocessos nos planos educacionais
ganham respaldo com a publicação da Lei nº 13.415/2017. O próprio
título longo da Lei registra bem os retrocessos e as perdas de direitos para
os professores e os estudantes do Ensino Médio, principalmente para os
filhos da classe trabalhadora: “Altera as Leis nº 9.394/1996, que
estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e nº 11.494/2007,
que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 01/05/1943 e o Decreto-Lei nº 236/1967; revoga a Lei nº
11.161/2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”.
Entre tantos outros problemas, destaca-se, sobretudo,
retrocessos para a área de Ciências Humanas e para outros avanços
democráticos que já estavam garantidos na LDB/1996, por exemplo, a
obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia, de Artes, de Espanhol e
51
A versão encaminhada ao Legislativo encontra-se no site:
http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/PEE/PEEPR_ANEXO_UNICO.p
df. Acesso em 02/02/2018.
619
de outros saberes fundamentais para a formação das juventudes que
agora são tratados na Lei nº 13.415/2017 como “estudos e práticas de...”
ou simplesmente ignorados no texto da lei, como é o caso da Geografia.
Lembra-se o que a alteração no Fundeb (Lei nº 11.494/2007),
conquistado às duras lutas pelos movimentos de professores, de
estudantes e dos demais movimentos sociais, pode trazer significativas
consequências para a permanência dos estudantes do Ensino Médio nas
escolas da rede pública. Enfatiza-se, ainda, os prejuízos na alteração da
CLT no bojo de outras reformas, efetivadas ou em curso, que
materializam perdas substanciais de direitos trabalhistas dos professores
e das juventudes da classe trabalhadora: Reforma da Previdência em
curso (PEC nº 287/2016); Reforma da Terceirização (Lei nº
13.429/2017). Reforma Política em curso (PEC nº282/2016); Reforma
Trabalhista (Lei nº 13.467/2017).
620
de conhecimento ou interdisciplinares, seus
fundamentos e metodologias, bem como conteúdos
relacionados aos fundamentos da educação,
formação na área de políticas públicas e gestão da
educação, seus fundamentos e metodologias,
direitos humanos, diversidades étnico-racial, de
gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional,
Língua Brasileira de Sinais (Libras), educação
especial e direitos educacionais de adolescentes e
jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas. (BRASIL, Resolução CNE/CP nº
02/2015, Art.13, § 2º, p.11). (Grifo nosso).
621
outras [...]. (BRASIL, Resol.CNE nº01/2012,
p.516-517).
622
entrelaçam na vida social – pobres, mulheres,
afrodescentendes, indígenas, pessoas com
deficiência, as populações do campo, os de
diferentes orientações sexuais, os sujeitos
albergados, aqueles em situação de rua, em
privação de liberdade – todos que compõem a
diversidade que é a sociedade brasileira e que
começam a ser contemplados pelas políticas
públicas”. (BRASIL, PARECER DCNs-Ed.Básica,
2013, p.16).
623
com foco na redução das diversas formas de desigualdades. (LIMA at al,
2018). Como já bem pontuado pelas Orientações Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, a
“valorização da pluralidade e da diversidade cultural em todos os
âmbitos e manifestações da Arte contempla conceitos e princípios
básicos da disciplina Arte” (BRASIL, OCNs-Artes, 2006, p.203).
624
p.186). As Orientações são enfáticas ao dizer que “como no ensino de
Arte ainda vigora o padrão eurocêntrico, faz-se necessário questionar os
jogos de poder que legitimam as diferenças como verdades artísticas,
estéticas e culturais”. E ainda, “o direito à livre expressão afetivo-sexual
e à livre orientação de gênero amplia oportunidades de envolvimento e
superação do preconceito em relação às atividades artísticas”. (Idem,
p.203).
625
muito importante. Mas, mesmo antes de sua obrigatoriedade como lei
nacional, suas contribuições na ampliação do pensamento crítico das
juventudes, junto com outras disciplinas do currículo do Ensino Médio,
já estavam demarcada nas OCNs-Sociologia.
626
processos de desnaturalização e de estranhamento dos fenômenos
sociais. (LIMA, et al, 2018). Ou seja, “entende-se que esse duplo papel
da Sociologia como ciência – desnaturalização e estranhamento dos
fenômenos sociais – pode ser traduzido na escola básica por recortes, a
que se dá o nome de disciplina escolar”. (BRASIL, OCNs-Sociologia,
2006, p.107). Este duplo papel de desnaturalização e de estranhamento
dos fenômenos sociais respalda o trabalho dos professores desta
disciplina no estudo das diversidades e das desigualdades de gênero. No
caso do Paraná, as DCE/PR de Sociologia (2008), embasadas na
concepção histórico-crítica, dá suporte curricular legal aos professores
da área para desnaturalizarem e problematizarem tais relações de
desigualdades sexuais e de gênero, inclusive permitindo que se façam
correlações deste saber com os conteúdos estruturantes exigidos no
documento.
Depois das pesquisas científicas de tantos clássicos da
Sociologia/Ciências Sociais e das Artes Visuais, do trabalho crítico e
responsável respaldado pelos profissionais da educação das duas áreas
nas escolas e nos cursos de licenciatura, dos referenciais legais e
pedagógicos de tantos documentos curriculares avançados do ponto de
vista da construção coletiva, a exemplo das DCNs-Educação Básica
(2013), das OCNs (2006), das DCE/PR (2008) e da Resolução CNE/CP
nº 02/2015, demarcados por direitos já garantidos na CF/1988, na
LDB/1996 e no PNE (2014-2024), vive-se atualmente um contexto de
muitas incertezas e de muitas perdas das conquistas coletivas nos direitos
dos professores e das juventudes da classe trabalhadora com a Lei nº
13.415/17, com a Base Nacional Comum Curricular referente ao Ensino
Médio, com as reformas neoliberais aprovadas e em curso e com a
ascensão da extrema direita a partir dos resultados das eleições de
outubro de 2018.
Considerações finais
Na literatura há uma infinidade de autoras que respaldam esses
debates sobre a relevância dos conteúdos de gênero e de sexualidades
627
nas políticas curriculares. Respeitando as especificidades, as concepções
e os contextos de cada pesquisa, os professores de Sociologia/Ciências
Sociais e de Artes Visuais podem se embasar, por exemplo, nos estudos
de Louro (2001), de Butler (1998), de J.Scott (1990), em H. Saffiotti
(2013) que explica bem o nó entre classe, gênero e raça nas dinâmicas
de desigualdades da sociedade brasileira contemporânea, dentre outras.
No âmbito local, como expusemos mais detalhadamente na
apresentação oral do artigo no Congresso ocorrido no início de novembro
de 2018, há muitas pesquisas científicas que já refletiram sobre tais
problematizações acerca das diversidades, das identidades e das
desigualdades de gênero no Ensino Médio, por exemplo, as dissertações
defendidas no Mestrado em Ciências Sociais da UEL: Feminismos e
antifeminismos na política brasileira: “Ideologia de gênero” no
PNE/2014 (MORENO, 2016); As interseccionalidades entre gênero,
raça/etnia, classe e geração nos livros didáticos de Sociologia (PRADO,
2016); Nome Social como política pública nas IEES/PR: coalizões,
permanências e persistências (GOMES, 2017); Gênero nos currículos e
nas percepções dos estudantes do Ensino Médio: uma caracterização
sociológica (CRUZ, 2017). E, como foi o foco geral desse artigo, ainda
temos em vigência muitos documentos curriculares nacionais e estaduais
(no caso do Paraná) que respaldam nosso direito social de ensinar
cientificamente gênero como categoria social nas escolas.
É evidente que “a educação para todos não é viabilizada por
decreto, resolução, portaria ou similar, ou seja, não se efetiva tão somente
por meio de prescrição de atividades de ensino ou de estabelecimento de
parâmetros ou diretrizes curriculares”. Sabe-se que “a educação de
qualidade social é conquista e, como conquista da sociedade brasileira, é
manifestada pelos movimentos sociais, pois é direito de todos”.
(BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.14). Por isso, a importância de
documentos como a Resolução CNE/CP nº 02/2015, que amparam
práticas de ensino mais justas e mais inclusivas no processo de formação
inicial e continuada de professores,
628
A formação de profissionais do magistério deve
assegurar a base comum nacional, pautada pela
concepção de educação como processo
emancipatório e permanente, bem como pelo
reconhecimento da especificidade do trabalho
docente, que conduz à práxis como expressão da
articulação entre teoria e prática e à exigência de
que se leve em conta a realidade dos ambientes das
instituições educativas da educação básica e da
profissão, para que se possa conduzir o(a)
egresso(a): [...] VIII - à consolidação da educação
inclusiva através do respeito às diferenças,
reconhecendo e valorizando a diversidade étnico-
racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa
geracional, entre outras. (BRASIL, Resol. CNE/CP
nº 02/2015, Art. 5º).
Referências
BRASIL, Nota Pública do CNE. De 01/09/2015. Assembleias
Legislativas, à Câmara Legislativa do Distrital Federal, às Câmaras de
629
Vereadores, aos Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais de
Educação e à Sociedade Brasileira. MEC-MEC. Brasília-DF, 2015.
630
BRASIL. Lei nº 13.415/2017. Altera as Leis nº 9.394/1996, que
estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 11.494/2007,
que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei
nº 5.452, de 01/05/1943, e o Decreto-Lei nº 236/1967; revoga a Lei nº
11.161/2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília/DF. MEC/CNE,
2017.
631
BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão
do pós-modernismo. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998. Tradução
de Pedro Maia Soares para versão do artigo "Contingent Foundations:
Feminism and the Question of Postmodernism", no Greater
Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de 1990.
632
MORENO, Meire Ellen. Feminismos e antifeminismos na política
brasileira: "Ideologia de gênero" no Plano Nacional de Educação
2014. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade
Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2016.
SILVA. Aline Oliveira Gomes. Nome social como política pública nas
universidades estaduais do Paraná: coalizões, permanências e
persistências. 2017. 140 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais).
UEL- Londrina, 2017.
633
GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
SOCIAL: PERCEPÇÕES ESTABELECIDAS NO
PROJETO RENASCER DO MUNICÍPIO DE
IVAIPORÃ – PARANÁ
634
GENDER, SEXUALITY AND SOCIAL EDUCATION:
PERCEPTIONS ESTABLISHED IN THE RENASCER PROJECT
OF THE MUNICIPALITY OF IVAIPORÃ – PARANÁ
Introdução
Essa pesquisa insere-se no âmbito da Educação Social e pretende
investigar de que modo as questões de Gênero e Sexualidade perpassam
as vivências de crianças inseridas no Projeto Renascer, desenvolvido na
cidade de Ivaiporã - Paraná52.
635
O Projeto Renascer se enquadra no Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos (SCFV), ligado ao Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) visando trabalhar com meninas e meninos
que se encontram em situação de vulnerabilidade e/ou direitos
violados. Como tal, é vinculado à perspectiva da Educação Social
alicerçada na luta pela garantia de direitos das crianças e adolescentes,
no sentido de potencializar a participação social, indagando a
compreensão sobre o seu lugar na sociedade, buscando protagonismo
e autonomia (MULLER, RODRIGUES, 2002).
Para realizarmos este trabalho nos embasamos na pesquisa
qualitativa (TRIVIÑOS, 1987). O pesquisador estava inserido
diretamente na dinâmica do projeto como educador social,
investigando dois grupos com as quais eram desenvolvidas as
atividades educativas (matutino, 17 crianças – 8 meninas e 9 meninos
– e no período vespertino, 22 crianças – 8 meninas e 14 meninos). Para
tanto, foram realizadas inicialmente observações participantes e,
posteriormente, as intervenções com as crianças. Basearam-se na
técnica de pesquisa denominada como grupo focal, visando provocar
a reflexão expressada a partir da fala dos/as indivíduos/as acerca de
um tema específico. Para abertura de diálogo, foram usados diversos
livros infantis que trabalhavam temáticas variadas, como brincadeiras,
esporte e gênero, família, diferenças corporais entre meninas e
meninos, dentre outros. Para as análises desse recorte, abordaremos a
intervenção com dois livros: “Menina não entra”, de Telma Guimarães
Castro Andrade (2006), que problematiza o discurso dos meninos
sobre as meninas não poderem jogar futebol, e o “Livro da família”,
de Todd Parr (2003), que expõe diferentes configurações familiares,
636
em uma linguagem lúdica e divertida, refletindo sobre a
impossibilidade de um enquadramento numa única perspectiva de
existência familiar. A análise das intervenções foi realizada a partir do
método da análise de conteúdo de Bardin (1977).
637
e afirmação dos direitos das populações a fim de que possam alcançar
alternativas emancipatórias para o enfrentamento das
vulnerabilidades. Portanto, o SCFV desenvolve um trabalho com
crianças, adolescentes e idosos oferecendo diferentes objetivos para
cada faixa etária (BRASIL, 2016).
Cotidianamente vivenciamos diversos tipos de exclusões,
desigualdades e injustiças em toda a sociedade, sendo assim, diversas
pessoas acabam vivendo em situações de risco, vulnerabilidade e com
seus direitos violados (MULLER et al, 2014). Como afirmam Souza
et. al. (2014), a sociedade brasileira é composta por uma grande
diversidade e, por isso mesmo, diversas populações encontram-se nas
mais variadas condições (pobreza, situação de rua, doenças,
peculiaridades étnicas, particularidades de lugar – florestas, urbanos,
rural, ribeirinhas, favelas) e milhares desses/as sujeitos/as estão sendo
atendidos/as por pessoas que exercem o papel de educadores/as
sociais.
Nessa perspectiva, o Projeto Renascer é caracterizado como
um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV)
possuindo um caráter preventivo e proativo, pautado na defesa e
afirmação de direitos e no desenvolvimento de capacidades e
potencialidades dos/as usuários/as, com vistas ao alcance de
alternativas emancipatórias para o enfrentamento das vulnerabilidades
sociais. É ofertado de modo a garantir as seguranças de acolhida, de
convívio familiar e comunitário, além de estimular o desenvolvimento
da autonomia. Suas atividades têm como foco o atendimento à Criança
e ao Adolescente em situação de vulnerabilidade social, e funciona em
período complementar ao horário escolar. Atende também a
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, encaminhados
pelo CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência
Social).
A instituição oferta diversas oficinas dentre elas, de jogos,
esportes, aula de violão, flauta, informática, bordados, crochê,
pinturas, dança entre outras atividades que são desenvolvidos no dia a
638
dia do Projeto. O Renascer tem como seu objetivo “[...] garantir a
integridade e autonomia das crianças e adolescentes, uma vez que as
oficinas buscam incluir nossos jovens adolescentes na sociedade
contemporânea” (DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2017).
A Educação Social no Brasil ainda está em processo de
construção e apresenta múltiplas facetas que devem ser evidenciadas
e valorizadas, como expõe Natali (2016). Não havendo ainda uma
formação específica para a atuação na Educação Social, nos apoiamos
em Paulo Freire (1996, p.120) ao expor alguns atributos para a atuação
de um/a educador/a:
639
p.3209-3210). Entre as estratégias está a intervenção lúdico-político-
pedagógica (MULLER; RODRIGUES, 2002). Assim, enquanto
educadores/as valorizamos e oportunizamos experiências ricas para a
construção da autonomia dos/as educandos/as, primando por uma
proposta de Educação Social que erija-se sobre as bases de uma
educação plural, democrática e que busque a igualdade e o respeito às
diversidades.
Nesse sentido, ao problematizar a importância e atuação da
Educação Social na busca pela garantia de direitos e a potencialização
da formação humana, as instituições que advogam nessa causa – como
no caso do Projeto Renascer – estão imbuídas da função de
problematizar e questionar contextos que reproduzem desigualdades,
exclusões e preconceitos. Assim, discutir gênero e sexualidade no
âmbito do Projeto Renascer é fundamental para que possamos
efetivamente atender aos objetivos de consolidação resguardando o
desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes e promovendo a
cidadania como um direito fundamental.
640
na perspectiva das relações de gênero, é discutir os
processos de construção ou formação histórica,
linguística e social, instituídas na formação de
mulheres e homens, meninas e meninos.
641
visto que naturalizam-se as construções identitárias baseadas no
pressuposto da biologia instituindo a cultura como um aparato
utilizado para legitimar as identidades. Gênero é uma construção
cultural e histórica que não serve para legitimar uma identidade como
vestimenta de um corpo sexuado.
É preciso o repensar da categoria gênero, vislumbrando outras
possibilidades que não se enquadrem necessariamente à decorrência
imediata baseada no sistema sexo/gênero. Desse modo, prioriza-se a
construção das subjetividades e dos desejos numa perspectiva de
liberdade e respeito.
Nesse sentido, ao refletirmos sobre as identidades,
consideramos que não há um processo de linearidade e fixidez, visto
que nós construímos sujeitos a partir das relações que vamos
estabelecendo com o mundo. Portanto, “não é possível fixar um
momento – seja esse o nascimento, a adolescência, ou maturidade. [...]
As identidades estão sempre se constituindo, elas são instáveis e,
portanto, passíveis de transformação” (LOURO, 1997, p. 27).
Assim, pensar sobre identidade e diferença é refletir como são
construídas as relações sociais entre homens e mulheres na sociedade,
visto que nos dias atuais as mulheres ainda sofrem diversas formas de
opressão oriundas do mundo machista que vivemos, tais efeitos que
podemos partir do seguinte fato, de que homens e mulheres vivem sob
dadas condições tanto objetivas quanto subjetivas que são originadas
das relações sociais que hoje são postas (SANTOS; OLIVEIRA, 2010)
e que atuam, em muitos aspectos, como legitimadores das opressões e
violências do mundo machista.
642
elas que vão definir os comportamentos, as roupas, os modos de se
relacionar entre outras coisas, determinando assim o que é considerado
para homens e o que é considerado para mulheres.
Todos esses papéis que são determinados para homens e
mulheres que vivenciamos no dia a dia também são reproduzidos na
educação das crianças. As crianças produzem a sua própria cultura,
mas também são o espelho de seus pais e da sociedade em geral,
podendo reproduzir, por exemplo, diversos estereótipos de gênero
alicerçados na aprendizagem de papéis sociais. Um exemplo disso são
as brincadeiras onde meninos e meninas muitas vezes reproduzem a
relação binária de que brincadeiras ou brinquedos são para um e outro
gênero. O primeiro livro proposto para discussão com as crianças do
projeto foi “menina não entra”.
Entre as percepções das crianças, observamos como alguns
papéis sociais são generificados, como (ainda) no futebol. Para elas:
643
No entanto, percebemos que os meninos reconhecem que as
meninas podem praticar as mesmas atividades que os meninos
realizam, mas muitas vezes preferem a exclusão das mesmas para não
as machucarem ou ocasionar algum transtorno por alegarem ser
melhor que elas.
644
participação das mulheres em alguns esportes tais como o futebol, o
rúgbi e as lutas” (GOELLNER, 2006, p.1).
645
Romero (1994) nos afirma que há uma diferenciação entre
meninos e meninas em suas experiências vividas. Os meninos são
incentivados a explorarem o ambiente e são permitidas brincadeiras
mais agressivas e livres como jogar bola nas ruas, soltar pipas, rolar
no chão em brigas, dentre outras atividades que envolvem desafios e
riscos. Já as meninas são desencorajadas e muitas vezes até proibidas
de executarem as mesmas atividades e brincadeiras que os meninos
executam.
Durante a discussão sobre a historinha perguntamos às
crianças o que é preconceito, visto que a história fala sobre essa
questão.
646
Dessa maneira, valores são inculcados,
principalmente pelos adultos, na mente da criança
tais como preconceitos nas relações, funções
sociais impostas, atitudes próprias de um
determinado sexo, aspectos estes que determinam a
formação da criança para a vida adulta. E assim a
criança desenvolve-se naturalizando a
discriminação de gênero e sexualidade, com o
menino se construindo como homem opressor e a
menina como mulher subordinada (PEREIRA;
MÜLLER, 2008, p.6).
647
definitivo sobre família. Assim, durante a discussão do “Livro da
família” questionamos as crianças sobre o que era família para elas.
“Amor, alegria, paz” (Ana). “União” (Paulo). “Uns que se arriscam
pelos outros” (Geovane). “Liberdade” (Alisson). “Salvação”
(Adryan) “Dar carinho” (Marcos). Logo após realizarmos a pergunta,
as crianças já responderam as características do que é família para
eles/as, podemos perceber que eles/as têm a percepção do que é família
e muitas vezes isso está formando pelo convívio estabelecido com seus
familiares e/ou pelas influências midiáticas.
Também durante a discussão procuramos saber como era
constituída/formada as famílias das crianças. “Minha mãe, meu pai e
eu” (Matheus). “Quem mora comigo é meu irmão, meu pai, minha
mãe” (Lucas). “Minha mãe, meu pai, eu e meu irmão” (Italo). “Na
minha tem eu, meu pai, minha mãe, meu cachorro, meu irmãozinho
pequeno” (Vitor). “Meu pai, minha mãe, minha irmã e meu irmão”
(Dani). “Meu pai, minha mãe, meus irmãos” (Isa). Podemos analisar
que várias crianças têm sua família constituída por pai, mãe e
irmãos/as. Algumas crianças falaram sobre a sua família não ser
constituída por pai ou mãe biológicos. “Meu padrastro, minha mãe, eu
e meu irmãozinho” (Natalia). “Minha vó, minha tia, meus três irmãos
e eu” (Yasmin). “Moro com meu padrasto, minha mãe, com meu
irmão” (Marcos). “Com a minha vó e dois primos” (Kaique).
A partir desse contexto podemos ver que várias crianças ainda
vivem em famílias nomeadas de famílias nucleares ou tradicionais, ou
seja, a família constituída por pai, mãe e filhos/as. Mas também
observamos entre as crianças, famílias que não são constituídas
segundo um modelo ou padrão. Podemos observar que existe uma
mudança na formação familiar, nas relações de parentesco e na
representação das relações na família. Segundo Ferrari e Kaloustian
(2002, p. 14)
648
A família, da forma como vem se modificando e
estruturando nos últimos tempos, impossibilita
identificá-la como um modelo único ou ideal. Pelo
contrário, ela se manifesta como um conjunto de
trajetórias individuais que se expressam em
arranjos diversificados e em espaços e
organizações domiciliares peculiares.
649
É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988,
art. 227).
650
Ela fala assim, eu não te criei pra ser mulher
(Alisson).
E o que que você fala?
Eu falo: ta bom, não vou ser viado não. Ela fala: é
bom mesmo porque se você ficar gay eu te jogo pra
fora de casa (Alisson).
Mas você não pergunta? Você não questiona, ela
assim: Mas mãe, se isso acontecesse qual
diferença ia fazer na nossa vida?
Um dia eu perguntei, ela falou bem assim: porque
eu não te criei pra ser mulher, eu te criei pra ser
homem, e se você fosse mulher você ia nascer
menina não muleque. E todo mundo da minha
família, nenhum é gay (Alisson).
Considerações finais
Este trabalho teve por objetivo investigar como se configura
as questões de gênero e sexualidade com crianças que frequentam uma
instituição que oferta o Serviço de Convivência e Fortalecimento De
Vínculos, o Projeto Renascer do Munícipio de Ivaiporã – PR. Dada a
dimensionalidade do texto, foram expostos apenas alguns diálogos
explicitados pelas crianças durante as intervenções com a contação de
histórias.
A partir das intervenções podemos observar que as crianças
reproduzem muitos aspectos normativos relacionados aos espaços
651
permitidos para o brincar de meninas e meninos. A violência é um fator
presente na vida das crianças que frequentam o projeto, nas diferentes
configurações familiares em que se inserem. As experiências com as
crianças da instituição nos levaram a algumas considerações. Estas
questões que perpassam a vida das crianças não são, muitas vezes,
debatidas no projeto e/ou mesmo em outras instituições frequentadas
pelas crianças. Nesse sentido, ao problematizar a importância e a
atuação da Educação Social na busca pela garantia de direitos e a
potencialização da formação humana, as instituições que advogam
nessa causa – como é o caso do Projeto Renascer – estão imbuídas da
função de problematizar e questionar contextos que reproduzem
desigualdades e preconceitos.
Assim, discutir gênero e sexualidade no âmbito do Projeto
Renascer constitui uma estratégia importante de efetivamente buscar a
consolidação dos objetivos resguardando o desenvolvimento pleno de
crianças e adolescentes. A educação social, como um campo de debates
acerca dos direitos, sobretudo de populações que sofrem com a falta
deles, precisa também pensar tais questões, promovendo a inserção das
minorias sociais e a promoção da cidadania como um direito
fundamental.
Referências
652
BUTLER, Judith. Problemas de gênero feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
653
KITZMANN, Katherine M. Violência doméstica e seu impacto sobre
o desenvolvimento social e emocional de crianças pequenas.
Enciclopédia sobre o desenvolvimento na primeira infância.
University of Memphis, EUA. Agosto, 2007.
654
desafios. Tese Doutorado (Graduação em Serviço Social - UNESP).
Franca, 2009.
655
XAVIER, Antonio Roberto; GOMES, Luciana Kellen de Souza.
Família e gênero: um estudo teórico e conceitual. In: III Seminário
Nacional Gênero e Práticas Culturais: olhares diversos sobre a
diferença. Anais. João Pessoa, 2011.
656
HOMOFOBIA : O PRECONCEITO E A
VIOLAÇÃO DE DIREITOS DE PESSOAS
LGBTI+S NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO
657
HOMOPHOBIA: THE PREJUDICE AND VIOLATION OF
LGBTI+ PEOPLE RIGHTS IN THE UNIVERSITARY CONTEXT
Enquadramento teórico
A urgência em se discutir e contextualizar questões sociais
sobre a diversidade sexual e de gênero se torna importante quando
muitos indivíduos de direitos reivindicam suas novas formas de “ser”.
Esses indivíduos não podem ser “representados” como categorias
universais, partindo da ideia de que os modelos tradicionais normativos
existem como reguladores da sexualidade dos indivíduos. Portanto, o
658
movimento LGBTI+53 tem mobilizado discussões em diferentes setores
da sociedade que se somam ao combate contra o preconceito e a
violação dos direitos humanos, ao se considerar a dialética de
exclusão/inclusão social que atravessa o conceito de homofobia.
O objetivo geral deste trabalho, de cunho qualitativo, está em
identificar expressões do preconceito contra diversidade sexual em um
espaço universitário público e suas implicações nas produções de
subjetividades dos estudantes cis-gays. Suas especificidades estão em
desenvolver aprofundamento teórico sobre o conceito de homofobia
articulado com o conceito de sofrimento ético-político desenvolvido
por Bader Sawaia (2012) e desenvolver reflexões sobre implicações de
discursos, práticas e ações discriminativas no processo de
configurações de subjetividades dos estudantes cis-gays que sofrem
homofobia.
Não há muitos estudos sobre o conceito de homofobia no
contexto universitário, mas demonstramos a importância em se discutir
dados decorrentes da violência que esse fenômeno suscita. De acordo
com o relatório elaborado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) em 2017,
ocorreram cerca de 45 casos de mortes na região sul de pessoas
LGBTI+ e cerca de 23 no Estado do Paraná. No Brasil, ocorreram cerca
de 445 assassinatos e suicídios de LGBTI+, aumentando 30% em
relação a 2016. Pauta-se a importância em não apenas se contentar com
esses números por conta de alguns casos não serem notificados e pelo
fato de o crime de homofobia não ser ainda previsto em lei. Também
leva-se em consideração que, além das mortes, ocorreram ações
discriminatórias com/para esses indivíduos nas formas de violência
verbal ou física.
53
Hoje o coletivo LGBTI+ conta com a diversidade de identidades de gênero
e sexual que, historicamente, a categorização e os movimentos vêm
aumentando ao longo dos anos. Dito isso, a importância de articular todos
os movimentos em um, traz uma visão fora de ações e posicionamentos
excludentes, sendo necessário a inclusão de todos ao coletivo.
659
A homofobia no âmbito escolar pode expressar crenças e
valores que influenciam os(as) jovens no que diz respeito ao convívio
e aceitação das diversas orientações sexuais e identidades de gênero.
No caso das pessoas travestis e transexuais, a evasão escolar acontece
por conta das dificuldades em se esconder em meio ao ambiente escolar.
Nesse sentido, acaba violando suas formas legítimas de expressão de
suas identidades de gênero.
Os autores Marretto, Filho e Bessa (2010), definem a escola
como um dos locais onde ocorrem a socialização secundária mais
relevante da atualidade, tendo como função fundamental, inserir os
sujeitos nos mais variados universos de valores culturais construídos
por meio de ideologias, normas e regras considerados o bem comum da
sociedade. Os autores demonstram a importância em se discutir a
homofobia nos espaços escolares na forma de projetos que abordem a
educação sexual como compromisso com a igualdade de direitos e com
a intenção de diminuir as desigualdades sociais que surgem a partir das
opressões de gênero, raça, classe social e de etnia, com a preocupação
do respeito e aceitação das diversidades sexuais.
Nessa perspectiva, podemos relacionar essas ideias com o
contexto universitário, visto que também são instituições que propagam
valores e culturas locais perpassados pelos sujeitos que nelas estão
inseridas, o que só reforça a importância em se discutir a homofobia
nesse contexto, pois esse fenômeno também ocorre nesses espaços.
A homofobia é um conceito atual que vem quebrando vários
paradigmas sociais e políticos e trata de temas como violência e
discriminação contra os sujeitos que apresentam orientação sexual
diferente da heterossexual. Trata-se de exclusão relacionada à
sexualidade. Visto pela historicidade desse conceito, alguns teóricos
trazem a homofobia como uma categoria de análise para explicar o
preconceito sofrido por pessoas cujas suas orientações sexuais e
identidades de gênero são diferentes da heterossexual.
Para os autores Marco Prado e Frederico Machado (2008), o
preconceito social produziu a invisibilidade de identidades sexuais e de
660
gênero ao longo dos tempos, legitimando práticas de inferiorizações
sociais, tais como o da homofobia. Neste caso, a homofobia para os
autores possui um funcionamento que se utiliza, na maioria das vezes,
de atribuições sociais negativas provindas da moral, da religião ou até
mesmo das ciências, para produzir o que podemos chamar de
hierarquização das sexualidades.
Para tanto, o preconceito, para Prado e Machado (2008), se
utiliza de suas próprias características do seu poder de preservação da
naturalidade das hierarquias entre grupos e indivíduos. Sua função não
permite que a discriminação e a inferiorização sejam interpretadas
como sistemas da injustiça entre diferentes posições identitárias, mas
acaba produzindo uma relação de opressão invisibilizada pelas relações
de subordinação social e as torna naturalizadas. Nesse sentindo, as
práticas sociais discriminatórias ganham intensidades no que condiz à
violação dos direitos de pessoas LGBTI+, excluindo-as de seus acessos
a direitos sociais, tais como a educação.
A homofobia passa a ter duas dimensões, descritas pelos
autores Prado e Machado (2008) como sendo a psicológica e a social.
A dimensão psicológica diz respeito a superar barreiras impostas pelo
conjunto de valores assumidos como corretos e verdadeiros. Esse
conjunto, muitas vezes, se impõe como uma impossibilidade de a
experiência homossexual ser vivenciada como legítima. Assumir a
legitimidade desta experiência, significa percorrer por um
reposicionamento da própria história individual e/ou coletiva, já que os
valores morais são construídos a partir das identidades e das culturas.
Do ponto de vista social, a homofobia impede que os indivíduos
consolidem uma identidade não subordinada, além desse fenômeno
legitimar formas violentas de expressão do ódio e do preconceito
(PRADO e MACHADO, 2008).
Para o autor Rogério Junqueira (2007), a homofobia é um
fenômeno plural que faz referências a conjuntos de emoções negativas
que vão desde aversão e desprezo até medo ou ódio em relação a
pessoas LGBTI+. A relação entre homofobia e as normas de gênero se
661
traduzem em formas de crenças, valores, expectativas e até mesmo em
atitudes, trazendo consequências para aqueles que não se identificam
com os modelos normativos postos pela sociedade (JUNQUEIRA,
2007). Nesse sentido, entendemos que os modelos normativos são
pautados por um sistema binário, disciplinar e normatizador, cuja a
heterossexualidade ganha um papel social naturalizado correspondente
a um determinado gênero.
A noção de homofobia comparece com frequência em
discursos reproduzidos nos cotidianos e instituições dos mais diversos
setores sociais, também podendo ser estendida a situações de
preconceito, discriminação e violência contra pessoas homossexuais ou
em expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) que não
se enquadram nos modelos hegemônicos impostos pela sociedade
(JUNQUEIRA, 2007). A homofobia “[...] passa a ser vista como fator
de restrição de direitos de cidadania, como impeditivo à educação, à
saúde, ao trabalho, à segurança, aos direitos humanos e, por isso, chega-
se a propor a criminalização da homofobia.” (JUNQUEIRA, 2007, p.
7.)
Para o autor Daniel Borrillo (2016) a homofobia é a hostilidade
geral, psicológica e social contra aqueles que sentem desejo, afeto ou
práticas sexuais com indivíduos do seu próprio sexo. O autor considera
a homofobia como uma categoria de análise de cunho epistemológico,
que não se trata apenas em conhecer ou compreender a gênese e o
funcionamento da homossexualidade, mas em analisar a hostilidade que
surge por essa forma específica de orientação sexual.
Borrillo (2016) classifica o fenômeno da homofobia em quatro
categorias especificas. Primeiro, a homofobia irracional, uma violência
correspondente a uma atitude irracional do próprio indivíduo que pode
gerar conflitos individuais ao próprio sujeito, negando a sua própria
orientação sexual. Já a homofobia cognitiva, que o autor também chama
de social, designa as diferenças entre a
heterossexualidade/homossexualidade, baseando-se em preconceitos
que são naturalizados. A homofobia geral consiste basicamente em que
662
o autor chama de “vigilância do gênero”, questionando a identidade do
sujeito. Neste caso, as discriminações passam a ser direcionadas,
independentemente de suas qualidades ou defeitos, baseadas em outro
gênero diferente do modelo padrão normativo, no caso a dominação
masculina, ocorrendo negação do feminino e rejeição das diversidades
sexuais. E a homofobia específica, sendo especialmente direcionada a
um tipo de pessoa que tenha sua orientação sexual diferente da
heterossexualidade.
Borrillo (2016) exemplifica o caso das lésbicas que, além de
sofrerem preconceito contra seu gênero e sua sexualidade, acabam
sendo silenciadas e invisíveis, reflexo de uma misoginia ao transformar
a sexualidade feminina como produto e instrumento do poder e desejo
do masculino cis54. Esses tipos de homofobia, são manifestações
afetivas “fóbicas” que reproduzem violências cotidianas para essa
minoria. Os discursos heteronormativos estão presentes nas linguagens
correntes, que acabam sendo naturalizadas por preconceitos e
discriminações muitas vezes velados nos discursos de nossa sociedade.
Com isso, podemos compreender a ideia de que pessoas
LGBTI+ passam por um processo de constituição e legitimidade de suas
orientações sexuais e identidade de gênero e que diariamente são
marcadas pelo preconceito e a discriminação, o que torna importante
aqui, conceituar um pouco sobre a identidade sexual e de gênero. Visto
como conceitos construídos socialmente, as identidades são marcadas
pelas culturas, contextos históricos e sociais que os próprios sujeitos
emergem como fazendo parte deles. A autora Guacira Lopes Louro
(1999) traduz as inscrições dos gêneros nos corpos dos sujeitos como
sempre atreladas ao contexto de uma determinada cultura. As
identidades de gênero e sexuais são compostas e definidas pelas
relações sociais, sendo moldadas pelas redes de poder de uma
determinada sociedade. É através da cultura e da história que são
54
Cis é o prefixo para abreviação do termo cisgênero que significa
reivindicar o mesmo gênero que lhe é atribuído ao nascimento.
663
definidas as identidades sociais (gênero, sexual, raça, classe etc.),
constituindo o sujeito na medida em que são inscritos em diferentes
situações, instituições ou grupos sociais.
Reconhecer-se numa identidade, é afirmar sua inscrição e
estabelecer um sentido de pertencimento a esse grupo social de
referência ao sujeito, não eliminando a possibilidade de descarta-la ou
rejeita-la. Afirmando isto, somos sujeitos de identidades transitórias e
contingentes, tendo um caráter fragmentado, instável, histórico e plural
(LOURO, 2016). Os grupos sociais que ocupam posições centrais, ou
consideradas “normais”, tem possibilidade de representar a si mesmo e
a outros sujeitos, o que nos evidencia a necessidade dos movimentos
sociais no sentido de questionamento e contraposição a essas
normativas. Louro (2016) afirma que as identidades sociais e culturais
são políticas, as formas como são representadas e os significados que
são atribuídos às experiências e práticas, são sempre atravessadas e
marcadas pelas relações de poder. A autoria afirma que “[...] a produção
da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da
homossexualidade. Uma rejeição que se expressa, muitas vezes, por
declarada homofobia.” (LOURO, 2016, p. 27).
Essa rejeição pode trazer muitas vivências para a vida de
pessoas LGBTI+ que as torna impossibilitadas de legitimar suas
experiências nos mais variados aparelhos sociais em que estão
inseridas. Portanto, é importante discorrermos sobre o conceito de
Sofrimento Ético-Político, proposto pela autora Bader Sawaia (2012),
pois entendemos que, o fenômeno da homofobia pode gerar formas
distintas de exclusão e de inclusão perversa, emergindo subjetividades
especificas que vão desde o sentir-se incluído até o sentir-se
discriminado ou revoltado. Mas antes é importante discorrer sobre o
conceito do sofrimento ético-político e do processo de exclusão-
inclusão perversa, na concepção de Sawaia (2012), que o fenômeno da
homofobia pode gerar.
O conceito de exclusão, para Sawaia (2012) é compreendido
como um fenômeno em construção que se configura nas relações dos
664
sujeitos em todas as esferas da vida social, vivenciado como
sentimentos, significados e ações que se desenham no cotidiano de cada
indivíduo. Sobre o conceito exclusão e inclusão perversa, Sawaia
(2012) destaca-o como um processo de transmutação da inclusão social.
Nesse sentido, a exclusão deve ser entendida a partir de sua
ambiguidade constitutiva, a inclusão, que opera de modo dialético. A
análise da inclusão e da exclusão deve considerar tal ambiguidade para
tentar compreender a coesão social sob a lógica da exclusão. Tal lógica
se apresenta de diferentes maneiras, na versão social, subjetiva, física e
mental, o que também se configura em dimensões objetivas da
desigualdade social, na dimensão ética da injustiça e na dimensão
subjetiva do sofrimento. Nas palavras da autora “[...] A qualidade de
conter em si a sua negação e não existir sem ela, isto é, ser idêntico a
inclusão (inserção social perversa).” (SAWAIA, 2012, p.8).
Segundo Sawaia (2012), a dinâmica exclusão/inclusão deve ser
compreendida do ponto de vista dialético, onde cada uma das
polaridades não constitui categorias em si. Sendo da mesma substância,
a exclusão e a inclusão formam um par indissociável, se constituindo
na própria relação e demonstrando uma capacidade de a sociedade
existir como um sistema. A exclusão passa a ser entendida como um
descompromisso ético-político com o sofrimento do outro.
Esse sistema irá excluir para poder incluir, e incluir para
excluir, o que irá ocasionar a condição da ordem social desigual,
implicando a ilusão da inclusão. Mesmo que todas as pessoas estejam
inseridas de alguma forma, nem sempre será de uma maneira decente e
digna, o que não diz respeito a sua própria liberdade e potência. Essa
lógica também implica o conceito de inclusão perversa com os sujeitos
gays aqui ressaltados, pois a sociedade, partindo do pressuposto de que
se ela exclui logo ela inclui, acaba violando os direitos dessa população
ocasionando a exclusão social que esses sujeitos sofrem diariamente,
por exemplo, no ambiente universitário público, lugar do interesse da
nossa pesquisa.
665
Esse movimento dialético gera subjetividades específicas não
podendo ser apenas explicadas pela determinação socioeconômica, mas
elas determinam e são determinadas por formas diferentes de
legitimação social e individual, que se manifestam no cotidiano como
identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência
(SAWAIA, 2012, p.9). A exclusão é um processo complexo e
multifacetado, sutil e dialético, configurado nas dimensões políticas,
subjetivas e materiais. A exclusão é um processo que envolve o homem
por inteiro e suas relações com os outros, é produto do funcionamento
do sistema (SAWAIA, 2012 p.9).
O conceito de sofrimento ético-político é proposto por Sawaia
(2012) como uma categoria para analisar a dialética da
exclusão/inclusão. São justamente as relações intermediadas pelo
sistema – aqui compreendido como uma estrutura social composta por
indivíduos e suas relações de poder - que tornam a vida do sujeito
marginalizada, gerando sentimentos de exclusão e de não
pertencimento a sociedade.
O sofrimento ético-político, segundo a autora Sawaia (2012)
abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida
de diferentes formas desses sujeitos. É qualificado pela maneira como
sou tratado e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou até
anônimo, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela
organização social.
Em síntese, o sofrimento ético-político retrata a vivência
cotidiana das questões sociais de como é ser tratado com inferior,
subalterno, sem valor etc. Ele revela a tonalidade ética da vivência
cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente da
maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de seu
contexto histórico, de se movimentar no espaço público e de expressar o
desejo e o afeto.
Método
666
Para estudarmos sobre as implicações subjetivas do preconceito
contra a diversidade sexual, é necessário considerar aspectos afetivos,
cognitivos e simbólicos na vida do sujeito e nos contextos sociais,
culturais e instituições em que estão inseridos. Fernando González Rey
apresenta-se como um autor que, a partir da Epistemologia Qualitativa,
da Teoria da Subjetividade e do Método Construtivo-Interpretativo,
desenvolve aporte teórico-metodológico próprio para abordar a
problemática da presente pesquisa.
A Epistemologia Qualitativa busca compreender a pesquisa
como processo mediada pela comunicação e o diálogo, legitimando o
conhecimento por meio da construção sempre contínua de modelos de
inteligibilidades a respeito de um problema de pesquisa. Esses modelos
permitem sempre que a pesquisa esteja em constante desenvolvimento
e construção. (GONZÁLEZ REY, 2003).
A Teoria da Subjetividade aponta para a complexidade da
constituição psíquica do ser humano que considera as condições da
cultura e da vida social. É compreendida como um conjunto de
construções que são articuladas pela legitimidade das zonas de
inteligibilidade geradoras por questões produzidas continuamente em
uma área de conhecimento, com implicações de diferentes espaços e
práticas humanas (MARTÍNEZ, GONZÁLEZ REY, 2017). Pelo viés
da teoria, González Rey (2017) conceitua a subjetividade como uma
produção qualitativa que se expressa dentro das condições sociais,
culturais e históricas, situadas em espaços onde estamos inseridos. A
subjetividade não representa um sistema fechado, mas aberto e
contraditório, como um sistema configuracional que se organizará pelas
configurações subjetivas situadas em diferentes momentos e contextos
da experiência de vida do indivíduo (GONZÁLEZ REY, 2017). O
referido autor desenvolve alguns conceitos que geram visibilidade para
os processos e formas em que a subjetividade é organizada. Dois deles,
a configuração subjetiva e os sentidos subjetivos, fazem parte deste laço
configuracional que compõem a subjetividade.
667
Os sentidos subjetivos são uma unidade simbólico-emocional
gerada pelos indivíduos em sua experiência vivida, indo além de sua
intencionalidade e de sua consciência, tomando formas diversas no
curso de suas diferentes ações (MARTÍNEZ e GONZÁLEZ REY,
2017).
Para os autores Martínez e González Rey (2017), o simbólico
se refere a todos aqueles processos que substituem, transformam,
sintetizam os sistemas de realidade objetivas em realidades humanas
que só são explícitas nas culturas. O simbólico acaba sendo
naturalizado como parte da objetividade em que o mundo cultural
humano emerge em cada nova geração. O simbólico irá apontar o
caráter gerador da psique, onde o homem é criador e utilizador de
símbolos em que os espaços culturais se desenvolvem.
Já as configurações subjetivas são constituídas como núcleos
dinâmicos de organização em que os sentidos subjetivos estão
inseridos, sendo muitos diversos e procedentes de diferentes zonas da
experiência social e individual. Elas expressam os aspectos das
experiências vividas em seu valor subjetivo singular para as diferentes
pessoas, constituindo as articulações de sentidos subjetivos que
organizam tanto a subjetividade social quanto a individual
(GONZÁLEZ REY, 2003).
No método construtivo-interpretativo, González Rey (2017)
define a pesquisa como ação prática, teórica e dialógica, compreendida
como um processo que sempre envolverá os sujeitos da pesquisa,
inclusive o pesquisador, como agentes ativos em diálogo e
comprometidos com o desenvolvimento da mesma. O modelo teórico e
metodológico proposto por González Rey (2017) é desenvolvido no
próprio trabalho de campo conforme as construções pessoais que o
pesquisador vai produzindo a partir das expressões dos participantes da
pesquisa. Este modelo denomina-se construtivo-interpretativo porque
estará sempre articulado com as novas ideias, indicadores, hipóteses,
decisões, posicionamentos e novas construções que o pesquisador
produzirá ao longo do percurso de toda pesquisa. No método
668
construtivo-interpretativo de González Rey (2017), o problema de
pesquisa surge da representação inicial do que se pretende pesquisar,
mas é elaborado por um conjunto de ideias, interrogações e
questionamentos que o pesquisador desenvolve no percurso da própria
pesquisa. Conforme o problema vai se esclarecendo, trazendo
aprofundamentos e desdobramentos, irá gerar novos desafios que se
integram ao modelo teórico, o que faz com que o problema de pesquisa
avance como parte do processo de construção da informação.
Os indicadores são importantes para que o processo da pesquisa
gere hipóteses e o pesquisador possa construir novos modelos teóricos
sobre o problema de pesquisa. Os indicadores serão a primeira via de
abertura para que surjam hipóteses que avancem a construção teórica,
sendo fontes de outras ideias que superem e aumentem o seu valor
investigativo no decorrer da pesquisa, se apoiando em múltiplos
aspectos qualitativos da expressão dos participantes (GONZÁLEZ
REY, 2017).
O principal recurso metodológico adotado na pesquisa,
proposto por González Rey (2017), foi a dinâmica conversacional.
Trata de promover um espaço onde os participantes possam se
expressar, se posicionar e opinar sem serem interrompidos, de forma
que a expressão manifeste sua historicidade e contradições. As
perguntas e os posicionamentos do pesquisador surgem da própria
expressão dos participantes, cuja ação dialógica irá sendo construída no
decorrer do processo da pesquisa, progredindo, ao mesmo tempo, em
duas vertentes diferentes: “o que outro vai construindo como
importante para si mesmo, sobre experiências que podem não ter sido
nunca alvo de suas elaborações” e “o que o pesquisador vai construindo
sobre o que quer conhecer”. Essas duas vertentes não são separadas uma
da outra, o que é essencial para a ética que esse tipo de pesquisa exige
(GONZÁLEZ REY, 2017, p. 96).
A conversação na proposta do referido autor tem o propósito de
conduzir a campos significativos de sua experiência pessoal ao lembrar
e relatar suas necessidades, seus conflitos, suas reflexões, permitindo o
669
surgimento de novos processos simbólicos e de novas emoções, ou seja,
de novos recursos e sentidos subjetivos. Serão esses os elementos
cruciais para identificar expressões da homofobia sofridas no espaço
universitário e suas implicações nas subjetividades desses estudantes.
Na ocasião da apresentação deste artigo, a pesquisa ainda não
tinha sido finalizada. O primeiro instrumento adotado foi a dinâmica
conversacional. Foi promovido uma sequência de cinco espaços
conversacionais com a participação de cinco estudantes cis-gays, de
diferentes cursos e campi, de uma universidade pública. No primeiro
encontro, foram escolhidas em conjunto as temáticas a serem discutidas
naquele encontro e nos próximos encontros (segundo, terceiro e
quarto). As temáticas escolhidas foram: as relações dos participantes
com os espaços universitários; as relações homoafetivas no contexto
universitário e em outros espaços sociais; Identidade: estereótipos e
regras sociais; Identidade dos indivíduos dentro do movimento
LGBTI+; “Sair do armário”: estigmas e vivências; Identidade como ato
político e fechamento com discussões e estratégias na universidade no
combate à discriminação e ao preconceito contra estudantes cis-gays.
Ainda no primeiro encontro, os estudantes tiveram a
oportunidade de falarem de suas experiências e expressarem seus
sentimentos vivenciados em situações consideradas por eles de terem
sofrido preconceito, discriminação e homofobia e outros fatos
relevantes em relação a sua orientação sexual no espaço escolar e
universitário.
No último encontro houve um fechamento de tudo que foi
discutido e pensou-se em estratégias que possibilitem aos estudantes
cis-gays, espaços que promovam um ambiente mais igualitário e livre
da opressão causada pela discriminação e pelo preconceito. Também
foi utilizado o instrumento de elaboração de uma redação, cujo o tema
foi “Homofobia: Narrativas de vivências sofridas por estudantes
universitários gays no ensino básico”, com o objetivo de fazer com que
os participantes escrevessem sobre suas vivências no ensino
fundamental e médio. Essas narrativas ofereceram subsídios para
670
elencar as temáticas trabalhadas no percurso da pesquisa e preparar
cada encontro subsequente com o objetivo de fazer dele um espaço
conversacional.
O fato de o instrumento da dinâmica conversacional ser
utilizado em todos encontros deve-se à promoção da autonomia dos
participantes em interagir e expressar seus sentimentos e produzir
sentidos subjetivos a partir das temáticas permeadas pelo problema de
pesquisa.
Considerações finais
A emergência em se discutir novos direitos sociais e políticos
para o público LGBTI+ denota a capacidade de enfrentamento do
preconceito, como autores Prado e Machado (2008) a chamam de
subalternização civil. Para isso, os autores enfatizam a necessidade de
671
um esforço grandioso de pesquisas, ações coletivas e práticas sociais
inovadoras, que possam ser capazes de combater a estrutura e a
dinâmica do preconceito sexual e suas consequências. Desta forma, os
movimentos sociais da Diversidade Sexual são fundamentais para que
consolidem um pensamento científico-crítico capaz de apontar as
consequências dos modelos normativos identitários e políticos que
estão presentes em nossa sociedade.
Naturalizar o preconceito social nos demonstra a capacidade de
nossa sociedade em excluir, discriminar e até mesmo violentar essas
pessoas. Por isso, é necessário promover debates que discutam o
preconceito e a discriminação que alimentam a violação de direitos em
espaços públicos, institucionais, escolares e universitários, para que de
fato se inclua a representatividade de pessoas LGBTI+, de forma a
poderem se expressar nesses espaços e não serem limitados ou
discriminados pelas suas formas de ser, e os espaços permitirem novas
formas de legitimar diversificadas vivências cotidianas.
Referências
BORRILLO, D. Homofobia: História e crítica de um preconceito.
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 1 ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016.
672
LOURO, L. G et al. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, L. G. et
al. O corpo educado. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016. p. 9-
33.
673
IMPLICAÇÕES HISTÓRICAS A
RESPEITO DA EDUCAÇÃO SEXUAL:
CONSIDERAÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO
EMANCIPATÓRIA
674
In the present work we discuss sexual education through a perspective
of emancipatory education, thus contrasting the biological and hygienic
biases historically placed when talking about sexual education.
Therefore, it enters into the social conception of Sexuality, considering
it to be an intrinsic part of human life, and there is a need to work on this
subject to overcome adversities established inside and outside the school
environment. This research has as general objective to understand
aspects of Sexual Education in the school context, observing the
historical contours presented by this model of education. The
methodology used turned to a bibliographic review. Among the possible
implications, it is worth noting that historically Sexual Education has
been the subject of constant discussions, accompanied by different
discourses, with this, one has in constancy, advances and setbacks before
the theme, which reflects directly in the educational practice. As a
consideration, we want to reflect on the details that surround sexual
education, generating long-term benefits for those involved, regarding
sexual themes.
Introdução
Ao inclinar-se para os quesitos educacionais como tema de
pesquisa, percebe-se a urgência de contextualizar os pormenores de cada
período vigente que circundam e caracterizam a educação brasileira,
como influências políticas, culturais e econômicas constituindo questões
amplas da sociedade. Sabendo que o objetivo geral proposto para esta
pesquisa se volta para compreender aspectos da educação sexual no
contexto escolar, observando os contornos históricos apresentados por
este modelo de educação, ao longo das décadas, inclui-se que, como
objetivo específico, visa-se articular a concepção de sexualidade e
gênero atrelados a estes momentos. Cabe evidenciar que esta pesquisa
perpassou por ciclos do século XX, se estendendo para o século XXI,
675
frisando sobretudo, no período da Ditadura Civil Militar.
Evidentemente, mediante as novas necessidades da sociedade,
tornou-se preciso rever aspectos estruturais. Assim, Saviani (2013)
expõe que ao longo do século XX, diferentes medidas educacionais
foram tomadas pelo governo central, a fim de instaurar o ideal de
educação nacional. Para o autor, o período de 1930 1945 é marcado como
pós-Revolução, caracterizando a reorganização educacional do país. De
semelhante modo, Carvalho (2009) explicita que o início do século XX
foi marcado por mudanças e incertezas.
Para Duarte (2014), o processo de modernização da sociedade
brasileira se intensificou entre as décadas de 1960 e 1980, acompanhado
de mudanças sociais como as lutas das mulheres junto aos movimentos
feministas, a entrada da mulher no mercado de trabalho e a aprovação da
Lei do Divórcio em 1977, questionando concepções de feminilidade e
masculinidade, bem como os domínios de poder exercidos pela
hegemonia. Para Saviani (2013), por volta de 1960, se deram os
processos de urbanização e industrialização em território brasileiro.
A educação brasileira perpassa por inúmeros enfrentamentos,
como a necessidade de políticas públicas educacionais, financiamento,
elaboração de materiais e iniciativas. Todos estes aspectos visam incitar
o pensamento crítico dos/as estudantes, dentro e fora do espaço da escola.
Conforme Saviani (2013) é incumbência da escola como agente de
transformação social, ofertar práticas pedagógicas que partam da
realidade objetiva, política e social em que alunos/as e professores/as
estejam inseridos/as, permitindo assim uma prática social comum,
voltada para a apropriação de conhecimento.
Historicamente a educação tem sido alvo de constantes debates,
com posições ideológicas distintas, as quais interferem na prática
educacional. Não obstante, sabe-se que a educação sexual perpassa por
inúmeras barreiras e impedimentos, postos em decorrência de posturas
moralizadoras e por vezes religiosas.
Mediante a necessidade de compreender o contexto histórico da
educação sexual brasileira, a metodologia empregada na elaboração
676
deste trabalho concentra-se em uma pesquisa com caráter de revisão
bibliográfica. Entre as possíveis implicações apresentadas, destaca-se
que historicamente a educação sexual tem sido alvo de constantes
discussões, marcadas de avanços e retrocessos na área educacional.
Como resultados organiza-se, de maneira linear, o movimento
histórico da educação sexual no Brasil, pautando acontecimentos que
marcaram a educação e a conjuntura política e social em diferentes
períodos, possibilitando diferentes discussões aos/as envolvidos/as.
677
construções nas relações sociais e empregando diferentes características
socioculturais.
Acrescenta-se que, para Maio e Correa (2013), as pautas acerca
de gênero e sexualidade advieram das lutas feministas iniciadas com as
norte-americanas e ocorridas também no Brasil, conduzindo novos
debates e atenções.
678
ele, um componente para a abordagem de questões morais, eugenistas e
higienistas.
Logo, a escola formativa, disponibilizaria conteúdos que
valorizassem a formação moral e cívica, prezando pela disciplina dentro
do ambiente escolar, a fim de promover tais influências também no
ambiente familiar. A articulação da escola formativa, atuou em prol de
firmar indivíduos com sentimentos de nacionalidade capazes de servirem
a sociedade, providos de consciência e amor à pátria. Para suprir a estas
necessidades propostas, o contexto escolar requisitava a presença do/a
médico/a, das educadoras de saúde e das professoras, objetivando ofertar
saúde, sabedoria, aprendizagem, crescimento, civilidade e moralidade,
pois, para eles/as, os/as sujeitos/as educados/as não ficariam expostos/as
a doenças e vícios.
Com amparo nestes princípios, a instauração da educação sexual
posiciona-se inquieta quanto a disciplina, a moral e a responsabilidade
de crianças e jovens brasileiros/as, como dialoga Berreta (1941). O autor
aponta que a proposta de educação sexual daquele período, destina-se às
escolas secundárias, de modo que, a educação voltada para a moral
destinava-se à formação do homem e da mulher do período, buscando
construir o caráter destes/as cidadãos, prezando aspectos higiênicos para
obtenção da saúde.
Para além, ao refletir em torno da historicidade da educação
sexual no território brasileiro, Silva (2002) apresenta que dentre as
justificativas para implantação desta temática nos currículos escolares,
houve o predomínio da preocupação de médicos/as e pedagogos/as frente
ao chamado onanismo, em outras palavras a masturbação. De acordo
com a autora, esta prática foi condenada por profissionais da saúde e da
educação, com o discurso de que se tratava de um mal à saúde das
crianças. Silva (2002) revela que historicamente, as questões sexuais
humanas foram tratadas pela sociedade do país com proibições, negações
e ocultamentos.
Em suma, conforme Berreta (1941), a educação sexual visava a
garantia de higiene e saúde sexual, articuladas à formação do caráter. A
679
isto, Bassalo (2010) complementa que a discussão pelo viés eugênico
voltada à educação sexual, atua divulgando princípios higiênicos, mas
também sociais, a fim de consolidar o controle sobre o corpo da
população. No período em questão, como se destaca com Abreu Junior e
Carvalho (2012), esta concepção social inclina-se para o controle da
sexualidade, interferindo nas vivências dos/as cidadãos/ãs acerca da
sexualidade e ditando-lhes regras. Dito isto, com base nos autores
afirma-se que os discursos médico-higiênico dos/as intelectuais do
período em relação à sexualidade, caracterizavam-se como
conhecimentos científicos para um projeto educacional, articulados a
diversos campos do saber.
680
contra o governo. Dito isto, a autora aponta que a década de 1970 coibiu
movimentos sociais, divulgação de ideias e de informações acerca do
governo, havendo forte repressão e alienação política sob a população.
Para além da censura de informações, Barroso & Bruschini (1982 apud
PINHEIRO, 1997), denunciam que se instaurou no Brasil uma forte onda
de puritanismo, sobretudo no tangível à educação sexual.
Esta postura moralista e puritana da sociedade, conduzia a
repressão dos/as cidadãos/ãs, repercutindo o silêncio como entende
Foucault (2009); logo, por meio do poder reprimiam-se palavras e gestos
vistos como não autorizados, levando-os a serem emitidos como
discursos clandestinos.
681
Posteriormente a isto, outras instituições de ensino tomaram a
mesma iniciativa, como por exemplo, os colégios Infante Dom Henrique,
Orlando Rouças e André Maurois, em meados de 1968, como expõem
Aquino e Martelli (2012). Todavia, sabendo que este período enfrentou
severas repressões, as autoras apontam que consequentemente houveram
implicações a alguns estabelecimentos de ensino, como a expulsão de
alunos/as, a exoneração de membros/as da direção e a suspensão de
professores/as. É possível inferir com estes acontecimentos, as longas
tentativas de implementação da educação sexual e dos discursos acerca
da sexualidade dentro do território da escola, bem como as constantes
represálias e retrocessos proferidos em oposição.
O reflexo do conservadorismo da sociedade brasileira na
educação, chocando-se com a eminente modernização, buscava maneiras
de perpetuar os discursos patriarcais, logo, a educação sexual da década
de 1960 mantinha estes argumentos reverenciando o casamento, a
maternidade e a paternidade como expõem Nunes e Silva (2006). Para
ambos/as, este momento da educação, empregava o discurso médico e
patológico, assim como o decênio de 1970, que priorizou o modelo
médico-biologista, com viés higienista e foco nas funções biológicas,
como a reprodução humana.
Silva (2002) revela que as décadas de 1960 e 1970 apresentaram
um novo momento social-sexual para a sociedade, com isso,
compreende-se a preocupação com as temáticas sexuais e o advento da
instauração das mesmas nos currículos escolares. Logo, a educação
sexual foi de fato instituída na época com a Lei de Nº 5.692, datada de
11 de agosto de 1971, nomeada por Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para
o Ensino de 1º e 2º graus no Brasil, sendo ofertada por meio da disciplina
Programas de Saúde, no viés de educação em saúde, como evidenciado
por Pinheiro (1997).
A Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971) apresenta a obrigatoriedade da
orientação educacional por orientadores/as com formação superior, no
que tange às questões sexuais se tem a presença definitiva de
especialistas em educação e em saúde, como explicita Silva (2002). A
682
referida autora situa ainda o surgimento do Parecer Nº 2.264/74, do
Conselho Federal de Educação, aprovado em agosto de 1974, que
defende a educação sexual em programas de Educação da Saúde.
Durante 1970, compreende-se com base em Duarte (2014), que
categorias hegemônicas se posicionaram contrárias às manifestações da
sexualidade, declarando se tratar de imoralidade, sobretudo, diante do
golpe AI5 que vigorou até 1978. Assim, mediante às inúmeras normas
comportamentais do período, grupos de minorias sociais passaram a
questionar regras sociais postas quanto à sexualidade, ao namoro e ao
casamento, possibilitando controverter os valores políticos, como relata
Duarte (2014). De fato, a articulação dos grupos sociais minoritários com
o passar dos anos, contribuiu para o fim do regime militar, por meio de
denúncias, cobranças e manifestações como se pode inferir com a autora.
Dentre as expressões normativas do período, Cardoso e Leite
(2018) apontam que objetivando reforçar o lugar da mulher na sociedade,
os currículos escolares brasileiros nos anos de 1970 e 1980 mantinham a
disciplina Educação paras o Lar, com matrícula voltada exclusivamente
para o público feminino, sendo compostos por tarefas marcadas por
binarismos, como masculinas e femininas.
Reitera-se com embasamento em Pinheiro (1997), que apenas a
partir de 1979 se teve novamente a abertura concreta para tratar de
questões sobre o corpo e a sexualidade, posto que anteriormente, haviam
fortes traços de puritanismo, prevalecendo a ideia de moralidade e de
bons costumes. Conforme a autora, com o fim da década de 1970 houve
um abrandamento da censura, contribuindo para a fomentação da
chamada liberação sexual; com isso, filmes, revistas, lojas e programas
de televisão passaram a apresentar a temática do sexo. Ainda sobre esse
período, a autora contextualiza que Marta Suplicy discursava sobre sexo
em um programa de televisão nomeado TV Mulher.
Em concordância a Pinheiro (1997), Nunes e Silva (2006)
apresentam que a década de 1980 perpassou por intensas influências da
televisão, tanto em âmbito comportamental, quanto como agente
educativo. A influência do referido programa na educação sexual,
683
repercutia por meio de consultas sexuais, mediados de modo terapêutico
pela apresentadora e posteriormente empregados nas salas de aula, como
expõem Nunes e Silva (2006).
Além da instauração da educação sexual no currículo, outro
mecanismo encontrado para pautar estas discussões foram as palestras.
Aquino e Martelli (2012) descrevem que entre os anos de 1978 e 1979
respectivamente, organizaram-se em escolas privadas congressos sobre
a temática, evidenciando o interesse dos/as profissionais da educação
sobre o assunto.
As autoras contextualizam que a iniciativa privada foi
responsável pela movimentação e organização de encontros a respeito
das questões sexuais ao longo do período ditatorial. Em continuidade,
observa-se que no final da década de 1970, foram criadas entidades a fim
de exercer o controle populacional, com destaque, Aquino e Martelli
(2012) evidenciam a Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil –
BEMFAM, a qual foi responsável pela organização do 1º Seminário
Técnico de Educação Sexual. Posteriormente, em 1983 ocorreu o 1º
Encontro Nacional de Sexologia, sob a organização da Federação
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. Barroso & Bruschini (1990 apud
PINHEIRO, 1997) defendem que a educação sexual se tornou pauta no
decênio de 1980 devido ao aparecimento da AIDS.
Aquino e Martelli (2012), assim como demais autores/as que
dialogam acerca das concepções de sexualidade e das particularidades
que permearam a educação sexual ao longo dos tempos, exibem que a
abordagem mantida priorizava saúde reprodutiva, a prevenção de
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), gravidez e a contracepção,
mantendo aspectos biológicos e patológicos acerca das temáticas
sexuais, como observou-se com educação higienista e eugenistas de
meados dos anos 1940.
Foucault (2009) revela que desde o século XVIII a instituição
pedagógica concentra formas diferentes de discursos e conteúdos acerca
do sexo, vinculando-os e multiplicando-os. Todavia, com base no
referido autor, compreende-se que havia um mecanismo coercivo em
684
torno dos discursos sobre o sexo, que devido a isso, era apontado de
modo limitado e cuidadosos. Para Foucault (2014), com o passar dos
tempos, houve uma acessibilidade ao conhecimento, incluindo o saber a
respeito do sexo. A tentativa de invalidar estes discursos têm
repercussões ao longo de cada período histórico, acompanhada de
interdições e incitações acerca dos discursos sexuais.
Foucault (2014) define que o sexo como saber refere-se a
scientia sexualis, predizendo a ciência sexual, especificamente como a
superabundância de saber sobre sexo. Logo, entende-se que houve uma
superprodução de saber sobre a sexualidade, sobretudo a nível
sociocultural.
685
Brasil o Guia de Orientação Sexual, adaptado do material americano de
1991, Guideline for Comprehensive Sexuality Education Kindergarten –
12th grade e destinado aos níveis primário e secundário.
Com relação à década de 1990, Nunes e Silva (2006) revelam
que as temáticas sexuais passaram a ser exploradas de diferentes
maneiras, acompanhadas pela erotização e pelo consumo de sexo pela
sociedade por meio das influências midiáticas, contrastando-se com a
necessidade contemporânea de uma educação emancipatória. Para
ambos, este momento histórico recobrava dos/as educadores/as
capacitação envolvendo criticidade, para formação plena e
emancipatória.
A década de 1990 fomentou ainda os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), conforme aponta Silva (2002), os quais representaram
um marco educacional. De acordo com a autora, o material propõe a
inserção da educação sexual escolar de modo transversal, atuando como
diretrizes destinadas ao ensino fundamental. Para Correa (2013) o PCN
(BRASIL, 1998) atribui novos modos de falar sobre as temáticas sexuais
no âmbito escolar, envolvendo amplos assuntos e podendo englobar toda
a dimensão da sexualidade.
686
aptos/as para desenvolverem tais discussões. Mediante a isto, Maio e
Correa (2013) expressam que os/as professores/as necessitam de
programas e formações profissionais efetivas na área de gênero e
sexualidade.
Ao inserir as temáticas sexuais no contexto educacional busca-
se fomentar igualdade, respeito e autonomia superando o sexismo, o
preconceito, as marcas de gênero e as violências diversas. Para Martin
(2017), as discussões sobre as questões de gênero são fundamentais para
a escola, a fim de garantir cidadania e formação humana integral, bem
como de qualidade, logo, “[...] a escola pode deixar de ser um espaço de
opressão e repressão na questão da sexualidade, para se tornar um
ambiente efetivamente seguro, livre e educativo para todas as pessoas”
(MAIO, 2012 apud MARTIN, 2017, p. 205). Deste modo,
compreendendo que o ambiente escolar formal, está apto para subsidiar
inúmeros assuntos e fomentar a aprendizagem, reitera-se que ao
incorporar a educação sexual, atua-se em prol de minimizar violências
nestes espaços.
Além disso, Correa (2013) define que a escola é um espaço
privilegiado do saber, necessitando a ela subsidiar ações educativas sobre
diversas questões. Logo, a educação sexual como integrante curricular,
necessita articular-se teoricamente, distanciando-se de achismos, pois,
como apontam Cardoso e Leite (2018), comumente as argumentações
sobre gênero e sexualidade são feitas de maneira superficial, podendo ser
equivocadas ou até mesmo difamatórias, assim, cabe à escola
problematizá-las de forma efetiva, questionando desigualdades e o
poder.
Sabendo que se trata de uma ampla temática, a ideia de
emancipação buscada articula-se à compreensão de aspectos
socioculturais e históricos que envolvem dimensões humanas de maneira
integral. Logo, o trabalho acerca da educação sexual no território escolar,
conforme Nunes e Silva (2006), prediz a forma de socializar atitudes
educativas emancipatórias, por meio de abordagens humanizadas, que se
distanciem de autoritarismos.
687
Considerações finais
A educação sexual no território brasileiro perpassou por
inúmeros percalços, exibindo um cenário de avanços e retrocessos.
Dentre os recuos e adiantamentos, constataram-se influências
moralizadoras, as quais interferiram nos encaminhamentos educacionais
referentes à temática sexual.
A busca por pontuar a historicidade da educação sexual
brasileira, permitiu atentar para a participação e luta social de grupos
minoritários em favor da população. Estes movimentos questionaram a
organização social vigente, bem como os costumes e as regras
comportamentais, sobretudo no que se refere à sexualidade, ao corpo e à
participação da mulher no meio social, como se viu com as lutas
feministas.
Compreende-se que a oferta de educação sexual, busca articular
aspectos socioculturais, envolvendo questões múltiplas das vivências
humanas, como saúde, cultura e sexualidade desvinculando-se da
abordagem higienista e eugenista estabelecida no passado. Logo, afasta-
se dos vieses biológico e fisiológico e busca-se atrelar as discussões ás
diversas questões humanas. Mediante a isto, entende-se que a proposta
de educação sexual para a emancipação, embora aparente de certa forma
utópica, está debruçada sobre o ensino integral, com conteúdo vinculado
de modo interdisciplinar.
Por fim, entendendo a complexidade e amplitude destes debates,
espera-se fomentar novas reflexões, apresentando respaldos teóricos
pertinentes.
Referências
ABREU JUNIOR, Laerthe de Moraes; CARVALHO, Eliane Vianey
de. O discurso médico-higienista no Brasil do início do século XX.
Educ. Saúde [online]. 2012, vol.10, n.3, p.427-451.
688
AQUINO, Camila; MARTELLI, Andrea Cristina. (2012). Escola e
educação sexual: uma relação necessária. Anais da IX ANPED SUL:
Seminário de pesquisa em educação da região sul. Caxias do Sul, SC,
Brasil
689
FOUCAULT, Michel. Sexualidade e Política. In: ______. Ética,
Sexualidade e Política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2014. p. 25-35.
690
MULHER NA SOCIEDADE CAPITALISTA
E PATRIARCAL: DESIGUALDADES DE
CLASSE E GÊNERO
This paper aims to reflect about the double inequalities that women
suffer in a capitalist and patriarchal society, these being class and
gender, proposing the overcoming of this society through the feminine
emancipation through a critical education. We will discuss about the
origin of public education in Brazil, class inequality, gender inequality,
a history from matriarchal to patriarchal society and education for
emancipation against patriarchal society, analyzing from the historical-
critical view. We verify that it is urgent a critical and emancipatory
education about class and gender.
Key words: patriarchy; gender; class
691
Enquadramento teórico
A educação permite que sujeitas/os possam alcançar a
emancipação nessa sociedade capitalista que os e as subjugam por meio
do trabalho. A referida emancipação envolve o processo educativo,
crítico que possibilite a consciência, de classes e gênero, necessárias à
organização da classe trabalhadora e das ditas “minorias” sociais contra
a burguesia (LENIN, 2008).
A consciência de gênero se faz necessária neste processo
revolucionário, visto que explicita as desigualdades entre homens e
mulheres originadas pela propriedade privada e mantidas pelas
reproduções culturais. Atualmente as reproduções culturais levam
mulheres a serem subjugadas por ocuparem um espaço aquém que os
homens quando o Capital cresce às custas de uma sociedade patriarcal,
cuja mulher é duplamente rebaixada (LENIN, 2008). Assim, este
trabalho visa entender o contexto patriarcal a fim de refletir sobre a
possibilidade de emancipação das mulheres por meio da educação
escolar.
692
imperasse. As ideais positivistas de “liberdade, igualdade e fraternidade”
da França inspiraram a origem da educação pública e influenciaram o
Brasil nessa concepção.
A ideia da liberdade nutria nas pessoas a busca pelos mesmos
ideais, fazendo com que suas posturas fossem distantes de conflitos e
violências, assim como também das lutas, reivindicações e greves,
moldando cidadãs/ãos dóceis para o trabalho e sociedade. A igualdade
propõe que a condição social é dada através da conquista, todas/os tem
as mesmas condições para alcançar o que deseja ou não, depende apenas
da dedicação do indivíduo. Por fim, a fraternidade, o ápice para a
formação da harmonia social que a crise do capital abalara.
Para tal formação, era necessária uma escola pública, gratuita,
obrigatória e laica para filhas/os das pessoas que se colocavam contra a
ordem, ação denominada por Marx (2010), como uma estratégia
reformista. Neste aspecto a escola gratuita e pública, todas/os teriam
acesso a essa formação e envolveria o máximo de crianças. A
obrigatoriedade exige que meninas/os passem a frequentar este espaço.
A laicidade substitui a educação religiosa pela educação moral, que
objetivava a coesão social por meio do sentimento de fraternidade.
Entretanto, como conquistar a coesão em uma sociedade baseada
em desigualdades? Desde as contradições sociais às de gênero, como
cumprir tal exigência que se encontra presente nos documentos
educacionais em uma sociedade que se molda na individualidade,
competitividade e desigualdade?
Analisando um trecho no relatório “Educação: um tesouro a
descobrir”, o conceito de atualização da educação é dado da seguinte
forma: “[…] no âmbito desse relatório, fomos levados a retomar e
atualizar o conceito de educação ao longo de toda a vida, de modo a
conciliar a competição que estimula, a cooperação que reforça e a
solidariedade que une.” (DELORS, 1998, p. 09). Por meio de tais
conceitos, a educação forma indivíduos que sobrevivem ao Capital,
imersos em contradições, pois, ao mesmo tempo que formam sujeitas/os
693
competitivas/os, também formam sujeitas/os cooperadoras/es e
solidárias/os.
A contradição que permeia toda a nossa educação acaba que
fazendo que cada indivíduo assuma uma escolha para exercer sua
cidadania. E se ela/e tem por opção sobreviver nessa sociedade
capitalista, que exige competitividade e individualidade, é mais certo que
aspire falsamente os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,
enquanto seu interesse passará longe de buscar uma sociedade justa,
igual e solidária.
Não somos sujeitas/os livres, fraternas/os nem iguais no
capitalismo patriarcal. Sendo assim, é bem improvável que neste formato
de educação seja possível alcançar a coesão social.
Desigualdade de classes
Como esclarecemos no item anterior, a sociedade é formada a
partir das contradições na formação escolar para atender a demanda do
Capitalismo como para uma falsa proposta de coesão social, atuando em
sua essência como uma instituição alienante, que visa desenvolver
pessoas competitivas e produtivas, formando sujeitas/os com
pensamentos individuais para atender as necessidades capitalistas.
Para Saviani (2012) a igualdade de classes que acontece na
sociedade burguesa é formal e decorre do fundamento da liberdade, tanto
para quem possui os meios de produção, que se dá na aceitação ou não
da oferta da mão de obra, tanto para aquelas/es que possuem a força de
trabalho, na venda dela.
Desta forma os e as sujeitos/as vivenciam uma falsa liberdade,
conforme Alves (2011). A mesma pode ser classificada como uma
ideologia, que defende a resiliência e mudança constante em prol do
capital. Contudo, a verdadeira liberdade os indivíduos encontrariam se
demonstrassem como livres economicamente no mercado de trabalho,
segundo Marcuse (1967), ficariam, assim, livres para exercer autonomia,
iniciando uma possibilidade da superação da desigualdade de classes.
694
Entendemos que olhar a sociedade apenas através da
desigualdade de classes não seria suficiente. Uma mulher em uma classe
alta não estaria no mesmo patamar que um homem também de mesma
classe. É preciso pontuar que nossa sociedade é patriarcal e que traz
como consequências as desigualdades de gênero, o que discutiremos no
próximo item.
Desigualdade de gênero
A partir de tais constatações, iniciamos as nossas reflexões sobre
gênero, por meio de alguns questionamentos relevantes à compreensão
da temática, como: o que é gênero? Por que as apropriações entre os
gêneros são distintas? E, o que podemos fazer para mudar essa realidade?
Em referência à primeira indagação, o conceito de gênero possui
diversas interpretações, tanto no senso comum, quanto nas abordagens
teóricas presentes na academia. Neste trabalho, optamos por utilizar a
definição de gênero da socióloga marxista Saffioti (1987; 2013; 2015).
Ela, inicialmente, expõe que no senso comum, o gênero é
sinônimo de sexo biológico, sendo esta a aparência do fenômeno, que
demonstra a biologização da temática. No entanto, quando nos referimos
teoricamente a gênero, e dentro da concepção materialista histórica e
dialética, trabalhamos com o concreto pensado, ou seja, a essência.
Saffioti (1987, 2013, 2015) define gênero como um processo
amplo que envolve múltiplas relações e não se limita a diferença entre os
sexos. Trata-se da dimensão cultural na qual o sexo biológico se
manifesta. O termo gênero é compreendido pela autora, como a-histórico
e ideológico. Em suas palavras, “O conceito de gênero, ao contrário do
que afirmam muitas (os) é mais ideológico que o de patriarcado. Neutro,
não existe nada em sociedade” (SAFFIOTI, 2015, p. 141).
Nesse aspecto, a autora considera que “gênero” é a-histórico
devido ao termo representar a possibilidade de relações iguais ou
desiguais. E em si, não explicar a desigualdade presente na sociedade
entre homens e mulheres. A referida autora ressalta que o conceito de
gênero, precisa ser utilizado em conjunto com o patriarcado, pois este,
695
explica historicamente e na materialidade a desigualdade entre os
gêneros. O patriarcado exerce também influência ideológica na
compreensão do tema, sendo esta mais uma razão para a utilização de
ambos os conceitos na compreensão e explicação da temática.
De acordo com Saffioti (2013) a ideologia expressa pelo
patriarcado ocorre em duas esferas: material e abstrata. A partir da
materialidade, consiste em pensar como a sociedade constrói o feminino,
e como suas regras recaem sobre o corpo da mulher. Essa face da
ideologia é o que possibilita a educação do corpo feminino voltado para
a submissão.
Adorno (1993) coloca que a sociedade patriarcal está tão
fortemente estabelecida que as mulheres, enquanto vítimas, já não têm
capacidade de questionar essa configuração, atitude esta que leva, de
acordo com Saffioti (2015), que as próprias mulheres pratiquem
violências de gênero com suas companheiras que tentam fugir à regra
patriarcal.
Tais características, que se voltam para a submissão, são
apropriadas em diversos momentos da vida e da constituição da
personalidade feminina, visto que, para a autora a educação da mulher
em diversos momentos da vida, perpetua a ideologia do patriarcado.
Desta forma, por meio da compreensão de que se atribuem
características sociais a cada sexo biológico, Saffioti (2013) refere-se ao
gênero como uma categoria indissociável do sexo. Em suas
considerações ressalta a necessidade de considerar ambos, em unidade,
pois não é possível analisar a sexualidade desprendida da realidade
material, na qual é vivenciada. Neste momento, a autora enfatiza a
necessidade de compreensão histórica da unidade gênero e sexo
biológico.
696
Saffioti (1987; 2013; 2015). Estes recorrem a arquivos históricos
referentes às constituições familiares, em busca da essência do fenômeno
acima mencionado.
Engels (1997) analisa as diferentes formas de família, que nos
permite analisar as variações históricas em relação da constituição do
feminino e masculino, existentes desde o estado selvagem até a
civilização. O referido autor argumenta, a partir de estudos
antropológicos que a família se modifica ao longo da história,
respondendo as necessidades sociais presentes em cada período. Tal
afirmação nos permite pensar a família como construção histórica e, por
essa razão, passível de transformação.
Dentre as famílias das quais se tem registro, destacam-se a
consanguínea, a punaluana, a sindiásmica, o patriarcado e a
monogâmica. Para a compreensão das modificações sociais relevantes a
desigualdade de gênero, destaca-se o percurso histórico a partir da
família sindiásmica.
Na família consanguínea, de acordo com Engels (1997) e
Toffanelli (2016) as interdições morais, hoje estabelecidas, como o
incesto não estavam presentes. Nestas famílias, as relações ocorriam sem
exclusividade de parceiros/as, e entre parentes próximos/as.
Posteriormente se estabelece a interdição das relações entre irmãos/ãs
(na família punaluana), o que leva ao estabelecimento de relações fixas
com determinados parceiros/as, mas mantendo inicialmente, o critério de
não exclusividade (família sindiásmica). Dessa forma, Engels (1997),
desmistifica a concepção de que a família está historicamente ligada à
noção de amor sensual e a monogamia.
Engels (1997) ressalta que todas essas configurações familiares,
têm em comum a incerteza quanto à paternidade das crianças. Enquanto
a maternidade é reconhecida, existindo dessa forma apenas a linhagem
por meio do útero (matriarcado). É importante ressaltar, contudo, que nos
grupos os/as filhos/as eram comuns, sendo de responsabilidade de
todos/as os/as integrantes da família (ENGELS, 1997).
697
Nessas sociedades, as mulheres possuíam liberdade sexual, e
direitos semelhantes aos homens. A divisão do trabalho entre os gêneros,
de acordo com o referido autor, não estava relacionado à posição na
sociedade, era uma divisão sem fim exploratório, na qual a mulher
cuidava dos afazeres domésticos e o homem da caça e coleta.
Em relação a esse tema, Saffioti (2013) argumenta que a principal
razão pelo qual as mulheres eram afastadas das tarefas de caça estava
relacionada à sobrevivência do grupo. A autora argumenta, que o
conhecimento sobre a origem da maternidade ainda era desconhecida
pela humanidade, motivo esse pelo qual se preservava as mulheres de
atividades que proporcionassem risco à vida, devido a sua possibilidade
reprodutiva.
Ambos os/as autores/as, prosseguem alegando que ao longo do
tempo, essa configuração se modifica e perde a característica
comunitária, de diversidade de parceiros/as sexuais e de divisão de
trabalho sem fins de exploração. Modificações estas que possibilitaram
o desenvolvimento da família monogâmica a partir da restrição da
liberdade sexual feminina.
A primeira modificação social que restringe a liberdade sexual
feminina e inicia a construção da ideologia do patriarcado é o
estabelecimento da fidelidade da mulher no casamento (ENGELS,
1997). A família sindiásmica era composta por relações mais ou menos
duradouras, nas quais o homem tinha uma mulher principal e várias
outras. Em tal modelo, a traição era legitimada, mesmo que ocasional,
para os homens, enquanto as mulheres eram severamente punidas
(ENGELS, 1997).
Notamos, no entanto que ao mesmo tempo em que se iniciam as
restrições voltadas ao corpo da mulher, esta ainda é vista e considerada
socialmente igual ao homem. A mulher possuía o direito de separação e
permanecia com os/as filhos/as.
Engels (1997) e Saffioti (2013) ressaltam que tanto o direito aos/às
filhos/as como a elevada valoração social feminina estava atreladas ao
desconhecimento da paternidade. Engels (1997), ao expor a situação da
698
mulher no casamento sindiásmico, revela que ela tinha autonomia em
sua casa, em seus afazeres, liberdade de expressar opinião e de ser
ouvida.
Na organização em gens, de acordo com Engels (1997), a herança
deveria permanecer dentro da gens à qual cada um/a pertencia (fosse o/a
dono/a do patrimônio homem ou mulher). A divisão da herança ocorria
por meio de linha materna, para os/as filhos e filhas que moravam na
gens. Na prática, essa divisão acabava deserdando os/as filhos/as, que
devido ao casamento, se transferiam para outras gens. Ponto esse
importante para entender as razões que levaram a modificação da
transmissão de bens e da propriedade privada, mencionados a seguir.
Historicamente alguns fatores como a de ordem social auxiliaram
a transição de uma família a outra. Desses fatores, Engels (1997) destaca
à existência cada vez mais comum de famílias compostas por sua unidade
mínima, um homem e uma mulher. Além da domesticação de animais e
a criação de gado, que geraram novas relações sociais, que anteriormente
não eram possíveis, tais como a acumulação de riquezas devido ao
cuidado com os animais e com a terra.
Engels (1997), também elenca como pontos relevantes a
modificação da ordem social, a dominação do “homem pelo homem” 55
por meio de excedentes. Neste período, surge a escravidão com o
objetivo de cuidar dos bens de outro. O homem passa, conforme a divisão
de trabalho, a ser dono das ferramentas, dos escravos e do gado, enquanto
a mulher dos utensílios domésticos. Nesse modelo sindiásmico acontece
o conhecimento da paternidade.
Por meio de tais modificações sociais, o homem, devido aos bens
conquistados, como escravos e o gado, passa a acumular riquezas,
699
adquirindo maior reconhecimento social com relação às mulheres. Desta
forma com o novo status social, aliado ao conhecimento da paternidade,
permitem aos homens contestarem o sistema de heranças do matriarcado,
transferindo os bens, por meio do patriarcado. Materialmente, a
modificação ocorreu por meio da transferência dos/as filhos e filhas para
a gens de origem do pai e não mais da mãe, instituindo assim o direito
hereditário paterno.
No patriarcado, a mulher perde o direito à casa e seus utensílios, e
assume socialmente o papel de “escrava da luxúria do homem, em
simples instrumento de reprodução” (ENGELS, 1997, p. 61). Dando
origem também a palavra família, originaria de “famulus”, que significa
escravo doméstico.
A palavra “família”, dessa maneira, possui como significado
conjunto de escravos/as que pertencem a um mesmo homem. Toffanelli
(2016) argumenta que resumidamente o patriarcado se refere
especificamente à relação de dominação e exploração do homem branco,
rico, heterossexual ao restante da população.
Aliado ao patriarcado está a monogamia, caracterizada pelo
predomínio do homem, exigindo-se da mulher a fidelidade e que gere
filhos/as cuja paternidade seja indiscutível. Ao homem a fidelidade não
é uma regra, sendo aceita abertamente, enquanto para a mulher, a traição
pode significar a morte. A dissolução dos laços conjugais difere da
família sindiásmica, pois só o homem possui inicialmente o direito de
rompimento dos laços.
Marx (2006) descreve que na configuração atual de casamento, o
homem se posiciona como um proprietário privado em relação a sua
esposa, sendo o ciúme um sentimento burguês, aceito socialmente
apenas a este gênero, legitimado devido ao direito de posse. Em suas
palavras: “[...] o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um
sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário
privado” (MARX, 2006, p. 41).
As características acima citadas passam a compor a vida feminina,
a constituição de sua personalidade e limitação da expressão da
700
sexualidade, assim como aponta Marx (2006). O referido autor
argumenta que o fator gênero e as apropriações que expressam a
ideologia do patriarcado estão envolvidos em inúmeros casos de suicídio
feminino.
O autor, perante a realidade material a qual o gênero feminino se
encontra, aponta a necessidade de considerar a vida privada como esfera
política e expressão de uma sociedade burguesa que limita o
desenvolvimento da personalidade humana, em especial das mulheres
(MARX, 2006).
Marx (2006), assim como Engels (1997), ressalta que a
monogamia e o patriarcado são as primeiras organizações familiares que
se desenvolvem devido a fatores econômicos, sustentados pela
propriedade privada. Engels (1997) destaca ainda que a monogamia se
constituiu em dominação de um sexo pelo outro, iniciando um conflito
até então inexistente na pré-história.
Toffanelli (2016), considerando as características históricas as
quais o casamento está atrelado, argumenta que o casamento
monogâmico só pode existir historicamente na burguesia. Isso ocorre por
que ele envolve a acumulação de bens e a sua transferência, por meio do
patriarcado. No proletariado, não existem bens a serem divididos,
tornando o casamento proletário monogâmico, etimologicamente, e no
qual o amor sensual pode estar presente.
Engels (1997) argumenta que a dominação feminina esta pautada
na existência da propriedade privada. Em relação a tal tema, Saffioti
(2013) argumenta que apesar de a propriedade ser um fator importante
na dominação e exploração do sexo feminino, este não é o único
elemento responsável por sua manutenção. Tal relação de dominação e
exploração ocorre também entre os/as filhos/as e gerações mais velhas
por meio do ensinamento da cultura. Nessa relação, os/as mais novos/as
apropriam-se também dos valores sociais referentes à sua classe.
Nesse aspecto, Saffioti (2013) e Toffanelli (2016) argumentam
que é necessário olhar a dominação e exploração feminina para além das
relações econômicas, considerando também fatores presentes na
701
reprodução social de estereótipos. Em outras palavras, significa
compreender como ocorrem as apropriações culturais, desiguais, entre o
gênero feminino e masculino, na qual o fator econômico é um elemento
relevante.
702
comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao
contrário, são estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas,
que revelam força e coragem” (SAFFIOTI, 2015, p. 37).
Perante as afirmações de Saffioti (1987) podemos inferir que a
transmissão cultural das relações desiguais entre homens e mulheres,
assim como os estereótipos destinados socialmente a cada gênero, é
transmitida por ambos/as os/as genitoras/es ou cuidadoras/es, durante o
processo de educação, informal (no convívio familiar) e prosseguem
durante o ensino formal (nas escolas, durante as relações sociais da
criança).
Com relação aos estereótipos, Saffioti (1987) demonstra que
socialmente os definimos como norma a ser seguida e o seu oposto é, na
maioria das vezes, desaprovado socialmente. Devemos considerar os
estereótipos ainda, como classificações que definem algum objeto,
atribuindo características que delimitam tudo aquilo que pode ou não ser.
No caso do ser humano, enquadrado em atributos de cada gênero
utilizando como critério sexo biológico. Tal realidade resulta na perda da
individualidade e na limitação do desenvolvimento da personalidade
humana (SAFFIOTI, 1987).
A realidade material gera a necessidade de planejamento de
ações que modifiquem a situação atual de alienação da situação feminina,
possíveis por meio do desenvolvimento do pensamento conceitual de
gênero. Em outras palavras, devemos pensar nas relações de gênero tal
como significado da palavra mutável pelas relações diferentes das
existentes comumente.
Em nossa sociedade, a escola destaca-se como a instituição
responsável para desenvolver conceitos científicos a partir dos conceitos
espontâneos (MARTINS, L., 2011). No que se refere a esta pesquisa,
consideramos que a modificação da realidade atual de preconceitos e
estereótipos de gênero, pode ser modificada por meio da resignificação
do conceito de gênero, ou seja, por meio da modificação do significado
da palavra.
703
A referida modificação envolve a relação entre pensamento e
linguagem. Ambos, de acordo com Martins (2011), citando Vigotski
(2001), inicialmente não possuem vinculo direto. O mesmo se constrói
durante a história de vida da pessoa. Da mesma forma, o vínculo entre
pensamento e palavra é inicialmente inexistente. Martins (2011) ressalta
que a unidade entre pensamento e linguagem concentra-se no significado
da palavra. Este é uma generalização e um conceito que expressa tanto
um fenômeno intelectual quanto verbal.
Quando reconhecemos que a mulher ocupa espaço de
marginalidade em uma sociedade patriarcal, refletimos sobre as teorias
não-críticas que Saviani (2012) aponta como teorias que não são efetivas
nas resoluções quanto à questão de marginalidade, mas ingênuas na
tentativa de resolvê-las, porque acabam por reproduzir a dominação e
exploração na escola dentro do capital, resultando em segregação e
marginalização. Ou seja, por meio de teorias não-críticas é inviável
pensar na inserção da mulher em uma sociedade igualitária, quanto
menos superar uma sociedade patriarcal.
A escola, para Saviani (2012), tem sua base no modo de
produção capitalista e atende aos interesses da classe dominante. Quando
propomos uma transformação histórica, ou seja, romper com as
desigualdades de classe e de gênero, gera conflito com a classe
dominante, cujo interesse é permanecer com tal estrutura de dominação.
Entretanto, é possível considerarmos o ponto de vista dos interesses
dos/as dominados/as e comprometermos com uma teoria crítica, não
reprodutivista.
É objetivo da teoria crítica romper com o pensamento ilusório
advindos das teorias não-críticas, ou com impotência das teorias crítico-
reprodutivistas e lutar.
704
para garantir aos trabalhadores um ensino da
melhor qualidade possível nas condições históricas
atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é
dar substância concreta a essa bandeira de luta de
modo a evitar que ela seja apropriada e articulada
com os interesses dominantes. (SAVIANI, 2012, p.
31)
Considerações finais
Podemos refletir que as desigualdades de classes e de gênero são
atraentes e necessárias para o capitalismo. A mudança da sociedade
matriarcal para a patriarcal favoreceu esse modelo de sociedade e por
isso é preciso mantê-la, de modo que homens ricos continuem o domínio.
Neste aspecto, a escola destaca-se como a infraestrutura que
expressa a superestrutura, composta pela cultura ideologia dominante,
dentre elas a ideologia do patriarcado. Esta instituição, em outras
palavras, nasce historicamente com o objetivo de atender o pensamento
dominante, que explora a mão de obra trabalhadora, dando uma enganosa
ideia de liberdade, tanto a quem contrata, quanto a quem oferece sua
força de trabalho.
Assim, inferimos que precisamos lutar por uma educação crítica,
que se posicione a favor da classe proletária. Conforme Saviani (2011) o
mesmo ocorreria por meio da seleção de conteúdos críticos e de maior
elaboração pela humanidade, ministrados sobre um método
intencionalmente voltado ao desenvolvimento do senso critico e de
conscientização da exploração de classe e de gênero. Ou seja, uma
educação que efetivamente ressignifique o conceito de gênero e que seja
emancipadora, tanto das pessoas proletárias exploradas pelo Capital,
tanto das mulheres, que sofrem duplamente essas desigualdades.
705
Referências
ADORNO, Theodor W. Mínima moralia: reflexões a partir da vida
danificada. Tradução de Luiz Eduardo Bica. 2. ed. São Paulo: Ática,
1993.
706
________, Karl. O Manifesto do Partido Comunista. São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
707
O CORPO TRANSGÊNERO:
MARGINALIZAÇÃO FORA DA NORMA
708
etc., do not contemplate them and expel these “monsters” bodies. In
addition to invisibilizing them, they are expelled from society and
harassed, corroborating in their marginalization. Based on this context
of invisibility and rejection of trans people, the work aims to discuss the
relationship between society and trans bodies and to understand how
people invalidate them in the social environment. We intend to argue
through the academic productions, valuing those that have trans people
as author. From such readings, we understand that society is
cisheteronormative, perpetuating through these institutions the norms,
which results in a cycle of invalidation of trans identity and,
consequently, rejection and exclusion, or even death.
Key words:trangeneracy; body; cisheteronormative society.
Enquadramento teórico
Tratar de corpo transgênero academicamente é algo que deve
ser pensado e calculado. Afinal, quantas produções acadêmicas são
produzidas sobre o corpo cisgênero (evocando o termo cis como
adjetivo)? Quais produções acadêmicas sobre corpos contemplam o
corpo cis e trans de maneira que ambos existam e ocupem o mesmo
interesse epistemológico? São questões que nos tem inquietado enquanto
pesquisadoras. Por isso, convidamos a refletir sobre a transgeneridade56
por meio de produções transacadêmicas.
Embora evocamos o termo “trans” no título de nossa pesquisa,
o objetivo desta é estudar as cisgeneridades. Logo, este trabalho objetiva
a discussão sobre a nossa sociedade cisheteronormativa que invisibiliza
e rejeita o corpo trans, para isso exploraremos os termos cis e trans.
Conforme discute Amara Moira Rodovalho (2017), o prefixo
trans significa aquilo-que-cruza. Um prefixo adicionado para demarcar
um gênero que não corresponde ao padrão, criado por cisgêneros. Mas e
56
Termo que abarca todas as identidades trans, como travestis, transhomens
(homens transexuais), transmulheres (mulheres transexuais), não-binárias/os
etc.
709
o prefixo cis? Surge setenta anos depois e expressa aquilo-que deixa-de-
cruzar. Ela problematiza porque apenas necessitam explicações sobre
aquelas e aqueles que desejam cruzar a linha e não deixam de cruzar,
ignorando o porquê não o fazem.
Assim, partimos agora para discutir o que é a transexualidade
que, segundo Guilherme Almeida (2012), é impossível definir em termos
universais. Ele coloca em seu texto a insatisfação com a definição
médico-psiquiátrica que categoriza transexualidade com o estigma de
doença mental. Embora na época, 2012, ainda era considerada como
doença através da Classificação Internacional de Doenças (CID),
contudo, foi retirada o ano passado, em 2018, como distúrbio mental,
constando ainda na de saúde sexual. Mas problematizamos aqui, quem é
que patologizou? Responderemos com facilidade e deboche que foi a
medicina cis.
Partimos do transfeminismo de Paul Preciado (2015), por isso
justificamos nosso tom ácido, porque estamos cansadas do padrão dessa
sociedade e nos identificamos com a definição dele de transfeminismo:
57
Identidade que não corresponde a nenhum dos dois gêneros binários.
710
demiboy58, demigirl59, gênero fluido60, etc. Ou até talvez não estejam
“entre” as expressões binárias, se pensarmos para além da
horizontalidade, mas para além, para aquém, em cima, em baixo,
diagonais e lugares múltiplos.
Lemos em muitos trabalhos, inclusive é bem capaz que
tenhamos feito também em produções anteriores, a metáfora de corpo
trans como “trans-gressor” à norma de gênero ou a qualquer outra coisa.
Corpos trans transgridem ou transgrediram o corpo trans? Parece um
pouco estranho culpar ou admitir a ação de transgredir aos corpos trans
apenas pelo fato de não se encaixarem em normas que a sociedade
cisgênera enraizaram como forma de se viver. Ainda que sejam
resistências de luta contra o sistema, temos que lembrar que,
anteriormente a isso, são existências. E antes que fossem consideradas e
considerados como transgressão, eram corpos que expressavam suas
identidades não com o objetivo principal de afrontar e transgredir, mas
para existir conforme sua expressão. Então, retomamos, como afirmar
que são corpos que transgridem? Não seria mais adequado (ou justo)
afirmar que a sociedade cis transgride o corpo trans? Para isso,
discutiremos adiante sobre as instituições de nossa sociedade e como é a
relação dela com o corpo trans.
Método
Pontuaremos algumas produções que discutam não apenas com
óculos acadêmicos de discussões trans, mas de vivências e propostas de
teorizar o empirismo do dia a dia. Ou seja, abriremos discussões de
pessoas trans sobre seus corpos e suas existências em uma sociedade
cisnormativa.
58
Identidade que se identifica parcialmente com a expressão de gênero
masculina.
59
Identidade que se identifica parcialmente com a expressão de gênero
feminina.
60
Identidade que se identifica com ambos gêneros binários e pode expressá-lo
os dois ao mesmo tempo, ou fluir entre um e outro ou apenas não expressá-los.
711
Encontramos na academia muitos e muitas transexistências
produzindo, embora nem sempre isso é lembrado. Citaremos Guilherme
Almeida (2012), Luma Nogueira de Andrade (2012) Lua Lamberti
(2018), Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017; 2018), Paul Preciado
(2015), Amara Moira Rodovalho (2017), o grupo Transgender Europe
(2016) e a Associação Nacional de Travestis e transexuais (2017; 2018a;
2018b). Traremos para que discutam sobre seus corpos com as lentes do
“telescópio de Arendt” de modo não tão distantes de sua epistemologia
e empirismo.
Também discutiremos a partir de produções cisgêneras, como
Simone de Beauvoir (1967), Berenice Bento (2012), Crishna Mirella de
Andrade Correa (2013), Eliane Rose Maio (2013), Michel Foucault
(2001; 2009) e Guacira Lopes Louro (2003).
Destacamos e priorizamos as produções trans porque
acreditamos que essas pessoas, e tantas outras para além das referências
citadas neste texto, devem ser mais visibilizadas e convidadas a
ocuparem discussões em produções e eventos acadêmicos. Afinal, como
Megg Rayara Gomes de Oliveira (2018) propõe que, se queremos
romper com as posturas normatizantes cuja branquitude e a
cisgeneridade são reafirmadas, é preciso evidenciar travestis e mulheres
trans negras. Aqui, então, evidenciaremos travestis e transmulheres
negras e brancas e transhomens negros e brancos.
712
Iniciamos, então pela primeira instituição que podemos vivenciar após o
nascimento em uma sociedade ocidental, a família. Louro (2003),
Foucault (2009) e Bento (2012) discutem sobre a formação familiar nos
moldes da heteronormatividade por meio da figura verdadeira e “natural”
de um casal legítimo e procriador. Assim, a família hegemônica é o
modelo são, enquanto qualquer outro arranjo familiar é considerado
anormal, não-natural e desviante, necessitando de disciplina para que
torne seus corpos dóceis e submissos.
A família projeta expectativas sobre a criança. Bento (2012)
esclarece três situações que as expectativas que se tratam de gênero são
claras. A primeira é desde o nascimento, ou até mesmo antes, desde a
descoberta do sexo do feto. E, desde então, é planejado para que o novo
corpo performe a cisgeneridade e heterossexualidade logo que chegue ao
mundo, através de enxovais e roupas azuis e rosas, com imagens que
deixem explicitamente revelado a que sexo pertence o bebê. A segunda
dá-se por meio dos brinquedos, que são as “próteses identitárias” que
precisam reforçar o sexo anunciado. É por meio deles que a criança
aprenderá a performar seu gênero e inteirar sua performance masculina
ou feminina.
E a terceira, que acontece não só na família mas também na
escola, os discursos como “menino não chora!”, “comporte-se como uma
menina!”, “isso é coisa de bicha!”. Isso faz com que a criança conheça
seus limites de gênero e reproduza o comportamento adequado a ele,
pois, caso contrário são censuradas. Mas, independente de uma criança
ser cis ou trans, nem sempre passam desses limites com o intuito de
afrontar ou transgredir, mas querem explorar o mundo e se conhecer,
porém, passam a ser mal interpretadas quanto a sua sexualidade ou
identidade de gênero. Esse comportamento por parte da família e da
escola não só controla os corpos dessas meninas e meninos como reduz
suas expressões apenas ao “feminino” ou “masculino”, limitando a
construções de suas identidades. Simone de Beauvoir (1967) acredita que
homens e mulheres deveriam ter acesso ao que é entendido por feminino
e masculino, só assim alcançaríamos indivíduos completos.
713
A instituição escolar, conforme Crishna Mirella de Andrade
Correa e Eliane Rose Maio (2013), prediz a um ambiente permeado por
discursos de teor heteronormativo, desse modo perpetuando
discriminação. Mediante a isto, entendemos que o espaço escolar produz
marcas de gênero através de suas posturas, as quais, tendem a culminar
na evasão escolar e marginalização de corpos não-hegemônicos. Cabe
destacar que, para Lua Lamberti e Eliane Rose Maio (2018), não se trata
de evasão, mas sim da expulsão deste público, posta tanto simbólica,
quanto tangível. Estas violências são compreendidas com Correa (2013),
como resultantes do sistema patriarcal, o qual efetua sexismos e demais
preconceitos advindos de estereótipos, a fim de atingir a todos/as.
Então, vamos focar a instituição escolar, que, segundo Guacira
Lopes Louro (2003), não só reproduz como produz diferenças e
desigualdades, inclusive de gênero. A escola separa meninas de meninos
e dita o que deve ou não ser feito. Acontece que as normas não dão conta
de contemplar todas as crianças e adolescentes, como a criança
afeminada, negros e negras, a garota masculina, etc, ou o “diabo em
forma de gente” conforme Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017),
primeira doutora travesti negra do Brasil, tratando-se da infância negra e
viada.
A autora denuncia que “Dos negros e dos homossexuais,
espera-se que tomem a referência de normalização a heterossexualidade
e a branquitude hegemônica.” (OLIVEIRA, 2017, p. 71). Ou seja, não é
a escola que deve adequar-se para contemplar tais identidades, mas elas
e eles que se adequem ao sistema. E adequar-se torna o processo ainda
mais difícil quando há mais marcadores que a hegemonia não contempla,
como a negritude, classe social, gênero, sexualidade etc. O problema é
que muitas e muitos desistem de estudar pelas violências diárias que
vivem e acabam evadindo, ou melhor, sendo expulsas e expulsos da
escola. Para Berenice Bento (2012), a escola deseja eliminar e excluir
esses corpos que a contaminam, então não se trata de evasão, mas
expulsão.
714
A instituição religiosa hegemônica brasileira é a cristã. Embora
nosso Estado seja laico, a influência dessa religião é muito forte nas
decisões políticas. Ela detém o poder através de seu discurso de verdade
absoluta e, por isso, é capaz de disciplinar as pessoas, segundo Foucault
(2001). Entendemos que desse modo, a instituição religiosa regula a
sociedade por meio do adestramento do corpo e controles do prazer, o
que também é interesse político para a formação de corpos dóceis.
Em continuidade, identificando que os corpos não-normativos
sofrem repressões e preconceitos devido a normas sociais postas
(CORREA, 2013), criticamos a fomentação de legislações universalistas,
voltadas para atender às necessidades de grupos privilegiados,
invizibilizando as minorias e não atendendo às suas necessidades.
Enfrentamos no nosso país, neste ano de 2019, um retrocesso nas lutas
LGBT, entre outras, que desestabilizaram nossos direitos, como o direito
de existir. Logo, há um clamor conservador e neofascista, cuja família
hegemônica nos moldes que citamos é ultra valorizada e a perseguição a
qualquer identidade que a norma não contemple sofre violência (física,
simbólica ou psicológica).
Esse apagamento do público LGBT, sobretudo das pessoas
trans, bem como de nossas reivindicações e lutas, é resultante do fato de
que o protagonismo é controlado pelos padrões hegemônicos, sob
domínio heterossexual, cisgênero, branco e elitista (Lamberti; Maio,
2018).
Ponderando sobre essas instituições que influenciam o
pensamento e a formação da nossa sociedade, mas não esquecendo que
há outras aqui não citadas, é possível visualizar quão hostil elas são para
pessoas trans. Mesmo que algumas instituições acolham a elas e eles, é
pertinente lembrar que nossa sociedade é transfóbica e a resistência trans
é fato, tendo o contexto de o Brasil ser o país que mais assassina
transgêneras/os no mundo, segundo pesquisa do grupo Transgender
Europe (2016). Então retomamos a pergunta: quem é que está
transgredindo, o corpo à sociedade ou a sociedade ao corpo? Quem é que
está desafiando, a norma binária ao corpo ou o corpo à norma binária?
715
Sabemos que devemos obedecer às normas binárias de gênero
e quando insistimos em manifestar nossa própria identidade, somos
consideradas como transgressoras ou transgressores. O desvio. E quanto
maior a marcação desse desvio, maior a hostilidade. O corpo trans rompe
com a lógica dessa sociedade, então, é condenado ao desprezo e repulsão
eterna, ou pelo menos até ter alguma passabilidade61.
Guilherme Almeida (2012) ainda destaca que pessoas
transmasculinas possuem mais sucesso na obtenção da passabilidade que
as transmulheres. E então, como transhomem que convive com outros,
percebe que eles em geral unem-se em prol de obterem o corpo passável
e depois abandonam a militância e camuflam-se, prejudicando a causa, o
que é um pouco mais difícil de acontecer com as transmulheres, que
costumam militar politicamente muito mais em favor da causa trans.
Entretanto, acentuamos que é muito positivo que se sintam satisfeitos em
expressar suas identidades.
O objetivo principal dos corpos trans (e por que não cis?) é a
expressão de suas identidades antes de serem a “transgressão” dos
moldes dessa sociedade, como já falamos, porém, o objetivo principal da
sociedade binária é controlar esses corpos e punir aos que desviam. Por
conseguinte, podemos afirmar que a norma binária da sociedade é que
transgride esses corpos e que os violenta. Não satisfeita, ainda os pune e
culpabilizam.
A partir da compreensão da sociedade e a repulsão de corpos
marcados como trans, problematizamos: que corpos são esses? Nas
mídias e no estereótipo social, são corpos invisíveis, corpos expulsos,
corpos marginais, corpos hostilizados. Esses termos são marcas que a
comunidade trans tem lutado para romper, não só o estigma, mas o
61
Termo utilizado por pessoas trans para qualificar pessoas que tiveram
resultado na transição de gênero de modo que seja interpretada/o como uma
pessoa cis.
716
(cis)tema62. Luma Nogueira de Andrade (2014, s/p), primeira doutora
trans do Brasil, situa-nos sobre o contexto de violência que a sociedade
marca a travesti como um monstro.
62
Neologismo da militância trans que faz elisão entre o sufixo cis da palavra
cisgênero e a palavra sistema, cujo sonoramente não se altera, mas contém o
significado de sistema que tem a cirgeneridade como padrão.
717
travesti e transexual (ANTRA, 2018b) prostituindo-se. Não colocamos
aqui a prostituição como extremamente negativo, afinal, Oliveira (2018)
já nos alertou para não tratá-las como “carne que se vende na esquina”
(OLIVEIRA, 2018, p. 70). Mas repensarmos que essas esquinas são
espaços onde suas vozes ecoam, oferecem-nas autonomia e tornam-nas
agentes da ação.
Assim, levantamos a urgência de pensarmos em nossos
trabalhos acadêmicos sobre a hostilidade transfóbica da nossa sociedade.
Temos ainda um contexto muito hostil para todas as identidades
transgêneras, além de perigoso, e que precisa ser superado através de
esclarecimentos acadêmicos e lutas militantes.
Considerações finais
A sociedade cisheteronormativa impõe, em diversas
instituições sociais, padrões sociais e culturais hegemônicos aos/às
sujeitos/as, os quais são manifestos como normas a serem cumpridas.
Como o terreno escolar não está isento dos ocorridos exteriores a ele,
estas atitudes descritas não se distanciam da instituição escolar, logo,
esse espaço tende a atuar de modo disciplinar e normatizador,
marginalizando corpos que performem para além da dita normatividade
cisheteronormativa, reafirmando preconceitos e estereótipos.
Compreendemos que se tratam de estratégias de coerção social da escola,
na sociedade contemporânea, para disciplinar os/as sujeitos/as que
adentram a este território.
Posto isto, reiteramos que a sociedade tem marginalizado
pessoas trans e colocado à margem da sociedade, inclusive em espaços
educativos, os quais predizem a extensões de formação humana e que,
entretanto, exibem traços das violências estruturais, com posturas
universalistas e que viabilizam posturas hegemônicas.
Sentimos a falta e sugerimos que haja mais produção sobre (e
de) pessoas não-bináries. É necessário refletirmos e produzirmos mais
conhecimento sobre, para que possamos elaborar políticas de
enfrentamento, assim clamamos como Guilherme Almeida (2012).
718
Em suma, é possível apontar que a sociedade cisgênera e
cisheteronormativa, marginaliza e afasta grupos não-hegemônicos lidos
como minorias, sobretudo os corpos trans, impondo fatores hierárquicos
que evidenciam discursos de poder segregacionistas e desiguais.
Referências
ALMEIDA, Guilherme. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela
das masculinidades? Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 513-523,
maio-agosto, 2012.
719
BENTO, Berenice. O que é transexualidade. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2012.
720
resistência e ocupa(ações) nos espaços de educação. Rio Grande: Ed.
Da FURG, 2018: p. 69-88.
721
PORNOGRAFIA, MÍDIA E EDUCAÇÃO: O
DESEJO E O CONSUMO DOS ARTEFATOS
CULTURAIS PARA HOMENS GAYS63
Samilo Takara
(Universidade Federal de Rondônia)
63
Este texto é fruto das discussões realizadas no Estágio de Pós-Doutorado em
Comunicação realizado sob a supervisão do Prof. Dr. Rodolfo Rorato Londero
(UEL/PR) que está em diálogo com o relatório final apresentado sob o título “O
prazer diante dos Outros: pornografia e a erotização dos corpos masculinos
gays”.
722
Palavras-chave: Educação. Sexualidade. Pornografia. Estudos
culturais. Teorizações Foucaultianas.
This text problematizes the relation between the media and the education
skewed by the analysis of the pornography as a system of symbolic
dimension that inscribes, organizes and systematizes modes of
relationship with the bodies, the eroticism and the possibilities of the
homosexuality in the contemporaneity. Thus, the question that plagues
this discussion is: how does sex between men presented by gay
pornography constitute cultural pedagogies that influence and regulate
the bodies of homosexual men based on a desire-consumption system?
In order to contribute to this discussion, the general objective of this
study is to investigate cultural pedagogies that inscribe the dynamics of
desire that produce a consumption of bodies in gay pornography. The
theoretical-political support of this problematization occurs through
Cultural Studies, Queer Studies and the problematizations offered by
Foucaultian theorizations. This study has a qualitative and exploratory
character and is interested in circumscribing the relationship between
consumption and desire organized by the pornographic industry that
establishes patterns and disseminates consumer logic through the
discourses present in these cultural artifacts. We consider in this study
that contemporary plasticity offers specific patterns of bodies for
consumption and a logic of gay sexuality as something to be consumed
in a macho, heterocentered, white system and sustained by a logic of
commercialization of sexual practices.
Keywords: Education. Sexuality. Pornography. Cultural studies.
Foucaultian theorizations.
723
A mídia ter interferido em nossas representações. Os jogos de
sentidos e significados que são realizados pelas produções midiáticas
alteram a produção dos relacionamentos por meio de um jogo entre a
visualidade e a discursividade e geram estereotipias dos relacionamentos
(DELEUZE, 2005; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Assim, a
compreensão de diferentes ações, a produção, a difusão e o consumo
inscrevem lógicas que desde as imagens midiáticas e os discursos
organizam modos de ser e de agir nas sociedades contemporâneas.
Patzdorf (2018, p. 178, grifo do autor) explica que a mídia
começa a fazer parte de nossas práticas sexuais, porque “[...] estamos
transando na internet”. Essa interação com as possibilidades de produção
e recepção de conteúdos que a rede nos permite desenvolver em larga
escala e em uma velocidade ímpar, faz com que a ideia de sexo seja
ampliada para o autor a um ponto que as relações sexuais também
ocorrem ao “alisar superfícies luminosas e adimensionais”
(PATZDORF, 2018, p. 180).
As imagens pornográficas têm participado de nossas interações
com o sexo como ato e com a sexualidade como expressão dos nossos
desejos e realização em prazeres. A diferença no acesso, na produção, na
difusão e no consumo de imagens sensuais, eróticas e pornográficas que
ocorre com a internet é participação na produção de imagens e conteúdos
e a velocidade com que este artefato pode ser disponibilizado e
consumido.
Entretanto, é necessário que problematizemos como a mídia, e
seus diferentes produtores e produtoras de conteúdo erótico, sexual e
pornográfico interferem na construção de uma visualidade do ato e
inscrevem suas representações nas dinâmicas das sexualidades. Patzdorf
(2018, p. 181) argumenta que “[...] o consumo do obsceno se emancipa
das narrativas das grandes empresas produtoras de pornografia com o
surgimento da tecnologia digital, pois são seus potentes consumidores
que passam a produzir o seu próprio conteúdo [...]”. Esta percepção
conduz a uma problematização.
724
Compreendendo a capacidade das indústrias midiáticas de massa
que constituíram seus grandes processos discursivos no decorrer do
século XX e pluralizaram representações que foram constituidoras e
produzidas nas dinâmicas de acesso aos elementos tecnológicos,
compreendemos que a mídia, principalmente, o rádio, o cinema e a
televisão são resultados de sistemas industriais de produção de conteúdo
no século XX e modificaram a relação com a informação que era
produzida para veículos impressos como o jornal, a revista e o livro.
Assim, as mídias constituíram um público e, por meio de
tentativas de mercado, estratégias comerciais e lógicas de produção e
disseminação, formularam o que é chamado pelos estudiosos da
Comunicação e da Educação de meios de comunicação de massa. Mesmo
que se possa produzir conteúdo, tal como argumenta Patzdorf (2018),
estes produtores de conteúdo erótico e pornográfico também foram
educados por narrativas midiáticas industriais.
725
aberta para a exposição de jogos sexuais mediados ou mesmo a prática
de transar com pessoas assistindo seu ato sexual em tempo real – não são
descoladas do sistema discursivo das indústrias da pornografia.
726
câmera e expostos – com ou sem o consentimento das subjetividades
produzidas e constituidoras das expressões corporais que estão
visualizadas nas imagens pornográficas – foram também resultados dos
sistemas de consumo e das práticas de significação e objetificados para
servirem ao mercado pornográfico.
Pornografados, os corpos seguem as lógicas do sistema de
consumo que perpassa as academias de ginástica, as dietas nutricionais,
as indústrias de moda, beleza e estilo que configuram os corpos, suas
expressões e impressões na lógica de uma vitrine do corpo que o
espectador deve ter, o desempenho sexual que deve buscar e orientar
quem são os parceiros possíveis para as empreitadas gravadas que
ocupam o lugar de uma experiência do fenômeno que o ato sexual é.
Corpos que servem a um sistema de produção, como nos explicam
Haraway (2009) e Preciado (2018).
Indústrias que formam verdadeiros conglomerados que oferecem
a realização de uma vida de propaganda ou de novela: a pornografia é a
cena que não cabe nos produtos popularizados na televisão e que não
cabem nas propagandas, mas também compartilha do papel pedagógico
da mídia de ensinar modos de ser e de agir. Pornografados, os corpos
devem funcionar como máquinas e satisfazer mais aos olhos do que a
pele ou outras zonas erógenas. Somos corpos construídos e consumidos
na cultura (HARAWAY, 2009; PRECIADO, 2018).
Vinculados aos sistemas de representações que interferem em
nossas subjetividades e constituem maneiras de ser e de agir, a
pornografia é o obsceno que – mesmo em diferentes contextos – gera
outra dimensão da visualidade. Assim, a ideia de uma experiência de
visualidade ocupa o centro da lógica sexual contemporânea. Nosso órgão
sexual central na sociedade ocidental capitalista contemporânea é o olho.
727
corpo se reduz ao sexo, não há diluição do desejo
para além desta limitação. (GERACE, 2015, p. 15-
16).
728
um grupo que não necessariamente é alguém a ser respeitado: a
pornografia é um espaço capitalista democrático em primazia. Ao invés
da discriminação, as imagens de homens nus praticando atos sexuais de
diferentes modos e constituindo uma representação da heteronorma em
relações gays tem uma aba nos principais sites de conteúdo profissional
e amador pornográfico.
Problematizar os espaços que a pornografia oferece e indicar
sentidos possíveis para a construção das representações gays pela
indústria é um modo de reconhecer os impactos desses artefatos culturais
na construção das subjetividades e corpos que experimentam a relação
com a câmera e as possibilidades do sexo e da mídia. As pedagogias
pornográficas inscrevem ordens de urgência nesses sujeitos que assistem
e (re)produzem a lógica sexual que tem como objetivo o prazer daquele
que olha, ou seja, “[...] o importante é parecer” (SIBILIA, 2008, p. 84,
grifo da autora). Desse modo, ao invés de sentir, o importante é mostrar.
Esse sujeito que implora o olhar, tal como explica Zago (2013)
é produto de uma lógica de consumo e exploração dos corpos que
fragiliza outras possibilidades de experimentação. As cenas estão prontas
e o usuário deve escolher um papel a ocupar. As sexualidades inscritas
pelas pornografias são visuais e insensíveis, transparentes como ensina
Han (2017). Assim, problematizar a sexualidade é entender que existem
modos de movimentação que estão dados prontos. O corpo é insensível
às repetições das imagens. Ou seriam as imagens a única forma de
expressão que a pornografia nos permite?
729
Gerace (2015, p. 18) argumenta que “[...] a pornografia é só
mais uma das representações visuais possíveis sobre o sexo, uma
estratégia de construção e organização imagética que ordena e embaralha
os níveis de obscenidade”. Em contraponto, Despentes (2016, p. 77) diz
que “[...] a gente fica molhada ou tem uma ereção, depois pode se
perguntar o porquê. A imagem pornográfica não nos deixa escolha: é isto
que te faz reagir. Ela sabe onde apertar para que funcionemos”
(DESPENTES, 2016, p. 77).
Assim, o pornográfico não seria apenas uma representação e,
ao mesmo tempo, não só um apertar de botões. Han (2017, p. 33) explica
que a “[...] coação expositiva leva à alienação do próprio corpo,
coisificado e transformado em objeto expositivo, que deve ser
otimizado” (HAN, 2017, p. 33). Entre o que representa e o que sentimos,
fica explícita nossa condição de consumidor e produto na dimensão da
indústria pornográfica.
730
e usos de mercado capitalista, misógino, machista e homofóbico que
reproduzem sistemas farmacopornopolíticos (HARAWAY, 2009;
PRECIADO, 2018).
Uma das inscrições que a lógica pornográfica nos oferece é a
dimensão da sexualidade inscrita em uma lógica heteronormativa acerca
dos corpos e das representações. Assim, em uma busca rápida pelos sites
de hospedagens de vídeos pornográficos amadores e profissionais, há
materiais que estão disponíveis para o público gay e representam o sexo
entre dois homens e a palavra heterossexual ou hétero ou as referências
a uma masculinidade tóxica como macho, brother, mano e outras
derivações dessa representação figuram como ativos e são fetichizados
pelas narrativas pornográficas.
Do mesmo modo, a noção de desejo de consumo cria lógicas
como quadros que são disponíveis como o gay for pay, em tradução
literal, gay por dinheiro, em que rapazes pretensamente heterossexuais
aparecem em cenas e fazem sexo com homens gays – que estereotipados
são delicados, ou menores, ou menos viris ou, ainda, em uma posição de
submissão perante a visão de masculinidade do heterossexual – que
aparentam realizar uma fantasia da sexualidade gay de fazer sexo com
alguém que não tem interesse e está obrigado por algum tipo de valor
comercial.
Miskolci (2017, p. 155) explicita que essa masculinização e a
visão depreciativa da feminilidade masculina tem sido denominada de
“efeminofobia e transfobia”. Ao mesmo tempo, explica que “é
necessário ponderar que a valorização da masculinidade e o afastamento
da feminilidade por muitos sujeitos constituíram estratégias para driblar
a identificação como homossexual em contextos em que isso envolveria
o risco de sofrer sanções sociais” (MISKOLCI, 2017, p. 155).
Ao mesmo tempo, Mombaça (2017) explica que a
masculinidade tóxica é um “projeto de poder que deve ser abordada em
qualquer discussão sobre a distribuição social da violência”. Desse
modo, ponderar sobre as possibilidades de contexto e vivência e/ou
sobrevivência também é reconhecer os privilégios que instituem os
731
modos de pensar e de ser e suas recompensas nas culturas machistas,
misóginas e homofóbicas. É imprescindível marcar que “essa
distribuição desigual da violência – que constrói corpos cis-masculinos
como intrinsecamente viris – é responsável, numa escala micropolítica,
pela manutenção do medo com base das experiências trans, dissidente
sexual e feminina para com o mundo” (MOMBAÇA, 2017, p. 303).
Assim, a fetichização e valorização da masculinidade viril e
tóxica que sustenta lógicas no sistema pornográfico é, ao mesmo tempo,
um privilégio na compreensão social que vivemos, porque a homofobia,
a misoginia e o machismo modelam formas de agir e de ser que permitem
as masculinidades tóxicas ataques e violências diretas aos corpos e as
subjetividades afeminadas e/ou distantes da masculinidade oferecida
nesse sistema de consumo. Assim, a ideia de uma possível proteção e/ou
os riscos que fazem a escolha por uma “passar por” heterossexual, tal
como explica Miskolci (2017, p. 158) também é uma condição
privilegiada para gays afeminados e pessoas trans que não tem condições
afetivas, sociais, culturais e/ou subjetivas de “passar por”.
732
estamos morrendo sozinhas e sem nenhum tipo de
reparação seja do estado, seja da sociedade
organizada. Redistribuição da violência é um
projeto de justiça social em pleno estado de
emergência e deve ser performada por aquelas para
quem a paz nunca foi uma opção (MOMBAÇA,
2017, p. 305).
733
representação hegemônica nos segmentos homossexuais” (MISKOLCI,
2017, p. 235-236).
Assim, a projeção midiática mudou os focos e, neste momento
dos usos das tecnologias, cada vez é mais possível à interferência dos
aparatos midiáticos e dos modos de usá-lo na sexualidade
contemporânea. Entretanto, a pornografia enreda e promete usos e
acessos a estas tecnologias. Exemplo disso é a assimilação dos usos dos
aplicativos de relacionamento que pulverizaram na vida gay
contemporânea e que estruturam as narrativas pornográficas e as
imagens que são usadas para verificar que corpo é o que importa neste
momento (ZAGO, 2013).
734
bem produzidos e editados. A pornografia é uma forma de inscrição das
narrativas e dos discursos de regulação sobre os corpos que interferem
nas posições objetivas e subjetivas que estamos inscritos.
Esquadrinhados por um sistema de representações e esculpidos
por uma estética editável, os corpos nas imagens pornográficas são
possíveis em diferentes espaços e acessados nas telas de diferentes
aplicativos. O corpo pornográfico é o corpo-que-importa da
contemporaneidade. Esbelto, atlético, disponível e inscrito em uma
lógica sexual que promete acesso fácil a dinâmicas de prazer por meio
da visualidade.
735
Se a pornografia como discurso não tivesse tornado nossas
subjetividades e moldado nossos corpos para uma forma de experiência
sexual que está vinculada a uma heternorma, talvez não estivéssemos
vinculados a uma lógica corporal que está nas relações de consumo.
Próximos ao funcionamento de vitrines e cardápios, os “[...] aplicativos
atuais podem ser compreendidos como tecnologias subjetivo-corporais
de gênero, contextos de socialização que ‘ensinam’ a ser ou parecer
hétero e a desejar os mais bem-sucedidos nesse exercício” (MISKOLCI,
2017, p. 277).
Não apresentar trejeitos, não expor sua sexualidade, ter máscaras
objetivas, subjetivas e/ou tecnológicas, ao mesmo tempo, ser um corpo
admirável, desejável e disponível. As regras para a vivência
homossexual participam de uma lógica egocentrada e que esvazie a
dimensão política de nossas representações. As subjetividades gays bem-
sucedidas nas lógica de exposição não precisam de uma postura política
e não assumem o lugar na luta contra o sistema de opressão. Vulneráveis
ao sistema de consumo e a manutenção de privilégios, ignoram pautas
de homens trans, mulheres cis e trans, lésbicas, bissexuais e demandas
vinculadas às questões de raça, etnia e posições políticas.
736
machismo, a misoginia, a homofobia, o racismo, a transfobia e outros
discursos, no intuito de servir de exemplo do que foge da norma. Os
corpos musculosos e jovens imploram por serem vistos, diz Zago (2013).
O resto de nós é apenas massa de consumo para desejar esses corpos.
Nossas sexualidades estão adoecidas, bem como nossas formas
de alcançar prazer e cuidar de si para ressoar as dinâmicas
heternormativas. Nossas subjetividades estão tentando acompanhar uma
maratona para dar conta do sistema de consumo e, desse modo,
desarticulados as demandas de lésbicas, bissexuais e mulheres e homens
trans, nossos corpos e subjetividades são fetichizados não apenas com
nosso consentimento, como também com a nossa vontade de não sermos
diferentes.
O elogio da heteronorma diz para os gays que não parecem
homossexuais que eles estão indo bem. O resto de nós ou corre atrás
dessa estética-escudo-cabresto que não protege, mas faz parecer que por
não olharmos para outras demandas e bandeiras que os heterossexuais
nos aceitam porque a masculinidade é protegida e com ela seus
privilégios e, em outro sentido, nos faz entender que desejo é o foco da
vida gay contemporânea. Como quem corre atrás da cenoura, ou bate na
barra para ter água, fomos comportamentalizados. Corpo inscrito nas
fotografias, bebidas e risadas nos fins de semana, uso inconsequente de
entorpecentes, carreiras estimuladas por meritocracia e uma comunidade
inteira que é esquecida pelo desejo de seguidores em redes sociais.
Considerações finais
Desde a inscrição de grupos gays no sistema pornográfico,
fomos estimulados ao consumo de representações que expresse como a
pornografia está inscrita em nós como sistema específico de estética-
escudo-cabresto. O desejo gay contemporâneo chegou à era do biscoito.
Esse termo é usado agora para fotos expostas em redes sociais com o
intuito de, por meio de número de curtidas, expressar ao emissor da
imagem que ele é merecedor de um reconhecimento. Assim como feito
com cães que executaram a manobra pedida corretamente, o gay que tem
737
seu corpo e sua subjetividade adequadas e corresponde aos ideais
midiático-pornográfico ofertados ganha um gostei. Biscoitos não são
desperdiçados, eles educam uma lógica e comportamentalizam as
subjetividades.
Reconhecer esse aspecto educativo que inscreve a pornografia
como um evento e expõe maneiras de ser e de agir, também é visibilizar
como a mídia sugere sentidos e educa as subjetividades e os corpos.
Mesmo o sistema pornográfico não tenha o mesmo impacto sobre a
sexualidade hoje como ocorreu em outros momentos, percebemos que
essas imagens não perdem seus efeitos, mas se especializam. O modelo
estético-escudo-cabresto da masculinidade jovem e atlética protege um
sistema e não o indivíduo.
Problematizar os aspectos de captura dos nossos desejos e
corpos e, desse modo, como estruturamos maneiras de ser e de agir
também auxiliam uma forma de crítica e interpretação da realidade
contemporânea acerca dos outros e de nós. Se a masculinidade é louvada
e protegida nas redes e nas vivências urbanas, o potencial dessa figura na
dinâmica de consumo da pornografia é pedagógico e também formador
de uma dimensão de valor. As sexualidades deviam buscar o prazer, tal
como disse Foucault a Deleuze (1994). Ao invés disso, o desejo do que
falta nos faz esquecer que estamos sendo mortos todos, inclusive os que
parecem menos gays. As nossas vidas só servem se não são vividas, mas
sobrevividas neste sistema.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do
nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
738
DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins;
Renato Ribeiro. 5.
reimp. São Paulo: Brasiliense, 2005.
739
journals.uc.pt/mediapolis/article/view/6115>. Acesso em: 04 jan.
2019.
740
REPRESENTAÇÃO SOCIAL,
HOMOFOBIA E HOMOSSEXUALIDADE:
UM ESTUDO CORRELACIONAL DOS ANOS
2006 E 2016
741
SOCIAL REPRESENTATION, HOMOPHOBIA AND
HOMOSEXUALITY: A CORRELATIONAL STUDY OF THE
YEARS 2006 AND 2016
742
Introdução
Neste artigo apresentamos um estudo correlacional entre os anos
2006 e 2016, um recorte de uma pesquisa longitudinal, realizada ao longo
dos anos de 2006 até 2016 intitulada: “A Representação Social da
Homofobia: análise de uma década de estudos sobre o preconceito em
uma população”. O trabalho é caracterizado como uma pesquisa de
levantamento, anual, com abordagem direta aos transeuntes nas ruas de
uma cidade do interior do Estado de São Paulo, o que possibilita o
conhecimento da realidade, na medida em que as próprias pessoas
informam acerca de suas crenças e opiniões.
Observamos ao longo dos anos, principalmente a partir da virada
do século XXI que a compreensão sobre os fenômenos da
homossexualidade e da homofobia sofreram modificações com as novas
políticas de afirmação e garantia de direitos da pessoa homossexual, bem
como a maior visibilidade na mídia brasileira e, além disso, a realização
e disseminação de estudos acadêmicos sobre esse público (BORRILO,
2009). Apesar da popularização dos termos da diversidade sexual, a
noção de anormalidade e exclusão de pessoas homossexuais ainda se
encontra presente na sociedade via manifestações arbitrárias que
abrangem atitudes discriminatórias à pessoa homossexual, como se ela
fosse uma pessoa anormal e inferior em relação às pessoas
heterossexuais (RODRIGUES, LIMA, MENDONÇA, 2010).
Nesse sentido, a teoria das “Representações Sociais”, de
Moscovici, desponta como uma ferramenta eficaz na compreensão
dessas ‘visões’ sobre a homossexualidade e homofobia. De acordo com
Moscovici (2007), as representações sociais se mostram presentes no
cotidiano, pois elas sustentam simbolicamente as nossas ações e relações
ao mesmo tempo em que as ações e relações cotidianas fornecem
elementos simbólicos para os comportamentos humanos.
Sobre isso, Torres (2010) aponta que sujeito e sociedade sempre
“andam de mãos dadas”, sendo impossível pensa-los como categorias
separadas nas análises piscossociais, pois sempre se encontram em inter-
relação. A sociedade pode ser entendida como pensante, na medida em
743
que os “indivíduos pensam juntos sobre os mesmos assuntos, recebem
informações e ideias de fora e as processam para transformá-las em
julgamentos, opiniões” (ANDRADE, KOELHER, MAIA, 2015, p. 38901)
ou mesmo em ações, assim, este estudo buscou comparar os dados sobre
a compreensão dos termos homofobia e homossexualidade entre a
população e o processo de mudanças nas representações sociais do
fenômeno da homofobia e da homossexualidade em uma dada população
a partir de uma análise correlacional dos anos 2006 e 2016.
744
(DIEHL, VIEIRA, 2017) sendo definida como “uma doença fisiológica
causada por distúrbios genéticos ou biológicos” (LACERDA,
PEREIRA, CAMINO, 2002, p. 167). Porém, ao longo do século XX,
com a influência dos estudos em psicanálise, os escritos de Foucault e os
estudos empíricos sobre o comportamento sexual da população
masculina e feminina estadunidense realizados por Kinsey (LOYOLA,
2003) inicia-se a transformação do cenário de patologização das
expressões sexuais discrepantes da hetetonormatividade. Nos anos
sessenta, vemos aparecer os primeiros movimentos homossexuais
seguido, na década de setenta, do início da desvinculação da
homossexualidade do conceito de doença através do posicionamento da
Associação Psiquiatria Americana (APA, 1975). Somente na década de
noventa a homossexualidade deixa de ser considerada como doença e é
retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
No Brasil, segundo Irineu (2014), ao longo da história das lutas
LGBTQIA+, verifica-se ao final dos anos 1980 o surgimento de algumas
ações governamentais destinadas a esse público “geralmente voltadas
para o âmbito da saúde, e outras no âmbito da segurança pública”
(IRINEU, 2014, p. 196), como por exemplo as políticas brasileiras de
combate à epidemia de HIV/Aidis (ibidem).
Em 28 de julho de 1997 surge, em São Paulo, outro marco na
história do movimento homossexual no Brasil: a primeira Parada do
Orgulho GLT, conhecida popularmente como Parada Gay. Da década de
1990 até os dias de hoje a Parada Gay sofreu muitas transformações, a
começar pela sua dimensão, na primeira edição participaram cerca de
2000 pessoas, enquanto que, em 2018, a 22ª edição do evento contou
com cerca de 3 milhões de pessoas, tornando-se a maior parada LGBT+
do mundo.
Além do mais, é interessante notar que o evento se encontra
“longe de reafirmar unicamente os poderes de uma política identitária
fronteiriça e coerente” (TRINDADE, 2011, p. 94) entre as diversidades
sexuais, como se torna claro pela inexistência de alas representativas de
cada segmento LGBT+, o que revela, paralelamente, “as muitas
745
conexões e alianças estabelecidas em nome do respeito à diversidade”
(ibidem). Segundo Facchini (2009), os homossexuais só começam a ser
reconhecidos no campo da promoção dos direitos humanos a partir de
1996 com a criação do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH,
1996). A partir dos anos 2000 inicia-se ações mais abrangentes, com a
criação Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), em
2001, a elaboração do Plano Nacional de Direitos Humanos-II (PNDH),
em 2002, e a aprovação do PNDH-III, em 2009. Para Mello, Avelar e
Brito (2014):
746
O termo homofobia é designado como preconceito, aversão,
repulsa e ódio contra os homossexuais. Segundo Junqueira (2009), o
psicólogo estadunidense George Weinberg, em 197264, publicou estudos
sobre a “personalidade homofóbica”. Entretanto, apenas ao final da
década de 1990 o termo começou a fazer parte dos dicionários europeus
(BORRILO, 2009).
64
Foi na pesquisa do psicólogo estadunidense George Weinberg, procurando
identificar os traços da “personalidade homofóbica”, realizada nos primeiros
anos de 1970, que o termo ganhou foros acadêmicos, correspondendo a uma
condensação da expressão “homosexualphobia”.
747
[...] os homossexuais não são mais as únicas
vítimas da violência homofóbica, que se dirige
também a todos os que não aderem à ordem clássica
dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais,
mulheres heterossexuais que têm personalidade
forte, homens heterossexuais delicados ou que
manifestam grande sensibilidade (ibidem, p. 18).
748
A democratização do acesso à internet e consequente aumento
da produção de informação tem ampliado a visibilidade de crimes
homofóbicos. (BRASIL, 2016). De acordo com o Relatório sobre
violência homofóbica no brasil:
749
é significativamente mais alta do que entre
heterossexuais: “jovens rejeitados por sua família
por serem LGBT têm 8,4 vezes mais chances de
tentarem suicídio” e “lésbicas, gays e bissexuais
adolescentes têm até cinco vezes mais chances de
se matarem do que seus colegas heterossexuais”.
(p.16)
750
e não de um reprodução desses comportamentos ou
dessas relações, de uma reação a um dado estímulo
exterior. Em suma, vemos aí sistemas que têm uma
lógica e uma linguagem particulares, uma estrutura
de implicações que assenta em valores e em
conceitos. Um estilo de discurso que lhes é próprio.
Não os consideramos como “opiniões sobre” ou
“imagens de”, mas como “teorias”, “ciências
coletivas” [...] destinadas à interpretação e
elaboração do real (MOSCOVICI, 1978, p.50).
Método
Como já anunciado, o estudo apresentado neste artigo é um
recorte de uma pesquisa survey, longitudinal que vem sendo aplicada
anualmente, desde 2006, caracterizada como um estudo descritivo, de
abordagem quantitativa e qualitativa. Conforme sinaliza Gil (1996) as
pesquisas descritivas têm como objetivo primordial a descrição das
características de determinada população ou fenômeno ou, então, o
estabelecimento de relações entre variáveis.
Apresentaremos a análise da amostra de seiscentos e vinte e três
participantes (623) correspondentes aos anos de 2006 e 2016, entre
jovens, adultos e idosos, transeuntes de um município do estado de São
751
Paulo, com idade a partir de 1665 a 92 anos. Todos os participantes foram
convidados a participar por adesão espontânea após explicação dos
objetivos da pesquisa, constituindo, assim, estatisticamente, uma
amostra de conveniência.
O instrumento utilizado foi um questionário semiestruturado
dividido em duas partes. A primeira corresponde à caracterização do
participante com os seguintes dados: sexo; idade; profissão; cor e
religião. A segunda, conta com questões abertas e fechadas, nas quais os
participantes respondem se sabem ou não o significado dos termos
homofobia e homossexualidade e qual sua opinião sobre os termos.
Foram analisadas duas questões fechadas (Sim/Não): “Você sabe o que
é homofobia?” e; “Você sabe o que é homossexualidade?”.
65
A escolha dessa idade tem como base o Estatuto da Juventude, o qual
considera como jovem pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade e
discorre, entre seus pontos, sobre direito destes à participação social e política
e na formulação, execução e avaliação das políticas públicas de juventude. Cf.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12852.htm.
752
Um aspecto importante são as ações no âmbito das políticas
públicas. No contexto brasileiro, desde a década de 1980 pode se
observar iniciativas governamentais destinadas ao público LGBTQIA+,
inicialmente voltadas apenas para o âmbito da saúde (IRINEU, 2014) e,
nos anos subsequentes à promoção dos direitos humanos da pessoa
homossexual, como por exemplo a criação do Plano Nacional de Direitos
Humanos I, II e III (PNHD, 1996; PHNDII, 2002; PHNDIII, 2009) e o
Programa Brasil Sem Homofobia (2004) (FACCHINI, 2009). Outro
ponto que devemos citar é a maior representatividade da comunidade
LGBTQIA+ na sociedade e na mídia brasileira atualmente. Inicialmente
representada na mídia nacional de forma estereotipada, como, por
exemplo, na figura do homem gay afeminado, escandaloso e engraçado,
estereótipo muito utilizado pelo humor brasileiro, passa, a partir de 2011,
ainda de forma tímida, a ser representada nas novelas nacionais num
escopo diferente do humorístico, como por exemplo na novela “Amor e
Revolução” (SBT, 2011), “Amor à Vida” (Rede Globo, 2014) e
“Liberdade, Liberdade” (Rede Globo, 2016). O relacionamento de casais
homossexuais passa a ser explorado e o preconceito contra este grupo
começa a fazer parte da trama desses personagens.
Além disso, não podemos deixar de citar as inúmeras ações e
cartilhas66 realizadas pela UNESCO que possuem o intuito de fornecer
aos Estados subsídios para a implementação de políticas públicas de
promoção de direitos à comunidade LGBTQIA+ (UNESCO, 2010).
66
Podemos citar como exemplo os documentos “Respostas do Setor de
Educação ao bullying homofóbico” (UNESCO, 2013), as Orientação Técnica
Internacional sobre Educação em Sexualidade” (UNESCO, 2010), as
“Orientações técnicas de educação em sexualidade para o cenário brasileiro:
tópicos e objetivos de aprendizagem” (UNESCO, 2014), a cartilha “Jogo
aberto: respostas do setor de educação à violência com base na orientação
sexual e na identidade/expressão de gênero” (UNESCO, 2017) dentre outras.
753
Corroborando com os dados aqui apresentados, Koehler (2009)67
nos mostra que no ano de 2006 apenas 2,21% da população relaciona a
‘homofobia’ a rejeição/preconceito contra o homossexual ou a conceitos
próximos, como por exemplo “fobia a homossexuais”, “aversão a
homossexuais” ou “pessoa que tem raiva de homossexual”, enquanto
6,36% ligam o termo a expressão da homossexualidade, considerando-o
um sinônimo para essa forma de orientação sexual ou mesmo a própria
orientação em si.
Sobre o conceito ‘homossexualidade’, a análise dos anos de 2006
e 2016 mostrou que 95,53% dos participantes totais responderam
conhecer este conceito. Essa mesma configuração é visualizada em
ambos os anos desse estudo. Em 2006, 96,64% dos participantes
afirmam ter conhecimento sobre o termo e, da mesma forma, em 2016,
94,31% dos participantes responderam sim, a essa questão
A predominância de emissões “sim” pode estar ligada a difusão
do termo ‘homossexualidade’ ou ‘homossexualismo’68 entre a
população. Além disso, é indiscutível a existência de um saber popular
sobre o fenômeno da homossexualidade, pois a relação entre pessoas do
mesmo sexo, direta ou indiretamente, sempre foi reconhecida entre os
pares, ou seja, encontra-se presente na história da humanidade desde
sempre, existindo em diversas sociedades e culturas (TONIETTE, 2006),
sendo considerada em algumas sociedades algo natural, como por
exemplo na Grécia Antiga (FOUCAULT, 1984).
De acordo com Koehler (2009), no ano de 2006, 36,97% das
pessoas entrevistadas dizem compreender a homossexualidade como
forma de se relacionar com pessoas do mesmo sexo, enquanto em 2016,
67
Este estudo também corresponde a um recorte da pesquisa longitudinal,
realizada ao longo dos anos de 2006 até 2016 intitulada: “A Representação
Social da Homofobia: análise de uma década de estudos sobre o preconceito
em uma população”.
68
O termo ‘homossexualismo’, por sua conotação patológica, não é mais
utilizado desde os as 1990, ano que a Organização Mundial de Saúde o retirou
da Classificação Internacional de Doença (CID).
754
54,46% consideram-na como uma orientação sexual como qualquer
outra, a qual deve ser compreendida em sua totalidade (CORRÊA,
VILLELA, SANTOS, 2017)69. A comparação dos dados do presente
estudo com os que são apresentados por Koehler (2009) e Corrêa, Villela
e Santos (2017) apontam a discrepância entre conhecer o termo e saber
conceitua-lo de forma correta ou aproximada.
Um levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB,
2017) de 2002 a 2017, constatou-se que o ano de 2017 foi o de maior
incidência de mortes de pessoas LGBTQIA+, alcançando a marca de 445
mortes (387 assassinatos e 58 suicídios), um aumento de 30% em relação
ao ano anterior, no qual se registou 343 mortes.
Ao relacionar os dados do GGB com os do presente estudo nota-
se que, apesar do maior conhecimento e compreensão dos termos
homossexualidade e homofobia, a violência que tem como foco a
população LGBTQIA+ vêm aumentando ao longo dos anos.
Para maior compreensão desse quadro podemos citar como
exemplo a existência de movimentos heteronomartivos contrários a
organização e representatividade da comunidade LGBTQIA+ que
tentam manter a homossexualidade como uma vivência desviante da
sexualidade humana, através da difusão de discursos religiosos e
políticos, da ideia de “doutrinação para a homossexualidade”
representada pelo conceito “Ideologia de Gênero”, bem como a
existência de ações mais concretas a exemplo da criação do Projeto de
Lei (PL) 4931/2016 que dispõe sobre “o direito à modificação da
orientação sexual em atenção à Dignidade Humana”, popularmente
conhecida como “cura gay”.
O mesmo autor nos fala da importância de se enfatizar a função
de uma representação social, isto é, a finalidade a qual ela se destina,
69
Este estudo também corresponde a um recorte da pesquisa longitudinal,
realizada ao longo dos anos de 2006 até 2016 intitulada: “A Representação
Social da Homofobia: análise de uma década de estudos sobre o preconceito
em uma população”.
755
assim, o termo ‘homossexualismo’ foi criado justamente para categorizar
pessoas que possuem “uma orientação sexual desviante”. Tal construção
se relaciona com a representação social da heterossexualidade,
fundamentada pela -heteronormatividade ou heterossexismo que,
segundo Welzer-Lang (2001, p. 467-468) indica:
Considerações finais
A análise desses dados proporcionou uma breve compreensão
das representações sociais da homofobia e da homossexualidade e suas
transformações em um intervalo de dez anos, mas ainda indicam a
necessidade de implementação de políticas públicas e incorporação nos
currículos de Educação em Sexualidade tanto no Ensino Básico quanto
no Ensino Superior, principalmente, nos cursos para formação de
professores, no sentido de implementar práticas formativas de respeito a
pessoa e a diversidade de gênero, embasadas nos preceitos dos Direitos
Humanos. Ressalta-se que ao pesquisar sobre as representações da
homossexualidade e da homofobia numa dada população não se pretende
756
descobrir se tal representação “corresponde” ou não ao “real”, mas sim
como as “representações produzem sentido, quais seus efeitos sobre os
sujeitos” e como “elas constroem o ‘real’” (LOURO, 2014, p. 103).
A importância da utilização da teoria das Representações Sociais
é enfatizada por Ens, Villas Bôas e Behrens (2013), pois esta possibilita
estudo de questões de inúmeras áreas do conhecimento a partir de uma
perspectiva psicossocial. Tal perspectiva compreende que determinados
fenômenos tem constituição tanto social quanto pessoal. Segundo
Moscovici (1978), não devemos esquecer que as representações sociais
não são estáticas e suas transformações decorrem de um lento processo
de descarte e apreensão de novas informações, crenças, atitudes etc., as
quais irão se relacionar de forma direta com os contextos sócio-histórico-
cultural das sociedades.
Esse lento processo se evidencia no forte preconceito ainda
direcionado às pessoas homossexuais, bem como a toda comunidade
LGBTQIA+, não só em nível de exclusão, como também de violência
física e psicológica. A importância de estudos como este se dá através da
contribuição para a ampliação do conhecimento acerca das
representações sociais do fenômeno da homossexualidade e da
homofobia e, consequentemente, do fornecimento de subsídios para a
formulação e reestruturação de políticas públicas de proteção, inserção e
de promoção da comunidade LGBTQIA+.
Referências
ANDRADE, M. F.; KOEHLER, S. M. F.; MAIA, J. M. D. A
representação social de uma população sobre a homossexualidade no
ano de 2014. In: XII CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
12, 2015, Curitiba, Paraná. Anais... Curitiba, Paraná: PUCPR, 2015.
757
BRASIL. Decreto nº 1.904, de 13 de maio de 1996. Institui o Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Presidência da República,
1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1904.htm>. Acesso
em: 01 ago. 2018.
758
CORRÊA, S. S.; VILLELA, J. S.; SANTOS, G. J. P. A. A
representação social da homofobia na interface com a educação. In:
XIII CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 12, 2015.
759
JUNQUEIRA. R. D.; Educação e Homofobia: o reconhecimento da
diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In:______
(Org). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a
homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009, p.
367-444.
760
sociais. In: XV Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Psicologia Social, Maceió. Anais, 2010.
761
UM RECORTE DA CAMPANHA “FAÇA
BONITO 2018”: A PRÁTICA DOS ÓRGÃOS DE
REPRESSÃO FRENTE AO COMBATE DO
ABUSO SEXUAL INFANTO-JUVENIL
762
Palavras-chave: Abuso sexual. Violência sexual. Direito.
Introdução
Sendo o dia 18 de maio, instituído como o dia “D” da
campanha de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes em todas as unidades federativas do Brasil, este artigo trata
do relato de uma das ações realizadas na campanha “Faça Bonito: Proteja
763
nossas crianças e adolescentes” do ano de 2018. Nesta campanha, foram
reunidos representantes de instituições que atuam diretamente na
repressão ao abuso e violência sexual infanto-juvenil.
Pensando na importância do tema, a prefeitura municipal da
cidade de Bauru, localizada do interior do estado de São Paulo, em
parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (O.A.B) oportunizou à
comunidade uma série de eventos relativos ao tema da campanha já
citada. Dentre esses eventos ofereceu uma mesa redonda composta por
profissionais atuantes nas instâncias de repressão e combate ao abuso e
exploração sexual infanto-juvenil direcionada à profissionais voltados ao
combate e exploração ao abuso sexual infantil e estudantes dos cursos
de Direito e Serviço Social.
A literatura classifica de várias formas os tipos de violência
praticados contra crianças e adolescentes, nos meios extrafamiliar e
intrafamiliar, podendo ser física, sexual, por negligência, psicológica
e/ou institucional. Quanto à violência sexual, está dividida entre dois
tipos: Abuso Sexual e Exploração Sexual.
Os dois tipos de violência sexual se desenvolvem utilizando a
vulnerabilidade da criança e do adolescente, porém o abuso confere a
algo pessoal, normalmente de forma intrafamiliar, enquanto a exploração
sexual comumente está no meio extrafamiliar, podendo estar associada
ao tráfico de crianças. (RIBEIRO, FERRIANI & REIS, 2004).
FALEIROS & OLIVEIRA (2000) indica que:
764
o seio familiar. Também envolve uma questão de gênero, pois ela é muito
mais recorrente em meninas do que em meninos.
Portanto, podemos afirmar que a violência sexual é mais
recorrente no meio familiar, praticada por alguém do seio familiar
predominantemente do sexo masculino. O abusado encontra-se em
situação de vulnerabilidade e, na maioria das vezes, do sexo feminino.
Para coibir este tipo de ação a legislação assegura direitos
imprescindíveis para as crianças e adolescentes, como a própria
constituição de 1988 em seu artigo 227:
765
também, que segundo a lei, são considerados vulneráveis menores de 14
anos, pessoas com enfermidade ou doença mental e em casos onde a
vítima não possa oferecer resistência ao ato sexual, como em casos de
embriaguez.
Faleiros & Oliveira (2000) afirmam que o combate e a
repressão da violência sexual está dividido em dois circuitos, e a cada
um compete funções diferentes. Temos o circuito do atendimento, o qual
compete a execução de serviços sociais como “saúde, educação,
assistência, trabalho, cultura, lazer, profissionalização, serviços e
programas de proteção especial...”(p. 76). As instituições que fazem
parte desse circuito são as do serviço social, como secretarias do serviço
social e seus aparatos: Conselho tutelar, CREAS, CRAS, etc. O intuito
desse circuito é de acolher e proteger a vítima de violência, seja por
intenção ou por negligência.
Já no outro circuito, denominado “circuito da
responsabilização”, “temos as Delegacias, o Instituto Médico Legal, as
Varas da Justiça e o Ministério Público, órgãos responsáveis pela
investigação, pela prisão, julgamento, controle, execução e sanção do
abusador.” (Faleiros & Oliveira, 2000, p. 77).
Ainda segundo os autores é indicado que os dois circuitos
incoerentemente não se desenvolvem em sintonia, o que seria o ideal,
pois somente em sincronismo, conseguiríamos efetivamente construir
uma rede de proteção à criança e ao adolescente.
Ainda como fundamentação pode-se citar o documento
elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) denominado “Guia
Escolar: rede de proteção à infância” (2011) que divide as etapas de
proteção e combate ao abuso sexual infantil em três etapas diferentes,
sendo elas: prevenção primária, envolvendo instituições que tem como
foco “eliminar, ou pelo menos reduzir, os fatores sociais, culturais e
ambientais que favorecem os maus-tratos” (p.17) em ações preventivas;
prevenção secundária, visando “identificar precocemente crianças e
adolescentes em situação de risco, e dessa forma tentando evitar que atos
766
de violência aconteçam e/ou se repitam.” (p.18); Já como prevenção
terciária pode-se definir como “acompanhamento integral de crianças e
adolescentes em situação de violência sexual e do autor de violência
sexual. Diante do fato consumado, deve-se trabalhar para que o ato não
se repita.” (p.19).
As denúncias contra violência sexual podem ser executadas de
várias formas: Através da ligação telefônica para o número 190 (Polícia
Militar), caso seja necessária uma ação imediata de socorro; Se a
denúncia for por suspeitas ou não for realizada no momento do ato de
violência, pode-se ligar diretamente ao conselho tutelar; Há também o
disque 100, que desde 2006 é responsável por receber qualquer tipo de
denúncia de violência, tendo que em até 24h, à partir do momento da
denúncia, deve averiguar e tomar as providências que proteja a vítima.
É notório que os casos de abuso e violência sexual são
acentuados no Brasil, quando nos deparamos com amostragens
municipais ou estaduais. Contudo, não foi possível encontrar dados mais
abrangentes, a nível Federal, somente suposições analíticas. A BBC
Brasil, através do jornalista Mori (2018) publicou uma reportagem em
sua página da web informando o caos no controle de denúncias de
violência sexual contra crianças. Segundo o texto, houveram 15.707
denúncias realizadas no ano de 2016 pelo disque 100, porém, não foi
possível coletar dados de outros elementos importantes para o estudo do
caso, como os casos averiguados, a situação da vítima pós-denúncia e a
pena dos agressores.
O “Guia Escolar: Rede de Proteção à Criança” (2011) indica
alguns dados do disque denúncia (disque 100) entre os anos 2003 e 2010.
Houve, nesse período, um crescimento de 683% no número de
denúncias. Dentro da macrocategoria violência, a subcategoria violência
sexual estava em primeiro lugar em quantidade de denúncias, empatada
com as violências física e psicológica (36%). Dentro desses 36% das
denúncias categorizadas como violência sexual, 65,08% eram sobre
abuso sexual, 34,02% exploração sexual, 0,6% Pornografia e 0,3%
trafico de crianças e adolescentes.
767
A partir da lei federal nº 9.970/2000, o dia 18 de maio passa a
ser instituído como o “Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes”, em virtude do ocorrido nessa data
do ano de 1973, quando uma menina de oito anos foi seqüestrada,
violentada e cruelmente assassinada no estado do Espírito Santo. Este
acontecimento ficou conhecido como “Caso Araceli” e os agressores e
assassinos, jovens de classe média alta, ficaram impunes.
768
Após a cerimônia de abertura oficial do evento, cada convidado
possuiu a palavra por 20 minutos, tempo em que foi esclarecido ao
publico participante. Os representantes apontaram quais eram as suas
atuações no que tange a prevenção e o combate ao abuso e a exploração
sexual de crianças e adolescentes.
Os convidados que atuam com as redes de proteção, sendo eles
o conselheiro tutelar e a representante do CREAS, elencaram que o maior
problema que enfrentam é a grande demanda de casos para poucos
agentes, que tem a função de averiguar denúncias, tomar medidas
preventivas de proteção prontamente e levar os casos para o ministério
público. Eles indicaram que, não cabe à rede de proteção a investigação,
mas sim o apoio e proteção para a vítima e a família, quando a violência
é executada por um dos integrantes.
O representante do Conselho Tutelar apresentou os
procedimentos tomados quando recebida uma denúncia de abuso sexual
ou qualquer tipo de violência contra criança ou adolescente. Informou
que à princípio tentam averiguar o caso, pois existe também a
possibilidade de falsa denúncia. Ele relatou que nesse ponto não cabe
uma investigação profunda, mas sim uma questão de “tato” para que não
ocorra uma mobilização desnecessária das instâncias de repressão à
violência sexual infantil.
Nas palavras do delegado da polícia civil, foi explanada a
legislação de investigação criminal para crimes dessa natureza, com
ênfase na “oitiva única” (lei 13.431/2017) que, segundo ele, respeita a
vítima para que ela não permaneça em sofrimento por um grande período
de tempo após as ações preliminares de proteção e investigação.
O delegado informou que o procedimento deverá ser adotado
para vítimas de violência até os 18 anos de idade, e que é utilizada para
todos os tipos de violência: Física; psicológica; institucional e sexual.
Colocou também que, quando a vítima tem menos de 7 anos de idade ou
então por decorrência de violência sexual, ocorre um procedimento
cautelar de antecipação de prova, ou seja, mesmo antes da confirmação
769
da violência, o suposto agressor é retirado do convívio com a vítima, que
deverá ser atendida pelos órgãos de proteção.
Quanto à oitiva única, informou que deverá ser realizada por
escuta especializada e depoimento especial. Durante o processo, a vítima
estará livre de qualquer tipo de contato com o suposto abusador. A escuta
especializada deverá ser feita por um profissional da área de proteção,
enquanto o depoimento especial por autoridade policial ou judiciária.
Sendo assim, essa nova legislação garante à vítima o direito de prestar
depoimento uma única vez.
Em relação às ações no campo da Policia Federal, ficou
evidente que cabe a esta a responsabilidade sobre a investigação de
crimes à nível internacional e nacional que ultrapassam os limites
estaduais.
É de responsabilidade da Policia Federal também a
averiguação de crimes ocorridos através do uso da internet, como
pornografia infantil. Discorreu-se sobre a enorme dificuldade em
diagnosticar crimes via internet, mas também foi colocado que a
instituição conta com profissionais extremamente qualificados para lidar
com esse tipo de crime, conseguindo investigar as mais variadas formas
de distribuição de conteúdos que contemplem a nudez, a relação sexual
ou mesmo a sensualização de crianças, tráficos de pessoas entre outros
crimes.
Foi informado que existem outros tipos de rede além da
internet comum, como a “dark web” e a “deep web”, que causam mais
dificuldades na investigação, por serem redes mais profundas e
clandestinas, mas que mesmo assim deixam rastros que podem ser
usados de base para a investigação pelos agentes. Forneceu-se a
informação de que, em 2017, foram presos em flagrante 27 pessoas
através de investigação via rede de computadores, totalizando em 81
prisões por crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes por todo o
país.
Ocorreu uma diferenciação entre as categorias de pedófilo e
abusador, sendo o crime de pedofilia embasado na repetição do perfil do
770
abusado, ou seja, todo crime de pedofilia é praticado por um abusador,
porém nem todo abusador pode ser classificado como um criminoso
pedófilo.
Para encerrar a promotoria veio enriquecer discorrendo sobre a
necessidade de agilidade na resolução dos casos para que o abusado
possa ser acolhido em segurança e num lar afetivo sem que viva por
longos períodos a angústia que traz esse processo. Se esse indivíduo não
puder se manter em seu lar original, que o processo de adoção seja
decorrido rapidamente.
771
roupas usadas pela vítima ou pelo simples fato de um corpo
precocemente adulto.
Essa falha foi reconhecida pelos órgãos ali representados,
admitindo-se que há a necessidade de pessoas preparadas para a atuação
direta com esse tipo de crime, que se abstenha de pré-julgamentos, que
ampare e trate a situação da forma mais delicada possível, prevenindo os
traumas que podem ser gerados.
Conclui-se, portanto, que ações deste tipo deveriam ser mais
freqüentes, pois há necessidade de parcerias entre essas instituições para
um bom atendimento ao cidadão e a efetiva repressão e combate ao abuso
sexual infanto-juvenil, agindo assim como unidades parceiras e não
somente restritas as suas obrigações funcionais e/ou de ação, formando
uma efetiva rede de proteção às crianças e adolescentes.
Considerações finais
Foi possível notar que as Polícias Civil e Federal, o CREAS e
o conselho tutelar se ambientaram nas competências de cada órgão,
podendo assim se articularem da melhor forma, afim de que seja formada
efetivamente um rede de proteção à criança e adolescente. É evidente que
a harmonização entre os órgãos não pode ser efetivada de forma
instantânea, mas são propostas como essa que aproximam da
transformação do sistema que visa a garantia dos direitos previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição de 1988.
Embora os representantes dos órgãos de repressão estivessem
presentes, houve grande dificuldade em conseguir representantes. É
notável que os delegados e outros representantes não participem com
freqüência desse tipo de atividade, focando somente em suas atribuições
legais e treinamentos práticos. A polícia militar não disponibilizou
nenhum representante para a ação, sendo este o órgão do primeiro
contato com crimes de emergência. Faz-se fundamental que, em futuros
encontros, estejam presentes todos os órgãos, para que esta ação se
efetive com maior amplitude.
772
É importante que esse encontro ocorra com regularidade, para
que não seja esvaída esta iniciativa, e que ela se complemente e se amplie
gradativamente a cada ano, fazendo com que os profissionais da rede de
proteção e repressão à crimes de violência sexual contra crianças e
adolescentes se comprometam ainda mais nesta nobre tarefa.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República
Federativa do Brasil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
BRASIL, Governo. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal,
v. 8, 1990.
773
1882_Renato_Pereira_Da_Silva_Depósito_Final_13447_222494308.pd
f (acesso em 30/11/2018).
774
UMA ANÁLISE CONCEITUAL SOBRE O
CADERNO DO PROJETO ESCOLA SEM
HOMOFOBIA E SUAS IMPLICAÇÕES
Vanessa Chagas de Almeida
Maria Luiza Abreu de Jesus
Silmara Sartoreto de Oliveira
(Universidade Estadual de Londrina)
775
A CONCEPTUAL ANALYSIS OF THE SCHOOL PROJECT
DESIGN WITHOUT HOMOPHOBIA AND ITS IMPLICATIONS
Enquadramento teórico
A ideia de pluralidade nos mais variados sistemas sociais,
possibilitou às sociedades ocidentais a emancipação de grupos
considerados minoritários, excluídos e marginalizados, uma quebra com
as estruturas tradicionais sociais, que preservam a hierarquia e a
intolerância. Segundo Piovesan (2009, p. 295-296),
776
[...] ao longo da história as mais graves violações
aos direitos humanos tiveram como fundamento a
dicotomia do “eu” versus o “outro”, em que a
diversidade era captada como elemento para
aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era
visibilizada para conceber o “outro” como um ser
menor em dignidade e direitos, ou, em situações-
limite, um ser esvaziado mesmo de qualquer
dignidade, um ser descartável [...]. Nesta direção
merecem destaque as violações da escravidão, do
nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da
xenofobia e de outras práticas de intolerância.
777
posturas, crenças, tabus e valores, possibilitando discussões de vários
pontos de vista, sem imposição de valores. Enquanto tema transversal, o
documento vislumbra a sexualidade como assunto importante e
contínuo, que deve ser exposto, esclarecido, questionado, socializado e
contextualizado social e culturalmente (SILVA, 2015).
No Brasil, os PCNs propõem, além dos conteúdos das
disciplinas, a abordagem dos temas transversais. Entre eles, encontra-se
a proposta de abordagem da sexualidade nas escolas. O intuito dessa
inserção se dá, segundo o documento oficial, pela oportunidade de os
estudantes retirarem suas dúvidas, problematizar questões relacionadas
à sexualidade que incluem mitos, tabus, crenças, preconceitos e os
valores sociais a ela atribuídos. O trabalho de Orientação Sexual na
escola visa “proporcionar aos estudantes a possibilidade do exercício de
sua sexualidade de forma responsável e prazerosa” (BRASIL, 1998).
Sendo assim, os Temas Transversais enfatizam a proposta de que,
sexualidade, assim como as demais questões sociais e atuais, devem estar
presentes nas discussões realizadas na escola, pois as mesmas fazem
parte do cotidiano dos educandos que vivenciam tais situações (SF de
Brasil, 1997a, p. 26).
Segundo Jane Felipe (2009), quando as discussões acerca de
sexualidade são realizadas nas escolas de acordo com os PCN, muitas
vezes as discussões acabam tendo um viés biológico no sentido médico,
com isso, a educação para a sexualidade geralmente é realizada “de
forma assistemática e descontínua, com uma abordagem estritamente
biológica, ignorando assim os aspectos históricos, sociais e culturais
envolvidos nesse processo em torno da construção de significados”, ou
então, é discutida a partir da ameaça e medo, fazendo parecer que o tema
sexualidade vem sempre ligado à doença, morte e violência (LOURO,
1998, p. 94).
Mesmo não sendo obrigatório nas escolas e que a abordagem
transversal para o tema de sexualidade não é o mais perfeito
entendimento da questão, o documento é um marco histórico e grande
avanço na conquista pela oficialização da Educação Sexual nas escolas,
778
sendo base para diversos projetos sobre esse tema nas escolas brasileiras
(SILVA, 2015).
O Projeto Escola Sem Homofobia (Financiado pelo MEC) foi
uma ação colaborativa de âmbito nacional idealizada e implementada por
organizações da sociedade civil, contando com a orientação técnica da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD) do Ministério da Educação. Tal projeto constitui de um
caderno e um kit de ferramentas educacionais voltadas aos professores
que propõem ações voltadas ao âmbito escolar com objetivo de promover
ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos
e da respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de gênero no
que se refere à conteúdos disciplinares e situações que possam ser
vivenciadas neste contexto e em interações cotidianas e que se estendem
à sociedade e ao ambiente doméstico (ECO, 2018).
Entretanto, em 2011, quando o material estava pronto para ser
impresso e distribuído, setores conservadores da sociedade e do
Congresso Nacional iniciaram um movimento contrário à sua
distribuição, e denominaram o material como um “kit gay”, responsável
por "estimular o homossexualismo e a promiscuidade no ambiente
escolar”. Neste sentido, o governo, cedendo à pressão, vetou e engavetou
o projeto (SILVA, 2015).
Visto como um avanço necessário para consolidar os direitos
políticos, sociais e legais do movimento LGBTI, este material (proposto
em 2009) volta a ser alvo de discussões políticas, sociais e religiosas, de
forma depreciativa, leiga e carregada de discussões de cunho
preconceituoso e excludente. Diante do atual contexto político e social
do Brasil, este trabalho objetivou apresentar como o Caderno do Projeto
Escola Sem Homofobia fora elaborado e organizado para sua
distribuição no âmbito escolar.
Método
O trabalho buscou analisar os requisitos legais que embasaram
a elaboração deste material e sua distribuição nas escolas, além de fazer
779
uma análise sobre o conteúdo do Caderno. Alguns itens foram
considerados para a análise deste material, tais como: Conceitos de
Sexualidade; Atividades práticas sugeridas; Público alvo; Formas de
Divulgação; Conteúdo em interface com o Currículo. Os dados obtidos,
foram elencados e categorizados.
Resultado e Discussão
O kit do Projeto Escola Sem Homofobia é composto por um
Caderno, o qual foi o alvo das análises feitas no presente trabalho, e além
dele há uma série de seis boletins (Boleshs), três audiovisuais com seus
respectivos guias, um cartaz, e uma carta de apresentação. Os Boletins
Escola sem Homofobia (Boleshs) e os três audiovisuais apoiam os
trabalhos propostos no Caderno, contribuindo para estimular o debate e
fundamentar o tema central do Projeto Escola sem Homofobia (ECO,
2018).
Tal material é indicado para gestoras/es, professoras/es e
demais profissionais da educação partindo de instrumentos pedagógicos
que possibilitem refletir, compreender, confrontar e abolir a homofobia
no ambiente escolar (VIANNA, 2012).
O Caderno é organizado em subtemas/capítulos, e cada
capítulo apresenta uma situação disparadora, a qual estimula o debate
proposto para o capítulo; um texto, se assemelhando a um referencial
teórico, que traz o desenvolvimento do eixo temático a ser discutido,
apresentando conceitos, considerações críticas e subsídios de pesquisas
e estudos, incluindo situações que podem ocorrer no cotidiano da escola
e que nos desafiam a enfrentar a homofobia. Também conta com
atividades dinâmicas que apresentam ações, passos ou procedimentos
necessários para a organização de atividades práticas sugeridas, tendo
como objetivo exercitar a capacidade reflexiva das/dos participantes. Ao
final do capítulo há comentários finais, elencando alguns pontos de
reflexão que visam sistematizar o conteúdo discutido (MELLO et al.,
2012).
780
As atividades sugeridas ao final de cada capítulo/subtema,
possuem variadas sugestões metodológicas que levam os participantes a
refletirem e debaterem. Os debates possivelmente suscitados por essas
dinâmicas estão impregnados das relações afetivas e de convivência que
de forma alguma podem ser desconsiderados pela escola como
conteúdos importantes de serem trabalhados, entre eles a cooperação, a
solidariedade, o trabalho em grupo, o respeito e a ética (SILVA, 2015).
Dentro dos textos pertencentes a cada subtema, o caderno
aborda uma ampla discussão do conceito de gênero, demonstrando como
os conteúdos das diversas disciplinas escolares categorizam modos de
pensar, sentir e agir apropriados ao sexo masculino ou feminino. O
mesmo apresenta também conceitos relacionados a diversidade sexual
levando ao esclarecimento de dúvidas do senso comum, além de
desconstruir conceitos equivocados a respeito de identidade de gênero e
orientação sexual (ECO, 2018).
Para Silva (2015), esse é um dos objetivos principais do
material. Ele esclarece dúvidas do senso comum e traz referenciais da
Ciência para introduzir a questão de gênero, muito importante para
desfazer equívocos dos próprios professores e embasar sua prática.
Entretanto, a questão central e que se entrelaça extrinsecamente
a todos os outros é a homofobia, demonstrando a necessidade de
averiguar atentamente informações e conhecimentos adquiridos no
cotidiano escolar e nos livros didáticos, e a importância de falar do
assunto como forma de enfrentar o preconceito e a discriminação contra
a mulher e as/os LGBTIs (ECO, 2018). Segundo Silva (2015, p. 10), “[...]
o caderno é um material importante para servir de subsídio ao trabalho,
mas o professor tem que ter consciência de que a discussão de uma escola
sem homofobia não é só importante, mas necessária”.
É fundamental hoje que se ampliem, criem e estabeleçam
políticas públicas voltadas para profissionais de educação que trabalhem
para deslocar as discussões sobre homo/trans/travestilidade do senso
comum. É imprescindível aproximar o universo das travestis e
transexuais da maioria dos educadores e sociedade que o desconhecem
781
completamente. É importante ampliar o debate sobre sexualidade,
gênero, sexismo, enfim, uma série de questões mais amplas e que são
fundamentais para a superação de um ambiente homofóbico social e
escolar (BORTOLINI, 2008).
Políticas públicas que ampliem essas discussões no âmbito da
sexualidade, como o Caderno do Projeto Escola sem Homofobia se
propõe a fazer, são de extrema importância no cotidiano escolar, e há
preceitos legais que o embasam. A Resolução/CD/FNDE Nº 16 DE 8 DE
ABRIL DE 2009, estabelece diretrizes para realização de cursos de
formação continuada de professores a fim de produzir materiais didático-
pedagógicos promovendo a educação acerca da diversidade sexual,
combatendo o preconceito e a homofobia no âmbito escolar (MEC,
2018).
Além da Resolução/CD/FNDE Nº 16, há diversos outros
marcos legais que embasam o Programa Brasil Escola sem Homofobia,
dentre eles há a Portaria Nº 4.032, de 24 de novembro de 2005, criada
pelo Professor Fernando Haddad, ministro da educação na época. Tal
portaria instituía a criação de um grupo de trabalho para implementação
do Programa Escola sem Homofobia no Ministério de Educação
constituído
782
a educação da população GLTTB e que promovam o respeito a
diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero nos sistemas
educacionais” (DIA A DIA EDUCAÇÃO, 2019).
Na escola, a homofobia deseduca e afeta a formação de todas
as pessoas. O prejuízo é geral, porém para as pessoas constituintes desses
grupos, o preço a pagar é bem mais alto (JUNQUEIRA, 2012).
Sem a discussão de conceitos relacionados a gênero e
sexualidade no âmbito escolar, há uma grande probabilidade de
agravamento das desigualdades e discriminações sociais, além de
expressões de violência, no espaço escolar ou em outros ambientes
sociais. Tais discussões podem levar a igualdade de gênero e respeito a
diversidade sexual, reduzindo o machismo e a misoginia, promovendo
um aprendizado significativo a partir do convívio das diferenças sócio
culturais. Com isso, evita-se situações de sofrimento, adoecimento e
abandono escolar por razões que não competem somente aos
adolescentes (BRANDÃO; LOPES, 2018).
É necessário estabelecer uma educação democrática, pública e
inclusiva, reconhecendo que a diversidade é legitima. A diversidade
segundo o próprio Programa Brasil Sem Homofobia e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação é um recurso social para a transformação e precisa
ser encarada como tal, um instrumento essencial para o desenvolvimento
humano (BORTOLINI, 2008).
Considerações Finais
Assim, considera-se que o caderno pertencente ao kit do
projeto Escola Sem Homofobia fora elaborado com o intuito de
contribuir para a desconstrução de imagens estereotipadas sobre a
comunidade LGBTI, além da formação de uma cidadania que inclua de
fato os seus direitos, promovendo a convivência e o respeito em relação
às diferenças, sendo, portanto, uma ferramenta de extrema importância
para a abordagem do tema no contexto escolar. Neste sentido, a escola
se torna o principal contribuinte no movimento de emancipação e no
tornar a educação sexual algo discutido, conversado, a fim de que seja
783
possível as pessoas se relacionarem melhor consigo e com os outros,
pois, viver em sociedade requer respeito com os diferentes grupos e
culturas que a constitui, devendo urgentemente ser revisto seu veto de
distribuição.
A implementação do Projeto Escola Sem Homofobia,
implicaria na promoção de ambientes políticos e sociais favoráveis à
garantia dos direitos humanos fundamentais e respeitabilidade das
orientações sexuais e identidades de gênero dentro das escolas
brasileiras.
Referências
BORTOLINI, Alexandre. Diversidade sexual na escola. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2008.
784
DIA A DIA EDUCAÇÃO. Gênero e Diversidade Sexual - Marcos
Legais. Disponível em:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.p
hp?conteudo=553. Acesso em: 02 fev. 2019.
785
PIOVESAN, F. Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas
global e regional. In: LEITE, G.; SARLET, I. Direitos Fundamentais e
Estados Constitucional: estudos em homenagem a j. j. gomes canotilho.
São Paulo: RT/Coimbra: Coimbra Ed., 2009, p. 294-322.
786
Organizadores
Ricardo Desidério
Pedagogo. Doutor e Pós-doutor em
Educação Escolar
(Unesp/Araraquara). Docente do
Curso de Pedagogia da Universidade
Estadual do Paraná (UNESPAR,
Campus de Apucarana) e do
Programa de Mestrado em Educação
Sexual da Unesp/Araraquara-SP.