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O Divino e As Divindades No Antigo Egito. As Religiões No Egito Antigo. Silverman, David. Et All. 2002
O Divino e As Divindades No Antigo Egito. As Religiões No Egito Antigo. Silverman, David. Et All. 2002
Fotos: n“ 4, 6, 7 ,9 , 11, 14, 16, 20, 27, 28, 32, 33, 39, 48 e 55 © 1991 de Byron E. Shafer.
n”! 1,8, 10, 12, 1 7 ,1 8 ,2 1 ,2 2 ,2 5 ,2 6 ,3 0 , 3 4 ,3 5 ,3 6 ,3 7 ,3 8 ,4 1 .4 3 ,4 4 ,4 5 ,4 6 ,4 7 ,
49, 50 e 51 © 1991 de David P. Silverman
n“5 5, 23, 24, 29, 52, 53, 54, 56 e 57 © 1991 de Leonard El. Lesko
ng 40 © de John Baines
Preparação de originais: Vivian Nunes
R evisão de texto: Simone L. C. Silberschimidt
Capa: Antonio Kehl
Editoração eletrônica: Eduardo Seiji Seki
264 p.
ISBN 85-7492-047-9
CDD-932
O DIVINO E AS
DIVINDADES 1
NO ANTIGO EGITO
David P. Silverman
1. Encantamentos nas paredes da pirâmide do rei Merene (6a Dinastia). Saqqara do Sul.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 3
úteis. Jan et R ich ards também fez várias sugestões valiosas relativas à antropologia.
Refiro-m e freqüentemente ao LA nas notas, trata-se de um a fonte útil de referências
atualizadas. A s citações, em geral, estão abreviadas, e aconselho os leitores interes
sados a consultar as fontes nelas m encionadas para estudos mais aprofundados.
C O N C E P Ç Õ E S D O D IV IN O
1 Henri Frankfort e outros, The Intellectual A dventure o f Ancient Man (Chicago: University
of Chicago Press, 1946); William C. Hayes, M ost Ancient Egypt (Chicago: University of
Chicago Press, 1965); Walther Wolf, D ie K unst A giplens: Gestalt und G eschichte
(Stuttgart: Kohlhammer, 1957); PeterJ. Ucko, Anthropomorphic Figurines o f Predynastic
E gypt and N eolithic Crete with C om parative M aterial from the Prehistoric Near East
and M ainland G reece (Londres: Szmidla, 1968); Winifred Needier, P redynastic and
Archaic E gypt in the Brooklyn M useum (Nova York: Brooklyn Museum, 1984); Siegfried
Morenz, Egyptian R eligion, trad. Ann E. Keep (Londres: Methuen; Ithaca: Cornell
University Press, 1973); Erik Hornung, C onceptions o f God in A ncient E gypt: The
O ne and the M any, trad. John Baines (Ithaca: Cornell University Press, 1982; Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1983). Obras dejan Assmann estão listadas na bibliografia
de Hornung e na bibliografia selecionada apresentada neste volume.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 5
fizeram sugestões4. Mas as crenças dos egípcios eram fluidas até mesmo
durante o período histórico, e nunca foram consolidadas em uma única
fonte que permanecesse constante ao longo da história. Como os egípcios
não tinham um “livro sagrado” único, os estudiosos não dispõem de um
texto teológico padrão ao qual possam recorrer para informações a respeito
dos períodos que estão relativamente bem documentados. E por esse motivo
que se torna muito difícil interpretar de maneira exata os estágios formativos.
Ainda assim, parece justificável supor que o divino tenha sido conce
bido originalmente como amorfo, e que gradualmente tenha passado a ser
visto em sua relação com o mundo, isto é, em sua relação com os fenô
menos naturais. Ao transpor o divino de um nível abstrato, ou talvez mesmo
transcendente, para uma esfera mais concreta, os seres humanos o tornaram
mais facilmente identificável5. Entretanto, parece que as pessoas somente
conseguiram chegar a tais processos de pensamento quando se tornaram
suficientemente evoluídas para exercer algum tipo de controle sobre o seu
ambiente. Só a partir desse momento passariam a dispor do tempo e da
energia necessários para pensar em questões além de sua situação imediata,
e para formular conceitos relacionados a sua sobrevivência a longo prazo.
Alguns estudiosos sugeriram que foi somente depois da introdução
da escrita que os antigos egípcios alcançaram o grau de sofisticação inte
lectual necessário para conceber deus como uma pessoa6. E mais provável,
porém, que os egípcios fossem suficientemente evoluídos para conceber
um poder ou uma força divina em termos humanos antes da introdução da
escrita, pois já no período pré-dinástico eles criavam imagens que possivel
mente representavam manifestações dessa força ou desse poder. Artefatos
'' Para uma seleção de textos, vide AEL. “A Destruição da Humanidade” está em AEL
2:197-199. Vide, também, “The Contendings of Horus and Seth”, trad. Edward F.
Wente, in LAE 108-126.
12 LAE 108, 112. Para mais estudos sobre esse texto, vide os itens bibliográficos citados
em LAE 108-109.
3 2 ♦ DAVID P. SILVERMAN
9 . Relevo representando (da esquerda para a direita) Ptah, Amun, o faraó Thoth e Seshat,
Mednet Habu, na tumba do Rei Ramsés III (2a Dinastia), Tebas.
16 Para uma discussão mais detalhada dessa divindade, vide Bleeker, H athor e Thoth
(n. 4 ), págs. 106-160.
17 Não há consenso sobre quais animais Seth representa. V ide Herman te Velde, “Seth”,
LÄ 5:908-911.
3 6 ♦ DAVID P. SILVERMAN
18 Para uma discussão completa do significado dessas imagens, vide John Baines, Fecundity
Figures: Egyptian Personification and the Icon ology o f a Genre (Chicago: Bolchazy-
Carducci, 1985).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 7
11. Relevo representando (da esquerda para a direita) o deus Thot, o Rei Ramsés II (19a
inastia) e a tríade de Tebas — os deuses Amon, Mut e Khonsu. Ramsesseum, templo
mortuário do rei, Tebas.
19 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 19-20, e a discussão, ali, de Kurt Sethe, U rgeschichte
und älteste R eligion der Ä gypter, Abhandlungen für die Kunde des Morgenlandes 18/
4 (Leipzig: Deutsche Morgenländische Gesellschaft, 1930), seção 31, págs. 24-25.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 9
13 . Cena do papiro Greenfield, o papiro hierático que pertencia ao primeiro chefe das
concubinas de Amon, Nesitanebtasheru (21a Dinastia). Shu, associado ao ar, separa Nut,
uma deusa solar, e Geb, um deus ctônico. British Museum, Londres, 10554. Foto: cortesia
de Trustees of the British Museum.
que tenta aprender o nome secreto do deus sol, a amável irmã e esposa do
deus do mundo inferior (fig. 15) e a mãe protetora de Hórus. A s divinda
des egípcias eram mais fluidas que as da Grécia e de Roma, que tendiam
a ter papéis estáticos e identificar-se mais com emoções humanas específicas.
Uma vez estabelecida a forma de uma divindade, uma lenda, mito
ou históna era formulada para explicar a sua origem e as suas associações,
e ao longo desse processo o deus recebia um nome. Não se sabe se tudo
isso acontecia simultaneamente ou em intervalos, e pode ser difícil chegar-
se a uma conclusão satisfatória20. Pesquisar o significado dos nomes das
divindades freqüentemente é de pouca valia para ajudar a esclarecer a
20 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 23-24, e Hornung, C onceptions o f Cod, págs. 66-
74, defendem a simultaneidade.
4 0 ♦ DAVID P. SILVERMAN
14. O deus H apy (à esquerda e à direita) unindo o alto e o baixo Egito (simbolizados pelo
lótus e pelo papiro), esculpido em baixo-relevo no trono de uma estátua do R ei Ramsés II
(19a Dinastia). Templo de Luxor, Tebas.
15 . Tabulgta votiva Iuny, escriba-chefe do rei (19a Dinastia), com Renut, sua mulher,
adorando os deuses Osíris e ísis. Ashmolean Museum, Oxford, 1883.14. Foto. cortesia
do Ashmolean Museum.
42 DAVID P. SILVERMAN
por uma serpente produzida pela deusa ísis. Ela tinha conjurado o demônio
do próprio ser de Rá a fim de aprender o nome secreto que era a fonte da
supremacia desse deus232425. O leitor do texto nunca aprende o nome. Como
os egípcios acreditavam que alguma dose de mistério fosse necessária para
preservar as dimensões da força divina, suas imagens visuais e descrições
escritas dos deuses apontavam apenas para alguns aspectos da divindade,
e não eram destinadas a detalhar todos eles. Entendia-se que, desta forma,
as divindades retinham algo de sua abstração conceituai original. Nem
todos os elementos de sua essencia estavam mteiramente concretizados.
Os deuses eram concebidos em termos humanos, mas nem todas as
qualidades a eles atribuídas eram totalmente humanas. Assim como as
criaturas mortais, eles eram criados, mas as divindades derivavam, em
última análise, de um ser primordial que tinha sido responsável por sua
própria criação. Quando os deuses surgiram, seus nascimentos foram
descritos como extraordinários ou miraculosos. Eles tinham aniversários,
e os de determinadas divindades eram celebrados nos cinco dias adicionais
acrescentados ao calendário egípcio, de doze meses de trinta dias, para
completar um ano de 365 dias24. Durante sua existência, todos os deuses
exigiam sustento na forma de oferendas e de veneração. Como se conclui
em .A Destruição da Humanidade , eram os mortais que ofereciam esses
serviços. De acordo com este texto, Rá irritou-se com as tramas malignas
dos mortais e agiu para que fossem destruídos. Mais tarde acalmou-se,
porém, e evitou sua aniquilação total25.
Informações encontradas em textos sugerem que não se imaginava
que os deuses morressem no sentido comum, e as referências a sua morte
nem sempre são consistentes. Alguns textos afirmam que as divindades
viviam apenas por um determinado período de tempo, e a história em que
a mentira torna a verdade cega faz uma referência a um túmulo de um
deus26. Há vários textos e representações com alusões à morte de Osíris,
23 The God and His Unknown Name of Power, trad. John A . Wilson, ANET 12-14.
24 Vide referências em Peter Kaplony, “Geburtstage (Götter)”, LÄ 2:477-479.
25 Para tradução, vide AEL 2 :1 9 7 -199.
26 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 24-25, e Hornung, C onceptions o f Cod, págs. 151-
165. “The Blinding of Truth by Falsehood”, trad. Edward F. Wente, LAE 127,131.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 5
mas o evento real não foi relatado nos tempos faraônicos porque se acre
ditava que um acontecimento narrado em detalhes seria eternizado. Ela
não é mencionada na coleção de encantamentos religiosos conhecida como
Textos de Ataúde, mas há referências constantes a sua ressurreição27. Foi
somente mais tarde, durante o período greco-romano, quando as crenças
se alteraram, que um relato da morte de Osíris foi escrito. Na literatura
religiosa dizia-se que Rá, o rei dos deuses, morria simbolicamente a cada
pôr-do-sol, para renascer na aurora do dia seguinte. Outr.os textos, porém,
o descrevem envelhecendo, e até mesmo como velho28.
A medida que as lendas, mitos e histórias em torno das forças/
poderes/seres se desenvolviam, também se desenvolviam as associações
antropomórficas. Algumas divindades passaram a ser identificadas com o
meio ambiente, outras com o cosmos, outras com a criação, outras com a
realeza, e outras, ainda, com a humanidade. Para lidar com o número
rapidamente crescente de seres superiores, os egípcios formularam uma
hierarquia para seus deuses. Eles eram descritos, assim como os mortais
na terra, vivendo em sociedade e como membros de grupos familiares
separados. Os egípcios estavam tornando os seus deuses mais humanos.
As relações complexas entre os deuses freqüentemente levavam a discussões
e rivalidades, e suas paixões e emoções se desenvolviam. Os antigos egípcios
retratavam muito bem esse mundo de criaturas divinas, tanto em seus
textos religiosos e literários quanto em suas esculturas, relevos e pinturas.
Essas representações refletem um sistema altamente desenvolvido
que, já muito tempo antes, tinha sido concretizado e antropomorfizado.
As imagens esclarecem pouco acerca da origem dessas idéias por estarem
muito distantes delas no tempo. Os egípcios, porém, não tinham dificulda
des em relatar suas crenças sobre o assunto, nem relutavam em registrar
27 Hornung, C onceptions o f God, págs. 152-153. Vide Coffin Text spells 16,17 e 148,
in Adrian de Buck, The E gyptian Coffin Texts, 7 vols. (Chicago: University of Chicago
Press, 1935-1961), 1:47-53 e 2:209-226, traduzido em R . O. Faulkner, The A ncient
Egyptian Coffin Texts, 3 vols. (Warminster: A ns & Phillips, 1973-78), 1:10, 125-227.
28 Para uma discussão da morte de Rá, vide David P Silverman, “Textual Criticism in the
Coffin Texts”, in R eligion and P hilosophy in Ancient Egypt, ed. William Kelly Simpson,
Yale Egyptological Studies 3 (New Haven: Yale Egyptological Seminar, Department
of Near Eastern Languages and Civilizations, Yale University, 1989), págs. 39-40.
46 DAVID P. SILVERMAN
O S D E U SE S
1 7 . Imagem de Tutankamon
como o deus Nefertem sobre uma
planta de lótus, ilustrando o mito
da criação, no túmulo do rei (18a
Dinastia). Museu do Egito, Cai
ro, 60723.
18. Imagem pintada da deusa Ma’at, no túmulo da Rainha Nefertari (19a Dinastia). Vale
das Rainhas, Tebas.
19- Grupo em bronze do período tardio representando a ogdoade (oito deuses) hermopoli-
tana, com Thoth. Staatliche Kunstsammlungen Kassel, Rep. Federal da Alemanha. Foto
(neg. A 6508): cortesia da Staatliche Kunstsammlungen Kassel.
2 0 . Estatueta de Amon-Rá, em
prata folhada a ouro, de aprox.
900 a.C. British Museum, Lon
dres.
manifestações visíveis. Khepri (fíg. 21) era a forma da órbita do sol, que
surgia ao amanhecer e viajava através do céu durante o dia. De um modo
geral, R á referia-se ao sol do meio-dia, e Atum ao poente. Durante os
seus percursos diurno e noturno através dos céus e do mundo subterrâneo,
a divindade solar era obrigada a enfrentar seu eterno inimigo Apophis, a
serpente40. O disco do sol também era concebido como uma entidade
distinta, chamada Aten, à qual encontram-se referências muito antigas.
40 Morenz, E gyptian R eligion, pägs. 145, 316nn31-32, 168 e 323n 45; Hornung,
C onceptions o f God, pägs. 158-159; Te Velde, Seth, pägs. 99-108.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 3
O antigo Egito era formado por áreas distintas, cada qual com suas
tradições e costumes específicos. Durante o período faraônico anterior,
estes distritos eram organizados em unidades administrativas denominadas
nomos. Em meados do Antigo Império, já havia vinte e dois nomos
estabelecidos para o Alto Egito (sul). Os nomes do Baixo Egito (norte)
só seriam fixados muito mais tarde, quando chegaram ao número de vinte.
Cada um destes distritos estava associado a divindades específicas e tinha
seus próprios padrões, ao qual se acrescentava freqiientemente a personifi
cação de uma área específica43. Muitos dos nomos (fig. 22) refletiam
divisões locais anteriores e está claro que os egípcios mais antigos reveren
ciavam divindades cujas áreas de influência se encontravam originalmente
2 4 . Hórus (à esquerda) e Seth (à direita) coroando o rei Ramsés III (20 Dinastia).
Grupo de esculturas em granito restauradas. Museu do Egito, Cairo.
25 . Relevo ptolomaico do deus Sobek em uma cena de coroação. O Grande Templo, Kom
Ombo.
Divindades funerárias
50 Para comentários sobre essas divindades e referências a outras fontes relativas a elas,
vide os trechos correspondentes a seus nomes em LA.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 61
Osíris era originalmente o deus embalsamado, enquanto Anúbis era o que realizava o
ato de embalsamar. Mais tarde, Osíris, que era identificado com o re. morto tornou-se
o senhor do mundo inferior. Vide J. Gwyn Gnffiths, Osíris , LA 4:623-33.
6 2 ♦ DAVID P. SILVERMAN
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 6 3
2 7 . Pintura retratando o Rei Ramsés III (20a Dinastia) apresentando seu filho Amenherkopeshef
à deusa Isis, no túmulo do príncipe. Vale das Rainhas, Tebas.
2 9 . Numa barca, uma versão variante dos nove deuses de Heliópolis, seis gerações de
deuses: R á, o criador (à direita), Atum, Shu e Tefnut, Geb e Nut, Osíris e Isis, e Hórus,
o rei (à esquerda). Pintura no túmulo do rei A y (18a Dinastia). V ile dos Reis, Tebas.
54 Sobre o Livro de A ker e outros textos mitológicos relativos ao mundo inferior, vide
Alexandre Piankoff, Egyptian R eligious Texts and R epresentations, vol. 3, M ythological
Papiry, Bollingen Series 40/3 (Nova York: Pantheon, 1957), págs. 3-28.
6 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN
3 3 . Pintura retratando o rei Ramsés III (20a Dinastia) apresentando seu filho Amenherkopeshef
à deusji Duamutef, no túmulo do príncipe. Vale das Rainhas, Tebas.
55 Vide Lynn H. Holden, “The people’s religion”, in E gypt’s Golden Age: The Art o f
Living in the New K ingdom , 1558-1085 B .C . (Boston: Museum of Fine Arts, 1982),
pags. 296-307.
7 0 ♦ DAVI D R SILVERMAN
venenosas. A s deusas Taweret (fig. 6), Meskhenet (fig. 32) e o deus Bes
eram chamados para proteger as mulheres no parto e os seus filhos.
Bes, em geral, também era associado a outras situações de proteção, e por
esse motivo aparece como elemento decorativo em móveis e utensílios
domésticos.
Os antigos egípcios produziam estatuetas votivas de muitas divinda
des para veneração e devoção pessoal. Dentre estas, encontravam-se objetos
em forma de serpentes, que representavam a imagem de Renenutet ou
Meretseger, deusa relacionada à agricultura e à colheita. Múmias de ani
mais associados a divindades específicas também serviam a fins votivos
(fig. 38) e eram colocadas em nichos no interior de catacumbas sagradas
ao deus representado pela múmia.
Um outro tipo de divindade pertencente à categoria dos deuses
domésticos e pessoais era o indivíduo deificado. Os faraós são um bom
exemplo dessa categoria, especialmente os que viveram durante o Novo
72 ♦ DAVID P. SILVERMAN
3 6 . Pintura representando a barca do deus Amon. Templo do Rei Sety 1 (19a Dinastia),
Abidos.
56 Para estudos acerca dessa prática religiosa, vide Dietrich Wildung, E gyptian Saints:
Deification in Pharaonic E gypt, Hagop Kevorkian Series on Near Eastern A rt and
Civilization (Nova York: New \ork University Press, 1977); e Lanny Bell, “Aspects
of the Cult of the Deified Tutankhamun”, in M élanges Gamai Edin Mokfitar I, BdE
97/1 (1985) págs. 33-59, notando as referências ali citadas. V ide, também, David R
Silverman, “Royalty in Literature”, in A ncient Egyptian K ingship: N ew Investigations,
ed. David O ’Connor and David R Silverman (Cambridge: Harvard University Press).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 7 3
Um dos mais populares dentre esses reis era Amenhotep I, que continuou
a ser venerado por séculos depois de sua morte. A o longo de todo o Novo
Império, foram inscritas muitas tabuletas votivas com súplicas a ele
dirigidas, e durante o período de Ramsés seu oráculo era ffeqüentemente
consultado para decisões legais.
Esse tipo de tratamento especial não ficava restrito às figuras reais.
A o longo das diferentes eras, personagens que adquiriam grande destaque
e alto nível de reconhecimento em suas profissões eram deificadas, e
7 4 ♦ DAVI D P. SILVERMAN
Deuses estrangeiros
R E A L E Z A E D IV IN D A D E
distinção clara entre o senhor e seus súditos, mas não aborda a questão da
mortalidade inerente do monarca, nem indica os limites ou a extensão do
que era percebido como a natureza divina do rei. A percepção de rei dos
antigos egípcios, implícita em várias referências de textos e de artefatos,
não era estática. Passou por mudanças ao longo dos mais de três mil anos
de história do Egito59.
Desde os tempos mais antigos, o epíteto netjer (ntr) referia-se direta
mente ao rei como um deus. A s vezes, o termo aparecia isoladamente, e
outras com palavras que o modificavam ou descreviam. Outro epíteto
antigo referia-se ao rei como descendente de um deus — s ’R\ “filho de
R á”. Mais tarde os egípcios desenvolveram outros termos, tais como tjt,
“imagem” de um deus, e pr'\ O último, uma expressão que significa “grande
casa” e se refere ao palácio60, era uma abstração que atribuía uma natureza
corporativa ao rei, da mesma forma que “Casa Branca” pode denotar o
presidente dos Estados Unidos. Fazia-se, também, referência ao rei como
“igual” (mj) a uma divindade. Normalmente todos esses epítetos reais
eram usados em tipos específicos de documentos.
Em todos os materiais escritos, os nomes dos reis recebiam tratamento
diferente tanto dos nomes de seus súditos quanto dos nomes dos deuses.
As designações pessoais e de trono da realeza eram, normalmente, os
únicos nomes rodeados por adornos. Apesar de haver exceções isoladas,
essa regra foi seguida de maneira geral ao longo de toda a história egípcia,
exceto durante o reino de Akhenaten, quando o nome do divino Aten
sempre aparecia em meio a adornos. E interessante notar que um dos
designativos de Akhenaten, Waenre, podia ser escrito sem ornamentos
nessa época.
59 Há referências a muitos estudos sobre a realeza e sua natureza, juntamente com comentá
rios sobre o assunto, em Jürgen von Beckerath, “König”, LA 3:461; e Hellmut Brunner,
“König-Gott-Verhältnis”, LA 3:461-464. Vide, também, Henri Frankfort, K ingship
and the Cods: A Study o f Ancient Near Eastern R eligion as the Integration o f S ociety
and Nature (Chicago: University of Chicago Press, 1948); Georges Posener, De la
divinilé du pharaon , Cahiers da la Société Asiatique 15 (Paris: Imprimerie Nationale,
1960); Ramses Moftah, Studien zum ägiptischen K ünigsdogm a im N euen R eich ,
SDAIK 20 (1985) e Ancient Egyptian Kingship, ed. O ’Connor e Silverman.
1,0 Vide Ogden Goelet, “Two Aspects of the Royal Palace in the Egyptian Old Kingdom”
(Dissertação de doutorado, Columbia University, 1982).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 77
bl Vide Jac. J. Janssen, “Nine Letters from the Time of Ramses II”, OM RO 4 1 (1 9 6 0 ):
31-47.
66 David P Silverman, “Wit and Humor”, in E gypt’s Golden Age, pág. 278. Vide também
Edward F. Wente, “Some Graffiti from the Reign of Hatshepsut”, JNES 43 (1984):
52-54 e as referências ali contidas.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO 79
8 0 ♦ DAVID P. SILVERMAN
39 . Ramsès II, o rei vivo (19a Dinastia), representado como um deus, e a divindade Rá-
Horakhty, retratada em escala diminuta em meio às quatro esculturas colossais. O Grande
Templo, Abu Simbel, onde o culto do rei vivo era praticado.
4CÇ1
A visão do rei expressa nos textos literários pode ser bastante diversa,
pois muitos deles tiveram origem em lendas populares e tradições orais.
Em Khufu e os Magos, o faraó é um tirano intolerante que aparece em
contraste com um sábio benevolente. Poderes sobrenaturais parecem estar
mais ao alcance do sábio do que do faraó67. No “Conto do Príncipe
Condenado” o faraó é um pai incompetente, incapaz de proteger seu
filho de seu destino68. No “Conto dos dois Irmãos”, o regente é uma
figura relativamente secundária, e sua influência sobre a ação é mínima69.
Existe um manuscrito que relata que o emissário do rei (um reflexo do
rei) foi tratado de maneira pouco condigna. No “Relato de Wenamun”,
67 Para a tradução de Simpson desta parte do papiro Westcar, vide LAE 15-30,
especialmente 22-24.
68 Para a tradução de Wente desta história, vide LAE 85-91, especialmente 86.
69 Para a tradução de Wente desta história, vide LAE 92-107, especialmente 101-107.
82 DAVID P. SILVERMAN
71 Para o texto hieroglífico, vide Kurt Sethe, Urkunden des Alten R eiches, Urk. 1 (Leipzig:
Hinrichs, 1903), 1:39, 13 -16, e para a tradução vide Alessandro Roccati, La littérature
historique sous l'Ancien Empire épyptien. Littératures Anciennes du Proche-Orient
(Paris: Cerf, 1982), págs. 96-98.
72 Para o texto em hieróglifos, vide Sethe, Urkunden des Alten R eiches, 1:128-131, e
para a tradução, vide A EL 1:26-27.
73 Para o texto em hieróglifos, vide Sethe, Urkunden des Alten R eiches, 1:232, 5-8 e para
a tradução, vide Eric 1foret. Lhe Narrative Vcrhal System o f L)ld and Ahddlc Egyptian,
Cahiers d’Orientalisme 12 (Genebra: P. Cramer, 1986), pág. 61, ex. 95.
74 Dietrich Wildung, em uma conferência em Denver em 1988 intitulada “Royalty in
A rt”(Realeza na A rte), observou que esse estilo pode ter surgido no setor não-real.
75 AEL 1:198-201.
76 Vide por exemplo a observação de Khnumhotep de que o regente aparece como o
próprio Atum. Para o texto, vide Adriaan de Buck, Egyptian R eadinghook (Leiden:
Nederlands Instituut vóór het Nabije Oosten, 1963), pág. 68, II. 9-10.
8 4 ♦ DAVID P. SILVERMAN
77 Hornung, Conceptions o f God, págs. 139, 141, onde ele sugere “encarnação”.
78 Vide as referências na nota 59 e em Hornung, Conceptions ofGod, págs. 141 -42nn 116-20.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 8 5
/VPara um estudo que documenta esses termos e as distinções entre eles, vide Hans
Goedicke, Die Stellung des Königs im Alten Reich, Ä gAbh 2 (1960).
811 Sobre juramentos, vide John A . Wilson, The Oath in Ancient Egypt”, JNES 7
(1948): 129-156.
8 6 ♦ DAVID P. SILVERMAN
82 Sobre o papel do divino kfl na divindade do faraó, vide Lanny Bell, “Luxor Temple
and the Cult of the Royal K a ”,JNES 44 (1985): 251-294; e David R Silvermanm
“Royalty in Literature”, in Ancient Egyptian Kingship, ed. O ’Connor and Silverman.
83 Vide a discussão e as referências em Silverman, “Royalty in Literature”.
9 0 ♦ DAVI D P. SILVERMAN
Vide a inscrição autobiográfica em Kurt Sethe, Urfaunden der 18. Dynastic, Urk. 4
(leipzig: Hinrichs, 1909), 4:1071, 9. A ll alega-se que o conhecimento cie Rekhmire
cobre todos os âmbitos da terra, dos céus e dos lugares ocultos no mundo inferior. Vide
também Norman deGaris Davies, l h e Tomb o f Rel^h-mi-Re at Thebes, Egyptian
Expedition Publications I I (Nova York: Metropolitan Museum of Art, 1943), l:pl.
XII e 2:79.
SH Zahi Hawass, “The Funerary Establishments of Khufu, Khafra and Menkaura during
the Old Kingdom”(Dissertação de doutorado, University of Pennsylvania, 1987) e William
J. Murnane, United with Eternity: A Concise Guide to the Monuments at Medinet
Habu (Chicago: Oriental Institute, University of Chicago, 1980), págs. 1-2, 6-74.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 3
é bem possível que ele tivesse o seu próprio templo em Tebas9". Ao mesmo
tempo, o rei aparentemente enfatizou e estendeu sua própria divindade
real enquanto ainda estava vivo9091923.
Amenhotep IV (fig. 46), o filho e sucessor de Amenhotep III, trouxe
o Aten a seu zénite, de maneira que ele superou todas as outras divindades.
Esse faraó era um homem de natureza, caráter e personalidade distintas,
e não se deve minimizar o papel que desempenhou na determinação e na
direção das mudanças religiosas que ocorreram enquanto foi rei (fig. 4 7 ).9-
Talvez tenha sido, em parte, a astúcia política o que o motivou. Ciente de
um potencial considerável de conflito entre o monarca e os sacerdotes de
Amon, cada vez mais poderosos, ele pode ter apressado o advento de
uma nova religião, devotada exclusivamente a Aten, como uma maneira
de suplantar o poder dos sacerdotes e do culto de Amon. Temores reais
das relações entre “Estado e Igreja” provavelmente não eram sem funda
mento, uma vez que os faraós do fim da 20a Dinastia disputavam o poder
com os sumos sacerdotes de Amon. Um deles, Herihor, foi retratado em
trajes reais nas paredes do templo de Khonsu, em Karnak. Paralelamente
a essas possíveis motivações político-religiosas, não se deveria subestimar
as inclinações contemplativas, talvez filosóficas, de Amenhotep IV como
fatores que ajudaram a formar as suas doutrinas. Tampouco se deveria
subestimar o papel dos sentimentos de Amenhotep IV para consigo mesmo
e para com o seu status em relação à humanidade e à divindade. Suas
idéias sobre a própria posição certamente foram moldadas por sua vida
como filho e herdeiro de um dos mais populares e poderosos regentes do
Egito, um monarca cuja crença na própria divindade foi expressa em
diversos textos e relevos. Ele chegou a ponto de dedicar uma sala inteira
do templo de Luxor às representações de seu nascimento divino9í.
4 6 . E státu a em p ed ra de
Amenhotep IV (18a Dinastia)
de K arnak. M useu do Egito,
Cairo.
94 Para uma discussão mais detalhada de Akhenaten, vide Donald B. Redford, “The
Concept of Kingship during the Eighteenth Dynasty”, in Ancient Egyptian Kingship,
ed. O ’Connor and Silverman. Para outras sugestões, vide Silverman, “Royalty in
Literature”, no mesmo volume.
9 6 ♦ DAVI D P. SILVERMAN
95 Entretanto, vide Redford, Akhenaten, págs. 164-168 e 185-203, onde ele nota algumas
das limitações de Akhenaten.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 7
96 Cyril Aldred, Akhenaten and Nefertiti (Nova York: Brooklyn Museum and Viking
Press, 1973), págs. 48-37. Vide também Wildung, “Royalty in A rt” (n. 74).
9 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN
4 9 . Relevo retratando o rei Akhenaten (18* Dinastia) e a rainha Nefertiti num pequeno
altar em forma de fachada de templo, de Tell el-’Amarna. Museu do Egito, Cairo.
98 Para uma análise gramatical de alguns dos textos no túmulo de Akhenaten, vide Shlomit
Israeli, “A Grammatical Analysis of the First 23 Pages of the El Am arna Texts:
Bibliotheca A egyptiaca V III”, in Papers fo r Discussion, ed. Sarah Israelit-Groll
(Jerusalem: Hebrew University, 1982), págs. 278-302.
100 ♦ DAVID P. SILVERMAN
99 Vide David O ’Connor, “Palace and City in New Kingdom Egypt”, em volume a ser
publicado na série “Sociétés urbaines en Egypte et au Soudan”, Cahier de Recherches
de l’Institut de Papyrologie et d ’Égyptologie de Lille.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 101
100 Hornung, Conceptions o f God, pág. 246 afirma: “Agora, pela primeira vez na história,
o divino tornara-se um... .
10 2 » DAVI D R SILVERMAN
ao rei e a Aten como se fossem um só ser101. Antes, o disco solar não fora
representado de forma antropomórfica. Agora era retratado com seus
raios terminando em mãos humanas, às vezes oferecendo objetos ao rei
(fig. 51). No passado, o rei tinha sido o sumo sacerdote ou primeiro profeta
do deus e Akhenaten seguiu essa tradição, servindo como o primeiro
profeta de Aten. O status pessoal de Akhenaten era tão alto, porém, que
ele determinava quem seria seu próprio primeiro profeta, como se fosse um
grande deus. Ele seguiu modelos anteriores oferecendo m a a t a seu deus,
Aten, mas agora dizia-se que Akhenaten, ele mesmo, vivia de m a a t . Em
épocas anteriores, as estátuas dos deuses eram levadas em procissões sobre
barcas durante as festas (fig. 36). Mas Aten não tinha nenhuma estátua.
Agora a própria família real era apresentada nessas barcas para a
população devota. Aten somente podia ser reverenciado por meio do rei.
Assim como outros deuses do Egito, Aten era celebrado em hinos.
Durante o período de Amarna, porém, o conteúdo dos hinos referia-se
menos às batalhas tradicionais do que a expressões positivas abrangentes,
e os méritos literários dos hinos eram enfatizados. Diferentemente de outros
deuses do Egito, Aten não era personagem de mitos. Não havia histórias
complexas nem documentação de atividades divinas para explicar a
existência de Aten ou sua relação com a humanidade. As doutrinas de
Akhenaten não incluíam lendas mencionando deuses nem descrições
de relações divinas que pudessem trazer Aten para mais perto do indivíduo.
Aten não tinha consorte, nem estava unido a outras divindades tradicionais,
numa tríade divina. Na realidade, o que acontecia é que Akhenaten tinha
uma consorte, sua esposa Nefertiti (fig. 49), de tal forma que Aten,
Akhenaten e Nefertiti constituíam uma tríade divina (fig. 51). Os hinos
cantados e as liturgias realizadas focalizavam-se em Aten e Akhenaten.
Akhenaten e Aten eram também o foco da arte decorativa nos
túmulos particulares em Akhenaten. O proprietário do túmulo era retratado
apenas de maneira breve e, prmcipalmente, a serviço do rei. A s atividades
tradicionais da vida diária e visões do mundo inferior não eram retratadas.
101 Viele W infried B arta, Aufbau und B e d e u tu n g der altägyptisch en O pferform el,
Agyptologische Forschungen 24 (Glückstadt: Augustin, 1968), päg. 109.
104 ♦ DAV1D R SILVERMAN
5 1 . Relevo de um altar mostrando os raios de Aten oferecendo vida (ankh ) ao rei Akhenaten
(18a Dinastia) e à rainha Nefertiti, de Tell el-’Amarna. Museu do Egito, Cairo.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 10 5
102 A importância cie Nefertiti, a esposa de Akhenaten, não deve ser subestimada, e ela
também podia ser invocada. Vide Redford, Akhenaten, págs. 78-82, e Emma Brunner-
Traut, “Nofretete”, LÁ 4:5 19-2 I.
103 Jan Assmann, “Die ‘loyalistische Lehre’ Echnatons”, SAK 8 (1980): 1-32. Vide
também as referências, no mesmo livro, a outros trabalhos importantes.
106 ♦ DAVID R SILVERMAN
quanto ao deus nos céus, e esse sistema, que certamente parecia lógico ao
rei, era a ordem correta do universo. Era m a a t .
De muitas maneiras, os conceitos e a iconografia promovidos durante
o reino de Akhenaten eram variações sobre idéias tradicionais, e seu
desenvolvimento pode até ter tido uma certa lógica. Ainda assim, apesar
do aparente cuidado com que o programa de transição foi planejado, e
apesar da maneira meticulosa e coerente com que foi levado a cabo, os
conceitos e a iconografia de Akhenaten não criaram raízes.
Pode-se sugerir muitas razões para o malogro das novas doutrinas,
porém, basicamente, está a incapacidade que os indivíduos tinham de
obter acesso direto ao(s) deus(es) de sua escolha e a necessidade de cultuar
a nova divindade por meio do rei. Não há dúvida de que o povo reagia de
maneira negativa a essa religião que o privava tanto das divindades crônicas
quanto dos meios para adquirir uma vida após a morte pessoal/individual
e a imortalidade. As pessoas, aparentemente, achavam difícil adaptar-se
aos novos dogmas que não lhes diziam respeito diretamente e estavam tão
centrados na divindade do rei. Além disso, a religião tradicional enfatizava
os contrastes fortes e delineava claramente a luz e a escuridão, o bem e o
mal, a vida e a morte, o positivo e o negativo. A teologia de Akhenaten
praticamente negava a escuridão, o mal, a morte e o negativo. Enfatizava
o aspecto positivo da vida. Uma vez que só um deus, Aten, existia, ele
não poderia ser comparado e necessariamente tinha que ser positivo. Dessa
maneira, a religião de Akhenaten enfatizava a vida, o renascimento cíclico
diário, a bondade, a ordem e o sol. O mundo inferior, com seus perigos,
demônios e doze horas de trevas não tinha lugar nos conceitos da nova
religião. Nem o tinham a doença e a corrupção. Na religião tradicional,
esses aspectos negativos simbolizavam as realidades desta vida e os temores
relativos à próxima. Somente por meio de seu reconhecimento é que eles
poderiam ser derrotados. Os mitos, símbolos e textos complexos da tradição
ocupavam-se desses problemas e perigos. No lugar de tais mitos e símbolos,
a religião monoteísta de Akhenaten oferecia uma fé quase simplista no
positivo. Nessa visão, nem a nova religião nem o seu deus tinham um rival
capaz de criar conflito.
Aparentemente, mesmo aqueles que acompanhavam Akhenaten para
a cidade de Akhetaten não seguiam os seus ensinamentos completamente.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 107
104 Para referências a trabalhos sobre esse assunto, vide Redford, Akhenaten, págs. 242-43.
105 Silverman, “W it and Humor”, in E gypt’s Golden Age, págs. 280-81 (figs. 385, 386).