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Título original: Religion in Ancient Egypt — Gods, Myths, and Personal Practice

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n”! 1,8, 10, 12, 1 7 ,1 8 ,2 1 ,2 2 ,2 5 ,2 6 ,3 0 , 3 4 ,3 5 ,3 6 ,3 7 ,3 8 ,4 1 .4 3 ,4 4 ,4 5 ,4 6 ,4 7 ,
49, 50 e 51 © 1991 de David P. Silverman
n“5 5, 23, 24, 29, 52, 53, 54, 56 e 57 © 1991 de Leonard El. Lesko
ng 40 © de John Baines
Preparação de originais: Vivian Nunes
R evisão de texto: Simone L. C. Silberschimidt
Capa: Antonio Kehl
Editoração eletrônica: Eduardo Seiji Seki

Dados para Catalogação


Shafer, Byron E. (org.), 1938—
As religiões no Egito antigo — deuses, mitos e rituais domésticos / Byron E.
Shafer (org.), John Baines, Leonard H. Lesko, David R Silverman ; tradução de
Luis S. Krausz. — São Paulo : Nova Alexandria, 2002.

264 p.

ISBN 85-7492-047-9

1. Egito: religião 2. Cosmogonia egípcia I. Baines, John II. Lesko,


Leonard H. III. Silverman, David P IV. Krausz, Luis S. V. Título

CDD-932
O DIVINO E AS
DIVINDADES 1
NO ANTIGO EGITO

David P. Silverman

ara a maioria das pessoas, a religião do antigo Egito evoca imagens


P de criaturas híbridas, com cabeças de animais e corpos humanos.
Não há dúvida de que a cultura material do Egito tenha nos legado exem­
plos incontáveis de tais figuras, tanto em pinturas quanto em esculturas,
em duas ou três dimensões. Essas divindades tinham identidades e
associações, figuram de maneira proeminente nos textos religiosos ao longo
da história registrada do país, e fazem parte de um conjunto altamente
complexo e sofisticado de crenças religiosas. Não é possível simplesmente
rotular uma divindade como deus de alguma coisa e outra como o deus de
outra coisa. Havia muitas identificações e inter-relações entre os membros
do panteão, porém subjacente a essa complexa rede de divindades
encontrava-se uma concepção altamente desenvolvida do que era o divino,
que surgiu durante o período formativo dessa antiga civilização e evoluiu
para compor as doutrinas que fundamentariam a religião do antigo Egito
ao longo de mais de três mil anos.

Q u ero m anifestar m inha gratidão a C h arles e E lizab eth H o lm an , cujo


interesse entusiástico e apoio foram responsáveis pelo simpósio e por este volume.
A g rad eç o , tam bém de m an eira esp ecial, pelos esforços de B yron Sch afer, da
Fordham U niversity, ao organizar o simpósio e editar este livro. Este capítulo não
teria sido possível sem a assistência editorial e de pesquisa de M elissa Robinson,
da U niversity of Pennsylvania. M eus colegas egiptólogos John B aines e Leonard
Lesko foram generosos na apresentação de suas idéias e comentários verdadeiram ente
2 2 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

1. Encantamentos nas paredes da pirâmide do rei Merene (6a Dinastia). Saqqara do Sul.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 3

úteis. Jan et R ich ards também fez várias sugestões valiosas relativas à antropologia.
Refiro-m e freqüentemente ao LA nas notas, trata-se de um a fonte útil de referências
atualizadas. A s citações, em geral, estão abreviadas, e aconselho os leitores interes­
sados a consultar as fontes nelas m encionadas para estudos mais aprofundados.

C O N C E P Ç Õ E S D O D IV IN O

Determinar o que os antigos egípcios entendiam por divino não é


tarefa simples. Os diferentes estágios no desenvolvimento de seus registros
pré-históricos forneceram poucos testemunhos materiais e ainda menos
informações acerca do seu contexto. Essas concepções são, no entanto,
mais facilmente discerníveis no período histórico, uma época em que as
idéias podiam expressar-se em forma e substância. Foi então que as ins­
crições de caráter religioso se tornaram freqüentes. Há um conjunto, em
particular, registrado pela primeira vez no Antigo Império, nas câmaras
internas de muitas das pirâmides de Saqqara, conhecido como Textos das
Pirâmides (fig. 1). Essas inscrições funerárias contêm informações descriti­
vas e narrativas, e registros de conversações em quantidade suficiente para
permitir que os estudiosos formulem teorias sobre os conceitos de divindade
durante os tempos faraônicos, e também para fornecer hipóteses acerca
das concepções em voga até mesmo num passado mais distante. Os artefatos
e demais achados arqueológicos que foram encontrados desse período, e
de outros posteriores, são a manifestação visível de tais concepções.
Na medida em que a civilização dos egípcios se desenvolveu, eles
passaram a fazer cada vez mais registros e a documentar suas crenças em
outras coleções de encantamentos. Num dado momento, a decoração pas­
sou a ser associada a textos em paredes de túmulos, em sarcófagos e em
templos. Os egípcios também produziram numerosos artefatos religiosos
relativos às suas crenças e papiros ilustrados, capazes de fornecer infor­
mações adicionais aos estudiosos modernos. Outros textos, cenas e obje­
tos facilitam o estudo das concepções do divino no antigo Egito. A riqueza
de material disponível aumenta à medida que se passa dos períodos
primordiais para os posteriores da civilização egípcia. E esse material
beneficia mais o estudo da religião de períodos bem representados do que
o da religião de períodos menos bem documentados.
2 4 ♦ DAVID R SILVERMAN

Muitas análises modernas da divindade em períodos anteriores da


civilização egípcia basearam-se, principalmente, em teorias desenvolvidas
a partir de materiais pertencentes a períodos posteriores. Tendo em vista
a natureza conservadora dos egípcios, de um modo geral, e o estilo arcaico
dos textos religiosos em particular, essas análises têm muitos méritos. Não
devemos esquecer, entretanto, que essas fontes provenientes de períodos
históricos mais recentes, ainda que mais abundantes do que as dos antigos,
estavam muito distantes do tempo em que as idéias religiosas originais
foram formuladas e, portanto, podem conter erros ou concepções equivoca­
das, incorporadas com o passar do tempo.
Durante o período dinástico, os egípcios compuseram e registraram
muitos textos de caráter teológico, que detalhavam a criação de seu universo
e a origem das divindades e da humanidade. Esses textos teológicos eram
sofisticados, bem formulados e bem desenvolvidos, e no passado recente
atraíram muitos comentários e interpretações. Os estágios formativos da
religião do antigo Egito foram objeto de menos pesquisas, provavelmente
em função da ambigüidade dos achados arqueológicos pré-históricos e
arcaicos. A inda assim, os estudiosos têm voltado cada vez mais a atenção
para esses períodos. Os primeiros estudos que vêm à mente são a pioneira
coletânea de ensaios teóncos intitulada The Intelectual A dventure o f A ncient
M an (A Aventura Intelectual do Homem Antigo), bem como as lúcidas
interpretações de artefatos pré-históricos e arcaicos de William Hayes,
Walther Wolf, Peter Ucko e Winifred Needier, e os estudos de Siegfried
Morenz, Erik Hornung e Jan Assmann1.

1 Henri Frankfort e outros, The Intellectual A dventure o f Ancient Man (Chicago: University
of Chicago Press, 1946); William C. Hayes, M ost Ancient Egypt (Chicago: University of
Chicago Press, 1965); Walther Wolf, D ie K unst A giplens: Gestalt und G eschichte
(Stuttgart: Kohlhammer, 1957); PeterJ. Ucko, Anthropomorphic Figurines o f Predynastic
E gypt and N eolithic Crete with C om parative M aterial from the Prehistoric Near East
and M ainland G reece (Londres: Szmidla, 1968); Winifred Needier, P redynastic and
Archaic E gypt in the Brooklyn M useum (Nova York: Brooklyn Museum, 1984); Siegfried
Morenz, Egyptian R eligion, trad. Ann E. Keep (Londres: Methuen; Ithaca: Cornell
University Press, 1973); Erik Hornung, C onceptions o f God in A ncient E gypt: The
O ne and the M any, trad. John Baines (Ithaca: Cornell University Press, 1982; Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1983). Obras dejan Assmann estão listadas na bibliografia
de Hornung e na bibliografia selecionada apresentada neste volume.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 5

A s evidências arqueológicas provenientes da época anterior à


invenção da escrita podem sugerir a existência de concepções desenvolvidas
do divino2. A gente daquela época venerava animais, dispunha de objetos
de culto, fazia sepultamentos sagrados e tinha lugares dedicados aos rituais.
Tudo isso aponta para um conjunto de crenças sofisticado, que bem
pode incluir a presença de um ou vários seres divinos. Nota-se, em particu­
lar, o cuidado que se tinha com os sepultamentos humanos no período
anterior ao ano 3.000 a.C. (fig. 2). Esse cuidado demonstra claramente
as evoluídas crenças funerárias então existentes.
E claro que antes da introdução da escrita não há evidências textuais
que expliquem os significados dessas práticas e dos rituais e objetos a elas
associados. Assim, precisamos recorrer à observação para interpretar
objetos como divinos e, a partir daí, inferir as concepções religiosas a eles
subjacentes. Consideremos, por exemplo, uma enigmática estátua de um
falcão no Brooklyn Museum3. Ela não possui um contexto arqueológico
nem inscrições, mas ainda assim a forma específica do objeto e paralelos
posteriores contextualizados sugerem que esse falcão pode ter sido uma
das mais antigas imagens usadas para oráculos. Assim, apesar dos contextos
escritos e dos ambientes arqueológicos serem de extrema importância para
a análise de crenças religiosas, eles não se caracterizam como o único
meio de se determinar o significado religioso de um objeto e os conceitos
subjacentes à sua criação.
Ainda assim, a dificuldade em se determinar as concepções originais
do divino não deve ser subestimada, pois para examiná-las adequadamente
é preciso voltar ainda mais no tempo. Não há consenso sobre quando e
como o conceito de divino surgiu, nem sobre a forma que tomou. Os
antropólogos apresentaram teorias sobre o desenvolvimento de tais idéias
nas fases primordiais da civilização, e os historiadores e egiptólogos também

2 Hornung, C onceptions o f Cod, págs. 100-103.


3 “The Nodding Falcon of the Guennol Collection at The Brooklyn Museum”, Brooklyn
M useum Annual 9 (1967-68): 69-87 (aparecem nas notas diversas referências a outras
figuras arcaicas de animais). Veja também Needier, P redynastic and Archaic E gypt ,
págs. 368-369.
2 6 ♦ D A V ID P. SILVERMAN

2 . Reconstrução de um sepultamento pré-dinástico no Egito, cerca de 3.500 a.C . Os


artefatos provêm da fase N aqada II. University Museum, University of Pennsylvania,
Filadélfia I <>to (neg. N. 1 3 4 5 6 2 ): cortesia do University M useum, University of
Pennsylvania.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 7

fizeram sugestões4. Mas as crenças dos egípcios eram fluidas até mesmo
durante o período histórico, e nunca foram consolidadas em uma única
fonte que permanecesse constante ao longo da história. Como os egípcios
não tinham um “livro sagrado” único, os estudiosos não dispõem de um
texto teológico padrão ao qual possam recorrer para informações a respeito
dos períodos que estão relativamente bem documentados. E por esse motivo
que se torna muito difícil interpretar de maneira exata os estágios formativos.
Ainda assim, parece justificável supor que o divino tenha sido conce­
bido originalmente como amorfo, e que gradualmente tenha passado a ser
visto em sua relação com o mundo, isto é, em sua relação com os fenô­
menos naturais. Ao transpor o divino de um nível abstrato, ou talvez mesmo
transcendente, para uma esfera mais concreta, os seres humanos o tornaram
mais facilmente identificável5. Entretanto, parece que as pessoas somente
conseguiram chegar a tais processos de pensamento quando se tornaram
suficientemente evoluídas para exercer algum tipo de controle sobre o seu
ambiente. Só a partir desse momento passariam a dispor do tempo e da
energia necessários para pensar em questões além de sua situação imediata,
e para formular conceitos relacionados a sua sobrevivência a longo prazo.
Alguns estudiosos sugeriram que foi somente depois da introdução
da escrita que os antigos egípcios alcançaram o grau de sofisticação inte­
lectual necessário para conceber deus como uma pessoa6. E mais provável,
porém, que os egípcios fossem suficientemente evoluídos para conceber
um poder ou uma força divina em termos humanos antes da introdução da
escrita, pois já no período pré-dinástico eles criavam imagens que possivel­
mente representavam manifestações dessa força ou desse poder. Artefatos

4 Em R eader in C om parative R eligion, ed. William A . Lessa e Evon Z . Vogt, 4 a ed.


(Nova York: Harper & Row, 1979), vide Edward B. Tylor, “Animism”, págs. 9-19;
Sherry B. Ortner, “On Key Symbols”, págs. 92-98 e James G. Frazer, “Sympathetic
M agic”, págs. 337-352. Vide, também, as bibliografias em Morenz, Egyptian R eligion,
e em Hornung, C onceptions o f God, e os trabalhos de Morenz, Hornung e Hans
Bonnet ali citados. C. J. Bleeker também forneceu uma bibliografia de interesse em
Hathor and Thoth, Studies in the History of Religions 26 (Leiden: Brill, 1973), págs.
161-166, que inclui referências a seus importantes estudos.
5 Para interpretações de “transcendente”, vide Hornung, C onceptions o f God, págs. 190-
196, e os livros e artigos de Assmann (vide n. 1).
6 Vide Morenz, E gyptian R eligion, pág. 17.
2 8 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

desse tipo, de forma humana ou divina, aparecem em diferentes tamanhos, e


suas origens, especialmente daqueles provenientes de contextos funerários,
tendem a reforçar a idéia de sua associação com um ser poderoso ou com
uma fonte de veneração7. Além disso, o fato de que essas imagens já estavam
sendo produzidas no período pré-dinástico sugere que imagens e motivos
decorativos derivados até mesmo de períodos anteriores possam antecipar
ou representar os estágios de desenvolvimento de uma crença na força
divina8. E certo que o cuidado com que os mortos eram sepultados antes
de 3.000 a.C. e as elaboradas crenças fúnebres obrigatoriamente associadas
a esse cuidado sugerem uma sofisticação suficiente para tal concepção.
Discutiu-me muito se a representação do divino em imagens humanas,
em vez de naturais ou animais, é mais avançada e, portanto, posterior no
tempo9. A arte da época inicial do período pré-dinástico não apresenta
quaisquer representações, seja em forma humana, seja em forma animal,
e tampouco foram encontradas sepulturas de animais “sagrados”. Entre­
tanto, há evidências de que os mortos humanos eram enterrados, o que
indica uma crença na vida após a morte. Imagens que parecem ter forma
humana surgem um pouco mais tarde, e enquanto algumas delas podem
ser imagens de fertilidade e outras de divindade, tais interpretações não
são aceitas de forma unânime. Mais tarde, ainda no período pré-dinástico,
os animais possivelmente eram sepultados em rituais, e estas sepulturas
encontram-se associadas a objetos contemporâneos que, é provável, repre­
sentam o divino em forma animal.
Ainda assim, o que parece mais significativo não é a forma assumida
pelo conceito de divino, mas o fato de que esse conceito podia estar manifes­
tado em uma imagem. Pois mesmo quando a força/poder era representada

7 Figuras pré-dinásticas de mulheres, aves, tartarugas, hipopótamos e outros animais


foram descobertas nas escavações de S ir W. M . Fhnders Petne, Walter B. Emery e
outros. Needler ilustra muitas delas em P redynastic and Archaic E gypt (n. 1), págs.
335 e 337. Ela nota que “pouco se sabe sobre o seu significado” mas que “foi sugerido
de forma plausível que são símbolos de ressurreição .
8 Existem figuras e desenhos em rochas ainda mais antigos. Vide os comentários a respeito
e as referências a trabalhos sobre esse assunto em Hayes, M ost A ncient E gypt (n. 1),
págs. 89-90.
9 Morenz, E gyptian R eligion, pág. 17; Flornung, C onceptions o f Cod, págs. 101-109
(especialmente 105).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 2 9

3. Paleta cerimonial do rei Narmer ( I a Dinastia). Ilustração de Jennifer Houser, extraída


de W later Emery, Archaic E gypt (Baltimore: Penguin, 1961), fig. 4.

na forma de um animal, era possível que o devoto também lhe atribuísse


traços de comportamento e características humanas. Talvez os elementos
humanos e animais estivessem fundidos, como parece ocorrer freqüente-
mente no período faraônico10. Divindades do período pré-dmástico fre-
qüentemente tomavam a forma de animais, e estes eram freqüentemente
representados desempenhando tarefas humanas, como a derrota de inimi­
gos. Tais representações aparecem na paleta cerimonial do rei Narmer
(fig. 3) e na paleta do saque líbia. No mesmo período pode-se também

10 Exemplos de comportamento humano dos deuses e expressões de emoção são frequentes


nos textos religiosos de todos os períodos, e também podem ser encontrados na literatura
popular. Não menos freqüentes são os exemplos visuais, como a figura humana com
cabeça de falcão que representa Hórus nas paredes de seu templo em Efdu e nas
capitais hathóricas, como as que se encontram no templo de Hathor em Dendereh,
onde a deusa é representada na forma de uma mulher com orelhas bovinas.
3 0 ♦ DAVID P. SILVERMAN

4 . Cena pintada com o príncipe Amenherkhopeshef (20â Dinastia) e o deus Khnum, no


túmulo do príncipe. Vkle das Rainhas, Tebas.

encontrar o motivo dos estandartes no alto dos quais se encontram animais


com braços humanos.
Evidências pictóricas e escritas posteriores parecem reforçar a idéia
de uma fusão entre elementos animais e humanos. Muitas divindades do
panteão egípcio têm formas de animais, porém manifestam comportamento
humano, e algumas podem ser representadas como uma combinação das
formas animal e humana. O deus Khnum tem cabeça de carneiro e corpo
humano (fig. 4 ); Hathor pode ser representada como inteiramente bovina
(figs. 5 e 6) ou como uma mulher com orelhas de vaca (fig. 7), e o deus
sol Rá-Horakhty pode aparecer como um falcão ou como um ser humano
com cabeça de falcão (fig. 8).
Os textos religiosos e literários descrevem os deuses como seres
possuidores de muitas características humanas: pensavam, falavam, janta­
vam, sentiam emoções. Além disso, envolviam-se em batalhas e faziam
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 31

5 . Figura bovina da deusa Hathor protegendo e amamentando o rei, do templo de Hathor,


Deir el-Bahri, Tebas ocidental. Museu do Egito, Cairo.

viagens de barco. Alguns até mesmo bebiam em excesso, como ilustra o


comportamento da deusa Hathor em “A Destruição da Humanidade 11.
Em “A s Disputas de Hórus e Seth”, um texto literário do Novo Império,
porém arraigado na literatura religiosa mais primitiva, os deuses têm senso
de humor: em muitos episódios, o adversano, Seth, e mostrado como um
tolo, sendo freqüente alvo de chacotas. Na mesma história, Hathor ex­
põe-se, fazendo piadas grosseiras para alegrar seu pai, tomado pelo mau
humor12.
Essas representações, sejam elas visuais ou literárias, mostram uma
conceitualização reconhecível de algo que originalmente talvez fosse um

'' Para uma seleção de textos, vide AEL. “A Destruição da Humanidade” está em AEL
2:197-199. Vide, também, “The Contendings of Horus and Seth”, trad. Edward F.
Wente, in LAE 108-126.
12 LAE 108, 112. Para mais estudos sobre esse texto, vide os itens bibliográficos citados
em LAE 108-109.
3 2 ♦ DAVID P. SILVERMAN

6 . Cena das divindades de Taweret (centro), Hathor (à direita) e Sokar-Osíris (à esquerda),


dos papiros funerários (Livro dos Mortos), pertencentes ao Escriba Real Ani (19a Dinastia),
British Museum, Londres.

poder ou uma força divina mais abstrata. A s características dessas concre­


tizações eram aquelas que os egípcios atribuíam ao poder ou força supre­
mos. A s imagens não se destinavam a representar formas reais, elas eram
referências a uma idéia mais elevada do divino. Por esse motivo, uma
força específica podia ter múltiplas imagens, características e descrições,
cada uma das quais se referindo a algum ou a todos os seus aspectos
misteriosos13. A imagem que um indivíduo via, ou a respeito da qual lia,
era apenas a essência da força real que ela representava. A força, porém,
podia estar manifesta na imagem.
O reconhecimento de alguma espécie de força suprema foi o primeiro
passo na tentativa de se distinguir o indivíduo do mundo em que vivia14.
Além disso, esse passo foi dado para se conquistar algum controle sobre
os fenômenos da natureza. Os muitos exemplos de divindades associadas

13 Cf. Hornung, C onceptions o f God, pâg. 117.


14 Morenz, em E gyptian R eligion, pâg. 17, usa “poder” em vez de “força”.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 3

7. Capitel de Hathor numa coluna no altar de Hathor, no templo mortuário de Hatshepsut


(18a Dinastia), Deir el-Bahri, Tebas ocidental.

a elementos cósmicos durante o período histórico demonstram a importân­


cia desse estágio nas fases anteriores de desenvolvimento das crenças.
Num primeiro momento, a força suprema teria parecido assustadora e
misteriosa, mas a partir do instante em que pudesse ser compreendida
como uma entidade, poderia ser reconhecida, compreendida e, então,
reinterpretada de maneira familiar e recorrente. De certa forma, a força
humanizava-se e podia ser domada, ou seja, era colocada em termos que
o indivíduo era capaz de compreender.
Para que o reconhecimento de uma força suprema se desenvolvesse,
criando um conjunto de crenças religiosas, os conceitos antropomorfizados
tinham de ser organizados de tal forma que se tornassem compreensíveis
para a maior parte da população. Os antigos egípcios decidiram expressá-
los numa variedade de imagens visuais concretas e escritas. Assim, era
possível visualizá-los na decoração que recobria as paredes das partes
públicas de templos e túmulos, ler a respeito deles na literatura religiosa,
ou ouvir falar a seu respeito nas histórias populares ou nas lendas orais.
3 4 ♦ DAVI D P. SILVE RMAN

8. Figuras pintadas de Rá-Horakhty e Hathor, Senhora do Ocidente, no túmulo da rainha


Nefertari (19a Dinastia). Vale das Rainhas, Tebas.

Cada cultura determina de sua própria maneira a forma ou formas


que são assumidas pelo ser ou seres supremos, mas em quase todas elas
essa forma relaciona-se, de alguma maneira, com a do ser humano.15 No
Egito, elas eram numerosas. Podiam ser humanas (como os deuses Amon
e Ptah [fig. 9 ]) ou animais (como os deuses Anúbis, representado como
um chacal, e Sobek, representado como um crocodilo). Também podiam
combinar formas humanas e animais em uma só imagem (como o deus
Hórus, freqüentemente mostrado como um homem com cabeça de falcão,
e Sekhmet, como uma mulher com cabeça de leoa [fig. 10]). A forma
podia também variar de acordo com a situação (o deus Thot podia tomar

15 Vide Hornung, C onceptions o f Cod, pág. 105.


O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 5

9 . Relevo representando (da esquerda para a direita) Ptah, Amun, o faraó Thoth e Seshat,
Mednet Habu, na tumba do Rei Ramsés III (2a Dinastia), Tebas.

forma de íbis, de babuíno ou de homem com cabeça de íbis [figs. 1 1,


1 2 ])1617. Algumas divindades apareciam na forma de criaturas desconhe­
cidas no ambiente egípcio, mas essas imagens costumavam ser compostas
de partes de animais geralmente vistos lá (a deusa Taweret incorporava
partes de hipopótamo, crocodilo e leoa [fig. 6 ]). A s origens de algumas
divindades, como Seth, não são tão óbvias para nós, mas há algo natura-
lístico em sua aparência1'. Imagens totalmente fantásticas eram mcomuns

16 Para uma discussão mais detalhada dessa divindade, vide Bleeker, H athor e Thoth
(n. 4 ), págs. 106-160.
17 Não há consenso sobre quais animais Seth representa. V ide Herman te Velde, “Seth”,
LÄ 5:908-911.
3 6 ♦ DAVID P. SILVERMAN

10. Tríade representando Ptah


(esquerda), Sekhmet (direita) e
o R ei Ramsés II (centro) (19a
D inastia), supostamente como
uma manifestação de Nefertem.
Museu do Egito, Cairo.

no repertório, mas há registros de grifos, esfinges e anões leoninos com as


pernas tortas.
Quando os elementos do cosmos e do ambiente eram representados
de forma concreta, normalmente assumiam a forma humana. Geb (a terra)
e Nut (o céu), por exemplo, eram representados, respectivamente, como
um homem e uma mulher (fig. 13), e Hapy, que é a inundação do Nilo,
era representado como um homem corpulento (fig. 14)'8. Até mesmo
Amon, que originalmente pode ter sido associado ao ar e cujo nome signi­
fica “o oculto”, tomava a forma de um homem. Freqüentemente uma mesma18

18 Para uma discussão completa do significado dessas imagens, vide John Baines, Fecundity
Figures: Egyptian Personification and the Icon ology o f a Genre (Chicago: Bolchazy-
Carducci, 1985).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 7

11. Relevo representando (da esquerda para a direita) o deus Thot, o Rei Ramsés II (19a
inastia) e a tríade de Tebas — os deuses Amon, Mut e Khonsu. Ramsesseum, templo
mortuário do rei, Tebas.

divindade era representada com forma animal, humana ou combinada,


mas as duas primeiras eram as predominantes. O gênero era quase sempre
indicado, imagens hermafroditas ou andróginas eram raras, embora divin­
dades associadas à fecundidade às vezes fossem retratadas dessa forma.
O tipo de forma que foi usada pela primeira vez para concretizar
uma força ou poder supremo é discutível. Outras vezes, as evidências
arqueológicas são ambíguas. O que pode confundir essa questão é o apa­
recimento do que parece ser um fetiche divino, um emblema que é nor­
malmente um objeto inanimado e, aparentemente, simbólico. Sua forma
freqüentemente enigmática nem sempre pode ser reconhecida como hu­
mana, animal ou natural.
Independentemente de qual imagem veio antes, o simples reconheci­
mento do indivíduo e, conseqüentemente, a separação do indivíduo das
forças elementais era, na realidade, um passo no processo de humanização
3 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN

12. Estatueta do deus Thot, do


período mais recente, encontrada
na região de Hermópolis. Museu
M allawi, Egito.

do mundo'9. Esse desenvolvimento tornava desnecessária qualquer neces­


sidade de concretizações independentes de emoções humanas específicas,
pois quando uma divindade era concebida e antropomorfizada, incorporava
atributos humanos, qualquer que fosse a sua imagem.
Dessa forma, embora as qualidades humanas fossem evidentes na
maior parte das divindades, normalmente não eram capazes de identificar
um deus específico — nem destinavam-se a esse fim. Essa percepção
permitia uma certa flexibilidade nos papéis divinos, e explica a natureza
multifacetada das divindades egípcias. Isis podia ser a mulher ardilosa19

19 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 19-20, e a discussão, ali, de Kurt Sethe, U rgeschichte
und älteste R eligion der Ä gypter, Abhandlungen für die Kunde des Morgenlandes 18/
4 (Leipzig: Deutsche Morgenländische Gesellschaft, 1930), seção 31, págs. 24-25.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 3 9

13 . Cena do papiro Greenfield, o papiro hierático que pertencia ao primeiro chefe das
concubinas de Amon, Nesitanebtasheru (21a Dinastia). Shu, associado ao ar, separa Nut,
uma deusa solar, e Geb, um deus ctônico. British Museum, Londres, 10554. Foto: cortesia
de Trustees of the British Museum.

que tenta aprender o nome secreto do deus sol, a amável irmã e esposa do
deus do mundo inferior (fig. 15) e a mãe protetora de Hórus. A s divinda­
des egípcias eram mais fluidas que as da Grécia e de Roma, que tendiam
a ter papéis estáticos e identificar-se mais com emoções humanas específicas.
Uma vez estabelecida a forma de uma divindade, uma lenda, mito
ou históna era formulada para explicar a sua origem e as suas associações,
e ao longo desse processo o deus recebia um nome. Não se sabe se tudo
isso acontecia simultaneamente ou em intervalos, e pode ser difícil chegar-
se a uma conclusão satisfatória20. Pesquisar o significado dos nomes das
divindades freqüentemente é de pouca valia para ajudar a esclarecer a

20 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 23-24, e Hornung, C onceptions o f Cod, págs. 66-
74, defendem a simultaneidade.
4 0 ♦ DAVID P. SILVERMAN

14. O deus H apy (à esquerda e à direita) unindo o alto e o baixo Egito (simbolizados pelo
lótus e pelo papiro), esculpido em baixo-relevo no trono de uma estátua do R ei Ramsés II
(19a Dinastia). Templo de Luxor, Tebas.

ordem desse desenvolvimento. Hathor (Hwt-Hr) é o nome da deusa retra­


tada como mulher, freqüentemente com orelhas bovinas, e tradicionalmente
traduzido como “Mansão de Hórus”. Assim, a última parte de seu nome
(Hr) refere-se ao deus Hórus, e talvez isso possa sugerir que ele surgiu
antes dela. Entretanto, são conhecidas representações muito primitivas
de deusas com características bovinas claramente relacionadas com o céu,
e que podem ser de Hathor. A inda assim, não podemos afirmar com
certeza que, naqueles tempos primitivos, elas fossem realmente percebidas
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 1

15 . Tabulgta votiva Iuny, escriba-chefe do rei (19a Dinastia), com Renut, sua mulher,
adorando os deuses Osíris e ísis. Ashmolean Museum, Oxford, 1883.14. Foto. cortesia
do Ashmolean Museum.
42 DAVID P. SILVERMAN

como Hathor21. E possível que estivessem relacionadas a uma divindade


mteiramente diferente ou algum aspecto da deusa só mais tarde atribuído
a Hathor. Apesar desses problemas, os nomes das divindades podem ser
úteis na sua identificação, pois geralmente são descritivos. Hórus, por
exemplo, divindade retratada como um falcão (fig. 16), tinha um nome
talvez derivado da palavra h ry — “aquele que está no alto, distante”.
Essa designação refletia claramente a sua associação com o céu, e o nome
de Hathor, que incluía o nome de Hórus, conotava sua identificação celes­
tial, assim como sua relação com Hórus.
Não é possível determinar o significado dos nomes de todos os
deuses, porém o próprio processo de nomeação era um passo importante
no desenvolvimento do conceito de divindade. Segundo as crenças dos
antigos egípcios, o nome era parte integrante da personalidade22. Tinha
que ser preservado, até mesmo na vida após a morte. Algumas inscrições
em monumentos consistiam em severas advertências a quem quer que
destruísse ou obliterasse o nome de seu proprietário. Outros textos listam
recompensas para quem se dispusesse a repetir o seu nome, ajudando
assim a manter sua existência eterna. Conhecer o nome de um indivíduo
significava exercer algum tipo de controle sobre ele. Os egípcios acreditavam
que eram capazes de prejudicar os seus inimigos ao inscrever seus nomes
em tigelas de cerâmica e, em seguida, estraçalhá-las.
O mesmo dinamismo regia os nomes das divindades. Uma vez que
a força/poder fosse identificada e nomeada, podia-se rezar ou oferecer
sacrifícios para ela. A divindade passava a poder ser reverenciada por seu
nome, a ser invocada, a ser alvo de súplicas, e até mesmo a ser temida e
adorada. Saber o nome de um deus significava adquirir algum tipo de
vantagem ou de controle sobre ele e sobre as forças que representava. Era
importante, inclusive para os próprios deuses, saber um nome. Num texto
do Novo Império, o deus sol Rá, que tem uma pletora de nomes, é mordido

21 A s deusas Bat, Mehetweret e Iliet estão associadas a representações semelhantes. Vide


François Daumas, “Hathor”, LÁ 2 : 1024-33 e Hornung, C onceptions o f God, pág. 103.
22 Para uma breve discussão desses elementos da personalidade, vide Stuart Fleming,
Bernard Fishman, David O ’Connor e David R Silverman, The E gyptian M um m y:
Secrets and S cien ce, University Museum Handbook Series I (Filadélfia: University
Museum, 1980), págs. 2-3.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 3

16 . Estátua ptolomaica ou romana do deus Hórus em forma de falcão. Pátio externo do


templo de Hórus, Edfu.
4 4 ♦ DAVID P. SILVERMAN

por uma serpente produzida pela deusa ísis. Ela tinha conjurado o demônio
do próprio ser de Rá a fim de aprender o nome secreto que era a fonte da
supremacia desse deus232425. O leitor do texto nunca aprende o nome. Como
os egípcios acreditavam que alguma dose de mistério fosse necessária para
preservar as dimensões da força divina, suas imagens visuais e descrições
escritas dos deuses apontavam apenas para alguns aspectos da divindade,
e não eram destinadas a detalhar todos eles. Entendia-se que, desta forma,
as divindades retinham algo de sua abstração conceituai original. Nem
todos os elementos de sua essencia estavam mteiramente concretizados.
Os deuses eram concebidos em termos humanos, mas nem todas as
qualidades a eles atribuídas eram totalmente humanas. Assim como as
criaturas mortais, eles eram criados, mas as divindades derivavam, em
última análise, de um ser primordial que tinha sido responsável por sua
própria criação. Quando os deuses surgiram, seus nascimentos foram
descritos como extraordinários ou miraculosos. Eles tinham aniversários,
e os de determinadas divindades eram celebrados nos cinco dias adicionais
acrescentados ao calendário egípcio, de doze meses de trinta dias, para
completar um ano de 365 dias24. Durante sua existência, todos os deuses
exigiam sustento na forma de oferendas e de veneração. Como se conclui
em .A Destruição da Humanidade , eram os mortais que ofereciam esses
serviços. De acordo com este texto, Rá irritou-se com as tramas malignas
dos mortais e agiu para que fossem destruídos. Mais tarde acalmou-se,
porém, e evitou sua aniquilação total25.
Informações encontradas em textos sugerem que não se imaginava
que os deuses morressem no sentido comum, e as referências a sua morte
nem sempre são consistentes. Alguns textos afirmam que as divindades
viviam apenas por um determinado período de tempo, e a história em que
a mentira torna a verdade cega faz uma referência a um túmulo de um
deus26. Há vários textos e representações com alusões à morte de Osíris,

23 The God and His Unknown Name of Power, trad. John A . Wilson, ANET 12-14.
24 Vide referências em Peter Kaplony, “Geburtstage (Götter)”, LÄ 2:477-479.
25 Para tradução, vide AEL 2 :1 9 7 -199.
26 Morenz, E gyptian R eligion, págs. 24-25, e Hornung, C onceptions o f Cod, págs. 151-
165. “The Blinding of Truth by Falsehood”, trad. Edward F. Wente, LAE 127,131.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 5

mas o evento real não foi relatado nos tempos faraônicos porque se acre­
ditava que um acontecimento narrado em detalhes seria eternizado. Ela
não é mencionada na coleção de encantamentos religiosos conhecida como
Textos de Ataúde, mas há referências constantes a sua ressurreição27. Foi
somente mais tarde, durante o período greco-romano, quando as crenças
se alteraram, que um relato da morte de Osíris foi escrito. Na literatura
religiosa dizia-se que Rá, o rei dos deuses, morria simbolicamente a cada
pôr-do-sol, para renascer na aurora do dia seguinte. Outr.os textos, porém,
o descrevem envelhecendo, e até mesmo como velho28.
A medida que as lendas, mitos e histórias em torno das forças/
poderes/seres se desenvolviam, também se desenvolviam as associações
antropomórficas. Algumas divindades passaram a ser identificadas com o
meio ambiente, outras com o cosmos, outras com a criação, outras com a
realeza, e outras, ainda, com a humanidade. Para lidar com o número
rapidamente crescente de seres superiores, os egípcios formularam uma
hierarquia para seus deuses. Eles eram descritos, assim como os mortais
na terra, vivendo em sociedade e como membros de grupos familiares
separados. Os egípcios estavam tornando os seus deuses mais humanos.
As relações complexas entre os deuses freqüentemente levavam a discussões
e rivalidades, e suas paixões e emoções se desenvolviam. Os antigos egípcios
retratavam muito bem esse mundo de criaturas divinas, tanto em seus
textos religiosos e literários quanto em suas esculturas, relevos e pinturas.
Essas representações refletem um sistema altamente desenvolvido
que, já muito tempo antes, tinha sido concretizado e antropomorfizado.
As imagens esclarecem pouco acerca da origem dessas idéias por estarem
muito distantes delas no tempo. Os egípcios, porém, não tinham dificulda­
des em relatar suas crenças sobre o assunto, nem relutavam em registrar

27 Hornung, C onceptions o f God, págs. 152-153. Vide Coffin Text spells 16,17 e 148,
in Adrian de Buck, The E gyptian Coffin Texts, 7 vols. (Chicago: University of Chicago
Press, 1935-1961), 1:47-53 e 2:209-226, traduzido em R . O. Faulkner, The A ncient
Egyptian Coffin Texts, 3 vols. (Warminster: A ns & Phillips, 1973-78), 1:10, 125-227.
28 Para uma discussão da morte de Rá, vide David P Silverman, “Textual Criticism in the
Coffin Texts”, in R eligion and P hilosophy in Ancient Egypt, ed. William Kelly Simpson,
Yale Egyptological Studies 3 (New Haven: Yale Egyptological Seminar, Department
of Near Eastern Languages and Civilizations, Yale University, 1989), págs. 39-40.
46 DAVID P. SILVERMAN

suas versões a respeito da criação do mundo, dos deuses e de seu ambiente


(fig. 17). A inda que essas teologias forneçam informações valiosas a
respeito de determinados aspectos da religião, elas pertencem a um período
muito distante no tempo para esclarecer alguma coisa sobre o divino antes
de sua antropomorfização.
Os egípcios possuíam diversas cosmogonias, algumas em conflito
entre si. Cada um dos centros religiosos mais importantes tinha a sua
própria versão da criação, caracterizada por uma divindade criadora princi­
pal que gerava deuses e deusas ligados uns aos outros. Esses tratados
abordavam a forma que os conceitos originais de divindade assumiram ao
longo do tempo, e eram complementados por outros textos e por represen­
tações na arte.
Cada uma das cosmogonias tinha uma certa coerência em seu próprio
âmbito. Apesar do fato de a religião ser basicamente conservadora, é
preciso reconhecer que os deuses egípcios estavam em constante evolução,
suas relações, em constante mudança. Erik Hornung afirmou: “Em sua
natureza e em suas manifestações de caráter constantemente mutável, os
deuses egípcios assemelham-se aos templos do país, que nunca estavam
prontos, mas em permanente construção”29. Dentre as mudanças, porém,
há algumas constantes que nos permitem perceber uma estrutura subjacente
ao sistema dos deuses.

O S D E U SE S

Alguns estudiosos consideram inútil tentar organizar os deuses do


Egito em grupos. Em primeiro lugar, pode-se afirmar que qualquer esforço
desse tipo resultará numa estrutura que será produto da mente moderna,
não da antiga. Em segundo lugar, os agrupamentos sugeridos resultam
em tantas superposições que os limites entre as categorias se dissolvem. A
multiplicidade de papéis desempenhados por certas divindades permite a
algumas delas exercer funções em mais de um agrupamento simultanea­
mente, e algumas divindades aparecem numa classificação específica em

Hornung, C onceptions o f Cod, pág. 256.


O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 7

1 7 . Imagem de Tutankamon
como o deus Nefertem sobre uma
planta de lótus, ilustrando o mito
da criação, no túmulo do rei (18a
Dinastia). Museu do Egito, Cai­
ro, 60723.

um período determinado, porém não em outro. Para responder a esses


argumentos, pode-se formular a seguinte pergunta: uma vez que os egípcios
eram um povo extremamente lógico, que até mesmo deificava conceitos
como ordem, equilíbrio e harmonia na forma da deusa M a at (fig. 18),
não seria possível que, consciente ou inconscientemente, organizassem
uma estrutura subjacente ao sistema dos seus deuses? Esta claro que os
egípcios entendiam que as divindades formavam uma hierarquia óbvia.
Evidências dessa crença podem ser encontradas na maneira como os deuses
são retratados em mitos e histórias, nos papéis que desempenham na lite­
ratura religiosa, em seus títulos e epítetos, na proeminência e ações a eles
atribuídas na decoração de túmulos e de templos, e até mesmo no número e
4 8 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

18. Imagem pintada da deusa Ma’at, no túmulo da Rainha Nefertari (19a Dinastia). Vale
das Rainhas, Tebas.

no tamanho dos templos dedicados aos diferentes deuses, e no número de


sacerdotes que a eles serviam.
Ainda assim, a apresentação que se segue não se propõe a descobrir
e documentar esse sistema, seja qual for a possibilidade de que tenha
realmente existido, mas a organizar as divindades em categorias que pare­
çam lógicas hoje. Os resultados talvez poderão facilitar a compreensão,
por parte do leitor moderno, do vasto rol de deuses e deusas que compunha
o antigo panteão. Um agrupamento moderno das divindades inevitavel­
mente envolverá algum tipo de simplificação, pois os egípcios reverenciaram
numerosos deuses ao longo de milhares de anos. Muitas divindades, tais

como Isis e Serapis, sobreviveram até mesmo ao colapso da civilização


egípcia, encontrando devotos em outras terras. Tendo em vista tal variedade
e complexidade ao longo de um período de tempo tão extenso, algumas
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 4 9

divindades inevitavelmente passaram de uma categoria a outra, ou


pertenceram a mais de uma categoria, seja qual for a classificação sugerida.
A estrutura aqui proposta é assumidamente simplificada, porém parece
apropriada para o tipo de organização que se encontrava na cultura egípcia.
Espera-se que faça justiça ao grande âmbito do panteão egípcio e às
intrincadas relações das divindades umas com as outras.

Deuses associados a fenômenos naturais e abstração

Muitas divindades egípcias encontravam-se associadas a elementos


do antigo ambiente egípcio, tanto o percebido quanto o imaginado, e
algumas delas estavam também associadas a funções cósmicas. Cada um
dos diferentes mitos da criação do universo incorpora esses deuses e deusas
associados às áreas geográficas onde cada mito se originou, como Mênfis,
Heliópolis ou Hermópolis. Os egípcios imaginavam um deus criador
diverso como figura preeminente em cada versão do mito — Atum, Amon,
Ptah, Khnum, A ten30. Antes que a criação pudesse acontecer, entretanto,
foi preciso a presença de três poderes, que juntos representavam a energia
necessária à criação: Hu (a palavra divina), Heka (magia ou energia
divina) e Sia (conhecimento divino). Algumas das divindades que apare­
cem nos mitos da criação, como Amon e Ptah, transcendem a sua identi­
ficação com os fenômenos naturais e se tornam deuses importantes, com
significado nacional. Outros, como Amaunet e Kauket, são quase
desconhecidos fora desse grupo, e permanecem relativamente secundários.
Para o elemento ar, existem divindades individuais tanto quanto
pares de opostos, como Amon e Amaunet, o primeiro dos quais era
importante em nível nacional31. O deus Shu também estava relacionado

30 A s diferentes teologias da criação provêm de data bastante recente e possivelmente


refletem uma sistematização de pensamento contemporânea em vez de uma tentativa de
preservar um sistema mais antigo.
31 Vide comentários e referências em Eberhard Otto, Amon , LA 1:237-248. Para
Amaunet e observações a respeito de pares, vide Otto, Amaunet , LA 1:1 83 e
Hornung, C onceptions o f God, págs. 83-85.
50 DAVID P. SILVERMAN

ao ar (fig. ] 3) e era pareaclo com Tefnut, associada à umidade32. Antes


que a criação pudesse começar, era necessário que houvesse uma água
primordial. Esta é representada por Nun. Seu consorte, Naunet, simboli­
zava o céu’3. Os céus também podiam estar incorporados na deusa Nut,
que tinha como par o deus ctônico Geb (fig. 13).
Os fenômenos do céu e da terra eram tão básicos para a vida egípcia
que se encontravam associados a muitas outras divindades. Hathor, Bat e
Hórus eram apenas algumas das identificadas com o céu, e Osíns, Aker
e Ptah-Tatenen estavam entre os outros deuses da terra34. O próprio Nilo
não era deificado, mas a inundação anual que tornava o solo fértil, essencial
à economia agrícola do Egito, assumia a forma do deus Hapy (fig. 14)3\
Entretanto, pareceu que determinadas áreas do rio tiveram divindades
protetoras36. A s tempestades provinham do deus Seth, que também repre­
sentava o caos, o mal e a confusão, entre outras características negativas.3/
A deusa M a’at, em muitos aspectos a contrapartida positiva de Seth,
representa a deificação do conceito de ordem, equilíbrio, harmonia, justiça
e verdade38. A escuridão encontrava-se sob a égide de Kuk e Kauket que,
juntamente com Huh e Hauh et, infinitude e ilimitação, eram dois dos
quatro pares conhecidos como Ogdoade de Hermópohs, as oito divindades
primordiais da teologia hermopohtana (fig. 19)w.

,2 Para referências, vide Herman te Velde, “Schu”, LA 5:735-737 e Ursula Verhoeven,


“Tefnut”, LÁ 6:296-304.
33 Sobre essas divindades, vide Reinhard Gneshammer, “Nun”, LA 4:534-535.
34 Para comentários sobre essas divindades e referências a outras fontes a elas relacionadas,
vide os trechos correspondentes a seus nomes em LA.
35 Baines, F ecundity Figures (n. 18), págs. I 15-1 16 e Hornung, C oncepliom o f God,
págs. 77-79.
36 Khnum, por exemplo, era consagrada à área em torno da Primeira Catarata.
37 Vide Herman te Velde, Seth, God o f C onfusion, 2i ed., P À 6 (1977), págs. 99-108.
Te Velde discute de maneira aprofundada todos os aspectos dessa divindade complexa,
inclusive o lado positivo de sua natureza.
iH M aat é o conceito deificado do ideal que permite o funcionamento adequado do mundo.
Vide Wolfgang Helck, “M a’at”, LÁ 3:1 1 10-1 I 19.
39 Vide Reinhard Grieshammer, “Kek, Keket”, LA 3:380, e Hartwig Altenmiiller,
“Heh”, LÁ 2:1082-1084. Os outros pares são (1) Amon e Amaunet e (2) Nun e
Naunet.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 1

19- Grupo em bronze do período tardio representando a ogdoade (oito deuses) hermopoli-
tana, com Thoth. Staatliche Kunstsammlungen Kassel, Rep. Federal da Alemanha. Foto
(neg. A 6508): cortesia da Staatliche Kunstsammlungen Kassel.

Assim como existiam várias divindades na religião do antigo Egito


em associações celestes, também havia muitas relacionadas aos corpos
celestes primordiais. O sol, talvez o elemento mais perceptível, era de
muitas formas o mais vital, como fonte da luz, de calor e regeneração. Rá
era aparentemente a divindade solar mais comum, especialmente nos
períodos anteriores. Ele sofreu um processo de amálgama ou de sincretismo
com outras divindades para formar novos deuses, tais como Rá-Horakhty
(Rá-Hórus dos Dois Horizontes) (fígs. 8 e 31), Rá-Atum e Amon-Rá
(também conhecido como o rei dos deuses) (fig. 20). O sol tinha muitas
5 2 ♦ DAVID P. SILVERMAN

2 0 . Estatueta de Amon-Rá, em
prata folhada a ouro, de aprox.
900 a.C. British Museum, Lon­
dres.

manifestações visíveis. Khepri (fíg. 21) era a forma da órbita do sol, que
surgia ao amanhecer e viajava através do céu durante o dia. De um modo
geral, R á referia-se ao sol do meio-dia, e Atum ao poente. Durante os
seus percursos diurno e noturno através dos céus e do mundo subterrâneo,
a divindade solar era obrigada a enfrentar seu eterno inimigo Apophis, a
serpente40. O disco do sol também era concebido como uma entidade
distinta, chamada Aten, à qual encontram-se referências muito antigas.

40 Morenz, E gyptian R eligion, pägs. 145, 316nn31-32, 168 e 323n 45; Hornung,
C onceptions o f God, pägs. 158-159; Te Velde, Seth, pägs. 99-108.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 3

2 1 . Figura policromada do deus


Khepri, no túmulo da R ainha
Nefertari (19a Dinastia). Vale
das Rainhas, Tebas.

Mais tarde, Aten receberia especial atenção e devoção, e por um breve


espaço de tempo, no século X IV a.C., foi reverenciado como um deus. O
faraó Akhenaten elevou Aten à posição de divindade suprema e essen-
cialmente única na nova religião por ele formada.
A lua também era associada a uma variedade de divindades, sendo
a mais proeminente Thoth, que também era sagrada para Hermópolis,
cidade no médio Egito (fíg. 19)41. Thoth era o escriba dos deuses e o
patrono da profissão de escriba. Outra importante divindade lunar era
Khonsu, membro da família sagrada na tríade de Tebas (fig. 1 1) 42. Dentre

41 Vide Bleeker, Hathor and Thoth (n. 4), págs. 1 14-15.


42 Vide Hellmut Brunner, “Chons”, LA 1:1960-63.
54 DAVID P. SILVERMAN

as divindades esporadicamente associadas à lua estavam Osíris, Mm,


Shu e Khnum43.
Quanto aos demais corpos celestes, somente a estrela Sirius, chamada
Sodpet, e a constelação Orion, chamada Sah, eram consideradas dignas
de reverência. Estas divindades acabaram sendo incorporadas por Isis e
Osíns, respectivamente.
O deserto era uma constante visível no mundo dos antigos egípcios,
porém nunca foi elevado ao status de objeto de culto. A s divindades Ash
e Onuris, entretanto, associavam-se a ele, e Seth, associado a determinados
aspectos do ambiente, às vezes era identificado com o deserto. A montanha
na paisagem da necrópole de Tebas podia ser venerada na forma da deusa-
serpente Meretseger, e árvores específicas do vale, com uma divindade
com a importância de Hathor4445. Cada um desses elementos do ambiente
era, de alguma forma, um ponto de referência para o conceito incorporado
pela divindade, e destinava-se a refletir um determinado traço ou carac­
terística do deus.

Divindades locais e nacionais

O antigo Egito era formado por áreas distintas, cada qual com suas
tradições e costumes específicos. Durante o período faraônico anterior,
estes distritos eram organizados em unidades administrativas denominadas
nomos. Em meados do Antigo Império, já havia vinte e dois nomos
estabelecidos para o Alto Egito (sul). Os nomes do Baixo Egito (norte)
só seriam fixados muito mais tarde, quando chegaram ao número de vinte.
Cada um destes distritos estava associado a divindades específicas e tinha
seus próprios padrões, ao qual se acrescentava freqiientemente a personifi­
cação de uma área específica43. Muitos dos nomos (fig. 22) refletiam
divisões locais anteriores e está claro que os egípcios mais antigos reveren­
ciavam divindades cujas áreas de influência se encontravam originalmente

43 V ide Bleeker, Hathor and Thoth, pägs. I 14-1 17.


44 Ibid., pägs. 34-37; e Hornung, C onceptions o f God, päg. 42.
45 Vide Wolfgang Helck, “G aue”, LÄ 2:385-408.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 5

2 2 . Estátua do rei Menkaure (4a


Dinastia) ladeado por Hathor
(à esquerda) e pela personificação
do sétimo nomo do alto Egito (à
direita), do templo do vale da
pirâmide do rei. Museu do Egito,
Cairo.

limitadas a províncias bastante pequenas. Ao mesmo tempo, parece que


esses mesmos egípcios reconheciam deuses cujas forças transcendiam as
limitações locais46. De qualquer forma, a cada nomo estavam associadas
determinadas divindades locais, e a língua egípcia até tinha um termo
para esse conceito. Njwty, divindade local , e derivado de niwt, cidade.
As divindades eram reverenciadas em templos de culto local.

46 Hornung, C onceptions o f God, págs. 73-74, afirma: “É preciso distinguir claramente


entre as antigas divindades locais, com seus nomes freqüentemente indefinidos e descriti­
vos, e as manifestações locais dos grandes deuses , tais como Amon de Karnak, R á de
Sakhebu ou os diferentes Hórus de cada província . Vide sua discussão nas págs. 70-74.
56 DAVID P. SILVERMAN

De tempos em tempos, uma dessas divindades locais transcendia


seu provincialismo original e adquiria importância nacional. Montu, reve­
renciada no nomo tebano ao fim do Antigo Império, tornou-se proeminente
em todo o Egito durante a 1 1a Dinastia47. Como deus nacional, ele ter­
minaria eclipsado por Amon. Assim como seu predecessor, Amon também
já tinha um culto no nomo tebano mas, diferentemente de Montu, também
era reconhecido como uma divindade primordial, um membro da ogdoade
de Hermópolis. Amon não foi totalmente eclipsado como divindade supre­
ma, mas passou por um processo de sincretismo com Rá, cujo centro de
culto era Heliópolis. A divindade Amon-Rá surgiu, então, como rei dos
deuses, uma posição que manteria durante a maior parte da história egípcia
(fig. 20).
É importante notar, porém, que quando uma área geográfica é
associada a uma divindade de reputação nacional, isso não significa que
aquele deus específico fosse a figura de culto original do lugar. Osíris, por
exemplo, era geralmente conhecido como “Senhor de Abidos”, mas ele
chegou relativamente tarde a esse local. Desde tempos muito antigos aquela
cidade era sagrada a Khenty-Imentyw (“O primeiro entre os ocidentais”),
um deus local que mais tarde foi incorporado por Osíris.
A presença de deuses locais na religião egípcia desde um período
bastante primitivo, e a tradição de costumes locais fortes parecem levar à
conclusão de que os menores distritos geográficos influenciaram de maneira
significativa o desenvolvimento de divindades que terminariam por adquirir
importância nacional, como ocorreu com Montu e Amon. Vê-se, porém,
que certos deuses e deusas apenas tiveram influência em lugares específicos
ao longo da maior parte da história do Egito, mas que parecem ter tido
amplo reconhecimento somente nos primeiros estágios do desenvolvimento
da civilização. Como se vê, havia uma certa fluidez no âmbito das divin­
dades que podia aumentar ou diminuir.
Exemplos do caso mais comum, em que o âmbito se expandia, são
as duas deusas locais associadas às importantes cidades de Nekheb, no
alto Egito, e Buto, no baixo Egito. Elas eram, respectivamente, o abutre
Nekhbet e a serpente Wadjit. Nekhbet e Wadjit tornaram-se divindades

47 Vide J. F. Borghouts, “Month”, LÁ 4:200-204.


O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 7

2 3 . A s deusas Nekhbet (abutre)


eWadjit (serpente) num pendant
do túmulo do rei Tutankhamon
(18a Dinastia). Museu do Egito,
Cairo.

protetoras importantes do alto e do baixo Egito, e representações delas


podem ser encontradas decorando uma variedade de objetos, como coroas,
jóias (fig. 2 3), elementos arquitetônicos e armas.
Neith, contudo, cujo reconhecimento era limitado a Sais, no Delta,
em grande parte da história egípcia tardia, é um exemplo do caso menos
comum, em que o âmbito de importância se reduzia. Antes disso ela tinha
sido conhecida em todo o Egito, prmcipalmente por causa de suas res­
ponsabilidades como protetora das entranhas embalsamadas dos mortos.
Ainda antes, porém, durante o período dinástico antenor e mesmo um
pouco mais tarde, Neith tinha um âmbito de influência muito maior.
Não há dúvidas de que muitas dessas mudanças tiveram implicações
políticas. Seth, um deus que teve importância nacional durante o período
dinástico anterior, mais tarde passou a ser identificado como aquele que
gerava desordem e confusão, e ficou associado a alguns dos elementos
negativos do ambiente. Esses elementos, aprimorados ao longo do tempo,
foram incorporados em um conjunto de natureza extremamente complexa.
Nos períodos anteriores, porém, Seth pode ter sido altamente considerado,
e mais tarde, sob Ramsés, seu nome surgiu como um elemento nos nomes
de vános regentes. Sua natureza passou por muitas mudanças, e ele aparece
em muitas categorias. Essa variedade pode ser vista em sua representação
como o maligno assassino de seu irmão Osíns; como um ajudante efetivo
do deus sol quando este repelia seu arquimimigo, a serpente Apophis,
durante a noite; e também como uma figura complexa, com traços quase
58 DAVID P. SILVERMAN

opostos às qualidades de ordem, equilíbrio e harmonia incorporadas pela


deusa M a’at. Em um dado momento, Seth é o inimigo e hostil tio de
Hórus; em outro, os dois adversários estão reconciliados (fig. 24).
Um deus local em geral não era a única divindade a ser reverenciada
em uma área específica. Os egípcios com freqüência imaginavam as suas
divindades em pequenos grupos. Eles podiam estar em pares, como
acontece em algumas das cosmogonias regionais, porém o mais comum
era pertencerem a agrupamentos familiares, que normalmente consistiam
em pai, mãe e filho. Em Tèbas, a tríade sagrada era composta por Amon,
Mut e Khonsu (fig. 1 1); em Mênfis era formada por Ptah, Sekhmet e
Nefertem (fig. 10), e em Abidos era Osíris, ísis e Elórus. Estes grupos
famihaies, extiemamente comuns no Egito inteiro, frequentemente reuniam
deuses e deusas de diferentes regiões e com significados variáveis. Hathor,
de Dendereh, por exemplo, estava ligada a Hórus, de Edfu. O templo de
Edfu era dedicado a Hórus (fig. 16) e só ele residia ali. Ele costumava
ser retratado com sua consorte, Hathor, de Dendereh. Ela, porém, junto
com seus filhos Ihy e Hórus-Sematawy, residia no templo que lhe era
dedicado, em Dendereh48.
Os cultos de alguns poucos deuses tinham ligações fortes com regiões
específicas, mas também desempenhavam seus papéis na religião nacional.
Thoth, uma divindade associada à escrita, tinha, ao menos durante o
período histórico, um contingente de cultuadores muito numeroso em
Hermópolis. Ele e sua esposa, Seshat, também conhecida, principalmente,
como uma deusa associada à escrita, eram representados nas paredes de
templos no país inteiro (fig. 9). Seus retratos eram especialmente comuns
em cenas de coroação. A deusa Bast(et), representada na forma de um
felino, encontrava-se associada à cidade de Bubastis, na região leste do
Delta, mas também havia referências a ela na região de Mênfis, já no An­
tigo Império49. Aparentemente essa deusa era identificada com Sekhmet

48 Vide Bleeker, Hathor e Thoth, págs. 62-70, 75-79.


Vide Eberhard Otto, Bastet , LÁ, 1:628-30. Bernard V. Bothmer chamou minha
atenção para o fato de que os primeiros hieróglifos em baixo-relevo em grande escala se
encontram numa fachada do Templo do Vale de Khafre. Eles contêm o epíteto “amado
de Bastet”. Em escala menor, há hieróglifos em baixo-relevo em Gizé, nos túmulos das
Rainhas Mersyankh III e Min-khaf, da 4 a Dinastia.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 5 9

2 4 . Hórus (à esquerda) e Seth (à direita) coroando o rei Ramsés III (20 Dinastia).
Grupo de esculturas em granito restauradas. Museu do Egito, Cairo.

(membro da tríade de Mênfis), cuja natureza agressiva era mostrada tanto


em seu nome, que significa “a poderosa , quanto em seu retrato, em forma
de uma leoa (fig. 10). O deus Khnum tinha uma relação de culto
importante com a cidade de Esna, no alto Egito, onde Neith às vezes
aparece como sua esposa. Khnum com freqüência aparece retratado nas
paredes de templos como o deus criador, que moldava o rei a partir da
argila, num torno de ceramista. Nesse papel ele era geralmente associa o
à deusa Heqat, e considerado seu marido. Desde os primórdios, Khnum
também era reverenciado na região de Assuã, e a partir do Novo Império
as deusas Satis e Anuleis foram a ele associadas em uma tríade.
Os crocodilos eram criaturas ubíquas no antigo Egito, identificados
com o deus Sobek (fig. 25), cujo culto tinha seguidores em El Fayum,
bem ao sul em Kom Ombo, e ainda em outras localidades. Embora muitas
das associações entre um deus e uma região tivessem sido estabelecidas
em períodos antigos e pudessem refletir costumes locais originais, também
60 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

25 . Relevo ptolomaico do deus Sobek em uma cena de coroação. O Grande Templo, Kom
Ombo.

é possível que algumas dessas relações tenham se desenvolvido ou sido


concebidas em períodos mais recentes50.

Divindades funerárias

U m dos agrupamentos de divindades mais facilmente reconhecíveis


hoje é o dos deuses da religião mortuária, já que muito do que restou da
cultura egípcia se refere a esse aspecto da sua civilização. Essa categoria
de deuses representa diversas forças. Algumas delas atuam em várias áreas,
enquanto outras encontram-se limitadas às atividades fúnebres.
Tendo em vista os preparativos feitos para o sepultamento no período
pré-dinástico, é de se acreditar que as crenças funerárias existiam no antigo

50 Para comentários sobre essas divindades e referências a outras fontes relativas a elas,
vide os trechos correspondentes a seus nomes em LA.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 61

Egito desde os primórdios de sua civilização. Algumas das divindades


desses grupos mantiveram suas posições e seus relacionamentos ao longo
de toda a história egípcia. Outras, porém, passaram por mudanças. De
acordo com as crenças mais antigas, Anúbis era claramente o regente do
mundo inferior, porém Osíris, uma divindade associada ao Delta, à terra
e à vegetação, acabou por superá-lo nessa função"'. Com Anubis ficavam
as responsabilidades e os rituais do embalsamamento, enquanto o novo
deus se tornou o regente do âmbito dos mortos (fig. 26). As regalias reais
e os títulos de Osíris evidenciavam a sua posição elevada. Uma vez estabe­
lecido seu papel, Osíris manteve sua preeminência ao longo de toda a
história do Egito. Seu grupo familiar incluía a mulher (e irmã) Isis (fig.
27), o irmão Seth (fig. 24), a irmã Nephthys (fig. 28) e o filho Hórus
(fig-29).
Muitos dos mitos em torno de Osíris e sua família refletem-se em
fontes dos períodos primitivos, porém as versões mais completas datam
do Novo Império e vão até o período romano. O mito, em sua forma mais
básica, talvez estivesse baseado em eventos reais. Relata o assassinato de
Osíris por seu irmão Seth. ísis e Nephthys, suas irmãs, conseguem recolher
as partes de seu corpo desmembrado, e ísis, então, faz reviver seu marido/
irmão por tempo suficiente para engravidar dele. Mais tarde ela dá à luz
Hórus. Enquanto ainda é um jovem, Hórus disputa com Seth o direito
de suceder a seu pai no trono. O papel de Seth como irmão mau ganha
maiores dimensões quando se percebe o seu poder sobre as foiças do caos
e da confusão, e a necessidade de colocá-lo (juntamente com essas orças
sob controle, para que o país possa voltar a funcionar. Esse mito evi ente
mente estava relacionado à passagem do poder real no Egito, o araó
moribundo era identificado com Osíris e o novo regente era identificado
com Hórus. . _ .
O âmbito ctônico de Osíris, juntamente com sua associaçao a fer­
tilidade e ao rejuvenescimento, representa um só aspecto da vida após a
morte. Havia também uma esfera solar, governada pelo deus R á ou sua

Osíris era originalmente o deus embalsamado, enquanto Anúbis era o que realizava o
ato de embalsamar. Mais tarde, Osíris, que era identificado com o re. morto tornou-se
o senhor do mundo inferior. Vide J. Gwyn Gnffiths, Osíris , LA 4:623-33.
6 2 ♦ DAVID P. SILVERMAN
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 6 3

2 7 . Pintura retratando o Rei Ramsés III (20a Dinastia) apresentando seu filho Amenherkopeshef
à deusa Isis, no túmulo do príncipe. Vale das Rainhas, Tebas.

forma sincrética, Amon-Rá. No mito associado a esse âmbito, o sol, com


quem o rei é identificado, morre a cada vez que se põe, luta e triunfa sobre
as forças do mal durante as doze horas da noite, e renasce a cada nova
aurora.
A percepção que os egípcios tinham de uma existência eterna dupla
manifesta-se nos dois deuses, Osíris e Rá. O primeiro aspecto estava
relacionado a Osíris e refletia sua existência infinita; o segundo relacionava-
se a R á e refletia o seu rejuvenescimento cíclico .
O conceito de vida após a morte originalmente limitava-se à realeza.
A o longo do tempo, porém, a nobreza e as classes privilegiadas também
passariam a ter esperanças de alcançar o mesmo tipo de existência eterna.
À época do Novo Império esse tipo de acesso estava ao alcance de uma52

52 Edward F. Wente, “Funerary Beliefs of the Ancient Egyptians”, Expedition 24 (Winter


1982): 22-24.
6 4 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

2 8 . Figura da deusa Nephthys,


do Novo Império ou terceiro
período intermediário. British
Museum, Londres.

parcela ainda maior da população. Para qualificar-se a entrar para a vida


eterna, era preciso ter vivido uma vida exemplar na terra, e conhecer os
gestos e ações adequados ao momento de confronto com os deuses e os
semideuses do mundo inferior. Havia, também, diretrizes de comporta­
mento e instruções referentes aos caminhos apropriados que se mostrariam
úteis, e certas palavras tinham de ser recitadas para que se produzissem as
transformações esperadas. Esses encantamentos fúnebres foram coletados,
pnmeiramente, para a realeza, e hoje são conhecidos como Textos das
Pirâmides porque aparecem nas paredes das câmaras internas das pirâ­
mides (fig. 1). A o longo do tempo, essa coleção foi editada e incorporada
a um grupo de encantamentos usados pelas classes superiores. Estes
encantamentos hoje são conhecidos como Textos de Ataúde, já que a
maior parte deles encontrava-se inscrita nas paredes internas de ataúdes
(fig. 3 0 ). Perto da época do advento do Novo Império, uma parcela ainda
maior da população passou a ter acesso à existência eterna quando os
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 6 5

2 9 . Numa barca, uma versão variante dos nove deuses de Heliópolis, seis gerações de
deuses: R á, o criador (à direita), Atum, Shu e Tefnut, Geb e Nut, Osíris e Isis, e Hórus,
o rei (à esquerda). Pintura no túmulo do rei A y (18a Dinastia). V ile dos Reis, Tebas.

encantamentos fúnebres foram novamente editados e suplementados.


Agora conhecidos como Livro dos Mortos, esses textos eram registrados
sobretudo em papiros (fígs. 31 e 32), mas determinados encantamentos
podem ser encontrados em ataúdes, amuletos, paredes de túmulos e está­
tuas. Outras coleções de textos funerários e mitológicos destinavam-se a
explicar mais sobre a vida depois da morte, assim garantindo o seu acesso.
Mesmo com todos esses instrumentos, os antigos egípcios ainda
tinham que provar o seu valor diante de um tribunal que Osíris presidia
como juiz. O peso do coração dos mortos, simbolizando na íntegra a
existência terrena do indivíduo, era comparado com a medida daquilo
que representava a harmonia, a justiça, a ordem e a verdade a deusa
M a a t ou o seu símbolo, uma pena. Thoth, o escriba dos deuses, registrava
o veredito, e uma figura fantástica aguardava por perto, pronta para devorar
aqueles que não fossem considerados justos (fig. 32). Quem fosse julgado
merecedor era recompensado com a imortalidade.
6 6 ♦ DAVID P. SILVERMAN

3 0 . Encantamentos inscritos em colunas nas paredes internas de um ataúde do Médio


Império. Museu do Egito, Cairo.

Freqüentemente, os quatro filhos de Hórus — Imseti, Hapy, Duamutef


(fig. 33) e Kebehsenuef — também estavam presentes ao julgamento.
Sua principal função era proteger os pulmões, o fígado, o estômago e os
intestinos. Os egípcios consideravam esses órgãos internos essenciais para
a vida após a morte, e por esse motivo eles eram mumificados e protegidos.
Quatro deusas — ísis, Nephthys, Selket (fig. 34) e Neith — também
zelavam por esses órgãos.
Muitas outras forças divinas desempenhavam papéis na religião
funerária. Algumas, como Hathor (fig. 6) e Ptah (fig. 33), tinham papéis
mais importantes em outros âmbitos, e sua função funerária era menos
significativa53. O deus Sokar podia funcionar de maneira semelhante à de
Ptah nos demais âmbitos, porém na religião funerária ele acabou passando
por um processo sincrético com Osíris (fig. 6).

53 Vide Herman te Velde, “Ptah”, LÁ 4:1177-80.


O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 6 7

3 1 . Papiro fúnebre em hieróglifos (Livro dos Mortos) pertencente a Neferrenpet (19a


Dinastia). Um babuíno oferece o olho sagrado a Rá-Horakhty enquanto Neferrenpet e
três deuses olham. University Museum, University of Pennsylvania, Filadélfia, E 2775.
Foto (neg. N. 23173): cortesia de University Museum, University of Pennsylvania.

O mundo inferior era personificado pela divindade Aker, sendo


que um dos textos mitológicos é dedicado a ele54. Muitas divindades me­
nores habitavam o mundo inferior. Algumas tinham a forma de animais,
outras, de seres humanos, e outras, ainda, eram híbridas. Algumas dessas
criaturas estavam presentes para atormentar os mortos e tornar difícil a
sua passagem pelo mundo inferior, enquanto outras estavam lá para ajudar
e reconfortá-los.
O conhecimento do que era o mundo inferior e de como se podia
lidar com ele com sucesso estava contido tanto nos textos quanto nas ilustra­
ções que tratavam da religião funerária. Possuir os Textos da Pirâmide, os

54 Sobre o Livro de A ker e outros textos mitológicos relativos ao mundo inferior, vide
Alexandre Piankoff, Egyptian R eligious Texts and R epresentations, vol. 3, M ythological
Papiry, Bollingen Series 40/3 (Nova York: Pantheon, 1957), págs. 3-28.
6 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN

3 2 . Encantamento número 125 e a cena do julgamento do papiro fúnebre em hieróglifos


(Livro dos Mortos) pertencente ao escriba real Ani (19a Dinastia). Estão representados
(da esquerda para a direita) a esposa de A ni, Tutu; A ni; Renenet e Meskhenet; o ba de
A ni; o coração de Ani sendo pesado pelo deus Anúbis contra a pena que simboliza M a’at,
“verdade” ou “ordem”; o deus Thot e Ammut, a devoradora. No alto, doze deuses
testemunham o julgamento. British Museum, Londres, 10470.

Textos de Ataúde, o Livro dos Mortos ou qualquer outro texto fúnebre


ou mitológico ajudava a garantir uma transição bem-sucedida para o outro
mundo e, caso se sobrevivesse aos julgamentos, uma vida eterna, semelhante
à dos deuses.

Deuses domésticos e pessoais

Os egípcios mais primitivos somente tinham acesso limitado aos


deuses do estado nos templos. Durante as festas religiosas, porém, as
pessoas podiam vê-los e abordá-los. Nestes momentos, os sacerdotes
traziam para fora dos templos os receptáculos em forma de barcos nos
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 6 9

3 3 . Pintura retratando o rei Ramsés III (20a Dinastia) apresentando seu filho Amenherkopeshef
à deusji Duamutef, no túmulo do príncipe. Vale das Rainhas, Tebas.

quais as imagens divinas eram abrigadas e os levavam sobre os ombros,


em procissões por suas áreas públicas (fig. 36).
O povo expressava sua devoção pessoal a uma divindade por meio
da aquisição de pequenos amuletos, tabuletas com inscrições votivas e
imagens dos deuses. Ainda assim, parece que desejavam relações mais
próximas a eles, para quem pediam ajuda. Acreditava-se que certos deuses
muito poderosos, como Amon, que era um poder supremo, e Ptah, uma
força na criação, podiam ouvir as preces de indivíduos. Seções especiais
do templo eram reservadas às pessoas que dirigiam súplicas a Am on” ; e
encontramos orelhas esculpidas na superfície de tabuletas com inscrições
votivas dedicadas a Ptah, cujo papel era freqüentemente amalgamado
com o deus Sedjem, personificação da audição.5

55 Vide Lynn H. Holden, “The people’s religion”, in E gypt’s Golden Age: The Art o f
Living in the New K ingdom , 1558-1085 B .C . (Boston: Museum of Fine Arts, 1982),
pags. 296-307.
7 0 ♦ DAVI D R SILVERMAN

3 4 . Imagem de Selket, uma das


quatro deusas que protegiam as
entranhas em balsam adas, no
túmulo do rei Tutankamon (18â
Dinastia). Museu do Egito, Cairo,
60686 .

Algumas profissões tinham divindades específicas como protetores:


Thot era o patrono dos escribas, Ptah (fig. 35), dos artesãos, e Imhotep,
dos médicos. Dentre as muitas outras divindades associadas à medicina
estavam Sekhmet, Selket e Horpa-Khered (em grego, Harpócrates). O
número relativamente grande de deuses ligados à medicina nos dá uma
medida da preocupação dos egípcios com a saúde. Eles escreviam muito
sobre o assunto, e os papiros médicos indicam que várias causas de doenças
e inúmeras receitas para curas encontravam-se associadas a divindades
específicas. A deusa Sekhmet tanto podia causar doenças como dissipá-
las. Selket protegia contra picadas de escorpiões — as criaturas mais
freqüentemente a ela associadas (fig. 34). Horpa-Khered, uma forma do
deus Hórus (hteralmente, Hórus, a Criança), era invocado para curas.
Jogava-se água sobre uma inscrição votiva sobre a qual estava gravada a
sua imagem (fig. 37) e recitava-se o encantamento apropriado. O líquido
ritual, então, adquiria poderes especiais para curar mordidas e picadas
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 7 I

3 5 . Figura do deus Ptah, do tú­


mulo de Tutankamon (18a Di­
nastia). Museu do Egito, Cairo,
60739.

venenosas. A s deusas Taweret (fig. 6), Meskhenet (fig. 32) e o deus Bes
eram chamados para proteger as mulheres no parto e os seus filhos.
Bes, em geral, também era associado a outras situações de proteção, e por
esse motivo aparece como elemento decorativo em móveis e utensílios
domésticos.
Os antigos egípcios produziam estatuetas votivas de muitas divinda­
des para veneração e devoção pessoal. Dentre estas, encontravam-se objetos
em forma de serpentes, que representavam a imagem de Renenutet ou
Meretseger, deusa relacionada à agricultura e à colheita. Múmias de ani­
mais associados a divindades específicas também serviam a fins votivos
(fig. 38) e eram colocadas em nichos no interior de catacumbas sagradas
ao deus representado pela múmia.
Um outro tipo de divindade pertencente à categoria dos deuses
domésticos e pessoais era o indivíduo deificado. Os faraós são um bom
exemplo dessa categoria, especialmente os que viveram durante o Novo
72 ♦ DAVID P. SILVERMAN

3 6 . Pintura representando a barca do deus Amon. Templo do Rei Sety 1 (19a Dinastia),
Abidos.

Império, quando a prática de venerar o regente ainda em vida, tanto em


pessoa quanto por meio de seu culto, tinha se tornado bem reconhecida56.
É claro que, ao morrer, todos os reis eram identificados tanto com Rá
quanto com Osíris, e por isso eram considerados divindades. Cultos
mortuários davam continuidade à veneração de que eram objeto, e con­
servavam seus estabelecimentos fúnebres. Alguns faraós, porém, tornaram-
se tão populares que também eram venerados separadamente e desem­
penhavam o papel de intermediários entre o povo e outras divindades.

56 Para estudos acerca dessa prática religiosa, vide Dietrich Wildung, E gyptian Saints:
Deification in Pharaonic E gypt, Hagop Kevorkian Series on Near Eastern A rt and
Civilization (Nova York: New \ork University Press, 1977); e Lanny Bell, “Aspects
of the Cult of the Deified Tutankhamun”, in M élanges Gamai Edin Mokfitar I, BdE
97/1 (1985) págs. 33-59, notando as referências ali citadas. V ide, também, David R
Silverman, “Royalty in Literature”, in A ncient Egyptian K ingship: N ew Investigations,
ed. David O ’Connor and David R Silverman (Cambridge: Harvard University Press).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 7 3

3 7 . Tabuleta votiva de Metter­


nich, do Período Tardio, com a
figura de Hor-pa-Khered (Har-
pócrates) no centro. Metropoli­
tan Museum of Art, Nova York,
Fletcher Fund, 1950.

Um dos mais populares dentre esses reis era Amenhotep I, que continuou
a ser venerado por séculos depois de sua morte. A o longo de todo o Novo
Império, foram inscritas muitas tabuletas votivas com súplicas a ele
dirigidas, e durante o período de Ramsés seu oráculo era ffeqüentemente
consultado para decisões legais.
Esse tipo de tratamento especial não ficava restrito às figuras reais.
A o longo das diferentes eras, personagens que adquiriam grande destaque
e alto nível de reconhecimento em suas profissões eram deificadas, e
7 4 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

3 8 . Falcão mumificado, associado ao deus Hórus. Museu do Egito, Cairo.

seguidores de seus cultos surgiam em função disso. Alguns desses indivíduos


foram honrados com esculturas votivas e relevos, esculpidos com suas ima­
gens ou a eles dedicados, e alguns chegavam até mesmo a ser venerados em
templos. Durante o Antigo Império, Imhotep, o arquiteto do complexo
funerário do rei Djoser em Saqqara, foi primeiramente considerado um
grande sábio, depois, filho de Ptah e, finalmente, um deus associado à
medicina. Durante o Médio Império, uma capela foi construída na Ilha
Elefantina para o culto e a honra do monarca Heqaib, tanto durante a
sua vida como depois de sua morte. Amenhotep, filho de Hapu, um alto
oficial extremamente competente sob Amenhotep III, no século X IV a.C.,
ganhou um culto em lebas poucas gerações depois de sua morte. Era
especialmente importante em relação à medicina57.

Deuses estrangeiros

O panteão egípcio incluía algumas divindades de origem claramente


estrangeira: deuses que tinham nomes não-egípcios, cujos cultos originais
se deram fora dos limites do Egito, e com uma presença histórica em um
país estrangeiro. Eles eram freqüentemente identificados com os deuses
próprios do Egito, porém continuavam a manter a sua origem não-egípcia.

57 Vide Dietrich Wildung, “Imhotep”, LA 3:145-48, e seu Im hotep und A menhotep:


Cottwerdung im alten A gypten, M A S 36 (Munique e Berlim: Deutscher Kunstverlag,
1977), págs. 5-250. Para observações adicionais a respeito de Amenhotep, filho de
Hapu, vide W ildung Im hotep und A menhotep, págs. 201-297, e Wolfgang Helck,
“Amenophis”, LA 1:219-21. Para observações a respeito de Heqaib, vide Labib
Habachi, “Heqaib”, LÀ, 2:1 120-22.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 7 5

Os melhores exemplos provêm do período do Novo Império e incluem os


deuses Baal e Resheph, e as deusas Anath e Astarte, todos de Ugant e
Canaã. Baal era freqüentemente relacionado a Seth. Um título ou outro
atributo nos dão indicações acerca da origem de outras divindades em
territórios fora do Egito. Dedwen, cujo nome aparece pela primeira vez
nos textos das pirâmides, era mencionada ocasionalmente ao longo a
história do Egito, mas suas raízes podem estar mais ao sul, na Nu ia.
deus Ash, que aparece com certa regularidade no Egito, tam émpo e
ter-se originado no sul, pois freqüentemente era chamado de Sen or a
Núbia”38. Uma vez introduzidas, essas divindades permaneceram como
parte integrante do panteão egípcio. Um título que apresente o nome e
uma localização estrangeira não é prova definitiva de origem estrangeira.
Muitos deuses e deusas egípcios adquiriram epítetos que se referiam a
áreas que se encontravam além das fronteiras de seu próprio país. at or,
por exemplo, claramente uma deusa egípcia, po ia s e r c a,’ia a e
“Senhora de Biblos". Títulos indicando a soberan.a de divmdades sobre
territórios estrangeiros não parecem demonstrar nada além do chauvrmsmo
e do imperialismo dos egípcios, e a capacdade que Unham os seus deuses
de serem transportados de um lugar para outro.
Os antigos egípcios estavam bem conscientes das distinções entre
essas classes de divindades, e era bem apropriado para eles dedicar atenção
a uma variedade de deuses, de acordo com o que cada ocasiao pedia.
Além disso, eles veneravam os deuses do estado, e participavam das festas
e dos serviços abertos ao público nos templos.

R E A L E Z A E D IV IN D A D E

Nos tempos modernos, os antigos faraós freqüentemente têm sido


caracterizados como deuses na terra. Este tipo de descrição implica uma58

58 Para rW m sões a respeito desses deuses estrangeiros, vide as seguintes referências em


LÃ* R ainer Stadelmann, “B aal”, 1:590-591; W illiam Kelly Simpson, “Reschef”,
5:244-246; Jean Leclant, “Astarte”, 1:499-509; Leclant, “A nal”, 1:253-258; Eberhard
Otto, “Asch”, 1:459-460; Wolfgang Helck, “Göter, fremde in Ägypten , 2:643.
76 DAVID P. SILVERMAN

distinção clara entre o senhor e seus súditos, mas não aborda a questão da
mortalidade inerente do monarca, nem indica os limites ou a extensão do
que era percebido como a natureza divina do rei. A percepção de rei dos
antigos egípcios, implícita em várias referências de textos e de artefatos,
não era estática. Passou por mudanças ao longo dos mais de três mil anos
de história do Egito59.
Desde os tempos mais antigos, o epíteto netjer (ntr) referia-se direta­
mente ao rei como um deus. A s vezes, o termo aparecia isoladamente, e
outras com palavras que o modificavam ou descreviam. Outro epíteto
antigo referia-se ao rei como descendente de um deus — s ’R\ “filho de
R á”. Mais tarde os egípcios desenvolveram outros termos, tais como tjt,
“imagem” de um deus, e pr'\ O último, uma expressão que significa “grande
casa” e se refere ao palácio60, era uma abstração que atribuía uma natureza
corporativa ao rei, da mesma forma que “Casa Branca” pode denotar o
presidente dos Estados Unidos. Fazia-se, também, referência ao rei como
“igual” (mj) a uma divindade. Normalmente todos esses epítetos reais
eram usados em tipos específicos de documentos.
Em todos os materiais escritos, os nomes dos reis recebiam tratamento
diferente tanto dos nomes de seus súditos quanto dos nomes dos deuses.
As designações pessoais e de trono da realeza eram, normalmente, os
únicos nomes rodeados por adornos. Apesar de haver exceções isoladas,
essa regra foi seguida de maneira geral ao longo de toda a história egípcia,
exceto durante o reino de Akhenaten, quando o nome do divino Aten
sempre aparecia em meio a adornos. E interessante notar que um dos
designativos de Akhenaten, Waenre, podia ser escrito sem ornamentos
nessa época.

59 Há referências a muitos estudos sobre a realeza e sua natureza, juntamente com comentá­
rios sobre o assunto, em Jürgen von Beckerath, “König”, LA 3:461; e Hellmut Brunner,
“König-Gott-Verhältnis”, LA 3:461-464. Vide, também, Henri Frankfort, K ingship
and the Cods: A Study o f Ancient Near Eastern R eligion as the Integration o f S ociety
and Nature (Chicago: University of Chicago Press, 1948); Georges Posener, De la
divinilé du pharaon , Cahiers da la Société Asiatique 15 (Paris: Imprimerie Nationale,
1960); Ramses Moftah, Studien zum ägiptischen K ünigsdogm a im N euen R eich ,
SDAIK 20 (1985) e Ancient Egyptian Kingship, ed. O ’Connor e Silverman.
1,0 Vide Ogden Goelet, “Two Aspects of the Royal Palace in the Egyptian Old Kingdom”
(Dissertação de doutorado, Columbia University, 1982).
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 77

Ao contrário das divindades tradicionais, o soberano terrestre tinha


a obrigação de observar jubileus de revivificação para garantir a fertili­
dade da terra61. Assim como uma pessoa comum, o rei precisava de um
túmulo para garantir a sua vida após a morte. Normalmente os deuses
não tinham túmulos62. Eles podiam envelhecer, mas sua morte raramente
era registrada63.
O desenvolvimento do culto do rei vivo somava-se à complexidade
do conceito de divindade da realeza, que essencialmente tratava o rei
como um deus, enquanto ele ainda vivesse.
Antes da ascensão de um monarca ao trono, seus súditos acompa­
nhavam seu crescimento e amadurecimento e, por isso, estavam cientes de
sua origem humana. Ele podia ser um dos muitos filhos nascidos do faraó
e de sua esposa principal. Na ausência desse herdeiro, o monarca poderia
ser o filho de alguma esposa secundária, como o eram Thutmose IV e,
talvez, até mesmo Tutankhamon. Na verdade, na ausência de um sucessor
mais direto, um parente mais distante podia tornar-se faraó. As vezes, a
relação entre um rei e o seu sucessor não é clara. O sucessor de Tutan-
kamon, Ay, era um conselheiro de confiança e mentor da família real,
mas talvez não fosse um parente próximo. Se não houvesse sobreviventes
na família real, uma nova linhagem começava com uma pessoa cujas raízes
não fossem reais, como Amenemhat I, da 12a Dinastia, e Ramsés I, da
19' Dinastia. Não há dúvidas de que as conspirações reais também eram
parte da história egípcia, com facções apoiando um candidato em vez de
outro e, às vezes, jogando sujo. A população certamente estava ciente de
situações desse tipo64. A extensão da literatura propagandística, que cha­
mava a atenção para o direito de um faraó ao trono, é uma evidência
implícita de que o povo não estava totalmente inconsciente da origem
humana de seu soberano.

61 A exceção a essa regra durante o período Aniarna será discutida a seguir.


<l2 Mas vide The Blinding of Truth by Falsehood, LAE 127, 131.
63 Silverman, in R eligion and P hilosophy, ed. Simpson, págs. 39-40, e vide as referências
ali apresentadas.
64 C onspirações de harém ocorreram no antigo E gito. V id e M anfred W eber,
“Harimsverschwõrung”, LA 2 :9 8 7 -9 9 1. Assassinatos também não eram desconhecidos.
Vide Jürgen von Beckeralh, “Konigsmord”, LA 3:533.
7 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN

A maior parte dos egípcios ao fim da 18à Dinastia, porém, não


tinha acesso ao túmulo do general que se tornaria o último rei dessa dinastia
— Horemhab. Eles não podiam ver as provas de suas origens humanas
na decoração de seu templo em Mênfis nem tentar alterá-las, de forma
que o homem ali enterrado aparecesse como uma figura real. E claro que
muita gente — em especial os artesãos envolvidos — sabia que Horemhab
mandou inscrever as insígnias reais sobre todas as suas imagens depois de
tornar-se faraó, de maneira a refletir seu novo status. E muitos outros
indivíduos ficaram sabendo da situação quando Horemhab acabou por
mandar construir um novo túmulo, na tradição real, na margem ocidental
de Tebas, no \41e dos Reis, e também quando ele começou seus projetos
de construção em larga escala na margem oriental, na área dos templos de
Karnak e Luxor.
O faraó Ramsés II, que teve uma vida muito longa, mandou construir
monumentos colossais em todo o Egito, nos quais ele instalou muitas
imagens em grande escala de si mesmo, aparentemente como uma maneira
de atestar a sua divindade. Ele chegou até mesmo a estabelecer um culto
que o reverenciava enquanto ainda estava vivo (fig. 39). A estatura desses
testemunhos grandiosos, porém, parece reduzir-se quando se nota que
uma carta escrita durante o reinado desse faraó aparentemente se referia
a ele simplesmente como “o general”65.
A rainha Hatshepsut mandou retratar seu nascimento divino nas
paredes de seu templo mortuário em Deir el-Bahri (fig. 40), mas na parede
de uma gruta próxima políticos satíricos defendiam um ponto de vista
diverso: lá ela foi desenhada numa situação que nada tem de real, desempe­
nhando o papel passivo num ato sexual66.
Essa perspectiva dual, divina e humana, dos reis não é tão evidente
quando se trata dos deuses. Enquanto o comportamento e as atividades
dos deuses tendiam a humamzar-se, eles não passavam por qualquer tipo

bl Vide Jac. J. Janssen, “Nine Letters from the Time of Ramses II”, OM RO 4 1 (1 9 6 0 ):
31-47.
66 David P Silverman, “Wit and Humor”, in E gypt’s Golden Age, pág. 278. Vide também
Edward F. Wente, “Some Graffiti from the Reign of Hatshepsut”, JNES 43 (1984):
52-54 e as referências ali contidas.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO 79
8 0 ♦ DAVID P. SILVERMAN

39 . Ramsès II, o rei vivo (19a Dinastia), representado como um deus, e a divindade Rá-
Horakhty, retratada em escala diminuta em meio às quatro esculturas colossais. O Grande
Templo, Abu Simbel, onde o culto do rei vivo era praticado.

de metamorfose de uma esfera para outra, permanecendo constantemente


divinos. O rei, por contraste, ora parecia possuir aspectos humanos,
ora divinos. Sua origem era claramente humana, porém ele tinha capa­
cidade de atuar em ambos os mundos. Os deuses pertenciam a um mundo
invisível, habitado somente pelo divino. Normalmente eles não apareciam
na terra, exceto em suas representações como figuras bi ou tridimensionais,
em relevos ou esculturas. O rei operava na terra como um indivíduo ativo
em meio à humanidade.
Os reis tinham de conquistar a própria humanidade, enquanto os
deuses tinham a imortalidade como característica inerente. A s vitórias do
rei nas batalhas eram-lhe concedidas pelas divindades depois das oferendas
e preces apropriadas. O monarca tinha de manter m a a t e indicar que
estava agindo da forma apropriada. Tanto na arte quanto nos textos oficiais,
o monarca era representado como aquele que apresentava m a a t aos deuses
para que eles pudessem viver dela.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 81

4CÇ1

4 0. Vista do complexo de templos mortuários dos monarcas Hatshepsut e Thutmose III


(18a Dinastia) e Nebhepetre Mentuhotep (XI Dinastia). Deir el-Bahri, Tebas ocidental.

A visão do rei expressa nos textos literários pode ser bastante diversa,
pois muitos deles tiveram origem em lendas populares e tradições orais.
Em Khufu e os Magos, o faraó é um tirano intolerante que aparece em
contraste com um sábio benevolente. Poderes sobrenaturais parecem estar
mais ao alcance do sábio do que do faraó67. No “Conto do Príncipe
Condenado” o faraó é um pai incompetente, incapaz de proteger seu
filho de seu destino68. No “Conto dos dois Irmãos”, o regente é uma
figura relativamente secundária, e sua influência sobre a ação é mínima69.
Existe um manuscrito que relata que o emissário do rei (um reflexo do
rei) foi tratado de maneira pouco condigna. No “Relato de Wenamun”,

67 Para a tradução de Simpson desta parte do papiro Westcar, vide LAE 15-30,
especialmente 22-24.
68 Para a tradução de Wente desta história, vide LAE 85-91, especialmente 86.
69 Para a tradução de Wente desta história, vide LAE 92-107, especialmente 101-107.
82 DAVID P. SILVERMAN

que muitos estudiosos acreditam ser fatual ao invés de literário, as refe­


rências ao próprio monarca, assim como a seu agente, estão longe de ser
respeitosas70. Essas imagens de regentes certamente estavam em conflito
com as representações em paredes de templos, com descrições em textos
religiosos e com os conceitos inerentes à arquitetura monumental e à
escultura, mas bem podem refletir os sentimentos reais do povo.
Surge uma questão inevitável: como podiam os antigos egípcios racio­
nalizar essa aparente dicotomia entre o humano e o divino em seus regentes?
Talvez isto não fosse um conflito para eles. Pode ser que tenham concebido
o rei como um ser que participava simultaneamente dos dois âmbitos.
Esta forma de pensar pode ser paralela à sua compreensão da dualidade
implícita em seu mundo — Alto Egito e Baixo Egito (os dois países que
compunham o Egito), equilíbrio e caos, luz e sombra, o solar e o ctônico,
e uma miríade de outros pares de opostos. Um indivíduo moderno pode
ver esses elementos como conflitantes, mas um morador do antigo Egito
era capaz de vê-los como elementos de um complexo funcional. Um regente
visto simultaneamente como humano e divino era o ser mais adequado
para interceder entre os mundos divino e humano. O rei atuava como o
sumo sacerdote de cada um dos deuses, fazendo oferendas diretamente
para cada uma das divindades. Assim, ele estava entre o deus e a huma­
nidade. Devido a essa percepção da fluidez entre os elementos humano e
divino na natureza de um rei, não era difícil para os egípcios desenvolver
variações e adições a seu conceito de realeza. No início do Novo Império,
a deifícação do rei vivo já tinha se tornado uma prática estabelecida, e o
próprio rei vivo podia ser venerado e cultuado, recebendo súplicas por
ajuda como se fosse um deus.
Em diferentes períodos de tempo e em distintos gêneros de textos,
podia-se fazer referências aos reis por meio de uma variedade de termos.
Algumas inscrições do Antigo Império mostram o rei como um deus.
Outras inscrições o chamam de “bom deus”, e em uma delas lê-se que o
entendimento lhe foi concedido por deus quando ele ainda se encontrava
no ventre materno, porque ele era mais nobre do que qualquer outra

711 Para a tradução de Wente desta história, vide LAE 142-155.


O DIVINO E AS DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 8 3

divindade71. Ao longo de todo o Antigo Império, dizia-se que o rei tinha


os poderes dos deuses: Hu (a palavra divina), Sia (o conhecimento divino)
e Heka (a energia divina e o conhecimento da mágica). O uso que um rei
fazia do epíteto “filho de R á ” e, mais tarde, “imagem de R á ” tendia a
enfatizar sua divindade. A importância concedida ao rei vivo e a suas
ações durante o Antigo Império era tão grande que as referências a ele e
a seu remo eram freqüentemente registradas nos túmulos de particulares
que tinham sido diretamente afetados por ele. Harkhuf considerava a
carta que recebera do memno-rei Pepi II tão significativa que mandou
inscrever uma cópia dela nas paredes de seu túmulo72. O oficial Rawer
registrou um acontecimento no tribunal em que o bastão do rei entrou em
contato com ele73. Os indivíduos orgulhavam-se de eventos relacionados à
realeza e os consideravam como indicações de seu contato real com o
regente e de sua própria importância.
A s representações do faraó pertencentes à parte final do Médio
Império, entretanto, não apresentavam a postura impei íal e altiva que as
imagens reais tinham no Antigo Império. A expressão do rei era mais
humana (fig. 41), talvez mais característica de seu elemento mortal74.
Porém um hino a Senwosret III, um dos regentes desse período, o identi­
ficava com numerosas divindades75. Além disso, alguns textos autobiográ­
ficos referiam-se ao soberano como o deus criador76. Independentemente

71 Para o texto hieroglífico, vide Kurt Sethe, Urkunden des Alten R eiches, Urk. 1 (Leipzig:
Hinrichs, 1903), 1:39, 13 -16, e para a tradução vide Alessandro Roccati, La littérature
historique sous l'Ancien Empire épyptien. Littératures Anciennes du Proche-Orient
(Paris: Cerf, 1982), págs. 96-98.
72 Para o texto em hieróglifos, vide Sethe, Urkunden des Alten R eiches, 1:128-131, e
para a tradução, vide A EL 1:26-27.
73 Para o texto em hieróglifos, vide Sethe, Urkunden des Alten R eiches, 1:232, 5-8 e para
a tradução, vide Eric 1foret. Lhe Narrative Vcrhal System o f L)ld and Ahddlc Egyptian,
Cahiers d’Orientalisme 12 (Genebra: P. Cramer, 1986), pág. 61, ex. 95.
74 Dietrich Wildung, em uma conferência em Denver em 1988 intitulada “Royalty in
A rt”(Realeza na A rte), observou que esse estilo pode ter surgido no setor não-real.
75 AEL 1:198-201.
76 Vide por exemplo a observação de Khnumhotep de que o regente aparece como o
próprio Atum. Para o texto, vide Adriaan de Buck, Egyptian R eadinghook (Leiden:
Nederlands Instituut vóór het Nabije Oosten, 1963), pág. 68, II. 9-10.
8 4 ♦ DAVID P. SILVERMAN

4 1 . Cabeça de uma estátua do


rei Senwosret III ( 12a Dinastia).
Museu do Egito, Cairo, 486.

de um possível motivo propagandístico para essas inscrições, sua existência


indica que o conceito de divindade do rei estava presente nesse período.
O faraó era, com freqüência, descrito como alguém que agia como
um deus específico ou como semelhante a uma divindade específica. Essas
identidades passaram a ser usadas em associação a muitas divindades, de
maneira a ligar o faraó ao panteão virtualmente por inteiro. Além disso,
durante o Novo Império, parece ter havido um esforço consciente, tanto
em textos como em cenas, para igualar o rei com as forças do mundo
divino. Seja qual for a descrição adequada desse fenômeno, “identificação
com o deus”, “encarnação do deus” ou “manifestação do deus”, torna-se
claro que o rei tinha um aspecto mortal ao qual estava inextricavelmente
ligado um elemento do divino77.
Muitos estudos acerca da extensão da divindade do faraó chegaram
a conclusões divergentes78. Embora as forças e habilidades reais talvez
não fossem iguais às forças divinas, o rei costumava aparecer como um

77 Hornung, Conceptions o f God, págs. 139, 141, onde ele sugere “encarnação”.
78 Vide as referências na nota 59 e em Hornung, Conceptions ofGod, págs. 141 -42nn 116-20.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 8 5

membro da organização divina, e era freqüentemente considerado como


tal. Diferentemente dos deuses, porém, ele estava mtimamente ligado a
seus súditos humanos, tendo nascido entre eles. Seu lugar era entre a
sociedade dos humanos e a sociedade dos deuses. Ele era um elemento
integrante de ambos. Sem ele nenhum dos dois âmbitos poderia funcionar
e o universo terminaria. O papel do rei era um elemento fixo no padrão
da ordem divina e, por esse motivo, sua existência era parte de ma at. Por
meio de sua posição, o monarca conservava ma at e oferecia ma'at aos
deuses. Quando o rei regia, um equilíbrio adequado era mantido, permi­
tindo a permanência do universo ordenado. Por esse motivo, o rei era
essencial à manutenção da ordem do mundo.
Talvez seja possível entender melhor os aspectos humano e divino
do rei se considerarmos que os antigos egípcios viam em seu regente tanto
um ser quanto um cargo — o primeiro originalmente mortal, o segundo
sempre divino. Quando os dois se amalgamaram, começou a divindade
da realeza. Esses dois componentes originais permanecem reconhecíveis,
mnda que a distinção entre eles seja mais clara em alguns períodos do que
em outros. A dicotomia entre os dois fica evidente nos textos. Nas inscrições
biográficas do Antigo Império, quando se faz referência ao rei — seja ele
mesmo, sejam outros — , o termo usado é hm, majestade (fig. 42a). Esta
palavra se refere à encarnação viva do rei, ou seja, à sua pessoa, e não
ocorre em inscrições fúnebres reais, como os Textos das Pirâmides. Uma
outra expressão, “Rei do Alto e do Baixo Egito (nswt bjtj [fig. 42b]) —
ou simplesmente “rei” (nsiút) — parece referir-se ao regente quando ele
agia na capacidade de seu cargoA Os súditos não podiam referir-se ao rei
diretamente como “Rei do Alto e Baixo Egito ; eles primeiro tinham que
usar o termo hm, “majestade”, ou encarnação viva”. Decretos de caráter
legal, administrativo e econômico que eram promulgados oficialmente o
designavam como “Rei do Alto e Baixo Egito”. Os indivíduos podiam
prestar juramentos em nome do “rei” (nswt) ou em nome de um deus*80.

/VPara um estudo que documenta esses termos e as distinções entre eles, vide Hans
Goedicke, Die Stellung des Königs im Alten Reich, Ä gAbh 2 (1960).
811 Sobre juramentos, vide John A . Wilson, The Oath in Ancient Egypt”, JNES 7
(1948): 129-156.
8 6 ♦ DAVID P. SILVERMAN

Desta flexibilidade depreende-se que os egípcios consideravam semelhantes


o cargo divino de rei e o status de divindade, o que não deveria parecer
uma surpresa.
Henri Frankfort acreditava que a iniciação de um novo faraó aos
ritos de sucessão o identificava com os deusesHl. Uma vez ocupando sua
nova posição, o rei reviveria a sucessão de Hórus depois da morte de seu
pai, Osíris. O rei vivo identificava-se com Hórus, o falcão, enquanto o rei
morto era identificado com Osíris (e R ã). O falcão já aparecia como
símbolo da realeza no início do período dinástico. Freqüentemente ele era
representado empoleirado sobre um serekh, um desenho arquitetônico que
representava o palácio. Em um espaço retangular entre o falcão Hórus e
o serekh figurava o nome do rei (fig. 43). Este motivo, que continuou em
uso ao longo da maior parte da história egípcia, combinava o nome do rei,
o palácio e o deus Hórus. Em esculturas reais, encontramos a mesma
divindade com as suas asas protetoras em torno da cabeça do rei sobre o
trono; por exemplo, Khafre da 4a Dinastia (fig. 44). E também Hórus
que aparece sobre a imagem sentada do rei Pepi I da 4a Dinastia. Por trás
pode-se ver que Hórus está sobre um serekh, que forma a parte posterior
do trono. O mesmo conceito continuou valendo durante o período dos
Ramsés, quando Hórus passou a ser parte integrante dos ornamentos de
cabeça nas imagens do rei, com suas asas abertas envolvendo a coroa.
Todas essas representações evidenciam que o rei era visto como Hórus no
palácio. Na sucessão e coroação do faraó, ele recriava o mito (do qual há
partes registradas já nos Textos das Pirâmides) de Hórus ascendendo,
por direito, ao trono de seu pai morto. Nessa ocasião o rei recebia as
coroas dos Dois Reinos e se tornava um rei divino, reunindo o seu ser ao
do divino Hórus.
Quando o novo faraó assumia sua posição, passava a transcender o
tempo mortal. Ele se tornava o rei que sempre fora e sempre seria. Ele
não só passava a ser identificado com Hórus, mas também era associado
aos deuses criadores oniscientes que tinham estabelecido a ordem original
a partir do caos nos tempos primordiais — Atum, Ptah, Rá e todas as81

81 Frankfort, Kingship and the Cods , págs. 123-39.


O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 8 7

42. Os termos (a) hm e (b) nswt bjtj escritos


em forma de hieróglifos. Desenhos de Jenmfer
Houser.

demais divindades cosmogômcas (fig. 29). É, provavelmente, por esse


motivo que o novo rei era retratado ou descrito oferecendo m a a t aos
deuses criadores. Assim como eles, ele tinha estabelecido a ordem do
mundo, um papel que é representado de maneira recorrente em cenas de
templo, bem como na literatura ritual.
A fim de estabelecer as suas credenciais, o faraó mandava compor
textos de restauração. Nessas inscrições ele afirmava que o país estivera
ern desordem antes da sua ascensão ao trono, e que ele restaurara o seu
equilíbrio original. No caso de Tutankhamon, o rei que conduziu o país
de volta à ortodoxia depois da heresia de Amarna (fig. 45), os textos
efetivamente acompanharam um período de turbulência verdadeira. Vale
o mesmo para as inscrições de regentes que deram início a novas dinastias
depois de períodos intermediários caóticos. Mais frequentemente, porém,
esses textos eram de caráter simbólico e não histórico-descritivo. Hatshepsut
tentou emprestar autenticidade a seu pedido de restauração relacionando-
o a um acontecimento histórico real e inscrevendo-o na arquitrave de um
templo dedicado à deusa Pakhet no Speos Arteidos, no Médio Egito.
Ali ela se referia à restauração do país depois da destruição e devastação
causadas pelos hicsos e fazia alusões a seus esforços para eliminar a abomi­
nação de seu deus. E possível que sua alegação fosse totalmente hiperbólica,
chegando às margens do plágio? Na realidade, os hicsos foram conquis­
tados pelo faraó Ahmose mais de setenta anos antes. De uma perspectiva
do antigo Egito, a afirmativa de Hatshepsut era apropriada, já que, uma
vez conduzida através dos ritos de sucessão, ela era, em termos simbólicos,
a única representante da realeza que jamais existira. Esse conceito talvez
estivesse subjacente ao costume real nada incomum de “tomar emprestadas”
as conquistas, estátuas e monumentos dos predecessores, deles aproprian­
do-se. Refazer as inscrições nas estátuas de um monarca anterior para
8 8 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

4 3 . T ab u leta votiva do rei


Semerkhet ( I a Dinastia), sobre
a qual está esculpido em baixo-
relevo um serekh, com o falcão
Hórus no alto. Museu do Egito,
Cairo.

refletir as características e os títulos do novo regente não era considerado


um ato de sacrilégio, já que a estátua representava o cargo do rei tanto
quanto sua pessoa.
A ascensão e coroação do rei e os rituais e textos envolvidos garantiam
e corroboravam a sua divindade, mas também é possível encontrar a idéia
de sua divindade implícita em textos religiosos. Já nos chamados Textos
de Ataúde, pode-se encontrar indicações de que o divino planejava o
poder do rei antes mesmo de seu nascimento. Textos de caráter “profético”,
ainda que invariavelmente registrados depois dos fatos e, portanto, de
intenção sempre propagandística, afirmavam que um ser divino tinha
sugerido, ou sancionado, de alguma outra forma, a escolha do sucessor. O
nascimento divino do rei era ilustrado nas paredes dos templos do Novo
Império e, mais tarde, também nas paredes de casas onde nasciam crianças.
O conceito do nascimento divino de um indivíduo somente se tornava
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 8 9

44 . Estátua do Rei Khafre (4a


Dinastia), com as asas do Fal­
cão Hórus envolvendo sua ca­
beça. Museu do Egito, Cairo.

válido a partir do momento em que ele se tornasse Rei do Alto e do


Baixo Egito”. Ele não podia alegar nascimento divino antes de sua
coroação. Só então ele passava a possuir natureza divina8
Enquanto os ritos de coroação podiam alterar o status do indivíduo
que estava para tornar-se faraó (ao menos em termos das imagens usadas
em textos e nas artes), aos olhos do povo os ritos não transformavam
completamente o mortal num ser divino. Alguns estudiosos até mesmo
questionam a opinião de Frankfort sobre até que ponto o rei era considerado
divino8283. Depois de uma análise muito cuidadosa das referências textuais

82 Sobre o papel do divino kfl na divindade do faraó, vide Lanny Bell, “Luxor Temple
and the Cult of the Royal K a ”,JNES 44 (1985): 251-294; e David R Silvermanm
“Royalty in Literature”, in Ancient Egyptian Kingship, ed. O ’Connor and Silverman.
83 Vide a discussão e as referências em Silverman, “Royalty in Literature”.
9 0 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

4 5 . Máscara dourada colocada


sobre a múmia do rei Tutanka-
mon ( 18a Dinastia) com uma co­
bra e uma cabeça de abutre pro­
tetoras esculpidas em seu adorno
de cabeça. M useu do Egito,
Cairo, 60672.

ao rei, Georges Posener considera que havia limites estritos à divindade


do rei, e nota as distinções que existem claramente nas referências ao rei e
aos deuses84.
A divindade do rei morto é um conceito muito menos controvertido
do que a divindade do rei vivo. O culto do regente morto é amplamente
atestado desde os períodos mais primitivos, e continuou ao longo de toda
a história egípcia. Os textos religiosos mais antigos oferecem numerosas
referências à identificação do rei morto com uma variedade de deuses.
Nas palavras dos Textos das Pirâmides, o rei é associado especialmente a

84 Posener, in De la divinité du pharaon , págs. 1-14, examina as referências à natureza do


regente em diversas fontes. Ele nota a extensão da dependência que a realeza tinha dos
deuses, págs. 23-35, e o número limitado de atos sobrenaturais realizados pelo rei,
págs. 47-76.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO 91

Osíns e Rá, mas outros deuses também são mencionados. Osíris e Rá


são presenças recorrentes na literatura e iconografia mortuárias reais. Estas
duas divindades simbolizam os dois aspectos distintos da religião funerána,
o ctônico (Osíris) e o solar (R á), e refletem as duas medidas da eternidade
— a ressurreição, que conduz à mfinitude linear (Osíris), e o renascimento
diário cíclico (R á). Ao morrer, o rei tornava-se um com essas divindades83.
As figuras reais não eram as únicas que podiam receber o benefício
da associação divina após a morte. Depois da compilação dos Textos de
Ataúde, provavelmente já no final do Antigo Império, seus encantamentos
fúnebres encontravam-se à disposição da alta nobreza8586. A coleção incluía
muitos encantamentos que tratavam de transformações e identificações
divinas. Algumas delas eram versões editadas de encantamentos mais anti­
gos, e outras eram composições originais. Por meio desses encantamentos,
outros indivíduos além dos reis podiam aspirar a uma vida divina após a
morte. Um passo a mais na democratização da religião fúnebre ocorreu
no Novo Império, com o aparecimento de um grupo de encantamentos
boje chamado de Livro dos Mortos. Esses encantamentos foram inscritos
e ilustrados em papiros (figs. 31 e 32), um processo que demandava menos
tempo do que o elaborado trabalho de esculpir e pintar o interior dos ataú­
des que continham os Textos de Ataúde. Dessa forma, o Livio dos Mortos
era menos caro e mais amplamente disponível. A um certo momento,
textos mitológicos que detalhavam outros mistenos do mundo inferior,
origmalmente disponíveis apenas para a realeza, passaram a se tomar

85 Sobre esses conceitos, vide Wente, Expedition 24 (Winter 1982). 22-24.


86 Vide as descobertas descritas por Michel Valoggia em Le mastaba de M edou-nefer ,
Balat 1, Fouilles de l’Institut français d’Archéologie orientale 31/1 (Cairo: Imprimerie
de l’Institut français d’Archéologie orientale, 1986). A s evidências sugerem que os
Textos de Ataúde talvez já fossem usados antes do primeiro período intermediário. Vide
também Jorgen Podemann Sorensen, “Divine Access: The So-called Democratization
of Egyptian Funerary Literature as a Sociocultural Process”, in The Religion o f the
Ancient Egyptians: Cognitive Structures and Popular Expressions , Proceedings of
Symposia in Uppsala and Bergen 1987 e 1988, ed. Gertie Englund, A cta Universitatis
Upsaliensis: Boreas 20 (Uppsala, 1989), págs. 109-128 e Ragnhild Bjerre Finnestad,
“The Pharaoh and the ‘Democratization’ of Post-mortem Life”, no mesmo volume,
págs. 89-94.
92 DAVID P. SILVERMAN

acessíveis a um público mais amplo. Além disso, os cidadãos começaram


a apropriar-se de outras prerrogativas reais, como numa inscrição do início
do Novo Império em que um indivíduo alega possuir uma omsciência
semelhante à dos deuses87.
Ainda que a associação com a divindade fosse cada vez menos um
privilégio da realeza, à medida que o tempo passava o status especial dos
reis era mantido por meio de elaborados cultos mortuários reais. Grandes
complexos foram estabelecidos para perpetuar a memória do monarca
apesar de sua passagem para o outro mundo, e a manutenção desses cultos
exigia atenção constante. Templos funerários passaram a fazer parte do
repertório da arquitetura real já a partir do Antigo Império. Ainda que as
plantas das construções tenham se desenvolvido e mudado ao longo dos
séculos, seus elementos centrais permaneceram essencialmente inalterados.
No interior do templo, as estátuas do rei morto eram objeto de cuidados
diários. Nos festivais, os sacerdotes traziam para fora as estátuas de culto
real, juntamente com as de outras divindades, e as conduziam em procis­
sões, nas áreas públicas do templo, para que fossem reverenciadas e adora­
das. Os rituais e as cenas associadas aos complexos fúnebres têm sido
compreendidos como simbolizações da vida após a morte. Na década de
80, porém, estudos como os realizados por Zahi Hawass e Wilham
Murnane mostraram que muito da iconografia e muitos dos textos e deco­
rações nos complexos mortuários parecem enfatizar a divindade do rei
por meio de uma reafirmação de sua realeza. Eles não estão centrados em
aspectos da vida eterna88.

Vide a inscrição autobiográfica em Kurt Sethe, Urfaunden der 18. Dynastic, Urk. 4
(leipzig: Hinrichs, 1909), 4:1071, 9. A ll alega-se que o conhecimento cie Rekhmire
cobre todos os âmbitos da terra, dos céus e dos lugares ocultos no mundo inferior. Vide
também Norman deGaris Davies, l h e Tomb o f Rel^h-mi-Re at Thebes, Egyptian
Expedition Publications I I (Nova York: Metropolitan Museum of Art, 1943), l:pl.
XII e 2:79.
SH Zahi Hawass, “The Funerary Establishments of Khufu, Khafra and Menkaura during
the Old Kingdom”(Dissertação de doutorado, University of Pennsylvania, 1987) e William
J. Murnane, United with Eternity: A Concise Guide to the Monuments at Medinet
Habu (Chicago: Oriental Institute, University of Chicago, 1980), págs. 1-2, 6-74.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 3

Houve um rei que tentou negar muitos dos aspectos funerários da


antiga religião egípcia introduzindo novas crenças e alterando ou
eliminando tradições que vinham sendo seguidas por mais de dois mil
anos. Os anos de juventude do homem que se tornou o rei Amenhotep
IV foram passados durante o remado relativamente calmo, próspero e
produtivo de seu pai, Amenhotep III. A arte, a arquitetura e a literatura
floresceram. Mulheres da realeza e da nobreza eram proeminentes e tinham
status elevado. A mais notável dessas mulheres era a esposa de Amenhotep
III, a rainha Tiye, cuja presença em textos e monumentos indica sua
importância. O casamento real foi registrado até mesmo na face inferior
de grandes escaravelhos comemorativos, distribuídos na ocasião.
Amenhotep III foi relativamente bem sucedido em assuntos militares,
e por meio da diplomacia conseguiu conservar muitos dos seus ganhos
nos campos de batalha. Por isso a vida no Egito tornava-se bastante pací­
fica, o que permitia ao rei envolver-se em outras atividades. Em Tebas, ele
construiu um magnífico palácio-cidade, hoje conhecido como Malqata.
Ali havia várias residências reais e, também, um porto construído especial-
mente para abrigar as barcas reais, que tinha mais de dois quilômetros de
extensão89.
Os registros conhecidos do reino de Amenhotep III não revelam
claramente o desenvolvimento do conflito entre o monarca e os sacerdotes
do deus Amon, que estavam se tornando cada vez mais poderosos. Talvez
um embate fosse evitável, em parte, porque o próprio rei era poderoso e
popular, e também porque Anen, um alto oficial dentre os sacerdotes de
Amon, era irmão da rainha Tiye.
Durante esse período de aparente calma, Amenhotep III instituiu
novas regras na religião, das quais a mais importante foi a importância
concedida ao disco solar, chamado de Aten. Este já surgira na literatura
religiosa muito tempo antes e chegara até mesmo a ser descrito como uma
divindade universal. No Novo Império, a importância de Aten como deus
cresceu, mas seu significado não se desenvolveu de maneira muito clara
antes do reino de Amenhotep III. A partir de então, o nome Aten passou
a ser usado nos nomes do palácio, da barca real, e de parte do exército, e

Kq Vide David 0 ’Connor, “M alqata”, LÀ 3:1 173-77.


94 DAVID P. SILVERMAN

é bem possível que ele tivesse o seu próprio templo em Tebas9". Ao mesmo
tempo, o rei aparentemente enfatizou e estendeu sua própria divindade
real enquanto ainda estava vivo9091923.
Amenhotep IV (fig. 46), o filho e sucessor de Amenhotep III, trouxe
o Aten a seu zénite, de maneira que ele superou todas as outras divindades.
Esse faraó era um homem de natureza, caráter e personalidade distintas,
e não se deve minimizar o papel que desempenhou na determinação e na
direção das mudanças religiosas que ocorreram enquanto foi rei (fig. 4 7 ).9-
Talvez tenha sido, em parte, a astúcia política o que o motivou. Ciente de
um potencial considerável de conflito entre o monarca e os sacerdotes de
Amon, cada vez mais poderosos, ele pode ter apressado o advento de
uma nova religião, devotada exclusivamente a Aten, como uma maneira
de suplantar o poder dos sacerdotes e do culto de Amon. Temores reais
das relações entre “Estado e Igreja” provavelmente não eram sem funda­
mento, uma vez que os faraós do fim da 20a Dinastia disputavam o poder
com os sumos sacerdotes de Amon. Um deles, Herihor, foi retratado em
trajes reais nas paredes do templo de Khonsu, em Karnak. Paralelamente
a essas possíveis motivações político-religiosas, não se deveria subestimar
as inclinações contemplativas, talvez filosóficas, de Amenhotep IV como
fatores que ajudaram a formar as suas doutrinas. Tampouco se deveria
subestimar o papel dos sentimentos de Amenhotep IV para consigo mesmo
e para com o seu status em relação à humanidade e à divindade. Suas
idéias sobre a própria posição certamente foram moldadas por sua vida
como filho e herdeiro de um dos mais populares e poderosos regentes do
Egito, um monarca cuja crença na própria divindade foi expressa em
diversos textos e relevos. Ele chegou a ponto de dedicar uma sala inteira
do templo de Luxor às representações de seu nascimento divino9í.

90 Vide S ir A lan Gardiner, Egypt o f the Pharaohs: An Introduction (Oxford: Clarendon,


1961), pág. 217 e Donald B. Redford, Al(henaten: The Heretic K ing (Princeton:
Princeton University Press, 1984), págs. 170-172. Redford discute Amenhotep III
nas págs. 34-54.
91 Vide as referências anteriormente citadas na nota 82.
92 Para comentários sobre as características desse indivíduo, vide Redford, A^henaten,
págs. 57-203, e as referências citadas nesta obra.
93 Vide Bell,//VES 44 ( 19 8 5 ): 25 1-94, e Silverman, “Royalty in Literature”, in Ancient
Egyptian Kingship, ed. O ’Connor e Silverman.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 5

4 6 . E státu a em p ed ra de
Amenhotep IV (18a Dinastia)
de K arnak. M useu do Egito,
Cairo.

Ainda que os motivos do plano religioso levado a cabo por Amenhotep


IV não estejam claros, seus resultados são visíveis94. Apenas alguns anos
após ascender ao trono ele já tinha realizado mudanças importantes na
religião e na realeza egípcias. Como as amplas realizações do rei ocorreram
em um curto intervalo de cerca de vinte anos, um observador moderno
poderia supor que as modificações que ele introduziu se deram de maneira
abrupta. O rei movimentou-se em passos progressivos bem orquestrados
e suas inovações estavam, em sua maior parte, apoiadas em precedentes.
A s mudanças que ele iniciou claramente envolviam estrutura, planejamento

94 Para uma discussão mais detalhada de Akhenaten, vide Donald B. Redford, “The
Concept of Kingship during the Eighteenth Dynasty”, in Ancient Egyptian Kingship,
ed. O ’Connor and Silverman. Para outras sugestões, vide Silverman, “Royalty in
Literature”, no mesmo volume.
9 6 ♦ DAVI D P. SILVERMAN

4 7 . Relevo retratando o rei


Akhenaten (18a Dinastia) e a
rainha Nefertiti fazendo oferen­
das a Aten, juntamente com um
texto que registra um juramento
de não mudar os limites da ci­
dade de Akhetaten e de não ser
sepultado fora de seus limites.
Tabuleta devocional colocada
nas fronteiras de Tuna el-Gebel
(território da margem ocidental,
em frente a el-A m arna).

e método. Se o rei não tivesse uma boa habilidade administrativa, não


teria sido possível uma transição pacífica. A imagem desse regente como
rei-filósofo que parecia mais preocupado com questões do outro mundo
do que com o seu próprio reino era, provavelmente, corrente nos tempos
antigos, e persistiu também nos tempos modernos95. Entretanto, os regis­
tros demonstram que ele fazia uso dos talentos diplomáticos aprendidos
na corte de seu pai, às vezes com mais, às vezes com menos sucesso, e que
empregava a força militar sempre que necessário.
Durante os primeiros anos de seu reino, Amenhotep IV tomou atitu­
des sutis porém decisivas. O rei deu início à construção de diversos templos
em honra a Aten. A o mesmo tempo, ampliou a importância de Aten a tal
ponto que o deus Amon, cujo nome fazia parte dos próprios nomes dos
reis, foi primeiramente reduzido a uma sombra de sua importância original
e, por fim, omitido das doutrinas. Um aumento tão marcado no prestígio
de uma divindade certamente tinha seus precedentes. Rã, Montu e Amon

95 Entretanto, vide Redford, Akhenaten, págs. 164-168 e 185-203, onde ele nota algumas
das limitações de Akhenaten.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 7

48. Fragmento de um relevo da


rainha Nefertiti, modelada de
acordo com a fisionomia de seu
marido, rei Akhenaten (18a Di­
nastia), oferecendo um buquê ao
Aten, de quem um dos raios, que
termina em forma de mão, está
tocando o uraeus em sua coroa.
Ashmolean Museum, Oxford,
1893.1-41 (71).

tornaram-se proeminentes por meio do apoio e da promoção de faraós


que construíram e decoraram monumentos em honra a seu deus escolhido.
A arte dos primeiros anos do reino de Amenhotep IV caracterizava-
se por um estilo exagerado, que parece bizarro e quase surreal em compara­
ção com o de reinos anteriores (fig. 46)%. As características físicas distintas
do rei apareciam não só em suas próprias imagens mas também nas de
sua família e nas de seus súditos (fig. 48). Estes traços identificavam
claramente essas figuras com as do rei, e esse efeito era obviamente intencio­
nal. Modificado ao cabo de alguns anos, esse primeiro estilo logo resultaria
num frescor e numa naturalidade que raramente foram expressas pelos
artistas egípcios do passado (figs. 49 e 50). A s fases posteriores, porém,
continuaram a refletir a excentricidade do físico e da fisionomia do rei, mas
muito dessa maneira de representação sobreviveria ao rei e à sua revo­
lução. Seus efeitos podem ser observados ao longo do período dos Ramsés.96

96 Cyril Aldred, Akhenaten and Nefertiti (Nova York: Brooklyn Museum and Viking
Press, 1973), págs. 48-37. Vide também Wildung, “Royalty in A rt” (n. 74).
9 8 ♦ DAVID P. SILVERMAN

4 9 . Relevo retratando o rei Akhenaten (18* Dinastia) e a rainha Nefertiti num pequeno
altar em forma de fachada de templo, de Tell el-’Amarna. Museu do Egito, Cairo.

Ele também introduziu novos estilos de expressão nos textos. Em


reinados anteriores, inscrições formais tinham sido compostas inicialmente
no estilo clássico, com elementos raramente utilizados da linguagem falada,
menos formal. Agora essas características ocorrem de maneira constante
em todos os textos, antecipando, de certa forma, o seu uso em textos não-
literários do final do Novo Império. Ocasionalmente, um “egipcianismo
tardio” aparecia em inscrições compostas à maneira clássica no passado97,
porém durante o período Amarna os textos incluíam, constantemente e
de maneira deliberada, alguns elementos derivados da linguagem falada.
Seu aparecimento freqüente levou alguns estudiosos a supor que o rei

97 B. Kroeber, “Die Neuãgyptizismen vor der Armanazeit” (Dissertação de doutorado,


Eberhard-Karls-Universitàt, Tübingen, 1970), notou o uso desses elementos no verná­
culo de textos mais antigos. Vide também David R Silverman, “Plural Demonstrative
Constructions in Ancient Egypt”, RdÉ 33 (1982): 64-65. Vide também Silverman,
“Royalty in Literature”, in Ancient Egyptian Kingship, ed. O ’Connor e Silverman.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 9 9

50. Escultura de uma cabeça de


Princesa (18a Dinastia) encon­
trada em Tell el-’Amarna. M u­
seu do Egito, Cairo.

estivesse tentando tornar a linguagem escrita acessível a uma parcela maior


da população. Um exame atento, porém, revela que o que aconteceu na
realidade foi o oposto: ele estava tornando a linguagem mais exclusiva. A
gramática é menos um reflexo do vernáculo do Egito mais recente e mais
um híbrido, composto tanto do idioma clássico quanto do falado98. Parece
ter sido bastante artificial, e muitos dos padrões e usos eram únicos. Assim
como a nova arte, a nova linguagem destinava-se a relacionar-se diretamente
com o rei, e o novo estilo real era um exemplo da influência abrangente
desse indivíduo todo-poderoso.

98 Para uma análise gramatical de alguns dos textos no túmulo de Akhenaten, vide Shlomit
Israeli, “A Grammatical Analysis of the First 23 Pages of the El Am arna Texts:
Bibliotheca A egyptiaca V III”, in Papers fo r Discussion, ed. Sarah Israelit-Groll
(Jerusalem: Hebrew University, 1982), págs. 278-302.
100 ♦ DAVID P. SILVERMAN

Passados uns poucos anos de seu reinado, Amenhotep IV começou


a pensar em mudar a capital do Egito para uma cidade diferente de Tebas.
Mudar a localização da capital não era um gesto sem precedentes. Mênfis
tinha sido a capital antes de Tebas. Em algum momento depois do quinto
ano de seu reinado, o local da nova capital foi escolhido, e sua ocupação
teve início. Chamada Akhetaten (“Horizonte de Aten”), a cidade encon­
trava-se longe de Tebas no abaixo (em direção ao norte, portanto) e não
tinha sido sagrada a nenhum outro deus. A maior parte da mudança para
Akhetaten e de seu processo de ocupação ocorreu durante o ano seguinte.
Assim como a linguagem e a arte desse período, o traçado urbano de
Akhetaten seguia as novas diretivas que o rei estava implantando em relação
à sociedade e a seu próprio papel94. Enquanto planejava a cidade e se
mobilizava para a emigração, Amenhotep IV mudou seu nome para
Akhenaten. Monarcas anteriores tinham alterado partes de seus nomes,
mas nenhum fizera uma mudança tão drástica em seu nome. “Akhenaten”
reforçava a negação de Amon por parte do rei e sua ênfase em Aten. O
rei não só estava elevando a nova divindade, mas também elevando seu
próprio status por meio de uma associação próxima com esse novo deus.
Ao fim de alguns anos, o próprio Akhenaten deve ter desenvolvido
suas doutrinas, pois não só Aten foi enfatizado, como todos os outros
deuses passaram a ser evitados. Por fim, ele tentou obliterar o nome e a
imagem de Amon de forma que nenhum estímulo visual ou escrito fizesse
menção a ele. Akhenaten queria que os seus súditos reverenciassem apenas
Aten, e tentou obliterar a memória de Amon da mente de seu povo. Os
indivíduos encarregados de expugnar os nomes e as imagens de Amon
dos monumentos eram zelosos, e começaram a remover também os nomes
e as imagens de outros deuses, e até mesmo ocorrências do substantivo
plural “deuses”. Num primeiro momento, divindades solares foram tole­
radas, mas logo seus títulos, epítetos e imagens passaram a ser descartados
por Akhenaten, juntamente com outros elementos religiosos tradicionais.
M a a t , porém, foi tolerada ao longo de todo o período.9

99 Vide David O ’Connor, “Palace and City in New Kingdom Egypt”, em volume a ser
publicado na série “Sociétés urbaines en Egypte et au Soudan”, Cahier de Recherches
de l’Institut de Papyrologie et d ’Égyptologie de Lille.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 101

Akhetaten (el- ‘A m arna). Lo­


calização da capital construída
Pelo rei Akhenaten (1 8 a Di­
nastia) e abandonada pouco
depois de sua morte. Desenho
de Brian e Connie Dear. Repro­
duzido da obra de John Ruffle,
The Egyptians (19 77), pág. 78,
com permissão da Phaidon Press,
Oxford.

Por meio desses gestos, o rei propositadamente removeu eventuais


nvais de Aten. Não se sabe ao certo se fortes fatores econômicos ou políticos
motivaram esse programa. Não há dúvidas de que esses fatores tiveram
algum papel, mas a forma direta, a velocidade e a perseverança do movi­
mento sugerem uma motivação ideológica muito forte.
As tendências monoteístas eram evidentes nessa nova religião. Elas
se refletem em seus textos, terminologia, iconografia e conceitos subjacentes.
Alguns desses elementos tiveram precedentes em períodos anteriores,
porém a religião de Akhenaten aproximou-se mais do monoteísmo do que
qualquer outra religião do mundo até então. Efetivamente, muitos estu­
diosos afirmam que as crenças de Akhenaten introduziram o monoteísmo
no mundo100. Talvez ele tenha sido o pioneiro em um conceito que haveria

100 Hornung, Conceptions o f God, pág. 246 afirma: “Agora, pela primeira vez na história,
o divino tornara-se um... .
10 2 » DAVI D R SILVERMAN

de ter um efeito profundo no desenvolvimento das religiões. De qualquer


forma, dentro de um período de tempo relativamente curto esse indivíduo
afetou profundamente tradições religiosas egípcias que existiam havia mais
de dois mil anos.
O programa de Akhenaten atingiu todas as esferas da cultura egípcia.
A arte e a arquitetura de seu período são inconfundíveis. O conteúdo e a
linguagem dos textos de sua época eram únicos. Até mesmo os conceitos
associados à realeza foram alterados. O foco mudou não só para Aten
mas também para o divino rei vivo, que foi proclamado filho de Aten. A
religião enfatizava os aspectos solares, enquanto divindades ctônicas, nota-
damente Osíris, se tornariam cada vez menos importantes, assim como as
doutrinas escatológicas e o culto ao rei morto. A s divindades funerárias,
que por tanto tempo tinham sido um elemento essencial da religião egípcia,
tornaram-se insignificantes nas doutrinas de Akhenaten. A ênfase sobre
a divindade do faraó alcançou novas alturas à medida que ele diminuía a
distância entre o rei vivo e o poder supremo. Talvez tentasse reaver ou até
mesmo ultrapassar o status de realeza dos monarcas da 4a Dinastia, que
construíram as grandes pirâmides.
Por meio dessas ações, Akhenaten conseguiu, simultaneamente,
elevar o nível da realeza e abaixar o nível da divindade, colocando-os
quase no mesmo patamar. Akhenaten e Aten passaram a compartilhar de
prerrogativas anteriormente reservadas exclusivamente aos monarcas ou
exclusivamente aos deuses. Em reinados anteriores, os nomes da realeza
eram escritos no interior de uma faixa de forma oval, chamada cartouche.
Agora, porém, o cartouche continha não só os nomes da família real mas
os de Aten também. Em tempos anteriores, os reis celebravam os jubileus
e usavam o uraeus. Agora, Aten também celebrava essas festas e usava o
uraeus. Normalmente só a realeza recebia o epíteto “Aquele que recebeu
a vida para todo o sempre”, porém agora tanto Aten como Akhenaten o
recebiam. Textos oficiais de períodos anteriores eram datados de acordo
com o reinado de um monarca, mas os que foram compostos durante o
reino de Akhenaten podiam ser datados em termos de Aten. Os encanta­
mentos de oferendas fúnebres de períodos anteriores mencionavam o rei e
a divindade de maneira separada. Agora esses encantamentos se referiam
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 103

ao rei e a Aten como se fossem um só ser101. Antes, o disco solar não fora
representado de forma antropomórfica. Agora era retratado com seus
raios terminando em mãos humanas, às vezes oferecendo objetos ao rei
(fig. 51). No passado, o rei tinha sido o sumo sacerdote ou primeiro profeta
do deus e Akhenaten seguiu essa tradição, servindo como o primeiro
profeta de Aten. O status pessoal de Akhenaten era tão alto, porém, que
ele determinava quem seria seu próprio primeiro profeta, como se fosse um
grande deus. Ele seguiu modelos anteriores oferecendo m a a t a seu deus,
Aten, mas agora dizia-se que Akhenaten, ele mesmo, vivia de m a a t . Em
épocas anteriores, as estátuas dos deuses eram levadas em procissões sobre
barcas durante as festas (fig. 36). Mas Aten não tinha nenhuma estátua.
Agora a própria família real era apresentada nessas barcas para a
população devota. Aten somente podia ser reverenciado por meio do rei.
Assim como outros deuses do Egito, Aten era celebrado em hinos.
Durante o período de Amarna, porém, o conteúdo dos hinos referia-se
menos às batalhas tradicionais do que a expressões positivas abrangentes,
e os méritos literários dos hinos eram enfatizados. Diferentemente de outros
deuses do Egito, Aten não era personagem de mitos. Não havia histórias
complexas nem documentação de atividades divinas para explicar a
existência de Aten ou sua relação com a humanidade. As doutrinas de
Akhenaten não incluíam lendas mencionando deuses nem descrições
de relações divinas que pudessem trazer Aten para mais perto do indivíduo.
Aten não tinha consorte, nem estava unido a outras divindades tradicionais,
numa tríade divina. Na realidade, o que acontecia é que Akhenaten tinha
uma consorte, sua esposa Nefertiti (fig. 49), de tal forma que Aten,
Akhenaten e Nefertiti constituíam uma tríade divina (fig. 51). Os hinos
cantados e as liturgias realizadas focalizavam-se em Aten e Akhenaten.
Akhenaten e Aten eram também o foco da arte decorativa nos
túmulos particulares em Akhenaten. O proprietário do túmulo era retratado
apenas de maneira breve e, prmcipalmente, a serviço do rei. A s atividades
tradicionais da vida diária e visões do mundo inferior não eram retratadas.

101 Viele W infried B arta, Aufbau und B e d e u tu n g der altägyptisch en O pferform el,
Agyptologische Forschungen 24 (Glückstadt: Augustin, 1968), päg. 109.
104 ♦ DAV1D R SILVERMAN

5 1 . Relevo de um altar mostrando os raios de Aten oferecendo vida (ankh ) ao rei Akhenaten
(18a Dinastia) e à rainha Nefertiti, de Tell el-’Amarna. Museu do Egito, Cairo.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 10 5

Ao contrário, os túmulos continham representações em grande escala de


Akhenaten, freqüentemente acompanhado por Nefertiti, e das atividades
dele102103.À s vezes, as filhas de Akhenaten e Nefertiti eram retratadas com
eles. Invariavelmente Aten estava no alto da cena, com seus raios
descendentes, alguns terminando em mãos humanas oferecendo vida
imortal ao casal real/divmo (fig. 51).
Esse tipo de retrato íntimo da família real não tinha precedentes.
Mas no caso de Akhenaten ocorria não só em túmulos como também nas
paredes de templos e no exterior de edifícios públicos, como também em
altares domésticos. A iconografia nesse tipo de superfícies antes focalizava
somente as divindades ou o rei, ou sua relação mútua. Na religião de
Akhenaten, cenas retratando a atividade mtensamente pessoal da família
real e mostrando a sua proximidade com a divindade parecem ter substi­
tuído os mitos e histórias dos deuses encontrados na religião do passado
do Egito. Cenas desse tipo serviam para antropomoi fizar o poder supremo,
a divindade abstrata, Aten. Elas ofereciam ao povo acesso a Aten e uma
compreensão dele. Somente por meio do rei a relação de um indivíduo
com a divindade poderia ser estabelecida.
A s cenas familiares reforçavam a relação do rei com deus. O conceito
de proximidade entre o real e o divino certamente não era uma inovação.
O mesmo foi apresentado em textos e cenas funerárias ao longo de toda a
história do Egito. Akhenaten, porém, estendeu esse conceito a todos os
tipos de textos e iconografia. Os ensinamentos e hinos de Akhenaten,
juntamente com seu conceito de “família divina”, representavam e explica­
vam a mter-relação entre o rei vivo, Aten, e o cosmos 3. Os escritos de
Akhenaten retratavam Aten como o deus criador e identificavam o rei
com ele. Assim como Aten, Akhenaten era um deus criador. Assim como
Aten, Akhenaten renascia todos os dias e desta forma tornava-se parte do
cosmos. Mas somente Akhenaten era acessível tanto ao indivíduo na terra

102 A importância cie Nefertiti, a esposa de Akhenaten, não deve ser subestimada, e ela
também podia ser invocada. Vide Redford, Akhenaten, págs. 78-82, e Emma Brunner-
Traut, “Nofretete”, LÁ 4:5 19-2 I.
103 Jan Assmann, “Die ‘loyalistische Lehre’ Echnatons”, SAK 8 (1980): 1-32. Vide
também as referências, no mesmo livro, a outros trabalhos importantes.
106 ♦ DAVID R SILVERMAN

quanto ao deus nos céus, e esse sistema, que certamente parecia lógico ao
rei, era a ordem correta do universo. Era m a a t .
De muitas maneiras, os conceitos e a iconografia promovidos durante
o reino de Akhenaten eram variações sobre idéias tradicionais, e seu
desenvolvimento pode até ter tido uma certa lógica. Ainda assim, apesar
do aparente cuidado com que o programa de transição foi planejado, e
apesar da maneira meticulosa e coerente com que foi levado a cabo, os
conceitos e a iconografia de Akhenaten não criaram raízes.
Pode-se sugerir muitas razões para o malogro das novas doutrinas,
porém, basicamente, está a incapacidade que os indivíduos tinham de
obter acesso direto ao(s) deus(es) de sua escolha e a necessidade de cultuar
a nova divindade por meio do rei. Não há dúvida de que o povo reagia de
maneira negativa a essa religião que o privava tanto das divindades crônicas
quanto dos meios para adquirir uma vida após a morte pessoal/individual
e a imortalidade. As pessoas, aparentemente, achavam difícil adaptar-se
aos novos dogmas que não lhes diziam respeito diretamente e estavam tão
centrados na divindade do rei. Além disso, a religião tradicional enfatizava
os contrastes fortes e delineava claramente a luz e a escuridão, o bem e o
mal, a vida e a morte, o positivo e o negativo. A teologia de Akhenaten
praticamente negava a escuridão, o mal, a morte e o negativo. Enfatizava
o aspecto positivo da vida. Uma vez que só um deus, Aten, existia, ele
não poderia ser comparado e necessariamente tinha que ser positivo. Dessa
maneira, a religião de Akhenaten enfatizava a vida, o renascimento cíclico
diário, a bondade, a ordem e o sol. O mundo inferior, com seus perigos,
demônios e doze horas de trevas não tinha lugar nos conceitos da nova
religião. Nem o tinham a doença e a corrupção. Na religião tradicional,
esses aspectos negativos simbolizavam as realidades desta vida e os temores
relativos à próxima. Somente por meio de seu reconhecimento é que eles
poderiam ser derrotados. Os mitos, símbolos e textos complexos da tradição
ocupavam-se desses problemas e perigos. No lugar de tais mitos e símbolos,
a religião monoteísta de Akhenaten oferecia uma fé quase simplista no
positivo. Nessa visão, nem a nova religião nem o seu deus tinham um rival
capaz de criar conflito.
Aparentemente, mesmo aqueles que acompanhavam Akhenaten para
a cidade de Akhetaten não seguiam os seus ensinamentos completamente.
O DIVINO E A S DIVINDADES NO ANTIGO EGITO ♦ 107

Escavações de residências privadas encontraram amuletos e outras imagens


do panteão tradicional104. Estes achados indicam que as pessoas, ao menos
em particular, retinham crenças tradicionais. Efetivamente, talvez algumas
delas até mesmo se rissem da “família divina”, pois os arqueólogos encon­
traram grupos de estatuetas de macacos que pareciam satirizar as repre­
sentações das atividades pessoais de Akhenaten e sua família, que domina­
vam a iconografia oficial105.
A s pessoas certamente sentiram de maneira profunda a perda de
seus deuses e doutrinas. Além disso, agora estavam privadas também da
monarquia tradicional e da organização clerical que governara o país por
milênios a fio. O que lhes era oferecido agora era um rei divino vivo, que
renascia diariamente com o sol, que era um com Aten e com o cosmos,
que era o centro e o mediador de tudo, a ordem e a vida. Essa substituição,
porém, não foi aceitável para eles. A morte era excessivamente aparente e
real, e as pessoas viam que o divino rei vivo também era mortal. Mas a
morte era uma realidade que não tinha nenhum papel na nova teologia.
Quando Akhenaten, o elo vivo com o poder supremo, deixou de existir, a
nova religião não pôde sobreviver.

104 Para referências a trabalhos sobre esse assunto, vide Redford, Akhenaten, págs. 242-43.
105 Silverman, “W it and Humor”, in E gypt’s Golden Age, págs. 280-81 (figs. 385, 386).

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