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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA

PROCESSOS GRUPAIS E O PLANO IMPESSOAL:


A GRUPALIDADE FORA NO GRUPO

Janaína Mariano César

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira

Niterói-RJ
2008
Janaína Mariano César

PROCESSOS GRUPAIS E O PLANO IMPESSOAL:


A GRUPALIDADE FORA NO GRUPO

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Psicologia do
Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira

Niterói-RJ
2008

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Janaína Mariano César

Processos grupais e o Plano Impessoal:


A grupalidade fora no grupo

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira
Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________________
Prof. Dr. André do Eirado e Silva
Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Elizabeth Barros de Barros
Universidade Federal do Espírito Santo

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RESUMO

Este trabalho problematiza inicialmente a experiência de sofrimento em nossos modos


de vida atuais quando vivemos uma experiência de separação entre mundo e sujeito, entre
mim e o outro. A visão separativa se fortalece na ignorância do que é nossa condição de
existência, tendo em vista que só existimos com o outro, pois estamos sempre em co-
dependência. Por isso tomamos como tema de pesquisa os processos grupais, na aposta de que
a sua experimentação possa ampliar nossa visão a fim de vivermos a dimensão coletiva, de
grupalidade, constituinte de nossas vidas. Fazemos isso na companhia de Foucault,
Castañeda, Deleuze, Varela, Guattari, Lewin, e tantos outros autores que nos auxiliaram na
feitura da escrita como um exercício de si.
Tentamos habitar a paradoxal experiência da grupalidade como um lado de fora no
grupo. O que indica que há no grupo objetivado uma dimensão impessoal e coletiva. Mas,
compreendemos ainda que o acesso a este plano processual que anima nossas formas de
existência se faz através de uma prática ética de cuidado consigo, com o outro e com o
mundo. O cuidado de si se apresenta como prática de esvaziamento de um si identitário e
encontro com a alteridade.

Palavras-chave: grupo, coletivo, cuidado de si.

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ABSTRACT

Initially this dissertation problematizes the suffering experience in our current way of
life brought by the cleft between the world and the individual, between my-self and the other.
This separatist point of view grows strong in the ignorance of what is our existential
condition, the fact that we are always in state of co-dependence. Because of that the subject of
this research is the group process hoping that experiencing it can broaden our point of view so
that we can live the collective dimension which composes our lives.
We do that in the company of Foucault, Castañeda, Deleuze, Varela, Guattari, Lewin,
and so many other authors whom helped us to write as an exercise of oneselfness.
We tried to inhabit the paradoxal experience of “groupality” as an outsider in the
group. This shows that there is in the group an impersonal and collective dimension. But, we
understand that to access this processual plane which animates our existential ways is
obtained through an ethical exercise taking care of oneself, taking care of the other and the
world. Taking care of oneself presents it-self as an exercise of letting go of an identity of
oneself and a meeting with the alterity.

Keywords: group, collective, care of oneself.

5
O outro é você mesmo em um mundo diferente.
Olhe-o com apreciação profunda.
Lama Padma Samten

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: antes, um pouco de fim.......................................................... 11

O QUE ESTAMOS FAZENDO DE NÓS?........................................................ 18


1.1 As linhas de produção da vida...................................................................... 20
1.2 Os quatro inimigos no caminho do guerreiro .............................................. 25
1.3 Uma aposta nos grupos em meio aos perigos .............................................. 31
1.4 Modos de subjetivação: uma aposta ética .................................................... 34
1.4.1 Pequeno parêntese (ver e dizer não é a mesma coisa): a dimensão do 36
saber.....................................................................................................
1.4.2 Fecha parêntese: o entre-lugar de uma não relação: a dimensão do 39
poder....................................................................................................
1.4.3 Saber e poder... porquê subjetivação? ................................................ 40
1.5 Os perigos vividos: totalitarismo e privatização .......................................... 42
1.6 A saída de um impasse: a dobra do fora ...................................................... 46
1.6.1 O que estamos fazendo de nós?.......................................................... 53

2 A GRUPALIDADE COMO DIMENSÃO RELACIONAL DE NOSSA


EXISTÊNCIA..................................................................................................... 56
2.1 O cuidado de si e do outro: a constituição de um êthos............................... 56
2.2 Uma forma de olhar : conhecendo o conhecer............................................. 66
2.3 Prática de si: o cultivo da ação no mundo ................................................... 76
2.4 Figuras em frente ao espelho ....................................................................... 83

A GRUPALIDADE COMO UM LADO DE FORA NO GRUPO: UMA


3
RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIEDADE..................................................
87
3.1 Afinal, o que é um grupo?............................................................................ 89
3.2 O grupo em Lewin: uma dinâmica que facilita a mudança.......................... 92
3.2.1 O grupo como um todo dinâmico........................................................ 93
3.2.2 O grupo como facilitador de mudança................................................ 98
3.3 Guattari e as lutas antitotalitárias.................................................................. 104
3.3.1Coeficientes de transversalidade nos grupos: ampliação do grau de 106
visão......................................................................................................
3.4 O grupo são muitos, efeitos da grupalidade................................................. 109

7
3.4.1 Como fazer para que uma gota nunca seque?...................................... 110
3.5 Os grupos que nascem da co-emergência: algumas cenas........................... 110
3.5.1 Cena 1 – “efeito placebo?”: um caloroso debate................................. 110
3.5.2 Cena 2 - “meia hora pra cada um, assim fica resolvido”..................... 112
3.5.3 Cena 3 – combatentes e aliados........................................................... 113
3.6 Um presente de infinito valor....................................................................... 114
3.7 “Qual é o som que surge de apenas uma das mãos?”................................... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................
121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 124

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INTRODUÇÃO: antes, um pouco de fim

Somos cinco amigos, certa vez saímos um atrás do outro de uma casa, logo de
início saiu o primeiro e se pôs ao lado do portão da rua, depois saiu o segundo,
ou melhor: deslizou leve como uma bolinha de mercúrio, pela porta, e se
colocou não muito distante do primeiro, depois o terceiro, em seguida o
quarto, depois o quinto. No fim, estávamos todos formando uma fila, em pé.
As pessoas voltaram a atenção para nós, apontaram-nos e disseram: “Os cinco
acabam de sair daquela casa”. Desde então vivemos juntos; seria uma vida
pacífica se um sexto não se imiscuísse sempre. Ele não nos faz nada, mas nos
aborrece, e isso basta: por que é que ele se intromete à força onde não querem
saber dele? Não o conhecemos e não queremos acolhê-lo. Nós cinco também
não nos conhecíamos antes e, se quiserem, ainda agora não nos conhecemos
um ao outro; mas o que entre nós cinco é possível e tolerado não o é com o
sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E se é que esse
estar junto constante tem algum sentido, para nós cinco não tem, mas agora já
estamos reunidos e vamos ficar assim; não queremos, porém, uma nova união
justamente com base nas nossas experiências. Mas como é possível tornar
tudo isso claro ao sexto? Longas explicações significariam, em nosso círculo,
quase uma acolhida, por isso preferimos não explicar nada e não o acolhemos.
Por mais que ele torça os lábios, nós o repelimos com o cotovelo; no entanto,
por mais que o afastemos, ele volta sempre (Comunidade in KAFKA, 2002:
112-113).

Comunidade no grupo de cinco, grupalidade no grupo. Como seria isso? Este grupelho
de cinco que parece estar bem desse jeito, e que um sexto só faria atrapalhar...
Parece que independente de nós estamos sempre cercados por outros seres, gentes,
animais, plantas... Sem que necessariamente façamos essa escolha estamos nesse mundo e
desde então vivemos juntos. Sabemos que a vida solitária e independente é impossível. Para
crescermos e nos desenvolvermos sempre fomos cuidados de alguma maneira, pelo ar que
respiramos, pela terra, pelo sol, pelo vento... é essa conjugação de forças e interdependência
entre os seres que torna a vida possível.
Mas, parece que isso não basta para nos acreditarmos juntos, para afirmarmos a
dimensão de comunidade que nos sustenta.
O grupo dos cinco não sabe bem porque estão ou permanecem reunidos, não se
empenharam nesse encontro, não desejam se conhecer mais do que o pouco que se conhecem,
não vêem sentido nessa união e, no entanto, optam por permanecerem juntos.
Kafka nos faz ver um modo de se compartilhar a existência muito próximo daquele
que nós mesmos cultivamos na modernidade. Às cegas vivemos juntos quase que sem querer,
e ainda assim quando o grupo parece consolidado torna-se difícil abrir-se para mais um.
Temos uma experiência de individualidade, de sermos unos e separados uns dos outros, e, ao
mesmo tempo, parece impossível a sustentação dessa suposta unidade, por estamos também
9
sempre em relação com outros seres. Como conviver com esse paradoxo, sem transformá-lo
em dualidade: uno x múltiplo, grupo x grupalidade?
Os grupos se produzem nesse paradoxal funcionamento. Se em alguns momentos
fecham-se sobre si buscando uma identidade que conforte, um arranjo que pareça seguro,
produzindo separações entre grupos e grupos, grupos e indivíduos, convivem, ao mesmo
tempo, com a boa teimosia de um sexto, que entendemos como espaço vazio de identidade
dentro do próprio arranjo feito, produzindo e sustentando a impermanência desses arranjos.
É que de fato há uma artificialidade nos grupos identitários, pois não são predestinados
às suas formas, não têm essencialidade inerente. São produzidos bem à imagem kafkafiana:
um desliza feito bolinha de mercúrio e se junta a outro, e a outro, e a outro, e assim de
repente, meio que sem que se tenha planejado exatamente, as pessoas em volta dizem: “os
cinco acabam de sair daquela casa”, o que equivale a dizer: “os cinco são um grupo”. E assim
o grupo se forma. Essa é a artificialidade do grupo, que não existe desde sempre, mas que está
sempre a se construir. Porém, podemos dizer ainda que há algo aí de essencial, de não
artificial, que tem nesse conto a qualidade do mercúrio, da leveza desse deslizamento de uns a
outros, que compreendemos como a própria matéria que possibilita o encontro, a produção do
grupo, e que afirmamos como uma dimensão coletiva da existência.
Neste trabalho tentamos habitar essa paradoxal experiência, a da possibilidade de
acessar no grupo essa dimensão de comunidade, de grupalidade, que indica outras maneiras
de estar junto dentro das formas já há muito construídas em nossa sociedade.
Inventaríamos esse “outro estar junto”? Conseguiríamos alcançar a nova fórmula de
felicidade?
Não, não é bem isso o que constitui nossas apostas. Estar junto é algo que sempre se
fez nesse mundo. E viver em comunidade nessa direção que apontamos é algo que também já
acontece. Talvez, não seja aquela que receba mais investimentos, mas é certamente porque de
alguma maneira estamos juntos, que viver continua sendo possível.
Falamos de uma experiência grupal onde um sexto possa ser bem vindo. Mas, não
porque esteja distante ou fora do grupo de cinco, mas, exatamente, por constituir o seu lado de
fora, que desdobra a unidade ao infinito. Por isso falamos de um plano de grupalidade fora no
grupo e não fora do grupo, para marcar essa diferença fundamental, que aponta não um
binarismo fora versus dentro, mas a paradoxal experiência de um fora no dentro. Acolhemos
este sexto como plano processual nas formas e identidades, que as anima e produz, que as
desmancha ao sabor da impermanência.

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Portanto, não é que o grupo de cinco aparentemente bem consolidado precise ser
abolido, ao contrário, na ampliação de nossa visão apreciamos sua construção, seu surgimento
e sua transitoriedade. O arranjo bem fechado do grupo é produzido no desdobramento de um
plano coletivo e impessoal. E se é assim podemos dizer que a mais aparente solidão, o arranjo
mais compacto, guarda uma multiplicidade.
É que continuamos a acreditar que a prática da felicidade está no coletivo (Guattari,
1981a). No acesso à dimensão coletiva que habita o mundo. E que não pertence a alguém
estando para além e aquém dos sujeitos, porque se faz na impessoalidade, na comunidade. É
quando conseguimos sair um pouco de nosso autocentramento, de nossos gostos e identidades
ou ainda quando neles conseguimos acompanhar as linhas processuais de produção.
Em nosso quotidiano, na vivência nos grupos, na experimentação da clínica,
percebemos que muito do sofrimento que sentimos tem relação com nosso autocentramento,
com a busca e apego por algo que nos dê permanência, com o distanciamento do outro,
inclusive do outro em nós, da grupalidade em nós.
Acreditamos que esse sexto elemento pode nos ajudar nessa empreitada, já que neste
trabalho o tomamos como um lado de fora que nos habita. E que por mais que o repelimos
com o cotovelo ele sempre volta, por mais que o afastemos ele não nos deixa. Há em nós um
lado de fora das identidades construídas, do modo como nos vemos e vemos o outro, das
coisas com as quais nos identificamos. Um fora prenhe de multiplicidade que é nossa
condição de existência, e que por isso nos é inseparável. Um lado de fora no sofrimento e
também no contentamento, em nossas convicções e certezas, que faz possível afirmar que
cada porta já carrega em si sua chave, cada problema já traz em si sua saída.
Trata-se, sobretudo, de uma aposta ético-política: a de refletir sobre o que temos feito
de nós e na inseparabilidade da ação produzirmo-nos de outros modos, quem sabe, mais
amorosos, alegres e solidários. Acreditamos que viver essa dimensão do comum, de
grupalidade, passa pelo acesso a este lado de fora e por cultivá-lo nas relações conosco, com
os outros e com o mundo.
Estas são as apostas e aspirações que movem essa dissertação, e também o fio
necessário para compreender o que se passa entre os capítulos, o que os une. É que de um
capítulo a outro parece não haver aquela linearidade confortante. Não é que não tenhamos
tentado realizá-la, porém as páginas foram seguindo menos ao nosso planejamento inicial e
mais aos acontecimentos que, de fato, possibilitavam a sua construção. Dizem que os
melhores planos são aqueles que ainda não estão planejados, temos provado disso. Nos dois

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anos em que essas páginas estão distribuídas as preocupações e até mesmo as intenções com
relação ao texto foram ganhando tons diferentes a partir da descoberta de um livro ainda
desconhecido, ou da releitura de um texto que trazia algo antes não visto, das questões ainda
não inteiramente traduzíveis em palavras que conseguiam sê-lo, da vida que movimentava os
grupos que habitávamos.
E, talvez, seja sobre essa experiência que tentamos falar. O que faz com que nós,
humanos, e todos os outros seres possamos viver uma experiência de diferenciação, e, ao
mesmo tempo, de profunda conexão, fazendo com que nosso existir esteja sempre relacionado
à existência de todos os outros seres? Qual é o fio que nos une?
O fio da vida, àquela impessoal e infinita, que é também o da liberdade e da alegria
genuína.
Quando iniciamos esse trabalho, antes mesmo da constituição dessa dissertação, nos
perguntávamos como algumas experimentações grupais poderiam disparar processos tão
potentes e outras se fazerem em um fechamento produtor de ainda maior sofrimento.
Confusamente, pensávamos que não sendo o grupo um passaporte seguro para uma
experiência coletiva, o que então poderia sê-lo? Havia aí a necessidade de uma análise das
implicações que nos moviam nos grupos e também nas lutas em geral por uma outra
educação, saúde, infância, etc. Lutas sempre coletivas, mas vividas também como muito
árduas, pesadas e às vezes solitárias.
Quem sabe por conta do atravessamento dessas questões o primeiro capítulo deste
texto tenha como acento principal a experiência de um impasse. Impasse diante dessas lutas
por um outro mundo e que são constantemente afrontadas por relações de poder/saber
investidas na modernidade em formas de controle sobre a vida.
O impasse nos pede uma cambalhota, em Foucault, a dobra da subjetivação. E aí
entendemos onde mora o impasse. Este não está onde imaginávamos encontrá-lo. Não são as
relações de poder/saber, não é a miséria com a qual nos encontramos no CRAS1, não é ainda a
exploração e descaso com relação aos professores, tampouco as pressões e intenso ritmo de
trabalho vivido pelos bancários. Sabíamos no início desse curso que vivíamos uma qualidade
de impasse, mas não sabíamos ainda o quanto dele ignorávamos. O impasse reside na
cegueira de nossa visão quando só enxergamos o sofrimento, nas certezas de que ao

1
Aqui citamos alguns trabalhos que realizávamos antes da entrada nesta pós-graduação: o trabalho com
comunidades consideradas em vulnerabilidade e/ou risco social através do CRAS (Centro de Referência da
Assistência Social), as pesquisas sobre saúde do trabalhador no ensino público da Grande Vitória - ES, as
experimentações grupais vividas no sindicato dos bancários do Espírito Santo.
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trabalharmos com a subjetivação já superamos a visão cartesiana, dualista e de crença na
realidade das coisas. O impasse está no efeito de paralisação produzido por uma visão que dá
realidade e solidez aos problemas e sofrimentos.
O que quer dizer que a liberdade também não reside onde supúnhamos, não está em se
libertar das condições de exploração, do controle ou da pobreza, visão que por sua vez a torna
algo a ser conquistado, sendo relegada a um futuro.
O fôlego que buscamos, portanto, não reside em uma nova estratégia de luta, sequer
reside na possibilidade de luta, mas na compreensão de que enquanto a visão do sofrimento
que vivemos e com o qual trabalhamos sustentar-se como sólido e permanente, estaremos
comprometendo nossa liberdade de ação, já presente em nós.
Ver e refletir sobre o impasse, como assim o descrevemos, o apego a nós mesmos e ao
mundo, é um passo importante, mas não o suficiente, porque a compreensão nos dá nova
motivação, mas ainda não é efetiva liberdade, apesar de dela ser efeito.
Por isso nos encaminhamos a uma prática de cuidado de si e do outro, temática de
nosso segundo capítulo, a fim de alcançarmos a produção de um método. E aí, novamente,
novos paradoxos nos acompanham, pois se em algum momento fizemos tanto esforço para o
questionamento das disciplinas, da obediência a métodos endurecidos, agora usamos de
métodos para trabalhar nossos arraigados funcionamentos. Necessitamos de disciplina,
sobriedade e dedicação para trabalharmos nossos corpos já disciplinados, nossos gostos bem
definidos, nossos automatismos habituais.
Diante dos perigos alertados por dom Juan (CASTAÑEDA, s/d): o medo, a clareza, o
poder e o desgosto (cansaço e desesperança), encontramos na experiência greco-romana o
cuidado de si, que se desdobra como a constituição de um êthos, o cultivo de uma visão aberta
e encarnada, que aprendemos com Varela, e uma prática, exercícios de si a fim de uma
transformação de si, para o acesso a uma ação não mais centrada em nós mesmos.
Diante de nossos impasses só nos cabe cuidar do cuidado conosco, com o os outros e
com o mundo, para não sucumbirmos à cegueira, ao cansaço, à falta de fôlego e de fé. Essa é
a prática ético-política imprescindível para o alcance de uma leveza nas lutas, para uma visão
mais lúcida sobre nossas necessidades e as dos outros, para dispormos de meios de ajuda que
não centrem-se em nossas certezas.
A última parte deste trabalho se fez como tentativa de uma prática, como um duplo
exercício, o de conversar com autores que parecem díspares, e aqui o diálogo se faz com
Lewin em especial, e sua importante proposta grupal, e também de compartilhar cenas de uma

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experimentação grupal que dá sustentação a este texto. Preciosos foram os encontros grupais
nas supervisões, orientações, atendimentos, em sanga, que permitiram compartilhar as
questões e vivê-las enquanto sobre elas se escrevia.
Tentamos, pois, nas formas grupais que a experimentação produzia acolher os
funcionamentos identitários, por vezes, sintomáticos, e trabalhar neles, sem lutar contra, sem
desqualificar, sem reclamar, tentando fazer da experimentação uma prática de si, bem como
compreender essa generosa oportunidade de estar nos grupos como possibilidade de
transformação de modos de lutar que traziam o perigo da clareza e do cansaço, para lutas mais
leves e menos apegadas, mais próximas do outro, mais abertas ao diálogo, onde a guerra cessa
e podemos então fazer algo por nós, em nós, juntos, porque é somente dessa maneira que
existimos. Sabemos que nem sempre foi possível, afinal, são muitos os hábitos arraigados e
grande a responsividade diante das situações, mas isso também se constitui como prática.
Ao longo do trabalho vamos compreendendo pois a qualidade deste fio que nos une a
todos e que em um funcionamento paradoxal possibilita ao fiar da vida, dimensão informe,
processual, sem identidade, sem nome, animar formas, identidades, modos de subjetivação em
constante transformação.
Dom Juan ensina a Castañeda (1974: 95) em um momento de impasse que acreditar
na vida, em nossas tarefas, é fácil, mas que para um guerreiro a questão é ter de acreditar.
Acreditar parece ser mais simples, porque isso é o que fazemos de modo mais corriqueiro,
com certa facilidade naturalizamos a vida. Mas, ter de acreditar, não é o contrário de acreditar,
não é descrer, e é este o desafio. Um guerreiro como dom Juan sabe que as coisas não são,
que não têm inerentemente algo de sólido que as sustente, que a sua qualidade é a mesma dos
sonhos e, ao mesmo tempo, seu desafio é ter de acreditar que existem, para que nelas, nas
coisas, na vida, possa habitar. Então ele acredita sabendo abandonar. Entendemos que
acreditar demais produz uma crença muito sólida que impede ou condiciona o movimento,
mas desacreditar também não é o ponto. O ponto parece ser esta experiência de estar fora no
dentro, da grupalidade no grupo, um ponto, ao mesmo tempo, sem localização fixa. E nele,
para seu acesso, precisamos praticar.
Os grupos nos parecem então uma boa oportunidade para experimentar a feitura de
nós mesmos na direção do outro, uma boa ocasião para vivermos outras relações, uma boa
prática para compreendermos que o que quer que façamos de nós mesmos depende da
construção conjunta que fazemos com o outro. O que fazemos de nós é ainda uma aposta no
que podemos fazer juntos.

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Por último, gostaríamos ainda de falar um pouco sobre o efeito dessa prática que aqui
se apresenta na escrita, na própria experiência da escrita. Foucault nos diz que a escrita é um
dos elementos, juntamente com a leitura e releitura do texto, de um exercício de si. É preciso
sempre temperar a leitura com a escrita, alterná-las, de modo que a escrita dê corpo, corpus,
àquilo que a leitura recolheu. A escrita, portanto, assegura a produção de um corpus, que pode
se constituir como preceitos para si. “É escrevendo, precisamente, que assimilamos a própria
coisa na qual se pensa. Nós a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no corpo”
(FOUCAULT, 2006b: 432).
Mas, não é somente essa a importância desta prática: o cultivo de si através deste
exercício. Mas, também o uso que se pode fazer daquilo que se escreve. Vemos nas palavras
de Foucault que a escrita permite a quem escreve assimilar algo em sua própria alma e ali tê-
lo sempre à disposição. Mas este é apenas um dos usos, o outro possível e simultâneo, é fazê-
lo a serviço do outro, para que o que se lê, se pensa e se vive esteja também disponível e sirva
ao outro. Reside aí a importância da escrita: em uma troca de benefícios, “nesta troca
maleável de serviços da alma em que ajudamos o outro no seu caminho para o bem e para ele
próprio” (FOUCAULT, 2006b: 433), na exata medida em que fomos também beneficiados
por outros seres.
Chegamos, então, a este breve início com uma aspiração: a de que este exercício de
escrita possa ser de algum benefício para aqueles que o encontrarem tanto quanto foi para nós.

15
CAPÍTULO 1

O QUE ESTAMOS FAZENDO DE NÓS?

Foi mais ou menos dessa maneira, quando achávamos que ninguém diria nada,
que Eláyne precipitou-se a falar, como se quisesse fazer isso antes que
desistisse.
“Olha, eu sou muito tímida, não tenho facilidade para falar. Sofri algumas
coisas traumáticas nos últimos tempos, não sei se vou conseguir falar isso no
grupo. Queria saber se não seria bom fazer alguns testes, desses que vê a
personalidade, que eu já ouvi falar. Acho que estou meio sem identidade... até
meu nome não sei mais como fala. Às vezes me chamam de Eláyne, outras
vezes Elãyne. Acho que o teste ia me ajudar a saber melhor quem eu sou”.
As palavras de Elayne encontraram muitas outras, que, provocadas, saíram do
silêncio. Era Andréia que dizia sentir-se assim tantas vezes! João Carlos que
nos seus quarenta e poucos anos achava que já devia ser outro homem,
estabilizado, responsável, pai de família. Gouveia que não entendia o que
sentia, vivia dificuldades no relacionamento com a esposa e as filhas...
Elayne, João Carlos, Regina, Gouveia... traziam a desterritorialização, a
destruição, o desmonte de alguns funcionamentos, algumas formas de vida e
ação, que abalados sofreram movimentos de abertura, e que colocavam uma
pergunta: Quem sou eu? (MARIANO, 2005: 21).

Ser o que se é, voltar ao que já se foi um dia, busca interminável por um eu perdido.
Eu... Eu... Eu...
Entendemos que a clínica debruça-se sobre o sofrimento produzido pelas maneiras
como vivemos e percebemos o mundo. Dentre as muitas formas de expressar e de viver esses
sofrimentos encontramos o “quem sou eu?”.
E como lidar com essa questão que parece se desdobrar cada vez que nela se toca,
como um buraco sem fim: “De que sou capaz?”; “O que devo fazer?”; “O que faço para ser
feliz?”; “O quê eu tenho?”; “Qual é o meu diagnóstico?”.
Mas, quem sabe, possamos ao invés de conjurar essa questão tomá-la como pista que
nos faz perguntar como ela se torna tão importante nos dias de hoje e quais os efeitos dessa
necessidade de se saber com segurança o que se é.
Compreendemos que o “quem sou eu?” pode nos ajudar a fazer uma modulação para
uma outra questão: a de “quem somos nós?” ou “o que estamos fazendo de nós?”. A
modulação pode ampliar nosso olhar fazendo mudar o foco em torno de cada um de nós para
o que estamos construindo sobre nós mesmos e para todos nós.

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Chamamos atenção para esse ponto que levantamos: o da construção. Quando o foco
vive essa mudança percebemos que também esse olhar é construído, e assim tanto o que
chamamos de eu quanto a própria prática clínica pode ser problematizada.
Neste trabalho compreendemos a clínica não, exatamente, como uma especialidade,
mas como uma experiência. E por isso, ao invés de perguntarmos onde se situa podemos,
conforme Passos e Benevides de Barros (2004), perguntar “o que pode a clínica?” ou o que
nela se passa. Entendemos dessa maneira que se há uma localização para essa experiência é
sempre no plano de imanência, de produção da existência, o que por sua vez continua a
deslocalizá-la, tendo em vista vivermos neste plano uma experiência de indiscernibilidade, de
inseparabilidade entre mim e o outro, ou seja, de não localização. Situar a clínica como
atividade de consultório ou de qualquer serviço e/ou estabelecimento é pois reduzi-la ao que
já está objetivado, já dado, ou seja, exatamente, onde por definição, a clínica não conseguiria
se realizar, já que sujeitos e objetos parecem bem separados e discerníveis, onde os encontros
já estão postos e parece não haver nada a ser feito.
Não é que a clínica não possa aí se fazer, nas objetivações. Como tentaremos discutir
ao longo deste trabalho, de fato, se há uma especialidade é essa, a de trabalhar não com as
formas, mas nas formas, aliançando-se com o lado de fora nas formas, com seu processo de
produção. A clínica, portanto, é uma experiência que se faz na imanência, essa é a sua
localização ilimitável e é uma experiência cuja especialidade é a de trabalhar nas formas, nos
seus índices ativos, intensificando as aberturas, produzindo-as em muitos momentos, em uma
atividade irredutível.

Forçando sempre os seus limites ou operando no limite, a clínica se apresenta


como uma experiência do entre-dois que não pode se realizar senão neste
plano onde os domínios do eu e do outro, do si e do mundo, do clínico e do
não clínico se transversalizam (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2004:
279).

A clínica se faz neste plano de indiscernibilidade onde sujeito e objeto são


inseparáveis. Uma zona ilimitável, presente nas formas. A clínica trabalha com essa
experiência de produção, sendo ela mesma produtora. Trabalha em um plano de encontro, no
entre-dois, fazendo-se ela mesma como potencializadora de novos encontros.
Portanto, entendemos que o exercício clínico de olhar e perceber esse “eu” que
atravessa nossas ações, é o mesmo exercício, que Foucault nos ajudará a desenvolver também
sobre a história, de compreendê-la como produção, ou melhor, como processo instável,

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lacunar, descontínuo. A clínica, ela mesma, é tão instável e intempestiva quanto a própria
história, justamente porque essa é a matéria de que se ocupa, este é o plano que a inquieta e a
produz, o plano de produção da vida.
Estudar neste trabalho sobre os processos grupais passa pela mudança de olhar que
afirmamos. Estamos interessados em pensar como o grupo pode nos ajudar a refletir sobre
nossas existências e, ao mesmo tempo, contribuir para que juntos possamos experimentar
desde já maneiras de viver mais felizes para todos nós.
Pensar sobre o que estamos fazendo de nós pode nos ajudar a deslocar o “eu” de uma
pessoalidade para afirmá-lo na sua dimensão pública. Pode nos apontar o fora de nós mesmos,
afirmando nossa existência como algo que diz respeito a todos nós, e que estamos juntos
construindo. Essa é a questão, portanto, que move esse capítulo, e faz com que perguntemos
sobre a produção de nós mesmos.

1.1 As linhas de produção da vida

“Somos feitos de linhas”, afirmam Deleuze e Guattari (2004: 66). Indivíduos, grupos e
sociedades são produzidos no entrecruzamento de linhas, que imbricadas trabalham,
imanentemente, umas nas outras. Podemos até nos interessar por uma mais que por outra, mas
elas estão sempre presentes, coexistem umas às outras e transformam-se mutuamente.
A clínica, nessa direção processual que afirmamos, está interessada, exatamente,
nessas linhas. Na diferença qualitativa que existe entre elas e que possibilita produzir a vida
das mais diversas formas. “(...) fazer mapas e traçar linhas, marcando suas misturas tanto
quanto suas distinções” (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 109), essa é a matéria a que a
esquizo-análise se dedica, com a qual a clínica trabalha: as linhas que produzem a vida.
E quais modos de vida têm nos atravessado? Quais arranjos as linhas têm podido
construir? Quais políticas têm norteado a produção da vida? E que outras podemos ainda
construir?
Três são as espécies de linhas: linhas de corte, linhas de fissura e linhas de ruptura.
Porém, tal maneira de trazê-las para a discussão não quer dizer que sigam uma ordem, ou que
estejam em posição de importância diferenciada. Toda produção engaja as três linhas.
As linhas funcionam qual olaria, essa nos parece uma boa imagem, usina de produção,
em que um oleiro trabalha com uma matéria prima. O mais curioso para nós é que tanto nosso
oleiro quanto a massa que tem diante de si são feitos da mesma matéria inacabada e ilimitável,

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novelos e mais novelos de linhas entrelaçados. Nosso oleiro é pura multiplicidade de forças,
que sobre a massa trabalha, que com ela agencia-se. Água, calor, suor, cansaço, entusiasmo,
pressão, as texturas das mãos conjugam-se à massa, às forças do processo de criação.
E o trabalho começa, ou nunca termina... Vemos o oleiro manuseando a argila, massa
amorfa, rica em linhas de fuga de ilimitável potência, que a depender do encontro com as
forças em jogo e de como se compõem com elas pode desdobrar-se em várias formas. Mas, à
medida que o trabalho avança, que o encontro da massa com o oleiro se produz, as linhas
flexíveis travam suas lutas, e a massa modela o oleiro enquanto este também vai tentando dar
forma a ela. Há momentos na luta em que quase antevemos a forma que a massa pode ganhar,
e, ao mesmo tempo, ainda não podemos afirmar inteiramente o que irá advir. É ainda e
sempre processo, de matéria flexível, que ora se conjuga à forma, ganhando contorno, ora,
novamente, desmancha-se ao sabor das forças.
Mas, agora, depois de muito trabalhar, já nos é possível antecipar... tocamos a textura,
os ângulos, vemos a altura, as proporções bem definidas, as cores, e entendemos que da massa
informe um vaso se forma, destes que podemos colocar água, arranjar flores e com ele
ornamentar a casa. Vemos aí a ação de outra espécie de linha, as duras, que retirando os
excessos, cortando o desnecessário, vai produzindo uma forma-vaso, enfim, alcançada. O
artefato é definitivo? É durável? Pergunta a compradora...
Se acompanhamos o vaso em seus usos vemos que o que parece já dado, conformado,
nos cega para o que continua a se mover, linhas e mais linhas, das várias espécies: de ruptura,
de fissura, de dureza. Elas não páram de nele produzir arranhões, brechas, quebraduras,
colagens, desgaste, e podem até destruí-lo por fim. Mas, podem também, novamente,
recriarem-se conectadas a outras sensibilidades, fazendo do vaso: jarra, panela, peça de
jardim...
Quem acha que a massa informe não está mais ali, ou que só há a dureza do vaso
engana-se, pois a modulação nos mostra que há sempre inúmeras forças engajadas
possibilitando movimento e transformação. Também nossa existência é olaria, em que as três
linhas inscrevem-se e se põem a fabricar, a trabalhar. Voltemos a elas para compreendê-las
um pouco melhor.
Há uma linha, portanto, de segmentaridade dura, visível e consciente, ocupada com o
plano da molaridade, das formas constituídas. São linhas de corte e recorte de segmentos “em
que tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento, a passagem de um
segmento a outro” (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 67). Somos segmentarizados por todos os

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lados e em várias direções. Segmentados de forma binária, através de grandes oposições
duais: homens e mulheres; público e privado; indivíduo e grupo. Segmentados linearmente:
numa mesma linha reta vivemos processos entrecortados, saímos de um para já entrarmos no
outro, bem à maneira dos programas escolares (creche, pré-escola, primeira série, segunda,
etc.), saímos da família, vamos à escola, da escola à vida profissional. Somos segmentados,
ainda, circularmente, círculos que se ampliam cada vez mais: “minhas ocupações, as
ocupações de meu bairro, de minha cidade, de meu país, do mundo...” (DELEUZE;
GUATTARI, 2004: 84).
As linhas duras se aplicam à construção dessas segmentaridades, “uma espécie de
cristalização existencial, uma configuração mais ou menos estável, repertório de jeitos, gestos,
procedimentos, figuras que se repetem, como num ritual” (ROLNIK, 1989: 27), que nos dão a
sensação de uma vida bem entendida, de sabermos bem quem somos, do que gostamos, onde
estamos, um sentimento de familiaridade e de estar “em casa”, que funcionam como
referências para nossas ações no mundo.
Esse efeito de tranqüilidade e segurança torna-se possível, porque essas linhas
trabalham fixando afetos, organizando formas, dando ordem ao mais ínfimo caos. Fazendo
isso produzem no nível mais endurecido a impressão de existência de um sujeito, porque o
que aqui está em questão é a produção e manutenção de uma série de hábitos, ritmos e gostos
através dos quais nos movimentamos, reconhecemos e somos reconhecidos pelas outras
pessoas. É uma linha que atravessa toda a nossa vida, importante e necessária, que assim
como as outras comporta também suas armadilhas e perigos.
Mas às linhas duras juntam-se sempre linhas flexíveis, moleculares, de segmentações
maleáveis, que alcançam essa primeira linha liberando quanta de desterritorialização, abrindo
micro-fissuras nos segmentos produzidos, buracos nas formações endurecidas, ampliando os
níveis de porosidade e abertura para outras formas de vida, para novas combinações.
Essa linha trabalha, portanto, silenciosamente, agitando e tremendo os segmentos que
pareciam tão bem feitos, recolocando em questão as decisões já tomadas, a vida tão bem
construída. Através de movimentos inconscientes, responsáveis pelas mudanças em curso,
inapreensíveis aos sentidos, a ação das linhas flexíveis produzem, quando tudo parecia tão
certo, a sensação repentina de que algo acontece, mesmo que não saibamos ainda dizer o que
é, algo se faz em nós, que não conseguimos nomear ainda. É como se de repente, subitamente,
de um dia para o outro passemos a duvidar daquele amor que havíamos declarado ao outro, ou
de que aquela escolha teria sido mesmo a melhor a ser feita. O que, muitas vezes, não

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percebemos é que as pontas de dúvida, as incertezas, ou um jeito novo de andar, de olhar, já
estavam em gestação, há um tempo sendo simulados imperceptivelmente.

De qualquer modo, eis uma linha muito diferente da precedente (...). É nessa
linha que se define um presente cuja própria forma é a de um algo que
aconteceu, já passado, por mais próximo que se esteja dele, já que a matéria
inapreensível desse algo está inteiramente molecularizada, em velocidades que
ultrapassam os limiares ordinários de percepção (DELEUZE; GUATTARI,
2004: 68).

Não quer dizer que seja uma linha melhor que qualquer outra, trata-se apenas de
políticas diferentes: macropolítica e micropolítica, forma e virtualidade, que caminham
sempre juntas, entrelaçadas. A macropolítica a todo tempo mergulha nas águas da
molecularidade e esta tem seu curso muitas vezes pontilhado, alinhavado por esta outra. “É
certo que as duas linhas não param de interferir, de reagir uma sobre a outra e de introduzir
cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez”
(DELEUZE; GUATTARI, 2004: 68). Essa é também a ambigüidade que essa segunda linha
porta, pois não há previsão, os arranjos dependerão das negociações constantes entre essas
linhas, que podem produzir um endurecimento maior nas segmentações ou podem se abrir
para uma intensa desterritorialização. É aí que vemos ensaiar também as movimentações de
nossa terceira linha.
Linha de fuga, esta última que apresentamos, mas fuga não como alguém que se
esconde de algo que teme enfrentar. É fuga de pura positividade a caminho de outras
possibilidades. O mundo foge de si mesmo por essa linha e se desmancha, buscando novos
rumos. O que essa linha faz é explodir as duas outras séries de linhas, fazendo-se linha
abstrata, sem forma, sem segmentos. É linha de ruptura, que alcança uma desterritorialização
absoluta. Ruptura irrevogável, sem retorno às antigas referências. “Uma ruptura é algo a que
não se pode voltar, que é irremissível porque faz com que o passado tenha deixado de existir”
(DELEUZE; GUATTARI, 2004: 72). É como se perdêssemos o rosto, as formas, os
costumes. É como se não fôssemos mais os mesmos, como se fôssemos ninguém.
Essa é a potência e também o perigo dessa linha: apagar os caminhos para os quais se
poderia regressar, traçar linhas rompidas, impossíveis de serem capturadas como as outras.
Como podemos observar as linhas têm uma relação íntima com os conceitos de
território, desterritorialização e reterritorialização. Parecendo até mesmo cada uma delas ser
responsável por um mais que por outro processo.

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A noção de território, segundo Guattari e Rolnik (2005: 388), é muito mais ampla do
que os sentidos dados pela etologia, etnologia ou mesmo a geografia.

(...) o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um


sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é
sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar,
pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos
tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

Falamos sobre processos de territorialização ao trazermos a discussão sobre as linhas


duras. Um território é fabricado pelas segmentações, por cortes e recortes, que parecem
distintos entre si, mas que, ao mesmo tempo, referenciam-se uns aos outros. Uma
segmentação puxa a outra, produzindo um sistema fechado sobre si mesmo, de modo a não
perturbar e nem dispersar, e sim produzir uma certa identidade. Porém, o território tem a
possibilidade também de se desarrumar, de se desterritorializar.
As falas de Elaine, Gouveia, João Carlos, Regina trazem a vivência desses processos e
são atravessadas por confusão e sofrimento.
“Não consigo parar em emprego, não consigo economizar pra ter alguma coisa. Acho
que já devia pela minha idade estar vivendo de outro jeito”.
“Tenho três filhas, uma menina de sete anos e um casal de gêmeas de dois anos. O que
eu fiz até agora da minha vida? Será que eu sou só isso, uma máquina de ter filhos?”.
“Hoje me acho muito agressiva. Eu sempre tratei bem a todo mundo, era educada,
doce, agora parece que falo as coisas sempre agressiva. Não gosto desse jeito de agora. Será
que não tem jeito de voltar a ser como era antes?”.
Parece que estamos sempre vivendo esses processos, e na clínica tornam-se ainda mais
evidentes. Crises geradas pela explosão de territórios, de um jeito de ser mãe, de uma forma
de ser marido, um objetivo não alcançado, uma dúvida sobre algo antes tão certo, que trazem
angústia, desconhecimento, um “sem chão”, que muitas vezes, podem chegar a produzir
paralisação e impotência. Mas, o desfazimento de territórios, as brechas que neles se fazem
podem também promover aberturas para a construção de outros jeitos de amar, de se
relacionar, de lidar com as expectativas e com a vida.
O processo de desterritorialização, podemos dizer, apresenta-se sob duas faces:
“movimentos de abertura de território, engajamento dele em linhas de fuga e até quebra de
seu curso e sua destruição” (FRANCISCO, 1995: 20), o que nos dá duas possibilidades:
mudar de território, através da liberação de quanta de desterritorialização, o que consiste
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numa mudança de forma, em se (re)territorializar de outra forma. Ou numa outra faceta a
deterritorialização pode não assumir forma nenhuma e produzir uma ruptura absoluta
provocando a destruição dos territórios.
Já a reterritorialização, nosso terceiro movimento, consistirá, como dissemos, numa
reconstrução de formas que sofreram desterritorialização. Mas, aqui é importante fazer uma
diferenciação entre o movimento de produzir uma nova territorialização, o que significa
produzir novos territórios, e o movimento de reterritorialização que, ao contrário, produz uma
“sobrecodificação daquele território constituído e abalado pela desterritorialização”
(OLIVEIRA, 2001: 21).
Nossas sociedades modernas tornaram-se muito hábeis no manejo desses processos,
investindo muito mais na substituição de “territorialidades perdidas por uma
reterritorialização específica” (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 90), que na produção de
códigos novos que possibilitariam outras maneiras de existir. É essa engenharia que faz com
que seja possível o aproveitamento de códigos que considerados revolucionários numa época
servem muito bem, em outro momento, aos lucros e exploração, como a luta das mulheres por
valorização e independência, que é altamente aproveitada nos dias atuais pelas políticas do
mercado de trabalho.
As linhas de força estão, pois engajadas e fazem possíveis esses processos. Às linhas
de fuga ligam-se os processos de desterritorialização absoluta; às linhas de fissura, mais
maleáveis, conjugam-se desterritorializações que estão sempre sendo compensadas com
reterritorializações, e as linhas molares engajam-se na segmentaridade, produzindo também
territorializações e reterritorializações.
Nenhuma dessas linhas é, essencialmente, boa ou má. Deleuze e Guattari (2004) nos
dirão que é o estudo dos perigos em cada linha e em seus arranjos que nos darão uma
indicação para entender melhor seus movimentos.

1.2 Os quatro inimigos no caminho do guerreiro

Cada linha carrega consigo os perigos inerentes. Nos interessa aqui perceber,
principalmente, como alguns deles podem se fazer presentes em nossos modos de vida atuais,
alcançando também os processos grupais.

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Para isso, estaremos nesta unidade realizando um recorte específico desses perigos na
experiência de aprendizagem vivida por Carlos Castañeda2 e relatada em muitos dos seus
livros. Castañeda, no encontro com Dom Juan, que viria a ser seu futuro mestre, era um
estudante de antropologia empenhado nas pesquisas sobre plantas medicinais. Seu interesse
começa a mudar no momento em que é fisgado por Dom Juan e pelos mistérios do caminho
do guerreiro. É quando muda os rumos de seus estudos, tornando-se aprendiz de feiticeiro.
É sob essa perspectiva, a do aprendiz, que Dom Juan alertará Castañeda sobre os
perigos existentes no percurso que decide fazer, chamando-os, no entanto, de inimigos para o
homem que se coloca nesse caminho. Quatro são eles: o medo, a clareza, o poder e a morte.
Faremos então uma relação de cada um deles com as linhas que estivemos descrevendo até
agora.
Dom Juan explica à Castañeda que quando um homem começa a aprender não tem
muita dimensão do que pode encontrar, pois seu propósito é falho, sua intenção ainda é
incerta. Devagar ele começa o aprendizado, e logo fica confuso, desnorteado, porque o que
ele aprende não era exatamente o que esperava, o que ele imaginava, e aí começa a temer.
Cada passo na aprendizagem leva a uma nova tarefa, faz viver algo desconhecido até então, e
é nesse momento que o medo começa a crescer. O homem encontra então seu primeiro
inimigo natural.
O homem que é fisgado pelo Medo, o primeiro dos perigos, teme perder a segurança
dos territórios existenciais, das identidades que construiu para si, que fazem com que ele se
sinta em casa, que parecem dizer do que ele é, que orientam sua ação. Por isso o medo nos
impele para a primeira espécie de linha, as linhas duras. Apavorados nos seguramos em
nossos territórios procurando por certezas, por algo que diga quem somos, que oriente nossa
confusão. Podemos dizer que uma das conseqüências dessa entrega ao medo é se aferrar às
lógicas binárias e de dicotomização produzindo um enrijecimento de territórios existenciais,
de processos identitários. Por medida de segurança nos enclausuramos em nós mesmos.
Castañeda pergunta a Dom Juan o que se deve fazer diante do medo, como se portar
diante desse inimigo.

2
Castañeda é citado em alguns textos produzidos por Deleuze e Guattari, como nos capítulos: “Como criar para
si um corpo sem órgãos”, e “Micropolítica e Segmentaridade”, este último que trata do estudo dos perigos em
cada linha, ambos encontrados em: Mil Platôs 3 – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. O
que nos faz concluir que Castañeda, assim como é para nós, constitui-se como um intercessor na obra desses
autores. Acreditamos que a ética proposta através dos ensinamentos de Dom Juan pode nos ajudar nas análises
sobre os processos grupais.
24
__ A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a
despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o
seguinte. Deve ter medo, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o
momento chegará em que seu primeiro inimigo recua (...). Aprender não é
mais uma tarefa aterradora (CASTAÑEDA, s/d: 90).

Vencer o medo traz autoconfiança e fortalece o propósito daquele que se coloca nesse
caminho. O homem percebe que as identidades nas quais se via, com as quais se identificava,
não dizem tudo o que ele é, não são, de fato, o que ele pode ser. Para ele torna-se agora
possível embarcar em mudanças que podem trazer outras formas de viver.
Mas, quem consegue vencer o Medo e arriscar-se no desconhecido, no não sabido, na
flexibilidade, encontra aí seu segundo inimigo: a Clareza, “uma clareza de espírito que apaga
o medo, (...) mas também cega” (CASTAÑEDA, s/d: 91). Este é o perigo que concerne às
linhas flexíveis, onde tudo agora mais maleável produz uma visão aparentemente mais
ampliada sobre os processos possíveis. Essa mesma clareza produz uma arrogância no
aprendizado, uma sensação de que se consegue manejar bem essa transitoriedade, que já se
sabe o que irá acontecer, uma falsa impressão de saber sobre processos que não acabam ali,
que mal se vê a ponta deles.

[A clareza] obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que


ele pode fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é
corajoso, porque é claro; e não pára diante de nada, porque é claro. Mas, tudo
isso é um engano (CASTAÑEDA, s/d: 91).

É a armadilha de uma percepção molecular, que revela os buracos existentes na


segmentaridade, que faz com que vejamos naquilo que antes nos parecia tão certo, tão sólido,
movimentos incertos e paradoxais. E aí há o perigo:

Vencemos o medo, abandonamos as margens da segurança, mas entramos


num sistema não menos concentrado, não menos organizado, um sistema de
pequenas inseguranças, que faz com que cada um encontre seu buraco negro,
dispondo de uma clareza sobre seu caso, seu papel e sua missão, mais
inquietantes que as certezas da primeira linha (DELEUZE; GUATTARI,
2004: 11).

O inimigo nesta linha produz certezas, valentia e coragem para lidar com processos,
com terrenos incertos, menos identitários. Mas, essa clareza não é lucidez, é pura soberba, que
faz com que se perca a sensibilidade de entender quando esperar e quando avançar, podendo

25
chegar ao ponto de se achar que já se sabe o que é possível saber, e neste caso nada é
desconhecido, não há mais nada a aprender.
Esse não seria também um perigoso inimigo com o qual nos encontramos na prática
clínica? Para o terapeuta, que muitas vezes se aventura em acompanhar as linhas de forças, os
perigos, inclusive, que residem em seus arranjos, a clareza é um inimigo que está sempre a
rondar, podendo apresentar-se como uma extremada autoconfiança em um saber sobre o outro
e sobre nós mesmos. O perigo é esse que Dom Juan nos ajuda a ver: é preciso desconfiar de
nosso suposto saber sobre os processos que vivemos na clínica. Nossa antecipação aos
acontecimentos, nossa precipitação fundados em nosso saber, em nossa suposta clareza sobre
a vida, impede-nos de viver a experiência presente desse encontro na clínica, e,
fundamentalmente, impede-nos de continuar aprendendo com o outro, conosco e com
processo clínico.
O homem que vence esse inimigo é aquele que desafia sua clareza, usa-a somente para
ver e espera com paciência para agir. Lida com a clareza com cautela, como se ela fosse quase
um erro, duvida de que saiba tudo, e, por fim, compreende que sua clareza é só um ponto de
vista, uma meia verdade, nada mais que isso.
Quando o homem vence esse segundo inimigo, não tem mais medo de viver o
desconhecido, sabe que qualquer identidade que construa para si mesmo não será definitiva, e
não se confunde com nenhuma delas. Ao mesmo tempo, seu destemor não faz com que ele se
apresse ou se arrisque, sua clareza é cautelosa. Mas, como está agora numa posição mais
confortável, em que nada o prejudica, em que se sente feliz e realizado pode ser apanhado por
seu terceiro inimigo: o poder.
Este perigo, o do poder, se faz nas duas linhas: nas duras e nas flexíveis, ao mesmo
tempo. É quando o homem que venceu seus dois últimos inimigos sente-se poderoso para
saltar de uma linha a outra. “Ele comanda; começa correndo riscos calculados e termina
estabelecendo regras, porque é um senhor” (CASTAÑEDA, s/d: 92). Mas, seu poder tem
limites. O homem deslumbrado pelo poder percebe que há um mundo de fluxos mutantes que
lhe escapa, linhas que não pode controlar, que lhe fogem a todo instante. E esse se torna seu
desafio: ao manejar bem as linhas de segmentaridade dura e as flexíveis tenta deter também as
linhas de fuga fixando-as novamente. Na vida a possibilidade de construir outros códigos é
capturada de forma a ser reinvestida em processos de sobrecodificação, ou seja, num
reinvestimento em códigos já desgastados, na fixação de territórios que já não são funcionais,
que já não trazem alegria e força e que, no entanto, sofrem reterritorializações. O perigo aqui

26
é o da produção de processos totalitários, pois o homem vencido por este, que é de todos o
mais forte dos inimigos, torna-se caprichoso e cruel.
Podemos dizer que o homem que se vê poderoso está cheio de si mesmo. É flexível,
paciente, pode fazer o que quiser, e no entanto é apanhado exatamente aí: o poder torna-se sua
prisão. O homem torna-se prisioneiro de si mesmo, já que se confunde com o poder. Acha que
o poder o pertence, que a ele obedece, que pode manipulá-lo como quiser. Acredita que tem o
mundo em suas mãos e que é maior e mais importante que o próprio caminho de
aprendizagem.
Nesse sentido, acreditar que se é poderoso parece ser mais uma ilusória identidade, um
efeito de prisão. Dom Juan explica que para vencer ainda este inimigo o homem deve
compreender que o poder nunca é seu. Deve tratar, pois, o conhecimento adquirido com
humildade e lealdade, só assim poderá vencer.
Temos ainda um quarto perigo. Deleuze e Guattari (2004) o relacionam ao Desgosto e
à Morte, às linhas de fuga. Os autores nos alertam que seria muito simples reconhecer as
linhas de fuga como fontes de criação e mudança. E elas, de fato, também o são, porque
conectadas a outras forças podem possibilitar construir a vida nas mais diversas direções.
Porém, na ausência de conexões essa linha ganha a possibilidade não de mutação, mas de
destruição, de uma direção de abismo e arrazamento. É quando ela perde essa capacidade de
mudar que se torna máquina de destruição, produzindo linhas de abolição e morte. É esse o
arranjo das linhas que encontramos no nazismo e no fascismo, a produção de um corpo
canceroso, um processo menos totalitário e mais suicidário. Aqui não se trata de colmatar as
linhas de fuga, de domá-las e fixá-las. Mas, de entregar-se a uma linha abstrata, sem rumo,
disposta a ir ao abismo, à morte.
Já Dom Juan aponta a velhice como sendo esse último inimigo na jornada do saber.
Talvez, possamos dizer que a velhice relaciona-se mais ao desgosto que à morte. É quando “o
homem não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito... um
momento em que todo o poder está controlado” (CASTAÑEDA, s/d: 93) e por isso mesmo
sente uma irresistível vontade de descansar, de retirar-se, de entregar-se às forças do abismo e
esquecer.
Para vencer ainda este inimigo Dom Juan diz que é preciso compreender que a
aprendizagem nunca tem fim.

Mas o homem comum não faz isso. O mundo nunca é mistério para ele e,
quando ele chega a velhice, está convencido de que não tem mais nada porque
27
viver. Um velho não esgotou o mundo. Só esgotou o que as pessoas fazem.
Mas, em sua estúpida confusão, acredita que o mundo não tem mais mistérios
para ele (CASTAÑEDA, 1971: 204).

O homem de conhecimento é aquele que sacode seu cansaço e enfrenta ainda este
último inimigo. Sua vitória está na experiência de que o mundo continua sendo misterioso.
Quanto à morte, Castañeda aprende com Dom Juan que não se deve tomá-la como um
inimigo, e sim como o único oponente valoroso que temos. É a morte que nos desafia a viver,
tornando a vida uma arena de enfrentamento (CASTAÑEDA, 1988). E, por isso também é ela
nossa eterna companheira e sábia conselheira.
Há algo de muito interessante em ver a morte como uma conselheira, e que
gostaríamos ainda de considerar nesse ponto. De certa forma, todos os perigos/inimigos que
estivemos estudando fazem relação com a produção do que somos, nos levando a pensar sobre
o modo como vivemos e as identidades nas quais nos movimentamos.
Para Dom Juan a morte está sempre a um braço de distância. Está sempre nos
espreitando e fará isso até o dia em que vier nos tocar. Mas, é porque nos espreita, nos
acompanha bem de perto, que pode nos ajudar no enfrentamento dos perigos que vivemos, se
tivermos bons ouvidos para escutar seus conselhos. É a morte que pode nos trazer lucidez
para não sucumbirmos às prisões que construímos na vida e a extremada auto-importância que
nos damos a maior parte do tempo. A morte nesse sentido é positivada, por que,
paradoxalmente, valora e afirma a vida.

A morte é a única conselheira sábia que possuímos. Toda vez que sentir, como
sente sempre, que está tudo errado e você está prestes a ser aniquilado, vire-se
para sua morte e pergunte se é verdade. Ela lhe dirá que você está errado; que
nada importa realmente, além do toque dela. Sua morte lhe dirá: “Ainda não o
toquei” (CASTAÑEDA, 1972: 47).

Nada pode ser mais importante que esse toque e se a morte ainda não o fez há
possibilidade de lidar com o medo, o poder, a clareza e a velhice e continuar no aprendizado.
Ela nos aconselha sobre nossa visão de imortalidade, diz-nos que somos seres a caminho da
morte e que sem essa aceitação nossa vida, nossos afazeres e o mundo em que vivemos são
questões ingovernáveis. Adverte-nos a não nos entregarmos às nossas mesmices e
mesquinharias, a tomar cada coisa que nos acontece como um desafio, a fim de nos tornarmos
dignos da vida que vivemos.

28
René Schérer (2000), traz a questão da morte, como muito próxima da intensidade
com que Castañeda a afirma. A morte como um acontecimento capaz de fazer com que a vida
de um indivíduo dê lugar à uma vida impessoal. “É somente pelo acontecimento (...), que as
singularidades se liberam dos limites em que a pessoa individual as mantinha” (SHÉRER,
2000: 23). Esse transe da morte é relativo ao ego que desmorona. É um ponto limite capaz de
detonar singularidades, que não são nem pessoais, nem individuais, mas pré-individuais, pré-
subjetivas, intensidades e movimentos. “O sujeito já não é mais uma unidade-identidade, mas
envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato com o exterior” (JARDIM,
2004: 4).
É essa visão da morte como situação-limite, que pode liberar em nós uma vida
impessoal. Todos os perigos que vimos fazem relação com nossa suposta pessoalidade, com
nossas descrições de mundo a partir do eu. O caminho da aprendizagem, portanto, não é um
acúmulo de saber a respeito de nós mesmos, e sim uma jornada de esvaziamento e
desconstrução das prisões que produzimos em nossas vidas.

1.3 Uma aposta nos grupos em meio aos perigos

Deleuze e Guattari apontam o perigo da morte/desgosto nas linhas de fuga como sendo
de todos o mais temido. Porém, percebemos também que o terceiro, na configuração de um
totalitarismo, é um dos inimigos que mais temos enfrentado. Por isso nos perguntamos sobre a
composição das linhas no contemporâneo3, porque acreditamos que os perigos relacionados
ao poder têm nos rondado produzindo regimes de aprisionamento de nossa visão,
funcionamentos que tentam manter nossas existências esvaziadas de mistério, forjando
condições e limitações para o que podemos aprender, “fazendo uma reterritorialização por
‘vaso fechado’, por confinamento, no artifício do vazio” (DELEUZE; GUATTARI, 2004:
104).
Uma das conseqüências de se viver nessa direção é a de que há uma imposição de
processos de modelização, que, cada vez mais, ofertam modos de ser pré-fabricados.
Aparentemente, nos são abertas muitas possibilidades de ser e de viver, mas dentro de um

3
Entendemos por contemporâneo algo que não está determinado temporal e/ou espacialmente. O contemporâneo
é uma experiência que segundo Passos e Benevides (2001: 90) “convoca a nos deslocar de onde estamos, a pôr
em questão o que somos e a nos livrar das cadeias causais que nos tornam figuras da história”. O contemporâneo
é, pois, um plano: plano de experimentação onde se constrói a experiência do que somos e a possibilidade de
seguir variando e construindo outros modos de vida, quem sabe mais alegres e potentes.
29
campo pré-determinado. O que nos é dificultado, de fato, é a criação de modos novos de
existência.
Expansão da existência, é nisso que consiste a aprendizagem de Castañeda (1971:
145): “nosso destino é aprender e sermos lançados em novos mundos inconcebíveis”. Para
Dom Juan, o homem tem de desafiar e vencer seus quatro inimigos se quiser tornar-se um
homem de conhecimento, sendo este o sentido da batalha. No entanto, apesar de não ser um
caminho fácil, é um caminho possível para todos os homens que quiserem percorrê-lo. Trata-
se de um caminho especial em que o homem que adquire essa disposição caminha com
liberdade na busca pela conexão com processos de desindividualização, de perda da forma
humana4, a fim de ampliar seu olhar e ação no mundo.
Lembramos ainda que não são as linhas os perigos, que não são elas nossos inimigos,
mas a produção de certas maneiras de viver que seus arranjos podem promover. Podemos nos
aliançar com elas, no sentido de construir territórios porosos que nos permitam variar sempre,
e a variação depende da abertura àquilo que pede passagem para a constituição de outras
sensibilidades.
Segundo Dom Juan, faz parte do caminho do guerreiro romper com “a certeza
dogmática de que todos partilhamos, de que a validade de nossas percepções, ou nossa
realidade do mundo, não deve ser posta em dúvida” (CASTAÑEDA, 1972: 12). Essa atitude,
em meio ao totalitarismo, de questionamento do que somos e da realidade que o mundo
parece ser nos conecta com a dimensão da produção de nós mesmos e do mundo. Prestarmos
atenção a nossos funcionamentos nos ajuda a sair da posição de folha ao sabor do vento: “um
guerreiro não é uma folha à mercê do vento. Ninguém pode empurrá-lo; ninguém pode
obrigá-lo a fazer coisas contra si ou contra o que ele acha certo” (CASTAÑEDA, 1972: 121).
Diante do peso da vida deve-se conquistar não a leveza de uma pluma indefesa que plaina a
mercê do destino, mas como dirá Calvino (1990: 28), deve-se viver a leveza do pássaro, que é
essa mesma do guerreiro, “associada à precisão e à determinação”, comprometida com a ação.
Lidamos, portanto, com as linhas do mundo. É só através delas, aprendendo a
manuseá-las e a passear por elas, que se pode alcançar tal leveza. A clínica também está
preocupada em acompanhar essas linhas, numa experiência que é sempre de aprendizagem e
experimentação. Em meio às sociedades contemporâneas, que tentam de maneira intensiva

4
Vem em: CASTAÑEDA, C. O segundo círculo do poder. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004. Deleuze também
afirmará a libertação de uma forma-homem, quando diz que “(…) é dentro do próprio homem que é preciso
libertar a vida, pois o próprio homem é uma maneira de aprisioná-la”, em: Deleuze, G. Foucault. São Paulo:
Brasiliense, 2005, p. 99.
30
produzir uma política de subjetivação, que toma o indivíduo como forma totalitária de
existência, acreditamos que a grupalidade pode se constituir como uma aposta na leveza para
se lidar com o peso do mundo, já que pode comportar, em tempos de individualização, a
experimentação de uma dimensão coletiva própria das linhas.
Os processos grupais nos parecem uma experiência rica e oportuna para a cartografia5
das linhas, na proposta de acompanhar seus movimentos e perigos, investindo nas forças
disruptoras e construtoras de novas territorialidades. Acreditando que há sempre a
possibilidade de arranjos novos a serem experimentados.
É uma aposta nas forças que fogem em nós e que podem ser potencializadas no
encontrar, no cuidar, no ouvir, no estar com o outro, e com a experiência desse outrem em
nós. Não quer dizer que seja simples, pois enfrentamos também nos grupos os medos, as
clarezas, os poderes e as mortes perigosas. Vivemos um fechamento dos grupos sobre eles
mesmos ou uma dificuldade de estar em grupo por se temer as práticas autoritárias e
excludentes, que também os cercam. Solidão e isolamento, inclusive e, principalmente, da
grupalidade que habita cada um, que somos cada um de nós.
Nos perigos de uma lógica totalizante a forma indivíduo se espalha como modo de
modelagem seja dos sujeitos, seja dos grupos eles mesmos. Aqui as linhas binarizantes fazem
sua hegemonia, opondo indivíduos (homem x mulher, criança x adulto, homo x hetero),
opondo indivíduo e grupo, grupos e grupos. Nesta lógica “o sentido imprime-se quer sobre o
indivíduo dando-lhe a forma de UM, quer sobre o grupo, dando-lhe a forma de TODO”
(BENEVIDES DE BARROS, s/d: 147). São arranjos de linhas que colmatadas, aprisionadas
numa certa forma de funcionamento produzem o grupo como sendo um grande indivíduo, um
outro Ser, distinto dos indivíduos que o compõem (totalidade) ou ainda o grupo como soma
de individualidades (unidade). E assim, as dicotomias multiplicam-se indivíduo x sociedade,
indivíduo x grupo. O grupo é tomado como espaço de experimentação, mas não de outras
maneiras de estar junto e sim de um reforçamento de hábitos de sociabilidade.
Pensar o grupo nesta via o transforma em espaço de preparação para a vida no socius,
aquele que fará a passagem do indivíduo à sociedade, de forma que cada grupelho deva, de

5
Cartografia: diferentemente de um geógrafo, comprometido com as formações estáveis e com a produção de
mapas topográficos, o cartógrafo acompanha a produção de territórios existenciais, em seus movimentos sempre
provisórios e de transformação. É alguém que vê a vida enquanto paisagem sempre em processo de mudança. O
trabalho da clínica é este, o de construir cartografias existenciais, acompanhando os arranjos das linhas (duras,
flexíveis, de fuga) naquilo que produzem, que atualizam, que dissolvem. Para cartografar é preciso funcionar
enquanto eremita, não apegado aos lugares fixos, mas sempre aberto a novas viagens, novos funcionamentos e
novas paisagens. Sobre esse assunto ver FONSECA, T.M.G.; KIRST, P.G. Cartografias e Devires. A
construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRJ, 2003.
31
certa maneira, fazer da sociedade uma soma de indivíduos, fazer do indivíduo produto da
sociedade.
É nesse contexto, de aproveitamento e sobrecodificação das práticas grupais, que
vemos acontecer um “boom” do fazer grupo, que movimenta: grupos terapêuticos, de
diagnóstico, de trabalho, grupo em empresas, grupo de auto-ajuda. Mas, estariam essas
práticas contribuindo para maneiras de viver menos privatizantes? Estariam comprometidas
com o plano do coletivo, plano de diferenciação e multiplicidade?

Com efeito, o termo coletivo deve ser entendido aqui como que no sentido de
uma multiplicidade que se desenvolve pára além do indivíduo junto ao socius,
assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais derivando de
uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica dos conjuntos bem
circunscritos (GUATTARI, 1992: 20).

A “multiplicidade”, apontada por Deleuze e Guattari, distingue-se do múltiplo, não


sendo entendida como variedade ou diversidade. O múltiplo, segundo Oliveira (2001: 77-78)
“está apoiado em um modelo derivado do uno se opondo a ele; já as multiplicidades não
supõem nenhum modelo, unidade ou totalidade”. Existem somente linhas nesse plano de
multiplicidade, plano do coletivo.
A multiplicidade é, portanto, variação nela mesma e comporta processos molares e
moleculares: processos de criação de formas, maneiras de existir, que são propriamente
processos de criação em vários níveis; e potencialidades moleculares, virtuais, que excedem e
não deixam a multiplicidade cair na diversidade numérica ou na pura molaridade. Nesse
sentido, a multiplicidade põe em cena a diferença em constante processo de diferenciação
(DELEUZE, 1998).
Buscamos, portanto, uma clínica grupal, que possa se dar para além das dicotomias e
modelos, afirmando-se não na verticalidade/indivíduo ou na horizontalidade/grupo/sociedade,
mas na transversalidade6 onde não seja mais possível ou necessário a fixação de fronteiras

6
Transversalidade é um conceito proposto por Guattari em meio ao movimento da Psicoterapia Institucional na
década de 60/70, que estudaremos ainda com mais cuidado neste trabalho. A transversalidade, ou “coeficientes
de transversalidade”, funcionam como graus de abertura e análise, e conjuram tanto as hierarquias, produtos de
uma verticalidade, quanto as totalizações e igualdades, frutos de uma horizontalidade. “Ela tende a se realizar
quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos diferentes sentidos”
(GUATTARI, 1981b: 96). A transversalidade produz um plano comum e heterogêneo, onde se faz possível sair
de um si mesmo do indivíduo e/ou do grupo para abrir-se a um processo de diferenciação e abertura desses
sistemas.
32
separando saberes, impondo limites, delimitando o que seja o grupo. Buscamos, ao contrário,
a experimentação do que possa7 o grupo.
Mesmo diante de todos os riscos e perigos essa dimensão da grupalidade, do coletivo,
nos parece, em nosso tempo, constituir-se como possibilidade de uma ética guerreira, que
pode estar engajada na produção de modos de vida singulares. Nossa aposta é nas forças da
grupalidade, que já existem e que fogem ao grupo totalizado e unificante, possibilitando
abertura à diferença e à variação.

1.4 Modos de subjetivação: uma aposta ética

E quais estratégias podemos construir diante dos perigos da totalização e da


individualização? Se buscarmos um olhar mais atento para nosso quotidiano veremos que as
resistências já se fazem, e que a própria vida resiste à sua modelização. E, se mantivermos
esse olhar perceberemos ainda a impossibilidade de dizer que sempre fomos os mesmos, ou
que a vida sempre se fez da mesma maneira. Nossas linhas flexíveis sempre se fazem
presentes, sendo investidas também na produção de laços solidários, de processos coletivos,
de apostas na relação com o outro.
Pensar o sujeito, para além de si mesmo, é perceber que a própria vida aponta para a
multiplicidade. “A identidade mobiliza em um a multiplicidade que caracteriza a
subjetividade” (OLIVEIRA, 2001: 68). Percebemos em afirmações como: “esse coletivo”, “a
voz do grupo” ou “não me sinto parte desse grupo”, os mecanismos de individualização. Mas,
acreditamos que quando a subjetividade afirma-se como processo, mesmo a unidade e
homogeneidade portam índices ativos da multiplicidade.
Por isso afirmamos no sujeito, sua dimensão de subjetividade; no grupo, sua dimensão
de grupalidade. Foucault de alguma forma sempre trabalhou com essa dimensão da
subjetividade, sempre esteve atento a essa temática. No entanto, é nos seus últimos trabalhos,
principalmente no Uso dos prazeres (FOUCAULT, 1984), que um aprofundamento sobre
esse assunto vai se dar, mudando os rumos de suas pesquisas, mas não, exatamente, o sentido
das mesmas. Deleuze (2005), na leitura de Foucault, entende que a subjetividade se constitui
como uma terceira dimensão em seus estudos, sendo o saber a primeira e o poder a segunda.
Dimensões da produção do que somos e de como nos constituímos.

7
Ver: PASSOS, E.; BENEVIDES DE BARROS, R.D. O que pode a clínica? A posição de um problema e de um
paradoxo. In: FONSECA, T.M.G.; ENGELMSN, S. (Orgs). Corpo, arte e clínica. Porto Alegre, v. 1, 2004, p.
275-286.
33
Interessava a Foucault, no estudo dessa dimensão terceira, analisar as práticas pelas
quais os homens foram levados “a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar”
(FOUCAULT, 1984: 11), a proceder historicamente uma constituição de si mesmos como
sujeitos.
A história sempre funcionou para Foucault como uma ferramenta de intervenção e
análise. Mas, não no sentido de algo que pudesse trazer a verdade sobre o sujeito. Há aí uma
desconfiança das origens, aprendida com Nietzsche, e a afirmação da história como invenção.
Não poderia haver, nesse sentido, uma história que fosse tão pessoal a ponto de servir como
deciframento do sujeito. A proposta de Foucault (1974: 10) é:

Tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que


não está dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá
na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e
que a cada instante é fundado e refundado pela história.

A partir disso, podemos pensar que afirmar o sujeito como um a priori dos
acontecimentos seria limitar a potência da história, reduzindo-a aos limites de um sujeito,
seria ainda reduzir o ser a uns poucos funcionamentos. No entanto, é enquanto identidade,
interioridade e pessoalidade que a subjetividade, muitas vezes, tem sido afirmada. Queremos
compreender, inclusive, quais os efeitos em nossas sociedades modernas dessa reafirmação
constante da subjetividade como individualizada, funcionando separada de tudo o mais.
Dissemos no início que Foucault, em seus últimos trabalhos, dedica-se de forma mais
intensiva à questão da subjetividade. Durante boa parte de sua vida houve uma grande
dedicação em pensar o sujeito na recusa de uma teoria apriorística, no sentido de pensá-lo
como algo já dado. Mas, essa dedicação estava em pensar o sujeito a partir do problema do
saber e do poder. Seus investimentos possibilitaram explorar uma “ontologia histórica” dos
homens nas relações com a verdade, que possibilita a constituição de nós mesmos
(FOUCAULT, 1997); e pensar uma “ontologia histórica” dos homens nas relações com um
campo de poder, que nos traz a possibilidade de nos constituirmos como sujeitos capazes de
agir sobre outros (FOUCAULT, 1984a; 1987). O que faz, então, com que Foucault necessite
desenvolver em seus últimos trabalhos a questão da subjetivação? Não era desse tema que ele
tratava todo o tempo?
Aqui abrimos um parêntese para entendermos um pouco melhor essa relação entre o
saber e o poder. Nossa intenção não é a de um aprofundamento nesse estudo, mas de buscar a

34
importância dessa relação, para pensarmos mais à frente a questão da subjetivação na relação
com a grupalidade.

1.4.1 Pequeno parêntese (ver e dizer não é a mesma coisa): a dimensão do saber

A dimensão do saber é uma preocupação dos primeiros trabalhos de Foucault8, quando


ele começa a perceber que algumas formas de saber como a biologia, a medicina, a
psiquiatria, dentre outras, sofriam transformações tão profundas que não pareciam caber
dentro de um esquema de desenvolvimento continuísta normalmente admitido. As explicações
históricas para tais mudanças no pouco tempo em que aconteciam pareciam de fato não
conseguir dar conta da importância dessas transformações. Para Foucault pareciam não ser
historicamente pertinentes.
Foucault (2006a [a]) dá o exemplo dessa percepção em uma ciência como a medicina,
que até o século XVIII tinha um certo discurso e que em 25 a 30 anos transformou-se
profundamente, rompendo com proposições ditas verdadeiras que até então eram formuladas
e respeitadas. Foucault explicita que as transformações se deram nas maneiras de falar e de
ver e de todo um conjunto de práticas que serviam como aporte à medicina. Não foram novas
descobertas simplesmente, mas a constituição de um novo “regime” no discurso e no saber.

Como é possível que se tenha em certos momentos e em certas ordens de


saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolução, estas
transformações que não correspondem à imagem tranqüila e continuísta que
normalmente se faz? (FOUCAULT, 2006a [a]: 4).

Mas, mesmo nessa questão não é o tempo que realmente importa, se foram rápidas ou
não, mas a qualidade dessas mudanças. As transformações apontam para uma modificação
nas regras de formação de enunciados que são aceitos como cientificamente verdadeiros. Não
se trata de uma mudança de conteúdo ou da forma teórica em que são expostos, mas do que
rege os enunciados.
Os enunciados não são as palavras, frases ou proposições, mas multiplicidades. Cada
enunciado não é uma estrutura e sim uma multiplicidade (DELEUZE, 2005). O que quer dizer
que o enunciado é anterior à palavra, na medida em que a forma e a produz. Os enunciados

8
Destacamos como fonte destes estudos em Foucault os livros: História da Loucura, As palavras e as coisas e
Arqueologia do saber.
35
remetem a um espaço, um meio. É esse espaço que é feito de multiplicidades e que possibilita
às enunciações produzirem frases e proposições.
Esse espaço Deleuze (2005) na leitura de Foucault distingue em três fatias. Uma fatia
de espaço colateral que é formado por outros enunciados que fazem parte do mesmo grupo,
que se associam não por regras de homogeneidade e sim por regras de variação. Isso quer
dizer que a associação entre os enunciados não se dá porque se parecem entre si ou têm
mesmo sentido ou mesmo contexto. Mas por uma variação inerente aos enunciados que faz
com que ora aproximem-se e ora variem novamente e liguem-se a outros enunciados. Uma
fatia de espaço correlativo, que faz as relações dos enunciados não mais com outros
enunciados mas com seus sujeitos, conceitos e objetos. Os enunciados, por exemplo,
implicados na prática psicológica remetem a terapeutas, pacientes, etc.
A terceira fatia corresponde ao espaço complementar, de formações não-discursivas,
que mais tarde serão chamadas de visibilidades. É a relação com esse meio não-discursivo que
possibilita aos objetos de enunciados aparecerem, ganharem visibilidade. É assim que uma
família de enunciados que diz respeito, por exemplo, ao direito penal, leis e infrações
conjuga-se também a um meio visível, à prisão, que faz ver o crime e o criminoso.
O saber tem por objeto as multiplicidades. Segundo Foucault (1997: 206-207) o saber
“é o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos se
definem, se aplicam e se transformam”. É ainda aquilo de que podemos falar em uma prática
discursiva. Na psiquiatria (séc. XIX), por exemplo, o saber é o conjunto das condutas, dos
desvios, das singularidades que se pode dizer no discurso psiquiátrico. É também o espaço em
que os sujeitos se apóiam para falar dos objetos de que se ocupam em seu discurso. Ao falar,
por exemplo, da medicina clássica o sujeito se apropria em seu discurso do conjunto das
funções de observação, de registro, de decisão que produzem esse discurso médico.
Novamente, vemos que o que está em questão não é exatamente o que é falado ou visto, mas
todos os acontecimentos que fazem possível algo ser dito e visto.
Nesse plano Foucault destaca, portanto, um regime de luminosidade, (o que é visível,
observável) e formas de enunciados (o que é dizível). As combinações entre o visível e o
dizível para cada estrato, cada formação histórica, são próprias de determinadas épocas. Cada
estrato se produz em torno do que pode ser dito e visto em cada época. O plano do saber,
portanto constitui formas estratificadas através do que pode ser falado e do que pode ser
observado. Faz, por exemplo, dizer “delinqüência”, faz ver “prisão”. O visível e o dizível
constituem formas, organizando e objetivando a matéria.

36
Mas, essa combinação não é assim tão simples. Definir qual arqueólogo o que se pode
ver e o que se pode dizer em cada época não constitui tarefa fácil. Já que como vimos os
enunciados não são diretamente legíveis nas palavras tampouco as visibilidades no que pode
ser visto, nas coisas. É preciso, portanto, conforme Deleuze (1992:120) “pegar as coisas para
delas extrair as visibilidades (..), do mesmo modo é preciso rachar as palavras ou as frases
para delas extrair os enunciados”.
A expressão rachar as coisas, ou as palavras não significa uma operação de
desvelamento do que estaria oculto. Não há nada por trás, nada escondido. Em cada época o
saber produz os limites do que pode ser visto e dito. A questão está em que há entre as duas
formas do saber uma distância. Não é o visível que faz o que é dito e vice-versa. Não é porque
vemos “a criança que rouba” que dizemos imediatamente “menino de rua”. Ou ainda, não é
porque vemos pessoas reunidas que dizemos “isso é um grupo”. Não há correspondência entre
as duas formas.

por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz,
e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam (FOUCAULT, 1995: 25).

Ver e dizer não é a mesma coisa e, no entanto, agem uma dentro da outra todo o
tempo. Mas, como podem então se relacionar e participar da constituição de um mesmo plano,
o do saber? Deleuze nos diz que é preciso buscar em outro lugar, fora das formas, a dimensão
que tece um no outro, que possibilita um certo encontro.
Aqui chegamos então no ponto inicial de nosso parêntese. É esse entre-lugar que nos
interessa, essa não relação, que possibilita a conexão entre as duas formas do saber e que é
feita pela dimensão do poder. É o poder o elemento informal que habita esse entre-lugar
possibilitando e produzindo as relações entre as duas formas do saber.

1.4.2 Fecha parêntese: o entre-lugar de uma não relação: dimensão do poder

Interessava a Foucault (2006a [a]) explicar o aparecimento dos saberes, exatamente, a


partir das condições externas de possibilidade de emergência dos próprios saberes. Como um
saber nasce, quais os porquês de sua transformação, e principalmente a quais dispositivos de
poder estão ligados. O saber não é uma resultante dos acontecimentos, mas situa-se como
elemento de um dispositivo de natureza estratégica.
37
O poder é relação de forças, e não uma forma. É por ser força, que o poder não pode
ser possuído, tampouco localizável, e que ao mesmo tempo pode se conectar com o saber.
Foucault (1987; 2006a [b]) adverte que não se deve analisar o poder como algo intencional,
não se deve perguntar quem detém o poder, e o que pretende com ele, mas abordá-lo nas
práticas reais em que se encontra investido. Não se deve achar que o poder é algo que sirva a
uns e não a outros, como fenômeno de dominação que se exerce uns sobre os outros e pelo
qual se deve lutar, já que o poder é algo que circula, que funciona em rede. O poder passa
pelos indivíduos e eles mesmos são efeitos de poder.
Se o saber, portanto constitui as formas relativamente rígidas que compõem os
estratos, por outro lado é o poder, feito de relações móveis e não-estratificadas que atravessam
as formas de saber. O poder, portanto, é exterior às formas e, ao mesmo tempo, imanente a
elas. E é esse caráter imanente que possibilita que o ajustamento das duas formas tenha
correspondência e ao mesmo tempo variância a partir de diferentes formações históricas.
A causa imanente Deleuze (2005: 46) nos ajudará a entender como algo que “se
atualiza em seu efeito” e também que se diferencia em seu efeito. Causa e efeito coincidem,
têm pressuposição recíproca. É por isso que os efeitos atualizam as relações de forças, sendo
elas mesmas sua causa. Os agenciamentos concretos da fábrica, escola, hospital atualizam as
forças em suas relações, em seus arranjos, produzindo funções, objetivações (educar,
trabalhar, cuidar) e, ao mesmo tempo fazem isso se diferenciando. A multiplicidade das forças
só pode atualizar-se na medida em que se diferencia em processos binarizantes.

o diferencial das forças não pode integrar-se, a não ser tomando caminhos
divergentes repartindo-se em dualismos, seguindo linhas de diferenciação sem
as quais tudo ficaria na dispersão de uma causa não-efetuada (DELEUZE,
2005: 47).

Vimos no estudo das linhas de forças que as linhas duras se exercem e se atualizam na
produção de segmentações, que podem ser de vários tipos, e que é através dessa
segmentaridade que uma certa organização e objetivação da matéria difusa e caótica se faz
possível, que mundos são criados. É, exatamente, nesse movimento de repartição e dualismo
que as duas formas do saber podem diferenciar-se, e ao mesmo tempo, imanentemente
trabalhar uma na outra.

Temos antes que admitir que o poder produz saber (...); que poder e saber
estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição

38
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1987: 30).

São dois pólos portanto, dois planos que passam entre si. Um plano virtual das forças
diagramatizadas, arranjadas entre si; e um plano atual, da combinação variável do ver e do
dizer, de agenciamentos concretos. Planos que se atravessam fazendo com que ora os
agenciamentos se segmentarizem de forma mais endurecida, ora mergulhem nas forças
abstratas ganhando flexibilidade e chegando a se confundirem. Ora a escola se faz muito
diferente do hospital, da fábrica, ora parecem estenderem-se, aproximando-se em suas
funções.

1.4.3 Saber e poder... porquê subjetivação?

Após esse intervalo talvez possamos voltar a nossa questão inicial. Se Foucault já
propunha uma análise da produção do sujeito a partir do saber e do poder, porque tem ele
necessidade de buscar outra linha, de desenvolver ainda a questão da subjetivação?
Há algo que parece perturbar Foucault, e que, certamente, toca a todos nós, quando,
muitas vezes no estudo das relações de poder sentimos o ar faltar, principalmente, quando nos
debruçamos sobre nossas sociedades contemporâneas e sobre nossa vida de modo geral.
Somos tomados por uma sensação de estarmos encurralados nas regras codificadas do saber,
nas tramas do que é dito e visto sobre nós mesmos, e nas regras coercitivas do poder, nas
relações de dominação que se fazem entre nós, uns sobre os outros.
Deleuze, em seu estudo sobre Foucault, vai nos falar dessa sensação de asfixia, de se
estar preso, desse impasse que parece atingir Foucault. Mas, vai ressaltar que essa sensação
não se deveria à sua maneira de pensar o poder, mas antes “porque ele descobriu o impasse no
qual o próprio poder nos coloca, tanto em nossa vida quanto em nosso pensamento, nós que
nos chocamos contra ele nas mais ínfimas verdades” (DELEUZE, 2005: 103).
E que impasse seria esse? Deleuze (1992) afirma que não há pensador que não seja
atravessado por crises e abalos. O abalo vivido por Foucault parece pedir dele um certo
recolhimento a fim de repensar estratégias e perceber outras saídas. Deleuze (2005) vai supor
que muitos fatores atingem Foucault produzindo esse impasse: um sentimento de desânimo
pelo fracasso na década de 70 do movimento das prisões; acontecimentos em escala mundial,
mal entendidos com relação a seu trabalho, mas talvez o que, principalmente, exija uma

39
parada em meio ao projeto da história da sexualidade, seja o fato de se sentir preso nas
relações de poder, que provocam uma crise no seu pensamento, mas muito mais em sua vida.
Por mais que Foucault aposte nas possibilidades de resistência parece que o poder está
sempre a solapá-las, a envolvê-las e seqüestrá-las. Que impasse é esse que o próprio poder nos
coloca? A questão do poder aparece para Foucault a partir de suas pesquisas sobre a história
da penalidade, quando percebe a produção de uma relação específica de poder que incide
sobre os corpos daqueles que estão enclausurados (FOUCAULT, 1987). Uma tecnologia
disciplinar que chama a atenção por não ser exclusiva da prisão, podendo ser encontrada
também nas escolas, hospitais, exército e fábricas. Esse poder disciplinar, por sua eficácia
produtiva e riqueza estratégica, torna-se muito útil no aprimoramento e adestramento do corpo
humano. Roberto Machado na introdução do Microfísica do poder (2006a, p. XVI), livro
organizado por ele, analisa que a utilização dessa tecnologia objetiva política e
economicamente:

tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica


máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de
insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-
poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente.

As disciplinas aumentariam, portanto, a força econômica, diminuindo ao mesmo


tempo os perigos políticos. O que está em questão é um tipo de relação de poder que incide
sobre o corpo, manipulando-o com técnicas que trabalham tanto na dimensão de espaço
quanto de tempo. No espaço fechado, individualizado, os corpos recebem as marcas da
classificação e combinação, além, é claro, da vigilância. Já o tempo objetivado sujeita o
corpo ao máximo de rapidez e de eficácia. O avanço e utilização dessa tecnologia tornam-se
muito evidentes, por exemplo, no modelo produtivo desenvolvido por Taylor no final do séc.
XIX e início do séc. XX. O Taylorismo experimenta o controle racional de cada gesto e
movimento a ser utilizado na execução de uma tarefa, a fim de estabelecer o tempo ideal a ser
perseguido como forma de aumentar a produtividade. Investimentos de saber/poder a fim de
produzir o homem necessário ao funcionamento da sociedade capitalista industrial.
Mas as técnicas de poder avançam e ampliam o poder disciplinar fazendo surgir uma
nova tecnologia. Tal tecnologia fundamenta-se na regulamentação, em práticas de controle,
que decretam a crise dos dispositivos de normalização. As instituições como: escola, família,
fábrica, etc., que asseguravam a atualização do poder disciplinar, agora parecem tornar-se
descartáveis. Os modelos, antes tão claros, que formatavam o corpo e o espírito dos homens
40
tornam-se difíceis de identificar, já que o controle se exerce em uma modulação rápida e
contínua. Já não se precisa, necessariamente, para a produção de efeitos individualizantes a
demarcação de sistemas fechados, já que o alcance desses efeitos expande-se para a vida. As
sociedades de controle9 têm como alvo a Vida nos homens e não mais a vida de cada homem,
em seus corpos e atos.
Veremos agora um detalhamento maior das tecnologias do poder que atravessam
nossas sociedades contemporâneas, a fim de compreender as mudanças importantes que
fazem com que as disciplinas avancem para um outro tipo de controle, uma espécie de
controle sobre a vida. Talvez possamos encontrar aí algumas indicações para entendermos
melhor a qualidade do impasse em que o poder parece nos colocar e ainda a importância da
subjetivação nesse processo.

1.5 Os perigos vividos: totalitarismo e privatização

Foucault irá empreender uma análise dos dispositivos de poder que produzem
determinadas formas de viver na formação das sociedades. Ao invés de considerar o poder
como propriedade do estado, de uma classe social ou de alguém, o poder é afirmado como
exercício de forças, que cria, incita, normatiza, instiga e, fundamentalmente, produz formas de
vida.
A partir dos séculos XVIII e XIX, o Ocidente viveu, segundo Foucault (1999), uma
transformação profunda desses mecanismos de poder/saber. Os dispositivos que, antes, no
escravismo e feudalismo estavam voltados para uma sociedade de soberania onde segundo
Focault “o poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas,
do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da
vida para suprimí-la” (FOUCAULT, 2005: 128), no capitalismo passa a funcionar a partir de
dois regimes: sociedades disciplinares e sociedades de regulamentação, de controle.
O poder sobre a vida que se desenvolve a partir do século XVII realiza-se sobre essas
duas formas principais, dois pólos interligados, que não são considerados iguais, mas, que, no
entanto, são inseparáveis. O primeiro pólo considerado como disciplinar:

9
Sociedade de controle é um termo utilizado por Deleuze (1992) para designar a lógica de dominação que se
configura na atualidade, produzida no contexto do capitalismo contemporâneo. E, que segundo Passos e
Benevides de Barros (2004: 159) “se expressa não mais exclusivamente por uma exploração do trabalho, mas
também e, sobretudo, pelo exercício de exploração da vida”.
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(...) centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de
suas aptidões, na extorção de suas forças, no crescimento paralelo de sua
utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e
econômicos (FOUCAULT, 2005: 131).

Podemos dizer, através do estudo das linhas de força, que as disciplinas como tipo de
relação de poder funcionam afirmando, principalmente, as segmentações duras, realçando-as
e, ao mesmo tempo, fazendo com que ressoem para um centro comum. Na prisão, na escola,
na fábrica, na família, na igreja..., o que se preconiza é a vigilância constante dos indivíduos,
através de práticas disciplinares, ligando-os a aparelhos cuja função e centro comum é o de
produção, formação e correção para o bom funcionamento da lógica do capital.
Nas sociedades disciplinares, portanto, o poder centra-se em um corpo individual,
onde o que se tenta é aumentar ou mesmo sugar até o limite as forças úteis para o trabalho,
através de técnicas de racionalização e de economia estrita.
Se nas sociedades disciplinares objetivava-se moldar os corpos a determinados
modelos e verdades, o segundo pólo, o das tecnologias de regulamentação, que se formam um
pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, viriam para decretar a crise das
instituições de normalização e operar por um controle “ao ar livre”.
Segundo Foucault (1999: 288-289), forma-se então uma nova tecnologia de poder,

(...) que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a
embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai
utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente
graças a essa técnica disciplinar prévia.

As sociedades de regulamentação, ou ainda, sociedades de controle, não se dirigem ao


homem-corpo, como nas técnicas disciplinares, mas ao homem espécie, ao homem ser vivo.
Enquanto as disciplinas tentarão reger a multiplicidade dos homens, produzindo corpos
individuais hierarquizados, vigiados e treinados, as técnicas de regulamentação produzirão
não uma individualização, mas uma massificação, que Foucault (1999: 289) chamará de uma
“biopolítica da espécie humana”.
Essa nova tecnologia do poder, também chamada de biopolítica ou biopoder, terá seu
desenvolvimento marcado por problemáticas econômicas e políticas e por um conjunto de
processos relacionados à natalidade, mortalidade, fecundidade, reprodução e longevidade
vividos, principalmente, na segunda metade do século XVIII, quando se lança mão de
inúmeros recursos estatísticos e demográficos para estudar esses processos e construir

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procedimentos, que constituirão, segundo Foucault (1999) os primeiros alvos de controle do
biopoder.
O século XVIII traz como desafio as endemias, doenças de maior dificuldade de
extirpação, cujos efeitos recaem sobre a produção com a diminuição das forças, do tempo de
trabalho e baixa nos lucros. No século XIX o campo de atuação do biopoder estará
relacionado ao início do processo de industrialização, que fará da população uma das maiores
preocupações do sistema capitalista. Neste momento, a velhice, as enfermidades, as
anomalias, os acidentes irão introduzir, segundo Foucault “mecanismos mais sutis, mais
racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc.” (FOUCAULT,
1999: 291), toda uma rede de assistência muito menos pontual e localizada como nas
disciplinas e muito mais maciça e lacunar, sutil e de grande alcance.
O biopoder estará, principalmente com o nascimento das cidades, voltado para a
espécie humana e suas relações. Os homens serão vistos, agora, como seres vivos e todas as
condições relacionadas a essa vida (efeitos dos meios geográfico, hidrográfico, natalidade,
incapacidades biológicas, reprodução, fecundidade, etc.) constituem-se como campo de
intervenção e controle das relações de poder.

Não se trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como faz a


disciplina. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o
indivíduo no detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de
agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de
regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do
homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma
regulamentação (FOUCAULT, 1999: 294).

Há algo muito interessante na modulação das tecnologias do poder, há toda uma


engenhosidade e produção de inteligências diversas para construir formas de controle cada
vez menos localizáveis, sutis e perspicazes, que só poderiam obter tais efeitos de equilíbrio e
regularidade globais se, de fato, mais que a atuação no corpo agissem no “espírito” dos
homens, numa certa forma de pensar, de agir, de sentir, de criar, e, principalmente, de viver.
Foucault nos apontará que as funções políticas dos dispositivos de saber/poder seriam
passageiras se não estivessem integradas também por uma produção de subjetividade.
É quando as tecnologias de poder tomam a vida como alvo de atuação que as relações
capitalísticas tornam-se mais inteligentes e também mais cruéis. É por isso, também, que
Guattari (2005) denomina o capitalismo contemporâneo de Capitalismo Mundial Integrado
(CMI), por sua ação sem fronteiras, e pela capacidade alcançada de trabalhar nas bordas, na
43
imanência da vida, o que traz a possibilidade de desmanchamento do próprio sistema, pelo
caráter caótico desse plano, mas é também onde não há mais limites para o desdobramento do
próprio sistema.

Uma das engenhosidades das sociedades de controle é operar por um tipo de


controle que nunca destrói as coisas completamente mas, ao contrário não as
deixa jamais terminar. (...) nas sociedades de controle os moldes não chegam
nunca a se constituir totalmente. Transformam-se contínua e rapidamente em
outros moldes, impedindo a identificação dos modelos de moldagem (NEVES,
1997: 86).

Aí se encontra o auge do complexo funcionamento capitalista, trabalhar no paradoxo.


A sociedade de controle atua, paradoxalmente, produzindo modelos que estão a todo o
momento em mudança. Trabalha, portanto, ao mesmo tempo, na desterritorialização contínua
e na produção de subjetividades serializadas, conforme os arranjos do poder, saltando das
linhas flexíveis às linhas duras, massificação e individualização, tudo ao mesmo tempo.
É por isso que precisamos nos atentar para os perigos nas linhas que produzem a vida,
porque é nelas, nesse plano de produção, que os processos mais cruéis e mortíferos à vida
podem se dar, que as relações mais apáticas, excludentes e de destruição podem ganhar
movimento, como também é nesse plano que as possibilidades de construção de outras
maneiras de viver mais livres também podem acontecer.
Vemos então os perigos nas linhas nos fazendo. O CMI apropria-se de uma lógica de
funcionamento que atua nas virtualidades, transitando das linhas duras às linhas de
segmentação flexível, ora reforçando as segmentações, ora aproveitando-se das mudanças a
nível molecular, dos movimentos conflituosos próprios das linhas flexíveis. Vai construindo
assim uma lógica totalitária que tenta tudo dominar, inclusive, às linhas de fuga, produzindo a
desterritorialização contínua de territórios existenciais, de códigos já constituídos, para num
depois fazer fluir, novamente, as forças para centros comuns de sobrecodificação e
descodificação, que não param de produzir o mesmo.

Em meio a tudo isso, os territórios existenciais se esvaziam de sentido, ou


melhor, os sentidos que se constroem são incessantemente desqualificados.
Isso porque velozes fluxos de descodificação sobre-codificam os sentidos. Os
sentidos são desmontados e em seguida remontados sob a égide de pretensas
verdades científicas, psicológicas, religiosas, etc. Assim, é como se nossa pele
fosse constantemente untada com imagens, com imagens de imagens, com
desejos de repressão e de culpa. Ao estar impermeabilizada para as texturas do
mundo, sua porosidade se fecha ou é antes preenchida por intermediários -

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sentidos sobre-codificados - que assumem o comando de nossas percepções
(MACHADO, 2001: 76).

A velocidade com que os fluxos desterritorializados e descodificados circulam fazem


com que se produza uma sensação de angústia, de busca por um código que traga, novamente,
o sentimento de segurança, a sensação de familiaridade. E, muitas vezes, os códigos a serem
encontrados são códigos já desgastados, que são rapidamente consumidos, conforme as
máquinas de sobrecodificação.

1.6 A saída de um impasse: a dobra do fora

Qual é a mudança significativa que vemos se instalar com a passagem de uma técnica
de poder a outra? Vemos um poder disciplinar que para atingir os corpos e os atos de um
indivíduo utiliza-se de uma série de instituições e práticas pontuais e bem definidas. Através
do investimento em processos de territorialização, no trabalho das linhas duras, produz efeitos
de fechamento, confinamento e sistematização.
Pouco tempo depois uma nova tecnologia se desenvolve, que necessitava desta
anterior e ainda presente, para se exercer. Enquanto a disciplina “tenta reger a multiplicidade
dos homens, na medida em que essa multiplicidade pode e deve se redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”
(FOUCAULT, 1999: 289). As sociedades de regulamentação, almejam uma atuação na
multiplicidade da vida. Foucault nos aponta que o alvo agora é a própria vida. Os fenômenos
levados em consideração por essa tecnologia são aqueles da ordem do universal e do
acidental, fenômenos que acontecem na vida e que não são inteiramente compreensíveis,
sequer antecipáveis.

Enfim, são fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que


devem ser considerados num certo limite de tempo relativamente longo; (...)
acontecimentos aleatórios numa população considerada em sua duração
(FOUCAULT, 1999: 294).

Parece-nos que o poder disciplinar empenhava-se em prevenir as possíveis fugas de


sua tecnologia, através da vigilância e contenção. Já no controle é com a fuga e a
imprevisibilidade que se trabalha, já que os mecanismos criados não se encontram mais
localizados em algo: instituição ou dispositivo, mas estão pulverizados na vida. O aleatório

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agora tem lugar, já que é nele mesmo que se move, é com as linhas de fuga que as relações de
poder se fazem. Já não há distância entre a técnica utilizada e o alvo do poder, já que agora o
poder se exerce na vida e é à própria vida que se quer atingir.
Será que não haveria nada além do poder? Não seria esse o impasse? Deleuze (2005)
supõe que Foucault se faça essa pergunta. Se pensarmos bem, diante desse avanço do poder
sobre a vida, talvez também a façamos.
O impasse pede a reafirmação de algo que sempre esteve em Foucault, mas que agora
precisa ser feito em tom de veemência: afirmar a vida a partir de sua potência de resistência,
na sua capacidade de fazer a força resistir. É quando Foucault estudando o pensamento grego
observa uma outra possibilidade de relação, não mais de ação sobre o outro simplesmente,
mas uma ação sobre si mesmo. Há nos gregos uma preocupação com um cuidado de si, uma
maneira de se conduzir, de trabalhar a si mesmo, como condição para governar os outros,
tornando-se importante uma constituição do sujeito como sujeito moral. “Moral, no sentido
amplo, comporta os dois aspectos que acabo de indicar, ou seja, o dos códigos de
comportamento e o das formas de subjetivação” (FOUCAULT, 1984: 29). Não se nega a
existência dos códigos e regras que agem como referência para determinadas condutas, mas o
que está em questão são as diferentes maneiras para aquele que age de operar com esses
códigos, de produzir regras facultativas, o que faz com que se constitua como sujeito moral de
uma ação. A relação ao código implica também

uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente “consciência de si”,
mas constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo
circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral,
define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um
certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, para tal,
age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova,
aperfeiçoa-se, transforma-se (FOUCAULT, 1984: 28).

Transformar-se, constituir-se como sujeito de uma prática, é nesse movimento que é


possível falar de práticas de si, de modos de subjetivação. Foucault empreenderá a partir dessa
possibilidade uma “ontologia histórica”, agora, das relações humanas com a moral, que pode
nos possibilitar a constituição de nós mesmos como sujeitos éticos. Os gregos, em sua
reflexão moral, orientavam-se não para constituir um quadro de prescrições, uma codificação
dos atos, mas para uma “estilização da atitude e uma estética da existência” (FOUCAULT,
1984: 85). A dimensão ética implica os humanos em relações reflexivas, relações de cada um
consigo mesmo, tornando-se, portanto, fundamental para a constituição das subjetividades.
46
Os gregos inventaram a relação de poder entre homens livres. O cuidado de si aparece
como condição ética para constituir-se como um bom governante, pois só pode governar o
outro, governar a cidade, aquele que a si mesmo governa. “Constituir-se como sujeito que
governa implica que se tenha se constituído como sujeito que cuida de si” (FOUCAULT,
2004: 278). A ética constitui-se como esse cultivo de um si, que não é o de uma interioridade,
de um conhecer-se a si mesmo, como se esse Si contivesse algo que pudesse ser decifrado,
como se houvesse um mundo interior a ser manifestado. Esse Si é relação e só pode ser
cultivado por constituir-se em processos de mudança, porque o que ele comporta é uma
experimentação de liberdade.
Deleuze, no estudo de Foucault, afirma que a grande novidade que aparece com os
gregos apresenta-se “quando os exercícios que permitem governar a si mesmo se descolam ao
mesmo tempo do poder como relação de forças e do saber como forma estratificada”
(DELEUZE, 2005: 107). Há, portanto, uma relação consigo que começa a derivar-se da
relação com os outros, bem como uma constituição de si que não está submetida a um código
moral como regra de saber. Essa derivação é importante porque é através dela que podemos
afirmar uma independência da relação da força consigo.
É aí que Foucault respira, e que nosso fôlego também se renova. Há o que podemos
chamar de uma autonomia da força. Nos gregos o que se descobre é que não basta que uma
força exerça uma ação ou sofra uma ação de outra força, mas que ela atue sobre ela mesma.
Se fosse apenas isso, ação sobre ação, estaríamos fadados a um fatalismo, a sermos apenas o
que a conjunção das forças operasse, o que elas produzissem. É o fato da força curvar-se
sobre si, que torna possível a subjetivação. E o que isso significa? A possibilidade de nos
transformarmos.
Afirmar a subjetivação nos ajuda a pensar que não estamos entregues as tecnologias de
poder/saber, que é possível refletir sobre o que estamos fazendo de nós, e nos cultivarmos de
outras maneiras. Essa possibilidade está colocada agora, porque já está em curso. Abrimos
esse capítulo trazendo algumas falas de um processo grupal, que traziam questões sobre a
maneira como vivemos, encontrando no “Quem sou eu?”, um centro para onde as crises
ressoavam. De fato, em tempos de intensiva individualização, perder-se do que se acha que é
pode constituir um problema. Mas, talvez, a maior problemática seja nos condenarmos a
sermos uma coisa apenas, a nos acharmos sempre, nos encontrarmos sempre em algo.
Porém, nessas cenas grupais não são essas as questões das quais nos ocupamos todo o
tempo. Se havia uma Eláyne ou Elãyne que se sentia perdida de si mesma, em muitos

47
momentos ainda outras apareciam, dando o ar da graça. Forte, resoluta, empenhada em
cultivar-se, em explorar-se. E experimentava-se a si mesma enquanto construía uma relação
consigo que era a de se perceber múltipla. As mudanças foram deixando de ser o problema,
porque a vida nos apontava que elas estavam sempre em curso. E que não era a primeira vez
que Eláyne/Elãyne havia perdido-se do que achava que era.
Com isso queremos afirmar que há possibilidade de um cultivo de nós mesmos em
uma outra direção que não a da prisão e do sofrimento. E essa é uma aposta ética, já possível,
porque a vida mesma se faz nessa possibilidade.

Os gregos inventam o modo de existência estético. É isso a subjetivação: dar


uma curvatura à linha, fazer com que ela retorne a si mesma, ou que a força
afete a si mesma. Teremos então os meios de viver o que de outra maneira
seria invivível. O que Foucault diz é que só podemos evitar a morte e a
loucura se fizermos da existência um “modo”, uma “arte” (DELEUZE, 1992:
141).

Mas, que linha é essa a qual Deleuze se refere? Dobrar a linha? Que dobra é essa?
Dissemos no início desse trabalho que a vida é feita de linhas, de várias espécies, que
entrelaçadas produzem o que somos, compõem nossos modos de viver, engajam-se nos
processos de subjetivação.
A possibilidade de existência e graus de mudança ancoram-se nas relações de forças
que compõem a vida. Não as nossas vidas, a de cada um, mas uma certa idéia de Vida, que é
muito maior que a existência de cada um de nós, mas que também está em nós. E que
possibilita a ampliação dessa existência. “Uma vida...”, Deleuze (1997) diz, infinita e
impessoal.
“Uma vida”, nas forças em relação, no modo como se afetam e são afetadas, produz
tramas complexas, desenhos diferenciados, certas maneiras de existir que configuram o que
Deleuze (2005) chama: uma exterioridade. A exterioridade é o meio em que as formas de
saber se constituem e se diferenciam, por isso elas são chamadas de formas de exterioridade.
Portanto, a exterioridade diz respeito às formas, não se reduz a elas, mas é o meio em que elas
se produzem. A exterioridade é o plano das relações de forças diagramatizadas, que se
encontram presas na conjunção saber-poder. Chamar o plano das formas de uma exterioridade
implica aqui um artifício interessante, que é o de conjurar qualquer interioridade, já que
mesmo uma ilusória interioridade constitui-se num plano de exterioridade.

48
Foucault talvez tenha se sentido preso exatamente aí, na conjunção saber-poder, no
limite da exterioridade. Haveria algo além disso? A exterioridade não seria o limite possível?
E se houver algo além desse limite seria vivível?
A exterioridade seria exterior a quê afinal? Ao Fora. O plano das relações de forças
(poder) engajadas em formas de saber se prendem às bordas de um fora. O fora é uma não-
dimensão, tempestade de forças, o elemento informe das forças, que mistura e agita suas
relações, possibilitando o devir de seus arranjos. O fora é onde nada é ainda, por isso é
abertura de um futuro. Não se trata porém de um plano fora das formas, depois delas ou além
delas, mas nelas constituindo o seu lado de fora.
É difícil definir o que seja essa dimensão do fora. Manoel de Barros (2000: 23) no seu
despalavra talvez nos ajude a intuir isso que não passa pelo saber ou o conhecer, tampouco
pelo dominar, pelo poder.

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.


Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que todas os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Daqui vem que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvio,
por afeto.

A experiência poética nos traz essa possibilidade de sair do mundo e voltar a ele de
outro modo, possibilidade de vivenciar outra versão do mundo. É Maurice Blanchot quem
cria a noção do Fora exatamente para afirmar uma prática ética e estética que a literatura pode
desenvolver. O fora como o não-espaço da literatura. É ele que inspira Foucault e também
Deleuze, através de sua concepção de um Fora.
Seria então possível dobrar essa linha do fora? Há possibilidade de se constituir uma
dimensão do viver, que não esteja fadada à asfixia, ao sufocamento, ao enclausuramento, às
determinação do complexo saber/poder, mas também que não seja de um “vazio irrespirável”
(DELEUZE, 2005: 106), da ordem do invivível, do fora caótico e vertiginoso? Há uma
atmosfera em que seja possível viver entre essas experiências? Foucault nos aponta que
dobrar a linha do fora pode constituir esse espaço respirável, no qual a subjetivação tem sua
possibilidade. Esse lado de fora,

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diz respeito à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as
forças remetem necessariamente a um lado de fora irremediável, que não tem
mais sequer forma, feito de distâncias indecomponíveis através das quais uma
força age sobre outra ou recebe a ação de outra (DELEUZE, 2005: 93).

Falamos já dessa dimensão do fora, como um plano de molecularidade, onde as linhas


abstratas se movimentam. É essa a nova possibilidade como saída do impasse da conjunção
saber/poder que se apresenta a Foucault, “chegar à vida como potência do lado de fora”
(DELEUZE, 2005: 102). Mas, essa idéia não é simples, porque é no fora, nesse plano de
linhas de fuga, que vimos os perigos relacionados ao desgosto/morte, ao vazio. Como
construir uma morada não apenas nas relações de poder e de saber, que se produzem a partir
desse lado de fora, mas também no próprio fora? Como não estar submetido à relação de uma
força sobre a outra, ação de uma sobre a outra, mas também de construir uma morada na
própria força, de fazê-la dobrar-se sobre si constituindo um dentro, que não é interior, por não
ter origem nem destino, começo nem fim, mas que é uma morada em meio a seu fora?
O que Foucault afirma em seus estudos é que os processos de subjetivação se
produzem na ação da força sobre si mesma. Dobrar a força é um gesto ao mesmo tempo ético
e estético. É constituir novos modos de existência, que são determinados segundo a maneira
de vergar, de dobrar a linha (OLIVEIRA, 2001: 63). E é ainda fazê-los como obras de arte,
fazer da linha do fora uma arte de viver.
É essa inflexão da linha de força sobre ela mesma, que produz um si. O si é uma
dobra, um artifício apenas dentro da vastidão de possibilidades. Dobrar e desdobrar, cultivar-
se, explorar-se, transformar-se só são possíveis na relação com seu lado de fora. A dobra é,
portanto, a produção de um dentro, que não é interior, não é fechado, porque continua em
contato com seu fora. “As relações de forças móveis, evanescentes, difusas, não estão do lado
de fora dos estratos, mas são o seu lado de fora” (DELEUZE, 2005: 91). Não estão do lado de
fora da dobra, dos territórios existenciais, como se, novamente, caíssemos num binarismo
(dentro/fora), mas são o lado de fora no dentro. Deleuze (2005: 104) usa uma bela imagem
para explicar essa relação de “um dentro que seria apenas a prega do fora, como se o navio
fosse uma dobra do mar”. O lado de dentro, maneiras de viver, de amar, de querer, em que o
homem se aloja e produz referências para suas ações, é, portanto, a dobra de um lado de fora,
tecido na multiplicidade e processualidade.

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Essas dobras são eminentemente variáveis, aliás em ritmos diferentes, e suas
variações constituem modos irredutíveis de subjetivação. Elas operam “por
sob os códigos e regras” do saber e do poder, arriscando-se a juntar a eles se
desdobrando, mas não sem que outras dobras se façam (DELEUZE, 2005:
112).

Dois movimentos, pelo menos, atravessam a constituição das dobras. A possibilidade


de que cada forma gerada, cada dobra produzida pode sofrer cristalizações, quando capturada
nas relações de poder/saber, produzindo um aprisionamento nela mesma e a impressão
equivocada de que a dobra se separa de seu plano de constituição, de que é independente e
permanente, presa num efeito de pessoalização e individualização. E há ainda a possibilidade
de resistir, de outras dobras se fazerem sempre numa abertura ao fora vertiginoso, de pura
potência.
É exatamente nesse movimento de cristalização das dobras, de captura do movimento
de dobrar-se, que se instalam as problemáticas do modo como vivemos. O que nos acontece
atualmente?
Parece que o que Foucault nos apontava como uma saída, é também a nova visada das
relações de saber/poder que construímos. É porque a relação consigo passa a ser escavada,
interiorizada, e incorporada que ela se integrará às relações de saber/poder. O Si, é codificado,
significado num saber moral que faz nascer o indivíduo, e é ainda incorporado às relações de
poder, fazendo-se seu principal alvo.

A dobra parece então ser desdobrada, a subjetivação do homem livre se


transforma em sujeição: por um lado é “a submissão ao outro pelo controle e
pela dependência”, com todos os procedimentos de individualização e de
modulação que o poder instaura, atingindo a vida quotidiana e a interioridade
daqueles que ele chamara seus sujeitos; por outro lado, é “o apego (de cada
um) à sua identidade mediante consciência de si”, com todas as técnicas das
ciências morais e das ciências do homem que vão formar um saber do sujeito
(DELEUZE, 2005: 110).

O cultivo de si em nossas sociedades modernas será entendido e alimentado por uma


cultura de cuidado, que, por vezes, torna-se obsessivo, instalando exames regulares da própria
consciência, confissões, práticas de registro de vida, além de inúmeras técnicas de controle
sobre o corpo. As noções de mérito individual, participação, espírito de equipe, integração,
funcionalidade, ajustamento, auto-avaliação, privacidade, dentre outras, invadirão nosso
quotidiano, e se constituirão como diretrizes nas atividades que realizamos, nas relações que
construímos.
51
O cuidado de si, que vemos na Antiguidade, surge a partir do cuidado com o outro.
Dar conta de si, para estar com o outro. A modalidade de cuidado consigo mesmo no
contemporâneo destorce essa relação. O outro se torna, muitas vezes, um inimigo, com o qual
lutamos, competimos, de quem desconfiamos.
Porém, ao contrário do que podemos imaginar, a Vida se desdobra ainda de muitas
outras formas e, quando conversamos com as pessoas, ou observamos nosso dia-a-dia,
percebemos que há também um cultivo de si em direção ao outro através de práticas de
solidariedade, de alegria, de confiança e de generosidade. E porque isso?
Precisamos nos lembrar que “o lado de dentro sempre foi a dobra de um lado de fora”
(DELEUZE, 2005: 106). O que ganha existência produz-se a partir desse fora, que continua a
existir em tudo. Mesmo nas condições mais aprisionantes, há um fora que habita o dentro e
que é sua condição de saída, sua possibilidade de abertura. Nossa matéria é multiplicidade,
que não está em outro lugar senão em nós mesmos.

1.6.1 O que estamos fazendo de nós?

O que, então, nossas sociedades contemporâneas vêm produzindo? Quais têm sido
nossas dobras? O que estamos fazendo de nós?
Nossas sociedades de controle investem na produção de subjetividades solitárias,
apáticas, extremamente artificiais, cada vez mais voltadas para uma equivocada interioridade.
Subjetividades que se empenham na “busca de um si mesmo”. Na clínica o “Quem sou eu?” é
uma pergunta que reverbera, infindável, que está sempre sendo realizada por um ou outro em
situações as mais diversas. Mas, o sofrimento não está, exatamente, numa possível perda de
nós mesmos, mas na produção de isolamento e distanciamento do outro. Nos perdemos do
outro, da experiência de alteridade, de mistura, de uma experimentação heterogênea e
múltipla de nós mesmos.
Nosso sofrimento é construído nesse mergulho cotidiano que fazemos em nós mesmos
procurando um algo interior que diga, enfim, o que somos ou do que nos separamos e
precisamos reencontrar. Essa busca perigosa pode nos cegar para essa bela brincadeira de
dobrar e desdobrar modos de existência. Somos cegos não porque não enxergamos, mas
porque, muitas vezes, só vemos aquilo que parece dado. Nossos olhos vêem o UM e por isso
cegam-se para a multiplicidade.

52
Essa espécie de cegueira, produz uma visão separativa, que faz com que não
percebamos o nascimento simultâneo de um nós e de um mundo. Como conseqüência temos
dificuldade de experienciar o frescor da vida, sua renovação permanente que faz com que
todas as coisas (o que chamamos de “nós”, de “mundo”, de “outro”) não sejam nunca os
mesmos. O segredo, se há algum, está nessa produção inseparável do navio e do mar, e de não
nos perdemos do mistério que somos. Dom Juan afirma a Castañeda (1972: 104): ”nós somos
tão misteriosos e assombrosos quanto este mundo insondável. Por isso, quem sabe de que
você será capaz?”. É para este mundo “estupendo, assombroso, insondável” (CASTAÑEDA,
1972: 88), que Dom Juan chama a atenção, lembrando de que nosso mistério está em que
somos desdobramento desse misterioso mundo. E é quando nos achamos coisa já sabida,
separada dessa dimensão do fora que também somos nós, é que nos apartamos daquilo que
nos faz enquanto potência: a possibilidade de mudança e de viver com liberdade e alegria.
Diante dessas questões como situar a clínica? E aqui, principalmente, como situar os
processos grupais face as modelizações capitalísticas?
Nosso desafio parece ser o de apostar que “sempre vaza ou foge alguma coisa, que
escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação”
(DELEUZE; GUATTARI, 2004: 94). É, portanto, o desafio de escapar às engenharias de
produção de paralisia, buscando as linhas nômades, moleculares, habitadas pelas forças que
escapam às segmentações, aos códigos desgastados e que podem se conectar com uma
“política a favor da vida” (PASSOS; BENEVIDES, 2001: 98).

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas
formas atuais de sujeição, uma que consiste em individuar-nos de acordo com
as exigências do poder, e outra que consiste em prender cada indivíduo a uma
identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta
pela subjetividade apresenta-se então como direito à diferença, e como direito
à variação, à metamorfose (DELEUZE, 2005: 113).
É nesse contexto que buscamos a construção de uma clínica com grupos, uma
experimentação grupal, que possa se construir na relação com seu fora. Incluir no sujeito, que
é pura dobra, seu plano de produção de subjetividade, no grupo a grupalidade. Um fora que
pode desdobrar a dobra grupal, possibilitando a abertura para o encontro com esse plano que é
coletivo e impessoal, onde a mistura e heterogeneidade são possíveis, onde um exercício ético
de alteridade pode se fazer.

53
CAPÍTULO 2

A GRUPALIDADE COMO DIMENSÃO RELACIONAL DE NOSSA


EXISTÊNCIA

Neste texto gostaríamos de aprofundar a questão da grupalidade na sua relação com


uma perspectiva ética. Para isso, estaremos retomando novamente algumas das contribuições
nos deixadas por Foucault a respeito do “cuidado de si”, na tentativa de produzir uma relação

54
com algumas idéias desenvolvidas por Maturana e Varela, principalmente, o conceito de “co-
emergência”, naquilo que acreditamos ser uma radicalização ética do cuidado de si e do outro.
Estaremos fazendo uso de textos relacionados a um dos cursos ministrados por
Foucault no Collège de France nos anos de 81 e 82, intitulado A hermenêutica do sujeito10,
dentre outros artigos11 frutos de entrevistas dadas por ele nesta mesma época. Lembramos que
estes foram anos em que Foucault viveu um recolhimento, e até mesmo um silêncio entre a
publicação do primeiro volume da História da sexualidade em 1976 até a publicação
simultânea dos dois outros volumes O uso dos prazeres e o O cuidado de si em 1984, ano
também da sua morte. Tanto o curso quanto as entrevistas dadas neste período mostram o
recolhimento ativo no qual Foucault se dedicara, e é esse material que nos permite entrar em
contato com o que ocupava o seu pensamento naquele momento: a questão da ética e do
cuidado de si.

2.1 O cuidado de si e do outro: a constituição de um êthos12

Afirmávamos em texto anterior a importância dessa dimensão ética no que concerne à


constituição subjetiva dos indivíduos. Nos últimos livros uma nova perspectiva alcança o
pensamento foucaultiano. Se o cuidado até então era pensado numa prática coercitiva, de
controle sobre os indivíduos produzindo o louco, o delinqüente, um cuidado mais próximo da
noção de governo, que servia aos interesses e fortalecimento do Estado, agora é possível
apresentar também uma outra qualidade de cuidado, aquele que o indivíduo estabelece
consigo mesmo, na possibilidade de governar-se, através de uma prática de si.
A questão da governamentalidade13 é uma problemática central, tanto nos estudos
sobre os gregos e romanos quanto no governo que se faz na modernidade. Foucault (2006a)

10
FOUCAULT, M. (1982). A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.
11
FOUCAULT, M. (1984) - A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ditos e escritos V, ética,
sexualidade e política. Rio de janeiro. Ed. Forense Universitária, 2004.
12
Foucault (2006b: 290) lendo os textos gregos levanta algumas das variações da palavra êthos. Desdobra-se
como: substantivo, verbo e adjetivo. Ethopoieîn: produzir o êthos, “transformar o êthos, a maneira de ser, o
modo de existência de um indivíduo”. Ethopoiía: formação do êthos. Ethopoiós: “aquilo que tem a qualidade de
transformar o modo de ser de um indivíduo”. O êthos, portanto, aparece como algo produzido e não como uma
regra a priori a ser seguida. É algo que se constitui no decorrer da vida de um indivíduo, através de uma prática
de si. É ainda aquilo que, ao longo da prática, traz a possibilidade de uma transformação no ser. Foucault (2004:
270) define como “a maneira de ser e a maneira de se conduzir” de um sujeito ou de um coletivo.
13
Em seu artigo A governamentalidade, Foucault (2006a) trabalha a temática do governo, situando seu
surgimento a partir do séc. XVI, na convergência de dois processos: 1 - na passagem do Feudalismo à
emergência e instauração dos grandes Estados territoriais e administrativos; 2 – o movimento da Reforma e
Contra-reforma, que questiona o modo como se é dirigido a fim de alcançar a salvação. Estudando os textos da
época Foucault estabelece diferenças entre o poder exercido pelo soberano e as teorias da arte de governar. No
55
nos diz que vivemos desde o século XVIII na era da governamentalidade, onde as técnicas de
governo tornaram-se a questão política fundamental e onde se inserem tanto as lutas reais
quanto a atual sobrevivência do Estado. O Estado, na verdade, não tem uma unidade, sendo
mais “uma realidade compositória e uma abstração mistificada” (FOUCAULT, 2006a: 292),
que sobrevive distribuída através de estratégias e táticas de governo.
Essa “arte de governar” é muito recente dentro de nossa história. Na antiguidade
greco-romana já existia uma série de tratados que aconselhavam ao príncipe sobre como
exercer o poder, como se relacionar com seus súditos. Foucault (2006b) nos mostra como nos
séculos I-III os filósofos se espalham por toda parte, inseridos nos grandes debates e conflitos,
misturados à vida política, aconselhando àqueles que governam a cidade. Porém, no decorrer
dos séculos, principalmente a partir do séc. XVI, o que se vê não é mais essa qualidade de
aconselhamento, mas a construção de uma arte de governar que se produz na combinação da
razão de Estado e do poder pastoral14 – relacionado ao problema do governo das almas e da
conduta dos homens – e que cuida dos homens enquanto população, exercendo um tipo de
controle totalizante e individualizante, que vimos como o exercício de uma biopolítica, um
poder sobre a vida.
A governamentalidade é, exatamente, esse campo estratégico de relações de poder,
móveis e reversíveis, que envolvem tanto a relação de si para consigo quanto a relação com os
outros. Na análise de como as relações de poder são produzidas, tanto na antiguidade como

estudo de Maquiavel, por exemplo, destaca aquilo que seria para o príncipe o alvo do poder: sua relação com o
que possui, com o território herdado ou adquirido e com seus súditos. O soberano adquire um principado por
herança, por conquista, e o mantém por laços de aliança com outros príncipes, laços de tradição. Mas, é uma
relação sempre muito frágil, já que pode ser rompida, por exemplo, quando um outro príncipe (re) conquista seu
principado. O exercício do poder deste soberano se faz então resguardando e protegendo seu principado, que não
corresponde exatamente ao território e aos súditos, mas a essa relação de soberania herdada ou adquirida. Já no
governo, as práticas de governar encontram-se distribuídas, na medida em que muita gente as exerce, como o pai
de família, o professor em relação ao discípulo, etc. Porém, essas práticas estão dentro da sociedade, do Estado.
“Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo com relação ao Estado (...),
que se opõem radicalmente à singularidade transcendente do príncipe” (FOUCAULT, 2006a: 280). Nesta arte de
governar, o governo não se dá sobre um território e seus habitantes, como no príncipe de Maquiavel; mas sobre
um conjunto de homens e coisas (relações com as riquezas, os meios de subsistência, a fertilidade, a fome, as
epidemias). Trata-se então de dispor das coisas de forma correta para se atingir determinados fins. Assim, é no
final do séc. XVI e início do séc. XVII que a arte de governar começa a se organizar a partir de uma razão de
Estado, superando o regime até então dominado pela estrutura de soberania. Isso quer dizer que o Estado se
governa a partir de uma racionalidade que lhe é própria, com o fim último de consolidar o próprio Estado. Não
obedece nem a leis transcendentais, divinas ou naturais, mas encontra sua razão em si mesmo. Não respeita
nenhuma regra, já que funda as próprias regras.
14
O Estado de Governo apropria-se de uma antiga técnica cristã: o poder pastoral, que apontava a salvação da
alma em outro mundo. Essa associação à razão de Estado redireciona a meta de salvação, que passa a ser a
salvação neste mundo, o que envolve uma luta por prosperidade, realização e segurança. Já havia nesta técnica
desenvolvida pelo cristianismo uma direção individualizante através dos rituais de exame de consciência,
confissão, arrependimento de pecados, porém com a formação do Estado moderno o poder pastoral se transforma
em técnica política de subjetivação, a fim de reforçar o poderio do Estado.
56
nas sociedades atuais, o que se coloca como ponto fundamental é a questão da liberdade. Só é
possível haver relações de poder quando há liberdade, ou melhor, quando os sujeitos forem
livres. É preciso, mesmo de forma desequilibrada, que as relações de poder possam mudar,
circular e se reverter, que os diferentes indivíduos utilizando estratégias possam se modificar.
Só se pode exercer o poder sobre um sujeito se este, em algum momento, também estiver em
situação de exercê-lo. Porém, há circunstâncias, ou como Foucault (2004) define, há “estados
de dominação” em que as relações de poder ao invés de serem móveis encontram-se tão
cristalizadas que a margem de liberdade é pequena e limitada.
O que nos faz pensar que a questão do governo é, principalmente, a questão de como
cultivar a liberdade. Como exercitar a liberdade [questão da ética], no cuidado que se faz
consigo e com os outros [questão da política]? Como fazer um governo como prática de
liberdade? É a partir de uma proposta ética que Foucault afirma essa possibilidade, apontando
que a ética é “a forma refletida assumida pela liberdade” (FOUCAULT, 2004: 267).
É importante compreendermos, portanto, como na antiguidade se produziu um
conjunto de práticas que fundamentavam as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade,
podiam exercer uns em relação aos outros. Como podemos pensar as práticas de cuidado não
como assujeitamento de uns sobre os outros, mas como uma prática ética de liberdade?
Há na história da cultura de si ao menos três momentos que fundam mudanças
importantes na relação do sujeito consigo mesmo e com os outros e que nos ajudam a
compreender nossos modos de vida atuais. São definidos por Foucault como: um primeiro
período platônico-socrático; um período helenístico (séc. I e II de nossa era) e um período
cristão que se inicia na passagem aos séculos IV-V. Cada período comporta uma
complexidade de acontecimentos e tendências diferentes de pensamento, que ultrapassam suas
divisões esquemáticas, não sendo nossa intenção aprofundá-los neste trabalho. Importa-nos,
principalmente, o segundo momento, considerado como “a idade de ouro do cuidado de si”
(FOUCAULT, 2006b), na qual também são produzidas novas relações entre o cuidado de si e
do outro, através de uma série de práticas e estratégias.
Na antiguidade o cuidado de si, o fato de ocupar-se consigo, está relacionado à noção,
em grego, de epiméleia heautôu (FOUCAULT, 2006b). Essa noção se constitui como uma
chave nos estudos foucaultianos. Isso se deve ao fato da epiméleia heautôu congregar tanto
um movimento de reflexão quanto de ação. Primeiro apresenta-se como uma atitude, um
modo de estar no mundo, de refletir sobre as coisas, de estabelecer relações consigo, com os
outros e com o mundo. Também é uma forma de olhar, de conduzir o olhar para si mesmo de

57
maneira a estar atento ao que se passa no próprio pensamento, a conhecer-se, em grego gnôthi
seautón. Além disso, implica ações, ações para consigo, de forma a modificar-se, a
transformar-se. Epiméleia heautôu, portanto, define uma atitude; uma reflexão sobre si
mesmo e uma série de práticas indispensáveis para o cultivo da ação no mundo, constituindo-
se como princípio fundamental para a produção de subjetividade.
Foucault inicia sua primeira aula em janeiro de 82 afirmando o interesse em perceber
de que forma o cuidado de si na antiguidade, epiméleia heautôu, foi sendo reduzido ao longo
dos séculos, na história do pensamento ocidental, àquilo que era apenas uma de suas
fórmulas: o conhecimento de si - gnôthi seautón. Indica esta última como algo fundador da
relação entre sujeito e verdade, uma fórmula que alcança o cristianismo e se estabelece na
forma de um poder pastoral, através de inúmeras técnicas de produção da verdade sobre o
próprio sujeito.
É preciso lembrar que o problema da relação entre o sujeito e os jogos de verdade já
havia sido examinado por Foucault (2004) seja na forma de jogos teóricos e científicos, a
questão do saber; seja nas práticas coercitivas, poder. Porém, há agora uma certa mudança na
colocação do problema da constituição subjetiva dos indivíduos. A relação entre sujeito e
verdade será analisada a partir da prática de si, onde os discursos verdadeiros possibilitam
uma modificação no ser do sujeito, constituindo-o. A relação é de apropriação e
transformação constantes em um trabalho sobre si mesmo. Foucault analisa que na filosofia
moderna há uma mudança de perspectiva que provoca o apagamento do cuidado de si na
exaltação de um conhecimento de si. É a prevalência de uma fórmula sobre a outra que
marcará a história da cultura de si.
O primeiro exemplo dessa emergência do cuidado de si na reflexão filosófica 15 é o
diálogo de Platão chamado Alcibíades, considerado um texto importante do período
platônico-socrático (FOUCAULT, 2006b). No diálogo vemos uma incitação de Sócrates para
que Alcibíades se ocupe de si. Sócrates pressente que este rapaz tem em mente mais do que
aproveitar suas riquezas ou sua beleza, que não se contenta com elas, e que busca voltar-se
para o povo, governar a cidade. Mas, o que sabe Alcibíades sobre governo? Ele sabe que quer

15
Foucault nos alerta que o princípio “ocupar-se consigo” como um imperativo positivo, não foi na Antiguidade
uma recomendação para filósofos, algo destinado a uma classe de sábios e intelectuais. Ao contrário, é uma
antiga sentença grega que se constituía como um princípio corriqueiro muito mais ligado a um privilégio
político, econômico e social que a um privilégio de filósofos. Essa será também uma das críticas feitas por
Foucault à filosofia antiga: aos gregos, nos critérios de superioridade social nos quais se assentam, no fato da
ética ser um privilégio de uma casta social, e ao estoicismo romano quando a ética deixa de estar relacionada a
condições sociais, onde o escravo também pode ser virtuoso. Mas, essa generalização da ética como um
imperativo produzia o risco de que se tornasse uma obrigação normalizadora, a aplicação de uma regra universal
(FOUCAULT, 2006b).
58
governar, sabe também que tem status para isso (família rica, beleza, tradição), mas ignora
como fazer para alcançar o bem-estar e a concórdia entre os cidadãos, que é no que consiste a
atividade política. E é por não saber que Sócrates o aconselha a ocupar-se consigo mesmo, a
tomar cuidado de si mesmo.
Vemos neste exemplo que há aspectos essenciais sobre governar a cidade que escapam
a Alcibíades, que ele, simplesmente, desconhece: “Em que consiste o bom governo da
cidade?”; “Como alcançar o bem estar dos cidadãos?”; “Como fazer para ter acesso a esse
saber?”. Essa é a constituição do problema de como alcançar a verdade, e neste exemplo
vemos que para que Alcibíades possa saber não basta que alguém lhe diga. Não é algo que
Sócrates possa apenas lhe contar. E, mesmo que o fizesse, Alcibíades não alcançaria, não teria
ainda capacidades e habilidades para manejar esse saber, já que é pela ocupação consigo
mesmo, por um movimento de conversão, de modificação, de apropriação de si mesmo, que
se pode produzir saber.
É somente a partir de um trabalho de ordem ética, de cultivo e transformação do ser,
que o sujeito pode pretender alcançar a verdade. O saber é produzido através desse cuidado. É
por isso que a fim de saber governar, é preciso que Alcibíades a si mesmo governe. É preciso
buscar da prática de cuidado consigo mesmo o saber, a tékhne, indispensáveis para o governo
dos outros. O cuidado de si e do outro se fazem aqui inseparáveis.
Como o cuidado de si pode levar a conhecer como se deve cuidar dos outros? Como
trabalhando sobre si mesmo se pode alcançar algum saber?
Vemos no texto do Alcibíades que se ocupar de si exige um trabalho sobre si mesmo.
Esse é o conselho dado por Sócrates: se quer governar a cidade, deve primeiramente governar
a si mesmo. Esse trabalho, portanto, deve fornecer a arte que permita cuidar do outro.
Lembramos que esse cuidado é, segundo a noção de epiméleia heautôu primeiramente uma
atitude, um êthos. Essa é a primeira consideração importante a respeito do que seja esse
pronome reflexivo Si. É preciso cuidar de si, enquanto se é sujeito de relações, sujeito de
ação, sujeito de atitudes, enquanto se é produzido como um modo de viver. Há aqui a
afirmação do sujeito como uma subjetivação, não sendo algo em si mesmo, mas que só se
constitui processualmente como “sujeito de”, ou “na relação com”.
O Si, como pronome reflexivo, impõe um movimento circular, afirmado também por
Maturana e Varela como veremos mais à frente. Essa circularidade aponta para o princípio de
constituição do ser, que é irredutível ao sujeito nele mesmo. Há uma impossibilidade da
redução do sujeito a um substantivo ou adjetivo, impossibilidade de que seja “um”. Ser

59
“sujeito de”, “na relação com”, advém de um movimento circular de produção de si, que
instaura o “entre-dois” ali onde só haveria “um”. Este é também o princípio de grupalidade ao
qual nos apoiamos neste trabalho. A grupalidade, dimensão coletiva da existência, é o que
possibilita a constituição de um si. Si, que indica o movimento de produção do ser. O Si
advindo de processos de subjetividade tem sua morada e emergência no “entre-dois” e não no
“um”. Há uma impossibilidade de ser sozinho e é essa a circularidade constituinte, o que
somos nasce do “entre-dois”, das relações com outros seres, e retorna a essa condição
produzindo uma sempre diferenciação.
Ocupar-se de si exige ainda uma forma de olhar a fim de conhecer a si mesmo, gnôthi
seautón – em grego. Podemos dizer também uma qualidade de atenção sobre si, sobre os
pensamentos e as ações, a fim de conhecer esse modo de vida em funcionamento, a fim de se
perceber na ação. E, para cultivar tanto esse êthos, quanto o olhar atento que lhe é necessário,
é indispensável que se pratique. A prática, de certa maneira, põe em funcionamento tanto esse
êthos, quanto o olhar atento que o acompanha.
Foucault nos chama a atenção para o fato de que no Alcibíades a ênfase do cuidado de
si, epiméleia heautôu, estava no conhecimento de si, gnôthi seautón. Esse si mesmo, o eu para
o qual Alcibíades deveria se voltar é a alma. É nela que as idéias divinas se refletem. É na
alma que a verdade faz morada. É ocupando-se consigo através do conhecimento que se pode
acessá-las. É se conhecendo que é possível alcançar a verdade.
No segundo período, considerado como o marco da expansão do cuidado de si, há uma
série de mudanças16 relacionadas à generalização do cuidado de si na sociedade e na
educação, que farão com que transborde a atividade de conhecimento para se constituir como
uma prática de si.
Essa mudança que tem como conseqüência a ênfase na prática de si, para que se possa
produzir algum conhecimento de si, traz, na verdade, uma transformação ainda maior. Se no
diálogo de Platão investe-se na alma como aquilo a que se deve cuidar, nos séc. I e II este
cuidado de si, esse “si” do qual se cuida é a própria relação, a relação consigo, com os outros
e com o mundo. O si como uma volta ao “um”, dá lugar ao cuidado de si como “entre dois”,
16
Há dentre muitas mudanças ocorridas na passagem de um período a outro algumas que podemos assinalar
quanto: 1- Educação. No diálogo de Sócrates e Alcibíades, fica patente o estado de ignorância em que este rapaz
se encontra, mas, não exatamente, porque ignora certos conhecimentos e sim porque não sabe de sua própria
ignorância, porque ignora que não sabe. Neste período, a educação se impõe sobre um fundo de ignorância. Na
época helenística, segundo período, a vida inteira é uma educação. O sujeito educa-se através e para lidar com os
infortúnios da vida. 2 - Quanto à generalização do cuidado de si que deixa de estar restrito a uma classe social
para estender-se a todas as pessoas. 3 - Quanto à idade, já que é realizado durante toda a vida e não mais
enfatizado na juventude, como no Alcibíades.

60
como relação. Esse cuidado traduz-se como a produção de um êthos, que tem na prática de si
seu principal método. É por isso que a prática de si, no epiméleia heautôu, tem seu auge
nestes séculos, considerados como a idade de ouro do cuidado de si.
A prática de si ganha esse estatuto por inúmeras transformações, dentre elas, uma
mudança tanto no objetivo quanto na finalidade do cuidado de si. Há uma convergência entre
objetivo e finalidade. Não se cuida de si para cuidar da cidade, como no Alcibíades. Cuida-se
de si por si mesmo. O cuidado de si se amplia afirmando-se não somente em sua função
política, mas também em sua função ética, configurando-se como uma prática ético-política. É
nesse período que o cuidado de si como cuidado ético constituirá um dos princípios mais
importantes, tendo como reflexo não o cuidado de cada um com a sua alma, mas o cuidado
com o corpo, com os bens e com o amor. A prática de si se amplia e toma estes três domínios
como “superfície de reflexão”, como os principais domínios da aplicação da prática de si
(FOUCAULT, 2006b: 200).
E o que significa cuidar de si por si e não mais pela cidade?
É a função do outro que está em questão nas duas proposições. No período platônico-
socrático o imperativo era: cuidar dos outros para cuidar de si. Salvar os outros para salvar a
si. É preciso lembrar a importância, nesse período, de se voltar para o governo. Aquele que
governa a cidade, que garante o bem estar e a concórdia dos cidadãos, está,
conseqüentemente, garantindo para si mesmo a felicidade. Além disso, a relação entre
cuidado de si e governo da cidade era tão direta que o cuidado de si era considerado um
privilégio político, econômico e social, destinado ao momento da juventude, onde se intentava
aprender sobre governo. Era, fundamentalmente, uma prática política.
Essa é uma das grandes mudanças ocorridas na passagem de um período a outro,
relacionadas à generalização do cuidado de si, tanto com relação à idade, quanto ao acesso.
Nos séculos I e II o cuidado é uma prática que todos devem cultivar, independente das
condições sociais, ao longo de toda a vida, não mais estando, exclusivamente, ligado à
juventude.
Cuida-se não mais pela cidade, mas por si mesmo. Há uma inversão na relação. “É
preciso ocupar-se de si porque se é si mesmo e simplesmente para si” (Foucault, 2006b: 237).
A prática do cuidado de si, nesse momento, liga-se não somente à política, mas, sobretudo, à
ética. Deve-se salvar a si mesmo por si mesmo. A salvação tem aqui o sentido de libertar-se
da dominação e da escravidão.

61
E qual seria a relação do cuidado efetuado sobre si mesmo com o cuidado do outro?
Estaríamos com essa inversão na relação afirmando um sujeito solitário e egocêntrico, que só
tem olhos para si mesmo?
Talvez, seja difícil para nós compreendermos e nos aproximarmos da diferença
fundamental posta em funcionamento nesse modo de viver, através desse êthos: governar a si
mesmo, a fim de produzir ações justas, a fim de agir com liberdade. Nesse êthos é a liberdade
que está em questão, é a liberdade que é cultivada no cuidado de si. “(...) Uma vez que ser
livre significa não ser escravo de si mesmo, nem dos seus apetites, o que implica estabelecer
uma certa relação de domínio, de controle, chamada arché – poder, comando” (FOUCAULT,
2004: 270). Não ser escravo de si mesmo, significa não estabelecer com os outros uma
dominação tirânica, já que se assim o fizesse estaria sob o controle de seus desejos,
aprisionado a eles. “É o poder sobre si que vai regular o poder sobre os outros” (FOUCAULT,
2004: 272).
Há como efeito do cuidado de si um benefício aos outros. Salvar a si passa por
libertar-se da servidão a si mesmo. Libertar-se dos medos, da arrogância, do abuso do poder e,
por isso, é, ao mesmo tempo, salvar os outros, não produzindo sobre o outro um governo, uma
ação que cerceie ou limite sua liberdade de ser. Cuidar de si é cuidar do outro. Mas, apesar
dessa intrínseca relação o cuidado de si tem o primado. Segundo Foucault (2004), a relação
consigo mesmo é ontologicamente primária em relação ao cuidado dos outros. Porém, o
primado não significa a desqualificação do cuidado do outro em relação ao cuidado que se
estabelece consigo. Antes, é afirmar que o cuidado de si é condição para o cuidado do outro.
Entendemos que Foucault afirma um primado na relação de cuidado tendo como
referência nossos modos de viver na modernidade. Se o primado estivesse no cuidado do
outro, cuidar do outro para cuidar de si, poderia haver um risco de imprimir sobre o outro uma
prática de pastoreamento, de condução e de submissão de uns em relação a outros. Esse risco
é mais que notável em nossos dias quando, de fato, vemos uma arte de governar que imprime
sobre o outro uma ação de extrema dominação e sujeição. Compreendemos o primado em
Foucault, como um modo de assegurar que cuidando de si o sujeito não produzirá sobre o
outro uma ação leviana, ambiciosa e de abuso de poder, além de afirmar a liberdade e
inseparabilidade na relação.
Foucault nos traz através dos textos escritos por Marco Aurélio, imperador romano,
um bom exemplo do que sejam os efeitos para os outros dessa dobra sobre si mesmo. Marco
Aurélio propunha como princípio geral de conduta para si não se iludir acreditando que suas

62
tarefas de príncipe eram mais importantes que as de qualquer outro homem. Buscava
conservar-se simples, honesto, natural, amigo da justiça, afetuoso e solidário. “É preciso
esquecer que se é um César, e somente realizar o trabalho, cumprir os encargos cesarianos
sob a condição de comportar-se como um homem qualquer” (FOUCAULT, 2006b: 245). E
qual seria o benefício para os súditos desse cuidado? É esforçando-se no cultivo de um êthos,
que a relação com o outro pode se fazer tendo por base a generosidade, a amizade e a
liberdade.
Essa liberdade possibilita uma operação muito importante. Não é somente libertar-se
dos desejos de assujeitamento do outro, mas é também se libertar de uma cristalização que se
dá no próprio sujeito, que toma seu olhar, e faz com que seja dominado por um amor
excessivo a si mesmo ou por um desgosto sobre si mesmo. A liberdade faz frente ao apego ao
eu como centro regulador de nossas ações.
Podemos então perguntar novamente: qual é o sentido do Si quando o pensamos a
partir da idéia de cuidado e de prática – cuidado de si e prática de si?
Fizemos algumas indicações: Si como relação e como prática de liberdade. Mas, a
partir disso, no que consistiria o cuidado de si? Cuidar da relação? Cuidar da liberdade? No
entanto, se assim o fizermos, não estaríamos afirmando o Si como fundamento do cuidado e
da prática? Como algo já dado e do qual se deve cuidar? Há aqui o perigo de compreendermos
o Si tanto como sujeito ou agente do cuidado, aquele que efetuará a ação de cuidado sobre si
mesmo ou sobre outrem, quanto, na outra extremidade da relação, como objeto do cuidado.
Nas duas possibilidades o Si aparece reduzido a uma fórmula dualística: sujeito ou objeto,
tornando-se ponto de partida ou de referência para a ação de cuidado.
Há ainda uma outra possibilidade. Dissemos que o que se cultiva no cuidado de si é a
liberdade. Mas, talvez, a inversão da questão apresente melhor essa idéia: O que se cultiva na
liberdade é um Si. De fato, é esse o sentido que encontramos na prática do cuidado de si.
Antes de ser um fundamento das ações, o Si se apresenta como efeito emergente do que nele
ou através dele se opera.
Vemos, portanto, novamente o movimento de circularidade que o cuidado de si impõe.
O que é cuidado não é o Si, mas o próprio cuidado que o produz. Cuida-se do cuidado,
cultiva-se o processo de constituição, justamente para que o Si não seja aprisionado em uma
pessoalidade, reduzido a um centro estático e regulador das ações. Esse é um ponto muito
importante, tendo em vista que a circularidade do cuidado de si, cuidado que cuida do
cuidado, afirma o caráter processual e de variação do que chamamos de Si. Para que não

63
sejamos aprisionados em apenas uma forma ou em um modo de viver, o que somos deve
sempre esvaziar-se do caráter sólido das identidades, para que sem que nos agarremos a elas,
possamos nos mover em meio a elas, criando no que somos espaços vazios de passagem. Eis,
que o si fundamento, substancialidade, dá lugar a um si como efeito emergente da ação de
cuidado, que, por definição, deve se esvaziar de si.
Em nosso cotidiano há bons exemplos do sofrimento produzido quando passamos a
fazer um cuidado de formas e identidades. Rinpoche (2006: 16) traz a imagem do adulto e da
criança que constroem um castelo de areia na praia. O castelo construído pela criança é
constantemente levado pelas ondas do mar ou desmanchado por outras crianças, e a criança
que o construiu sofre porque para ela o castelo é uma casa de verdade que vai durar para
sempre. Mas, o adulto acha engraçado porque sabe que o castelo não era real e nem durável e
por isso não se apega a ele. No entanto, o adulto não consegue, muitas vezes, olhar com a
mesma sabedoria para os castelos que constrói em sua vida, sofrendo como a criança por
achar que são permanentes. O adulto se esquece que tudo não passa de uma brincadeira de
construir castelos para as ondas levarem.
Esvaziar-se de si é desapegar-se das identidades, de nossos castelos existenciais. O
tema do vazio nos traz novamente o encontro com o “fora”, tendo em vista que a matéria de
um si vazio de si é o fora. Como dobrar essa linha do fora? Como tornar o fora, caótico e
vertiginoso, vivível e habitável? Como constituir uma dimensão do viver, que não esteja
fadada à asfixia, às determinações do complexo saber/poder? Como esvaziar-se de si? Essas
questões já nos acompanhavam no primeiro capítulo deste texto. Aqui acreditamos avançar
um pouco mais.
Dobrar a linha do fora é constituir um Si. Mas, como? Foucault (2006b: 272) nos diz
que é preciso construir um “vazio em torno de si”, um si fora de si. Um si esvaziado de
substancialidade ou fundamento, que emerge por liberdade, nas relações com o mundo e com
outros seres.
O Si advém em um movimento de liberdade e das relações com o mundo. Se há
esvaziamento de um si fundamento é porque, paradoxalmente, o Si, enquanto passagem e
liberdade transborda em um exercício de “outramento”, de alteridade, de transformação de si.
É por poder libertar-se de si, abandonar-se como fundamento, neste gesto anti-narcísico ou
anti-proprietário que a alteridade advém como valor supremo. A inseparabilidade entre o
cuidado de si e do outro advém dessa operação constituinte de Si, que se dá no outrar-se.

64
Pois bem, vimos até aqui sobre a qualidade desse êthos, dessa atitude no cuidado de si,
que compõe o epiméleia heautôu, e que com Foucault entendemos como um vazio em torno
de si, um si fora de si. Um si vazio de fundamento e pessoalidade e por isso exercício de
outrar-se, de transformar-se, no cultivo que se faz na relação com o outro como diferença
potencial do que somos e no que somos.
Estaremos na próxima seção explorando o olhar que acompanha a constituição de um
êthos, um modo de conhecer que pode nos permitir ver tanto a nós mesmos neste mundo,
quanto ao mundo que construímos e habitamos.

2.2 Uma forma de olhar : conhecendo o conhecer

Há no cuidado de si, epiméleia heautôu, ao menos três direções inseparáveis: uma


atitude, que vimos até aqui, como um modo de estar no mundo que implica a constituição de
um êthos; uma forma de olhar e ações práticas.
A forma de olhar no epiméleia heautôu é uma operação de conhecimento. Há aí
sempre o perigo de constituir uma forma de olhar para si em que o “si” se confunde com um
sujeito individualizado. Esse perigo é vivido, segundo Focault a partir do modelo cristão e
pós-cristão e da apropriação destes pela razão de Estado. Vimos a produção desse olhar
individualizante no estudo das sociedades modernas, através de estratégias disciplinares e de
controle.
A fim de explorarmos uma forma de olhar que se volta sobre si, presente no epiméleia
heautôu, estaremos acompanhando os estudos desenvolvidos por Maturana e Varela sobre a
experiência humana. Estes autores trabalham a partir do campo das ciências cognitivas. E é
interessante que vindos dos estudos da cognição encontremos não somente uma proximidade
com o que viemos até então trabalhando, como também uma outra qualidade de compreensão
e exposição de idéias que em muito contribui para a ampliação do tema do cuidado, bem
como da grupalidade aqui em questão.
Maturana e Varela possibilitam um diálogo não somente com as ciências cognitivas,
mas com a filosofia, a clínica, as teorias grupais, tendo em vista que a matéria de seus estudos
é a abertura à experiência humana. Talvez, por isso produzam um contraste dentro das
ciências cognitivas ao afirmar a cognição não a partir de leis ou princípios invariantes, mas a
partir do problema da invenção. O sistema cognitivo é caracterizado como sistema

65
autopoiético17 onde o vivo não se define como sistema auto-regulador, mas como sistema
capaz de produzir a si mesmo ou de estar em constante processo de produção de si. Aqui
encontramos nosso ponto de proximidade: produção de si e cuidado de si (transformação do
ser).
É interessante que nesse ponto do texto compreendamos a relação possível entre os
estudos da cognição, conhecer como conhecemos, proposto por esses autores e a forma de
olhar, gnôthi seautón, que compõe o epiméleia heautôu grego. Entendemos que Maturana e
Varela avançam em uma reversão do cartesianismo ao afirmarem não um conhecimento de si,
voltado ao próprio sujeito, mas um conhecimento do vazio de si. Conhecer como nos
produzimos e nos produzirmos na ação de conhecer, esse é o princípio paradoxal de
circularidade presente em muitas das formulações desses autores. Cabe aqui também a crítica
feita por Foucault à apropriação na modernidade do conhecimento de si como afirmação da
individualização do sujeito e o caminho percorrido por ele, nos estudos das sociedades gregas,
a fim de afirmar uma perspectiva ética de produção de subjetividade. Acreditamos que esse é
o ponto de confluência: em Foucault a produção de si, em Maturana e Varela a invenção de si.
O diálogo entre estes autores evidencia, portanto, que a fronteira entre conhecimentos
é ilusória e arbitrária e que aquilo que poderíamos afirmar como contrários ou,
irremediavelmente, díspares são, no entanto, complementares. A complementariedade afirma
o exercício de transversalizar e porque não de outrar-se com relação aos saberes e
experiências, onde filosofia, psicologia, biologia complementam-se e transformam-se
mutuamente.

17
Um bom exemplo para compreensão do processo de autopoiese advém da crítica realizada por Maturana e
Varela (1995) às teorias evolucionistas propostas por Darwin e Lamark. No Darwinismo, a fim de se combater a
perspectiva criacionista, que postula o surgimento das espécies a partir da vontade divina, Darwin afirma o
conceito de seleção natural em que há um engendramento das espécies umas pelas outras, onde os indivíduos
com mais oportunidade de sobrevivência seriam aqueles cujas características fossem mais apropriadas para
enfrentar as variações ambientais. Aqui há a idéia do organismo como fundamento da evolução. Já no
Lamarkismo o meio faz o papel central na direção de mudança do organismo. Os autores criticam a idéia de um
ponto de partida para a evolução sendo em Darwin o organismo e em Lamark o meio. Afirmam que organismo e
meio são efeito de inúmeros processos disparados por uma deriva natural. Portanto, não preexistem um ao outro,
mas emergem juntos. Essa produção co-emergente se dá através de perturbações recíprocas e “acoplamentos
estruturais”. O acoplamento estrutural se faz na busca do organismo por encontrar respostas para os problemas
colocados por seu meio. Não há direção dada de antemão ou resposta prévia para os problemas com que se
depara, mas um processo de invenção, de transformação do organismo e do meio. A evolução tem, portanto,
como condição o processo de autopoiese para garantir a contínua auto-criação dos seres e do mundo em que
vivem. Maturana e Varela concebem, portanto, o processo de transformação do vivo de forma mais radical que a
biologia, afirmando o sistema vivo não como auto-regulador, cujo trabalho diante das perturbações sofridas seria
o de compensação tendendo a uma homeostase, de forma a manter ou resgatar o equilíbrio perturbado. Na
autopoiese a experiência de perturbação do equilíbrio dado é positivada, visto que é na perturbação de uma certa
forma de funcionar que o sistema vivo pode se reinventar e se auto-produzir na direção de uma deriva natural.
66
Maturana e Varela (1995) problematizam certos modos de olhar hegemônicos através
dos quais, muitas vezes, nos movemos em nosso cotidiano. Buscam compreender ainda a
possibilidade de um olhar que se volta sobre si ou como eles mesmos dizem que faz possível
“o surgimento do ser autoconsciente” (MATURANA; VARELA, 1995: 29).
Um bom exemplo utilizado pelos autores é o do observador clássico em situação de
pesquisa, onde se delineia uma relação que é tradicionalmente triangular, formada por um
observador no vértice superior; em uma das bases o objeto a ser observado e na outra base o
ambiente que circunda o objeto de pesquisa. Na verdade, agimos como pesquisadores
tradicionais em muitas circunstâncias, nas relações com outras pessoas e com o meio
ambiente.
No cultivo, por exemplo, de uma planta, como investigadores cotidianos, a olhamos
todos os dias, vemos as variações que o meio ambiente promove: sol, água, vento, e da
mesma forma como a planta interage com esses elementos. Na construção de um gráfico
acompanhamos a progressão de seu desenvolvimento, a partir das variáveis ambientais. Mas,
nesta pesquisa tradicional e corriqueira, o observador está sempre acima e à parte dos gráficos
que produz. Vê tanto a planta, seu objeto, quanto às variações do meio independentes entre si
e independentes do próprio observador. Nesse processo o conhecer é adquirir informações,
acumular dados a fim de realizar previsões. Maturana e Varela (1995) afirmam, no entanto
que há aí uma armadilha, a de acreditarmos na possibilidade de uma realidade objetiva
independente da experiência perceptiva, ou seja, desse ato de observação.
Como pesquisadores cotidianos parecemos sofrer de uma visão bifocal: que ora
enxerga somente o que está mais distante, ora o que está muito perto. As lentes para distância,
objetivas, vêem uma realidade que se faz independente de nossas capacidades perceptivas e
cognitivas, como no exemplo acima. Os olhos vêem um mundo já dado e que deve ser
apreendido e decodificado por quem o observa. Mas sofremos também com lentes que
buscam respostas somente em nós mesmos. Essa é uma visão subjetivista em que a
experiência humana é justificada como uma construção da mente. Duas visões, portanto, em
que a natureza de nossas experiências se explica por um mundo real separado ou por um
sujeito real separado (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003).
Mas, o que vivemos, de fato, mostra-nos que tanto uma lente quanto a outra recortam
apenas uma possibilidade de nossa existência, impedindo que vejamos o que as extrapola.
Como a armação de um óculos que com lentes especiais produzem um foco. Focados,

67
deixamos de ver o que está no limite dessa visão, nas suas bordas. O que vemos traz o
contorno estabelecido pela delimitação de nossas lentes.
Essa cegueira de ver, produzida por uma visão limitada, está na raiz de muitos de
nossos sofrimentos. Com uma visão limitada o sofrimento parece inevitável. Planejamos
nossas ações tendo por referência lentes independentes, mas o que encontramos é um mundo e
um sujeito que se produzem juntos. Construímos fixações e apegos a coisas, pessoas,
emoções, e tomamos um susto diante da impermanência daquilo a que nos agarramos.
Tentamos conhecer as motivações dos atos das outras pessoas, traçamos nossas teorias,
estabelecemos perfis de comportamento, buscamos entender o que acontece conosco e com o
outro, mas nada disso nos ajuda efetivamente a sairmos de nossas confusões.
Maturana e Varela propõem, então, que coloquemos a nós mesmos na situação de
objeto de estudo. Seria possível investigar a nós mesmos a partir de fora, como acreditávamos
fazer com a planta? “Como é possível que eu mesmo possa dar conta das regularidades e
variações perceptivas do meu próprio mundo?” (MATURANA; VARELA, 1995: 34-35).
Nesse caso nem as lentes objetivas tampouco as subjetivas nos ajudam nessa tarefa, pois a
irregularidade e a complexidade de nossas vidas é o que extrapola essas lentes, necessitando
de uma ampliação da visão, para que possamos ver a natureza de co-dependência da
realidade.
Mas, não era esse o problema ao qual o cuidado de si se dedicava na antiguidade?
Entendemos que essa qualidade de produção de conhecimento era o que estava em questão na
relação do sujeito com a verdade nesse momento histórico.
Como ao invés de conhecer o que conhecemos, podemos conhecer como
conhecemos? Ao invés de conhecer o que o olho nos dá a ver, conhecer o próprio olho,
compreender nossa visão, como um olho que olha a si mesmo.
Maturana e Varela (1995) afirmam que a concepção de um conhecimento objetivo
sobre as coisas, independente daquele que observa e pesquisa, dificultou ao conhecimento
humano compreender seu próprio funcionamento. A questão que esses autores colocam é:
como é possível para o conhecimento humano conhecer o seu próprio conhecer? Como o
conhecimento humano pode conhecer, não através das lentes, mas o próprio processo de
fabricação das lentes? “Como a consciência humana pode descrever seu próprio operar?”
(MATURANA; VARELA, 1995: 19).
Operamos implicados a essa problemática. Na vida cotidiana desenvolvemos um
conhecimento sobre nossas ações, que, na verdade, nos distanciam delas. Damos lugar a um

68
pensamento racional e abstrato, que continuamente gera a si mesmo, de forma veloz, sem que
sequer percebamos.
Caminhamos até o ponto de ônibus pensando que pode chover. Lembramos, então,
que esquecemos de pegar o guarda-chuva e também um casaco. Parece que à tardinha pode
esfriar. O resfriado na semana passada não poderia se repetir. Quando nos damos conta, já
demos sinal ao motorista e já estamos entrando no ônibus. Passamos pela roleta, já guardando
o troco na carteira, e temos a convicção que vamos chegar atrasados no trabalho.
Rapidamente, listamos as coisas que temos a fazer quando chegarmos. A cabeça está fervendo
e queríamos parar de pensar por um minuto apenas. Quando nos damos conta já estamos no
fim da viagem. E, às vezes, até conseguimos ver que foi tudo tão rápido, que nem reparamos
na paisagem do caminho, que o trocador na roleta nos passou desapercebido e que sequer
tínhamos visto que havia alguém sentado ao nosso lado.
É para esse fenômeno tão corriqueiro que esses autores nos chamam a atenção.
Conhecer o próprio conhecer. Compreender nossos funcionamentos ao invés de agirmos
condicionamente através deles. Estar presente na experiência.
O cuidado de si nos gregos e romanos estava implicado a essa problemática. Foucault
(2006b: 561) afirma que há uma relação permanente entre cuidado de si e conhecimento de si.
E que esse conhecer é uma prática complexa composta por diferentes formas de reflexividade
em um movimento de “volver os olhos para si” (FOUCAULT, 2006b: 268). Há pelo menos
dois exemplos interessantes: em Plutarco, onde volver os olhos para si é desviá-los da
agitação cotidiana e da curiosidade pela vida alheia. “(...) se trata de substituir o conhecimento
dos outros ou a malévola curiosidade em relação aos outros, por um exame um pouco sério de
nós mesmos” (FOUCAULT, 2006b: 269). Essa seriedade aparece em Plutarco como a
recomendação de se caminhar como os cães que são levados em coleira ensinados a não se
dispersarem para os lados, mas seguirem em linha reta. É preciso concentrar-se em si mesmo,
não para vigilância ou decifração de si, mas como exercício de atenção “para melhor
concentrar o pensamento na própria ação” (FOUCAULT, 2006b: 272).
Um outro exemplo está nos exercícios18 realizados pelos estóicos, que tinham como
objetivo estar atento à verdade daquilo que se pensa, às representações que se dão no

18
Dentre esses exercícios Foucault (2006b) destaca a praemeditation malorum, premeditação ou presença dos
males, que foi sempre alvo de discussões na antiguidade, tendo em vista que havia nos gregos uma grande
desconfiança em relação ao pensamento sobre o porvir. Na prática de si havia quanto à morte e ao porvir a
direção de não tomá-los como alvo de preocupação, como nós mesmos o fazemos na modernidade. Preocupar-se
com o porvir é estar “ocupado antecipadamente” (idem: 563). É ter o espírito aprisionado pelo porvir, não sendo,
portanto, livre. O porvir é desqualificado por ser comparado ao nada, por não existir, não havendo domínio
69
pensamento e dos julgamentos, emoções e paixões suscitados por elas. Essa atenção buscava
examinar se aquele que pensa coisas verdadeiras é também aquele que age como quem
conhece estas coisas ou, em outras palavras, se há entre aquele que pensa e aquele que age
retidão e continuidade. Se o pensamento e a ação são unos.
Entendemos que as questões que moviam esse exercício reflexivo aproximam-se
daquelas evidenciadas por Maturana e Varela sobre o conhecimento: Como estar presente na
experiência? Como estar presente enquanto se está agindo? Como se dar conta dos hábitos
que movem nossas ações? Como acessar a liberdade diante dos acontecimentos da vida?
Como, ao invés de ser pensado pelo pensamento em inúmeras abstrações cotidianas, poder
alcançar uma visão ampliada capaz de olhar a si mesma?
A isso que na antiguidade se delineava como a prática de um cuidado de si, podemos
pensar com Maturana e Varela como uma reflexão aberta e atenta para a experiência humana.
Uma reflexão incorporada, encarnada, ao invés de abstrata e distanciada de nossas ações.

Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual corpo e mente foram
unidos. O que essa formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas
sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma
reflexiva de experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003: 43) [grifos nossos].

A reflexão não é sobre a experiência, mas uma forma de experiência. O que isso quer
dizer?
Chagdud Tulku Rinpoche (2006), lama tibetano, utiliza-se da imagem do espelho para
afirmar o acesso à sabedoria que mora no conhecimento da natureza de liberdade que nos é
constituinte. Talvez, a idéia do espelho nos ajude a compreender o que esses autores afirmam
a respeito do conhecimento e da atividade de reflexão que o acompanha. Rinpoche (2006: 29)
diz que a maior parte das pessoas encara a vida como quem olha através de uma janela,
julgando tudo que acontece consigo e com os outros como uma experiência externa. Dessa
forma, olhamos para as coisas tentando nos apropriar ou nos afastar delas. O que vemos é
rapidamente julgado como algo que gostamos ou não. Assim durante nossa vida, debruçados
numa experiência de janela, agimos a partir do que cada coisa que vemos nos desperta: raiva,

algum sobre ele. Ao mesmo tempo, o porvir é positivado, mas, paradoxalmente, em relação ao passado. Há um
pensamento sobre o passado, que traz o primado da memória na antiguidade, em que a reflexão sobre a memória,
sobre o que se passou aponta para uma atitude para o porvir. “(...) o que está em jogo na prática de si é
precisamente poder dominar o que se é, em face do que é ou do que se passa” (idem: 564). É neste contexto de
reflexão ética sobre o que somos e o que estamos a fazer que se coloca a questão do conhecimento de si.
70
amor, desprezo, indiferença, satisfação. E, nos movemos impulsivamente em resposta a essas
emoções.
Porém, é possível também se apropriar da experiência não como independente de nós,
mas como um espelho a fim de examinarmos o que se passa conosco. Como se pudéssemos
olhar a nós mesmos enquanto se olha. Examinar nossas ações enquanto se age. Nesse
momento a reflexão é uma experiência.
A imagem do espelho é muito utilizada nas práticas psicológicas, e por isso é bom que
compreendamos como o espelho é usado no ensinamento dado por Rinpoche. O espelho é um
instrumento muito familiar a todos nós, nele nos observamos e através dele guardamos uma
imagem mental de como somos. Há também em nossos tempos modernos, mesmo que não
claramente para todos, a forte relação do espelho ao mito19 de Narciso, um jovem de beleza
inimaginável, que vendo um dia sua imagem em um espelho d’água é tomado por uma paixão
por si mesmo que o leva a morte.
Rinpoche, no entanto, apresenta um espelho não-narcísico, que reflete como imagem
não a nós mesmos, mas como nos constituímos. Nesse sentido, um espelho completamente às
avessas da utilidade moderna. Nele não vemos nossa imagem, e sim o processo de produção
da imagem que acreditamos ter. Nessa experiência vemos a ilusão de uma separação entre
sujeito e mundo, já que o que nos serve de espelho é o próprio mundo. Olhamos para o
mundo, para as relações com os outros seres, e vemos o mundo em nós, e nos vemos no
mundo. Assim, tudo o que fazemos, nos mostra como nos constituímos. Tudo o que nos
constitui mostra-nos o mundo que estamos fazendo com os outros. Esse é também o princípio
de circularidade apontado por Maturana e Varela, que nos faz sentir uma vertigem, ou ainda,
como propõe Foucault, faz-nos dar uma cambalhota no pensamento. De fato, o espelho não-
narcísico promove a paradoxal experiência de descolamento de nós mesmos, quando olhamos

19
Narciso, na mitologia grega, era filho de Cephisius (deus fluvial) e da ninfa Liríope, que quer dizer voz macia,
e era um jovem extremamente belo. Mas, a despeito disso preferia viver só, pois não encontrava ninguém que
estivesse à altura de merecer seu amor. Um dia, depois de muito caçar, sentou-se à beira de uma fonte cujas
águas eram muito claras e debruçou-se para se refrescar. Nesse movimento surpreende-se vendo uma figura
muito bela que o olhava dentro das águas. Imagina que seja um espírito que habita a fonte e admira-se com sua
beleza. Apaixona-se então pela saúde e beleza daquele ser, que parecia retribuir seu olhar. Assim abaixa o rosto
nas águas, enfia seus braços, tentando beijar e abraçar este ser. Porém, no contato do seu corpo com as águas o
ser some por alguns instantes, para voltar belo como antes quando Narciso se levanta novamente. Ele entende
que a criatura o despreza e foge dele, o que o faz chorar. Suas lágrimas turvam a imagem nas águas, o que faz
com que ela suma novamente. Narciso entende que quando toca as águas o ser foge dele, então pede à criatura
que se não pode tocá-lo, se não o deseja, que Narciso possa, ao menos, ficar ali o admirando. É assim que
Narciso fica dias e dias entorpecido por admiração e esquece-se de se alimentar, o que o faz definhar e morrer.
(Fonte: www.geocities.com/eros_x111/mit-narci so.htm).
71
para nós encontramos o mundo. Reside aí a dimensão coletiva constituinte de nossa
existência.
Mas, podemos avançar um pouco mais e nos perguntarmos: como é possível refletir
sobre nós mesmos, sem que essa reflexão seja apenas uma abstração que nos distancia da
experiência? Como refletir tendo a experiência como espelho?
Rinpoche utiliza exemplos simples e cotidianos para dizer de nossos modos de
funcionamento. Um deles está na maneira como nos entregamos às nossas emoções. Na
experiência de janela quando olhamos para o mundo e algo não sai como gostaríamos logo
sentimos, por exemplo, uma raiva, que, rapidamente, nos tira toda alegria.
Nessa atitude de raiva, segundo Rinpoche, é como se nos atirassem uma flecha, e o
tiro saísse curto, então ficamos ali concentrados no problema apanhando várias vezes a flecha
e cravando em nosso peito muitas e muitas vezes. Quando a raiva nos domina intentamos
rapidamente acabar com aquilo que a tenha provocado, se é uma pessoa temos vontade de
ferí-la. Mas, quando isso acontece é como se “tendo decidido matar uma pessoa jogando-a em
um rio, você se agarrasse ao pescoço dela, pulasse na água e os dois morressem afogados”
(RINPOCHE, 2006: 24). Daí entendemos que destruir nossos inimigos parece ser também
uma auto-destruição.
Esse é um precioso ensinamento sobre onde reside nosso reflexo. Nossa imagem não
pode ser encontrada na alma, como em Alcibíades, ou no interior de nós mesmos, como é
muito enfatizado nas sociedades modernas, mas no outro. Olhamos para o outro e o vemos em
nós. A vida que pulsa no outro é essa mesma que nos movimenta e tanto nossa experiência de
alegria quanto de tristeza é produzida coletivamente. Não existimos sem o outro e só podemos
conhecer como nos movemos através de um outramento. Os seres que acreditamos serem
nossos inimigos são, ao mesmo tempo, nossos aliados, pois nos mostram as dificuldades que
vivemos enquanto seres de uma mesma comunidade.
Na experiência do espelho não-narcísico podemos aprender a olhar para o
desenvolvimento disso que sentimos ao invés de responder prontamente. No espelho podemos
perceber que não há solidez nessa experiência e assim presenciar sua passagem em nós, a fim
de agir com liberdade diante do que nos está acontecendo. Não reprimimos o que estamos
sentindo, e nem mergulhamos nos envolvendo, mas criamos um espaço vazio onde a reflexão
e o conhecimento nos auxiliam a tomar decisões que tragam benefícios para todos.
É assim que Rinpoche (2006: 27) nos convida a sentarmos em frente ao espelho,
olharmos para nossa imagem e procedermos insultos e elogios ao que vemos: “Você é feio!”;

72
“Você é bom!”. E, assim observarmos. O que mudou? Independente do que digamos a
imagem continua sendo o que ela é.
Mas, o que ela é? Será que há alguma substancialidade? Algum fundamento? Se a
imagem tem alguma natureza podemos dizer que é a da liberdade. Não há nada que digamos
em frente ao espelho que possa nos definir, que tenha realidade em si mesmo. E se é assim é
porque o que somos ou o que podemos ser não está dado em nós mesmos, mas depende de
nossas ações neste mundo. Assim, a fim de refletirmos sobre nós é preciso que essa reflexão
não se perca da experiência, que esteja a ela vinculada e que seja ela mesma uma experiência.
O mundo não é independente de nós, não nos é dado de antemão, mas é algo que
construímos juntos a partir do modo como respiramos, como tocamos, como conhecemos. “O
mundo por nós conhecido não é pré-definido, mas sim efectivado (enacted) mediante a nossa
história de conexão estrutural” (VARELA, 1995: 27). O mundo emerge mediante
manipulação concreta. A essa compreensão Varela (1995) chama de abordagem enactiva, que
afirma a relação estreita, dependente, entre ação e agente no processo cognitivo.
Há uma imediatidade entre percepção e ação. Nossas ações são sempre em regime de
urgência. Em inúmeras atividades diárias agimos sem que precisemos pensar a respeito. “o
nosso mundo vivido está tão ao alcance da mão que não temos necessidade de reflectir
conscientemente sobre o que ele é e como o habitamos” (VARELA, 1995: 19). Caminhamos,
comemos, conversamos com as pessoas sem que nos demos conta do complexo saber-fazer já
incorporado a fim de que essas ações sejam realizadas. É por que vivemos em uma co-
produção constante, que a prática da reflexão aberta nos parece tão importante, já que exige
que voltemos os olhos não para nós mesmos, senão bastaria que nos observássemos diante do
espelho narcísico, mas para o próprio movimento de olhar, para esse movimento circular e
reflexivo que produz um si, que produz um mundo, dando-nos possibilidade de descobrir
nossos pontos cegos e a prisão produzida por nossas certezas.
Nessa forma de reflexão é possível interromper a cadeia de pensamentos abstratos que
nos tomam cotidianamente, de forma a estarmos presentes em nossas ações. Romper com os
hábitos que nos condicionam, de forma a haver uma retidão entre pensamento e ação, tema
tão importante também para os gregos. É dessa maneira que a reflexão torna-se incorporada,
encarnada, porque, de fato, ela é efetivada. A reflexão é uma experiência.
Caso contrário, a reflexão continuará sendo somente uma abstração. Enquanto
abstração busca algo que represente o que somos. Como quando ficamos horas absorvidos em
pensamentos que se multiplicam, buscando explicações coerentes para nossas atitudes ou as

73
de outrem, tentando encontrar algo que represente o que somos, que nos dê permanência e
estabilidade, que defina nossa personalidade.
Mas, o exercício em frente ao espelho faz desmoronar qualquer certeza que tenhamos
conquistado. E, nos coloca mais dúvidas. Se a imagem que vemos de nós mesmos não é nem
boa, nem má, nem bonita, nem feia, o que ela é? Qual é seu conteúdo? Seu fundamento?
Podemos dizer que ela é simplesmente vazia, essa é a sua natureza. Se já
encontrávamos em Foucault o tema do vazio, em Varela (1995: 68) a competência ética é o
progressivo conhecimento da “virtualidade do Si mesmo”, ou de um si vazio de si. Esse si,
afirma o autor, é algo temporário e desunificado, privado de centro ou localização,
completamente dessubstancializado e por isso virtual. Varela afirma, no entanto, que “a
compreensão da ausência de fundação como sensibilidade não-egocêntrica, (...) requer que
reconheçamos o outro com quem cooriginamos de forma dependente” (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 2003: 256). Se dissemos, portanto, que existe um si, ainda que vazio,
se falamos em um “eu” mesmo que inexistente, é menos para afirmar uma individualidade e
mais para que ao dizer “eu” haja “outro”. Se há um “eu” é por generosidade a fim de que
exista o “outro”. Só há eu se há outro, e aí mora a generosidade.
Há, portanto, um “si mesmo sem si” (VARELA, 1995: 65), vazio de identidade, visto
que sua emergência se dá no encontro com o mundo através de uma sucessão de
configurações e acoplamentos que nascem e morrem, emergem e se apagam. E isso é notável
em nossas vidas. Se olharmos um pouco para nós mesmos poderemos compreender o caráter
virtual do si. Quantas mudanças já se passaram em nós? Não somos mais os mesmos de
quando crianças, não somos nem mesmo iguais ao que éramos há um ano. Nossos gostos
mudam, nosso corpo, nossas convicções. Mesmo as pessoas que cultivam hábitos muito
cristalizados mudam, e sofrem, às vezes, exatamente, porque gostariam de encontrar
permanência e estabilidade.
As mudanças se devem ao fato de estarmos vivos realizando ações todo o tempo,
produzindo-nos e produzindo ao mundo em que vivemos, por isso a atenção para com a
experiência. Porque é nela que emergem um si e um mundo. Conhecer, portanto, é fazer nosso
mundo. O conhecimento funciona como intervenção. O que conhecemos modifica o que
somos e o mundo que habitamos. Nossa matéria de constituição é vazia de substancialidade
em si mesma, mas é prenhe da concretude que nossas ações promovem.
Se agimos sempre em um mundo que conhecemos e conhecemos sempre agindo,
podemos dizer que todo ato de conhecer é uma ação. Em muitos momentos de nossa vida

74
agimos alheios a essa compreensão, ausentes no que estamos fazendo. Mas, se tornar-se
atento às nossas ações pode produzir novos mundos, então quanto mais abertos e presentes
estivermos na experiência, mais amplos poderão ser nossos mundos, mais seres poderão ser
incluídos e mais alegria genuína poderá haver neles. À medida que o conhecer se amplia, que
nossa reflexão se torna mais aberta, nossas ações também se tornam mais lúcidas e ampliadas.
Somos o que fazemos. Essa compreensão nos convida a refletir sobre a obra que
estamos realizando, o que estamos fazendo de nós e deste mundo. Essa reflexão não se torna
possível se nos abstrairmos de nossas ações, se nossas lentes são as de separação e
independência. Mas, exige o cultivo da abertura de nossa reflexão a fim de tornar-se
incorporada na experiência.
A reflexão aberta possibilita-nos perceber que há um encadeamento constante entre o
que pensamos e o que fazemos. Há uma inseparabilidade entre o que somos e como o mundo
nos parece ser. “Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer” (MATURANA; VARELA,
1995: 68), essa é a circularidade fundamental. O ato de conhecer produz um mundo e toda
construção de mundo produz conhecimento. Essa compreensão implica um comprometimento
de caráter ético-político:

O conhecimento do conhecimento compromete. Compromete-nos a tomar


uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza, a
reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo
que cada um de nós vê fosse o mundo, e não um mundo, que produzimos com
outros. Compromete-nos porque, ao saber que sabemos, não podemos negar o
que sabemos (MATURANA; VARELA, 1995: 262) [grifos nossos].

Conhecer como conhecemos, compreender a natureza co-dependente de todas as


coisas produz um compromisso ético-político. Essa compreensão faz-nos perceber que nossa
vida é inseparável da vida de outros seres e que nossas ações produzem um mundo
compartilhado. Esse compromisso é com a vida que construímos juntos, onde não se faz mais
possível a entrega a ações egoístas e autocentradas, onde a alegria só pode ser vivida no
coletivo.
Neste trabalho buscamos explorar uma dimensão de grupalidade que não é nada mais
que essa dimensão coletiva e co-dependente já existente em nós, mas que é por nós ignorada
muitas vezes. Entendemos, juntamente com os autores aqui trabalhados, que nossas
possibilidades tanto de saúde e alegria, quanto, radicalmente de existência residem no acesso
a essa dimensão de interdependência, o que demanda muito trabalho. É na prática que, no

75
mesmo movimento de constituição de um si, o si pode esvaziar-se de si enquanto algo sólido,
para dar passagem ao outro.

2.3 Prática de si: o cultivo da ação no mundo


Mas, como cultivar um olhar desapegado? Uma reflexão aberta? Como cultivar a
liberdade refletida em um êthos?
É interessante percebemos que assim como no cuidado de si a reflexão aberta é
sempre acompanhada de uma prática, de tecnologias, que possibilitem, de forma cotidiana,
uma desaprendizagem, o abandono de hábitos de desatenção. Se Foucault busca na
antiguidade inspiração para os estudos da subjetivação, e de uma relação com o outro e com a
vida que implique a liberdade, Varela (1995) busca na filosofia oriental - confucionismo,
budismo e taoísmo - a inspiração filosófica e prática da reflexão aberta.
Assim como Foucault nos relata alguns exercícios realizados na prática de si na
antiguidade, Varela nos traz a meditação como uma das práticas de atenção fundamentais na
tradição budista. A palavra meditação, gom, em tibetano, vem da mesma raiz do verbo
familiarizar-se. Rinpoche (2006: 28) diz que através de vários métodos “nos familiarizamos
com outros modos de ser”. Isso nos ajuda a pensar a importância da prática nesta tradição e
também nos gregos. Se o que se é está implicado às experiências no mundo, a transformação
do ser é dependente de uma prática. A prática de si nos auxilia não somente na construção de
um outro modo de ser, mas, principalmente, a compreendermos o processo de produção do
ser, a nos familiarizarmos com os processos em questão, a conhecermos nossos
funcionamentos.
A meditação tem como objetivo levar o praticante a cultivar uma atenção para com o
que se passa no pensamento, “experienciar o que a mente está fazendo enquanto ela o faz,
estar junto com a própria mente” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003: 40). É como se
espreitássemos a nós mesmos, atentos para o que estamos fazendo de nós.

A dissociação mente-corpo, consciência-experiência é o resultado de hábito, e


esses hábitos podem ser quebrados. Quando a pessoa que medita interrompe
sucessivamente o fluxo do pensamento discursivo e volta a estar presente com
sua respiração ou atividade diária, há uma diminuição gradual da inquietação
da mente. A pessoa se torna capaz de ver a inquietação dessa forma e de ser
paciente com ela, em vez de ficar automaticamente perdida nela (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 2003: 42).

76
A reflexão aberta implica uma desaprendizagem de hábitos. A prática da meditação
possibilita estar atento ao que de fato move nossas ações, às emoções que as condicionam, à
impulsividade e reatividade que nos põe em funcionamento sem que sequer nos apercebamos
das conseqüências de nossas ações para nós e para os outros.

Mas, porque falamos em desaprendizagem e não em aprendizagem de uma nova


habilidade? Compreendemos que há tanto na prática de si na filosofia greco-romana quanto na
prática da meditação na filosofia oriental a afirmação de uma desaprendizagem. Esse é um
ponto muito importante, que leva-nos a perguntar: se desaprendermos os padrões habituais
pelos quais nos movemos, o que nos resta? Se com a reflexão aberta não mais nos movemos
pelos hábitos que condicionam nossas ações, movemo-nos pelo quê então? E aí mais uma vez
estamos muito próximos da experiência grega. O que nos move é a liberdade, nossa matéria
de constituição. A prática de desaprendizagem como caminho ético tem por objetivo o acesso
à liberdade.
Na Antiguidade greco-romana vemos uma série de procedimentos mais ou menos
ritualizados, uma diversidade de práticas destinadas à produção de uma transformação do
modo de ser do sujeito. Foucault (2006b) nos relata uma série delas, que vão desde exercícios
de abstinência e resistência, práticas de purificação, de privação a práticas de meditação a
treinamentos de vigilância a fim de se estar atento ao que se passa no pensamento.
Fazem parte delas também os exames de consciência, que funcionam como uma
prestação de contas, um balanço a fim de recordar o que se tinha para fazer, as tarefas
cumpridas, e a maneira com que foram realizadas. Como em Sêneca numa necessidade de
“descarregar, de tempos em tempos, diante de si a carga da própria vida e do tempo que
passou” (FOUCAULT, 2006b: 201) ou como em Marco Aurélio na correspondência com
Frontão, seu mestre, na qual conta com detalhes as atividades de seu dia: como se sente, os
remédios de que faz uso, o estudo, a alimentação, o momento em que conversa com os pais, o
trabalho que realiza, o banho, a posição na hora de dormir. Uma carta 20 que exprime esse
exercício de memorização, de reflexão com relação àquilo que se faz de si mesmo.

20
Foucault (2006b) estabelece uma diferença importante entre o texto de Platão, o Alcibíades, e o conteúdo da
carta de Marco Aurélio. Nesta ele chama atenção para o fato de que estão ali listadas várias atividades realizadas
em um dia, onde se pode distinguir três domínios: dietética (cuidados com o corpo), econômica (cuidados com
os bens) e erótica (cuidados do amor). Lembramos que Foucault analisa esses três domínios no “Uso dos
prazeres” (FOUCAULT, M. História da sexualidade Vol. II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984). Foucault ressalta que no texto do diálogo de Platão, Sócrates aponta o eu, a alma, como o objeto do
cuidado de si, não sendo portanto nem o corpo, nem os bens, nem o amor. Esta carta, pertencente ao segundo
momento na história da cultura de si, apresenta uma ampliação da prática de si, que toma o corpo, os bens e o
amor como os principais domínios para sua aplicação.
77
É importante que compreendamos que o exame de consciência realizado tanto por
Sêneca quanto por Marco Aurélio não é a mesma prática realizada na cultura cristã. Se nesta a
consciência apresenta-se como morada da razão, e por isso tem o estatuto de guardiã da moral
e de depositário das ações boas ou más a serem verificadas e conscientemente analisadas, o
que pode gerar uma “consciência culpada” ou aliviada, na tradição greco-romano equivoca-se
a relação da consciência como faculdade julgadora da razão. O exame de consciência aqui se
presta não a um exercício de retenção, acúmulo e apreciamento do que se pensa ou faz, mas a
uma função crítica.
Tanto Sêneca quanto Marco Aurélio ao examinarem as atividades de um dia as
avaliam criticamente buscando ver não o que fizeram, mas como realizaram cada tarefa, a fim
de se perceberam na ação, para, no mesmo movimento, desfazerem-se de seus fardos,
descarregarem suas lutas, suas cargas, “descarregarem o livro do dia (...) o livro de sua
memória” (FOUCAULT, 2006b: 201). Não é em absoluto uma prática de reter para si o que
se fez, apegando-se ao modo como foi feito, mas de descarregar, dar passagem, esvaziar-se,
compreendendo como se fez cada coisa e como cada coisa os constitui também. É preciso
lembrar que a prática de si não é uma aprendizagem de novos hábitos, de encontrar uma nova
forma para se fazer da próxima vez, mas um desaprender de todos os maus hábitos. Foucault
(2006b: 602) afirma que “desaprender (de-discere) é uma das importantes tarefas da cultura
de si”. E porque isso? Desaprender indica um movimento de desprendimento: desapegar-se,
desprender-se, deixar de estar apegado, de estar preso a si, como sujeito proprietário de suas
ações, como sujeito substancializado. Examina-se e, no mesmo movimento, esvazia-se,
desfaz-se de si.
Em todos os momentos da vida havia sempre um exercício que poderia ser realizado,
muitas vezes, acompanhado também de algumas recomendações, regras de prudência e
sugestões sobre a maneira como realizá-lo. Mas, Foucault insiste em apontar, que essas
referências que acompanhavam os exercícios não funcionavam como regras prescritivas a
serem seguidas. Havia uma liberdade tanto na escolha das práticas quanto na sua regularidade,
porque o que estava em questão não era seguir uma regra de vida, mas constituir uma arte de
viver.

Se a tékhne devesse ser um corpus de regras às quais seria preciso submeter-se


de ponta a ponta, minuto a minuto, (...), se nela não houvesse precisamente
essa liberdade do sujeito, fazendo atuar sua tékhne em função de seu objetivo,
do desejo, de sua vontade de fazer uma obra bela, não haveria
aperfeiçoamento da vida (FOUCAULT, 2006b: 513).

78
É muito interessante percebermos que havia na prática de si efeitos de austeridade e
renúncia, assim como no método de meditação da tradição budista. Para realizá-los era
necessário alguma sobriedade, disciplina e dedicação. Mas, estes não davam lugar à
obediência, ou a renúncia de si, já que tinham na liberdade seu princípio fundamental.
Essa é uma das mudanças que marcam a passagem da ascética ao ascetismo cristão. O
cuidado de si no período helenístico não era uma obrigação que todos deveriam acolher, mas
uma escolha de cada um quanto a sua existência. Mas, no final desse período há uma
generalização tamanha dessa prática que o cuidado de si passa a não ser mais uma escolha,
mas uma prática social na qual todos devem se inserir. Há aí o prenúncio do que na prática
cristã se constitui como um apelo universal. O cuidado de si como apelo vai sendo
transformado na sua maneira de ser entendido e praticado, de forma que o que se fortalece é o
conhecimento de si, gnôthi seautón.
A ênfase no ascetismo cristão do gnôthi seautón produz novamente uma mudança na
relação de cuidado. Agora não se cuida da alma, ou da relação consigo e com os outros, mas
de um eu regulador das ações, separado das relações processuais que o constituem. Foucault
nos diz que esse eu se constrói como renúncia a si mesmo. A renúncia de si, na verdade, é ao
cuidado de si enquanto relação.
Essa mudança do alvo do cuidado, daquilo de que se cuida, produzirá também uma
reformulação quanto à prática de si, que tem muitos de seus exercícios preservados, porém
reapropriados de forma a serem vividos, muitas vezes, como um código prescritivo. O exame
de consciência, por exemplo, como vemos em Sêneca, parece ter sido aclimatado e
incorporado à prática atual de arrependimento de pecados.
Foucault (2006b: 385) nos diz que o “dispositivo de subjetividade” de nosso tempo é
marcado por duas características. É comandado pela obediência à lei, já que as práticas e
discursos sobre a verdade são tomados como leis transcendentais, exteriores ao sujeito,
devendo ser por ele obedecidas como códigos morais. E, é marcada ainda pelo conhecimento
do sujeito por ele mesmo, que prescinde da prática de si. Se há uma verdade que o sujeito
detenha é a verdade de si mesmo, a verdade sobre ele mesmo. Para alcançar essa verdade não
é necessário um trabalho sobre si mesmo, já que o si, supostamente, já está dado, devendo
então o saber ser procurado no interior do próprio sujeito.
O trabalho sobre si, tanto no período helenístico quanto na abordagem da reflexão
aberta, faz-se na transformação do modo de ser do sujeito, de modo que ele possa se constituir

79
sujeito em seus atos. Em nosso tempo, marcado pelo modelo cristão e pela razão de Estado,
não é a transformação de si que se busca, mas a renúncia de si, a renúncia a um cuidado de si.
À medida que nos perdemos da prática de cultivo ético da relação entre nós e os outros nos
distanciamos também de um cultivo da liberdade frente a tudo o que nos acontece. A renúncia
a um cultivo de si produz uma cegueira à liberdade de transformação do ser, abrindo caminho
tanto para uma prática de controle sobre si mesmo como vigilância a estabilidade de um eu,
quanto de controle de uns sobre os outros.

Creio que a idade moderna da história da verdade começa no momento em


que o que permite aceder ao verdadeiro é o próprio conhecimento e somente
ele. Isto é, no momento em que o filósofo (...), sem que nada mais lhe seja
solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é
capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de
reconhecer a verdade e a ela ter acesso (FOUCAULT, 2006b: 22).

A filosofia moderna dispensa o cuidado como prerrogativa, já que é a verdade que


ilumina o sujeito. É por ser esclarecido pela verdade que o sujeito pode pretender uma
mudança na maneira de se conduzir, o que significa que para o sujeito moderno não é
necessário trabalhar sobre si para ter acesso à verdade, já que é a priori capaz de verdade,
basta para tanto somente conhecer-se, conhecer a sua verdade. Essa é uma importante
diferença na produção dos modos de subjetividade na modernidade em relação à experiência
greco-romana. Se na modernidade a verdade é algo que pode ser encontrada em nós mesmos,
no interior de cada sujeito, nessa experiência de si na Antiguidade as verdades eram, através
de uma série de práticas, recebidas e interiorizadas em um processo de construção e
apropriação constante.
Além disso, a apropriação de verdades não tinha como efeito um processo de
individualização do sujeito, não tinha como objetivo a produção de um sujeito centrado nele
mesmo. Ao contrário, a aquisição de discursos tinha como finalidade a preparação para os
acontecimentos. O saber adquirido permitia ao sujeito não um conhecimento dele mesmo,
mas agir corretamente diante das circunstâncias. Foucault afirma que “o atleta antigo é um
atleta do acontecimento” (FOUCAULT, 2006b: 389).
O atleta é um dos exemplos mais utilizados quanto à prática de si. É aquele que se
exercita constantemente, de forma a desenvolver os movimentos necessários, que poderão
capacitá-lo a enfrentar os acontecimentos da vida. O bom atleta tem o seu treinamento
baseado em movimentos gerais e eficazes, simples, podemos dizer, e que podem ser

80
realizados em qualquer situação. Ao treinamento Foucault (2006b) denomina ascética 21, em
grego áskesis. E ao conjunto dos movimentos e práticas: paraskeué - equipamentos.
Compreendia-se, nesse momento, a prática de si como tendo uma função de luta, a fim
de fornecer aos indivíduos os meios, as armas e a coragem para um combate permanente. Há
na prática de si, através da apropriação de discursos verdadeiros, a produção dessas armas.
São esses discursos que vão auxiliar o sujeito no manejo com os acontecimentos da vida, que
vão ajudá-lo a manter o domínio e a independência, a liberdade diante das situações.
O vínculo entre o sujeito e a verdade se faz através desses discursos, ou melhor,
através da apropriação deles na prática ascética. Tal prática deve possibilitar o
estabelecimento de um vínculo entre o sujeito e a verdade, de forma que o sujeito possa ter
sempre à mão discursos verdadeiros, a fim de lidar com quaisquer situações.
Os discursos constituem a paraskeué, o equipamento do qual o atleta pode sempre
dispor. É preciso que esses discursos estejam nele implantados, que sejam um com ele, a
ponto de que se mova e possa ser transformado por eles. Em Marco Aurélio os discursos são
frases que, efetivamente, são pronunciadas, ouvidas, lidas e repetidas em memória
cotidianamente. São lições de seu mestre Frontão, ou frases que disse a si mesmo ou ouviu de
outro, e que podem lhe socorrer em algum momento necessário.

São esquemas indutores de ação que, em seu valor e sua eficácia indutora,
uma vez presentes – na mente, no pensamento, no coração, no próprio corpo
de quem os detém -, este que os detém agirá como que espontaneamente
(FOUCAULT, 2006b: 391).

A prática de si e a reflexão aberta implicam uma desaprendizagem de hábitos


arraigados que geram a ação. Através desses hábitos agimos instantaneamente quando algo
nos acontece, de forma impulsiva e reativa. A prática de si é o exercício de uma ação
impessoal e espontânea, e, principalmente consciente. Nesta prática não nos movemos
cegamente sem sequer nos darmos dos efeitos de nossas ações, mas damos lugar a uma ação
presente e consciente, capaz de avaliar o que estamos fazendo de nós.

21
Foucault (2006b) prefere o uso da palavra ascética às de ascese ou ascetismo. Isso porque à ascese estaria
relacionado o comprometimento de um indivíduo com exercícios cuja finalidade seria promover o seu perdão,
purificação e salvação. O ascetismo traria também essa conotação de atitude de renúncia e mortificação. A
ascética para os gregos não comportava nenhum desses objetivos, sendo, antes, um conjunto de exercícios
disponíveis e recomendados a fim de se alcançar um objetivo espiritual definido. Esse objetivo espiritual se
configura como uma modificação, “uma transfiguração deles mesmos, enquanto sujeitos de ação e enquanto
sujeitos de conhecimentos verdadeiros” (FOUCAULT, 2006b: 505). A ascética é esse conjunto de exercícios,
que permite uma transmutação espiritual.
81
A espontaneidade decorre de uma ação não centrada no próprio sujeito, nos seus
interesses ou numa atitude narcísica. É uma ação que tem na virtude a sua direção tendo como
finalidade uma ação correta e justa. O cuidado de si possibilita agir corretamente consigo e
com os outros, esse é o compromisso ético.
Os conhecimentos produzidos funcionam como princípios, regras de conduta. “Trata-
se de fazer com que esses princípios digam em cada situação e de qualquer forma
espontaneamente como (...) se conduzir” (FOUCAULT, 2004: 269). A apropriação de
discursos verdadeiros e o trabalho sobre si mesmo se fazem na direção de uma retidão entre
pensamento e ação, a fim de que uma ação justa possa ser sempre realizada. É preciso que
esses discursos sejam apropriados de tal forma que constituam um êthos. Nesse momento, não
há mais distância entre o que se fala e o que se faz, entre o sujeito que diz a verdade e o
sujeito que se conduz. A verdade é atuada. O sujeito pode, então, constituir-se não através das
técnicas de poder-saber, mas através de técnicas de si, onde o conhecimento produzido retorna
sobre o próprio sujeito, modificando-o e, ao mesmo tempo, sendo modificado.

2.4 Figuras em frente ao espelho

Há um belo exemplo no Castañeda (2004) de constituição de uma paraskeué. O


exemplo do atleta parece ter aqui o mesmo sentido do guerreiro; e a ascética, a prática de si, o
caminho que este percorre.
A paraskeué em Castañeda assemelha-se a um álbum, um inventário. Dom Juan, seu
mestre, pede a ele que relembre sua paraskeué, que revise seu equipamento, montando um
álbum do guerreiro, que seja o testemunho das circunstâncias de sua vida, com eventos
memoráveis de profundo significado.
Castañeda passa dias à procura do que possa ser tão especial a ponto de compor o
álbum: o ingresso na faculdade, o dia em que foi deixado no altar, velórios que assistiu
quando criança. Sobre todos Dom Juan afirma serem banalidades. O que será então o
equipamento de um guerreiro, o que deve ele sempre lembrar tendo à mão em caso de
necessidade? Eventos passíveis de terem mudado algo em Castañeda, de terem iluminado seu
caminho, eventos impessoais.
Dom Juan lembra, então, a Castañeda de um evento que ele mesmo lhe teria contado
há tempos atrás, sobre um presente dado por um velho amigo: um encontro com uma mulher
que tinha a arte de fazer “figuras em frente do espelho” (CASTAÑEDA, 2004: 42). Neste

82
encontro, em um quarto escuro, Castañeda foi posicionado diante de dois armários que
abertos tinham espelhos grandes em suas portas. Madame Ludmilla ao som de uma música
circense dança em frente aos espelhos. À medida que rodopia vai diminuindo até quase
desaparecer. Castañeda se lembra que sentiu tanto desespero e solidão que saiu correndo do
quarto.
Mesmo depois de recontar a história ele não entende o que pode haver de memorável
nela. É uma lembrança que só lhe traz mal-estar. Dom Juan afirma que o que a torna diferente
é o fato de ser uma história que toca a todos os seres humanos, ao contrário das outras
contadas por ele que são muito pessoais e carregadas de dramaticidade.

Veja, assim como Madame Ludmilla, cada um de nós, jovens ou velhos,


fazemos figuras em frente ao espelho, de uma forma ou de outra (...). Pense
em qualquer ser humano deste planeta e perceberá, (...) que não importa quem
ele seja, o que pense dele mesmo, nem o que faça, o resultado de suas ações é
sempre o mesmo: figuras em frente de um espelho, sem o menor sentido
(CASTAÑEDA, 2004: 42).

Há duas questões que gostaríamos de destacar. Primeiramente, os discursos que


constituem a paraskeué, bem como os exercícios que possibilitam encarná-los, não são
pessoais. Como os eventos memoráveis do álbum de um guerreiro, esses discursos
verdadeiros não são propriedades do sujeito, não o reforçam na sua pessoalidade, não são
memoriais do sujeito, mas da impessoalidade que habita a todos nós. Não são frases que
venham promovê-lo e que ele reúna a fim de se satisfazer. São saberes que precisam ser úteis
e experimentáveis, de forma a produzir um êthos. Saberes, que tenham um caráter
“etopoiético” (FOUCAULT, 2006b: 290). Conhecimentos passíveis de produzir mudanças no
ser do sujeito, de constituí-lo. Saberes etopoiéticos a fim de produzir uma “auto-
subjetivação22”.
A segunda questão que podemos destacar diz respeito à nossa condição humana de
fragilidade e confusão diante dos acontecimentos. Dom Juan aponta para os efeitos de nossas

22
Foucault (2006b) contrapõe o processo de auto-subjetivação ao de trans-subjetivação. Afirmando que o
primeiro se faz tendo como objetivo o próprio sujeito, no sentido de estabelecer uma relação plena e adequada de
si para consigo. A auto-subjetivação é um processo no qual o sujeito se constitui como tal, no qual de modo
processual produz-se, cultiva-se e transforma-se. A trans-subjetivação, produzida dentro do modelo cristão e
pós-cristão, traz a dobra sobre si mesmo como algo negativo, já que implica uma atitude de censura e
arrependimento. Foucault (2006b: 264) na literatura grega aponta o Manual de Epitecto como um texto que diz
da necessidade de expulsar da mente julgamentos falsos e errôneos, que fatalmente produziriam pensamentos de
arrependimento. O arrependimento deve ser evitado, porque produz uma fixação no sujeito nele mesmo por
ordens transcendentais. Produz uma trans-subjetivação ou, podemos dizer, um processo de assujeitamento ao
invés de uma subjetivação.
83
ações, visto que, em muitos momentos, agimos de forma inconseqüente e atabalhoada, como
“figuras em frente de um espelho, sem o menor sentido”. Nossas ações são desgovernadas,
quando realizadas sem direção e sem reflexão e colhem sofrimento como efeito. A qualidade
deste espelho é aquela do mito de Narciso, que acredita que a imagem seja real a ponto de
apaixonar-se por ela. Como herdeiros de Narciso acreditamos demais nas imagens que vemos,
cegando-nos para o modo como se constituíram, o que gera profunda confusão.
O inventário de Castañeda fazia parte de um dos exercícios realizados ao longo do
caminho do guerreiro, como uma prática de si. Tinha o poder de fazer entrar em contato com
algo desconhecido no próprio aprendiz, do qual ele não suspeitava. Possibilitava se apropriar
de um conhecimento que não era sobre o Castañeda, sobre as peripécias de sua vida, mas
sobre a natureza de nossos atos nesse mundo e sobre esse mundo no qual vivemos. É dessa
maneira que um guerreiro, através da prática de autocontrole, disciplina, paciência, vontade,
poderia se tornar um “homem de conhecimento”, que aprende a ter cuidado e discernimento
sobre a natureza de seus atos.
“Figuras em frente ao espelho, sem o menor sentido”. Que confusão é essa na qual
diariamente nos encontramos?
Se nos voltarmos para nosso cotidiano, podemos nos ver entretidos em boa parte do
tempo, correndo de um lado para outro, preocupados com o que temos a fazer, atarefados
tomando decisões, fazendo laços, sonhando e especulando, pensando, pensando, movidos por
inúmeros hábitos e emoções que nem nos damos conta... Em um dia podemos circular em
vários lugares, passar por inúmeras pessoas, pensar e repensar muitas das decisões tomadas,
encontrar novas convicções.
Estamos acostumados a viver em um mundo como se fôssemos dele independentes.
Formulamos projetos pessoais, construímos regularidades a partir das circunstâncias que
vivemos, planejamos o futuro, decidimos sobre nossas próximas ações. Mas, algo acontece.
Nossos projetos precisam ser constantemente reformulados, apesar de nossa vontade de
mantê-los. Nossas previsões falham e precisamos todos os dias lidar com os imprevistos. As
conversas que travamos conosco decidindo exatamente o que vamos dizer àquela pessoa que
nos deixou esperando, esvoaçam-se quando a encontramos. Acreditamos na independência de
um eu, que parece estar sempre a mudar. Acreditamos na regularidade de um mundo, que é
constantemente imprevisível. Acreditamos na separação entre um eu e um mundo, que estão a
produzir-se sempre juntos.

84
Construímos perspectivas solitárias, agindo sem considerar o mundo ao nosso redor e
depois caímos em sofrimento, frustrados, quando nossas ações não recolhem o esperado,
quando o mundo comparece, mesmo quando o havíamos deixado de fora.
Há, portanto, uma impossibilidade da existência de um eu individualizado, separado
dos outros seres. Somos, na verdade, completamente vazios de fundamento, de
substancialidade, produzidos sempre em uma relação de co-emergência em que nascem,
emergem, mundo e sujeito, eu e outro. Nossos sofrimentos são produzidos por ignorância e
cegueira a essa condição de originação interdependente. Lutamos de forma atabalhoada para
manter o sentido de um si isolado, vivendo uma relação auto-referenciada e excludente com
os outros.
Nossa ignorância e cegueira alimentam-se de uma reflexão abstrata e desincorporada
de nossa experiência, em que refletimos de forma autocentrada sem a compreensão de que
estamos ao produzir conhecimento agindo, construindo mundo. Refletindo de maneira
abstrata e desincorporada tornamo-nos alheios ao mundo que estamos construindo e que tem
efeito sobre a vida de todos.
Ao mesmo tempo, vivemos em muitos momentos a experimentação de uma outra
qualidade de visão e de ação, através de uma reflexão mais aberta, que nos indica que a
reflexão encarnada, incorporada na experiência, pode produzir novos mundos, “mundos sem
fundação” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003), esvaziados de identidade e egoísmo.
Possibilitando-nos compreender que o mundo que temos é o mundo que construímos juntos,
que nasce de nossas ações.
Mas, compreender parece não bastar, visto que uma reflexão abstrata é repleta de
compreensão e entendimento. Não basta uma reflexão inteligente, porque por si só ela não
pode produzir transformações, pode, inclusive, reforçar crenças fixas.
É necessário praticar e a prática é trabalho duro, por isso não abre mão de alguma
disciplina e sobriedade. Cuidar de si a fim de esvaziar-se de um si fundamento, autocentrado,
de encontrar em si o outro que lhe constitui, implica a constituição de um êthos: uma atitude
frente às circunstâncias; uma reflexão aberta e encarnada e uma prática capaz de transformar
o ser do sujeito, de transfigurá-lo, permitindo-o experimentar sua natureza vazia de
fundamento e por isso aberta à alteridade.

85
CAPÍTULO 3

A GRUPALIDADE COMO UM LADO DE FORA NO GRUPO: UMA


RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIEDADE

Até o presente momento estivemos explorando os processos grupais de uma forma,


talvez, um tanto enviesada, sem necessariamente situarmos a discussão sobre o objeto-grupo.
Exploramos o grupo a partir de sua dimensão processual de grupalidade da onde advêm
mundo e sujeito, eu e outro, em uma produção inseparável e co-emergente, e que habita o
grupo como seu lado de fora.
Pode parecer que fizemos o caminho contrário, que começamos pelo final, no entanto,
mesmo não tendo sido proposital, talvez este caminho nos ajude no entendimento de que
mesmo quando tratávamos da grupalidade, falávamos do grupo, e o contrário também.
Quando nos aproximamos do objeto grupo, de uma determinada forma grupal, buscamos
então suas linhas de produção, sua dimensão processual de grupalidade, e ao nos
aproximarmos dessa dimensão de processualidade encontramos o grupo objetivado através de
diversas formas. Na forma-grupo encontramos sua construção processual e da processualidade
vemos nascer o grupo. Duas dimensões inseparáveis, como “as duas asas de um pássaro”
(RINPOCHE, 2006), que se distinguem, mas não se separam, possibilitadas por uma condição
de complementariedade.
Chamamos aqui de complementariedade a esse aspecto paradoxal da existência, que
não se apresenta como dualidade ou dicotomia, que não produz pólos opostos e
incomunicáveis. Grupo e grupalidade co-existem em um movimento de produção e
transformação. Negar a forma-grupo ou afirmar somente a dimensão de grupalidade é como
amputar uma das asas que possibilitam o vôo. Nossa matéria de trabalho é a grupalidade no
grupo, a subjetivação no sujeito, o que faz com que possamos trabalhar com o grupo-
objetivado, com as formas que ganha o grupo, tentando olhar para o processo de construção
dessas formas e funcionamentos, que têm como força de propulsão essa dimensão processual,
entendendo que não são uma realidade sólida e eterna, mas que, ao mesmo tempo, é por elas,
pelas formas, pelo grupo-objetivado, que, muitas vezes, iniciamos o trabalho.
Podemos dizer isso ainda de outra maneira: diante da não solidez e impermanência da
realidade, do fato de o mundo e nós mesmos não termos uma substancialidade inerente, há ao
menos dois caminhos possíveis. Um primeiro onde procedemos a uma negação da concretude

86
daquilo que vemos e vivemos, ou seja, das muitas formas de vida nas quais nos
movimentamos, dizendo: “ah! As coisas não são concretas, foram construídas, não têm
essência alguma. Para que então se importar com elas?”, o que pode provocar tristeza, e até
mesmo uma posição niilista diante da vida. E uma segunda possibilidade onde o ponto não
estaria na negação do que quer que seja, mas na descoberta do processo que anima as formas,
que anima o que somos, dizendo: “ah! Tem alguma coisa que dá uma aparente concretude
àquilo que não tem, o que será?”.
Não é que tenhamos que escolher uma delas. Podemos tomar os dois caminhos pelo
princípio de complementariedade e afirmar que uma está na outra. Há no vazio de
substancialidade a solidez das coisas e há na solidez vazio. Vemos então a processualidade
que gera a solidez das identidades, das objetivações, que está nelas como princípio ativo de
construção, e na processualidade a emergência das formas. E assim acolhemos o que vem do
jeito que vem.
Com isso, queremos dizer que começamos com o que temos à mão. Não pedimos ao
paciente que venha ao encontro sem seu sofrimento, ou que o grupo se faça sem alguma
identidade. O acolhimento não faz escolhas, não impõe condições, não atropela o outro,
exigindo mudança e transformação. Começa de onde é possível, sem forçar ao outro a visão
de que o que vive é uma construção. Começamos com a aparente solidez, e então trabalhamos
nelas, no sofrimento, nas identidades, nas formas já muito cristalizadas, acolhendo e
compreendendo que há dentro das formas seu lado de fora, um fora no dentro, que as produz.
Porém, vimos ao longo do trabalho que apesar do grupo e de sua dimensão processual
de grupalidade serem aspectos complementares não nos basta apenas, para não cairmos nas
armadilhas de uma existência em que tudo parece por demais sólido, e ainda o contrário, tudo
é por demais vazio de substancialidade, tomar ciência desse fato. Aliançados com Foucault e
Varela percebemos que nossa aparente cegueira e ignorância à dimensão processual que
compõe o que somos colhe sofrimento como conseqüência, quando oblitera nossas
possibilidades de transformação. Saber de nossa ignorância também não parece ser o bastante
para experimentarmos uma ampliação do grau de abertura e liberdade com que olhamos para
o mundo em que vivemos, assim como para o acesso no grupo a este plano impessoal e
coletivo que o produz. Parece ser necessário, além do entendimento, uma prática ética de
cuidado de si e do outro, um trabalho sobre si, que se constitui como uma atitude, uma forma
de olhar atenta e presente à experiência e uma prática, ação sobre si e sobre o mundo.

87
Mas, de fato, cabe-nos ainda acompanharmos um pouco mais o grupo na sua
constituição como objeto de estudo, a fim de explorarmos essa relação de
complementariedade que une os grupos à sua dimensão de grupalidade.
3.1 Afinal, o que é um grupo?

O que então é um grupo? Como se constitui? Quais são suas características principais?
Temos aí algumas questões que já moveram inúmeros autores na tarefa de definição e
experimentação dos grupos. Apesar do objetivo deste trabalho não ser o de aprofundamento
das propostas grupais destes autores, o que estaria para além do propósito deste texto e
também do tempo disponível para tal, gostaríamos, no entanto, de trazer alguns aspectos da
constituição histórica do grupo como objeto de estudo, apoiados no trabalho realizado por
Benevides de Barros (2007)23, que recomendamos para uma leitura mais detalhada sobre o
assunto.
Estamos muito acostumados à existência dos grupos na modernidade, sentimo-nos,
inclusive, pertencendo a muitos deles, e poderíamos até nos perguntar se viveríamos sem eles.
Mas, cabe-nos uma pergunta: Os grupos sempre existiram? O processo de naturalização da
existência dos grupos é problematizado por Benevides de Barros (2007), através do
acompanhamento de como o grupo foi se constituindo como alvo de preocupações e objeto de
estudo, e os processos disparados por essa objetivação ao longo dos séculos.
Como desmontar a pretensa realidade dos objetos? Como desnaturalizar o mundo que
nos cerca? A autora proporá com relação ao objeto-grupo uma investigação sobre sua
proveniência, não exatamente buscando sua origem primeira, visto que o que se encontra não
é um único e mesmo objeto com substância sólida e identificável, mas muitos pontos de
ruptura, de bifurcação, de produção, como o emaranhado de linhas que compõem um novelo.
São essas linhas das quais também já tratamos neste trabalho, linhas mais duras, de
territorialização, linhas flexíveis e de fuga, moleculares, que a autora vai buscar, tentando
compreender como se juntam na tecedura dos grupos e os efeitos que produzem.
Benevides de Barros aponta ao menos duas direções importantes de análise dos
processos históricos constituidores da emergência do objeto-grupo: os processos de produção
do indivíduo como modo de subjetivação e os movimentos de massa onde a sociedade é
tomada como alvo de preocupação.

23
Para maiores detalhes ver: Benevides de Barros, R. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina,
2007.
88
A confluência história de acontecimentos que remontam os séc. XVI/XVII, com maior
ênfase nos séculos XVIII/XIX produzirão o indivíduo como modo de subjetivação por
excelência, ativo ainda hoje em nossos saberes e práticas. Nestes acontecimentos encontram-
se: o liberalismo político, o romantismo individualizador de afetos, as mudanças na força de
trabalho com o êxodo de grande parte da população do campo para a cidade, as delimitações
da família centradas no funcionamento conjugal e na circunscrição do que seja infância, a
produção do domínio público e do privado, e a ênfase dada a este último, que vão produzir
outros modos de referência subjetiva centrados em modos de vida mais interiorizados, que
enfatizam a intimidade e a interioridade de cada um, ensejando o indivíduo como modo de
subjetividade dominante.
Além destes processos há também na constituição do grupo os movimentos de massa
que, nas agitações sociais do início do século XIX, constituirão o corpo-coletivo, como ponto
de preocupação e alvo de controle através de uma biopolítica das populações, como já
tivemos oportunidade de acompanhar neste trabalho.
É no contexto dessas mudanças através de uma preocupação relacionada tanto aos
indivíduos como à sociedade, que as práticas ao mesmo tempo individualizantes e totalizantes
promovem o grupo como objeto de análise. A atenção para com a sociedade gera cuidados e
estudos sobre os pequenos agrupamentos, que se colocam entre o indivíduo e a sociedade. O
grupo se erige, então, entre um psicologismo e um sociologismo (BENEVIDES DE
BARROS, 2007).
A passagem do séc. XIX ao séc. XX é marcada por essa tensão provocada pelos
movimentos de massa versus “indivíduos”. A tensão acentua a dualidade e o grupo se levanta
como resolução do impasse, sendo utilizado como intermediário entre o indivíduo e a
sociedade, como um espaço de preparação do indivíduo para se viver em sociedade. Advém
desse funcionamento a produção na atualidade das falas de recusa em se participar de
processos grupais, quando as pessoas justificam não terem problemas com sociabilidade, e
também o contrário quando procuram o grupo, porque acreditam que é o espaço ideal para
aprenderem a serem mais extrovertidas e falantes.
Através do estudo sobre a constituição histórica dos processos grupais, percebemos
que a construção ao longo dos séculos do objeto-grupo culmina na modernidade com seu
atrelamento a noções bastante polarizadas e dicotômicas: o grupo como sendo um grande
indivíduo, um outro Ser, distinto dos indivíduos que o compõem (totalidade) ou ainda o grupo
como soma de individualidades (unidade). No entanto, funcionando tanto como totalidade

89
quanto como unidade, o grupo institui-se como objeto de estudo, como campo de saber e
prática, relacionando-se, muitas vezes, tanto às linhas duras predominantes nos processos de
disciplinamento, quanto da conjugação destas com linhas mais flexíveis, nas práticas de
controle e ainda com linhas de fuga que possibilitam também a desterritorialização da forma-
grupo.
Os vários movimentos, portanto, que se desenrolaram a partir dos séculos XVII
culminam no século XX com a institucionalização do grupo, com sua naturalização como
objeto de investigação, como uma instituição. Por instituição entende Benevides de Barros
(2007: 95),

Uma composição de linhas que ao se atravessarem produzem campos de


saber, redes de poder, especialismos. Linhas que marcam territórios,
produzindo tanto objetos, como sujeitos. (...) Objetos que, ao se tornarem
instituição se naturalizam e se apresentam como déjà là. Objetos que, ao se
naturalizarem, se descolam dos processos históricos, sociais, econômicos e
políticos que os produziram.

A autora chama atenção para o fato de que institucionalizado o grupo é tomado por
aqueles que dele se ocupam como um fato social e psíquico pré-existente, como se estivesse
sempre no mesmo lugar, da mesma forma, esperando para que os teóricos possam desvelar
sua natureza.
As instituições, porém, como estátuas de areia, imagem utilizada pela autora, parecem
fixas e imóveis, mas, no entanto, imperceptivelmente linhas moleculares continuam a se
mover, possibilitando nos grupos o questionamento de sua facticidade, a impermanência de
sua objetividade e a abertura em novos arranjos.
Muitos são os teóricos grupalistas que tiveram ao longo do século XX importância nos
estudos sobre os processos grupais, construindo formulações e práticas que amparam muitos
dos trabalhos realizados atualmente, dentre eles: Kurt Lewin, Pichon Rivière, W. Bion, J.L.
Moreno, dentre outros, que trouxeram diferentes contribuições, construindo também cada qual
noções de grupo aliançadas com saberes de diversas áreas: geometria, matemática, física,
psicologia, psicanálise, sociologia.
Interessa-nos ainda neste capítulo a discussão sobre essa relação complementar que
entendemos produz o embricamento da dimensão de grupalidade no grupo objetivado, a
molecularidade na forma, como a estátua instituída que tem no movimento de seus grãos de
areia o atestado de sua impermanência e ilusória realidade. Como pois fazer morada na
impermanência dos grãos de areia que denunciam a ilusão da solidez da forma estátua? Como
90
habitar essa realidade ilusória, esse objeto inventado que é o grupo? Abrimos mão das
metodologias? Tomamos por ilegítimas as teorias grupais?
Entendemos que a análise do grupo como forma-instituída pode derivar em ao menos
duas direções:
1) A análise pode se fazer localizando nas diferentes teorias grupais os efeitos de uma
redução do grupo à sua forma instituída e as conseqüências de se negligenciar o que
chamamos aqui de dimensão de grupalidade do grupo.
2) Em uma outra direção pode-se localizar nestas mesmas teorias grupais o que já se
expressa como gérmen de problematização dessa dimensão processual no grupo, ou ainda,
entender essas mesmas formulações teóricas como advindas também dessa liberdade de
construção de formas.
Entendemos que as duas direções não são excludentes, ao contrário, são movidas por
uma mesma política, a de apontar a dimensão processual de constituição dos sujeitos e
objetos. Mas, optamos neste trabalho por enfatizar o segundo caminho, tendo em vista a
preocupação de que um leitor mais desavisado ou ainda muito inflamado pela visão da
desnaturalização dos processos instituídos pode irromper nos perigos já apontados por Dom
Juan (CASTAÑEDA, s/d ). Estes perigos, principalmente a clareza e o poder, podem trazer o
risco de negação das formas, de subestimação de outras direções teóricas, de tomar por
ilegítima qualquer teoria ou prática que não seja a que nós mesmos acreditamos, o que nos
aprisiona, novamente, ao apego a nossas certezas e nos impossibilita a convivência com os
outros. Perigos dos quais não estamos absolutamente a salvo.
Acreditamos que viemos até então reunindo algumas pistas para essa compreensão.
Gostaríamos, então, de nos dedicar ao menos a um dos teóricos grupais, Kurt Lewin (1890-
1947), que teve um papel importante como divisor de águas no estudo dos processos grupais.
Pensamos que a análise do grupo, conforme construção lewiniana, nos auxilie na
compreensão do aspecto de complementariedade existente na dimensão de grupalidade como
lado de fora no objeto-grupo.

3.2 O grupo em Lewin: uma dinâmica que facilita a mudança

Porque estudar Lewin? Entendemos que este autor trouxe contribuições importantes
sobre o grupo como objeto de estudo influenciando ainda hoje as práticas de muitos daqueles
que trabalham com eles. Mas, não apenas, gostaríamos também de experimentar um diálogo

91
que se faz aqui com a proposta lewiniana, mas que entendemos ser um exercício possível
também com outros autores. Tentar compreender em Lewin o grupo objetivado e, ao mesmo
tempo, a processualidade nele existente e da onde advém.
Acompanharemos, portanto, nessa contribuição: 1 – a conceituação do objeto-grupo
realizada por Lewin e 2- a experimentação de processos de mudança e reeducação do
comportamento nos grupos.

3.2.1 – O grupo como um todo dinâmico

Lewin é um psicólogo alemão, que tem como princípio orientador de seu trabalho o
interesse em conhecer e compreender com profundidade os processos psicológicos. Para isso
entende ser necessário, como cientista, a tarefa de desenvolver técnicas e medidas adequadas
à caracterização das propriedades do espaço de vida de uma pessoa ou de um grupo e as leis
que governam as mudanças dessas propriedades.
Na Psicologia Lewin inicia seus trabalhos com experimentos sobre associação, para
num depois romper com as postulações do associacionismo. Essa ruptura funciona como uma
tentativa de superação da pré-cientificidade que os conceitos associacionistas comportavam, o
que faz com que Lewin encontre na teoria de campo com base gestaltista a possibilidade de
afirmação de leis gerais para a Psicologia, de afirmação da Psicologia como ciência. Lewin
estava interessado em elaborar um instrumento conceitual e metodológico que pudesse liberar
a Psicologia Social de especulações, transformando-a numa ciência experimental. Estava
convencido “(...) de que a Sociologia Científica e a Psicologia Social, baseadas numa íntima
combinação de experimentos e teoria empírica, podem contribuir, tanto ou mais que as
ciências naturais para a melhoria humana” (LEWIN, 1948: 99).
Segundo Garcia-Roza (1974) o ponto de ruptura está na crítica realizada por Lewin à
física aristotélica que durante muitos séculos norteou a ciência utilizando um caráter abstrato
de classificação, onde os objetos eram incluídos em determinadas classes, fundadas no
conjunto de características comuns a esses objetos, e que definiriam sua essência. Ressalta-se,
portanto, as propriedades individuais dos objetos a fim de explicar determinado
comportamento, não se levando em conta os aspectos sócio-ambientais que compõe a relação
dinâmica com estes objetos. Para Lewin o problema maior da concepção aristotélica estava na
prévia determinação e explicação dos acontecimentos a partir da natureza dos objetos.

92
À classificação aristotélica24 contrapõe-se a concepção galileana em que o mundo não
é mais o critério da verdade, os objetos não constituem mais o ponto de partida para a
teorização, mas o próprio mundo agora é alvo de investigação. Está em questão uma nova
concepção de ciência, a ciência moderna, em que a teoria não mais precisa se conformar a um
mundo preexistente, mas agora determina o que o mundo é. Esta nova ciência não mais se
preocupa com o objeto em si, mas com a estrutura da qual ele é parte integrante. Encontramos
aí a inspiração lewiniana para o estudo dos grupos não a partir da análise isolada de seus
membros, ou seja, como cada membro sente, anda, fala, age, mas através da totalidade do
grupo, importando como os indivíduos agem entre si, os pequenos grupelhos que formam,
como um membro afeta o outro e como são afetados pelo grupo como um todo.
Apesar de Lewin não ser considerado um gestaltista é o movimento da gestalt que
através da visão essencialmente estrutural e dinâmica da percepção contribui para a superação
da lógica aristotélica. E, são estes os princípios que o conduzirão à superação da definição dos
grupos por aspectos de semelhança e/ou diferença: raça, sexo, condições sócio-econômicas,
ou seja, a partir de uma concepção de classe por uma concepção de campo.
A teoria de campo para Lewin (1965) é afirmada como um método capaz de analisar a
situação como um todo, ao invés da redução de um acontecimento a elementos estudados
isoladamente, como na concepção associacionista. Nesta análise afirma-se que:

(a) o comportamento deve ser derivado de uma totalidade de fatos


coexistentes, (b) esses fatos coexistentes têm o caráter de um campo dinâmico,
enquanto o estado de qualquer parte desse sistema depende de cada uma das
outras partes do campo (LEWIN, 1965: 29).

O campo é constituído por um espaço de vida, que inclui a pessoa e seu meio
psicológico25, ou seja, o meio como é para a pessoa. No caso dos grupos o campo envolve

24
Na lógica aristotélica os movimentos que se manifestam em um objeto são determinados pelo próprio objeto.
O meio interfere somente opondo obstáculos ou facilitando o movimento. Por exemplo, na queda dos corpos
Aristóteles estuda os próprios corpos, enquanto na lógica galileana se estuda o processo de queda livre. “O
centro de interesse transfere-se dos objetos para os processos, dos estados para as mudanças de estado. Se o
espaço vital é uma totalidade de eventos possíveis, então as “coisas” que participam da situação, especialmente a
própria pessoa e os “objetos” psicológicos, têm de ser caracterizadas pelas suas relações com os eventos
possíveis” (LEWIN, 1973: 34). O objeto não é desconsiderado, mas ele passará a ser visto como integrando uma
estrutura, um todo, do qual ele é parte.
25
Lewin conceitua o espaço de vida a partir de critérios fenomenológicos, influenciados pela teoria da gestalt.
Nesse sentido para determinar quais fatos pertencem e quais não pertencem ao espaço de vida, leva-se em conta
o mundo físico e social, não por suas características objetivas, mas na medida em que afetam o sujeito em um
determinado tempo. “(...) a situação deve ser representada da maneira em que ela é “real” para o indivíduo em
questão, isto é, na medida em que o afeta” (LEWIN, 1973: 43). Nesse sentido, Lewin fala não de fatos sociais e
físicos, mas de quase-sociais e quase-físicos. Denomina como uma Ecologia Psicológica a tarefa de descobrir
93
mais que um conjunto de pessoas e seus meios, mas a dinâmica produzida pelas relações entre
seus membros. O campo é, portanto, um todo dinâmico que funciona como uma unidade
estruturada. A teoria de campo tem como noção fundamental o conceito de estrutura. Isso
porque o campo obedece a leis estruturais26 que estabelecem as relações funcionais entre suas
partes ou entre aspectos desse campo em uma dada situação. Vemos se enunciar aí os
princípios do grupo lewiniano. O grupo funciona, portanto, como um todo cuja dinâmica é
produzida por suas leis estruturais de funcionamento. O grau de unidade desse todo depende
diretamente do grau de interdependência das partes que compõe o todo. Para o grupo,
podemos dizer, que seu grau de unidade depende da interdependência entre seus membros.
Vem daí uma das concepções mais importantes dentro dos estudos lewinianos: o de
pensar o grupo como um organismo, uma totalidade, funcionando por um modelo
homeostático, que pressupõe equilíbrios e desequilíbrios constantes. Essa idéia de uma
organicidade definirá o grupo como o solo que dá sustentação ao indivíduo. Quanto mais
estruturado e equilibrado for o grupo maior o sentimento de segurança de seus membros e
maior sua interdependência.
Ao propor o grupo como um organismo, como um todo dinâmico, Lewin rompe com a
idéia vigente na época de que o grupo seria igual ao seu conjunto de indivíduos. Para ele o
grupo é algo a mais, que não equivale à soma de suas partes.

um grupo é mais que a soma de seus membros ou, mais exatamente, é


diferente dela. Tem estrutura própria, objetivos próprios e relações próprias
com outros grupos. A essência de um grupo não é a semelhança ou a diferença
entre seus membros, mas a sua interdependência. Pode-se caracterizar um
grupo como um “todo dinâmico”, isso significa que uma mudança no estado
de qualquer subparte modifica o estado de todas as outras subpartes (LEWIN,
1948a: 100).

Não se trata, no entanto, de pensar o todo como superior às partes, mas de pensá-las
como pólos que têm propriedades diferentes. A conseqüência de tal formulação está em
conceber o grupo como uma estrutura, como um todo dinâmico em equilíbrio instável, em que
há “uma tensão entre forças antagônicas – as que tendem a manter o todo unido e as que
tendem a desintegrá-lo” (BENEVIDES DE BARROS, 2007: 132). Assim, seria inútil querer

esses aspectos do mundo físico e social constituintes de uma zona limítrofe do espaço de vida durante um tempo
e que o afetam.
26
A estrutura fornece posições e relações bem definidas com as várias regiões de um espaço de vida (o grupo e
seu meio psicológico e sua fronteira não psicológica). As regiões ou as partes de um campo são caracterizadas
por estímulos, necessidades, objetivos, relações sociais, quantidade de liberdade, atmosfera do grupo, se é hostil
ou acolhedora. Tudo que afeta o comportamento do grupo como um jogo de forças psicológico em um
determinado tempo deve ser representado no campo existente naquele momento (LEWIN, 1965).
94
explicar um grupo pelas características dos membros que o compõem, por aspectos de
semelhança ou proximidade. Um grupo se define pela interdependência de suas partes, por ser
um organismo.
Essa interdependência é geradora de um sistema de forças que constitui o material
privilegiado de análise dos grupos. A fim de analisar a dinamicidade das forças que compõe o
campo grupal Lewin lança mão de métodos inspirados, principalmente, nas noções advindas
da geometria através da topologia e da hodologia.
Os conceitos topológicos tornam possível determinar de forma geometricamente
precisa, dentro do espaço de vida de um grupo, a estrutura e dimensão do campo psicológico,
a posição de uma pessoa e a direção de suas ações. O espaço de vida é formado por regiões,
que são diferentes entre si e separadas por fronteiras relativamente acessíveis entre si. A
topologia encarrega-se de representar através de desenhos topológicos questões dinâmicas que
envolvem o espaço vital.
Lewin (1973: 61-62) utiliza como exemplo a situação de duas crianças, uma mais
ativa e turbulenta (A) e outra mais quieta (B), sentadas em uma banheira. Diante das atitudes
de A que salta todo o tempo na banheira, o garoto B sentindo-se constrangido traça na água
uma linha, que corta o espaço da banheira em duas metades e diz à criança A que fique em
sua região. Se antes a banheira era uma única região, em que A podia realizar muitos
movimentos, agora há duas regiões adjacentes, mas separadas, onde cada um apenas em sua
região tem livre movimentação. Para Lewin a topologia possibilita representar
geometricamente determinadas situações psicológicas em termos de região, fronteira,
deslocamento.
Porém, Lewin no trabalho com o espaço topológico o considera muito geral não
conseguindo abarcar efetivamente os aspectos dinâmicos do campo. Como representar e
compreender as forças em jogo, no exemplo acima, que impulsionam o garoto B a traçar uma
linha separando as regiões? Não interessava a Lewin apenas acompanhar esse comportamento
dinâmico no espaço de vida e representá-lo, mas também compreender como se produz a
partir da dinamicidade das forças em jogo. A fim, portanto, de ampliar este método Lewin faz
uso dos conceitos vetoriais da Hodologia, relacionados à força, direção, intensidade, tensão,
ou seja, aos processos dinâmicos do campo. Essas determinações possibilitariam com relação
ao grupo mapear as forças em jogo e perceber as que levavam um grupo à ação e as que o
impediam de agir.

95
Nesse ponto é muito interessante que Lewin tenha sentido necessidade de um método
capaz de acompanhar as propriedades dinâmicas do campo, mas sem, ao mesmo tempo,
abandonar a geometria topológica. Se a topologia com seus conceitos matemáticos de espaço
e tempo poderia representar algumas das situações psicológicas vividas por uma pessoa ou em
um grupo, a fim de analisar essas mesmas situações em termos de tensão e força a hodologia
se colocaria como método dinâmico.
Essa relação entre métodos nos lembra as cartas ou mapas apontados por Deleuze
(1997) quando da realização de uma cartografia. Mapas de trajeto e mapas de afectos, de
devires. Um mapa superpõe-se ao outro, nessa mesma relação de complementariedade que
viemos apontando. O exemplo é o do pequeno Hans tomado em análise por Freud e recortado
em um mapa de trajeto: sair de casa e ir até a casa da vizinha à noite, para regressar pela
manhã, ir ao restaurante passando pelo entreposto de cavalos. Um mapa de posição e
extensão, bem parecido com aquele realizado por Lewin, mapa topológico de deslocamentos
em um determinado tempo. Mas, junto a esse mapa Deleuze aponta um outro sendo traçado,
mapa de intensidade que diz respeito ao preenchimento do espaço, ao que produz o trajeto.
Neste, Hans não passa apenas pela rua, não passeia inocentemente pelo entreposto de cavalos,
mas segundo Deleuze é arrastado num devir-cavalo. Um mapa de intensidade se faz neste
caso constituído por uma distribuição de afectos em que Hans não apenas vê o cavalo cair, ser
chicoteado, morder, mas ele mesmo é tomado por um devir que faz com que Hans e cavalo
em algum momento tornem-se indiscerníveis.
Na cartografia lewiniana os mapas topológicos apresentam um aspecto muito geral do
campo, não permitindo ver o movimento do que neles aparece objetivado, por isso sente
necessidade de instrumentos que auxiliem no estudo das relações que produzem o campo
grupal. Talvez por isso Deleuze (1997: 74) diga que “os espaços hodológicos de Lewin, com
seus percursos, desvios, barreiras, agentes, formam uma cartografia dinâmica”. Podemos dizer
que essa cartografia dinâmica lewiniana compõe-se de mapas de posição e deslocamento e
mapas de relações de força e tensão.
Entendemos que quando Lewin amplia a topologia, incluindo uma dimensão de
análise hodológica no campo grupal, está tentando compreender como uma estrutura grupal
pode apresentar tamanha mobilidade. Há o problema de manter o todo unido, ou seja, seu
funcionamento como organismo, estruturado e estável e, ao mesmo tempo, compreender a
dinamicidade dessa organização, o que sustenta o funcionamento. Há aí também um certo
paradoxo: como é possível um todo estruturado e estável ser dinâmico, ou seja, como é

96
possível a um organismo mudar? Vemos uma proximidade com o que viemos dizendo a
respeito da complementariedade. Como é possível que o grupo objetivado, por exemplo, não
sendo sólido e permanente possa ganhar solidez? Possa ter um princípio ativo de instabilidade
e impermanência que produz uma visão de estabilidade? Vemos em Lewin uma certa intuição
quanto a essas questões.
É através da análise dinâmica do campo psicológico de um grupo que Lewin cunha a
expressão “dinâmica de grupo”27, termo muito conhecido por aqueles que na modernidade
trabalham com grupos. Porém, o termo “dinâmico”, “refere-se aqui ao conceito de “dynamis”
= força, a uma interpretação das modificações que resultam das forças psicológicas” (LEWIN,
1965: 71).
A força corresponde à direção e a intensidade da tendência de mudança de um
determinado ponto do campo. Podem ser do tipo impulsoras e frenadoras. As forças
impulsoras dirigem-se para alguma coisa, promovendo locomoção e mudança. São forças
para uma valência positiva e afastando-se de uma negativa relacionadas à ambição,
necessidades, fome, estados emocionais, medos. A valência, positiva ou negativa, é uma
propriedade que um ponto (uma situação, uma atitude) no espaço de vida do grupo possui de
atrair ou repelir o indivíduo. Tem relação com a natureza da tarefa que está sendo realizada,
com o estado de necessidades da pessoa. As forças frenadoras se opõem às forças impulsoras
funcionando como uma barreira, como obstáculo físico e social que impede a mudança. O
conflito no grupo se dá quando as forças que atuam sobre o grupo são opostas em direção e
intensidade.
A estrutura é, portanto, a totalidade das relações no campo, dadas por um jogo de
forças. A estrutura é um campo de forças atuante em determinado momento. Esse campo é
móvel, já que o jogo de forças sofre variações, e é estruturado por essa relação funcional entre
as forças, mas é sempre conforme a estrutura atual do campo grupal que se pode acompanhar
a relação entre seus membros e avaliar suas ações. É por que há um jogo de forças móvel
capaz na sua possibilidade de variação de transformar a estrutura cognitiva do campo grupal
que Lewin entende que o grupo pode facilitar uma mudança de comportamento.

3.2.2 O grupo como facilitador de mudança

27
O termo “dinâmica de grupo” cunhado por Lewin é hoje, muitas vezes, erroneamente reduzido a uma técnica
grupal. Entende-se por dinâmica a própria técnica a ser aplicada, que, em muitos casos, traz de antemão a
interpretação de seus possíveis resultados, como uma “moral da história”. Entendemos que este não é o uso
elaborado por Lewin sobre dinâmica grupal.
97
Lewin chega aos Estados Unidos em 1933, quando encontra boas condições de
trabalho, já que poderia aprofundar seus estudos sobre teoria de campo, que já tinha bases
fortes neste país. E é nesta década, em meio ao início da segunda grande guerra, devemos
lembrar, que Lewin inicia suas experimentações com pequenos grupos, pesquisando com
crianças os efeitos da liderança sobre o grupo (liderança democrática, autocrática e laissez
faire).
Os mais importantes artigos dos estudos lewinianos sobre campo social escritos por
ele de 1935 a 1946 encontram-se reunidos no livro Problemas de dinâmica de grupo (1948).
E é muito interessante que boa parte destes textos estejam voltados para as questões sociais
disparadas pela segunda guerra. É preciso lembrar que sendo judeu Lewin emigra para os
Estados Unidos em meio à perseguição nazista alemã.
O que os textos parecem mostrar é que o interesse e, principalmente, as
experimentações que Lewin realiza com grupos têm forte relação com este momento
histórico. Na preocupação com os grupos havia, dentre muitos fatores, um olhar sobre como
os grupos se formam, o que os sustenta e dá força, como os grupos podem ser tão diferentes
entre si e como produzir uma mudança no comportamento e na cultura a partir dos grupos.
Não é fortuita, portanto, a construção que Lewin faz de uma relação dos grupos a um processo
de reeducação do comportamento. Nesta coletânea há textos, por exemplo, que trabalham as
diferenças sociais entre os Estados Unidos e a Alemanha, a educação da criança judaica, o
ódio entre os judeus e a possibilidade de aceitação de novos valores, que demonstram o
contexto de fortalecimento de uma proposta de mudança de hábitos que tem como facilitador
o grupo.
Os estudos de Lewin sobre “campo social”28 têm início a partir de 1936, já em solo
americano, quando sofre muitas influências da sociologia da época, que vivia transformações
conseqüentes da guerra, que acreditava Lewin fizeram avançar as Ciências Sociais para um
novo nível de desenvolvimento. A guerra segundo ele produziu uma integração das Ciências
Sociais, que passam “da descrição de corpos sociais para problemas dinâmicos de modificar a
vida do grupo” (LEWIN, 1965: 211), além do desenvolvimento de novos instrumentos e
técnicas de pesquisa social.

28
Ver mais detalhes em: Lewin, K. Teoria de campo em ciência social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1965 e Garcia-Roza L. A. Psicologia estrutural: kurt Lewin. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, 1974.
98
Entendemos que esse momento histórico produz muitos efeitos no trabalho lewiniano
com grupos, dentre eles destacamos os experimentos de liderança em grupos de crianças e
aqueles, por exemplo, de mudanças de hábitos de alimentação realizados com adultos, ambos
movidos pelos problemas de mudanças sociais e de resistência à mudança conseqüentes da
guerra. Como viver nos grupos um outro tipo de atmosfera não submetida a forças ditatoriais?
Como mudar hábitos de alimentação, tendo em vista que tanto o poder aquisitivo das famílias
quanto a disponibilidade de determinados alimentos encontram-se comprometidos?
Lewin busca então, uma abordagem científica que considere possível alterar
características culturais, que possa se perguntar “quão facilmente e porque métodos se pode
realizar certo grau de mudança cultural, e quão permanente promete ser uma mudança?”
(LEWIN, 1948e: 51). Encontra, portanto, na teoria de campo social essa possibilidade. Um
hábito é concebido como um resultado de forças instalado no campo. O campo, a estrutura
que esse jogo de forças mantém, pode ser de uma pessoa ou do grupo. A fim de se ultrapassar
um hábito, de se degelar um costume, deve-se ultrapassar a resistência interna à mudança, o
que pode acontecer ao se produzir no campo uma força adicional capaz de fazer variar o jogo
de forças criando uma nova estrutura. Lewin considera o hábito, portanto, como um processo
vivo, resultado de uma multiplicidade de forças (GARCIA-ROZA, 1974).
Entende ainda que, geralmente, parece ser mais fácil mudar indivíduos em um grupo
do que isoladamente, tendo em vista que ao se mudar os padrões do grupo o novo campo de
forças tende a facilitar a mudança do indivíduo e estabilizar sua conduta no novo nível
atingido pelo grupo. Um exemplo disso é o experimento (LEWIN, 1965: 260) realizado com
mulheres fazendeiras que ao virem à maternidade são aconselhadas individualmente sobre
como seria interessante alimentar seus bebês com óleo de fígado de bacalhau e suco de
laranja. O mesmo procedimento foi realizado também com um grupo de seis mães. Como
resultado aparece como muito superior e eficaz o aconselhamento em grupo, que ocasionou
uma melhora considerável na saúde dos bebês dessas mães em relação às outras abordadas
individualmente. Baseado em experimentos como esses que Lewin (1948e: 57) afirma que “os
métodos chamados em geral “trabalho de grupo” permitem atingir de imediato grupos inteiros
de indivíduos e, ao mesmo tempo, parecem ser de fato mais eficientes que o tratamento
individual, para provocar mudanças profundas”.
Uma mudança de conduta em um processo de reeducação só se faz possível para este
autor se estiver ancorada em algo maior que o indivíduo, algo supra-individual, como a
cultura de um grupo. No grupo, o indivíduo teria chão para estabilizar seus novos valores e

99
atitudes, de forma a tornar-se imune às flutuações cotidianas (emocionais, de pensamento, de
influências, etc), a que o indivíduo está sujeito todo o tempo. Mas, para que o grupo funcione
como promotor de mudanças de comportamento é preciso que o indivíduo se envolva no
problema, que se sinta participante ativo no grupo, e que o grupo funcione como grupo
solidário, onde os membros têm consciência de a ele pertencer.
Mas, porque estaria Lewin tão interessado em pensar o grupo como facilitador de
mudanças? E uma mudança não somente no nível de alguns tipos de comportamento, mas
uma mudança cultural. Lewin (1948c: 62) diz que “uma mudança cultural precisa penetrar
mais ou menos em todos os aspectos da vida de uma nação. (...) deve ser uma mudança de
‘atmosfera cultural’, não apenas uma mudança de itens isolados”. Parece haver aí uma aposta
nos grupos, ao modo de Lewin, frente ao perigo totalitário que ele mesmo havia vivido
proximamente com o nazismo. Os experimentos com liderança, portanto, fazem relação com
essa aposta quando Lewin (1948c: 65) entende que uma mudança através de métodos de
liderança é a maneira mais eficiente e rápida de efetuar tal mudança cultural, pensando
sempre na direção de uma liderança democrática29. Compreendemos que a proposta de uma
reeducação em Lewin é também indicadora de que o problema da liberdade frente ao
totalitarismo o força a pensar e experimentar.
Mas, a tarefa a que Lewin se propõe, a de pensar o grupo como um facilitador de
mudanças, traz também alguns perigos. Se Lewin problematiza os efeitos de uma política
totalitarista, é também na política do “todo” que espera e aposta. Mas, como trabalhar com o
todo sem tomá-lo como um bloco unitário e monolítico? Como pensar uma idéia de todo, que
ao invés de restringir o movimento, trabalhe com o próprio movimento produzindo
mudanças? Lewin vai apostar em um todo dinâmico cuja interdependência, não, exatamente
homogeneidade ou semelhança, entre os membros possibilite degelar hábitos cristalizados e
construir outros novos. A questão da interdependência para Lewin aparece como condição
para a construção de um novo modo de viver no mundo.

A construção de um mundo de paz, que seja pelo menos merecedor da


denominação de “melhor que antes”, inclui muitos problemas: políticos,
econômicos e culturais. Cada um deles está carregado de dificuldades.
Todavia, para conseguir algum progresso, é preciso considerar e enfrentar

29
Lewin entende que para encorajar a mudança à democracia, faz-se preciso realizar uma mudança de valores,
que deveria incluir uma maior ênfase nos valores humanos em oposição a valores que ele afirma serem supra-
humanos como o Estado, a ciência, política, etc., deveria se ressaltar o enfrentamento das dificuldades, ao invés
da queixa constante sobre elas e ainda a realização de uma educação para a independência e não para a
obediência (LEWIN, 1948e: 53).
100
todos juntos, como aspectos interdependentes de um campo dinâmico
(LEWIN, 1948e: 51).

Mas, como manter a idéia do grupo como um organismo que busca sempre o
equilíbrio, se, ao mesmo tempo, na sua dinamicidade está sempre no risco de que esse
equilíbrio seja perturbado? E ainda, como abrir mão do equilíbrio dado, já que toda mudança
no campo exige um novo arranjo de forças que fatalmente interfere neste equilíbrio? Há aí
uma tensão que entendemos se faz presente entre o todo como organismo e o todo como
campo de forças, que Lewin parece resolver ao propor um equilíbrio quase-estacionário ou
ainda um “equilíbrio virtualmente estacionário” (LEWIN,1948c: 62) .
Podemos dizer que o equilíbrio proposto por Lewin guarda uma mobilidade, já que
acredita que uma pessoa assim como um grupo não são realidades estáticas, mas um fluir, que
apesar de estar em constante transformação consegue manter durante um tempo um certo
arranjo estável. Vem daí a proposição de que uma mudança bem sucedida deve incluir três
aspectos: romper com o hábito, que é também degelar a situação presente; mover-se para um
novo nível ou produzir um novo arranjo de forças e estabilizar esse novo campo de forças.
Para Lewin é muito importante produzir também essa nova estabilidade, esse equilíbrio
virtual, tendo em vista que para ele a estrutura funciona como um chão para o sujeito.
Mas, romper com hábitos, produzir mudanças, exige que se repense e reinvente a
pesquisa social, que questione os parâmetros científicos de neutralidade do pesquisador,
utilizados por algumas escolas psicológicas e sociológicas que tentam eliminar ao máximo os
aspectos subjetivos da situação em questão. Muitas das críticas recebidas por Lewin quando
de seus experimentos de lideranças apontam que suas conclusões teriam sido contaminadas
por seus objetivos, como, por exemplo, demonstrar as vantagens de uma liderança
democrática sobre a autocrática (GARCIA-ROZA, 1974). De fato, para Lewin no momento
em que o pesquisador estuda, pesquisa e experimenta nos grupos está, ao mesmo tempo,
agindo, o que faz com que o pesquisador seja também colhido naquilo que é seu objeto de
estudo. O pesquisador não somente estuda um campo de forças, mas interfere e faz ele mesmo
também parte deste campo. Lewin (1965: 190) entende que “qualquer pesquisa em grupo é,
até certo ponto, ação social”, e que uma mudança não se faz com relação à motivação de uma
pessoa ou de um grupo, mas relativamente à sua ação.
Em seus últimos trabalhos Lewin (1948d: 217) afirma que não será o bastante uma
pesquisa que produza apenas livros, apontando um fazer pesquisa como um método de
pesquisa-ação, action research, onde o próprio procedimento de pesquisa utilizado é o de

101
provocar transformações sociais e onde os participantes do grupo são, ao mesmo tempo,
sujeitos e objetos da experiência.
Sobre o trabalho realizado por Lewin cabe-nos fazer ainda algumas considerações.
Primeiramente, que o grupo lewiniano é uma construção, como tantas outras que também
produzimos. Queremos dizer com isso que Lewin não descobre um grupo que já pairava
sólido e inerte à sua espera, mas o inventa. A invenção não tira os méritos deste autor, ao
contrário, permite que percebamos que as invenções produzem mundo e pelo mesmo
princípio podemos construir sempre mundos novos.
Entendemos que, exatamente, por isso, por apostar em novos mundos, que Lewin
precisa lançar mão de um grupo que acolha mudanças em sua forma, que não esteja fundado
nos sujeitos que o compõem, mas no jogo dinâmico de forças que o produz. Mas, é claro que
como todo inventor, Lewin às vezes também se encontra enredado naquilo que está a fazer,
dotando de crença seu objeto, o que aparece em muitas das críticas feitas ao seu projeto, que
trazem a problematização dos perigos de uma proposta de reeducação, tendo em vista que este
autor acredita na possibilidade de conscientização, trabalhando fundamentalmente com a
razão. Nessa perspectiva não se tratava de fazer consciente o que era inconsciente, mas de
tornar racional um comportamento que era considerado inadequado e irracional. A
consciência-razão aponta para um movimento de autonomia frente à ignorância e obediência
cega que os sentimentos podem promover.
Podemos ver no trabalho lewiniano um apontamento interessante trazido por
Rodrigues (1999) na sua análise sobre a trajetória empreendida por J. L. Moreno e sua
também proposta grupal. Moreno, assim como Lewin, também emigra para os Estados
Unidos – 1925 - quando através de suas experimentações com o teatro de improviso formula o
conceito de psicoterapia de grupo. Mas, antes ainda em Viena envolve-se em diversos
trabalhos sociais e comunitários, desenvolvendo grupos com crianças, ocupando-se de um
campo de refugiados de guerra e ajudando mulheres a fundar um clube autogestionário para
mútua assistência. Práticas que também apostavam em processos de liberdade. Mas, em sua
continuação o que parece se dar nos Estados Unidos com a sistematização cada vez maior do
trabalho grupal e de sua teorização através do teste sociométrico, o que permite construir o
Sociograma, é a reivindicação de um certo objeto construído, o objeto-grupo – dramatização
em grupo de relações e conflitos – como um monopólio de legitimidade dos psicodramatistas.
Rodrigues (1999) aponta então em Moreno uma passagem “do pioneirismo à
institucionalização”.

102
Assim como em Moreno há também o perigo nas propostas lewinianas, como em
qualquer formulação teórico-prática, de fazermos de nossas construções algo sólido e
permanente. Em Lewin vemos também os processos de institucionalização do grupo,
principalmente, quando começa a se preocupar com resultados mais duradouros nos
experimentos com grupos e na busca por mudanças mais permanentes com relação ao
comportamento. Lewin começa a perceber que uma vez o grupo disperso e sujeito às pressões
da comunidade tendia a retornar às situações problemáticas, que teriam sido o porquê de sua
constituição. Uma das soluções encontradas foi formar equipes que se mantivessem unidas
quando os trabalhos terminassem, ou ainda, construir uma assistência permanente sobre os
integrantes depois que o grupo fosse desfeito.
Lewin estava preocupado com a manutenção dos comportamentos aprendidos, com a
eficácia e permanência da dinâmica grupal, quando esta não estivesse mais presente. Estava
preocupado em produzir um controle sobre essa dinâmica, onde os grupos pudessem ter
também uma função de experimentação de determinadas formas de sociabilidade. Há aí um
fazer-grupo que parece também se dirigir por metas e finalidades, e pela preocupação em
sustentar e manter certos hábitos e comportamentos. Novamente, reafirmamos a produção
lewiniana compreendendo, ao mesmo tempo, a facilidade com que todos nós podemos tomar
por sólido algo que em algum momento foi produzido por forças contingenciais e provisórias
e reivindicar para essa construção o estatuto de permanência. Se há algo que permanece nas
formas, que se sustenta no nascer e morrer das construções é a condição de processualidade
que produz as objetivações e que também as faz impermanentes e passageiras, que as sustenta
e desmancha.
Entendemos que Foucault e Varela também nos auxiliam neste ponto: o de produzir
através da prática ética uma ampliação de nosso olhar a fim de vermos o mundo que estamos
construindo juntos enquanto o fazemos e assim problematizarmos a cegueira e o
aprisionamento que o apego às formas produz, mesmo quando nossos projetos estão imbuídos
das melhores intenções. É por isso que afirmamos a relação de complementariedade da
grupalidade no grupo, da dimensão processual nas formas, não para negarmos as formas
produzidas, mas para as problematizarmos apostando na condição de liberdade que as produz.
Sobre a ampliação desse olhar talvez Guattari, autor que também problematiza os
grupos, possa nos ajudar, tendo em vista que aposta em uma ampliação do grau de
comunicação, grau de transversalidade nos grupos.

103
3.3 Guattari e as lutas antitotalitárias

As questões sobre o grupo formuladas por Félix Guattari emergem em um contexto de


múltiplos atravessamentos, em experiências na França em meio à guerra e ao pós-guerra,
quando no campo institucional são questionadas além da psiquiatria de internação, formas de
pensar e fazer grupo.
Dentre esses atravessamentos podemos dizer que a segunda guerra, na ameaça de um
poder totalitário, produziu também inúmeros movimentos de resistência como aquele
constituído pelo hospital de Saint Alban, que congregou nestes tempos inúmeros resistentes à
ocupação nazista – comunistas, cristãos progressistas, anarquistas, surrealistas, psicanalistas,
intelectuais, etc – que lá encontraram abrigo. Saint Alban tornou-se, então, uma referência
para terapeutas, resistentes e artistas, que junto aos usuários experimentaram maneiras de
organização e tratamento afirmativas de uma política de resistência e desalienação, em meio à
situação do país ocupada pelas forças da Alemanha.
Tosquelles, psiquiatra que antes de Saint Alban, coordenara no front da guerra
espanhola os serviços de higiene mental por uma psiquiatria descentralizada e
destecnocratizada, agora, juntamente, com todos aqueles que passavam pelo hospital de Saint
Alban constrói uma política de humanização dos hospitais30, apostando no estreitamento de
laços com a vida das comunidades e em um movimento que é cunhado um pouco depois, em
195231, de Psicoterapia Institucional, que apontava para o tratamento da instituição de
cuidados, ou seja, a própria instituição psiquiátrica deveria ser curada, através de processos de
auto-gestão em que todos participavam da organização do espaço e tempo das atividades. Este
movimento produziu também inúmeros dispositivos auto-gestionários como assembléias,
jornal interno, oficinas, etc.
Encontraremos Guattari em La Borde em 1955, desdobramento da experiência de
Saint Alban, juntamente com Jean Oury que havia trabalhado anteriormente com Tosquelles.
Vive-se os tempos de luta pela libertação da Argélia onde La Borde é transformado em
esconderijo para militantes. Aqui também a aposta se faz na deshierarquização das relações

30
Tosquelles chega em 1940 à Saint Alban, situado na região de Lozère, que era dirigido, inicialmente, pelo
psiquiatra Paul Balvet (1907-2001) e depois por Lucien Bonnafé (1912-2003). Juntos fazem de Saint Alban um
espaço de liberdade em meio aos tempos difíceis de opressão. Nessa experiência as portas do asilo são abertas e
os pacientes fortalecem os laços com as comunidades locais, realizando troca de alimentos e construindo juntos
modos novos de vida. Entre os resistentes abrigados em Saint Alban estão muitos artistas, que realizam com os
internos ateliers de pintura, literatura e teatro, possibilitando fazer do hospital espaço de criação estética
(RODRIGUES, 2005).
31
O termo é cunhado em 1952 em um artigo de Daumezon e Koechlin e é apontado posteriormente como um
dos começos da Análise Institucional Francesa (RODRIGUES, 2005).
104
entre médico-paciente, entre estes e outros trabalhadores, entre trabalhadores e gestores, que
dispara uma experimentação de novas possibilidades de organização, problematizando modos
de existência serializados e institucionalizados.
Vemos aí também um outro momento do que se chamou psicoterapia institucional. É
preciso compreender que este movimento em suas experimentações foi vivendo uma
modulação das questões e dispositivos. Se em um primeiro momento constituía-se como um
tratamento do estabelecimento de cuidados, é também um tempo depois questionado no
apreço excessivo à reforma do estabelecimento psiquiátrico.
Ainda nessa modulação a psicoterapia institucional experimenta a utilização, como
método de socialização, de psicoterapias de grupo influenciadas, principalmente, pelas
propostas grupais de Lewin, Moreno e Rogers, que lembremos estavam nessa época nos
Estados Unidos realizando experimentos com grupos, propostas que somadas às
experimentações coletivas em Sain Alban contribuem durante um certo tempo para provocar
o exame das relações sociais na instituição e a reestruturação dessas relações possibilitando
novas formas de sociabilidade.
Na clínica de La Borde a psicoterapia institucional é questionada tanto na equivalência
do conceito de instituição ao de estabelecimento, como na incorporação de propostas grupais
que não tomam em análise a dimensão institucional. O que se insinuava como um terceiro
momento da psicoterapia institucional, era a afirmação de que as instituições não se
assemelhavam ao estabelecimento psiquiátrico, mas o produziam enquanto tal, como forma,
como produto histórico de relações sociais. A análise das instituições radicaliza a
deshierarquização e desburocratização já em funcionamento, colocando em questão os vetores
sociais e políticos em jogo nas instituições, problematizando e desnaturalizando seus
processos de constituição. É neste contexto, profundamente profícuo, que Guattari formula
conceitos importantes da psicoterapia institucional, que nas suas transformações produz
também a passagem para uma Análise Institucional (1960): grupo sujeito e grupo sujeitado;
transferência e contratransferência institucional; transversalidade e analisador.

3.3.1 Coeficientes de transversalidade nos grupos: ampliação do grau de visão

Entendemos que Guattari põe-se a pensar os grupos diante dos processos que ele
mesmo vivia como uma variação de abertura e fechamento dos grupos em que participava –
aqueles também realizados em La Borde, a institucionalização das propostas de grupo

105
lewinianas, morenianas, dentre outras fortemente veiculadas neste momento, além de
organizações com as quais manteve contato e outras ainda das quais participou ativamente:
Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP); Escola Freudiana de Paris (EFP), dissidente desta
primeira; Grupo de Trabalho de Psicologia e Sociologia Institucionais (GTPSI). Mesmo nos
grupos que se formavam na dissidência com outros continuava a analisar a permanência de
práticas marcadas pelo elitismo, por uma hierarquia na seleção, e pela constituição de
dispositivos disciplinares de controle e vigilância.
Guattari propõe então que toda análise é análise institucional. Faz isso a partir de
inquietações sobre os rumos tomados pelas práticas da Psicanálise sem que, necessariamente,
se analisasse suas organizações e o processo de institucionalização que viviam, e ainda o
tratamento empreendido em La Borde, sem que esta fosse posta em análise. Constrói a partir
disso o texto A transversalidade (1981b [1964]) que analisa os problemas ditos individuais e
aqueles postos em funcionamento pelas sociedades capitalistas a partir de um mesmo plano
produtivo. Fazendo isso, questiona a separação entre individual e social, compreedendo-os
como advindos de um mesmo plano de produção. É nesse sentido que toma também o grupo
como problemática, analisando-os em sua institucionalização, na sua redução à técnica e ao
monopólio de especialistas.
Em um primeiro momento de análise dos grupos define duas espécies: grupo sujeito e
grupo sujeitado. Na leitura de Guattari entendemos que ele utiliza para essa diferenciação
entre grupos a referência da morte, ou seja, a possibilidade de se encontrar com a sua morte.
Isso é muito interessante, já que a morte, conforme vimos com Dom Juan (CASTAÑEDA,
s/d), apresenta-se como uma sábia conselheira no caminho de aprendizagem. E aqui podemos
tomá-la não somente como um evento físico, mas como um processo, um “morrer” que
acompanha toda a vida. Uma boa morte, pois, a ser cultivada, porque o que se afirma nesse
morrer não é aquilo que passa, mas a sempre permanência da processualidade, presença
incessante, que possibilita a morte, e que o morrer por conseqüência afirma.
Os grupos sujeitados, portanto, são aqueles que conjuram os cortes, o não sentido que
pode neles se instalar, na tentativa de evitar sua morte e de promover uma autoconservação.
Para isso, estão sempre a se fechar sobre si mesmos e a excluir outros grupos. Já os grupos
sujeitos “não param de se defrontar com o limite de seu próprio nonsense, de sua própria
morte ou ruptura” (GUATTARI 1981b: 105). Morrer, neste caso, possibilita que o grupo
experimente outros modos de estar junto, não se fiando em um saber construído sobre eles
mesmos, não se aprisionando em alguma forma de teorização que fixe seu funcionamento.

106
Aqui Guattari também faz alusão à institucionalização que os grupos viviam através da
incorporação das idéias lewinianas, por exemplo. Faz-se uma crítica a Lewin por não incluir
na análise os próprios processos históricos e sociais de produção dos grupos, ou ainda à
dimensão institucional que os envolve e produz.
Mas, compreendemos que grupo sujeito e grupo sujeitado também se constituem numa
perigosa diferenciação, tendo em vista que podem ser tomados como movimentos opostos,
como pólos dicotômicos equivalentes à idéia de bem e mal, vida e morte. Estes são perigos
constantes para todos nós, tendo em vista nossa facilidade de apego a pólos contrários e
nossos anseios, como em Lewin, de tornar permanentes algumas mudanças.
Os grupos sujeitos, por exemplo, mesmo em seu alto grau de abertura, não estão livres
de se constituírem em disparadores de movimentos de sujeição, mas neste caso sobre outros
grupos. O grupo sujeito é aquele que se esforça por elucidar seu objeto, por analisar seus
próprios movimentos, por ser protagonista de seus destinos, mas neste afã é tomado por
tamanha clareza, que pode chegar a querer a palavra, a tomá-la para si como se detivesse a
verdade e a impô-la sobre outros grupos. Vemos aí o princípio de constituição de movimentos
que por mais revolucionários que possam se dizer trazem também em si o perigo do
totalitarismo, “mecanismos mortíferos que conhecemos nas ‘panelinhas’ religiosas, libertárias
ou revolucionárias” (GUATTARI, 1981c).
Para a superação dessas noções, ou ainda para não se recair numa falsa dicotomia,
Guattari propõe o conceito de transversalidade, na possibilidade de que grupo sujeito e grupo
sujeitado não estejam solidamente identificados a pólos opostos, mas que se constituam como
graus de abertura e fechamento. A transversalidade opõe-se ao movimento de verticalidade,
de um funcionamento em que uns se sobrepõem sobre outros, como no organograma
hierarquizado de uma empresa e ainda a uma horizontalidade onde os sujeitos são tomados
em igualdade e se constituem em movimentos corporativos (GUATTARI, 1981b).
Mas, nesse sentido podemos ainda, confusamente, tomar a transversalidade como uma
nova opção ao lado da verticalidade e da horizontalidade. Talvez por isso Guattari fale de
coeficientes de transversalidade, de graus de abertura no grupo. Este movimento de abertura e
fechamento de graus assemelha-se, segundo Guattari (1981b) à regulagem das viseiras
colocadas nos cavalos, que à medida que se abrem produzem uma ampliação da visão e uma
maior circulação, inclusive, territorial. Podemos pensar aqui também em uma maior
circulação nos territórios existenciais que construímos, ou ainda com relação às objetivações
que produzimos.

107
Essa idéia nos parece muito interessante, já que se a transversalidade fosse apenas uma
nova opção em termos de plano, fatalmente incorreríamos em novas dualidades: “ou se está
no plano da transversalidade ou se está na horizontalidade”, e assim por diante. Se isso fosse
possível poderíamos, inclusive, abrir mão das formas, dispensar o grupo e dizer apenas que
optamos pela “tão somente transversalidade”. Porém, Guattari propõe coeficientes de
transversalidade no grupo. Assim poderíamos nos perguntar sempre dos coeficientes de
transversalidade nos grupos, predominantemente, verticalizados ou naqueles que vivem
processos de horizontalidade, ou ainda coeficientes de transversalidade nos grupos
lewinianos, ou ainda nos morenianos, e, quem sabe, encontraríamos aí, como tentamos
apontar em Lewin, índices de abertura em meio a processos de fechamento.
Isso nos parece muito importante: poder afirmar a transversalidade no grupo, que não
é nada diferente do que viemos até então chamando de grupalidade, de um lado de fora no
dentro, de uma dimensão coletiva naquilo que, aparentemente, mostra-se como
individualizado ou totalizado. O que nos traz nova possibilidade de circulação, renovo em
nosso fôlego. Porque se de um lado com viseiras muito apertadas, em uma regulação muito
pequena, vemos um campo fechado e extremamente tomado pelas redes de poder/saber, por
práticas de disciplinamento e controle, por um apego a formas e identidades; de outro modo
na ampliação das viseiras e até mesmo no olhar que vê as viseiras usadas, que vê o próprio
olho, contemplamos o plano de produção de todas as formas, a abertura como lado de fora no
que parece fechado, e o que aparece como condição imanente do grupo: um plano relacional
da existência, onde a passagem nas formas, o morrer afirmativo, é o encontro com a alteridade
suprema constituinte dessa dimensão coletiva.
O que queremos dizer, portanto, é que quando se amplia o coeficiente de
transversalidade, de abertura no fechamento, encontramo-nos nesse movimento paradoxal,
com a alteridade, tendo em vista que neste plano não há separação entre mim e o outro, mas
processos de co-emergência.
Porém, como já dissemos em outros momentos, o grupo não se constitui como
passaporte seguro para uma experiência coletiva, ou antes para uma experiência de
transversalidade, ou, como Guattari afirma, o grupo não tem virtudes analíticas em si, não é
naturalmente propenso a nos dar a ver ou a nos permitir viver a dimensão coletiva que o
constitui. Mas é porque o grupo nasce de um movimento processual, que também
encontramos nele como objeto construído a possibilidade de abertura, de ampliação da visão
diante da cegueira que, por vezes, nos acompanha.

108
Portanto, como acessar nos grupos uma ampliação dos coeficientes de
transversalidade?
Se o grupo por si só não possui virtudes analíticas, tendo em vista que não porta em si
nenhuma essencialidade, podemos pensar, então, que para o acesso a este plano de pura
alteridade no grupo faz-se necessário uma prática ética de cuidado de si e do outro, que é
também um movimento de esvaziamento de si. Esvaziar-se de si para no mesmo movimento
expandir-se na alteridade.

3.4 O grupo são muitos, efeitos da grupalidade

Tentamos até aqui afirmar que os grupos, de fato, não possuem realidade em si,
nenhuma essencialidade, sendo objetos construídos, mas que, no entanto, como construções
podem ganhar um caráter de realidade e de ilusória solidez. Diante disso, tomamos por
caminho afirmar a forma-grupo, ao invés de dizer que ela não existe, acolhendo-a tanto em
sua aparente solidez quanto naquilo que nela se move, sua dimensão de grupalidade.
Com isso dizemos então que o grupo objetivado, definido em alguma forma de
funcionamento, não existe por si mesmo, mas é imanentemente criado. O que nos leva a
perceber que nos grupos com os quais trabalhamos por vezes vemô-los emergirem em
determinadas formas de funcionamento. Em alguns momentos sentimos que uma unidade está
se fazendo. Vemos então, por exemplo, o todo lewiniano ganhando vida. As pessoas dizem
“nosso grupo é assim”, “é melhor que não entre mais ninguém, nosso grupo está bem assim”,
“isso é o que o nosso grupo sente”, etc. Ou seja, vivemos certezas nos grupos, e por isso
afirmamos que o grupo é algo, fazemos de um movimento provisório uma previsão definitiva.
Vivemos nos grupos de maneira imanente o nascer e morrer de suas formas.
Apontamos aqui, no entanto, a possibilidade de acolher as formas em seus processos finitos,
sem identificar em definitivo o grupo a elas. O grupo, na verdade, são muitos, e na sua
constituição são, sobretudo, efeitos da grupalidade, essa sim dimensão infinita e incessante.

3.4.1 Como fazer para que uma gota nunca seque?

Como então relacionar o grupo a um plano impessoal e coletivo? Como trabalhar com
a grupalidade no grupo ou o grupo como efeito emergente da dimensão de grupalidade? Essa
é uma questão que poderia ainda ser formulada da seguinte maneira “Como fazer para que
uma gota nunca seque?”. Colocá-la em uma redoma? Protegê-la do que pode consumí-la?
109
Como fazer para que uma gota nunca seque? Parece impossível. O koan32 diz que é preciso
jogá-la ao mar, assim nunca secará.
O que fazer então com o grupo-objetivado? Devolvemos ao seu mar, à grupalidade da
onde advém. O que fazemos com o eu, com o outro? Mergulhamos nas águas coletivas e
processuais da aonde co-emergem juntos. Assim devolvemos o grupo à grupalidade, o sujeito
a seus processos de subjetivação.

3.5 Os grupos que nascem da co-emergência: algumas cenas33

3.5.1 Cena 1 – “efeito placebo?”: um caloroso debate

Reinaldo entrara no grupo havia duas semanas e nestes dois encontros apenas Luzia o
conhecera. Penha e Ricardo não estavam presentes, apesar de termos decidido juntos pela
entrada de um novo participante. Estamos, então, no terceiro encontro onde todos puderam se
conhecer. Penha está agitada, diz que havia se sentido muito mal nas semanas anteriores, fala
da “raiva” que tem passado com o filho que anda muito desobediente e também com o
parceiro, com quem divide a casa, apesar de não estabelecer com ele uma “relação de marido
e mulher”. Em casa todos vivem brigando, e ela anda muito cansada. Começou a passar mal,
teve alguma coisa na perna, e em um dia que amanhecera muito triste, ligou a televisão em
um programa evangélico. O pastor abençoava o copo d’água colocado em cima da TV.
Depois de fazer assim, Penha passa a água em sua perna, sentindo-se muito melhor. Ricardo
afirma que acredita que a água abençoada tenha produzido a melhora. Acredita que é sempre
bom manter pensamentos positivos. Mal terminara de falar, Reinaldo o corta bruscamente
dizendo não acreditar nessas coisas. Gesticulando muito e com voz muito grave questiona a
existência de Deus, apesar de também freqüentar a igreja, e diz que tudo não passa de
bobagem, “efeito placebo”, e assim um debate caloroso se instala no grupo. Luzia não admite
que se diga que Deus não exista, sendo muito católica conta sobre as bênçãos recebidas em
sua fé. Ricardo tenta entrar na discussão e não conseguindo o vemos se encolher na cadeira.

32
Um Koan é uma pergunta realizada a fim de quebrar a rigidez da visão (Samten, 2001). A fim de abalar, por
exemplo, as certezas de uma visão dualística em que se vê como pólos opostos e independentes sujeito e objeto,
eu e outro.
33
As cenas aqui apresentadas são tentativas de reconstrução de falas trazidas ao longo de uma experimentação
grupal no Setor de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade Federal Fluminense, sendo que os nomes aqui
apresentados são fictícios, de forma a resguardar as pessoas que participaram do processo.
110
Penha tenta se explicar. E, assim parecem todos muito incomodados, inclusive nós que
fazíamos a co-terapia34.
Chama atenção o fato de que nas duas semanas anteriores Reinaldo dizia do quanto se
sentia solitário, não tinha amigos e os parentes também não se relacionavam com ele. Não
sabia o que acontecia. Já ouvia há muito tempo dizerem que ele parecia um Hitler. Indignado
diz que uma mulher com quem, recentemente, havia saído o chamara de machista, autoritário,
e ele então não a procurara mais. Era interessante também que sendo seu primeiro encontro
com pessoas que não conhecia e com um grupo que em seu arranjo se mostrava diferente
daquele que havia participado nas outras semanas, Reinaldo se mostrasse tão imponente e
agressivo.
Ele já havia dito que gostava muito de debates, poderia ficar horas discutindo opiniões
para ver qual prevaleceria. Neste encontro em meio ao debate inflamado sobre religião e fé
pudemos nos perguntar sobre o que Penha inicialmente falava. Reinaldo só se lembrava do
copo d’água em cima da televisão. Os outros também pareciam tomados pela questão.
Lembramos então que diante da TV estava Penha sentindo-se triste e cansada. Porque no
debate caloroso tornamo-nos cegos para a tristeza do outro? Porque privilegiamos isso e não
aquilo? Não haveria aí também um modo de se relacionar em que o outro é subsumido na
relação? E então fatalmente nos sentimos sozinhos?

3.5.2 Cena 2 - “meia hora pra cada um, assim fica resolvido”

Nos dois a três encontros que se seguiram a este, tanto Penha quanto Ricardo faltaram.
Podíamos sentir que dentre muitos fatores – o fato de Ricardo estar prestando concurso, Penha
trabalhando, etc. – havia também um mal-estar do último encontro. Tempos depois, quando
Reinaldo não estava presente em um dos encontros Penha pôde dizer que não tinha ficado
“com impressão muito boa dele” e Ricardo, de que ele o assustava.
Estamos aqui realizando um recorte dos processos que atravessavam e constituíam o
grupo. Nos encontros muitas intensidades eram vividas, e assim o grupo ia se apresentando de
diferentes formas. A cada vez que nos encontrávamos novos arranjos também se produziam.

34
O atendimento realizado em co-terapia é uma prática muito freqüente nos grupos, não sendo necessariamente a
forma prioritária de atendimento. Neste processo grupal, por exemplo, durante o tempo em que estivemos
presentes, foram realizadas duas parcerias com terapeutas diferentes, sendo que entre a saída de um e a entrada
de outro terapeuta havia um espaço de tempo, gerido pelo próprio grupo, que decidia pela entrada de outras
pessoas e como isso se daria. A co-terapia e os efeitos que disparava, até mesmo quando se decidia por não
realizá-la em algum momento, constituía-se, muitas vezes, como dispositivo importante de intervenção e análise
nos processos grupais.
111
Ricardo, que sofria com processos de obsessividade, afirmando seu sofrimento como
um transtorno obsessivo compulsivo, guardava muito receio tanto de Reinaldo como de
Luzia. Com Luzia sentia-se muito contagiado, quando ela estava nervosa e falava muito alto.
Em alguns momentos ameaçava ir embora, por que a partir de como os outros estavam, sentia
dores de cabeça e uma crescente angústia. Dizia em alguns momentos que faltava ao grupo
porque este encontro era muito difícil e o perturbava muito. Como estratégia, como ele dirá
depois, chegava a várias sessões atrasado, para não ter que ouvir Luzia.
Ricardo dizia, às vezes, não compreender porque estava a tanto tempo no grupo. O que
sente não tinha nada a ver com nenhum dos problemas vividos pelos outros. Tem vontade de
ficar em casa e não vir mais. Já tem muitos problemas, não quer ouvir os dos outros. “Pra quê,
se não consegue resolver nem os seus?” Não entende como isso pode ajudar. Sugere então
marcarmos um tempo, uma meia hora para cada um poder falar de si. Com hora marcada isso
fica resolvido.
Mas, o quê fica resolvido? Não é que delimitar horários seja um problema, mas o que
se quer resolver estabelecendo meia hora para cada um?
Será que no sofrimento do outro não comparecemos de certa maneira? Será que não
nos ajudamos quando ajudamos o outro? Será que há mesmo uma independência entre mim e
o outro?
É muito interessante que se em alguns momentos Ricardo se encolhia ou faltava,
durante o processo grupal ele também foi podendo dizer o que sentia, o incômodo que
provocava escutar Luzia e estar com ela, o assombro diante de Reinaldo, alguns dos
movimentos preventivos que fazia, assuntos em que não tocava porque dava azar compartilhá-
los e que, às vezes, rapidamente na despedida falava ao terapeuta pedindo segredo. Tudo isso
foi devagar podendo ser trabalhado, o que, por vezes, provocava também nos outros diversos
movimentos e trazia ao grupo novas modulações.

3.5.3 Cena 3 – combatentes e aliados

Tentamos reconstruir este encontro (Cena1) de debate inflamado, porque ele seria
lembrado e trabalhado em muitos outros momentos. Depois de alguns meses juntos Ricardo
diz a Reinaldo em uma sessão que sente medo dele, que se lembra do primeiro encontro
quando se assustara com a reação dele à Penha, que não gosta quando Reinaldo acha

112
engraçado algo que ele conta. Reinaldo diz saber que desperta isso nos outros, mas que não
gostaria que fosse assim.
Neste dia, os dois estavam sentados um de frente para o outro. À medida que Reinaldo
diz de como se sente por ser temido pelos outros começa também a se exaltar, gesticular e
falar mais alto. Ricardo, então, vira a cadeira colocando o encosto para frente, afirmando se
sentir mais protegido. Um debate começa a ser travado onde um diz ao outro como se sente,
mostrando, ao mesmo tempo, uma indignação pelo que ouve do outro. Parecem combatentes,
e só esquecem um pouco da trincheira quando se fazem cúmplices para dizer do que sentem
por Luzia, que não estava presente neste encontro. Ricardo num tom de confidência diz que
acha que Luzia está sempre o “sacaneando”, que “deveria se tocar e deixar que os outros
também pudessem falar no encontro”. Reinaldo, feito cúmplice, não acredita que ela faça por
mal, mas também acha que ela atrapalha o grupo e que não contribui muito.
Analisamos nesse dia, em meio ao combate e às alianças que se travavam, as
mudanças corporais extremamente visíveis em todos nós. Em algum momento Filipe e eu nos
sentíamos como juízes de uma querela. Ricardo então diz que quando Reinaldo se ajeita na
cadeira, gesticula e ecoa sua voz pela sala parece estar estufando o peito para receber a faixa
de vencedor. Reinaldo, ao contrário, diz que se sente aprontando-se para entrar na batalha,
mas não que já a tenha ganhado. Dois, dentre muitos outros, modos de existência parecem
tomar forma no corpo presente. Uma posição de vencido, humilhado e assustado e outra de
vencedor, forte e determinado. Com Luzia, uma posição de superioridade e outra de quem
está sendo “sacaneado”.
Posições nas quais Ricardo e Reinaldo se encontravam muitas vezes. Modos de viver
somente possíveis numa relação de co-emergência. Só há vencido porque há vencedor e vive-
versa. Pudemos juntos acompanhar essas maneiras de viver há muito cultivadas e que o
processo grupal vinha dando visibilidade e produzindo análise. Dar visibilidade aos modos de
existência, às nossas formas de funcionamento, possibilita percebemos que nessa construção
nunca estamos sós, bem como também não nos constituímos como um só. Nossos modos de
subjetividade são compostos de materiais muito diversos, de muitas histórias entremeadas, de
aspectos sociais, econômicos, políticos, familiares, afetivos. Nossa existência é produzida
coletivamente, porque essa é sua matéria. Por isso entendemos que, por conseqüência, nossos
modos cristalizados de existir podem viver transformações, na medida em que nossos
processos relacionais de constituição podem ser provocados e experimentados de outros
jeitos, que novos nascimentos podem vir à existência.

113
3.6 Um presente de infinito valor

Dizíamos em capítulo anterior que nos movemos, muitas vezes, através de uma
reflexão abstrata e desincorporada, que produz sofrimento e um olhar de independência e
identidade para com o mundo, para com o outro e para conosco.
Mas, apesar de problematizarmos a construção desse olhar, não gostaríamos de tomar
um caminho niilista35 em que a inexistência de uma identidade inerente, de um “eu essencial”
ou de um mundo real e independente nos levaria a desacreditar de qualquer outra
possibilidade, a afirmar um destino trágico para a humanidade ou mesmo a impossibilidade de
nos relacionarmos uns com os outros. Esse olhar parece livre ou parece tender para o
questionamento, para a liberdade, mas há também aí uma prisão, uma espécie de cegueira.
Diante da inexistência de um eu real e verdadeiro, de um centro de referência para nossas
ações, não precisamos abandonar a idéia de um eu relativo e prático (Varela, Thompson e
Rosch, 2003), que, apesar de não ter natureza objetiva, tem sua emergência no encontro com o
outro, onde funciona mais como passagem, como processo, que como estabilidade e certeza.
Esse eu relativo e prático, a fim de nos relacionarmos, emerge como modo de subjetividade,
que tem no outro sua condição de existência.
Mas, esta dimensão relativa do processo de subjetivação não pode ser confundida com
um relativismo do tipo ambientalista ou sociologista, por que tal relativismo opera realizando
uma separação entre a relação e seus efeitos, tornando os efeitos distinguíveis ou
independentes das relações que os produzem e são, em um movimento circular também
produzidos por eles, tal como o ambiente e suas relações, que se distinguem dos efeitos
determinados por eles. Ser relativo aqui não significa portanto ser em relação a, mas ser
relação com. A não independência de um eu objetivo afirma a dependência de um outro para
fins de existência. Só existimos na relação.
A cegueira é um dos perigos da clareza. Se nossas certezas puderem ser suspensas,
colocadas entre parênteses por um instante, poderemos ver que nosso cotidiano não é movido
somente por padrões habituais de conduta apegados a um eu real.

35
Varela, Thompson e Rosch (2003: 243) apontam que a tendência niilista está fortemente relacionada ao
objetivismo. Surge como uma reação ao colapso do que antes parecia tão claro e certo, como resposta radical e
extrema ao desmanchamemto do que funcionava como ponto de referência seguro e absoluto. Pelo abalo, por
exemplo, da certeza na existência de um self, um “eu” real, ou de um mundo real, a tendência niilista confunde-
se e nega qualquer outra alternativa. Apesar de não haver um self real e verdadeiro, podemos falar em um self
relativo e prático, que emerge na relação com o outro.
114
Há em muitos momentos ações imediatas e impessoais. Como quando alguém é ferido
na rua e instantaneamente nos movemos para ver o que aconteceu, quando nos sentimos
tristes porque pessoas do outro lado do mundo estão vivendo em situação difícil, passando por
dificuldades e sofrimentos. Como o homem no metrô que vê um outro cair no meio dos
trilhos e então se joga colocando-se sobre o homem de forma a protegê-lo, tendo sua cabeça a
poucos centímetros de distância do trem que passa sobre eles. Nessa ocasião a repórter
pergunta porque se arriscar por um desconhecido. O homem não sabe o que responder. Mas,
rapidamente, na ausência de uma explicação plausível e racional, elabora que teria sido
porque a presença de seus filhos ali teria motivado esse gesto. Uma resposta elaborada num
minuto depois da ação. De fato, no momento em que o homem se joga pra salvar o outro não
há elaboração, há ação. Uma ação impessoal, completamente imediata movida por uma
dimensão relacional de nossa existência.
Vemos também nos grupos, muitas vezes, esse comportamento ético (Varela, 1995).
Quando alguém conta sobre uma cena triste, que teria acontecido na semana, e o outro se
aproxima, faz um gesto impensado de ajuda, de solidariedade.
Há uma outra cena muito interessante quando na proximidade do Natal, aparece no
grupo o tema dos presentes, que sempre acompanham essa data. Ricardo sugere que
poderíamos nos presentear uns aos outros. Reinaldo diz que não espera ganhar nada de
ninguém. Mas, Ricardo começa a oferecer presentes a cada um, conforme o que achava que
precisávamos. A Reinaldo: “te dou de presente menos neurônios, menos neurônios, menos
racionalidade”. Reinaldo falava naquele dia de seu olhar matemático, de sua dificuldade em se
relacionar com o que não era planejável e calculável. Ele, então, ri e agradece efusivamente a
Ricardo, dizendo que era disso mesmo que precisava: “um presente ótimo, ótimo. Gostei,
gostei muito!”. No próximo encontro, já no novo ano, Reinaldo agradece novamente, diz que
sempre se lembra desse presente quando sente que está racionalizando demais. Ricardo faz
um gesto de surpresa. Quer se lembrar dos detalhes daquele encontro, qual era mesmo o
presente, as palavras que usou e como esse presente está ajudando.
É Ricardo que em um encontro diz não entender o sentido de ficar ouvindo uns aos
outros. “Já tem muitos problemas pra ficar escutando os dos demais”. E é também ele que em
um novo encontro oferece presentes a partir do que sentia que era a dificuldade de cada um.
Este gesto parece portar algo de paradoxal. Lembremos do presente: “menos neurônio,
menos racionalidade”. Poderíamos nos perguntar em que condições está Ricardo para oferecer
ao outro um presente de que ele mesmo precisa. É Ricardo que se cerca de muitos artifícios

115
racionais para se proteger de algo que parece na vida imensurável, arriscado e assustador:
lavar as mãos muitas vezes diante de um aperto de mãos que pode trazer algum tipo de
contágio, olhar para trás enquanto caminha para se certificar de que nada esquecera. Ricardo
de maneira diferente de Reinaldo também se ancora na racionalidade para sentir-se seguro,
para saber quem se é. Pode parecer então que ele oferece à Reinaldo algo que ele mesmo não
possui, ou algo de que ele mesmo necessitaria, algo que lhe falta. E, assim poderíamos
invalidar esse gesto e diminuir sua importância.
Mas, este presente parece, de fato, ter tido muito valor para Reinaldo, ter tocado a ele
de maneira especial. Em muitos momentos tentávamos apontar essas questões, mas é este
presente dado de forma direta e generosa que produziu intervenção. Ao contrário do que
poderíamos pensar Reinaldo só recebe este presente como jóia de valor, só é tocado desta
maneira, porque Ricardo poderia sim dá-lo. Ricardo dá a Reinaldo “menos racionalidade”,
que é algo que ele possui, apesar de por vezes, ignorar. Ricardo oferta, em um gesto anti-
narcísico, o que muitas vezes não sabe que há nele. E aí mora o paradoxo: dar o que se ignora
ter, e é só porque se tem que é possível ofertar.
O presente oferecido visibiliza dois movimentos: afirma nossa constituição processual,
dimensão coletiva, que permite a Ricardo conexão com o outro, que o possibilita compreender
o sofrimento e, ao mesmo tempo, ofertar algo que transborda nele mesmo e também no outro,
mesmo ignorando. E em um segundo movimento Ricardo oferta algo que racionalmente
parece não saber, e nesse gesto o presente é de mão dupla, presenteia aos dois, na medida em
que Ricardo pode oferecer algo que também ele não pode racionalizar, não pode controlar, e
que atinge a Reinaldo tão significativamente. O mesmo gesto de conexão, de cuidado de um e
outro trata aos dois.
Assim o presente não se constitui como algo que pode acontecer, “que um dia se viva
com menos racionalidade”, mas é já acesso, realização e presença do que já nos constitui,
apesar de nossa ignorância. Um presente que é duplo acesso: acessa no outro o que é
sofrimento e prisão, e pela possibilidade dessa partilha acessa a dimensão de liberdade da
onde a relação de co-emergência advém.

3.7 “Qual é o som que surge de apenas uma das mãos?”

Nossas lentes dualistas e independentes ignoram a dimensão coletiva de nossa


existência. Mas, vez ou outra, essas lentes sofrem uma ampliação, um grau maior de liberdade

116
é atingido, e damos lugar a outra qualidade de ação, não apenas centrada em nós mesmos.
Mesmo quando Ricardo diz não saber porque continua vindo ao grupo, essa fala só tem
sentido, só pode ser dita, a partir de uma dimensão relacional. Essa dimensão permite a
Ricardo, mesmo não compreendendo racionalmente o encontro com o outro e como isso pode
ajudá-lo, poder se aproximar do que os outros sentem, ver a confusão em que estamos imersos
e oferecer alguns presentes de ajuda. Presente que não é promessa, mas é já presença da
dimensão relacional da existência. A essa dimensão chamamos nesse trabalho de grupalidade,
e que atravessa os grupos abrindo-nos para a experiência de estar junto.
A dimensão relacional é constituidora de nossa existência. A afirmação de uma
desaprendizagem de hábitos na prática de si aponta para isso que é nossa matéria de
constituição. Não se faz necessário inventarmos a convivência, construirmos uma nova
habilidade para se estar junto, mas sim acessar e praticar a dimensão coletiva que já nos
habita. Nossos hábitos de apego, ganância, alto-importância e nossas certezas nos impedem,
em muitos momentos, de perceber a dimensão relacional que move nossas vidas.
Como no exemplo contido no Surangama Sutra36 em que os seres humanos são
comparados ao louco que se olha no espelho e se vê sem olhos. Desesperado, ele sai correndo
à procura deles, tentando encontrá-los. Ou ainda, no Sutra do Diamante, como a um mendigo
que procurava incessantemente meios de sobrevivência sem perceber que havia em seus
bolsos uma jóia de infinito valor (SAMTEN, 2001:108).
Somos esse louco que cegos por nossas certezas não enxergamos nossos olhos, e
sofremos durante a vida os procurando. Neste trabalho afirmamos que nossos sofrimentos
passam pela cegueira e pela fome, mas não porque sejamos naturalmente cegos e famintos, e
sim porque nossos modos de vida têm reforçado esses hábitos. Mas, mesmo vivendo dessa
forma, há uma outra dimensão da existência, da qual provamos diariamente, já presente em
nós, que a vista embaça. É o caráter experiencial e relacional que move nossa vida cotidiana.
Por mais que a reflexão abstrata e nossos padrões habituais produzam uma certa cegueira, é
possível dizer que só estamos vivos porque a dimensão coletiva e relacional da existência nos
sustenta.
A possibilidade de vida está fundada na relação. Mesmo quando vemos na atualidade
um intenso processo de individualismo, quando os pronomes possessivos são tão freqüentes
em nossas conversas. Mesmo quando supomos que há sempre um eu que age: “eu penso
assim”, “eu gosto”, não percebemos que estamos admitindo também que há sempre um outro

36
O Surangama Sutra e o Sutra do Diamante são diálogos e ensinamentos da tradição budista.
117
inseparável na relação. Só é possível que haja um “eu” na presença de um “outro”. Eu e outro
são co-emergentes. Não têm uma existência independente, existimos sempre na dependência
do outro. Assim como só há um pai, se há filhos. É essa dimensão relacional, de co-
emergência, que torna possível a existência. Nessa reflexão as lentes separativas através das
quais vemos um mundo independente de nós mesmos não encontram mais fundamento.
Nossa vida está, ao contrário, na dependência de tudo o mais. Podemos investigar essa
afirmação. Alguém pode afirmar que, de fato, tem garantido a sua independência. Pode dizer
que vive só, que cuida de suas coisas, que se sustenta, que não depende de nada e de ninguém.
Mas, num instante verificamos que esse alguém, mesmo solitário e independente, foi gerado
por uma outra pessoa e que no primeiro contato com o mundo, já contava com um mundo que
dispunha de ar, água, alimento. Nossa existência está em relação com uma rede complexa, na
qual nossa pretensa individualidade e garantia de independência tornam-se impossíveis.
Como o koan, na tradição Zen budista, em que um mestre ao bater com a mão
espalmada contra a outra pergunta ao discípulo: “Qual é o som que surge de apenas uma das
mãos?” (SAMTEN, 2001: 41).
Podemos experimentar... Estamos acostumados a identificar objetos pelo som. Se
vendamos nossos olhos e batemos com a mão espalmada sobre um livro, podemos afirmar
que é um livro. Cada objeto parece ter um som próprio, diferente dos demais. Mas, e com as
mãos? De qual delas vem o som? Haveria som sem o encontro das mãos? Não há som aqui ou
ali, há um som que emerge desse encontro. O som não pertence a nenhuma das mãos
separadas, mas a ambas. Assim como qualquer objeto. O som que acreditamos vir do livro
surge, na verdade, de um encontro.
O koan pode nos ajudar a pensar novamente o cuidado de si praticado na antiguidade.
Foucault na leitura que realiza da experiência greco-romana afirma que no cuidado de si se
efetua o cuidado do outro. Cuidando de si cuida-se também do outro. Mas, na reflexão aberta
proposta por Maturana e Varela podemos pensar uma radicalização dessa fórmula. Se eu e
outro são originalmente dependentes um do outro, se o que há é uma relação de co-
emergência, podemos dizer que na prática ética há apenas cuidado. A ética é a prática que
possibilita na abertura de coeficientes de transversalidade o acesso à dimensão relacional, de
grupalidade, de nossa existência.
Mas, é claro que há na leitura que esses autores realizam muito mais aproximação que
discordância. Foucault também nos diz que o cuidado de si se define “como um modo de
viver-junto, [aparecendo, portanto] como uma intensificação das relações sociais”

118
(FOUCAULT, 2006b: 32). Mas, se o cuidado de si e do outro na antiguidade é um
intensificador da relação social, a prática de cuidado é a própria relação social.
O cuidado de si, segundo Foucault, não é um recurso individualista, mas, ao contrário,
possibilita que estabelecendo uma relação consigo mesmo o sujeito se descubra como
membro de uma comunidade humana. A reflexão aberta e atenta da experiência humana
apontada por Maturana e Varela também afirma uma descoberta: a da natureza do ser como
social e sociável.
O que tentamos afirmar aqui é que há no grupo uma dimensão coletiva e impessoal,
que chamamos neste trabalho de grupalidade. Nela não há separação entre sujeito e mundo,
entre mim e o outro, e sim uma indiscernibilidade que se faz presente no entre-dois. Portanto,
no trabalho com os grupos, acolhemos seus processos de institucionalização, suas
objetivações, tentando, através de um cultivo ético ampliar nosso grau de visão a fim de
acessar esse plano relacional, de co-emergência, constituinte da grupalidade que habita os
grupos, dos processos de subjetividade que nos produzem.
De fato, para isso o cuidado de si como princípio ético nos parece de fundamental
importância. Compreendemos que essa prática se afirma não como preparação para acessar
uma dimensão outra da realidade, não é prática transcendente, que a realizando primeiramente
alcançaremos algo depois, para além, mas é já presença de um plano relacional que nos
constitui e é já cultivo de acesso a esse plano, na medida que amplia nosso olhar,
possibilitando-nos perceber a riqueza em nós quando nos achávamos pobres, nossa profunda
conexão com o mundo e com os outros enquanto nos sentíamos sós, a relação de co-
emergência que nos é constituinte quando acreditávamos na separação entre mim e o outro.

119
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Três dias de parto e o filho não saía:


- Tá preso. O negrinho tá preso – disse o homem.
Ele vinha de um rancho perdido nos campos.
E o médico foi até lá.
Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela
longidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu.
Depois, contou para Glória Galván:
- A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos
muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem
nenhuma idéia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho
aparecendo entre as pernas da mulher.
O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava
esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou:
Não se pode fazer mais nada.
120
E mesmo assim, sabe-se lá porquê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo
aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e
apertou seu dedo com força. Então o médico pediu que alguém fervesse água,
e arregaçou as mangas da camisa (O Parto – GALEANO, 2005: 222).

Por coincidência, dessas boas, abrimos as últimas considerações com um parto. Ah!
Então estamos no velho clichê, aquele que faz do trabalho um parto? Não é que alguns clichês
não digam algo importante em hora oportuna, mas é que aqui em especial, parece afirmar o
fim do texto, a dificuldade em produzí-lo, com um tom meio triste. Este parto, acontecido nos
confins da terra, num rancho perdido, traz outras sensações. Com ele, parece que torcemos
para que o menino e a mãe agüentem firme, para que o médico não desista, para que ainda
haja trabalho.
Pois então, O parto tem muito a ver com os grupos, em uma questão que parece
insistir no trabalho de vários companheiros: Se o grupo como objeto se institucionaliza, se
naturaliza, caberia ainda falar em trabalho grupal, caberia ainda fazer grupo? Questões que
reverberam: se a educação nos parece por vezes uma produção de saberes e práticas
reificados, porque nela insistimos? Se a saúde é constantemente afirmada no estatuto da
normalidade e na contra-face da doença, porque não desistimos? O que ainda nos move? Em
que continuamos a insistir?
Aí nesse momento podemos compreender bem o que se passa nesse parto. O médico
acompanha o pai, que há três dias insistia no nascimento do filho, e chegando percebe que
talvez não haja mais jeito, que nada há a ser feito. Mas, então, sabe-se lá porquê, toca na
mãozinha do menino e vê que ainda há vida e por isso há possibilidades.
Um “sabe-se lá porquê” nos leva também aos grupos, à escola, ao hospital, à
universidade. O médico poderia ter voltado diante da cena vista, mas sabe-se lá porquê ele se
detém, aproxima-se, e vai tocar em um corpo inerte, sem vida. E é só quando ele chega perto,
e se disponibiliza, sintonizando-se com a cena, misturando-se a ela, que encontra força.
Àquela que insiste no menino, que é pra além de viva e morte, que é mais ampla que a vida
pessoal, e àquela força que sustenta a mãe, o pai, e que não deixa o médico ir embora antes de
sentir o que se passa. Forças que se encontram apesar de nunca separadas e que se movem
num “sabe-se lá porquê”. Forças do fora, advindas de uma dimensão impessoal e coletiva.
Forças sem nome próprio, sem lugar, e que por isso animam o nascer e o morrer de nossas
formas de existência.
Então agora o “sabe-se lá porquê”, que podia comparecer esvaziado de intenção, de
motivação, como uma ausência de resposta, é, de fato, outra coisa. É sim vazio, mas
121
completamente positivado, porque é por ser vazio de uma única resposta, uma única
identidade, que pode dar nascimento à multiplicidade da vida.
Vamos então aos grupos, vamos à vida, numa certa aposta. Mas, essa aposta não pode
ser àquela que se faz na loteria. Não é alguma coisa que possamos esperar o resultado do
sorteio, com o número escolhido na mão. Não é possível ficar na soleira da porta, ver a mãe se
esgarçando, o menino quase morto, e voltar para a cidade a esperar que o milagre aconteça.
Mas, em outra medida, não podemos acreditar que faremos o parto sozinhos, não é possível
apostar em nossas próprias forças, porque não são próprias, não são unicamente nossas.
É uma aposta ético-política, muito próxima de uma atitude necessária à prática clínica.
Exige trabalho, conforme vimos com Foucault, um trabalho de esvaziamento de si enquanto
sujeito, para não acreditarmos que as forças nos pertencem, que são nossas, e, ao mesmo
tempo, uma prática de produção de um si esvaziado de si para com lucidez sabermos entrar e
sair das cenas, das instituições, das identidades, para passear nas paisagens sem acreditarmos
que são verdadeiramente reais, sólidas e acabadas.
A clínica como uma atitude, como um êthos, amplia-se e já não mais pertence a um
espaço determinado, a uma prática específica. É possível efetuá-la onde dela se necessite.
Mas, exige que toquemos no que parece sem vida, que vejamos saída onde ainda parece não
haver, que compreendamos que há no sofrimento forças para além dele mesmo, que há um
fora no dentro, um vazio no que parece já cheio.
Mas, para isso, para alcançarmos essa visão, ou ainda para compreendermos nossa
ignorância, não é possível apenas saber, termos clareza, ou manejar com o poder, mas exige
mais de nós, que muito apegados temos dificuldade em manter o fôlego, que estamos
constantemente imersos em algum tipo de confusão. Faz-se necessário, pois, um trabalho
sobre si, o cultivo de um cuidado consigo, com o outro e com o mundo, de onde um si
desapegado de si e aberto ao outro pode advir.
Assim, nossa aposta nos grupos ainda está de pé. Porque quando vamos e tocamos
sabe-se lá porquê, em uma ação não racional e não centrada em nós mesmos, sentimos algo
vibrar, sentimos que há vida ali, sentimos que a vida movente em nós também se move no
outro, e que nossa existência é coletiva, que nossa alegria só pode se fazer dessa maneira. Aí
vivemos um nascimento que é conjunto, impossível sem o outro, onde eu e outro se
encontram onde nunca se separaram.

122
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