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Aritmética política e a administração do

estado português na segunda metade


do século XVIII

Antonio Cesar de Almeida Santos


Universidade Federal do Paraná
CEDOPE

Em texto da década de 1980, Carlo Ginzburg discutia a presença de um conhecimento


conjectural, o qual “manifestava a originalidade do procedimento histórico em geral”.1 Em 143
sua discussão, o historiador italiano contrapunha a este tipo de conhecimento baseado em
uma “compreensão do individual”, uma abordagem que buscava “alcançar um padrão de ge-
neralização mais ou menos rigoroso e mais ou menos matemático”. O trajeto construído para
este último tipo de abordagem, inicialmente “aplicada pelas ciências naturais e só muito
mais tarde pelas assim chamadas ciências humanas e sociais”, conduziu “ao estudo do típico
mais do que o excepcional”, buscando-se uma explicação geral do “funcionamento da natu-
reza”. A prevalência dessa abordagem provocou, desde o século XVII, diversas “tentativas de
aplicação do método matemático” para o estudo de fenômenos humanos:
“Não é surpreendente que a primeira e a mais bem sucedida [dessas tentativas] se re-
ferisse à aritmética política e tomasse como seus objetos aquilo de mais predeterminado
– biologicamente falando – das atividades humanas: nascimento, procriação e morte. Este
foco drasticamente exclusivo permitia a investigação rigorosa e, ao mesmo tempo, satisfazia
os objetivos militares ou fiscais dos estados absolutistas, cujos interesses, dados os limites
de suas operações, eram integralmente numéricos”.2
Em um contexto marcado pela afirmação do absolutismo, verifica-se que, ao lado desse
conhecimento aritmético “das atividades humanas”, a administração do Estado vai requerer
um mais exato conhecimento de seu território. Nesse sentido, Jacques Revel, ao discutir “a
formação do espaço francês”,3 oferece uma interessante reflexão sobre o designa por “in-
quéritos”, na medida em que considera que para os séculos XVII e XVIII, “o conhecimento do

* Este texto decorre de pesquisas financiadas pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior do Ministério da Educação – Brasil) e pela Fundación Carolina (Espanha).
Antonio Cesar de Almeida Santos

território tornou-se inseparável do exercício da soberania”.4


Deixando de lado a itinerância por seus domínios, os monarcas europeus passaram a
conhecer os territórios submetidos à sua autoridade por intermédio de cartas geográficas,
descrições e números. Paralelamente a essa mudança de atitude, tornou-se necessário con-
tar com um corpo de funcionários especializados que promovesse, por um lado, a presença
simbólica do soberano e, por outro, uma administração mais eficaz no que se refere à produ-
ção de riquezas e exação das rendas devidas ao tesouro régio.
Ainda segundo Revel, no interior dessas mudanças administrativas, podemos identificar
“dois ramos divergentes da estatística, cujas características próprias se irão acentuando no
último século do Antigo Regime”. Um desses ramos, de tradição “no mundo alemão”, toma o
espaço como “objeto de análise” e se caracteriza como uma “estatística descritiva”, procuran-
do abarcar todos os aspectos do local observado: “as condições naturais – um solo, um clima,
uma vegetação, um regime de águas – como as condições sociais – o número de homens,
o seu ´temperamento`, as suas atividades, o seu comportamento e as suas tradições. É a
combinação variável destes diferentes fatores que define as particularidades do lugar”.5 Para
Olivier Martin, essa “Statistik alemã tinha por ambição principal o conhecimento sintético de
toda sociedade humana”, e seus resultados, “de natureza literária”, eram monografias mais
descritivas do que explicativas. Notadamente, a partir da segunda metade do século XVIII,
esses relatos monográficos passaram a ser produzidos “pela administração territorial que
viu então aumentar seu empreendimento e, portanto, seu poder de coleta de informações”.6
144 Esse tipo de descrição, aliás, assemelha-se às memórias redigidas por naturalistas portugue-
ses ao final do século XVIII e início do século XIX.7
A essa tradição “alemã”, Revel contrapõe um modelo que, segundo ele, “se aproxima dos
princípios da aritmética política à maneira inglesa”, que propunha inscrever dados numéri-
cos em séries temporais: “os resultados destinam-se a ser comparados com dados futuros e
este confronto permitirá destrinçar regularidades e tendências”. A aritmética política lança
sua atenção sobre “o número de homens, a produção das minas e das manufaturas, os re-
cursos agrícolas, o comércio, as subsistências, os preços ou os salários”.8 Conforme Olivier
Martin, a aritmética política inglesa aparece, em meados do séculos XVII, a partir de traba-
lhos de John Graunt, William Petty, Charles Davenant e Gregory King. Esses autores espera-
vam exprimir uma dada realidade em termos numéricos, “a fim de fornecer instrumentos
matemáticos quantitativos aos governantes”.9 Nesse sentido, Charles Davenant considerava
a aritmética política como “a arte de raciocinar por números as matérias que se relacionam
com o Governo. Não se duvida que esta arte em si mesma seja muito antiga, mas William
Petty foi o primeiro que a aplicou ao comércio e às finanças. [...] Ele lhe forneceu as regras
e o método”.10 Do mesmo modo, para os autores da Enciclopédia, a aritmética política se-
ria a responsável por fornecer “pesquisas úteis à arte de governar os povos”.11 Este tipo de
levantamento estatístico também não ficou desconhecido da administração portuguesa da
segunda metade do século XVIII. De fato, desde o início do reinado de D. José I, várias ações
administrativas estiveram voltadas para fornecer um conhecimento mais exato do reino e
dos domínios ultramarinos portugueses.
Temas Setecentistas

***

Ao assumir a secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Sebastião José


de Carvalho e Melo deparou-se com uma urgente tarefa: dar cumprimento às disposições
contidas no Tratado de Madri, que fora assinado por D. João V, em janeiro de 1750. Assim,
dentre outros assuntos, o estabelecimento dos limites entre as possessões espanholas e por-
tuguesas na América ocupava a atenção das autoridades metropolitanas. Nesse contexto, em
setembro de 1751, Carvalho e Melo enviou instruções para o governador da capitania do Rio
de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, que fora nomeado Comissário para a demarcação dos
limites estabelecidos pelo Tratado na parte sul. Nessas instruções secretas, Carvalho e Melo
informava que o governador devia tomar as medidas necessárias para o povoamento das
fronteiras, com o intuito de garantir a defesa delas frente aos espanhóis.12 Ao norte, o cargo
de Comissário português coube ao governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fran-
cisco Xavier de Mendonça Furtado. Embora guiados por informações cartográficas (o “Mapa
das cortes”) e um extenso memorial dos acidentes geográficos que serviriam para demarcar
os limites, as comissões de demarcação deveriam produzir novos mapas,13 fornecendo uma
mais exata informação dos territórios portugueses no novo mundo. Como sabemos, as de-
marcações não prosperaram e foram, finalmente, interrompidas em 1759.
A Coroa portuguesa, porém, não estava interessada apenas na cartografia dos limites
oeste de seus domínios americanos. Em 1756, Diogo Mendonça Corte Real, secretário de
Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (1750-1756), informava ao go- 145
vernador da capitania de Pernambuco que ele deveria encarregar

“aos ouvidores das comarcas dos governos do Rio de Janeiro e Minas que
ordenem a todas as câmaras das mesmas comarcas, que façam cada uma delas
uma relação dos lugares e povoações dos seus distritos, com os nomes e as dis-
tâncias que há de umas às outras, praticando-se a mesma descrição dos rios que
pelas ditas povoações passam, individuando os seus nascimentos, e os que são
navegáveis. E em cada uma das vilas se declararão as distâncias de léguas, ou de
dias de jornada que há das outras vilas circunvizinhas”.14

O Bispo de Pernambuco recebeu ordens nesse mesmo sentido, devendo solicitar que
cada pároco de sua diocese fizesse

“uma relação dos lugares e povoações da sua freguesia, as distâncias que


há de umas a outras, e os seus nomes, declarando também os rios que pelas
ditas povoações passam, os nomes com que se denominam, se são navegáveis,
e os seus nascimentos. As léguas e dias de jornada que há de um rio a outro,
declarando-se também as pessoas que há de comunhão nas suas freguesias e
capelas anexas a elas, cuja diligência manda o dito Senhor recomendar muito
a V. Excia”.15
Antonio Cesar de Almeida Santos

As razões para tais ordens foram expostas por Diogo Mendonça Corte Real nos seguintes
termos: “Todas estas notícias topográficas são necessárias para se formar uma carta geral de
todo o Brasil, com individuação das terras estabelecidas nos sertões, para cujo efeito manda
o mesmo Senhor recomendar a V. Sª a brevidade desta diligência”.
Em 1761, essa questão foi reiterada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Em
carta dirigida a Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro, o então secretário
de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (1760-1769) informava que

“é o mesmo Senhor servido que V. Excia. mande à sua Real Presença uma
coleção de todas as cartas corográficas e topográficas, que tiver, e puder alcan-
çar, das capitanias do Brasil, caminhos e lugares delas, vindo com a maior bre-
vidade possível, ainda que não sejam copiadas com a maior perfeição, porque,
na verdade, se não devem fiar de estrangeiros, nem ainda de portugueses, que
deixam nas suas mãos cópias que com o tempo se possam divulgar.”16

Embora essa solicitação de Mendonça Furtado inscreva-se num contexto muito espe-
cífico, a guerra com a Espanha, ela se prende a uma orientação mais ampla, que as cartas
anteriores de Diogo Mendonça Corte Real permitem inferir: a Coroa estava interessada em
conhecer seus domínios americanos e avaliar suas potencialidades. Esse interesse estava
expresso na preocupação em medir distâncias, identificar rios e outros acidentes geográfi-
146 cos, nomear territórios e contar a população. Em relação a esse último ponto, o gabinete de
D. José I considerava que “a força e a riqueza de todos os países consiste principalmente no
número e multiplicação da gente que o habita”.17
As populações coloniais receberam, de fato, grande atenção das autoridades metro-
politanas. Segundo Carvalho e Melo, essa atenção devia-se a uma estrita observância dos
princípios da Political Arithmetick, de William Petty,18 com os quais havia tomado contato
durante sua estada em Londres (1738-1744). É possível acompanhar a influência da aritmé-
tica política inglesa nas ações administrativas do reinado de D. José I, por intermédio da sua
explícita e contínua referência nas correspondências expedidas por Carvalho e Melo e pelos
demais secretários de estado. A presença e disseminação das idéias de Petty no âmbito da
administração do reinado de D. José I é corroborada por dois textos de Carvalho e Melo, nos
quais ele propõe apresentar “�����������������������������������������������������������
as matérias que devem constituir as regras do mecanismo po-
lítico”, oferecendo “à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do
Estado (no que pertence ao comércio e a agricultura), cujos princípios se reduzem a termos
práticos e mecânicos”.19 As idéias expostas por Pombal nos dois textos reproduzem diversas
passagens da Political Arithmetick, de Petty. Ademais, sua preocupação em demonstrar como
“um pequeno país, com um abreviado número de povo”, poderia igualar-se em riquezas às
maiores nações é a mesma do autor inglês, que se propôs, em relação à Inglaterra, a explicar
porque “um país pequeno, com pouca gente, pode, por sua situação, por seu comércio e pelas
políticas que adota, ser equivalente em riquezas e poderio a outro com território muito mais
amplo e população muito maior”.20
Para melhor dimensionar o alcance da aritmética política no âmbito da administração
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portuguesa, também são significativos alguns dos textos que Domingos Vandelli produziu
para a Academia Real das Ciências de Lisboa, já no reinado de D. Maria I. Segundo José Vicen-
te Serrão, a principal característica dos textos produzidos por Vandelli foi o seu “ecletismo
teórico”, em que se fazem presentes influências de pensadores como Sully, Quesnay, Swift,
Pietro Verri e Davenant.21 Necessário destacar que Vandelli, além de expor suas idéias em
várias “memórias” publicadas pela Academia Real de Ciências de Lisboa, instituição que aju-
dou a criar, “consolidou o seu prestígio no seio da elite culta portuguesa e estabeleceu laços
de influência sobre parte das novas gerações saídas da Universidade reformada”, onde foi
professor da Faculdade de Filosofia, por cerca de 20 anos (1772-1791).22
O que queremos apontar aqui é que, como mencionado por Francisco Vaz, a aritmética
política passou a fazer parte do vocabulário dos homens públicos e dos intelectuais portu-
gueses da segunda metade do século XVIII,23 não obstante sejam indicadas as mais diversas
fontes desse conhecimento que propunha traduzir a realidade em série de números, propor-
cionando as informações necessárias para a administração dos homens de estado. Joaquim
José Rodrigues de Brito, por exemplo, formado pela Universidade de Coimbra reformada,
em suas Memórias políticas, publicadas em 1803, referia-se explicitamente à Aritmética Po-
lítica (Londres, 1771), de Arthur Young, e ao Essai d´Arithmétique Politique (Paris, 1799),
de Antoine Dannyère, além de fazer menção a Mirabeau (L´ami des hommes, ou Traité de la
population24) e outros fisiocratas.25
Nesse contexto pós-pombalino, na regência de Dom João, o desembargador José Antonio
de Sá propôs a realização de um cadastro, ou “mappa arithmetico-politico do reino”. Este ca- 147
dastro seria formado a partir de dados que permitissem avaliar e indicar os melhoramentos
necessários para a prosperidade do reino “relativamente à agricultura, ao comércio, à povo-
ação, às artes, à polícia, aos estabelecimentos de bem comum, à justiça e fazenda e a outros
objetos de administração pública e econômica”.26
Conforme Francisco Vaz, além de “leituras de autores franceses”, foram importantes
na formação acadêmica do desembargador José Antonio de Sá os “ensinamentos de Do-
mingos Vandelli”. Este, que foi um ativo participante da ação reformista levada a efeito
no reinado de D. José I, também fez, como mencionamos, sua profissão de fé aos princí-
pios da aritmética política:

“Sendo certo, que todos os ramos da economia civil, para que esta seja
útil ao reino, devem ser regulados por princípios deduzidos de uma boa arit-
mética política; assim não se devem seguir sistemas, sem antes examiná-los,
e confrontá-los com as actuais circunstâncias da nação.
No último reinado seguiu-se o sistema de Colbert, subministrando so-
mas consideráveis aos fabricantes; não deixando porém no mesmo tempo
perder de vista a agricultura.
Mas no estado, no qual se achava o reino, necessitado de uma total refor-
ma; não podia um sábio rei, e um hábil ministro, senão dar gerais movimentos
a todos os ramos da pública administração, ficando aos vindouros aperfeiçoar, e
aproveitar esses grandes impulsos, que hão um dia fazer a felicidade da nação”.27
Antonio Cesar de Almeida Santos

Em relação à aritmética política, Francisco Vaz informa que ela foi um “dos funda-
mentos” do pensamento de José Antonio de Sá, o que “facilmente se nota em qualquer
das [suas] obras”.

“No domínio da “arte de aplicar o cálculo aos objectos do Governo”, An-


tónio Sá [...] usa permanentemente a linguagem objectiva dos números, seja
para dar o estado da “povoação”, o primeiro dos objectos a ter presente e a
numerar com rigor [...]. Nada melhor do que os números para uma ideia pre-
cisa sobre a realidade, quer seja demográfica, social ou económica. Esta sedu-
ção pelo número integra-se no contexto de um forte impulso das matemáticas
e, tanto quanto permitem comprovar as nossas pesquisas, os autores que o
terão influenciado, além de Vandelli, foram Louis Necker, Biefeld, Quesnay,
Mirabeau e Arthur Young”.28

Retomemos, então, a proposta do “mappa arithmetico-politico” de José Antonio de Sá, a


qual permite discutirmos a utilização de dados estatísticos para a tomada de decisões polí-
ticas. Nesse sentido,

“a Aritmética Política posteriormente achada e observada é a única ci-


ência por meio de que se pode obter o prospecto geral, ou Cadastro do Reino,
148 ainda na falta de notícias exatas, que se não devem pretender nem esperar
deste gênero de averiguações, suprindo-se pelas aproximadas; o dito pros-
pecto servirá ao Príncipe Nosso Senhor para ver num golpe de vista o estado
atual do seu reino, e aquele melhoramento de que é suscetível em benefício
dos seus fiéis vassalos”.29

O que chama atenção, todavia, são as considerações que José Antonio de Sá faz sobre
a necessidade de se “formar uma descrição exata” daquilo que for observado pelos encar-
regados de procederem ao levantamento dos dados. Ou seja, sua proposta aproxima-se em
muito do modelo da Statistik alemã. Os dados, assim, precisavam ser contextualizados, para
melhor expressarem a realidade observada:

“Tendo mostrado a experiência nos conhecimentos de povoação, que


os que se reduzem dos nascidos, casados, ou mortos, comparativamente
com os de certas vilas, onde também se arrolaram os habitantes, é medida
em que pouco se pode ter confiança, sem precederem primeiro as averigua-
ções locais de todas as terras, pois que os nascimentos, casamentos e mortes
diferem consideravelmente entre uns e outros países”.30

Nesse aspecto, e considerando “que o quadro jurídico existente tinha todos os ingre-
dientes para reformar a sociedade”, José Antonio de Sá defendia que “o país necessitava era
de ser viajado, por viajantes filósofos”. Este seu entendimento, aliás, derivava dos ensina-
Temas Setecentistas

mentos de seu mestre Vandelli.31 Antes da proposta do mapa aritmético-político, o mes-


mo José Antonio de Sá publicou, em 1783, o Compêndio de observações que formam o pla-
no da viagem política e filosófica, que se deve fazer dentro da pátria, dedicado ao príncipe
D. João, a quem era lembrado que “o estudo do governo, que penetra até as entranhas
da sociedade, e de lá mesmo deduz os fiéis planos que formam os alicerces das nações,
tem ocupado maduramente o vasto gênio de V. Alteza [...] que conhece claramente que a
teoria por si só não basta”.32
Importante apontar que Vandelli, em 1779, havia redigido uma espécie de manual para
os naturalistas que, saídos da Universidade de Coimbra, receberam a missão de percorrer
os domínios portugueses para os descreverem.33 Ou, nas palavras do naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira, tratava-se “das instruções necessárias que, sobre o método de observar,
recolher, preparar e conservar as produções e os seres naturais, lhes ditara em Coimbra o
primeiro lente de Filosofia”.34
A proposta de José Antonio de Sá, entretanto, parecia mais completa, e estava dividida
em dois “ramos” principais: a viagem política e a viagem filosófica. A primeira ocupar-se-ia
dos aspectos humanos, das leis e costumes, das produções, do comércio e dos transportes;
a segunda, por sua vez, estaria mais voltada para a geografia dos lugares visitados, assim
como para a observação da fauna, flora e recursos minerais. A prática dessas viagens e das
observações delas decorrentes encontrava justificativa na medida em que suas utilidades
para o Estado “são presentemente conhecidas a todo o bom político”. Aliás, afirmava: “todo
o país que pretende reformar-se, deve ser viajado. Dita isto a melhor razão e a prática das 149
nações o mostra”.35 Nesse aspecto em particular, José Antonio de Sá apresenta exemplos des-
sa “prática das nações”, especialmente no que se refere à exploração dos recursos minerais:
“numa palavra, tal é o parecer dos melhores políticos. As nações cultas e potentes têm abra-
çado este caminho [a produção de cartas mineralógicas]; a maior parte dos soberanos da
Alemanha sentiram assaz o quanto é útil a uma república procurar as substâncias que fecha
a terra no seu seio [...]. Essa mesma tem sido a prática de Inglaterra, Holanda, Suécia etc.”.36
Não obstante a minúcia de seu “plano de viagem política e filosófica”, determinando,
inclusive, que o viajante deveria ter uma “boa formação jurídica e científica”, José Antonio de
Sá não abandona a aritmética política, “outra dominante” de seu pensamento. Nesse sentido,
Francisco Vaz entende que as idéias enunciadas no Compêndio, “a começar pela definição
dos objetos a inventariar e do imperativo reformista”, são retomadas quando da redação das
Instruções gerais para se formar o cadastro, ou mapa aritmético-político.

“Era, portanto, um conhecimento rigoroso, não só da população, mas tam-


bém do território e administração pública, que devia resultar deste levantamen-
to. [...] Deste modo, as partes em que divide estas instruções ou os conhecimen-
tos que se devem recolher são: a povoação, estado das terras; estabelecimentos
de bem comum, estabelecimentos literários, estabelecimentos eclesiásticos,
produções naturais (agrupadas pelos três reinos), justiça e fazenda. Trata-se
dum levantamento em que sobressai não só o reformismo econômico jurídico,
mas também as preocupações com a saúde dos cidadãos, mesmo dos que estão
presos e até do próprio meio ambiente”.37
Antonio Cesar de Almeida Santos

Acompanhando as observações de Francisco Vaz sobre a obra de José Antonio de Sá, sur-
preende a ausência de referências a William Petty, especialmente se considerarmos o fre-
qüente uso do “termo Aritmética Política, tributário das idéias e obra de William Petty (1623-
1687), que entre nós se vulgarizou a propósito dos factos económicos e demográficos”.38
Também surpreende que, em sua proposta de um “mappa arithmetico-politico do reino”, José
Antonio de Sá não mencione nenhuma ação semelhante levada a efeito durante o reinado de
D. José I, ainda que os tempos fossem outros e que Pombal tivesse caído em desgraça.
Nesse sentido, o autor do texto A administração de Sebastião José de Carvalho e Melo,
informava que, visando melhorar a produção dos gêneros necessários ao aumento da
população e, conseqüentemente, o crescimento do comércio e da riqueza nacionais,
Pombal havia ordenado a realização de “um inventário das terras, designando nele to-
das as províncias e distritos; procurou saber quais se achavam cultivadas, assim como
as que estavam incultas, informando-se não só do que umas produziam, mas também
do proveito que das outras seria possível tirar”.39 Mesmo alguns detratores de Pombal
reconhecem a realização dessa ação; o que diferencia é a avaliação que estes fazem dos
resultados e dos objetivos buscados.40
Enfim, não obstante as particularidades dos autores, consoante os propósitos e a ex-
tensão de suas idéias reformistas, o que pudemos observar foi a aplicação, desde o início do
reinado de D. José I, de práticas administrativas orientadas por máximas derivadas da arit-
mética política. De certo modo, como afirmou o autor do texto A administração de Sebastião
José de Carvalho e Melo, a ação do homem de Estado “deve ser relativa ao físico do país, ao
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clima frio, quente, temperado que se habita, à qualidade do terreno, à sua grandeza, às suas
produções, às suas riquezas, ao engenho do seu povo, aos seus costumes, às suas maneiras,
às artes, ao comércio e à indústria dos seus habitantes”.41 Estes aspectos que deveriam ser
considerados para a tomada de decisões políticas – e que, segundo o autor daquele texto, fo-
ram observados por Pombal, que percebeu ser necessário adotar princípios de governo que
considerassem o conhecimento exato da nação –, correspondem às proposições que William
Petty expôs em seu tratado Political Arithmetick.

Notas
1  REVEL, Jacques. “História ao rés-de-chão”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2000, p. 19.
2  GINZBURG, Carlo. “Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes”. In: ECO, Humberto et al. (orgs.).
O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1991, pp. 112-115. Outra versão deste texto foi publicada sob o nome
de “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais – morfologia e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-179.
3  REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, s/d. Ver especialmente o capítulo IV, “Conhecimen-
to do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX”, pp. 101-158.
4  Idem, p. 121.
5  Idem, p. 126.
6  MARTIN, Olivier. “Da estatística política à sociologia estatística; desenvolvimento e transformações da
análise estatística da sociedade (séculos XVII-XIX)”. In: Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41, 2001, p. 20.
7  Ver, por exemplo: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diário da viagem de Moçambique para os rios de
Temas Setecentistas

Senna. Lisboa: Imprensa Nacional, 1889; COUTO, José Vieira. Memória sobre as minas da capitania de Minas
Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; FEIJÓ, João da Silva. Ensaio e memórias económicas so-
bre as ilhas de Cabo Verde. Lisboa: Instituto Caboverdeano do Livro, 1986; Memórias económicas da Academia
Real das Sciências de Lisboa (1789-1815). Lisboa: Banco de Portugal, 1991. 5 volumes.
8  REVEL, op. cit., p. 125. Revel aponta que, na França, em 1694, foi realizado um “recenseamento por cabeça...
para o estabelecimento da capitação nesse ano”.
9  MARTIN, op. cit., p. 19.
10  DAVENANT, Charles. “De l´usage de l´Arithmétique politique dans le commerce et les finances (1698)”.
In: Le négotiant anglois. Dresde, 1753, v. 1, p. clix. Charles Davenant (1656-1714), considerado um fiel se-
guidor de Petty, foi comissário de impostos, inspetor de importação e exportação e membro do Parlamento
britânico (1698-1707).
11  Apud MARTIN, op. cit., p. 19. Segundo o autor, “O triunfo do ´espírito de cálculo` durante o século das Luzes
teve como resultado reforçar o interesse que os sábios e eruditos traziam à abordagem científica quantitativa ingle-
sa, e o progresso das ciências matemáticas (cálculo das probabilidades) permitiu aos aritméticos políticos alcançar
respostas a seus questionamentos”.
12  Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Gomes Freire de Andrade. Lisboa, 21 de Setembro de
1751. Apud MENDONÇA, Marcos Carneiro. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil.
Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985, p. 49.
13  Ver artigos IV a XI do Tratado de limites assinado entre El-Rei Dom João V de Portugal e El-Rei Dom
Fernando VI de Espanha, em Madri a 13 de janeiro de 1750. Apud GUEDES, João Alfredo Libânio. História
administrativa do Brasil – volume IV (da Restauração a D. João V). Rio de Janeiro: DASP, 1962.
14  ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU). Códice 582. Carta de Diogo Mendonça Corte Real ao gover-
nador de Pernambuco, 13 de junho de 1756.
15  AHU. Códice 582. Carta de Diogo Mendonça Corte Real ao Bispo de Pernambuco, 13 de junho de 1756. 151
16  AHU. Códice 566, fls. 2-2v. Carta de Mendonça Furtado ao Conde de Bobadela, 14 de outubro de 1761.
17  Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Gomes Freire de Andrade. Lisboa, 21 de Setembro de
1751. Apud MENDONÇA, op. cit., p. 49.
18  Esse “economista” inglês do século XVII, médico por formação, acabou exercendo o cargo de avaliador de
terras na Irlanda, na época de Cromwell. Nessa ocasião, demonstrou grande familiaridade com cálculos ma-
temáticos e, a partir dessa sua experiência, passou a produzir textos de natureza econômica, dentre os quais
a obra Political Arithmetick, publicada em 1690, após a sua morte. Segundo Franklin Baumer, William Petty,
em sua Aritmética Política, construiu um sistema que aliava o raciocínio baconiano ao matemático, propondo
que as decisões políticas fossem tomadas “por meio da análise quantitativa, de estatísticas da população, pro-
priedade das terras, negócios, clima, e quejandos”. BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno, séculos
XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1990. v. 1, p. 134.
19  BIBLIOTECA NACIONAL de LISBOA/COLECÇÃO POMBALINA (BN/PBA). Códice 686, fls. 187 a 190v. e
191 a 199 (paginado posteriormente). São dois textos, identificados, respectivamente, pelos seguintes títulos:
Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do mecanismo político e Mecanismo político no
qual se oferece à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence
ao comércio e a agricultura), cujos princípios se reduzem a termos práticos e mecânicos. Estes dois textos
autógrafos de Pombal, em suas 23 páginas (13 fólios), expõem os fundamentos da prática política pombalina e
não foram, até o momento, objeto de atenção de pesquisadores interessados no estudo do período pombalino.
Este desinteresse talvez seja devido ao próprio aspecto das anotações de Pombal, pois os dois textos não são
mais que a proposta de um trabalho que deveria ser futuramente redigido.
20  PETTY, William. Aritmética Política. In: Petty [e] Quesnay. São Paulo. Nova Cultural, 1996, p. 147.
21  SERRÃO, José Vicente. “Introdução”. In: Domingos Vandelli: aritmética política, economia e finanças. Lis-
boa: Banco de Portugal, 1994, p. XXXV. Ainda, segundo Serrão, as propostas de Vandelli oscilavam entre “a de-
fesa da racionalidade económica privada e a defesa da utilidade pública regulada pelos interesses do Estado”.
22  Idem, p. XV.
Antonio Cesar de Almeida Santos

23  VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia; as ideias económicas no dicurso da ilustração
portuguesa (1746-1820). Lisboa: Colibri, 2002, p. 26.
24  MIRABEAU, Marquês de (Victor Riquetti). L´ami des hommes, ou Traité de la population. [Document
���������������
élec-
tronique, réalisée par l’Institut National de la Langue Française]. “La vraie richesse ne consiste qu’ en la popu-
lation; la population dépend de la subsistance; la subsistance ne se tire que de la terre; le produit de la terre
dépend de l’ agriculture, d’où s’ensuit que tous autres moyens, le commerce, l’or, les sciences, les arts ne ser-
vent et n’établissent une prospérité fixe et indépendante, qu’autant qu’ils vivifient, encouragent, et éclairent
l’agriculture, le premier, le plus utile, le plus innocent, et le plus précieux des arts”.
25  BRITO, Joaquim José Rodrigues de. Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza nas nações,
e principalmente de Portugal (1803-1805). Lisboa: Banco de Portugal, 1992. pp. 9-23.
26  SÁ, José Antonio de. Instrucções geraes para se formar o cadastro, ou o mappa arithmetico-politico do
reino. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1801, p. 3.
27  VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as
fábricas”. In: SERRÃO, Domingos Vandelli, p. 143.
28  VAZ, op. cit., p. 365-366. O terceiro capítulo do trabalho de Francisco Vaz é todo ele dedicado ao estudo
das idéias de José António de Sá.
29  SÁ, op. cit., p. 5.
30  Idem, p. 6.
31  VAZ, op. cit., p. 375 e 384.
32  SÁ, José Antonio de. Compêndio de observações que formam o plano da viagem política e filosófica, que se
deve fazer dentro da pátria. Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Souza, 1783.
33  VANDELLI, Domingos. Viagens filosóficas, ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo natu-
ralista nas peregrinações deve principalmente observar (1779). ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Códice
152 405 (Série Vermelha). Desde a década de 1780, as viagens filosóficas tornaram-se um instrumento político
do estado português.
34  Apud MENDES, João Ribeiro. “Instruções relativas à viagem philoso-phico effectuada pelo naturalista dr.
Alexandre Rodrigues Ferreira, nos anos de 1783-92”. In: Revista da Sociedade Brasileira de Geografia. Rio de
Janeiro, Tomo 53, 1946, p. 47.
35  SÁ, Compêndio de observações, pp. 1-8.
36  Idem, p. 11.
37  VAZ, op. cit., pp. 388-389.
38  VAZ, op. cit., p. 26.
39  A administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, Marquês de Pombal, Secretário de
estado, e primeiro ministro de Sua Majestade Fidelíssima o Senhor D. José I, rei de Portugal, traduzida do francês,
por Luís Inocêncio de Pontes Ataíde e Azevedo. Lisboa: Typ. Lusitana, 1841. Tomo I, p. 208. Segundo o Inventá-
rio da Coleção Pombalina, o texto original é atribuído ao Cavalheiro Desoteux, enviado da França em Portugal.
40  Nesse registro, ver, por exemplo, Representação contra o Marquês de Pombal (s/d). ACADEMIA DE CIÊN-
CIAS DE LISBOA. Códice 930 (Série Vermelha). Memórias para a vida do Marquês de Pombal.
41  A administração ..., Tomo I, p. 5.

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