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GEOGRAFIA REGIONAL E DO

BRASIL
AULA 3

Prof. Kauê Avanzi


CONVERSA INICIAL

Milton Santos fez uma verdadeira revolução na geografia ao mudar a


forma como observamos o espaço geográfico. Ele definiu o espaço como um
sistema de objetos e ações que vão sendo transformados em função das
diversas relações entre o ser humano e a natureza, mediadas por objetos
técnicos. Isso significa dizer que o espaço não é um recipiente sobre o qual as
ações humanas se desenrolam, mas que é produto e condição da nossa
existência social. Assim, derrubamos florestas, cavamos minas, plantamos e
colhemos alimentos, criamos animais, construímos cidades, polos industriais e
usinas hidrelétricas e vamos transformando o espaço na exata medida em que
somos transformados, pois as mudanças técnicas influenciam a forma como
vivemos a nossa vida banal. Logo, não podemos conceber o espaço como inerte,
e sim como um algo sempre em movimento, um acúmulo desigual de tempos
(Santos, 2012).
Quando nos referimos ao Brasil, não podemos entender de maneira
diferente. Assim, a

maneira como ocorreu a valorização do território brasileiro pelo


trabalho social é resultado de processos que se diferenciaram através
dos tempos. Cada momento, em vez de desaparecer por completo,
acabou deixando sua marca nos períodos posteriores, inserindo-se,
assim, na reprodução das novas relações sociais e no novo espaço
constituído. (Scarlato, 2011)

É preciso levar essa noção em consideração para compreendermos um


pouco da geografia histórica do espaço brasileiro com base em mapas.
Os mapas são representações que nos permitem visualizar as
concepções sobre o espaço brasileiro daqueles que as produzem e da visão que
possuíam do Estado-nação em determinado momento histórico. Quem produz
os mapas? Com quais interesses o faz? Que mensagem transmitem acerca do
espaço geográfico? O Espaço, representado na linguagem cartográfica, não
pode ser visto como absoluto, uma vez que este encontra-se em pleno
movimento (Santos, 2012). A cartografia o imobiliza, tal uma fotografia faz com
a imagem visível. Como representar um espaço em movimento, conforme
propõe Milton Santos (2012), por meio de uma cartografia estática e euclidiana?
Para Fonseca (2012, p. 108), “todo mapa pressupõe a eliminação de
informações, o que implica, mais uma vez, escolhas que começam já na
preparação dos dados, que podem ser factuais ou conceituais”. Segue-se uma

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breve exposição de mapas para pensarmos o desenvolvimento socioespacial
brasileiro.

TEMA 1 – FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL NO PERÍODO COLONIAL

1.1 Tratado de Tordesilhas e as Capitanias Hereditárias

Conhecemos o planeta Terra como uma superfície de características


esféricas desde que Eratóstenes o provou, no século III a.C. Esse fato era de
conhecimento geral no Mundo Antigo, em especial nas grandes civilizações
asiáticas (China e Índia), africanas (Egito, Congo) e entre os povos muçulmanos
do Oriente Médio, apesar de ser pouco difundido na Europa Medieval.
No entanto, entre os mercadores italianos – como o era Cristovão
Colombo –, que pelo Mar Mediterrâneo estabeleciam comércio e relações
sociais com outras partes do mundo, conheciam a constatação de Erastótenes.
À Época das Grandes Navegações quando Portugal e Espanha se engajam na
busca por terras e colônias pelo mundo conhecido, os líderes desses Estados-
nação recém-formados tinham total conhecimento da esfericidade da Terra. Mas
não conheciam o continente que hoje chamamos de América.
Ao traçarem o Tratado de Tordesilhas (1494), pensavam estar dividindo,
entre si, territórios do que se chamou de Índias Orientais, onde hoje se
encontram Índia, China e Oriente Médio (Galeano, 2010). Não à toa, ao
desembarcarem, os europeus referiram-se aos habitantes originários como
índios: acreditavam ter encontrado uma via marítima para as Índias, contornando
o bloqueio árabe em Constantinopla. O tratado estabeleceu uma linha imaginária
a 320 léguas a Leste do cabo Verde e, na prática, dividiu o novo continente em
América Portuguesa e Espanhola. No entanto, os limites da linha de Tordesilhas
não eram claros.

Para a avaliação dessas léguas, era necessário contar com a


experiência dos pilotos e com suas regras empíricas, como, por
exemplo, o Regimento das léguas documento em uso a partir do século
XV que indicava como calcular as distâncias percorridas na prática da
navegação e que fornecia: para 24 horas, com vento tenso em popa,
de 36 a 38 léguas; com vento, quando a nau governa pela bolina, 8
léguas. Como a nau andava em ziguezague, era necessário efetuar as
reduções através de regras práticas fornecidas por esse Regimento 19
. A conta das léguas percorridas começava nas Ilhas de Cabo Verde e
estas se iam acumulando e os pilotos de cada nau faziam seus cálculos
e conferiam periodicamente com os demais. É isso o que se vê, por
exemplo, no primeiro documento de nossa cartografia, a Carta de
Mestre João, que vinha na esquadra de Cabral. (Cintra, 2013, p. 20)

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Apesar das incongruências em relação aos limites, os territórios
portugueses foram divididos em 17 capitanias hereditárias, conforme nos mostra
o mapa 1. Essas terras foram cedidas a nobres portugueses, que poderiam
passar a seus descendentes, mas não vendê-las, já que pertenciam à Coroa
portuguesa. A intenção era implementar a ocupação do território, tendo em vista
as constantes invasões estrangeiras a este, especialmente por parte dos
franceses. Para isso, era necessário aprisionar os povos indígenas para a
implementação de atividades econômicas como a extração de pau-brasil e com
a agricultura e a indústria da cana-de-açúcar.

Figura 1 – Mapa das Capitanias Hereditárias

Fonte: Município de Atílio Vivacqua, [S.d.].

O sistema de capitanias hereditárias foi desfeito formalmente pelo rei D.


João III no ano de 1548, redimensionando-as a um outro sistema, o de
sesmarias, regidos por um governador Geral, representante do Rei na Colônia.

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Apesar da curta duração, podemos compreender o sistema de capitanias
hereditárias como que na origem da concentração fundiária, do patrimonialismo
e do coronelismo que marca a nossa formação espacial (Prado Junior, 1974).

1.2 Tratado de Madrid e as sesmarias

Os contornos mais ou menos atuais do espaço brasileiro são fruto de um


erro cartográfico. As indefinições com respeito ao Meridiano de Tordesilhas
favoreceram com que grupos de Bandeirantes e Jesuítas portugueses
atravessassem e se estabelecessem para além do território formalmente
delimitado como português. Esses agrupamentos penetravam o território
brasileiro com vista a capturar e aprisionar indígenas e utilizar do seu trabalho
cativo em plantações de cana-de-açúcar, no extrativismo vegetal ou na
mineração, submetendo-os como inferiores, mesmo que em 1537 o Papa Paulo
III declare que os indígenas eram homens, que tinham almas e que podiam
aprender a ser bons cristãos (Galeano, 2010). Eduardo Galeano (2010, p. 64),
em seu livro As veias abertas da América Latina, desenha o seguinte quadro
para este período:

Em 1581, Felipe II afirmou, durante uma audiência em Guadalajara,


que um terço dos indígenas da América tinha sido aniquilado, e que
aqueles que ainda viviam eram obrigados a pagar tributos pelos
mortos. Disse também o monarca que os índios eram comprados e
vendidos. Que dormiam na intempérie. Que as mães matavam os filhos
para salvá-los do tormento das minas. Mas a hipocrisia da Coroa tinha
menos limites do que o império: A Coroa recebia uma Quinta parte do
valor dos metais que seus súditos arrancavam em toda a extensão do
Novo Mundo hispânico, além de outros impostos, e outro tanto ocorria,
no Século XVIII, com a Coroa portuguesa em terras do Brasil.

Durante grande parte do período colonial, a Coroa portuguesa possuía


domínios e coletava impostos sobre territórios hispânicos, o que acendeu os
debates em torno dos limites entre os dois territórios. Utilizando-se habilmente
da concepção de fronteiras naturais como a melhor maneira de se
estabelecerem esses limites, os portugueses reivindicam a ocupação definitiva
dessas terras baseados no princípio jurídico do uti possidetis, que estabelece
com que cada parte do litígio fique com as terras já ocupadas e sob controle
militar e político (Duarte, 2018).
Alexandre de Gusmão propõe então o Mapa das Cortes (1749) (mapa da
Figura 2), no qual os territórios portugueses e espanhóis foram cartografados e
apresentados para estabelecer os termos da negociação, e quais seriam as

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fronteiras naturais que delimitariam ambos os territórios. As bacias hidrográficas
dos rios Amazonas e da Prata foram referências para o estabelecimento dos
limites do litígio, fazendo deste mapa a referência para a assinatura do Tratado
de Madrid (1750). No entanto ele apresentava alguns erros de delimitação de
longitudes:

O “Mapa das Cortes” foi propositadamente viciado nas longitudes para


fins diplomáticos. Desviando o Brasil meridional para leste, aumentava
a margem de soberania do hemisfério português, delimitado pelo
meridiano de Tordesilhas; e, encurtando ainda, com os desvios do
traçado, as longitudes do Paraguai, do Madeira e do Guaporé,
apoucava o Brasil ocidental, com aparente benefício das regiões
centrais de soberania espanhola. A soma destes erros permitia ao
cartógrafo situar, por exemplo, Cuiabá, com erro enorme, sobre o
meridiano de Tordesilhas, tal como este fora calculado pelos
cosmógrafos espanhóis em 1681. Coordenando com arte os erros da
cartografia conhecida de toda a gente, o organizador do “Mapa das
Cortes” conseguia realizar uma obra com aparência de rigorosa
seriedade e capaz de inspirar confiança do negociador espanhol
(Cortesâo, 2009, citado por Duarte, 2018, p. 40).

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Figura 2 – Mapa dos confins do Brasil com as terras da Coroa da Espanha na
América Meridional (1749) – Mapa das Cortes

Fonte: Mapa..., [S.d.].

Assim, o mapa proposto por Alexandre de Gusmão foi propositalmente


distorcido para beneficiar a apropriação de terras pela Coroa portuguesa,
demonstrando a forma como o conhecimento geográfico do território pelos
portugueses serviu em benefício destes. Enquanto isso, o regime das Sesmarias
– lotes de terras doados a cidadãos portugueses que tivessem a intenção de
explorá-lo em troca de fidelidade ao Rei de Portugal – vigorou desde o fim das
capitanias hereditárias e favorece ainda mais a concentração fundiária no
período colonial, estando na origem de grande parte dos grandes latifúndios e
do poder das classes possuidoras de terras no Brasil.
Algumas leituras sobre esse período, como as do historiador Nelson
Werneck Sodré, entendem que houve a reprodução de relações sociais
tipicamentes feudais no território brasileiro durante a vigência das Sesmarias, já

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que havia vínculos de fidelidade ao rei e relações de trabalho servis, próximas
às encontradas na Europa (Oliveira, 1988). Essa corrente enfrentou críticas de
autores como Caio Prado Junior (1974), que apresenta o Brasil, desde a
colonização, como uma empresa capitalista de Portugal; assim como José de
Souza Martins (2010), que em seu livro O Cativeiro da Terra expõe como no
Brasil a exploração de relações não capitalistas de trabalho – o trabalho escravo
de indígenas e negros, por exemplo – foi fundamental para a industrialização
europeia e para a reprodução do capitalismo em territórios colonizados como o
nosso. Esse sistema de propriedade da terra vigorou até a Independência, em
1822.

TEMA 2 – FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL DESDE O IMPÉRIO ATÉ AO


FIM DA REPÚBLICA VELHA

2.1 Império

O Brasil, ao contrário de todos os seus vizinhos na América do Sul,


entende-se como país desde a colonização. Mas é somente após o movimento
de independência, em 1822, é que podemos dizer que temos uma história de
autodeterminação e soberania nacional. Enquanto na América hispânica houve
guerras e intensos conflitos entre as elites criollas e os colonizadores espanhóis,
como nas campanhas de Simón Bolivar e José de San Martin, que constituíram
territórios fragmentados em Repúblicas; em nosso caso tivemos a absorção das
elites portuguesas nas elites nacionais na formação de um extenso território
gerido por uma monarquia que seguia a sucessão dinástica da família real
colonizadora: a casa de Bragança (Duarte, 2018).

Com efeito, ao contrário das colônias da América espanhola, apenas o


Brasil, a América portuguesa, foi o único que não oscilou entre a
anarquia e o caudilhismo. Enquanto a conformação definitiva e
centralizada de quase todos os demais países da América do Sul,
como a República Argentina, só ocorreria durante a segunda metade
do século XIX, o Império do Brasil, àquela época, já estava
amadurecido como Estado, possuindo um aparelho burocrático-militar
capaz de defender e mesmo impor, tanto interna quanto externamente,
a vontade social de suas classes dominantes. Este desenvolvimento
político se devia ao fato que o Império do Brasil não era simples
sucessor do Estado português. Na verdade, era o próprio Estado
português, que se desdobrara numa outra base geográfica, ajustara-
se às condições econômicas e amoldara- se à estrutura social da
colônia, com a consequente reformulação das alianças de classes, que
as contingências históricas impuseram. Mas, na mudança, não sofrera
descontinuidade. (Bandeira, 2012, citado por Duarte, 2018. p. 40)

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Assim se inicia um processo de modernização do país, tendo como base
os ideais do liberalismo europeu, apesar da permanência do patrimonialismo e
das relações de favor que constituíam as relações sociais e institucionais no
Estado brasileiro. Nesse contexto, o Barão da Ponte Ribeiro propôs um esforço
de mapeamento das fronteiras do Império brasileiro, dando origem à Carta do
Império do Brazil (1873) (mapa 3). O mapa tinha como função apresentar o país
nas exposições universais, das quais se passou a participar ativamente,
apresentando para o mundo um país capaz de mapear seu próprio território,
atraindo a atenção de investidores estrangeiros e migrantes europeus (Duarte,
2018).

Figura 3 – Carta do Império, 1873

Fonte: Biblioteca Mundial Digital, S.d.

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Esse mapa carrega consigo algumas peculiaridades que nos revelam os
projetos de país contidos em sua elaboração. Em primeiro lugar, cabe destacar
pontos no interior do país, em especial nas bacias dos Rios Xingu e Tocantins,
onde se inscrevem “indígenas selvagens e ferozes”, apresentando os povos que
ali viviam com caráter de animalização e inferiorização por parte das elites
brancas do país. O projeto de modernização aqui posto pregava a eliminação de
todo o fator de “atraso” presentes em partes da população, vistas como entraves
ao desenvolvimento do país e à exploração das riquezas naturais abundantes.
Outra ideia presente nesse mapa é o destaque para a expressão sertões
desconhecidos grafadas na região do Rio Madeira, na província de Mato Grosso.
O sertão, nesse período, é visto como um território ainda não tocado pela
civilização e que necessitava ser dominado para a realização de projetos de
integração do território. Para Moraes (2011), o sertão é definido como um lugar

ocupado por povos diferentes, exóticos, qualificando-se como a


morada dos “outros”. É um espaço de habitantes culturalmente ou
racialmente distintos na classificação dos tipos nacionais. Trata-se
nesses discursos de localidades povoadas por seres identificados
como saídos de uma outra época ou descendentes de uma outra
origem que aquela que tipifica a formação da nacionalidade. (Moraes,
2011. p. 103)

Não à toa, é uma época recheada de conflitos violentos entre o Estado


brasileiro e setores das populares em diversos pontos do país, tais como a
Cabanagem no Grão-Pará (1835-40), a Balaiada no Maranhão (1838-41), a
Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-8) na Bahia, e a Revolução
Farroupilha no Rio Grande do Sul (1835-45). Afinal de contas, para civilizar os
sertões, era necessário também civilizar as relações sociais, mesmo que de
forma violenta (Duarte, 2018).

2.2 Primeira República e Modernidade

Os embargos da Inglaterra ao Brasil, devido à resistência em abolir a


escravidão e o fortalecimento dos militares, que retornam da Guerra do Paraguai
(1864-70) ilustrados com ideias liberais e republicanas, criam o ambiente
favorável para o golpe militar que deu origem ao Brasil como República.
A crença no projeto modernizador do país acaba se intensificando com o
advento da República, e intelectuais passam a se interessar em produzir obras
de cunho geográfico sobre os rincões desconhecidos do país, a exemplo de

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Euclides da Cunha em seu Os Sertões (1902). O projeto é intensificar a
integração do país pela construção de obras de infraestrutura, em especial
ferrovias e linhas telegráficas. Há assim o desenvolvimento de um alinhamento
geopolítico ao projeto liberal dos Estados Unidos, então potência emergente na
América, importando ideias pseudocientíficas como a eugenia e o supremacismo
branco como parte do projeto de desenvolvimento (Assis, 2016).
Nesse contexto, surgem as ideias iniciais para a elaboração de uma Carta
do Brasil Republicano, principalmente entre os militares, que, em 1890 criam o
serviço Geográfico do Exército que, junto com o Estado Maior do Exército
formam uma comissão para elaborar a Carta Geral do Brasil. Vastamente
criticada pelo Clube de Engenharia, em especial por sua morosidade e pela
aplicação de técnicas consideradas inadequadas à escala do território brasileiro
– tais como o método da triangulação – propôs-se adequar a confecção da carta
à escala ao milionésimo (1:1.000.000) (mapa 4). Para Duarte (2018, p. 122-3):

Naquele verdadeiro caldeirão de possibilidades de construção do País,


ferviam revoltas em nome daqueles que se viam excluídos e
massacrados pelo novo regime como, por exemplo, a das camadas
populares do Rio de Janeiro retiradas a força de suas moradias em
nome do projeto de modernização do engenheiro e prefeito Pereira
Passos e do massacre imposto aos caboclos da região do Contestado.
Assim, entender as ideias e práticas daqueles que realizaram a Carta
do Brasil ao Milionésimo passa por compreender essas condições de
permanentes disputas políticas e transformações socioeconômicas
das primeiras décadas da República.

Nesse sentido, a forma como o Brasil foi apresentado na exposição


Universal de Chicago (1983) é reveladora, pois afirma a condição periférica do
Brasil na divisão internacional do trabalho, como produtor de algodão, café,
cacau, açúcar, e como um país de natureza exuberante, povo hospitaleiro,
mulheres bonitas e com imensas riquezas naturais a se explorar (Assis, 2016).
Toma-se o território como ponto de partida para os projetos de
desenvolvimento, entendendo que o povo e a história nacional nada tinham a
oferecer nesse sentido. As ideias de João Batista de Lacerda, então diretor do
Museu Nacional do Rio de Janeiro, propunham uma paulatina eliminação dos
componentes negro e indígena da população até o final do século XX como
caminho de inserir o país plenamente ao projeto de uma civilização ordenada e
branqueada. Assim, o mapa do Brasil ao milionésimo foi tocado em frente pelas
associações de engenharia alinhando-se ao esforço internacional em torno do
mapa do mundo ao milionésimo, sendo o país protagonista junto aos Estados
Unidos, Inglaterra e Alemanha.

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O mapa do Brasil ao milionésimo, lançado em sua versão definitiva em
1922, é um projeto de apagamento, que oculta topônimos e legitima a ocupação
violenta do Estado brasileiro sobre suas periferias internas. E é esse processo
que cria as bases da ideologia nacional que se institui após o Golpe de 1930,
iniciando a ditadura do gaúcho Getúlio Vargas, que vai promover a acelerada
modernização do Estado brasileiro e de sua integração nacional.

Figura 4 – Quadro de união das folhas brasileiras do Mapa Internacional do


Mundo, 1922

Fonte: Dibrarq, [S.d.].

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TEMA 3 – FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL DA ERA VARGAS ATÉ O FIM
DO PERÍODO DEMOCRÁTICO (1945-1964)

Após 1930, com o golpe que dá o poder a Getúlio Vargas, as antigas elites
agrárias paulistanas e mineiras passam a perder espaço para um impulso de
industrialização do país. A crise internacional do capitalismo traz a necessidade
de refazer-se a estrutura produtiva a nível global. Com o objetivo de estar mais
próximas de matérias-primas e de potenciais mercados consumidores e, para
além disso, usufruir de uma força de trabalho mais barata que a europeia, inicia-
se um processo de transferência de plantas produtivas industriais para países
periféricos, como o nosso. No entanto, para que isso ocorresse, era necessário
criar as condições econômicas, sociais e estruturais para atrair o capital
internacional.
Nesse contexto, funda-se o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), em
1932, e a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), em 1934. As duas
organizações surgem dos embates pós-golpe de 1930, e cursos de Geografia
são criados nas universidades das grandes capitais. O conhecimento do território
tinha, nesse momento, o objetivo de inserir o país, ainda considerado atrasado,
ao mundo tido como moderno. Recortar o Brasil em cinco regiões é a tentativa
de possibilitar a construção de um projeto de país ligado às paisagens e às
riquezas naturais do país, a serem exploradas (Moraes, 2011). As noções de
que somos um país miscigenado e de que há uma democracia racial começam
aqui. É nesse período que grande parte das indústrias de base e da urbanização
do país acontecem, com grande impulso no pós Segunda Guerra Mundial.
Grandes projetos de infraestrutura no setor de energia, mineração e
transportes – a exemplo da criação de empresas estatais como a Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN), Companhia Vale do Rio Doce – visavam criar a
base para a instalação de uma indústria nacional, mas sobretudo internacional,
que poderia contar com equipamentos viabilizados pelo Estado para sua
instalação. Trata-se de um período de modernização autoritária e forçada, com
a perseguição de oposições políticas, conforme exposto na literatura pela trilogia
Os subterrâneos da liberdade, escritos por Jorge Amado em 1953.
As fortes tensões internas e o engajamento na Segunda Guerra Mundial
enfraquecem o governo Vargas, que se abre para uma democracia ainda
incompleta, já que mantém partidos na ilegalidade enquanto permanece o

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discurso desenvolvimentista. Juscelino Kubitschek (1956-61) efetiva a instalação
da indústria automobilística no país e a transferência da capital para Brasília, no
Distrito Federal, com a intenção de interiorizar a ocupação do país que até então
vivia majoritariamente na faixa litorânea e afastar-se das tensões políticas das
grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo (Costa, 2008).

TEMA 4 – FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL DURANTE A DITADURA


MILITAR

A conjuntura da Guerra Fria cria no país um conjunto de tensões políticas


que, para manter o alinhamento geopolítico aos Estados Unidos, outorga um
golpe militar, ocorrido em 1° de abril de 1964. Os militares, desde o Estado Novo,
nutriam uma concepção de território que tinha forte influência do geógrafo e
general Karl Haushover, que, junto de seu aluno Rudolf Hess, criou as bases
teóricas que nutriam o Partido Nacional-Socialista alemão. Para os militares, era
comum pensar o conceito de nação articulado ao de território, confundindo com
frequência a ideia de unidade nacional e integridade territorial. Constrói-se assim
uma concepção sobre o Brasil de que é racista, já que estaria “sugerindo
medidas destinadas a ‘selecionar’ os imigrantes estrangeiros, de modo a permitir
um progressivo ‘branqueamento’ da ‘raça’ brasileira” (Costa, 2008 p. 189).
Entre outros nomes, o General Golbery do Couto e Silva, geopolítico que
tem sua obra escrita em especial na década de 1950, ganha destaque no
desenho das estratégias de Estado sobre o Território durante toda a ditadura
militar. Entendia-se que se vivia sobre um país-arquipélago, com baixa unidade
nacional e coesão territorial, sendo necessária a realização de grandes obras de
integração nacional para homogeneizar as diferenças sociais, políticas e
econômicas do país (Costa, 2008). O lema do governo militar no período era
Integrar para não Entregar, ressaltando a posição dos países vizinhos como
potenciais invasores, o que justificaria grandes obras pensadas por
superintendências regionais, tais como a Sudene (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste) e a Sudam (Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia) (Oliveira, 1988).
Como as florestas e os povos que nelas vivem são vistos como
empecilhos ao desenvolvimento nacional, indígenas, quilombolas e tantas outras
sociabilidades que viviam nos interiores do país passam a ser atacadas com
intensa violência para abrir caminho para projetos de mineração, geração de

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energia, rodovias e lavouras. Os incidentes envolvendo os deslocamentos
forçados na terra indígena do Xingu e a criação de reformatórios indígenas, onde
havia torturas e trabalho forçado, são mostras de como se pretendia criar uma
coesão nacional em torno de um Estado extremamente autoritário e
centralizador (Oliveira, 1988). No entanto, setores da geografia, em especial
após a década de 1970, influenciados por autores marxistas, passam a atuar de
maneira a se contrapor a essa visão de espaço e território. É quando surge a
Geografia Crítica.

TEMA 5 – FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL DESDE A REABERTURA


DEMOCRÁTICA

Muitos geógrafos foram perseguidos e exilados durante o regime militar.


A ação de movimentos sociais, em especial após a década de 1970, pressionam
para uma mudança. Milton Santos (2010), no exílio, elabora uma verdadeira
revolução na geografia, ao trazer a noção de movimento na leitura do espaço
geográfico e uma forte crítica ao quantitativismo em seu livro Por uma geografia
nova. Grandes obras e projetos de desenvolvimento são, cada vez mais, vistos
de maneira crítica pela geografia brasileira, que se envolve bastante com os
movimentos de luta pela terra e pelo meio ambiente e passa a refletir sobre o
papel do Brasil na divisão internacional do trabalho. A geografia passa a revisitar-
se e entender-se também como ferramenta política e de dominação. E nesse
caminho, o movimento de estudantes de geografia teve um papel fundamental.
O III Encontro Nacional de Geógrafos ocorrido na cidade de Fortaleza, em
1978, foi muito importante para essa reformulação da geografia brasileira. Nesse
encontro, estudantes ocupam a plenária final reivindicando uma abertura
democrática dentro da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB),
questionando a forma como a entidade se fechava e se eximia de críticas ao
governo militar, e colocando as seguintes questões: a quem serve a Geografia?
Quais são seus interesses? O sentido desse movimento era “transformar a
entidade numa instância aglutinadora dos que fazem do saber geográfico o seu
ponto de incursão na sociedade (Antunes; Souza Neto, 2007)
Assim, forçam uma abertura em nossa ciência que passa a exercer um
papel fundamental no processo de redemocratização do país. Em relato, Milton
Santos (1989, citado por Scarim, 2007) diz sobre esse momento que

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foi a eclosão de um movimento que vinha se gestando há mais tempo
e que havia uma fermentação extremamente bem orquestrada. Não
foi obra do acaso nem foi erupção espontânea. Não houve apenas
gratuidade. Havia um grupo de geógrafos brasileiros preocupados
com a geografia brasileira dispostos a mudar o seu rumo no sentido
acadêmico, na construção de uma nova teoria geográfica, uma
posição que fosse também ao mesmo tempo, política e acadêmica,
dentro da geografia […] Eu fui instrumental a este movimento.

Os embates de cada época expressam tensões e conflitos que


preenchem de vida o espaço geográfico. Nunca existiu apenas uma geografia
sendo praticada, mas houve aquelas concepções sobre espaço, território e
Nação que, sendo hegemônicas, balizaram as ações dos grupos dominantes em
cada período histórico. A geografia e os mapas já serviram a diversos interesses
ao longo de nossa história. A nossa ciência tem um papel importantíssimo nas
representações e ações sobre o território, e é importante que, como professores
e geógrafos que somos, tenhamos a noção de quais práticas alimentamos com
nosso discurso geográfico, pois estas intensificam ou ajudam a combater as
desigualdades econômicas, sociais, de raça e de gênero que fazem parte de
nossa constituição como nação. Se não refletirmos sobre isso, não poderemos,
num desvio de Walter Benjamin, fazer com que os mapas e a geografia deixem
de ser instrumentos de barbárie.

NA PRÁTICA

Segundo dados do IBGE (2010), pretos e pardos são cerca de 54% da


população brasileira. Os que se declaram indígenas são 0,4%. Dados de 2015
mostram que o número de pretos e pardos no ensino superior dobrou,
influenciado pelas políticas afirmativas, sendo 12,8% desta população os que
fazem um curso superior, enquanto entre os declarados brancos são 26,5%.
Enquanto a renda per capita entre declarados pretos e pardos é de R$ 753,69,
entre os brancos ela é de R$ 1.334,30. A taxa de desemprego entre pretos
(13,5%) e pardos (12,6%) é maior que entre os brancos (8,7%). O analfabetismo
também é maior entre pretos (11,2%) e pardos (11,1%) e também é maior que
entre os brancos (5%). Enquanto entre os brancos 70,7% dos adolescentes entre
15 e 17 anos estão no ensino médio na etapa adequada a idade, esse índice cai
para 55,5% entre pretos e 55,3% entre pardos.
O ambiente escolar no qual atuamos reflete essas desigualdades, e o
conhecimento geográfico historicamente foi o responsável por embasar as
políticas territoriais que criaram e mantiveram esse quadro. No ensino de

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geografia, pensar as relações étnico-raciais e suas tensões na sociedade é,
também, pensar medidas para a redução dessa situação e ampliar o caráter
democrático do país.

FINALIZANDO

A Geografia é uma disciplina particular em relação às outras ciências


humanas, uma vez que se desenvolveu um olhar histórico sobre o seu fazer e
os diversos atores e sujeitos que fizeram parte dessa história:

Diferentemente de outras ciências no Brasil, a Geografia teve não nos


acadêmicos os principais atores da transformação científica. A
Geografia é talvez a única ciência que, no Brasil, em sua história
recente, passou por um processo tão radical de transformação do
pensar/produzir sem a direção exclusiva, ou mesmo principal, da
Academia. (Antunes; Souza Neto, 2008).

Dizemos, sem medo de exageros, que a geografia se faz com os pés e


que, nos dizeres de Frei Betto, a cabeça pensa onde os pés pisam. Nesse
sentido, pudemos recordar as diversas formas como se fez e se pensou a
geografia e seu papel na conformação atual do Brasil.

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REFERÊNCIAS

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Geógrafos Brasileiros (AGB) e o movimento de renovação crítica da geografia
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