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A DIVISÃO DO TRABALHO COMO CAUSA DA DIFERENCIAÇÃO

DA CULTURA SUBJETIVA E OBJETIVA (1900)


Georg Simmel

Quando designamos os refinamentos, as formas espiritualizadas da vida


e os resultados do trabalho interior e exterior da vida como cultura, ordenamos,
com isso, esses valores em uma perspectiva, segundo a qual eles ainda não se
sustentam por meio da sua significação própria e objetiva. Para nós, eles são
conteúdos da cultura na medida em que os vemos como desdobramentos eleva-
dos de germes e tendências naturais - elevados além da medida do
desenvolvimento, da plenitude e da diferenciação que seriam alcançáveis pela
sua mera natureza. Uma energia ou indicação dada pela natureza - que decerto
precisa apenas existir para estar por trás do desenvolvimento verdadeiro - forma
o pré-requisito para o conceito de cultura, pois, da perspectiva deste, os valores
da vida são justamente natureza cultivada.
Eles não têm aqui a significação isolada que a partir do alto se compara
ao ideal da fortuna, da inteligência e da beleza, antes, eles se manifestam como
desenvolvimento de um fundamento, que denominamos natureza e cujas forças
e conteúdo de idéias elas ultrapassam, na medida em que são justamente
cultura. Se, portanto, uma fruta de pomar e uma estátua são igualmente
produtos da cultura, a língua explicita, entretanto, com muita precisão, esta
relação, ao designar cultivada aquela árvore frutífera, enquanto o mármore bruto
de nenhum modo é cultivado em estátua, pois, no primeiro caso, há uma força
motriz e uma característica naturais da árvore em direção àquela fruta, que por
meio da influencia inteligente é levada a ultrapassar suas fronteiras naturais,
enquanto, em relação ao bloco de mármore, não temos como pré-requisito uma
tendência correspondente em direção à estátua; a cultura nela realizada
significa a elevação e o refinamento de certas energias humanas, cujas
manifestações originais designamos "naturais".
Em primeiro lugar, parece evidente que coisas impessoais só podem ser
comparativamente designadas enquanto cultivadas, posto que aquele

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desdobramento do dado para além da fronteira de sua mera vida natural,
realizado mediante a vontade e o intelecto, compete finalmente apenas a nós
mesmos ou àquelas coisas cujo desenvolvimento se liga a nosso impulso e que
retroativamente estimula nosso sentimento. Os bens materiais de cultura -
móveis e plantas de cultura, obras de arte e máquinas, aparelhos e livros, em
cujas formas as matérias naturais podem, de fato, se desenvolver, mas nunca
pelas suas próprias forças - são a nossa própria vontade e sentimento
desdobrados por idéias. Vontade e sentimento que englobam em si as
possibilidades de desenvolvimento das coisas - desde que estas sejam dadas; e
este procedimento não é distinto daquele que forma a relação do homem com
seus semelhantes e consigo próprio - língua, costume, religião, direito. Na
medida em que esses valores são vistos como culturais, nós os diferenciamos
dos degraus de formação das energias neles vivas, que eles, por assim dizer,
podem alcançar por si e que para o processo de cultivação constituem apenas o
material, como a madeira e o metal, as plantas e a eletricidade.
Na medida em que cultivamos as coisas, isto é, elevamos sua medida de
valores para além do que foi realizado por seus mecanismos naturais,
cultivamos a nós mesmos: é o mesmo processo que sai de nós e a nós retoma -
de elevação de valores que alcança a natureza fora de nós ou a natureza em
nós. A arte plástica mostra esse conceito de cultura da maneira mais pura,
porque o mostra na maior tensão dos contrastes, pois aqui parece, inicialmente,
que a formação do objeto se esquiva inteiramente àquela inserção no processo
de nossa subjetividade. A obra de arte interpreta para nós exatamente o sentido
do próprio fenômeno, pouco importando se, nela, o sentido está na configuração
do espaço, na relação das cores, ou no que é próprio do plano da alma que vive
tanto dentro como atrás do que é visível. Mas sempre se trata de ouvir das
coisas sua significação e seu segredo, para apresentá-los de uma forma mais
pura e clara do que aquela à qual seu desenvolvimento natural a trouxe - mas
não no sentido da tecnologia química ou física, que estuda as leis das coisas
para inseri-las em nossas próprias finalidades, as quais se situam fora delas;
antes, o processo artístico estará concluído assim que houver desenvolvido o
objeto à sua mais própria significação. De fato, satisfaz-se com isso também ao
ideal meramente artístico, posto que para este a perfeição da obra enquanto tal
é um valor objetivo, inteiramente independente do seu resultado em nossa

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sensação subjetiva: o lema da l'art pour l'art indica bem a auto-suficiência das
tendências puramente artísticas.
Da posição do ideal da cultura o caso é diferente. O essencial deste é
justamente que ele anula a valorização própria da realização estética, científica,
moral, eudemonista e mesmo religiosa, para inseri-las todas como elementos ou
tijolos no desenvolvimento da essência humana para além de sua situação
natural; ou mais precisamente: elas são os trechos do caminho que este desen-
volvimento percorre. Sem dúvida, em cada instante ele se encontra em um
desses caminhos; ele não pode nunca percorrê-lo de um modo puramente
formal, sem conteúdo e em si mesmo. Isso já basta para afirmar que ele não é
ainda idêntico a este conteúdo. Os conteúdos da cultura são constituídos por
aquelas formações, a cada uma das quais está submetido um ideal autônomo.
Isto, no entanto, observado da perspectiva do desenvolvimento de nossas forças
- sustentado por essas formações e que adquire movimento por meio delas -
para além do que consideramos meramente natural. Na medida em que o
homem cultiva os objetos, faz deles imagens: na medida em que o
desdobramento transnatural das energias destes objetos é válido como
processo de cultura, este constitui apenas o lado visível ou o corpo para o
mesmo desdobramento de nossas energias.
A esta discussão do conceito geral de cultura contraponho agora uma
relação especial no âmbito da cultura da atualidade. Comparando, por exemplo,
com a situação de cem anos atrás, pode-se dizer - reservadas muitas exceções
individuais - que as coisas que envolvem e preenchem objetivamente nossa
vida, como aparelhos, meios de transporte, produtos da ciência, da técnica e da
arte, são incrivelmente cultivadas, mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nas
classes mais altas, de maneira alguma progrediu, em muitos casos até regrediu.
Esta é uma relação que não carece de comprovação específica. Saliento,
portanto, apenas alguns aspectos. As possibilidades de expressão lingüística,
tanto no alemão como no francês, enriqueceram-se e ganharam nuances nos
últimos cem anos; não apenas a linguagem de Goethe nos foi presenteada,
como houve ainda o acréscimo de uma grande quantidade de refinamentos,
matizações e individualizações da expressão. Não obstante, observando a fala e
a escrita dos indivíduos, percebe-se que no todo ela se toma sempre mais
incorreta, mais indigna e mais trivial. E no que diz respeito ao conteúdo, apesar

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de o horizonte, do qual a conversação cria seus temas, ter se expandido
objetivamente de um modo considerável no mesmo período - pelo avanço da
teoria e da práxis -, tem-se a impressão de que a conversação - tanto a social
como a íntima ou a troca de correspondência - seria agora muito mais
superficial, desinteressante e menos séria que ao final do século XVIII. A esta
categoria pertence o fato de a máquina ter se tomado muito mais inteligente que
o trabalhador. Quantos trabalhadores - mesmo excetuando-se aqueles da
grande indústria propriamente dita - poderiam, hoje, entender a máquina na qual
eles trabalham, isto é, entender o espírito investido na máquina? Nada diferente
disso se encontra na cultura militar. O que cada soldado tem a realizar
permanece, há muito tempo, essencialmente inalterado, e, por intermédio da for-
ma moderna da estratégia de guerra, chegou mesmo a diminuir. Por outro lado,
houve o aperfeiçoamento incessante, não apenas dos instrumentos desta
estratégia moderna de guerra, mas especialmente de tudo o que é oposto à
organização de tropa baseada nos indivíduos, de modo que estes se tomaram
um verdadeiro triunfo da cultura objetiva. E, no âmbito puramente espiritual, os
homens mais eruditos e mais dados à reflexão também operam assim, com
respeito a um número sempre crescente de representações, conceitos e
proposições cujo sentido e teor eles conhecem apenas parcialmente. A
monstruosa expansão da matéria do saber objetivamente dada permite, e
mesmo obriga, o uso de expressões que realmente passam de mão em mão
como receptáculos fechados, sem que o conteúdo de pensamento neles de fato
condensado se abra para cada usuário. Assim como nossa vida exterior é
envolta por um número crescente de objetos, cujo espírito objetivo empregado
em seus processos de produção não examinamos a fundo, de uma maneira
distanciada, também a nossa vida íntima e social é preenchida por construções
tomadas simbólicas, nas quais uma espiritualidade abrangente é armazenada -
o espírito individual, no entanto, aproveita-se apenas minimamente delas. Esta
discrepância entre a cultura tomada objetiva e a subjetiva parece expandir-se
permanentemente. O acervo da cultura objetiva é aumentado diariamente e de
todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas
e conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas
de longe a cultura objetiva.
Como esclarecer este fenômeno? Se toda cultura das coisas, como

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vimos, é apenas uma cultura do homem, de modo que nos formamos ao
formarmos as coisas, que significa aquele desenvolvimento, aperfeiçoamento e
espiritualização dos objetos, executados como que a partir de suas próprias
forças e normas e sem que almas específicas se desenvolvessem
correspondentemente neles ou em contato com eles? Aqui temos um
acirramento da relação enigmática que existe entre a vida e os produtos de vida
da sociedade, por um lado, e os conteúdos fragmentários da existência dos
indivíduos, por outro. Nas línguas e nos costumes, nas constituições políticas e
nas doutrinas religiosas, na literatura e na técnica, é acumulado o trabalho de
incontáveis gerações, enquanto espírito tomado objetivo. Deste trabalho
acumulado cada um leva o quanto quiser ou puder, mas nenhum indivíduo é
capaz de esgotá-lo; entre a dimensão deste acervo e a do que dele é retirado
temos as relações mais variadas e casuais. E a futilidade ou a irracionalidade da
parcela individual deixa o conteúdo e a dignidade pessoal daquele patrimônio da
espécie praticamente intocados, do mesmo modo como um ente corpóreo
existe, quer seja percebido ou não. Assim como o conteúdo e a significação de
um livro dado são indiferentes ao seu círculo de leitores - que pode ser grande
ou pequeno, que pode compreendê-los ou não -, também qualquer outro pro-
duto da cultura se relaciona da mesma maneira perante o círculo cultural.
Apesar de estar pronta para ser entendida por qualquer um, esta disposição
encontra apenas uma recepção esporádica. Este trabalho espiritual condensado
da comunidade relaciona-se, pois, com sua vivacidade nos espíritos individuais
da mesma maneira como a extensa plenitude da possibilidade se relaciona com
a limitação da realidade. A compreensão do modo de existência de tais
conteúdos objetivos do espírito exige sua inserção em uma organização peculiar
de nossas categorias mundi-abrangentes. Dentro dela, a relação discrepante da
cultura objetiva e subjetiva, que constitui nosso verdadeiro problema, também
encontrará seu lugar.
Se o mito platônico deixa a alma ver a essência pura, a significação
absoluta das coisas em sua preexistência, de tal modo que seu saber posterior
seria apenas a rememorização daquela verdade, que ocasionalmente faria
emergir na alma estímulos sensitivos, então temos, decerto, como
conseqüência, a perplexidade a respeito de onde poderia advir nosso
conhecimento, se lhe for recusada, à guisa de Platão, a origem na experiência.

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Mesmo desconsiderando a causa eventual de sua origem, naquela especulação
metafísica é sugeri da - em seu sentido profundo - uma atitude da nossa alma
com respeito à teoria do conhecimento. Independente de considerarmos nosso
conhecimento efeito imediato de objetos externos ou um processo puramente
interior, dentro do qual todo exterior é uma forma imanente ou uma relação de
elementos da alma, sempre perceberemos nosso pensamento, na medida em
que o consideramos verdadeiro, como realização de uma exigência objetiva,
como cópia de um modelo ideal. Mesmo se um reflexo exato das coisas, como
elas são em si, constituísse nossa representação, a unidade, a correção e a
perfeição - das quais o conhecimento se aproxima assintoticamente,
conquistando uma parte após outra - não alcançariam, no entanto, os próprios
objetos.
Antes, o ideal do nosso conhecimento almejaria apenas o conteúdo das
coisas na forma da representação, pois até mesmo o realismo mais extremado
não quer alcançar as coisas, mas sim o conhecimento das coisas. Se
qualificamos a soma de fragmentos, que em cada momento dado constitui
nosso acervo de saber em relação ao desenvolvimento pelo qual este anseia e
que constitui um parâmetro no qual cada fase presente mede sua significação,
só podemos fazê-lo mediante o pré-requisito que fundamenta aquela doutrina:
que existe um reino ideal dos valores teóricos, do sentido e do contexto
intelectuais perfeitos, que não coincide com os objetos - urna vez que esses são
justamente apenas seus objetos nem com o conhecer psicológico real,
respectivamente alcançado. Este último busca, antes, abrigar-se paulatina e
sempre imperfeitamente naquele, que encerra toda a verdade possível. O
conhecer psicológico real é verdadeiro na medida em que consegue isso. O fato
fundamental da sensação de que nosso conhecimento é, em cada instante, a
parte de um complexo dos conhecimentos apenas idealmente existente,
oferecido à nossa realização psíquica e a promovendo, pareceu a Platão ter
existido; apenas ele o expressou como urna queda do conhecer real com
respeito à antiga posse desta totalidade, enquanto um não mais, o que hoje
devemos conceber como um ainda não. Mas a relação em si pode manifesta-
mente estar na base de ambas as interpretações, como algo que é sentido de
maneira idêntica - do mesmo modo, uma soma idêntica se deixa produzir tanto
pela subtração de um valor mais alto, como pela adição a um valor mais baixo.

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O modo de existência próprio deste ideal de conhecimento, que se
contrapõe ao nosso conhecimento real como norma ou totalidade, é o mesmo
da totalidade dos valores e das prescrições morais que vêm a se contrapor às
ações efetivas dos indivíduos. Aqui, no âmbito da ética, nos é corrente a
consciência de que nossa atividade realiza, inteira ou parcialmente, uma norma
válida em si. Esta norma - cujo conteúdo de resto pode variar para cada pessoa
e para cada época de sua vida - não é encontrável no tempo e no espaço e nem
coincide com a consciência ética, que é, antes, sentida como dependente dela.
E isto é afinal a fórmula da nossa vida, da práxis cotidiana banal ao mais alto
cume da espiritualidade: em cada realização temos sobre nós urna norma, um
padrão de referência, uma totalidade ideal pré-formada que, justamente por
meio desta realização, é transportada para a forma da realidade - com o que
não afirmamos apenas o lugar comum de que qualquer vontade é dirigida por
um ideal. Antes, está em questão um caráter determinado de nossa ação, mais
ou menos claro, que só se deixa expressar nos termos de que com essa ação -
e tanto faz se ela for, com respeito a seus valores, deveras anti-ideal -
realizamos uma possibilidade de algum modo previamente desenhada, algo
como um programa ideal. Nossa existência prática, insuficiente e fragmentária
como ela é, obtém uma certa significação e coerência pelo fato de ser uma
realização parcial de uma totalidade. Nossa ação, mesmo a totalidade de nosso
ser, incluindo tanto o bonito como o feio, o certo como o errado, o grande como
o pequeno, parece provir de um acervo de possibilidades, de modo que ela se
relaciona, em cada instante, com o conteúdo determinado de seu ideal da
mesma maneira como as coisas específicas concretas se relacionam com seu
conceito, que expressa a sua lei interior e a sua essência lógica, sem que a
significação deste conteúdo dependa do se, como e quão freqüente ocorre sua
realização. Só podemos pensar o conhecer como realização, na consciência,
daquelas representações que estiveram justamente esperando tais realizações
nos lugares por assim dizer incertos. O fato de designarmos nossos
conhecimentos como necessários, ou seja, o fato de eles, segundo o seu
conteúdo, só poderem existir de uma única maneira, constitui apenas uma outra
expressão para aquele aspecto do qual temos consciência: nós os percebemos
como realização psíquica daquele conteúdo já ideal mente decidido. Esta única
maneira não significa de nenhum modo que para toda diversidade dos espíritos

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exista apenas uma verdade. Antes, se de um lado é dado um determinado
intelecto e de outro uma determinada objetividade, então, aquilo que justamente
para aquele espírito é verdade é objetivamente pré-formado, como o é o
resultado de uma operação no caso de seus fatores serem dados; a cada
alteração da estrutura espiritual dada, altera-se o conteúdo dessa verdade, sem
que com isso ela fique menos objetiva e menos independente de toda
conscientização ocorrida nesse espírito. Toda esta indicação, que retiramos de
determinados fatos do saber, de que outros fatos do saber determinados devem
também ser considerados, representa a causa eventual que torna visível aquela
essência do nosso conhecimento: cada um desses conhecimentos constitui uma
conscientização de algo já previamente válido e consolidado no contexto
objetivamente determinado dos conteúdos do conhecimento.
Visto, finalmente, pelo lado psicológico, isto faz parte da teoria segundo a
qual considerar algo verdadeiro constitui um certo sentimento, que acompanha
os conteúdos de representação; o que denominamos comprovar não é outra
coisa senão a realização de uma constelação psicológica na qual aquele
sentimento entra em jogo. Nenhuma percepção sensitiva ou conseqüência
lógica constitui imediatamente a convicção de ser uma realidade; elas são,
antes, apenas condições que suscitam o sentimento suprateorético da
afirmação, da concordância, ou como queiram nomear este sentimento da
realidade, que é, em verdade, indescritível. Este sentimento constitui a
mediação entre as duas categorias da teoria do conhecimento: o sentido do
conteúdo das coisas que é válido, sustentado por sua coerência interna e que
indica a cada elemento o seu lugar; e a nossa representação das coisas, que
significa sua realidade em um sujeito.
Esta relação geral e fundamental encontra uma analogia, em escala
reduzida, com aquela relação que se estabelece entre o espírito e a cultura
objetificados e o sujeito individual. Assim como nós - da perspectiva da teoria do
conhecimento - retiramos os conteúdos de nossa vida do reino do que é
objetivamente válido, de um ponto de vista histórico, recebemos uma parte
preponderante dos conteúdos de nossa vida daquela provisão de trabalho
espiritual da espécie já acumulada; aqui também existem conteúdos pré-
formados que se oferecem à realização nos espíritos individuais, mas que, no
lado oposto a tais realizações, mantém sua decisão que não pode

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absolutamente ser confundida com aquela de um objeto material, pois mesmo
se o espírito está ligado à matéria, como em aparelhos. obras de arte e livros,
ele nunca coincide com o que nessas coisas é sensitivamente perceptível. Ele
as habita de uma forma potencial - que não se deixa definir mais precisamente -
a partir da qual a consciência individual pode atualizá-lo. A cultura objetiva é a
representação ou a condensação - perfeita ou imperfeita - daquela verdade
objetivamente válida, da qual nosso conhecimento é uma cópia. Se podemos
dizer que a lei da gravidade teria sido válida antes que Newton a expressasse,
então temos que a lei .enquanto tal não se fundamenta na massa real da
matéria, uma vez que ela significa apenas a maneira na qual se representam
suas relações em um determinado espírito organizado, e uma vez que a
validade desta lei de modo algum depende que haja matéria na realidade. Deste
modo ela não está nem nas próprias coisas objetivas nem no espírito subjetivo,
mas sim naquela esfera do espírito objetivo, da qual nossa consciência da
verdade condensa um segmento após o outro da realidade neste espírito
objetivo. Se isto, entretanto, é consumado por Newton na lei em questão, então
ela é inserida no espírito histórico objetivo, e sua significação ideal no âmbito
deste independe agora, em princípio, de sua repetição em cada indivíduo.
Na medida em que alcançamos esta categoria do espírito objetivo como
representação histórica do conteúdo espiritual das coisas - que é válido -, toma-
se visível por que o processo cultural, que reconhecemos como um
desenvolvimento subjetivo – a cultura das coisas como uma cultura do homem -,
pode separar-se de seu conteúdo; esse conteúdo recebe, ao entrar naquela
categoria, um outro status, e com isso é criado o fundamento para o fenômeno
que se nos apresenta como desenvolvimento diferenciado da cultura objetiva e
da cultura pessoal. Com a objetificação do espírito é alcançada a forma que
permite uma conservação e acumulação do trabalho da consciência; ela é,
dentre as categorias históricas da humanidade, a mais significativa e a mais
prenhe em conseqüências, porque ela toma fato histórico o que é tão duvidoso
como fato biológico: a hereditariedade de fatores adquiridos. Se a preeminência
dos homens em relação aos animais se deve ao fato de ele ser herdeiro e não
mero descendente, então a objetificação do espírito em palavras e obras,
organizações e tradições constitui o sustentáculo dessa diferenciação, que
confere ao homem um mundo, o seu mundo.

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Se este espírito objetivo da sociedade histórica constitui o conteúdo
cultural desta no sentido mais amplo, então a significação prática da cultura de
cada um de seus elementos se mede, não obstante, pela proporção na qual eles
se tomam momento de desenvolvimento dos indivíduos, pois, aceitando a
suposição de que aquela descoberta de Newton estivesse apenas em um livro
que ninguém conhecesse, ela ainda assim seria um espírito tomado objetivo e
uma propriedade potencial da sociedade, porém já não configuraria um valor
cultural. Da possibilidade de ocorrência deste caso extremo em incontáveis
gradações decorre imediatamente que, em uma sociedade mais complexa,
apenas uma certa parte dos valores culturais objetivos toma-se subjetiva.
Observe-se a sociedade como um todo, ou seja, ordene-se a espiritualidade que
nela se toma objetiva em um complexo temporal-objetivo e teremos que a
totalidade do desenvolvimento cultural - para a qual se simulou um único
portador - é mais rica em conteúdo que o desenvolvimento cultural de cada um
de seus elementos, pois a realização de cada elemento se soma àquela
propriedade total, mas esta não chega até cada elemento. Todo o estilo de vida
de uma comunidade depende da relação da cultura tomada objetiva com a cultu-
ra dos sujeitos. Já indiquei a significação das determinações numéricas. Em um
povo pequeno, de cultura inferior, aquela relação será aproximadamente uma
das garantias de que as possibilidades objetivas da cultura não excederam
muito as realidades culturais subjetivas. Uma elevação cultural - especialmente
quando é simultaneamente acompanhada de um aumento demográfico -
favorecerá a separação de ambas: o que constituiu a situação incomparável de
Atenas ao tempo de seu apogeu foi ter sabido evitar isso - à exceção do
movimento filosófico mais elevado. Mas o tamanho do círculo não toma ainda
compreensível em si e por si a diferenciação dos fatores subjetivo e objetivo.
Trata-se, antes, de buscar agora as causas concretas e efetivas deste último
fenômeno.
Querendo concentrar este fenômeno e a força de sua aparição atual em
um único conceito, este atenderá por: divisão do trabalho; e tanto em sua
significação no âmbito da produção como no âmbito do consumo. Do ponto de
vista do primeiro, já foi suficientemente acentuado como a conclusão do produto
se realiza em detrimento ao desenvolvimento do produtor. A elevação da
energia e da habilidade físico-psíquica, que comparece na atividade parcial,

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colabora na eliminação da personalidade total unitária que, nela, é de pouco
proveito: a atividade especializada deixa-a mesmo freqüentemente atrofiar-se,
ao retirar dela uma quantidade de força imprescindível à configuração
harmônica do eu; em outros casos, o desenvolvimento da atividade
especializada implica um estrangulamento do núcleo da personalidade, ao
constituir-se como uma província com autonomia ilimitada, cujos produtos não
afluem ao centro. A experiência parece mostrar que a totalidade interior do eu se
produz essencialmente na atuação recíproca com a coerência e com o
acabamento dos afazeres da vida.
Assim como a unidade de um objeto se realiza para nós de um modo no
qual transportamos para o objeto a maneira como sentimos nosso "eu", e o
formamos segundo nossa imagem, na qual a multiplicidade das determinações
do ''tu'' se amalgamam, também a unidade do objeto que criamos e a sua falta
atuam, num sentido prático-psicológico, na correspondente formação de nossa
personalidade. Onde nossa força não produz uma totalidade na qual ela possa
se desenvolver segundo sua unidade peculiar, inexiste a verdadeira relação
entre o objeto e a personalidade do sujeito. Neste caso, as tendências internas
da realização atraem esta força às demais, formando com elas uma totalidade
de realizações de pessoas distintas. Destarte, estas forças não remetem mais
aos produtores. Em conseqüência do que, no caso de grande especialização -
que implica o surgimento de inadequações entre a forma de existência do
trabalhador e a de seus produtos -, o segundo se desliga fácil e profundamente
do primeiro, uma vez que seu sentido não aflui da alma deste trabalhador, mas
de sua relação com produtos advindos de outras partes. A este produto falta, em
função de seu caráter fragmentário, a essência do que é próprio do plano da
alma, que de outro modo é facilmente perceptível no produto do trabalho,
quando este aparece inteiramente como obra de um único homem. Deste modo,
não se deve buscar sua significação nem como reflexo de uma subjetividade,
nem no reflexo que ele, como expressão da alma criadora, lança de volta a ela.
Antes, sua significação pode finalmente ser definida como realização objetiva,
em seu afastamento do sujeito.
Esta relação pode também ser encontrada em seu extremo oposto: a
obra de arte. A essência desta é absolutamente intransigente com a repartição
do trabalho por uma plural idade de trabalhadores, que não realizam

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individualmente algo completo. Dentre todas as obras humanas - não excluído
sequer o Estado -, a obra de arte apresenta a unidade mais coerente, a
totalidade mais auto-suficiente, pois conquanto este possa, sob circunstâncias
especiais, bastar a si mesmo, ele não absorve inteiramente seus elementos em
si, impedindo que cada um tenha ainda uma vida particular, com interesses
particulares: nos vinculamos ao Estado apenas com uma parte de nossa
personalidade, outras partes desta se voltam para outros centros. A arte, ao
contrário, não permite a nenhum elemento acolhido uma significação externa à
moldura na qual ela o insere. A obra de arte específica destrói a pluralidade de
sentido das palavras e dos sons, das cores e das formas, para deixar existir,
para a consciência, somente aquele lado destes voltados a ela. A coerência da
obra de arte significa, pois, que, nela, uma unidade anímica subjetiva encontra
expressão; a obra de arte exige um único homem, mas o exige inteiro, em sua
intimidade mais central: ela retribui isto pelo fato de sua forma lhe permitir ser o
mais puro espelho e a mais pura expressão do sujeito. A recusa completa da
divisão do trabalho é assim tanto causa como sintoma da relação existente entre
a totalidade da obra, em si conclusa, e a unidade anímica. Ao contrário, onde
predomina a divisão do trabalho, tem-se como efeito uma incomensurabilidade
da realização com o realizador. Este não se vê mais no seu feito, que apresenta
uma forma distinta daquela forma pessoal-anímica e aparece apenas como uma
parcialidade de nossa essência toda unilateralmente desenvolvida. Parcialidade
esta que é indiferente à totalidade unitária desta mesma essência. A produção
realizada com base numa profunda divisão do trabalho - que adquire
consciência desta característica já penetra por si na categoria da objetividade. A
percepção - assim como a atuação - dela como algo puramente objetivo e
anônimo torna-se cada vez mais plausível, mesmo ao próprio trabalhador, que
não a sente mais como algo ligado à raiz de seu sistema integral de vida.
Aventei há pouco que o produto muito especializado tem seu conceito
vinculado a outros produtos, só encontrando sua significação própria na relação
com eles. Daí segue, portanto, que a unidade que a obra perfeita possui, e cuja
falta nós sentimos em cada um de seus elementos que são produzidos
separadamente, existe apenas na junção de todos os elementos. E esta junção
é simplesmente objetiva, pois a unidade cuja fonte é o sujeito pessoal é vedada
à obra completa para a qual o sujeito contribui apenas parcialmente. Assim

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como qualidades e energias específicas, que são determinadas de maneira
puramente objetiva - sendo cada uma encontrável nas mais diversas
combinações - produzem, mediante sua fusão e influência recíproca, a unidade
misteriosa da alma individual, no sentido inverso, uma totalidade produz-se fre-
qüentemente pela soma de realizações pessoais diferenciadas, uma totalidade
que, como tal, é de natureza objetiva. Também aqui o segredo da forma enlaça
os elementos em uma unidade, cuja essência é inteiramente distinta daquela de
cada elemento. Isto não é menos válido para produções científicas, estatais ou
industriais. Independente do desempenho proveniente de um único sujeito
aplicado a uma produção qualquer, sua capacidade de atuar como parte de um
todo está além desta gênese subjetiva. E assim que aquela capacidade é
realizada, desaparece a referência à subjetividade. Pode-se dizer: quanto mais
perfeitamente uma totalidade formada por contribuições subjetivas absorver em
si a parte, quanto mais o caráter de cada parte realmente valer e atuar apenas
como parte de uma totalidade, mais ela viverá uma vida oposta a todos os
sujeitos que a produziram.
Finalmente, o processo denominado separação do trabalhador de seus
meios de produção - que não deixa de ser uma forma de divisão do trabalho -
atua manifestamente no mesmo sentido. Na medida em que adquirir, organizar
e distribuir os meios de produção é agora função do capitalista, estes meios de
produção passam a ter para o trabalhador uma objetividade completamente
distinta daquela que eles tiveram para aqueles que trabalharam com material e
ferramentas próprias. Esta diferenciação capitalista separa profundamente as
condições subjetivas do trabalho das objetivas - separação para a qual não
existia nenhuma motivação psicológica enquanto ambas ainda estavam
reunidas em uma única mão. Na medida em que o próprio trabalho e seu objeto
imediato pertencem a pessoas distintas, o caráter objetivo destes objetos é
extraordinária e agudamente acentuado na consciência do trabalhador. E ainda
mais agudamente acentuado na medida em que o trabalho e sua matéria
constituem, por outro lado, novamente uma unidade; exatamente essa
proximidade entre eles toma mais perceptível seus atuais caminhos opostos. E
isto encontra sua continuação e seu par no fato de que, além dos meios de
produção, também o próprio trabalho se separa do trabalhador: pois é este o
significado da transformação da força de trabalho em mercadoria. Onde o traba-

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lhador produz com material próprio, seu trabalho permanece no âmbito de sua
personalidade, e somente a obra concluída desvincula-se dele por ocasião de
sua venda. Na impossibilidade de aproveitar seu trabalho desta maneira, o
trabalhador o coloca à disposição de um outro ao preço de mercado, separando-
se assim dele a partir do instante em que este deixa sua fonte. O fato de o
trabalho partilhar agora com todas as demais mercadorias seu caráter, seu
modo de valorização e seu desenvolvimento significa exatamente que, em
relação ao próprio trabalhador, o trabalho tomou-se algo objetivo, não apenas
algo que ele não é mais, mas, com efeito, algo que ele não tem mais, pois assim
que uma quantidade potencial de trabalho é aplicada em uma atividade
produtiva, ela não mais pertence ao trabalhador, cabendo-lhe apenas seu
equivalente em dinheiro, enquanto o trabalho propriamente dito pertence a um
outro, ou mais precisamente: a uma organização objetiva do trabalho. O fato de
o trabalho tomar-se mercadoria constitui apenas um lado do abrangente
processo de diferenciação, que separa da personalidade seus conteúdos
específicos, para lhe antepô-los como objetos com determinação e movimento
autônomos. Finalmente o resultado deste destino dos meios de produção e das
forças produtivas mostra-se em seu produto. O produto da época capitalista é
um objeto autocentrado, com leis de movimento próprias, cujo caráter é
estranho ao próprio sujeito produtor. Este fato adquire sua representação mais
reveladora no momento em que o trabalhador tem a necessidade de comprar o
produto de seu próprio trabalho, caso ele deseje tê-lo.
Isto é apenas um esquema geral do desenvolvimento, cuja validade
excede muito a esfera do trabalhador assalariado. A monstruosa divisão do
trabalho acarreta, por exemplo, na ciência, o fato de raríssimos pesquisadores
poderem criar eles próprios as pré-condições de seu trabalho; é mister acolher
de fora incontáveis fatos e métodos simplesmente como material objetivo, como
uma propriedade espiritual de outros, na qual o trabalho próprio se perfaz. Para
a área da técnica, é bom ressaltar que, ainda no começo do século - quando,
especialmente na indústria têxtil e siderúrgica, as mais grandiosas invenções
sucediam-se rapidamente -, os inventores precisavam construir, com as próprias
mãos e sem ajuda de outras máquinas, não apenas as máquinas que eles
conceberam, mas, na maioria das vezes, ainda imaginar e fabricar eles mesmos
as ferramentas necessárias para tal construção. A situação na ciência pode ser

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designada como uma separação do trabalhador de seus meios de produção
num sentiu amplo, e, em todo caso, no sentido aqui em questão, pois, no próprio
processo da produção científica, separa-se agora um material que é objetivo em
relação ao produtor do processo subjetivo do trabalho deste. Quando a atividade
da ciência era ainda muito indiferenciada, quando o pesquisador precisava ainda
produzir pessoalmente todos os pré-requisitos e materiais de seu trabalho, a
oposição entre sua produção subjetiva e um mundo de dados científicos seguros
e objetivos era, para ele, menos explícita. Nestes termos, isto se estende tam-
bém ao produto do trabalho: o próprio resultado - não importando que ele seja,
como tal, o fruto do esforço subjetivo - precisa ser elevado à categoria de um
fato objetivo, independente do produtor; e isto será tão mais urgente quanto
mais produtos do trabalho de outras pessoas já estiverem de antemão reunidos
nesse resultado, sendo nele atuantes. Por isso, na ciência que apresenta a
menor divisão do trabalho, isto é, na filosofia - especialmente em seu sentido
metafísico -, observamos que, por um lado, o material objetivo recebido
desempenha um papel de todo secundário, e, por outro, que o produto desta se
desligou minimamente de sua origem subjetiva e comparece inteiramente como
produção dessa única personalidade.
Algo semelhante à divisão do trabalho - aqui entendida no seu sentido
mais amplo, incluindo a parcelização da produção, a separação do trabalho e a
especialização -, que separa a personalidade criadora da obra criada e deixa
esta última alcançar uma autonomia objetiva, comparece também na relação
entre a produção baseada na divisão do trabalho e os consumidores. Aqui se
trata do que se deriva das conseqüências internas dos já conhecidos fatos
externos. O trabalho destinado ao freguês, que dominou a oficina medieval e
que apenas no último século experimentou seu rápido declínio, permitia ao
consumidor ter uma relação pessoal com a mercadoria. Uma vez que ela era
especialmente preparada para ele, uma vez que ela representava, por assim
dizer, uma influência recíproca entre ele e o produtor, ela intimamente lhe
pertencia também, em alguma medida, de um modo semelhante como pertencia
ao produtor. A oposição aguda entre sujeito e objeto que foi reconciliada na
teoria pela possibilidade de este existir naquele como sua representação - não
alcança tal desdobramento na práxis, pelo fato de que o objeto surgiria mediante
o trabalho de um único sujeito, ou pela vontade de um único sujeito. Na medida

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em que a divisão do trabalho destrói a produção destinada ao freguês - pelo
simples fato de que o comprador pode se colocar em contato com um produtor,
mas não com uma dúzia de operários que realizam apenas uma parte do
produto - desaparece a coloração subjetiva do produto também no lado do
consumidor, pois o produto surge agora independentemente do consumidor. A
mercadoria é agora um dado objetivo, no qual ele penetra de fora e cuja
existência e maneira de ser se lhe antepõem como algo autônomo. A diferença,
por exemplo, entre o moderno magazine de roupas, organizado segundo a mais
extrema especialização, e o trabalho do costureiro que se recebia em casa
caracteriza, da maneira mais clara, a elevação da objetividade do universo
econômico, a sua autonomia suprapessoal em relação ao sujeito consumidor, a
quem ele estava originalmente ligado.
A esta autonomia da produção em relação ao comprador está ligado um
fenômeno da divisão do trabalho que é tão cotidiano quanto pouco reconhecido
em sua significação. A partir da configuração anterior da produção, predomina,
em geral, a concepção simplista de que as camadas inferiores da sociedade
trabalham para as superiores. A idéia segundo a qual as plantas vivem do chão,
os animais das plantas e os homens dos animais é aplicada automaticamente
na organização- da sociedade - independente de ser julgada moralmente correta
ou incorreta. Destarte, quanto mais alto, social e espiritualmente, estão os
indivíduos, tanto mais sua existência se fundamenta sobre o trabalho dos
inferiores, o qual é retribuído não com trabalho para estes, mas apenas com
dinheiro. Esta concepção tornou-se completamente inexata desde que as
necessidades das massas inferiores passaram a ser cobertas pela grande
indústria, que coloca a seu serviço incontáveis energias científicas, técnicas e
organizatórias das camadas superiores. O grande químico, que em seu
laboratório medita sobre a apresentação das cores dos animais, trabalha para a
camponesa que junto ao vendedor escolhe para si o chale mais colorido; se o
grande comerciante, em uma especulação de abrangência mundial, importa
cereais americanos para a Alemanha, ele se converte num servidor dos mais
pobres proletários; a empresa de fiação de algodão, na qual estão engajadas
pessoas de alto nível de inteligência, depende de compradores das camadas
sociais mais baixas. Esta retroatividade do serviço, na qual as classes inferiores
compram para si o trabalho das superiores, encontra-se em inumeráveis

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exemplos, os quais são determinantes para a totalidade de nossa vida cultural.
Este fenômeno, no entanto, só é possível pela objetificação que a produção
alcançou tanto em relação ao sujeito produtor como em relação ao sujeito
consumidor. E é ainda por meio desta objetificação que este fenômeno se
posiciona no lado oposto das diferenças sociais - ou de qualquer outro tipo -
porventura existentes entre produtores e consumidores. Esta tomada do serviço
dos mais altos produtores de cultura pelos consumidores inferiores significa
exatamente que não existe nenhuma relação entre eles, mas sim que um objeto
é colocado entre eles - no qual, de um lado, uns trabalham, enquanto os outros
consomem -, objeto este que os separa ao vinculá-los.
A técnica de produção é tão especializada que o manejo de suas diversas
partes é confiado não apenas a mais pessoas, mas especialmente a pessoas
diferentes - até que chegue afinal justamente no ponto em que uma parte do
trabalho nos mais inferiores artigos de primeira necessidade seja realizada pelos
indivíduos de mais alta posição, enquanto, inversamente, numa objetificação
correspondente, a parcelização técnica e mecânica do trabalho possibilita a
participação das pessoas menos cultivadas na elaboração dos produtos mais
refinados da cultura de elite (pense-se, por exemplo, nas gráficas hodiernas em
contraposição à produção de livros antes da invenção da imprensa).
Nesta inversão das relações tidas como típicas entre as altas e baixas
camadas da sociedade, explicita-se o fato de que a divisão do trabalho tem
como efeito que aqueles passam a trabalhar para estes. Mas a completa
objetificação da própria produção, em relação tanto a uma como a outra camada
como sujeitos, constitui a única forma na qual isto pode acontecer. Aquela
inversão não é nada mais que uma conseqüência extrema da relação que existe
entre a divisão do trabalho e a objetivação dos conteúdos da cultura.
Até aqui a divisão do trabalho foi tratada como uma especialização das
atividades pessoais. Mas a especialização não atua menos no sentido de
colocar os objetos a uma tal distância dos sujeitos, que implique a autonomia do
objeto e a incapacidade do sujeito de assimilá-lo e submetê-la a seu próprio
ritmo. Isto vale em primeiro lugar para os meios de produção. Quanto mais estes
forem diferenciados e montados a partir de uma pluralidade de partes
especializadas, menos a personalidade daquele que neles trabalha poderá se
expressar por eles, menos a sua mão será reconhecível no produto.

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Comparativamente, as ferramentas com as quais a arte trabalha são
completamente indiferenciadas, e dão, portanto, o mais amplo espaço para a
personalidade desenvolver-se por meio delas; elas não se contrapõem à
personalidade como as máquinas industriais, que, pela sua própria
especialização complexa, têm uma forma pessoal e delimitada, de modo que o
trabalhador não pode penetrá-las com sua personalidade, como até então havia
feito com as ferramentas em si indeterminadas. O desenvolvimento das
ferramentas do escultor - no decurso de milênios nunca logrou ultrapassar sua
completa não-especialização. E no meio artístico onde isto, no entanto,
aconteceu, como na fabricação do piano, podemos perceber seu caráter
deveras objetivo, autocentrado, que impõe, portanto, um limite muito mais rígido
à expressão da subjetividade, do que por exemplo o violino, cuja fabricação é
em si tecnicamente muito menos diferenciada.
O caráter automático das máquinas modernas é o resultado de um
fracionamento e de uma especialização extremados de matérias e forças. Da
mesma maneira, o caráter semelhante de uma administração estatal
desenvolvida só pode ser erigido sobre a base de uma refinada divisão do
trabalho entre seus membros. Na medida em que a máquina se toma uma
totalidade e responsável por uma parte cada vez maior do trabalho, ela se
dispõe perante o trabalhador como uma potência autônoma, ao passo que este
atua nela não como personalidade individualizada, mas apenas como executor
de uma produção objetivamente prescrita. Compare-se, por exemplo, o operário
na fábrica de sapatos com o sapateiro para se ver quanto a especialização da
ferramenta paralisa a eficiência das qualidades pessoais - tanto da destreza
como da inaptidão - e deixa objeto e sujeito se desenvolverem como potências
independentes uma da outra, com respeito à sua essência. Enquanto a
ferramenta não-diferenciada é realmente um mero prolongamento do braço, a
ferramenta especializada sobe à categoria pura do objeto. De uma maneira
assaz reveladora e evidente, este processo perfaz-se ainda nos instrumentos de
guerra; o vaso de guerra constitui seu ponto culminante como instrumento de
guerra mais especializado e como máquina mais perfeita: nele a objetivação
alcançou tal progresso que, em uma batalha naval moderna, a mera proporção
numérica de navios de qualidade semelhante constitui, praticamente, o único
fator decisivo.

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O processo de objetivação dos conteúdos da cultura, que, apoiado na
especialização destes conteúdos, funda uma estranheza sempre crescente
entre o sujeito e suas criações, desce finalmente à intimidade da vida cotidiana.
A decoração da moradia, assim como os objetos de uso e enfeite que nos
rodeiam, era, até as primeiras décadas do século XIX - abrangendo desde os
desejos e necessidades das camadas baixas até aqueles das camadas de
cultura superior - comparativamente de grande simplicidade e durabilidade.
Surgiu então, por intermédio disso, aquela imbricação das personalidades com
os objetos ao seu redor, que hoje as novas gerações vêem como uma
extravagância dos avós. A diferenciação dos objetos interrompeu este processo
em três dimensões distintas, e sempre com o mesmo resultado. Em primeiro
lugar, já a mera pluralidade de objetos muito especificamente enformados
dificulta uma relação estreita, por assim dizer pessoal, com cada objeto: um
número reduzido de aparelhos simples é mais facilmente assimilável à
personalidade, enquanto uma profusão de aparelhos complexos, inversamente,
se contrapõe ao eu. Isto encontra sua expressão nas reclamações das donas de
casa, de que equipar a casa exige uma formalidade fetichista, e nas eventuais
irrupções de ódio de natureza séria e profunda contra os incontáveis utensílios,
com os quais guarnecemos nossa vida. O primeiro caso é culturalmente deveras
expressivo, pois as atividades da dona de casa de cuidar e manter a mesma
eram antes mais abrangentes e fatigantes que ago. ra. Àquele sentimento de
falta de liberdade com relação ao objeto não se chegou apenas porque eles
estavam mais estreitamente ligados à personalidade. Antes, a personalidade
pôde prevalecer sobre um número reduzido de objetos não-diferenciados. Estes
não contrapõem a ela a autonomia, como o faz um monte de coisas
especializadas. Nós só percebemos essa autonomia como uma potência inimiga
a partir do momento em que devemos servi-Ia. Assim como a liberdade não é
algo negativo, mas o prolongamento do eu sobre o objeto transigente a esta
individualidade, o objeto é para nós apenas aquilo em que nossa liberdade
diminui de atividade, isto é, aquilo com que nos relacionamos sem, no entanto,
poder assimilá-lo ao nosso eu. O sentimento - com. o qual a vida moderna nos
rodeia - de vir a ser sufocado pelas exterioridades não constitui apenas a
conseqüência, mas também a causa dessas exterioridades se nos contraporem
como objetos autônomos. O que é incômodo é o fato de essa variedade de

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coisas que nos circundam nos ser, no fundo, indiferente, em razão - em termos
especificamente financeiros - de sua gênese impessoal e de sua fácil subs-
tituição. O fato de a grande indústria nutrir o pensamento socialista baseia-se
não apenas nas relações entre seus trabalhadores, mas também na condição
objetiva de seus produtos: o homem moderno é de tal modo rodeado por coisas
impessoais que a concepção de uma ordenação da vida absolutamente anti-
individual se aproxima cada vez mais dele - o que certamente também é válido
para a concepção oposta a tal ordenação da vida. Os objetos da cultura tendem
cada vez mais a um mundo coerente em si, que se liga a um número cada vez
menor de pontos na alma.subjetiva, com sua vontade e sentimento. E esta
coerência é sustentada por uma certa mobilidade própria dos objetos. Já se
salientou que o comerciante, o artífice e o letrado têm hoje menos mobilidade
que, por exemplo, ao tempo da Reforma. Objetos materiais e espirituais movem-
se agora autonomamente, sem o recurso de um portador ou de um
transportador pessoal. Coisas e homens estão separados. O pensamento, o
esforço do trabalho e a habilidade alcançaram, pelo seu crescente investimento
em formações, livros e mercadorias objetivos, a possibilidade de um movimento
próprio, para o qual o progresso moderno dos meios de transporte constitui
apenas a execução ou a expressão. Somente pela sua própria mobilidade
impessoal, a diferenciação entre objetos e o homem se perfaz em um
encadeamento auto-suficiente. A máquina automática corporifica o exemplo
cabal deste caráter mecânico da economia moderna; com ela, agora também no
comércio miúdo, no qual a venda ainda se fazia por uma relação de pessoa para
pessoa, a mediação humana é inteiramente descartada e o equivalente em
dinheiro é trocado mecanicamente pela mercadoria. Em um outro nível, o
mesmo princípio já atua também nos sacolões e nas lojas do tipo, nas quais o
processo econômico-psicológico não parte da mercadoria, ao preço, mas do
preço à mercadoria, pois, neste caso, em função da igualdade prévia do preço
de todos os objetos, são eliminadas toda sorte de reflexões e ponderações da
parte do comprador e toda espécie de esforços e explicações da parte do
vendedor, de modo que o ato econômico percorre rápida e indife-, rentemente
suas instâncias pessoais.
A diferenciação sucessiva leva aos mesmos resultados desta
diferenciação paralela. A mudança da moda interrompe aquele processo interno

20
de apropriação e enraizamento entre sujeito e objeto, que evita a discrepância
entre ambos. A moda é uma daquelas formações sociais que unificam a
sedução da diferença e da mudança com a sedução da igualdade e da união em
uma proporção especial. Toda moda é, por sua própria essência, moda de uma
classe, isto é, ela especifica - pela igualdade de sua aparência uma camada
social, que ela tanto unifica internamente, como diferencia, externamente, dos
outros estratos. Assim que a camada inferior - que busca imitar a superior -
tenha por seu lado acolhido a nova moda, ela é abandonada pela última, e uma
nova é criada. Por isso, sem dúvida houve modas em todos os lugares onde a
diferença social procurou para si uma expressão na aparência. O movimento
social dos últimos cem anos imprimiu-lhe apenas um ritmo todo especial, o que
se deveu, por um lado, ao fato de os limites de classe terem se tornado fluidos e
ainda às diversas ascensões individuais - e algumas vezes de todo um grupo -
de uma camada à superior e, por outro, ao predomínio do terceiro estado. A
primeira circunstância tem como efeito que as modas das camadas dirigentes
têm que mudar com extrema rapidez, uma vez que a irrupção dos inferiores, que
rouba o sentido e a sedução da moda do momento, ocorre agora prontamente.
O segundo momento torna-se ativo na medida em que a classe média e a
população urbana, em oposição ao conservadorismo dos estratos superiores e
rurais, configuram a própria variabilidade. Inquietos e perseguindo a mudança,
classes e indivíduos reencontram na moda, isto é, na forma da mudança e das
contradições da vida, o ritmo de seu próprio movimento psicológico. O fato de as
modas atuais já não serem mais tão caras e extravagantes como no século
anterior, tendo em compensação uma duração muito menor, dá-se em função
de elas atraírem agora em seu encanto um círculo muito mais extenso, em
função de as camadas inferiores poderem apropriar-se muito mais facilmente
dela agora e ainda em função de ela ter seu lugar entre a burguesia abastada. O
resultado desta abrangência da moda, tanto com respeito à extensão como com
respeito ao seu ritmo, é que ela aparece como um movimento autônomo, como
uma potência objetiva, desenvolvida por meio de suas próprias forças, que
percorre seu caminho independente de qualquer indivíduo. Enquanto as modas -
e não se trata aqui de modo algum apenas de moda de vestuário - ainda
mantinham uma duração relativamente longa e um círculo relativamente restrito,
havia, por assim dizer, uma relação pessoal entre o sujeito e o conteúdo

21
específico da moda. A velocidade de sua mudança - ou seja, sua diferenciação
sucessiva - e a abrangência de sua expansão desligam essa conexão. E como
acontece com alguns outros paládios sociais na modernidade, também neste
caso a moda se refere menos a cada indivíduo e cada indivíduo interfere menos
na moda, cujos conteúdos se desenvolvem como se esta fosse um mundo
evolucionista autocentrado.
Vimos anteriormente que a diferenciação dos conteúdos de cultura
propagados - segundo os aspectos formais sucessivos e paralelos - ajuda a
moda a configurar-se como uma objetividade autônoma. Gostaria de mencionar,
ainda em terceiro lugar, um único momento dentre aqueles que são atuantes na
constituição destes conteúdos. Refiro-me à multiplicidade de estilos, com a qual
os objetos cotidianos visíveis se nos apresentam - da construção de casas até a
apresentação do livro, das artes plásticas à jardinagem e decoração de
interiores, nas quais renascença e orientalismo, barroco e neo-cIassicismo, pré-
rafaelismo e praticidade realista são cultivados lado a lado. Esta multiplicidade
de estilos advém da expansão de nosso conhecimento histórico, que se en-
contra numa relação de influência recíproca com aquela destacada variabilidade
do homem moderno. Toda compreensão histórica pressupõe uma transigência
da alma, uma capacidade de se colocar na disposição anímica mais distanciada
de sua própria situação, e de reconstruí-la como tal em si - pois toda história,
mesmo que se trate de acontecimentos testemunhados, só terá sentido e só
será compreendida como história fundamentada em interesses, sentimentos e
esforços: mesmo o materialismo histórico não é nada mais que uma hipótese
psicológica. Para que o conteúdo da história passe a ser propriedade de uma
pessoa, é necessária uma maleabilidade da alma que compreende, é
necessário que ela possa ser remodelada, que ocorra uma sublimação interna
da variabilidade. A tendência historicista de nosso século, sua incomparável
capacidade de reproduzir e tomar vivo o acontecimento mais distante tanto no
sentido temporal como no espacial - é apenas o lado interno da elevação geral
de sua capacidade de adaptação e de sua mobilidade. Daí a desconcertante
multiplicidade de estilos que são recebidos, representados e assimilados por
nossa cultura.
Se cada estilo é como uma língua para si, que tem sons especiais,
flexões especiais, uma sintaxe especial para expressar a vida, ele

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manifestamente não se coloca perante nossa consciência como uma potência
autônoma, que vive uma vida própria como se conhecêssemos apenas um único
estilo no qual nos configuramos e configuramos nosso ambiente. Ninguém
percebe em sua língua materna - desde que a fale ingenuamente - algo em
conformidade com uma lei objetiva, à qual ele se dirige como a uma instância
oposta à sua subjetividade, para requisitar dela possibilidades de expressão
cunhadas segundo normas independentes de sua interioridade. Antes, o que é
expresso e a expressão constituem, neste caso, uma unidade imediata, e só
percebemos não somente a língua materna, mas a língua em geral, como uma
entidade autônoma a nós contraposta, a partir do momento em que conhecemos
uma língua estrangeira. Do mesmo modo, as pessoas que têm um estilo
unitário, que abarcam a totalidade de suas vidas, também conceberão este
estilo e os conteúdos do mesmo como uma unidade nãoquestionada. Uma vez
que tudo que elas formam ou vêem se expressa naturalmente neste estilo, não
há qualquer motivação psicológica para separá-lo em pensamento da matéria
dessas formações e visões e contrapô-lo ao eu, como uma formação de
proveniência própria. Somente uma multiplicidade de estilos ofertados desliga o
estilo específico de seu conteúdo, de tal modo que sua autonomia e significação
- que independem de nós - são antepostas à nossa liberdade de optar por ele ou
por um outro estilo. Pela da diferenciação dos estilos, cada estilo específico – e
com isso o estilo em geral - toma-se algo objetivo com interesse, eficiência,
agrado ou desagrado independentes e cuja validade independe do sujeito. O
fato de o conjunto dos conteúdos das visões de nossa vida cultural ter se
separado em uma multiplicidade de estilos quebra aquela relação original com
eles, na qual sujeito e objeto ainda estavam unidos, e nos contrapõe a um
mundo de possibilidades de expressão desenvolvidas a partir de normas
próprias e de formas de expressar a vida. Esta contraposição dá-se de tal modo
que estas formas, por um lado, e nossa subjetividade, por outro, constituem
duas partes distintas, entre as quais predomina uma relação puramente casual
de contatos, harmonias e desarmonias.
Este é aproximadamente o círculo no qual a divisão do trabalho e a
especialização - tanto no sentido pessoal como no objetivo - sustentam o grande
processo de objetivação da cultura mais moderna. A partir de todos esses
fenômenos é composta a formação total, na qual o conteúdo da cultura se toma

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cada vez mais, e com consciência crescente, um espírito objetivo, perante não
somente aqueles que o recebem, mas também perante aqueles que o
produzem. No ritmo em que essa objetivação progride, toma-se cada vez mais
compreensível o fenômeno maravilhoso, do qual nós partimos: a elevação
cultural dos indivíduos pode manifestamente ficar abaixo da elevação cultural
das coisas - em termos concretos, funcionais e espirituais.
O fato de, eventualmente, ocorrer também o inverso comprova a
autonomização recíproca de ambas as formas do espírito. De uma maneira um
tanto oculta e transformada, isto é, encontrável no seguinte fenômeno: a
economia camponesa no norte da Alemanha parece poder manter-se, a longo
prazo, apenas por meio de um tipo de morgadio, isto é, no caso de apenas um
dentre os herdeiros assumir a fazenda e indenizar os demais com quotas
diminutas, estabelecidas segundo o valor de venda da terra. Calculando-se o
preço das cotas segundo os valores de venda recentes - que ultrapassam de
longe o valor da produção -, a fazenda ficará de tal modo sobrecarregada de
hipotecas no ato da indenização que apenas um empreendimento de somenos
valor permanecerá possível. Não obstante, a consciência jurídica moderna, que
é individualista, requer o direito eqüitativo de todos os herdeiros - expresso em
um montante em dinheiro mecanicamente estabelecido - e não concede o
privilégio a um único filho. Privilégio que constituiria ao mesmo tempo a
condição para a exploração objetiva perfeita. Sem dúvida, por meio de tais
casos, foram freqüentemente alcançadas elevações culturais de sujeitos
específicos, ao passo que a cultura do objeto teve um desenvolvimento
comparativamente menor. Uma discrepância deste tipo comparece com vigor
naquelas instituições sociais cuja evolução apresenta um ritmo mais lento e
conservador que a evolução do indivíduo.
A esse esquema pertencem aqueles casos nos quais as relações de
produção - depois de terem atravessado uma época determinada - são
superadas pelas forças produtivas que elas mesmas desenvolveram. Deste
modo, elas não asseguram mais a estas forças produtivas expressão e emprego
adequados. Estas forças têm em grande parte uma essência pessoal: o que as
personalidades são capazes de realizar ou de justificadamente querer não
encontra mais nenhum lugar nas formas objetivas das empresas. A necessária
modificação destas forças produtivas ocorre somente quando do acúmulo em

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massa dos impulsos neste sentido. Até que esse ponto seja atingido, as
energias econômicas individuais suplantam a organização objetiva da produção.
Deste esquema decorrem muitas motivações para o movimento feminista. Os
progressos da técnica industrial moderna deslocaram um número
extraordinariamente grande de atividades da economia doméstica - que antes
cumpria às mulheres realizar - para fora da casa, onde seus objetos são
produzidos de maneira mais barata e mais cômoda. Com isso, o conteúdo ativo
da vida de militas mulheres da classe média foi retirado, sem que outras
atividades e objetivos tivessem preenchido tão prontamente o espaço que se
tornou vazio; a freqüente "insatisfação" das mulheres modernas, o não-
aproveitamento de suas forças, que causa retroativamente toda sorte de
distúrbios e destruições, sua procura - em parte saudável, em parte doentia - em
demonstrar competência fora de casa - tudo isso é resultado de a técnica em
sua objetividade ter adquirido uma marcha própria, mais veloz que a
possibilidade de desenvolvimento das pessoas.
O caráter muitas vezes insatisfatório dos casamentos modernos é
conseqüência de uma relação correspondente à anteriormente citada. Às formas
e hábitos de vida matrimoniais - rígidos e limitadores do indivíduo - contrapõe-se
um desenvolvimento pessoal dos consortes, especialmente da mulher, que
ultrapassa de longe o desenvolvimento daquelas formas e hábitos do matrimô-
nio. Os indivíduos estariam agora desejosos de uma liberdade, de uma
compreensão e de uma igualdade de direito e educação, aos quais a vida
conjugal - como ela tradicional e objetivamente se cristalizou - não daria o
espaço necessário. O espírito objetivo do matrimônio, assim poderia ser
formulado, não acompanhou o desenvolvimento do espírito subjetivo. Da mesma
forma o direito: desenvolvido logicamente a partir de certos fatos básicos, fixado
em um código de leis e sustentado por um estamento especial, ele alcança a
perspectiva oposta, na qual as relações e necessidades da vida sentidas pelas
pessoas se contrapõem àquela rigidez, pela qual ele se transmite como uma
doença eterna, transformando a razão em contra-senso, o benefício em praga.
Na medida em que os impulsos religiosos se cristalizaram em um acervo de
determinados dogmas, e estes são sustentados por uma corporação
especializada, separada do conjunto dos fiéis, a situação da religião não é
melhor.

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Preste-se atenção a esta relativa autonomia de vida, com a qual as
formações culturais tomadas objetivas contrapõem ao sujeito a derrota dos
movimentos históricos elementares, e a questão do progresso na história
perderá muito de sua perplexidade. O fato de a prova e a contraprova ligarem-
na a cada resposta a esta questão com a mesma plausibilidade deve-se a elas
terem, freqüentemente, objetos distintos. Assim, por exemplo, pode-se afirmar,
com o mesmo direito, tanto o progresso como a imutabilidade na constituição
moral, caso se mire, por um lado, os princípios cristalizados, as organizações e
os imperativos que se elevaram à consciência da coletividade ou, por outro, a
relação dos indivíduos com esses ideais objetivos, a suficiência ou insuficiência -
com respeito à moral - do comportamento do sujeito. Progresso e estagnação
podem assim encontrar-se imediatamente emparelhados - e não apenas em
distintas províncias da vida histórica, mas em uma mesma província -,
dependendo de se ter em vista a evolução dos sujeitos ou a das formações.
Formações que em verdade surgiram das contribuições dos indivíduos, mas que
alcançaram uma vida espiritual própria, objetiva.
Ao lado da possibilidade de o espírito objetivo superar o desenvolvimento
do espírito subjetivo foi colocada a possibilidade inversa. Isto posto, retomo
agora a questão da significação da divisão do trabalho para a formação da
primeira possibilidade. Aquela dupla possibilidade se dá, resumidamente, da
seguinte maneira: o fato de o espírito objetificado em produções de qualquer tipo
ser superior ao indivíduo baseia-se na complexidade dos modos de produção,
que pressupõe um número extraordinário de condições históricas e objetivas e
de administradores e trabalhadores. Em função disso, o produto pode reunir em
si energias, qualidades e elevações que são completamente alheias a cada
produtor. Mas isso ocorre especialmente na técnica moderna, como resultado da
divisão do trabalho. Enquanto o produto era essencialmente fabricado por um
único produtor ou por intermédio de uma cooperação pouco especializada, o
conteúdo de espírito e de força nele objetivado não podia exceder
consideravelmente o conteúdo do sujeito. Somente a partir de uma divisão do
trabalho refinada, o produto específico transforma-se em uma junção de forças
selecionadas de uma diversidade de indivíduos. E esta junção dá-se de tal modo
que o produto deve ser visto como uma unidade e comparado a qualquer
indivíduo específico, excedendo-o, não obstante, em vários aspectos. Além

26
disso, esse acúmulo de qualidades e perfeições no objeto, que forma sua
síntese, é ilimitado, enquanto o aprimoramento das individualidades encontra -
em cada corte temporal dado - um limite irremovível em sua própria natureza.
Mas se o fato de a obra objetiva assimilar em si aspectos específicos de várias
personalidades concede-lhe uma possibilidade de desenvolvimento
objetivamente superior, ele também lhe nega, por outro lado, perfeições que
justamente só se realizam pela síntese de energias em um único sujeito.
O Estado, especialmente o Estado moderno, constitui o exemplo mais
abrangente deste caso. Quando o racionalismo rotulou de logicamente
contraditório o fato de o monarca - que seria apenas um único homem - reinar
sobre uma quantidade enorme de outros homens, ele não levou em
consideração que os últimos não são absolutamente "homens" no mesmo
sentido que o monarca o é, na medida em que eles justamente constituem esse
Estado sob o monarca. Eles alocam apenas uma certa fração de seu ser e de
suas forças no Estado, outras eles estendem a outros círculos, de modo que a
totalidade de sua personalidade não é açambarcada por nenhum círculo. Já o
monarca emprega a totalidade de sua personalidade na relação com o Estado,
estando, portanto, mais vinculado a ele que cada um de seus súditos por si.
Enquanto o regime for ilimitado, no sentido de o mandatário poder dispor
imediatamente sobre as pessoas em toda abrangência de seu ser, existirá
aquela desproporcionalidade. O moderno Estado de direito, ao contrário,
delimita exatamente a circunscrição na qual as pessoas penetram na esfera do
Estado. Ele diferencia aquela esfera do poder, para constituir-se a partir de
certos elementos retirados dela. Quão mais decisiva for essa diferenciação,
mais o Estado se colocará perante o indivíduo como uma formação objetiva,
desligada da forma do que é próprio do plano da alma individual. O fato de ele
ser uma síntese de elementos diferenciados dos sujeitos o toma algo cuja
essência é tanto sub como suprapessoal.
Uma relação idêntica a esta que observamos com respeito ao Estado dá-
se com todas as formações do espírito objetivo, que surgem mediante a junção
de realizações individuais diferenciadas, pois, não obstante essas formações do
espírito objetivo excederem cada intelecto individual em conteúdo espiritual
objetivo e em capacidade de desenvolvimento, nós as percebemos - na medida
em que aumentam a diferenciação e o número de elementos oriundos da divisão

27
do trabalho -, como mero mecanismo desprovido de alma. Neste ponto, a
diferença entre espírito e alma é claramente explicitada. Espírito é o conteúdo
objetivo daquilo que na alma se toma consciente em uma função viva; a alma é
a forma na qual o espírito, ou seja, o conteúdo lógico-objetivo do pensamento,
vive para nós. O espírito assim entendido não está portanto ligado à
configuração da unidade, sem a qual não há alma. É como se os conteúdos
espirituais lá estivessem espalhados de qualquer maneira e somente a alma os
reunisse unitariamente em si, aproximadamente como as matérias inorgânicas
são incluídas no organismo e compreendidas na unidade de sua vida. Aqui
temos tanto a grandeza como o limite da alma em relação aos conteúdos
específicos de sua consciência, observados em sua validade autônoma e em
sua significação objetiva. Pode Platão desenhar o reino das idéias como
perfeição luminosa e auto-suficiência absoluta - idéias que nada mais são que
os conteúdos objetivos do pensamento, desligados de toda casualidade da
representação - e parecer-lhe imperfeita, condicionada e crepuscular a alma do
homem, com seu reflexo pálido, confuso e quase imperceptível daquela
significação pura - para nós aquela claridade plástica e aquela precisão de
forma lógica não constituem a única escala de valor da idealidade e da
realidade. Para nós, a forma da unidade pessoal, na qual a consciência reúne o
sentido espiritual objetivo das coisas, tem um valor incomparável: somente nela
as coisas alcançam o contato uma com as outras, que constitui a vida e a força,
somente nela se desenvolvem aquelas radiações quentes e escuras das
faculdades afetivas, para as quais a perfeição clara de idéias determinadas de
modo puramente objetivo não tem lugar e não tem coração. Procedimento
análogo dá-se com o espírito, que, mediante a objetificação da nossa
inteligência, se contrapõe como objeto à alma. E a distância entre ambos
aumenta manifestamente à medida que o objeto é produzido pela atuação
conjunta - baseada na divisão do trabalho - de um número crescente de
personalidades; pois justamente em tal circunstância se toma impossível
trabalhar e avivar na obra a unidade da personalidade, na qual se ligam
exatamente o valor, o calor e a peculiaridade da alma para nós.
O fato de faltar ao espírito objetivo, em função da diferenciação moderna
de sua realização, justamente essa forma do que é próprio do plano da alma -.
fato que possui uma correlação estreita com a essência mecânica de nossos

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produtos culturais pode constituir a razão última da hostilidade com a qual
pessoas de natureza muito individualista e aprofundada se contrapõem agora,
tão amiúde, ao "progresso da cultura". E tanto mais, na medida em que este
determinado desenvolvimento da cultura objetiva - operado via divisão do
trabalho - constitui um lado ou uma conseqüência deste fenômeno geral: os
acontecimentos significativos do presente não ocorrem mais por intermédio dos
indivíduos, mas pelas massas. De fato, a divisão do trabalho acarreta que o
objeto específico já é um produto da massa; a decomposição dos indivíduos em
suas energias específicas - que determina nossa organização do trabalho - e a
reunião do que foi assim diferenciado em um produto cultural objetivo têm como
conseqüência que a presença de alma neste produto específico será
inversamente proporcional ao número de almas que participaram de sua
produção. O fausto e a grandeza da cultura moderna apresentam assim algu-
mas analogias com aquele radiante reino das idéias de Platão, no qual o espírito
objetivo das coisas, em sua perfeição imaculada, constitui o ser real, mas ao
qual faltam os valores da verdadeira personalidade, que não são diluíveis em
objetividades - uma carência que toda consciência do caráter fragmentário,
irracional e efêmero da personalidade não pode tomar imperceptível. O que é
próprio do plano da alma individual possui - como mera forma - um valor
específico que se afirma ao lado de toda inferioridade de valor e de toda contra-
idealidade de seu conteúdo; aquilo que é próprio do plano da alma permanece
como significação própria da existência, contraposto a toda objetividade desta,
mesmo naqueles casos - dos quais nós partimos - em que a cultura individual--
subjetiva mostra um retrocesso positivo, enquanto a cultura objetiva progride.
O dualismo dos valores, que se manifesta deste modo no des-
envolvimento da cultura, baseia-se, portanto, em um e no mesmo fato: a
separação e a especialização tanto dos fenômenos da alma como dos
fenômenos objetivos constituem o centro de rotação, ao redor do qual se
movimentam os dois valores. A diferenciação afasta cada vez mais a cultura
subjetiva da objetiva, de tal modo que, nesta movimentação paralela, o último
aparece como o elemento propriamente móvel enquanto o primeiro possui uma
estabilidade considerável; mas, na medida em que aquele movimento tem
simultaneamente duas direções - nos termos supracitados: a elevação do
espírito e o rebaixamento da alma - mesmo quando o elemento subjetivo

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permanece inalterado, ele modifica sua posição relativa com respeito ao
elemento objetivo, e aparece, por um lado, empurrado para baixo e, por outro,
deslocado para cima.
A relação que se estabelece entre o espírito tornado objetivo e seu
desenvolvimento, por um lado, e os espíritos subjetivos, por outro, é
manifestamente de extrema significação para cada comunidade cultural,
especialmente no que diz respeito a seu estilo de vida, pois se o estilo é uma
forma na qual distintos conteúdos se expressam na mesma medida, então a
relação entre o espírito objetivo e o subjetivo pode seguramente ser a mesma,
no que concerne à quantidade, altura e ritmo de desenvolvimento, mesmo na
eventualidade de conteúdos do espírito cultural assaz variados. Exatamente a
maneira geral como se passa a vida e a moldura que a cultura social oferece
aos indivíduos são circunscritas por perguntas que indagam se o sujeito tem sua
vida interior próxima ou estranha ao movimento objetivo da cultura de seu
tempo, se ele sente tal movimento como algo superior, do qual ele pode tocar
apenas a aba do vestido, ou se sente que seu valor pessoal é superior a todo
espírito rei ficado; se no interior de sua própria vida espiritual os elementos
objetivos, historicamente dados, constituem uma potência que obedece às suas
próprias leis, de tal modo que esta potência e o núcleo de sua personalidade
desenvolvem-se independentemente um do outro, ou se a alma, por assim dizer,
é senhora em sua própria casa, ou pelo menos pode supor uma harmonia - com
respeito à altura, sentido e ritmo - entre sua vida mais íntima e os conteúdos
impessoais que ela precisa acolher em sua vida interior. Essas formulações
abstratas indicam o esquema de incontáveis interesses concretos e disposições
cotidianas e da vida, e com isso indicam a medida na qual as relações entre a
cultura objetiva e a subjetiva determinam o estilo da existência.
A divisão do trabalho é responsável pela configuração atual desta
relação, mas esta é também uma descendente da economia monetária. Primeiro
porque a decomposição da produção em várias realizações parciais exige uma
organização que funcione com absoluta precisão e confiabilidade - o que, desde
a supressão do trabalho escravo, só é realizável mediante o pagamento em
dinheiro ao trabalhador. Toda relação entre empresário e trabalhador que fosse
mediada de outro modo incluiria elementos não passíveis de contabilização, em
parte porque uma remuneração natural não é tão facilmente arranjável, nem

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exatamente determinável, em parte porque somente a relação monetária pura
possui aquele caráter meramente objetivo e automático, sem o qual as
organizações muito diferenciadas e complexas não se sustentam. E, segundo,
porque o fundamento essencial do surgimento do dinheiro torna-se mais atuante
na medida em que a produção se especializa mais, pois, na circulação
econômica, um dá o que o outro deseja, desde que este outro faça o mesmo ao
primeiro. Aquela regra moral: faça ao próximo aquilo que gostaria que lhe
fizessem, encontra o mais abrangente exemplo de sua realização formal na
economia.
Se um produtor do objeto A, que ele quer trocar, encontra um freguês,
então ocorrerá que o objeto B, que este último está em condições de dar em
troca, freqüentemente não interessará ao primeiro. O fato de a diversidade dos
desejos de duas pessoas não coincidir sempre com a diversidade dos produtos
que ambos têm a oferecer exige, reconhecidamente, a inserção de um meio de
troca; de modo que, quando os proprietários dos produtos A e B não puderem
entrar em acordo quanto à troca direta, o primeiro entrega seu produto A em
troca de dinheiro, com o qual ele pode agora conseguir o produto C que
desejava, enquanto o proprietário de B arranja o dinheiro para a compra do
produto A, procedendo analogamente com seu produto B perante um terceiro.
Uma vez que é em função da diversidade dos produtos - ou dos desejos a ela
relacionados - que se cria a necessidade do dinheiro, o papel deste se toma
cada vez maior e mais imprescindível na medida em que a circulação envolve
uma variedade maior de objetos; ou, visto pelo outro lado: uma especificação
considerável da produção só é alcançada quando não se está mais vinculado à
troca imediata. A chance de que o comprador de um produto tenha um objeto
para oferecer, que justamente convenha àquele produtor, decresce na medida
em que a especificação dos produtos e dos desejos humanos se eleva. Neste
sentido, isso não configura um novo momento que vincula a diferenciação
moderna ao predomínio exclusivo do dinheiro; antes, a ligação entre ambos os
valores culturais já ocorre em suas raízes profundas, e o fato de as relações da
especialização - que descrevi - formarem, pela sua influência recíproca com a
economia monetária, uma unidade histórica perfeita constitui apenas a elevação
gradual de uma síntese da essência de ambas.
Na medida em que o estilo de vida depende da relação entre a cultura

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objetiva e a subjetiva, ele se vincula à circulação do dinheiro, por intermédio
dessa mediação. E com isso a essência da circulação do dinheiro é inteiramente
revelada, pela circunstância de ela ser responsável tanto pela preponderância
do espírito objetivo sobre o subjetivo, como pela reserva de elevação
independente e de desenvolvimento próprio do espírito subjetivo. Ambos, não
apenas porque a diferenciação na produção depende do dinheiro, e esta
diferencia concomitantemente a produção da personalidade, mas também por
meio da relação direta. O que permite à cultura das coisas se tomar uma
potência de tal modo superior à cultura das pessoas tomadas individualmente
são a unidade e a coerência autônoma alcançadas por aquela na modernidade.
A produção, com suas técnicas e seus resultados, aparece como um Cosmo -
com certezas e desenvolvimentos firmes e, por assim dizer lógicos - contraposto
ao indivíduo; à guisa do destino com respeito à inconstância e à irregularidade
de nossa vontade. Esta autonomia formal, essa necessidade interna que unifica
os conteúdos da cultura na categoria de par da ordem da natureza, toma-se real
somente por intermédio do dinheiro: o dinheiro funciona, por um lado, como o
sistema de articulação desse organismo; ele torna seus elementos móveis em
relação aos demais, ele produz uma relação de dependência e de continuidade
recíprocas de todos os impulsos entre esses elementos. Por outro lado, ele é
comparável ao sangue, cuja circulação contínua penetra todas as ramificações
dos membros, alimentando-as uniformemente e sustentando a unidade de suas
funções. E, no que toca ao segundo, na medida em que se coloca entre o
homem e as coisas, o dinheiro possibilita ao homem uma existência por assim
dizer abstrata, livre de considerações imediatas sobre as coisas f> de relações
imediatas com elas, sem prejuízo de uma certa probabilidade de
desenvolvimento de nossa interioridade; se o homem moderno, sob
circunstâncias favoráveis, conquista uma reserva de subjetividade, um mistério e
um isolamento do ser mais pessoal - que substitui algo do estilo de vida religioso
de tempos atrás -, isto é condicionado pelo fato de o dinheiro nos poupar, de um
modo sempre crescente, do contato imediato com as coisas, aliviando, ao
mesmo tempo, a dominação das coisas e facilitando infinitamente a escolha do
que nos convém. Em função disso, esses caminhos opostos, uma vez tomados,
aspiram a um ideal de separação absoluta, no qual todo conteúdo objetivo da
vida se toma cada vez mais objetivo e impessoal, para que o resto não rei ficado

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da mesma se tome mais pessoal, mais irrestritamente próprio do eu.
A máquina de escrever constitui um caso específico que exemplifica bem
este movimento: o escrever - uma atividade externa e objetiva que mantém para
cada caso uma forma individual característica - dispensa agora esta
característica individual em prol da conformidade mecânica. Mas, de outro lado,
com ela alcançou-se um duplo efeito: primeiramente, o texto atua agora
segundo seu conteúdo puro, sem receber apoio ou estorvo de sua plasticidade e
sem ostentar aquela revelação do que é mais pessoal, que a escrita à mão tão
amiúde comete, não importando se o conteúdo é íntimo ou não. Podem todas as
mecanizações deste tipo ter uma atuação socializante, elas elevam, no entanto,
a remanescente propriedade privada do eu espiritual a uma exclusividade
ciumenta. Sem dúvida, a expulsão do que é próprio do plano da alma de toda
exterioridade é contrária ao ideal estético de vida, do mesmo modo como ela
pode ser favorável ao ideal de vida da interioridade pura - combinação que
esclarece tanto o desespero atual de personalidades afinadas de modo
puramente estético como a leve tensão entre as almas deste tipo e aquelas
direcionadas apenas à felicidade interna, que cresce agora em formas como que
subterrâneas - totalmente distinta daquelas do tempo de Savonarola. Na medida
em que o dinheiro é tanto símbolo como causa da postura indiferente e da
exteriorização de tudo aquilo que se deixa tomar indiferente e exteriorizar, ele se
torna ainda guardião do que é mais íntimo, que agora pode se desenvolver nos
limites mais próprios.
Em que medida isto conduz agora àquele refinamento, àquela
peculiaridade e àquela interiorização do sujeito, ou, ao contrário, ao ponto onde
ao objeto rebaixado é permitido - justamente mediante a facilidade de sua
obtenção - tomar-se senhor sobre o homem - isto já não depende mais do
dinheiro, mas justamente do homem. A economia monetária mostra-se aqui
ainda em sua relação formal com as condições socialistas, pois a libertação da
luta individual pela existência, a asseguração dos bens econômicos
fundamentais e o fácil acesso aos demais puderam exercitar igualmente a
atuação diferenciadora, de modo que uma certa fração da sociedade se eleva a
um nível de espiritualidade até agora inaudito - nível este distante de todo
pensamento referente a questões mundanas -, enquanto uma outra fração se
afunda em um materialismo prático, igualmente inédito.

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Em uma perspectiva global, o dinheiro toma-se mais atuante naquele lado
de nossa vida cujo estilo é determinado pela preponderância da cultura objetiva
sobre a subjetiva. O fato de ele, no entanto, não se recusar a apoiar também o
caso inverso coloca o tipo e a abrangência de seu poder histórico sob a luz mais
clara. Poder-se-ia até compará-lo em alguns aspectos à língua, que se presta
igualmente a conduzir as mais divergentes direções do pensar e do sentir,
apoiando, elucidando e trabalhando. Ele é um daqueles poderes cuja
particularidade reside na ausência de particularidade, mas que, no entanto, pode
dar à vida colorações múltiplas, porque o aspecto meramente formal, funcional e
quantitativo que eles produzem vai ao encontro de conteúdos e direções da vida
qualitativamente determinados e os induz à geração ulterior de formações
qualitativamente novas. O fato de ele ajudar ambas as relações possíveis entre
o espírito objetivo e o subjetivo a alcançar a elevação e a maturação implica não
a anulação e sim o aumento, não a refutação e sim a comprovação de sua
significação para o estilo de vida.

Extraído de: Souza, Jessé e ÖELZE, Berthold. 1998. Simmel e a modernidade. Brasília:
UnB. p. 41-77.

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