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A Ideia de Europa
A Ideia de Europa
A Ideia de Europa
gradiva
Contracapa:
Começa assim...
«A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria
preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos
gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard
passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. [...]
Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores
essenciais da 'ideia de Europa.'»
... e termina assim este ensaio verdadeiramente admirável de George
Steiner:
«Com a queda do marxismo na tirania bárbara e na nulidade económica,
perdeu-se um grande sonho de — como Trotsky proclamou — o homem comum
seguir as pisadas de Aristóteles e Goethe. Liberto de uma ideologia
falida, o sonho pode, e deve, ser sonhado novamente. É porventura apenas
na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da
vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como
base. É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos
de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que 'a
vida não reflectida' não é efectivamente digna de ser vivida.»
ISBN 989-616-022-8
gradiva
9 789896 16022
GEORGE STEINER
A IDEIA DE EUROPA
Ensaio introdutório de Rob Riemen Prefácio de José Manuel Durão Barroso
gradíva
Prefácio
Cafés, nomes de ruas, as nossas raízes culturais profundas em Atenas e
Jerusalém: com o seu tom aparentemente ligeiro mas assente em sólida
erudição, George Steiner identifica a essência da ideia de Europa.
Nascido em Paris de pais judeus austríacos, repartindo a sua vida pela
Inglaterra e pela Suíça, este grande intelectual — e esta palavra aqui
tem todo o seu sentido positivo — abre-nos os olhos para novas formas de
encarar o velho Continente.
Fiel à sua natureza de pensador itinerante, Steiner «explica» a ideia de
Europa a partir da escala humana, da sua geografia, de filósofos,
artistas e professores, sempre em movimento, construindo passo a passo a
nossa cultura comum. E será por coincidência que dá eco às famosas
palavras de Jean Monnet sobre a construção da Europa «passo a passo»?
Porque, na
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vastidão dos seus conhecimentos, na diversificação dos seus interesses,
no seu espírito crítico e nas suas surpreendentes sínteses, George
Steiner revela-se alguém profundamente ligado à ideia de Europa.
Para um homem que uma vez se descreveu a si próprio como um «anarquista
platónico», não é surpreendente que considere a matemática, juntamente
com o pensamento e a música, uma das três actividades que definem e
dignificam homens e mulheres. E para ele, a Europa tem-se distinguido
nestes três domínios, criando um precioso depósito de conhecimento e
beleza para toda a humanidade.
Pode a ideia de Europa sobreviver às atrocidades e ao barbarismo, em que
o continente mergulhou na primeira metade do século xx? Talvez seja ainda
cedo para o descobrir. Mas George Steiner pensa que pelo menos vale a
pena tentar salvá-la e este curto mas intenso livro representa um pequeno
passo nessa jornada de reabilitação.
Reabilitação, relançamento, reconstrução... O actual momento europeu,
marcado pelo cepticismo e pela descrença, suscita ansiedades e reflexões
quanto ao «projecto» ou ã «grande ideia» que poderá orientar uma (por
alguns) desejada regeneração da Europa. É aliás interessante notar que
esta conferência de Steiner apontava já os sinais de desencanto que, mais
recentemente, os resultados negativos dos referendos sobre a Constituição
europeia, em França e na Holanda, vieram expressivamente confirmar. E
neste contexto surge o debate sobre o lugar da cultura no «projecto
europeu».
I
Quando Thomas Mann deixou a Europa, em 1938, para se instalar nos Estados
Unidos, observou, com toda a seriedade, numa conferência de imprensa dada
à sua chegada a Nova Iorque: «Wo ich bin, ist die deutsche Kultur.^> Para
muitas pessoas, esta declaração constituiu mais uma demonstração da
mundialmente famosa arrogância do autor. Todavia, o seu irmão, Heinrich
Mann, soube-a interpretar melhor. Nas suas memórias, Ein Zeitalter wird
besichtigt, inicia o capítulo «Mein Bruder» com o episódio atrás
mencionado, a que acrescenta: «Sabíamos agora o que o Fausto de Goethe
quis dizer, ao afirmar: 'Was du ererbt von deinen Vãtern hast/Erwirb es
um es zu besitzen.^'» As palavras de Thomas Mann, segundo o seu irmão
mais velho, não foram uma expressão de arrogância, mas de um profundo
sentido de responsabilidade.
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Steiner tem razão. Culturalmente, a Europa do século xx retrocedeu até à
Idade Média. E, tal como os mosteiros de então, é nosso dever preservar a
herança cultural e transmiti-la por todos os canais que tenhamos à nossa
disposição.» Isso explica a fabulosa biblioteca de Johan, a sua editora e
a sua livraria: Athenaeum, em Spui, Amesterdão. Foi também por isso que a
nossa revista Nexus teve de ser criada: para servir a cultura europeia, o
ideal europeu de civilização — embora, enquanto veículo transmissor de
uma herança cultural, a Nexus nunca tenha conseguido ser mais do que um
pequeno canal.
III
Em 1934, Thomas Mann teve de redigir o obituário de um homem que sempre
fora como um pai para si: Sammi Eischer, o seu editor húngaro judeu de
Berlim, o homem que, em grande medida, tornou possível a sua qualidade de
autor. Mann recordou a seguinte troca de palavras, durante o último
encontro que tivera com o homem idoso — já então muito doente — vários
meses antes. Eischer exprimia a sua opinião acerca de um conhecimento
mútuo:
— Kein Europãer, sagte er kopfschúttelnd.
— Kein Europàer, Herr Eischer, wieso denn nichts?
— Von groí?en humanen Ideen versteht er nichts.3
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humanismo europeu em que ele, desde tenra idade, foi educado pelo pai. Na
qual ele próprio se tornou professor, quando percebeu que tinha um dom:
«Convidar os outros para o significado.» Esta última expressão, «convidar
os outros para o significado», é a própria descrição de George Steiner, e
a mais profunda que conheço, para aquilo que significa ser Professor de
Humanidades.
IV
A obra de George Steiner pode ser entendida, entre outras coisas, como um
código moral intelectual:
O âmago de uma cultura são as suas obras clássicas— ou seja, intemporais.
São intemporais e imperecíveis porque o seu significado transcende a
morte. Nas palavras de Hõlderlin: «Was bleibet aber, stiften die
Dichter.5»
Característico das grandes obras é o facto de nos questionarem, de
exigirem uma reacção. O torso arcaico de Apoio do famoso poema de Rilke
diz-nos, sem margem para dúvidas: «Du sollst dein Leben ãndern.6»
Não recuemos perante a dificuldade. Espinoza: «Todas as coisas excelentes
são tão difíceis quanto raras.»
Só os néscios ignoram a importância da tradição, do facto e do
conhecimento. Hõlderlin: «Wir sind nur Original, weil wir nichts
wissen.7»
5 «O que permanece, é fundado pelos Poetas.» (N. do E.)
6 «Deves mudar a tua vida.» (N. do E.)
7 «Só somos originais, porque não sabemos nada.» (H. do E.)
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A Ideia de Europa
'
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria
preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos
gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard
passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo.Não há
cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia.
Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no
século xviii. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado
galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á
um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais
e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o
bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-
maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença
programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum
assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente
permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a
posterestante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de
Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de
oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da
Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da
eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia
política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou
Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar.
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na sua academia nenhum homem que não fosse geómetra. Todavia, ele próprio
dirigiu o intelecto ocidental rumo a questões universais de sentido,
moral, direito e política. Como A. N. Whitehead afirmou celebremente, a
filosofia ocidental é uma nota de rodapé a Platão e, poder-se-ia
acrescentar, a Aristóteles e Plotino, a Pafménides e Heraclito. O ideal
socrático da vida reflectida, a demanda platónica de certezas
transcendentes, as investigações aristotélicas das relações problemáticas
existentes entre a palavra e o mundo, estabeleceram a via tomada por
Tomás de Aquino e Descartes, por Kant e Heidegger. Assim, estes três
notáveis dignitários do intelecto humano e da formação da sensibilidade —
música, matemática, metafísica — subscrevem a afirmação de Shelley de que
«somos todos gregos».
Mas a herança de Atenas estende-se até muito mais longe. O vocabulário
das nossas teorias e dos nossos conflitos políticos e sociais, do nosso
atletismo e da nossa arquitectura, dos nossos modelos estéticos e das
nossas ciências naturais permance saturada de raízes gregas, em ambos os
sentidos da palavra. «Física», «genética», «biologia», «astronomia»,
«geologia», «zoologia», «antropologia» são palavras derivadas
directamente do grego clássico. Por seu lado, os nomes trazem consigo,
tal como a própria «lógica», uma visão específica, uma cartografia
particular da realidade e dos seus amplos horizontes. É um exagero, mas
um exagero eloquente, da parte de Heidegger, afirmar que uma falsa
tradução do grego «sendo» ou «ser» para o latim de Cícero determinou o
destino da Europa.
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Mas não é exagero acrescentar que este destino não deriva menos do legado
de Jerusalém. Não existe praticamente nó na textura da existência
ocidental, da consciência e da consciência de si próprios dos homens e
das mulheres ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha
sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao positivista,
ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O desafio monoteísta, a
definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o
conceito de um Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável
em relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de História
enquanto tempo revestido de propósito, têm origem na singularidade
enigmática e na dispersão de Israel. É um lugar-comum citar Marx, Freud e
Einstein (eu acrescentaria Proust) como progenitores da modernidade, como
artesãos da nossa condição actual. Mas subjacente ao lugar--comum
encontra-se uma situação extremamente complexa: a do Judaísmo secular e
da tradução para termos e valores seculares de antecedentes profundamente
judaicos. A paixão de Marx pela justiça social e o historicismo
messiânico estão em acordo directo com os de Amos ou Jeremias. A estranha
pressuposição de Freud de um crime original — o assassínio do pai —
espelha, eloquentemente, o cenário da queda de Adão. Há muito que se
encontra maravilhosamente próximo da promessa dos salmos e de Maimónidas
na confiança que Einstein tem na ordem cósmica e na sua recusa tenaz do
caos. O Judaísmo e as suas duas notas principais de rodapé, o
Cristianismo e o Socialismo Utó-
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pico, são descendentes do Sinai, mesmo nos locais onde os Judeus mais não
eram que um punhado de pessoas desprezadas e perseguidas."
As relações nunca foram fáceis. A obsessão pela tensão entre judeus e
gregos levou à invenção da cristandade por Paulo. Os Doutores da Igreja
estão ansiosamente alertas para o magnetismo dual da Atenas
'* A minha mulher e eu tivemos o privilégio de sermos convidados por
Nadine Gordimer para a sua bela casa na Cidade do Cabo durante os maus
momentos, os momentos que antecederam a libertação. Ela convidou os
chefes do ANC, do Movimento de Resistência Nacional, incluindo os chefes
militares, para jantar. Os carros da Polícia estavam estacionados à porta
e anotavam os nomes de todos os convidados, mas não tocaram em Nadine.
Estava-se completamente seguro. Anotavam simplesmente quem chegava para o
jantar. Em toda a minha vida, o meu dom principal tem sido uma falta de
tacto assinalável — confesso-me culpado. Assim, perguntei finalmente
àqueles três grandes chefes: «Ouçam, a ocupação pelas Waffen SS foi muito
má: eles eram muito bons a ocupar. Mas, de tempos a tempos, matava-se um
dos sacanas. Vocês não tocaram num homem branco. Nem um. Em Joanesburgo,
os números são de treze para um. Na rua, basta fechar os braços para
sufocar uma pessoa branca. Nem sequer é preciso ter armas. Treze para um.
Que diabo se passa?» Um dos chefes do ANC disse: «Eu posso responder. Os
cristãos têm os evangelhos, vocês, judeus, têm o Talmude, o Antigo
Testamento, o Mishnah, os meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das
Kapital. Nós, negros, não temos nenhum livro.»
Foi um momento tremendo, para mim. A herança de Atenas a Jerusalém, de
que temos um livro, de que temos vários livros. Aquela foi uma resposta
avassaladoramente triste e persuasiva: «Não temos nenhum livro.»
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Num momento não menos trágico, não muito antes da sua morte solitária,
Edmund Husserl proferiu a famosa palestra sobre «A filosofia e a crise do
homem europeu». A Europa, afirma Husserl, «designa a unidade de uma vida
espiritual e uma actividade criativa». Esta espiritualidade criativa tem
o seu local de nascimento. A «ciência-filosofia», como Husserl
desastradamente lhe chama, originou-se na Grécia antiga. É o milagre
ático, ter entendido que as ideias «de uma forma maravilhosamente nova,
segregam em si próprias infinidades intencionais». Estes horizontes levam
a uma historicidade nova e determinante. Outras culturas e comunidades
fizeram descobertas científicas e intelectuais. Mas só na Grécia antiga
se desenvolve a dedicação à teoria, ao pensamento especulativo
desinteressado à luz de possibilidades infinitas. Além disso, apenas na
Grécia clássica, e na sua herança europeia, o teórico se aplica ao
prático sob a forma de uma crítica universal de toda a vida e seus
objectivos. Há uma distinção marcada entre esta fenomenologia e o tecido
«prático-mítico» dos modelos do Extremo Oriente e da índia. O acto
fulcral de conjecturar, thaumazein, e do desenvolvimento lógico-teórico é
platónico e aristotélico na sua essência. Daí, em última análise, o
avanço da ciência e da tecnologia europeia, e depois americana, sobre
todas as outras culturas. O processo global é um processo de idealização
no qual mesmo a noção de Deus «é, por assim dizer, logicizada e torna-se
mesmo o veículo do logos absoluto». A Europa esquece-se de si própria
quando se esquece de que nasceu da ideia da razão e do espí-
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