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2018 Revista HABITUS Bravas Mulheres - Habitus
2018 Revista HABITUS Bravas Mulheres - Habitus
DISCUTINDO GÊNERO
ATRAVÉS DA EXPOGRAFIA*
ARTIGO
LOREDANA RIBEIRO**
DANIELE BORGES BEZERRA***
JOZILÉIA DANIZA JAGSO KAINGANG****
PRISCILA CHAGAS OLIVEIRA*****
ROSEMAR GOMES LEMOS ******
DOI 10.18224/hab.v16i1.6006
Concebida a partir de dois segmentos transversais de contestação, a narrativa expográfica
tanto rejeita os discursos hegemônicos e elitistas de patrimônio quanto busca fomentar a crí-
tica ao masculinismo do discurso científico/acadêmico que constrói representações do passado
supostamente neutras, mas que naturalizam as desigualdades de sexo, gênero, raça-etnia,
sexualidade e classe que existem hoje. Bravas Mulheres é uma exposição de fotografias, coisas
e narrativas de sujeitas que resistiram e resistem à subalternização, seus processos de afirma-
ção individual e coletiva, seus mundos materiais, saberes e subjetividades.
mônio é aquilo que faz lembrar o pai (CHOAY, 2001). Outrossim, há um paradoxo
embutido no patrimônio cultural como um projeto que busca resguardar as alterida-
des ou as diversidades culturais, todavia com uma face universalista, com uma “lógi-
ca racionalista fundada em conceitos e categorias ocidentais” (ABREU, 2013, p. 4).
Atualmente a ideia de patrimônio tem sido articulada mais como ação que
como comunicação, buscando valorizar outros sujeitos, especialmente aqueles por mui-
to tempo menosprezados pelos estudos históricos. Portanto, falar em patrimônio no
século XXI significa tocar em uma dimensão polissêmica do reconhecimento (PRATS,
1998, p. 63), que diz respeito à escritura de memórias plurais legitimadas pelo direito
à memória (RICOUER, 2007). A dilatação do campo patrimonial, com a inclusão
de novos patrimônios e novos agentes, passa a se refletir tanto na democratização da
escolha dos acervos que se musealizam e/ou patrimonializam como na concepção das
narrativas expográficas.
Nesse contexto teórico, ganha destaque a museologia de gênero com seu dis-
curso crítico sobre o papel social e político dos museus e suas exposições e a reivindi-
cação da memória e dos patrimônios na perspectiva de mulheres para promoção da
visibilidade e valorização de sua participação ativa na vida social, política e cultural,
tanto no passado como no presente (VAQUINHAS, 2014). A origem dessas discussões
remota à década de 1970 e às críticas ao modelo tradicional de comunicação museológi-
ca, uma das principais pautas da Nova Museologia,1 e à entrada da crítica feminista no
campo patrimonial, contestando o silenciamento e a ausência de mulheres nos espaços
de memória. Aida Maria Rechena, por exemplo, analisando a representação da mulher
em exposições de museus portugueses, observa que as imagens existentes nos acervos e
nas exposições não são aproveitadas, como podem ser, como base para a reflexão sobre
a situação atual das mulheres (RECHENA, 2011). No Brasil, Joana Flores Silva (2016;
2017) tem analisado o discurso de museus de Salvador sobre as mulheres negras, discu- 6
tindo como as exposições permanentes as apresentam sempre como sujeitas subalternas,
como ama de leite, cuidadora, etc., - a ‘mãe preta’ - ou como mulheres escravizadas, de
um jeito ou de outro sempre servil e impossibilitada de pensar.2
Com Bravas Mulheres – modos de estar e reXistir na cidade, uma expografia
híbrida, de comunicação intermuseal3 (ROQUE, 2010), buscamos refletir sobre gê-
nero, raça-etnia, classe e sexualidade como eixos transversais e não hierarquizáveis de
opressão. Uma reflexão sobre interseccionalidade e restituição da pesquisa. Neste texto,
buscamos explicitar essa reflexão tanto através da narrativa escrita, onde descrevemos o
projeto expográfico propriamente dito e exploramos contextos empíricos de aplicação
da crítica teórica, quanto através da narrativa audiovisual que a exposição oferece. Para
isso, o texto está organizado em quatro partes além desta introdução.
Inicialmente discutimos a concepção da exposição, expondo algumas das
questões teórico-metodológicas com as quais lidamos na idealização e planejamento da
Bravas Mulheres. Em seguida são descritos os quatro núcleos que compõem o circuito
de visitação, explicitando seus conteúdos críticos. Os trechos em itálico que apare-
cem nas próximas páginas correspondem a textos expositivos, principalmente textos
de abertura dos núcleos da exposição, mini-biografias e transcrições de narrativas das
protagonistas da exposição e, uma vez ou outra, textos de legenda ou apresentação de
itens expostos. A descrição de cada núcleo contém uma apresentação da concepção da-
quele recorte conceitual em particular e sua conexão narrativa com os demais núcleos.
A parte seguinte do texto tenta dar uma pequena mostra da narrativa audiovisual da
Galeria de Retratos
O povo indígena Kaingang é conhecido por sua habilidade na confecção de cestarias. Este
artesanato tradicional é utilizado em diversas atividades cotidianas, os balaios e tuias para
armazenamento e transporte de alimentos, os arcos e flechas foram indispensáveis no tempo
das caçadas, quando ainda tínhamos matas em abundância e rios não poluídos, os adornos,
são parte da nossa caracterização nos rituais e festas. As mulheres Kaingang têm partici-
pação essencial na confecção de todos os objetos e durante todo o processo da confecção, na
busca da taquara, embora não façam o corte da mesma, auxiliam os homens no transporte,
raspam a taquara, trançam o seu Rá (sua marca) no artesanato e ensinam as crianças sobre
suas metades tribais durante a confecção da cestaria. Com o território reduzido, sem lugar
para praticar o cultivo tradicional, sem matas e rios para a caça e pesca, muitas famílias de-
pendem do comércio deste artesanato para sua sobrevivência (caso vivenciado atualmente
pela comunidade Kaingang em Pelotas).
Bem mais do que simples formas estéticas de desenhos de artesanatos ou pinturas corporais,
os grafismos Kaingang concentram o entendimento da estrutura social/dualista deste Povo. 12
A sociedade não indígena conhece os formatos geométricos dos desenhos Kaingang, princi-
palmente por estarem presentes em suas cestarias, que são comercializadas nas zonas urba-
nas das grandes cidades e nas cidades que estão no entorno de suas Terras Indígenas. O que
a maioria das pessoas da sociedade não indígena desconhece é que muito além dos desenhos
geométricos, aquelas figuras possuem toda uma identidade que caracteriza os Kaingang,
estando a figura aberta relacionada à metade Kamé e a figura fechada à metade Kanhru,
intimamente ligadas ao dualismo clânico, exogâmico e complementar que os estrutura so-
cialmente. Outro suporte em que comumente temos visto os grafismos indígenas deste povo
é na indumentária do gaúcho. Na pilcha do gaúcho reconhecemos nossas marcas, nosso Rá,
que é usado sem fazer menção alguma aos seus donos. As figuras geométricas para muitos
gaúchos apenas adornam sua vestimenta, são poucos os materiais publicados do movimento
nativista que remete aos indígenas o pertencimento destes desenhos e infelizmente nenhum
material traz a história da identidade relacionada a eles (Texto expositivo de apresentação
do Núcleo 2, autoria Joziléia Daniza Kaingang).
Em vitrines de acrílico sobre uma mesa foram exibidas peças arqueológicas oriundas
A gente produzia as bonecas com restos de roupas, tecidos de roupas que não serviam mais,
porque não tinha, naquela época, até pra ganhar um retalho era difícil. A gente não tinha
dinheiro pra comprar, então nós produzia tudo feito na mão, não tinha nada feito em máqui-
na, a gente não tinha máquina. Então a gente se reunia em uma tarde, em um horário fora
de aula, se encontravam as gurias e iam fazendo as bonequinhas, tudo costuradinha, botava
cabelinho, vestia, botava sapatinho. E ai depois a gente se reunia com elas pra brincar, a gente
saia a passear, fazia umas carrocinhas de lata de óleo. Ai nós fazia elas passear, elas iam em
Pelotas, elas iam em Canguçu. Ai todas elas tinham nome, era uma família inteira. O pai
das crianças, tinha a mãe das crianças, tinham as crianças, e tudo tinham nome. A gente
chamava uns nomes estranhos, era “Nêga”, tinham uns nomes muito esquisitos, de todo o tipo
[...] O brinquedo tudo era igual: a gente fazia a caminha, fazia guarda-roupinha de caixinha
de remédio, a gente montava uma casinha pra elas. E aí nós tinha uma família inteira (Texto
que acompanha as bonecas de pano. Transcrição de depoimento de Carmem Lúcia dos Santos,
Grupo de Mulheres Artesãs da Comunidade Quilombola de Maçambique, Canguçu/RS).
Figura 11: Balaios, grafismos Kaingang em lã sobre tear de tachinhas e traje gaúcho adornado com
grafismos indígenas
Nota: fotografia de Priscila C. Oliveira. 20
Figura 12: Família de bonecas de pano confeccionada por Carmen Lucia dos Santos, do Grupo de
Enquanto para a maioria de nós foi um desafio realizar uma exposição com
acervo tão variado, para todas nós foi um desafio articular objetos, fotografias, áudios,
plantas, peixes e outras coisas numa narrativa feminista. Do ponto de vista teórico,
a expografia da Bravas Mulheres dialoga com dois pontos chave da crítica feminista
contemporânea: a interseccionalidade (CRENSHAW, 1991; BRAH, 2006, etc.) e a
neutralização das dinâmicas de poder e hierarquias sociais que caracterizam a ciência
como prática dominante (HARAWAY, 2004; KELLER, 1985; HARDING, 1986, en-
tre outras). Essa neutralização envolve a implementação de formas igualitárias e cola-
borativas de produção de conhecimento, envolve prestar contas aos sujeitos da pesquisa
e às pessoas afetadas pelo processo de pesquisa e seus resultados (WYLIE, 2007); o
quê, por sua vez, também se configura como parte fundamental da abordagem co-
municacional intermuseal que circunda o pensamento museológico contemporâneo
(ROQUE, 2010).
Bravas Mulheres não é, evidentemente, resultado de um trabalho colaborativo;
a exposição foi pensada, organizada e exibida em menos de 50 dias e envolveu interlo-
cução com pessoas de contextos sociais diferentes e por vezes muito distantes entre si,
inclusive geograficamente. Colaboração não acontece num estalar de dedos. Mas Bra-
vas Mulheres é uma prestação de contas, uma investida em outras formas de restituição
da pesquisa a nós pouco usual. Sua concepção é tributária das reflexões disciplinares
que as autoras desse artigo têm tido em suas pesquisas com coletivos tradicionais, com
o movimento social e com a colonialidade. Para nós, pesquisadoras, o maior mérito da
restituição através da expografia é justamente o desafio carregado por novas abordagens
da prática e apresentação das disciplinas acadêmicas. Estamos acostumadas a escrever
23 e falar (ensinando), essas são nossas tecnologias principais de produção e circulação de
conhecimento. Ambas têm a academia como ambiente circundante e público de desti-
no. Restituição da pesquisa implica em sair dessa zona de conforto.
O hibridismo da exposição – a justaposição de textos, imagens, oralidade,
objetos, texturas e cheiros – torna o discurso das pesquisadoras mais acessível àquelas
e àqueles que não dominam as técnicas da literatura escrita, facilitando a restituição
(sensu SCHOENI, 2014). Nosso objetivo com Bravas Mulheres foi não apenas tornar o
conhecimento produzido na universidade mais acessível a públicos heterogêneos, mas
fazer circular e estimular discussões inclusivas, antirracistas e antissexistas. É impor-
tante refletir criticamente sobre os efeitos das práticas usuais do discurso expográfico
neutro e universal, tão comum aos museus brasileiros, e os estereótipos de pessoas não
identificadas com o ideário moderno de homem-heterossexual-branco-cristão-burguês
que, intencionalmente ou não, essas práticas articulam. Esses estereótipos são opresso-
res, eles atuam na desvalorização e desvantagem social dos grupos sociais que têm como
alvo. Questionamentos e reformulação de conceitos nessa área já motivaram a censura
e o cancelamento de exposições, evidenciando o quanto ainda precisamos investir para
de fato transformar o papel social e político do museu e suas exposições, perturbando
seus alicerces burgueses e colonialistas. Nesse sentido, tanto o trabalho de campo para
realização de Bravas Mulheres quanto a encenação expositiva podem ser considerados,
ambos, como “métodos de pesquisa e, portanto, situados num continuum de elaboração
e produção do conhecimento” (SCHOENI, 2014, p. 90).
Nesse sentido, a experiência de concepção, organização, curadoria e monta-
Goiânia, 16, n.1, p. 5-27, jan./jun. 2018.
gem da exposição foi (é) boa para pensar o potencial de acervos arqueológicos e etno-
gráficos para discutir gênero, memória e identidade, não através da produção de um
conhecimento higienizado e transcendente sobre alteridade e passado, mas através de
discussões legitimamente construídas na relação entre pesquisadoras/es, acervos e in-
terlocução com pessoas do presente, cujas memórias e trajetórias de vida possam posi-
cionar e corporificar o conhecimento produzido. A ideia é que a perspectiva de pessoas
alvo dos eixos múltiplos e simultâneos de opressão (gênero, sexualidade, raça, classe
e mais) seria a mais favorável para observação e produção de conhecimentos trans-
formadores da estrutura hegemônica e opressiva (HARAWAY, 2004; WILEY, 2012;
ENGELSTAD, 2007). Esses são os conhecimentos localizados, situados, que Donna
Haraway (1995) propõe que sejam a versão feminista da objetividade, de certo modo
respondendo à velha pergunta que volta e meia nos aflige: “conhecimento pra quem e
pra quê?”. Essa é uma restituição necessária, aquela que possa oferecer argumentos aca-
dêmicos passíveis de ser instrumentalizados na política cotidiana da vida das pessoas.
AGRADECIMENTOS
Adelina Duarte Nunes, Aldeia Indígena Kaingang Nãn Ga, Aldeia Indígena
Mbyá Kapi'i Ovy, André Vallia, Andréa de Oliveira Lopes, Beatrice Gavazzi, Bibliote-
ca Publica Pelotense, Bruno Ribeiro, Bruna Fortes Thedim Sardilli, Carla Ávila, Car-
mem Lúcia dos Santos, Caroline Araujo Pires, Caroline Borges, Cleusa Duarte Soares,
Daisiane Santos Robaina, Edi Venske, Ely Carlos Petry Junior, Eva Lopes, Ericsson
Amorim, Flávia Silveira Pinto, Gabriel Oliveira, Genecy da Silva Freitas, Gustavo Jar-
del Coelho, Grupo de Mulheres Artesãs da Associação Quilombola de Maçambique,
Heloisa Helena Ferreira Duarte, Julia Dias, Luis Fernando Rodrigues Ferreira, Maria
Conceição Duarte da Rosa, Maria Heloisa Martins da Rosa, Maria Vilhalva Mbyá, 24
Marielda Barcellos Medeiros, Mateus Peçanha, Melissa Christ Rovere, Mikaela Bar-
cellos Medeiros, Nice Duarte Nunes Machado, Nicole Xavier, Patricia Morales, Ponto
de Cultura Kanhgág Jãre da Terra Indígena Serrinha, Priscilla Pinheiro Lampazzi,
Rafael Milheira, Redeiras - Grupo de Artesãs da Colônia de Pescadores São Pedro,
Renan Silva do Espirito Santo, Rosane Rubert, Santa Rosária Ulguim da Silva, Sarah
Schimidt, Secretaria de Cultura de Pelotas, Sidney Vieira, Simone da Silva Cardozo,
Simone Ortiz, Sirley Amaro, Tatieli Silveira, Tiago Kickhöfel.
Abstract: This paper presents the experience of conception and execution of an expography of
genderthat taps in the potential of archaeological and ethnographiccollections to promote
debates about sexism, racism, homophobia and other common practices of daily oppression.
Conceived from two transversals segments of dispute the exhibit rejects the elitist and hegem-
onic discourses as much as it feeds the criticism about the masculinism scientific/academic
discourse that forms supposedly neutral representations of the past that naturalizes all the
gender, race-ethnicity, sexuality and class inequities that exists nowadays. Bravas Mulheres
is a display of photos, things and narratives of subjects that resisted and resist the subjuga-
tion, their process of collective and self-affirmation, their material worlds, knowledge and
subjectivities.
Notas
Referências
ABREU, Regina. Dinámicas de patrimonialización y "comunidades tradicionales".
In: CHAVES, Margarita; MONTENEGRO, Maurício; ZAMBRANO, Marta. El
valor delpatrimonio: mercado, políticas culturales y agenciamientossociales. Bogotá:
ICANH, 2013, p. 1-25.
BEZERRA, Marcia. As moedas dos índios: um estudo de caso sobre os significados
Goiânia, 16, n.1, p. 5-27, jan./jun. 2018.