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Princípios elementares da propaganda de guerra https://www.resistir.info/crise/propaganda_de_guerra.

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Princípios elementares da propaganda


de guerra
– Um livro de Anne Morelli [*]

Élucid

Anne Morelli retoma, em dez


“Princípios”, os grandes
ensinamentos intemporais do
pacifista Arthur Ponsonby
(1871-1946). Estes princípios
permitem explicar como os governos
passados, actuais e futuros
manipulam os povos e convencem a
opinião pública do bom fundamento
de uma guerra, da necessidade de
travar um conflito ocultando sempre os seus objectivos
reais: dominação económica e expansionismo. O
presente texto é uma síntese da obra.

Plano da obra:
I. A sacralização da “nossa” causa
II. A retórica do constrangimento
III. A diabolização do inimigo
IV. A importância de convencer das benfeitorias da
guerra

I. A sacralização da "nossa" causa

Nas sociedades modernas, o desencadeamento de


uma guerra deve necessariamente ser aceite pela
população. Além disso, é essencial dar uma

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justificação moralmente aceitável para um conflito


armado, a fim de garantir a adesão da opinião pública.
Nada pode ser empreendido se a população não tiver
o sentimento de que o seu país se empenha numa
guerra cavalheiresca, por uma causa nobre.

Princípio número 4: “Parece bem que a natureza


humana queira que cada grupo se apresente como
agindo pelo bem comum”.

Os Estados Unidos recorreram frequentemente a este


princípio. Aquando da Primeira Guerra do Golfo, seu
discurso caracteriza-se, na aparência, pela vontade de
agir “pelo bem comum”: vamos em socorro de um
pequeno país invadido (o Kuwait) e, não importa que
este seja uma terrível ditadura, trata-se de defender o
direito internacional e a liberdade dos povos! Da
mesma forma, a “Guerra contra o terrorismo” permitiu-
lhe justificar, sob a cobertura da exportação da
democracia, a ocupação do Afeganistão ou do Iraque.

Naturalmente, as verdadeiras motivações são


inconfessáveis: dominação geopolítica, económica,
etc. Aqui, a propaganda desempenha portanto um
papel crucial dissimulando as motivações reais da
guerra para propagar a ideia de que se combate por
nobres ideais, ao contrário dos nossos inimigos.
Combate-se assim para preservar a independência e a
honra do nosso país, até mesmo a de outros países, a
exemplo da primeira intervenção americana no Iraque.

O recurso ao argumento religioso é um argumento


clássico da propaganda para a guerra. Para tornar a
guerra “uma cruzada”, ela é feita em nome de Deus. O
princípio número 9 enuncia com efeito que “Deus
patrocina muito imparcialmente todos os beligerantes”.

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Desde sempre, Deus assegura aos combatente uma


“imunidade” moral e espiritual. Os exemplos históricos
são numerosos.

Da Alemanha nazi ao messianismo americano


passando pelas guerras de religião da Idade Média,
um ponto comum a todos os beligerantes: Deus nos
acompanha e deseja a vitória da nossa causa. Os
combatentes desfrutam então de uma verdadeira
vantagem psicológica, uma vez que são persuadidos
ao mesmo tempo de participar de uma missão
civilizadora e convencidos de que os crimes que
cometerão para o seu cumprimento estão perdoados
antecipadamente.

Entretanto, se bem que os valores religiosos sejam


sempre utilizados como motivação, novos conceitos
sacralizados apareceram: economia de mercado,
democracia liberal e defesa da “civilização”.

Combatemos ao lado de minorias oprimidas,


injustamente perseguidas. O móvel da guerra
humanitária é assim um álibi moral de peso para a
ingerência nos assuntos políticos dos países fracos.
Com tudo isso, os fins públicos apregoados para
promover o conflito junto à opinião pública (defender
os direitos da pessoa ou a democracia) jamais são
atingidos, ao contrário dos objectivos amorais: fins
económicos, preponderância geoestratégica, etc. “As
motivações não eram nem humanitárias nem
altruístas, mas o essencial é ter feito a opinião pública
nelas acreditar quando duvidava do bom fundamento
do conflito”.

O conjunto da população deve ser mobilizado por trás


da Causa Sagrada (quer ela seja fundamentada sobre

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a religião ou sobre argumentos modernos, como a


defesa da democracia), em suma por trás do Estado. A
propaganda repousa sobre a emoção, que deve ser
suscitada por profissionais, artistas e intelectuais
autorizados pelo Estado para dar a impressão de que
toda a Nação apoia a guerra.

Princípio número 8: “É necessário que artistas e


intelectuais conhecidos apoiem as iniciativas belicosas
e que as apresentem de maneira positiva”.

O recurso aos intelectuais tomou diversas formas na


história: intelectuais divulgaram pretensas atrocidades
alemãs durante a Grande Guerra; artistas de Music-
Hall trouxeram seu apoio às tropas francesas durante
a Segunda Guerra Mundial; grandes programas de
televisão, fazendo intervier artistas e intelectuais,
foram difundidos em favor dos bombardeamentos da
NATO durante a guerra da Jugoslávia; etc. Hoje, são
as agências de comunicação que substituem a acção
artística de propaganda.

O conflito deve ser exaltado: os cantores da guerra


são amplamente difundidos e suas acções são
valorizadas nos media, ao contrário dos que se opõem
ao conflito que são marginalizados. E ai daqueles que
ousassem por em causa as versões oficiais! Mesmo
nas democracias modernas isso aparece como traição.

Não se hesita no recurso a procedimentos ditatoriais


para amordaçar vozes dissidentes. Com efeito,
conforme o Princípio número 10, “aqueles que põem
em dúvida a propaganda são traidores”. Citemos o
exemplo da Guerra da Jugoslávia ou do Afeganistão
em que “os hesitantes foram rapidamente vítimas de
ostracismo” quando não muito simplesmente

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arrastados na lama em praça pública.

Aquele que se interroga e que se interessa pelos


argumentos das duas partes é logo considerado como
cúmplice do inimigo. Os próprios media mainstream
não podem assegurar um pluralismo real, sob o risco
de passarem por traidores. A União Sagrada é
obrigatória em tempos de guerra. Contudo, a razão
exigira que se levantasse contra o seu Estado quando
ele está errado.

II. A retórica do constrangimento

A guerra é impopular. Convém assim, para os


decisores, dissociarem-se apresentando-se como
grandes defensores da paz. As ditaduras agressivas
tal como as democracias – presumivelmente pacíficas
– procuram adornos virtuosos.

Para legitimar a acção armada ela é colocada numa


retórica de constrangimento: não é culpa nossa que
tenha estalado a guerra; não queríamos senão a paz e
contudo fomos constrangidos a recorrer à força,
sempre em nome da legítima defesa ou para respeitar
– ou fazer respeitar – diversos compromissos
internacionais.

Princípio número 1: “Se todos os chefes de Estado e


de governo são animados por vontades de paz
semelhantes, pode-se evidentemente perguntar
porque mesmo assim se desencadeiam as guerras?

O exemplo mais impressionante continua a ser o da


Primeira Guerra mundial em que cada um de todos os
beligerantes rejeitam a responsabilidade pelo conflito.

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Aquando da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha


nazi, igualmente, apresenta-se como vítima das
potências aliadas (com uma hipocrisia notável tendo
em vista a ausência de reacção destas diante das
sucessivas anexações).

A propaganda então apresenta o inimigo como um


agressor que não respeita nenhum compromisso,
nenhum tratado e que, naturalmente, arca com a
responsabilidade total pelo desencadeamento do
conflito. Um vocabulário de “reacção” a uma
“vergonhosa provocação” é frequentemente utilizado.
Geralmente os beligerantes utilizam este mecanismo
quer estejam ou não na iniciativa do enfrentamento.
Esta propaganda é tanto mais eficaz porque a
percepção que se pode ter do desencadeamento de
um conflito muda em função do campo, porque todas
as partes envolvidas num conflito se apresentam como
vítimas de agressão e porque a determinação da
qualidade de agressão permanece nublada.

O Princípio número 2 segundo o qual “Foi ele que


começou” “foi muito amplamente aplicado pela
propaganda ocidental: o inimigo nos despreza, não
poderemos permanecer expectantes, vamos ser
obrigados a mostrar-lhe a nossa força”.

III. A diabolização do inimigo

É preciso dar um rosto ao inimigo, personificá-lo. Os


líderes inimigos constituem ferramentas perfeitas para
este fim. Assim, são feitos aparecer como seres
imundos e bárbaros, para por em causa sua
legitimidade. Trata-se de diabolizá-los, por vezes
comparando-os a Hitler tanto mentalmente como

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fisicamente! A técnica continua eficaz hoje em dia: o


público tem necessidade de “bons” e de “maus”. Toda
discussão ou interrogação calma sobre o bom
fundamento do conflito é tornada impossível. A
contestação de um conflito contra um novo Hitler é
muito simplesmente proibida.

Segundo o Princípio número 3, “é preciso concentrar o


ódio do inimigo sobre o líder adversário. O inimigo terá
um rosto e este rosto será evidentemente odioso. Este
espantalho dissimulará a diversidade da população
que ele dirige, em que o simples cidadãos poderia
encontrar os seus alter ego”.

Muito utilizado nas Duas Guerras Mundiais, o Princípio


funcionou igualmente para as duas Guerras do Golfo,
desde períodos de tensões com o Irão.

Toda guerra implica a perpetração de atrocidades.


Naturalmente, para a propaganda de guerra, só o
inimigo comete atrocidades de maneira voluntária e
regular. Estas “Lendas negras”, estes horrores
cometidos pelo inimigo, são frequentemente
exagerados, até mesmo inteiramente inventados! Os
governos têm interesse em deixar que lendas e
rumores se propaguem, para instrumentalizá-los em
favor de uma intervenção militar para exemplo. O,
segundo o Princípio número 5: “as violências, de um
campo ou do outro, podem certamente serem mais ou
menos cruéis, desproporcionadas segundo as ordem
dadas e as circunstâncias, mas a propaganda deve
fazer-nos acreditar que elas são unicamente o feito do
inimigo. Nós mesmos só podemos provocar erros por
inadvertência ou por engano”.

Durante a Primeira Guerra mundial, a lenda das

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“crianças belgas com mãos cortadas pelos alemães”


foi fortemente transmitida pelas propagandas dos
Aliados. Ela foi particularmente eficaz para executar a
diabolização das tropas alemãs, sobretudo em França.

Nossas tropas, pelo contrário, são irrepreensíveis,


amadas por todos, mesmo pela população inimiga. De
qualquer modo, sempre segundo a propaganda oficial,
as democracias não podem cometer atrocidades ou
fazer o mal senão involuntariamente. Mas, “ao
contrário do que pretende a propaganda de guerra,
não é de maneira cavalheiresca ou não que são
conduzidas”.

Nunca se recorda suficientemente a importância do


uso das palavras na propaganda de guerra: em nosso
favor, utiliza-se uma linguagem asséptica, moderna e
globalmente neutra como “deslocamento de
população”. Mas quando se trata de descrever as
acções do inimigo utilizam-se termos assustadores,
“genocídio, carnificina, ocupação...”, mesmo quando
aquilo nada tem a ver com a realidade. “As únicas
atrocidades interessantes para a propaganda são
aquelas que podem ser politicamente exploradas”.

A superioridade tecnológica determina a saída de um


conflito. Pretende-se que a arma do inimigo não é
legítima quando não é possuída pelo seu lado.
Descredibilizar a legalidade dos meios inimigo permite
sobretudo justificar, junto à opinião pública, o
lançamento de “guerras preventivas”. O Princípio
número 6 enuncia com efeito que “uma vez mais, a
arma dos covardes é aquela de que não temos – ou
não podemos ter – o uso...”

A aplicação mais recente deste princípio encontra-se

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na Segunda guerra do Golfo, com as famosas “armas


de destruição maciça” de Saddam Hussein,
completamente inexistentes, mas que permitiram
legitimar a intervenção americana sobre este território.

IV. A importância de convencer das


benfeitorias da guerra

Para manter o moral dos combatentes e da


retaguarda, a propaganda minimiza as perdas e
exagera as do inimigo. As perdas humanas e
financeiras são minoradas, ao contrário, o conflito é
apresentado como uma grande oportunidade
económica. Além da minimização das perdas, pode-se
fazer acreditar que os inimigos se rendem em massa
aos nossos valorosos soldados...

Os media oficiais não hesitam em retomar


maciçamente estes argumentos, sempre com o
objectivo de promover o conflito e impedir a população
de duvidar. Segundo o Princípio número 7, “[...]
Quando parece difícil poder passar totalmente sob
silêncio uma derrota magistral, a importância deste
pode contudo ser claramente minimizada pelos media
quase unânimes em difundir a versão oficial”.

Mesmo em caso de derrota absoluta, esta deve ser


passada sob silêncio, a propaganda deve convencer
do contrário, sempre para mobilizar a sua população e
cortar rente todo embrião de debate ou de contestação
sobre o assunto.

Pontos a reter:
Eis os dez mandamentos intemporais de Lord
Ponsonby, desenvolvidos, analisados e actualizados

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na obra de Anne Morelli:


Princípio 1: Nós não queremos a guerra.
Princípio 2: O campo adversário é o único responsável pela guerra.
Princípio 3: O inimigo tem o rosto do diabo.
Princípio 4: Nós defendemos uma causa nobre.
Princípio 5: O inimigo comete atrocidades deliberadamente.
Princípio 6: O inimigo utiliza armas ilegais.
Princípio 7: Nós sofremos muito poucas perdas.
Princípio 8: Os artistas e os intelectuais nos apoiam.
Princípio 9: Nossa causa é sagrada.
Princípio 10: Aqueles que põem em causa a propaganda são
traidores.

Os beligerantes de todos os lados utilizam estes


estratagemas para obter a aceitação pública do
conflito. Trata-se de técnicas de manipulação
utilizadas tanto por democracias como por ditaduras.
Historicamente, nenhum Estado foi capaz de travar
uma guerra sem o apoio da sua opinião pública.
Embora as verdadeiras razões do conflito sejam
sempre as mesmas – dominação económica e
geopolítica, apropriação de recursos naturais –
convém apresentar aos cidadãos motivos legítimos,
drapejados de motivos humanitários e benevolentes.
Em tempos de guerra, a propaganda deve ser usada
para esmagar o espírito do povo e aniquilar qualquer
espírito crítico por parte da população, que deve apoiar
o seu exército, o seu país e os seus dirigentes sem
reservas.
20/Outubro/2021

A obra pode ser encomendada à:


www.librairie-renaissance.fr/9782930402994-
principes-elementaires-de-propagande-de-guerre-
anne-morelli/

[*] Nascida em 14/Fevereiro/1948, é professora na

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Universidade Livre de Bruxelas (ULB) onde ensina


crítica histórica e história das religiões. Começou
a sua carreira de escritora e investigadora na
década de 1970, declarando-se então de extrema-
esquerda. Ganhou notoriedade com os seus
Principes élémentaires de propagande de
guerre (2001). Prosseguiu a seguir seu trabalho
científico sobre as seitas. Recebeu o prémio
“Femmes de Paix”, concedido pelo Senado belga,
pela sua actividade como presidente das
associação Femmes pour la paix.

O original encontra-se em
elucid.media/democratie/principes-elementaires-
de-propagande-de-guerre-anne-morelli/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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