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Português 9.

º Ano
2012 /2013

SÍNTESE DAS CENAS DO AUTO DA BARCA DO INFERNO DE GIL VICENTE


CENA 1
O diálogo entre o Diabo e o seu Companheiro constitui o primeiro momento da ação do auto. O Diabo, eufórico, dá
ordens ao seu companheiro para preparar rapidamente a caravela antes de chegarem os passageiros. O Companheiro
executa as ordens recebidas com rapidez e entusiasmo. O ambiente é de festa e o Diabo anseia que tudo esteja
preparado para o embarque das almas e para a partida rumo ao Inferno.

CENA 2 - FIDALGO
O Fidalgo, Dom Anrique, é a primeira personagem a entrar em cena e traz consigo um
manto e um pajem (criado) que segura uma cadeira. Estes elementos cénicos simbolizam
os seus pecados (vaidade, tirania, poder) e também possibilitam identificar a classe social
a que pertence. O Fidalgo representa assim uma classe social - a Nobreza.
Por pertencer à Nobreza, o Fidalgo pensa que não vai para o Inferno. Além de se
considerar superior aos outros pelo estatuto social, mostra-se altivo quando se dirige à
barca do Anjo, mas este recusa-se a deixá-lo embarcar. De novo junto ao batel infernal, o
Fidalgo acha que a sua mulher e a amante rezam pela sua alma, de forma que pode ir para
o Céu, mas é humilhado pelo Diabo, que zomba dele. Acaba por demonstrar
arrependimento por ter acreditado que o seu estatuto social seria sinónimo de salvação e,
por fim, resigna-se à sua sorte, e entra na barca do Diabo. O pajem, que transporta a
cadeira, é mandado embora pelo Diabo.

CENA 3 – ONZENEIRO
A segunda personagem a entrar em cena é o Onzeneiro, que viveu a sua vida a amealhar
dinheiro à custa dos outros, emprestando dinheiro com um juro excessivo (11% - onzena). O Diabo
quer que ele entre desde logo na sua barca, mas o Onzeneiro, recusando, dirige-se à barca da
Glória.
Aqui, o Onzeneiro é repelido pelo Anjo que o acusa de cobiça e ganância. De facto, o Onzeneiro
traz uma bolsa tão grande que quase não cabe na barca, mas diz estar vazia. Pede ao Diabo que o
deixe voltar à terra para ir buscar o dinheiro e o Diabo obriga-o a embarcar.
Através desta personagem, Gil Vicente critica a ganância, a exploração e a cobiça do usurário e
denuncia aqueles que fazem fortunas desonestamente, explorando as necessidades alheias.

CENA 4 – JOANE, O PARVO


A terceira personagem a entrar é o Parvo, chamado Joane, que insulta o Diabo, quando este o convida a
entrar na barca. Por ser uma personagem simples e ingénua, que não se pode responsabilizar pelos seus
atos, o Anjo promete levá-lo para o Paraíso e manda-o aguardar no cais.
O discurso e o vocabulário insultuoso utilizado pelo Parvo em relação ao Diabo provocam o riso.
Também a sua maneira de ser, ingénua e irresponsável, é jocosa. Contrariamente às outras personagens, o
Parvo não transporta nenhum objeto, o que comprova a sua simplicidade. Também não é feita nenhuma
crítica ao seu comportamento. O Parvo tem, portanto, uma função cómica, ajudando igualmente a
caracterizar as outras personagens, mostrando os seus vícios e pecados.

CENA 5 – SAPATEIRO
O Sapateiro, João Antão, é a quarta personagem a apresentar-se no cais, com o seu avental e carregado
de formas de sapatos, que, para além de identificarem a sua profissão, representam os seus pecados.
Como passou a vida a roubar o povo em solas e cabedais, será condenado ao Inferno. Uma vez que se
confessou e comungou, ouviu missas, deu esmolas / pagou promessas e rezou, tenta a salvação junto do
Anjo. Este rejeita-o e, sem alternativa, o Sapateiro entra na barca do Diabo. O Sapateiro, apesar de
executar as práticas do culto religioso, foi desonesto, não seguiu os princípios religiosos e, por isso, foi
castigado.
Com esta personagem, o autor quis mostrar que o cumprimento das práticas religiosas (como ir à missa,
comungar ou oferecer donativos à igreja) não é suficiente para a salvação da alma. Assim, estamos
perante uma crítica à hipocrisia, à falsa moral religiosa, e também à desonestidade praticada pelos
pequenos artesãos no seu ofício.
CENA 6 – FRADE
O Frade Brabriel é a quinta personagem e entra em cena a cantar, trazendo consigo uma moça,
Florença, sua amante. Está convencido de que vai para o paraíso e que será perdoado graças à sua
condição de frade. Por baixo do hábito, o Frade traz o traje de esgrimista e faz uma demonstração ao
Diabo para mostrar que é um bom praticante da modalidade. Depois da lição de esgrima, o Frade,
acompanhado da amante, dirige-se à barca do Anjo que o ignora e o reprova de tal forma que nem
sequer lhe dirige a palavra. É o Parvo que denuncia a sua vida de pecado e de libertinagem. Sem mais
alternativas, conformado, o Frade entra com a sua amante na barca do Inferno.
Através destes recursos, Gil Vicente tece uma crítica feroz ao Clero. Temos um frade que gosta dos
prazeres mundanos como o canto, a dança, a esgrima e o namoro quando deveria dedicar-se
exclusivamente às práticas religiosas e cumprir o seu votos de castidade.

CENA 7 – ALCOVITEIRA
A Alcoviteira Brízida Vaz é a sexta personagem a entrar em cena e, embora tenha vivido da
prostituição das moças, altiva perante o Diabo, acha-se digna de ir para o céu. A Alcoviteira
considera-se uma mártir por ter sido vítima de perseguição por parte da Justiça (açoitada),
argumenta que fez “cousas mui divinas”, que “forneceu” as moças para o clero, orientou-as
para arranjarem maridos ou amantes, refere que “converteu” mais moças do que Santa Úrsula,
de forma que se acha meritória do Céu. O discurso argumentativo da Alcoviteira perante o
Anjo, pejado de palavras carinhosas, também não convence. Depois da condenação do Anjo,
resignada, Brízida Vaz entra na barca do Diabo.
Mais uma vez, Gil Vicente critica a sociedade em que vive. A existência da profissão imoral
de Brízida Vaz e a sua pertinência na sociedade revela a decadência e a devassidão dos bons
costumes no séc. XVI. O próprio clero, que deveria simbolizar de alguma forma a castidade e os
bons costumes, é denunciado.

CENA 8 – JUDEU
A sociedade portuguesa do século XV discriminava as pessoas em função da religião. A maioria cristã considerava
inferiores as minorias como os Judeus e os Mouros. No entanto, a rivalidade existiu sobretudo em relação ao povo judeu
devido à sua superioridade económica e intelectual. A riqueza dos Judeus era cobiçada pelos cristãos.
A sétima personagem a entrar em cena é um judeu que traz um bode às costas. O Judeu,
provavelmente chamado Semah Fará, dirige-se diretamente à barca do Diabo com o objetivo de
comprar a passagem para ele e para o bode. O Diabo recebe-o com desprezo, ao contrário da
satisfação com que recebeu os outros passageiros, e não o quer deixar entrar na barca. Depois da
discussão sobre o embarque do bode, o Parvo denuncia os seus pecados – a profanação dos templos
cristãos e o consumo de carne em dias de jejum. O Diabo acaba por permitir que ambos se desloquem
a reboque da barca - «ireis à toa».
O bode, que esta personagem traz consigo e que representa a sua religião, era usado pelos Judeus
na “cerimónia do bode emissário”, que simbolizava a remoção dos pecados de Israel. Durante a
cerimónia, o sacerdote colocava as mãos sobre o bode (chamado “azazel” ou emissário) e,
simbolicamente, transferia para ele os pecados do povo. O animal era, depois, levado para o deserto,
onde não houvesse habitação. Assim, os pecados jamais seriam relembrados. O bode significa,
portanto, a salvação dos pecados, a purificação, o que explica o apego do Judeu a este animal, mesmo
depois da morte.
Com esta personagem, Gil Vicente dá-nos a conhecer como eram vistos os Judeus na sua época. De facto, eles eram
vistos como indivíduos fanáticos pela religião e muito apegados ao dinheiro. O Judeu deste Auto nem depois de morto
questiona a sua religião, nem se aproxima da Barca da Glória e insiste em levar o bode, assim como em pagar a
passagem. O Diabo não fica satisfeito com a presença do Judeu e decide transportá-lo a reboque da barca, o que reflete
a atitude discriminatória dos cristãos da altura.
CENA 9 – CORREGEDOR E PROCURADOR
É habitual considerar-se a entrada do Corregedor e do Procurador como fazendo parte de uma só cena, na medida
em que ambas as personagens pertencem ao mesmo grupo socioprofissional e
percorrem o espaço cénico simultaneamente, apesar de entrarem em momentos
diferentes.
O Corregedor chega ao cais carregado de processos jurídicos e com a vara na
mão. O Diabo acusa-o de imparcialidade, corrupção e exploração de lavradores
ingénuos. O Corregedor defende-se, argumentando que um juiz não pode ser
condenado e que era a sua mulher quem recebia os subornos.
Entretanto, o Procurador, carregado de livros, chega também ao cais e
encontra o Corregedor, de quem foi cúmplice na prática fraudulenta da Justiça.
Os dois conversam e, enquanto o Procurador admite não se ter confessado antes
de morrer, o Corregedor afirma que o fez, mas omitindo alguns pecados para
não ter de devolver o dinheiro roubado.
Ambos se dirigem à barca da Glória para tentar a salvação e, depois de serem acusados pelo Anjo e insultados pelo
Parvo, veem-se obrigados a embarcar para o Inferno. A cena termina com uma discussão entre o Corregedor e Brízida
Vaz.
Algumas das falas do Corregedor e do Procurador estão em latim. O uso desta língua permite colocar as personagens
num nível socioprofissional superior e é uma forma de mostrar a sua presunção e a sua pretensa erudição. O Diabo e o
Parvo também utilizam esta língua, embora de forma macarrónica, o que cria um efeito cómico.
O Corregedor e o Procurador representam a justiça terrena, de forma que a condenação de ambos permite a
denúncia da corrupção dos magistrados e a crítica à parcialidade por parte de homens cultos e responsáveis pela justiça
humana.
Gil Vicente alarga a crítica de corrupção aos Judeus ( «E as peitas dos judeus») e aos escrivães («Irês ao lago dos
cães / e verês os escrivaes / como estão tão prosperados»).
Nesta cena temos também uma crítica explícita à prática hipócrita da religião. O ato de confissão religiosa consiste
na responsabilização e arrependimento sincero do crente pelos seus pecados e na absolvição dos mesmos por parte do
confessor. Ora, o sacramento da confissão do Corregedor não é válido pois este praticou-a de forma falsa e interesseira,
sem franqueza, humildade e verdade.

CENA 10 – ENFORCADO
O Enforcado é a décima personagem a chegar ao cais e a dirigir-se ao batel do Diabo. Este pergunta-lhe o
que disse Garcia Moniz, um possível tesoureiro da Casa da Moeda de Lisboa. Ora, o Enforcado foi convencido
por Garcia Moniz de que a morte na forca era uma forma de purificação dos pecados e que a prisão era o lugar
dos escolhidos, da “santa gente” e por isso acreditou que iria para o Paraíso. Desenganado e desiludido pelo
Diabo, resta-lhe entrar na barca do Inferno.
Na cena do Enforcado, Gil Vicente satiriza a tese da salvação da alma e da purificação dos pecados através
da morte na forca. O Enforcado parece ser mais uma vítima da sua ingenuidade do que propriamente culpado.
Como até hoje não se possuem dados documentais concretos sobre Garcia Moniz, esta cena continua envolta
em dúvida.

CENA 11 – OS QUATRO CAVALEIROS


Quatro Cavaleiros, trazendo a Cruz de Cristo, entram a cantar no cais e dirigem-se à
barca da Glória. Ao passarem à frente da barca do Inferno, o Diabo, confuso com a
indiferença dos Cavaleiros, manda-os entrar na sua barca. Os Cavaleiros, com
superioridade, afirmam que quem morre em nome de Jesus Cristo, não entra na barca do
Inferno. Na sua barca, o Anjo já esperava os mártires da Igreja que refere merecerem
“paz eternal”. O Auto termina com os Cavaleiros a embarcar rumo ao Paraíso.
Na cantiga dos Cavaleiros está condensada a moralidade da peça, isto é, a vida
terrena consiste numa preparação definitiva para a condenação ou salvação depois da
morte. Aqueles que vivem conscientes da transitoriedade da vida e da inevitabilidade da morte, que temem a
condenação eterna e trabalham em nome de Deus serão salvos. Assim, temos a preparação para a vida eterna como
explicação para a vida terrena, segundo a ideologia católica.

Adaptado a partir de © Escola Virtual

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