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COPYRIGHT DESTA COLETÂNEA © Peter Burke, 1997 Sumário

Publicado originalmente por Polity Press em associação com


Blackwell Publishers Ltd., 1997
TITULO ORIGINALINGL~S
Varieties of Cultural History
CAPA
Evelyn Grumach
PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite PREFÁCIO 7
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Leny Cordeiro AGRADECIMENTOS 9

EDITORAÇÃO ElETRONICA
Art Une
1. Origens da história cultural 11
2. A história cultural dos sonhos 39
3. História como memória social 67
4. A linguagem do gesto no início da Itália moderna 91
CIP-BRASIL. CATALOGAÇAO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 5. Fronteiras do cômico no início da Itália moderna 113
Burke, Peter, 1937- 6. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses
B973v Variedades de história cultural/ Peter Burke, tradução de
Alda Pono. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
no século XVII 137
Tradução de:Varieties of cultural history
7. Esferas pública e privada na Gênova de fins do
1. Civilização - Historiografia. 2. Civilização - História. Renascimento 159
3. Cultura - Historiografia. L Título. 8. Cultura erudita e cultura popular na Itália
CDD-909 renascentista 177
99-1756 CDU - 93
9. A cavalaria no Novo Mundo 195
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou 10. A tradução da cultura: o Carnaval em dois
transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito. ou três mundos 213
11. Unidade e variedade na história cultural 231
Direitos desta edição adquiridos pela BCD União de Editoras S.A.
Av. Rio Branco, 99 /20? andar, 20040-004, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Telefone (21) 263-2082, Fax / Vendas (21) 263-4606 BIBLIOGRAFIA 269

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


INDICE 307
Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970

Impresso no Brasil
2000
2 A história cultural dos sonhos
~~(;9r~

' ou menos na u'I nma


' -" muitas areas da VIida humana antes ~~Jf~o
Mais geraçao, ~1I.~<tr

nsideradas inalteráveis foram reivindicadas como territórios do his- f~l\~~


"~I~
lonaiad oro A Ioucura, por exemp Io, graças a M'IC h eI FI'oucau t; a m fâan- fAl 1'0-
'1'!1-

ia, graças a Philippe Aries; os gestos (Capítulo 4); o humor (Capítulo :: 1t;~
); e mesmo os cheiros, estudados por Alain Corbin e outros, foram tiA ota5"
incorporados à história.t Nesse movimento de colonização, os histo-
ri dores em geral- com notáveis exceções como Reinhart Koselleck e
[ncques Le Goff - dedicaram relativamente pouca atenção aos c
( nhos.? Este ensaio apresenta um reconhecimento histórico do terri-lt1r~ti;
rório onírico. Quase todos os indícios foram extraídos do mundo de~~]í,;~--
hn ua inglesa no século XVII, mas a verdadeira questão do 'ensaio é )J~~'l.O.

lc f nder a possibilidade de uma história cultural do sonhar. Não uma


lustória da interpretação dos sonhos, por mais interessante que possa
(r.3 Uma história dos próprios sonhos.

r ORlAS DOS SONHOS


-rto?-;l\

A idéia de que os sonhos têm uma história é negada, pelo menos em 11!~
t III'l0Simplícitos, pelo que se poderia chamar de teoria "clássica" dos ~:.!:J!l~
11111if' (AcIO; ~-
ct'~ld~l\l•..IJ'I'-
I Foucault (1961); Aries (1960); Corbin (1982), 'Jt!.5~I..

2 Koselleck (1979); Le Goff (1971,1983,1984),


1 Price (1986); Kagan (1990), 36-43,

41
VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

sonhos, apresentada por Freud e Jung.4 Segundo eles, os sonhos têm antropólogos psicólogos, formados nas duas disciplinas, além de tra-\
dois níveis de significado, o individual e o universal. No nível indivi- balhar em duas culturas. Em um estudo pioneiro, Iackson Lincoln
dual, Freud considerava os sonhos como manifestações dos desejos ugeriu que se podiam encontrar dois tipos de sonho em culturas pri-
inconscientes do sonhador (uma visão que ele mais tarde modificou mitivas, ambos com significados sociais. O primeiro tipo era o sonho
para explicar os sonhos traumáticos das vítimas de choques causados pontâneo ou "individual", cujo conteúdo manifesto refletia a cultu-
por bombardeios). Jung, por sua vez, afirmava que os sonhos desem- rn, enquanto o conteúdo latente era universal. O segundo tipo, Lin- ~~'àf'-
penhavam várias funções, como a de avisar ao que sonha dos perigos coln chamou-o de sonho "padrão da cultura" , que em cada tribo cor- CU_TU~'
de sua maneira de viver ou compensá-lo por suas atitudes conscientes. I pondia a um estereótipo estabelecido por aquela cultura. Nesses

No nível universal, Freud dedicou especial atenção a penetrar por bai- .l os, mesmo o conteúdo latente do sonho era influenciado por sua fJr! ,6,.rei-
rnllJ~j
ultura. Em suma, em uma determinada cultura, as pessoas tendem a cvUVv.~!
xo do conteúdo manifesto do sonho para chegar a seu conteúdo
latente. Sugeriu, por exemplo, que nos sonhos "todos os objetos alon- ter determinados tipos de sonho.> I ~~rc
iSfli.m

São afirmações fortes, mas os indícios em sua defesa também são ~ t


~rM!1"~'

~~gados (... ) podem representar o órgão masculino", e todas as caixas o


Jo~':~~tero; que reis e rainhas representam em geral os pais do sonhador; e lortes. Os mais famosos exemplos de sonho padrão da cultura vêm Osij".lI~:
4II-flJ!A

assim por diante. Explicou o conteúdo manifesto em termos de resí- do índios da América do Norte e, em particular, dos Ojibwa, que vi- cJD~ .!.Ovt!1i
duos diários, mas e~sa questão continuou à margem de sua principal viam no que hoje são os estados de Michigan e Ontario. Os sonhos
preocupação. lcsempenhavam um importante papel na cultura deles, pelo menos
Já Jung tinha maior interesse que Freud pelo conteúdo manifesto uues de 1900, ou por volta disso. Os meninos não podiam atingir a
dos sonhos, mas também ele tratou alguns símbolos oníricos como m.ituridade sem participar do que se chamava do "jejum de sonho".
universais; o Velho Sábio, por exemplo, e a Grande Mãe eram em sua I.rnrn mandados para a floresta por uma semana ou dez dias, para es-
opinião "arquétipos do inconsciente coletivo". Os dois teóricos cha- pcrar a chegada dos sonhos. Os Ojibwa acreditavam que seres sobre-
maram a atenção para a analogia entre sonho e mito, mas Freud ten- n.uurais se apiedariam dos meninos quando os vissem jejuando e
dia a interpretar os mitos em termos de sonho, e Jung em geral inter- vir! m em seu socorro, dando-lhes conselhos e tornando-se seus espí-
!}fJ.LL"f:4 pretava os sonhos em termos de mito. Nem Freud nem Jung trataram guardiães para toda a vida. Esses seres sobrenaturais aparecem
"
IItO
,U,V(L.CUl..

IlI •• (I\ os símbolos oníricos como fixos, embora tenham muitas vezes sido 11\ forma de animal, inclusive pássaro. O admirável é que os sonhos
! SiJ!IA'
:;l! criticados por não o fazer. Estavam preocupados demais com o nível ri s pareciam vir quando solicitados, pelo menos após alguns dias
JUAL.e o. individual para imobilizar os significados dessa maneira. É na negli- I i jum, um estado claramente indutor de visões. Tomemos um,
~y~~' gência da teoria clássica com um terceiro nível de significado dos so- cmplo relatado pelo antropólogo americano Paul Radin:
, :~~t nhos, intermediário entre o individual e o universal- o nível cultural

~::I
ji~:'~:
ou social -, que ela é mais criticada.
A defesa da atribuição de significados sociais ou culturais aos
sonhos foi feita pela primeira vez por antropólogos, em particular por
onhei que estava às margens de um lago e não tivera nada para
omer durante algum tempo. Perambulava por ali em busca de comi-
da havia bastante tempo quando vi um pássaro. Ele se aproximou de
p1 06
p.s.~.'f~,
I 4 Freud (1899); Jung (1928, 1930, 1945), ~lincoln (1935); cf. D'Andrade (1961).

42 43
VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

onde eu me encontrava e falou comigo, dizendo-me que eu estava não surpreende, pois o que os pais queriam ouvir era um sonho sobre
perdido e um grupo saíra à minha procura, mas na verdade preten- os símbolos essenciais da cultura.
diam atirar em mim, em vez de me resgatar. O pássaro então voou, Só alguns povos tinham o jejum de sonho entre suas práticas cul-
mergulhou no lago e me trouxe um peixe para comer; disse que eu turais, mas em outras partes também os sonhos acompanham os este-
teria sorte na caça e na pesca; que eu viveria até uma idade bem avan- reótipos da cultura local. Uma cobra-d'água desempenhava um
çada; e que eu jamais seria ferido por espingarda de caça nem rifle. importante papel nos sonhos dos índios Hopi, estudados pela antro-
Esse pássaro que me abençoou era da espécie em que raras vezes se póloga Dorothy Eggan. Por exemplo: "Eu voltava para casa na aldeia
tem a chance de atirar. Daquele dia em diante, o mergulhão-do-nor- onde morava. As pessoas estavam assustadas. Crianças correram em
te se tornou meu espírito guardião. minha direção e me disseram que tinha uma cobra-d'água grande no
lago, erguendo-se a mais de doze metros acima da água e fazendo um
Neste caso, o informante não era um menino, mas um velho lembran- barulho terrível."
do a infância, e talvez em retrospecto tornasse o sonho mais claro do Sonhos com cobras e serpentes não são incomuns em outras cul-
que fora originalmente. O elemento de satisfação de um desejo no turas, e Freud os interpretou como símbolos do órgão genital mascu-
sonho é óbvio. A afirmação de "que na verdade pretendiam atirar em lino. Contudo, a cobra-d'água desempenha um importante papel nos
mim" é interessante como manifestação de um sentimento agressivo mitos dos Hopi, onde representa a autoridade. Esses mitos eram ensi-
pelos adultos que o haviam mandado jejuar na floresta. nados às crianças Hopi, e sua visualização facilitada por meio de
Supondo-se que essa versão de jejum de sonho, colhida na fonte rituais dramáticos. Por isso, não chega a surpreender que essa imagís-
original, seja razoavelmente correta e característica, permanece o pro- tica sempre retome nos sonhos delas, embora não se exigisse de nin-
blema de explicar por que ocorreu na verdade o sonho padrão da cul- guém que tivesse sonhos de determinado tipo. É razoável sugerir que
tura. Sem a menor dúvida, o jejum ajudou, e também a expectativa de 1 cobra-d'água tivesse o mesmo significado tanto nos sonhos quanto
que um sonho desse tipo fosse se apresentar. Um sonho vago poderia nos mitos dos Hopi: autoridade.?
ser bem assimilado pelo estereótipo e ao mesmo tempo relatado e lem- A hipótese de que os sonhos têm um significado cultural foi con-
brado de uma maneira culturalmente adequada. É possível que os firmada por dois estudos sobre os zulus, dos aldeões de Rajastan, de
meninos sem sorte sufiéiente para ter sequer um sonho do tipo certo n gros em São Paulo e de estudantes em Tóquio e Kentucky.ê Exarni-
recorressem à invenção, embora não fique claro nas etnografias se 1\ dos juntos, esses estudos sugerem, como faz a obra de J. S. Lincoln,
conseguiam ou não descobrir de antemão que tipo de sonho os adul- que os sonhos são moldados de duas maneiras pela cultura daquele
tos queriam ouvir. Às vezes ocorria o sonho errado e era rejeitado. Em que sonha.
outra história relatada por Radin, "o pai do menino chegou e pergun- Em primeiro lugar, os símbolos oníricos podem ter determinados
tou-lhe com o que ele sonhara. O menino contou-lhe, mas não era o i nificados em determinada cultura, como no exemplo da cobra-
que o pai queria ouvir, e por isso ele o mandou direto de volta ao je- t' gua entre os Hopi. Quando uma pessoa sonha com um mito, não
jum".é Mas cedo ou tarde o tipo certo de sonho se apresentava, o que

I 6 Radin (1936); cf, Hallowell (1966).


7 Eggan (1966).
s Carsrairs (1957), 89ff.; Bastide (1966); Griffith et aI. (1958).

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

devemos tomar por certo, como parecem tazer Jung e seguidores, que OS SONHOS NA HISTÓRIA
isso é uma recriação espontânea do mito, um "arquétipo do incons-
ciente coletivo". Devemos começar por perguntar se ela está ou não Que têm essas observações concludentes a ver com a história cultural?
consciente do mito. Uma das objeções possíveis é que as variações no fato de pessoas terem sonhado no passado e às vezes registrado seus
conteúdo manifesto dos sonhos não é importante; a sociologia dos nhos é uma condição necessária, mas não suficiente para que os his-
sonhos fica superficial se levar apenas à conclusão de que os mesmos toriadores se interessem por eles. Se os sonhos não têm significado, os
temas ou problemas básicos são simbolizados de diferentes modos em historiadores não teriam por que se interessar por eles. Se o significa-
diferentes sociedades. Essa questão da importância relativa do con- I universal dos sonhos fosse o único, eles se limitariam a anotar a
teúdo manifesto dos sonhos é uma das questões polêmicas entre psi- " corrência em sua época de sonhos com vôos, perseguições ou perdas
cólogos, e na qual os historiadores não devem se intrometer. Contu- I. dentes, e passar logo para outros tópicos. .
o~.·s-
do, permite observar que, se pessoas de uma determinada cultura so- Se, contudo, os sonhos nos dizem alguma coisa sobre o sonhador 2otJ~(n
nham os mitos dessa cultura, seus sonhos por isso autenticam os lndividual, os historiadores têm de dedicar-lhes mais atenção. Tor- ~{f!;~
~~
mitos, sobretudo em culturas em que o sonhar é interpretado como num-se uma fonte potencial a ser tratada, como outras, com cautela, ~o.
"ver" outro mundo. Os mitos modelam os sonhos, mas os sonhos, orno observou o próprio Freud na ocasiâo.t? Os historiadores devem
por sua vez, autenticam os mitos, em um círculo que facilita a repro- 1''' curar ter em mente o tempo todo o fato de que não têm acesso ao
, dução ou continuidade cultural. onho em si, mas na melhor das hipóteses a um registro escrito rnodi-
.~~"'!I,
~úi~!·1 Em segundo lugar, pode-se argumentar que o conteúdo latente ti ado pela mente pré-consciente ou consciente no decorrer da recor-
~,tJ:bItambém é modelado em parte pela cultura do sonhador. Uma breve ItI ão e escrita (sobre o problema da "memória", ver Capítulo 3). É
I r vável, contudo, que essa "elaboração secundária" revele a perso-

:~~~I
. <lIrU'justificaçãopara essa hipótese, ao mesmo tempo mais fundamental e
_ controvertida que a anterior, pode ser apresentada da seguinte forma: nulidade e os problemas do sonhador com tanta clareza quanto o pró-

.~~H.()Id
I:t.\~~;
os sonhos se relacionam com tensões, ansiedades e conflitos do sonha-
ar. A s tensoes
-, tI picas
. ou recorrentes, as ansie. da des e os con fi'itos
;g~~.variam de uma cultura para outra. Um estudo comparativo de "so-
nhos típicos" que atravessam culturas mostrou que a relativa freqüên-
C~mQ\jr •••
prio sonho.
Os historiadores também precisam lembrar que, ao contrário dos
I i analistas, eles não têm acesso às associações que o sonhador faz
om os incidentes do sonho, associações que permitem aos analistas
cia de diferentes sonhos de ansiedade variava consideravelmente. Os
americanos, por exemplo, sonhavam mais vezes que chegavam atrasa-
dos a encontros, compromissos e eram surpreendidos nus, enquanto
virar uma decodificação mecânica e os ajudam a descobrir o que sig-
uificarn os símbolos do sonho para os próprios sonhadores. Para o
lii toriador, o melhor a fazer é trabalhar com uma série de sonhos do
f.~1.!
o;~r.
os japoneses sonhavam que estavam sendo atacados. O contraste su- 111 smo indivíduo e interpretar cada um em termos dos outros. Por ~. IJO.

gere o que outro indício confirma: os americanos são mais preocupa- cmplo, o teólogo sueco Emmanuel Swedenborg registrou mais de
dos com pontualidade e com "vergonha do corpo", e os japoneses () sonhos em um único ano, 1744.11 Em casos favoráveis como este,
mais ansiosos com a agressão."
10 Freud (1929).
I 9 Griffith et al. (1958). 1 11 Freud (1929).

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

os sonhos fornecem aos biógrafos provas que não podem ser obtidas ca cultural de "incubação", em outras palavras, dormir em um lugar
por nenhum outro meio. agrado para ter um sonho com um oráculo aconselhando ao sonha-
Se, como afirmamos acima, os sonhos têm uma camada de signi- dor o que fazer, prática não diferente do jejum de sonho dos Ojibwa.
ficado cultural, além de uma pessoal e uma universal, abrem-se possi- Entre os historiadores da Idade Média, Jacques Le Goff dedicou espe-
bilidades ainda mais estimulantes para os historiadores. Primeiro, o cial atenção ao sonhar.l+ Os primeiros historiadores modernos passa-
estudo de mudanças no conteúdo manifesto deve revelar mudanças r m a mover-se na mesma direçâo.t- Como também os dos séculos
nos mitos e imagens psicologicamente reais na época (em oposição IX e XX. Alain Besançon, por exemplo, afirmou que os sonhos de
aos mitos apenas em circulação). Segundo, os sonhos, como os chistes lima cultura podem e devem ser interpretados como os sonhos de um
(Capítulo 5), tratam de maneira oblíqua o que é inibido ou reprimido, indivíduo, e fez algumas análises de sonhos na literatura russa, como
e isso varia de período para período. É muito mais provável que os o de Grinev em A filha do capitão, de Puchkin, e o de Raskolnikov em
desejos reprimidos, as ansiedades e os conflitos encontrem expressão rime e castigo.t»
no conteúdo latente dos sonhos, que por isso têm de mudar ao longo Examinemos agora alguns dos primeiros exemplos modernos. Na
do tempo, e talvez ajudem os historiadores a reconstruir a história da Europa, nos séculos XVI e XVII, como na Antiguidade e na Idade
repressão. Média, os sonhos eram levados a sério pelo que revelavam sobre o futu-
Mesmo assim, até há muito pouco tempo era raro o historiador r . Proliferavam os manuais de interpretação de sonhos, e existiam prá-
inclinado a considerar seriamente os sonhos como indícios. Tome-se I as equivalentes à incubação, em particular dormir em cemitérios ou
o caso do arcebispo Laud, por exemplo, que registrou cerca de trinta om a Bíblia debaixo do travesseiro)? Os exemplos que se seguem divi-
sonhos em seu diário, entre 1623 e 1643. Um de seus biógrafos, W. H. um-se em dois grupos, segundo a classificação de Lincoln. Primeiro, os
Hutton, referiu-se em 1895 ao "humor pitoresco" que fez Laud rela- unhas "individuais" e depois os sonhos "padrão da cultura".
tar "as curiosas visões que lhe chegavam quando dormia", visões que
"não se lêem com seriedade". Em Strafford (1935), a biógrafa C. V.
Wedwood foi ainda mais menosprezadora, escrevendo que Laud
"anotou no diário os sonhos mais tolos como se tivessem profunda ONHOS INDIVIDUAIS
importância". Por outro lado, o biógrafo mais recente de Laud usa os
sonhos como prova do estado mental do arcebispo.12 11 de novembro de 1689, a Gazette de Paris ofereceu um prêmio de
Um historiador pioneiro nesse campo, como em outros, foi o es- 0.000 luíses" para a interpretação de um sonho de Luís XIV (não se
tudioso clássico E. R. Dodds, que escreveu sobre os sonhos de gregos b se algum bem-sucedido José compareceu diante do Faraó). É
antigos.13 Ele se preocupou mais com a interpretação grega dos so-
nhos (Artemodoro, por exemplo) do que com os próprios sonhos, 14 Le Goff (1983,1984); d. Durton (1994).
IS Madarlane (1970); Kagan (1990).
mas discutiu os estereotipados em termos culturais e também a práti-
16 Besançon (1971); Koselleck (1979); Theweleit (1977).
17 Cardano (1557), capo 44.
12 Carlton (1987), 56, 144-5, 148-53. * Antiga moeda francesa de ouro, cunhada sob Luís XIII, no século XVIII.
13 Dodds (1951); d. Dodds (1965) e MilIer (1994). (N.daT.)

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VARI EDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTORIA CULTURAL DOS SONHOS

uma pena fugir a esse desafio, mas o perigo da interpretação errônea Sabes que sempre bebo direto do copo." Elias Ashmole (1617-92),
de sonhos isolados é óbvio. É melhor que nos concentremos em so- astrólogo profissional, registrou sonhos entre 1645 e 1650, dos 28
nhos sérios. aos trinta e poucos anos. De 1647 em diante, cortejava a mulher que
No século XVII, séries de sonho foram registra das por pelo me- e tornou sua segunda esposa em 1649, e vários sonhos se referiam a
nos três ingleses (Elias Ashmole, Ralph Josselin e William Laud) e, do sse relacionamento. Ralph Josselin (1617-83), pároco de Essex, foi o
outro lado do Atlântico, pelo natural da Nova Inglaterra Samuel único dos quatro cuja carreira não se projetou. Registrou a maioria
Sewall.ís Ao todo, os quatro registraram 120 sonhos (Ashmole, 42, dos sonhos na década de 1650, entre trinta e tantos e quarenta e pou-
Josselin e Laud, 31 cada e Sewall, 16). Esta amostra é, evidentemente, os anos. Samuel Sewall (1652-1730), o mais jovem do grupo, assim
de uma ridícula insignificância para a análise dos sonhos de toda uma orno o único americano, era judeu. Os dezesseis sonhos que registrou
cultura (ou melhor, duas culturas relacionadas), mas talvez seja pelo estendem, dispersos, por um longo período, 1675-1719, começan-
menos suficiente para esclarecer os principais problemas de método. do pouco antes de seu primeiro casamento.
Em um estudo dos significados culturais dos sonhos, continua sendo Para analisar o conteúdo manifesto desses 120 sonhos, é necessá-
necessário ter em mente que há outros níveis de análise, e que os rio distinguir as categorias ou temas. Em termos ideais, essas catego-
sonhos desses quatro homens se relacionavam com suas vidas e pro- ri s não apenas são adequadas aos sonhos analisados, mas também
blemas privados. Por isso, seguem-se alguns dados biográficos, em or- p rmitem comparações com os sonhos de outras culturas. Não é fácil
dem. O mais velho do grupo, William Laud (1573-1645), arcebispo dá-Ias, porém. Uma análise de conteúdo de 10.000 sonhos america-
de Cantuária, registrou a maioria de seus sonhos nos anos 1623-8, IIU feita por Calvin Hall, em fins da década de 1940, agrupou os

quando tinha cinqüenta e poucos anos. Os contemporâneos comenta- onhos por (1) cenários, (2) personagens, (3) ação, (4) interação das
ram seu "orgulho arrogante" quando Laud se achava no poder, a I r onagens e (5) emoção sentida pelo sonhador. É excelente quando
insistência na autoridade, obediência e disciplina na Igreja e no li malista pode usar um questionário, mas nossos quatro sonhadores

Estado. Como era um homem de origem humilde e de baixa estatura, 11 () fornecem com muita freqüência informações segundo todas as

parece um caso clássico de complexo de inferioridade. Embora filho \I categorias.l?


de um próspero comerciante de tecidos, nos círculos que passou a fre- Em comparação, a análise de sonhos dos Hopi feita por Dorothy
qüentar essa origem humilde era muitas vezes alvo de escárnio dos H. n empregou mais sete categorias, como se seguem: (1) segurança,
adversários políticos. O fato de Laud se sentir inseguro mesmo quan- ( ) perseguição e conflito, (3) risco físico, (4) elementos heterossexuais,
do estava no poder é sugerido por alguns de seus sonhos. Os inimigos ( ) olheitas e armazenamento, (6) água e (7) religião.ê? Estas catego-
o julgavam íntimo do rei Carlos I, mas: "Sonhei cheio de espanto que I também são muito úteis para o estudo dos Hopi, mas "água" 45 (j;_

. o rei se ofendera comigo, e ia me renegar, sem me dizer por quê." Ou olheiras" não são temas recorrentes a serem examinados aqui. Até ~lif;;;'~
~~
li

de forma mais vívida: "Levei-lhe bebida, mas não o agradou. Levei- I iboração de um grupo de categorias que tratem de compara~ duas
I 111. is culturas, parece melhor trabalhar com as que se aphquem
lhe mais, porém numa taça de prata. Ao que Sua Majestade disse:
'Q~ fi[;
Ar,O
!l
't<I~T'J(.
""-

'1

Iij HaU (1951). i


I 18 Ashmole (1966); Josselin (1976); Laud (1847-60); Sewall (1878). \
11 Eggan (1952).

50 51
VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

I(como a de Eggan) pelo menos à cultura estudada,


preço de tornar a comparação mais difícil.
Em nossos casos do século XVII, os mais importantes
correntes são: (1) morte e enterro,
embora se pague o

temas re-
(2) a igreja, (3) reis, (4) guerras, (5)
nossos sonhadores
que estava na catedral
conclusões
verdade,
clérigos -

sobre as atitudes
com exceção do sonho de Ashmole
de Litchfield - e então
gerais em relação
pensar em igreja como o local de trabalho
ter cautela
à igreja. Pode-se, na
do clero -
de
ao tirar

mas,
política e (6) ferimento ou alguma coisa associada com o sonhador. É nos Estados Unidos da década de 1940, sonhar com o local de traba-
forte o contraste destes temas com os temas centrais encontrados por lho de alguém era, em si mesmo, incomum, e então os contrastes
Hall nos sonhos americanos do século XX. ntre os séculos permanecem.
Entre os 120 sonhos de nosso exemplo, há dezenove com morte e Quanto aos oito sonhos de Igreja como instituição, é importante
enterro, embora nove deles venham de um único sonhador, Elias observar que ambos os clérigos anglicanos são atraídos por Roma em
Ashmole. Em três casos, o sonho se refere à morte da mulher do so- , us sonhos. Laud sonhou que estava "reconciliado com a Igreja
nhador; em três, à morte de outro parente próximo (mãe, pai ou fi- atólica" e, sentindo-se culpado a respeito disso no próprio sonho,
lhos); e em quatro a morte é do próprio sonhador. Tanto Josselin f i pedir perdão à Igreja Anglicana. Já Josselin sonhou que era "ínti-
quanto Sewall sonharam com seu julgamento e condenação à morte, mo do papa". Há evidentemente muitas maneiras de interpretar esses
enquanto Ashmole sonhou que era de fato decapitado (e em outra , nhos, da simples desrepressão, o que não é implausível no caso de
ocasião envenenado). De modo bastante curioso, o único dos quatro Laud, à compensação para a hostilidade a Roma nas horas de vigília.
que não teve um sonho desse tipo, William Laud, também foi o único ~curioso perceber que tanto Laud quanto Josselin lembram versões
a ser condenado e executado na vida real. ti que pode ser chamado de sonho clerical "clássico". Laud sonhou
Também há cinco casos de referências a uma sepultura, um túmu- que, quando celebrava um ofício religioso, não "conseguia ler nem
10 ou monumento e um enterro. Em contraste com essa preocupação, entoar os salmos", nem encontrar a Bíblia. Mais uma vez, Laud
,,)S i ' o tema de morte e enterro não foi importante o bastante na década de unhou "que tirava toda a minha veste branca [sobrepeliz] faltando
<~o flr
eVlm ((9,
1940 para ser mencionado na análise de Hall. Parece que os ingleses
d ' I
'penas uma manga; e, quando tive de vesti-Ia de novo, não a encon-
I\lJst~ o secu o XVII eram mais ansiosos em relação à morte do que os ame- li' va". Talvez fosse interessante tentar uma sociologia dos sonhos de
~:,~ ricanos do século XX. Se as pessoas do século XVII sonhavam mais insiedade desse tipo entre pessoas de diferentes ocupações. Além dos
~;oli' com enterros e sepulturas que nós, isso sem dúvida se relaciona à atorze sonhos com a igreja, houve mais três relacionados com o so-
c\;~II~<t6 maior ênfase dada na vida cotidiana aos aspectos público e cerimonial hrcnatural. Laud e Sewall sonharam com Jesus Cristo, e Sewall que
(A)qUI'.Il-
11;) ~ \'.Sr~ da morte.
ubia ao céu.
~.
Passando para nossa segunda categoria (em ordem de freqüên- Passando para a terceira categoria, encontramos oito sonhos com
cia), há catorze sonhos com a igreja na amostra; seis localizados em r i (um com Jaime I, seis com Carlos I e um com Carlos lI). Eviden-
uma igreja ou cemitério e oito com clérigos e assuntos eclesiásticos. I mente, é comum que os psicanalistas afirmem, seguindo Freud, que
Na análise feita por Hall de sonhos do século XX, o cenário de igre- 11111 rei no sonho simboliza o pai do sonhador. Contudo, como histo-
ja é tão raro que ele o coloca (junto com bares) em uma categoria rludor "literal", estou convencido de que pelo menos em um nível da
"mista". O que faz um óbvio contraste entre os dois séculos. É neces- m stra, e em algumas ocasiões, "o rei" significa o rei mesmo. Afinal,
sário ter-se em mente que treze dos catorze sonhos com igreja são de 1 iud, o que mais sonhou com o rei (quatro vezes), via e falava fre-

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

qüentemente com Carlos L Ashmole sonhou com o rei três vezes entre , .
contrárias.ê- Corno se po d e exp I'icar esse contraste. i O nze d os d ezes- 9\\l
I1J;~ f':t::- :
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is sonhos re Iaciona os com guerra e po ínca no secu o
, I XVII d ,.-.(.1\, ll<> ,
ata- !AulA, '
1645-6, em outras palavras, 110 auge da Guerra Civil. Josselin, na dis-
tante América, foi o único dos quatro a não sonhar com rei. varri de 1642 a 1655, um período de guerra civil e outros conflitos, ~~~t'.,_
• ., 1';""
Essa questão do rei é um caso especial do contraste mais geral en- uando se poderia esperar que as pessoas estivessem mais ansiosas
~;ot~.,
k~i;~o
).1 I

tre o século XVII e o XX. Calvin Hall descobriu que apenas 1 por cer:- que o normal com assuntos políticos: No entanto, HaU reuniu sua
to dos sonhos que reuniu foram com o que ele chamou de "figuras pú- imostra de americanos no momento em que se lançava a bomba atô-
blicas famosas ou proeminentes", embora dezessete dos sonhos aqui mica no Japão, sem que isso causasse grande impacto nos sonhos de-
estudados (cerca de 14 por cento) caiam nessa categoria. Mais uma I s. Sua conclusão foi de que a preocupação política "não nos atinge
vez, seguem-se em ordem as distinções entre nossos sonhadores. m muita profundidade, nem é emocionalmente pertinente para nós".
Laud, responsável por nove das dezessete figuras públicas, conhecia-as ra o século XVII, a opinião exatamente oposta parece ser a regra. A
muito bem. O duque de Buckingham, por exemplo, era seu amigo r lativa freqüência de sonhos políticos indica que a preocupação polí-
pessoal, e o bispo de Lincoln, inimigo pessoal. Contudo, Josselin, que ti a era profunda e também - para empregar a útil expressão de Hall
não tinha amigos ou conhecidos célebres, sonhou não apenas com emocionalmente pertinente.
Carlos Il, mas também com o papa, Oliver Cromwell e o secretário Sr. Certamente, é impossível se afirmar o grau exato de profundida-
Thurlow. De maneira semelhante, o cientista e teólogo sueco Sweden- J e pertinência. Talvez esses sonhadores do século XVII usassem fi-
borg sonhou com o rei Carlos XII, o rei da Prússia, o rei da França, o liras e fatos políticos para simbolizar ansiedades pessoais. Retoma-
rei da Polônia e o czar.U Um contraste também semelhante entre m s ao problema de diferenciar o conteúdo manifesto do conteúdo
o ~culo XVII e o XX surge dos oito sonhos da quarta categoria, I t nte, o problema de se "o rei" nos sonhos de Laud significa na ver-
as-guerras. Laud não registrou quaisquer sonhos desse tipo, mas Ash- I de Carlos Iou não. Contudo, se era provável que os sonhadores do
mole sonhou com Carlos Ibatendo em retirada de Oxford, e com o rei ulo XVII simbolizassem mais suas ansiedades pessoais com ima-
sitiado; Josselin, com a derrota dos escoceses, com um exército inglês ns políticas do que os do século XX, este fato já nos diz alguma coi-
na França e com a Guerra Civil; Sewall, com os franceses (duas vezes) obre a pertinência emocional na política no século XVII. Pode-se
e uma vez com o que ele denominou de "uma chama militar". I zer uma afirmação semelhante sobre religião. Embora um sonho
Outros oito sonhos se relacionavam a política. Laud sonhou uma um igreja ou Cristo tenha um sentido pessoal latente, continua sen-
vez com o Parlamento, por exemplo, e Josselin (que não era membro do indício da pertinência emocional do cristianismo.
do Parlamento) sonhou duas vezes com ele. Ashmole sonhou que A última de nossas seis categorias, sobrepondo-se à primeira, é a
fazia o voto de Negação, e Sewall que fora eleito Lorde Prefeito. Em do ferimento do sonhador, que ocorre em oito sonhos na amostra.
contraste com isso, Hall encontrou em sua amostra sonhos que I ud sonhou duas vezes que seus dentes caíam. Os sonhos com perda
tinham "pouco ou nada a dizer sobre fatos atuais", embora um estu- I dentes são comuns em muitas culturas, cornotestemunham os an-
do de sonhos alemães durante o período nazista chegasse a conclusões I opólogos e é confirmado na leitura de livros de sonhos, de Artemi-

21 Swedenborg (1744),1-2 de abril, 19-20 de abril, 24-25 de abril, 16-17 de se-


tembro, 6-7 de outubro, 20-21 de outubro. I 22 Beradt (1966).

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

doro em diante. Esses livros em geral dizem que o sonho com a perda da Europa moderna o que Lincoln chamou de sonhos "padrão da
de dentes pressagia a perda de um parente. Por outro lado, Freud tra- cultura", como os estereotipados sonhos dos garotos Ojibwa. Vários
tava os dentes como um símbolo dos órgãos genitais, embora alguns onhos registrados se prestam a interpretações nesses termos. Por
psicanalistas mais recentes os interpretem como uma expressão de xemplo:
desamparo contra a agressão. Nos dois casos, está envolvida uma per-
da de força ou pOFK~ No ano de 1525, após a Semana de Pentecostes, na noite entre quar-
Quanto aos outros sonhos com ferimentos, Ashmole sonhou que ta e quinta-feira, tive uma visão no meu sono, em que grandes águas
ficava careca, a mão apodrecera e caíra e a cabeça era decepada, en- despencavam do firmamento. E a primeira atingiu a terra a cerca de
quanto Josselin e Sewall sonharam, como já observamos, que haviam sete quilômetros de mim com grande violência e enorme barulho, e
sido condenados à morte. Laud também sonhou com danos no St, afundou toda a terra. De tão assustado, acordei antes que as outras
John College, Oxford, sua antiga faculdade, e que ele em parte re- águas caíssem.
construíra. A categoria de ferimento não ocorre em momento algum
na análise de Hall, portanto a única comparação possível é extrema-
Albrecht Dürer, pois era ele, fez um desenho das "grandes águas" ao
mente vaga: a proporção de sonhos agradáveis e desagradáveis nas I ido do texto. Dificilmente surpreende encontrar um sonho de des-
duas amostras. Hal! afirmou que 64 por cento das emoções dos truição ocorrendo na época da Guerra dos Camponeses Alemães,
sonhos em sua amostra eram desagradáveis, predominando apreen- 11 m, considerando-se a tradição cristã, é estranho ver o sonhador
são, raiva e tristeza. No caso da amostra do século XVII, foi difícil irnbolizar a destruição por um dilúvio, sobretudo em uma época de
classificar metade dos sonhos tanto na categoria de "agradável" p adas chuvas. Na Alemanha circulavam então vários textos preven-
quanto na de "desagradável". Das que restaram, cerca de 70 por cen- 10 desastres desse tipo.23
to eram desagradáveis. Em vista da pequena dimensão da amostra, Um segundo exemplo vívido de sonho culturalmente estereotipa-
não se deve levar muito a sério a diferença entre 70 por cento e 64 por 10 é oferecido por outro pintor do século XVI, Benvenuto Cellini. Se-
cento. Em outras palavras, não se podem usar os dados desses sonhos lindo sua autobiografia (parte 1, seção 89), quando ele caiu grave-
para mostrar que as pessoas eram mais ou menos ansiosas que as m nte doente, sonhou que "um velho medonho aparecia ao pé de
modernas, embora os objetos de sua ansiedade também pudessem ser minha cama e tentava me arrastar à força para dentro de seu barco
diferentes. norrne". Cellini resistiu, e recuperou-se da doença. Um aspecto eu-
10 o da história é que o narrador não diz o nome do velho - mas
1" m mais podia ser senão Charonte? Não precisamos recorrer a u~a
, oria de arquétipos para explicar a aparição de Charonte a um pm-
SONHOS "PADRÃO DA CULTURA"
Ir italiano renascentista, íntimo de Dante (embora não de Luciano e
us recentes imitadores) e tendo a figura de Charonte no [uizo final,
Os 120 sonhos discutidos abaixo pertencem à categoria de sonhos
"individuais" concebida por Lincoln, que extraem elementos da cul-
tura do sonhador. Talvez também seja possível identificar no início I 23 Dürer (1956), 214.

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

de Michelangelo (que vivia em 1550, quando ele escrevia, embora não Drabic e Kotter feitas pelo famoso erudito tchecoslovaco, Jan Amos
~ na época da doença sobre a qual escrevia). omenius. O que se segue se concentrará em Melisch.

ª~r
<!»~3.fl-
"Q1M!~~ Talvez também se possa afirmar que dois fenômenos muito bem Um exemplo de suas revelações diz o seguinte:
\)~,:f}documentados do início do período moderno, mas que sempre intri-
garam os historiadores, são explicáveis em termos de sonhos cultural- Vi raposas vermelhas chegarem do leste, cada uma com um grande
~15iíl..s mente estereotipados; as visões.religiosas e o sabá dos bruxos. dente. E um leão amarelo dourado erguido em um lugar verde, em
fIPj.;~pSt,r- •. . (.
\ o s~ Historiadores realizaram algumas pesquisas fascinantes sobre vi- volta do qual as raposas saltavam. Um instante depois, chegou um
jQ .,\tPS ,
S
\)L sões desde a primeira publicação deste ensaio.24 O mais pertinente pa- homem incandescente, com uma espada preta de ferro igual a um
I ra o presente capítulo é o de David Blackbourn. Seu livro concentra- clarão de relâmpago. Travou-se entre eles tamanha luta que muitos
se em uma única história, a da aparição da Virgem Maria a algumas tombaram ali mesmo, e não restou quase ninguém senão muito
crianças na aldeia de Marpingen, na época de Bismarck, e as peregri- poucos. No meio deles levantou-se uma águia branca (...) Vi que o
nações à "Lourdes alemã" que se seguiram. Contudo, o autor situa a homem brilhante como o sol cortara a cabeça da águia branca, e
história em um contexto muito mais amplo, o de uma "grande onda aquela cabeça fora dada com a coroa ao Norte; mas o corpo da
de visões" da Virgem Maria ocorrida após 1789. Blackbourn explica águia fora dado a uma águia vermelha, e as asas ao LesteP
a onda não apenas em termos religiosos (a "marianização" popular
do catolicismo), mas também com a guerra e a convulsão social e polí- Esta visão data de 1656, e não é muito difícil hoje identificar o
tica, incluindo a campanha de Bismarck contra a Igreja católica. t ma, mesmo sem fornecer as notas explicativas, como a invasão e

A afirmação de Blackbourn sobre a relação entre visões e convul- divisão da Polônia pelas forças russas, suecas e prussianas a partir de
são política é confirmada pelo que se poderia chamar de "epidemia" I 54, um episódio que os poloneses ainda descrevem como o "Dilú-
de visões na Silésia (na época parte do reino da Boêmia), do início a vi ". O tom da atmosfera geral da visão poderia ser descrito como
meados do século XVII, período em que a Guerra dos Trinta Anos as- li pocalíptico", e muitas das visões de Melisch refletem de fato o Apo-
solava a região e a crença no iminente fim do mundo se achava singu- ilipse. Há referências à "besta babilônica"; ao Cordeiro, ao livro,
larmente disseminada.25 Entre os visionários, estavam Mikulas Dra- o selos; e a tempo, tempos, e metade de tempo. As imagens que não
bic, Christoph Kotter, Christiana Poniatowska e Stephan Melisch.26 v m da Revelação são muitas vezes animais heráldicos, como a águia
Os textos dessas "revelações" foram publicados em várias línguas, lonesa e o leão sueco. Em outras palavras, as visões de Melischtêrn
embora o mais provável seja que tenham alcançado circulação tão rigens literárias e visuais, e o mesmo se aplica aos outros visionários
generalizada em conseqüência das traduções latinas das visões de ncionados acima. O que se poderia chamar de "iconografia" de
VI ões merece outros estudos.28
Talvez pareça natural concluir que as visões são todas invenções
24 Christian (1981); Dinzelbacher (1981); Gurevich (1984); Kagan (1990); onscientes, a serem classificadas com um gênero literário famoso, no
Sallmann (1992); Blackbourn (1993).
25 Haase (1933).
26 Benz (1969), 300ff., 460ff., 501ff. sobre Kotter e 113ff., 145ff., 171ff., 300ff., 27 Melisch (1659), n~ XV; a tradução em suas Doze visões (1663), n~ 4.
599ff. sobre Poniatowska. 28 Cf. Benz (1969), 311-410.

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

qual Sueiíos, de Francisco de Quevedo, e Somnium, de Johan Kepler, nhou que atirava uma espada na mandíbula de um animal enorme, e
se incluem como exemplos célebres do século XVII. Em defesa dessa relatou que "pensara durante o dia na mulher e no dragão no Apo-
conclusão, há o fato de que as visões, quando lidas uma após a outra, alipse",31 Um freudiano, sem a menor dúvida, interpretaria o sonho
não dão a impressão de sonhos. São coerentes demais. Não ficam de Swedenborg de modo muito diferente, e bem poderia estar certo,
mudando o tempo todo de tema ou cena como fazem muitas- vezes os mas isso não deve nos impedir de ver o componente cultural do so-
sonhos, e seu significado político ou religioso é consistente e claro. nho. Como os Hopi e os Ojibwa, Swedenborg sonhava com um dos
Transmitem a sensação de alegorias, e algumas-chegam a usar o expe- mitos essenciais de sua cultura.
diente literário do sonhador pedindo a alguém que explique o signifi- Essas analogias sugerem o que não pode, é claro, ser verificado ou
cado da visão, e tendo tudo explicado. f lsificado, que as "revelações" de Melisch e as outras foram expe-
Implícita nesse argumento, contudo, existe uma dicotomia aberta riências oníricas, estimuladas por fontes literárias, interpretadas em
à crítica. A suposição é de que um determinado texto deve ser ou uma t rmos de modos literários e por fim elaboradas e tornadas mais coe-
transcrição correta de um sonho ou uma efusão literária acomodada r ntes para publicação. Traçar um paralelo com algumas autobiogra-
em forma de sonho. No entanto, a descoberta do sonho padrão da fias do século XVII - por exemplo, Grace Abounding, de Bunyan -
cultura indica que essa dicotomia é falsa. Certamente Melisch e os pode ser esclarecedor. Já se mostrou que nessa obra há fontes literá-
outros visionários estudaram com cuidado a Revelação, e ela signifi- rias - são Paulo, por exemplo - e segue um padrão de desenvolvi-
ca muito para eles. O calvinista francês Moise Amyraut usou os estu- mento do estado pecaminoso à conversão, que pode ser encontrado
dos deles contra eles mesmos, afirmando que as imagens das profecias m muitas autobiografias espirituais do período. Portanto, seria
bíblicas se achavam "pintadas em suas mentes" (peintes dans l'espriti, in ensato aceitá-Ia como uma história inteiramente correta da vida de
convencendo-os de que haviam tido visões verdadeiras, quando não Bunyan. Contudo, seria do mesmo modo insensato menosprezar o
as tiveram.29 O comentário é perspicaz, mas só se pode justificar uma t xto como nada além de ficção. O mais provável é que seja uma his-
aguda distinção entre uma visão "verdadeira" e uma falsa em bases ria de experiências genuínas percebidas e ordenadas em termos de
teológicas. quem as ou estereótipos culturais (cf. p. 77).32
É provável que a leitura do Apocalipse de são João provoque so- Uma abordagem semelhante talvez nos ajude a entender uma
nhos apocalípticos em algumas pessoas. Ralph Josselin e Emmanuel f imosa série de visões menos ortodoxas, visões do "sabá das bruxas".
Swedenborg registraram sonhos desse tipo em seus diários. Josselin, mo se conhece bem, em muitos julgamentos no início da Europa
por exemplo, sonhou com uma nuvem negra em forma de veado, com derna as acusadas confessavam ir voando para danças e banquetes
um homem cavalgando-o. Sua mulher sonhou com luzes resplande- noturnos, presididos pelo diabo. A interpretação dessas confissões era
cendo no céu, "chamas que excediam o terrível", e "três fumaças ontinua sendo conrroversa.P Escritores de tratados sobre bruxaria
como pilares projeta das para fora da terra". Ao acordar, pensou na di cutiam com eruditos detalhes se as famosas bruxas iam a seus sa-
Revelação 19: 3,30 De maneira semelhante, Swedenborg certa vez so-

31 Swedenborg (1744).
29 Amyraut (1665). 32 Tindall (1934).
30 josselin (1976). 33 Ginzburg (1990); Muchembled (1990).

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS

bás "em corpo" ou "em espírito". Uma das sugestões era que as bru- mparou o benandante com o táltos, ou xamã, húngaro.P A referên-
xas sonhavam ter ido. O problema dessa sugestão, como observou o j a xamãs sugere comparações com grande parte da Ásia e das Amé-

médico italiano Girolamo Cardano, era a dedução de que diferentes ri as. Na África Oriental, também, existe um paralelo com os benan-
pessoas tinham o mesmo sonho, o que parecia contrário à experiên- danti. Entre os Nyakyusa de Tanganica (como era então), em 1951,
cia.34 Os antropólogos responderam à objeção de Cardano. O sonho •• creditava-se que em toda aldeia havia defensores [abamanga] que
com o sabá, se for um sonho, não é mais estereotipado que ~sonho v m bruxos em sonhos e os combatem e afugentam".38
da puberdade dos Ojibwa. Se o notório ungüento que se a-creditava O livro de Ginzburg atraiu muita atenção como uma contribuição
que as bruxas usassem continha narcóticos, como se sugeriu mais de os estudos de bruxaria. Contudo, também merece atenção como {ÃoCi.1l:tlf·-
I!, il'fO;(;,;~-

uma vez, isso explicaria como as chamadas bruxas sonhavam que ontribuição ao estudo dos sonhos e visões. Na verdade, deve-se exa- ~A "~ '.
estavam voando.ts minar a própria história da bruxaria, como se tem feito nos últimos ~ ~:
\IlOS, da perspectiva da história da imaginação coletiva. As atividades \LA~~.
Com certeza, é inteiramente possível, e mesmo provável, que as
lo benandanti oferecem excelentes exemplos de sonhos culturalmen-
acusadas elaborassem seus sonhos durante o interrogatório, ou os
I estereotipados. É nesse contexto que devemos examinar duas afir-
interpretassem da maneira como queriam os inquisidores. É menos
mações feitas pelos benandanti durante a explicação de suas ativida-
provável que inventassem toda a história do sabá para satisfazê-los,
I aos inquisidores. A primeira é que saíam não em corpo, mas "em
porque, em alguns casos pelo menos, a história contrariava as expec-
pírito", para que
tativas dos inquisidores. Os exemplos mais célebres de confissões que
desconcertaram os inquisidores são as discutidas no famoso estudo de
se por acaso, enquanto estivessemos fora, alguém chegasse com
Carlo Ginzburg dos chamados "bons andantes", ou benandante, de
uma tocha e olhasse durante um longo tempo o nosso corpo, o espí-
Friuli.36 Quando interrogaram Piero Gasparutto por suspeita de bru-
rito jamais reentraria enquanto não houvesse mais ninguém por
xaria em Cividale, Friuli, em 1580, ele caiu na gargalhada. Como perto para vê-lo naquela noite; e se o corpo, parecendo estar morto,
poderia ser um bruxo? Era, como explicou, um benandante, e isso fosse enterrado, o espírito teria de vagar por todo o mundo até a
queria dizer que combatia bruxas. Ele e outros saíam determinadas hora fixada para aquele corpo morrer.t?
noites do ano para combatê-Ias, armados de varas de funcho, enquan-
to suas inimigas, as bruxas, portavam varas de sorgo. "Se fôssemos gunda afirmação é a da sugestionabilidade dos novos recrutas,
vitoriosos", declarou outro benandante, "aquele ano era de abundân- \11 testemunharam que eram "convocados" para as batalhas notur-
cia, mas, se perdêssemos, haveria fome." \11 ' e não tinham outra escolha senão ir. Bastiano Menos, por exem-
Essas batalhas noturnas imaginadas eram mais que um costume 110, declarou que uma noite um certo Michele "me chamou pelo
local. O próprio Ginzburg traçou um paralelo com o fenômeno do iome e disse: 'Bastiano, você precisa ir comigo"', e ele foi.4o O para-
bom lobisomem no século XVII, Livonia, e um historiador húngaro

\7 Klaniczay (1984).
34 Cardano (1557). 38 Wilson (1951).
35 Clark (1921); cf. Castaneda (1968), 43ff. 39 Ginzburg (1966), capo 1, seção 11.
36 Ginzburg (1966). 40 Ginzburg (1966), capo 4, seção 13.

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1,1
A HISTÓRIA CULTURAL DOS SONHOS
VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL

lelo com as sugestões mais indiretas feitas aos meninos Ojibwa que lta proporção de temas públicos, sejam religiosos ou políticos, nos
suportavam o jejum de sonho, discutido acima, é bastante claro. onhos aqui examinados deve fornecer aos historiadores assunto em
Este ensaio enfatizou analogias entre sonhos do século XVII e os que pensar. Parece plausível sugerir que os ingleses do século XVII,
de algumas sociedades tribais. Entre os Ojibwa e os Hopi, como no p 10 menos, eram mais ansiosos sobre questões públicas do que indi-
início da Europa moderna, os sonhos, como os mitos, muitas vezes-se am os americanos do século XX. Werner Jaeger, estudioso alemão
relacionavam, e os sonhadores faziam contato, com seres sobrenatu- I s clássicos, comentou certa vez a "consciência pública" dos gregos
rais. Nos sonhos americanos do século XX, em contraposição, os e e rntigos.f? Sua observação parece também válida para a Inglaterra do

mentos sobrenaturais estão quase inteiramente ausentes. Em seu estu- éculo XVII.
do dos sonhos de puberdade dos Ojibwa, o antropólogo Paul Radin
observou que, enquanto a tradição cultural permanecia forte, os so-
nhos se relacionavam com os mitos. Quando a cultura tradicional se
desintegrou, por volta de 1900, os sonhos dos Ojibwa passaram a ter
um tema mais pessoal+í O mesmo processo de transição de símbolos
públicos para privados parece ter ocorrido no Ocidente, entre o sécu-
lo XVII e o presente, como mostram não apenas os sonhos mas tam-
(;)J~ bém a mudança dos temas em peças e histórias.
~~.w~:;.~.No nível do conteúdo manifesto, portanto, parece possível uma
~:~t.
WllÓ o
interpretação cultural dos sonhos. No nível mais interessante do con-
teúdo latente, é, com certeza, mais difícil dar uma resposta segura
LA~;~'" •
osr~ ~- Uma hipótese atraente, impossível de verificar, é que no início do
9JI. período moderno a repressão se preocupava mais com as tentações
políticas e religiosas e menos com as sexuais, diferente do que acon-
tece hoje. Não se quer dizer com isso que o sexo não era importante
no período, nem que não era importante nos sonhos de então.
Problemas sexuais estão explícitos em dois sonhos de Ashmole (que-
rendo fazer amor com duas senhoras e sendo frustrado). Laud sonhou
que o duque de Buckingham se metia em sua cama. Aos outros sonhos
aqui discutidos por seu conteúdo manifesto é possível dar interpreta-
ções sexuais, como o de Swedenborg citado anteriormente.
Contudo, muitos outros sonhos se referem a problemas políticos,
como a atração que alguns protestantes sentiam pelo catolicismo. A

I 41 Radin (1936). I 42 Jaeger (1933).

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