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MÉTODO CLÍNICOi
Jean Piaget

O método clínico ou de "exploração crítica" utilizado por Piaget em suas pesquisas,


consiste em procurar seguir o desenrolar do pensamento da criança, adaptando o
interrogatório às suas ações, reações e verbalizações. “... trata-se do método do exame clínico,
empregado pelos psiquiatras como meio de diagnóstico...” (Piaget, s/d, p.10). Este método
caracteriza-se, por um lado pela possibilidade da criança exprimir-se espontaneamente e de
forma pessoal e, por outro lado, pelo esforço do experimentador em empregar a linguagem da
criança e em compreender seu ponto de vista, sem deformá-lo. As técnicas, portanto,
fornecem apenas um plano geral, enquanto o detalhe depende das reações das crianças, não
podendo ser determinado antes. De acordo com Piaget (s/d):

Dessa forma, o exame clínico participa da experiência, no sentido de que o clínico coloca
problemas, realiza hipóteses, faz variar as condições em jogo, e enfim controla cada uma de suas
hipóteses no contato com as reações provocadas pela conversa. O exame clínico também inclui
observação direta, no sentido de que o bom clínico, ao dirigir, se deixa dirigir, e ao levar em conta
todo o contexto mental, ao invés de se tornar vítima dos “erros sistemáticos” como é freqüente no
caso do observador puro.” (p. 10).

Na elaboração de uma investigação, as perguntas feitas às crianças possuem a mesma


forma das perguntas espontâneas formuladas por crianças e adolescentes, da mesma idade ou
mais jovens, sobre o assunto. Este cuidado permite afastar o perigo de sugerir uma idéia, uma
resposta, pela própria formulação da pergunta. Há inicialmente, portanto, necessidade de
uma observação direta de crianças da mesma idade ou mais novas, para coletar as perguntas
que costumam fazer em uma situação natural. Piaget, (s/d, p.8, explica a esse respeito:

“... Quando se empreende uma investigação dessa ordem sobre um grupo de explicações de
crianças, torna-se importante, a fim de orientar a pesquisa, partir-se de algumas perguntas
espontâneas formuladas por crianças da mesma idade ou mais jovens e aplicar essa mesma forma
às perguntas que se pretende fazer às crianças que serão sujeitos da pesquisa. É importante,
sobretudo, uma vez que se busca tirar conclusões dos resultados de uma investigação, que se
procure uma contraprova estudando-se as perguntas espontâneas das crianças. Dessa forma
perceberá se as representações obtidas das crianças correspondem ou não às perguntas que fazem
e à própria maneira com que formulam essas perguntas”.

Entretanto, é preciso completar o trabalho com a exploração crítica, tanto pela


dificuldade de observar um número muito grande de crianças nas mesmas condições, como
pela dificuldade imposta pelo egocentrismo inicial da criança. Devido a este egocentrismo,
ela não procura comunicar todo seu pensamento. Entre seus amigos, conversa sobre a
situação imediata ou sobre jogos, sem falar sobre a atividade adulta ou sobre o que ocorre na
natureza. Junto aos adultos, faz muitas perguntas e não explica nada, ou por que acha suas
explicações muito naturais e acredita que todos as conhecem, ou por medo de errar, de se

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Excertos por Lia Leme Zaia
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desiludir. Por outro lado, é muito difícil discernir entre a crença e o jogo, a crença e a
fabulação.
Somente com auxílio de perguntas, apoiadas na atividade desenvolvida pela criança
sobre o material e nas suas verbalizações anteriores, com o auxílio de contraprovas e contra-
argumentações, colocadas pelo experimentador, é possível procurar esta distinção,
extremamente necessária para conhecer suas ideias sobre os objetos, o meio, o mundo. Há
assim necessidade de interrogar a criança sobre os pontos em que a observação pura não
permite a distinção entre a crença e a fantasia ou a resposta sugerida, bem como detectar os
erros sistemáticos a que eles conduzem.

“... O bom experimentador deve, efetivamente, reunir duas qualidades muitas vezes incompatíveis:
saber observar, ou seja, deixar a criança falar, não desviar nada, não esgotar nada e, ao mesmo
tempo, saber buscar algo de preciso, ter a cada instante uma hipótese de trabalho, uma teoria,
verdadeira ou falsa, para controlar.” (p. 11).

Além da necessidade de um grande número de exercícios diários de interrogação


clínica antes das primeiras tentativas de colocar em prática o método, devido à sua
complexidade e a grande dificuldade de interrogar sem sugestionar; ainda é preciso submeter
o material colhido à uma crítica severa, a um senso de interpretação bastante aguçado.
Dois grandes perigos ameaçam os iniciantes: atribuir valor máximo ou atribuir valor
mínimo a tudo o que diz a criança, isto é, dar crédito a tudo o que é dito ou não acreditar em
nada. Nem tudo o que uma criança diz durante o interrogatório se situa no mesmo plano de
consciência. A essência do método clínico está em situar cada resposta em seu contexto
mental, seja de reflexão, de crença imediata, de jogo ou de fantasia, de esforço, de interesse
ou de fadiga. Muitos sujeitos examinados inspiram confiança imediata, observando-se que
refletem e buscam outros não, porque parecem brincar, rir do aplicador ou não escutar o que
diz

Cuidados Necessários

Na apresentação de uma experiência.

Ao estabelecer o contato com a criança, é necessário deixá-la confiante e motivá-la e,


por outro lado, utilizar os mesmos termos empregados espontaneamente por ela para se
referir ao material.
Repetições em demasia cansam e tornam o trabalho desinteressante, assim é possível
evitá-las, quando se tem certeza de ser compreendido pela criança, abreviando as perguntas
como: e agora?, como será? etc.
Por outro lado, variando um dos fatores implicados na experiência podem-se obter
observações úteis sobre o valor de um resultado.
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Com crianças pequenas.

Algumas precauções são necessárias, como inverter a ordem das possibilidades


enumeradas em uma questão, para determinar se a criança apenas repete a última parte da
pergunta ou compreendeu o que lhe foi perguntado, ou variar o emprego do material
utilizando cores diferentes. Como as crianças pequenas têm preferências, é preciso se
assegurar, numa prova de conservação, por exemplo, de que as respostas dizem respeito à
quantidade e não à cor preferida.

A necessidade de justificativas.

A cada resposta verbal, deve-se pedir justificativas, tais como: por quê?, Como você
descobriu?, Como você faz para saber se está certo?...Em algumas experiências, as
justificativas são pedidas apenas no final, para evitar interrupções, obter um resultado antes
do resultado final ou permitir à criança justificar espontaneamente.

Contraprovas

A apresentação de contra-sugestões, contra-argumentações, permite perceber se a


criança está certa do que respondeu, se tem dúvidas sobre o assunto, ou se respondeu apenas
para agradar o experimentador.

Quanto ao experimentador.

Como citado anteriormente, deve “saber observar, deixar a criança falar, não
desviar nada, não esgotar nada...”. Para saber buscar algo preciso, “... é necessário ter uma
hipótese de trabalho, uma teoria para controlar sua atuação e a interpretação dos resultados.
Há ainda necessidade, como já foi dito, de submeter o material coletado à crítica severa.

Tipos de Reações Comuns nas Crianças

Alguns tipos de reações das crianças devem ser conhecidas para facilitar a
interpretação dos resultados das investigações. São elas:

"não importismo" quando a pergunta a aborrece ou não provoca nenhum esforço de


adaptação, a criança responde qualquer coisa e de qualquer forma, sem mesmo procurar se
divertir ou criar um mito;
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"fabulação" quando a criança, sem mais refletir, responde a pergunta inventando uma
história, em que não acredita ou na qual crê por simples exercício verbal;
"crença sugerida" quando se esforça por responder, mas a pergunta sugere uma resposta, ou
quando procura apenas agradar o examinador, sem apelar para sua própria reflexão;
"perseveração" ou a resposta se mantém pela própria série de perguntas sugestivas, ou se
trata de uma espécie de não importismo.
"crença desencadeada" quando a criança responde com reflexão, extraindo a resposta de seus
próprios recursos, sem sugestão, mas sendo a pergunta nova para ela. Esta é necessariamente
influenciada pelo interrogatório porque a forma como a pergunta é feita a força a raciocinar
numa determinada direção e a sistematizar o seu conhecimento de uma certa forma. Trata-se,
entretanto, de um produto original do pensamento, não havendo influência direta sobre o
raciocínio feito ou sobre os conhecimentos anteriores de que se utiliza para responder à
pergunta.
"crença espontânea" quando a criança não precisa raciocinar e pode dar uma resposta
imediata, por já ter sido formulada ou já ser formulável. Ocorre quando a pergunta não é
nova, ou quando a resposta é fruto de uma reflexão anterior e original.

Desta relação, as mais interessantes são as crenças espontâneas, anteriores ao


questionamento. As crenças desencadeadas permitem revelar o pensamento da criança e a
fabulação pode fornecer algumas indicações se interpretadas com prudência. Entretanto, o
não importismo e as crenças sugeridas devem ser severamente eliminados, o primeiro por
revelar apenas a incompreensão e o segundo, aquilo que o experimentador quis que a criança
dissesse.

Distinção entre os diferentes tipos de crenças

Além de ser muito difícil de estabelecer a distinção entre a crença espontânea e a


desencadeada, isto não se reveste de maior importância, uma vez que ambas são construídas
pela criança e o estudo das crenças desencadeadas é em si mesmo de grande interesse.
Ambas são susceptíveis da mesma uniformidade nas respostas de diferentes crianças. Isto
porque tanto as crenças espontâneas são fruto de uma reflexão anterior, como as crenças
desencadeadas não são inventadas a partir do nada, mas supõem esquemas anteriores, uma
orientação de pensamento própria de determinado período de desenvolvimento, hábitos
intelectuais, etc.
Há, entretanto, necessidade de se distinguir as crenças desencadeadas das crenças
sugeridas. Distinguimos duas formas de sugestão, igualmente temíveis: sugestão pela palavra
e sugestão pela perseveração. O único meio de evitar a primeira é conhecer a linguagem
infantil e formular as perguntas nessa mesma linguagem; assim qualquer pesquisa deve ser
precedida de outra sobre a forma espontânea das crianças se referirem ao assunto,
possibilitando a escolha do vocabulário mais adequado à formulação das perguntas, evitando
qualquer sugestão. A segunda é mais difícil de evitar, pois o simples fato de se continuar a
conversa após a primeira resposta, induz a criança a perseverar na visão que adotou. Todo
questionário ordenado em série provoca a perseveração, revelando apenas a
sugestionabilidade da criança e não sua forma de ver o mundo.
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A questão da fabulação é mais delicada, uma vez que crianças pequenas costumam
inventar uma solução, simplesmente porque ela lhes agrada. Neste caso, não se trata de
crença, mas de uma brincadeira. Se a criança chega a acreditar no que diz é pelo exercício, da
mesma maneira que acredita nos jogos pelo simples prazer de acreditar.
A criança mais velha (mais de 8 anos) pode fazer fabulação seja para troçar de quem
lhe faz as perguntas, seja para evitar refletir mais ainda sobre uma pergunta que a aborrece.
A criança menor, de 4-5 anos, pode fabular por ser um de seus processos de pensamento, e a
maneira mais cômoda de afastar uma perturbação. Neste caso, trata-se de uma espécie de
solução, utilizada quando não encontra uma forma melhor de enfrentar um problema difícil.
Finalmente, a fabulação pode conter resíduos de crenças anteriores ou, mais raramente,
tentativas de construção de crenças futuras.
A última distinção consiste em observar que a criança fabula quando se diverte e o
não importismo nasce do aborrecimento.

Regras e Critérios para Diagnóstico.

- para evitar o não importismo e a crença sugerida:

A crença sugerida é essencialmente momentânea, basta deixar de falar alguns


instantes e interrogar indiretamente a criança sobre as mesmas questões e a resposta se
modifica. Mas há crianças muito sugestionáveis, que mudam constantemente de opinião,
sendo então necessário continuar o interrogatório em profundidade para verificar como se
relacionam às demais crenças da criança. Isto porque as crenças sugeridas não se ligam às
demais crenças do sujeito nem se assemelham às crenças das outras crianças. Para tanto,
varia-se o enunciado das perguntas e faz-se outras sobre assuntos próximos. Desta forma
elimina-se também o não importismo que é ainda mais instável que a crença sugerida.

- critérios para reconhecer a fabulação

A fabulação é rica e sistematizada. Não pode ser eliminada pela contra-sugestão


porque a criança resiste e fabula ainda mais quando a pressão aumenta. A fabulação se
ramifica e prolifera até parecer solidamente encaixada em um conjunto de crenças
sistemáticas, dificultando a análise de suas raízes. A única forma de despistá-la é aumentar o
número de interrogatórios.
Quando se trabalha com um grande número de crianças de uma mesma idade, a
constatação de que a resposta suspeita é comum a todas, pode indicar que não houve
fabulação. Se apenas uma ou duas responderem da mesma forma, provavelmente ela
ocorreu; uma vez que se trata de uma invenção livre e individual. Entretanto, não basta este
critério, pois no caso de uma pergunta totalmente incompreensível o pensamento pode ser
orientado para a solução mais simples, mesmo que esta seja fabulada. Daí uma possível
uniformidade. Por outro lado, quando se interroga um grande número de crianças de idades
diferentes, se a resposta suspeita desaparece de vez, substituída por uma resposta de outro
tipo (sem um período intermediário), a possibilidade de fabulação é mais forte do que nos
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casos em que ela desaparece progressivamente, demonstrando uma lenta maturação (com um
período de respostas intermediárias).
Assim, convém observar o aparecimento da resposta correta. Se as respostas iniciais
se mesclam às corretas no estágio intermediário e no início do terceiro, pode-se estar
praticamente seguro de que as respostas iniciais não são fabuladas.

- distinção entre as crenças espontâneas e as crenças desencadeadas.

Trata-se da maior dificuldade na aplicação do método clínico; uma vez que ambas
resistem à sugestão, têm raízes profundas no pensamento do sujeito, apresentam uma certa
generalidade entre as crianças da mesma idade, perduram durante anos, decrescem
progressivamente sem ceder bruscamente entrando em fusão com as primeiras respostas
certas, ou seja, com as respostas devidas à pressão do grupo adulto.
A única maneira de distinguí-las consiste na observação pura, pela qual uma pesquisa
deve iniciar e terminar, uma vez que o estudo das perguntas espontâneas das crianças é um
poderoso auxiliar. Entretanto, convém não esquecer suas limitações já descritas, como a
ausência de questionamento espontâneo das crianças sobre muitos aspectos, cujas respostas
ao exame clínico são bastante sistematizadas.

Interpretação Dos Resultados


Há necessidade de se buscar um conjunto de regras de interpretação que conciliem o
máximo de flexibilidade ao máximo de rigor, e que permitam evitar o pré-conceito. Dois
pontos são particularmente importantes:
1º) A relação entre a fórmula verbal e a orientação de pensamento que a levou a
preferir uma solução à outra. No caso da resposta nitidamente desencadeada, esta deve ser
levada em conta como uma resposta espontânea ou são as tendências determinantes da
pesquisa da criança que devem ser levadas em conta?
São possíveis duas soluções: rejeitar todo resultado de interrogatório ou considerar
qualquer resposta desencadeada, por oposição às respostas sugeridas, como sendo a expressão
do pensamento da criança. Ora, as respostas não possuem todas o mesmo coeficiente de
espontaneidade, e considerá-las igualmente representativas do pensamento da criança pode
levar à graves distorções.
O princípio da interpretação das respostas desencadeadas e, em parte, das respostas
espontâneas, consiste em considerá-las como sintomas. Examinar um grande número de
perguntas de crianças e confrontar com as respostas obtidas por exame clínico.
2º) como separar, nos resultados dos interrogatórios, os achados originais das crianças
das influências adultas anteriores?
Duas soluções extremas podem conduzir ao erro: considerar que as crenças
propriamente infantis não existem ou que todas as crenças são realmente infantis, sem
influência adulta.
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Este princípio consiste em considerar a criança, não como um ser de imitação, mas
como um organismo que assimila as coisas para si, seleciona, digere-as segundo sua própria
estrutura.
Deste ângulo, mesmo aquilo que é influenciado pelo adulto pode ser original. Por
outro lado, as imitações puras ou as reproduções puras também são freqüentes e, ainda, à
medida que evolui, a compreensão que a criança tem do adulto aumenta e ela se torna
susceptível de assimilar as crenças circundantes.
Cinco critérios devem ser aplicados simultaneamente para distinguir a crença
elaborada pela criança, com apoio em suas estruturas mentais, da crença fruto da imitação do
adulto.
- a uniformidade de uma crença em um grande número de crianças, permite crer na sua
originalidade;
- à medida que a crença evolui com a idade da criança, há mais possibilidade de se tratar de
crença original da criança;
- se o seu desaparecimento não é brusco, ocorrendo um conjunto de combinações ou de
compromissos entre a antiga e a nova crença, é provável que seja original;
- se resistir à sugestão e apresentar múltiplas ramificações, aparecendo um conjunto de
reações aproximadas, rata-se de uma crença solidária a determinada estrutura mental.
- observe-se que os cinco critérios devem ser aplicados simultaneamente para distinguir a
crença - produto da estrutura mental da criança, da crença - fruto da imitação do adulto.
(critérios válidos até o início do pensamento operatório formal).

Bibliografia
PIAGET, Jean. Os Problemas e os Métodos. In: A Representação do Mundo na criança. Rio
de Janeiro. Record. s/d. p.5 a 32 (edição original: 1926).

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