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Mattuella, Psicanalise
Mattuella, Psicanalise
TRAUMA
CORPO
DISCURSO
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 48, jan./jun. 2015
Editores:
Deborah Nagel Pinho e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
Comissão Editorial:
Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Glaucia Escalier Braga, Joana
Horst, Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
e Otávio Augusto Winck Nunes
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem
por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos
teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas
e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa,
a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições
científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://
www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em outubro 2015. Tiragem 500 exemplares.
Resumo: O presente texto propõe que os seminários de Lacan sejam lidos como
significantes. Trabalha, também, as formulações lacanianas a respeito dos qua-
tro discursos, a distribuição dos lugares discursivos e as rotações que sofrem os
elementos que compõem cada um deles, quais sejam: discurso da histérica, do
mestre, universitário e do psicanalista.
Palavras-chave: discursos, agente, verdade, produção, outro.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise,
novembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto
APPOA; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicanálise e Psicopa-
tologia/ Universidade de Paris 7. E-mail: otavioaugustowincknunes@gmail.com
O
“ homem e a mulher, como tais, são fatos de discurso”. Lacan, ([1971]2009,
p.136).
“O dizer é justamente o que fica esquecido por trás do que é dito no que
se ouve”. Lacan, ([1971-1972]2010, p.69)
Essas duas frases, tomadas do ensino de Lacan, situam a especifici-
dade do discurso psicanalítico e nos oferecem um norte por onde podemos
seguir trabalhando. Nessa direção, pensei em tomar seus seminários como
significantes, ou seja, como sinalizadores de tempos de sua obra e que são
sempre, por definição, solidários. Momentos de produção em que há um an-
tes e um depois, que podemos ler a posteriori. Lacan insistia em dizer que
falava como analisante, dirigindo-se a sua plateia, que faria as vezes, então,
de analista, mesmo sem o saber. Ele procurava com isso acentuar que seu
discurso buscava um ponto de enunciação, procurava antes de tudo, a posi-
ção de sujeito do inconsciente.
Nesse sentido, podemos dizer que Lacan não se distanciava de Freud,
pelo contrário, chamava para si a responsabilidade pela sua proposta de re-
leitura da obra freudiana. No seminário De um discurso que não fosse sem-
blante, especificamente, vários são os momentos em que Lacan se volta aos
textos fundamentais de Freud para retomar e enfatizar pontos importantes do
seu ensino e da sua transmissão, além de retomar momentos da sua própria
produção, principalmente os que fazem parte dos Escritos ([1966]1998).
Então, um dos pontos que gostaria de propor para discussão é consi-
derar que o Discurso que não fosse semblante ([1971]2009) é um momento
de desdobramento conceitual de Lacan, que, junto com os seminários que o
precederam, como os que o sucederam, compõem movimentos necessários
para destacar as diferenças existentes entre os registros do real, do simbólico
e do imaginário, além de seus pontos de enlace.
Se é verdade que podemos ler o momento inicial da obra de Lacan
como aquele em há uma preocupação em re-estabelecer a primazia do sim-
bólico sobre o imaginário e as diferenças existentes entre esses registros,
havia um motivo muito claro para isso. As produções psicanalíticas posterio-
res a Freud, e contemporâneas a Lacan, privilegiavam efetivamente a ima-
ginarização da análise, em detrimento do registro simbólico, como lugar de
transmissão da cultura.
Se a partir do seminário De um Outro ao outro ([1968-1969]2004) encon-
tramos uma dedicação maior a incluir o registro do real nas suas formulações,
Lacan não dispensa em nenhum momento os registros do simbólico e do ima-
ginário. Pelo contrário, considera que, para poder abordar o real, é necessário
trabalhar a partir dos registros do simbólico e do imaginário. Movimento e mo-
mento necessários frente à incompletude de uma obra como a da psicanálise.
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11
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S1 o significante-mestre
S2 o saber (a cadeia significante, abreviada como S2)
$ o sujeito barrado
a o mais-de-gozar
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REFERÊNCIAS
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud [1952-1953]. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1983.
_____. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
1985.
_____. Escritos [1966]. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_____. De um Outro ao outro. Seminário [1968-1969]. Recife: Centro de Estudos
Freudianos. 2004.Publicação não comercial.
_____. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. 1992.
_____. Radiofonia [1970]. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro; Zorge Zahar
Ed. 2003. p.400-447.
_____. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse do semblante [1971]. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009.
_____. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 2010.
Recebido em 20/10/2015
Aceito em 18/03/2016
Revisado por Clarice Sampaio Roberto
16
TEXTOS
TRAUMA:
ficção, história, verdade1
Resumo: O presente texto trabalha o trauma, a partir das obras de Freud e La-
can, abordando os movimentos necessários para a inscrição do real, como con-
dições de elaboração. Para relançar a interrogação sobre o lugar desde onde o
analista pode operar frente ao trauma, foi utilizada uma obra de Mia Couto.
Palavras-chave: trauma, morte, real, simbólico, imaginário.
1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Trauma, abril de 2015, em Porto
Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA.
E-mail: liz-ramos@uol.com.br
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va sem estado, os ranhos lhe saíam de toda a cabeça”. O velho lhe dedicou
“paternais maternidades”, e “sem desperdício de palavra” deu-lhe o nome de
um filho, já morto. Ensinou-lhe “todos os inícios”: andar, falar, pensar. Mui-
dinga se “meninou” outra vez, mas, na solidão, o canto migrara de si. O que
fazer com a solidão? Se recuperou a vida, como recuperar a fala onde a vida
se realiza?
A mentira de Tuahir sobre o parentesco, o empenho da palavra, veicula
algo do desejo frente à pulsão de morte. Ao empenhar a palavra e nomear,
o velho enlutado se fez pai; este é um ato simbólico, ainda que a fantasia de
reencontrar o filho morto seja o motor do ato. Aqui a palavra e o nome traçam
os limites entre a vida e a morte, e limitam a voracidade da pulsão assassina.
Logo fogem deste campo. Respeitadas as diferenças: será que a emergência
do real, em transferência, confrontando o analista quanto à posição ética de
seu desejo de analista, não exige sempre um ato, assim como Tuahir viu-se
convocado ao ato?
Esta segunda infância foi apressada pelos ditados da sobrevivência. A
primeira está perdida. O miúdo perdeu a si mesmo, não sabe quem é, quem
são seus pais, de que aldeia vem. Interroga repetidamente o silencioso Tu-
ahir sobre seu passado. O velho, sábio de longa existência, mas em situação
na qual o saber ancestral não dá conta, diz que estão “sozinhos, mortos e
vivos, agora já não há país”. Só mais adiante conseguirá contar do que se
passou no campo de deslocados.
Segundo ponto a destacar: este retorno incessante de questões relati-
vas à perda da filiação, de referentes simbólicos, é tão impactante quanto o
elemento exterior. Este pequeno busca no parentesco uma suplência da re-
ferência simbólica perdida, chama Tuahir de tio que, apesar da “paternidade”,
o adverte: “o moço não abuse familiaridades”. Muidinga interpreta que tal tra-
tamento é só “a maneira da tradição”. E o que é melhor do que estar inserido
numa tradição? Muidinga é sobrevivente, investido pelo desejo do Outro, mas
ainda assim identificado a um morto e em meio a uma guerra. Nenhum deles
está livre do destino funesto. Qual seja: “morrer sem validade”. Isto é, sem
que o significante marque a passagem pelo mundo, do sujeito enquanto valor
fálico para o Outro. Morrer sem deixar rastro, inscrição.
É nisto que este romance é espetacular. Marcos do Rio Teixeira, no texto
Um novo realismo, publicado na Revista da APPOA, escreve:
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via nenhum lobo atrás dele (que o pobre menino tenha sido devorado
por uma fera de verdade, por ter mentido tantas vezes é apenas um
incidente). Mas aqui está o que é importante. Entre o lobo do vale e
o lobo da história existe algo flamejando. Este algo, este prisma, é a
arte da literatura, como diz Nabokov (Teixeira, 2006, p.96).
21
23
25
REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LACAN, Jacques. Conferência: A terceira [1974]. Cadernos Lacan. Publicação não
comercial, Porto Alegre: APPOA, vol.2, p.65, 2002.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2002.
TEIXEIRA, Marcos do Rio. Um novo realismo. Revista da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre, Porto Alegre, n. 30, p.91-98, jun. 2006.
Recebido em 29/04/2015
Aceito em 22/06/2015
Revisado por Gláucia Escalier Braga
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TEXTOS
TRAUMAS1
TRAUMA
Abstract: This paper discusses four conceptions of trauma in Freud, Lacan and
Herman. It aims to present the distinct metapsychologic structures that determine
each one of these conceptions, and at the same time claims that the traumatic
neurosis caused by atrocities among people disrupt the phallic organization and
generates terror. Consequently they disorganize the real, symbolic and imaginary
language structure in each subject. Specifying the nature of traumatic neuroses,
this work wants to contribute with the psychoanalytical treatment of these cases.
Keywords: traumatic neurosis, troumatisme, atrocities.
1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Trauma, abril de 2015, em Porto
Alegre.
2
Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Cam-
po Psicanalítico de Salvador. Pós-graduação em Clínica da Dor, UNIFACS, Salvador, 2000.
Mestre em História, Ensino e Filosofia da Ciência, 2007, UFBA. E-mail: elainefoguel@gmail.com
27
Introdução
Não sei como é hoje, mas quando eu era menino tive a oportunida-
de de ouvir e ver frequentemente essas klikuchas pelas aldeias e
mosteiros. Levavam-nas à missa, elas ganiam ou latiam feito cães,
o que ecoava em toda a igreja, mas quando traziam o Santíssi-
mo e lhes permitiam achegar-se a ele, a “possessão” cessava e
as doentes sempre se acalmavam por algum tempo. Menino, eu
sempre ficava muito admirado e estupefato com aquilo. Mas naquela
mesma época, em resposta às minhas indagações, ouvi de alguns
senhores de terra – e particularmente de meus professores da cidade
– que aquilo tudo era simulação para não trabalhar, que sempre se
podia erradicá-la com a devida severidade, e ainda respaldavam
28
I.
29
II.
III.
31
3
“Todos sabemos, por que inventamos um truque para preencher o furo (trou) do real. Lá onde
não há relação sexual, isso produz troumatisme. A gente inventa. Inventa-se o que se pode.”
Tradução livre da autora.
32
IV.
33
V.
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fálica, que essas tragédias suplantam, e ignoram de tal modo as leis da pólis
e do sujeito, que acabam por aniquilar as balizas simbólicas e imaginárias até
então em vigência. Consequentemente, tornam as operações de castração
do sujeito inócuas, anulando de forma grave as capacidades linguageiras de
interpretação, de imaginarização, enfim de metaforização. Invadem de forma
provisória ou definitiva até mesmo a estrutura do troumatisme. O real invade
como tsunami, recobrindo inclusive o espaço do objeto a, afetando o âmago
do desejo do sujeito, que permanece alijado do presente e massacrado pelas
feridas psíquicas.
Então, novamente é importante evitar a comparação equivocada que
a autora faz entre os sobreviventes e as histéricas de Freud: tal paralelismo
poderia levar a pensar – e não é isso que a própria Herman parece defender
–, que o recalque do desejo é o que estaria vigorando em ambas as estru-
turas. Entretanto, a leitura da obra de Herman mostra exatamente o oposto,
isso é, que nas vítimas das atrocidades o recalque fracassa de forma con-
tundente: as memórias das memórias retornam incessantemente do e no
real de várias formas: não só nos sonhos e não apenas como formações
do inconsciente, mas no pensamento cotidiano, através de lembranças,
imagens intrusivas, alucinações, flashes, divisão da atenção, dificuldade de
viver no presente, obsessão, foraclusão da realidade cotidiana, falsificação
das memórias. Oscilação entre querer esquecer e desejar nunca esquecer.
Entre querer estar com as pessoas e não suportar as pessoas. Entre pedir
ajuda e maltratar: não ocorre a bela indiferença. O que não cessa de não se
escrever são versões do testemunho, repetição e tentativa de completar, de
se livrar, de não deixar ocorrer, de ter estado prevenido. De ter estado em
outro lugar: não há trégua.
O tratamento psicanalítico, assim como o testemunho, seja ele literá-
rio ou ato político, busca restaurar não apenas a história que aguarda em
sofrimento, mas também reconstruir um novo laço social. Mas não o mundo
perdido, esse ficou esfacelado para sempre, como lembra Valéria de Marco:
REFERÊNCIAS
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Recebido em 14/12/2015
Aceito em 16/01/2016
Revisado por Clarice Sampaio Roberto
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TRAUMA:
TEXTOS acontecimento e experiência
na clínica psicanalítica1
1
Artigo reescrito a partir dos trabalhos apresentados na Jornada de Abertura da APPOA: Trau-
ma, abril de 2015, Porto Alegre, e na Jornada Preparatória ao Congresso Internacional da AP-
POA realizado em Santa Maria, agosto de 2015.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e Coordenador do
Acolhe Saúde/SM. E-mail: dassoler@terra.com.br
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3
Nessa data ocorreu o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), que resultou em 242 mor-
tos. As referências clínicas deste artigo são extraídas do trabalho realizado no Acolhe Saúde,
serviço SUS de atenção psicossocial criado especialmente para o acompanhamento às pessoas
afetadas pelo evento.
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ria, que seria responsável pela produção dos sintomas histéricos. Em acordo
quanto ao aspecto dissociativo da histeria e, portanto, do trauma, Freud e
Breuer discordavam do motivo pelo qual isso ocorreria. Para Breuer, tratava-
-se de uma predisposição constitucional, enquanto para Freud isso se dava
porque o conteúdo excluído provocaria angústia no sujeito por sua natureza
conflitiva.
Seria preciso, então, extrair um elemento a mais para produzir a mu-
dança definitiva e necessária, que levaria ao surgimento da psicanálise como
a conhecemos. Esse ponto se coloca quando Freud questiona a pertinência
da teoria da sedução sexual como produtora da neurose. A consequência de
colocar em dúvida a real ocorrência de tantas investidas sexuais dos adultos
em relação às crianças o leva a considerar o lugar da fantasia nos relatos
de traumas sexuais, culminando com o abandono da lógica da sedução em
1897. Com isso, entram em cena as fantasias inconscientes infantis, constitu-
ídas do material ouvido e visto pela criança no contexto da intimidade familiar.
Apesar disso, a sexualidade permanece central na neurose e a presen-
ça de fatos reais na sua etiologia estará subordinada a um esquema particu-
lar de funcionamento psíquico que inclui a noção de inconsciente como eixo
que demarca a especificidade epistêmica que define a psicanálise.
Como resultado dessa modificação teórica, trauma e neurose se sepa-
ram, e a noção de trauma adquire certo ostracismo, voltando à cena a partir
de 1915 com um novo fato clínico: os quadros traumáticos identificados nos
combatentes da primeira guerra mundial. Por ocasião do V Congresso da
IPA, em Budapeste, 1918, Freud é convidado a se pronunciar sobre os méto-
dos de tratamento utilizados para as neuroses de guerra e sobre a possibili-
dade da aplicação do método psicanalítico a esses quadros.
Num esforço para preservar a coerência da sua teoria, Freud esboça
uma explicação juntando, novamente, trauma e neurose, tendo o eu como o
elemento comum. Assim, nas neuroses traumáticas, o conflito do eu se daria
com um perigo externo, e na neurose espontânea esse conflito estaria rela-
cionado com a libido.
Contudo, alguns impasses restavam sem esclarecimentos, visto que os
sintomas apresentados na neurose de guerra não tinham substrato sexual
nem tampouco relação com o infantil. O principal problema que precisava
ser elucidado dizia respeito às experiências de inegável desprazer impos-
tas ao sujeito, circunstância que contradizia um dos pilares teóricos da obra
freudiana até aquele momento: o princípio do prazer como eixo regulador do
psiquismo. A discrepância mais evidente era o sonho repetitivo, no qual o
paciente revivia o acontecimento de maneira angustiada e literal, e não era
possível encontrar algum tipo de material que pudesse relacionar desejo e
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tempo, relativo ao impacto, mostra-se como um encontro que surge fora das
coordenadas de toda e qualquer antecipação, não encontrando qualquer cor-
respondência com o simbólico. Momento do susto, do choque, da invasão,
do predomínio do registro econômico. Já as sequelas, diriam respeito àquilo
que repercute no sujeito e seriam de outra ordem, mostram-se determinadas
pelas maneiras como o real se explica para cada sujeito.
De acordo com a autora, o toque do inconsciente não poderia estar au-
sente, justamente porque não seria possível ao sujeito falante não crer, supor
ou pensar em algo que o envolve em qualquer trama. Para ela, isso já faria
diferença, pois, denotaria que entre o acontecimento e suas repercussões,
nos é possível encontrar o inconsciente.
Dito de outra forma, o humano é um ser de linguagem. Nesse sentido,
nos é permitido deduzir como orientação clínica que o trabalho de elabora-
ção, de facilitação à narrativa em pacientes afetados por experiências trau-
máticas, deve ter sempre em conta que o falar comporta uma dupla face
entre o dizer e o impossível de dizer, entre a produção de sentido e o limite
ao recobrimento do furo do real.
Ao ser convocado à fala, o sujeito está sempre envolvido na dialética
entre o possível e o impossível de dizer. Essa distinção implica e convoca o
analista a promover deslocamentos em sua função a partir do jogo transfe-
rencial visando acolher aquilo que diz respeito à dimensão fantasmática e
aquilo que se põe como traumático. Se o falar, tomado na sua dimensão de
discurso, não recobre a falta, nem tampona o furo, pela resistência estrutural
ao sentido que a linguagem evidencia, por outro lado, a fala permite produzir
borda ao real de maneira que favoreça a redução de gozo.
No caso do trauma, mesmo na sua insuficiência, o simbólico permanece
como a via de tratamento. Dessa maneira, o retorno de algo no qual o sujeito
não se reconhece pode requerer a presença de alguém, não apenas na po-
sição de testemunho, mas, muitas vezes, no lugar de semelhante. Acolher o
trauma na sua potencialidade de elaboração reconhece que essa operação
não busca perpetuá-lo, nem presume o seu apagamento, visto que não há
palavra que o signifique. A tarefa de tocar as bordas do real pela linguagem
é uma possibilidade de produzir algo de novo quando não havia nada, jus-
tamente, porque na clínica psicanalítica é a relação de cada sujeito com a
linguagem que orienta a prática de cada analista.
46
REFERÊNCIAS
ENDO, P. Violências, elaboração onírica e horizonte testemunhal. Temas em psicolo-
gia (on-line). 2009, v. 17, n. 2, (p.343-349).
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica [1905]. In: ______. Obras comple-
tas. Rio de Janeiro: Imago, 1995. vol. I.
______. Sobre a transitoriedade [1915]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1995. vol. XIV.
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Janeiro: Imago, 1995. vol. XVIII.
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neiro: Imago, 1995. vol. XX.
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de Janeiro: Imago, 1995. vol. XXIII.
FUKS, B. A cor da carne. In: RUDGE, Ana Maria (org.). Traumas. São Paulo: Escuta,
2006.
KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,
2009.
NESTROVSKY, N.; SELIGMAN-SILVA, M. Catástrofe e representação. São Paulo:
Escuta, 2000.
RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
SOLER, C. Os discursos tela. In: ALBERTI, S.; RIBEIRO. M.C. (org.). Retorno do exí-
lio: o corpo entre a psicanalise e a ciência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.
Recebido em 09/10/2015
Aceito em 25/11/2015
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
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CORPO ESTRANHO:
TEXTOS do que da experiência traumática
não cessa de não se escrever1
Resumo: O trabalho busca dialogar com a poesia de Paul Celan em pontos nos
quais sua escrita toca a dimensão do real do corpo, colocando em cena nova-
mente algo que ficou desarticulado pela incidência do trauma. A questão inicial-
mente formulada aqui parte do fato de que a escrita celaniana busca atravessar
– por meio da linguagem e na própria linguagem – o horror da catástrofe vivida
no território europeu nos anos de 1933 a 1945, sendo esta uma forma de o poeta
tentar orientar-se e orientar os seus frente à violência daqueles tempos sombrios,
buscando desenhar/escrever a realidade.
Palavras-chave: corpo, letra, trauma, poesia, Paul Celan.
1
Trabalho apresentado no Congresso da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, em novembro
2015, em Porto Alegre. Elaborado a partir da tese de doutorado Trauma e real: do que não cessa
de não se escrever na poesia de Paul Celan, defendida em dezembro/2013, no Programa de
Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Doutora em Psicologia pelo
Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: bfguimaraes@hotmail.com
48
49
3
Tradução livre da autora.
51
Tiefimschnee,
Iefimnee,
I – i – e.
Nesse poema, Celan já não admite a arte, nem o livro de areia, nem os
mestres. Nada de um golpe de sorte, nada de um lance de dados. A arte, não
sendo mais de areia, torna-se uma arte de neve, reduzida ao mais particular
estreitamento. Essa redução encontra o silêncio. Em alemão, as letras em-
pregadas são: “I – i – e”4, indicando o movimento próprio da respiração: “I – i”
implica a inspiração; e “e” a expiração. Temos, ao final, um sopro. Letra que
se transforma em respiração: Atem. Presença do corpo, da pulsão – da vida
e da morte.
Repetição que finaliza em letra, em som, num movimento pulsional que
implica o corpo (a voz), tocando a dimensão do real. O poeta produz em ato
um esvaziamento, escavado na língua, e deixa cair a letra, como índice do
real.
Para acompanhar esse desdobramento da escrita celaniana, fazem-se
presentes as formulações lacanianas sobre a letra e o real, postuladas a
partir de 1971. Naquele ano, Lacan inicia seu seminário falando sobre um
discurso que não seria do semblante, no qual terá destaque não a literatura
propriamente dita, mas a litura, ou seja, a parte ilegível de um escrito. O que
dará lugar a uma aproximação à literatura de vanguarda, que não se sustenta
no semblante, mas que busca cavar a língua, esburacá-la, produzindo, como
efeito dessa operação, um resto e um “furo no saber” (Lacan, [1971]2009).
No seminário De um discurso que não seria do semblante, na lição inti-
tulada Lituraterra, Lacan ([1971]2009) debruça-se sobre a letra, partindo do
que lhe suscitou o encontro com a cultura e a escrita japonesas. É no retorno
de sua viagem ao Japão, naquilo que ele pôde avistar, por entre as nuvens,
no sobrevoo das terras siberianas, que ele (re)situa a função da letra.
4
No original em alemão, no último verso, o poema finaliza desta maneira: “Tiefimschnee,/
Iefimnee,/I – i – e”.
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5
Referência à comédia de Aristófanes, As nuvens, encenada no ano de 423 a.C. (Aristófanes,
1995).
53
O ato poético celaniano “nega o que é, pelo corte, pela quebra, pela
aniquilação da aparência” (Lins, 2005, p.30). Articula-se sob a forma de um
discurso que não se sustenta no semblante. Numa espécie de ruptura instau-
rada no espaço do poema, como no momento em que se precipita no texto
uma contrapalavra, nesse instante, podemos identificar o momento em que
a poesia acontece: “instante da catástrofe ou da revolta, quando das ruínas
emerge um dizer inesperado” (Lins, 2005, p.32). A obra de Celan articula-se
na “quebra de um mundo” (p.33) e, como ato, deixa cair a letra.
Essa letra (lettre), Lacan ([1971]2009) trata de distinguir do significante-
-mestre, dizendo que ela o carrega em seu envelope, já que se trata de uma
letra-carta, no sentido da palavra epístola. A carta (lettre) porta uma mensa-
gem elidida, essa mensagem que a letra-carta carrega para sempre chegar
a seu destino. Nesse seminário, ao aproximar-se da literatura de vanguarda,
Lacan invoca onde a psicanálise produz furo. “Será que a letra não é o literal
a ser fundado no litoral? [...] Não é a letra propriamente o litoral? A borda do
furo no saber que a psicanálise designa, justamente ao abordá-lo, não é isso
que a letra desenha?” (Lacan, [1971]2009, p.109).
O “furo no saber” é precisamente o lugar do trauma, ou seja, ali onde
se abre uma lacuna, um intervalo entre percepção e representação. Isso que
fica suspenso e irrepresentável retorna constantemente, como verificamos
no cotidiano da clínica psicanalítica. A letra, tanto na operação clínica quanto
nessa literatura que não se emite do semblante, constitui a borda desse furo,
desenhando um litoral. A maneira como Celan propõe sua escrita poética
destaca sua função de desenhar a realidade. A letra traça uma borda no
impossível de representar: o trauma. Como Lacan indica, o trauma é a forma
como o real se apresenta para o sujeito.
A poesia de Celan “faz um percurso em que a linguagem é levada a
seus abismos, desarticulada e rarefeita” (Lins, 2005, p.23). As letras caem
numa experiência vertiginosa que faz lembrar o ravinamento, os sulcos na
terra avistados por Lacan ([1971] 2009) em seu sobrevoo da planície siberia-
na. A escrita de Celan porta também aquilo que se apagou, sendo o poema
permanência dos rastros, da ruína da palavra. Trata-se de rasura, por onde
se consegue avistar os rastros, os sulcos, indicando “o que era matéria em
suspensão” (Lacan, [1971]2009, p.114) e que se precipitou pela ruptura do
significante. Discurso que esvazia a ilusão, e nos coloca face ao real. Ao se
dirigir ao emudecimento, o poema radicaliza o enfrentamento desse impossí-
vel e não cessa de não se escrever.
54
REFERÊNCIAS
ARISTÓFANES. As nuvens. Tradução de Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
BÜCHNER, George. A morte de Danton. São Paulo: Brasiliense, 1965.
CELAN, Paul. Le méridien [1960]. In: ______. Le méridien & autres proses. Édition
bilingue. Traduit de l’allemand et annoté par Jean Launay. Paris: Seuil, 2002.
______. Reverse du souffle [Atemwende] [1967]. Traduit de l’allemand et annoté par
Jean-Pierre Lefebvre. Éditée par Bertrand Badiou. Édition bilingue. Paris: Seuil, 2003.
______. Cristal. Seleção e tradução Claudia Cavalcanti. Edição bilíngue. 1a Reim-
pressão. São Paulo: Iluminuras, 2009.
FREUD, Sigmund. El delirio y los sueños en La Gradiva de W. Jensen [1907]. In:
______. Obras completas. 4. ed., v. III. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
______. Lecciones introdutorias al psicoanalisis – Leccion XVIII – La fijacion al trauma
– Lo inconsciente [1917]. In: ______. Obras completas. 4. ed., v. II. Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981.
______. Mas alla del principio del placer [1920]. In: ______. Obras completas.4. ed.,
v. III. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
______. Moises y la religion monoteista – tres ensayos [1939]. In: ______. Obras
completas. 4. ed., v. III. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
GUIMARÃES, Beatriz da Fontoura. Trauma e real – do que não cessa de não se es-
crever na poesia de Paul Celan. Orientador: Prof. Dr. Fernando Aguiar Brito de Sousa;
coorientador: Prof. Dr. Edson Luis André de Sousa. Tese (Doutorado em Psicologia).
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2013.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante
[1971]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
______. La tercera [1974]. In: Actas de la Escuela Freudiana de Paris. Barcelona:
Ediciones Petrel, 1980, 159-186.
LINS, Vera. Paul Celan, na quebra do som e da palavra – poesia como lugar de pen-
samento. In: ______. Poesia e crítica – uns e outros. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005,
23-34.
Recebido em 06/12/2015
Aceito em 07/01/2016
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
55
TEXTOS UM CORPO:
entre a cena e o mundo1
1
Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA: Corpo: Ficção, Saber, Verdade,
novembro de 2015, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre pelo Ins-
tituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; Professor convidado do CEP (Centro de
Estudos Psicanalíticos); Co-autor do livro Temas da Clínica Psicanalítica (Ed. Exprimento, 1998);
Autor de artigos em revistas psicanalíticas; Co-Curadoria no SESC-SP: Figuras da Alteridade:
Cinema Israelense e Cinema Árabe (novembro de 2015). E-mail: lb.tkacz@terra.com.br
56
57
59
por isso é uma aceitação do recalacado”. Desse modo, a enunciação “Eu não
vou ser pega”, dita em análise repetidamente, afirmava-se o inverso, deman-
daria ser pega. No desafio à lei, invocaria um pai? Da mesma forma que o
invocaria na enunciação, “Quando estou no metrô, penso em ultrapassar a
linha amarela e me jogar nos trilhos”, dita no início de sua análise? Um pai
que pudesse inseri-la em outra cena, por exemplo, em algum lugar discursivo
no “universo das letras”, como se um código de barras apagado se transfor-
masse em significantes e fizesse borda ao gozo do Outro.
Josilda quase não lia os livros furtados, permaneciam como hieróglifos
sem serem decifrados. Em vários momentos, dizia: “Minha mãe era uma lei-
tora voraz, isso é confuso para mim, eu não posso gostar das coisas que ela
gostava”. Intervim: “Por que não?” O que se mostrou no decorrer do tempo
foi que a analisante havia decidido doar alguns livros. O lugar escolhido foi a
biblioteca da cidade de origem dos avós paternos, não por acaso, pois foi sua
avó quem a introduziu no universo da literatura infantil.
Havia outra chave discursiva contígua a essa, que se refere à cena trau-
mática, cujo irrepresentável insistia em levar o corpo a um além do princípio
do prazer, na passagem ao ato.
Ela se prostituiu numa casa sadomasoquista, escolheu um nome para
sua personagem, utilizava uma máscara, consumia cocaína, alternava entre
a posição de dominação e a de dominada no jogo sexual. Na de dominação,
ultrapassava frequentemente o limite dos corpos dominados, sangrava-os,
tendo de ser contida pela gerente. Ela disse: “Via no rosto daqueles homens o
rosto do meu primo” A intervenção da funcionária impedia a passagem ao ato,
como se no olhar do Outro algum significante paterno interditasse o gozo. Um
ato que recobriria o objeto a, descolando a superposição das imagens, o que
faria relançá-la a alguma cena.
Se aqui a interdição da gerente teria como efeito impedir a passagem
ao ato, descolando a superposição de imagens, à noite, antes de dormir,
realizava um ritual protetor, segundo ela, para que o primo já falecido não
entrasse no quarto. A analisante afirmou: “Como posso ter medo, se ele está
morto?” O ritual se dava da seguinte maneira: ela espalhava despertadores
pelo quarto, a fim de que cada um tocasse a cada duas horas; garrafas va-
zias eram enfileiradas na porta; o abajur permanecia aceso. Um ritual que se
estabelecia numa tentativa de evitar o retorno do objeto a no real, no extremo
da angústia. Quando o real se comprimia e a angústia se tornava insuportável
ela saía de casa e caminhava até um viaduto distante de sua rua, permanecia
algum tempo parada, pensando em se jogar. Segundo a analisante, havia um
pensamento que às vezes retornava à memória, este relacionado com a avó
paterna, que dizia: “Se fizer algo errado, não conseguirá se olhar no espelho”.
60
Por mais paradoxal que o enunciado seja, esse a acalmava, como se alguma
moldura do espelho pudesse reencontrar uma rede significante.
Tempos depois, a analisante queixava-se de dores intensas pelo corpo,
passou a frequentar menos a casa de prostituição. Um fato novo foi dito,
durante alguns anos escreveu histórias e, apesar da dislexia, as vendia a au-
tores de livros que precisavam de ideias novas. Entretanto, ela interrompeu
essa atividade, sem deixar de escrever seus textos, os quais ficavam escon-
didos numa gaveta. Combinamos que poderia trazê-los para serem lidos na
sessão. Assim foi feito algumas vezes. Num determinado momento, a anali-
sante disse: “Os livros são partes do meu corpo”.
Pouco antes de deixar a análise, narrou uma cena que nunca havia dito,
pois queria apagar da memória: duas tias conversavam e, lá pelas tantas,
uma delas relembrou a história de quando, ainda menina, a mãe da anali-
sante sofrera abuso sexual, a criança tentou contar, mas ninguém acreditou.
Passaram-se alguns anos comprovou-se o ato, algo pôde ser lido.
Para concluir, retomo o seminário da Angústia, num ponto em que Lacan
reafirma o que ele chamou da dimensão temporal da angústia e a dimensão
temporal da análise. Ele inicia dizendo que o desejo do Outro é o de ques-
tionar a raiz mesma do desejo, como a, como causa desse desejo, e não
como objeto. Ele diz: “Essa dimensão temporal é a da análise” (Lacan, 2005,
p.169). Em seguida, Lacan afirma: “É pelo fato de o desejo do analista sus-
citar em mim a dimensão da expectativa que sou apanhado na eficácia da
análise. Eu gostaria muito que ele me visse como isto ou aquilo, que fizesse
de mim um objeto” (Lacan, 2005, p.169).
Esse percurso analítico caminhou até onde pôde, numa tentativa de si-
tuar na “linha amarela” (cena do metrô) um lugar em que, na transferência,
a dimensão temporal da angústia não decidisse pela identificação do sujeito
ao objeto a, despencando para o mundo, mas permanecendo em alguma
cena na dimensão temporal do desejo, em busca do objeto enquanto causa.
Naquela linha tênue, um corpo entre a cena e o mundo, algumas redes sig-
nificantes puderam se situar, o que não quer dizer que cessaria a repetição
discursiva, porém houve uma experiência, na análise, a qual, ao menos por
uma vez, alguns traços apagados levaram um sujeito falante a reencontrar
algum ponto limite.
61
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. A negação [1925]. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
LACAN J. Apêndice falado sobre a Verneinung de Freud, por Jean Hyppolite [1954].
In:______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
Recebido em 21/01/2016
Aceito em 25/04/2016
Revisado por Deborah Nagel Pinho
62
A VERGONHA E
TEXTOS
O OBJETO OLHAR1
Luciano Mattuella2
1
Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA 2015, Corpo: Ficção, Saber, Ver-
dade, novembro de 2015, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Psicólogo (UFRGS); Especialista em Atendimento Clínico - Psicanálise (UFRGS);
Mestre em Filosofia (PUCRS); Doutor em Filosofia (PUCRS com estágio doutoral na Université
de Strasbourg); Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).
E-mail: mattuella@gmail.com
63
a cada vez que entra em seu campo visual algum traço positivado do falo: a
barba, os músculos, os contornos agudos do rosto. Elementos que parecem
estar presentes naquele ideal fálico suposto no olhar da tia. Este é um ponto
que eu gostaria de sublinhar: este paciente me ajuda a entender a vergonha
como algo relacionado ao campo do visual, do escópico – em outros termos:
ao objeto olhar (já como anunciava Freud na citação do começo da minha
fala). Sentir-se envergonhado implica supor-se visto: se o Outro não olhas-
se, eu não sentiria vergonha. Aqui me recordo de uma singela passagem do
livro Totalité et infini, do filósofo lituano Emmanuel Levinas: “A vergonha da
profanação faz baixarem os olhos que deveriam examinar minuciosamente a
descoberta” (Levinas, 1994, p.339). Levinas nos ajuda a distinguir dois olha-
res: aquele que profana e aquele que se abaixa, envergonhado. Logo, de um
lado temos a profanação; do outro, a vergonha.
Se nos ativermos a esta linha de pensamento – mais associativa do que
propriamente lógica, diga-se de passagem – podemos formular a seguinte
pergunta: ao desfalecer quando se olha no espelho, o que meu paciente evita
profanar? Ainda: o que meu paciente viu no espelho que fez seu corpo sair
da cena?
Em uma segunda vez que conta a cena do espelho, meu paciente lem-
bra que seu olhar dirigiu-se aos nascentes pelos no seu peito adolescente
– o que remete à fala da tia na cozinha da casa dos pais. Esta recordação
lhe surge a partir da associação com um sintoma que o vem incomodando
muito há algum tempo: uma compulsão irremediável de mexer nos cabelos
todas as vezes que se sente intimidado ou nervoso. É como se a tia lhe
tivesse apontado, à queima-roupa (já que estamos falando de nudez), a
emergência do sexual: entretanto, em vez de envaidecer-se de sua mas-
culinidade prometida, o menino se vê tomado por uma sensação de impos-
tura. Envergonha-se – baixa os olhos – como uma forma de manter algo
improfanado: para preservar a completude do Outro, talvez? Afinal, supor a
diferença sexual – e as suas manifestações no corpo – é também suportar
castrar o Outro. Quando a tia lhe aponta insígnias fálicas, acontece como
que um descompasso de imagens: aquela que a tia lhe devolve (como o
espelho do banheiro) e aquela em que ele se reconhece, que então se torna
um ponto esvaziado de significação no Outro. Neste sentido, o desfaleci-
mento, ao ver o corpo nu no espelho, acaba remetendo a este curto-circuito
representacional.
Deste modo, lanço a ideia de que a vergonha tem relação com uma
modalidade específica de relação com o objeto olhar. Uma forma de en-
laçar o objeto com o corpo todo, como tentarei mostrar mais adiante.
Também por esta via, acredito que podemos pensar na dimensão esté-
65
3
Entendo como estética neste contexto aquela dimensão que está relacionada com a insistência
do objeto olhar no psiquismo, bem como com suas produções imagéticas. Para mais sobre este
assunto, cf. FREUD (1996a), artigo no qual Freud relaciona as produções inconscientes com a
súbita intromissão do objeto olhar na cena do mundo.
66
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[…] carece da vergonha [grifo meu] diante dos outros, [o] que seria
a principal característica desse estado, ou ao menos não a exibe de
forma notável. No melancólico talvez possamos destacar um traço
oposto, uma insistente comunicabilidade que acha satisfação no
desnudamento de si próprio ([1915] 2010, p.131).
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Fausse reconnaissance (‘Dejà raconté’) no tratamento psicanalíti-
co [1914]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, v.13.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia [1915]. In: ______. Introdução ao narcisismo:
ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução e notas de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago Editora, 1996a , v.7.
FREUD, Sigmund. O estranho [1919]. In: Edição standard brasileira das obras psi-
cológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996b, v.17.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psica-
nálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LEVINAS, Emmanuel. Totalité et infini: essai sur l’extériorité. Paris: Kluwer Academic,
1994.
Recebido em 08 /02/2016
Aceito em 04/03/2016
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
68
TEXTOS
CORPO (EN)CENA:
o risco de cada um1
1
Trabalho apresentado na Jornadas Clinicas da APPOA: Corpo e discurso em Psicanálise, rea-
lizada em Porto Alegre, novembro de 2014.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto AP-
POA; Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS; Doutora em Psicanalise e Dança
pela Université-Paris XIII. E-mail:angelalbecker@gmail.com
69
Q
“ ueria morrer! Mesmo assim não ia adiantar... Melhor seria não ter nas-
cido”.
Ouço as palavras de Pedro, adolescente cuja angústia exprime o quanto
lhe é insuportável a passagem para uma posição sexuada. Quando vem para
atendimento, apesar dos seus 17 anos, não consegue sair de casa, a não ser
acompanhado da mãe ou do irmão. Na rua sente-se um estranho, olhado pe-
los outros. Só anda de táxi, pois, no ônibus, todos olham para ele. Não quer
viver. Melhor seria ainda... não ter nascido...
O corpo, vivo ou morto, é prova de nossa existência no mundo. Mes-
mo morto não nos retira do campo simbólico, portanto, não nos poupa das
consequências deste encontro. O corpo no mundo nos diz, antes de mais
nada, desta nossa condição mortal, passageira, fugaz. Sua transformação,
imposta pela puberdade, nem sempre é comemorada com portas abertas ao
futuro, numa idealização da juventude. Por vezes, essa transformação é sen-
tida como um encontro angustiante com a pulsão de morte. As mudanças no
corpo aparecem como prova da sua transitoriedade, fazendo a morte muito
presente.
Diante desta angústia, rapidamente o que ganha interesse para Pedro e
para muitos outros adolescentes é um mundo que não é tão fugaz, nem tão
banal, nem tão ridículo como este no qual se é obrigado a viver. O mundo
virtual. Nos jogos on-line, aos quais dedica grande parte do seu dia e noite,
pode viver num mundo em que tempo, espaço e até identidade sexual podem
ser controlados por ele. Neste, pode escolher qual personagem deseja ser.
Desde um lindo herói que só faz o bem e que aos poucos se transforma numa
heroína, até o pior vilão, mais bizarro e temido de todos. Isso tudo num tempo
único, que faz desaparecer a realidade do dia, da noite e dos dias da sema-
na. Dormir durante o dia e ficar a noite toda acordado para jogar faz parte de
estar fora deste mundo organizado pelo discurso do Outro, do qual Pedro não
quer mais fazer parte.
Se a sexualidade se instaura no campo do sujeito pela via da falta, es-
pecialmente na adolescência há o adiamento desta instauração. Isto, porque
tornar-se sexuado é perder algo no real. A sexuação exige o encontro com a
castração. Ser um sujeito para o sexo é perder a imortalidade, é cair no golpe
da morte individual. É sempre no caminho do engano que se vai em busca de
uma realização sexual, pois a pulsão é fundamentalmente pulsão de morte.
Para se ter uma posição sexuada é preciso sustentar a falta, a perda de sen-
tido que o real do corpo torna presente.
Pedro descobre que “na vida não há liberdade”, mas que também não
poderá haver “liberdade sem a vida”. E não é uma questão exclusiva da ado-
lescência desejar não ter nascido, já que nem na morte se pode experimentar
70
71
A guerra revelou ao ser humano que não há consistência nas suas re-
presentações simbólicas. Há, na sua estrutura, uma nudez de sentido, um real
que o habita e nenhum encobrimento pode fazê-lo desaparecer. Há algo de
comum nesse real que a guerra desnuda e o real do encontro com o sexo.
Por isso, o olhar, na adolescência, se torna tão fundamental, como pulsão
escópica. Há uma verdadeira apelação ao olhar do outro, numa tentativa de
retomada constitutiva. Busca-se o íntimo, através do olhar de fora, encontro
com o êxtimo. O próprio Freud já descrevia esta relação de sujeito e objeto
como um circuito, quando descreveu a pulsão escópica como exibicionismo e
voyeurismo. Ativo e passivo, como via de mão dupla entre o meu olho e o do
outro. Perceber-se percebendo, olhar-se olhando. Há no corpo adolescente
uma permeabilidade que o põe em risco, risco desta afânise, risco de transfor-
mar-se mimeticamente em corpo do mundo, como o corpo do gozo do mundo.
Desde que iniciou sua análise, Pedro modificou-se corporalmente. Ema-
greceu, começou a fazer a própria comida, passou a fumar e andar a pé.
Na rua encontra olhares e se ensaia como agente do olhar, experimentando
curiosidade pelos outros. É na construção de personagens para si que apa-
rece a possibilidade de integrar seu corpo no espaço através de um traço.
Traço unário, ficção singular. Ficção que não exclui o risco. Embora tenha
ensaiado criar personagens em cenários fora do mundo virtual, sempre há o
risco de perder-se como carne no mundo.
Se os adolescentes produzem sintomas que envolvem o corpo e sua
relação com o espaço-tempo também indicam onde se encontra o gozo con-
temporâneo. Até que ponto isto que aparece na forma sintomática das fobias
ou das síndromes de angústia está presente na forma de um gozo na nossa
cultura? O gozo de um encobrimento sistemático da condição mortal de nos-
so corpo?
Em 1930, Roger Caillois ([1930]1990) chamou a atenção sobre uma ex-
periência de vertigem arriscada e a chamou de magia mimética. Esta se dá
pelo fato de que todo corpo é imagem que não vê completamente a si própria,
então sua tendência é complementar-se numa mímesis com o ambiente. Cai-
llois referia-se à capacidade de alguns animais transmutarem-se conforme o
ambiente. Mas anunciava que não se tratava de uma proteção e, sim, de uma
“tentação do espaço” que apresentava o risco de uma captura da imagem,
uma assimilação imaginária. No mimetismo, as posições de sujeito e objeto
misturam-se no campo da visão. Perceber-se sendo olhado é estar lá nos
olhos do outro, e isso desloca o sujeito de lugar. É a vivência desta mudança
de agente da visão em objeto do olhar que se trata no mimetismo. É vivida
como estranha disseminação do corpo no campo da percepção. Mistura o
corpo próprio à cena do mundo para ressurgir como um olhar externo. “O que
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73
res chamam de Novo Circo, certamente tem algo a dizer sobre nosso gozo
contemporâneo em relação ao corpo. O que parece estar presente aí do que
podemos refletir é a experiência do risco e da vertigem. As artes circenses
parecem brincar com a sensação de estar fora do corpo. Como descreve
Emmanuel Wallon, no livro organizado por ele, chamado O circo no risco da
arte (2009), no circo o corpo está em suspensão.
Numa cultura tão preocupada em não perder o controle dos próprios
pés, a estética do vazio exerce fascínio. Os corpos exprimem a impossibili-
dade de juntar o dizer e o fazer, de fundir o ser e o mundo, de habitar o solo,
mas viver sonhos. Os intérpretes convidam o medo para dentro do círculo da
lona. A vertigem está na plateia, na vivência da proximidade com a morte e
na possibilidade de dominar este risco. A vida é colocada em jogo na cena e
a morte é convocada. O artista circense inicia sua técnica explorando o de-
sequilíbrio, até aprender a controlá-lo. O surgimento do domínio e a virtuose
sobre o desequilíbrio são as etapas finais. Seu trabalho consiste em desviar
os limites do perigo, em aprender a administrar o medo, em positivá-lo. A
proeza do artista de circo está intimamente ligada à superação de si e esta
superação tem a ver com correr o risco. O corpo é ferramenta, objeto molda-
do para um ato de superação. O sujeito mira no horizonte da arte. Seu corpo
torna-se ato simbólico.
Ao contrário da liberdade encontrada por Pedro no seu mundo on-line,
onde a morte não atinge seu corpo, o personagem do trapézio disciplina o
corpo para experimentar o limite da sua imortalidade. Na arte do circo, a li-
berdade só é vivida se puder incluir a morte. Nela, o corpo encena a vivência
do risco para, superando-se, deixar seu traço.
REFERÊNCIAS
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Lisboa: Ed. Cotovia, 1990.
FREUD, Sigmund. Lo perecedero (1915). In: ______. Obras completas. V. II.
4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
MERLEAU-POINTY, Maurice. O visível e o invisivel. São Paulo: Ed. Perspec-
tiva, 2003.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise [1964]. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: arte contemporânea e psicanálise.
São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2013.
WALLON, Emmanuel (org.). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Ed.
Autêntica, 2009.
Recebido em 20/10/2015
Aceito em 16/01/2016
Revisado por Cristian Giles
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