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EPISTEMOLOGIA

DO FENÔMENO
RELIGIOSO
Diversidade cultural
e religiosa
Mayara Joice Dionizio

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar diversidade cultural e religiosa.


>> Analisar o papel do ensino religioso na promoção do respeito à diversidade
no ambiente escolar.
>> Descrever tradições, crenças e ritos presentes no país.

Introdução
A diversidade cultural tem um conceito amplo, referindo-se a diversos aspectos da
vida humana nos contextos social e individual. Estudar a diversidade é importante
na formação dos indivíduos para que o respeito e a tolerância sejam praticados
socialmente. Nesse estudo, temos como base a formação histórica e cultural do
Brasil, que, desde a colonização, apresenta uma tessitura diversificada.
Neste capítulo, você vai acompanhar as discussões a respeito do termo “di-
versidade” e sua aplicabilidade na compreensão cultural e religiosa no Brasil. Vai
conferir como o ensino religioso pode contribuir essencialmente à integração
diversificada e ao respeito em sala de aula. Por fim, vai conhecer as tradições, as
crenças e os ritos que atualmente existem no Brasil.

Diversidade cultural e religiosa


A contemporaneidade apresenta uma tessitura social e cultural extrema-
mente complexa. Isso não significa que em períodos anteriores a pluralidade
2 Diversidade cultural e religiosa

de ideias, culturas e modelos políticos e econômicos não existissem ou


que fossem menos distintos entre si. Significa, sobretudo, que dignificar a
diferença é um reconhecimento estritamente contemporâneo. Iniciou-se na
modernidade em virtude do papel que a razão assumiu nas ciências, princi-
palmente nas ciências humanas, que se desmembraram em áreas voltadas
ao estudo da cultura como objeto principal, como a antropologia. Contudo,
o discurso essencialmente racionalista, ao mesmo tempo em que promoveu
nas ciências humanas o cientificismo, classificou culturas não ocidentais
como “incivilizadas”. Eram consideradas sociedades evoluídas aquelas com
significativo progresso, que as incluíam no rol das sociedades civilizadas,
criando uma alteridade depreciativa entre o “nós” e o “eles”.
Com o fim da modernidade, as ciências humanas se abriram para outras
formas de fundamentação teórica além da racional-científica. Passaram a
considerar outras teorias que não tinham caráter estritamente científico e
empirista, como a metafísica, a ontologia, entre outras. Essa abordagem
envolve os termos “pluralismo” e “diversidade”, que apresentam conceitos
distintos. Recentemente, essa distinção vem sendo reivindicada por autores
como Beckford (2003) e Berger (2014) sob o argumento de que o pluralismo é
normativo, enquanto a diversidade é descritiva. Beckford (2003, p. 268, tra-
dução nossa) argumenta que “[…] o pluralismo é uma resposta ideológica ou
normativa à diversidade empírica”. Isso significa que pluralismo e diversidade
são sistemas autônomos: um não decorre necessariamente do outro. Além
disso, a diversidade tem um caráter mais empírico, sendo aquilo que existe
de diverso em uma sociedade; já o pluralismo tem um caráter ideológico que
celebra a diversidade, que a reconhece. O pluralismo está associado à nor-
matização da diversidade como positiva, pensamento necessário aos estudos
sobre a sociedade contemporânea a partir da secularização decorrida da
modernidade e aprofundada na atualidade. Já a diversidade mantém o caráter
factual, de constatação da diversidade de modo metodológico e analítico.
Ao fim da década de 1990, a diversidade foi tema de debates em diversas
convenções da Unesco que, por sua vez, passou a promover o termo como
aquilo de múltiplo que há em diversos grupos sociais. Segundo Wood (2003) e
Berger (2014), essa promoção do termo “diversidade” fez surgir uma bifurcação
conceitual: distingue-se a diversidade autônoma do pluralismo da diversidade
empírica. A dignificação do termo criou uma divisão entre a diversidade tal
como passou a ser pensada e entendida (ou até institucionalizada academi-
camente) daquela que já existia nas sociedades. Etimologicamente, o termo
advém do latim diversitas, pensado sinonimamente em relação à diferença
e variedade. Descritivamente, a diversidade significa a representação da
Diversidade cultural e religiosa 3

multiplicidade cultural e/ou a qualidade do que é diverso frente à homogenei-


dade ou à monocultura. Como podemos notar, a diversidade aparece sempre
associada à pluralidade, de acordo com Crystal (2002, p. 33, tradução nossa),
“[...] incorrigivelmente plural” e, por isso, sempre pensada em relação à cultura.
Podemos compreender que a diversidade, longe de ser um conceito rela-
tivo, consegue abarcar uma tipologia complexa, o que leva diversos autores,
como Johnson e Grim (2013), Wood (2003), Gardenswartz e Rowe (c2016), entre
outros, a pensarem definições diversas para o termo. As definições diferem e
ao mesmo tempo se completam, o que é possível justamente pela tipologia
da diversidade. Segundo Johnson e Grim (2013), a diversidade interna é carac-
terizada por um grupo étnico ou religioso, e a diversidade externa pode ser
pensada a nível social. Já para Gardenswartz e Rowe (c2016), a diversidade
se divide na quatro camadas a seguir.

1. Organizacional: relaciona-se ao local de trabalho.


2. Externa: reporta-se às escolhas individuais, como religião, educação
e hábitos.
3. Interna: associa-se a características próprias do nascimento, como
etnia e gênero.
4. Personalidade: relaciona-se à personalidade individual.

Podemos observar que, mesmo sendo um conceito, a diversidade se mos-


tra multifacetada em sua compreensão; por isso, havendo segmentação em
seu estudo, o que melhor a define é a heterogeneidade. Pensar a fração, que
nada mais é a divisão, a decomposição da diversidade em seus segmentos, é
essencial para compreendê-la em sua ampla manifestação cultural.
É nesse contexto que encontramos a fração religiosa que compete à di-
versidade. Segundo Alesina et al. (2003), essa fração é a que se mostra menos
arbitrária, justamente porque a religião é melhor delimitada entre os grupos.
Isto é, a distribuição de grupos religiosos, via de regra, é regionalizada em
comunidades. A heterogeneidade cultural aparece em blocos maiores, que
são grupos localizados em determinadas regiões. Dificilmente, segundo
Alesina et al. (2003), encontramos indivíduos pertencentes a uma religião e
afastados totalmente de suas comunidades e instituições que possibilitam
a prática de sua fé. Portanto, o estudo sobre a diversidade cultural religiosa
encontra-se, muitas vezes, atrelado à distribuição demográfica dos grupos
que compõem determinada sociedade e cultura.
Com essa delimitação fundamental do que se entende por diversidade,
podemos compreender a diversidade cultural em relação às manifestações
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religiosas no Brasil. Na convenção de novembro de 2001, a Unesco proclamou


a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. Em seu primeiro artigo,
encontra-se o reconhecimento sobre a diversidade cultural como uma herança
comum da humanidade (UNESCO, 2002). Além disso, se retomarmos a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, encontramos, em seu artigo XVIII que:

[…] toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;


este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular (NAÇÕES
UNIDAS, 1948, documento on-line).

No Brasil, temos a Carta Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988), que defende a


liberdade de consciência de crença, o direito ao exercício dos cultos e liturgias,
bem como o Programa Nacional dos Direitos Humanos, que, além de combater
a intolerância religiosa, incentiva o diálogo entre diferentes movimentos
religiosos “[…] sob o prisma da construção de uma sociedade pluralista,
com base no reconhecimento e no respeito às diferenças de crença e culto”
(BRASIL, 2010, p. 210). Essas declarações e programas, portanto, buscam não
só garantir o direito à crença e a seu exercício, mas também promover o
debate entre pessoas de religiões diferentes. Isso ocorre em virtude — além
das conquistas históricas de direitos em relação ao exercício de religiões
não oficiais, ou não hegemônicas — da própria percepção da diversidade
de culturas religiosas como fundamental à humanidade. Isto é, há algo em
comum em todas as manifestações religiosas, por mais distintas que sejam
em suas doutrinas e contextos: a busca por um sentido metafísico.
Essa constatação, possível graças às ciências das religiões, permite iden-
tificar em diversas religiões fenômenos individuais e sociais semelhantes, a
ideia de um sagrado, rituais, cultos, celebrações, instituições que acolhem
seus membros, além do uso de utensílios e instrumentos simbólicos. Essas
semelhanças, de acordo com Corrêa (2008), evidenciam a necessidade de
institucionalização das práticas religiosas como forma de reconhecimento
e dignificação de suas existências em uma sociedade. Por mais que cada
religião seja singular em sua formação histórica e cultural, elas se equiparam
frente à necessidade de garantias e direitos constitucionais. Ao garantir a
existência de crenças antagônicas, o Estado passa a reconhecer de forma
pública a legitimidade dessas instituições religiosas e, por sua vez, promove
a diversidade cultural.
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O Estado tem o poder de interferir nas políticas imigratórias, mas


não diretamente na diversidade cultural empírica entre os povos
que, por sua vez, ocorre com a migração, como salienta Umberto Eco (2002,
p. 109-110): “[…] as imigrações são controláveis politicamente, e as migrações
não; são como os fenômenos naturais”. Portanto, embora o Estado interfira
nas políticas migratórias, a diversidade cultural e religiosa se dá sem sua in-
terferência imediata.

Em relação ao Brasil, podemos dizer que é essencial que o Estado garanta


direitos à liberdade de crença e seu exercício. Muito disso se deve não somente
à multiplicidade cultural e religiosa que identificamos na atualidade, mas
também à própria formação cultural heterogênea de nosso país. Lembremos
que o Brasil, desde sua formação como país colônia, apresenta um mapa
religioso diversificado. Em princípio, quando tratamos de cultura brasileira,
é necessário retomar essa diversidade original: povos indígenas, africanos e
colonizadores portugueses. Posteriormente, com a chegada dos imigrantes
europeus e orientais, essa diversidade se acentuou ainda mais.
No que compete à diversidade religiosa, é imprescindível que reconhe-
çamos a contribuição desses povos ao que chamamos aqui de diversidade
empírica. Apesar dos contornos históricos distintos em relação à chegada
de cada um desses povos ao Brasil (ou em relação aos que aqui já estavam),
a fixação dessas culturas em solo brasileiro fez com que a diversidade fosse
vivida e, atualmente, é uma das características mais fortes do país. Como
ressalta Ribeiro (1995, p. 20), “[…] o Brasil emerge, assim, como um renovo
mutante, remarcado de características próprias, mas atado genericamente à
matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só
aqui se realizariam plenamente”. Essas características lusitanas possibilitaram
a implementação do catolicismo como religião hegemônica, que perdurou até
segunda metade do século XX. Muito recentemente, as religiões de outras
matrizes passaram a serem reconhecidas pelo Estado brasileiro.
Na segunda metade do século XX, as religiões reconhecidas ainda eram
aquelas ligadas ao cristianismo; outras religiões, distintas em suas definições
de sagrado, ficavam à margem do reconhecimento social, principalmente as de
matrizes africanas, que se tornaram o principal alvo de intolerância religiosa.
Isso evidencia o racismo estrutural da sociedade brasileira, que mantém
resquícios da escravidão. Por serem religiões que sincretizam elementos do
cristianismo (imposto aos negros escravizados) com a filosofia e a teologia
africana, essas religiões foram, e são vistas ainda hoje, de forma depreciativa.
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Conclui-se, a partir dessas noções, que a diversidade é um tema emergente


na sociedade contemporânea, na medida em que as práticas ideológicas
hegemônicas passam a apresentar fissuras, o que se reconhece no tecido
social: percebe-se o surgimento de uma heterogeneidade cultural insurgente
ao final do século XX. Muito disso se deve ao progresso acelerado decorrente
da globalização e do avanço tecnológico, que possibilitou a disseminação
de pensamentos e culturas de forma simples e rápida. Por isso, atualmente,
pensar o pluralismo religioso é essencial para promover respeito, liberdade
e equidade entre as instituições religiosas e seus membros.

Ensino religioso na promoção do respeito à


diversidade
A escola é o primeiro ambiente social que garante certa autonomia à criança.
Por mais que a criança conviva com outros indivíduos, até da mesma faixa
etária, é na escola que ela se vê em um ambiente composto por pessoas que
não estão ali crucialmente por uma relação de afeto. É na escola que a criança
percebe o outro com suas necessidades e diferenças. Portanto, é na escola
que a criança se coloca socialmente. Nessa experiência, os valores morais
também se mostram, o que demonstra que a gestão do espaço escolar do
ponto de vista ético é extremamente importante para o desenvolvimento do
respeito frente à diversidade.
O ensino religioso é uma ferramenta para que a escola promova o de-
bate e a compreensão de culturas diversas, tão importantes em um país
que, apesar da constituição multiétnica, tem altos índices de violência por
intolerância em relação a racismo, homossexualidade, religiões não cristãs,
entre outros. No Brasil, as diretrizes curriculares são direcionadas ao ensino
público. As diretrizes para o ensino religioso, por sua vez, têm como base as
ciências das religiões, instituindo como tarefa da disciplina a promoção da
diversidade religiosa com uma metodologia que compreenda, no mínimo,
as manifestações religiosas dos alunos em questão. Contudo, a assimilação
cultural, educacional e formativa dessa forma de trabalhar o ensino religioso,
atualmente, encontra discussões. Para compreendê-las, voltemos brevemente
à origem da instituição escolar brasileira.
A escola pública brasileira, segundo Lobrot (1992), foi originalmente
concebida de acordo com os ideais promovidos pela burguesia que aderiu
ao protestantismo luterano em consonância com os ideais iluministas da
modernidade. Isto é, para o autor, a escola pública tal como é concebida na
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atualidade pouco mudou em relação a sua concepção original e sua estrutura.


Trata-se da institucionalização e da formalização da escola entre os séculos
XIV e XVIII: a burguesia, após a Reforma Protestante de Lutero, se viu obrigada
a atender aos ideais protestantes de criar acesso público à educação para
que todos pudessem ler as Escrituras Sagradas. Dessa fora, foram surgindo
escolas voltadas à alfabetização e à educação moral.
Progressivamente, com o aumento da população instruída intelectual-
mente, pensamentos sobre a necessidade de laicização econômica, social e
cultural foram ganhando força. Segundo Lobrot (1992), esse processo ainda
persiste no modelo curricular escolar público, que privilegia os conteúdos
racionais e cognitivos ainda como rastro do racionalismo científico da moder-
nidade. Isso pode explicar a presença na realidade escolar de pensamentos
hegemônicos que ainda relutam frente às disciplinas que trabalham outra
dimensão do conhecimento humano. A hegemonia do discurso religioso que
desqualificava o argumento científico, portanto, deu lugar à hegemonia do
racionalismo científico. O ensino confessional foi substituído pelo ensino
voltado às disciplinas exatas e, com isso, foi se criando uma hierarquia reversa
que acaba não valorizando o conhecimento de forma equilibrada e integral.
O objetivo da educação ainda apresenta, segundo Lobrot (1992), por meio
de um corpus propedêutico, a produção de indivíduos que sirvam como mão
de obra necessária à Industria, ainda que contemporânea. Na modernidade,
o racionalismo acabou por hierarquizar o conhecimento, bem como o tempo
entre os conteúdos, o que ficou fixado como essencial à formação de qualquer
sujeito, ao menos no que compete à escola pública. Com isso, a escola passou
a formar indivíduos prontos para desenvolver atividades ligadas às esferas
técnicas e econômicas, ocorrendo a desvalorização das humanidades e um
deficit no desenvolvimento integral dos alunos. Resta a indagação: como
pode a escola ser pensada como lugar de promoção à diversidade se o seu
currículo ainda privilegia um pensamento hegemônico sobre a educação?
Segundo Gimeno Sacristán (1995), esse modelo ainda vigente se faz pre-
sente não só na promoção das disciplinas racionalistas — a saber, aquelas
que não levam à reflexão crítica sobre a existência e a sociedade —, mas
também na linguagem padronizada e no modelo de avaliação, acarretando
na hegemonização do conhecimento no sentido hierárquico do que se deve
conhecer. Consequentemente, observa-se a negação da diversidade cultural,
na medida em que o currículo apresenta uma seleção de alguns conhecimentos
em detrimento de outros.
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Na disciplina de ensino religioso, encontramos duas concepções


curriculares:

1. a da escola como instrumento fundamental de evangelização, contri-


buindo para o sistema civilizatório e colonizador;
2. a que rejeita o ensino confessional como fundamento do ensino
religioso.

Por mais que tenha ocorrido a desconsideração moderna da religião em


favor da secularização social, o ensino religioso como ensino confessional
serviu muito bem ao ideal racionalista da modernidade em sua estrutura edu-
cacional. Questões subjetivas passam a ser vistas como menos importantes
na formação do sujeito, o que acaba sendo sanado pelo discurso religioso
em alguns aspectos.
Pensar as humanidades nesse contexto e, com elas, o ensino religioso
como instrumento de promoção à diversidade se mostra um desafio. Por
mais que o currículo atual busque privilegiar a diversidade, o modelo escolar
público ainda resiste estruturalmente moderno. Por outro lado, no século
XXI vimos a reinserção de disciplinas como filosofia e sociologia no currículo
escolar, que se encontravam subalternas às disciplinas de estudos sociais
desde a censura ditatorial. Isso abre um espaço para pensar essa formação
integral como essencial ao currículo, por mais que a carga horária dessas
disciplinas sejam reduzidas em comparação às disciplinas somente racio-
nalistas (matemática e gramática, por exemplo). O ensino religioso passa
a ser implementado em seu caráter epistemológico, o que contribui para a
discussão sobre a diversidade religiosa e a promoção de culturas outras no
ambiente escolar:

Também as filosofias de vida se ancoram em princípios cujas fontes não advêm


do universo religioso. Pessoas sem religião adotam princípios éticos e morais cuja
origem decorre de fundamentos racionais, filosóficos, científicos, entre outros.
Esses princípios, geralmente, coincidem com o conjunto de valores seculares de
mundo e de bem, tais como: o respeito à vida e à dignidade humana, o tratamen-
to igualitário das pessoas, a liberdade de consciência, crença e convicções, e os
direitos individuais e coletivos (BRASIL, 2018, p. 441).
Diversidade cultural e religiosa 9

De acordo com Ribeiro (2009), isso exige uma didática específica pensada
diretamente segundo o termo religiosidade:

1. dignificar as experiências, memórias e valores de todos os alunos


igualmente;
2. promover o diálogo com base nessas distintas prospecções de mundo,
buscando incitar a abertura e o acolhimento de uns com os outros;
3. explorar as culturas e contextos religiosos, sempre buscando relacioná-
-los à vida ordinária em seus múltiplos aspectos.

Essa didática, segundo Ribeiro (2009, p. 242), possibilita que a religiosidade


seja vista e vivida pelos alunos como naturalmente humana, que “[…] pode
promover uma aproximação entre a diversidade religiosa e algumas conquis-
tas da modernidade, como a ética de um universal humano, transreligioso
e transfilosófico”.

Tradições, ritos e crenças no Brasil


A última grande pesquisa sobre as religiões presentes no Brasil foi o Censo
do IBGE de 2010, que identificou a existência de dezenas de religiões no país
(IBGE, 2010). Para estudá-las, costuma-se dividi-las em matrizes religiosas para
designar eixos paradigmáticos e defini-las conforme sua origem geográfica
e histórica, além da identidade de seus elementos. São quatro as principais
matrizes religiosas no Brasil: indígena, ocidental-europeia, africana e oriental.

Um fenômeno muito comum no Brasil é o sincretismo religioso,


fusão de ritos e crenças entre diferentes religiões e matrizes. A
identificação dos orixás, cultuados por religiões como a umbanda, com santos
católicos é um exemplo do sincretismo religioso brasileiro, bem como a presença
de benzedeiros e benzedeiras, a prescrição de ervas medicinais, entre outras
práticas, são identificadas como sincretismo religioso entre práticas xamânicas
indígenas e cristianismo.

A matriz indígena é uma das mais variadas em formas e religiões. Até


mesmo povos da mesma etnia podem ter mitologias, crenças e manifesta-
ções religiosas próprias. Com base em Eliade e Couliano (1993), é possível
identificar dois grandes paradigmas referentes às religiões indígenas no
Brasil. O primeiro é identificado como “religiões da Floresta Tropical”, que
se refere mais especificamente às religiões dos povos que habitam a Bacia
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Amazônica até as Guianas. O segundo é identificado como “religiões do Gran


Chaco”, que são as religiões do centro do continente sul-americano entre o
Mato Grosso e os Pampas.
As divindades das religiões da Floresta Tropical “[…] ocupam uma posição
intermediária entre um ser supremo e um herói cultural, sendo esta última
função mais marcada” (ELIADE; COULIANO, 1993, p. 53). Essas religiões têm em
comum a existência de um universo invisível e suprassensível, capaz de ser
acessado apenas por meio de estados alterados de consciência “[…] como
o sonho, o transe, a visão provocada pela inalação de drogas, etc., ou ainda
por uma predisposição mística natural adquirida após um treino especial”
(ELIADE; COULIANO, 1993, p. 54). Outro elemento comum são as crenças em
espíritos que assumem diferentes papéis, como seres que controlam animais
e outros elementos da natureza, além de espíritos de antepassados que, de
algum modo, participam da vida dos vivos. Os xamãs ou pajés são os espe-
cialistas religiosos com funções de cura do corpo social e do corpo humano.
Os pajés costumam acumular o papel de curandeiros e orientadores sociais,
políticos e espirituais.
As Religiões do Gran Chaco se assemelham às das Florestas Tropicais em
relação à instituição do xamanismo e na crença de seres sobrenaturais que
habitam um mundo invisível e sobreposto ao mundo dos seres humanos. Há
mitos que contam a origem do mundo e dos seres que nele habitam, além de
explicarem as relações entre os seres. As religiões descrevem de modo distinto
os seres sobrenaturais supremos com características de heróis culturais ou
divindades (ELIADE; COULIANO, 1993).
O cristianismo faz parte da matriz ocidental-cristã brasileira, introduzido
no Brasil com a chegada dos portugueses a partir de 1500, sendo considerada
religião oficial do país até o fim do século XIX (WACHHOLZ, 2011). Na atualidade,
o cristianismo é, em número de adeptos, a principal matriz religiosa brasi-
leira, ainda em constante mudança. No entanto, a partir 1991, identifica-se
a diminuição do número de católicos no Brasil e o aumento do número de
evangélicos (IBGE, 2010).
Destaca-se, na história brasileira, a catequização forçada de populações
indígenas e dos africanos trazidos como escravos ao Brasil, bem como a
proibição de crenças judaicas e protestantes. O cristianismo foi amplamente
imposto aos povos ameríndios e aos africanos escravizados, utilizado como
sistema ideológico de reforço da hierarquia social por meio da elaboração e
da imposição de duas teologias (WACHHOLZ, 2011):
Diversidade cultural e religiosa 11

„„ a da culpabilização, que tinha como alvo os povos não cristãos e se


destinava à denúncia dos “pecados” dos “selvagens”;
„„ a da acomodação, que cria uma ética tranquilizadora da consciência
dos escravocratas, por meio de pensamentos fatalistas de que tudo é
a vontade de Deus, além de ressaltar a necessidade de tutelar, ensinar
e “converter” os povos “selvagens” da desgraça do inferno.

Em relação aos protestantes, antes do século XIX sua presença foi pontual,
porque, após a invasão holandesa, foi aprovada uma lei que proibia a pre-
sença de “estrangeiros” no Brasil, legislação que tinha o evidente objetivo de
evitar outras invasões e consolidação dos poderes monárquicos português e
brasileiro, bem como impedir a expansão protestante, indo contra calvinistas
franceses, reformados holandeses, anglicanos, protestantes alemães, entre
outros (WACHHOLZ, 2011).
A partir do século XIX, observou-se a inserção de diversas correntes pro-
testantes no Brasil, que de um modo ou de outro confrontavam o catolicismo
por meio de propostas de denotar as inverdades e irrealidades da fé católica.
Wachholz (2011, p. 793) afirma que “[…] o protestantismo precisou do solo
católico para se firmar, negando e estigmatizando, contudo, esse solo. Inver-
samente, o catolicismo romano precisou se reinventar a partir da inserção
do protestantismo, igualmente estigmatizando e negando-o”. É, portanto,
uma política de retroalimentação, com ambos buscando atingir supremacia.

O protestantismo não possui uma instituição, como a Igreja Católica


Romana dos católicos, que unifica as principais doutrinas e dogmas.
Por isso, os protestantes têm doutrinas e dogmas variados, sendo difícil definir
um perfil único de seus adeptos. Porém, chama a atenção que os adeptos
a correntes pentecostais e neopentecostais representem mais de 60% dos
evangélicos brasileiros, conforme dados do IBGE (2010).

Em relação à matriz africana, Prandi (1998) explica que a formação das


religiões afro-brasileiras envolve as crenças dos africanos trazidos na di-
áspora, as relações e hierarquias socais já existentes no Brasil e a relação
com as demais crenças e religiões. Segundo o autor, podemos separar o
processo de formação dessas religiões em três momentos: sincretização,
branqueamento e africanização.
A sincretização ocorreu a partir da chegada dos africanos escravizados
no Brasil, formando religiões e práticas a partir do sincretismo com o catoli-
cismo imposto a eles e a religiões indígenas. Prandi (1998) explica que muitas
12 Diversidade cultural e religiosa

práticas religiosas africanas se fundam em cultos ancestrais baseados nas


famílias e suas linhagens, o que não pode ser reproduzido, uma vez que, com
a escravidão, deterioraram-se as estruturas sociais e familiares tradicionais.
Por isso, a religião tradicional pode ser apenas parcialmente reproduzida.
Esses fatos, geraram, principalmente, duas consequências. O catolicismo
ganhou força como cultura de inclusão das populações negras após o fim
da escravidão e gerou o efeito de uma dupla ligação religiosa estabelecida
a partir do sincretismo. Desse modo, somente a partir dos anos 1960 e em
razão das tradições culturais preservadas, é que as religiões de matriz africana
começaram a afirmar suas origens, podendo ser legitimadas na vida social.
O branqueamento se refere ao processo de formação da umbanda no início
do século XX, que decorreu da junção de elementos do espiritismo kardecista,
preceitos cristãos e tradições do candomblé. A formação da umbanda foi
um processo para “[…] ‘limpar’ a religião nascente de seus elementos mais
comprometidos com a tradição iniciática secreta e sacrificial, tomando por
modelo o kardecismo, que expressava ideais e valores da nova sociedade
capitalista e republicana, ali na sua capital” (PRANDI, 1998, p. 157).
Apesar de diversas alterações, como a eliminação quase completa de
sacrifícios de sangue e utilização da língua vernácula, manteve elementos
do candomblé. Uma das principais mudanças desse período foi interferir
em hierarquias sociais rígidas e incentivar a mobilidade social, tornando-se
uma religião aberta a todos, irrompendo na origem social ou racial de seus
praticantes. Isso, porém, até o final dos anos 1950, ainda era uma tentativa
de apagar as origens africanas da religião com a predominância de práticas
brancas e europeias (PRANDI, 1998).
A partir dos anos 1960, houve um processo de africanização do candomblé
e de religiões afro-brasileiras. Nesse período, marcado por efervescências
culturais e de contracultura, passaram a ser valorizados aspectos culturais,
antropológicos e da cultura negra. A africanização do candomblé, nesse
contexto, significa:

[…] o retomo deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e


mitos que foram deturpados e perdidos adversidade da diáspora; voltar à África
não para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio
cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento
público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo negra
e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá (PRANDI, 1998, p. 161-162).

Africanizar não significa propriamente viver como os africanos. Trata-se


de valorizar o simbolismo próprio do candomblé, legitimá-lo como religião,
Diversidade cultural e religiosa 13

recuperar sua autonomia em relação ao catolicismo, etc. Em todo esse pro-


cesso, a religião também passa por transformações, se altera, mas se legitima
como religião, elemento e patrimônio cultural brasileiro (PRANDI, 1998).
As religiões de matriz oriental, por sua vez, são bastante numerosas e
incluem algumas das mais antigas que se tem registro, como o hinduísmo,
o budismo, o confucionismo, além de outras denominadas “novas religiões”
orientais, como a messiânica, a seicho-no-iê, a perfeita liberdade e a tenrikyo.
O fluxo migratório das populações orientais define, em grande medida,
a expansão dessas religiões no Brasil. As imigrações de japoneses ao Brasil,
que começaram oficialmente em 1908 e findaram aproximadamente após a
Segunda Guerra Mundial, trouxeram diversas religiões e influências religiosas.
Segundo o Censo do IBGE (2010), as religiões orientais com maiores números
de adeptos no Brasil são o budismo e as chamadas “novas religiões” orientais
de origem japonesa. Não é de se negar, porém, a existência e a influência de
outras práticas comumente vistas no Brasil, como ioga e meditação.

As quatro matrizes brasileiras já demonstram por si só a diversidade


religiosa no país. Neste capítulo, não pretendemos esgotar a descri-
ção de cada uma delas, em vista do número de religiões, da diversidade cultural
(que se reflete na religiosa) e da singularidade de crenças de determinados povos.

Referências
ALESINA, A. et al. Fractionalization. Journal of Economic Growth, v. 8, n. 2, p. 155-194, 2003.
BECKFORD, J. A. Social theory and religion. Cambridge: Cambridge University, 2003.
BERGER, P. L. The many altars of modernity: toward a paradigm for religion in a pluralist
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Leitura recomendada
BORIN, L. C. História do ensino religioso no Brasil. Santa Maria: UFSM, 2018. Disponível
em: https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/358/2020/02/hist%C3%B3ria-do-ensino-
-religioso-no-brasil-diagrama%C3%A7%C3%A3o-FINAL-1.pdf. Acesso em: 16 fev. 2021.

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