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APRESENTAÇAO: Estevão Martins (UnB)

Significados de Jorn Rusen para investigações na área do ensino de História.

Maria Auxiliadora Schmidt (UFPR) Isabel Barca (Uminho-PT); Tânia Braga Garcia

(UFPR).

TEXTOS DO JORN RUSEN:

01 – Didática da Historia: passado, presente e perspectivas a partir do caso

alemão.

Publicado originalmente na Revista History and Theory (1987)

Publicado em português na Revista Práxis Educativa. Ponta Grossa, PR, v.1, n.1,

16,, jul.-dez, 2006.

Traduzido para o português por Marcos Roberto Kusnick. Revisão de tradução por

Luis Fernando Cerri.

02 – Aprendizado Historico.

Rüsen, Jörn. Historisches Lernen, in: Bergmann, Klaus; Fröhlich, Klaus; Kuhn,
Annette; Rüsen, Jörn; Schneider, Gerhard (eds.). Handbuch der
Geschichtsdidaktik. Seelze/Velber: Kallmeyer, 1997, 5a. ed., p.261-265. Tradução
de Johnny R. Rosa, mestrando na Universidade de Brasília; revisão de Estevão
de Rezende Martins. Brasília: 2009. Com a autorização do autor.

03 – O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica:

uma hipótese ontogenética relacionada à consciência moral.

Publicado em Rusen, Jorn. Studies in Metahistory. Pretoria: Human Sciences

Research Council, 1993, pp.63-84. Tradução para o português de Ana Claudia

Urban. Revisão: Maria Auxiliadora Schmidt.


04 – Experiência, interpretação e orientação: três dimensões da aprendizagem

histórica.

Publicado orientalmente em: Rusen, Jorn. Studies in Metahistory. Pretoria: Human

Sciencies Research Council, 1993, pp. 85-93. Traduzido para o portugues por

Marcelo Fronza. Revisao: Maria Auxiliadora Schmidt

05 – Narrativa histórica: fundamentos, tipos, explicação

Publicado originalmente em inglês em: Rusen, Jorn. Studies in Metahistory. Pretoria:

Human Sciences Research Council, 1993, pp.3-14. Traduçao para o portugues por

Marcelo Fronza. Revisão: Maria Auxiliadora Schmidt.

06 – O livro didático ideal

Tradução do espanhol – Jorn Rusen. El libro de texto ideal. In. Revista Iber –

Didactica de las Ciencias Sociales. Geografia e Historia.Monografia: Nuevas

Fronteras de la historia. N.12, Ano IV, Abril 1997, pp.79-93. Traduçao para o

portugues de: Edilson Chaves. Revisão: Maria Auxiliadora Schmidt.

07 - Narratividade e objetividade nas ciências históricas

Textos de História v. 4, n. 1 (1996) 75-102; tradução e revisão de Estevão de

Rezende
JÖRN RÜSEN E O ENSINO DE HISTÓRIA

Organizadores: Maria Auxiliadora Schmidt


(UFPR); Isabel Barca (UMINHO); Estevão
de Rezende Martins (UnB).

Financiamento: Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) Brasil e Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) de Portugal.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: JÖRN RÜSEN, HISTORICIDADE E CONSCIÊNCIA


HISTÓRICA................................................................................................. 07
INTRODUÇAO: SIGNIFICADOS DO PENSAMENTO DE JÖRN RÜSEN
PARA INVESTIGAÇÕES NA ÁREA DO ENSINO DE HISTÓRIA...............10
DIDÁTICA DA HISTÓRIA: PASSADO, PRESENTE E PERSPECTIVAS
A PARTIR DO CASO ALEMÃO...................................................................21
APRENDIZAGEM HISTÓRICA....................................................................38
O DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA NARRATIVA NA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA: UMA HIPÓTESE ONTOGENÉTICA
RELATIVA Ã CONSCIÊNCIA MORAL........................................................47
EXPERIÊNCIA, INTERPRETAÇÃO, ORIENTAÇÃO: AS TRÊS
DIMENSÕES DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA.......................................73
NARRATIVA HISTÓRICA: FUNDAMENTOS, TIPOS, RAZÃO..................85
O LIVRO DIDÁTICO IDEAL........................................................................100
NARRATIVIDADE E OBJETIVIDADE NAS CIÊNCIAS HISTÓRICAS.......120
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APRESENTAÇÃO

HISTORICIDADE E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

Estevão de Rezende Martinsi

Jörn Rüsen é professor emérito da Universidade de Bielefeld (1989-1997),


no estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália, onde sucedeu na cátedra a
Reinhardt Koselleck. Antes fora professor na Universidade de Bochum (1974-1989),
na de Berlim e na de Braunschweig. Sua carreira foi coroada com a presidência, por
dez anos (de 1997 a 2007), de um dos centros mais destacados de investigação em
ciências humanas da Alemanha, o Instituto de Ciências da Cultura
(Kulturwissenschaftliches Institut) do mesmo estado, na cidade de Essen. Estudou
História, Filosofia, Pedagogia e Literatura na Universidade de Colônia, onde obteve
o grau de doutor em 1966.
Rüsen milita, há décadas, com sua reflexão sobre os fundamentos da
consciência histórica, do pensamento histórico, da cultura histórica e da ciência
histórica, desde a perspectiva de um humanismo intercultural, de uma comunicação
intercultural. Sua bibliografia articula História, Filosofia, Antropologia e Historiografia
de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo
contemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos. Seu pano de fundo
é, por certo, o modelo ocidental, de feitura europeia. Esforça-se, sistematicamente,
todavia, para escapar à clássica armadilha do etnocentrismo, ao estudar as
civilizações e os valores com que entramos em contato desde que a expansão
europeia se acelerou, a contar do século 15. Dentre essas experiências diversas de
consciência histórica, Rüsen tem analisado em especial as culturas chinesa, sul-
africana e islâmica. Três universos de experiência histórica que, em particular no
final do século 20, tornaram-se importantes para a formação da consciência histórica

i Professor e pesquisador da Universidade de Brasilia


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de todos os que são modelados na tradição europeia e nos mundos em que esta
prevaleceu no ordenamento cultural, como nas Américas.
O humanismo fundante, que Rüsen adota e expõe, constitui-se em uma
espécie de mínimo denominador comum a todo e qualquer agente racional humano,
pouco importa onde, quando ou como. Para além do laivo metafísico presente nessa
visão, seu substrato é a concepção geralmente aceita dos direitos do homem e do
cidadão, em suas diversas expressões desde a declaração da Virgínia, em 1776, até
as que vieram a ser concretamente debatidas e adotadas no espaço público
internacional a partir de 1948. A historicidade empírica da realidade das sociedades
e das culturas, que envolve a cada um de nós como indivíduo pensante e agente, é,
por conseguinte, o ponto de partida para encontrar, em sua diversidade, o que nos
faz iguais, livres e solidários. Ou o que nos deveria fazer iguais, livres e solidários.
Dentre as diferentes razões que Rüsen entende terem causado, no passado,
o afastamento e mesmo a contraposição entre os seres humanos, sob formas às
vezes radicais, surge uma que ele considera de especial relevância: a de um
aprendizado histórico capenga, unilateral, autocentrado, discriminante. Desde muito
cedo, já que a cátedra que ocupou em Bochum incluía em suas diretrizes
programáticas a preocupação com a didática da História, Rüsen refletiu e fomentou
a crítica dos processos de aprendizado, formadores da subjetividade empiricamente
preenchida pela experiência do tempo, no tempo e sobre o tempo. Rüsen considera
a didática em duas dimensões: a tradicional, voltada para o sistema escolar
institucionalizado, e a genérica, social, em que pensar o tempo vivido se faz no dia-
a-dia, por um sem número de meios. Modernamente, é de reconhecer que o
ambiente escolar tem um peso grande nesse processo de aprendizado. Mas não é
único.
Rüsen é amplamente conhecido por sua trilogia de Teoria da História, cuja
tradução brasileira foi publicada pela Editora da Universidade de Brasília: I: Razão
Histórica (2001), II: Reconstrução do Passado (2007), e III: História Viva (2007).
Os textos reunidos no presente volume contribuem para expandir o acesso
dos leitores de língua portuguesa ao apresentarem a faceta do pensamento
rüseniano que lida com o processo de formação, por aprendizado, da consciência
histórica. Essa consciência se exprime pelo discurso articulado em forma de
narrativa. O aprendizado se realiza ao longo de uma dupla experiência: uma é a do
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contato com o legado da ação humana, acumulada no tempo, e que chamamos


comumente de 'história', não raro com inicial maiúscula. Esse contato se dá de forma
espontânea, no convívio social do quotidiano, nos múltiplos âmbitos da experiência
concreta vivida. Essas experiências emolduram as tradições, as memórias, os
valores, as crenças, as opiniões, os hábitos que se acumulam e nos quais se
formam, se forjam os agentes, desde pequeninos – a começar pela linguagem e
pelo convívio familiar. A outra experiência é a escolar. Numa como noutra se pode
dizer que há um aprendizado de duas mãos: aprende-se com o que se encontra ou
com quem nos encontramos; inversamente, aprendem conosco aqueles com quem
convivemos e, a partir de nossas ações concretas, produz-se no mundo vivido
realidade transformada. Os processos de mediação são constantes e
intercambiáveis.
Rüsen está atento à experiência elementar, própria ao aprendizado
espontâneo quanto induzido, que por tradição privilegia (o que é normal) o familiar, o
costumeiro. Sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir
humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que
constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à
expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do
quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino. Considera que o recurso
à estética do estilo e à retórica da narração é necessário, e mesmo intrínseco, ao
processo discursivo em que o pensamento e a consciência histórica se exprimem.
Em tempos de racionalidade argumentativa, no entanto, Rüsen exige que a
competência teórica e metódica na produção do conhecimento histórico confiável
esteja à base da competência narrativa.
A sedução da palavra não dispensa o rigor de seu conteúdo.A reflexão sobre
as propostas de Rüsen apresentadas aqui pode contribuir notavelmente para o
crescimento e a autonomia da ação crítica de quem vive a história, de quem a
investiga, de quem a ensina, de quem a aprende – em um processo contínuo de
tomada de consciência de sua própria historicidade.

Estevão de Rezende Martins


Universidade de Brasília
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SIGNIFICADOS DO PENSAMENTO DE JÖRN RÜSEN PARA INVESTIGAÇÕES


NA ÁREA DA EDUCAÇÃO HISTÓRICA

Maria Auxiliadora Schmidtii


Isabel Barcaiii
Tânia Braga Garciaiv

A investigação no domínio da educação histórica pressupõe que a


aprendizagem da história seja considerada pelos jovens como significativa em
termos pessoais, de modo a lhes proporcionar uma compreensão mais profunda da
vida humana. Uma das linhas mais frutuosas desta pesquisa visa compreender as
ideias de crianças e jovens na perspectiva (confirmada por vários estudos
essencialmente qualitativos) de que é possível a construção de ideias históricas
gradualmente mais sofisticadas, no que respeita à natureza do conhecimento
histórico. Tal questão implica uma especial atenção às ideias "de segunda ordem"
que os alunos tacitamente constroem ao aprenderem a história substantiva (LEE,
2005). Por ideias de segunda ordem, em história, entendem-se os conceitos em
torno da natureza da história (como explicação, objetividade, evidência, narrativa)
subjacentes à interpretação de conceitos substantivos tais como ditadura, revolução,
democracia, Idade Média ou Renascimento.
A esta preocupação central juntou-se, recentemente, a de se indagar,
também, quais os 'usos' que os alunos fazem da história em termos da sua
orientação temporal. A atenção ao conceito multifacetado de consciência histórica
emergiu pelos trabalhos do filósofo Rüsen e numa feliz convergência com os
contributos de Lee (2002), Wertsch (2002) e Seixas (2004). O interesse atribuído a
esta problemática tem a ver, essencialmente, com a preocupação sobre 'para que

ii Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná

iii Professora e pesquisadora da Universidade do Minho-Portugal

iv Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná


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serve aprender história?', e nela incluem-se os estudos sobre concepções dos


jovens, nomeadamente os que exploram as ideias expressas em narrativas por eles
construídas e as mensagens nucleares sobre o passado a elas subjacentes.
Como salienta Rüsen, a narrativa é a face material da consciência histórica.
Neste contexto, a narrativa é entendida como a forma usual da produção
historiográfica, que pode emanar de escolas diversas. Pela análise de uma narrativa
histórica ganha-se acesso ao modo como o seu autor concebe o passado e utiliza as
suas fontes, bem como aos tipos de significância e sentidos de mudança que atribui
à história. Ela espelha por isso, tácita ou explicitamente, um certo tipo de
consciência histórica, isto é, as relações que o seu autor encontra entre o passado,
o presente e, eventualmente, o futuro, no plano social e individual. No que concerne
à Educação Histórica formal, ela será um meio imprescindível para as crianças e
jovens exprimirem as suas compreensões do passado histórico e consciencializarem
progressivamente a sua orientação temporal de forma historicamente fundamentada.
Esta conceitualização tem inspirado trabalhos no Brasil e em Portugal.
A presença das ideias de Jörn Rüsen nas investigações realizadas no Brasil,
na Universidade Federal do Paraná, data do início do século XXI, quando as
contribuições desse autor, particularmente no que se refere à sua tipologia sobre a
consciência histórica, tornaram-se referência para a análise da consciência histórica
de crianças e jovens. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos que começam a ser
realizados, a partir de 1996, no âmbito do projeto Recriando Histórias, coordenado
pelas pesquisadoras Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Braga Garcia. Esse projeto,
já em sua quarta fase, desenvolve investigações com professoras e crianças dos
anos iniciais, no sentido da exploração, em sala de aula, de documentos guardados
em "estado de arquivo familiar", bem como da produção de narrativas que são
sistematizadas sob a forma de um manual sobre a história da localidade, produzido
pelas crianças e professoras, sob a supervisão das investigadoras da Universidade
Federal. Segundo Garcia (2008, p.130),

adotar o conceito de consciência histórica, na concepção de Rüsen, como


categoria articuladora de análises sobre resultados da aprendizagem de
conhecimentos históricos permitiu uma aproximação com idéias construídas
10

pelo educador brasileiro Paulo Freire, especialmente no que se refere à


passagem da consciência ingênua para a consciência crítica, movimento
este responsável por mudanças que educadores e educandos explicitam
em sua compreensão do mundo.

Ainda nesse momento, como resultado de investigações realizadas na


esteira das pesquisas sobre os jovens e a consciência histórica no âmbito europeu,
Schmidt (2002) realiza investigação comparativa entre consciência histórica de
jovens portugueses e brasileiros. Os resultados indicaram a existência de elementos
comuns entre ambos, analisados a partir de estudo qualitativo, na perspectiva da
tipologia apontada por Jörn Rüsen.
A convivência do grupo brasileiro com a produção de investigadores da área
da Educação Histórica ampliou o debate e as possibilidades de referência à obra de
Rüsen para as investigações relacionadas ao ensino de história. É nesse momento,
a partir de 2003, que foi constituído o Laboratório de Pesquisa em Educação
Histórica do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná, com
a consequente expansão das investigações e publicações referenciadas na obra
desse autor. O conjunto de produções permitiu que fosse realizado, em maio de
2010, o encontro "Jörn Rüsen e o ensino de história no Brasil", como uma primeira
tentativa de publicizar os resultados dos trabalhos realizados e divulgar o
pensamento desse autor entre aqueles comprometidos com o ensino de história.
A partir do referencial rüseniano, investigadores do Laboratório de Pesquisa
em Educação Histórica da UFPR têm definido e apreendido diferentes temáticas
relacionadas à Educação Histórica e seus produtos englobam desde dissertações de
mestrado, teses de doutorado, artigos e sistematizações, que vêm sendo
apresentados em congressos e encontros nacionais e internacionais, além de
publicações já realizadas ou em andamento.
Além da continuidade das investigações pertinentes à análise da consciência
histórica de crianças, jovens e professores, a presença do pensamento rüseniano
tomou outras abrangências nas investigações. Há um conjunto de pesquisas cuja
preocupação tem sido analisar a natureza da Didática da História no Brasil, a partir,
principalmente, dos contributos de Rüsen sobre a forma de aprender e ensinar a
história. Nesse sentido, o autor permite que se focalize a Didática da História a partir
do desenvolvimento da consciência histórica. A partir desse referencial, os trabalhos
11

de Urban (2009) e Rodrigues Junior (2009), com base na análise de documentação


e questionários, indicaram um processo de pedagogização e psicologização da
Didática da História no Brasil, similar ao caso alemão analisado por Jörn Rüsen.
Esse processo também foi apontado no trabalho de Grendel (2009), nas
investigações que realizou sobre a maneira pela qual jovens alunos registram ideias
históricas em seus cadernos. Em termos conclusivos, além de outras questões,
esses trabalhos mostram a contribuição do pensamento rüseniano para um repensar
da Didática da História referenciada na teoria da história.
Na mesma direção, várias investigações vêm sendo realizadas sobre
manuais didáticos, tendo como referência as considerações de Jörn Rüsen sobre o
livro de texto ideal para a formação da consciência histórica, como o trabalho de
Medeiros (2009). Analisando materiais didáticos produzidos para uso de jovens
estudantes, Medeiros (2009) indica a predominância de propostas articuladas a
concepções tradicionais da consciência histórica.
Na perspectiva da investigação de narrativas históricas de alunos e
professores, trabalhos vêm sendo desenvolvidos, como os de Gevaerd (2009) e
Compagnoni (2009). Em sua tese de doutoramento, Gevaerd (2009) analisa a
relação entre narrativas de manuais, narrativas produzidas por professores em aulas
de história e narrativas de alunos, indicando também a predominância de formas
tradicionais de narrativas históricas e, portanto, as dificuldades e as potencialidades
em se desenvolver, no âmbito da educação histórica escolar, outras possibilidades
narrativísticas. O mesmo caminho foi percorrido por Compagnoni (2009), analisando
narrativas produzidas por jovens alunos após visitas a museus. Já a investigação de
Germinari (2010) permitiu observar inter-relações existentes entre uma cultura
política relacionada à cidade de Curitiba como "cidade espetáculo", a formação da
consciência histórica e da identidade em jovens que vivem em Curitiba, indicando a
necessidade de renovações no campo das propostas curriculares. O mesmo
indicaram os trabalhos de Sobanski (2008) e Castex (2008), preocupadas em
investigar a presença de determinados conceitos históricos como Ditadura Militar e a
ideia de África na educação histórica de jovens estudantes.
Em síntese, pode-se afirmar que o pensamento rüseniano tem contribuído
fundamentalmente para o avanço das investigações na área da Educação Histórica
na Universidade Federal do Paraná, constituindo o substrato teórico do projeto
12

"Aprender a ler, aprender a escrever a História", financiado pelo CNPq, e que tem
por finalidade principal a sistematização de contributos fundantes de uma teoria da
aprendizagem histórica.
Em Portugal, os trabalhos desenvolvidos no âmbito dos Projetos HICON
(Consciência Histórica – Teoria e Práticas) desde 2003, coordenados por Isabel
Barca e financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, propõem-se incidir
na análise de concepções de alunos e professores em Portugal, Brasil e Cabo
Verde, com inspiração seminal nos debates epistemológicos desenvolvidos por
Rüsen. Uma das preocupações nestes Projetos quanto ao uso da história para a
orientação temporal dos jovens consiste em contribuir para combater uma ideia
comumente aceite de confinar a noção de consciência histórica a uma redutora
identidade nacional, local ou outra, ou à construção de um perfil único de cidadão, à
volta do qual sabemos não existir consenso. A matriz conceitual apresentada por
Rüsen (1993), para discutir as relações entre o saber histórico e a vida prática
(lebenpraxis), tem fornecido um suporte teórico valioso para perceber a noção de
consciência histórica: a história com as suas teorias, métodos e formas alimenta-se
dos interesses e funções da vida prática, sendo desejável que esta seja, por sua
vez, por ela alimentada de forma consistente e abrangente. É fundamental acentuar
que esta proposta de orientação temporal para a vida prática contrasta com uma
outra ideia, que é a de uma utilização da história movida por interesses particulares,
ao serviço de identidades exclusivistas, sejam de caráter político, religioso,
econômico, cultural. Contudo, esta recusa em olhar a história como uma disciplina
escolar para uma cidadania com enfoques particulares não significa que ela seja
encarada como um saber inerte, para simples deleite subjetivo: espera-se que o
aparato conceitual da história habilite os jovens a desenvolverem de forma objetiva,
fundamentada porque assente na análise crítica da evidência, as suas
interpretações do mundo humano e social, permitindo-lhes, assim, melhor se
situarem no seu tempo. A consciência histórica será algo que ocorre quando a
informação inerte, progressivamente interiorizada, se torna parte da ferramenta
mental do sujeito e é utilizada, com alguma consistência, como orientação no
quotidiano.
Sob este enquadramento, os estudos de consciência histórica têm explorado
ideias dos alunos portugueses sobre mudança (MACHADO, 2006), significância
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(MONSANTO, 2004; CASTRO, 2006), explicação (DIAS P., 2006), multiperspectiva


(GAGO, 2007) e evidência histórica (SIMÃO, 2007), conceitos que, à luz desta
proposta filosófica, surgem com contornos complexos e variáveis, bem como
possíveis conexões da consciência histórica com visões de interculturalidade
(CASTRO, 2006; DIAS X., 2008), educação patrimonial (PINTO, 2007) e de
cidadania (MORAIS, 2005). Existe evidência de que alguns jovens manifestam já
noções com alguma sofisticação destes conceitos, muito embora a maior parte dos
alunos participantes nos estudos revele ideias que urge modificar, para que seja
possível estabelecerem relações temporais significativas e frutuosas e, assim, darem
sentido humano ao mundo.
Ainda no âmbito desses Projetos, têm sido analisadas narrativas construídas
por jovens (do ensino secundário e estagiários de História) sobre o passado
contemporâneo, indagando-se quais a estrutura, marcos cronológicos, marcadores,
significados de identidade e sentidos de mudança subjacentes a essas narrativas
(BARCA, 2006, 2008; MAGALHÃES, 2006). No que respeita à estrutura da narrativa,
as produções dos alunos apresentaram uma característica principal: enquanto as
suas 'narrativas nacionais' pareciam razoavelmente substanciadas e sob forma
narrativa, a maioria dos alunos descreveu em escassas linhas a história do mundo.
Os marcos comuns a quase todas as narrativas nacionais centraram-se no período
da ditadura e na conquista da liberdade em 1974. Um homogêneo 'nós', que vence
os seus problemas, com aventuras e desventuras comuns, aparece como o principal
agente nesta narrativa em que não existem heróis individuais, mas surge, quase
sempre, um vilão: o ditador Salazar. Alusões à luta pelos direitos da mulher, à
independência das colônias africanas ou à formação da União Europeia são apenas
mencionadas por alguns poucos, neste 'grande quadro' onde as identidades de
sentido múltiplo não são evidentes. Contudo, há que realçar, esta mensagem
nuclear saúda a liberdade reconquistada contra a opressão e por isso difere,
necessariamente, da que era veiculada pela escola nos tempos da ditadura, e que
exaltava um país que lutava sempre e corajosamente contra inimigos externos... A
mudança é concebida como progresso, seja linear, seja equilibrado, quando
reconhecem também a ocorrência de aspectos negativos no presente.
Contrastando com o quadro geral das narrativas nacionais dos alunos, a sua
'história' do mundo contemporâneo tomou massivamente a forma de breves
14

narrativas fragmentadas, e os poucos marcos cronológicos do passado reportam-se


às duas guerras mundiais. Desde as listas de eventos até às narrativas emergentes
acerca do mundo contemporâneo (não aparecem narrativas 'completas'), as
produções tendem a salientar características violentas do mundo, mas algumas
referem ou discutem também o progresso científico e tecnológico. O sentido de
mudança apresenta uma direção negativa – linear nuns casos, contrabalançada
noutros – no passado contemporâneo global. E tal como nas 'narrativas' do passado
'nacional', estas revelam poucas personagens individuais, que tendem a ser vistas
como vilões ou vítimas. Se considerarmos o nível estrutural e substantivo das
produções como indicadores identitários dos participantes, parece que estes jovens
constroem uma identidade nacional mais forte e mais positiva do que a identidade
humana global.
Além destes estudos com alunos portugueses, desenvolvem-se ainda
estudos qualitativos sobre as narrativas de jovens portugueses, brasileiros e cabo-
verdianos (SANCHES, 2008; BARCA; SCHMIDT, 2009; CASTRO; SANCHES,
2009). Os jovens cabo-verdianos associam a sua identidade a valores culturais e
políticos representados por personagens sobretudo do seu país, embora
pontualmente reconheçam também o contributo, positivo ou negativo, de
personagens de outros países e continentes para a vida em Cabo Verde.
Relativamente à análise comparativa das narrativas de jovens portugueses e
brasileiros, participantes em tarefas idênticas, um dos resultados interessantes que
emergiram é que, se os dois grupos partilham uma ideia de progresso, os jovens
portugueses veem-se como espectadores da história, enquanto os jovens brasileiros
se integram na história como agentes de mudança, perspectivando o futuro.
15

REFERÊNCIAS

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19

DIDÁTICA DA HISTÓRIA: PASSADO, PRESENTE E PERSPECTIVAS A


PARTIR DO CASO ALEMÃO*

JÖRN RÜSEN

A opinião padrão sobre o que a didática da história é, como ela funciona e


onde está situada no reino das humanidades é a seguinte: a didática da história é
uma abordagem formalizada para ensinar história em escolas primárias e
secundárias, que representa uma parte importante da transformação de
historiadores profissionais em professores de história nestas escolas. É uma
disciplina que faz a mediação entre a história como disciplina acadêmica e o
aprendizado histórico e a educação escolar. Assim, ela não tem nada a ver com o
trabalho dos historiadores em sua própria disciplina. A didática da história, sob essa
visão, serve como uma ferramenta que transporta conhecimento histórico dos
recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as cabeças vazias dos alunos.
Esta opinião é extremamente enganosa. Ela falha em confrontar os
problemas reais concernentes ao aprendizado e educação histórica e à relação
entre didática da história e pesquisa histórica. Além disso, ela limita ideologicamente
a perspectiva dos historiadores em sua prática e nos princípios de sua disciplina.
Ainda que eu deseje me concentrar na didática da história na Alemanha, não
limitarei minhas observações do desenvolvimento de uma subdivisão da história e
pedagogia a um único país da Europa Ocidental. Em vez disso, eu gostaria de usar
a Alemanha para ilustrar uma ampla discussão de como se pensa a história, quais
são as origens da história na natureza humana, e quais são seus usos para a vida
humana. Estas são as questões básicas que uma didática da história válida deveria

* Este texto foi originalmente publicado em 1987, na revista History and Theory e publicado em
português na Revista Práxis Educativa. Ponta Grossa-PR, v.1, n.1, 15 jul/dez, 2006, em versão
autorizada pelo autor.Tradução de Marcos Roberto Kusnick. Revisão da tradução por Luis
Fernando Cerri..
20

considerar, o que, quando feito, poderia fazer dela uma parte integral e importante
dos estudos históricos.v
Para aqueles que estão atentos à história da disciplina de história,
especialmente acerca da sua transformação em uma atividade profissionalizada,
acadêmica, não deveria ser surpreendente que a didática possa desempenhar um
papel importante na escrita e na compreensão histórica. Antes que os historiadores
viessem a olhar para seu trabalho como uma simples questão de metodologia de
pesquisa e antes que se considerassem "cientistas", eles discutiram as regras e os
princípios da composição da história como problemas de ensino e aprendizagem.
Ensino e aprendizagem eram considerados no mais amplo sentido, como o
fenômeno e o processo fundamental na cultura humana, não restrito simplesmente à
escola. O conhecido ditado "historia vitae magistra" (história mestra da vida), que
define a tarefa da historiografia ocidental da antiguidade até as últimas décadas do
século dezoito, indica que a escrita da história era orientada pela moral e pelos
problemas práticos da vida, e não pelos problemas teóricos ou empíricos da
cognição metódica. Mesmo durante o Iluminismo, quando as formas modernas de
pesquisa e discurso acadêmicos foram sendo forjadas, historiadores profissionais
ainda discutiam os princípios didáticos da escrita histórica como sendo fundamentais
para seu trabalho.
Mas, devido à crescente institucionalização e profissionalização da história,
a importância da didática da história foi esquecida ou minimizada. Durante o século
XIX, quando os historiadores definiram sua disciplina, eles começaram a perder de
vista um importante princípio, a saber, que a história é enraizada nas necessidades
sociais para orientar a vida dentro da estrutura tempo. O entendimento histórico é
guiado fundamentalmente pelos interesses humanos básicos: assim sendo, é
direcionado para uma audiência e tem um papel importante na cultura política da

v Para informação geral, ver Handbuch der Geschichtsdidaktik terceira edição, ed. K. Bergmann, A.
Kuhn. J. Rüsen, e G. Schneider (Düsseldorf, 1985); Geschichtsdidaktik: Theorie für die Praxis, ed.
K. Bergmann and J. Rusen (Düsseldorf. 1978); Geschichtsdidaktische Positionen:
Bestandsaufnahme und Neuorientierung, ed H. Süssmuth (Paderborn, 1980); Geschkhtsdidaktik,
Geschichtswissenschaft, Geseihehaft, ed, G. Behre e L.-A. Norborg (Stockholm, 1985);
Geschichte: Nutzen und Nachteil für das Leben, ed. U. A. J. Becher e K. Bergmann (Düsseldorf,
1986); E. Weymar, Geschichtswissenschaft und Theorie: Ein Literaturbericht (Stuttgart, 1979); E.
Vfcymar, "Dimensionen der Geschichtswissenschaft: Geschichtsforschung- Theorie der
Geschichtswissenschaft -Didaktik der Geschichte" em Geschichte in Wissenschaft und Unterricht
(Stuttgart, 1982), 1-11.65-78, 129-153.
21

sociedade dos historiadores. Como os historiadores do século XIX se esforçaram


para tornar a história uma ciência, este público foi esquecido ou redefinido para
incluir apenas um pequeno grupo de profissionais especialistas treinados. A didática
da história não era mais o centro da reflexão dos historiadores sobre sua própria
profissão. Ela foi substituída pela metodologia da pesquisa histórica. A "cientifização"
da história acarretou um estreitamento consciente de perspectiva, um limitador dos
propósitos e das finalidades da história.vi A esse respeito, a cientifização da história
excluiu da competência da reflexão histórica racional aquelas dimensões do
pensamento histórico inseparavelmente combinadas com a vida prática. Desse
ponto de vista, pode ser dito que a história científica, apesar de seu clamor
racionalista, havia conduzido aquilo que eu gostaria de chamar "irracionalização" da
história.
Que este processo pode e deveria ser revertido é minha principal tese; e os
desenvolvimentos contemporâneos em didática da história na Alemanha apontam
para essa direção. Aí, os desenvolvimentos recentes em didática da história podem
ser descritos como um processo de retomada do âmbito perdido da autoconsciência
histórica. A didática da história, que tinha sido originalmente interpretada como uma
aplicação externa da escrita profissional da história, tem adquirido um status dentro
da disciplina acadêmica que lhe permite novamente facilitar e melhorar o
entendimento histórico, mas agora dentro das suas formas acadêmicas novas e
altamente racionalizadas.
Originalmente, a didática da história na Alemanha, como em qualquer lugar,
tinha sido guiada pelas necessidades práticas de treinamento de professores de
história. Esse treinamento teve lugar em dois níveis. Um deles era puramente
pragmático e relacionava-se com os métodos de ensino de história em sala de aula.
O segundo era teórico: ele se concentrava nas condições e nos propósitos básicos
do ensinar e aprender história. No primeiro nível, a didática da história estava e está
relacionada primariamente à pedagogia: ela é ensinada e aprendida pelo fazer. Nós

vi H. -J Pandel. "Historker als Didaktiker: Geschichtsdidaktisches Denken in der deutschen


Geschichtwissenschaft vom ausgehenden 18. bismzim Ende des 19. Jahrhunderts," in
Gesellschaft, Staat, Geschichtsunterricht: Beiträge zu einer Geschichte des Geschichtsdidaktik und
des Geschichtsunterrichts von 1500 bis 1980, ed. K. Bergmann and G. Schneider (Düsseldorfd,
1982); Von der Aufklärung zum Historismus: Zum Strukturwandel des historichen Denkens, ed. H.
W. Blanke e J. Rüsen (Paderborn, 1984).
22

chamamos isso de metodologia de instrução em história (Methodik des


Geschichtsunterrichts). No segundo nível a didática da história é discutida em
relação àquelas disciplinas que têm relação com os fenômenos de ensino e
aprendizagem – por exemplo, com as ciências sociais, que investigam as condições
sociais de ensino e aprendizagem, com a pedagogia, que investiga os propósitos, as
formas e os processos da educação, e, é claro, com os estudos históricos, que
investigam história como disciplina a ser ensinada. Nesse nível nós falamos da
didática da educação em história (Didaktik des Geschichtsunterrrichts). Em minha
opinião, o segundo nível deveria preceder o primeiro. A didática da educação em
história estabelece os objetivos e as formas da educação histórica dentro de um
dado contexto político, social, cultural e institucional. A metodologia de instrução em
história estabelece os meios práticos pelos quais estes objetivos são alcançados.
Até os anos 1960, a didática da história na Alemanha Ocidental era
considerada como uma geisteswissenschaftliche Pädagogik, um termo que não pode
ser facilmente traduzido. Eu prefiro a versão inglesa, hermenêutica pedagógica
(pedagogical hermeneutics), considerada como uma disciplina independente. O mais
reconhecido representante desse conceito de didática é Erich Weniger. vii De acordo
com essa visão, a educação em história pode ser definida como um processo
histórico que pode ser analisado com as ferramentas teóricas e metodológicas da
hermenêutica historicista. O professor tem que entender a educação como o
historiador tem que entender a história – isto é, hermeneuticamente, como um tipo
de texto constituído por forças humanas intencionais e contendo um sentido que
pode ser decifrado, revelando as próprias intenções do leitor e as possibilidades de
interação entre texto e leitor. A pressuposição dessa concepção hermenêutica,
historicista é que a história é constituída por forças mentais, que o historiador, sendo
um intérprete ativo, pode "repensar" ou apropriar, e que guiam suas questões
históricas e interpretações. Alcançar o conhecimento empírico do passado poderia
levar a um insight sobre o movimento das forças do presente. Esse insight poderia
permitir àqueles que adquirem conhecimento histórico viver dentro da corrente
principal do desenvolvimento histórico e acomodar sua vida política a ela.
23

Tanto a didática da história quanto a ciência histórica compartilharam esta


posição historicista. Ambas postulam a mesma ideia de "forças educativas"
(Bildungskräfte) do desenvolvimento histórico. Mas o relacionamento formal entre a
história e a didática da história era caracterizado por uma estrita divisão de trabalho.
Os estudos históricos estavam ainda limitados a um padrão puramente acadêmico
ou "científico" de autoentendimento. Questões referentes ao inter-relacionamento
entre a pesquisa histórica e o mundo experiencial (Lebenswelt) do investigador, bem
como todas as questões referentes à educação histórica foram relegadas a uma
disciplina separada, extra-histórica: portanto, a história formal não se dirigia à
essência do saber histórico escolar, diretamente. Os historiadores consideravam que
sua disciplina estava legitimada pela sua mera existência. Alfred Heuss tornou isso
claro nos anos 1950 quando reivindicou: "História como uma disciplina acadêmica é
uma criatura que legitima a si mesma simplesmente por estar lá". Ele comparou os
estudos históricos e o resultado de seus conhecimentos a uma árvore produzindo
folhas. "A árvore vive enquanto tem folhas e é seu destino viver e ter folhas." viii
Heuss explicitamente recusa conferir à história algum uso prático ou função real
naquelas áreas culturais onde ela pode servir como um meio para a identidade
coletiva e sua orientação através da vida. Pelo contrário, ele pensa que a
metodologia da pesquisa histórica destrói a função prática da história.
A didática da história durante esse período reforçou essa mentalidade
estreita. Ela via o conhecimento histórico como sendo gerado unicamente através do
discurso interno dos historiadores profissionais. A tarefa da didática da história era
transmitir esse conhecimento sem participação na geração desse discurso. A
didática da história compensava esta modesta recusa em participar da pesquisa
histórica pela tradução de resultados dessa pesquisa em pressuposições filosóficas
gerais. Ela considerava estas categorias filosóficas como elementos essenciais que
davam forma às orientações para a vida. Assim, essas categorias eram pensadas
para desempenhar um papel central no processo de educação. Entretanto, apesar

vii Principais trabalhos: Elich Weniger. Die Grundlagen des Geschichtsunterrichts: Untersuchungen
zur geisteswissenchaftlichen Didaktik (Leipzig, Berlin, 1926); Erich Weniger. Neue Wege im
Geschichtesunterricht [1949] (Frankfurt, 1969).

viii A. Heuss, Verlust der Geschichte (Göttimgem, 1959), 44.


24

desses componentes abstratos, o currículo primário e secundário de história


consistia em nada mais do que resumos simplificados dos estudos padrão em
história. Assim, na melhor das hipóteses, a didática da história provia os estatutos
fundamentais da função educacional do conhecimento histórico e dos objetivos
correspondentes para o ensino de história nas escolas. Mas isso incluía também
uma didática oculta, aquela da simples reprodução dos estudos históricos: ao fazê-
lo, baixava seu nível das montanhas da pesquisa para os vales das salas de aula
(isso é chamado cópia ou reprodução didática).
Nos anos 1960 e 1970 todo o cenário mudou.ix A arrogância do sábio que
assumia que os estudos históricos eram legitimados pela sua mera existência
perdeu seu poder de persuasão. Uma nova geração de estudiosos criticava
radicalmente o conceito tradicional de estudos históricos e propagava um novo
conceito teórico que estavam aptos para pôr em prática. Eles concebiam a história
como uma ciência social com laços muito próximos de outras ciências sociais. x Ao
fazê-lo, levantaram importantes questões referentes à tarefa básica da cognição
histórica e da função política dos estudos históricos. Essa redefinição foi apenas
uma parte de uma grande reorientação cultural que teve lugar na Alemanha durante
aquela época. Assim, uma reorientação igualmente importante através da história foi
sentida nas escolas, o que resultou em uma crise de legitimidade no ensino de
história. A hipótese de que a história tinha um papel integral na educação primária e
secundária foi crescentemente questionada, especialmente na medida em que os
ataques contra o historicismo cresciam em grau e intensidade. Novas formas de

ix Para informações gerais sobre o desenvolvimento dos estudos históricos na Alemanha, ver H.-U
Wehler, "Geschichtswissenschaft heute", in Stichwortze zur geistigen Situation der Zeit, ed. J.
Habermas (Frankfurt, 1979), 11,709-753; G. Heydemann, Geschichtswissenschaft im geteilten
Deutschland Entwicklungsgeschichte, Organisationsstruktur, Funktion, Theorie- und
Methodenprobleme in der Bundesrepubtik Deutschland und der DDR (Frankfurt, 1980); G.G.
Iggers New Directions in European Historiography, revised edition (Middletown, Ct., 1984), chap. 3;
J. Rüsen "Theory of History in the Development of West Geman Historical Studies: A
Reconstruction and Outlook." German Studies Review 7 (1984), 11-26; R. Fletcher, "Recent
Developments in West German Historiography: The Bielefeld Scbool and Its Critics," German
Studies Review 7 (1984), 451-480.

x H.-U Wehler, Historische Sozialwissenschaft, segunda edição (Frankfurt, 1977); H. -U Wehler,


Historische Sozialwissenschaft und Geschichtsschreibung; Studien zu Aufgaben und Traditionen
deutscher Geschichtswissenschaf (Göttingen, 1980); J. Kocka, Sozialgeschichte: Begriff-
Entwicktung-Probleme, segunda edição (Göttingen, 1986).
25

educação política que correspondiam a estes novos conteúdos foram introduzidas


nas escolas.
A didática da história também passou por uma mudança que refletia essa
reorientação cultural geral e a mudança no sistema educacional. Sua concepção
hermenêutica foi radicalmente alterada e transformada em uma nova forma de
argumentação. Ela experimentou a assim chamada virada para a teoria do
currículo.xi Agora a educação histórica não se torna mais uma simples questão de
tradução de formas e valores de estudiosos profissionais para a sala de aula. A
questão básica que está sendo colocada é se aquele conhecimento e a forma de
pensamento que ele representa encontram um conjunto de critérios educacionais
preexistentes e extradisciplinares.xii Os historiadores foram confrontados com o
desafio do papel legitimador da história na vida cultural e na educação. xiii Eles
responderam a este desafio ampliando o campo da autorreflexão e do
autoentendimento histórico. Os historiadores começaram a respeitar aquelas
dimensões dos estudos históricos onde necessidades, interesses e propósitos
apareciam como fatores determinantes do pensamento histórico.xiv Em termos
simples, o estudo da história na Alemanha Ocidental passou por aquilo que
poderíamos descrever como uma mudança de paradigma.xv
Essa mudança coincidiu com a necessidade urgente de autorrepresentação
e legitimidade dos historiadores preocupados com o campo da educação. Juntos,
ambos os momentos contribuíram para a formação de um novo movimento histórico
comprometido com uma reflexão mais profunda e ampla sobre os fundamentos dos
estudos históricos e sua inter-relação com a vida prática em geral e com a educação

xi Cf. A. Kuhn, "Geschichtsdidaktik und Curriculumentwicklung" in Handbuch der Geschichtsdidaktit,


339-348.

xii Um exemplo frequentemente discutido é A. Kühn, Einführung in die Didaktik der Geschichte,
segunda edição (Munich, 1977).

xiii Cf. A. Sywottek, Geschichtswissensckaft in der Legitimationstrise: Ein Überblick über Diskussion
um Theorie und Didaktik der Geschichte der Bundesrepublik Deutschland 1969-1973 (Bonn,
1974).

xiv J. Rüsen, Für eine erneuerte Historik: Studien zur Theorie der Geschichtswissenschaft (Stuttgart,
1976).
26

em particular. Isso aconteceu em um tempo em que o sistema universitário passava


por uma grande expansão, o que possibilitou flexibilidade suficiente para encorajar a
formação de novos conceitos sobre a educação e para permitir sua implementação.
Assim, posições foram criadas para estudiosos e professores que desejavam seguir
essa tendência e realizá-la pela pesquisa, treinamento e ensino.
Sintomática desse novo movimento em estudos históricos e didática da
história foi a criação de dois periódicos, Geschichte und Gesellschaft e
Geschichtsdidaktik. O primeiro foi fundado em 1975 e incorpora um novo conceito de
estudos históricos. No prefácio que detalha seus objetivos, os editores vislumbravam
uma abordagem em duas perspectivas. Primeiro, o periódico deveria enfocar novas
aproximações teóricas e metodológicas e procurar estabelecer uma conexão íntima
com outras ciências sociais. Segundo, deveria enfatizar as conexões entre o estudo
acadêmico de história e a prática social. Os editores pensavam que isso era
necessário porque "os estudos históricos foram influenciados essencialmente pelos
interesses contemporâneos bem como pela análise dos processos e decisões
históricas. Direta ou indiretamente, os estudos históricos reagem à consciência e
prática social do momento".xvi Geschichtsdidaktik, fundado um ano depois,
representou uma nova forma de lidar com o papel da história na educação e na vida
prática. Em um artigo programático, Klaus Bergmann, um dos editores, definiu a
didática da história como se segue: ela é "a disciplina que examina a importância da
história – todas as espécies de história e todos os seus elementos constitutivos –
para o sujeito receptivo e reflexivo".xvii Ele considerava emancipação e identidade
pessoal como as duas principais ideias dessa reflexão didática.
Através da estrutura dessa nova abordagem para o uso da história na vida
prática, a didática da história se estabeleceu como uma disciplina específica com
suas próprias questões, concepções teóricas e operações metodológicas. Durante
os anos 1970 esse movimento esteve ligado às necessidades de mudança
curricular. Assim ela poderia ser discutida sem resolver a questão sobre se a

xv J. Rüsen, "Grundlagenreflexion und Paradigma-Wechsel in der westdeutchen


Geschichtswissenschat," Geschichtsdidaktik 11 (1986), 388-405.

xvi Geschichte und Gesellschaft 1, (1976), 7.


27

didática da história deveria ser agregada à história ou à pedagogia. Porquanto


pareceu plausível que os principais objetivos da educação histórica eram definidos e
explicados fora dos estudos históricos, a didática da história serviu como auxiliar à
didática geral; ela ainda era vista como uma disciplina pedagógica. Isso foi
exacerbado pela tradicional mentalidade estreita de muitos historiadores
profissionais que excluíam todas as questões de função prática da história de uma
autorreflexão histórica séria. O resultado dessa atitude foi empurrar a didática da
história para mais perto da pedagogia e abrir uma lacuna entre ela e os estudos
normais de história. Isso teve consequências problemáticas. A fascinação com as
reformas curriculares tendeu a subestimar as características peculiares da história
como campo de aprendizado. A história poderia ser instrumentalizada para objetivos
não-históricos de ensino e aprendizado. O papel específico da história em toda a
área das ciências sociais e na educação política permaneceu secundário. A história
poderia assim ser facilmente substituída por outros ramos da educação política e
social.
Aqueles que se opunham a essa tendência de instrumentalizar a história
pressionaram pela peculiaridade e originalidade do pensamento e da explicação
histórica e procuraram diferenciá-lo de outras formas de pensamento nas outras
ciências sociais. Esse movimento trouxe a didática da história para bem perto do tipo
de autorreflexão histórica que eu poderia chamar histórica (Historik), um termo que
aponta para a similaridade dessas reflexões com o tipo de questão colocada por
Gustav Droysen em seu famoso Lectures on Encyiclopedia and Methodology of
History (1857)xviii. Este tipo de teoria floresceu nos anos 1970.xix Ele acompanhou a
transformação da história de uma disciplina hermenêutica e historicista para uma

xvii Geschichtsdidaktik 1 (1976), 8.

xviii J. G. Droysen, Historik, ed. P. Leyh (Stuttgart, 1977). (Tradução inglesa de seu Grundriss der
Historik: Outline of the principles of History [1883] (Nova Yorque, 1967).

xix Cf. a série Theorie der Geschichte: Beiträge zur Historik. Vol. I: Objektivitat und Partleilichkeit in
der Geschichte, ed. R. Koselleck, W.J. Mommsem, e J. Rüsen (Munich, 1979); Vol 2: Historische
Prozesse, ed. K.-O. Faber e C. Meier (Munich, 1978); Vol. 3: Theorie und Erzählung in der
Geshichte, ed. J. Kocka e T. Nipperdey (Munich, 1979); Vol. 4: Formen der Geschichtsschreibung,
ed. R. Koselleck, H. Lutz, e J. Rüsen (Munich, 1982): e Vol. 5: Historische Methode, ed. C. Meier e
J. Rüsen (Munich, 1987).
28

ciência social histórica.xx A didática da história valeu-se de argumentos dessa nova


concepção de história para explicar a natureza específica e peculiar do pensamento
e da explicação histórica. Uma vez formulada, essa ideia de história tornou-se o
meio e o objetivo do aprendizado e educação. Assim, a originalidade básica do
pensamento histórico guiou o problema prático da formulação de um novo currículo
de história. A didática da história juntou os assuntos orientados pela prática sobre
ensino e aprendizagem em sala de aula com uma percepção teórica dos processos
e funções da consciência histórica em geral.
Dadas estas orientações, as perspectivas da didática da história foram
grandemente expandidas, indo além de considerar apenas os problemas de ensino
e aprendizado na escola. A didática da história analisa agora todas as formas e
funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Isso inclui
o papel da história na opinião pública e as representações nos meios de
comunicação de massa; ela considera as possibilidades e limites das
representações históricas visuais em museus e explora diversos campos onde os
historiadores equipados com essa visão podem trabalhar.
A análise destas atividades não tradicionais para historiadores apenas
começou. Assim sendo, um desenho disciplinar para a didática da história não foi
completado. Mas os contornos gerais desse desenho já foram formulados, uma
formulação que está respondendo aos desafios do presente nos estudos históricos
na Alemanha graças à falta de vagas para professores de história no sistema escolar
alemão. Neste sentido, pode-se dizer que o estudo da história está mudando sua
ênfase do ensino e aprendizado num sentido mais restrito para um campo mais
amplo com objetivos ainda pouco claramente definidos. Ainda é uma questão aberta
se a ênfase na vida pública na didática da história terá um eco positivo. Mas deveria
ficar claro que, desde que o público não pode digerir a produção da uma disciplina
profissional altamente especializada da história profissional sem mediação, existe
uma necessidade definitiva de pessoal treinado e disposto a cumprir esta mediação.

xx Uma abordagem sistemática desses fatores básicos pode ser encontrada em J. Rüsen,
Historische Vernunft. Grundzüge einer Historik I: Die Grundlagen der Geschichtswissenschaft
(Göttingen, 1983); J. Rüsen, Rekonstruktion der Vergangenheit. Grundzüge einer Historik II: Die
Prinzipien der historichen Forschung (Göttingen, 1986).
29

O que deveria ser evidente é que as habilidades normais adquiridas pelo historiador
profissional não são suficientes para a execução dessa mediação.
Atualmente, na Alemanha Ocidental, quatro itens principais dominam as
discussões sobre a didática da história. Eles têm relação com a metodologia de
instrução, as funções e os usos da história na vida pública, o estabelecimento de
metas para a educação histórica nas escolas e a verificação se estas têm sido
atingidas, e a análise geral da natureza, função e importância da consciência
histórica. Deixe-me ocupar brevemente de cada uma delas.
A metodologia de instrução na sala de aula ainda é um problema importante.
Aqui a concentração no currículo tem sido predominante. Combinada com a hipótese
de que existe uma teoria geral da instrução escolar (Unterrichtslehre), o ensino de
história em sala de aula tem tendido a se tornar uma atividade mecânica. Ainda não
se resolveu como a peculiaridade da consciência histórica – aquelas estruturas
mentais e processos que constituem uma forma específica de atividade cultural
humana – pode ser integrada nesse padrão de educação. Ainda existe um
distanciamento entre a percepção programática de um bom professor de história e o
treinamento formal que ele ou ela recebem na prática do ensino de história. A razão
desse distanciamento é que as discussões referentes à consciência histórica e aos
fatores constitutivos do pensamento histórico não têm sido integradas na pragmática
do ensino e aprendizado. Os insights conquistados na didática da história sobre os
processos, estruturas, conteúdos e funções da consciência histórica não têm sido
traduzidos na análise do ensino e aprendizagem em sala de aula.xxi
Um exemplo disso seria suficiente. No nível abstrato de uma teoria geral da
consciência histórica, nós sabemos alguma coisa sobre os padrões de significação
que governam a experiência do passado humano e sua interpretação como história
dotada de sentido.xxii Mas nós sabemos muito pouco sobre a maneira de como a

xxi A melhor abordagem neste sentido é K. -E. Jeismann, "Didaktik der Geschichte: Das spezifische
Bedingungsfeld des Geschichtsunterrichts," in Geschichte und Politik: Didaktische Grundlegung
eines kooperativen Unterrichts, ed. G. C. Behrmann, K. –E. Jeismann e H. Süssmuth (Paderborn,
1978).

xxii J. Rüsen, "Die vier Typen des historischen Erzählens," in Formen der Geschichtsschreibung, ed.
Koselleck, Lutz, e Rüsen, 514-606; J, Rüsen, "Geschichtsdidaktische Konsequenzen aus einer
erzätltheoretischen Historik," in Historisches Erzählen: Formen und Funktionen, ed. S. Quandt e H.
Süssmuth (Gottinten, 1982), 129-170.
30

história é percebida e os efeitos da introdução da história na sala de aula. Algumas


pesquisas empíricas que temos feito em Bochum sugerem que os padrões de
educação exemplar – história como uma coleção de exemplos conduzindo a regras
gerais do comportamento humano – são a forma pela qual a história é apropriada
pelos alunos, sem que os professores atentem para isso. Os professores tinham
certeza de que eles estavam implementando os modelos modernos de estudos
históricos. Mas a realidade da experiência de aprendizado mostrou um padrão muito
diferente. Assim, o processo de ensino e aprendizado na sala de aula é governado
por uma estrutura da consciência histórica não reconhecida pelos próprios
participantes.
O segundo item é a análise da função do conhecimento e da explicação
histórica na vida pública. Este é um novo campo para a didática da história.
Considerando que existem muito poucas abordagens teóricas e metodológicas para
este problema, não há muitos estudos empíricos disponíveis sobre o assunto. O que
temos feitos são os primeiros passos na definição da disciplina, bem como
discussões sobre quais são os problemas e o que deveria e poderia ser feito. xxiii A
fim de estabelecer uma estratégia de pesquisa adequada nessa área para a didática
da história, é necessário sintetizar suas perspectivas, questões e métodos com
aquelas disciplinas especializadas que analisam a vida pública. Por exemplo, se
alguém aplicar uma abordagem moderna da didática da história aos usos e funções
da história nos meios de comunicação de massa, ele precisa chegar a um acordo
com o jornalismo. Isso significa que os insights específicos da didática da história –
seu conceito da especificidade do entendimento histórico e o reconhecimento da
função da história em dar forma à identidade social e individual – têm de ser
transformados na linguagem do nosso entendimento da comunicação de massa –
que está, por exemplo, dentro da semântica do cinema e da poética da comunicação
visual.
O terceiro item – estabelecer os objetivos da educação histórica e descobrir
como estes objetivos têm sido alcançados – tem sido uma das discussões mais

xxiii Veja, e.g., Gescichtsdidaktik 11 (1986), n.4.


31

importantes na Alemanha Ocidental.xxiv Por mais de uma década, o mais desejado e


discutido objetivo do ensino de história era definido como "emancipação". xxv Era
esperado que através do saber histórico os alunos pudessem obter a habilidade de
autodeterminação, que eles pudessem participar ativamente das decisões políticas
que influenciavam sua vida diária.xxvi Este objetivo, no entanto, não era uma simples
discussão histórica; ele estava muito ligado a outras ciências sociais e à educação
política geral. Dessa maneira, o conteúdo histórico para esse programa era difícil de
ser definido precisamente. Posto que esta discussão ainda esteja por ser resolvida,
o desejo de estabelecer um currículo com objetivos claramente definidos e a
necessidade de determinar se estes objetivos foram encontrados levam a uma
investigação crítica dos conteúdos da educação histórica. História como uma matéria
a ser ensinada e aprendida tem de passar por um exame didático referente à sua
aplicabilidade de orientar para a vida.xxvii
O quarto problema – a análise da natureza, função e importância da
consciência histórica – é, em minha opinião, a discussão mais interessante para os
pesquisadores dos estudos históricos. Consciência histórica é uma categoria geral
que não apenas tem relação com o aprendizado e o ensino de história, mas cobre
todas as formas de pensamento histórico; através dela se experiencia o passado e
se o interpreta como história. Assim, sua análise cobre os estudos históricos, bem
como o uso e a função da história na vida pública e privada. A discussão alemã
sobre essa questão é rica e variada e é impossível para mim resumi-la aqui.xxviii
Deixe-me, entretanto, mencionar três dos pontos mais importantes.

xxiv Exemplos representativos são Geschichtsunterricht: Inhalte und Ziele, ed. I. Rohlfes and K.-E.
Jeismann (Stuttgart, 1974); Geschichtsunterricht: Entwurf eines Curriculums für die Sekundarstufe
I, ed. J. Rohlfes (Stuttgart, 1974) (Edição extra de Geschichte in Wissenschaft und Unterricht).

xxv J. Rüsen,"Geschichte als Alfklärung? Oder Das Dilemma des Historischen Denkens zwischen
Herrschaft und Emanzipation," Geschichte und Gesellschaft 7 (1981), 189-218.

xxvi A. Kuhn, Einführung in die Didaktik der Geschichte.

xxvii Cf. o ensaio de síntese de R. Schörken em "Die lange Weg zum Geschichtscurriculum:
Curriculum-werfahrem unter der Lupe," Gesckkhtsdidaktik 2 (1977), 254-269, 335-353.

xxviii Ver, sobretudo, K. -E. Jeismann, Geschichte als Horizont der Gegenwart Über den
Zusammenhang von Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverständnis und Zukunftsperspekive
(Paderborn, 1985); R. Schörken, "Geschichtsdidaktik und Geschichtsbewusstsein,'' Geschichte in
Wissenschaft und Unterricht 23 (1972), 8189; e U. A. J. Becher, "Personale und historische
32

Primeiro, a consciência histórica não pode ser meramente equacionada


como simples conhecimento do passado. A consciência histórica dá estrutura ao
conhecimento histórico como um meio de entender o tempo presente e antecipar o
futuro. Ela é uma combinação complexa que contém a apreensão do passado
regulada pela necessidade de entender o presente e de presumir o futuro. Se os
historiadores vierem a perceber a conexão essencial entre as três dimensões do
tempo na estrutura da consciência histórica, eles podem evitar o preconceito
acadêmico amplamente aceito de que a história lida unicamente com o passado:
não há nada a se fazer com os problemas do presente e ainda menos com os do
futuro.
Segundo, a consciência histórica pode ser analisada como um conjunto
coerente de operações mentais que definem a peculiaridade do pensamento
histórico e a função que ele exerce na cultura humana. Aqui, a discussão sobre a
estrutura narrativa da explicação histórica é extremamente útil. xxix A narração
histórica é mais do que uma simples forma específica de historiografia. Intérpretes
contemporâneos dessa discussão (por exemplo, Hayden White e Paul Ricoeur)
apresentam a narração histórica como um procedimento mental básico que dá
sentido ao passado com a finalidade de orientar a vida prática através do tempo.xxx

Identität," in Geschichts didaktik: Theorie für die Praxi, ed. Bergmann and Rüsen, 57-66.Cf.
Historisches Erzählen, ed. Quandt and Süssmuth; A. J. Becher, "Didaktische Prinzipien der
Geschichsdastellung," in Geschichtsdarstellung: Determinanten und Prinzipien, ed. K. -E.
Jeismann e S. Quandt (Göttingen, 1982), 22-38; e J. Rüsen, Historische Vernunft.Ver, sobretudo,
K. -E. Jeismann, Geschichte als Horizont der Gegenwart Über den Zusammenhang von
Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverständnis und Zukunftsperspekive (Paderborn, 1985); R.
Schörken, "Geschichtsdidaktik und Geschichtsbewusstsein,'' Geschichte in Wissenschaft und
Unterricht 23 (1972), 81-89; e U. A. J. Becher, "Personale und historische Identität," in Geschichts
didaktik: Theorie für die Praxi, ed. Bergmann and Rüsen, 57-66.

xxix Cf. Historisches Erzählen, ed. Quandt and Süssmuth; A. J. Becher, "Didaktische Prinzipien der
Geschichsdastellung," in Geschichtsdarstellung: Determinanten und Prinzipien, ed. K. -E.
Jeismann e S. Quandt (Göttingen, 1982), 22-38; e J. Rüsen, Historische Vernunft.Ver, sobretudo,
K. -E. Jeismann, Geschichte als Horizont der Gegenwart Über den Zusammenhang von
Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverständnis und Zukunftsperspekive (Paderborn, 1985); R.
Schörken, "Geschichtsdidaktik und Geschichtsbewusstsein,'' Geschichte in Wissenschaft und
Unterricht 23 (1972), 8189; e U. A. J. Becher, "Personale und historische Identität," in Geschichts
didaktik: Theorie für die Praxi, ed. Bergmann and Rüsen, 57-66.

xxx H. White. Metahistory: the Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe (Baltimore, 1973);
H. White. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism (Baltimore, 1978); H. White, "The
Question of Narrative in Contemporary Historical Theory," History and Theory 22 (1984), 1- 33; P.
Ricoeur, "Narrative Time," Critical Inquiry 7 (1981), 169-190; P. Ricoeur, "The Narrative Function,"
Semeia 13 (1978), 177-202.
33

Para entender completamente essa operação, nós temos que identificar primeiro os
procedimentos da narração histórica, definir seus diversos componentes, descrever
sua coerência e inter-relações e construir uma tipologia que inclua sua aparência
sob diferentes circunstâncias e tempos.xxxi Quando isso for feito nós poderemos
obter um entendimento de como o passado adquire sua modelagem histórica
específica e de como a história é constituída por atos discursivos específicos, formas
de comunicação e padrões de pensamento. Tudo isso pode nos dar um insight
dentro da função cultural da história da mentalidade e da argumentação histórica na
vida social.
Aqui a teoria da história (que analisa os fundamentos dos estudos históricos)
e a didática da história (que analisa os fundamentos da educação histórica)
coincidem em suas análises das operações narrativas da consciência histórica com
suas consequentes conexões sistemáticas.xxxii Fazendo isso elas superam a infeliz
separação que tem existido entre a reflexão acadêmica da natureza da história e a
reflexão didática do uso da história na vida prática. A didática da história está
recuperando a posição que tinha ocupado quando do início da história como uma
disciplina profissional, isto é, cumprindo um papel central no processo de reflexão na
atividade dos historiadores. A disciplina da história não pode mais ser considerada
uma atividade divorciada das necessidades da vida prática.
Terceiro, através da análise das operações da consciência histórica e das
funções que ela cumpre, isto é, pela orientação da vida através da estrutura do
tempo, a didática da história pode trazer novos insights para o papel do
conhecimento histórico e seu crescimento na vida prática. Nós podemos aprender
que a consciência histórica pode exercer um papel importante naquelas operações
mentais que dão forma à identidade humana, capacitando os seres humanos, por
meio da comunicação com os outros, a preservarem a si mesmos. Focando essa
questão de identidade histórica, a didática da história enfatiza um elemento crucial
na estrutura interna do pensamento e da argumentação histórica, bem como suas
funções na vida humana. Se nós pudermos considerar a educação histórica como
um processo intencional e organizado de formação de identidade que rememora o

xxxi Cf. Rüsen, "Die vier Typen des historischen Erzählens".


34

passado para poder entender o presente e antecipar o futuro, então a didática da


história não pode ser posta de lado como sendo alheia ao que diz respeito aos
historiadores profissionais. Agora eles têm de considerar e explicar sua própria
pesquisa histórica como parte desse processo crucial de formação de identidade. Os
historiadores podem agora considerar sua pesquisa e escrita como meios
específicos de realizar aquelas operações da consciência histórica que
proporcionam aos seres humanos segurança e autopersistência em face da
mudança. Adicionalmente, eles podem apresentar os resultados de sua pesquisa
como conclusões obtidas por meio do uso da razão. Esta razão pode ser aplicada a
todas as formas e usos do pensamento histórico em que argumentos, e não poder e
dominação, poderiam resolver problemas.
Para concluir essa discussão, eu gostaria de levantar mais uma questão.
Com que forma de investigação histórica, com que estrutura teórica e abordagem
metodológica a didática da história poderia ser tratada como uma parte homogênea
dos estudos históricos? Como todos estes pontos que eu mencionei – metodologia
de instrução na sala de aula, reforma do currículo, pesquisa na área da vida pública
e investigação dentro da estrutura, processo e função da consciência histórica – se
combinam? A didática da história deveria ter a estrutura de uma disciplina própria.
Nós deveríamos ser capazes de distingui-la de outras disciplinas correlatas como
epistemologia, sociologia do conhecimento, pedagogia e psicologia. Dado esse
imperativo, a definição de que a didática da história é a disciplina que investiga a
consciência histórica é muito ampla.
Eu gostaria de propor uma definição mais modesta do objeto de pesquisa da
didática da história. Seu objetivo é investigar o aprendizado histórico.xxxiii O
aprendizado histórico é uma das dimensões e manifestações da consciência
histórica. É o processo fundamental de socialização e individualização humana e
forma o núcleo de todas estas operações. A questão básica é como o passado é
experienciado e interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o

xxxii Cf. Rüsen, "Historisches Erzälen als geschichtsdidaktisches Prinzip"

xxxiii J. Rohlfes, Umrisse einer Didaktik der Geschichte [1971] (Göttingen, 1976); J. Rüsen,
"Ansätze zu einer Theorie des historischen Lernens I: Formem und Prozesse," Geschichtsdidaktik
10 (1985), 249-265; part II, ibid. 12 (1987), 15-27.
35

futuro. Aprendizado é a estrutura em que diferentes campos de interesse didático


estão unidos em uma estrutura coerente. Ele determina a significância do assunto da
história da didática bem como suas abordagens teóricas e metodológicas
específicas. Teoricamente, a didática da história tem de conceituar consciência
histórica como uma estrutura e processo de aprendizado. Aqui é necessário
reformular ideias sobre consciência histórica como sendo um fator básico na
formação da identidade humana relacionando estes conceitos com o processo
educacional, que também é básico para o desenvolvimento humano.
Metodologicamente, a didática da história pode usar métodos estabelecidos da
psicologia e sociologia e reestruturá-los de acordo com a peculiaridade da
consciência histórica.xxxiv Com respeito às reflexões sobre o processo específico
sobre ensino e aprendizagem em sala de aula, a didática da história pode escolher
os elementos da pedagogia pertinentes à peculiaridade da consciência histórica. O
que deve ser relembrado aqui é que o ensino de história afeta o aprendizado de
história e este configura a habilidade de se orientar na vida e de formar uma
identidade histórica coerente e estável. Assim também, no campo da vida pública, o
foco sobre a experiência de aprendizado deve conduzir a um programa coerente de
pesquisa e explanação. Finalmente, com respeito ao processo real de instrução
histórica nas escolas, a ênfase sobre o aprendizado de história pode reanimar o
ensino e o aprendizado de história ressaltando o fato de que a história é uma
matéria de experiência e interpretação. Assim concebida, a didática da história ou
ciência do aprendizado histórico pode demonstrar ao historiador profissional as
conexões internas entre história, vida prática e aprendizado. Isto, mais do que
qualquer coisa, pode dar um novo significado à frase historia vitae magistra.

xxxiv CF. W. Reulecke, Lernpsychologie Ammerkungen zum 'historichen Lernen',


Geschichtsdidaktik 10 (1985), 267271.
36

APRENDIZADO HISTÓRICO*

JÖRN RÜSEN

A didática da história experimentou, desde o final dos anos 1960 e começo


dos anos 1970, um importante impulso da teoria do aprendizado (SCHÖRKEN,
1970). Geralmente mediados por uma didática geral adotada de caráter currículo-
teórico, os processos de aprendizado do ensino da história foram aceitos de modo
mais rigoroso como processos dirigíveis e controláveis. Com isso, não somente a
organização didática do ensino da história experienciou uma especificação técnica,
mas, simultaneamente, a atenção dos conteúdos de aprendizado orientou-se para
as condições, formas e funções de sua recepção. Estas inovações teóricas do
aprendizado da didática da história implicaram uma profunda crítica de antigas
determinações psicológicas do desenvolvimento do aprendizado histórico na escola:
o desenvolvimento foi desnaturalizado como processo de aprendizado e, com isso,
compreendido no domínio de competência do ensino.
Apesar de todas as férteis referências da didática da história a uma teoria
do aprendizado, que se apresentou em diferentes concepções (pedagógicas e
psicológicas), ainda não foi desenvolvida nenhuma teoria sistemática do
aprendizado histórico. É por isto que as respectivas teorias psicológicas do
aprendizado serão formuladas em um nível de abstração e serão empiricamente
testadas em situações experimentais, as quais não correspondem à especialidade
do aprendizado histórico e a sua referência histórica. O mesmo vale para as versões
pedagógicas das modernas teorias do aprendizado: elas trazem o ensino da história
à baila sem terem levado suficientemente em conta, em suas análises e
interpretações, a especificidade desse ensino. Ainda falta uma síntese coerente das
dimensões próprias às teorias do aprendizado na análise didática do aprendizado

* RÜSEN, Jörn. Historisches Lernen. In: BERGMANN, Klaus; FRÖHLICH, Klaus; KUHN, Annette;
RÜSEN, Jörn; SCHNEIDER, Gerhard (Eds.). Handbuch der Geschichtsdidaktik. 5.ed.
Seelze/Velber: Kallmeyer, 1997. p.261-265. Tradução para o português de Johnny R. Rosa,
mestrando na Universidade de Brasília. Revisão da tradução por Estevão de Rezende Martins.
37

histórico. Se ela pode ser produzida no âmbito de uma interpretação sociológica


abrangente do aprendizado histórico (JUNG; V. STAEHR, 1983) é uma pergunta em
aberto, pois a teoria social a que se recorre ainda não chegou a usar sua função de
crítica da ideologia para se conjugar criticamente com outras abordagens da didática
da história e elaborar uma explicação teoricamente consistente e empiricamente
controlável do aprendizado histórico, em que este aparece como processo mental
específico (para além de uma funcionalidade social abstrata).

CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E APRENDIZADO HISTÓRICO

Concepções teóricas do aprendizado podem ser fecundamente aplicadas à


especificidade do histórico, quando isto ocorre no curso de uma didática da história
que tenha a consciência histórica como seu objeto mais importante. Com a
consciência histórica, a referência à história, no aprendizado histórico, é levada a
seu nível fundamental e, ao mesmo tempo, genérico, ainda antes da explicação
científica de "História", mediada didaticamente, como conteúdo de aprendizado.
Com isso, a didática da história se volta para aqueles processos mentais ou
atividades da consciência sobre os quais afinal se funda a referência do aprendizado
histórico à história. Trata-se de "processos de pensamento e de formação
estruturadores de consciência", "que geralmente encontram-se 'por trás' dos
conteúdos e que habitualmente ficam velados ao aprendiz", de "atos mentais
determinantes do comportamento, que subjazem à lida com a História"
(SCHÖRKEN, 1972, p.84). Nesses processos e atos ocorre o aprendizado histórico.
Eles ainda não foram bastante explicitados sistematicamente e investigados
empiricamente, porém as operações centrais da consciência da história puderam ser
apresentadas em seus pormenores e seu significado para o aprendizado da história
pôde aqui ser questionado. Schörken acentuou, sobretudo, a "produção de
identidade, lealdade, simpatia" (SCHÖRKEN, 1972), por conseguinte, uma função
de subjetivação e individualização da consciência da história como componente
essencial do aprendizado histórico, e de que derivam estratégias de perspectivação
do ensino de história (SCHÖRKEN, 1975). Jeismann, por outro lado, acentuou o
38

lado cognitivo do desenvolvimento da consciência histórica através do aprendizado,


diferenciou as operações de análise, de julgamento de mérito e de valorização, e
sobre elas delineou as estratégias do ensino de história (JEISMANN, 1980). Estas
operações podem se generalizar e se tornar elementares para a experiência,
interpretação e orientação (RÜSEN, 1994). Para nos aproximarmos de uma teoria
das operações da consciência que constituem o aprendizado histórico, a pergunta a
ser esclarecida inicialmente é se as diferentes funções da consciência da história
não se reduziriam a uma operação básica, que se constitui em sua particularidade e
diversidade de outros processos mentais e a partir da qual o aprendizado histórico
pode ser tematizado como processo uniforme. A narrativa histórica pode ser vista e
descrita como essa operação mental constitutiva. Com ela, particularidade e
processualidade da consciência da história podem ser explicitadas didaticamente e
constituídas como uma determinada construção de sentido sobre a experiência do
tempo. O aprendizado histórico pode, portanto, ser compreendido como um
processo mental de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da
narrativa histórica, na qual as competências para tal narrativa surgem e se
desenvolvem (RÜSEN, 1994).
A narrativa histórica pode então, em princípio, ser vista como aprendizado
quando, com ela, as competências forem adquiridas através de uma função
produtiva do sujeito, com as quais a história será apontada como fator de orientação
cultural na vida prática humana. Trata-se de uma significativa orientação da vida
prática humana relacionada a três dimensões temporais por meio da visualização do
passado, resumidamente formulado em um termo: "competência narrativa" (RÜSEN,
1994, p.45s). A unidade do aprendizado histórico em suas complexas referências a
desafios do presente, experiências do passado e expectativas de futuro encontra-se
resolvida na estrutura narrativa deste trabalho de interpretação.
O caráter processual do aprendizado histórico nas narrativas da(s) história(s)
pode ser descrito como segue: o estímulo e a força pulsional do aprendizado
histórico encontram-se nas necessidades de orientação de indivíduos agentes e
pacientes, necessidades que surgem para tais indivíduos quando de
desconcertantes experiências temporais. O aprendizado histórico pode ser posto em
andamento, portanto, somente a partir de experiências de ações relevantes do
presente. Essas carências de orientação são transformadas então em perspectivas
39

(questionadoras) com respeito ao passado, que apreendem o potencial experiencial


da memória histórica. Pode-se ainda lembrar o fascínio que o passado, com seus
testemunhos e resquícios, exerce sobre os sujeitos. Somente quando a história
deixar de ser aprendida como a mera absorção de um bloco de conhecimentos
positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas a perguntas que se façam
ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela ser apropriada
produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação cultural da vida
prática humana. O potencial experiencial da memória histórica vem então a ser
correlacionado com o passado de acordo com as perspectivas questionadoras
prévias: no horizonte das questões históricas suscitadas no presente, a experiência
do passado transforma-se em experiência histórica específica, único contexto em
que tal experiência é efetivamente apropriada, tornando-se conteúdo próprio do
ordenamento mental do sujeito. Como tal apropriação se dá por interações, o
conhecimento histórico, hipoteticamente pré-delineado e empiricamente adquirido,
deve ser ainda formatado, tornado questionável e negociável intersubjetivamente,
para finalmente se transformar, nessa forma, em elemento de um discurso, no qual
se constrói a identidade histórica dos sujeitos que interagem entre si.
O aprendizado histórico seria, no entanto, parcial, quando considerado
somente como processo cognitivo. Ele é também determinado através de pontos de
vista emocionais, estéticos, normativos e de interesses. A seus resultados pertence,
consequentemente, não somente uma competência para a interpretação do passado
humano como história, mas também se distinguem a competência estética, a
qualidade e a particularidade do passado em sua singularidade e diversidade de
circunstâncias presentes, e a competência prática de empregar conhecimento
histórico na análise, no julgamento e no tratamento dos problemas do presente.

FORMAS DE APRENDIZADO

A determinação teórica da narrativa, da unidade e da processualidade da


consciência da história, aqui esboçada, é abstrata. Com ela, processos concretos de
aprendizado dificilmente podem ser decifrados empiricamente, determinados
40

normativamente e organizados pragmaticamente. Contudo, pode-se recorrer a


diferenciações tipológicas do aprendizado histórico no âmbito da didática, e, com
isso, elaborar uma tipologia das formas do aprendizado histórico, que pode ser
utilizada como um instrumento ideal-típico para a análise e a interpretação de
processos concretos de aprendizado. De acordo com as quatro formas típicas de
construção narrativa de sentido sobre a experiência temporal, diferenciam-se quatro
formas de aprendizado histórico: tradicional, exemplar, crítico e genético. Todas as
quatro formas existem tendencialmente em cada processo de aprendizado histórico,
de forma que este, com auxílio da distinção artificial-analítica das quatro formas de
aprendizado, pode ser decomposto em seus elementos essenciais, cuja relação de
interação pode ser identificada. Dessarte, a estrutura complexa do processo global
de aprendizado pode ser tornada transparente.
a) Na forma de aprendizado da construção tradicional do sentido da
experiência temporal, as experiências temporais serão processadas em
tradições possibilitadoras e condutoras de ações. As tradições se tornam
visíveis e serão aceitas e reconstruídas como orientações
estabilizadoras da própria vida prática.
b) Na forma de aprendizado da construção exemplar do sentido da
experiência temporal, para além do horizonte de tradições, serão
processadas experiências temporais em regras gerais condutoras de
ações. Nesta forma de aprendizado se constrói a competência de regra
em relação à experiência histórica; os conteúdos da experiência serão
interpretados como casos de regras gerais, e formam-se, na interação
entre generalização de regras e isolação de casos, como condição
necessária para um emprego prático na vida da adquirida competência
de regras de juízo.
c) Na forma de aprendizado da construção crítica do sentido da
experiência temporal, as experiências temporais serão empregadas de
modo que o afirmado modelo de interpretação da vida prática será
anulado e será feito valer as necessidades e interesses subjetivos. O
aprendizado histórico serve aqui à obtenção da capacidade de negar a
identidade pessoal e social do modelo histórico afirmado.
41

d) Na forma de aprendizado de construção genética do sentido da


experiência temporal serão empregadas experiências temporais em
temporalizações da própria orientação das ações. Os sujeitos aprendem,
na produtiva aquisição da experiência histórica, a considerar sua própria
autorrelação como dinâmica e temporal. Eles compreendem sua
identidade como "desenvolvimento" ou como "formação", e ao mesmo
tempo, com isso, aprendem a orientar temporalmente sua própria vida
prática de tal forma que possam empregar produtivamente a assimetria
característica entre experiência do passado e expectativa de futuro para
o mundo moderno nas determinações direcionais da própria vida prática.

NÍVEIS DO APRENDIZADO HISTÓRICO

As formas de aprendizado diferenciadas por tipos de narrativas deixam-se


interpretar (ainda muito hipoteticamente) como níveis no processo de aprendizado,
quando este for projetado sobre o desenvolvimento ontogenético como processo de
individualização e socialização. O aprendizado histórico se deixa então conceber
como um processo que resulta de diferentes níveis de aprendizado, ou seja, em que
cada nível de aprendizado descreve um pressuposto necessário para o outro. As
quatro formas de aprendizado deixam-se interpretar como tal nível de aprendizado e
se ordenar na sequência de tradicional, exemplar, crítica e genética lógica do
desenvolvimento (RÜSEN, 1993). Elas podem servir, desta forma, para distinguir e
interpretar fases e níveis de desenvolvimento da consciência da história como
período de época de um processo de aprendizado circundante. A disposição das
formas de aprendizado em sua ordem lógica de desenvolvimento deixa-se entender
como consequência estrutural de um aumento de experiência qualitativo e
duradouro, um aumento qualitativo correspondente de subjetividade (individuação)
no trabalho de interpretação da lembrança histórica, e um aumento qualitativo
circundante a ambos, garantidor de consenso de intersubjetividade histórica da
orientação de existência.
42

OBJETIVOS DO APRENDIZADO HISTÓRICO

Uma interpretação teórica narrativa do aprendizado histórico pode


determinar seus objetivos como conhecimento técnico e ao mesmo tempo como vida
prática, na medida em que a narrativa histórica os tematiza ao mesmo tempo como
operação constitutiva da consciência histórica: enquanto função da vida prática do
pensamento histórico e enquanto referência histórica particular a ele. Ainda antes de
qualquer determinação material do aprendizado histórico, isto é, sua vinculação a tal
ou qual acervo preciso de conteúdos, pode-se elaborar uma projeção mais
fundamental, mais abrangente e mais especificadora do caráter histórico do
aprendizado histórico. O suprassumo da capacidade que se tem de adquirir,
mediante o aprendizado histórico, para a orientação temporal da própria vida prática,
pode ser designado de competência narrativa. É ela que constitui a qualificação à
qual todo aprendizado histórico está, ao fim e ao cabo, relacionado. O objetivo do
aprendizado histórico pode ser definido, desde a perspectiva de uma didática da
história, como o trabalho, viável praticamente, de concretizar e de diferenciar a
competência narrativa.
Essa concretização e diferenciação pode ocorrer em quatro sentidos:
a) Através do aprendizado histórico, deve ser aqui aberta a orientação
temporal da própria vida prática sobre a experiência histórica e ser
mantida aberta para um incremento da experiência histórica.
Competência de experiência é, parcialmente, objetivo essencial do
aprendizado histórico e possui uma forte dimensão estética. O
aprendizado histórico é sempre (também) um processo, no qual se
abrem os olhos para a história, para a presença perceptível do passado.
b) A referência do aprendizado histórico à experiência não teria sentido
didático se não fosse relacionada à subjetividade do aprendiz. O
aprendizado histórico deve, assim, ser relacionado à subjetividade dos
receptores, à situação atual do problema e à carência de orientação, de
que parte o recurso rememorativo ao passado. Sem esta referência ao
sujeito, o conhecimento histórico petrifica-se em um mero lastro de
reminiscências.
43

c) A referência subjetiva do aprendizado histórico se dá, primeiramente,


quando for relacionada ao movimento entre sujeitos diferentes, portanto
à intersubjetividade, na qual se constrói, a cada vez, a identidade
histórica. O aprendizado histórico deve, desse modo, efetuar-se no meio
de uma intersubjetividade discursiva, em uma relação aberta de
comunicação racional-argumentativa.
d) Por fim, o aprendizado histórico deve ser organizado de modo que suas
diferentes formas sejam abordadas, praticadas e articuladas em uma
relação consistente de desenvolvimento dinâmico. Nesse processo, têm
importância não apenas os fatores cognitivos, mas nele também devem
ser sistematicamente considerados os componentes estéticos e políticos
da consciência da história e da cultura histórica enquanto pré-requisitos,
condições e determinações essenciais dos objetivos do aprendizado
histórico.
44

REFERÊNCIAS

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Education. Set. 1988. p.336-342 (também em: SHAVER, J. (Ed.): Handbook of
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eines neuen Ansatzes der Geschichtsdidaktik. In: SÜSSMUTH, H. (Ed.).
Geschichtsdidaktische Positionen. Bestandsaufnahme und Neuorientierung.
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JUNG, H. W.; STAEHR, G. von. Historisches Lernen. Colônia, 1983.

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ZACCARIA, M. A. The Development of Historical Thinking: Implications for the


Teaching of History. The History Teacher, v.11, p.323-340, 1977/78.
45

O DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA NARRATIVA NA APRENDIZAGEM


HISTÓRICA: UMA HIPÓTESE ONTOGENÉTICA RELATIVA À CONSCIÊNCIA
MORAL*

JÖRN RÜSEN

A aprendizagem histórica pode se explicar como um processo de mudança


estrutural na consciência histórica. A aprendizagem histórica implica mais que um
simples adquirir de conhecimento do passado e da expansão do mesmo. Visto como
um processo pelo qual as competências são adquiridas progressivamente, emerge
como um processo de mudança de formas estruturais pelas quais tratamos e
utilizamos a experiência e conhecimento da realidade passada, passando de formas
tradicionais de pensamento aos modos genéticos.

1 UMA NARRAÇÃO EM QUATRO VERSÕES

O antigo Castelo de Col se encontra nas terras altas da Escócia. É a antiga


residência dos chefes do clã Maclean e está ainda em posse de um membro da
família, que vive no castelo. Em cima da muralha existe uma pedra gravada com a
seguinte inscrição: "Se algum homem do clã Maclonish aparecer perante este
castelo, mesmo que venha à meia-noite, com a cabeça de um homem em sua mão,
encontrará aqui segurança e proteção contra tudo".
O texto é de um antigo tratado celebrado em Highlands em uma ocasião
memorável. Em um passado distante, um dos antepassados Maclean obteve do rei

* RÜSEN, Jorn. El desarrollo de la competência narrativa en el aprendiaje histórico. Una hipótesis


ontogenética relativa a la conciencia moral. Revista Propuesta Educativa, Buenos Aires, Ano 4,
n.7, p.27-36. oct. 1992.Tradução para o espanhol de Silvia Finocchio.. Tradução para o português
por Ana Claudia Urban e Flávia Vanessa Starcke. Revisão da tradução: Maria Auxiliadora
Schmidt.
46

da Escócia uma concessão de terras que pertenciam a outro clã mas que as perdeu
por haver ofendido ao rei. Maclean, acompanhado por sua esposa, avançou com
uma força armada de homem para tomar posse de suas novas terras. No confronto
e batalha com o outro clã, Maclean foi derrotado e perdeu sua vida, no entanto sua
esposa, grávida, caiu nas mãos dos vencedores. O chefe do clã vitorioso transferiu
para a família Maclonish a guarda da grávida, Lady Maclean, com uma condição
específica: se a criança nascida fosse um varão, deveria morrer imediatamente, se
fosse uma menina, lhe seria permitido viver. A esposa Maclonish, que também
estava grávida, deu a luz a uma menina quase ao mesmo tempo em que Lady
Maclean deu a luz a um menino. Elas então trocaram as crianças.
O jovem Maclean, havendo sobrevivido a esta armadilha da sentença de
morte que sobre ele pesava antes de nascer, recuperou com o tempo seu patrimônio
original. Em agradecimento ao clã Maclonish determinou então seu castelo como um
lugar de refúgio para qualquer membro daquela família que se encontrasse em
perigo.
Esta narração de encontra no livro Journeu to the Western Islands of
Scotland, de Samuel Jonson, publicado pela primeira vez em 1775.I Minha intenção,
com o presente trabalho, é utilizar esta história para demonstrar a natureza da
competência narrativa e suas diversas formas, e a importância da competência para
a consciência moral. Para aproximarmos de uma maneira mais concreta, permita-se
imaginar esta narração dentro de uma situação real onde se desafiam os valores
morais, e onde seu uso e legitimação requerem argumentos embasados
historicamente. Imagine que você é um membro do clã Maclean e vive atualmente
no castelo de um ancestral. Uma noite escura, um membro do clã Maclonish –
permita-nos chamá-lo de Ian – bate a sua porta pedindo ajuda. Conta que a polícia o
está seguindo em razão de um crime de cuja autoria o acusam. Como raciocinaria
você? O ajudaria a esconder-se da polícia ou decidiria por alguma outra ação?
Imagine que logo seja necessário explicar a um amigo o que está
acontecendo; e este amigo, que você encontra por acaso, não conhece a narração
do clã. Não importa que atitude tome a respeito de Ian Maclonish, você será

I Samuel Johnson, a. Journey to the Western Islands of Scotland (New Haven and London, 1971),
133 ff. Trata-se de uma versão simplificada do conto.
47

obrigado a contar-lhe o relato dos bebês trocados, para fazer-se convincente (e


assim interpretada) a situação em que você se encontra e a decisão que deve tomar.
Sua narração da lenda do clã provavelmente será diferente dependendo da
natureza de sua decisão. Além do mais, sua decisão original depende de sua própria
interpretação da antiga lenda do clã em relação às crianças trocadas.
Assinalo, portanto, a existência de quatro possibilidades para tal
interpretação.
1. Pode esconder Ian Maclonish porque sente que é obrigação de sua
parte honrar o antigo acordo de Highlands. Neste caso, dirá a seu amigo
que você – como um Maclean – se sente obrigado a ajudar a Ian porque
considera vigente a antiga narração e então existem ainda laços entre
os clãs. Você passa a relatar a lenda dos bebês trocados com a
intenção de esconder da polícia Ian Maclonish, para manter o antigo
tratado do clã, renovando e continuando, dessa forma, a importância da
relação entre os grupos.
2. Pode esconder Ian Maclonish, motivado por múltiplas razões. Assim,
pode dizer que ajudou a Ian porque no passado um Maclonish uma vez
ajudou a um membro do clã Maclean, e agora você se sente obrigado a
retribuir, com base no princípio da reciprocidade de favores. Ou pode
dizer que o ajuda para cumprir a obrigação de um tratado entre os clãs:
porque os acordos devem ser mantidos como tais, ou seja, estão unidos
pelo tratado. Logo conta a lenda concluindo com a observação de que a
ajuda mútua ou a manutenção de um tratado entre os clãs é, para você,
um guia e um princípio moral, como já foi provado quando o bebê foi
salvo.
3. Pode negar-se a esconder Ian Maclonish. Então, primeiramente tem que
explicar o pedido de auxílio para aquele, narrando o conto dos bebês e a
pedra com a inscrição. Mas comenta a história afirmando que não
acredita, que é meramente um "mito" ou uma "lenda" desprovida de
qualquer evidência e validez comprometedora, o que não o obriga
moralmente de nenhuma maneira. Também pode argumentar que desde
a introdução do direito inglês moderno, aqueles antigos tratados teriam
perdido a validade que uma vez tiveram e agora são letra morta. Neste
48

caso, você apresenta uma série de argumentos histórico-críticos para se


desculpar da obrigação de manter o antigo pacto. Portanto, argumenta
historicamente para romper qualquer laço de união entre você e o clã
Maclonish, o qual pode ter sido válido e obrigatório no passado.
4. Pode se decidir a convencer Ian Maclonish de que é inútil se esconder
da polícia e que seria melhor se entregar às autoridades. Você, por sua
vez, se compromete a fazer de tudo para ajudá-lo, por exemplo,
contratando o melhor advogado disponível. Neste caso, você narra o
conto às crianças, mas o circunscreve agregando o seguinte argumento:
o sistema legal se transformou muito desde o direito do clã da era pré-
moderna até a época moderna. Você ainda se sente obrigado a ajudar
alguém do clã Maclonish, mas deseja fazê-lo baseado em
considerações modernas e não como prescrevia o antigo pacto.

Essa antiga narração que nos fala, em quatro versões, dos Maclean, dos
Maclonish e da troca dos bebês, nos proporciona o ponto de partida para mais
argumentos. O conto indica a necessidade da consciência histórica para tratar os
valores morais e o raciocínio moral. Espero demonstrar que as quatro variantes
representam quatro versões essenciais da consciência histórica, mostrando quatro
etapas de desenvolvimento por meio da aprendizagem.

2 A RELAÇÃO ENTRE A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA, OS VALORES MORAIS E


O RACIOCÍNIO

Na situação representada em nossa narração, devíamos decidir por um


curso de ação. Tal decisão dependia de valores. Esses valores são geralmente
princípios, guias de comportamento, ideias ou perspectivas chaves que sugerem o
que deveria ser feito em uma situação determinada, em que existem várias opções.
Tais valores funcionam como fonte de arbitragem nos conflitos e como objetivos que
nos guiam ao atuar.
Que significado tem assinalar tais valores como "morais"? Nossas
perspectivas se enquadram nesta ação sistematicamente, reconhecem a relação
49

social dentro da qual vivemos e devem decidir um curso de ação a tomar. Elas
expressam esta relação social como uma obrigação para nós, dirigindo-nos, assim,
até a essência de nossa subjetividade, recorrendo a nosso sentido de
responsabilidade e nossa consciência.
Como entra a história nesta relação moral entre nossa ação, nossa
personalidade e nossas orientações valorativas? A narração esquematizada no
princípio deste ensaio pode nos servir para proporcionar uma resposta: quando se
supõe que os valores morais guiem as ações que tomamos em uma dada situação,
devemos relacionar os valores a essa situação, interpretar os mesmos e seu
conteúdo moral com referência à realidade em que os aplicamos, e avaliar a
situação nos termos de nosso código de valores morais aplicáveis. Para essa
mediação entre valores e realidade orientada pela ação, a consciência histórica é
um pré-requisito necessário. Sem tal consciência, não seríamos capazes de
entender por que Ian Malconish nos pediu para o escondermos da polícia. Sem tal
consciência como pré-requisito para a ação, seríamos incapazes de analisar a
situação e chegar a uma decisão plausível para todas as partes envolvidas – Ian,
meu amigo que me visita, e eu como um Maclean.
Mas, por que tem que ser a consciência histórica um pré-requisito
necessário para a orientação em uma situação presente que demanda uma ação?
Depois de tudo, tal consciência por definição aponta para fatos do passado. A
resposta simples é que a consciência histórica funciona como um modo específico
de orientação em situações reais da vida presente: tem como função ajudar-nos a
compreender a realidade passada para compreender a realidade presente. Sem
haver narrado previamente a antiga história dos bebês trocados, seria impossível
explicar a meu amigo visitante a "situação atual" e justificar-lhe, que quer dizer
legitimar, minha decisão. Além disso, o poder explicativo da narração serve para
ensinar os elementos básicos da situação, não somente para quem está fora, como
também para mim mesmo, um homem do clã Maclean, e para alguma outra parte
implicada.
Então, o que é especificamente histórico nesta explicação, nesta
interpretação da situação e em sua legitimação? O histórico como orientação
temporal une o passado ao presente de tal forma que confere uma perspectiva
futura à realidade atual. Isto implica que a referência ao tempo futuro está contida na
50

interpretação histórica do presente, já que essa interpretação deve permitir-nos


atuar, ou seja, deve facilitar a direção de nossas intenções dentro de uma matriz
temporal. Quando dizemos que nos sentimos forçados ou obrigados pelo antigo
tratado, definimos uma perspectiva futura em nossa relação com o clã Maclonish. O
mesmo é verdade em relação a todas as outras explicações e justificativas históricas
associadas a nossa decisão.
Desejo extrair desse exemplo narrativo uma característica geral da
consciência histórica e sua função na vida prática.II A consciência histórica serve
como um elemento de orientação chave, dando à vida prática um marco e uma
matriz temporais, uma concepção do "curso do tempo" que flui através dos assuntos
mundanos da vida diária. Essa concepção funciona como um elemento nas
intenções que guiam a atividade humana, "nosso curso de ação". A consciência
histórica evoca o passado como um espelho da experiência na qual se reflete a vida
presente, e suas características temporais são, do mesmo modo, reveladas.
Afirmado sucintamente, a história é o espelho da realidade passada na qual
o presente aponta para aprender algo sobre seu futuro. A consciência histórica deve
ser conceituada como uma operação do intelecto humano para aprender algo neste
sentido. A consciência histórica trata do passado como experiência, nos revela o
tecido da mudança temporal dentro do qual estão presas as nossas vidas, e as
perspectivas futuras para as quais se dirige a mudança. Nas palavras de
Shakespeare: "como o destino zomba, e as mudanças chegam ao topo da
transformação, com diversos licores".III
A história é um nexo significativo entre o passado, o presente e o futuro –
não meramente uma perspectiva do que foi, wie es eighntlich gewesen. É uma
tradução do passado ao presente, uma interpretação da realidade passada via uma
concepção de mudança temporal que abarca o passado, o presente e a perspectiva
dos acontecimentos futuros. Esta concepção molda os valores morais a um "corpo

II Uma descrição sintética pode ser encontrada em Karl Ernest Jeismann, “Geschichtsbewusstsein”,
em K. Bergmann, a. Kuhn, J. Rüsen, g. Schneider (eds). Handbuch der Geschichtdidaktik
(Düsseldorf, 1985), pp.40-44; cfr. idem Geschichte als Horizont der Genenwrt. Uber den
Zusammenbang von Vergagenheitsdeutung, Gegenwartsverständnis und Zukunftsperspektive
(paderborn, 1985,pág.53.

III Henry IV, 2da. parte, ato III, cena I, II, pp.51-53
51

temporal" (por exemplo, o corpo da validade contínua de um antigo tratado), a


história se reveste dos valores da experiência temporal. A consciência histórica
transforma os valores morais em totalidades temporais: tradições, conceitos de
desenvolvimento ou outras formas de compreensão do tempo. Os valores e as
experiências estão mediados e sintetizados em tais concepções de mudança
temporal.
É assim que a consciência histórica de um membro contemporâneo do clã
Maclean pode traduzir a ideia de moral pela qual os tratados são obrigatórios e
devem ser cumpridos na forma concreta de um acordo presente, válido para além do
tempo. A consciência histórica mistura "ser" e "dever" em uma narração significativa
que refere acontecimentos passados com o objetivo de fazer inteligível o presente, e
conferir uma perspectiva futura a essa atividade atual. Desta forma, a consciência
histórica traz uma contribuição essencial à consciência ética moral. Os
procedimentos criativos da consciência histórica são necessários para os valores
morais e para a razão moral, como se a plausibilidade logica dos valores morais (em
relação à sua coerência, por exemplo), se não mais, em relação à própria
plausibilidade, no sentido de que os valores devem ter relação aceitável com a
realidade.
A consciência histórica tem uma função práticaIV: confere à realidade uma
direção temporal, uma orientação que pode guiar a ação intencionalmente, através
da mediação da memória histórica. Pode-se chamar a esta função "orientação
temporal". Essa orientação tem lugar em duas esferas da vida respectivamente a a)
a vida prática e b) a subjetividade interna dos atores. A orientação temporal da vida
tem dois aspectos, um interno e outro externo. O aspecto externo da orientação por
via da história revela a dimensão temporal da vida prática, descobrindo a
temporalidade das circunstâncias incluídas na atividade humana. O aspecto interno
da orientação por via da história revela a dimensão temporal da subjetividade
humana, outorgando autocompreensão e conhecimento das características

IV Esta questão está discutida principalmente a partir de uma perspectiva estreita da função dos
estudos históricos na vida social, por exemplo, por Jürgen Kocka, Socialgeschichte. Begriff-
Entwicklung-Probleme, 2ª. ed.pp. 112-113; cfr. Jörn Rüsen, Lebendige Geschichte, Grundzüge
einer Historik III: Formen und Funktionen des Historischen Wisses (Göttingen, 1989).
52

temporais dentro das quais aqueles tomam a forma de identidade histórica, ou seja,
uma consistência constitutiva das dimensões temporais da personalidade humana.
Por meio da identidade histórica a personalidade humana expande sua
extensão temporal, mais além dos limites do nascimento e da morte, mais além da
mera mortalidade. Via esta consciência histórica, uma pessoa se faz parte de um
todo temporal mais extenso que em sua vida temporal.
Assim, então, o papel de um membro atual do clã Maclean pressupõe uma
identidade familiar histórica que se pode rastrear em um antigo período de batalhas
entre clãs pela concessão real de um território. Dando atualmente assistência a Ian
Maclonish afirmamos esta identidade, que significa ser um Maclean com respeito ao
futuro. Um exemplo mais familiar de tal "imortalidade temporal" (assim pode ser
caracterizada a identidade histórica) é a identidade nacional. As nações
frequentemente localizam suas fontes em um passado remoto e antigo, e projetam
uma perspectiva de futuro ilimitado que engloba a própria afirmação e
desenvolvimento nacional.

3 A COMPETÊNCIA NARRATIVA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

A forma linguística dentro da qual a consciência histórica realiza sua função


de orientação é a da narração. A partir desta visão, as operações pelas quais a
mente humana realiza a síntese histórica das dimensões de tempo simultaneamente
com as do valor e da experiência se encontram na narração: o relato de uma
históriaV. Uma vez explicadas a forma narrativa dos procedimentos da consciência
histórica e sua função como meio de orientação temporal, é possível caracterizar a
competência específica e essencial da consciência histórica e sua função como meio
de orientação temporal, é possível caracterizar a competência específica e essencial

V Cfr.H. White, Metahistory. The historical Imagination in Nineteenth Century Europe. (Baltimore,
1973); J. Rüsen, Historische Vernunft Grundzüge einer Historik I: Die Grundlagen der
Gerschichtwissenchaft(Göttingen,1983);Paul Ricoeur, Temps et Récit ,3 vols. (Paris,,
1983,1984,1985); David Carr, Time, Narrative and History.(Bloomington, 1986).
53

da consciência histórica como "competência narrativa" VI. Essa competência pode se


definir como a habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos
que dão sentido ao passado, fazendo efetiva uma orientação temporal na vida
prática presente por meio da recordação da realidade passada. Esta competência
geral relativa a "dar sentido ao passado" pode ser definida em termos dos três
elementos que constituem juntos uma narração histórica: forma, conteúdo e função.
Em relação ao conteúdo, pode-se falar de "competência para a experiência
histórica"; em relação à forma, de "competência para a interpretação histórica"; e em
relação à função, de "competência para a orientação histórica".
a) A consciência histórica se caracteriza pela "competência de
experiência". Esta competência supõe uma habilidade para ter
experiências temporais. Implica a capacidade de aprender a olhar o
passado e resgatar sua qualidade temporal, diferenciando-o do
presente. Uma forma mais elaborada de tal competência é a
"sensibilidade histórica". No fim de nossa narração, é a competência
para entender a pedra na muralha do castelo Maclean e a necessidade
de prestar atenção na inscrição, quer dizer, que contém informação
importante para os membros da família Maclean.
b) A consciência histórica se caracteriza posteriormente pela "competência
de interpretação". Esta competência é a habilidade para reduzir as
diferenças de tempo entre o passado, o presente e o futuro através de
uma concepção de um todo temporal significativo que abarca todas as
dimensões de tempo. A temporalidade da vida humana funciona como
um instrumento principal desta interpretação, desta tradução de
experiências da realidade passada a uma compreensão do presente e a
expectativas em relação ao futuro. Essa concepção se encontra na
essência da atividade significativo-criativa da consciência histórica. É a
fundamental "filosofia da história" ativa dentro das atividades

VI Esbocei um plano geral acerca de uma teoria da competência narrativa relacionada aos principais
objetivos da aprendizagem histórica em “Anzäte zu einer Theorie des historichen Lernens”,in
Gechichdidaktik 10 (1985); pp.249-265, 12 (1987), pp.15-27.
54

significativo-criativas da consciência histórica, que marca todo


pensamento histórico.
No término de nossa narração, implica a competência para integrar o
acontecimento da troca dos bebês em um conceito de tempo que une
aquele antigo período com o presente, dando a este complexo uma
significação de peso histórico para os Maclean em sua relação com os
Maclonish. Essa concepção pode ser materializada na noção de
validade indestrutível do tratado, ou na evolução do direito de uma forma
pré-moderna a sua manifestação moderna.
c) A consciência histórica, finalmente, se caracteriza pela "competência de
orientação". Esta competência supõe ser capaz de utilizar o todo
temporal, com seu conteúdo de experiência, para os propósitos de
orientação da vida. Implica guiar a ação por meio das noções de
mudança temporal, articulando a identidade humana com o
conhecimento histórico, mesclando a identidade no enredo e na própria
trama concreta do conhecimento histórico. O fim da narração de
Highlands supõe a habilidade de utilizar a interpretação do tratado para
analisar a situação presente e determinar um curso de ação, ou seja,
dizer se vai ou não esconder Ian, ou ajudá-lo de qualquer outra forma, e
legitimar esta decisão – em cada instância usando uma "razão histórica
boa" – relativa à identidade de um membro do clã Maclean.
55

4 QUATRO TIPOS DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

Na parte anterior, tentou-se explicar as operações básicas da consciência


histórica, sua relação com a consciência moral e suas principais competências. A
parte final desse texto trata do seu desenvolvimento.
As diferentes teorias de desenvolvimento da consciência moral, elaboradas
e empiricamente confirmadas por pensadores como Piaget, Kohlberg e outros, são
habituais na literatura sobre o desenvolvimento cognitivo. VII Minha intenção aqui é
propor uma teoria análoga de desenvolvimento concernente à realidade ou à moral e
à atividade através de um ato narrativo: o relato de uma história de fatos passados.
Para encontrar as etapas de desenvolvimento estrutural na consciência
histórica, é necessário, antes de tudo, distinguir as estruturas básicas dentro dos
processos concernentes à construção do sentido histórico do passado. Proponho
explicar estas estruturas básicas na forma de uma tipologia geral do pensamento
histórico. Esta tipologia abarca conceitualmente o campo completo de suas
manifestações empíricas, e, portanto, pode ser utilizada para o trabalho comparativo
na historiografia incluindo comparações interculturais.VIII
A tipologia já está implícita nos quatro modos diferentes de argumentação
histórica apresentados brevemente em relação ao pedido de Ian Maclonish para se
esconder da polícia. Qual é então o significado tipológico desses quatro modos?
Meu ponto de partida é a função da narração histórica. Como já foi
mencionado, essa narração tem a função geral de servir para orientar a vida prática
no tempo. Mobiliza a memória da experiência temporal, desenvolvendo a noção de

VII Jean Piaget, Das moralische Bewusstsein beim Kinde (Franckfurt/Mein, 1973); Lawrence Kohlperg,
Zur Kognitiven Entwicklung des Kindes (Frankfurt/Main, 1974); cfr.R.N.Hallan, “Piaget and thinking
in History”, in Marin Ballard (ed.) New Movements in the study and Teaching History (London,
1970), 162-178.,

VIII Para uma explicação mais detalhada desta tipologia, ver Jörn Rüsen, “Dier vier Typen des
historischen Erzählens”, in Reinhart Koselleck, Hainrich Lutz, Jörn Rüsen (eds), Formen der
Geschitsschereibung (Beträge zur Historik, 4 (Munich, 1982), pp.514-605; J. Rüsen Lebendige
Geschichte, Grundzüge einer Historik III, part I; idem, “Historical Narration: Foundation, Types,
Reason, History and Theory, Beihelf 26, in The Representations of Historical Events (1987),
pp.87-97.
56

um todo temporal abrangente, e confere uma perspectiva temporal interna e externa


à vida prática.
A consciência histórica realiza esta função geral em quatro formas
diferentes, baseadas em quatro princípios distintos para a orientação temporal da
vida: a) a afirmação das orientações dadas, b) a regularidade dos modelos culturais
e dos modelos de vida (Lebensformen), c) a negação e d) a transformação doszur
modelos de orientação temática. Todos estes são trazidos via a mediação da
memória histórica.
Existem seis elementos e fatores de consciência histórica através dos quais
se pode descobrir estes tipos: 1) seu conteúdo, ou seja, a experiência dominante do
tempo, trazida desde o passado; 2) as formas de significação histórica, ou as formas
de totalidades temporais, 3) o modo de orientação externa, especialmente em
relação às formas comunicativas da vida social; 4) o modo de orientação interna,
particularmente em relação à identidade histórica como a essência da historicidade
no conhecimento da personalidade humana e a autocompreensão; 5) a relação de
orientação histórica com os valores morais; 5) sua relação com a razão moral (ver
quadro 1).

QUADRO 1 - OS QUATRO TIPOS DE CONSCIÊNCIA DA HISTÓRIA


TRADICIONAL EXEMPLAR CRÍTICA GENÉTICA
Variedade de casos Desvios Transformações dos
Origem e repetição de
Experiência do representativos de problematizadores dos modelos culturais e de
um modelo cultural e de
tempo regras gerais de conduta modelos culturais e de vida alheios em outros
vida obrigatória
ou sistemas de valores vida atuais próprios e aceitáveis
Desenvolvimento nos
Permanência dos
Formas de Regras atemporais de Rupturas das totalidades quais os modelos
modelos culturais e de
significação vida social. Valores temporais por negação culturais e de vida
vida na mudança
histórica atemporais de sua validade mudam para manter sua
temporal
permanência
Afirmação das ordens Relação de situações Aceitação de distintos
Delimitação do ponto de
preestabelecidas por particulares com pontos de vista em uma
Orientação da vista próprio frente às
acordo ao redor de um regularidades que se perspectiva abrangente
vida exterior obrigações
modelo de vida comum atêm ao passado e ao do desenvolvimento
preestabelecidas
e válido para todos futuro comum
Mudança e
Relação de conceitos transformação dos
Sistematização dos próprios a regras e conceitos próprios como
Autoconfiança na
Orientação da modelos culturais e de princípios gerais. condições necessárias
refutação de obrigações
vida interior vida por imitação – role- para a permanência e a
Legitimação do papel externas – role-playing
playing autoconfiança
por generalização
Equilíbrio de papéis

A moralidade é um Temporalização da
conceito preestabelecido moralidade. As
A moralidade é a Ruptura do poder moral
de ordens obrigatórias; a possibilidades de um
Relação com os generalidade da dos valores pela
validade moral é desenvolvimento
valores morais obrigação dos valores e negação de sua
inquestionável. posterior se convertem
dos sistemas de valores validade
em uma condição de
Estabilidade por tradição moralidade
57

A razão subjacente aos Argumentação por A mudança temporal se


Crítica dos valores e da
valores é um suposto generalização, converte em um
Relação com o ideologia como
efetivo que permite o referência a elemento decisivo para
raciocínio moral estratégia do discurso
consenso sobre regularidades e a validade dos valores
moral
questões morais princípios morais

Esquema da tipologia:

a) O tipo tradicional

As tradições são elementos indispensáveis de orientação dentro da vida


prática, e sua negação total conduz a um sentimento de desorientação massiva. A
consciência histórica funciona em parte para manter vivas essas tradições.
Quando a consciência histórica nos provê de tradições, nos faz recordar as
origens e a repetição de obrigações, fazendo-o em forma de acontecimentos
passados de concretização fática que demonstram o atributo de validade e
obrigatoriedade dos valores e dos sistemas de valores. Tal pode ser exemplificado
quando, no caso dos membros do clã Maclean, sentimos uma relação de obrigação
com um antigo tratado.
Em tal aproximação, tanto nossa interpretação do que ocorreu no passado,
como nossa justificativa para esconder a Ian Maclonish, são "tradicionais". Alguns
outros exemplos dessa "tradição" são os discursos comemorativos públicos, os
monumentos públicos, ou inclusive as histórias privadas narradas entre as pessoas
com o propósito de consentir sua relação pessoal. Assim, tanto você como sua
esposa estarão "apaixonados" da narração que descreve como chegaram a se
apaixonar – se, é claro, vocês ainda se amam.
As orientações tradicionais apresentam a totalidade temporal que faz
significativo o passado e relevante a realidade presente e a sua extensão futura
como uma continuidade dos modelos de vida e os modelos culturais pré-escritos
além do tempo.
As orientações tradicionais guiam externamente a vida humana por meio de
uma afirmação das obrigações que requerem consentimento. Essas orientações
tradicionais definem a "unidade" dos grupos sociais ou das sociedades em seu
conjunto, entretanto mantêm o sentimento de uma origem comum.
Em relação à orientação interna, essas tradições definem a identidade
histórica, a afirmação dos modelos culturais predeterminados de autoconfiança e
58

autocompreensão. Enquadram a formação da identidade como um processo no qual


se assumem e se atuam as relações. A orientação histórica tradicional define a
moral como tradição. As tradições expressam a moral como uma estabilidade
inquestionada de Lebensformen, de modelos de vida e modelos culturais além do
tempo e de suas vicissitudes.
Em relação ao raciocínio moral, as tradições são razões que sustentam e
asseguram a obrigação moral dos valores. Se a vida prática se orienta
predominantemente em termos de tradições, a razão que molda os valores se
encontra na permanência de sua realidade na vida social, uma permanência que a
história ajuda a trazer a nossa memória.

b) O tipo exemplar

Não são as tradições que utilizamos aqui como argumento, mas as regras. A
história das lutas entre os clãs e a troca dos bebês exemplificam aqui uma regra
geral atemporal: nos ensina que curso de ação tomar e o que devemos evitar fazer.
Aqui a consciência histórica se refere à experiência do passado na forma de
casos que representam e personificam regras gerais de mudança temporal e a
conduta humana. O horizonte da experiência temporal se expande de forma
significativa neste modo de pensamento histórico. A tradição se move dentro de um
marco de referência empírica bastante estreito, mas a memória histórica estruturada
em termos de exemplos está aberta para processos em número infinito de
acontecimentos passados, desde o momento em que estes não possuem relação
com uma ideia abstrata de mudança temporal e de conduta humana, válido para
todo o tempo, ou ao menos cuja validade não está limitada a um acontecimento
específico.
O modelo de significação que corresponde aqui tem a forma de regras
atemporais. Nesta concepção a história é vista como uma recordação do passado,
como uma mensagem ou lição para o presente, como algo didático: historiae vitae
maestrae é uma máxima tradicional na tradição historiográfica ocidental.IX Ela nos
ensina as normas, sua derivação de casos específicos e sua aplicação.

IX Cfr. R. Kosselleck, “Historia Magistra vitae. Uber die auflüsung des Topos Im Horizont neuzeitlich
bewegter Geschichte, “in idem Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten (
Frankfurt/Main, 1979, pp.38-66).
59

O modo de orientação realizado pela consciência histórica neste tipo de


exemplo está focado na regra: implica a aplicação de regras comprovadas e
derivadas historicamente de situações atuais. Muitos exemplos clássicos da
historiografia na variedade de culturas diversas refletem este tipo de significação
histórica. Na antiga tradição chinesa, o melhor exemplo é o clássico de Suma-
Kuang, Tzuchih t'ung-chien (Um espelho para o governo). Seu próprio título indica
como concebe o passado como exemplo: a moral política se ensina na forma de
casos de governo que tiveram êxito ou sucumbiram.
Em relação à orientação interna da vida, o pensamento histórico exemplar
relaciona as atividades da vida às regras e princípios, e tem como função legitimar
tais atividades através do raciocínio abstrato. A identidade histórica é o marco dado
de sensatez (prudência). Sua matéria é a competência dada a resultar regras gerais
de casos específicos e aplicá-los a outros casos. Procedendo deste modo, tal forma
de consciência histórica faz uma contribuição significativa ao raciocínio moral. O
pensamento histórico exemplar revela a moralidade de um valor ou de um sistema
de valores, culturalmente materializados na vida social e pessoal, através da
demonstração de sua generalidade: ou seja, que tem uma validade que se estende
a uma gama de situações. Conceitua-se a moral como possuindo validade
atemporal.
A contribuição deste modo de interpretação histórica ao raciocínio moral é
clara: a história ensina o argumento moral por meio da aplicação de princípios a
situações concretas e específicas, tais como um golpe na porta por um membro do
clã Maclonish ao cair da noite.

c) O tipo crítico

O argumento decisivo na versão crítica de nossa narração é que, como um


membro do clã Maclean, nós não sentimos obrigação nenhuma frente ao suposto
atributo de "obrigatório". Para nós, é um velho conto que perdeu toda a relevância
para a ação presente e a realidade. No entanto, isto não é automaticamente assim:
como um Maclean, somos de certo modo parte desta história, a antiga pedra contém
certamente sua inscrição na muralha. Assim, devemos apresentar uma nova
interpretação que – por meio do raciocínio histórico – negue a validade do tratado.
60

A maneira mais fácil é declarar que o conto é falso. Para ser convincente,
devemos reunir a evidência e isto requer que nos voltemos à argumentação histórica
crítica estabelecendo que é plausível a contenção entretanto não existem razões
históricas que pudessem nos motivar a oferecer ajuda a Ian Maclonish.
Podemos desenvolver uma crítica ideológica, afirmando que houve uma
armadilha no meio de tudo: uma armação dos Maclonish para manter os Maclean
em uma espécie de dependência moral sobre eles. Podemos argumentar também
que naquele antigo período estava proibido assassinar bebês, que é o motivo pivô
sobre o qual gira a história. Tal argumentação se baseia em oferecer elementos de
uma "contranarração" àquela gravada na pedra. Por meio dessa "contranarração"
podemos desmascarar uma história determinada como um engano, desprestigiá-la
como uma informação falsa. Podemos argumentar também de outra forma,
afirmando que o tratado gravado na pedra perdeu sua validade atual, desde o
momento em que novas formas de direito emergiram desde então. Logo, podemos
narrar uma "contra-história" breve, por exemplo, a história de como as leis mudaram
com o passar do tempo.
Quais são as características gerais de tal modo de interpretação histórica?
Aqui a consciência histórica busca e mobiliza uma classe específica de experiência
do passado: a evidência prevista pelas "contranarrações", desvios que tornam
problemáticos os sistemas de valores presentes e os Lebensformen.
O conceito de uma totalidade temporal abrangente que inclui o passado, o
presente e o futuro envolve, deste modo, algo negativo: a noção de uma ruptura na
continuidade ainda operativa da consciência. A história funciona como a ferramenta
com a qual se rompe, "se destrói", se decifra tal continuidade – para que perca seu
poder como fonte de orientação no presente.
As narrações deste tipo formulam pontos de vista históricos, demarcando-os,
distinguindo-os das orientações históricas sustentadas por outros. Por meio dessas
histórias críticas dizemos 'não' às orientações temporais predeterminadas de nossa
vida.
Em relação a nós e a nossa própria identidade histórica, tais histórias críticas
expressam uma negatividade; o que não queremos ser. Proporcionam-nos uma
oportunidade para nos definirmos como não reféns de papéis e formas prescritas,
61

predefinidas de autocompreensão. O pensamento histórico-crítico aclara o caminho


para a constituição da identidade pela força da negação.
Sua contribuição aos valores morais se encontra em sua crítica dos valores.
Desafia à moral apresentando o seu contrário. As narrações críticas confrontam os
valores morais com a evidência histórica de suas origens ou consequências imorais.
Por exemplo, as feministas modernas criticam o princípio da universalidade moral.
Alegam que isso nos leva a considerar a natureza do "outro" nas relações sociais a
favor de uma universalização abstrata dos valores como condição suficiente de sua
moralidade. Afirmam que tal "universalização" é completamente parcial e ideológica,
servindo para estabelecer a regra do homem como uma norma humana geral, e que
faz caso omisso da singularidade através do gênero do homem e da mulher como
condição necessária da humanidade.X
O pensamento histórico-crítico injeta elementos de argumentação crítica ao
raciocínio moral. Põe em questão a moral apontando a relatividade cultural nos
valores, que contrasta com uma universalidade suposta e aparente, descobrindo os
fatores da condição temporal que contrasta com uma validade atemporal falsa.
Confronta as solicitações de validade com a evidência baseada na mudança
temporal: o relativo poder das condições e consequências históricas. Em sua
variante mais elaborada, apresenta um raciocínio moral como uma crítica ideológica
da moral. Dois exemplos clássicos de tal empresa são a crítica de Marx aos valores
burguesesXI e a Genealogia da Moral de Nietzsche.XII

d) O tipo genético

No centro dos procedimentos para dar sentido ao passado encontra-se em si


mesmo a mudança. Nesta estrutura, nosso argumento é que "os tempos mudam":
nos opomos assim à opção de esconder a Ian devido a razões tradicionais ou
exemplares e à opção de negar criticamente a obrigação que impõe esta velha

X Cfr. Seyla Benhabib, “The generalized and the Concrete Other: Visions of the autonomous Self”, in
Praxis International, vol. 5, 4 (1986), pp. 402-424.

XI Sobre Direitos Humanos e Civis ver seu ensaio “Zur Judenfrage”, in Karl Marx, Friedrich Engels,
Werke, 1 (Berlin-GDR-1964).

XII Friedrich Nietzche, Zur Genealogie der Moral (1887), in idem , Werke in drei Banden, ed. K.
Schlechta (Munich, 1955), pp. 761-900.
62

história como uma razão para não escondê-lo. Pelo contrário, aceitamos a história
mas a localizamos em uma estrutura de interpretação dentro da qual o tipo de
obrigação em relação a acontecimentos passados mudou, de uma forma pré-
moderna para uma forma moderna de moral. Aqui a mudança é a essência e o que
dá à história seu sentido. Assim, o velho tratado perdeu sua validade principal e
tomou uma nova; em consequência, nosso comportamento necessariamente difere
agora do que teria sido no passado distante: se constrói dentro de um processo de
desenvolvimento dinâmico.
Portanto, escolhemos ajudar a Ian Maclonish, mas de maneira diferente à
prefigurada no tratado preservado na pedra da muralha de nosso castelo.
Permitimos que a história faça parte do passado; no entanto, ao mesmo tempo, lhe
concedemos outro futuro. A mudança propriamente dita é que dá sentido à história.
A mudança temporal se despojou de seu aspecto ameaçador e se transformou no
caminho no qual estão abertas as opções para que a atividade humana crie um novo
mundo. O futuro supera, excede efetivamente o passado em seu direito sobre o
presente, um presente conceituado como uma intersecção, um nó intensamente
temporal, uma transição dinâmica. Esta é a forma refinada de uma espécie de
pensamento histórico moderno marcado pela categoria de progresso, ainda que
tenha sido arrojado por uma dúvida radical pelas intimações da pós-modernidade,
pensadas por certo segmento da elite intelectual contemporânea.
Neste modelo a memória histórica prefere representar a experiência da
realidade passada como acontecimentos mutáveis, nos quais as formas de vida e de
cultura distantes evoluem em configurações "modernas" mais positivas.
Aqui a forma dominante de significação histórica é a do desenvolvimento,
em que as formas mudam em ordem, paradoxalmente, para manter seu próprio
desenvolvimento. Assim, a permanência toma uma temporalidade interna, tornando-
se dinâmica. Ao contrário, a permanência através da tradição, por regras atemporais
exemplares, pela negação crítica – isto é, a ruptura da continuidade –, são todas
essencialmente de natureza estática.
Esta forma de pensamento histórico vê a vida social em toda a abundante
complexidade de sua temporalidade absoluta.
Diferentes pontos de vista podem ser aceitos porque se integram em uma
perspectiva abrangente de mudança temporal. Voltando a nossa narração, nós,
63

como o moderno Maclean, ansioso por persuadir ao moderno Maclonish de que


seria mais sábio para ele entregar-se à polícia, e então aceitar nossa ajuda. Suas
expectativas e nossa reação devem se cruzar. E cremos que essa intersecção é
parte da interpretação histórica dentro da qual tratamos a situação atual. Este
reconhecimento mútuo é parte da perspectiva futura que herdamos do passado
através de nossa decisão no presente, não para oferecer a ele refúgio, mas para
ajudá-lo de uma maneira que acreditamos ser mais coerente com o teor de nossa
época: "Conheço um bom advogado".
Em relação a nossa autocompreensão e autoconfiança, este tipo de
consciência histórica permeia a identidade histórica com uma temporalização
essencial. Nos definimos estando em uma encruzilhada, uma superfície de contato
de tempo e de fatos, permanentemente em transição. Para continuar sendo o que
somos, para não evoluir e mudar, nos parece como um modo de autoperda, uma
ameaça a nossa identidadeXIII. Nossa identidade está em nossa incessante
mudança.
Dentro do horizonte desta classe de consciência histórica, os valores morais
se temporizam, a moral se despoja de sua natureza estática. O desenvolvimento e a
mudança pertencem à moral dos valores conceituada em termos de uma pluralidade
de pontos de vista, e a aceitação da concreta característica de "outro", do não
semelhante, e a mútua aceitação daquele "outro", como a noção dominante de valor
moral.
De acordo com esta temporalização como um princípio, o raciocínio moral
depende aqui essencialmente do argumento da mudança temporal como necessária
ou decisiva para estabelecer a validade dos valores morais. Portanto, um indivíduo
pode se movimentar desde a etapa final no esquema kolbergiano do
desenvolvimento da consciência moral até o estágio mais avançado: os princípios
morais incluem sua transformação dentro de um processo de comunicação. É aqui
onde eles se realizam concretamente e individualmente, engendrando diferenças;
estas, por sua vez, ativam procedimentos de reconhecimento mútuo, mudando a

XIII Uma das obras de Bertold Brecht, “Stories of Mr. Keuner” ilustra isto maravilhosamente: “” a man
who hadn’t seen Mr., Keuner for a long time greeted him with the remark: You don’t look any
different at all. Oh!, said Mr. Keuner, and turned pale”. Brecht, Gesammelte Werke, 12
(Frankfurt/Main, 1967), p. 383.
64

forma moral original. Uma fascinante ilustração deste estado da argumentação


moral, que não se pode elaborar no contexto deste ensaio, é o exemplo das
relações entre os sexos. A ideia dos Direitos Humanos Universais é outro exemplo
claro que demonstra a plausibilidade desta forma genética de argumentação em
relação aos valores morais.XIV
Esta Tipologia se entende como uma ferramenta metodológica e
investigativa para a investigação comparativa. Na medida em que a moral está
conectada com a consciência histórica, podemos usar esta matriz tipológica para
ajudar a categorizar e caracterizar as peculiaridades culturais e as características
únicas dos valores morais e os modos de raciocínio moral em diferentes épocas e
cenários. Desde o momento em que os elementos dos quatro tipos estão
operativamente mesclados no processo que dá à vida prática uma orientação
histórica no tempo, podemos reconstruir as complexas relações entre estes
elementos para determinar com precisão e definir a especialidade estrutural das
manifestações empíricas da consciência histórica e sua relação com os valores
morais.XV

5 O DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS NARRATIVAS

Não é minha intenção aqui focalizar o método comparativo em historiografia.


Pelo contrário, desejo fazer uso da tipologia para construir uma teoria do
desenvolvimento ontogenético da consciência histórica. Tal teoria é familiar desde os
estudos psicológicos sobre o desenvolvimento cognitivo,XVI mas segundo o que sei

XIV Cfr. Ludger Kühnhardt, Die Universalität der Menschnrechte. Studie zur ideengeschichtlichen
Schulüsselbergriffs (Munich, 1987); J. Rüsen, “Menchen-und Bürgerrechte als historische
Orienterung”, in Klaus Frlöhlich, Jörn Rüsen (eds), Revolutionen und Menschenrechte. Historische
Interpretationem, didaktishe Konzepte, Unterrichtsmaterialien (Plaffenwiler, 1989).

XV Uma interessante contribuição a essa comparação com respeito à historiografia na China é Hu


Chang-tze Deutsche Ideologie und politische Kultur Chinas. Eine Studie zum
sonderwergsgedanken der chinessischen Bildungselite 1920-1940 (Bochum, 1983).

XVI Cfr. nota 7. Para complementar, ver Hans G.Furth, Piaget and Knowledge. Theorethical
Foudantions (Englewood Cliffs, New Jersey, 1969).
65

não houve até agora nenhuma tentativa séria para acrescentar esta perspectiva
psicológica investigando a consciência histórica e suas competências cognitivas.
Desde o momento em que a consciência histórica pode ser conceituada como uma
síntese entre a consciência temporal e moral, poder-se-ia supor que desenvolver
uma teoria genética da consciência histórica fosse um assunto relativamente
simples. Infelizmente, no entanto, encontramos que Piaget e seus seguidores
perseguiram a categoria de tempo apenas dentro do marco teórico das ciências
naturaisXVII, permanecendo de tal modo seu trabalho basicamente mudo com relação
a questões da consciência histórica.
Para embarcar em uma investigação sobre a consciência histórica e sua
relação essencial com a consciência moral, é necessário primeiramente esclarecer
as bases, isto é, um marco teórico que deva ser construído e que defina o campo de
ação e explique em termos conceituais quais são as questões básicas a analisar.
Sou da opinião de que a tipologia acima esquematizada pode servir efetivamente
para tal propósito. Isto é assim porque revela e define fundamentalmente os
procedimentos da consciência histórica, inclusive dando algumas noções básicas do
que poderia implicar o desenvolvimento da consciência histórica.
Que conceitos de desenvolvimento podem de fato ser oriundos da tipologia?
Podemos nos aproximar de uma resposta ordenando logicamente os tipos em uma
sequência definida pelo princípio da precondição?
O tipo tradicional 'a' é primário e não pressupõe outras formas de
consciência histórica. No entanto, constitui a condição para os outros tipos. É a
fonte, o começo da consciência histórica. Na sequência lógica de tipos, entretanto,
cada um é a precondição para o próximo: tradicional, exemplar, crítico, genético.
Ainda que esta sequência esteja baseada em critérios lógicos, pode ter aplicações
empíricas, e existe razão para supor que é também uma sequência estrutural no
desenvolvimento da consciência histórica.
1. Primeiramente, a sequência implica uma crescente complexidade. As
etapas na evolução humana também podem ser descritas em termos de
uma crescente capacidade para ordenar a complexidade.

XVII Jean Piaget, Die Bildung des Zeitbewusstseins beim Kinde.(Frankfur-Main, 1974).
66

2. O crescimento em complexidade pode ser especificado e diferenciado


seguindo a ordem lógica das precondições. Assim, a extensão da
experiência e o conhecimento da realidade passada se expandem
enormemente quando o indivíduo se move do modo tradicional ao
exemplar. O tipo crítico requer uma nova qualificação da experiência
temporal baseada nas distinções entre "meu próprio tempo" e "o tempo
dos outros". Finalmente, o tipo genético vai além desta qualidade pela
temporalização do tempo em si mesmo, isto é, "meu próprio tempo" é
dinâmico, mutável, instável, assim como "o dos outros".
3. Há também um crescimento em complexidade com respeito às formas
de significação histórica. Não existe uma diferença relevante entre fato e
significado na forma da consciência histórica tradicional. Divergem na
consciência histórica exemplar. Na forma crítica, o significado em si
mesmo muda, intensificando-se mais ainda numa complexa
diferenciação dentro do tipo genético.
4. Isto é igualmente certo quando vai ao grau de abstração e complexidade
das operações lógicas.
5. Existe também uma crescente complexidade da orientação interna e
externa. Na orientação externa, pode-se demonstrar pela maneira como
a consciência histórica caracteriza a vida social; as tradições são
exclusivistas, apresentam seus próprios modos de vida e de cultura
como os Lebensformen unicamente aceitáveis. O pensamento exemplar
amplia isto através da generalização, enquanto o pensamento crítico
elabora pontos de vista e delimitações baseados na crítica. O
pensamento genético aclara a base temporal para um pluralismo de
visões.
6. Transitando através das séries tipológicas, há uma complexidade
crescente em relação à identidade histórica. Começa com a
inquestionada forma da autocompreensão histórica impressa pela
tradição e que se estende até o frágil balanço gerado pelas formas
genéticas multidimensionadas e multilaterais.
Meus argumentos foram aqui principalmente teóricos, mas me parece
que há certa quantidade de evidência empírica para sustentar a hipótese
67

de que a consciência histórica segue a ordem tipológica esquematizada


aqui em sua evolução.
7. As observações diárias demonstram que os modos tradicionais e
exemplares de consciência histórica estão bastante estendidos e se
podem encontrar com frequência; os modos críticos e genéticos, pelo
contrário, são mais raros. Este fato se correlaciona com o grau de
educação e conhecimentos e com o progresso do intelecto humano até
competências mais complexas.
8. A experiência de ensinar história em escolas indica que as formas
tradicionais de pensamento são mais fáceis de aprender, a forma
exemplar domina a maior parte dos currículos de história, as
competências críticas e genéticas requerem um grande esforço por
parte dos docentes e do aluno.

6 OBSERVAÇÕES EMPÍRICAS ACERCA DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA E A


INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA

Como resumo, eu gostaria de voltar à questão da aprendizagem histórica. A


aprendizagem pode ser conceituada como um processo de digestão de
experiências, absorvendo-o sob a forma de competências. A aprendizagem da
história é um processo de digestão de experiências do tempo em formas de
competências narrativas.XVIII A "competência narrativa" se entende aqui como a
habilidade para narrar una história pela qual a vida prática recebe una orientação no
tempo. Esta competência consiste em três habilidades: 1) a habilidade da
experiência, relacionada com a realidade passada; 2) a habilidade de interpretar,
relacionada com o todo temporal que combina a) a experiência do passado com b) a
compreensão do presente e c) as expectativas concernentes ao futuro; e 3) a
habilidade de orientação relacionada com a necessidade prática de encontrar um
caminho através dos estreitos e remansos da mudança temporal.

XVIII Cfr. Rüsen, “Anzäte zu einer Theorie des historischen Lernes”.


68

Em termos teóricos, não é difícil explicar o desenvolvimento da consciência


histórica como um processo de aprendizagem. A aprendizagem é conceituada em
seu marco de referência como uma qualidade específica dos procedimentos mentais
da consciência histórica. Tais procedimentos são chamados "aprendizagem" quando
as competências são adquiridas para a) experimentar o tempo passado, b)
interpretá-lo na forma de história e c) utilizá-lo para um propósito prático na vida
diária.
Utilizando a tipologia, a aprendizagem histórica pode explicar-se como um
processo de mudança estrutural na consciência histórica. A aprendizagem histórica
implica muito mais que o simples adquirir de conhecimento do passado e a
expansão do mesmo. Visto como um processo pelo qual as competências se
adquirem progressivamente, emerge como um processo de mudança de formas
estruturais pelas quais tratamos e utilizamos as experiências e conhecimento da
realidade passada, passando de formas tradicionais de pensamento aos modos
genéticos.
Assim, a tipologia oferece uma base para uma teoria útil e diferente de
aprendizagem histórica. Tal teoria combina três elementos centrais da competência
narrativa (experiência, interpretação, orientação) e quatro etapas de seu
desenvolvimento. Esta teoria pode ser de certa significação para a teoria do
desenvolvimento da consciência moral e a aprendizagem moral.
Infelizmente a teoria, somente, não basta para analisar as espinhosas
questões da consciência histórica e moral. A prova da teoria está em amontoar muita
evidência empírica que sustente suas teses, e aqui se necessita muito trabalho de
investigação. Houve só alguns trabalhos isolados de investigação empírica até agora
sobre a aprendizagem da história e a consciência histórica,XIX e é familiar uma

XIX Publicações recentes realizadas na Alemanha, são: Bodo von Borries, “Alltägliches
Geschichtsbewusstsein. Erkindüng durch Intensivinterviiws und Versuch von Fallinterpretationen,
in Geschichtsdidaktik 5 (1980), pp. 243=262; idem, “Zum Geschitsbewusstsein von Normalbürgern
Hinweisse aus offenen Interwies”, in Klaus Bergmann, Rolf Schörken (eds), Geschichte im alltag-
alltag in der Geschichte (Düsseldorf, 1982), pp. 182-209; Karl Teppe, Maria Wasna, die Teilung
Detschlands als Problems des Geschichtsbewusstseisns. Eine empirische Untersuchung uber
Wirkungen von Geschichtsunterricht auf historische Vorstellungen und politische Urteile
(Paderborn, 1987); Katherina Oehler, “Gerschichte in der politischem Rhetorik. Historische
Argumentationsmuster im Parlament der Bundesrepublik Deutschland”(Beiträge zur
Geschichtskultur, 2 (Hagen, 1989), Bodo von Borries, Geschichtslernen und
69

focalização especial sobre a relação entre a aprendizagem e a consciência histórica


e moral.XX
Uma investigação desta natureza enfrenta formidáveis obstáculos, em
especial a intrincada complexidade da consciência histórica e suas quatro
competências. Os quatro tipos aqui presentes não são escritas alternativas,
permitindo qualquer reconto simples de sua distribuição nas manifestações da
consciência histórica; normalmente os tipos aparecem em mesclas complexas, e é
necessário descobrir sua ordem hierárquica e interpelação em qualquer
manifestação dada da consciência histórica. Não obstante, a tipologia pode dirigir
nossa atenção, e funciona de maneira investigativa, definindo questões e
preparando estratégias para a utilização em estudos empíricos.
Tal tipologia imprime a ideia aos investigadores de que o que é importante
descobrir em relação à consciência histórica não é a extensão do conhecimento
implícito, mas também o marco de referência e os princípios operativos que dão
sentido ao passado.
Como estes podem se encontrar na evidência empírica? Há uma
aproximação básica e extrativamente orientada? Permita às pessoas relatar
narrações que são relevantes para a orientação temporal de suas próprias vidas, e
logo analise as estruturas narrativas de tais histórias. Tal investigação busca
estabelecer respostas a perguntas como: que tipo (na tipologia) parece seguir esta
narração? Há alguma relação entre o tipo dominante e a idade do narrador? Que há
de seu nível de educação?
Os experimentos empíricos foram recentemente analisados usando esta
aproximação em relação à história de Highlands.XXI Os alunos e estudantes
souberam o conto do clã Maclean e do clã Maclonish numa versão altamente
"neutra". Enfrentaram a situação atual de Maclean e lhes foi perguntado o que fariam

Geschichtsbewusstsein, Empirische Erkundungen zu Erwerd und Gebrauch von Historie.


(Stuttgard, 1988).

XX Valentine Rothe, Werteersiehung und Geschichtsdidaktik. Deitrag zu einer Kritischen


Werteerziehung im Geschichtsunterricht (Düsseldorf, 1987), não contém referências a nenhuma
investigação empírica.

XXI Hans Günter Schmidt, “Eine Geschichte zum Nachdenken. Erzähltypologie, narrative Kompetenz
und Geschichtsbewusstsein: Bericht uber eine Versuch der empirischen Erförschung des
70

em relação ao pedido de assistência de Maclonish, escrevendo uma curta


justificativa de sua decisão que contivesse uma referência específica ao motivo dos
meninos trocados. Estes textos foram analisados em relação às formas de
interpretação histórica que eles utilizaram. Empiricamente, os quatro tipos foram
desde logo distinguíveis, e se provou inclusive diferenciar mais agudamente esses
tipos básicos da tipologia. Estabeleceu-se que havia uma significativa correlação
entre as formas narrativas usadas, a idade dos alunos e seu nível de educação e
aprendizagem alcançada.
Isto constitui apenas um exemplo limitado de investigação empírica, e as
perguntas não foram analisadas em relação ao componente moral da consciência
histórica. Não obstante, sustentaria que qualquer discussão sobre os valores morais
e o raciocínio moral deverá tentar relacionar-se às dimensões associadas da
consciência histórica e à aprendizagem da história.

Geschichtsbewusstseins von Schulern der Sckundarstufe I (Unter und Mittelslufe)”, in


Geschichtsdidaktik 12 (1987), pp. 28-35.
71

EXPERIÊNCIA, INTERPRETAÇÃO, ORIENTAÇÃO: AS TRÊS DIMENSÕES DA


APRENDIZAGEM HISTÓRICA*

JÖRN RÜSEN

O que é a aprendizagem histórica? É a consciência humana relativa ao


tempo, experimentando o tempo para ser significativa, adquirindo e desenvolvendo a
competência para atribuir significado ao tempo.
Esta definição é ampla demais. Abrange toda a área em que a consciência
histórica é influente e ativa. Todas as três dimensões do tempo são temas da
consciência histórica: através da memória o passado se torna presente de modo que
o presente é entendido e perspectivas sobre o futuro podem ser formadas. A
perspectiva sobre o passado domina, é claro, uma vez que a consciência histórica
funciona através da memória. Essa consciência está, porém, completamente
determinada pelo fato de que a memória encontra-se intimamente ligada às
expectativas futuras. O próprio presente é visto, interpretado e representado como
um processo em curso na estreita relação da memória com a expectativa de futuro1.
Pode-se, em suma, definir este ato de rememoração como o ato de dar
sentido à experiência do tempo.2 A consciência histórica funciona por meio da

* RÜSEN, Jörn. Experience, interpretation, orientation: three dimensions of historical learning.


Studies in metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Council, 1993, p.85-93. Tradução
para o português por Marcelo Fronza. Também existe uma tradução feita por Márcio E.
Gonçalves. Quando necessário, as duas traduções foram cotejadas.

1 Karl-Ernest Jeismann. 1978. "Didaktik der Geschichte: Das spezifische Bedingungsfeld des
Geschichtsunterrichts". In: Günter C. Behrmann, Karl-Ernest Jeismann & Hans Süssmuth:
Geschichte und Politik. Didaktische Grundlegung eines kooperativen Unterrichts, 50-108.
Paderborn. Idem.: Geschichte als Horizont der Gegenwart. Über den Zusammenhang von
Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverständnis und Zukunftsperspektive, 43 ff (1985).
Paderborn. [Karl-Ernest Jeismann. 1978. "A Didática de História: As condições específicas do
campo do ensino de História." In: Günter C. Behrmann, Karl-Ernest Jeismann & Hans Süssmuth:
História e política. Bases didáticas do ensino colaborativo, 50-108. Paderborn. Idem: História
como o horizonte do presente. Sobre a relação entre a interpretação do passado, a
compreensão do presente e as perspectivas do futuro, 43 ff (1985). Paderborn.]

2 Jörn Rüsen. 1990. "Die vier Typen des historischen Erzählens". In: Idem. Zeit und Sinn.
Strategien historischen Denkens, 153-230. Frankfurt/M. [Jönr Rüsen. 1990. "Os quatro tipos da
72

memória; ela aproxima as três dimensões do tempo; cumpre a função prática de


orientar um sujeito em direção ao tempo.
A consciência histórica vem à tona ao contar narrativas, isto é, histórias, que
são uma forma coerente de comunicação, pois se referem à identidade histórica de
ambos: comunicador e receptor. As narrativas, ou seja, histórias contadas aqui, são
produtos da mente humana; com sua ajuda as pessoas envolvidas localizam-se no
tempo de um modo aceitável para si mesmas.
A memória da consciência histórica é, portanto, determinada pelas
exigências e desejos dos sujeitos – isto é, os historiadores e sua audiência. O
significado presente do passado deve, além disso, ser aceitável para aqueles que
estavam direta ou indiretamente envolvidos nos acontecimentos narrados. 3 As
narrativas históricas não poderiam ser apresentadas para preencher uma função
orientadora se a verdade não existisse nelas mesmas – isto é, um elemento de
consenso entre as partes envolvidas. Esta verdade transcende o autointeresse em
fazer exigências e impor a própria vontade: a verdade faz o interesse relevante se
tornar comunicável em relação a outros interesses; a verdade força os interesses
relevantes a provarem a si mesmos, orientando-os, assim, a dar significado ao
passado, o qual, é de consenso geral, compreende as relações presentes e toma
decisões ou, pelo menos, sugestões para as decisões baseadas em perspectivas
futuras.
O que se ganha em insight quando se considera o que está acontecendo na
consciência histórica humana como um processo de aprendizagem? O que se ganha
em insight quando se considera o processo de dar sentido à experiência do tempo
através da memória como um processo de aprendizagem? Este processo deve
enfrentar uma qualidade especial de consciência, voltada para as histórias, uma vez
que nem toda a memória histórica e nem todo o uso da experiência ou da
interpretação ou da orientação do passado humano podem servir como aprendizado
histórico.

narrativa histórica". In: Idem. "Tempo e significado. As estratégias da argumentação


histórica", 153-230. Frankfurt/M.]

3 Kurt Röttgers. 1982. "Geschichtserzählung als kommunikativer Text". In: Siegfried Quandt & Hans
Süssmuth (Ed.). Historisches Erzählen. Formen und Funktionen, 29-48. Göttingen. [Kurt
Röttgers. 1982. "A narrativa histórica como um texto comunicativo." In: In: Siegfried Quandt &
Hans Süssmuth (ed): A narrativa histórica. Formas e funções, 29-48. Göttingen.]
73

Para esclarecer no que esta distinção é exata, eu escolhi um (talvez


demasiado) simples exemplo: "Aprender a nadar" e "nadar" em si devem ser
distinguidos um do outro como dois processos diferentes, embora, ao aprender a
nadar, a natação deva ser feita; e ao nadar, mesmo quando isto não é realizado com
a intenção de aprender, algo possa ser aprendido.
Com a história a questão é muito mais complicada. Não é tão simples
nomear exatamente as habilidades que são aprendidas quando se aprende a
história (que tipo de conduta é característica de alguém que tem uma consciência
histórica desenvolvida?). É o sentimento do "agora eu sou capaz de fazer isto"
possível em relação à consciência histórica da mesma forma que alguém que possui
esta convicção após passar muito tempo nadando?
Quais encontros do passado não são, de fato, parte do processo de
aprendizagem? A aprendizagem pode ser a aquisição de novos conhecimentos sem
um real desenvolvimento na aprendizagem. Pode-se adquirir novos conhecimentos
na maneira como alguém vê televisão passivamente, adquirindo algumas
informações históricas e uma nova informação pertencente à história. Isto pode ser
identificado como aprendizagem, mas na verdade é apenas a repetição daquilo que
já se sabe e, portanto, não abrange o desenvolvimento real da aprendizagem.
Pode-se distinguir, avaliar e classificar as diferentes operações da
consciência histórica, e das ciências envolvidas na história, de acordo com níveis de
intensidade da aprendizagem. Quais são os critérios para distinguir, avaliar e
classificar a qualidade da aprendizagem?
Esta é uma questão chave na didática histórica (a resposta para esta
pergunta também determina o que se espera de um livro didático, que deve ser
compreensível e útil para a aprendizagem). O que, no processo mental da
consciência histórica, é específico à aprendizagem, e de acordo com quais
perspectivas históricas a qualidade da aprendizagem pode ser avaliada? Gostaria de
responder a esta questão por meio da distinção entre duas perspectivas em três
níveis ou dimensões da aprendizagem histórica.
Aprender é um processo dinâmico em que a pessoa que aprende é
transformada. Algo é ganho, algo é adquirido – conhecimento, habilidade ou uma
mistura de ambos. Na aprendizagem histórica, "história" é adquirida: os fatos
objetivos, coisas que aconteceram no tempo, tornam-se um assunto do
74

conhecimento consciente – tornam-se subjetivos. Eles começam a desempenhar um


papel na construção mental de um sujeito. A aprendizagem histórica é um processo
de fatos colocados conscientemente entre dois polos, ou seja, por um lado, um
pretexto objetivo das mudanças que as pessoas e seu mundo sofreram em tempos
passados e, por outro, o ser subjetivo e a compreensão de si mesmo assim como a
sua orientação no tempo. Este processo pode ser caracterizado por um duplo
movimento: em primeiro lugar, é a aquisição de experiência enquanto o tempo
prossegue (formulado de maneira abstrata: é a subjetivação do objeto); em segundo
lugar, é a escravização do sujeito em relação à experiência (a objetivação do
sujeito). Mas isso não significa que a aprendizagem histórica é empiricamente
apresentada de um modo castrado e seco e simplesmente reproduzida
conscientemente – isto é, simplesmente objetivada. Também não significa que a
pessoa que está aprendendo é simplesmente entregue ao que a história está
ensinando a ele ou ela. Em tal visão sobre os processos de aprendizagem, o papel
produtivo do sujeito, a pessoa que aprende, é subexposto, e a "história", enquanto
conteúdo do processo de aprendizagem, é concretizada de modo errado.
A história pretende ser "objetiva" de duas maneiras: em primeiro lugar, é
entendida como o sedimento do desenvolvimento temporal da vida no presente
(cada pessoa nasce na história e, ao se tornar parte do passado, torna-se parte do
presente); em segundo lugar, a história, é evidente, pretende ser objetiva nos
documentos, os quais fornecem informações sobre quando, como, por que e por
quem algo aconteceu. A pressão da experiência no caso do primeiro pretexto da
"História" é qualitativamente mais forte do que no caso do segundo pretexto. Para
enfrentar o próprio presente, é claro, tem que se levar em consideração a
experiência. Este é sempre o caso nas relações da vida real: a história age
prescritivamente em direção a todos os esforços conscientes da aprendizagem. A
história não só prescreve às presentes relações da vida para se tornar como elas se
tornaram (a existência dessas relações não precisa, no entanto, de um fundamento
histórico); as narrativas – que são as histórias (precisamente, a memória consciente
e o passado interpretado) – são elas próprias parte das relações da vida (a cultura
política ou uma constelação complexa da identidade histórica é, por exemplo,
composta por elementos de identidade nacional ou sexual). Histórias, as quais têm a
sua própria realidade ("objetividade") no mundo real da vida humana, constroem
75

uma ponte entre a experiência de seus próprios relacionamentos na vida e a versão


documental da experiência histórica. Elas constroem uma ponte entre a história que
trabalha dentro da memória do provisório, a vida prática, para a história que vem
conscientemente pela aprendizagem.
Chegar à "objetividade" da história por meio da aprendizagem histórica é,
entretanto, também unir (narrativamente) as condições provisórias das relações da
vida real. A "objetividade" da história se une com as narrativas, com as histórias a
que pertencem enquanto parte cultural da realidade social. O sujeito não tende em
direção à história objetiva e, portanto, não deve necessariamente ser orientado.
Seria muito melhor que o sujeito devesse ser orientado por si mesmo e que pudesse
construir sua própria subjetividade, mais ou menos conscientemente, para formar a
sua própria identidade histórica.
A história objetiva não pode, no entanto, ordenar os pressupostos históricos
da sua própria existência em razão de seus próprios desejos, esperanças, anseios e
medos. Estes elementos estão, obviamente, em ação, mas não são suficientemente
eficazes para chegarem realmente a uma história objetiva e orientarem a sua função
na autocompreensão histórica. Seria muito melhor que os interesses, expectativas e
reivindicações históricas da história devessem ser feitos com base na experiência, e
que a história objetiva em si devesse trabalhar sobre tais pressupostos, modificá-los
e concretizá-los empiricamente para se tornar relevante.
Este duplo processo de aprendizagem na aquisição do conhecimento
histórico por meio da experiência e autorrealização se dá basicamente através de
três operações – isto é, a experiência, a interpretação e a orientação. As três
operações podem ser analisadas e distinguidas uma da outra em diferentes níveis
ou dimensões da aprendizagem histórica. A ocupação da consciência histórica
enquanto aprendizagem histórica pode ser abordada quando traz à tona um
aumento na experiência do passado humano, tanto como um aumento da
competência histórica que dá significado a esta experiência, e na capacidade de
aplicar estes significados históricos aos quadros de orientação da vida prática. 4

4 Esta diferenciação corresponde à classificação da consciência histórica apresentada por K-E


Jeismann , análise, julgamento, avaliação. Creio, no entanto, que a classificação "a experiência, o
significado e a orientação" é mais abrangente e fundamental, e não contempla apenas as mais
estritas áreas cognitivas da consciência histórica.
76

Distinguir entre os três níveis ou dimensões tem a vantagem de tornar evidentes as


áreas de atuação da consciência histórica, as quais têm sido frequentemente
esquecidas. O que é de especial importância na aprendizagem histórica é claro –
isto é, não só uma competência, mas uma multiplicidade de competências e a
harmoniosa, equilibrada relação entre elas. Uma perspectiva analítica e diferenciada
sobre a aprendizagem histórica se mantém no caminho da discussão didática quanto
às deficiências estruturais. Muito frequentemente, a competência para interpretar e
orientar é negligenciada em favor dos componentes do conhecimento empírico.
Demasiadas vezes se desenvolve em desequilíbrios na relação entre estes três
componentes. Qual é a utilidade de um vasto conhecimento histórico, quando ele é
ensinado apenas como algo a ser decorado e sem nenhum impacto orientativo? Por
outro lado: de que serve a habilidade para refletir historicamente e criticar as práticas
quando a experiência é pobre?
Gostaria agora de expor em linhas gerais os acima mencionados
componentes da aprendizagem histórica um por um e, depois, apontar algumas das
coisas essenciais que os mantêm unidos.
a) A aprendizagem histórica é o crescimento da experiência ganha a partir
do passado humano. As operações (narrativas) da consciência histórica
se tornam processos de aprendizagem quando se concentram em
aumentar o conhecimento sobre o que aconteceu no passado. Para ser
capaz de fazer isso, é necessário que a consciência se abra para novas
experiências. A aprendizagem histórica depende da boa vontade para
selecionar experiências que têm um caráter especificamente histórico.
Quais são as experiências e que encorajamento é necessário para fazer
tal escolha? Não basta simplesmente observar que isso tenha
acontecido em algum momento do passado. Nada é histórico
simplesmente porque tem um passado. O caráter histórico de algo
existente está em uma qualidade específica do tempo: a experiência,
assim, é a diferença qualitativa entre o passado e o presente. A
aprendizagem histórica está preocupada com o fato de que o passado é
um tempo qualitativamente diferente do presente e se tornou o tempo
presente. A experiência histórica é, portanto, principalmente a
experiência da diferença no tempo. A experiência da diferença no tempo
77

(uma antiga igreja ao lado do edifício de um banco moderno, uma oficina


ao lado de um casebre) tem o seu encanto, um fascínio que é um dos
mais importantes estímulos para a aprendizagem histórica. No entanto,
uma mudança consciente e ativa em direção a essa experiência
raramente se desenvolve apenas da fascinação com o objeto da
experiência. Um outro estímulo é necessário, o qual acompanha os
problemas de orientação do presente. É, por exemplo, a discrepância
entre a expectativa do futuro e a experiência do presente que atrai a
atenção para o passado; com isto em mente, uma apresentação realista
da experiência do passado deve ser desenvolvida a fim de superar esta
discrepância. A experiência da antiguidade do passado abre o potencial
futuro do presente. Isso tem significado para o presente e deve ser
incorporado nos quadros de orientação da vida prática.
b) A aprendizagem histórica aumenta a competência para encontrar
significado. Nesta dimensão da aprendizagem histórica o aumento da
experiência e do conhecimento é transformado numa mudança produtiva
no modelo ou padrão de interpretação. Tais modelos ou padrões de
interpretação integram diferentes tipos de conhecimento e de
experiência do passado humano em um todo abrangente – ou seja, uma
"imagem da história". Eles dão aos fatos "significado" histórico. Eles
estabelecem significado e fazem possíveis diferenciações de acordo
com pontos de vista sobre o que é importante. Concedem um lugar na
apresentação histórica que é considerado empírico. Eles são
considerados enquanto perspectivas e possuem um status teórico na
consciência histórica. Isso não significa que necessariamente assumem
a forma de teorias ou uma forma diferente vinda dos elementos
empíricos do conhecimento histórico. Eles trabalham, principalmente, no
subconsciente, no nível da observação e das ordens implícitas – isto é,
produzindo conhecimento a partir da experiência (sendo assim, a partir
da coerência complexa das experiências). Por último, estes modelos de
interpretação decidem quais são os elementos da experiência histórica e
do conhecimento histórico que são especificamente "históricos", os quais
78

estabeleceram o seu status específico no tempo e que fazem parte dos


conteúdos da história.
O crescimento na competência da interpretação no aprendizado
histórico significa o seguinte: os modelos de interpretação, os quais
estão em ação na interpretação das experiências e na ordenação do
conhecimento, são colocados em movimento; esses modelos se tornam
flexíveis; tornam-se mais abrangentes e se diferenciam e, finalmente,
podem ser usados para a reflexão e a argumentação. Os modelos
tradicionais de interpretação se tornam exemplares, os exemplares,
críticos, e os críticos, genéticos.5 É, no entanto, possível discernir,
também, na história, nestas formas básicas de interpretação, um
crescimento qualitativo nas possibilidades de significação. H-G Schmidt
tem distinguido, como exemplos, entre três estágios do uso da história.6
São, principalmente, as dissonâncias cognitivas e afetivas entre a
experiência do tempo e os modelos de interpretação da história que
levam a um crescimento na aprendizagem como uma competência de
interpretação possível. São essas dissonâncias que conduzem às novas
formas e aos conteúdos do conhecimento histórico. O processo de
aprendizagem pode ser descrito como um passo à frente em relação ao
dogmatismo quase natural nas atitudes históricas (a minha história – ou,
talvez, a história do professor – é a única possível e verdadeira), indo
em direção a uma perspectiva em que o conhecimento histórico pode
ser transformado por meio da argumentação.

5 Para a diferenciação entre esses tipos, consulte os artigos nestas obras de Jörn Rüsen:
"Narrativa histórica: fundação, tipos, razão" e "O desenvolvimento da competência
narrativa na aprendizagem histórica. Uma hipótese ontogenética relativa à consciência
moral".

6 Hans-Günter Schmidt. 1987. "'Eine Geschichte zum Nachdenken'. Erzähltypologie, narrative


Kompetenz und Geschichtsbewusstsein: Bericht über einen Versuch der empirischen Erforschung
des Geschichtsbewusstseins von Schülern der Sekundarstufe I (Unter- und Mittelstufe)". In:
Geschichtsdidaktik, 12:28-35. [Hans-Günter Schmidt. 1987. "'Uma história do pensamento".
Informe tipológico, as competências narrativas e a consciência histórica: Relatório sobre um
estudo de pesquisa empírica para a consciência histórica de alunos no ensino secundário I (básico
e intermediário). In: Didática da História, 12:28-35.]
79

c) A aprendizagem histórica é um aumento na competência da orientação.


Esta competência se preocupa com a função prática da experiência
histórica significativa – isto é, com o uso do conhecimento histórico, que
é organizado num modelo abrangente de sentido voltado para a
organização significativa da vida prática nos processos do tempo, os
quais transformam as pessoas e seu mundo. A autocompreensão das
pessoas e o significado que dão para o mundo sempre possuem
elementos históricos específicos. Estes elementos se referem aos lados
diacrônicos internos e externos da vida prática.
Pelo lado externo subentende-se o significado abrangente do passado,
presente e futuro dado às mudanças temporais nas circunstâncias e nas
relações das vidas humanas: a este lado pertencem os componentes
essenciais da ação intencional – ou seja, as perspectivas de futuro
sustentadas pela experiência. Pelo lado interno compreende-se a
autoconceituação temporal dos sujeitos pela qual se compreendem e se
expressam a respeito das mudanças temporais em suas vidas. Por esse
conceito eles permanecem os mesmos, apesar das transformações em
seu mundo. A "identidade histórica" é o termo comum para a
consistência diacrônica dos sujeitos no curso do tempo. Essa identidade
é especificamente histórica quando suas dimensões temporais
ultrapassam as fronteiras de sua própria vida e a finitude dos indivíduos
é superada por meio da memória.
A natureza e a arte da orientação interna e externa de acordo com o seu
próprio ser no tempo devem ser aprendidas. Isso já deve ser levado em
conta na aquisição de um modelo para a interpretação, uma vez que
este modelo deve conter as categorias ensináveis para a interpretação
do curso do tempo – isto é, para o passado, o presente e o futuro. A
competência da orientação de si, historicamente, é a habilidade em
aplicar este modelo, o qual é preenchido pelo conhecimento e pela
experiência, para situações da vida e para formular, assim como refletir,
sobre o seu próprio ponto de vista na vida presente. O ponto de vista
"objetivo" (tanto quanto sexo, idade, status social etc. estão em causa),
que naturalmente sempre estará conosco, obtém, através disso, um
80

sentido subjetivo, temporal. Não apenas se torna direcionado ao tempo,


também se torna mutável devido à sua qualidade subjetiva: torna-se (ao
menos parcialmente) parte da competência daqueles que estão
envolvidos no agir. Determinantes quase naturais, a situação de vida e a
própria identidade são preenchidas com o poder de estabelecer
empiricamente significados históricos. Pontos de vista são formulados,
os quais ganham importância e podem ser transformados por meio da
argumentação histórica.
Os quadros de orientação autoritários em relação à vida prática são
modificados pela aprendizagem histórica: são historiados e, assim,
enriquecidos com o "sentimento de realidade" (Wilhelm von Humboldt).
Este "sentimento" pode ser mais bem descrito como a habilidade de
reconhecer a historicidade de si mesmo e do próprio mundo como uma
oportunidade para agir. Essas mudanças também têm uma
característica qualitativa: levam os sujeitos a abandonar a restrição
advinda dos pontos de vista autoritários, e possibilitam aos mesmos
conhecer as perspectivas sobre a vida voltadas para a liberdade de
pensamento sobre os pontos de vista. Com isso, permitem escolher uma
perspectiva historicamente fundamentada.
d) As três operações da consciência histórica e as dimensões da
aprendizagem histórica delineadas acima são naturalmente, intimamente
relacionadas. Não existe uma coisa tal como uma experiência histórica
sem significado, ou uma orientação histórica sem experiência; também,
todos os modelos de interpretação estão ao mesmo tempo interessados
pela experiência e pela orientação. Esta coerência representa a
complexidade da aprendizagem histórica, a qual possui dois polos, o da
aquisição da experiência, por um lado, e o da descoberta de si mesmo
nos movimentos mentais da consciência histórica, por outro.
Seria um erro diferenciar o aprendizado histórico do seu objeto – isto é,
a história que deve ser aprendida como uma experiência cultural e que
coloca metas orientadoras à disposição do estudante. Tal diferenciação
conduziria a uma didática histórica que organizaria seus temas de
acordo com um cânone dado de objetos históricos. A dinâmica da
81

subjetividade leva a uma estagnação quando a história é ensinada como


algo dado. O conhecimento histórico que é aprendido simplesmente pela
recepção, impede, ao invés de promover, a habilidade de dar significado
à história e orientar a si mesmo de acordo com a experiência histórica.
Um significado que é simplesmente "dado" não pode ser observado
como tal e a preocupação com sua função fundamental de organizar o
conhecimento é negligenciada. Além disso, a subjetividade, enquanto
uma fonte para novas questões e uma vontade direcionada a novas
experiências, não pode ser explorada. Sendo assim, o conhecimento
histórico adquirido não pode ser produtivamente empregado para a
orientação dos problemas da vida prática. Quando o conhecimento
histórico se torna objetivo demais, perde a sua função de orientação
cultural; em última análise, o conhecimento histórico é produzido
exatamente para preencher essa função cultural.
Por outro lado, também seria um erro construir a aprendizagem histórica
inteiramente em torno dos interesses subjetivos dos estudantes. Nesse
caso, a experiência e os conhecimentos adquiridos pela consciência
histórica seriam simplesmente o filme no qual eles gravariam sua
subjetividade. A experiência histórica e o conhecimento histórico,
repletos de experiência, perderiam sua resistência aos poderes da
projeção de seus desejos, esperanças e medos – e, assim, a chance de
testar sua subjetividade e reforçar sua experiência de acordo com os
"fatos" seria retirada do aprendiz. Poderia acontecer que as
necessidades subjetivas de orientação ou os seus pontos de vista
estivessem didaticamente organizados de tal forma que a consciência
histórica se tornasse uma resistência contra as experiências e os
conhecimentos confusos. Nesse processo de aprendizagem, os
interesses subjetivos simplesmente levariam à fixação ideológica das
orientações com formas dogmáticas correspondentes da identidade
histórica; os estudantes seriam enganados no que diz respeito a um
"sentido da realidade", segundo o qual eles se preocupariam em
desenvolver o significado da experiência histórica. Seus significados e
suas orientações se tornariam pobres em experiência.
82

Ambas as formas mantêm, na aprendizagem histórica, o ensino aos


alunos da habilidade em desenvolver um equilíbrio argumentativo entre
a experiência e o sujeito. Em um ambiente de argumentação a
experiência histórica não pode levar os estudantes facilmente a
orientações fixas ou dogmáticas: o ambiente de argumentação, como é
suposto, na verdade, mantém os modelos de interpretação e os quadros
de orientação abertos e flexíveis em relação à experiência. As
operações da consciência histórica devem ser consideradas,
organizadas e influenciadas, principalmente, do ponto de vista da
aprendizagem histórica, com o objetivo de conciliar as três dimensões
dentro de um modelo – isto é, experiência ou conhecimento, significado
e orientação como um todo integrado. Dever-se-ia ter como objetivo
trazer estas duas entidades ao equilíbrio: a história como um dado
objetivo nas relações da vida presente e a história como uma construção
subjetiva de orientação de si em direção aos seus interesses e aos da
vida prática.
83

NARRATIVA HISTÓRICA: FUNDAMENTOS, TIPOS, RAZÃO*

JÖRN RÜSEN

Rainha: … em dança, jovem, não falemos – outro qualquer desporto.


Primeira Dama: Então, senhora, contaremos histórias.
Rainha: As histórias serão tristes ou alegres?
Primeira Dama: À vontade, senhora.
Rainha: Então, nem alegres, nem tristes, rapariga. 1

O que é a narrativa histórica? A maioria dos historiadores se sentirá


entediada quando ouvir esta pergunta. Eles provavelmente pensarão: "deixe esta
questão para o povo dos departamentos de Literatura e de Filosofia". Mas, na
verdade, esta questão tem um impacto sobre os fundamentos do seu próprio
trabalho e coloca a Filosofia e a Linguística numa posição muito mais próxima do
que a habitual em relação aos estudos históricos.
Hayden White, com elaborada sagacidade, esforçou-se para convencer os
historiadores desse fato quando tratou "o trabalho histórico como ele
manifestamente é", isto é, "uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo
em prosa". Mas desde o momento em que ele explicitou o discurso dos historiadores
como "em geral poético e, especificamente, linguístico em sua natureza" 2, chocou a

* RÜSEN, Jörn. Historical narration: foundation, types, reason. In: Studies in metahistory. Pretoria:
Human Sciences Research Council, 1993. p.3-14. Tradução para o português por Marcelo Fronza.
Há também uma tradução feita por Márcio E. Gonçalves. Assim, quando necessário, as traduções
foram cotejadas. Os conceitos de narration e de narration historical foram traduzidos por
"narrativa" e "narrativa histórica" para manter o padrão de tradução para o português das obras de
Jörn Rüsen, tais como em "A constituição narrativa do sentido histórico". In: J. Rüsen. Razão
histórica: Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Trad.: Estevão Rezende
Martins. Brasília: UnB, 2001, p.149-174.

1 William Shakespeare. Richard II, Act 3, Scene 4, V. 9sqq. Utilizou-se, neste fragmento da peça
Ricardo II, de Willian Shakespeare, a tradução de Carlos A. Nunes disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ricardo2.html#16>. Acesso em: 30 jun. 2010.

2 H. White, 1973. Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth Century Europe.


Baltimore. No Brasil, esta obra foi publicada como H. White. Metahistória: a imaginação
histórica do século XIX. Trad.: José Laurêncio de Mello. São Paulo: Edusp, 1992, p.11.
84

maioria dos historiadores. Sentiam-se relegados à desconfortável e ambígua


vizinhança com a poesia e privados de sua duramente conquistada dignidade como
acadêmicos de uma disciplina altamente racionalizada e metodologicamente
comprovada. No entanto, vale a pena entrar nesta esfera poética. O didático termo
"poética" deve ser entendido no sentido original da poiesis, que significa
simplesmente fazer ou produzir algo. Na verdade, nenhum historiador pode negar o
fato de que existe uma atividade criadora da mente humana funcionando no
processo do pensamento e do reconhecimento históricos. A narrativa é a maneira
como esta atividade é produzida e "História" – mais precisamente, uma história – é o
produto dela.
Não entrarei na discussão epistemológica sobre a complexidade da estrutura
narrativa do conhecimento histórico.3 Em vez disso, quero chamar a atenção para os
fundamentos narrativos da consciência histórica, citando um quase imperceptível
argumento. Apesar do preconceito vigente contra situar a poesia nos fundamentos
dos estudos históricos, gostaria de citar um breve diálogo entre o rei Henrique IV e
seu nobre conselheiro Warwick:

Rei Henrique: Se pudéssemos, Ó Deus, ler o livro do destino,


E ver a revolução dos tempos...
...e a fortuna se ri,
E as mudanças enchem a taça da transformação
Com licores diversos! Ó, se isso fosse visto,
O mais feliz dos jovens, vendo o seu progresso através de
Quais perigos passados, quais cruzes carregadas,
Fecharia o livro, descansaria e morreria...
Warwick: Há uma história na vida de todos os homens,
Revelando a natureza dos tempos decorridos;
Rei Henrique: São essas coisas, então, necessidades?

3 A. Danto, 1965. Analytical Philosophy of History. H. M. Baumgartner. 1972. Kontinuität und


Geschichte. Zur Kritik und Metakritik der historischen Vernunft. Frankfurt. F. Ankersmit. 1983.
Narrative Logic. A Semantic Analysis of the Historian's Language. The Hague. F. Ankersmit
(ed.). 1986. "Knowing and Telling History: The Anglo-Saxon Debate" (History and Theory, 25)
Wesleyan University. [A. Danto. A Filosofia Analítica da História, 1965. H. M. Baumgartner.
Continuidade e História. Para uma crítica e uma metacrítica da razão histórica. Frankfurt,
1972. F. Ankersmit. Lógica narrativa: uma análise semântica da linguagem dos historiadores.
Haia, 1983. F. Ankersmit (org.). "Conhecendo e contando História: O debate anglo-saxão".
(History and Theory, 25) Wesleyan University, 1986.]
85

Então, vamos enfrentá-las como necessidades... 4

A partir deste pequeno, porém, profundo diálogo, podemos aprender o que é


a narrativa histórica: é um sistema de operações mentais que define o campo da
consciência histórica. Aqui o tempo é visto como uma ameaça à normalidade das
relações humanas, lançando-as para o abismo das incertezas. A experiência mais
radical do tempo é a morte. A história é uma resposta a este desafio: é uma
interpretação da experiência ameaçadora do tempo. Ela supera a incerteza ao
compreender um padrão significativo no curso do tempo, um padrão que responde
às esperanças e às intenções humanas. Este padrão dá um sentido à história. A
narrativa é, portanto, o processo de constituição de sentido da experiência do tempo.
Entendo a afirmação de Hayden White sobre a narrativa desta forma: como
um ato poético que constitui o conhecimento histórico.5 A narrativa é um processo de
poiesis, de fazer ou produzir uma trama da experiência temporal tecida de acordo
com a necessidade da orientação de si no curso do tempo. O produto deste
processo narrativo, a trama capaz de tal orientação, é "uma história". No que diz
respeito à ameaça da morte, a narrativa transcende os limites da mortalidade num
horizonte mais amplo de ocorrências temporais significativas. Esta é uma das
verdades essenciais dos contos de As Mil e Uma Noites. Scheherazade sabe que
narrar é superar a morte, a narrativa é um ato de "desmortalização" da vida
humana.6
Mas a resposta shakespeariana à pergunta "o que é uma narrativa
histórica?" é tão ambígua quanto a própria poesia. Conta-nos o suficiente sobre a
narrativa para a entendermos como uma operação fundamental das profundezas da
consciência histórica. Mas uma vez que nem toda a narrativa é histórica, ela diz

4 William Shakespeare. King Henry IV, Act 2, Scene 1, V. 45-56.

5 Cf. também Hayden White. 1987. The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical
Representation. Baltimore. [Hayden White. O conteúdo e a forma: discurso narrativo e
representação histórica. Baltimore, 1987].

6 Isto é enfatizado por V. Klotz. 1972. "Erzählen als Enttöten. Notizen zu zyklischem, instrumentalem
und praktischem Erzählen". In: E. Lämmert (ed.). 1988. Erzählforschung. Ein Symposion, 319-
334. Stuttgart. [V. Klotz. "Narre como Enttöten. Notas sobre a narrativa cíclica e a prática
instrumental". 1972. In: E. Lämmert (ed.). A pesquisa narrativa. Um simpósio, 319-334.
Stuttgart, 1988].
86

muito pouco sobre essa diferença. E isso é, muito frequentemente, o caso na atual
discussão da Filosofia da História, quando se dá ênfase aos procedimentos
narrativos da historiografia.
Por isso, precisamos da ajuda de mais argumentos teóricos para
complementar Shakespeare. O argumento tradicional seria a diferenciação entre as
narrativas factuais e ficcionais. A narrativa histórica é geralmente definida por tratar
apenas dos fatos e não das ficções. Essa diferenciação é muito problemática e, em
última instância, é pouco convincente porque o mais importante sentido da história
está para além da distinção entre ficção e fato. Na verdade, é absolutamente
enganoso – e isso surge por meio de um bom acordo com o oculto e suprimido
positivismo – chamar de ficção tudo o que na historiografia não for um fato no
sentido dos dados concretos.
Penso que a peculiaridade de uma narrativa histórica se situa nas três
qualidades seguintes e em sua relação sistemática: 7
1) Uma narrativa histórica está ligada ao ambiente da memória. Ela
mobiliza a experiência do tempo passado, a qual está gravada nos
arquivos da memória, de modo que a experiência do tempo presente se
torna compreensível e a expectativa do tempo futuro, possível.
2) Uma narrativa histórica organiza a unidade interna destas três
dimensões do tempo por meio de um conceito de continuidade. Esse
conceito ajusta a experiência real do tempo às intenções e às
expectativas humanas. Ao fazer isso, faz a experiência do passado se
tornar relevante para a vida presente e influenciar a configuração do
futuro.
3) Uma narrativa histórica serve para estabelecer a identidade de seus
autores e ouvintes. Essa função determina se um conceito de
continuidade é plausível ou não. Este conceito de continuidade deve ser
capaz de convencer os ouvintes de suas próprias permanência e
estabilidade na mudança temporal de seu mundo e de si mesmos.

7 Para obter uma argumentação mais detalhada, ver J. Rüsen. 1990. "Die vier Typen des
historisches Erzählens". In: Rüsen. Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens, 153-230.
Frankfurt/M. [J. Rüsen. "Os quatro tipos de narrativa histórica." Em Rüsen. Tempo e significado.
Estratégias da argumentação histórica. Frankfurt/M, 1990, p.153-230].
87

Por estas três qualidades, a narrativa histórica possibilita a orientação da


vida prática no tempo – uma orientação sem a qual torna-se impossível para os
seres humanos encontrar o seu caminho.
Até agora forneci apenas um esboço aproximado do amplo e múltiplo campo
da narrativa histórica. Primeiro, é necessário estabelecer um modelo teórico geral da
estrutura, processo e função de uma narrativa histórica antes de considerar as
variedades da historiografia. Somente com esse modelo podemos distinguir
adequadamente a historiografia de outras formas de compreensão de nossa própria
e de todas as outras culturas.
Mas a prova do pudim está em comê-lo e, por isso, a prova da descrição
abstrata está na compreensão dos fenômenos concretos. Portanto, uma pergunta é
inevitável: como podemos desenvolver a compreensão dos fundamentos narrativos
do conhecimento histórico na cognição das múltiplas manifestações da
historiografia? Parafraseando Karl Marx: como podemos ascender do abstrato para
o concreto? Podemos fazer isso através da tipologia.
E assim chegamos ao segundo momento deste capítulo, no qual eu gostaria
de fornecer um esboço de uma tipologia geral da narrativa histórica, que deve
revelar o amplo e múltiplo campo da historiografia. Nesta tipologia tento enfatizar a
especificidade histórica da constituição de sentido da experiência do tempo por meio
da narrativa. Com esta intenção, que é semelhante à de Johann Gustav Droysen e
Friedrich Nietzsche, a tipologia que se segue difere substancialmente daquela
proposta por Hayden White, a qual interpreta a historiografia enquanto Literatura e
não reconhece, de forma alguma, a sua especificidade.
Assim, o ponto do qual eu inicio é a função da narrativa histórica. Como já
mencionei, a narrativa histórica tem a função geral de orientar a vida prática no
tempo, mobilizando a memória da experiência temporal, por meio do
desenvolvimento de um conceito de continuidade e pela estabilização da identidade.
Esta função geral pode ser realizada de quatro modos diferentes, de acordo com as
quatro condições necessárias que devem ser preenchidas para que a vida humana
possa continuar em seu curso no tempo: afirmação, negação, regularidade,
transformação. Por isso posso ver quatro diferentes tipos funcionais de narrativa
histórica com suas correspondentes formas de historiografia.
88

TIPOLOGIA DA NARRATIVA HISTÓRICA


memória de continuidade como identidade pela sentido do tempo
origens permanência afirmação
ganho de tempo no
constituindo os dos modos de vida de determinados
Narrativa tradicional sentido da
presentes modos de originalmente padrões culturais de
eternidade
vida constituídos autocompreensão
validade das regras generalização
casos
abrangendo de experiências do ganho de tempo no
demonstrando
Narrativa exemplar temporalmente tempo transformando- sentido da
aplicações de regras
diferentes sistemas de as em regras de extensão espacial
gerais de conduta
vida conduta
desvios ganho de tempo no
alteração negação
problematizando os sentido de ser um
Narrativa crítica das ideias de de determinados
presentes modos de objeto de
continuidade dadas padrões de identidade
vida julgamento
desenvolvimento
mediação
transformações em que os modos de
da permanência e da ganho de tempo no
de modos de vida vida mudam a fim de
Narrativa genética mudança para um sentido da
alheios para modos estabelecer a sua
processo de temporalidade
mais apropriados permanência
autodefinição
dinamicamente

Gostaria de ilustrar os tipos de exemplos extraídos do campo da história das


mulheres. Um assunto que hoje concentra a discussão sobre os fundamentos dos
estudos históricos. 8
(1) Toda forma de vida humana é, necessariamente, organizada por
tradições. Elas não podem ser negadas totalmente, caso contrário as pessoas
perderiam o chão sob seus pés. O primeiro tipo de narrativa leva isso em conta. A
narrativa tradicional articula as tradições como condições necessárias para os seres
humanos encontrarem seu caminho. As narrativas tradicionais no campo da história
das mulheres são muito raras, mas os monumentos são uma forma tradicional de
constituição de sentido histórico da experiência do tempo. Encontrei um bom
exemplo em Grahamstown (África do Sul), na rua principal, indo da Universidade de
Rhodes até a catedral. Aqui há um monumento que é dedicado "às mulheres
pioneiras" e possui uma inscrição, como se segue, que representa o significado
histórico tal como fazem as narrativas tradicionais:

Mantenha sua memória verde e doce


Elas alisaram os espinhos com os pés sangrando.

8 Cf. e.g. U. A. J. Becher & J. Rüsen (Ed.). 1988. Weiblichkeit in geschichtlicher Perspektive.
Frankfurt/M. [J. Becher & J. Rüsen (Org.). A condição feminina em perspectiva histórica.
Frankfurt / M. 1988].
89

Para colocar da maneira generalizante da teoria: as narrativas tradicionais


lembram as origens constituintes dos sistemas de vida do presente. Elas constroem
a continuidade como uma permanência da constituição originária dos sistemas de
vida e formam a identidade pela afirmação dos dados – ou mais precisamente, pré-
dados – padrões culturais de autocompreensão. Outros exemplos são: histórias que
contam sobre a origem e a genealogia das regras a fim de legitimar a sua
dominação; no seio das comunidades religiosas, as histórias de sua fundação;
histórias que são contadas por ocasião dos centenários e outros jubileus (em
Boston, você pode até mesmo andar em uma narrativa tradicional seguindo o
Freedom Trail – Caminho da Liberdade – pintado como uma linha vermelha na
calçada). Em todas essas histórias o tempo ganha o sentido da eternidade.
(2) Tradições por si sós não são suficientes como forma de orientação
porque são muito limitadas em seu conteúdo empírico. Além disso, elas são
múltiplas e heterogêneas e exigem uma integração por meio de regras ou princípios.
Estas regras e princípios são abstratos porque são gerais e abrangem uma vasta
gama de diversas experiências do tempo. Elas requerem, portanto, uma relação com
esta diversidade. Trata-se das narrativas exemplares que carregam esta relação.
Elas concretizam as regras e os princípios abstratos, contando histórias que
demonstram a validade destas regras e princípios em casos específicos. Utilizando
os nossos exemplos sobre a história das mulheres: pode-se olhar para trás em um
breve período dos estudos sobre as mulheres. Para demonstrar o princípio abstrato
da igualdade das mulheres, as historiadoras preferiram histórias que contavam muito
sobre as realizações, as capacidades, a importância e a eficiência das mulheres do
passado. Esta abordagem teve o efeito de fazer com que muitas mulheres
importantes e suas obras de arte, artesanato, ciência, religião, aprendizagem, a
economia e a política fossem salvas do esquecimento.
Para colocar do modo generalizante da teoria novamente: as narrativas
exemplares lembram os casos que demonstram a aplicação de regras gerais de
conduta; elas impõem a continuidade como a validade supratemporal das normas
que abrangem os sistemas de vida temporalmente diferentes; e formam uma
identidade ao generalizar as experiências do tempo para as regras de conduta.
Outros exemplos deste tipo de narrativa histórica são as histórias que apresentam
modelos de virtudes ou vícios. Nos jornais sempre podemos encontrar alusões a
90

acontecimentos históricos. E essas alusões seguem a lógica da narrativa exemplar.


Um exemplo é o seguinte fragmento de artigo no Cape Times de 17 de fevereiro de
1987:

Diremos: "Nós não sabíamos?"


O recente discurso no Parlamento feito pelo ministro das Finanças... onde
admitiu que ele mesmo... não sabia o que estava acontecendo nos guetos
(distritos) negros é motivo para preocupação.
Nós todos sabemos que o povo alemão não foi informado sobre as terríveis
condições nos guetos e campos de prisioneiros de guerra ou do horror dos
campos de extermínio... e no final, a resposta para tudo isso foi: "nós não
sabíamos". Alguns terríveis paralelos podem ser feitos, os quais poderiam
ser aplicados no contexto sulafricano; e iremos nós, no final do dia, dizer
também "nós não sabíamos"?

O núcleo da lógica da narrativa exemplar é elaborado pela velha frase:


historia magistra vitae (a história é a mestra da vida). Histórias do tipo exemplar
abrem o campo da experiência temporal para além dos limites da tradição: ganho de
tempo no sentido da extensão espacial.
(3) O terceiro tipo é a narrativa crítica. Baseia-se na capacidade das pessoas
de dizer 'não' às tradições, regras e princípios que foram herdados por elas. Este
'não' está diante de cada alteração pretendida em relação aos padrões culturais de
compreensão histórica. Ele abre espaço para novos padrões.
Na história das mulheres este tipo de narrativa é abundante. Bem sei que
são as histórias relacionadas ao sofrimento das mulheres na longa história de
dominação patriarcal. Por meio dessas histórias, as historiadoras feministas
chacoalham a validade dos padrões tradicionais de feminilidade, e assim,
consequentemente, abrem a mente para outras alternativas.
Em termos teóricos: as narrativas críticas nos lembram dos desvios que
tornam problemáticas as presentes condições de vida; elas esquematizam a
continuidade apenas indiretamente, ou seja, pela dissolução ou destruição de ideias
culturalmente eficazes de continuidade. No que diz respeito à continuidade, estas
histórias vivem naquilo que elas destroem. Constituem uma identidade negando
determinados padrões de autocompreensão: é a identidade da obstinação.
Outros exemplos deste tipo são as obras históricas que seguem o lema de
Voltaire: "Quando se ler História, a única obrigação de uma mente saudável é refutá-
91

la".9 As narrativas críticas são anti-histórias. Estas histórias convocam a experiência


temporal perante o tribunal da mente humana: o ganho de tempo no sentido de ser
um objeto de julgamento.
(4) Mas a narrativa crítica não é a última palavra da consciência histórica.
Sua dinâmica de negação não é suficiente, pois só substitui um modelo pelo outro.
O padrão que encontra uma transformação significativa e importante em si mesma
ainda está faltando. Este padrão define o quarto tipo: o da narrativa genética.
Histórias deste tipo fornecem uma direção para a mudança temporal do
homem e do mundo, para a qual os ouvintes devem, consequentemente, ajustar
suas vidas a fim de lidar com as desafiadoras alterações do tempo.
Na história das mulheres, as histórias deste tipo de narrativa superam a
alternativa entre afirmação ou negação, entre aceitação ou recusa das tradições
dadas e dos princípios da feminilidade. Elas substituem a antítese abstrata
enfatizando um elemento de mudança estrutural e dinâmico usando o "gênero" como
uma categoria histórica. É este elemento de desenvolvimento estrutural que media a
antecipação das alternativas em relação às experiências, conquistadas até agora,
das transformações da condição feminina e das relações de gênero.
Na forma de conceitos teóricos: as narrativas genéticas lembram as
transformações que levam dos modos de vida alheios para modos mais apropriados.
Elas apresentam a continuidade de desenvolvimento na qual a alteração dos modos
de vida é necessária para a sua permanência. E formam a identidade pela mediação
entre permanência e mudança em direção a um processo de autodefinição (em
alemão isto é chamado de Bildung – "formação"). Histórias desse tipo representam
as forças da mudança como fatores de estabilidade, as quais evitam a ameaça de se
perder no movimento temporal da subjetividade humana, interpretando-o como uma
chance de conquistar a si mesmo. Estas histórias organizam a autocompreensão
humana como um processo da dinâmica temporal: ganho de tempo no sentido da
temporalidade.
Agora se pode perguntar o que é ganho ao discernir esses quatro tipos de
exigências. É impossível responder a esta pergunta antes que nos debrucemos

9 Oeuvres complètes de Voltaire, v.11: 427. Ed. Moland. [Obras completas de Voltaire, v.11:
427. Ed. Moland].
92

sobre as complexas relações entre eles. Cada tipo corresponde a uma condição
necessária, a qual deve ser satisfeita se a vida humana encontrar o seu caminho no
curso do tempo. Portanto, os quatro tipos não se excluem um ao outro, mas estão
intimamente ligados, embora cada um deles seja claramente distinto dos outros. A
complexidade dessa conexão é muito grande para explic-a-la aqui na íntegra. Então
me permitam resumir em dois pontos principais: (1) Todos os quatro elementos são
encontrados em todos os textos históricos, um implica necessariamente o outro. (2)
Há uma progressão natural do tradicional ao exemplar e do exemplar à narrativa
genética. A narrativa crítica serve como o catalisador necessário dessa
transformação.
Para compreender o conjunto das relações entre estes tipos temos de
combinar a qualidade do envolvimento com a transformação. O resultado não será
uma confusão ou bagunça qualquer, mas uma textura sistematicamente ordenada. A
lógica do que pode ser chamado de dialética. Através desta estrutura, a tipologia nos
permite analisar obras concretas da historiografia em um quadro conceitual mais
claro. Como Max Weber demonstrou, é a forma sistemática, abstrata e
rigorosamente conceitual da teoria que faz as tipologias se tornarem úteis para a
pesquisa empírica. E é sobre essa utilidade ou função da tipologia da narrativa
histórica que desejo fazer algumas observações.
O primeiro e mais simples uso da tipologia é a classificação de obras
históricas. Assim, podemos caracterizar a Greek Culture (Cultura grega) de Jacob
Burckhardt ou History of the United States (A história dos Estados Unidos) de
George Banckroft como uma narrativa tradicional, a History of Florence (História de
Florença) de Maquiavel como exemplar, os Essais sur les Moeurs et l'Esprit des
Nations (Ensaio sobre os costumes e o Espírito das nações) de Voltaire como
crítica, e a Roman History (História romana) de Theodor Mommsen como genética.
Mas tal classificação não nos leva muito longe. Somente quando levamos em conta
a relação interna entre os tipos é que eles podem revelar muito mais sobre os
trabalhos históricos. Em cada obra histórica é a composição desses quatro
elementos narrativos que constituiu a sua peculiaridade. A tipologia permite
esclarecer esta peculiaridade: ela fornece os meios conceituais para discernir os
diferentes elementos da narrativa histórica e reconstruir sua composição como um
todo. Assim, podemos identificar exatamente uma narrativa histórica em relação
93

àquelas qualidades que cumprem uma função especificamente histórica. Para dar
um pequeno exemplo: na historiografia do historicismo o tipo genético prevalece.
Retornando para a primeira obra de Ranke, uma das suas mais representativas, nas
Geschichten der romanisch-germanischen Völker von 1494 bis 1514 (Histórias dos
povos romano-germânicos de 1494 até 1514) (1824), o olho tipologicamente
sofisticado, a despeito disso, encontra claramente formas exemplares que não estão
suficientemente integradas no sentido predominantemente genético do livro. Isto é
ainda mais surpreendente, pois, como bem sabemos, no seu prefácio, Ranke
escreveu a famosa recusa à história exemplar: disse que não queria julgar o
passado; sua história só queria mostrar como ele realmente aconteceu ("er will bloß
zeigen, wie es eigentlich gewesen"). Ao detectar essa qualidade do primeiro livro de
Ranke, a tipologia abre um novo modo de compreendê-lo.
Assim como podemos caracterizar a peculiaridade de uma única obra
histórica utilizando conceitos da narrativa histórica em geral, então também podemos
aplicar a tipologia para a análise comparativa. Ela nos oferece os critérios de
comparação, tendo em vista a profunda estrutura da narrativa histórica, e também
nos oferece um processo de diferenciação quanto à qualidade especificamente
histórica dos trabalhos comparados. Além disso, podemos empregar a tipologia para
abrir novas perspectivas históricas em relação à historiografia.
As perspectivas históricas são extraídas das principais ideias de mudança
temporal: à luz de tais ideias as mudanças temporais ganham a qualidade do
desenvolvimento histórico.10 No que diz respeito à historiografia, as principais ideias
de seu desenvolvimento podem ser extraídas das tendências internas dos tipos de
narrativa histórica. Os tipos podem ser organizados segundo uma determinada
ordem lógica. Cada narrativa genética tem formas e funções exemplares e
tradicionais da narrativa histórica como precondições; igualmente cada narrativa
exemplar possui narrativas tradicionais. A narrativa tradicional é, em si, original. A
narrativa crítica é definida como a negação dos outros três tipos.

10 A lógica desta perspectiva teórica é descrita em J. Rüsen. 1986. Rekonstruktion der


Vergangenheit. Grundzüge einer Historik II: Die Prinzipien der historischen Forschung.
Göttingen. No Brasil esta obra foi publicada em J. Rüsen. Reconstrução do passado: Teoria da
História II: os princípios da pesquisa histórica. Trad.: Asta-Rose Alcaide. Brasília: UnB, 2007.
94

Se, agora, déssemos um sentido temporal a essa ordem lógica,


alcançaríamos um marco conceitual para o desenvolvimento histórico da
historiografia. Historicamente, a historiografia pode ser vista à luz da tendência geral
que conduz as narrativas tradicionais para as exemplares e as exemplares para as
genéticas; as narrativas críticas são catalisadoras. Gostaria de chamar esta
tendência, nas palavras do Iluminismo, de uma "história teórica" ou " hipotética". Por
isso, não quero atribuir a esta tendência um significado metafísico, mas sim a
qualidade de uma ordem racional da experiência histórica. Portanto, as tendências
não se separam da mudança temporal da historiografia da História geral e não
constituem uma esfera autônoma de Geistesgeschichte (História intelectual); sua
concepção serve como um espelho, o qual mostra como o desafio da transformação
temporal é respondido por uma mudança estrutural da narrativa histórica.
A concepção das tendências dinâmicas internas na relação entre os quatro
tipos pode ser utilizada para periodizar a história da historiografia. Nesta
periodização os três tipos marcam os três principais passos na evolução da
consciência histórica desde o início das culturas pré-neolíticas até as culturas pré-
industriais, chegando às sociedades modernas.
Nesta evolução, a aceitação e o significado do próprio tempo se
transformam. No primeiro período, o curso do tempo se tornou preso na eternidade;
no segundo período, que em nossa cultura pode ser traçado a partir de Heródoto a
Voltaire, essa eternidade adquiriu a qualidade de princípios supratemporais válidos,
e, no curso do tempo, ampliou-se para uma multidão de experiências; e, no terceiro
período, que começou na segunda metade do século XVIII, o tempo é
temporalizado: a autocompreensão humana não é mais vista como uma rejeição em
relação à variedade e à mudança, mas, ao contrário, é definida por esta mudança e
por esta variedade. A esfera da experiência histórica real se torna infinita.11
Mas a tipologia nos fornece não só uma periodização geral da história do
pensamento histórico; ela também fornece periodizações especiais dentro de épocas

11 Peter Reill iluminou a parte alemã deste começo: The German Enlightenment and the Rise of
Historicism. Berkeley. 1975. Cf. H. W. Blank & J. Rüsen (ed.). 1984. Von der Aufklärung zum
Historismus. Zum Structurwandel des historischen Denkens. (Historisch-politische Diskurse,
vol. 1). Paderborn. [O Iluminismo alemão e a ascensão do historicismo. Berkeley, 1975. Cf. H.
W. Blank & J. Rüsen (org.). Do Iluminismo ao historicismo. Para uma mudança estrutural do
pensamento histórico. (Discurso histórico e político, vol. 1). Paderborn.1984].
95

particulares. Como eu já disse, os quatro tipos estão sempre presentes em textos


históricos; um é dominante, os outros secundários. A forma dominante estabelece
uma época geral; a relação entre as secundárias, e entre elas e as dominantes,
pode definir os subperíodos.
Essas considerações teóricas podem levar às estruturas conceituais de
pesquisa empírica e interpretação. A época do Iluminismo tardio, por exemplo, pode
ser tipologicamente descrita como uma mudança da estrutura exemplar para a
narrativa genética como forma dominante na estrutura profunda da narrativa
histórica. Reinhart Koselleck descreveu essa mudança como uma dissolução do
topos historia magistra vitae no início do movimento em direção à história
moderna.12 Seria válido procurar uma mudança análoga da narrativa tradicional para
a exemplar como uma forma fundadora do pensamento histórico. Suponho que essa
mudança ocorreu durante o despertar das civilizações antigas.
Existe um outro uso da tipologia que quero apenas apontar sem enfrentá-lo
detalhadamente. É ainda muito hipotético. Pouco sabemos sobre o desenvolvimento
estrutural da consciência histórica no processo de individualização e de socialização.
Mas a interpretação temporal da ordem lógica dos quatro tipos conduziria a uma
hipótese sobre o desenvolvimento. Parece-me válido, para futuras diferenciações e
investigações empíricas, conceituar o desenvolvimento ontogenético da consciência
histórica como um processo estrutural que possibilita a competência narrativa, numa
sequência de quatro tipos, juntamente com os estágios de desenvolvimento em
outras áreas das quais temos mais conhecimento – como por exemplo, os estágios
do desenvolvimento moral segundo Piaget e Kohlberg.
Após este rápido passeio pela história do pensamento histórico, e após o
vislumbre ainda mais rápido pela psicologia da aprendizagem histórica, eu gostaria
de concluir minhas considerações sobre a narrativa histórica com um olhar para
suas formas mais elaboradas: que são os modernos estudos históricos e a

12 R. Koselleck. 1979. "Historia magistra vitae. Über die Auflösung des Topos im Horizont neuzeitlich
bewegter Geschichte". In: idem: Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten.
Frankfurt. No Brasil este artigo foi publicado em R. Koselleck. "Historia Magistra Vitae. Sobre a
dissolução do topos na história moderna em movimento". In: idem: Futuro passado: contribuição
à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. PUC, 2006, p.41-60. Cf. J.
Rüsen. 1993. Konfigurationen des Historismus. Studien zur deutschen Wissenschaftskultur,
29-94. Frankfurt/M. [J. Rüsen. As configurações do historicismo. Estudos da cultura científica
alemã, 29-94. Frankfurt / M.1993].
96

historiografia moderna. Levantarei apenas uma questão: de que maneira os estudos


históricos modernos, assim como a historiografia moderna, seriam enquadrados na
tipologia das quatro funções da narrativa histórica?
Os estudos históricos modernos e a historiografia moderna se distinguem de
outras formas de narrativa histórica por causa das realizações da pesquisa empírica
teórica e metodologicamente organizada. Um único dos quatro tipos pode ser
aplicado a esta pesquisa? Ou temos de buscar um novo, um quinto tipo? Ambas as
perguntas são inadequadas, pois a peculiaridade dos estudos históricos modernos,
no que diz respeito à estrutura e à função da narrativa histórica, situa-se entre os
quatro tipos. Esta peculiaridade é baseada no modo especial de perceber a estrutura
da narrativa histórica tecida por elementos de todos os tipos. Ela é o modo de
racionalizar e argumentar teórica e metodologicamente o processo de constituição
do sentido da experiência do tempo. Em cada narrativa histórica podemos encontrar
elementos de racionalização e argumentação que tornam a história crível. Os
estudos históricos nada mais são do que uma elaboração e institucionalização desta
racionalização e argumentação,13 que a maioria dos historiadores identificam na sua
disciplina como a racionalidade metódica da pesquisa empírica.
Mas essa autocompreensão dos historiadores como acadêmicos esvazia a
percepção da função prática fundamental da narrativa histórica. Como já foi
demonstrado na primeira parte deste capítulo, esta é a função da formulação da
identidade humana pela mobilização das forças da memória histórica; ou, para dizer
brevemente, da orientação da vida humana no curso do tempo. Se os historiadores
profissionais reconhecessem essa função como uma função de seu próprio trabalho,
talvez o seu trabalhos fornecesse um pouco mais de racionalidade para a vida
prática.

13 J. Rüsen. 1983. Historische Vernunft. Grundzüge einer Historik I: Die Grundlagen der
Geschichtswissenschaft, 85 sqq. Göttingen. No Brasil, esta obra foi publicada como J. Rüsen.
Razão histórica: Teoria da História I: os fundamentos da ciência histórica. Trad.: Estevão
Rezende Martins. Brasília: UnB, 2001, p.99.
97

Enfatizar este aspecto da historiografia é um dos objetivos principais da


teoria da história em geral e da tipologia da narrativa histórica em particular. 14 Mas
não é tarefa do teórico prescrever a historiografia. Ele ou ela só podem tentar
elucidar a estrutura da narrativa histórica e discutir os seus aspectos de
racionalização e de argumentação. Então, por fim, gostaria de levantar uma questão
sobre a representação historiográfica da continuidade. Como já foi dito, a
continuidade é a ideia principal da ligação histórica da experiência do passado com
a expectativa do futuro, realizando, assim, a unidade do tempo. Os historiadores têm
apresentado esta ideia de modos diferentes. Nos bons e velhos tempos da então
chamada historiografia narrativa, eles apresentaram-na como o fluxo de eventos
visto por um quase-divino autor onisciente. Nos tempos modernos da história
estrutural e social, os historiadores frequentemente apresentaram sua ideia de
continuidade na forma de uma teoria (teoria da modernização, por exemplo). Isto
significa um progresso na racionalização, pois em tais formas os conceitos de
continuidade são questões para debate; todavia, o leitor está exposto a um processo
já completo de constituição do sentido da experiência temporal.
Posso imaginar um novo avanço na racionalização. Isso pode acontecer se
os historiadores apresentarem a história para os leitores de tal forma que, ao lê-la,
estes teriam que criar uma ideia do sentido das decisões ligada à continuidade de si,
usando sua própria razão. Então, a historiografia ganharia uma forma que se situaria
nas vizinhanças da literatura moderna.

14 Cf. J. Rüsen. "History didactics in West-Germany. Towards a New self-awareness of Historical


Studies". In: History and Theory, 26 (1987). Ver, neste livro, o artigo de J. Rüsen. "Didática da
História: passado presente e perspectivas a partir do caso alemão". Trad.: Marcos Roberto
Kusnick. No Brasil, este texto foi traduzido originalmente em Práxis Educativa, v. 1, n. 2 (2006),
p.7-16. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2006.
98

O LIVRO DIDÁTICO IDEAL*

JÖRN RÜSEN

1 DÉFICIT NA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS1

Todos os especialistas estão de acordo em que o livro didático é a


ferramenta mais importante no ensino de história. Por isso este recebe uma ampla
atenção inclusive por parte daqueles que se interessam pelo ensino de história na
escola e pelo seu significado para a cultura política. Para que o Ministério da Cultura
conceda sua aprovação a livros didáticos, têm-se colocado em curso diferentes
processos de inspeção e autorização em que se discutem vivamente quais
qualidades esses devem ter. Também os historiadores estão interessados nos livros
didáticos. Eles têm vários motivos. Antigamente, o livro didático de história era um
dos canais mais importantes para levar os resultados da investigação histórica até a
cultura histórica de sua sociedade.Os historiadores profissionais devem sempre
tomar cuidado, prestar atenção e insistir em que, na medida do possível, o estado de
investigação de sua matéria chegue sem grande demora aos livros didáticos. Outro
motivo de seu interesse reside em seu modo de entender o alcance prático do saber
produzido pela sua investigação. Na medida em que são conscientes de que o saber

* RÜSEN, Jörn. El libro de texto ideal. In: Revista Iber – Didactica de las Ciencias Sociales.
Geografia e Historia. Monografia: Nuevas Fronteras de la historia, n.12, Ano IV, p.79-93, abr.
1997. Tradução para o português de Edilson Chaves e Rita de Cássia Gonçalves Pacheco dos
Santos. Revisão da tradução: Maria Auxiliadora Schmidt. As reflexões feitas aqui resultaram de
uma colaboração de vários anos levada a cabo pela Comissão do Livro Didático do Land
de.Nordrhein-Westfalen. Nela se trabalhou um conjunto de critérios para analises do livro didático
em que se baseiam minhas reflexões. D. Scholle descreveu estes critérios que a Comissão aplica
sistematicamente: "Shulbuchanalyse und Schulbuchkritik", em H. SÜSSMUTH (Ed.):
Geschichtsunterricht im vereintein Deutschanld. Auf der Suche nach Neuorientierung. Teil II.
Baden-Baden. 1991, p.275-283. Apresento essencialmente os mesmos pontos de vista, mas
proponho outra classificação sistemática com a qual se poderia conseguir uma argumentação
didática unívoca da análise dos livros didáticos.

1 'Libro de texto', 'manuales escolares', 'manuales', 'libros escolares', 'libro de enseñanza' foram
traduzidos por livro didático, visando uniformizar a tradução e facilitar a compreensão do texto.
99

histórico tem, até certo ponto, uma função de orientação cultural na vida de sua
sociedade e de que o cumprimento dessa função é, em si mesmo, um exercício do
trabalho histórico científico profissional, (facilitado por meio da heurística da
investigação), esta não pode deixá-los indiferentes sobre qual aplicação se faz dos
conhecimentos histórico nos livros didáticos de história. Finalmente, como
contemporâneos interessados na política e, frequentemente, como pessoas
comprometidas com ela, interessam-se pelo livro didático porque estão sempre
envolvidas nele, também, mensagens políticas, pois o ensino de história é uma das
instâncias mais importantes para a formação política. Naturalmente, os que estão
mais interessados nos livros didáticos e os que mais intensamente se ocupam deles
são os próprios professores e professoras, e posto que a eles tenha correspondido
até o momento uma participação mínima, seria muito útil sua colaboração em um
debate especializado e aberto sobre os livros didáticos de história.
Tendo em conta este grande interesse, é surpreendente que só existam
alguns esboços de um padrão profissional bastante discutido sobre tamanho,
formas, conteúdos e funções do livro de história.2 É sintomático que no âmbito
alemão – à exceção de alguns exemplos dignos de atenção 3 – não haja nenhuma
grande obra em que se desenvolvam sistematicamente os critérios para a análise do
livro didático, se demonstrem suas utilidades práticas, sejam trazidos exemplos
práticos de análise dos mesmos ou se tirem conclusões dos resultados das análises
para a prática de sua elaboração. Naturalmente, em toda a República Federal Alemã
são feitas investigações sobre os livros didáticos. Neste campo, o Instituto para a
Investigação Internacional sobre os Livros Didáticos Georg Eckert conseguiu uma
grande reputação tanto em seu próprio país como fora dele, uma vez que, mediante
uma análise comparada dos livros didáticos, contribuiu grandemente para eliminar
prejuízos históricos e políticos entre os distintos países e nações. Contudo, o

2 Scholle compilou a literatura especializada mais importante. Comparar a bibliografia sobre o tema
em "Internationale Schulbuchforschung. Zeitschrift dês Georg-eckert-Instituts". Para uma
comparação mais ampla, veja K. FRÖHLICH: "Das Schulbuch", em H. J. PANDEL, G.
SCHNEIDER (Eds.): Handbuch Medien im Geschichtsunterricht. Düsseldorf. 1985, p.91-114; V. R.
BERGHAHN, H. SCHLSSLER (eds.): Perceptions of HIstory. International Textbook Research on
Britain, Germany and the United States. Oxford. 1987.

3 B. VON BORRIES: Problemorientierter Geschichtsunterricht. Schulbuchkritik und


Schulbuchrevision, dargestellt am Beispiel der römischen Republic. Stuttgart. 1980.
100

fecundo trabalho de investigação que aqui expomos limita-se a uma crítica científica
da representação e interpretação históricas que se encontram nos livros didáticos.
No campo dos textos dedicados a temas históricos os livros didáticos
constituem uma categoria bem delimitada, cujas características são definidas pelo
seu uso nas aulas de história na escola, que permaneceu em grande parte excluída
da maioria das análises. O aspecto didático específico da análise do livro didático
ainda requer, pois, um estudo aprofundado e concreto em dois níveis: o teórico, em
que se darão uma explicação e uma argumentação dos pontos e dos critérios de
análise adequados à especificidade do livro de história e, naturalmente, o empírico,
em que se tratará dos conhecimentos, ordenados sistematicamente, que deverão
ser aprofundados e da configuração que lhes será dada.
Mas a investigação ainda possui outro déficit muito mais grave, que reside
em outro âmbito: quase não existe investigação empírica sobre o uso e o papel que
os livros didáticos desempenham verdadeiramente no processo de aprendizagem
em sala de aula. Este déficit é ainda mais sério se considerarmos que sem ela não é
possível uma análise completa dos livros didáticos.
Até agora não se investigou, de maneira mais sistemática e contínua, os
conhecimentos que os professores e professoras vêm acumulando em suas aulas
sobre as possibilidades e limitações da aplicação dos livros didáticos, pelo menos no
que se refere à análise das disciplinas envolvidas nos livros didáticos de história: a
historiografia e a didática da história.
As reflexões seguintes estão marcadas por esta lacuna. Frente à satisfação
empírica, verdadeiramente indispensável, do conceito de como deve ser um bom
livro didático de história, estas reflexões se manterão em um plano puramente
heurístico, isto é, terão uma atitude de suposição interrogativa. Ao mesmo tempo,
irão propor abertamente a reivindicação de uma argumentação estabelecida
sistematicamente que emane da verdadeira finalidade de um livro de história: tornar
possível, impulsionar e favorecer a aprendizagem da história.
101

2 OS TRÊS OBJETIVOS DA APRENDIZAGEM DA HISTÓRIA

O livro de história é o guia mais importante da aula de história. Por este


motivo, deve-se partir da pergunta do que se pretende conseguir através da aula de
história. Neste sentido, é impossível uma análise do livro didático sem alguns
critérios normativos da aprendizagem da história. Como se deve desenvolver estes
critérios sem cair em perigosas divergências políticas ou em polêmicas? Para
responder com êxito a esta pergunta, demonstrou-se que a avaliação da consciência
histórica dos alunos resulta em uma peça chave. A consciência histórica é ao
mesmo tempo o campo de ação e o objetivo da aprendizagem histórica. Pode-se
descrever suas operações mentais mais importantes e, também, pode-se levar em
consideração suas funções na vida prática antes de todas as divergências políticas
que se podem argumentar sobre o alcance e a direção de sua realização. Neste
sentido, também se pode discorrer com argumentos válidos e um amplo consenso
sobre o que deveriam saber os alunos para se considerar que foi alcançada uma
aprendizagem histórica satisfatória.
Em resumo, a consciência histórica pode ser descrita como a atividade
mental da memória histórica, que tem sua representação em uma interpretação da
experiência do passado encaminhada de maneira a compreender as atuais
condições de vida e a desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a
experiência. O modo mental deste potencial de recordação é o relato da história
(relatar não no sentido de entender uma mera descrição, mas no sentido de uma
forma de saber e de entendimento antropologicamente universais e fundamentais).
Esta forma narrativa que oferece uma interpretação da história do passado
representado cumpre uma função de orientação para a vida atual. Esta função se
realiza como um ato de comunicação entre produtores e receptores de histórias. Por
isto, o aspecto comunicativo da memória histórica é tão importante, porque é através
da narrativa4 (e da percepção) das histórias que os sujeitos articulam sua própria
identidade em uma dimensão temporal em relação com outras (e ao articulá-las se

4 A palavra narración foi traduzida como 'narrativa' para preservar a ideia do autor.
102

formam) e, ao mesmo tempo, adquirem identificadores de direção (por exemplo,


perspectivas de futuro) sobre critérios de fixação de opinião para seu próprio uso.5
A aprendizagem da história é um processo de desenvolvimento da
consciência histórica no qual se deve adquirir competências da memória histórica. 6
As competências que permitem efetuar uma ideia de organização cronológica que,
com uma coerência interna entre passado, presente e futuro, permitirá organizar a
própria experiência de vida, são as mesmas competências de que se necessitam
para poder receber e também para poder produzir histórias. Entre elas, a capacidade
de refletir sobre os conhecimentos históricos que proporcionam à própria existência
clareza de quadros cronológicos7 e, também, a capacidade de construir a própria
identidade com os pontos de vista que propiciam uma prolongação temporal que,
superando os limites do tempo de vida próprio, volte ao passado e alcance o futuro.
As capacidades para conseguir este tipo de orientação da experiência de
vida através da memória histórica podem ser sintetizadas pelo conceito de
competência narrativa. Consistem na faculdade de representar o passado de
maneira tão clara e descritiva que a atualidade se converte em algo compreensível e
a própria experiência de vida adquire perspectivas de futuro sólidas. Esta
competência fundamental da consciência histórica, que é a que se pretende que
seja alcançada mediante a aprendizagem histórica, pode ser dividida em três
competências que fazem referência, respectivamente, ao aspecto empírico, teórico e
prático da consciência histórica: em uma competência perceptiva ou embasada na
experiência, em uma competência interpretativa e, finalmente, em uma competência
de orientação. A competência perceptiva ou embasada na experiência consiste em
saber perceber o passado como tal, isto é, em seu distanciamento e diferenciação
do presente (alteridade histórica), em vê-lo a partir do horizonte de experiências do
presente como um conjunto de ruínas e tradição. A competência interpretativa
consiste em saber interpretar o que temos percebido como passado em relação e

5 Comparar com K. RÖTTGERS: "Geschichtserzählung als kommunikativer Text" em S. QUANDT;


H. S6USSMUTH (eds.): Historisches Erzählen. Formen und Funktionen. Göttingen. 1982, p.29-49.

6 Para ampliar este tema, veja J. RÜSEN: "Ansätze zu einer Theorie des historischen Lernens", em
Geschichtsdidaktik 10, 1985, p.249-265, 12 (1987), p.15-17.
103

conexão de significado e de sentido com a realidade (a "História" é a encarnação


suprema desta conexão). Finalmente, a competência de orientação consiste em
admitir e integrar a "História" como construção de sentido com o conteúdo de
experiências do passado, no marco de orientação cultural da própria experiência de
vida.
Naturalmente, na atividade mental da consciência histórica a diferenciação
entre percepção, interpretação e orientação8 é fictícia, as três operações se
apresentam em uma correlação estreita, inclusive se sobrepõem continuamente;
mas graças a elas podemos dimensionar de tal modo o procedimento de
aprendizagem que é possível identificar os resultados mais importantes que deve
produzir um livro didático no processo de aprendizagem na sala de aula.
É particularmente importante a diferenciação entre percepção e
interpretação. Ou seja, esta permite que algo como o saber histórico apareça como
produto das operações de construção de sentido da consciência histórica e, ao
mesmo tempo, proporciona uma falsa qualidade didática, a de ser uma espécie de
pequena unidade dentro do processo de aprendizagem. Considerada como síntese
da percepção, experiência e interpretação, a aquisição de conhecimentos adquire,
como processo de aprendizagem, uma dinâmica e uma complexidade especiais, e
somente à luz desta dinâmica e desta complexidade poderão ser identificadas e
analisadas as qualidades necessárias que deve ter um livro didático para que possa
cumprir sua função de guia do processo de aprendizagem histórica em sala de aula
(para dizer mais exatamente: para que possa desempenhar sua tarefa com mais ou
menos êxito).
Na continuação, gostaria de expor uma lista das qualidades do livro de
história, ordenada sistematicamente segundo as três dimensões mais importantes
da aprendizagem da consciência histórica. Com isto, gostaria de propor as
finalidades didáticas do livro de história, assim como uma estratégia específica para
a análise histórica e didática do livro didático.

7 A expressão radiogoniometrias cronológicas foi traduzida por 'quadros cronológicos', respeitando-


se as ideias do autor.

8 Em muitos sentidos, corresponde à diferenciação que Jeismann estabelece entre análise, opinião
e valoração.
104

3 ASPECTOS DA UTILIDADE PARA O ENSINO PRÁTICO

À parte da diferenciação proposta entre as três dimensões da aprendizagem,


existem todos os aspectos que interessam ao caráter do livro didático como guia
para a aula em si, quer dizer, independentemente dos que vão ser destinados
especificamente à aprendizagem da história. Neste campo de ação, as
características que distinguem um bom livro didático são essencialmente quatro:
- um formato claro e estruturado;
- uma estrutura didática clara;
- uma relação produtiva com o aluno;
- uma relação com a prática da aula.

Formato claro

A forma exterior já é decisiva para a recepção do conteúdo apresentado no


livro (textos de autores, fontes de texto e imagens, mapas, diagramas etc.). Serão
convenientes um modelo claro e simples, uma distribuição e uma estruturação claras
de todos os materiais, ajuda para a orientação na forma de títulos e indicações e,
também, um anexo que inclua um índice, um glossário com explicações dos termos
e nomes mais importantes e uma bibliografia com livros apropriados para ampliar os
temas.

Estrutura didática

O formato do livro e a estruturação de seus materiais devem estar


configurados de tal maneira que inclusive os alunos possam ser capazes de
reconhecer suas intenções didáticas, o plano de estruturação que forma sua base,
105

os pontos mais importantes de seu conteúdo e os conceitos metodológicos de


ensino.

Relação com o aluno

Em toda a sua estrutura, o livro didático tem que levar em conta as


condições de aprendizagem dos alunos e alunas. Tem que estar de acordo com sua
capacidade de compreensão, e isto vale, acima de tudo, no que se refere ao nível de
linguagem utilizado. Na Alemanha, as pretensões exageradas quanto ao nível de
linguagem aplicado nos livros de história se converteram em um grave problema. As
elevadas pretensões científicas na didática da história e seu enfoque bastante
exclusivo da vertente cognitiva da consciência histórica e da aprendizagem
conduziram a uma sobrecarga cognitiva nos textos de ensino que dificulta em
grande forma sua recepção. Além disso, a competência entre os diferentes meios de
comunicação reduz a capacidade e a vontade de ler dos alunos e alunas. A relação
com os alunos, contudo, não se reduz a levar em conta as possibilidades de
compreensão. Todavia, a matéria apresentada tem que guardar uma relação com as
experiências e expectativas dos alunos e alunas, sobretudo com seu apego geral,
específico de cada geração, de suas próprias oportunidades na vida, bem como com
as experiências cotidianas, como é a situação da infância e juventude, do colégio e
também do conflito de gerações. Contudo, as experiências históricas, interpretações
e orientações do horizonte de experiências e expectativas do aluno naturalmente
têm que ser relativizadas. Existem necessidades de orientação no conjunto da
sociedade que entram neste horizonte somente de forma fracionada ou parcial, mas
cuja consideração, apesar de tudo, é necessária para a aquisição da competência
de uma consciência histórica adequada à situação objetiva das circunstâncias da
vida. Por outro lado, os alunos têm uma sensibilidade extrema frente aos problemas
do presente, que os adultos, demasiado envolvidos nos mesmos, não podem nem
querem se permitir ter. De todas as maneiras, se existe uma relação entre as
interpretações históricas apresentadas no livro e os problemas de orientação do
presente, esta contribuirá consideravelmente para o potencial de ensino do livro. A
106

questão sobre se certos conteúdos históricos são adequados ou não para um livro
didático depende do grau em que estes contribuam para a compreensão do
presente e as oportunidades vitais das crianças e jovens.
Ao se dirigir aos alunos, não se deveria esquecer que a experiência histórica
tem um potencial próprio de encantamento que se pode aproveitar como
oportunidade de aprendizagem. O espanto e a diferença do passado podem ser
apresentados de uma maneira que se acredita ser interessante e curiosa.
Precisamente as crianças e jovens – sobretudo nos primeiros anos de ensino
histórico – são fáceis de fascinar mediante as experiências do diferente na história.
Um meio provado para estabelecer uma boa relação com o aluno é dirigir-se
a ele explicitamente. Deste modo, pode-se justificar a seleção do tema, pode-se
explicar a perspectiva escolhida para a interpretação e, se se faz o mesmo quando
se trata o conteúdo, então os alunos o levam a sério quando devem fazê-lo e a
referência do aluno perde a odiosa conotação de uma mera tática didática que, em
lugar de reconhecer nos alunos uma necessidade de orientação histórica realmente
própria e inclusive "muito individual", somente os obriga a acumular conhecimentos
politicamente e cientificamente autorizados.

Relação com a aula

Um livro didático somente é útil se realmente se pode trabalhar com ele em


sala de aula. Por isso, sua característica como livro de trabalho é irrenunciável. Um
livro didático – independentemente do grupo ao qual se dirija – que contenha
somente uma exposição da história será completamente inadequado para estimular
as competências anteriormente mencionadas. Instigará como processo de
aprendizagem a mera recepção de conhecimentos e se descuida inadmissivelmente
do lado ativo e produtivo da consciência histórica. A capacidade de julgar e
argumentar é um objetivo irrenunciável (além de altamente aceito) do ensino de
história e esta não pode ser alcançada mediante uma mera exposição que não cede
espaço aos alunos e alunas para desenvolverem sua capacidade de argumentar,
criticar e julgar.
107

Existem diferentes possibilidades de desenhar um livro de história como um


livro de trabalho. Sua relação com a sala de aula pode ser conseguida baseando-se
sua estrutura nas unidades de ensino. A apresentação de documentos e o estímulo
à interpretação podem prevalecer sobre o elemento dos textos de autores, de modo
que os alunos e alunas (com a ajuda do professor) devem elaborar sua própria
exposição com o material disponível. Também é possível descrever o diferente na
exposição de tal forma que apresente uma interpretação historicamente inteligível
que se submeta à consideração dos alunos e alunas. Com tudo isso, o livro levará
em conta as expectativas profundamente arraigadas dos alunos (e de seus pais,
para não falar dos professores), e, dado que esta expectativa também é uma
oportunidade de aprendizagem, é perfeitamente aceitável. Todavia, a exposição tem
que ser acompanhada de materiais que não sejam meras ilustrações e confirmações
da exposição. Como regra geral, o livro didático deve oferecer a possibilidade de
verificar as interpretações dadas e de elaborar interpretações próprias, ou melhor,
mediante a própria interpretação, estabelecer contextos históricos com base na
documentação dada (junto à exposição de autores concretos ou complementares a
ela).
Um meio que se demonstrou muito eficaz para encorajar a aprendizagem
autônoma são os trabalhos em que se pede aos alunos a continuação das
exposições e documentações, o que permite que a relação com a aula seja palpável
de forma imediata. Para isso também devem cumprir uma série de condições
relacionadas com a utilidade para a prática na sala de aula dos materiais usados:
têm que ser claros e precisos, coerentes, têm que aproveitar todo o material, devem
ter uma função didática e metodológica reconhecível, levar em conta as diferentes
exigências e objetivos de aprendizagem nos diferentes níveis, praticar as
capacidades metodológicas e pragmáticas, assim como estimular o entendimento
das relações e categorias de ordem histórica. Devem, ademais, evitar perguntas
sugestivas e de decisão, porque elas limitariam um elemento decisivo da
aprendizagem: a autonomia, a capacidade de pensar por si mesmo e de
argumentar.
108

4 UTILIDADE PARA A PERCEPÇÃO HISTÓRICA

A utilidade de um livro didático para a percepção histórica depende


essencialmente de três características:
- da maneira em que se apresentam os materiais;
- da pluridimensionalidade em que se apresentam os conteúdos históricos;
- da pluriperspectividade da apresentação histórica.

Apresentação dos materiais históricos

Se se considerar a aprendizagem histórica somente como um processo de


aquisição de conhecimentos, não se aproveita um importante potencial de
aprendizagem: a percepção ou experiência da história. Esta tem um poder próprio
de fascinação, sobretudo ao nível da contemplação sensível. Particularmente entre
as crianças e jovens, a história tem que se dirigir aos sentidos – uma necessidade
pouco levada em conta na aula tradicional de história. Também os livros didáticos
partem com demasiada frequência do preconceito de que a estética 9 é algo alheio à
exposição de raciocínios históricos e não um fator de raciocínio mesmo. Mediante o
modo como apresentam o passado, mediante diferentes materiais, os livros didáticos
devem incitar as percepções e experiências históricas. Têm que abrir os olhos das
crianças e jovens às diferenças históricas e às diferentes qualidades da vida humana
através dos tempos. Portanto, não devem apresentar unicamente as experiências
históricas já interpretadas e as percepções já assimiladas de forma cognitiva.

9 No texto em espanhol a palavra grafada é 'estática' em vez de 'estético', usada nesta tradução.
109

Imagens

As imagens têm aqui uma função muito importante. Durante muito tempo
foram usadas somente para fins de ilustração, porém na produção mais recente de
livros didáticos alcançaram uma importância crescente e uma autonomia em relação
ao texto. Consequentemente, não devem ter a mera função de ilustração, mas
constituir a fonte de uma experiência histórica genuína: devem admitir e estimular
interpretações, possibilitar comparações, mas sobretudo fazer compreender aos
alunos e alunas a singularidade da estranheza e o diferente do passado em
comparação com a experiência do presente, e apresentar o desafio de uma
compreensão interpretativa. Naturalmente, que se lhes imponha como obrigação que
fascinem esteticamente os alunos não deve implicar que as imagens não guardem
nenhuma relação reconhecível com os textos e com os box ou caixas de texto que
as acompanham. Mas, sua fascinação deve incitar que o âmbito de experiências se
estenda a outros materiais e a interpretar a pesquisa em cada caso por meio dos
elementos da apresentação.

Mapas e esboços

Os mapas e esboços são muito parecidos às imagens, mas ao mesmo


tempo mais abstratos e limitados. Ilustram a dimensão espacial dos processos
históricos, e isto cria o difícil problema de como a apresentação estática de um mapa
pode fazer chegar aos sentidos dos alunos a extensão e a mudança no tempo.
Basicamente, isto é possível mediante símbolos do movimento e sombreados em
cor, porém com demasiada frequência o processo histórico na apresentação
mediante mapas se converte em um valor estático.
Este domínio do tempo também vale para as estatísticas e os gráficos. Se
estes ilustram fenômenos sincrônicos, devem conter, na medida do possível,
indicações diacrônicas, a saber, devem se referir ao passado e ao futuro para que os
110

alunos e alunas tenham em mente o contexto cronológico no qual se localizam os


fatos históricos apresentados.

Textos

No que se refere aos textos, em primeiro lugar é importante que fique muito
claro seu valor de experiência, isto é, que se delimitem claramente da parte da
apresentação. Se houver textos historiográficos, estes têm que ser claramente
diferenciados da própria documentação. Devido à circunstância de que os textos
devem transmitir experiências e apresentar o passado em sua singularidade e sua
diferença temporal com o presente (e que, no mais, com eles se devem praticar os
processos metodológicos da forma de pensar historicamente), de nenhuma maneira
devem servir exclusivamente para ilustrar a apresentação. No que diz respeito a sua
extensão, tampouco devem ser tão curtos de modo a não transmitir uma ideia real
das circunstâncias da vida passada. Finalmente, têm que cobrir os âmbitos de
experiência mais importantes. Para eles é válido o mesmo que para as imagens:
devem possuir aspecto atrativo e estimulante, devem induzir a perguntas e devem
ser interpretáveis em relação ao problema. Sua função como elemento de referência
para as interpretações históricas deve-se fazer clara mediante trabalhos que não
somente descubram seu conteúdo de informação, mas também o valor que as
diferentes informações tenham no contexto histórico global.

Pluralidade da experiência histórica

Um livro didático deve apresentar as dimensões mais importantes da


experiência histórica. Estas dimensões se referem à estrutura sincrônica e
diacrônica do espaço da experiência histórica: partindo do ponto de vista sincrônico,
trata-se dos âmbitos de experiência: Economia, Sociedade, Política e Cultura. O
cotidiano e as experiências dos afetados por cada acontecimento concreto não
111

representam um âmbito próprio da experiência histórica, mas pertencem a um


entendimento mais amplo da cultura. Não é assim no caso da problemática
envolvida. Atravessa as diferenças mencionadas e deveria se definir como um
campo de ação próprio da experiência histórica. Na apresentação destas dimensões
de experiência, suas diferenças e sua reciprocidade, suas correlações internas e seu
potencial de transmissão têm que aparecer na matéria histórica apresentada.
Partindo do ponto de vista diacrônico, trata-se do nível temporal de mudanças em
longo prazo no nível das estruturas de ação, por um lado, e mudanças de curto
prazo no nível dos acontecimentos, por outro. Compreende-se que ambos os níveis
estão inter-relacionados e que estas relações internas têm que se fazer palpáveis.

Pluriperspectividade (ao nível dos afetados)

A princípio, a experiência histórica deve apresentar-se a partir de várias


perspectivas. Por meio dos materiais adequados (porém, também com a exposição),
tem que se demonstrar aos alunos e alunas que o mesmo fato pode ser percebido
pelos afetados de forma diferente e inclusive contrária. Portanto, para apresentar a
experiência histórica partindo de várias perspectivas, os conflitos serão
particularmente adequados. Graças a este tipo de exposição, a experiência histórica
perde a falsa aparência de objetividade; o passado ganha em vitalidade e estimula,
inclusive antes da percepção empírica, uma atividade interpretativa da consciência
histórica dos alunos e alunas. Não lhes resta outra alternativa senão opinar de forma
argumentativa.

5 UTILIDADE PARA A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA

Somente por meio do trabalho interpretativo da consciência histórica os


fenômenos percebidos do passado se convertem em história cheia de sentido e de
significado. Esta interpretação afeta centralmente o caráter histórico dos fatos do
112

passado a interpretar: os fatos do passado percebidos em cada caso devem ser


interpretados como história no contexto temporal junto a outros fatos. O livro didático
deve proporcionar a possibilidade de realizar estas interpretações de uma maneira
concreta:
- as interpretações devem se corresponder com as normas da ciência
histórica;
- nelas devem se exercer as capacidades metodológicas;
- têm que ilustrar o caráter de processo e de perspectividade da história e,
finalmente,
- na exposição histórica do próprio livro devem ficar claras as condições
linguísticas decisivas para sua força de convicção.

Normas científicas

O fato de que um livro didático deve se corresponder com as normas


científicas da ciência histórica não deve significar que tenha que refletir o que a
Ciência considera como o estado dos conhecimentos no momento concreto em que
se escreve. Dispensando, no momento, a questão sobre se este estado fixo de
conhecimentos existe ou não, o livro didático somente pode abranger a investigação
histórica como meio para conseguir seus fins didáticos e específicos. Contudo, o
livro didático está subordinado ao estado da pesquisa como uma "instância de veto":
não deve conter falhas, e isto significa também que não deve apresentar
interpretações históricas que contradigam o estado de conhecimentos científicos.
Também em sua maneira de citar, em suas notas, indicações de fontes e de
literatura deve corresponder basicamente aos costumes da ciência especializada, e
isto afeta também a apresentação das fontes, a identificação das abreviações,
omissões e mudanças.
113

Capacidades metodológicas

A correlação real do livro didático com a ciência especializada se situa em


um nível muito diferente ao do estado de pesquisa apresentado: o livro didático deve
sugerir um tratamento interpretativo da experiência histórica que corresponda aos
princípios metodológicos mais importantes do pensamento histórico produzidos pela
história como ciência especializada. Tem que apresentar os procedimentos mais
significativos do pensamento histórico, e de tal modo que possa se exercer na
prática: o desenvolvimento de problemas, o estabelecimento e a verificação de
hipóteses, a investigação e a análise do material histórico, a aplicação crítica de
categorias e padrões de interpretação globais. Deve oferecer explicações inteligíveis
e verificáveis, sem se limitar, entretanto, a meras afirmações de fatos, bem como
evitar por princípio argumentações monocausais e insistir no fato de que a
interpretação histórica está aberta por princípio às argumentações multicausais.
Assim, deve apresentar o conhecimento histórico de forma argumentativa, e evitar
qualquer aparência de uma certeza dogmática e definitiva. Finalmente, os alunos
precisam ser capazes de aprender também quais são as possibilidades e limitações
do conhecimento histórico: devem ser convidados a refletir sobre problemas
metodológicos e teóricos, embora de uma forma simples e conforme os
mandamentos didáticos.

Caráter de processo da história e pluriperspectividade ao nível do observador

Em sua oferta de interpretações para os alunos e alunas, o livro didático tem


que caracterizar a história como processo, evitando imagens estáticas da história.
Isto não é válido somente para cada unidade do livro, nas quais frequentemente se
descuida do aspecto da transitoriedade obedecendo ao mandamento de brevidade,
mas sobretudo para o contexto global dos diferentes capítulos, e inclusive das
diferentes partes de uma obra de ensino. Esta relação tem que se apresentar e
mencionar como problema de interpretação, e não deve resultar somente da
114

estrutura e da mera sequência de temas. Se não se quer que na apresentação dos


temas e épocas se conceba (sem querer) a falsa ideia "da" história como fato fixo,
então se deve mencionar como tais as perspectivas globais da interpretação
histórica. Os alunos e alunas devem ser capazes de aprender que estas relações
sequer se podem estabelecer sem sua referência a seu presente, que as
interpretações históricas têm caráter perspectivo e que existem diferentes
perspectivas relacionáveis de forma argumentativa que podem e devem ser
comparadas de forma crítica.
Também aqui se pode falar de uma pluriperspectividade, porém, com uma
diferença entre a mesma na apresentação de experiências históricas, sendo que
aqui se trata de pluriperspectividade ao nível das interpretações históricas. Também
neste nível o livro didático deve proceder de forma pluriperspectivada, se pretende
evitar atitudes dogmáticas na interpretação histórica.

Força de convicção da exposição

Os textos de autores devem empregar-se de tal forma que com eles se


possam perceber e praticar os aspectos antes mencionados da interpretação
histórica. Têm que ser inteligíveis e suficientemente sugestivos para transmitir a
percepção e a experiência histórica e, ao mesmo tempo, devem evitar uma
sobrecarga emocional devida a tópicos e a imagens de linguagem sugestiva. Sua
argumentação deve ser coerente e devem ficar claras, sobretudo, as diferenças e
relações entre juízo dos fatos, hipótese e juízo de valores.

6 UTILIDADE PARA A ORIENTAÇÃO HISTÓRICA

A pergunta "Por que é necessário aprender a história?" se manifesta como


um desafio constante na aula de história. A resposta a esta pergunta não deveria ser
reservada a situações raras e excepcionais da aula, mas deveria fazer parte da
115

rotina da aprendizagem histórica. Isto não significa que se deva refletir


continuamente sobre perguntas de relevância prática, mas somente que na
realização de interpretações históricas deve-se mencionar sua função na orientação
da vida presente, na explicação histórica do presente e nas perspectivas do futuro
relacionadas. Um bom livro didático também estimula:
- estabelecendo uma relação entre sua própria perspectiva global e o
ponto de vista presente dos alunos e alunas e mencionando os
problemas relacionados com o próprio conceito da história e a integração
com o próprio presente;
- introduzindo os alunos no processo de formação de uma opinião
histórica, e
- trabalhando com referências ao presente.

Perspectivas globais

Aos livros didáticos quase sempre corresponde a função de orientação


prática da exposição histórica de forma negativa, isto é, em que se pretende evitar
os enfoques eurocêntricos ou, inclusive, os que partem de uma perspectiva nacional.
Esta exigência afeta a identidade histórica dos alunos e alunas. Contudo, não
somente se deveria adotar a estratégia de evitar o que foi mencionado
anteriormente, isto é, evitar ou dificultar o estabelecimento de perspectivas
etnocêntricas, mas se deveria adotar sistematicamente como tema a estrutura e
dimensão da identidade histórica, a saber, a construção10 dele mesmo e do outro na
percepção histórica e sua interpretação. Deve ser possível refletir sobre o papel
desempenhado pela interpretação histórica na compreensão que o aluno tem de si
mesmo e do presente. O livro didático texto não somente deveria orientar sua
perspectiva em direção aos temas históricos, mas deveria relacioná-la
sistematicamente com a construção da identidade dos alunos, ativando, desta forma,
o potencial de aprendizagem.

10 Optou-se por traduzir a palavra constelación por 'construção', em atenção às ideias do autor.
116

Formação de um juízo histórico

Muitos livros didáticos evitam os juízos históricos explícitos e se esforçam


em manter a aparência de uma imparcialidade estrita. Com isso, privam os alunos
de uma boa oportunidade de aprendizagem. Didaticamente falando, seria mais
razoável problematizar juízos históricos com suas referências de valor e usar de
modo argumentativo as experiências e interpretações, para que as alunas e os
alunos possam aprender a emiti-los alegando suas razões. O importante é que estes
juízos de valor não apareçam independentes dos fatos históricos e que os processos
de sua interpretação metodológica não figurem como um assunto meramente
subjetivo, dos alunos e alunas, mas ao contrário: que ao emiti-los se recorra
sistematicamente ao conceito que tinham de si mesmos os afetados pelos
acontecimentos do passado.

Referências ao presente

As perspectivas orientadoras e os juízos históricos não são possíveis sem


referências ao presente na exposição e na interpretação do passado. Um livro
didático que respeite a ideia de que a aprendizagem histórica deve ter como
resultado a competência de orientação trabalhará sempre com referências ao
presente. Assim evita o risco de um falso objetivismo histórico; contudo, pode
incorrer no seu contrário, em um presentismo histórico, se não utiliza a referência ao
presente como instrumento para ilustrar a singularidade do passado, quer dizer,
utilizar a ilustração do presente através do espelho do passado para medir a
diferença temporal entre o passado e o presente. Somente isto fará possível que a
orientação, que conduz à experiência histórica e sua interpretação para o presente,
seja histórica. As referências ao presente não fazem desaparecer as diferenças
entre o passado e o presente, mas as sondam de tal forma que na distância
temporal entre o passado e o presente se vislumbre uma parte da perspectiva futura
para o presente. Com tudo isso, um livro didático deveria levar em conta que as
117

crianças e jovens aos quais se dirige possuem um futuro cuja configuração também
depende da consciência histórica que lhes foi dada.
118

NARRATIVIDADE E OBJETIVIDADE NAS CIÊNCIAS HISTÓRICAS*

JÖRN RÜSEN

...A verdade científica é justamente o que é


válido para todos os que buscam a
verdade."
Max Weber1

1 O PROBLEMA

'Narratividade' e 'objetividade' parecem ser caracterizações contraditórias


dos estudos históricos. A categoria da narratividade aproxima os estudos históricos
da literatura; ela proclama o caráter literário da historiografia e os procedimentos e
princípios linguísticos que constituem a 'história' como uma representação do
passado, plena de sentido e de significado, nas práticas culturais da memória
histórica. Objetividade, de outro lado, é a categoria que proclama um determinado
tipo de conhecimento histórico, obtido mediante procedimentos de pesquisa
regulados metodicamente e que, ao apresentá-la revestida de sólida validade, situa
a objetividade acima do campo da opinião arbitrária.
O discurso meta-histórico acerca de princípios do pensamento histórico e da
historiografia, como objetividade e narratividade, pode ser organizado,
historicamente, de acordo com as seguintes justaposições: na tradição pré-moderna
da retórica, o trabalho dos historiadores era discutido como uma prática literária da
narração, orientada por pretensões de verdade. No processo da racionalização

* Tradução para o português de }Estevão de Rezende Martins,

1 WEBER, Max: Sociological Writings, ed. Wolf Heydebrand. New York (Continuum), 1994. p.259.
119

modernizadora, que fez da história uma disciplina acadêmica, essas pretensões de


verdade foram elaboradas sob a forma de regras que fazem da investigação
histórica uma garantia de objetividade. 'Objetividade' significava, pois, a validade
geral do conhecimento histórico, baseada na relação com a experiência do passado
e na racionalidade do tratamento cognitivo dessa experiência. O discurso pós-
moderno criticou esta atitude como uma falsa consciência, escamoteadora dos
procedimentos linguísticos da narração que constituem a natureza distintiva da
história como um construto mental de representação do passado para finalidades
culturais da vida atual.
O discurso pré-moderno enfatizava a relação entre os historiadores e seu
público. Concentrava-se nos princípios morais que faziam do passado algo
importante para o presente e amoldava sua representação em uma mensagem
moral apta a habilitar seus destinatários a entender e a operar as regras da vida
humana.
O discurso moderno sobre a história criticou sua atitude moralista e enfatizou
a relação entre os historiadores e a experiência do passado, dada no material das
fontes. A meta-história explicou, pela racionalidade do método, a competência dos
historiadores profissionais em proclamar a experiência histórica. Palavras famosas
de Ranke revelam essa alteração da ênfase na autocompreensão dos estudos
históricos: "À história foi atribuída a função de julgar o passado, de instruir os
homens a tirar o melhor proveito dos anos por vir. A tentativa atual não tem tamanha
pretensão. Ela aspira meramente a mostrar como as coisas efetivamente
aconteceram"2.
Com a consagração da pesquisa histórica como uma disciplina acadêmica e
com sua pretensão de estabelecer padrões de cientificidade para o conhecimento
histórico, a meta-história ganhou uma dupla função: ela tem de legitimar o caráter
acadêmico da profissão de historiador tanto pela ênfase na natureza "científica" do
conhecimento histórico produzido pela pesquisa como pelo destaque da
especificidade dessa disciplina, que a distingue das demais, sobretudo das ciências

2 RANKE, Leopold von: The Theory and Practice of History. Indianápolis, 1971, p.137. "Man hat der
Historie das Amt, die Vergangenheit zu richten, die Mitwelt zum Nutzen zukünftiger Jahre zu
belehren, beigemessen: so hoher Ämter unterwindet sich gegenwärtiger Versuch nicht: er will
120

naturais. Malgrado inúmeras tentativas de remodelar a pesquisa histórica seguindo o


paradigma das ciências naturais, a maior parte dos historiadores continua cultivando
sua autocompreensão como acadêmicos e a identidade de sua disciplina com
fundamento na especificidade do pensamento histórico. O princípio da narratividade
teve conjuntura favorável na meta-história, enquanto critério para delimitar tal
especificidade e peculiaridade. Com o princípio da narratividade pode-se pôr às
claras que o pensamento histórico obedece a uma estratégia explicativa diferente
dos modos de pensar cuja lógica esteja centrada na conformidade a leis
(Gesetzmässigkeit).
A consequência dessa nova reflexão sobre o pensamento histórico, tomando
como referência sua forma narrativa, acarretou uma mudança radical na atitude
objetivista moderna, tradicional na pesquisa histórica. É esta a razão por que os
historiadores profissionais têm-se sentido pouco à vontade com respeito à reflexão
meta-histórica sobre a narratividade de suas representações cognitivas. Embora eles
não tenham sido capazes de substituir esse princípio distintivo por outro que poderia
legitimar, simultaneamente, a abordagem científica da história e a especificidade
metódica do pensamento e da cognição históricos, tampouco se deixaram convencer
de que os avanços cognitivos de seu trabalho acadêmico sejam suficientemente
valorizados pelo tratamento meta-histórico da narrativa histórica.
Assim, a situação presente dos estudos históricos caracteriza-se por uma
relação pouco clara: de um lado, há a limitação meta-histórica da narratividade como
princípio do pensamento histórico que dificulta, logicamente, qualquer objetividade
científica na representação do passado como história; de outro lado, existem as
atitudes e os procedimentos acadêmicos bem estabelecidos dos historiadores
profissionais, que os habilitam a realizar o trabalho de pesquisa e historiográfico em
obediência imediata à racionalidade metódica. É esta racionalidade do método que
dota, com a pretensão de objetividade, o conhecimento que se obteve pela pesquisa
e que se apresenta como historiografia.
Minha contribuição consiste em tentar conciliar essas duas atitudes. Ao fazê-
lo, seguirei primeiramente a argumentação que enfatiza a estrutura narrativa do
conhecimento e a utiliza para criticar concepções inadequadas da objetividade

bloss zeigen, wie es eigentlich gewesen" (Geschichten der romanischen und germanischen Völker
121

histórica. Em um segundo momento, porém, buscarei demonstrar que a objetividade


histórica pode ser resgatada, explicada e legitimada no contexto de uma teoria
narrativista da pesquisa histórica.

2 O QUE É OBJETIVIDADE?

A objetividade fixa um limite à interpretação histórica.3 Ela é um critério de


validade que torna o pensamento histórico e a historiografia plausíveis, isto é, uma
certa forma de pretensão de verdade, intimamente relacionada com a racionalização
do pensamento histórico e com seu caráter acadêmico, para não dizer científico. A
verdade sempre foi o compromisso da historiografia. Na tradição retórica pré-
moderna da meta-história, a verdade era concebida e prescrita aos historiadores
como uma atitude moral de historiógrafos e como um princípio retórico de sua
historiografia. Ela estava direcionada contra os preconceitos e as deformações das
perspectivas históricas devidas à parcialidade unilateral em benefício de uma facção
ou de um ator no passado apresentado, além de estar igualmente voltada contra o
uso de elementos ficcionais na apresentação do passado. Contar a verdade acerca
do passado era visto principalmente como uma mera decisão dos historiógrafos de o
fazer. Os limites da interpretação eram postos pelas regras morais, como diretrizes
tanto para o trabalho historiográfico como para o entendimento do passado,
aplicando o conhecimento assim obtido às situações quotidianas atuais da vida
humana e a suas perspectivas de futuro. Em seu livro Como escrever história,
Luciano de Samosata afirma que a história possui uma única missão e um único fim,
qual seja, o de ser útil, e que o historiador somente pode alcançar esse objetivo se
escrever a verdade.4 Essa utilidade da história, decorrente de seu compromisso com

von 1494 bis 1514), 2.ed., em Sämtliche Werke 33/34, Leipzig, 1874, p.VII.

3 Cf. Rüsen, Jörn: Historische Vernunft. Grundzüge einer Historik I: Die Grundlagen der
Geschichtswissenschaft. Göttingen, 1983, p.85 ss.; idem: Studies in Metahistory. Pretoria (Human
Science Research Council) 1993, p.49 ss. Megill, Allan (ed.): Rethinking Objectivity I, II (Annals of
Scholarship), vol. 8, Nr. 3-4, vol. 9, Nr. 1-2).

4 Luciano: Wie man Geschichte schreiben soll, ed. H. Homeyer. Munique, 1965, § 9, p.107.
122

a verdade, é moral: historia vitae magistra. A história dita as regras da vida humana
mediante a acumulação de experiência para além do horizonte de uma única vida. A
representação histórica tem de produzir prudência (), isto é, a
competência para organizar a vida prática de acordo com regras gerais derivadas da
experiência acumulada (em duas palavras: competência normativa). A história
possui a aptidão – e tem a obrigação de o fazer – para produzir essa competência
pragmática e moral, ao organizar a experiência do passado em forma de uma
narrativa que contenha a mensagem formuladora das regras gerais e dos princípios
da atividade humana. A pretensão de verdade é necessária com vistas à realização
dessa relação com a experiência.
O paradigma desta relação é a sabedoria dos anciãos: na medida em que
sejam depositários, em suas mentes, da experiência acumulada devida à duração de
suas vidas, estão eles qualificados para dirigir e orientar o quotidiano atual de seu
respectivo grupo social. Orientar significa: entender problemas práticos e lidar com
eles com conhecimento dos problemas humanos acumulado na experiência de toda
uma vida. A história é vista como um vetor de orientação da vida humana, e o
historiador é o especialista na experiência acumulada nos arquivos da memória
coletiva. Assim, a história poderia ser definida (Viperano no discurso humanístico)
como rerum gestarum ad docendum usum rerum syncera illustrisque narratio
(narrativa autêntica e esclarecida das atividades humanas com o fito de ensinar
como lidar com elas).5
Objetividade é, contudo, algo completamente diferente. Ela significa uma
determinada relação da representação histórica com a experiência do passado. A
citação de Ranke demonstra claramente que essa relação não está organizada, em
primeiro lugar, pelo princípio moral da prudência (competência normativa), mas pelo
princípio metódico da pesquisa como um procedimento cognitivo. Essa mudança
fundamental na concepção da pretensão básica de verdade, por parte da
historiografia, faz parte de uma evolução estrutural do pensamento histórico que

5 Kessler, Eckhard: Theoretiker humanistischer Geschichtsschreibung. Munique, 1971, p.19, nota


57; Viperano I, 7 a; p.13, 10ss. Cf. A excelente introdução de Kessler: Geschichte, menschliche
Praxis oder kritische Wissenschaft? Zur Theorie humanistischer Geschichtsschreibung, em: op.
cit., p.7-47; idem: Das rhetorische Modell der Historiographie, em: Koselleck, Reinhardt; Lutz,
Heinrich; Rüsen, Jörn (eds.): Formen der Geschichtsschreibung (Beiträge zur Historik, vol. 4).
Munique, 1982, p.37-85.
123

ocorreu na segunda metade do século XVIII. 6 Começou nesse momento sua


modernização, causada pela aplicação de dois princípios: (a) uma nova categoria de
história, entendida agora como uma mudança temporal abrangente do mundo
humano, incluindo virtualmente o presente e o futuro e (b) a racionalidade do método
como estratégia cognitiva ao lidar com a experiência do passado. A nova categoria
"a história" define o conteúdo principal do pensamento histórico e da historiografia
como o domínio específico do mundo real: a história é o mundo humano real na
perspectiva do tempo. Trata-se, pois, de mais do que uma mera narrativa – é a pré-
figuração do mundo que permite aos historiadores apresentar o passado sob a
forma de uma narrativa. Objetividade significa, por assim dizer, que a prudência
ditada, em tempos pré-modernos, pela 'história verdadeira' dos historiadores, tornou-
se agora uma realidade previamente dada do próprio mundo humano.
O aforisma de Ranke, que exprime essa pretensão de objetividade,
pressupõe uma determinada filosofia da história: história é a realidade temporal do
mundo humano, é a conexão interna das mudanças temporais, previamente dadas
no modo de experiência dos historiadores. O historiador, em sua historiografia, tem
de representar essa estrutura histórica do mundo humano, previamente dada. Ele
conta "como tudo efetivamente aconteceu". Essa realidade é mais do que a
sequência de acontecimentos e mudanças no passado tal como relatados nas
fontes; ela é, em si mesma, uma corporificação de sentido. Essa história "real" tem
de ser proclamada em um procedimento cognitivo que só pode ser efetuado por
historiadores profissionais: pesquisa como tratamento metódico de fontes.
A sequência temporal de acontecimentos e mudanças no passado é uma
manifestação da estrutura histórica profunda do mundo humano. Essa estrutura,
chamada "a história", é produzida pelas assim chamadas "forças ativas da mudança

6 Cf. Rüsen, Jörn: Konfigurationen des Historismus. Studien zur deutschen Wissenschaftskultur.
Frankfurt, 1993, p.45 ss.; Koselleck, Reinhardt: Historia Magistra Vitae. Über die Auflösung des
Topos im Horizont neuzeitlicher bewegter Geschichte, em: Koselleck, R.: Vergangene Zukunft. Zur
Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt, 1979, p.38; Blanke, Horst Walter:
Historiographiegeschichte als Historik (Fundamenta Historica, vol. 3), Stuttgart-Bad Canstatt, 1991;
Küttler, Wolfgang; Rüsen, Jörn; Schulin, Ernst (eds.): Geschichtsdiskurs, vol. 2: Anfänge modernen
historischen Denkens. Franfkurt/Main, 1994.
124

temporal do mundo humano"7; são essas forças ativas que constituem,


ontologicamente, a realidade da história. E essa realidade, previamente dada na
experiência histórica, pode ser desvelada, nos vestígios do passado, pela pesquisa
metódica. A categoria de história e a racionalidade da pesquisa histórica estão, por
conseguinte, intimamente relacionadas. A primeira é precondição ontológica do
procedimento cognitivo da segunda. A prestigiosa pretensão de objetividade com
que os historiadores exercem sua profissão, como "sacerdotes da nação"8, fundava-
se numa confiança quase-religiosa e metafísica de que, com determinados
procedimentos racionais, a inteligência humana seria capaz de descobrir a história
como a estrutura real do mundo humano, no curso temporal de acontecimentos e
mudanças no passado.9
Um documento renomado, relativo a essa pretensão de objetividade, é o
ensaio de Wilhelm von Humboldt intitulado "Sobre a tarefa do historiador" (1810). 10
Nesse texto, Humboldt defende a pretensão de objetividade em sua concepção
historicista, enquanto "fusão" entre o intelecto investigador e o objeto investigado. 11
"Fusão" significa que a história, como o único objeto do pensamento histórico – a
realidade temporal do mundo humano –, é constituída pelas forças mentais ('ideias')
que agem mediante a intencionalidade ('Sinnbestimmheit' - orientação pelo sentido)
das ações humanas. Ora, é a mesma "força mental" que, por outro lado, com seus
interesses cognitivos, move a inteligência humana em sua abordagem cognitiva do
passado. A inteligência da cognição, relacionada com a experiência, é, pois, parte
da inteligência da realidade previamente dada na experiência. Os interesses da

7 Cf. Humboldt, Wilhelm: Betrachtungen über die bewegenden Ursachen der Weltgeschichte, em:
Humboldt, W.: Schriften zur Anthropologie und Geschichte (Werke in fünf Bänden, ed. Andreas
Flitner, Klaus Giel. Darmstadt, 1960, p.578-584 (Akademie-Ausgabe II, 360-366).

8 Weber, Wolfgang: Priester der Clio. Historisch-sozialwissenschaftliche Studien zur Herkunft und
Karriere deutscher Historiker 1800-1970, 2ª ed., Frankfurt, 1987.

9 Cf. Rüsen, Jörn: Historische Methode und religiöser Sinn - Vorüberlegungen zu einer Dialektik der
Rationalisierung des historischen Denkens in der Moderne,

10 Humboldt, Wilhelm von: Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers, em: Humboldt, W. von:
Werke, ed. Andreas Flitner e Klaus Giel, vol. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte.
Darmstadt, 1960, p.585-606 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] IV, p.35-56}. Tradução
em inglês em History and Theory 6 (1967), p.57-71. Ver ainda Ranke, Leopold von: The Theory
and Practice if History, ed. Georg G. Iggers, Konrad Moltke. Indianápolis, 1973, p.5-23.
125

cognição são parte das forças mentais que constituem a história como tema da
cognição. Pode-se até dizer que a própria história fala através do historiador, que a
historiografia representa a realidade íntima da história como uma forma abrangente,
previamente dada, da vida humana. Isso é o que objetividade quer dizer. Seu
fundamento epistemológico – nas palavras de Humboldt – "é uma congruência
original prévia entre o sujeito e o objeto".12 Pesquisa, como procedimento cognitivo,
é baseada nessa congruência. Ela guia os historiadores no trato com a experiência
do passado, presente em seus vestígios, no material das fontes, nos quais a
"realidade da história" é proclamada.
Podemos ver aqui as implicações filosóficas desse tipo de objetividade
histórica. Ele põe limites claros à interpretação do material das fontes, tanto em
obediência às regras da pesquisa metódica quanto pela aplicação do conceito de
história como de um movimento temporal do mundo humano, constituído pelas
forças mentais da atividade humana. O conhecimento histórico, dotado de sua
pretensão de objetividade, poderia funcionar como orientação cultural para a vida
prática – sobretudo política: ele produz uma perspectiva da futuro em função da
mudança temporal do passado13 e a identidade coletiva do grupo a que se dirige,
enquanto baseada nas forças ativas constitutivas da história humana.

3 NARRATIVIDADE COMO OBJEÇÃO À OBJETIVIDADE

Mesmo no contexto da concepção objetivista da cognição histórica, sempre


se esteve consciente dos elementos constitutivos da subjetividade, em oposição ao
caráter meramente reificado da história. Muitos historiadores estavam conscientes
do envolvimento de seu trabalho acadêmico com a política, e chegavam mesmo a

11 Iggers, p.8.

12 Iggers, p.15 ("eine vorhergängige, ursprüngliche Übereinstimmung zwischen dem Subjket und
Objekt", p.596s.).
126

participar diretamente dela. Reconheciam esse envolvimento não como um


acréscimo externo a suas tarefas acadêmicas, mas como um fator constitutivo de
sua própria historiografia, como elemento conformador de sua estrutura cognitiva
interna, como inseparável da racionalidade metódica de sua disciplina. O termo
utilizado para exprimir essa objeção de uma "objetividade pobre" foi: parcialidade.
Droysen polemizou contra o que chamava de "objetividade de eunucos"14 nos
estudos históricos, que intentavam neutralizar-se com respeito ao conflito político em
torno da questão da identidade coletiva (sobretudo a nacional), na qual o argumento
historiográfico desempenhava um papel importante. O mesmo valia para Sybel,
Gervinus e outros.15 Eles não consideravam o envolvimento e a parcialidade dos
historiadores na luta política pela conformação da identidade coletiva, mediante a
rememoração histórica, como opostos à objetividade, mas pelo contrário, viam-nos
como uma condição necessária à objetividade histórica. É esta a posição do
historiador dentro do embate político de seu tempo respectivo, o que abre a
perspectiva com a qual as poderosas forças mentais, que constituem a história como
uma forma específica da realidade humana, tornam-se acessíveis e visíveis,
podendo assim ser enunciadas mediante uma abordagem cognitiva.
A ideia de que a objetividade é constituída pela parcialidade obedece a uma
filosofia idealista da história, que identifica as forças mentais em ação no interesse
histórico dos historiadores com as forças mentais da atividade humana, que
constituem a história enquanto realidade temporal da vida humana. A concepção
marxista-leninista de objetividade pela parcialidade segue uma filosofia da história e
uma epistemologia análogas. A parcialidade na luta de classes é condição
necessária do conhecimento objetivo da sociedade humana em geral e de sua

13 Uma fonte importante para essa função prática da objetividade histórica (poder-se-ia mesmo falar
de seu caráter ideológico) é a aula inaugural de Ranke: "Über die Verwandschaft und den
Unterschied der Historie und der Politik", Sämtliche Werke, v.24, Leipzif, 1877, p.280-293.

14 Droysen, Johann Gustav: Historik, historisch-kritische Ausgabe, ed. Peter Leyh, vol. 1, Stuttgar-
Bad Canstatt.

15 Sybel: Über den Stand der neueren deutschen Geschichtsschreibung (1856), em: Kleine
a
historische Schriften (1863), 3 . ed., Stuttgart, 1880, p.355s.; Gervinus, Georg Gottfried:
Grundzüge der Historik (1837), em: Schriften zur Literatur, ed. G. Erler, Berlim, 1962, p.49-103. Cf.
Rüsen, Jörn: Der Historiker als 'Parteimann des Schicksals - Georg Gottfried Gervinus, em: Rüsen,
Jörn: Konfigurationen des Historismus. Studien zur deutschen Wissenschaftskultur. Frankfurt,
1993, p.157-225.
127

evolução histórica em particular. Em ambas concepções de objetividade a questão


está, contudo, em que nem toda parcialidade leva à objetividade, mas apenas
aquela que for refletida, na qual o historiador emprega a aptidão cognitiva da
inteligência humana de forma específica: ele generaliza seu ponto de vista de tal
modo que pode integrar, em um interesse abrangente, os interesses conflitantes no
contexto político. Dessa maneira, as diversas perspectivas, derivadas dos diferentes
pontos de vista, são integradas numa perspectiva abrangente. Nesta perspectiva, a
mudança do mundo humano no passado indica uma direção para o futuro. É a
apreensão dessa perspectiva abrangente e o direcionamento da evolução que
habilitam os historiadores a transcender a luta pelo poder e a assumir uma
orientação comum. Para a concepção historicista clássica da pesquisa histórica, o
ponto de vista abrangente e a perspectiva compreensiva realizaram-se no
nacionalismo, mais ou menos mitigado por uma ideia de humanidade como o
princípio de comunicação inter-nacional.
A cognição histórica poderia ser vista, então, como um procedimento mental
com dois polos: de um lado, um objetivo, relativo à experiência do passado
previamente dado em seus vestígios, isto é, o material das fontes, e, de outro lado,
um subjetivo, referente a problemas de orientação da vida prática. A garantia do
objetivismo é a crítica das fontes, e a do subjetivismo é o engajamento do historiador
na luta política pela identidade coletiva, no campo da rememoração histórica. Ambas
são mediadas na operação cognitiva da interpretação histórica. É pela interpretação
que a sólida informação das evidências empíricas do passado recebem seu feitio
histórico específico e se integram na estrutura mental da narração histórica, dentro
da qual pode funcionar como fator de orientação cultural. Enquanto procedimento
metódico, a interpretação contribui para a objetividade. Ao realizar a perspectiva
histórica na qual a evidência do passado é referida a problemas de orientação no
presente, contudo, a interpretação põe a subjetividade, como operação constitutiva
da cognição, na formação da narrativa. Ambas, porém, objetividade e subjetividade,
são lados da mesma moeda.
Por causa dessa função, a interpretação histórica, malgrado ser um
procedimento cognitivo decisivo na investigação histórica, continuou ambígua. No
desenvolvimento dos estudos históricos sempre ocorreram duas atitudes diferentes
para superar essa ambiguidade:
128

a) Uma atitude objetivista tenta estruturar a interpretação histórica usando


um tipo de conhecimento no qual a subjetividade do historiador (i.é, seu
interesse pelo passado) é ultrapassada por uma certa concepção de
história. Essa concepção exprime categorialmente a mudança temporal
e a evolução do mundo humano no passado como uma entidade
previamente dada a ser revelada por uma cognição que é verdade
apesar de todo interesse, ponto de vista ou parcialidade prática. Com
frequência os historiadores tomaram emprestadas das ciências sociais
as estruturas cognitivas desta história "objetiva", além de partilhar com
elas tanto a pretensão de seguir a lógica das ciências naturais quanto o
prestígio cultural. Ao agir assim, os historiadores acreditavam numa
base epistemologicamente segura para o caráter científico dos estudos
históricos. Exemplos dessa estratégia foram a tentativa de Karl
Lamprecht de transmutar o historicismo em uma nova concepção de
história como ciência social, assim como as tentativas correlatas da
primeira fase da escola dos Annales, para não falar do marxismo e das
diversas tentativas positivistas de promover a história ao status de
ciência (Erhebung der Geschichte in den Rang einer Wissenschaft).16
b) A outra estratégia é uma reconstrução epistemológica dos padrões da
interpretação histórica que admite ter seu fundamento no interesse e no
envolvimento prático, de que decorre um elemento de subjetividade
inevitável. Ao mesmo tempo, porém, ela enfatiza as regras metódicas e
os recursos teóricos de que lança mão como garantia da validade
intersubjetiva do conhecimento histórico. O melhor exemplo conhecido
dessa estratégia é a interpretação da objetividade por Max Weber e sua
metodologia dos tipos ideais.17

16 Essa é uma fórmula famosa de Johann Gustav Droysen, posta por ele como título de sua
recensão da "History of Civilization in England", de Thomas Buckle (Historik [Fn 14], p.451ss.).

17 Weber, Max: "Die 'Objektivität' sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis", em:


Weber, M.: Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. 3ª ed., ed. Johannes Winckelmann.
Tübingen, 1968, p.146-214. Trad. Ingl.: Weber, M.: The Methodology of Social Sciences, trad. e
ed. Edward A. Shils e Henry A. Finch. Nova Iorque: Free Press, 1949; parcialmente em Weber, M.:
"'Objectivity' in Social Science", em Weber, M.: Sociologial Writings (n. 1), p.248-259.
129

A abordagem objetivista perdeu sua credibilidade. Seu impacto ideológico


não poderia ser negligenciado: o interesse subjetivo e a luta política pelo poder
facilmente poderiam ser encontrados nas diversas ideias da histórica reificada. O
último recuo da objetividade como ideia constitutiva dos estudos históricos enquanto
disciplina acadêmica ficou evidente com a emergência meta-histórica da narrativa
como forma constitutiva do conhecimento histórico e como procedimento mental de
fazer história. Narratividade é um conceito que explica a relação constitutiva do
pensamento histórico para com as práticas culturais da memória e identidade
coletivas. Ele mostra que a cognição histórica opera sua constituição específica na
vida prática mediante sua forma narrativa. A interpretação histórica está diretamente
vinculada a essa forma; ela traz a informação do passado, empiricamente evidente,
para a narrativa. Somente nesta forma a informação quanto ao passado é
especificamente "histórica" e somente nesta forma o conhecimento histórico pode
desempenhar suas funções culturais.
O conhecimento histórico gerado pelo procedimento cognitivo da pesquisa
metódica deve à narratividade qualificações que são comumente entendidas como
negações da objetividade, especificamente: retrospectividade, perspectividade,
seletividade e particularidade.18 Na retrospectividade, a abordagem da evidência
empírica do passado está sob influência das projeções para o futuro que tendem a
ultrapassar o horizonte da experiência do passado. A retrospectividade do
conhecimento histórico pode ser considerada como abertura pela qual elementos
não-empíricos – interesses subjetivos, normas e valores, aspirações e ameaças –
ingressam na relação histórica entre o passado e o presente e chegam mesmo a ter
certo impacto sobre a estrutura cognitiva guiada pela racionalidade metódica.
Perspectividade diz respeito à relação constitutiva entre o passado e o presente,
insere a perspectiva histórica nos problemas práticos de orientação da época do
historiador. Ela concretiza a dependência do sentido e do significado históricos para
com o ponto de vista dos historiadores na vida social de seu tempo. Seletividade
indica as consequências da retrospectividade e da perspectividade para o conteúdo
empírico do conhecimento histórico. Somente um certo tipo de informação extraída
130

do material das fontes torna-se relevante para a pesquisa, ou seja, aquele que vai
ao encontro da operação subjetiva de produção de sentido, significado e significação
do passado para os problemas de orientação do presente. Os critérios de seleção
são normas e valores que amoldam o passado com o sentido, o significado e a
significação históricos. Somente nas resultantes desse sentido, significado e
significação é que o passado pode ser reconhecido como história. Particularidade
reflete as limitações da abordagem, pela interpretação histórica, das evidências
empíricas do passado. Fundamentalmente, ela relaciona o conhecimento histórico à
finalidade de construção da identidade mediante a memória histórica. Sendo a
identidade logicamente particular – ela sempre é uma diferença para com os outros
–, o conhecimento histórico, como espelho criativo da formação da identidade,
sempre é particular. Exige, por conseguinte, uma pluralidade de abordagens do
passado. Dessa forma, corresponde ele, pois, à pluralidade de identidades e às
dimensões da identidade, das diferenciações e dos interesses conexos na vida
prática.
Com sua retrospectividade, perspectividade, seletividade e particularidade, o
conhecimento histórico faz parte do discurso cultural pelo qual a diferença e a
distinção são produzidas como resultantes essenciais da orientação cultural no
mundo humano. Isso é verdade especialmente para as relações sociais e para a
dominação política. Pode-se mesmo falar de um princípio de comunicabilidade, que
faria do conhecimento histórico um elemento constitutivo desse discurso cultural. Ele
transforma o discurso acadêmico em parte da luta cultural pelo poder. Ele lida com o
poder ao tornar efetivos seus princípios na percepção e na interpretação do mundo
humano no espelho da memória histórica. No contexto desta comunicação, a
história, como passado representado, ganha em vividez e poder, ao tornar-se parte
da vida quotidiana. Confrontada com essa integração inevitável da história à vida, a
objetividade histórica aparece como seu contrário, como um recurso cultural na luta

18 Cf. Füssmann, Klaus: "Historische Formungen. Dimensionen der Geschichtsdarstellung", em:


Füssmann, K.; Grütter, H. T.; Rüsen, J. (eds.): Historische Faszination. Geschichtskultur heute.
Köln, 1994, p.27-44, esp. p.32-35.
131

política pelo poder, ao simbolizar as forças da cultura. Toda história da historiografia


é uma prova empírica desse papel dos estudos históricos.19
Há um termo, no discurso recente da meta-história, que indica o recuo da
objetividade no campo dos estudos históricos (pelo menos na perspectiva da
reflexão meta-histórica sobre seus princípios constitutivos): ficcionalidade.
Ficcionalidade é um contraconceito de objetividade no contexto semântico de uma
epistemologia positivista. Objetividade significa o atributo epistemológico de solidez
empírica da informação obtida a partir do material das fontes mediante o
procedimento metódico de sua crítica. Essa informação consiste nos assim
chamados "fatos": eles asseveram que, num determinado tempo e em um
determinado local algo ocorreu de determinada forma por causa de determinadas
razões. Um fato é uma resposta à questão sobre "quando-onde-o quê-como-por
quê?". Um tal fato não possui sentido, significado ou significância especificamente
históricos em si próprio. Ele se reveste desse sentido "histórico" apenas numa
determinada relação temporal e semântica para com outros fatos. Essa relação é
produzida pela interpretação histórica. De modo a tornar efetiva essa "historização",
a interpretação histórica recorre a princípios de sentido, significado ou significância
cujo estatuto ontológico é diferente do estatuto dos próprios fatos. Levando-se em
conta a mera facticidade da informação das fontes, há ainda algo mais do que
apenas factual na relação narrativa temporal que qualifica os fatos como
especificamente "históricos". De modo a determinar essa diferença usa-se o termo
"ficcionalidade". Na medida em que a interpretação dá uma forma narrativa à relação
"histórica" entre fatos, o procedimento da interpretação está intimamente relacionado
à maneira de contar uma história (tell a story). O termo "ficcionalidade" exprime
também essa situação. O processo instituidor de sentido da interpretação histórica
aparece, sob o influxo desta categoria, como "um ato essencialmente poético", do
mesmo tipo de geração de sentido que se encontra na literatura e nas artes.20
"Ficcionalidade" assinala ainda o estatuto ontológico e epistemológico
daqueles elementos do conhecimento histórico e da historiografia que não proveem

19 Novick, Peter: That Noble Dream. The 'Objectivity-Question' and the American Historical
Profession. New York, Cambridge, 1988.
132

diretamente da facticidade pura da informação das fontes. Esse termo só faz sentido
com o pressuposto, não questionado, de uma epistemologia positivista. Ele confirma,
ademais, um conceito amplo de método histórico, em que este fica restrito aos
mecanismos e à tecnologia de crítica das fontes. A operação mental que transforma
a informação das fontes numa sequência narrativa com sentido e significado, numa
narrativa histórica, pois, é, por sua vez, explicada como narrativa. A meta-história,
que investiga os princípios da narrativa, vai além tanto da metodologia tradicional
que se concentra na objetividade, quanto da poética e da retórica da historiografia,
que se restringem à subjetividade. Agora sim, os princípios constitutivos da
constituição histórica de sentido são de natureza estética e linguística.
Esta poetização da cognição histórica correspondia à falta de metodologia
de interpretação histórica. A meta-história velou o fato de que os estudos históricos
ainda utilizam uma rede de conceitos mais ou menos explicados teoricamente, ao
inserir os fatos numa relação historicamente significativa. 21 O ato poético inclui, no
mínimo, procedimentos cognitivos decorrentes das regras metódicas da pesquisa
histórica. A nova consciência das estratégias linguísticas para a produção de sentido
em história atraiu a atenção dos historiadores novamente para o ato de escrever
história. A historiografia nunca foi completamente esquecida na reflexão meta-
histórica sobre os estudos históricos que destacavam sua pretensão de objetividade
e sua autodefinição e prestígio como 'ciência'. No entanto, ela sempre esteve conexa
com a racionalidade metódica da pesquisa científica, tornou-se dependente dela e
foi desprovida de seu papel constitutivo no processo de produção de sentido ao lidar
com a experiência do passado. Tem-se agora o percurso inverso: os recursos
racionais da pesquisa, quando tematizados, parecem depender de procedimentos
linguísticos básicos de produção de sentido ao modelar a informação da fonte numa
narrativa significante. Como escapar dessa ambivalência?

20 White, Hayden: Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth Century Europe. Baltimore,
1973, p.X.

21 Cf. Rüsen, Jörn: Rekonstruktion der Vergangenheit. Grundzüge einer Historik II: Die Prinzipien der
historischen Forschung. Göttingen, 1986.
133

4 UMA APROXIMAÇÃO DE UM NOVO CONCEITO DE OBJETIVIDADE

De modo a tornar possível a volta das pretensões de verdade do


pensamento histórico tem-se, antes de mais nada, de esclarecer o significado de
objetividade. Esse significado pode ser visto de duas formas: primeiramente,
objetividade significa uma relação constitutiva do pensamento histórico para com a
experiência; existe algo na construção narrativa chamada 'história' que não pode ser
inventado, pois é previamente dado e tem de ser reconhecido como tal pelos
historiadores. Os procedimentos racionais da pesquisa histórica estão baseados
nesta relação entre o pensamento histórico e o 'estar previamente dado' da
experiência, que se assemelha a um 'objeto' da interpretação histórica. A experiência
é um dos limites da experiência, i.é: a interpretação histórica não pode ir além dos
contornos da experiência quando tenha por intenção enunciar o que ocorreu no
passado – quando, onde, como e por quê alguma coisa aconteceu ou foi o caso.
Essa relação com a experiência não impede, de forma alguma, acréscimos
subjetivos constituidores de sentido por parte dos historiadores ao lidarem
empiricamente com o passado.
Em seu segundo significado, 'objetividade' inclui até mesmo o lado 'subjetivo'
da interpretação histórica: ela significa um modo da própria subjetividade, ou seja, a
validade intersubjetiva de uma interpretação histórica. Em poucas palavras, essa
objetividade como intersubjetividade significa que a interpretação histórica não é
arbitrária ou descabida ao tratar os elementos subjetivos do sentido histórico que
moldam a informação do material das fontes em uma narrativa com sentido e
significado e constituem, assim, 'história' como uma relação de sentido entre o
passado e o presente (a qual é tendencialmente referente ao futuro). Este
significado de 'objetividade' refere-se à relação da interpretação histórica com o
discurso cultural e com a vida social, nos quais se constitui toda narrativa histórica,
aos quais toda narrativa histórica se dirige e nos quais toda narrativa histórica
desempenha o papel de orientadora da vida prática. 'Objetividade' significa, pois,
que a experiência histórica pode ser interpretada com relação a essas três
perspectivas de tal forma que se deem boas razões para aceitar uma narrativa
histórica e para recusar uma outra. O termo 'razão' indica a solução: existem
134

princípios de interpretação que todo historiador deve observar, na medida em que


queira produzir uma narrativa histórica cuja validade esteja além de uma
subjetividade pobre no sentido de arbitrária ou totalmente descabida.
A pretensão de objetividade no sentido de uma relação constitutiva com a
experiência histórica pode ser facilmente legitimada pela referência aos
procedimentos de pesquisa consagrados para os estudos históricos. É de se convir
que o método histórico sofre influência da abordagem heurística da experiência
histórica, chegando mesmo a depender dela, que inclui, na relação especificamente
histórica entre o passado e o presente, elementos constitutivos de subjetividade,
como sentido, significado e significância. Não obstante, a racionalidade metódica da
pesquisa alcançou uma validade que não pode ser posta de tal forma em dúvida que
a informação das fontes perca seu valor cognitivo como limite da interpretação.22
No caso da subjetividade, as coisas são diferentes. É aberta a questão de se
saber se existe uma racionalidade metódica estrita, comparável à da objetividade,
para os procedimentos pelos quais a informação do material das fontes é moldada
em um narrativa histórica significativa. Não se deve negligenciar, todavia, que
existem ao menos alguns critérios racionais inegáveis de intersubjetividade que
garantem a consistência de uma narrativa histórica. Essa consistência deve ser
investigada, com respeito aos princípios da intersubjetividade, como uma condição
necessária para a plausibilidade ou a 'verdade' de uma narrativa histórica.
Convém distinguir duas dimensões desta consistência: a coerência teórica e
a coerência prática. A coerência teórica diz respeito aos conceitos e sua relação com
a informação do material das fontes. O discurso pós-moderno da meta-história tratou
sobretudo das metáforas como elementos básicos da produção histórica de sentido
no ato de transformar a experiência do passado em uma história com significado
para o presente.23 A racionalidade metódica dos estudos históricos já teve por
resultado a transformação (ou mesmo a superação) das metáforas em conceitos.

22 Appleby, Joyce; Hunt, Lynn; Jacob, Margaret: Telling the Truth About History. New York (Norton),
1994. Gossman, Lionel: Between History and Literature. Cambridge, Mass. 1990; Kocka, Jürgen:
Sozialgeschichte. Begriff - Entwicklung - Probleme. 2ª ed., Göttingen, 1986, p.40-47:
Objektivitätskriterien in der Geschichtswissenschaft; Koselleck, Reinhardt; Mommsen, Wolfgang J.;
Rüsen, Jörn (eds.): Objektivität und Parteilichkeit (Beiträge zur Historik, vol. 1), München, 1977;
Rüsen,. Jörn (ed.): Historische Objektivität. Aufsätze zur Geschichtstheorie. Göttingen, 1975.

23 Cf. Ankersmit, Frank R.: History and Tropology. The Rise and Fall of Metaphor. Berkeley, 1994.
135

Com essa conceitualização, a interpretação histórica se qualifica para contribuir para


sua validade intersubjetiva: uma qualidade que se pode chamar de
reconstrutibilidade. Considero essa questão no sentido de a interpretação histórica
ser dotada de transparência e clareza que possibilitam, principalmente, construir e
corroborar ou refutar a argumentação que apresenta. É este o sentido da famosa
passagem de Max Weber: "...é e continua verdade que uma demonstração científica
metodicamente correta, no campo das ciências sociais, se quiser alcançar seu
objetivo, tem de ser reconhecida como correta também por um chinês..." 24. Essa
transparência pode ser expressa por uma regra metódica da interpretação histórica:
esta última tem de ocorrer dentro de uma rede conceitual explícita. Com os recursos
conceituais explícitos em forma mais ou menos teórica, a interpretação histórica se
reveste de um determinado grau de reflexibilidade, que reforça o elemento de
explanação racional que opera no 'contar uma história do passado' embora lhe
atribua sentido pela via argumentativa, dirigida às faculdades racionais daqueles aos
quais a história é contada. Os processos mentais criativos da narratividade histórica
adquirem a qualidade de estrutura narrativa e submetem a espontaneidade racional
ao controle da evidência empírica, da coerência lógica e do vigor explanatório, no
jogo da produção histórica de sentido.
A coerência prática é a qualidade da narrativa histórica que lhe confere
plausibilidade quanto à função prática que ela tem na orientação cultural da vida
concreta. Será possível constatar e identificar coerência e intersubjetividade – isto é,
um indício de razão – mesmo nos abismos da vida em que interesses, conflitos,
vontade de poder e a avassaladora ambição de assegurar autoestima e
reconhecimento social desempenham um papel decisivo na modelagem das
imagens do passado para as finalidades do presente e na perspectiva do futuro? A
resposta é simples e límpida: sem os elementos discursivos da intersubjetividade, a
vida humana prática seria impossível. Penso aqui em todos os elementos culturais
que habilitam os seres humanos a superar seus conflitos de forma pacífica, de se
ajustar à experiência, de convencer-se uns aos outros mediante argumentos e não
pela força, de elaborar e aceitar razões para a orientação da vida prática no tecido
cultural da ação.

24 Cf. Weber: Objektivität [nota 17], p.155.


136

Esses elementos podem ser especificados com relação à mais sensível e


prática das funções do pensamento histórico: seu papel na formação da identidade
pessoal e social. Correspondentemente à racionalidade metódica, que produz a
coerência teórica da narrativa histórica, existem uma razão e uma racionalidade
práticas universais na conciliação das diferenças e das tensões no processo de
formação da identidade. Isso fica patente no embate político pelo poder e nas
estratégias conflitantes na busca do equilíbrio existencial entre autoestima e
reconhecimento social com respeito à identidade histórica. É ainda um recurso
cultural poderoso para os indivíduos e os grupos assumirem sua posição social no
relacionamento com os demais. Penso ser a categoria de igualdade e o conceito de
humanidade, a ela referente, que serve de regra cultural para lidar com as
diferenças.
Essa categoria é a contrapartida prática das forças teóricas da geração de
sentido, que dota as narrativas históricas da transparência argumentativa
anteriormente mencionada. Com a categoria de igualdade pode-se alcançar uma tal
transparência também no campo prático da formação da identidade. Todo o sistema
jurídico moderno está baseado nela. Isso parece ser extremamente teórico, se
comparado com os problemas práticos reais, mas podemos mostrar, facilmente,
quão relevante é, para a vida prática, essa argumentação abstrata. Em que consiste
a falta de intersubjetividade no processo de formação da identidade histórica? No
déficit de reconhecimento, na marginalização, na relação moral assimétrica entre
similitude e alteridade. Igualdade é uma ideia regulativa para superar essa falta de
intersubjetividade.
Para a finalidade de construção da identidade pela memória histórica,
porém, essa categoria da intersubjetividade é totalmente insuficiente. Ela define uma
universalidade abstrata que fica aquém da diversidade de diferenças na qual a
cultura constrói a identidade humana. Tem-se necessidade de um princípio muito
mais abrangente e profundo que leve em conta tal diversidade. No plano teórico das
ideias regulativas, pode-se transformar facilmente a universalidade abstrata da
igualdade numa universalidade concreta que corresponda aos desafios da
diferenciação enquanto procedimento cultural necessário à construção da
identidade: na medida em que cada identidade é particular, a intersubjetividade,
relativamente à diferença entre as particularidades, é uma questão de como
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correlacionar essas particularidades. Deve-se atribuir à regra metódica que todos os


que se encontram nesse processo aceitem suas próprias diferenças e a respectiva
alteridade. A ideia regulativa da intersubjetividade torna-se, assim, conhecimento e
reconhecimento mútuo.25
Essa ideia regulativa pode ser utilizada na interpretação histórica: ela se
refere à perspectividade de qualquer narrativa histórica. Ela relaciona a interpretação
histórica a uma perspectiva que ou inclui a diferença dos pontos de vista
relativamente às diversas identidades ou reforça outras perspectivas, como
complementares a pontos de vista diversos. A pluralidade de pontos de vista e de
perspectivas não deve ser considerada como um entrave à objetividade, mas como
sua realização no que diz respeito às necessidades da coerência prática. Mas a
pluralidade pode ocorrer de dois modos: um, com fundamento lógico na negação
estrita da objetividade, desacreditando-a como um "sonho nobre", mas sem qualquer
princípio regulador diante dos conflitos e embates entre as diversas perspectivas,
resultando simplesmente um bellum omnium contra omnes ou um choque de
civilizações combatido com as armas da narrativa. A outra modalidade consiste em
um conceito de pluralismo limitado por uma regra abrangente de
complementaridade, pela crítica recíproca sob a forma de uma argumentação
transparente e razoável, bem assim pelo conhecimento e reconhecimento mútuo.
Penso não existir qualquer dúvida sobre que tipo de pluralismo deve ser preferido.
Uma tal ideia regulativa da coerência prática tem consequências para a
abordagem heurística da experiência histórica. Essa abordagem é sempre levada
adiante pelas normas e valores que constituem o sentido histórico. A
intersubjetividade prática é um desses valores, e tem seus efeitos, repercute na
experiência do próprio passado, na medida em que a história pode ser concebida
como um processo de busca de observar esse princípio nas formas da vida humana,
nas constituições, nos sistemas jurídicos, no comportamento social etc.

25 Cf. Taylor, Charles: Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung. Frankfurt/Main, 1993;
Rüsen, Jörn: "Vom Umgang mit den Anderen - Zum Stand der Menschenrechte heute", em:
Internationale Schulbuchforschung 15 (1993), p.167-178; Rüsen, J.: "Human Rights from the
Perspective of an Universal History", em: Schmale, W. (ed.): Human Rights and Cultural Diversity.
Europe - Arabic-Islamic World - Africa - China. Frankfurt/Main, 1993, p.28-46.
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Esta repercussão da experiência histórica reveste a intersubjetividade,


enquanto coerência prática e teórica das narrativas históricas, da qualidade adicional
de objetividade, no sentido de garantir uma relação verossímil com a experiência.
História como experiência não se situa fora de nós mesmos. A experiência histórica
não é dada apenas previamente nos vestígios do passado com que os historiadores
lidam, sob a forma de fontes. A história é dada previamente também em nós, e
mesmo mais, na medida em que nós próprios somos resultado de desenvolvimentos
temporais de longa duração. Antes de pensarmos em história, e antes de a
rememorarmos, já somos história. Antes de pensarmos no passado enquanto
passado – e esta é uma condição necessária do construto cultural 'história' como
elemento de orientação cultural – o passado é presente. Nessa presença do
passado, intersubjetividade e objetividade, no sentido da experiência, são a mesma
coisa. Na condição de previamente dado, o passado ainda não se tornou história,
nem mesmo é, propriamente, passado; como história e como passado, poder-se-ia
dizer, é invisível. Para torná-lo visível temos de distinguir as três diferentes
dimensões temporais e colocar em ação os mecanismos mentais da consciência
histórica. A resultante dessa interação é a representação histórica do passado. Ela
somente pode desempenhar seu papel de orientação se não perder de vista essa
'história invisível' que nós mesmos somos. Somente a representação histórica do
passado, que nos traz à mente essa história, é que possui a qualidade da
objetividade em que estão sintetizados o aspecto da experiência e o da
intersubjetividade, assim como as dimensões teórica e prática da produção de
sentido histórico na relação entre passado e presente.
A pretensão de objetividade efetivada no procedimento acadêmico da
cognição histórica é pensada, amiúde, como exalando um certo odor de mofo.
Muitos historiadores profissionais consideram que seu serviço à verdade só pode ser
prestado se isolarem sua representação do passado com relação aos embates de
suas épocas. Essa neutralidade é uma esperança vã. Nenhuma narrativa histórica é
possível sem uma perspectiva e os critérios de sentido histórico com ela
relacionados. Esses critérios são derivados da orientação cultural da vida prática.
Eles têm de estar expressos numa forma conceitual tal que mantenham sua
relevância para a vida atual, mesmo se versam sobre coisas passadas. Assim, a
objetividade histórica não exorciza, da representação histórica, a variegada
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multiplicidade da vida prática, pelo contrário: ela é um princípio que organiza essa
variedade. Emoção, imaginação, poder e vontade são elementos necessários da
produção histórica de sentido. A pretensão de objetividade não lhes subtrai o vigor
da vida. Objetividade pode ser reconhecida como uma forma de sua vivacidade, na
qual as narrativas históricas reforçam a experiência e a intersubjetividade na
orientação cultural. E assim fazendo, tornam o peso da vida – quem sabe? – um
pouco mais suportável.

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