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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Psicologia

Ianni Santos de Macedo

PSICOPATOLOGIA: Análise do conto “O Alienista”

Belo Horizonte
2021
Análise Crítica: O Alienista

O que é o normal? O que é o anormal? O que é a loucura? O que é o


patológico? O que é o certo?

São algumas das muitas questões que o conto ‘’O Alienista’’ levanta. A obra
escrita há quarenta anos propõe diversas reflexões psicossociais
extremamente relevantes até os dias atuais. Isto se deve pelo fato de que para
um ser humano ‘’existir’’ em sociedade deve inserir-se dentro de um padrão
pré-estabelecido dominante, já que, quando isto não ocorre, o mesmo
representa determinada anormalidade. Esta necessidade social de padronizar
pode ser vista em todos os âmbitos sociais, como vestimentas, estilos
musicais, sexualidade, dentre outras - sendo todos estes reflexos de
comportamentos. Assim, quando o comportamento de um indivíduo não condiz
com aquilo que é esperado do grupo social-histórico pertencente, ele
normalmente é considerado louco – no sentido literal ou simbólico da palavra.
Mas o que consiste em considerar um indivíduo louco no sentido literal da
palavra? E no sentido simbólico? E o constitui verdadeiramente a loucura? É o
questionamento que perdura por todo o enredo da obra.

Vê-se que a construção da ideia da loucura é diretamente influenciada pelo


contexto histórico-social manifesto, sendo um exemplo disto a mudança da
conceituação da palavra ao longo da história. De maneira extremamente breve,
pode-se afirmar que antes de um estudo preciso sobre a mente humana,
qualquer indivíduo que manifestasse um comportamento que se divergisse dos
demais, obtinha este rótulo, como por exemplo, criminosos ou homossexuais.
Seguindo uma sequência cronológica, estes indivíduos passaram a ser
chamados de alienados mentais e a serem considerados uma parte não
pertencente da população necessitando de certa reclusão em ambientes
destinados aos mesmos, demonstrando uma forma de exclusão e disciplina
social. Com o progresso destes estudos, além da maior aceitação social das
diferentes maneiras de um individuo manifestar-se, a ideia da loucura
aproximou-se da ideia de transtornos mentais considerados graves.
Transtornos mentais os quais não deixam de associar-se à comportamentos
fora do padrão, ou seja, anormais para indivíduos que compartilham de um
pertencimento e percepção de uma mesma realidade.

Simão Bacamarte, personagem principal da obra, demonstra a sua paixão por


este assunto. O médico dedicou toda a sua vida aos estudos científicos
relacionados à mente humana, demonstrando ser apaixonado pela sua
formação teórica e prática - além de uma vontade intensa de conseguir
reconhecimento e poder na sua cidade. Assim, ele decide fundar a Casa
Verde, lugar destinado ao tratamento de indivíduos considerados loucos. Este
foi o primeiro hospício da região, colhendo diversos indivíduos, tanto da sua
cidade quanto de lugarejos próximos. Todos que estavam lá manifestavam
comportamentos inadequados ao padrão social, porém Simão percebeu que
cada um possuía suas particularidades em relação à isto, já que cada um
possuía suas próprias manias e, portanto, a sua ‘’própria loucura’’. Com isso,
Bacamarte dedicou-se - além de estudar profundamente o fenômeno da
loucura – a subdividi-las em classificações, ansiando desvendar as causas
desta e uma possível cura para tal. Deste modo, Simão visava tratar dos
residentes daquele local, dedicando todo o seu tempo à isto e deixando de lado
até a sua mulher. Para amenizar esta situação, ele ofereceu à ela uma viagem
- uma vez que estava adquirindo dinheiro com o seu trabalho – porém, sem a
sua presença, já que não podia deixar de lado os seus estudos e trabalho.
Obcecado por isto, Simão começou a enxergar qualquer comportamento como
anormal, ou seja, a considerar a maioria dos indivíduos como loucos, chegando
a internar 75% da população da sua cidade. Até mesmo a sua esposa chegou
a ficar reclusa neste lugar, pois passou a noite em claro já que estava na
dúvida de qual roupa usar em uma festa.

Como não esperado, houve uma revolta contra o Doutor, pelo fato da
indignação de alguns habitantes da cidade com determinadas atitudes que
Simão teria tomado – como, por exemplo, aprisionar radicalmente indivíduos
que não demonstravam ser loucos para a população. Assim, Simão observou
que havia algo de errado com a sua teoria, soltando todos aqueles que
estavam ali em tratamento e que foram diagnosticados pelo mesmo como
loucos. Continuando seus estudos, Simão constitui uma nova visão sobre a
loucura: já que o louco era aquele quem possuía um comportamento fora do
padrão, agora, ele afirmava que louco era quem não possuía determinado
desvio de caráter - ou seja, necessitava tratamento psicológico quem antes era
considerado normal. Assim, o alienista fica sem mais pacientes, já que
conseguiu tratar de todos, e vê que, não há mais loucos na sua cidade, exceto
ele mesmo. Deste modo, ele tranca-se sozinho na Casa Verde para estudar
sua própria loucura, já que se considera o único anormal uma vez que apenas
ele possuía uma personalidade perfeita, sem desvios de caráter e defeitos. Ele
morre no local, demonstrando que não obteve sucesso em curar-se através do
seu método terapêutico.

Implicitamente vê-se na obra uma critica social à concepção do homem sobre a


loucura, além de aspectos como dominação, poder e cientificismo. Simão, um
homem que dedicou toda a sua vida ao estudo cientifico, tem atitudes
equivalentes àqueles que utilizam do saber provido da ciência como absoluto e
superior para a compreensão da realidade. Ao possuir esta concepção sobre o
seu suposto saber, o individuo usufrui do mesmo como forma de poder e,
consequentemente, acha-se apto a exercer dominação sobre os demais.
Assim, a dominação mostra-se significativa na obra, já que é uma forma de
disciplinar e ajustar os indivíduos dentro de um padrão social – reflexo da
conduta de Simão na Casa Verde. Deste modo, a maioria dos indivíduos é
induzida a adequar-se ao padrão comportamental pré-estabelecido, e aquela
minoria que não se adapta ao mesmo, é considerada ‘’errada’’ e ‘’anormal’’ – já
que o certo é ‘’ser como os demais’’. Assim, a obra mostra um aspecto
essencial para o assunto: a questão de cada ser possui as suas
particularidades. Mesmo agrupando todos os indivíduos como loucos, Simão vê
que cada um possui a sua singularidade. Desta forma, se cada ser possui suas
diferenças em relação ao outro, ou seja, possui o que na obra foi denominado
desvio de caráter, todos seriam loucos? É uma das questões essenciais que
Simão questiona-se ao observar isto.

Assim, ele observa que se esta percepção sobre a loucura fosse correta, mais
de ¾ da população da sua região necessitaria de internação, o que de certa
forma era incoerente. Se o padrão pré-estabelecido era baseado na maioria,
ele observou que esta maioria que apresentava comportamentos considerados
pelo mesmo como inadequados. Assim, reformulando a sua teoria, ele
inverteu-a, afirmando que a loucura faz-se presente naqueles indivíduos que
possuem comportamentos totalmente condizentes com o esperado
socialmente, ou seja, não possuem o que ele denominou de desvio de caráter.
Através desta teoria, ele observou que todos então estariam curados, já que,
por meio da sua percepção, todos os indivíduos possuíam comportamentos
considerados inadequados – exceto ele mesmo. Simão demonstra, portanto,
uma atitude usual do ser humano: só se considera certo e normal aquilo que se
associa às suas percepções e valores, e portanto, ao próprio comportamento.
Assim, dentro da visão do próprio individuo ele quem age certo, como o
esperado e adequado, sendo o reflexo disto, portanto, a sociedade, ou mais
precisamente, os grupos sociais. Assim, indivíduos que compartilham desta
mesma percepção, constituem grupos sociais visando – conscientemente ou
não – formas de dominação e poder sobre os demais, apesar de, mesmo não
percebendo, possuírem suas particularidades. Explicita-se isto na questão de
que quanto maior o progresso civilizatório, maior a ‘’força’’ que o grupo possui,
e assim, maior a necessidade de inserir indivíduos no padrão dominante e,
consequentemente, aumenta a população considerada ‘’inadequada’’ ou
‘’insana’’.

Assim, vê-se que a concepção da loucura dá-se prioritariamente por estes


aspectos - não apenas na obra. Nos dias atuais, pode-se ver o reflexo dos
procedimentos tomados por Simão na crescente necessidade - daqueles que
detém um suposto saber - de ‘’patologizar’’ os indivíduos. Observa-se que no
contexto histórico da obra, havia poucos estudos sobre a mente humana, e a
hospitalização era a prática considerada terapêutica predominante. Assim, a
Casa Verde reflete em alguns pontos a barbariedade da internação vista na
história manicomial. O tratamento então caracterizava-se muito mais pela
constituição de uma sociedade disciplinada, através da exclusão dos
considerados ‘’loucos’’, até que demonstrassem comportamentos condizentes
com o esperado – o que normalmente não ocorria, seja pelo método
terapêutico utilizado, seja pelo resultado ‘’curativo’’ previsto. Hoje, com o
progresso destes estudos, os especialistas em saúde mental ainda possuem
algumas necessidades parecidas com as do Doutor Simão. São inúmeras as
classificações contidas no CID referente à transtornos psíquicos, sendo que
maior parte da população hoje, enquadra-se em um destes. Qual a base para
esta classificação? A personalidade de um Doutor Simão atual? Seria a
considerada personalidade normal e adequada? Mas normal e adequada para
quem? É um questionamento que perdura, principalmente pela singularidade
contida em cada um, sem exceção. Ademais, vale ressaltar que no contexto
social-histórico presente, a loucura, em termos técnicos é mais associada à
psicose. De maneira superficial, a psicose pode ser caracterizada como um
transtorno em que o individuo não possui plena noção da realidade e
consequentemente, possui comportamentos considerados socialmente
‘’estranhos’’, além de ser associada a causas neurológicas.

Com isso, vê-se que agrupar, estereotipar e classificar comportamentos, e


portanto, indivíduos é uma necessidade de organizar e disciplinar a sociedade,
sendo o diagnóstico provido dos especialistas em saúde mental um reflexo
disto. Esta necessidade social manifesta-se presente desde a antiguidade,
sendo a loucura apenas mais uma forma de caracterização e agrupamento.
Apesar da designação da palavra sofrer alterações ao longo do tempo, um
aspecto crucial sempre foi preservado: a loucura é sempre associada a uma
personalidade e/ou comportamento inadequado socialmente. Mas a constante
necessidade do Doutor Simão em conhecer profundamente o fenômeno da
loucura e defini-la precisamente, deveria então atingir os cientistas atuais? Não
apenas em Itaguaí - mas em todas as cidades, regiões e sociedades - vê-se
que não há um ser humano se quer que não possua uma mínima parte da sua
personalidade que não compatibilize com os valores e princípios do seu grupo
social pertencente. E assim mais uma vez é retomado o questionamento: todos
então são loucos? Quais os critérios para caracterizar alguém como louco? A
obra induz esta reflexão do inicio até depois do seu fim, do mesmo modo em
que este texto iniciou-se com essas e irá finalizar sem uma resposta concreta.
Se perceber a loucura como um agir diferente do padrão, talvez a loucura seja
uma característica interessante de se possuir? Não se sabe. Talvez a
verdadeira loucura seja não reconhecer a singularidade de cada um, a
imperfeição do ser em relação ao pré-estabelecido socialmente. Talvez ainda,
o louco pode ser aquele que possui a necessidade de poder e dominação.
Ainda assim, talvez o Doutor Simão conseguiu validar o que tanto queria: a sua
teoria. Talvez louco mesmo era ele, representação daquele que se considera
perfeito e que espera comportamentos dos demais condizentes apenas com o
seu agir. Não se sabe. A loucura até os dias atuais deixa brechas para que
cada um a conceitue, e talvez, a si mesmo caracterize – qualificando-o ou não.

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