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DÍZIMO: LIBERDADE OU SERVIDÃO

1. Introdução

A ênfase na pregação do dízimo nas igrejas reformadas e evangélicas se apresenta


como um grande obstáculo e uma contradição explícita da liberdade cristã. Tal pregação e
entendimento equivocado da historicidade do dízimo é responsável por uma religiosidade
vazia que eleva o trivial ao status de especial. O culto cristão que tinha antes como objetivo
maior a glorificação de Deus, parece mais uma casa de investimento, onde as pessoas vão
investir dinheiro de seu trabalho suado e em troca alcançar bençãos (lucros). E tudo isso sob o
disfarce de contribuir para a obra de Deus.
Neste artigo faremos uma crítica sobre tal “doutrina” nas igrejas cristãs. E para isso
utilizaremos como referência o texto de Hernandes Dias Lopes, publicado em seu site 1.
Utilizamos este texto porque o mesmo foi redigido pelo autor para resolver algumas
discussões no seio da igreja sobre o assunto. Um outro motivo é que esse texto é um resumo
da ideia doutrinária das igrejas cristãs Reformada e Evangélica atuais a respeito dízimo.

1 LOPES, Hernandes Dias. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada. Palavra da Verdade, Vitória/ES, fev.
2013. Disponível em <http://hernandesdiaslopes.com.br/2013/02/dizimo-uma-pratica-biblica-a-ser-
observada/#.VPCHpvnF9j8>. Acesso em: 27 fev. 2015.
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2. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada2

O que motivou Lopes a escrever este artigo são os vários comentários em redes sociais
acerca da prática do dízimo. O que mais fez o reverendo lançar mão de seu computador e
escrever algumas linhas foi a denúncia de pessoas em dizer que pastores ludibriam os fiéis
com a defesa da prática do dízimo para se locupletarem com o auxílio da autoridade bíblica. O
próprio Lopes admite que no meio cristão existem pastores que se aproveitam do dízimo para
se enriquecerem, mas isso não anula a doutrina bíblica do dízimo. E em sua defesa e das
igrejas reformadas – mais propriamente a igreja presbiteriana – o reverendo faz uma
separação entre “nós” e “eles”, da seguinte maneira:
Não subscrevemos os muitos desvios de igrejas que, laboram em erro, ao criarem
mecanismos místicos, sincréticos e inescrupulosos para arrecadar dinheiro,
vendendo água fluidificada, rosa ungida, toalha suada e até tijolo espiritual. Essas
práticas são pagãs e nada tem a ver com ensino bíblico da mordomia dos bens. O
fato, porém, de existir desvio de uns, não significa que devemos afrouxar as mãos,
no sentido de ensinar tudo quanto a Bíblia fala sobre dízimos e ofertas. (LOPES,
2013)3

Lopes identifica nas igrejas neopentecostais uma banalização do dízimo. Sem dúvida
os mecanismos denunciados pelo reverendo são imorais, mas acusar a imoralidade não o faz
ser moral.
Há tempos as igrejas reformadas e, não somente, o catolicismo, vem perdendo
membros para as igrejas neopentecostais. E já existe explicitamente na internet uma reação
por parte de teólogos reformados para combater o avanço neopentecostal. De maneira mais
inteligente, os reformados viram que precisam atacar naquilo que fez muitos membros
trocarem de igrejas e não apenas enriquecer teologicamente as suas escolas bíblicas, ou seja,
serem mais pragmáticos sem deixarem de ser conservadores em se tratando de submissão
bíblica (sola scriptura). Por isso a crítica de Lopes visa enfraquecer o perfil místico-pagão do
neopentecostalismo, mas protegendo a pureza da prática do dízimo. Dessa forma o teólogo
calvinista aponta o erro óbvio e a liturgia pagã dos cultos neopentecostais para aqueles que
outrora abandonaram a igreja reformada. Com o auxílio das redes sociais sua mensagem é
transportada a milhares de fiéis e assim, esses podem refletir melhor sobre a prática do dízimo
e, principalmente, sobre a prática nada cristã de sua nova denominação.

2 Usamos o próprio título do artigo de Hernandes Dias Lopes neste primeiro capítulo por motivos óbvios, ou
seja, este capítulo trata da visão do autor.
3 Neste capítulo o texto que nos referimos é o mesmo apresentado na nota de rodapé 1.
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Lopes continua com sua defesa da prática do dízimo agora fundamentando-se no


Antigo Testamento. Primeiro defende que a prática do dízimo antecede a Lei e apresenta o
ocorrido entre Abrão e Melquisedeque (Gn 14:18-20). Argumenta aqui contra aqueles que não
dizimam por entenderem que esta prática é estritamente judaica e não tem relação com o
cristianismo. Em seguida apresenta a sanção do dízimo na Lei, aquela prática antiga agora se
tornara uma ordenança divina (Lv 27:32). E aqui o argumento contra os não-dizimistas
obviamente torna-se mais severo, pois agora é pecador todo aquele que não dizima. Em
continuidade ao seu pensamento, nosso teólogo indica que toda a Bíblia ratifica o dízimo,
inclusive o Novo Testamento (Mt 23:23). Lopes apela para a autoridade de Jesus e afirma que
o mesmo sancionou o dízimo. E novamente seu julgamento àqueles que insistem na não
observância desta ordem divina é severo, pois tornam-se ladrões de Deus.
O texto do reverendo presbiteriano é um bom resumo do que pensa a maioria dos
pastores reformados e evangélicos tradicionais. No próximo capítulo analisaremos os
principais pontos de defesa de Lopes e colocaremos à prova a ideia reformada e tradicional do
dízimo. Partiremos da questão: - As fundamentações bíblicas utilizadas por Lopes são válidas
para a defesa da prática do dízimo no meio cristão? E tentaremos responder a seguinte
questão: - Qual é o verdadeiro entendimento da doutrina do dízimo?

3. Uma análise crítica da ideia reformada do dízimo

A nossa tentativa aqui é encontrar algum paralelo entre o dízimo da Lei e o dízimo da
igreja hodierna. Pois para a maioria dos teólogos reformados e evangélicos há esse paralelo.
O dízimo era uma obrigação da Lei Mosaica e tinha como objetivo “o sustento dos
sacerdotes e levitas ou do rei”4 A ideia do hebreu antigo era que Deus sendo dono e criador de
toda a terra nada mais justo que Lhe ofertar as primícias da colheita 5. Interessante
observarmos que a prática do dízimo não seguia um padrão preestabelecido que jamais
poderia ser modificado, mas em Deuteronômio 12 podemos ver algumas variantes do dízimo.
Como também afirma Shulam:
A Torá ordenou o povo a trazer os sacrifícios e a dar vários diferentes tipos de
dízimos. Eles tinham um dízimo para os sacerdotes e levitas e também tinham que
deixar algumas de suas colheitas no campo para alimentar os pobres. Os israelitas
4 BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 1977, p.407.
5 Ibidem, p.407.
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antigos tinham diferentes tipos de doações6

Parece que em nossas igrejas hodiernas o dízimo se tornou muito mais do que a
própria Lei não diz que ele seja. Aquilo que Lopes acusa no neopentecostalismo parece
ressoar nas paredes reformadas e evangélicas. Aquilo que Lopes acusa de misticismo pagão
nos cultos neopentecostais, parece-me que o mesmo acontece em ambiente reformado, porém
com uma certa elegância erudita.
Lopes tem a preocupação sincera de seguir os ensinamentos bíblicos, no entanto essa
preocupação tem mais ênfase quando se trata do dízimo. Quando esse é banalizado pela
liturgia neopentecostal ou quando é criticado pelos não-dizimistas, o nosso teólogo se arma
com alguns versículos isolados para defender a sua pureza. Analisaremos agora o versículo
usado como fundamento para a sanção do dízimo por parte de Jesus, usado por Lopes.
Mt 23:23
Não é correto citar este versículo isolado para entender que Jesus sancionou o dízimo.
Mateus 23 consiste nos “ais” de Jesus. Há uma sequência muito rica que apresenta o Senhor
admoestando seus ouvintes. No caso em particular do versículo 23 é necessário ler os
versículos seguintes. O versículo 24 é fundamental e serve de resumo enfático do versículo
23, quando Jesus diz: “Condutores cegos! Que coais um mosquito e engolis um camelo”.
Lopes parece ignorar que Jesus está fazendo comparações. Ignora que Jesus está usando a
própria Lei contra aqueles que dizem ser zelosos dela. Se a Lei é tão importante, por que
vocês apenas praticam as coisas menores e ignoram as maiores? E no versículo utilizado pelo
nosso teólogo, o dízimo é a coisa menor, a coisa simples, enquanto que coisas maiores estão
sendo negligenciadas cotidianamente e nada se faz para evitá-las. Como concorda Carson:
“Jesus não condena a observância escrupulosa dessas coisas [dízimos], mas insiste que o
alvoroço com elas (…) é coar um mosquito enquanto engole um camelo” 7. Jesus não está
sancionando o dízimo, mas revelando a falsa religiosidade farisaica. Os fariseus
“Transformavam a religião em meras observâncias escrupulosas”8. Jesus está apresentando
níveis hierárquicos que devem ser respeitados, da mesma forma ele fez com o Sábado.
Comparar o dízimo com um mosquito em relação a um camelo não me parece a sanção do
6 SHULAM, Joseph. O dízimo e o Novo Testamento. Ministério Ensinando de Sião, Belo Horizonte/MG, fev.
2013. Disponível em: <http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/o-dizimo-e-o-novo-testamento-2>
Acesso em 28 fev. 2015.
7 CARSON, D. A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p.558.
8 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. V.1. São Paulo: Hagnos, 2002,
p.548.
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dízimo, mas que este é insignificante diante de outros temas que negligenciamos.
Infelizmente, os teólogos reformados e evangélicos coam mosquitos e engolem camelos.
Agem da mesma forma que os fariseus, dando mais importância às pequenas coisas e
doutrinando a igreja a uma ritualística vazia de valores. No clássico comentário de São
Jerônimo, no versículo em questão, Mateus expõe aos judeus que a Lei deveria ser observada
da maneira que Jesus a interpretou9.

9 JERÔNIMO, SÃO. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. Santo
André: Academia Cristã, 2011, p.202.
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4. Conclusão

É claro que esse tema é muito mais complexo e jamais será esgotado num breve
artigo. Entendemos que a compreensão correta do dízimo é muito importante para o
desenvolvimento da igreja. Só em saber que Jesus o equipara com coisas insignificantes da
Lei diante de coisas maiores e urgentes e contudo vemos uma ênfase ao dízimo nas igrejas
hodiernas é para ficarmos, no mínimo, atentos com os contrastes teológicos. Em vez de
estarmos preocupados com a prática do dízimo deveríamos estar ocupados com as práticas
mais nobres da Lei e dos ensinos de nosso Senhor. Caso a preocupação do dízimo se volte
para seu objetivo primordial, a saber: o sustento dos sacerdotes, das viúvas e dos órfãos, ele se
torna algo importante a ser observado, caso contrário não passa de discurso malicioso para
assegurar conquistas financeiras de uma liderança que dá mais valor ao “mosquito”.
Conforme sinalizamos no início deste artigo, usaremos essa conclusão como uma
proposta de como deveria ser o proceder das igrejas cristãs acerca do recolhimento do dízimo.
Sabe-se em todo Antigo Testamento que o dízimo tinha uma única função, ou seja, uma
função social. O objetivo do dízimo era suprir as necessidades dos desamparados. Esses
desamparados consistiam de viúvas, órfãos e pobres em geral (aqui excetuando aqueles
pobres por vadiagem). Se as igrejas cristãs insistem em cobrar o dízimo chamando de ladrões
de Deus aqueles que não são fiéis dizimistas, se fundamentando nas escrituras
veterotestamentárias, então que façam uso dele da mesma maneira. O sacerdote para ter
direito ao seu pagamento por meio do dízimo deverá viver integralmente ao serviço divino,
não podendo ter nenhum outro tipo de fonte de renda. Deverá fazer um mapeamento da igreja
e catalogar as famílias pobres e suprir suas necessidades básicas. Caso isso não seja feito, a
acusação do teólogo volta-se contra ele. Se o nosso teólogo recebe salário do dízimo e ainda
possui algum tipo de fonte de renda está pecando. Se existem famílias com necessidade na
igreja e o dízimo não é usado para saná-las, a igreja está pecando.
Contudo, não elevamos “mosquitos” a “camelos”. Entendemos que a igreja cristã está
fundamentada na liberdade. Não na liberdade mundana, mas na liberdade como estado de
espírito, como mentalidade. Liberdade doada e não conquistada pela igreja. Liberdade cedida
por Cristo. Diferente da liberdade existencialista que se apresenta como condenação, mas
liberdade mesmo, liberdade real, livres da obrigação da Lei. O cristão não tem amarras
doutrinárias, não tem limitações denominacionais e nem está sujeito a uma hierarquia
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inventada pela vontade de poder humana.


Sabemos que a igreja tem que cumprir seus compromissos financeiros, pois vivemos
em contexto bem diferente de nossos irmãos hebreus da antiguidade. Devemos usar nossos
conhecimentos e praticar a fé em Deus para desenvolvermos uma forma de coleta que não
seja contrária aos ensinamentos de nosso Senhor e que não tenha em seu pano de fundo
ameaças. A nossa proposta é que a igreja deva ser sustentada pelas ofertas livres dos irmãos. E
não pela imposição de um mandamento que não existe e não tem paralelo com a mensagem
da liberdade cristã. A igreja tem necessidades e essas necessidades devem ser sanadas pela
contribuição voluntária de sua membresia discutida em assembleia e não em jornadas
teológicas que tentam impor doutrinas inventadas.
Enfim, o dízimo defendido pela maioria dos pastores e teólogos cristãos têm servido
de embaraço para a prática da liberdade cristã. Parece-nos que a defesa exaustiva e a
insistência pela observância de tal prática faz com que pastores e teólogos recaiam no erro dos
judaizantes da igreja do primeiro século. Como denunciava o apóstolo dos gentios: “E [isto]
por causa dos falsos irmãos que se intrometeram, e secretamente entraram a espiar a nossa
liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos porém em servidão” (Gl 2:4). Todo cristão
deve resistir a essa tentativa desastrosa e lamentável dos líderes eclesiais de recolocar a igreja
em servidão e mais uma vez Paulo alerta: “Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos
libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão” (Gl 5:1). Apelamos aos
cristãos que não se afastem de seu chamado: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à
liberdade. Não [useis] então da liberdade para [dar] ocasião à carne, mas servi-vos uns aos
outros pelo amor” (Gl 5:13). Antes de cair na servidão da fidelidade ao dízimo, seja fiel a
Deus.
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5. REFERÊNCIAS

BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 1977.


CARSON, D. A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. V.1. São Paulo:
Hagnos, 2002.
JERÔNIMO, SÃO. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos
sistemáticos. Santo André: Academia Cristã, 2011.
LOPES, Hernandes Dias. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada. Palavra da Verdade,
Vitória/ES, fev. 2013. Disponível em < http://hernandesdiaslopes.com.br/2013/02/dizimo-uma-pratica-
biblica-a-ser-observada/#.VPCHpvnF9j8>. Acesso em: 27 fev. 2015.
SHULAM, Joseph. O dízimo e o Novo Testamento. Ministério Ensinando de Sião, Belo
Horizonte/MG, fev. 2013. Disponível em: <http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/o-dizimo-e-
o-novo-testamento-2> Acesso em 28 fev. 2015.
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