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A CARTA TOPOGRÁFICA DA CIDADE DO PORTO DE 1892— UMA BASE

CARTOGRÁFICA PARA A GESTÃO URBANÍSTICA MUNICIPAL **


por Rui Tavares *

* Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto.

** Este texto tem por base o que incorporou o grupo de textos elaborados expressamente para o catálogo da
exposição comemorativa do centenário da edição da Carta Topográfica da Cidade do Porto de 1892,
promovida pelo Arquivo Histórico Municipal do Porto (A.H.M.P.) (Uma Cartografia Exemplar: O Porto em
1892. Porto, Câmara Municipal) e que acompanhou o VI Colóquio Ibérico de Geografia, organizado pelo
Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1992.

Foi agora revisto, actualizado nas referências e anotações bibliográficas e, sobretudo, ampliado em algumas
abordagens do domínio disciplinar da história urbana, que lhe introduziram maior rigor, mas que, no
essencial, mantém a perspectiva que já se abordava – a da gestão urbanística municipal – por se manter
absolutamente pertinente, já que esta base cartográfica foi a que se manteve como único suporte
representativo rigoroso na escala de 1:500 do espaço urbano do Porto até meados do século XX, e foi
sempre o modelo para actualizações que se reclamaram pela necessidade de elaboração de planos
urbanísticos, cujo estudo se iniciou com rigor precisamente nos anos 40/50 do século XX.

Quanto ao rigor da leitura histórica dos elementos representados na Carta e referenciados como exemplares
de uma aproximação compreensiva e contextual da história urbana do Porto, ao ano da sua edição, esses
mantém igualmente a actualidade do texto elaborado em 1992 e, por essas razões, se considerou como base
indispensável para a nova edição a incorporar neste catálogo.

1. A representação cartográfica foi um dos processos que o Homem desenvolveu


para facilitar a apreensão da complexidade e interdependência do espaço natural e do
espaço humanizado, através de visões de conjunto que pudessem ser comunicadas. Em
cada momento histórico é possível referenciá-la profundamente articulada com os
progressos económicos e sociais, políticos e tecnológicos, mas é durante os séculos
XVIII e XIX que a representação cartográfica regista uma decisiva evolução técnica e
ultrapassa os meios profissionais restritos onde circulavam um certo número de cartas
utilitárias — as cartas celestes, as cartas marítimas ou as cartas militares — para afirmar
as preciosas vantagens de uma cartografia prática, moderna e analítica. Vantagens essas
que se revelariam na interpretação rigorosa e no controlo mais racional do espaço,
contribuindo para uma maior compreensão e uma melhor gestão das actividades
humanas sobre o território1.
Desde os finais do século XVII que a reflexão sobre a representação gráfica
“objectiva” e “racional” vinha acompanhando o desenvolvimento científico e
tecnológico, afirmando-se como o modo privilegiado para registar e pensar a realidade.
Através de relações de semelhança e de medida entre o real e a imagem do real, a
representação gráfica rigorosa permite então dispor de um código verificável que a
liberta da interpretação subjectiva e a impõe como científica 2. A representação

1
Ver AAVV — Cartes et Figures de la Terre. Paris, centre Georges Pompidou, 1980.
2
Ver SAVIGNAT, J. M. — Dessin et architecture du moyen âge au XVIII° siècle. Paris, Ecole Nationale
Supérieur des Beaux-arts, 1983; e AAVV — La Cartografia per I’urbanistica e I’architettura. Milão, Clup,
1985.
cartográfica da segunda metade do século XIX baseia-se em dois importantes recursos
técnicos que a distinguem da precedente: por um lado, a representação topográfica
através da curva de nível, após a fixação da referência ao nível do mar estabelecida em
França nos inícios de oitocentos; por outro, a integração da componente da propriedade
através da representação do parcelar — o cadastro — fazendo convergir no mesmo
plano a linguagem figurativa e a linguagem numérica. Ambas as conquistas técnicas
impuseram, em definitivo, a cartografia com uma base instrumental imprescindível à
gestão física, económica e política do território, especialmente do espaço urbano. Neste
âmbito, a representação topográfica através da curva de nível significa, do ponto de
vista altimétrico, um salto qualitativo muito importante para o conhecimento da
realidade urbana, possibilitando relacionar todas as suas partes e dar resposta aos novos
problemas infraestruturais da cidade (abastecimento de água, saneamento, novas
estruturas ferroviárias e viárias, etc.), que se generalizarão pelas necessidades do
crescimento urbano.
A cartografia, em especial a da cidade, torna-se cada vez mais relevante pelas
duas funções complementares, ora registando o existente, ora comunicando o que se
projecta existir; apresenta-se, assim, como uma base indispensável ao planeamento
urbanístico em afirmação desde meados do século XIX. É o conjunto destes aspectos
que distingue o processo de que resultou a Carta Topográfica da Cidade do Porto de
1892, já que ela veio a ser o primeiro levantamento da cidade por curvas de nível,
constituiu uma excelente base figurativa do parcelar urbano da época e, além disso, foi a
base cartográfica rigorosa que apoiou toda a gestão urbanística municipal no final do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
2. As primeiras representações cartográficas da cidade do Porto, conhecidas até
hoje, realizaram-se durante a primeira metade do século XIX. Não são levantamentos
topográficos científicos, pois não se encontram referidos a qualquer nivelamento,
embora tratem com rigor os aspectos locativos e da identidade dos elementos que
constituíam a cidade, principalmente edifícios singulares e espaços viários.
Tendo em conta a origem dessas cartas, os seus objectivos e as suas
características, é possível distinguir dois grandes grupos. Um primeiro grupo de cartas
intimamente relacionadas com episódios militares — sejam as invasões francesas, seja o
posterior Cerco do Porto — marcadas pela influência da engenharia militar e que, a par
do rigor já referido, procuram salientar os pontos topográficos considerados
militarmente estratégicos. Um segundo grupo de cartas mais influenciadas pela
necessidade de apoiar determinados aspectos da vida urbana, como por exemplo a
actividade portuária ou a gestão do espaço urbano, elaboradas já não exclusivamente
por engenheiros militares, mas por outros técnicos, nomeadamente arquitectos.
Entre os exemplares, de um e de outro grupo, considerados mais significativos,
podem referir-se: no primeiro conjunto — a “Planta do Porto e suas Visinhanças”,
litografada em Londres, aguarelada é conhecida como a carta do Cerco do Porto — ou a
célebre planta redonda, intitulada “Cidade do Porto. Dedicado ao III.mo e Ex.mo Senr.
Brigadeiro Gen. I Sir Nicolao Trant. Commendador da Ordem da Torre e Espada,
Encarregado do Governo das Armas do Partido do Porto pelo George Balck. Assistente
do Quartel Mestre General do Exército Britânico”, litografada em Londres em 1813;
no segundo conjunto — “o Plano da Cidade do Porto para este servir aos novos
alinhamentos projectados. Praças precisas na extensão do mesmo plano, para
igualmente servir de governo à iluminação da cidade...”, em cor, desenhada por José
Francisco de Paiva e anterior a 1824, ano da morte do autor — a “Oporto”, que inclui
um pequeno registo “The Environs of Oporto” e uma vista “View of Oporto from Torre
da Marca”, por W. B. Clarcke, em cor e litografada em Londres em 1833 — a “Planta
Topographica da Cidade do Porto. Aonde se vêem exactamente marcados todos os
Edifícios Praças publicas e ruas novamente abertas, bem como alguns projectos
aprovados pelas Authoridades Municipaes, para maior comodidade dos seus habitantes
e beleza da mesma Cidade. Ampliada e corrigida a Graphometro em 1839 por J. C.
Lima” e a “Planta da Cidade do Porto. Desenhada em Lisboa em 1844 por Frederico
Perry Vidal”.
Aquelas últimas cartas inscrevem-se numa política mais ampla de controlo do
desenvolvimento do espaço urbano; contudo, não só se mantém as características da
cartografia não científica, como só se engloba a área mais urbanizada. Por outro lado, e
apesar de na sua maioria aqueles levantamentos dependerem mais do poder central do
que do poder local, não é clara a sua articulação com os trabalhos geodésicos do reino
reimpulsionados em 1834, culminando na aprovação dos relatórios apresentados por
Filipe Folque, em 1840; muito menos, ainda, com a problemática do cadastro
topográfico parcelar, cuja difícil institucionalização foi, porém, reequacionada após o
triunfo definitivo da Revolução Liberal e estudada por uma comissão presidida por
António José de Ávila, publicando-se os seus relatórios em 1848, que coligiam os
modelos adoptados «nos países mais adiantados na ciência administrativa»3.
3. Já durante os anos 50, o programa de desenvolvimento do país empreendido
pela política de Regeneração altera o quadro da gestão do território, acentuando a
necessidade de um conhecimento mais rigoroso, sobretudo das cidades. A criação do
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em 1852, integrando a Direcção
dos Trabalhos Geodésicos e Topográficos, abre perspectivas de um trabalho coordenado
e centralizado ao nível das políticas de actuação sobre o território.
Abre-se então uma conjuntura de “melhoramentos”, que não se acha ainda
totalmente investigada mas parece preencher as décadas de 50 e 60, dominada por um
programa que procura transformar e ampliar as vias de circulação no país e que abrange,
igualmente, as cidades e as vilas onde as consequências desse programa se fazem sentir
mais directamente. Nesta conjuntura, são também adoptadas medidas de carácter
administrativo que visam contribuir para um maior conhecimento do território, sua
ocupação e organização, bem como garantir uma maior eficácia da política de
transformação. Recorde-se a criação da Comissão Central de Estatística do Reino, em
1857, que empreende o primeiro recenseamento sistemático da população publicado em
1864; ou, ainda, a publicação do Código Administrativo, em 1867, que consagra a
política de apropriação particular dos terrenos baldios. Já no que respeita aos
“melhoramentos urbanos”, eles vieram a ser enquadrados pelo Decreto de 31 de
Dezembro de 1864 e publicado no Diário de Lisboa de 13 de Janeiro de 1865. Assim se
procurava disciplinar diversas acções e iniciativas já implementadas por alguns
municípios, convergindo na elaboração de “Planos Gerais de Melhoramentos” para as
principais cidades e vilas do reino. Entre essas iniciativas podem citar-se a do município
de Guimarães, que fez elaborar em 1863 um “Plano de Melhoramentos” por encomenda
ao Engenheiro Manuel de Almeida Ribeiro, professor de arquitectura civil e naval da
Academia Portuense de Belas-Artes4; ou a do próprio município do Porto, que desde
3
ÁVILA, António José de — Relatório sobre o cadastro. Lisboa, Imprensa Nacional, 1848. Sobre estes
aspectos ver GUNTHER, Anni e TAVARES, Rui — A representação gráfica rigorosa como instrumento,
técnica e linguagem da gestão espacial - a institucionalização do cadastro topográfico parcelar, texto
incluído no Volume de Homenagem ao Professor Artur Nobre de Gusmão, editado pelo Departamento de
História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. AAVV —
Estudos de Arte e História. Homenagem a Artur Nobre de Gusmão. Col. Artes / História, Veja, 1ª ed.,
Assírio Bacelar, 1995, pp. 325-337.
4
Compõe-se de 13 folhas e um preâmbulo em que foram estabelecidas as distâncias trigonométricas e
encontra-se no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Guimarães. Em 1869 a câmara nomeou uma
1856 procurava obter da Direcção Geral de Obras Públicas as condições técnicas para o
estudo «dos melhoramentos que devem efectuar-se»5 e que, após a publicação do
Decreto de 1864 e por solicitação governamental, nomeou, em Maio de 1865, o seu
engenheiro civil Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa para fazer parte da «Comissão que
há-de elaborar o plano de melhoramentos do Porto»6.
Mas esta dinâmica de planeamento urbanístico teria, necessariamente, de ser
acompanhada (ou antecedida) de levantamentos topográficos rigorosos, que registassem
as correspondentes realidades urbanas e apoiassem a projectação dos respectivos
“melhoramentos”. A criação, em 1869, de um organismo como a Direcção-Geral dos
Trabalhos Geodésicos, Topográficos, Hidrográficos e Geológicos do Reino parecia ser a
entidade que deveria coordenar esses trabalhos, já que se tratava da primeira instituição
civil a centralizar toda a actividade cartográfica. Na prática, a acção e o esforço
económico dos municípios foi muito relevante. Embora sem uma inventariação
exaustiva, parecem significativos os casos de Lisboa (1855 e 1871), Viseu (1863),
Viana do Castelo (1868-1869 e datada de 1882), Coimbra (1873) ou Braga (1884-
1885).
4. No Porto, o problema é exposto ao Governo pela Municipalidade logo em
18567, mas a solicitação não foi atendida, argumentando-se com a falta de verba e com
o facto «de que o eventual deferimento de tal pedido originaria muitas outras
reclamações de outros municípios»; o Governo, porém, autorizaria a requisição de
pessoal se a Câmara Municipal se prontificasse a pagar os vencimentos8. Essa
circunstância motivaria o engenheiro Carlos de Pézerat a oferecer-se à Câmara, em
1859, para executar o levantamento da Carta. A Câmara Municipal do Porto — que não
aceitou a disponibilidade de Pézerat apesar da recomendação de Filipe Folque, Director
dos Trabalhos Geodésicos do Reino — viria a abrir concurso, cerca de 10 anos mais
tarde, com um programa publicado no Diário do Governo de 20 de Setembro de 1869,
após ter recebido do Instituto Geográfico o processo relativo à triangulação da cidade
solicitado em 18629.
No programa, elaborado pelo engenheiro civil da Câmara, refere-se a escala a
que deveria obedecer o levantamento (1:500) e a área a respeitar: «na 1.ª secção
compreenderá o terreno incluído dentro da linha de circunvalação da cidade, e bem
assim a margem direita do rio Douro a jusante da cidade até cerca de 200 metros de
distância ao norte da estrada marginal, que corre paralela à mesma margem, e a parte
povoada da villa de S. João da Foz, a qual será limitada pelos pontos trigonométricos
— Sobreiras, Olivaes, Cunha 1ª, Senhora da Luz e Carreiros; na 2.ª secção
compreenderá o terreno dos suburbios da cidade, parte da freguesia de Lordelo do Oiro,

“comissão de Melhoramentos”. Ver Guimarães do Passado e do Presente. Guimarães, 1985 e OLIVEIRA,


Manuel Alves de — Guimarães numa resenha urbanística do século XIX.
5
Pedia-se a nomeação de um Engenheiro que seria «encarregado.. do projecto dos melhoramentos.., e
de uma linha de circunvalação da cidade»; A.H.M.P., Copiador das representações a Sua Magestade, ao
Governo, etc., L.° 2, fl. 60 v.°.
6
A.H.M.P., Copiador do Governo Civil, L.º 6, fl. 240 v.º; ver também as Próprias do Governo Civil, L.º 111,
fl. 41.
7
Ver nota 5; o engenheiro nomeado deveria encarregar-se do levantamento da planta e nivelamento da
cidade.
8
A.H.M.P., Próprias do Governo Civil, L.º 92. fl. 186.
9
A.H.M.P., Copiador das representações a sua Magestade, ao Governo, etc., L.º 2, fl. 127. A despesa
desse trabalho ficou a cargo da municipalidade.
os suburbios da villa de S. João da Foz, e a margem esquerda do rio Douro, desde a
Pedra Salgado até a Pedra do Cão».
A área abrangida pelo levantamento perfazia um total de 3:150 hectares e já não
se resumia às zonas mais urbanizadas; posteriormente, a área foi ampliada para 3:975
hectares, sensivelmente até ao limite da nova estrada da circunvalação, procurando
englobar o território sob administração municipal.
Impunha-se ainda um nivelamento rigoroso, absoluto e relativo de 2 em 2
metros, bem como a representação por massas distinguindo os edifícios dos terrenos,
em ambos diferenciando os de domínio público, estatal, corporativo ou particular.
Relativamente aos terrenos da parte não edificada, deveria diferenciar-se aqueles «em
que se dá qualquer espécie de cultura d’aqueles em que a não houver por estarem
applicados a outros usos».
As propostas apresentadas a concurso foram abertas em sessão da Câmara de 21
de Outubro de 186910, constando as de: Bartholomeu AchilIes Dejante, propondo-se
tomar a referida empresa sem modificações ao programa pelo preço total de 2.800$000
reis p/hect.; J. C. Chelmich, propondo-se executar a carta, com modificações ao
programa, pelo preço total de 7.800$000 reis p/hect.; Carlos Pézerat, também com
modificações ao programa e um preço de 8.600$000 reis p/hect.; João Joaquim de
Matos — José Augusto Correa de Barros — António Maria Kopke de Carvalho, sem
modificações ao programa e um preço de 9.700$000 reis p/hect.; e Frederico Perry
Vidal — Manuel do Couto Guimarães, sem modificações ao programa e um preço de
1O.000$000 reis p/hect.
Os trabalhos viriam a ser adjudicados a Bartholomeu Achilles Dejante, uma vez
que se tratava da proposta mais favorável economicamente11. Tão favorável que gerou
desconfiança em alguns dos concorrentes e a equipa de Joaquim de Matos, Correa de
Barros e Kopke de Carvalho apresentou mesmo um protesto contra qualquer
indemnização que no futuro viesse a ser concedida ao engenheiro Dejante, pois
reconheciam a manifesta impossibilidade de executar, com rigor, o levantamento da
Planta da Cidade pelo preço de 2.500$000 reis12. Fosse ou não por estas razões, o facto
é que em 1877 morria o engenheiro Achilles Dejante sem ter praticamente iniciado os
trabalhos.
A Câmara Municipal decide, em 1877, adoptar o sistema de administração
directa e encarregar o engenheiro municipal Agnelo José Moreira de executar a tarefa 13.
Este reclamaria o apoio do Capitão Augusto Gerardo Teles Ferreira (da Repartição dos
Trabalhos Geodésicos, nomeado topógrafo de 1ª classe em 1856), que se apresentou ao
serviço da Câmara em Agosto de 1877. O Capitão Teles Ferreira havia executado o
levantamento da Carta Cadastral de Viana do Castelo, também na escala de 1:500 e
tinha já «25 annos de pratica d’estes trabalhos»14 .
A empresa conheceu então um decisivo avanço e, apesar da necessária correcção
dos pontos de triangulação para os adaptar à escala 1:500, em Maio de 1878 estavam já
levantados 52 hectares da planta da cidade «na sua parte mais difícil, que é a das
freguesias da Sé e da Victoria... começando-se [então] um trabalho mais regular... e
achando-se hoje levantados 275 hectares, distribuídos em 30 folhas de desenho, e
10
A.H.M.P., Vereações, L.º 123, fI. 14.
11
A.H.M.P., Nota, L.º 54, fI. 115 v.º.
12
A.H.M.P., Vereações, L.º 123, fl. 15-16.
13
A.H.M.P., Vereações, L.º 126, fl. 99.
14
Augusto Gerardo Telles Ferreira, Memória Descritiva sobre o Levantamento da Planta da Cidade do
Porto, Porto e repartição da planta da cidade, 12 de Março de 1890.
d’estas desenhadas completamente 3, e mais 2 bastante adiantadas»15. Reconheceu-se,
então, que o trabalho de desenho, «exclusivamente feito pelo desenhador da Câmara nas
horas que lhe sobram dos trabalhos a que é obrigado como empregado do município»16,
não acompanhava o ritmo do levantamento e propõe-se entregar esta tarefa a
desenhadores fora do quadro da Câmara.
É já intenção declarada da Câmara de proceder à redução do levantamento da
escala 1:500 para 1:5000 e «fazer-se a competente publicação, o que dará também
alguma receita, diminuindo assim o sacrifício pecuniário que se faz com este
trabalho»17.
O ritmo dos trabalhos foi então intensificado e, em 1892, o levantamento da
planta da cidade na escala 1:500 estava praticamente concluído, faltando apenas
algumas rectificações para a referir àquele mesmo ano, como expôs Augusto Gerardo
Teles Ferreira à Câmara em relatório de 30 de Março de 189218. Para esse bom
andamento muito deve ter contribuído a formação de uma espécie de Gabinete
coordenado por Teles Ferreira, onde trabalharam o capitão Fernando da Costa Maia
(entre Setembro de 1882 e Dezembro de 1888), Manuel Pereira da Costa, José Baptista
Figueiredo e Moysés Augusto. A actividade daquele Gabinete acha-se meticulosamente
registada nos “Mapas do Levantamento da Planta da Cidade do Porto”, elaborados
pelo próprio Teles Ferreira entre Dezembro de 1887 e Fevereiro de 189219.
Mas a tarefa daquele Gabinete não se esgotou no levantamento à escala 1:500;
daí foram reduzidas duas cartas: uma cadastral, na escala 1:2500; e outra de “gabinete”,
na escala de 1:5000. Esta última viria a ser gravada pelo grupo de gravadores da
Direcção Geral dos trabalhos Geodésicos, representados por Cassiano Augusto Vidal da
Maia, que se apresentaram ao concurso aberto pela Câmara em 11 de Maio de 1892 e
cuja proposta foi apoiada por Teles Ferreira, pois considerava que “no paíz só [eles] são
reconhecidos de merecimento n’este género de trabalho.., por ser sua especialidade a
gravura em pedra”20. O original foi enviado para Lisboa em Junho de 1893 e as pedras,
acompanhadas da respectiva carta gravada, foram recebidas no Porto em Junho de 1895.
Para obviar ao “aparente excesso” da verba de 5.000$000 reis do custo dos 1500
exemplares da gravação da carta, Teles Ferreira indica algumas possibilidades para
angariar uma receita compensadora: a carta poderia ser vendida às repartições públicas
ou ao público, e, numa hipótese curiosa e significativa, ela «encontrará uma venda
rápida no Brazil, onde a maioria da nossa colónia é filha das províncias do norte, que de
certo adquire com prazer a planta do Porto, onde lerá mil recordações da pátria, sempre
tão grata aos expatriados». Por outro lado, e ainda no capítulo das receitas possíveis,
Teles Ferreira propõe uma medida que evidencia a sua competência técnica aliada a um
esclarecido sentido administrativo: refere-se à possibilidade de permanência do
Gabinete que levantou e desenhou a planta, agora dedicado à sua conservação e
actualização, diminuindo os encargos deste Gabinete através da medida que tornasse
obrigatório a todos os projectos apresentados à Câmara a respectiva localização em
cópias da sua planta geral.

15
Relatório da Gerência da Câmara Municipal do Porto durante o Biennio de 1878 e 1879., p. 21.
16
Ibidem.
17
Idem.
18
Relatório da Comissão Executiva da Câmara Municipal do Porto. 1892, pp. 13-16.
19
A.H.M.P., Mapas do Levantamento da Planta da Cidade do Porto da autoria de Augusto Gerardo Telles
Ferreira.
20
Telles Ferreira — Relatório..., 1892.
A centenária Carta Topográfica da Cidade do Porto de 1892 é hoje um
documento raro da nossa cartografia urbana, de inestimável valor histórico, composto
de duas versões do levantamento na escala de 1:500, referenciadas a 464 peças por cada
versão, sendo uma a preto e branco e conservada em 453 tolhas de 51 cm / 81 cm, e
outra a cor (aguarelada) e conservada em 446 tolhas de 64 cm / 94 cm. Ambas as
versões desse levantamento encontram-se no Arquivo Histórico Municipal do Porto, e
dessa base se executou uma redução à pena para a escala 1:5000, publicada numa
edição litografada de seis folhas, em 1895, intitulada — “Carta topographica da
Cidade do Porto. Reduzida da que foi mandada levantar na escala de 1:500 por ordem
da Camara Municipal da mesma cidade. Referida ao anno de 1892. Dirigida e
levantada por Augusto Gerardo TelIes Ferreira. General de Brigada Reformado
Cuadjuvado peio capitão de cavallaria Fernando da Costa Maya e mais empregados”.
5. A importância da Carta Topográfica da Cidade do Porto de 1892 não se
restringe às peças que a constituíram e, portanto, aquilo que ela de facto é, mas alarga-se
também ao que ela poderia ter sido. O trabalho desenvolvido por Teles Ferreira não se
resumia a um mero exercício de levantamento territorial, mas tinha por objectivo dotar a
Municipalidade de uma base cartográfica rigorosa para a gestão do espaço urbano,
como ele próprio nos revela no seu relatório à Câmara. Procurou criar os elementos de
inquérito e registo de toda a informação imprescindível ao rigoroso conhecimento da
realidade urbana.
Quando, por exemplo, se refere à carta cadastral na escala 1:2500 não deixa de
apontar as vantagens de «se poder lançar n’ella o nivelamento, curvas de nível, divisão
de folhas, de freguesias, enfim tudo quanto seja necessário apreciar conjuntamente o
que se não poderia fazer na Planta geral»; por outro lado, aquela planta serviria «para se
poder melhor apreciar os novos estudos de ruas que forçosamente se hão-de abrir nas
freguesias annexadas, depois de concluída a nova estrada da circunvalação»; mas o mais
interessante é a sua referência ao cadastro, pois aquela carta «é enfim uma perfeita carta
cadastral com a propriedade toda dividida, sobre a qual se poderá fazer uma perfeita
matriz predial, sem os erros e as contestações provenientes das más e incorrectas
medições que geralmente se praticam nestes trabalhos, provenientes da insuficiência de
quem os executa, e da falta d’uma boa carta»21.
É importante referir que, passados cem anos sobre aquele relatório, o cadastro
urbano mantinha-se ainda inexistente.
Por último, e após levantar o problema da conservação e actualização dos
originais da planta geral, Teles Ferreira indica a possibilidade de, partindo das bases
criadas, se iniciar «O estudo da planta subterrânea da cidade, para se conhecerem os
diversos encanamentos do munícipio e particulares». A este propósito, deve ter-se em
conta a plena oportunidade desta observação já que estava em curso o plano de
abastecimento de água ao domicílio e o plano de saneamento iria, em breve, começar a
ser estudado.
6. Um dos aspectos mais importantes da Carta Topográfica é sem dúvida o seu
valor documental para a história urbana ou, mais concretamente, para a história da
forma urbana do Porto. Ela é um precioso registo da cidade existente ao fim do século
XIX. Situação que se pode considerar como uma fronteira entre dois importantes
momentos do desenvolvimento do Porto: por um lado, a cidade que resultou de
programas de industrialização e programas de infraestruturação básica, sobretudo ao
nível dos transportes; por outro lado, a cidade que veio a resultar das tentativas de

21
Ibidem.
corrigir as assimetrias de um crescimento desregrado, procurando implementar um
Plano Geral de desenvolvimento como instrumento de gestão urbanística. A Carta
Topográfica da Cidade do Porto de 1892 é, assim, um ponto de situação e, neste sentido,
a sua leitura torna-se muito interessante.
É nesta Carta que, pela primeira vez, surge representada a estrada da
Circunvalação, estruturada na sequência da última linha de barreiras alfandegárias e que
viria a definir o limite administrativo da cidade, a norte do rio Douro.
É igualmente nesta Carta que pela primeira vez se cartografa as duas novas
travessias do Douro, construídas no último quartel do século XIX: a travessia
rodoviária, a duas cotas, que substituiu a Ponte Pênsil (Ponte Luís I, 1886); e a nova
travessia ferroviária, que assegurou a ligação ao Sul do país articulada com a Estação de
Campanhã (Ponte D. Maria, 1877). São ainda visíveis as restantes estruturas da rede de
circulações ferroviárias, nomeadamente o caminho de ferro da Ervilha e a Estação de
Cadouços. No capítulo dos transportes, é de assinalar também o registo do Elevador dos
Guindais, entre a margem do rio e a antiga Porta do Sol.
Em relação ao rio Douro é de acentuar a inclusão da margem Sul, com um
levantamento igualmente rigoroso da marginal de Vila Nova de Gaia, sobretudo o
tratamento da marginal marítima.
Outro aspecto que esta Carta torna evidente é uma estrutura perfeitamente rural
para norte da linha da Boavista / Marquês, onde é ainda reconhecível a implantação
territorial da “malha de póvoas” de tradição medieval, que se articulavam com o núcleo
urbano através dos caminhos que se dirigiam das portas da muralha aos principais
centros urbanos do norte, e que marcaram a persistente estrutura radiocêntrica da cidade
do Porto. Articuladas com esta estrutura rural estão as imensas linhas de água (ribeiros)
que irrigavam este território e que, muitas delas, são ainda visíveis na Carta.
Este levantamento topográfico é um importante documento pela riqueza
toponímica e locativa dos numerosos lugares e montes, que hoje raramente se podem
memorizar no tecido urbano — por exemplo, o lugar da Vila Nova de Cima e da Vila
Nova de Baixo, na zona ocidental; ou os lugares de Fatum, Outeiro do Tine, Tirares e os
Montes da Bella ou de Marganchos, na zona oriental.
Esta Carta permite, ainda, documentar a existência e a estrutura de grandes
espaços verdes privados, que viriam a sofrer profundas transformações ou mesmo a
desaparecer, como por exemplo: — a Quinta dos Pamplonas, junto ao Campo da
Regeneração (hoje Praça da República), sobre cujo eixo se abriria a futura rua Alvares
Cabral; — a Quinta da Prelada, onde se pode ler o seu extenso eixo compositivo traçado
no século XVIII; — as Quintas da zona do Campo Alegre, cuja original estrutura
agrária se achava “apenas perturbada” pela rua de António Cardoso, propositadamente
aberta no alinhamento do eixo da Quinta do Salabert (posteriormente dos Andreson).
Estes grandes espaços verdes surgem como contraponto aos numerosos pequenos
jardins particulares, bem como aos Jardins Públicos, cuja cuidada e rigorosa
representação torna esta Carta um singular documento cartográfico para a história da
Jardinagem.
Mas a Carta de 1892 é, como já foi referido, um ponto de situação no
desenvolvimento urbano do Porto, referenciando alguns projectos em execução ou em
vias de serem executados, como por exemplo: — a Avenida da Boavista, que se achava
aberta até à Fonte da Moura, indicando-se a sua sequência daí até ao Castelo do Queijo;
— a futura rua Júlio Dinis, articulando o Palácio de Cristal com a rotunda da Boavista
(esta ainda sem a respectiva monumentalização e ajardinamento), indicando-se um
traçado recto bem diferente do que se tornaria definitivo; — ou o início da urbanização
da chamada Foz Nova, já na faixa Atlântida e para Norte do núcleo de S. João da Foz,
considerado, em 1869, como uma “vila urbana com o seu subúrbio”.
Outro aspecto que a Carta de 1892 nos revela é a rigorosa implantação de
determinados edifícios, hoje desaparecidos, e que se encontram ligados a significativos
quadros da vida urbana, como a Praça de Touros na Boavista; o gasómetro, entre a
Arrábida e o Monte de Santa Catarina, junto à marginal; o Museu Comercial e Industrial
nos jardins do Palácio de Cristal, também já modificados pela rua do Palácio de Cristal;
o Convento e Cerca das Carmelitas, junto do antigo Largo do Correio, que seria
substituído pelo Bairro das Carmelitas já no início do século XX; ou o Convento de S.
Bento da Avé Maria, que daria lugar à Estação Central de S. Bento, em 1900.
Do ponto de vista urbanístico, a Carta de 1892 permite, ainda, revelar a
importante presença que determinados fragmentos urbanos detêm no território — pelo
seu isolamento, dimensão ou estrutura — como os cemitérios (oriental e ocidental), os
hospitais (Conde Ferreira, Militar e Sto. António), os quartéis (o de Infantaria, na rua
do Triunfo, futura rua D. Manuel II, ou o da Regeneração, na futura Praça da
República), as gares e estruturas ferroviárias (na Boavista e no Pinheiro de Campanhã);
os mercados (do Bolhão, do Anjo, de Ferreira Borges e do Peixe); os matadouros; as
instalações portuárias (em Miragaia, com a Alfândega Nova, brevemente substituídas
pelo porto de Leixões); ou ainda as instalações industriais (um dos agrupamentos
situava-se junto ao rio, entre o cais do Bicalho e o cais das Pedras, com a Cerâmica de
Massarelos e as fundições do Barão de Massarelos) que marcariam profundamente o
tecido urbano ao gerarem núcleos de concentração habitacional — as ilhas (com pontos
mais importantes na zona de S. Victor) ou já os bairros (com maior destaque para o de
Alexandre Herculano) — núcleos esses que muito contribuíram para densificar a zona
oriental da cidade.
Por último, importa acentuar que o levantamento topográfico de 1892 é o
derradeiro registo cartográfico da estrutura urbana de algumas zonas da cidade que,
poucos anos depois, viriam a ser profundamente transformadas: assim aconteceu com o
antigo Bairro dos Laranjais que desapareceu após a execução do Plano da Avenida dos
Aliados durante a 1ª República; também a zona do Largo e Rua do Correio, onde se
localizava o mercado dos Ferros Velhos, deu lugar à edificação de um novo Bairro,
projectado pelo Arquitecto Marques da Silva no início do século XX. Por outro lado, o
registo da Carta de 1892 permite um interessante confronto com a estrutura que resultou
da rectificação de velhos traçados viários ou da abertura de novas vias já nos meados do
século XX: são exemplos, a Rotunda da Boavista e alguns tramos do eixo da Avenida
da Boavista, a rua Alvares Cabral, a rua doCampo Alegre, a avenida de Marechal
Gomes da Costa, a rua de Fernão de Magalhães ou toda a zona da Foz Nova.
A Carta Topográfica da Cidade do Porto de 1892, independentemente do seu
valor cartográfico — justamente modelar — possui um valor histórico inestimável, pois
trata-se de uma importante fonte documental para o conhecimento e o estudo da
transformação da forma urbana do Porto entre o século XIX e o século XX.

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