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A Filosofia como Atitude Filosofia | UNISUAM

Apresentação
Prezado aluno,

Com esta disciplina pretende-se iniciar os estudos de Filosofia. De imediato, deve-se atentar
a um fato simples: essa disciplina não busca outra coisa senão comentar sobre a realidade
em suas variadas possibilidades, já que estas se mostram das mais diversas formas.

Ao longo dos séculos, alguns pensadores definiram a Filosofia como arte e outros como
ciência; alguns ainda tentaram superá-la e outros encerrá-la, etc. Nesse momento não
cabe fazer pré-julgamentos sobre as possíveis definições de Filosofia. É mais interessante
e convidativo deixar que você mesmo, com o avançar de seus estudos, possa fazer a sua
própria avaliação sobre este saber tão antigo.

Algo, por sua vez, deve-se deixar claro, a saber, mencionar o que a Filosofia não é. Por
vezes, quando se adentra em livrarias ou bibliotecas, por exemplo, depara-se com a parte
dedicada à Filosofia, e, lá, erroneamente, encontra-se de tudo: autoajuda, espiritualismo,
astrologia, história, enfim. É importante marcar que a Filosofia não se confunde com nenhum
outro tipo de saber.

O que a Filosofia nos deixou depois de 2.500 anos de história foi, por um lado, uma série
de indagações e possibilidade de respostas sobre o mundo e suas relações e, por outro
lado, as várias tentativas de respostas sobre o que ela mesma é, bem como sobre os vários
significados que a realidade se apresenta aos seres humanos.

Independente de como se define a Filosofia, constantemente se está em sua proximidade.


Quando se procura questionar um fato para entendê-lo melhor, por exemplo, buscando-se
interpretar seus fundamentos, suas bases, isto já é de algum modo, filosofar. A Filosofia é uma
postura frente às coisas, ou seja, a maneira de se buscar entender algo e de questionar, de
duvidar desse algo. E, dessa maneira, vai-se introduzindo no modo como nasce o filosofar:
um esforço muito singular de se compreender e interpretar a realidade.

Essa interpretação do mundo, isto é, da realidade, de antemão, retira toda postura dos
indivíduos de bem estar e conforto frente a este mundo, pois questionar por seus fundamentos1
nunca foi um ofício dos mais simples e desejosos. Isso porque exige a difícil tarefa de se
introduzir na própria questão investigada, e, com isso, de também se colocar em questão, quer
dizer, de questionar os sentimentos que se sente em determinado momento, a perspectiva
que se busca interpretar determinado problema, e assim por diante.

1 Entende-se por fundamento, na linguagem corrente, aquilo que sustenta algo, como no sentido de
“fundamentos de uma casa”, embora atualmente se fale em “fundações”. Na Filosofia, fundamento esclarece algo que
sustenta certo fenômeno ou conhecimento (Cf. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia.
3ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p, 113 – verbete –Fundamento).

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A Filosofia como Atitude Filosofia | UNISUAM

O filosofar nasce quando se coloca em questão a própria vida, o que a mobiliza e a interessa,
bem como a existência do mundo de determinado indivíduo, abdicando-se da segurança de
uma realidade previamente determinada em prol do desejo de questioná-la e compreende-la
da maneira como se organiza, do modo como ela efetivamente é.

Há, de imediato, um saber que não tem uma resposta fechada e “certa” sobre o que ele
mesmo se constitui, como se encontra tantas vezes nas disciplinas exatas. Esse fato já nos
gera certo espanto! Porém, é justo do espanto, quer dizer, de certa admiração ao começar a
se introduzir em uma disciplina que tem dificuldades de entender a sua própria constituição,
que dispõe cada indivíduo singular na beleza2 de procurar respostas para questões que
se mostram de maneira tão íntimas; questões que pela Filosofia abrem-se justamente à
possibilidade de entender a nós mesmos no interior da realidade que nos circunda. Perguntar
pelo que é a Filosofia, é caminhar na difícil trilha de investigar a si próprio.

2 Adiante se esclarecerá o uso do termo Beleza para expressar à Filosofia.

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A FILOSOFIA
COMO
ATITUDE
Objetivo do estudo
- Nesta primeira unidade do curso de Filosofia
vamos introduzir esse saber milenar de
maneira que você entenda para quê a Filosofia
pode ser útil – e ela pode ser muito útil!

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A Filosofia como Atitude Filosofia | UNISUAM

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Apresentação
Você já se percebeu como se utiliza, com frequência, o termo introduzir na Filosofia? Isso
porque a palavra introduzir significa um movimento de levar-nos (do latim -ducere) para
dentro (do latim intro-) das origens, isto é, do próprio filosofar. A rigor, não se pode pensar
com muita clareza uma introdução à Filosofia, por que, na Filosofia, não há possibilidade de
introdução. Isso porque existe uma grande diferença que separa nossa vida cotidiana, com
suas crenças e pressupostos prévios, sempre familiares e imediatos, do espaço extraordinário
(quer dizer, além da ordem – -extra – do dia – -dinario –) onde ocorre a investigação filosófica.

Dessa experiência surge a dificuldade para nós, indivíduos modernos/contemporâneos, para


entender e viver a Filosofia, já que estamos habitualmente na ordem do dia, isto é, dispostos
em meio as nossas crenças habituais, corriqueiras. A partir disso escreve o professor
Emmanuel Carneio Leão:

Já dizia o Dessa perspectiva o mais longo e o mais difícil dos caminhos é sempre
aquele que leva ao que é mais íntimo e está mais próximo. É tão

filósofo grego
íntima a Filosofia no país dos homens, que se torna impossível uma
introdução e muito difícil o acesso a sua paisagem. A Filosofia já está
sempre operando em todo pensamento, que nela se procura iniciar

Sócrates e introduzir. O único caminho ainda possível é um retorno brusco da


existência humana a sua origem. A paisagem da Filosofia não está

(469-399 a.C.) em lugar algum, esperando que nela se introduza o pensamento. A


paisagem da Filosofia se instaura e origina pelo movimento da própria

ao repetir o
investigação filosófica, que, pondo-se em questão, retorna às origens,
donde ela mesma provém1.

Oráculo de O que o professor Carneiro Leão busca nos evidenciar com este texto é que
a Filosofia está constantemente próxima de nossas experiências cotidianas,

Delfos, templo estando muitas vezes em nossa proximidade, em nossa vizinhança. Contudo,
no “país dos homens”, o mundo moderno no qual estamos inseridos, que

dedicado ao
sempre nos apresenta o conforto de estar em meio a um turbilhão de coisas,
não deixa que se perceba essa vizinhança. Assim, acaba-se vivendo em
meio a certa mediania, um nivelamento em que todos “pensam” de certa

culto do deus forma semelhante, quase padronizada, sem investigar os fundamentos das
informações, conhecimentos e crenças que recebemos.

mítico Apolo: Por isso, “o único caminho” de se introduzir na Filosofia é buscando cultivar
certa postura frente às coisas, de modo que adentramos em um nível bem

“Conhece-te a específico de investigação sobre as mesmas a fim de saber como as coisas


analisadas sucedem e em que estão baseadas. E analisar melhor as coisas que

ti mesmo!” nos circundam é, necessariamente, investigar a si mesmo; é também, como já


comentado, colocar-se em questão.

Sendo assim, essa Unidade será dividido em cinco partes, a fim de melhor esclarecer
o que é a Filosofia e como ela pode ser útil em sua vida. Faça bom proveito!

Bons estudos!
Profº Leandro Assis

Sócrates
1 CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Itinerário do pensamento de Heidegger. In: HEIDEGGER,
Martin. Introdução à metafísica. Introdução, tradução e notas Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro:
Tempo brasileiro, 1969, pp. 9-10.

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A Filosofia como Atitude Filosofia | UNISUAM

T1 A filosofia e a figura do filósofo


Como já comentado, a palavra Filosofia já coloca em questão o que é esse saber.
Consequentemente, deve-se procurar interpretar o que significa a palavra Filosofia. Este
já é o primeiro elemento ao qual se deve atentar para compreender em que consiste esse
saber. Segundo a professora Marilena Chauí:

A palavra “filosofia” é grega. É composta por duas outras: philo e sophia.


a Filosofia se Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito
entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria (...). Filosofia significa,
mostra como certo portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo:

modo de pensar o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. Assim,
filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja
o conhecimento, o estima, o procura e o respeita1.

A partir dessa exposição, pode-se afirmar que, de imediato, a Filosofia se mostra como certo
modo de pensar, já que possibilita ao homem uma postura singular, diferente diante do mundo,
não sendo, consequentemente, um conjunto de conhecimentos prontos, de fórmulas, ou um
sistema acabado, fechado em si mesmo.

Em relação a esse último ponto, de tal modo se processa muitas disciplinas da escola e
até mesmo da faculdade, não que estas sejam melhores que a Filosofia ou que a Filosofia
seja melhor que estas. Entretanto, possivelmente nenhum aluno terá muitas dúvidas do que
encontrará nas aulas de Matemática ou de Língua portuguesa, mas, não é o caso das aulas de
Filosofia. Este saber se apresenta como uma possibilidade de abertura singular para o mundo,
e isto por que dimensiona a forma na qual nós, intérpretes desse mundo, o percebemos.

importante
Não devemos entender mundo, tal como
se faz referência em nossos estudos, como
o planeta, ou qualquer corpo celeste, mas,
como um conjunto de relações nas quais
todos os indivíduos estão, de antemão,
dispostos, isto é, postos dentro, estando
previamente prontos a realizarem-se. Essas
A Filosofia é uma
relações são estabelecidas junto às coisas
que estão ao nosso redor, com os outros que
constantemente estamos lidando, bem como forma privilegiada
pela qual se pode
em relação de nós mesmos. No espaço da
sala de aula, por exemplo, o mundo que se
abre é o mundo do educar, em que as coisas
dispostas no interior da sala de aula tomam um
sentido específico, as pessoas se apresentam
de uma maneira determinada, além do próprio
educador ganhar um significado particular em
compreender
melhor o mundo.
meio a dimensão do estudo. Assim compõe o
mundo escola.

1 CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003.

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Pelo o que assim foi expresso, pela Filosofia os indivíduos procuram se valer de um tipo de
interpretação da realidade (ou mundo) além da mera aparência que as coisas e/ou fenômenos
de antemão se mostram. Normalmente, os indivíduos ao estarem imersos em seu cotidiano
não param para pensar sobre os acontecimentos que ocorrem ao seu redor, permitindo-se
viver a partir de um “conhecimento comum”, melhor, de um senso comum. Conforme os
professores Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, o senso comum é:

Em uma acepção mais típica do pensamento moderno, o senso


comum é um conjunto de opiniões e valores característicos daquilo
que é correntemente aceito em um meio social determinado. “O senso
comum consiste em uma série de crenças admitidas em meio de
uma sociedade determinada e que seus membros presumem serem
partilhadas por todo ser racional” (C. Perelman)1.

A partir das experiências que são proporcionadas pela Filosofia, intenta-se dar um passo
além da forma orientada pelo senso comum de se interpretar o mundo. Busca-se projetar o
entendimento humano além da forma ordinária, corriqueira que as cosias simplesmente se
mostram para cada um, e isso a fim de se apropriar das coisas. Isto é, pelo exposto:

1. Compreende-se algo melhor pela Filosofia, de modo a;


2. Interpretar esse algo de maneira mais criteriosa, a fim de;
3. Apropriar, ou seja, pensar, refletir de forma crítica sobre isso que foi
compreendido e interpretado.

Consequentemente, por meio da Filosofia pode se questionar qualquer objeto, circunstância


e/ou fenômeno. Nesse sentido,

a Filosofia é um saber pelo qual se dispõe à possibilidade de meditar sobre diversos


fenômenos, bem como a muitos campos de conhecimento, como por exemplo, a ciência,
os valores, a política, etc.; coloca-se na possibilidade de refletir sobre a religião, a arte, e,
especialmente, questionar, como já marcado no começo dessa unidade, sobre a existência
do homem e do mundo.

Deve-se atentar de imediato para um aspecto de muita


importância na definição de Filosofia oferecida acima pela

pare e Reflita professora Chauí, que, de algum modo, informa-nos que se


deve procurar por aquilo que se reconhece não ter. Nessa
direção comentará o filósofo grego Platão2 (429-347 a. C.)
Antes de continuarmos vamos nos lançar numa em uma de suas obras principais intitulada O Banquete, um
indagação: imersos no turbilhão oferecido pelo texto que elucidará sobre o amor filosófico.
século XX onde tantas coisas arrebatam os homens
em seus cotidianos, o que entendemos por amor
filosófico?

1 JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 3ª ed. rev. e ampliada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, pp. 224-225 – verbete Senso comum.

2 Platão é um dos principais representantes de toda a História da Filosofia; é um pilar da


Filosofia, juntamente ao seu principal aluno, Aristóteles. Platão, que foi discípulo de Sócrates, pensador
já mencionado acima, escreveu a maior parte de suas obras em diálogos, dentre elas A República, O
Banquete e Fédon. Podemos conferir uma boa introdução sobre o pensamento desses filósofos na
obra Platão & Aristóteles – o fascínio da Filosofia, de Marco Zingano (Cf. ZINGANO, Marco. Platão &
Aristóteles – o fascínio da Filosofia. São Paulo: Odisseus, 2005).

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Platão
A palavra amor, tal como a concebemos provém do grego
éros, embora também possua uma raiz que deriva do latim,
e significava outrora afeição, simpatia, e representava certa
tendência da sensibilidade humana que era possível de
transportar-nos para outro ser ou um objeto reconhecido ou
sentido como bom. Assim se pode falar em amor materno,
no amor da glória (divina), etc.

Quando Platão pensa no amor à Filosofia, refere-se a um


sentimento que abre mão, isto é, prescinde da sensibilidade
humana para alegrar-se das belezas intelectuais ou
espirituais, isto é, com aquilo que o filósofo chamou de Belo1.

Esse Belo, como marcara Platão, não é algo fisicamente,


sensivelmente bonito e/ou atraente, mas, é uma experiência
do pensamento.

Saiba mAIS
Para o grego antigo, Belo, Bom e Verdadeiro
eram expressões comuns a fi m de se referir
à experiência do pensamento, do intelecto
– experiência especialmente valorizada na
antiguidade. Assim, a expressão amor platônico

A palavra não tem em vistas um amor físico e nem abstrato,


simplesmente, mas, uma forma de amor pelo
intelecto às coisas as quais se investiga.

amor, tal como


a concebemos
provém do 1 Na introdução a essa unidade já consta uma chamada para

grego éros
esse termo. Deve-se conferir a base desse comentário em JAPIASSÚ,
Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 3ª ed.
rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

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FILOSOFIA

Certo modo de Amor pelo saber


pensar

Compreender melhor o Amor filosófico


mundo/ realidade

Experiência de Sensibilidade para admirar


pensamento belezas intelectuais e
espirituais

BELO

Pela Filosofia, busca-se, como já comentado, interpretar


aprofundando aquilo que aparece aos indivíduos de modo estranho,
melhor dito: extraordinário. Como exemplo, selecionamos
um poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta
Sobre a ideia d e Belo, confira o anexo a esse unidade. português Fernando Pessoa (1888-1935). Atente-se às
estrofes a seguir:

Meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que eu nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...1

O poeta português, ao escrever/poetizar simbolicamente sobre uma criança que “nascera


deveras”, possibilita entendermos um pouco melhor como se processa o saber filosófico.

O filósofo é este que “nasce”, não como ato de obstetrícia2, mas que repetidamente procura
reinterpretar o seu mundo e suas possibilidades de ser desprovido de qualquer olhar
imbuído de determinados preconceitos ou crenças prévias. Como uma “eterna novidade”
é justamente o seu mundo que se apresenta a fim de ser novamente dimensionado, ou
seja, a realidade que outra vez se mostra a fim de ser re-apreendido, contudo a partir de
outra perspectiva, de outro compreender e interpretar.

1 PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 204.

2 A obstetrícia é a arte médica que se ocupa dos partos.

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O mundo se manifesta, como na poesia de Pessoa, como uma novidade. Isso porque, a
princípio (com já comentado), os homens já estão dispostos em um senso comum no qual
todos já estão de antemão, em certa pré-compreensão do mundo. A postura do poeta na
poesia, de buscar interpretar o seu mundo como se esse fosse uma novidade, o concede-lhe
a possibilidade de ver as mesmas coisas que anteriormente via, já que ele “possui um olhar
nítido como um girassol”, e se põe “a caminhar olhando para a direita e para a esquerda, e
de vez em quando para trás”, a partir de uma nova perspectiva, de uma nova maneira.

De modo geral, perguntar pelas coisas que nos cercam não é algo
pare e reflita habitual. Como constatação disso, ao falar sobre o tempo, santo
Agostinho (354-430), filósofo do começo do período medieval
(era cristã) que era bispo na cidade de Hipona, no norte da
E você, já pensou em olhar para algo do seu
cotidiano a partir de uma nova perspectiva? África, escreveu o seguinte: “O tempo. Quem não sabe o que é
Olhe ao seu redor, veja as pessoas que estão o tempo! Contudo, não me pergunte o que é o tempo, pois não
na rua, observe as casas, os sons, e tente ver mais poderei responder”1.
além, pense como será a vida destas pessoas,
quem mora nestas casas, de onde vem esses
O filósofo e santo pela Igreja Católica, esclarece algo muito simples
sons? Isso é filosofar.
e que traduz muito bem o que faz o filósofo: deixa-nos claro que,
mediante o senso comum, todos sabem o que é o tempo.

Santo Agostinho

1 AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira dos Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S.J. São
Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 2379 (Coleção Os pensadores).

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Para encerrar esse tópico e podermos iniciar o próximo,


atente-se ao texto escrito pelo professor Gilvan Fogel em sua
obra Que é Filosofia? Filosofia como exercício de finitude:

Inicialmente, o lento, que se contrapõe ao apressado, que


resiste a esse, que o corrói e o corrompe, não é o inerte, o
lerdo, o letárgico. Uma natureza lenta, melhor, um tipo lento é
um tipo que vive desde uma disposição assentada de entrar

pare e reflita no ritmo, na cadência disso que ele se ocupa – disso com que
ele se pré-ocupa. Ele não tem pressa, pois para ele é evidente
que a coisa não tem pressa. Esta se mostra para ele tendo
Agora vamos refletir, pare você mesmo, e pense um ritmo, um tempo, que é inflexível e irrevogavelmente seu,
para responder a pergunta de Santo Agostinho: isto é, da própria coisa. Qualquer alteração disso aparece
você sabe o que é o tempo? Consegue defini-lo
como uma violação, uma transgressão e, por isso, uma
em uma fórmula ou conceito, de maneira que possa
ser válido para todos os indivíduos ou minimamente perda, uma descaracterização, um esvaziamento da própria
que seja aceitável para outros indivíduos? É dessa coisa. Trata-se de um tipo que, desde uma decisão que, para
dificuldade que vive o filósofo. Não obstante, ao ele, se torna corrente sanguínea, instinto, índole, estigma,
pensarmos agora sobre o filósofo, quem é essa e por tudo isso, identidade e próprio – trata-se, portanto, de
figura e o que ele faz?
um tipo que, a partir de uma decisão, não se sabe como
nem quando eclodida, resiste ao élan do inopinadamente
“adiante”, do sôfrega e impulsivamente “para frente”. Ao
contrário, na hora deste ímpeto, desta tentação, algo nele
como que puxa para trás, impõe-lhe parar. Ele aguenta,
resiste, suporta. Aqui, sim, cabe constatar que esse tipo, às
filósofo

vezes, tem algo até de estúpido, do pesado, do lerdo. Trata-


se de alguém capaz de, por longo e longo tempo, suportar
uma adversidade, resistir ao insucesso, arrostar serena e
concentradamente uma grande dificuldade, uma grande
recusa. É capaz de uma longa espera. É meio ou muito uma
natureza de montanha e de deserto. Ele vai, ele avança, mas
ele se permite e mesmo se impõe voltar, repisar, refazer o
já feito, ruminar. Agrada-lhe vencer a si próprio, superar a si
mesmo, dominar e submeter em si, com mão de ferro, toda
impulsividade para o fácil para o rápido, para aquilo que é de
resultado e sucesso imediato. Agrada-lhe, alegra-lhe crescer
lento e sólido como as grandes árvores: o jequitibá, o ipê, a
sapucaia, o jatobá. É alguém marcado pela concentração,
pela contenção, pela intensidade. Isso se irradia dele. Nada
de derramamentos, efusões e transbordamentos fúteis. É
simples, sóbrio, mas nisso e por isso cheio do solene e do
hierático da montanha. Sendo assim, desde o contido e do
intenso, sua medida é sempre o sóbrio, o pouco, o parco, o
pobre. Isto, para ele, é o suficiente, mesmo o só necessário
e até a fartura1.

1 FOGEL, Gilvan. Que é Filosofia? Filosofia como exercício


de finitude. Aparecida: Ideias & Letras, 2009, pp. 12-13.

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T2 A Filosofia e o ofício do filósofo


No final do tópico anterior, foi caracterizada uma difícil passagem que marcava, em linhas
gerais, a figura do filósofo. Vamos ao longo dos demais tópicos tentar interpretar o trecho
citado na medida em que ele se mostra necessário.

leia com atenção Foi exposto anteriormente que a Filosofia é a busca por uma sabedoria que reconhecemos
você vai precisar depois não ter. O movimento da reflexão, que constitui essa busca, precisa contar sempre com
na pág 16 a consciência desse precioso reconhecimento: não sabemos. E porque não sabemos,
perguntamos, colocamo-nos a pensar, procuramos por respostas.

O filósofo teorizava sobre todos os assuntos, procurando


responder não só ao porque das coisas, isto é, porque as
Pitágoras de Samos coisas acontecem de um jeito ou do outro, mas, também,
como as coisas ocorrem. Ao salientar a poesia de Fernando
Pessoa que interpretamos no tópico anterior, é ter o “pasmo
essencial”, isto é, é estar em uma atmosfera de estranheza,
de novidade frente ao mundo que se manifesta para
cada um. A partir do fragmento do professor Fogel, “(...)
Qualquer alteração disso aparece como uma violação, uma
transgressão e, por isso, uma perda, uma descaracterização,
um esvaziamento da própria coisa. ” Isso significa que
o filósofo se concentra em perceber como as coisas o
espanta, como as coisas e fenômenos o tocam, chamam
sua atenção. Seu ofício é justo descobrir como e porque as
coisas despertam nele certo espanto.

Na antiguidade clássica, por exemplo, pensadores como


Euclides de Alexandria (300 - ? desconhecido, a.C.), Tales
de Mileto (623-556 a.C., aproximadamente) e Pitágoras
de Samos (571-500 a.C.) são filósofos e se dedicavam ao
estudo da geometria. Aristóteles (384-322 a. C.), por sua
vez, debruça-se sobre os problemas físicos e astronômicos,
na medida em que esses problemas interessam à cultura e
Tales de Mileto a sociedade de sua época. Deseja-se chamar a atenção ao
fato de que aquilo que era banal outrora foram os filósofos
que primeiramente se dedicaram a sua resolução.

Euclides de
Alexandria

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Com o advento da modernidade, notadamente a partir


do século XVII, com Galileu Galilei (1564-1642) e o
aperfeiçoamento do método científico, fundado na
observação, experimentação e na calculabilidade matemática
dos resultados, que a ciência começou a se constituir como
uma forma específica de abordagem do real e a se apartar da
Filosofia, transformando-se, portanto, em saberes isolados
como a exemplo da física, da química, da biologia, dentre
muitas outras.

Pouco a pouco apareceram as ciências particulares que


investigam a realidade sob pontos de vista específicos: à
física interessam os movimentos dos corpos; à biologia, a
natureza dos seres vivos; à química, as transformações das
substâncias; à astronomia, os corpos celestes; à psicologia,
os mecanismos do funcionamento da mente humana, à
sociologia, a organização social, etc.

O conhecimento é fragmentado entre as várias ciências, já


que cada uma delas se ocupa somente de uma pequena
parte do real. A Filosofia, por sua vez, pensa todas essas
partes da realidade. Entretanto, em vez de fragmentá-la
em conhecimentos particulares, o filósofo interpreta o real
científico

entendendo como uma totalidade de fenômenos, ou seja,


Galileu Galilei considera a realidade a partir de uma visão de conjunto,
uma visão mais “global”. Qualquer que seja o problema, a
situação, enfim, a reflexão filosófica considera cada um de
seus aspectos, relacionando-o ao contexto dentro do qual ele
se insere restabelecendo a integridade do universo humano.

Por isso Fogel escreveu que o filósofo “(...) é capaz de uma


longa espera”, pois ele amadurecerá seus pensamentos até
aprofundá-los ao ponto dos mesmos ganharem a devida
força e importância. Consequentemente, “(...) Agrada-lhe,
alegra-lhe crescer lento e sólido como as grandes árvores:
o jequitibá, o ipê, a sapucaia, o jatobá. É alguém marcado
pela concentração, pela contenção, pela intensidade. Isso se
irradia dele.” O “lento”, como esboçado no texto, se justifica
pela necessidade de pensar com a devida calma a fim de
deixar que os pensamentos ganhem maior densidade e
profundidade, fato que dificilmente ocorre com o pensador
em questão estiver imerso no frenesi do dia-a-dia.

O conhecimento é
fragmentado entre
as várias ciências
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Enfatiza-se, consequentemente, desde já, que não se deve jamais imaginar a Filosofia como
algum saber fechado e transmitido de forma doutrinal1. Se tal é, muitas vezes, a representação
mais difundida da Filosofia, a opinião banal sobre o que ela é2, vale ressaltar que, como
caracterizado até o momento, o caso é exatamente o oposto: nunca, pelo nome de Filosofia,
pode-se pensar em uma atitude de crença cega nas respostas que venham a apresentar.

Conforme Gabriel Perissé:

A Filosofia Como Sócrates declarou, o filósofo não é aquele que


tudo sabe (...). O filósofo sabe que o saber nunca é saber
plenamente possuído. O seu saber é sempre esperança de

pretende saber melhor, anseio de descobrir e redescobrir. Não existem


proprietários do conhecimento, latifundiários do saber, mas
apenas peregrinos, amantes carentes de uma sabedoria que

encontrar o sempre nos escapa3.

O pensamento filosófico, quando apresentado, deve se valer

significado mais de argumentos e estar aberto à argumentação contrária.


Pode, sem dúvida, procurar convencer-nos, em alguns
casos, do valor de certas ideias, mas terá de apresentar,

profundo dos de forma clara, os motivos para adotarmos tais ideias em


detrimento das outras.

fenômenos. Não Neste sentido, a Filosofia se opõe tanto ao recurso de


argumentos de autoridade ou de revelações subjetivas como
ao uso de técnicas oportunistas de persuasão e propaganda

basta saber
e à coerção. O filósofo se reconhece sempre no terreno de
um discurso e deve estar continuamente atento para não
se confundir com alguém que diz já portar a verdade. Como

como funcionam
se comentou, assim opera um discurso doutrinal, mas, não
o filosófico. Por isso mesmo, no fragmento que encerrou o
tópico 1 e que se está interpretando, já dizia que o filósofo

as coisas, mas o
tem “uma natureza de montanha e de deserto”. “Montanha”,
já que se mostra como algo grandioso, isto é, algo de alto, de
sólido, uma vez que assim se deve mostrar a argumentação

que significam
filosófica como um todo. “Deserto”, por sua vez, porque o
filósofo, ao procurar sair do senso comum, na maior parte
das vezes estará observando o real de uma forma muito

as mesmas no
individualizada, muito só, de forma singular, contudo, com
uma largura e profundidade de interpretação muito grande,
com seus altos e baixos, como as dunas de um deserto.

interior do Ademais, o mesmo fragmento já indicava que para o filósofo a


realidade “(...) se mostra para ele tendo um ritmo, um tempo,

mundo.
que é inflexível e irrevogavelmente seu, isto é, da própria
coisa”. Ao buscar compreender e interpretar as coisas de
forma tão singular, o filósofo conquista sua identidade, quer

1 Entende-se por doutrina princípios fundamentais de uma crença, sistema, ciência, pautado
especialmente em saberes transmitidos previamente como verdadeiros.

2 É importante constatar que essa opinião não deriva de um esforço de pensamento, já que
através de uma rápida leitura do tópico anterior somando-se ao estudo desse tópico percebe-se que a
Filosofia se põe muito além de toda e qualquer forma de doutrina ou senso comum.

3 PERISSÉ, Gabriel. Introdução à Filosofia da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 16.

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A Filosofia como Atitude Filosofia | UNISUAM

dizer, seu ritmo próprio, não mais o ritmo que a vida frenética do mundo moderno lhe impõe.
Aprende a ler em sua realidade o que deve se mostrar como inflexível e irrevogável, ou seja,
que sua realidade, embora se mostre de outras formas, sempre se manifesta necessitando
de sua interferência, de seu julgamento. Por isso se revela com “um tempo” próprio.

A Filosofia, por assim dizer, não é posse de conhecimento


seguro. É justamente a perda contínua da ingenuidade, da
crença na posse de algum saber definitivo e não passível

A Filosofia,
de ser problematizado ainda outra vez.
O trabalho do filósofo é refletir sobre a realidade, qualquer
que seja ela, descobrindo seus significados mais profundos.

por assim dizer, Caso ainda o fragmento analisado não esteja se esclarecendo,
não se desespere, pois ele será investigado ao longo dos

não é posse
demais tópicos.
Tudo entendido até aqui?

de conhecimento
Vamos em frente!

seguro
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T3 O discurso do senso comum, do bom senso e a


contraposição à atitude filosófica
Nesse tópico, buscaremos analisar algo que já foi, nos tópicos anteriores, marcado, a saber,
de que modo a Filosofia não se confunde com o senso comum.

O senso comum
Observe a charge a seguir:

https://www.google.com.br/sear
ch?q=senso+comum&biw=1366 O que você subentende dessa imagem? De imediato, salta-nos a ideia de que o senso
&bih=643&source=lnms&tbm=is
ch&sa=X&ei=j0N7VJXXH comum é, como se comentou anteriormente, algo absolutamente confortável. A imagem do
mostro em que as pessoas estão em sua boca, transmite a sensação de que, de alguma
forma, todos os indivíduos estão dentro dele, sob seu jugo, isto é, operam, relacionam-se a
partir dele – o senso comum.

Não se deve, por sua vez, julgar o senso comum com preconceitos, pois o que foi afirmado
acima é uma constatação sancionada por muitos pensadores, de diferentes áreas de atuação.
O filósofo brasileiro Rubem Alves (1933-2014), por exemplo, ao comentar sobre a ciência em
sua obra Filosofia da ciência – introdução ao jogo e a suas regras, escreve que:

O que é o senso comum? Prefiro não definir. Talvez simplesmente dizer que senso comum é
aquilo que não é ciência, e isso inclui todas as receitas para o dia-a-dia, bem como os ideais
e esperanças que constituem a capa do livro de receitas.

E a ciência? Não é uma forma de conhecimento diferente do senso comum. Não é um novo
órgão. Apenas uma especialização de certos órgãos e um controle disciplinar de seu uso1.

1 ALVES, Rubem. Filosofia da ciência – introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2009, p. 14.

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O pensador brasileiro nos instiga a refletir que se o senso


comum é como um conjunto de receitas é por que se aceita
que nossas crenças e ideias sejam norteadas por outros
em nosso cotidiano. Porém, este é construído a partir de
vários referenciais que estão constantemente informando
aos homens o que fazer e como fazer, o que pensar e como
pensar. É o mesmo que constatar que os indivíduos estão
rodeados de ideologias que orientam a vida em sociedade,
os costumes, os valores, etc. Segundo a já mencionada
Marilena Chauí (1941-), ao comentar sobre ideologia a
define assim:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de


representações (ideias e valores) e de normas ou regras
(de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da
sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o
que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem
sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem
fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações)
e prático (normas, regras e preceitos) de caráter prescritivo,
normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de
uma sociedade dividida em classes uma explicação racional
para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais
atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes,
Rubem Alves a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário,
a função da ideologia é a de apagar as diferenças, como
as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade
o sentimento da identidade social, encontrando certos
referenciais identificadores de todos e para todos, como,
por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a
Nação, ou o Estado1.

Seguindo as pistas oferecidas por Alves e Chauí, pode-se


afirmar que o senso comum é uma forma prescritiva que
orienta a conduta dos homens. A prescrição, isto é, a ordem,
o preceito ou imposição (pois estes são os significados
imediatos para o termo prescrição) é proveniente dos meios
de comunicação de massa2, como a mídia, os jornais, ou,
de outra maneira, pela religião que se professa, onde se
recebem, em linhas gerais, orientações nas quais geralmente
não pensamos, já que se acredita previamente naquilo que é
falado. O senso comum opera a partir do mesmo mecanismo;
atua tendo em vistas a padronização dos indivíduos, para que
estes pensem, falem e, principalmente, aceitem sem reclamar,
de forma acrítica, as informações que lhes são transmitidas.

1 CHAUÍ, M. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense,


1980, p. 13.

2 Quando se comenta sobre a comunicação de massa,


Marilena Chauí refere-se à comunicação social voltada ao grande público,
especialmente marcada pelos aparelhos televisivos e de internet,
que buscam uma maior difusão de ideais, especialmente, da
classe dominante a fim de subjugar e introjetar seus interesses na
“consciência coletiva” da massa, de modo a passar despercebido
o que leva os indivíduos a adotar determinada postura.

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Não obstante, atente-se ao segundo trecho que o professor Rubem Alves escreveu no
fragmento citado; diz que, diferente do senso comum, a ciência foi aquela que passou, ao
longo dos séculos, a ser o modelo de postura frente à realidade. Escreveu que, retomando
a referida citação, a ciência “(...) Não é uma forma de conhecimento diferente do senso
comum. Não é um novo órgão. Apenas uma especialização de certos órgãos e um controle
disciplinar de seu uso”.

O que Rubem Alves desejava que pensássemos com esse trecho? Apenas que a ciência
trabalha também com elementos do senso comum. Estes são apenas mais refinados, uma vez
que passam – como já se comentou no Tópico 2 dessa unidade, ao explanar sobre Galileu
Galilei – pela observação, pela experiência (ou empiria) e pela calculabilidade matemática.

você já leu isso no tópico 2 - página 10 - Un1

relembre
Nas revoluções científicas do século XVII, em especial,
Giordano Bruno retomou-se a matemática (já que o uso da matemática
para fazer ciência já era praxe na antiguidade) como a mais
importante técnica para se produzir ciência, uma vez que era
a partir dela – e hoje não é tão diferente assim – possível
comprovar de forma clara e demonstrar cientificamente o
que se desejava. O próprio Galileu deu inúmeras provas
disso quando, por exemplo, comprovou o heliocentrismo, já
indicado pelo monge e astrônomo polonês Nicolau Copérnico
(1473-1543), bem como pelo padre e astrônomo italiano
Giordano Bruno (1548-1600), queimado vivo pela Inquisição.

Ainda comentando o fragmento de Rubem Alves, salienta-se


que uma indústria/empresa funciona, seja qual for o seu ramo
empresarial/mercadológico, sempre a partir da matemática ou
de suas variantes, como a estatística. Por isso que, segundo
Nicolau Copérnico nosso pensador, a ciência “não é um novo órgão”, quer dizer,
não é nada de novo, senão a tentativa de comprovar ou de
reprimir o que o senso comum buscou sustentar.

Por fim, o senso comum significa um tipo de conhecimento


adquirido pelo homem a partir de experiências, vivências e
observação do mundo. É uma forma de conhecimento não
comprovado e, muitas vezes, de raiz popular, caracterizando-
se por conhecimentos empíricos acumulados ao longo
da vida e passados de geração em geração. Configura,
portanto, um saber que não se baseia em métodos ou
conclusões científicas, mas no modo comum e espontâneo
de assimilar informações e conhecimentos úteis no cotidiano.

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O bom senso
Enquanto o senso comum tende à rigidez e a inflexibilidade,
há outra forma que se pode pensar em “senso” ao descrever
a maneira como, normalmente, se lida com as coisas em
meio ao nosso cotidiano. O bom senso é uma forma de
sabedoria e de razoabilidade que delimita certa capacidade
de se adequar as regras e costumes de determinadas
realidades, de modo a fazer bons julgamentos e escolhas.
Suas características principais são maior flexibilidade
e dinamismo que o senso comum, absorvendo com
discernimento as influências mais diversas.

Cabe-nos, neste momento, relacionar o senso comum e o


bom senso à Filosofia.

“O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois


cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os
que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa,
não costumam desejar tê-lo mais do que têm.”
― René Descartes

A investigação filosófica
A partir dos tópicos anteriores, procuramos enfatizar que,
senso comum

para o modo de interpretação típico à Filosofia, nada se


René Descartes mostra como evidente, já que as coisas e os fenômenos
não se apresentarão para qualquer indivíduo como um dado
espontâneo, banal, isto é, a Filosofia, de antemão, é a ruptura
com o senso comum. É a partir desse ponto que a Filosofia
se dispõe a indagar esses mesmos fenômenos e coisas, bem
como as palavras que os homens concederam as mesmas;
palavras que tomam parte em nossas conversações sem
que nos preocupemos muito com a forma acrítica com que
as empregamos.

Recorremos, mais uma vez, a professora Marilena Chauí,


uma vez que esta formula a mesma observação de maneira
mais elegante na passagem abaixo:

Imaginemos (...) alguém que tomasse uma decisão muito


estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em
vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse:
O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “ficou
maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A
razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente
suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há
fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar
resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja
objetivo” ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a
objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais
bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”?
O que é o belo? Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse:
O que é a verdade? O que é falso? O que é o erro? O que é
a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe
ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subjetividade dos
namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O

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que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranquilamente sobre “maior” ou “menor”
ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade? E
se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas ideias, os mesmos
gestos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor?
O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade?
O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, (...) teria passado a indagar o que
são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. (...)
Estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por
que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém
estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.

O que é o tempo?

Salvador Dali

https://alistadelucas.files.wordpress.com/2012/02/salvador_dali_a_persistencia_da_memoria1.jpg?w=1024

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Marcamos no tópico anterior que a Filosofia nasce do


espanto, isto é, da admiração frente à realidade. Esta
admiração surge sempre que o homem defronta-se àquilo
que sempre esteve em contato, aquilo que sempre percebeu,
porém que nunca antes tinha se atentado que tal coisa
poderia se mostrar com outros sentidos. É o que nos chama
a atenção a professora Marilena Chauí no texto acima, uma
vez que o espanto ou admiração é o que nos possibilita sair
do senso comum bem como nos permite fazer as perguntas
como as que ela nos propõe no fragmento. Se assim procede
a Filosofia, a partir desse espanto, isso significa afirmar
também que o mundo não mais se apresentará como algo
previamente pronto, determinado – isto é, como o monstro da
charge no início desse tópico. É assim que, para a Filosofia,
importa, mais particularmente, que renovemos “o espanto”
sobre o sentido das práticas em que estamos engajados e
que procuremos, novamente, imaginá-las e transformá-las
à luz do pensamento.

“O começo
de todas
as ciências
é o espanto
de as coisas
espanto

Aristóteles

serem
o que são.”
Algum problema até esse ponto?
Então, prossigamos!

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T4 O mito como possibilidade privilegiada de


discurso e elementos fundamentais para o
surgimento da Filosofia
O que é Mito?
Atualmente, quando se pensa em mitos, imediatamente se lembra, fazendo referência à
mitologia grega, em especial, ao mito de Pandora, a primeira mulher, que levava um jarro
que continham “presentes” dos deuses aos homens, ou de Hércules, o grande semideus que
era filho do deus maior do panteão grego, Zeus, e da mortal Alcmena. Ou ainda do mito da
ciumenta Hera, esposa de Zeus, que enviara duas serpentes para matar Hércules ainda no
berço, mas que ele estrangulara-as com as próprias mãos.

Do rol dos belos mitos gregos, há ainda o de Afrodite, o de Apolo, deus da beleza, da juventude
e da luz. Filho de Leto e de Zeus, descrito como um jovem alto e bonito, além de simbolizar a
ordem, a medida e a inteligência, também é considerado patrono das artes. Segundo o mito,
embora Apolo não fosse considerado bom esportista, era um arqueiro de grande habilidade.
Suas flechas podiam causar doenças e morte súbita aos homens.

Apolo e as ninfas

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A partir desses exemplos, pode-se perceber que o mito procura explicar os fenômenos
naturais, as origens do mundo e da humanidade pela existência de deuses, semideuses e
heróis. O mito sempre tem um viés religioso, diferenciando-se, assim, de lenda, folclore, fábula
ou ainda de mentira. Os povos gregos antigos explicavam fatos que não eram compreendidos
na época e justificavam o que ainda não tinha sido descoberto por cientistas. Tanto um mito
pode ser explicativo como pode ser simbólico a partir de um acontecimento histórico.

É importante que se marque que o discurso mítico não é, de forma alguma, um discurso falso.
Ele era a forma encontrada na antiguidade para explicar a ordem das cosias e da realidade,
aja vista que o discurso racional só passou a ser utilizado a partir do século VI a. C. com os
primeiros filósofos, os chamados pré-socráticos, com Tales de Mileto à frente.

Atente-se ao que escreve o professor Danilo Marcondes:

O pensamento mítico consiste em uma forma pela qual um povo explica


aspectos essenciais da realidade em que vive: a origem do mundo, o
funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens deste
povo, bem como seus valores básicos. O mito caracteriza-se, sobretudo,
pelo modo como essas explicações são dados, ou seja, pelo tipo de
discurso que constitui. O próprio termo grego Mythos significa um tipo
bastante especial de discurso, um discurso ficcional ou imaginário (...).

As narrativas míticas não são produto de um autor ou autores, mas


parte da tradição cultural de um povo. Sua origem cronológica é
indeterminada, e sua forma de transmissão é basicamente oral. O mito
é, portanto, fruto de uma tradição cultural e não da elaboração de um
determinado indivíduo. Mesmo poetas como Homero, com a Ilíada e a
Odisseia (séc. IX a. C.), e Hesíodo (séc. VIII a. C.), com a Teogonia,
que são as principais fontes de nosso conhecimento dos mitos gregos,
na verdade não são autores desses mitos, mas indivíduos – no caso de
Homero cuja existência é talvez lendária – que registraram poeticamente
https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/ lendas recolhidas das tradições dos diversos povos que sucessivamente
originals/8c/22/c9/8c22c967fb577a41b
faac9c41ec29ccb.jpg ocuparam a Grécia desde o período arcaico (c. 1500 a.C.)1.

Os gregos não sabiam descrever tudo que acontecia, não existia forma para explicar os
acontecimentos, os fenômenos da natureza. Dessa mistura de dúvidas surgiu a “existência”
de deuses para explicar tudo o que trazia desconfiança. Eles eram tidos como respostas
para tudo o que quisessem saber.

O mito surgiu como uma forma de explicação para o que ocorria; como exemplo, vários
elementos da natureza, o vento, o mar, o céu, etc. eram explicados por meio de divindades
para os gregos. Pela mitologia, os gregos explicaram a chuva, por exemplo, por um deus
que ficava triste e chorava. Quando tinha raios, era porque outro estava enfurecido. Tudo
era baseado em criaturas sobrenaturais para que não houvesse questionamentos. Como
frisado acima, o mito consiste em uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem
dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos,
do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, das guerras, do poder, etc.).

O mito não se importava com contradições, com o incompreensível. A Filosofia, ao contrário, não
se pauta em contradições e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente,
com os sentidos minimamente explicitados; além disso, a autoridade da explicação não vem da
pessoa do filósofo ou do cientista, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

1 MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia – Dos pré-socráticos a Wittgenstein.


13ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, p. 20.

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Do mito à tradição pré-socrática – entre o


mito e o logos

Saiba mAIS Os primeiros filósofos não confiam inteiramente nos mitos


e questionam a realidade, buscam elementos da natureza
para esclarecer os fatos. Entretanto, é importante marcar
A palavra mito vem do grego, mythos (contar, que os primeiros pensadores, os chamados pré-socráticos
narrar, falar alguma coisa para os outros) e do
ou pensadores originários (séc. VI a. C.), não abandonaram
verbo mytheyo (conversar, contar, anunciar,
nomear, designar). Para os gregos, mito é um de imediato a mitologia. De modo geral, salvo algumas
discurso pronunciado ou proferido para ouvintes exceções, como Aristóteles, quase todos os filósofos
– já que era notadamente oral – que confiam ainda farão menções aos deuses e a religião grega. A
naquele que narra; é uma narrativa feita em público, passagem do mito para o pensamento lógico-racional foi
baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade
consideravelmente lenta.
da pessoa do narrador, sendo este chamado de
poeta aedo.
Os primeiros filósofos buscaram um princípio (arché,
em grego) para todas as coisas. O filósofo pré-socrático
Pitágoras (571-495 a. C.), por exemplo, dizia que os números
eram o princípio de tudo. Surgiu então a filosofia como uma
nova possibilidade de pensamento utilizando a razão como
maneira fundamental de explicar os acontecimentos, visando
sempre investigar e fazer questionamentos para se obter
uma base racional de sabedoria para todos.

Pitágoras de Samos

“A razão
é imortal,
todo o resto
é mortal”
Podemos constatar então que tanto o mito quanto a Filosofia
são explicações que visam responder aos questionamentos
sobre o sentido da vida, a natureza do homem e do universo,
assim como justificar as normas políticas, éticas e religiosas
da própria comunidade.

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Principais fatos históricos que marcam o


surgimento da visão racional na Grécia:

As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir


que os locais que os mitos diziam habitados por deuses,
titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres
humanos e que as regiões dos mares que os mitos diziam
habitados por monstros não passava de mera ficção;

A invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que


não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos
concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata,
uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas
diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de
abstração e de generalização;

A invenção do calendário, que é uma forma de calcular


o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os
fatos importantes que se repetem, revelando, com isso,
uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção
do tempo como algo natural e não como um poder divino
incompreensível;

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O surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio


e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de
fabricação e de troca, diminuindo o prestígio das famílias da
aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os
mitos foram criados;

A invenção da escrita alfabética, que, como a do


calendário e da moeda, revela o crescimento da capacidade
de abstração e de generalização, uma vez que a escrita
alfabética, diferentemente de outras escritas – como por
exemplo, os hieróglifos dos egípcios – supõe que não se
represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas
a ideia dela, o que dela se pensa e se transcreve;

A invenção da política, que introduz três aspectos novos


e decisivos para o nascimento da Filosofia:

1 – A ideia da lei como expressão da vontade de uma


coletividade humana que decide por si mesma, o que é
melhor para si e como ela definirá suas relações internas;

2 – O surgimento de um espaço público, que faz aparecer


um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele
que era proferido pelo mito. A política valorizava o humano, o
pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional;

3 – A política estimula um pensamento e discursos que não


procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados
em mistérios sagrados, mas que buscam, ao contrário,
serem públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e
discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_ compreender e discutir, que todos podem comunicar e
da_Mesopot%C3%A2mia
transmitir, é fundamental para a Filosofia.

Inscrição acadiana Assim, chega-se ao fim de mais um tópico, mas, não


desanime! Falta apenas mais um tópico para você encerrar
essa unidade.

Até a próxima!

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T5 Filosofia prática e Concepções Éticas


O que eu quero da vida? Quero ser feliz! Mas o que é ser feliz? Eis a
questão! Para uns a felicidade está em buscar o prazer. Para outros,
os prazeres provocam instabilidade, dor, sofrimento, por isso o ideal
seria sufocar as paixões. Há quem pense que a perfeita felicidade só
se encontra na vida futura, realizando-se com Deus. Para outros, ainda,
não é a felicidade que importa, o que vale é agir conforme o dever1.

Essas questões, que certamente você possivelmente já se colocou algumas vezes, também
tem sido preocupação dos filósofos através dos tempos. Na Filosofia, elas são pensadas
especialmente pela ética, que, em linhas gerais, é um conjunto normativo de valores que
procuram prescrever os comportamentos humanos, isto é, um determinado conjunto de
valores e/ou regras que regulam as ações e práticas dos indivíduos.

A ética, segundo Danilo Marcondes, seria:

Saiba mAIS “um estudo sistemático sobre as normas e os princípios que


regem a ação humana e com base nos quais essa ação é
avaliada em relação a seus fins2”.
A palavra ética, do ponto de vista etimológico*,
deriva da palavra grega “ethos”, que significa Pode-se afirmar que a reflexão ética se inicia no mundo
hábito, costume, e que foi usada inicialmente pelo ocidental na Grécia antiga, no século V a. C., notadamente
filósofo grego Aristóteles.
no período antropológico, marcado, especialmente, pelos
*Etimologia é a parte da gramática que se Sofistas, Sócrates e Platão, sendo, finalmente, sistematizado
dedica ao estudo da origem e da formação por Aristóteles (384-322 a. C.) (período sistemático) e por
das palavras. Epicuro (período helenístico)3.

No século citado, destaca-se o esforço de Sócrates no


sentido de se contrapor à oposição dos sofistas, buscando
os fundamentos da moral nas convenções das práticas e
valores humanos. A partir de Sócrates, portanto, a virtude
passará a ser o grande ponto no qual desenvolverá as
principais maneiras de se pensar a ética grega.

moral ética virtude

1 ARANHA, 1992. p, 120.

2 MARCONDES, 2009, p. 38.

3 Em linhas gerais e apenas para cunho didático, separa-se a Filosofia clássica grega em
alguns períodos, a saber: a) o pré-socrático ou cosmológico; b) o antropológico; c) o sistemático e o; d)
helenístico. Os pensadores citados acima são, respectivamente, representantes desses períodos.

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“Na Grécia clássica, os sofistas foram os mestres da retórica


e da oratória, professores itinerantes que ensinavam a sua
arte aos cidadãos interessados em dominar melhor a arte do

Saiba mAIS discurso, instrumento político fundamental para os debates


e as discussões públicas, já que na pólis (cidade-estado)
grega as decisões políticas eram tomadas nas assembleias,
A palavra sofista (do grego sophistes) deriva sendo os principais Protágoras de Abdera (490-420 a. C.),
das palavras sophia e sophos, que significam Górgias (485-380 a. C.) e Hípias (460-400 a. C.)
“sabedoria” ou “sábio” desde os tempos Cf. JAPIASSÚ; MARCONDES,1996, p. 252.
de Homero e foi originalmente usada para

Filóso
descrever a experiência em um conhecimento ou
ofício em particular. A oratória para os sofistas é
muito importante, uma vez que eles afirmavam,
contrapondo-se a Sócrates, que a verdade era
relativa, dependendo então de convencimento.
Segundo Japiassú e Marcondes,
Sócrates

Protágoras

Górgias

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Evolução do conceito de virtude (areté)

Deve-se entender por virtude uma disposição firme e


constante para a prática do bem. Do ponto de vista
etimológico, virtude deriva da palavra latina vir, que significa
homem, varão, e tem sentido de força, potência.

Mas o que significa a palavra areté?

ofos
Os gregos usavam a palavra areté para designar virtude. Esta
palavra, areté, é formada pelo termo áristos, que em grego
significa distinto, nobre. Assim, em um primeiro sentido com
Homero, a areté “é atributo próprio da nobreza e representa
a força que é elementar para qualquer classe dominante”1. Já
em Hesíodo, a areté passou a significar o trabalho do homem
no campo que ganha o pão de seu dia a dia com o suor de
seu rosto2. Para ele, o trabalho não desonra, e, sim, o ócio.

Com o surgimento da pólis (cidade-Estado) grega, o conceito


de virtude foi ganhando novo sentido, inicialmente com
os sofistas. Com eles, a areté passou a ser o domínio da
palavra, instrumento importante para a participação política
do cidadão na ágora (a praça pública, onde, de maneira
geral, se promoviam os debates)3.

Seguindo as pistas já oferecidas por Sócrates, Platão e


Aristóteles estabeleceram significados mais amplos para
o sentido de virtude, elevando, assim, o objetivo das
discussões sobre essa temática.

Na Ética, Platão propõe a busca do Bem, que reside no


mundo das essências, ou seja, no mundo das ideias.
Devemos adiantar que, para Platão, o real não se encontra no
mundo sensível, visível, e tanto as coisas existentes como os
conceitos (universais) de nossa mente são imagens reflexas
do ser transcendente que se encontra no mundo das ideias.
Hípias

Em A República, Platão levanta a questão sobre se a conduta


correta dos homens se daria por medo da punição ou por
convicção da necessidade de um comportamento justo. Em
outra passagem de A República, Platão, ao analisar a natureza
humana, descreveu o diálogo (uma vez que a maior parte
da obra de Platão é por meio de diálogos) de Sócrates com
Glauco sobre que tipo de homem seria mais feliz: aquele que
busca o lucro e a satisfação, aquele que é amigo do sucesso e
da glória, ou aquele que é amigo do saber. Após debate entre
os dois, Sócrates afirmou que o homem mais feliz é aquele
que é governado pela razão (pelo pensamento, a ideia, termo
desenvolvido no anexo I) e pela busca do saber.

1 SILVA, 2008, pp. 25-26.

2 SILVA, 2008, p. 26.

3 SILVA, 2008, p. 28.

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Ética das virtudes em Aristóteles: ética e Política

Para Aristóteles a virtude pode e deve ser ensinada, pois é um hábito. Nesse sentido, ele
se contrapõe a Platão, que, no diálogo Mênon, defende a posição de que a virtude é inata1
no homem.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/thumb/7/75/Spangenberg_-_Schule_
des_Aristoteles.jpg/500px-Spangenberg_-_
Schule_des_Aristoteles.jpg

1 Inata é aquela coisa que nasceu ou que está presente em alguém desde o nascimento.

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Para Aristóteles, tanto a ética quanto a política compõem


o saber prático da experiência humana1. Critica a ideia
platônica de Bem supremo como algo que não pode ser

Aristóteles
praticado e como algo inatingível pelo homem e propõe,
então, a busca de um bem que o homem possa praticar
e vivenciar.

afirma que Esse bem é a felicidade, que é o bem desejável em si


mesmo. Para Aristóteles, a felicidade não é conseguida

a virtude é pela realização dos prazeres terrenos, mas na realização


das virtudes.

um hábito e “A felicidade é a atividade da alma segundo a


perfeita virtude”.

depende de Ao se relacionar a busca da felicidade, como comenta


Aristóteles, com a pólis, percebe-se que esta possui como

nossa prática,
função política a busca do bem comum dos cidadãos, o
que se traduz pela consecução de uma vida feliz. Contudo,
quem é o cidadão da pólis? É aquele que administra a justiça

uma vez que e exerce funções públicas, participa do corpo de jurados


ou é membro da assembleia na ágora e que nasceu de
uma família de cidadãos ou é o escravo que conquistou a

aprendemos cidadania com as rebeldias ou com a participação em guerras


em defesa da pólis.

as coisas A pólis se constitui na autonomia da palavra, não mais a


palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e,

fazendo. portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito,


da discussão, da argumentação; ou seja, a pólis é fruto das
circunstâncias políticas. O saber deixa de ser sagrado e
passa a ser objeto de discussão.

A expressão da individualidade por meio do debate faz nascer


à política, libertando o homem dos exclusivos desígnios
divinos e permitindo a ele tecer seu destino na praça pública.

Para Aristóteles, os cidadãos não são simplesmente aqueles


que moram na pólis, mas, aqueles que participam da
administração, da jurisdição e da legislação relativa à cidade.

Finalmente, é necessário esclarecer que a condição de


cidadão se aplica a poucos na Grécia, mesmo em seu auge
como exemplo de democracia para o Ocidente, uma vez que
as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos não
eram considerados cidadãos.

Por volta do século V a. C., a cidade de Atenas tinha cerca


de 500.000 habitantes, dos quais 300.000 eram escravos;
50.000 eram metecos (estrangeiros); mulheres e crianças eram
excluídas. Cerca de 10%, apenas, eram considerados cidadãos.

1 Ética a Nicômaco, apud MARCONDES, 2007, p. 52-54.

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O declínio da pólis

No contexto do declínio da pólis no mundo helênico, vamos


estudar, para concluir essa unidade, o epicurismo.

“Nada É Epicuro de Samos

suficiente Epicuro cresceu numa época em que a filosofia da antiga


Grécia já tinha alcançado o auge com as ideias de Platão e
Aristóteles. Nesse período, o foco principal do pensamento

para quem
filosófico já estava mudando da metafísica1 para a ética/
política, como foi abordado anteriormente.

Entende-se, em linhas gerais, por Metafísica, a doutrina

o suficiente
filosófica que busca investigar a essência e ser das cosias.

Fundamentalmente a visão filosófica defendida por

é pouco.”
Epicuro é a da paz de espírito, ou tranquilidade como
objetivo da vida. Ele diz que o prazer e a dor são as
raízes do bem e do mal e que qualidades como virtude e
justiça derivam dessas raízes, porque é impossível viver
uma vida agradável sem viver de maneira sábia, honrada
e justa e é impossível viver de maneira sábia, honrada e
justa sem viver de maneira agradável.

Em 306 a. C., Epicuro funda em Atenas sua própria escola


epiculo de samos filosófica, situada em meio a grandes jardins, que admite
mulheres, escravos e estrangeiros. Nesse sentido, o
epicurismo rompe com o preconceito empreendido contra
estes, abrindo a possibilidade da docência e do exercício
filosófico para segmentos da sociedade que não eram
considerados cidadãos. O que era esse Jardim? “Uma
horta, útil para a alimentação frugal dos que ali se recolhem,
em convivência amigável junto ao mestre e inteiramente
apartados das questões e distúrbios da pólis”2. Essa philia
(amizade) sustentava a relação dos discípulos com o mestre
e unia todos à mesma doutrina.

O epicurismo, assim, muitas vezes é erroneamente


interpretado como simples busca dos prazeres sensuais.
Para Epicuro, o maior prazer só é alcançável por meio do
conhecimento, da amizade e de uma vida moderada, livre
do medo e da dor, como marca muito bem em sua Carta
sobre a felicidade (a Meneceu). Vale ressaltar que a ética
epicurista tem por meta da vida a busca do prazer, mas, com
moderação e simplicidade. Epicuro afirmava:

1 Entende-se, em linhas gerais, por metafísica, a doutrina


filosófica que busca investigar a essência e ser das cosias.

2 PESSANHA, 2007, p. 85.

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“(...) afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com
efeito, nós o identificamos com o bem primeiro e inerente ao ser
humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a
ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre
prazer e dor (...)”1

A meta do homem epicurista é atingir a ataraxia, isto é, a imperturbabilidade de espírito. Daí


o epicurismo propor também uma vida simples, de acordo com a natureza. O homem só
consegue essa imperturbabilidade, finalmente, que é condição para conseguir a serenidade
da alma, na medida em que não só consiga dominar as paixões e submetê-las à razão, mas
quando conseguir erradicá-las.

Se retornarmos ao trecho citado que interpretamos ao longo dessa unidade a partir do tópico
dois, lemos o seguinte já no trecho final:

“Nada de derramamentos, efusões e transbordamentos fúteis. É


simples, sóbrio, mas nisso e por isso cheio do solene e do hierático
da montanha. Sendo assim, desde o contido e do intenso, sua medida
é sempre o sóbrio, o pouco, o parco, o pobre.”

Pelo o que foi comentado sobre Epicuro e os gregos de modo geral, salvo algumas poucas
exceções, a ataraxia é a busca pela felicidade que se traduz na forma de certa serenidade,
tal como exposto no fragmento acima. A serenidade, algo que sempre a cada vez mais
desaparece de nossas ações ansiosas e fugazes, é a intensidade para uma sobriedade
tranquila que impele o homem à meditação, que não se confunde com nenhuma prática “de
moda” de “esvaziar a cabeça”, mas a meditação como impulso para a investigar os difíceis
contornos que perfaz a existência humana.

Por isso o “hierático da montanha”. Em nossa pressa, não pensamos essa palavra, hierático,
que significa algo sagrado. Os gregos viam com tanta estima o exercício da ataraxia, isto é,
da serenidade que impele os homens ao pensamento, que o viam de forma sagrada. Por isso
a felicidade, quer em Aristóteles, quer em Epicuro, não se confunde com prazer desmedido,
mas, pelo contrário, à medida justa, simples e sóbria.

Assim, o filósofo é o que vive sem “derramamentos”, sem luxo (como nos Jardins de Epicuro),
pois o que lhe basta é a sobriedade do pensar, e não a desmedida do prazer hedônico.

carpe diem
1 EPICURO, 2002, p. 37.

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