Você está na página 1de 8

637

A abordagem proibicionista em desconstrução:

ARTIGO ARTICLE
compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas

Deconstructing the prohibitionist approach:


a phenomenological existential understanding of drug abuse

Marcelo Sodelli 1

Abstract The present article aims to deconstruct Resumo O presente artigo pretende, por meio do
the Prohibitionist Model against drug abuse. pensamento da fenomenologia existencial, descons-
Understanding Man as an unfinished being, al- truir o modelo proibicionista ao uso de drogas. Ao
ways left to his own care, the study demonstrates compreender o homem como um ser inacabado,
the incompatibility of the Prohibitionist objec- sempre entregue ao seu próprio cuidado, o estudo
tives with Man’s unique way of being. We show caminhará na direção de demonstrar a incompa-
that it is the very existential condition of Man tibilidade dos objetivos proibicionistas com o modo
that generates what we call “existential vulnera- singular de ser do homem. Demonstraremos que é
bility”, a condition that is impossible to be mod- a própria condição existencial do homem que gera
ified. In fact, we argue that any preventive ap- o que nomearemos como “vulnerabilidade exis-
proach whose fundamental principle is the erad- tencial”, condição esta impossível de ser modifica-
ication of drug abuse would be prone to failure. da. Com efeito, argumentaremos que qualquer
Based on this positioning, we reject the Prohibi- abordagem preventiva que tenha como princípio
tionist view according to which “drug abuse” is fundamental erradicar o uso de drogas já estaria
always and invariably a deviant behavior (pa- fadada ao fracasso. Fundamentando-nos ainda
thology). Finally, the study points to the impor- neste posicionamento, rejeitaremos a compreen-
tance of the development of a new preventive ap- são proibicionista que o “uso de drogas” é sempre
proach that fully absorbs the uniqueness of the e invariavelmente um comportamento desviante
human condition (existential vulnerability), def- (patologia). Por fim, o estudo aponta para a im-
initely breaking with the prohibitionist precepts, portância do desenvolvimento de uma nova abor-
in fact, the Harm Reduction Approach. dagem preventiva que absorva de modo integral a
Key words Drugs, Prevention, Phenomenology, singularidade da condição humana (vulnerabili-
Prohibitionism dade existencial), rompendo definitivamente com
os preceitos proibicionistas, a saber, a abordagem
1
Faculdade de Ciências de redução de danos.
Humanas e da Saúde,
Departamento de Psicologia,
Palavras-chave Drogas, Prevenção, Fenomeno-
Pontifícia Universidade logia, Proibicionismo
Católica de São Paulo.
Rua Veríssimo Glória 165,
Sumaré. 01251-140 São
Paulo SP.
msodelli@pucsp.br
638
Sodelli M

Introdução O homem
na perspectiva fenomenológica existencial
Podemos perceber, nos últimos anos, intensa
produção de pesquisas que se dedicaram a estu- Uma das maiores contribuições do pensamento
dar um dos mais utilizados modelos de preven- fenomenológico existencial é a simples, mas im-
ção ao uso nocivo de drogas, a saber, intolerân- portante constatação de que não podemos estu-
cia e guerra contra as drogas (proibicionismo). dar e compreender o homem da mesma forma
Observamos, também, que a maioria destas pes- como o fazemos com outros seres e objetos. Po-
quisas se posicionou criticamente a esta aborda- demos distinguir duas condições fundamentais
gem, avaliando-a como ineficaz e irrealista1,2. Esta entre esses entes (tudo que existe, todos os seres
discussão ganhou dimensão ainda maior com o vivos e objetos) e o Dasein, termo proposto pelo
surgimento no Brasil, no fim da década de oiten- próprio Heidegger5 para indicar o caráter pecu-
ta, da abordagem de redução de danos e, poste- liar e distinto da existência humana. Dasein é o
riormente, da sua aplicação na área preventiva homem compreendido como o ser-existindo-aí.
ao uso de drogas. Dasein é sempre uma possibilidade na qual se
Pesquisas recentes3,4 apontam que um dos encontra como uma abertura para a experiência.
elementos principais que explica o fracasso da A primeira condição fundamental é que o
abordagem proibicionista é justamente o que está Dasein é o único ser que sabe da sua finitude, de
na base de seus pressupostos preventivos: a pre- que um dia sua vida vai terminar, de que ele é um
conização da abstinência. ser mortal. Desde o princípio, o Dasein está pre-
Embora vasta a literatura sobre este tema, determinado pelo seu fim6. O homem sabe que
poucos são os estudos que discutem, com base um dia virá em que ele não mais “será” ou “exis-
numa fundamentação teórica, as limitações e tirá”. Para a fenomenologia existencial, esta dife-
consequências da abordagem proibicionista na rença marca um modo distinto do homem estar
área preventiva. no mundo, muito diferente dos outros entes,
Partindo desta compreensão, o presente arti- uma vez que é o único ser que tem de conviver
go pretende, por meio do pensamento da fenome- com o seu-ser-para-a-morte e é livre para reali-
nologia existencial, realizar um estudo reflexivo zar uma opção entre viver ou morrer. Desta con-
sobre a condição humana e o uso de drogas. Ao dição ontológica, nascem dois sentimentos ine-
compreender o homem como um ser inacabado, rentes ao Dasein: a angústia e a culpa.
sempre entregue ao seu próprio cuidado, o estu- A ameaça do não-ser (a morte) é a fonte da
do caminhará na direção de demonstrar a incom- angústia primordial do Dasein, a qual vivencia-
patibilidade dos objetivos proibicionistas com o mos por meio do confronto entre a necessidade
modo singular de ser do homem. Demonstrare- de realização das nossas potencialidades e o peri-
mos que é a própria condição existencial do ho- go de não ser capaz de realizá-las. Cada angústia
mem que gera o que nomearemos como “vulne- humana tem um de que, do qual ela tem medo, e
rabilidade existencial”, condição esta impossível um pelo que, pelo qual ela teme. O de que de cada
de ser modificada. Com efeito, argumentaremos angústia compreende a possibilidade real do
que qualquer abordagem preventiva que tenha Dasein de um dia não estar mais aqui. O pelo que
como princípio fundamental erradicar o uso de da angústia nos remete à própria condição exis-
drogas já estaria fadada ao fracasso. Fundamen- tencial do Dasein, ou seja, a responsabilidade de
tando-nos ainda neste posicionamento, rejeitare- zelar e cuidar de sua continuidade no mundo7.
mos a compreensão proibicionista que o “uso de A culpa é outra importante singularidade do
drogas” é sempre e invariavelmente um compor- modo de ser do Dasein, a qual não está relacio-
tamento desviante (patologia). Por fim, apresen- nada às proibições ou tabus culturais, mas, fun-
taremos a abordagem de redução de danos como damentalmente, à consciência de que o ser do
uma nova alternativa na prevenção primária. Dasein está sempre em jogo. Consciência deve
Ressalvamos que a compreensão fenomeno- ser entendida aqui como o “saber junto - com”,
lógica existencial apresentada neste artigo se sus- quer dizer, o Dasein é convocado por ele mesmo
tenta, exclusivamente, na discussão feita por Hei- a dar conta do seu ser (existir)8. Conhecer esta
degger, em sua obra “Ser e Tempo”5.Utilizaremos, tarefa é ter consciência do apelo do ser, do estar-
também, outros autores que compartilham des- aí-no-mundo.
te modo de compreender o existir humano, entre Deste modo, temos sempre que escolher um
outros: Medard Boss, Benedito Nunes e Zeljko modo de ser e, como tal, podemos falhar nesta
Loparic. escolha. A culpa então se vincula à consciência da
639

Ciência & Saúde Coletiva, 15(3):637-644, 2010


não-realização integral das potencialidades, da ponsabilidade. Assim, o homem tem que “cuidar
necessidade imperativa de efetuar certas escolhas, de ser”. Os homens tomam para seu cuidado tudo
em detrimento de outras. Para melhor entender- o que pertence à existência: o mundo, as coisas
mos o sentimento de culpa, vejamos a segunda do mundo, os outros homens, si mesmos. Hei-
diferença fundamental entre o Dasein e os ou- degger5 define como “cuidado” o habitar o mun-
tros entes. do e construí-lo, preservar a vida biológica e aten-
A segunda condição fundamental é que o der suas necessidades, tratar de si mesmo e dos
homem nasce com o seu ser livre. O Dasein é outros. É o “cuidado” que torna significativas a
essencialmente livre, no sentido de ser capaz de vida e a existência humana. Ser-no-mundo, por-
realizar opções e de tomar decisões das quais re- tanto, é cuidar10-12.
sultam os significados de sua existência. Os ou- Após essa breve apresentação, podemos ini-
tros animais já nascem destinados a serem eles ciar uma compreensão sobre as relações entre o
mesmos, pois não têm a possibilidade de ser homem e o uso de drogas, com base na perspec-
outra coisa. Por exemplo, uma abelha já nasce tiva fenomenológica existencial.
abelha, não há outra possibilidade, a não ser,
existir como abelha. Por outro lado, o homem
nasce possibilidade e não determinação. Um olhar fenomenológico existencial:
Na compreensão fenomenológica existencial, aproximações ao fenômeno
o homem se torna Dasein unicamente na sua re- do uso de drogas
lação de ser-com-os-outros (humanos). Dasein
é sempre uma possibilidade, na qual se encontra Ao examinarmos a condição humana, na pers-
uma abertura para a experiência. O homem é o pectiva fenomenológica existencial, é possível ra-
ser-existindo-aí. pidamente entender por que o uso de drogas se
Entretanto, o Dasein não existe isoladamente fez presente, pelo menos até onde sabemos, des-
sem o mundo que habita que, por sua vez, tam- de as civilizações mais antigas, como os fenícios
bém não existe separado do Dasein. Quer dizer, (4.000 a.C.), por exemplo13. Documentos anti-
o homem não é uma simples “coisa” no meio de gos descrevem a produção de cerveja por meio
outras coisas, nem uma interioridade fechada da fermentação do pão, que continua até os dias
dentro de si mesmo. Daí a importância de com- de hoje.
preender a expressão fenomenológica “ser-no- Apresentamos anteriormente que, para a fe-
mundo”, que aponta primeiramente para um fe- nomenologia existencial, o homem possui duas
nômeno de unidade e é deste modo que devemos condições ontológicas fundamentais: ser mortal
compreendê-la. Esta expressão deve ser entendi- e ser livre. Na vida cotidiana, essas duas condi-
da como uma estrutura de realização, visto que a ções existenciais são vivenciadas onticamente por
existência do homem como “ser-no-mundo” se meio dos sentimentos da angústia e da culpa.
desenvolve num mundo de realizações, interes- Por ser uma condição existencial do Dasein ter
ses e explorações, de lutas e fracassos5. que cuidar do próprio existir, dando sentido para
Porém, mesmo sendo possibilidade, o ho- as coisas do mundo, e mais, sabendo que é im-
mem não vive solto no mundo, sem rumo. Ao possível transferir esta tarefa para outro, por es-
contrário, por sua condição ontológica de aber- tas razões, o mundo pode se tornar um lugar
tura, de ter-que-ser alguma coisa, todo o tempo, inóspito, a vida pode ser sentida como um ônus,
o homem se entrelaça no mundo, por meio da como um fardo que se tem de carregar.
busca incessante pelo sentido. O sentido da exis- Nesta mesma direção, Loparic9 alerta que o
tência consiste no estar-lançado-no-mundo, perigo que nos espreita e em toda parte nos acua
como seu destinar-se, seu rumo. E é esse sentido é o mundo como mundo, originário e direta-
da existência que vai impulsionando e pressio- mente, que se abre para o Dasein desabrigado. O
nando a mundanização de nosso mundo, toda a mundo inteiro não o pode completar. Conscien-
ambientação de nosso lugar de vida, nosso tra- te disto, o Dasein experimenta a angústia e deses-
balho, nosso fazer. Assim, a força motivadora pero, dor e tédio. Essa consciência revela a essen-
da vida humana é a busca que o homem empre- cial vulnerabilidade existencial do ser humano. É
ende para dar um sentido à sua existência9. desta vulnerabilidade existencial que se origina a
Como já discutimos, ao dar-se conta de ser, abertura para o possível uso de drogas. É frente
de poder-ser, o homem percebe que tem que dar à angústia do futuro estrangeiro que se abre a
conta de seu ser, ou seja, tem que dar conta de possibilidade do uso de drogas como promessa
sua existência e, sobretudo, isto está sob sua res- de um viver mais tranquilo. Assim, o uso de dro-
640
Sodelli M

gas vai revelar-se como uma das possibilidades tenda universalmente negar esta possibilidade
de alívio do cuidar, na precariedade do viver14. É humana, estará fadado ao fracasso.
claro que não é só por meio do uso de drogas Torna-se possível, então, considerar a ques-
que o homem busca o alívio do ter que cuidar do tão do uso de drogas como uma entre tantas ou-
seu próprio ser. Outras atividades também po- tras possibilidades de alterar nossa consciência,
dem proporcionar esta sensação, por exemplo, de diminuir o sofrimento e a angústia existencial.
assistir a um bom filme, praticar esportes, parti- A história da humanidade nos ensina que o uso
cipar de um culto religioso, ter um relaciona- de drogas é apenas um modo de vida. As pessoas
mento sexual. Todas essas atividades podem nos sempre as utilizaram, por motivos os mais diver-
possibilitar momentos prazerosos, nos quais sos, e sem dúvida, seguirão utilizando-as17.
experimentamos um desligar automático da nos- Mas, por que é tão perturbador pensar desta
sa árdua tarefa do cuidar do nosso próprio ser, maneira? Por que é tão difícil aceitarmos a idéia
ou seja, podem provocar uma alteração do esta- de que o fenômeno do uso de drogas seja avalia-
do da consciência. do da mesma maneira como qualquer outro fe-
Historicamente, é inegável que o ser humano nômeno que busca a alteração da consciência?
vem se dedicando a criar vários métodos para
alterar a consciência, como dançar, jejuar, medi-
tar e até mesmo criar atividades que colocam em Dependência e danos à saúde:
risco sua própria vida, como o automobilismo, inevitabilidade do uso de drogas?
a escalada e tantas outras experiências15. Esta
particularidade da condição existencial do ho- A resposta mais imediata é que o uso de drogas
mem não deve ser compreendida como uma fa- pode causar algum dano à saúde e pior, pode
lha do ser humano, mas sim como algo que pos- causar também uma grave patologia, o fenôme-
sibilita a ampliação da criatividade. Esta condi- no da dependência. Vale lembrar que esses estão
ção humana é que nos possibilita ultrapassar entre os principais argumentos que justificam a
nossos próprios limites e na qual reside toda a atual política mundial da intolerância e de re-
nossa contradição de ser humano, pois que, ao pressão ao uso de drogas, o modelo preventivo
mesmo tempo em que temos o potencial de criar da intolerância e da guerra contra as drogas.
a poesia mais bonita, somos capazes de pensa- O primeiro argumento, a nosso ver, é indis-
mentos e de atos de extrema barbaridade. cutível: realmente, o uso de drogas pode causar
A incessante busca do ser humano em alterar danos à saúde. Entretanto, existem diversas ou-
o estado da consciência também é reconhecida tras coisas que também podem causar danos à
pela antropologia. Por exemplo, nas mais diver- saúde, e que, mesmo assim, continuamos a fazer
sas sociedades e culturas estudadas por antropó- todos os dias. Tomemos como exemplo a ques-
logos e por outros cientistas sociais, encontra- tão da poluição: em última instância, nós a pro-
mos algum tipo de situação, algum momento em duzimos, já cientes de que ela vai prejudicar não
que não só é permitido, como pode ser inclusive só a nós, mas também as gerações futuras. Sabe-
valorizado, um tipo de alteração de comporta- mos também que ocorrem, por ano, muito mais
mento, alteração de atitude em relação a uma roti- acidentes fatais no trânsito do que em decorrên-
na16. Essa alteração pode ou não estar associada cia do uso nocivo de drogas ou de overdose, e,
ao uso de substâncias que chamamos de drogas. mesmo assim, milhões de pessoas continuam
Na compreensão fenomenológica existencial, utilizando diariamente seus automóveis.
o ser humano, por sua própria constituição on- O que estamos tentando demonstrar não é,
tológica, se apresenta vulnerável em relação ao de forma alguma, o argumento de que, já que
cuidar do seu existir. Esta vulnerabilidade, por está tudo errado no mundo, não existe sentido
sua vez, possibilita uma procura interminável em em nos preocuparmos com os possíveis danos
minimizar os sentimentos de angústia e de culpa. do uso de drogas. Pelo contrário, estamos ten-
Compreendemos, assim, por meio do pen- tando mostrar outro aspecto: assim como tenta-
samento fenomenológico existencial, que é im- mos minimizar os danos causados pela poluição
possível acabar com a possibilidade do uso de e pelo trânsito, através de regulamentos, infor-
drogas entre os seres humanos, pois, para isto mações, infraestrutura e, principalmente, da edu-
acontecer, seria necessário modificar a própria cação, deveríamos, também, assumir definitiva-
condição ontológica do Dasein. Deste modo, todo mente esta postura perante a questão das drogas.
e qualquer esforço, seja de caráter preventivo ou Sabemos que não é possível pensar uma gran-
de tratamento ao uso nocivo de drogas, que pre- de cidade sem os riscos de acidentes de trânsito,
641

Ciência & Saúde Coletiva, 15(3):637-644, 2010


mas também estamos cientes de que há uma mundo, como se a própria condição existencial
grande diferença entre aquelas cidades, cujas es- tivesse sido mudada. Os desdobramentos desta
tradas são cuidadas, em que há o planejamento experiência vão depender do modo como cada
do trânsito urbano, que oferecem transporte se- um cuida do seu ser, do modo como compreen-
guro para a população, daquelas que não to- de o sentido de seu ser-no-mundo. Como, na
mam essas providências. Em vez de proclamar compreensão fenomenológica, o sentido de ser-
uma tola proibição, devemos reconhecer que o no-mundo não é algo passível de ser determina-
desejo de drogas recreativas é tão legítimo quan- do, qualquer tentativa de prever os desdobra-
to inextinguível e que é preferível reduzir os da- mentos do modo de ser do Dasein estará desti-
nos associados a elas a fingir que está tudo bom nada ao equívoco. Especificamente em relação
apenas com a manutenção da ideologia da proi- ao uso de drogas, isto será revelado vivencial-
bição - mas na realidade promovendo um con- mente (onticamente) pelos variados padrões de
sumo extremamente inconsciente, desfavorável, uso (experimentador, ocasional, habitual e de-
desimpedido, descontrolado e desenfreado15. pendente) e modos de uso (controlado, de risco
Novamente, voltamos à nossa posição ini- e nocivo). Assim, podemos compreender por que
cial. Afirma o autor citado acima que é impossí- o fenômeno da dependência não é uma condição
vel acabar com o desejo humano em usar as dro- imutável ou, dito em outros termos, um depen-
gas, ou seja, fenomenologicamente falando, é im- dente não está de forma alguma determinado a
possível modificar a condição ontológica do ser ser dependente para sempre.
humano. Assim, o argumento de que o uso de Outros autores19-21, ao discutirem os fatores
drogas causa danos à saúde, a nosso ver, não é que determinam o padrão de uso do usuário de
suficiente nem satisfatório para sustentar um mo- drogas, acabam revelando uma compreensão que
delo da intolerância e da guerra contra as drogas. pode ser aproximada à postura fenomenológica.
O segundo argumento é que o uso de drogas Ressaltam eles que não se pode referir ao padrão
pode causar uma grave patologia: a dependência. do uso de drogas apenas pelas propriedades far-
Vejamos como o olhar fenomenológico existen- macológicas das substâncias, mas por um con-
cial pode contribuir para ampliarmos nossa com- junto de fatores intrínsecos: a droga, o indivíduo
preensão sobre este fenômeno. Afirmamos ante- e o meio social. Ou seja, na relação do homem
riormente que uma das principais características com o mundo (droga e meio social); a partir do
do homem é a sua condição existencial de ser li- modo de cuidar de ser; da trama do sentido de
vre. Ao mesmo tempo em que este modo de estar ser-no-mundo.
no mundo é sentido como algo prazeroso, que Consideramos que, neste momento, após a
abre infinitas possibilidades, também é sentido desconstrução da abordagem proibicionista, es-
como um problema que tem que ser resolvido a tamos aptos a apresentar uma nova possibilida-
todo tempo: sempre sou chamado a decidir so- de de trabalho preventivo. Assim, apresentare-
bre o modo como vou cuidar do meu ser-livre. mos a seguir, a abordagem de redução de danos
Desse modo, o sentido da minha vida, o modo como uma nova possibilidade preventiva.
como eu a vivo, aquilo que está sob minhas mãos,
é de minha inteira responsabilidade. O sentido
que ser faz para cada um de nós, individualmente A redução de danos na prevenção primária
ou coletivamente, revela-se na nossa relação com
o mundo, no qual vamos tecendo e estruturan- A redução de danos teve origem na Inglaterra,
do nossa vida cotidiana18. É o cuidado que torna em 1926, com as recomendações de um relatório
significativas a vida e a existência humana. E é que ficou conhecido como “Relatório Rolleston”,
justamente por esta abertura existencial (ser-li- que estabelecia o direito de os médicos ingleses
vre) que o uso de drogas pode causar um estrei- prescreverem suprimentos regulares de opiáceos
tamento do modo de cuidar de ser, ou seja, na a dependentes dessas drogas.
liberdade de ser. Porém, só no início da década de oitenta, na
Podemos observar que é muito comum, no Holanda, é que os princípios da proposta de re-
início do uso de drogas, o usuário experimentar dução de danos (RD) começaram a ser sistema-
um modo de estar no mundo completamente tizados em formas de programas. Por iniciativa
diferente daquele modo cotidiano de ser14. Ou de uma associação de usuários de drogas, foi rea-
seja, na compreensão fenomenológica, o uso de lizada uma ousada proposta para combater uma
drogas pode proporcionar, mesmo de maneira epidemia de hepatite B entre usuários de drogas
fugaz, um modo mais agradável de estar no intravenosas (UDI). Logo em seguida, o sistema
642
Sodelli M

de saúde holandês adotou esse programa e co- aumentar consideravelmente na adolescência,


meçou a distribuir seringas, para evitar que elas correndo–se o risco de perder o pouco controle
fossem compartilhadas e, assim, diminuir a trans- sobre os jovens que ainda se tem.
missão da doença entre os UDI. A idéia de relacionar a redução de danos como
O programa de RD tem um princípio sim- prevenção primária é para reafirmar a posição de
ples: é uma política social cujo objetivo prioritá- que o objetivo da prevenção não deveria ser o de
rio é minorar os efeitos negativos decorrentes do acabar com o uso de drogas, pois, como já de-
uso de drogas. Por exemplo, em relação ao uso monstramos, esta é uma tarefa impossível. Logo,
de droga injetável, constatada a dificuldade ou a trabalhos preventivos que preconizam somente a
falta de vontade dos usuários em abandonar a proibição do tipo “não pode porque não pode”
utilização da substância, a idéia é criar alternati- vêm se mostrando ineficazes no lidar com a pro-
vas para diminuir o dano causado. blemática do uso de drogas. Assim, a prevenção
O primeiro ponto a esclarecer é referente ao deveria, fundamentalmente, assumir a tarefa de
entendimento da abordagem de redução de da- intervir na redução dos níveis de vulnerabilidade
nos como prevenção primária. Sabe-se que a pre- ao uso nocivo das substâncias psicoativas.
venção pode ser dividida em três modos de inter- Trabalhar a prevenção às drogas na perspec-
venção: tiva da abordagem de redução de danos, na pre-
. A prevenção primária refere-se ao trabalho venção primária, é compreender que o melhor
que é feito com pessoas (alunos) que ainda não caminho para lidar com o fenômeno do uso de
experimentaram, ou que estão na idade em que drogas não é o de decidir e definir pelos outros
possivelmente pode se iniciar o uso de uma dro- quais os comportamentos mais adequados e cor-
ga lícita ou ilícita; retos. Muito diferente disso, é construir, junto com
. A prevenção secundária tem como objetivo o outro, possibilidades de escolhas mais autênti-
atingir as pessoas que já experimentaram ou que cas, mais livres, diminuindo vulnerabilidades.
fazem um uso ocasional de drogas, com intuito A partir desta abordagem, o comportamen-
de evitar que este padrão de uso se torne proble- to de “experimentar uma droga” não deveria ser
mático ou abusivo (uso habitual); compreendido como uma falha no trabalho pre-
. A prevenção terciária corresponde aos usu- ventivo primário, mas sim, uma possibilidade,
ários que já apresentam problemas (uso proble- entre outras, do existir humano. Desta maneira,
mático, uso habitual) e a intervenção preventiva só poderíamos dizer que houve falha na inter-
é feita para que eles não cheguem à dependência. venção preventiva primária se este experimentar
Ao descrever estes três modos de prevenção, evoluir para o uso nocivo de drogas.
poderíamos refletir que os pressupostos da abor- Todas as objeções colocadas a esse modo de
dagem de redução de danos não teriam sentido trabalhar a prevenção estão sustentadas pela idéia
na prevenção primária, já que esta intervenção é equivocada de que trabalhar a proibição e a abs-
indicada para os indivíduos que ainda não tive- tinência, na prevenção primária, contribui para
ram nenhuma experiência com o uso de drogas. o desenvolvimento de comportamentos mais se-
Poderíamos perguntar como seria possível redu- guros em relação ao uso de drogas. Podemos
zir danos em pessoas que ainda nem fizeram uso facilmente perceber aí uma contradição: como
de drogas. Ou ainda, procurar saber como seria podemos esperar comportamentos mais segu-
o trabalho preventivo na escola, considerando um ros no uso de drogas, se nem ao menos discuti-
projeto preventivo desenvolvido na educação in- mos esta possibilidade na prevenção primária?
fantil ou no ensino fundamental. E mais: que tipo Seguindo nossa linha de argumentação, o sen-
de formação estaríamos propondo às crianças? tido da prevenção seria diminuir os riscos asso-
Considerando que o conceito proibicionista ciados ao uso de drogas, entre os quais destaca-
está arraigado em nossa cultura educativa, uma mos o padrão de uso habitual ou de dependên-
ferramenta utilizada largamente, no âmbito es- cia, dirigir sob o efeito de alguma substância psi-
colar, resumida no conceito “não pode porque coativa, overdose, o compartilhamento de serin-
não pode”, uma das principais dificuldades seria gas ou de cachimbos, o uso de drogas associado
não saber qual pressuposto colocar no lugar da a comportamentos de risco (sexo sem proteção,
mera proibição. Possivelmente, muitos argumen- esportes radicais.), violência, etc.
tariam que, se não trabalharmos os conceitos de Considerando esta perspectiva, a questão do
proibição e abstinência, na prevenção primária, uso de drogas passa a ser compreendida de ou-
entre e com aqueles que ainda não experimenta- tra maneira: as drogas não devem ser classifica-
ram alguma droga, o consumo de drogas iria das a priori como substâncias maléficas, mas sim,
643

Ciência & Saúde Coletiva, 15(3):637-644, 2010


como substâncias neutras. Só poderíamos valo- o fenômeno da dependência não é uma condição
rizar as drogas, na relação com o homem, nesse imutável ou, dito de outra forma, um dependen-
contexto em que se estabelece o sentido do uso, te não está de forma alguma determinado a ser
seja um uso recreacional, medicinal, nocivo, com- dependente para sempre.
pulsivo, entre outros. Ao chegarmos por meio da fenomenologia
Ao relacionar o modelo de redução de danos existencial à compreensão sobre a impossibili-
à prevenção primária, estamos propondo muito dade de mudar a condição existencial do homem
mais que um novo modelo preventivo: estamos e, consequentemente, a sua disposição em rela-
oferecendo um modelo de educação preventiva. ção ao uso de drogas, identificamos, na aborda-
Em outras palavras, que homem desejamos for- gem de redução de danos, um terreno fértil para
mar e que sociedade pretendemos construir. firmarmos um novo objetivo preventivo: redu-
zir vulnerabilidades ao uso nocivo de drogas.
Estabelecemos, assim, um contraponto à abor-
Considerações finais dagem proibicionista, ou seja, em vez de traba-
lhar somente a abstinência e a repressão, o senti-
Não desconsiderando a força do modelo proibi- do da prevenção deveria ser o de promover ações
cionista, fomos buscar, na compreensão feno- redutoras de vulnerabilidades ao uso nocivo de
menológica existencial, argumentos para des- drogas. É nesse sentido que entendemos o entre-
construir essa visão determinista e fatalista so- laçamento da prevenção primária ao uso de dro-
bre a relação do homem com as drogas. gas com a abordagem de redução de danos e,
Embora nosso estudo fenomenológico exis- mais especificamente, no âmbito escolar, a possi-
tencial não possa ser entendido como uma pro- bilidade da construção permanente de uma rede
funda investigação da condição humana, foi su- cuidadora entre o professor e o aluno.
ficiente para nos revelar outras possibilidades da Ao dialogar com outros interesses, sem ser o
relação do homem com as drogas e abrir novas do controle, o da proibição, o sentido da prática
alternativas para o desenvolvimento de projetos preventiva se modifica, assim como o seu modo
preventivos ao uso nocivo de drogas. de dialogar. Portanto, não é o técnico (professor,
Sem dúvida, uma das maiores contribuições psicólogo, médico, etc.) que determinará como
deste estudo foi a compreensão de que a idéia de o sujeito–alvo (aluno, professor) deveria se pre-
acabar com o uso de drogas entre os seres hu- venir, mas é o próprio sujeito, após intensa refle-
manos é irreal, pois, para isto acontecer, seria xão, que se colocará em questão, buscando for-
necessário modificar a própria condição ontoló- mas e apoio para reduzir suas vulnerabilidades.
gica do homem (a tarefa intransferível de cuidar Considerando a abordagem de redução de
do seu próprio existir). Deste modo, todo e qual- danos na prevenção primária, podemos indagar
quer esforço, seja de caráter preventivo ou de se não seria um dos sentidos da prevenção a ten-
tratamento ao uso de drogas, que pretender uni- tativa concreta de contribuir para o cuidar de si
versalmente negar esta possibilidade humana, mesmo e também do outro. Ora, considerar esta
estará fadado ao fracasso. abordagem é reconhecer a importância de possi-
A compreensão fenomenológica existencial bilitar para o aluno a construção de seu projeto
nos mostrou também que o sentido de ser-no- de vida ou, em outras palavras, encorajar no alu-
mundo não é algo passível de ser determinado; no o poder de transformação, que estamos no-
qualquer tentativa de prever os desdobramentos meando hoje como a possibilidade de construir
do modo de ser do Dasein estará destinada ao sua plena cidadania.
equívoco. Especificamente em relação ao uso de A insistência em preconizar o modelo proibi-
drogas, isto é revelado vivencialmente, pelos va- cionista, a pedagogia do controle, o distancia-
riados padrões de uso (experimentador, ocasio- mento do sentido de educar do sentido de preve-
nal, habitual e dependente), como também pelos nir, poderá custar a todos nós a perpetuação da
modos de se relacionar com as drogas (uso con- inexistência de um autêntico trabalho de preven-
trolado, de risco e nocivo). Assim, podemos com- ção ao uso nocivo de drogas no âmbito escolar.
preender, primeiro, que o uso de drogas não leva Ou seja, o esquecimento de um dos sentidos mais
necessariamente a uma patologia e segundo, que próprios da educação: reduzir vulnerabilidades.
644
Sodelli M

Referências

1. Canoletti B, Soares CB. Drug consumption preven- 14. Sipahi FM, Vianna FC. A dependência de drogas e
tion programs in Brazil: analysis of the scientific a fenomenologia existencial. Revista da Associação
production from 1991 to 2001. Interface (Botucatu) Brasileira de Daseinsanalyse 2002; 11:85-92.
2005; 9(16):115-129. 15. Scheerer S. Dominação ideológica versus lazer psi-
2. Moura RAC. O diálogo entre as políticas, as pesqui- cotrópico. In: Ribeiro MM, Seibel SD, organizado-
sas acadêmicas e a práxis de prevenção ao indevido de res. Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo: Me-
drogas nas escolas [dissertação]. São Paulo (SP): morial; 1997. p.287-300.
Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade 16. Velho G. Drogas, níveis de realidade e diversidade
Católica; 2004. cultural. In: Ribeiro MM, Seibel SD, organizado-
3. Sodelli M. Aproximando sentidos: formação de pro- res. Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo: Me-
fessores, educação, drogas e ações redutoras de vulne- morial; 1997. p.61-69.
rabilidade [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Psi- 17. Toscano Jr. A. Um breve histórico sobre o uso de
cologia, Pontifícia Universidade Católica; 2006. drogas. In: Seibel SD, Toscano Jr. A. Dependência de
4. Tavares-De-Lima FF. Prevenção ao uso de drogas: drogas. São Paulo: Atheneu; 2001. p.7-24.
modelos utilizados na educação, suas relações e possi- 18. Heidegger M. Seminário de Zollikon. São Paulo:
bilidade quanto a atitudes preventivas [dissertação]. EDUC; Petrópolis: Vozes; 2001.
São Paulo (SP): Faculdade de Psicologia, Pontifícia 19. Macrae E. A excessiva simplificação da questão das
Universidade Católica; 2003. drogas nas abordagens legislativas. In: Ribeiro MM,
5. Heidegger M. Ser e o Tempo. 4ª ed. Petrópolis: Vo- Seibel SD, organizadores. Drogas: hegemonia do ci-
zes; 1993. nismo. São Paulo: Memorial; 1997. p.327-334.
6. Nunes B. Heidegger e ser e tempo. Rio de Janeiro: 20. Baratta A. Introdução a uma sociologia da droga.
Jorge Zahar; 2002. In: Mesquita F, Bastos FI, organizadores. Drogas e
7. Boss M. Angústia, Culpa e Libertação. São Paulo: AIDS - estratégias de redução de danos. São Paulo:
Livraria Duas Cidades; 1975. Hucitec; 1994. p.21-44.
8. Inwood MJ. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: 21. Bucher R. Drogas o que é preciso saber. São Paulo:
Jorge Zahar; 2002. Melhoramentos; 1992.
9. Loparic Z. Heidegger.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar;
2004.
10. Safranski R. Heidegger, um mestre na Alemanha en-
tre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial;
2000.
11. Critelli DM. Analítica do sentido: uma aproximação e
interpretação do real de orientação fenomenológica.
São Paulo: EDUC/Brasiliense; 1996.
12. Loparic Z. Além do inconsciente: sobre a descons-
trução heideggeriana da psicanálise. Natureza Hu-
mana 2001; 3(1):91-140.
13. Seibel SD, Toscano Jr A. Conceitos básicos e classi-
Artigo apresentado em 24/04/2007
ficação geral das substâncias psicoativas. In: Seibel
Aprovado em 14/08/2007
SD, Toscano Jr A. Dependência de drogas. São Paulo:
Versão final apresentada em 04/12/2007
Atheneu; 2001.

Você também pode gostar