ARTIGO ARTICLE
compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas
Marcelo Sodelli 1
Abstract The present article aims to deconstruct Resumo O presente artigo pretende, por meio do
the Prohibitionist Model against drug abuse. pensamento da fenomenologia existencial, descons-
Understanding Man as an unfinished being, al- truir o modelo proibicionista ao uso de drogas. Ao
ways left to his own care, the study demonstrates compreender o homem como um ser inacabado,
the incompatibility of the Prohibitionist objec- sempre entregue ao seu próprio cuidado, o estudo
tives with Man’s unique way of being. We show caminhará na direção de demonstrar a incompa-
that it is the very existential condition of Man tibilidade dos objetivos proibicionistas com o modo
that generates what we call “existential vulnera- singular de ser do homem. Demonstraremos que é
bility”, a condition that is impossible to be mod- a própria condição existencial do homem que gera
ified. In fact, we argue that any preventive ap- o que nomearemos como “vulnerabilidade exis-
proach whose fundamental principle is the erad- tencial”, condição esta impossível de ser modifica-
ication of drug abuse would be prone to failure. da. Com efeito, argumentaremos que qualquer
Based on this positioning, we reject the Prohibi- abordagem preventiva que tenha como princípio
tionist view according to which “drug abuse” is fundamental erradicar o uso de drogas já estaria
always and invariably a deviant behavior (pa- fadada ao fracasso. Fundamentando-nos ainda
thology). Finally, the study points to the impor- neste posicionamento, rejeitaremos a compreen-
tance of the development of a new preventive ap- são proibicionista que o “uso de drogas” é sempre
proach that fully absorbs the uniqueness of the e invariavelmente um comportamento desviante
human condition (existential vulnerability), def- (patologia). Por fim, o estudo aponta para a im-
initely breaking with the prohibitionist precepts, portância do desenvolvimento de uma nova abor-
in fact, the Harm Reduction Approach. dagem preventiva que absorva de modo integral a
Key words Drugs, Prevention, Phenomenology, singularidade da condição humana (vulnerabili-
Prohibitionism dade existencial), rompendo definitivamente com
os preceitos proibicionistas, a saber, a abordagem
1
Faculdade de Ciências de redução de danos.
Humanas e da Saúde,
Departamento de Psicologia,
Palavras-chave Drogas, Prevenção, Fenomeno-
Pontifícia Universidade logia, Proibicionismo
Católica de São Paulo.
Rua Veríssimo Glória 165,
Sumaré. 01251-140 São
Paulo SP.
msodelli@pucsp.br
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Sodelli M
Introdução O homem
na perspectiva fenomenológica existencial
Podemos perceber, nos últimos anos, intensa
produção de pesquisas que se dedicaram a estu- Uma das maiores contribuições do pensamento
dar um dos mais utilizados modelos de preven- fenomenológico existencial é a simples, mas im-
ção ao uso nocivo de drogas, a saber, intolerân- portante constatação de que não podemos estu-
cia e guerra contra as drogas (proibicionismo). dar e compreender o homem da mesma forma
Observamos, também, que a maioria destas pes- como o fazemos com outros seres e objetos. Po-
quisas se posicionou criticamente a esta aborda- demos distinguir duas condições fundamentais
gem, avaliando-a como ineficaz e irrealista1,2. Esta entre esses entes (tudo que existe, todos os seres
discussão ganhou dimensão ainda maior com o vivos e objetos) e o Dasein, termo proposto pelo
surgimento no Brasil, no fim da década de oiten- próprio Heidegger5 para indicar o caráter pecu-
ta, da abordagem de redução de danos e, poste- liar e distinto da existência humana. Dasein é o
riormente, da sua aplicação na área preventiva homem compreendido como o ser-existindo-aí.
ao uso de drogas. Dasein é sempre uma possibilidade na qual se
Pesquisas recentes3,4 apontam que um dos encontra como uma abertura para a experiência.
elementos principais que explica o fracasso da A primeira condição fundamental é que o
abordagem proibicionista é justamente o que está Dasein é o único ser que sabe da sua finitude, de
na base de seus pressupostos preventivos: a pre- que um dia sua vida vai terminar, de que ele é um
conização da abstinência. ser mortal. Desde o princípio, o Dasein está pre-
Embora vasta a literatura sobre este tema, determinado pelo seu fim6. O homem sabe que
poucos são os estudos que discutem, com base um dia virá em que ele não mais “será” ou “exis-
numa fundamentação teórica, as limitações e tirá”. Para a fenomenologia existencial, esta dife-
consequências da abordagem proibicionista na rença marca um modo distinto do homem estar
área preventiva. no mundo, muito diferente dos outros entes,
Partindo desta compreensão, o presente arti- uma vez que é o único ser que tem de conviver
go pretende, por meio do pensamento da fenome- com o seu-ser-para-a-morte e é livre para reali-
nologia existencial, realizar um estudo reflexivo zar uma opção entre viver ou morrer. Desta con-
sobre a condição humana e o uso de drogas. Ao dição ontológica, nascem dois sentimentos ine-
compreender o homem como um ser inacabado, rentes ao Dasein: a angústia e a culpa.
sempre entregue ao seu próprio cuidado, o estu- A ameaça do não-ser (a morte) é a fonte da
do caminhará na direção de demonstrar a incom- angústia primordial do Dasein, a qual vivencia-
patibilidade dos objetivos proibicionistas com o mos por meio do confronto entre a necessidade
modo singular de ser do homem. Demonstrare- de realização das nossas potencialidades e o peri-
mos que é a própria condição existencial do ho- go de não ser capaz de realizá-las. Cada angústia
mem que gera o que nomearemos como “vulne- humana tem um de que, do qual ela tem medo, e
rabilidade existencial”, condição esta impossível um pelo que, pelo qual ela teme. O de que de cada
de ser modificada. Com efeito, argumentaremos angústia compreende a possibilidade real do
que qualquer abordagem preventiva que tenha Dasein de um dia não estar mais aqui. O pelo que
como princípio fundamental erradicar o uso de da angústia nos remete à própria condição exis-
drogas já estaria fadada ao fracasso. Fundamen- tencial do Dasein, ou seja, a responsabilidade de
tando-nos ainda neste posicionamento, rejeitare- zelar e cuidar de sua continuidade no mundo7.
mos a compreensão proibicionista que o “uso de A culpa é outra importante singularidade do
drogas” é sempre e invariavelmente um compor- modo de ser do Dasein, a qual não está relacio-
tamento desviante (patologia). Por fim, apresen- nada às proibições ou tabus culturais, mas, fun-
taremos a abordagem de redução de danos como damentalmente, à consciência de que o ser do
uma nova alternativa na prevenção primária. Dasein está sempre em jogo. Consciência deve
Ressalvamos que a compreensão fenomeno- ser entendida aqui como o “saber junto - com”,
lógica existencial apresentada neste artigo se sus- quer dizer, o Dasein é convocado por ele mesmo
tenta, exclusivamente, na discussão feita por Hei- a dar conta do seu ser (existir)8. Conhecer esta
degger, em sua obra “Ser e Tempo”5.Utilizaremos, tarefa é ter consciência do apelo do ser, do estar-
também, outros autores que compartilham des- aí-no-mundo.
te modo de compreender o existir humano, entre Deste modo, temos sempre que escolher um
outros: Medard Boss, Benedito Nunes e Zeljko modo de ser e, como tal, podemos falhar nesta
Loparic. escolha. A culpa então se vincula à consciência da
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gas vai revelar-se como uma das possibilidades tenda universalmente negar esta possibilidade
de alívio do cuidar, na precariedade do viver14. É humana, estará fadado ao fracasso.
claro que não é só por meio do uso de drogas Torna-se possível, então, considerar a ques-
que o homem busca o alívio do ter que cuidar do tão do uso de drogas como uma entre tantas ou-
seu próprio ser. Outras atividades também po- tras possibilidades de alterar nossa consciência,
dem proporcionar esta sensação, por exemplo, de diminuir o sofrimento e a angústia existencial.
assistir a um bom filme, praticar esportes, parti- A história da humanidade nos ensina que o uso
cipar de um culto religioso, ter um relaciona- de drogas é apenas um modo de vida. As pessoas
mento sexual. Todas essas atividades podem nos sempre as utilizaram, por motivos os mais diver-
possibilitar momentos prazerosos, nos quais sos, e sem dúvida, seguirão utilizando-as17.
experimentamos um desligar automático da nos- Mas, por que é tão perturbador pensar desta
sa árdua tarefa do cuidar do nosso próprio ser, maneira? Por que é tão difícil aceitarmos a idéia
ou seja, podem provocar uma alteração do esta- de que o fenômeno do uso de drogas seja avalia-
do da consciência. do da mesma maneira como qualquer outro fe-
Historicamente, é inegável que o ser humano nômeno que busca a alteração da consciência?
vem se dedicando a criar vários métodos para
alterar a consciência, como dançar, jejuar, medi-
tar e até mesmo criar atividades que colocam em Dependência e danos à saúde:
risco sua própria vida, como o automobilismo, inevitabilidade do uso de drogas?
a escalada e tantas outras experiências15. Esta
particularidade da condição existencial do ho- A resposta mais imediata é que o uso de drogas
mem não deve ser compreendida como uma fa- pode causar algum dano à saúde e pior, pode
lha do ser humano, mas sim como algo que pos- causar também uma grave patologia, o fenôme-
sibilita a ampliação da criatividade. Esta condi- no da dependência. Vale lembrar que esses estão
ção humana é que nos possibilita ultrapassar entre os principais argumentos que justificam a
nossos próprios limites e na qual reside toda a atual política mundial da intolerância e de re-
nossa contradição de ser humano, pois que, ao pressão ao uso de drogas, o modelo preventivo
mesmo tempo em que temos o potencial de criar da intolerância e da guerra contra as drogas.
a poesia mais bonita, somos capazes de pensa- O primeiro argumento, a nosso ver, é indis-
mentos e de atos de extrema barbaridade. cutível: realmente, o uso de drogas pode causar
A incessante busca do ser humano em alterar danos à saúde. Entretanto, existem diversas ou-
o estado da consciência também é reconhecida tras coisas que também podem causar danos à
pela antropologia. Por exemplo, nas mais diver- saúde, e que, mesmo assim, continuamos a fazer
sas sociedades e culturas estudadas por antropó- todos os dias. Tomemos como exemplo a ques-
logos e por outros cientistas sociais, encontra- tão da poluição: em última instância, nós a pro-
mos algum tipo de situação, algum momento em duzimos, já cientes de que ela vai prejudicar não
que não só é permitido, como pode ser inclusive só a nós, mas também as gerações futuras. Sabe-
valorizado, um tipo de alteração de comporta- mos também que ocorrem, por ano, muito mais
mento, alteração de atitude em relação a uma roti- acidentes fatais no trânsito do que em decorrên-
na16. Essa alteração pode ou não estar associada cia do uso nocivo de drogas ou de overdose, e,
ao uso de substâncias que chamamos de drogas. mesmo assim, milhões de pessoas continuam
Na compreensão fenomenológica existencial, utilizando diariamente seus automóveis.
o ser humano, por sua própria constituição on- O que estamos tentando demonstrar não é,
tológica, se apresenta vulnerável em relação ao de forma alguma, o argumento de que, já que
cuidar do seu existir. Esta vulnerabilidade, por está tudo errado no mundo, não existe sentido
sua vez, possibilita uma procura interminável em em nos preocuparmos com os possíveis danos
minimizar os sentimentos de angústia e de culpa. do uso de drogas. Pelo contrário, estamos ten-
Compreendemos, assim, por meio do pen- tando mostrar outro aspecto: assim como tenta-
samento fenomenológico existencial, que é im- mos minimizar os danos causados pela poluição
possível acabar com a possibilidade do uso de e pelo trânsito, através de regulamentos, infor-
drogas entre os seres humanos, pois, para isto mações, infraestrutura e, principalmente, da edu-
acontecer, seria necessário modificar a própria cação, deveríamos, também, assumir definitiva-
condição ontológica do Dasein. Deste modo, todo mente esta postura perante a questão das drogas.
e qualquer esforço, seja de caráter preventivo ou Sabemos que não é possível pensar uma gran-
de tratamento ao uso nocivo de drogas, que pre- de cidade sem os riscos de acidentes de trânsito,
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Artigo apresentado em 24/04/2007
ficação geral das substâncias psicoativas. In: Seibel
Aprovado em 14/08/2007
SD, Toscano Jr A. Dependência de drogas. São Paulo:
Versão final apresentada em 04/12/2007
Atheneu; 2001.