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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário
AO LEITOR
PRÓLOGO
Pequenos erros no princípio
As dez matérias sobre as quais se erra
PARTE I
CAPÍTULO I
A consciência e seus objetos
CAPÍTULO II
O intelecto e os sentidos
CAPÍTULO III
As palavras e os significados
CAPÍTULO IV
Conhecimento e opinião
CAPÍTULO V
Valores morais
PARTE I
CAPÍTULO VI
Felicidade e contentamento
CAPÍTULO VII
Liberdade de escolha
CAPÍTULO VIII
Natureza humana
CAPÍTULO IX
Sociedade humana
CAPÍTULO X
Existência humana
EPÍLOGO
Ciência moderna e sabedoria antiga
NOTAS
Dez erros
filosóficos
Mortimer J. Adler
Tradução de Adriel Teixeira
VIDE EDITORIAL
Dez erros filosóficos
Mortimer J. Adler
Primeira edição — março de 2021 — CEDET Título original: Ten Philosophical
Mistakes Copyright © 1985 by Mortimer J. Adler Publicado em acordo com a
editora original, Touchstone, uma divisão da Simon & Schuster, Inc. Todos os
direitos reservados.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Av. Comendador
Aladino Selmi, 4630, galpão 8 CEP: 13069-096 —Vila San Martin, Campinas-SP
Telefone: (19) 3249-0580 e-mail: livros@cedet.com.br
Editor:
Thomaz Perroni
Tradução:
Adriel Teixeira
Revisão:
Thauan Monteiro
Preparação de texto:
Letícia de Paula
Diagramação:
Maurício Amaral
Capa:
Bruno Ortega
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Avila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Adler, Mortimer J.
Dez erros filosóficos / Mortimer J. Adler; tradução de Adriel Teixeira —
Campinas, SP: Vide Editorial, 2021.
ISBN: 978-65-87138-22-0
1. Filosofia. 2. História da filosofia.
I. Autor II. Título
CDD — 100 /109
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Filosofia —100
2. História da filosofia — 109
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução
desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão
expressa do editor.
 
 
AO LEITOR
 
Títulos de livros são com frequência enganosos; às vezes
são imprecisos. O do meu não é enganoso, mas é impreciso.
Os leitores descobrirão que há mais de dez erros
filosóficos considerados e corrigidos neste livro. Mas há dez
matérias sobre as quais se erra normalmente. Um título
mais preciso, mas também mais enfadonho, teria sido: Dez
matérias sobre as quais errou-se filosoficamente. Creio que
os leitores compreenderão por que optei pela forma mais
curta, porém menos precisa, do título.
Os leitores também irão achar que os cinco capítulos da
Parte i são mais longos que os outros cinco da Parte n. O
motivo disso é que os erros discutidos na Parte i são mais
difíceis de serem expostos claramente. É mais difícil
também explicar o que está envolvido na sua correção.
Talvez eu devesse acrescentar que, a meu ver, os erros
filosóficos discutidos na Parte i são mais fundamentais e dão
azo a consequências mais sérias para o pensamento
moderno.
Não tentei argumentar a favor ou provar apoditicamente
a veracidade das correções oferecidas por mim como
solução para os erros propostos. Apelo então ao senso
comum do leitor para que consiga discernir se tais
correções possuem ou não o selo da verdade.
 
PRÓLOGO
Pequenos erros no princípio
 
1
“O mínimo desvio inicial da verdade multiplica-se
posteriormente em mil e um outros desvios”. Assim escreveu
Aristóteles no quarto século antes de Cristo.
Dezesseis séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino fez
ecoar a observação do Estagirita: parafraseando-a, disse o
Aquinate, com efeito, que pequenos erros no princípio
conduzem a graves consequências no final.
Mas nem Aristóteles nem Santo Tomás tinham em mente os
equívocos filosóficos — todos constituindo pequenos erros no
princípio — com que este livro está preocupado. Tratam-se,
todos eles, de erros da Modernidade, cometidos por diversos
filósofos a partir do século XVII — o século que foi marcado
pelos desvios de pensamento que se iniciaram com Thomas
Hobbes na Inglaterra e com René Descartes na França.
Em um ou dois casos, os erros filosóficos de que aqui nos
ocuparemos repetem outros que em primeiro lugar ocorreram
na Antiguidade. Mas isso não muda o fato de que todos esses
erros são tipicamente, senão totalmente, modernos na origem
e nas sérias consequências a que conduziram no pensamento
moderno.
Essas graves consequências não apenas impregnam o
pensamento filosófico contemporâneo, como se manifestam
em populares equívocos amplamente difundidos nos dias de
hoje — equívocos estes que tendem todos para a mesma
direção; que afetam a compreensão que temos de nós
mesmos, de nossas vidas, de nossas instituições e de nossa
experiência; e que desorientam nossas ações do mesmo modo
que turvam nosso pensamento.
Não se trata de erros enclausurados de relevância
meramente acadêmica, mas de noções que foram
popularizadas e espalhadas por toda parte nas mais variadas
formas e pelos mais variados meios de difusão. Muitos de nós
acolhemos involuntariamente alguns desses equívocos em
nossas mentes sem saber de onde vieram ou como ali se
alojaram.
2
 
Chamar a esses equívocos de pequenos erros não é
diminuir-lhes a importância. Convém antes dizer que são
equívocos extremamente simples, capazes de serem
postulados em uma única sentença ou duas, e que as verdades
que os corrigem são igualmente simples e similarmente
capazes de serem estatuídas com brevidade.
Entretanto, a sua simplicidade não impede que
sobrevenham algumas complicações. Alguns desses pequenos
erros envolvem um número correlato de questões; outros, uma
série de vários aspectos; e outros ainda vêm aos pares,
incluindo ambos os extremos de uma falsa polaridade.
Vistos em sua simplicidade, ou mesmo com suas respectivas
complicações, estes são equívocos que ocorrem no início de
um longo encadeamento lógico, que conduz de premissas
errôneas, através de diversos passos, até falsas conclusões ou
consequências, às quais aquelas premissas dão ensejo.
Logo no início, antes de as consequências serem
discernidas, o equívoco parece inocente e passa despercebido.
Somente quando somos confrontados com as repugnantes
conclusões, a que raciocínios convincentes nos conduzem, é
que somos forçados a retraçar nossos passos a fim de
descobrir onde erramos. Só então a premissa errônea, que a
princípio parecia inocente, revela-se como a grande culpada —
um lobo em pele de cordeiro.
Infelizmente, grande parte do pensamento moderno não
procurou, nesse sentido, evitar aquelas conclusões que já
haviam sido consideradas inaceitáveis por um motivo ou outro.
Em vez de retraçar os passos que reconduziriam à fonte dos
pequenos erros no princípio do raciocínio, os pensadores
modernos tentaram por outras vias contornar os resultados
daqueles erros iniciais, frequentemente multiplicando as
dificuldades em vez de superá-las.
Os avanços realizados pela filosofia moderna não foram
suficientes para mitigar os desastres produzidos por aquelas
conclusões que não foram abandonadas quando da descoberta
dos equívocos iniciais que as originaram. A opção por adotar
novos pontos de partida, substituindo premissas falsas por
verdadeiras, teria mudado radicalmente a imagem que a
filosofia moderna ora nos apresenta.
 
3
 
A ordem em que os equívocos filosóficos irão aparecer nos
próximos capítulos é um tanto arbitrária, conquanto não
inteiramente.
Se a gravidade de cada um deles para a vida e a ação
humanas tivesse sido o critério adotado para decidir qual
deveria vir primeiro, a ordem talvez tivesse sido invertida. Os
últimos seis dos dez capítulos são dedicados a temas de
importância mais obviamente prática para a nossa vida
cotidiana; já os quatro primeiros parecem mais teoréticos, mais
distantes dos nossos interesses imediatos.
Contudo, embora sejam de fato mais teoréticos, os quatro
primeiros capítulos abordam equívocos subjacentes a muito do
que se seguirá posteriormente. Trata-se de equívocos que
guardam, entre suas graves consequências, pequenos erros no
princípio de outras linhas de raciocínio.
O equívoco sobre a consciência, de que trata o primeiro
capítulo, é, de todos, talvez, o mais importante, pois está
instalado no âmago mesmo do pensamento moderno,
determinando sua compleição característica. Quando
combinado ao equívoco sobre a mente humana, estudado no
segundo capítulo, termina por lançar o pensamento moderno
numa desventura que inclui muitos outros desvios para
direções erradas.
4
 
O equívoco que iremos estudar no primeiro capítulo talvez
se prove, aos olhos do leitor, o mais intrincado ou mesmo o
mais desconcertante de todos, pois não apenas filósofos
modernos, mas, de um modo geral, a maioria das pessoas está
inclinada a cometê-lo. Sem refletir muito sobre o assunto,
tendemos a supor que estamos diretamente conscientes dos
conteúdos de nossa própria mente. Mas só o estamos, de fato,
quando, conscientemente, sentimos prazer ou dor físicos,
quando corporalmente sofremos ou realizamos esforços. Tais
sentimentos, contudo, são completamente diferentes das
nossas percepções, memórias, imaginações, sonhos e
pensamentos ou conceitos.
A estes últimos — pensamentos ou conceitos —, por falta de
vocábulo melhor que os designe, chamemo-los genericamente
“idéias”. Pois bem, nossas idéias têm a característica e função
especiais de colocar objetos ante a nossa mente. É sempre da
idéia do objeto de que estamos diretamente conscientes,
nunca da idéia enquanto tal. As próprias idéias — ou as idéias
enquanto tais — não são senão os meios pelos quais
apreendemos os objetos que elas são capazes de colocar ante
a nossa mente. Em si mesmas, elas são inapreensíveis.
O segundo equívoco complementa o erro do primeiro. A
falha em distinguir entre pensamento perceptual e pensamento
conceituai — entre perceber os objetos sensíveis que
encontramos na experiência diária e pensar sobre objetos que
não podem ser percebidos ou imaginados — acarreta sérias
consequências para a nossa compreensão das matemáticas, da
física teórica, da filosofia, da teologia e das diferenças entre a
mente humana e a mente animal.
O terceiro grupo de equívocos é composto de erros que, não
fossem os dois primeiros, não se teriam perpetuado no campo
da filosofia da linguagem — a saber, na tentativa de explicar o
significado das palavras. A raiz desses erros está na
incapacidade de reconhecer que idéias são significados. Como
tais, elas são a única fonte a partir da qual tudo o mais —
desde palavras até toda sorte de outros signos e símbolos
criados pelo homem — pode adquirir os sentidos que
adquiriram no uso que fazemos delas.
O quarto equívoco traça a linha divisória entre
conhecimento e mera opinião de modo a colocar de um lado —
o do conhecimento, obviamente — as matemáticas, a ciência
investigativa e a história, e a relegar tudo o mais para o outro
— o da mera opinião —, o que equivale a negar a legitimidade
da alegação feita pela filosofia acerca da própria capacidade de
nos dar a conhecer a realidade e de nos prover com verdades
que sejam, talvez, mais fundamentais e importantes do que
aquelas obtidas por meio das ciências.
O quinto equívoco também estabelece uma linha divisória
entre o que é conhecimento genuíno e o que é mera opinião.
Desta vez, o erro consiste em colocar todos os juízos sobre
valores morais — sobre o que é bom e o que é mau, o certo e o
errado, bem como todos os juízos acerca do que deve ser ou
não buscado ou feito.
O sexto equívoco segue de perto o quinto. Ele consiste na
identificação da felicidade — uma palavra que todos nós
usamos para algo que todos buscam por sua própria conta —
com o estado puramente psicológico de contentamento, que
experimentamos quando temos a satisfação de obter algo que
queremos. O pensamento moderno e as pessoas de um modo
geral em nossa época têm ignorado completamente o outro
significado de felicidade como qualidade moral de toda uma
vida bem vivida. Esse erro, junto com dois outros erros
relacionados — a falha em distinguir entre necessidades e
desejos e entre bens reais e bens meramente aparentes —,
mina todos os esforços modernos de produzir uma filosofia
moral sadia.
O sétimo erro difere de todo o resto. Preocupamo-nos aqui
com a antiga controvérsia entre aqueles que afirmam o livre-
arbítrio humano e os deterministas, que o negam sob
fundamentos científicos. A falha, aqui, é de compreensão. Esse
equívoco é acompanhado, da parte dos deterministas, por uma
errônea visão da relação entre livre-arbítrio e responsabilidade
moral. A questão entre as duas partes da controvérsia não se
junta. Os deterministas não compreendem as bases sobre as
quais a defesa do livre-arbítrio e da vontade livre repousam.
Então seus argumentos erram o alvo.
O oitavo erro consiste na espantosa negação, ainda
amplamente reinante em nossos dias, da natureza humana —
negação esta que chega ao extremo de postular que nada de
comum a todos os seres humanos subjaz às diferentes
tendências comportamentais e características encontradas nos
diversos subgrupos da espécie humana.
O nono erro diz respeito à origem das várias formas de
associação humana — a família, a tribo ou aldeia, e o estado ou
sociedade civil. Falhando em compreender como as formas
básicas da associação humana são tanto naturais quanto
convencionais (diferente a esse respeito das associações de
outros animais gregários, que são determinadas
instintivamente e, portanto, são apenas naturais), esse
equívoco nos impinge dois mitos totalmente desnecessários: (i)
o mito de que no estado primitivo da humanidade os indivíduos
viviam totalmente isolados uns dos outros; e (n) o mito de que
foi por meio de um contrato social que a humanidade saiu
desse estado de isolamento individual primitivo para adentrar a
sociedade civil.
O décimo erro é de ordem metafísica. Trata-se de um erro
que pode ser chamado falácia do reducionismo e que consiste
em atribuir um grau de realidade muito maior às partes de um
todo organizado do que ao próprio todo; ou, ainda pior,
sustentar que apenas as últimas partes componentes de um
todo têm realidade e que as totalidades que elas constituem
são meras aparências ou mesmo ilusões. De acordo com essa
concepção, as existências reais que constituem o mundo físico
são as partículas elementares que compõem o átomo. Quando
consideramos os indivíduos humanos como dotados da
existência real e da identidade duradoura que eles aparentam
ter, estamos padecendo de uma ilusão. Se esse é o caso, então
novamente estamos dispensados da responsabilidade moral
por nossas ações.
Como já salientei, alguns desses erros têm seus protótipos
na Antiguidade, mas onde é esse o caso, podemos encontrar
uma refutação em Aristóteles. A repetição desses equívocos no
pensamento moderno indica uma clara ignorância das
correções feitas por Aristóteles.
Espero que este breve resumo das dez matérias sobre as
quais foram cometidos erros filosóficos nos tempos modernos
estimule o apetite do leitor para explorá-los e aprender como
podem ser corrigidos ou remediados. Ao terminar de fazer isso,
os leitores poderão se voltar ao Epílogo para obter uma
explicação histórica de por que esses erros foram cometidos,
quem os cometeu, e como poderiam ter sido evitado
 
 
As dez matérias sobre as quais se
erra
PARTE I
CAPÍTULO I
A consciência e seus objetos
 
1
 
Comecemos com algo que todos compreendem e façamos
algumas perguntas sobre isso. E para tais questões que
respostas opostas são dadas — respostas certas e respostas
erradas.
Quando estamos dormindo e não sonhando, estamos
inconscientes. Quando nos descrevemos como inconscientes,
estamos, com efeito, dizendo que:
- Estamos inconscientes do que quer que esteja
acontecendo no mundo ao nosso redor ou mesmo em nossos
próprios corpos;
- Não estamos apreendendo nada, não estamos conscientes
de nada;
- Nossas mentes estão vazias;
- Não estamos experimentando nada, ou estamos vivendo
através de um intervalo de tempo não experimentado.
Dizer que não estamos conscientes de nada, ou que não
estamos apreendendo nada, é equivalente a dizer que não
estamos percebendo nada, lembrando nada, imaginando nada,
pensando em nada. Podemos acrescentar que não estamos
sentindo nada nem física nem emocionalmente.
Tais palavras — “perceber”, “lembrar”, “imaginar”, “pensar”
e “sentir” — aproximam-se bastante do conjunto exaustivo dos
atos em que nossa mente se engaja quando estamos
acordados e conscientes. Quando nenhum desses atos está
ocorrendo, nossas mentes estão vazias. Quando é o caso,
pode-se dizer também que não temos nenhuma percepção,
memória, imagens, pensamentos, sensações ou sentimentos.
À primeira vista, parece que muito do que precede é
repetitivo. Parece que estamos a dizer a mesma coisa sempre
de novo e de novo. Mas não é o caso, como em breve teremos
oportunidade de ver. Dentre as várias asserções feitas acima,
algumas conduzem a respostas certas e outras a respostas
erradas acerca da seguinte questão fundamental: quando
estamos conscientes, o que é aquilo de que estamos
conscientes?
Deixe-me colocar a questão em outros termos. Do que
estamos conscientes? Do que estamos tendo experiência
quando estamos conscientes?
A palavra crucial em todas essas questões é a
preposiçãozinha “de”. Gramaticalmente, ela pede um objeto.
Qual é o objeto que responde a todas essas questões
relacionadas?
Ainda uma última questão: quando estamos conscientes, e
então nossas mentes não estão vazias, com o que elas estão
preenchidas? Tornou-se costumeiro falar de fluxo de
consciência ou de pensamentos para descrever o que
sucessivamente preenche nossa consciência ou modela nossa
experiência de momento a momento. Em que isso consiste?
Em outras palavras, qual o conteúdo mutável da consciência?
Uma resposta para a questão é dada pelo uso da palavra
“idéia” para todos os tipos de coisas bem diferentes que
preenchem nossa mente quando estamos conscientes.
Esse vocábulo foi muito empregado pelos filósofos
modernos, notadamente por John Locke, que introduziu o seu
uso. Na introdução ao seu Ensaio sobre o entendimento
humano, ele esclareceu aos leitores como pretendia usar a
palavra “idéia”. Antes de prosseguir no que pensei sobre este
assunto, aproveito esta oportunidade para pedir perdão ao
meu leitor pelo uso frequente da palavra idéia, que ele
encontrará adiante no tratado. Julgo que, sendo este o termo
mais indicado para significar qualquer coisa que consiste no
objeto do entendimento quando o homem pensa, usei-o para
expressar [...] tudo o que pode ser empregado pela mente
pensante [...]. Suponho que me será facilmente concedido que
há tais idéias nas mentes dos homens. Cada um tem
consciência delas em si mesmo e as palavras e ações dos
homens o persuadirão de que elas existem nos outros.
O uso que Locke faz da palavra “pensamento” é tão elástico
quanto o que ele faz da palavra “idéia”. Ele usa “pensamento”
para todos os atos da mente, exatamente como ele usa a
palavra “idéia” para se referir a todos os objetos da mente
quando esta está pensando, ou para todos os conteúdos de
consciência quando estamos conscientes.
Assim usada, a palavra “pensamento” representa todas as
atividades mentais que, quando distinguidas, atendem por
nomes como “perceber”, “lembrar”, “imaginar”, “conceber”,
“julgar”, “raciocinar”; e também “sentir”, seja no sentido físico,
seja no sentido emocional do termo. Do mesmo modo, a
palavra “idéias”, usada em sentido maximamente elástico,
abrange uma grande variedade de coisas que também podem
ser distinguidas umas das outras: percepções, memórias,
imagens, pensamentos ou conceitos, sensações e sentimentos.
Seria injusto com Locke não declarar desde logo que ele
diferenciava esses diversos itens, todos os quais agrupava sob
o único termo “idéia”. Ele também distinguia os diversos atos
da mente que trazem idéias de todos os tipos para dentro dela,
ou que produzem idéias das quais a mente se torna consciente.
Que isso fique estabelecido, conquanto permaneça a
questão de saber se Locke os distinguiu corretamente ou não.
Isso, por sua vez, leva à questão crucial com a qual estamos
aqui preocupados: quais são os objetos da mente quando ela
está consciente de algo? A resposta errada a essa pergunta,
com todas as conseqüências que se lhe seguem, é o erro
filosófico de que este capítulo trata.
 
2
 
Na passagem introdutória do Ensaio de Locke citada acima,
duas coisas são ditas ao leitor.
Uma é que Locke espera que o leitor concorde que ele tem
idéias em sua própria mente, idéias das quais está consciente.
A outra é que o leitor concederá que outros indivíduos
também têm idéias em suas próprias mentes, idéias das quais
eles, também, estão conscientes.
Desde que ninguém esteja consciente das idéias que estão
na mente alheia, Locke qualifica este segundo ponto dizendo
que, a partir do modo como os outros falam e se comportam,
inferimos que eles também têm idéias em suas mentes, às
vezes até bem parecidas com as nossas.
Esses dois pontos em conjunto introduzem uma nota de
fundamental importância. As idéias em minha mente são as
minhas idéias. As idéias na sua são as suas. Esses pronomes
possessivos chamam a atenção para o fato de que as idéias na
mente de alguém são subjetivas: elas pertencem àquela única
pessoa e a ninguém mais. Assim como há tantas mentes no
mundo quanto indivíduos, do mesmo modo há tantos conjuntos
de idéias quanto mentes individualmente distintas.
Cada pessoa tem seu próprio conjunto de idéias. De acordo
com Locke, apenas as próprias idéias da pessoa são seus
objetos de consciência quando ela está consciente. Mais
ninguém pode estar consciente das idéias de outra pessoa.
Essas idéias não são nunca objetos dos quais mais alguém
esteja imediatamente consciente. Conceder que outros
indivíduos também tenham idéias, das quais nós mesmos não
podemos estar diretamente conscientes, deve resultar sempre
de um ato de inferência, baseado naquilo que dizem e fazem.
Se a palavra “objeto”, na medida em que se aplica a idéias
como aquelas de que temos consciência quando estamos
conscientes, nos leva a pensar que idéias são objetivas ou
dotadas de objetividade, então nos defrontamos com uma
aparente contradição. Parece que estamos dizendo coisas
opostas sobre as idéias: de um lado, que minhas idéias, sendo
exclusivamente minhas e não suas nem de mais ninguém, são
subjetivas-, de outro, que minhas idéias também são dotadas
de objetividade.
Parece que somos compelidos a admitir que, para todo
indivíduo, as idéias nas mentes de outros indivíduos não são
objetos dos quais se possa estar consciente. Suas
subjetividades as colocam para além do alcance da consciência
imediata dos demais.
Em outras palavras, as idéias na mente de uma
determinada pessoa são objetos apenas para aquela pessoa.
Elas estão para além da imediata apreensão de outrem.
Façamos uma pausa por um momento para considerar o
significado das palavras “objetivo” e “subjetivo”. Dizemos que
algo é objetivo quando é o mesmo para mim, para você e para
qualquer outra pessoa. Dizemos que algo é subjetivo quando
difere de um indivíduo para o outro, e quando é da posse
exclusiva de um indivíduo e de ninguém mais.
Para reforçar essa compreensão da distinção entre o
subjetivo e o objetivo, permita-me introduzir outro par de
palavras: “público” e “privado”. Essas duas palavras podem ser
usadas para dividir toda nossa experiência entre aquilo que é
público e aquilo que é privado.
Uma experiência é pública se for comum a dois ou mais
indivíduos. Pode não ser realmente comum a todos, mas deve
ser ao menos potencialmente comum a todos. Uma experiência
é privada se pertencer a um único indivíduo e não puder ser
diretamente compartilhada com mais ninguém.
Deixe-me ilustrar essa divisão de todas as nossas
experiências entre públicas e privadas propondo o que eu vejo
como — e no que espero que os leitores concordem comigo —
claros e indiscutíveis exemplos de cada tipo.
Nossas sensações corporais, incluindo nossas emoções ou
paixões, são privadas. Minha dor de dente, taquicardia, ou
raiva são coisas experimentadas diretamente apenas por mim.
Eu posso conversar com você sobre elas e, se você também já
tiver tido essas sensações corporais, será capaz de entender
do que estou falando. Mas entender do que estou falando é
uma coisa; e ter essas experiências você mesmo é outra bem
diferente.
Pode ser que você já as tenha vivido no passado, e isso o
ajudará a compreender do que eu estou falando. Mas você
precisa não vivê-las no mesmo momento que eu para
compreender do que eu estou falando. De todo modo, você não
pode jamais compartilhar comigo as sensações corporais que
eu estou tendo e das quais estou falando.
Em nítido contraste com nossas sensações corporais, nossas
experiências perceptuais são públicas, não privadas. Quando
eu e você estamos sentados no mesmo cômodo, com uma
mesa entre nós sobre a qual há copos e uma garrafa de vinho,
você e eu estamos perceptualmente apreendendo os mesmos
objetos — não nossas próprias idéias, mas a mesa entre nós, os
copos e a garrafa de vinho. Se eu mover a mesa um
pouquinho, ou despejar um pouco de vinho da garrafa nos
copos, você e eu estaremos compartilhando a mesma
experiência. Essa é uma experiência pública, assim como o
sabor do vinho ou a taquicardia que ele causa em mim não o é.
Minhas percepções (ou perceptos) não são idênticas às
suas. Cada um de nós tem as suas próprias percepções, assim
como cada um de nós tem as suas próprias sensações
corporais. Mas, embora as minhas percepções e as suas sejam
nesse sentido subjetivas (pertencendo exclusivamente a cada
um de nós), o fato de nós as termos resulta numa experiência
coletiva, ao contrário do que acontece com nossas sensações
corporais subjetivas.
Para usar a terminologia de Locke, tanto as percepções
quanto as sensações corporais são idéias e cada um de nós
tem as suas próprias. Mas certas idéias subjetivas, tais como as
sensações corporais, são exclusivamente subjetivas. Elas são
objetos de consciência apenas para aquele que as
experimenta. Embora por essa razão possam ser chamadas
objetos, não têm qualquer objetividade. Em contraste, outras
idéias subjetivas, tais como os perceptos ou percepções,
resultam em experiência pública, não privada, pois seus
objetos podem ser direta e simultaneamente experimentados
por dois ou mais indivíduos.
 
3
 
Todas as idéias são subjetivas. Eu tenho as minhas; você
tem as suas; e elas nunca são idênticas ou comuns a nós dois.
Elas não podem ser assim, ao menos não mais do que as
células e doenças do seu corpo podem ser idênticas ou comuns
às células e doenças do meu.
É necessário que introduzamos, aqui, uma distinção entre
idéias, sensações corporais, emoções e sentimentos.
Desafortunadamente, Locke falha em observar essa distinção.
O que quer que possa ser propriamente chamado idéia tem um
objeto. Percepções, memórias, imaginações, conceitos ou
pensamentos são idéias neste sentido do termo; mas
sensações corporais, emoções e sensações não o são. Nós as
apreendemos diretamente. Elas não nos servem como
instrumentos por meio dos quais apreender outras coisas.
O que acabei de dizer se aplica também, em raras
circunstâncias, às sensações geradas pela estimulação dos
nossos órgãos dos sentidos externos, tal como o súbito raio de
luz que vemos, o inesperado barulho que ouvimos, o estranho
odor que não conseguimos identificar. Essas sensações não
entram em nossa percepção de nada. Ao contrário, quando
estamos percebendo algo, estamos diretamente conscientes de
outra coisa que não os nossos perceptos.
O que é essa outra coisa? Eis a resposta: a mesa, a garrafa
de vinho e os copos que você e eu percebemos quando
estamos compartilhando a experiência resultante de nossa
atividade perceptual. Nossa experiência da mesa, da garrafa, e
dos copos, é uma experiência pública, não uma experiência
exclusivamente privada a cada um de nós.
Essas coisas realmente existentes são os objetos da nossa
consciência perceptual, não os perceptos ou percepções que
nos permitem apreendê-las ou delas estarmos cônscios. E por
isso que podemos conversar um com o outro sobre elas como
coisas que estamos experimentando em comum. A mesa, por
exemplo, que é o objeto perceptual que estamos ambos
apreendendo ao mesmo tempo, é a mesa que eu e você
podemos juntos levantar e mover para outro canto da sala.
Para John Locke, a consciência que temos de nossas próprias
idéias é inteiramente uma experiência privada, exclusiva de
cada um de nós. Isso vale para todos que, de um modo ou de
outro, adotam sua concepção das idéias como sendo nossos
objetos mentais quando estamos conscientes de algo —
objetos dos quais estamos imediatamente cônscios e que
diretamente apreendemos. Eles estão, com efeito, a dizer que
todas as idéias que um indivíduo tem em sua mente quando
está consciente resultam para ele em experiências privadas,
experiências que ninguém mais pode compartilhar. Dizer isso é
um erro filosófico que acarreta sérias consequências para o
pensamento moderno.
 
4
Antes de apontar as consequências do erro filosófico que se
encontra na visão de Locke acerca da consciência e suas
idéias, permita-se que eu exponha um pouco mais da visão
oposta.
Postulá-la em seus próprios termos não só delineará mais
claramente o problema criado pela oposição dessas visões
como também iluminará certas dificuldades inerentes à
concepção oposta. Isso precisa ser resolvido.
As objeções à visão contrária podem já ter ocorrido aos
leitores das páginas anteriores. Eles podem ter notado as
dificuldades que foram apenas mencionadas. Eles podem
pensar que a visão contrária vai muito longe na direção oposta
e que dá origem a consequências tão censuráveis quanto as
resultantes da visão de Locke quando levada às suas
conclusões lógicas.
E necessário lembrar que a visão contrária não se aplica a
todas as idéias, mas apenas a algumas. Excluem-se sensações
corporais, sentimentos, emoções e, em casos raros, sensações
geradas por estimulação ou por nossos sentidos externos.
Concede-se que todas essas sejam experiências privadas, nas
quais estamos diretamente conscientes da dor que sentimos,
da raiva que sofremos, ou do súbito brilho da luz, do ruído alto
inesperado, do estranho odor que não podemos identificar e
que não faz parte da nossa percepção de nada.
Todos esses são objetos de experiência imediata. Eles não
servem como meios para apreender outra coisa. Eles próprios
são os objetos da nossa apreensão.
Observadas todas essas exceções, todas as nossas outras
idéias podem ser caracterizadas como cognitivas — como
instrumentos de cognição. Em vez de serem elas mesmas
objetos de apreensão, elas são meios pelos quais apreendemos
os objetos que não são idéias.
Essas duas palavrinhas — “pelos quais” — encerram a pista
para diferenciarmos a concepção de Locke da sua oposta. Para
Locke, todas as idéias são aquilo que nós apreendemos quando
estamos conscientes de algo. Para a concepção oposta,
algumas idéias (nossas idéias cognitivas) são aquilo pelo qual
nós apreendemos os objetos de que estamos conscientes.
Essa visão é expressa por Santo Tomás de Aquino em uma
breve passagem, comparável à breve passagem da introdução
ao Ensaio sobre o entendimento humano de Locke. Irei
parafraseá-la de modo a evitar usar uma terminologia que
possa se provar desconcertante aos olhos do leitor
contemporâneo.
No “Tratado sobre o homem”, que se encontra na Primeira
Parte da sua Suma teológica, o Aquinate levanta a questão de
se as nossas idéias (estou aqui utilizando o termo no sentido
omni-abarcante de Locke) são aquilo que apreendemos quando
estamos conscientes ou aquilo pelo qual apreendemos objetos
que não são idéias. Com uma qualificação, a ser reservada
para consideração posterior quando esta for mais apropriada, a
resposta que ele dá é enfática: aquilo pelo qual.
Deixe-me destrinchar essa resposta em todos os seus
detalhes significativos. Ela quer dizer que experimentamos
coisas percebidas, mas nunca os perceptos por meio dos quais
as percebemos. Lembramo-nos de eventos ou acontecimentos
passados, mas nunca estamos conscientes das memórias por
meio das quais nos lembramos deles. Podemos estar
conscientes de objetos imaginários ou imaginados, mas nunca
das imagens por meio das quais os imaginamos. Apreendemos
objetos de pensamento, mas nunca os conceitos por meio dos
quais pensamos neles.
“Você quer dizer” — o leitor pode perguntar — “que eu
nunca estou consciente das memórias ou imagens que sou
capaz de evocar, e que não sou capaz de examinar
diretamente os conceitos ou concepções que minha mente foi
capaz de formar?”.
A resposta para essa questão, por contrária que possa ser
aos nossos frouxos hábitos discursivos, é enfaticamente
afirmativa. Uma idéia cognitiva (incluindo aqui perceptos,
memórias, imagens e conceitos) não pode, a um só e mesmo
tempo, ser tanto aquilo que apreendemos diretamente como
aquilo pelo qual apreendemos outra coisa — algum objeto que
não é uma idéia em nossas próprias mentes, mas que,
diferente de nossas idéias subjetivas, é antes algo que pode
ser um objeto de consideração ou de conversação para duas ou
mais pessoas.
Voltemos um instante à mesa sobre a qual se encontram
taças e uma garrafa de vinho e à qual eu e você estamos
sentados. Observamos anteriormente que nossa consciência
desses objetos era uma experiência pública ou comum que
ambos partilhávamos. Isso poderia não ser assim se cada um
de nós estivesse consciente apenas de suas próprias idéias
perceptivas — de suas próprias percepções sensíveis. Ser uma
experiência comum a nós dois, partilhada por ambos, depende
de que ambos apreendamos os mesmos objetos perceptivos —
a mesa, a garrafa e as taças realmente existentes —, não as
percepções exclusivamente privadas que temos desses
objetos.
Diferenças subjetivas interferem em nossas percepções de
algo que é um único e mesmo objeto comum para duas ou
mais pessoas. De um modo geral, não é difícil levá-las em
consideração.
Por exemplo, você e eu sentados à mesma mesa e olhando
para a mesma garrafa de vinho comunicamos diferenças de
percepção um ao outro. Eu digo que a garrafa de vinho parece
ter a coloração de um borgonhês, ao passo que você diz
parecer ter a coloração de vinho tinto. Após uma consideração
momentânea, percebemos que minha percepção da garrafa
como sendo de um tom avermelhado mais escuro se deve ao
fato de que estou sentado com as costas voltadas para a fonte
de luz e que, portanto, para mim, a garrafa se apresenta numa
região penumbrosa. Já você está sentado numa posição em
que a luz advinda da janela recai diretamente sobre a garrafa.
Outro exemplo: você percebe as taças sobre a mesa como
se fossem esverdeadas, enquanto eu as percebo como se
fossem acinzentadas. Você, então, pergunta se eu sou
daltônico, e eu confesso que esqueci de mencionar esse fato.
Apesar de tais diferenças subjetivas na percepção, o objeto
percebido continua a ser o mesmo ente individual para os
diferentes sujeitos percipientes — a mesma garrafa, as
mesmas taças. As diferenças subjetivas, quando notadas,
sejam elas explicadas ou não, não causariam àqueles a dúvida
sobre estarem olhando para os mesmos objetos perceptivos ou
não.
Entretanto, isso pode acontecer nos exemplos seguintes. Se
eu dissesse da garrafa que estamos ambos a olhar que ela está
meio vazia e você dissesse que ela está meio cheia; ou se eu
dissesse que ela está arrolhada e você que ela está
desarrolhada; então poderíamos ter algumas dúvidas em
relação ao nosso diálogo acerca do mesmo objeto perceptivo.
Mas é difícil imaginar que ocorram tais diferenças de
percepção, a não ser que estas se encontrem sob
circunstâncias extraordinárias e anormais.
Sob condições ordinárias, a experiência perceptiva é uma
apreensão dos objetos percebidos. Isso se aplica também a
memórias, imagens e concepções. O que é verdade acerca de
um tipo de idéia cognitiva — nossas percepções — é verdadeiro
em relação a todos os outros tipos de idéias cognitivas — todas
elas os meios, não os objetos, da apreensão; aquilo pelo qual,
não aquilo que, nós apreendemos.
Há uma diferença importante entre nossas percepções e
nossas outras idéias cognitivas — nossas memórias, imagens e
concepções. No caso desta última, nossa apreensão direta ou
imediata dos objetos que são postos ante nossas mentes deixa
aberta a questão de se esses objetos são ou não coisas
realmente existentes. Eis alguns exemplos de como essa
questão vem à tona.
Recordamos algum evento ou acontecimento passado. Mas
sabemos que nossa memória pode nos pregar peças. Podemos,
então, ser suficientemente cautelosos ao indagar se aquilo de
que lembramos realmente aconteceu no passado tal como o
estamos lembrando. Há várias maneiras de descobrir isso.
Recorrendo a elas, nos convencemos de que nossa memória
estava correta, e assim julgamos que o evento que é objeto de
nossa memória realmente aconteceu no passado tal como o
lembramos.
É necessário notar aqui que há dois atos separados da
mente. O primeiro é um ato de simples apreensão — o ato por
meio do qual rememoramos um evento passado. O segundo é
um ato de julgamento mais complexo, resultante usualmente
do raciocínio ou da ponderação de evidências relevantes. O
juízo pode ser tanto afirmativo quanto negativo. Ele pode
asseverar que aquilo de que nos lembramos de fato ocorreu no
passado, ou pode consistir numa negação disso.
Deslocando-nos da memória para a imaginação,
descobrimos que a questão acerca da existência real dos
objetos imaginados vem à baila de um modo diferente. Na
maioria dos casos, os objetos da nossa imaginação são objetos
que nós construímos a partir das nossas experiências de
percepção; por exemplo, um centauro, uma sereia ou uma
montanha de ouro. Porque nós mesmos os construímos,
sabemos de imediato que eles são objetos puramente
imaginários, de modo que nem por um momento hesitamos em
negar-lhes a existência real.
Todavia, somos às vezes levados a imaginar algo que pode
realmente existir e ser percebido, seja por nós, seja por outra
pessoa. É possível então que, após refletir, afirmemos a
existência real do objeto por nós imaginado, embora não o
tenhamos percebido.
O que é verdadeiro acerca de apenas alguns objetos da
imaginação o é para todos os objetos de pensamento. Pois, em
relação a todos estes, que apreendemos por meio dos nossos
conceitos ou concepções, nos defrontamos com a questão que
clama por um juízo acerca da existência deles na realidade.
Além de ser um objeto de pensamento, o qual pode ser público
ou comum e, portanto, capaz de ser objeto da conversação de
duas ou mais pessoas, é ele também algo que realmente
existe? O objeto de pensamento, tal como eu e outros o
apreendemos e discutimos, permanece o mesmo não importa
que resposta se dê a tal questão.
Quando, por exemplo, anjos são concebidos como mentes
sem corpos, eles são objetos de pensamento que podem ser
discutidos por dois indivíduos, um dos quais afirma a sua
existência real enquanto o outro a nega. Na medida em que
diferem de julgamento acerca deste ponto, é possível que
continuem a ter o mesmo objeto de pensamento ante suas
mentes e que concordem, à luz da concepção de anjo que
compartilham, que estes não ocupam lugar no espaço do
mesmo modo que os corpos ocupam.
A questão a respeito da existência real dos objetos
perceptíveis não é levantada em relação à maioria das nossas
percepções. Sob circunstâncias normais, fazemos o julgamento
que assevera a existência real dos objetos de percepção no
mesmo exato instante em que os apreendemos.
Dizer que eu percebo a mesa à qual você e eu estamos
sentados inclui dizer que ela realmente existe. Se eu tivesse a
menor dúvida quanto à sua real existência, eu não ousaria
dizer que a percebo. No caso das percepções normais, o
simples ato de apreensão é inseparável do juízo que assevera a
existência real do objeto apreendido.
Alucinações e sonhos se mascaram de percepções. A pessoa
que está sofrendo de uma alucinação acredita estar
percebendo algo que, a rigor, não está percebendo de maneira
alguma, porque o objeto da sua percepção anormal não existe
realmente. Assim também no caso dos sonhos: enquanto
estamos sonhando, sofremos a ilusão de estar tendo
experiências de percepção.
O sonhador sofre uma ilusão do mesmo tipo que o
alucinado. Ambos são tomados por falsas experiências de
percepção e, portanto, enganam-se no exato momento em que
acreditam que esses falsos objetos perceptivos realmente
existem.
Uma vez desperto, ou curado da alucinação, a ilusão se
desfaz. Nada nessas experiências era real; tudo era imaginado,
nada percebido.
 
5
 
Os objetos apreendidos que são apresentados às nossas
mentes por intermédio de nossas idéias cognitivas são objetos
públicos ou comuns. Eles são objetos para duas ou mais
pessoas, objetos sobre os quais elas podem conversar. E isso
segue sendo verdadeiro tanto em relação aos objetos do
pensamento, da memória e da imaginação, quanto em relação
aos objetos da percepção.
Pode ser útil considerar como é possível para algumas
pessoas levar em consideração um determinado e mesmo
objeto quando uma delas o está percebendo, outra o está
lembrando, e outra ainda o está imaginando. Devo reservar
para posterior consideração (para o próximo capítulo) a
explicação de como duas ou mais pessoas podem discutir o
mesmo objeto de pensamento. Desde que uma das três está
percebendo o objeto que lhes é comum a todas e lhes é
acessível por diferentes modos de apreensão, sabemos que o
objeto em questão é um objeto realmente existente.
Concedamos que o objeto físico em questão seja um papel
de parede num quarto de mulher. A mulher está sentada em
seu quarto olhando para o papel de parede enquanto conversa
ao telefone sobre ele com seu marido. Para ela, o papel de
parede é um objeto perceptivo; para ele, é um objeto
lembrado. Embora a mulher e seu marido estejam operando
com idéias que não são apenas numericamente distintas, mas
também distintas em seu caráter (uma é um percepto, outra é
uma memória), ambas as idéias podem apresentar o mesmo
objeto às suas mentes.
Ademais, se se trata de um e mesmo objeto que ambos
estão a apreender, ainda que por diferentes modos de
apreensão, deve-se seguir também então que o objeto que
está sendo lembrado pelo marido deve ser uma entidade que
também existe realmente, porquanto este mesmo objeto é um
objeto que está sendo percebido por sua esposa. Se esse
objeto não fosse uma entidade que também existe realmente,
ela não o poderia estar percebendo. Até agora, então, podemos
dizer que o papel de parede tem dois modos de existência:
existência real na parede e existência objetiva tanto como algo
percebido quanto como algo lembrado.
Um pouco mais tarde a mulher telefona para uma amiga sua
e conversa sobre o papel de parede, pedindo-lhe conselhos
sobre se deveria colocar outro papel de parede de idêntico
padrão na parede do quarto de hóspedes. A amiga afirma
nunca ter visto o papel de parede em questão. A mulher então
lhe conta que o padrão é o mesmo do papel de parede do
quarto da amiga, exceto pelo fato de as cores serem vermelho
e branco, não azul e branco. Neste momento a amiga diz que é
capaz de imaginar o papel de parede e recomenda que o
coloque na parede do quarto de hóspedes.
Para a amiga, o papel de parede não é nem um objeto
percebido nem um objeto lembrado. É um objeto imaginado.
Por mais que uma imagem seja diferente de um percepto e de
uma memória, do mesmo modo ela é capaz de apresentar à
mente da amiga o mesmo objeto que se apresenta à mulher
por meio da percepção e ao marido por meio da memória.
Trata-se, então, de um único e mesmo objeto de discurso
para todos os três. Ademais, por ser um objeto de percepção
para um deles, este que é um objeto comum para todos os
três, conquanto apreendido de modos diferentes por cada um
deles, deve ser uma entidade que também tem existência
física na parede do quarto. Isso equivale a dizer que é bem
possível não apenas lembrar, mas também imaginar um objeto
que também existe realmente.
Se duas pessoas estão conversando sobre um determinado
objeto que é um objeto de memória ou de imaginação para
ambas, ou um objeto de memória para uma e um objeto de
imaginação para outra, a questão acerca de se este objeto
comum é uma entidade que também existe realmente, ou que
já tenha existido realmente alguma vez, ou que ainda venha a
existir realmente no futuro, não pode ser facilmente
respondida.
Consideremos em primeiro lugar o caso de duas pessoas,
ambas as quais estão se lembrando do mesmo objeto. Este
objeto pode ser uma entidade que agora realmente existe e
que, portanto, é capaz de ser percebida por uma terceira
pessoa. Se essa terceira pessoa não estiver participando da
conversa, a conversa entre as outras duas sobre o que a
princípio parece ser um objeto de memória comum exigirá que
elas tomem duas precauções.
Em primeiro lugar, elas devem fazer um esforço discursivo
para estarem certas de que as suas memórias numericamente
distintas têm o mesmo objeto. Elas o podem fazer dirigindo
perguntas uma à outra acerca do objeto que está sendo
lembrado e assim, com razoável certeza, chegarem à
conclusão de que se trata do mesmo objeto para ambas.
Em segundo, elas não devem se precipitar ao julgar se o
objeto lembrado existe realmente agora ou se já existiu alguma
vez e não existe mais. Garantir-lhes que estão ambas a
lembrar-se do mesmo objeto dificilmente é garantia de que o
objeto lembrado é uma entidade que tem ou teve existência
real. Elas poderiam estar totalmente enganadas a esse
respeito, ou estar erradas em alguma medida.
Se elas não estiverem enganadas ou erradas, e se o objeto
de que estão a se lembrar em comum já existiu realmente
alguma vez, porém não mais existe, podemos dizer que uma e
a mesma entidade tem existência como um objeto apreendido
e existência real como uma coisa?
A resposta deve ser negativa, na medida em que sabemos
que o objeto que está sendo lembrado não existe mais
realmente. Ainda assim, alguma vez existiu. O fato de que os
seus dois modos de existência não sejam simultâneos, como no
caso da percepção, não altera o princípio subjacente.
O que foi dito aplica-se ao caso de duas pessoas, duas das
quais estejam imaginando o mesmo objeto. Elas devem tomar
as mesmas precauções de modo a assegurarem-se de que o
objeto que cada uma está imaginando é comum a elas duas; e
de modo a discutirem entre si se aquele objeto comum terá
existência real em algum momento futuro ou não.
Tal discussão, por exemplo, pode vir à tona em função de
uma invenção que estão ambas imaginando. Se elas
concordarem no juízo segundo o qual a peça particular do
aparato que elas inventaram usando a imaginação é um objeto
imaginado que também é capaz de adquirir existência real no
futuro, o princípio já postulado se aplica; a saber, que o objeto
de suas imaginações pode também ter existência real em
algum momento futuro como ente físico.
 
6
 
As visões opostas acerca da consciência e seus objetos já
foram suficientemente expostas para os nossos presentes
propósitos. Adiamos a consideração de certos problemas
porque pode ser mais apropriado lidar com eles no próximo
capítulo, no qual devemos nos ocupar das concepções opostas
acerca da mente humana.
O que ainda resta a ser tratado aqui são as consequências
de se esposar uma ou outra das concepções opostas acerca da
consciência e seus objetos. Examinemos primeiramente as
consequências do erro filosófico. Vejamos então se a
concepção que corrige esse erro nos permite evitar as
consequências que consideramos repugnantes à razão e ao
senso comum.
Aqueles que sustentam a concepção errada acerca das
idéias como estas sendo aquilo que cada indivíduo apreende
diretamente — os objetos imediatos de que cada indivíduo está
consciente — nos encerram a cada um de nós no mundo
privado da própria experiência subjetiva.
Pode-se pensar que, da experiência que temos de nossas
próprias idéias, podemos de algum modo inferir a existência de
coisas que não são idéias em nossas mentes — a existência de
individualidades outras que nós mesmos, e de todos os outros
corpos que, como é de senso comum, supomos serem
constituintes do mundo físico.
Entretanto, na medida em que não posso ter acesso direto
ou consciência imediata de algo que não seja uma idéia em
minha própria mente, fica difícil enxergar como alguma
tentativa de argumentar a favor ou de provar a existência de
uma realidade externa pode ser levada a cabo
satisfatoriamente.
As últimas consequências a que somos então levados são
tão drásticas e repugnantes que os nomes que lhes atribuímos
são, em geral, pejorativos. Nenhum filósofo mentalmente são
jamais desejou abraçá-las ou esposá-las, embora, a partir do
errinho inicial de Locke, Hume tenha descoberto que aquele
filósofo foi inexoravelmente levado a conclusões tão extremas
ao ponto de o senso comum impedir que quaisquer outras
pessoas as adotassem.
Um desses posicionamentos extremados consiste no
ceticismo total em relação à possibilidade de termos
conhecimento de realidades externas às nossas mentes. Outro
é o chamado solipsismo — a asserção segundo a qual tudo de
quanto estou consciente é uma invenção da minha própria
mente.
O senso comum, à luz das experiências que todos temos,
nos compele a rejeitar essas conclusões como absurdas. Não
podemos torcer nossas mentes no sentido de considerar todas
as conversas que temos com outras pessoas como
completamente ilusórias — conversas nas quais você e eu
dialogamos sobre objetos que ambos experimentamos, objetos
a que ambos nos referimos por meio das palavras que usamos
para nomeá-los, entre os quais se podem encontrar aqueles
com os quais ambos podemos estar lidando ao mesmo tempo
em que sobre eles conversamos. Certamente não estamos
falando das idéias na minha mente ou das idéias na sua mente.
Nem a Locke nem a qualquer dos seus seguidores, incluindo
mesmo o cético David Hume, faltou o senso comum. Eles o
tiveram em suficiente medida para que fossem prevenidos de
adotar as conclusões extremas a que a premissa inicial errônea
inexoravelmente conduz. Com efeito, Locke, na passagem de
abertura em que anuncia o seu uso da palavra “idéia” para
designar aquilo de que temos consciência quando estamos
despertos, também anuncia que nas páginas seguintes do seu
Ensaio se ocupará com a questão de onde vêm as idéias que
estão em nossas mentes.
Tendo argumentado, no Livro i do Ensaio, contra a visão de
que nossas mentes são preenchidas com idéias inatas no
momento do nascimento, Locke prossegue no Livro n
explicando como as mais simples das nossas idéias adentram
nossas mentes pela ação das coisas externas físicas sobre os
nossos órgãos dos sentidos. Não há nada em nossas mentes
que não tenha sua origem última na experiência sensorial. A
reiteração que Locke faz desse ponto revela o seu tácito
reconhecimento da existência do mundo newtoniano de corpos
em movimento, incluindo nossos próprios corpos e aqueles que
atuam sobre nós estimulando nossos órgãos dos sentidos.
Pode-se pensar que rejeitar como absurdas as conclusões a
que a premissa inicial errônea inevitavelmente conduz
resultaria em uma rejeição da própria premissa igualmente
absurda. Esse é o modo como um argumento do tipo reductio
ad absurdum deve funcionar. Quando nos é mostrado que
fomos conduzidos a uma conclusão absurda por termos
seguido logicamente as implicações de uma premissa inicial,
espera-se que rejeitemos a premissa como se ela própria fosse
absurda.
Isso é o que deveria ter acontecido à premissa inicialmente
falsa de Locke. Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário, o
erro filosófico de que ora nos ocupamos foi, de fato, elaborado
pelo esforço de evitar-lhe as conseqüências absurdas de um
outro modo, um modo que não envolve a rejeição da premissa
inicial como intrinsecamente absurda.
Qual foi o outro modo? Consistiu em dizer que as idéias em
nossas mentes — se não todas, ao menos algumas —, além de
serem os objetos de que estamos direta e imediatamente
conscientes, são também representações de coisas que
realmente existem no mundo externo ou físico. Destaquei a
palavra que descreve o erro.
Quando podemos dizer que uma coisa representa outra?
Apenas quando observamos alguma semelhança entre o que é
dito ser a representação e a coisa supostamente representada,
como quando dizemos que um retrato é a representação da
pessoa retratada.
Tendo por base esta compreensão do que seja uma
representação, como podem nossas idéias (os únicos objetos
com os quais temos conhecimento direto) serem consideradas
representações de coisas realmente existentes (das quais não
podemos estar diretamente conscientes em absoluto)?
Não há resposta satisfatória para essa questão. Em face
deste problema, é impossível sustentar que as idéias são os
únicos objetos que apreendemos diretamente e que, ademais,
são também representações de realidades que nunca são
objetos apreendidos por nós diretamente, pois só se pode dizer
que uma representa a outra se ambas puderem ser
diretamente apreendidas e comparadas.
Não obstante, converter ilicitamente idéias em
representações reforçou de algum modo a crença infundada
em um mundo externo, independente, de existências reais, um
mundo com o qual nenhum de nós, se aprisionados à vida
privada de nossas próprias mentes, poderia alguma vez ter tido
contato consciente. O endosso dessa crença irracional é um
mistério que permaneceu não resolvido. As inúteis tentativas
de resolvê-lo produziram uma variedade de outros mistérios,
resultando em obscuridades e perplexidades que tornaram
enigmática a filosofia moderna nos séculos XIX e XX.
O pensamento moderno poderia ter tido um melhor fim se,
em vez de ter se enredado em todos os seus serpentinos
volteios e torções, no sentido de deslindar-se das absurdidades
resultantes do esforço de considerar todas as idéias como os
únicos objetos diretamente apreendidos, tivesse substituído a
visão oposta. Ademais, o erro seguinte consiste em considerar
algumas idéias como representações de realidades que não
podem ser diretamente apreendidas.
A visão oposta não apenas nos salva facilmente do
ceticismo e do solipsismo como também nos salva dos inúteis
esforços de provar a existência de uma realidade física,
externa.
Em nossas experiências perceptivas, tomamos
conhecimento direto tanto da existência de outros corpos como
do nosso próprio corpo. Ademais, todos os outros objetos sobre
os quais nos pomos a dialogar uns com os outros — os eventos
ou acontecimentos de que nos lembramos, as ficções que
podemos imaginar, os objetos do pensamento conceptual, bem
como os objetos da nossa experiência perceptiva — são todos
públicos, comuns, objetos a respeito dos quais podemos nos
comunicar mutuamente.
Não falamos — a rigor, não o podemos — um com o outro
acerca de nossas próprias idéias — nossos perceptos, nossas
memórias, nossas imagens, nossos pensamentos ou conceitos.
De nossos sentimentos subjetivos, sim; mas não de idéias que
apresentam objetos a nós. Estamos conscientes apenas dos
objetos apreendidos, não das idéias por meio das quais os
apreendemos.
A profunda diferença que faz substituir a visão correta pela
errada pode ser resumida como se segue.
Quando idéias são tratadas como as únicas coisas das quais
temos conhecimento direto por meio da consciência imediata
que temos delas como objetos apreendidos, somos obrigados a
viver em dois mundos sem nenhuma ponte entre eles.
Um é o mundo da realidade física, no qual nossos próprios
corpos ocupam espaço, se movem e interagem com outros
corpos. Nossa crença na existência desse mundo é uma fé cega
e irracional.
Outro é o mundo completamente privado em que cada um
de nós está encerrado — um mundo em que nossa única
experiência é a experiência constituída pela consciência das
nossas próprias idéias. A presunção de que outros indivíduos
também e, similarmente, vivem no mundo privado de suas
próprias experiências conscientes é uma fé tão cega quanto a
crença de que todos vivemos juntos no único mundo da
realidade física externa.
Quando corrigimos o erro inicial que engendra todos esses
resultados, descobrimo-nos vivendo juntos no mundo da
realidade física, um mundo do qual tomamos conhecimento
direto em nossas experiências perceptivas.
Não apenas temos contato corporal um com o outro neste
mundo; também nos comunicamos um com o outro a seu
respeito quando nos pomos a discutir objetos de percepção
com os quais podemos interagir conjuntamente.
Este não é o único mundo em que podemos viver juntos.
Também vivemos no mundo público constituído por nossas
experiências comuns de objetos distintos daqueles objetos
perceptivos que também são coisas físicas perceptíveis. Estou
me referindo aqui a eventos passados ou a acontecimentos de
que nos lembramos, a objetos imaginários assim como a coisas
que imaginamos que podem também existir ou serem capazes
de existência real, e a todos os objetos de pensamento.
Há ainda um terceiro mundo no qual vivemos — o mundo da
nossa experiência estritamente privada e subjetiva, no qual
cada um de nós está consciente das suas próprias sensações
corporais, sentimentos e emoções — experiências nas quais
estamos totalmente sozinhos.
Talvez fosse mais acurado e conforme ao senso comum falar
desses três reinos de experiência como três dimensões do
único e mesmo mundo, não como três mundos separados.
As três dimensões consistem em (1) objetos perceptivos que
são coisas ou eventos realmente existentes; (2) todos os outros
objetos que podem ou não existir, podem ter existido no
passado, mas não mais existem, e objetos que não existem no
presente, mas podem vir a existir no futuro; e (3) as
experiências subjetivas que existem apenas para a mente
individual que as têm. As duas primeiras são públicas; a
terceira, privada. Além disso, há as idéias cognitivas que têm
existência na mente, mas, sendo os meios pelos quais
apreendemos todos os objetos que apreendemos, eles mesmos
nunca são apreendidas.
Apenas quando falhamos em rejeitar o erro fundamental
introduzido por Locke acerca da consciência e de suas idéias, e
talvez por Descartes antes dele, é que convém falar, por um
lado, do reino da realidade física e, por outro, do reino da
experiência mental consciente como dois mundos separados —
a relação entre os quais não podendo ser explicada
satisfatoriamente por nós.
O erro filosófico, quando visto em todas as suas
consequências, é repugnante tanto à razão como ao senso
comum. A correção desse erro produz o resultado oposto —
uma visão coerente da consciência e de seus objetos que não
envolve nenhuma crença inexplicável e que concorda com o
senso e a experiência comuns.
CAPÍTULO II
O intelecto e os sentidos
 
1
Uma vez mais, comecemos a partir daquilo que todos nós já
sabemos. Referimo-nos ordinariamente a qualquer organismo
vivo que tenha alguma consciência de si mesmo e do ambiente
que o circunda como tendo uma mente. Também atribuímos
inteligência a esse organismo se, além de tal consciência, ele
reage de alguma maneira discriminadora em relação ao
ambiente de que tem consciência.
Poderíamos acrescentar, talvez, que geralmente
consideramos a mente e a inteligência como os meios pelos
quais os organismos sencientes aprendem a partir da
experiência e modificam seus comportamentos em
conformidade a esse aprendizado.
Por esses critérios, os únicos animais a que não poderíamos
atribuir uma mente ou inteligência seriam aqueles cujo
comportamento é completamente determinado por padrões de
comportamento inatos e pré-formados aos quais damos o
nome de instintos.
Os padrões de comportamento instintivos de insetos tais
como abelhas, formigas e traças são adequados para todos os
propósitos da vida e da sobrevivência das espécies. Por
conseguinte, não precisam aprender a partir da experiência ou
modificar seus comportamentos em decorrência desse
aprendizado. Justifica-se, então, dizermos que eles não têm
nenhuma mente, nenhuma inteligência.
Entre os vertebrados, e especialmente entre os mamíferos
superiores, alguns comportamentos têm caráter instintivo, mas
não todos. Com efeito, na medida em que ascendemos na
escala zoológica, o conjunto de comportamentos que são
modificados pelo aprendizado aumenta em relação ao conjunto
que permanece puramente instintivo e não modificado pela
experiência.
Por esse critério, acreditamos estar certos ao dizer que os
animais superiores têm mentes e inteligência em maior grau
que os animais inferiores. Certamente, sendo organismos
sencientes, todos têm órgãos dos sentidos; e é pelo
funcionamento dos seus diversos sentidos que eles aprendem
a partir da experiência.
Se nos voltarmos agora de todos os organismos infra- -
humanos para o homem, uma diferença radical vem à tona. No
sentido estrito do termo instinto, a espécie humana não tem
instintos — nenhum padrão de comportamento inato e pré-
formado. Temos um pequeno número de pequenos reflexos
inatos, apenas alguns sendo congênitos. Temos também o que
poderia ser chamado de impulsos ou condutas instintivas. Mas,
levando esses impulsos em consideração, os membros da
espécie humana se comportam de maneiras amplamente
variadas. Eles não manifestam todos um único padrão de
comportamento, tal como manifestam todos os membros de
uma espécie particular de abelhas, formigas ou traças.
Apesar dessa diferença radical entre os seres humanos e as
outras espécies animais, permanece ainda apropriado usar
palavras como “mente” e “inteligência”, quando aplicadas a
seres humanos e a outros animais, no mesmo sentido. Para nós
como para eles, mente ou inteligência querem dizer faculdades
ou potências empregadas no aprendizado a partir da
experiência e na modificação de comportamento decorrente de
tal aprendizado. Porque diferimos dos outros animais por
sermos totalmente ― por John Locke, George Berkeley, David
Hume e por muitos outros que vieram depois deles. Esta é,
como tentarei mostrar, a resposta errada — um engano que
acarreta sérias consequências.
A segunda alternativa constitui a resposta que prevaleceu
nos tempos antigos e durante a Idade Média. Ela continuou a
existir nos tempos modernos, notavelmente nas filosofias de
René Descartes, Immanuel Kant, Georg Friedrich Hegel, e seus
seguidores. Esta é, no meu julgamento, a resposta correta, que
corrige o erro e evita as consequências a que conduz.
Entre aqueles que dão a resposta correta, alguns vão muito
longe e seu extremismo necessita de correção. Antes de nos
debruçarmos sobre isso, consideremos os pontos que
distinguem a resposta certa da errada.
O primeiro ponto, repisado de novo e de novo nos escritos
de Platão e Aristóteles, é que os objetos que apreendemos se
dividem entre aqueles que são sensíveis e aqueles que são
inteligíveis.
A totalidade dos objetos que apreendemos pela percepção
sensível pertence, certamente, ao primeiro grupo. Esse grupo
também inclui os sensíveis particulares que podemos lembrar e
imaginar — tal como a nossa memória da mesa de jantar à
qual sentamos na última noite, ou nossa imaginação da casa
que estamos planejando construir.
Ao segundo grupo pertencem todos os objetos puramente
inteligíveis, como os objetos do pensamento matemático, ou
tais objetos metafísicos na condição de entes puramente
espirituais; por exemplo, almas, anjos e Deus. Também estão
incluídos objetos de pensamento como a liberdade, a justiça, a
virtude, o conhecimento, o infinito, e mesmo a própria mente.
Nenhum desses pode ser percebido pelos sentidos. Nenhum é
um sensível particular.
Um segundo ponto se segue imediatamente do primeiro. Na
medida em que os objetos que apreendemos recaem
desprovidos de instintos, precisamos da mente ou inteligência
em um grau superior. Todos os nossos ajustamentos ao
ambiente devem ser aprendidos.
Muito do aprendizado realizado pela mente ou inteligência
humana é baseado na experiência sensível. Temos órgãos dos
sentidos que são genericamente os mesmos que os órgãos dos
sentidos possuídos por outras espécies. A extensão da
experiência que o funcionamento deles nos prevê define limites
ao nosso aprendizado.
 
2
 
Observados todos esses apontamentos bem óbvios,
estamos preparados para enfrentar a questão para a qual
respostas certas e erradas foram dadas ao longo dos vinte e
cinco séculos de pensamento ocidental. A questão ocupa- -se
da mente humana e das suas relações com os sentidos.
Seria a mente humana uma potência cognitiva única,
embora complexa, que envolve o funcionamento dos nossos
sentidos e o que quer que se siga a este funcionamento, tal
como a memória e a imaginação, ou deveria ser ela dividida
em duas potências cognitivas bem distintas — os sentidos e
tudo o mais a que estes dão origem, por um lado, e o intelecto,
capaz de entender, julgar e raciocinar, por outro?
A questão se nos apresenta com alternativas
irreconciliáveis. Uma dessas alternativas identifica a mente
humana com os sentidos, incluindo todo o espectro de
consequências que se seguem do fato de termos sensações ou
percepções sensoriais. A outra alternativa divide a mente
humana em duas partes distintas — sentidos e intelecto — e
considera que essas duas partes perfazem funções cognitivas
bem diferentes.
A primeira alternativa constitui a resposta avançada nos
tempos modernos, começando por Thomas Hobbes e levada
adiante por seus sucessores na filosofia britânica num desses
dois grupos distintos, é forçoso que tenhamos duas potências
distintas para apreendê-los — os sentidos, de um lado, e o
intelecto, do outro.
Pode ser útil repetir um terceiro ponto, já mencionado. Os
sentidos — ou a sensibilidade — incluem uma série de
potências, tais como as potências de perceber, lembrar e
imaginar. O intelecto também inclui uma série de potências,
como as de entender, julgar e raciocinar. Reunimos às vezes
tudo quanto resulta do exercício de nossas potências sensitivas
sob a categoria da experiência sensível. Assim, também,
reunimos todas as operações das nossas potências intelectivas
sob a categoria do pensamento.
Para além desses três pontos, compartilhados por todos que
dão essa resposta à questão, certas divergências devem ser
observadas. Platão e Descartes, e posteriormente também
Kant e Hegel, vão muito longe na separação que fazem dos
dois domínios — o sensível e o inteligível. Isso resulta do fato
de que eles atribuem ao intelecto uma autonomia que faz do
seu funcionamento, em parte ou integralmente, independente
da experiência sensível.
Isso levou Platão e Descartes a preencherem o intelecto
com idéias inatas — idéias que em hipótese alguma derivam da
experiência sensível. As categorias transcendentais de Kant
são uma outra versão deste mesmo erro. Comentei este erro
longamente alhures, num livro intitulado Os anjos e nós, em
que o intelecto humano é abordado como se fosse um anjo
encapsulado ou associado a um corpo humano.
O extremismo que acabamos de salientar é evitado pelo
reconhecimento, em primeiro lugar, de que o intelecto depende
da experiência sensível em todas as suas apreensões
primárias; e, em segundo lugar, de que, enquanto alguns
objetos de pensamento são puramente inteligíveis, nossa
experiência sensível nos dá acesso a objetos que, com raras
exceções, nunca são puramente sensíveis.
Este segundo ponto precisa de uma maior explicação. Os
objetos da nossa experiência sensível são, em sua maior parte,
objetos que não apenas percebemos, mas também
entendemos. Em raras e excepcionais ocasiões, quando
apreendemos algo como uma individualidade única que não
conseguimos classificar de maneira alguma, é que trata-se de
um objeto ininteligível.
Normalmente, os objetos sensíveis que percebemos, os
percebemos como particulares de um tipo ou de outro — um
gato ou cachorro em particular, um chapéu ou casaco em
particular, uma árvore ou flor em particular. Uma
individualidade particularizada é um objeto tanto inteligível
quanto sensível. Não apenas o percebemos como esta coisa
individual. Entendemos tratar-se também de uma coisa
particular de um certo tipo.
Os sentidos e o intelecto cooperaram para a nossa
apreensão desse objeto. Ele não seria um particular se não
fosse, a um só tempo, um objeto tanto sensível quanto
inteligível.
Em contraste, objetos de pensamento como a liberdade, o
infinito e Deus são puramente inteligíveis. Direi mais acerca do
caráter especial desses objetos mais tarde.
Gostaria de acrescentar aqui um último comentário acerca
da resposta correta para a questão da mente humana e dos
sentidos. Isso nos permite, retrospectivamente, corrigir o uso
omni-compreensivo que Locke faz da palavra “idéia”.
No capítulo anterior, nos debruçamos inteiramente sobre o
erro de Locke ao considerar as idéias como se fossem sempre
os objetos da nossa compreensão quando estamos conscientes
ou quando estamos pensando em alguma coisa. Seguimos o
uso omni-compreensivo que ele faz da palavra “idéia” para
cobrir sensações, percepções, memórias, imagens,
sentimentos, e mesmo aquilo que, em certas passagens, ele
denominou idéias gerais ou abstratas. Esse uso elástico da
palavra “idéia” se encaixou com o uso que ele faz de outras
palavras como “mente” ou “entendimento” para se referir a
uma única faculdade ou potência cognitiva, de caráter
essencialmente sensitivo.
A visão oposta, que acabamos de abordar — a visão que
atribui à humanidade duas potências ou faculdades cognitivas
distintas, a sensitiva e a intelectual —, insta-nos a mudar o
modo como usamos essas palavras.
De acordo com essa visão, nossas percepções, memórias, e
imagens não são idéias. Essa palavra deveria ser reservada
exclusivamente para designar os conceitos ou concepções por
meio dos quais nós apreendemos ou objetos de pensamento
puramente inteligíveis ou, quando nossos intelectos cooperam
com nossas potências sensitivas, objetos sensíveis particulares
que são também inteligíveis.
Nem a expressão “entendimento humano” deveria ser
usada, como Locke e Hume a usaram, para designar a mente
humana como um complexo de potências sensitivas. O
vocábulo português “entendimento” traduz o grego nous e o
latim intellectus. É paradoxal, para dizer o mínimo, que essa
expressão tenha sido adotada por Locke e Hume para expor
uma concepção da mente humana que nega a presença do
intelecto como algo bem distinto dos sentidos.
Quando, consoante a visão oposta, a palavra “idéia” é
usada exclusivamente para designar conceitos ou concepções
que são instrumentos por meio dos quais compreendemos o
que quer que tenha inteligibilidade, deveríamos lembrar que,
conforme esta visão, idéias ou conceitos não são aquilo que
compreendemos, mas somente aquilo pelo qual apreendemos
os objetos de pensamento, aquilo que de fato compreendemos.
Em nosso cotidiano, coloquialmente, frequentemente
violamos essa precaução de ordem crítica. Falamos ou
escrevemos sobre esta ou aquela idéia como se se tratasse do
objeto em consideração. Eu sou tão culpado por este
coloquialismo quanto qualquer outra pessoa. Escrevi livros e
ministrei palestras sobre as grandes idéias. Utilizei o vocábulo
“idéia” nos títulos das minhas obras como se estivesse me
referindo a um objeto de pensamento que estivesse sob
consideração naquele momento.
Meu único pedido de desculpas por esse uso incorreto e
impreciso do vocábulo “idéia” é que seria estranho sempre
falar ou escrever com a precisão necessária. Em vez de
intitular um livro A idéia de liberdade, eu teria de intitulá-lo
Liberdade como um objeto de pensamento. Em vez de
palestrar ou escrever sobre as grandes idéias, eu teria de me
referir às matérias sobre as quais discurso como aos grandes —
básicos ou fundamentais — objetos de pensamento.
 
3
 
A visão errada da mente, tomada sem qualificação por
Hobbes, Berkeley e Hume, pode ser simplesmente postulada
nos seguintes termos: a mente, na medida em que funciona
como um instrumento cognitivo, é uma faculdade inteiramente
sensitiva, desprovida de qualquer traço de intelectualidade.
Todas as suas “idéias” ou “pensamentos” (coloquei essas
palavras entre aspas para chamar a atenção para o seu uso
indevido) são sensações, percepções sensíveis, ou imagens; e
suas imagens são percepções sensíveis recordadas ou
construídas a partir de materiais fornecidos a partir da
experiência sensível.
“Imaginação”, escreve Hobbes, “não é nada mais que
sentido decadente; e é encontrada no homem e em muitas
outras criaturas vivas, assim como o dormir e o caminhar”. Em
uma passagem subsequente, ele nos diz que “a imaginação
que vem à tona no homem [...] por meio de palavras, ou outros
sinais voluntários, é o que geralmente denominamos
entendimento, e é comum ao homem e à besta”.
Berkeley, similarmente, divide todas as idéias entre aquelas
que pertencem aos sentidos e aquelas que pertencem à
imaginação, distinguindo as primeiras das últimas por sua
vivacidade; e ele também utiliza imprecisamente o termo
“entendimento” para se referir à potência cognitiva da mente
nos atos de sentir e imaginar.
Assim como Hume, que em sua Investigação sobre o
entendimento humano “divide todas as percepções da mente
em duas classes ou espécies, que são distinguidas por seus
diferentes graus de força ou vivacidade. As menos fortes e
vivazes são comumente denominadas pensamentos ou idéias”;
as mais vivazes Hume as denomina “impressões”, por meio
das quais ele quer se referir a “todas as nossas percepções
mais vividas, quando escutamos, vemos ou sentimos”.
Em todas essas asserções, dois erros se combinam: um é o
erro de considerar nossas percepções e imagens,
indevidamente denominados “idéias”, como se fossem os
objetos imediatos da nossa consciência; o outro é o erro de
reduzir a mente humana a uma faculdade puramente sensitiva,
apta a estar consciente apenas do que pode ser percebido por
meio dos sentidos ou, como resultado das nossas percepções
sensíveis, do que pode ser imaginado.
Omiti as referências ao Ensaio sobre o entendimento
humano de Locke porque, na medida em que os mesmos dois
erros são cometidos neste livro, ele também contém passagens
em que o autor dá notícias de certas atividades da mente
humana que são antes intelectivas do que sensitivas. Uma
mente que se caracterizasse por ser puramente sensitiva não
poderia realizar tais atividades. Apesar disso, Locke não
reconhece explicitamente que a mente humana consista em
dois conjuntos distintos de potências cognitivas — aquelas
pertencentes aos sentidos, por um lado, e aquelas
pertencentes ao intelecto, por outro.
Nem todas as nossas “idéias”, declara Locke, são derivadas
dos sentidos. Algumas são derivadas da reflexão da mente
acerca de suas próprias operações. Ela está consciente de suas
próprias atividades — do seu perceber, do seu lembrar, do seu
imaginar, e assim por diante.
De acordo com a visão oposta acerca da mente humana,
segundo a qual esta é constituída tanto pelo intelecto quanto
pelos sentidos, apenas a potência intelectiva é reflexiva, não a
sensitiva. O intelecto tem uma autoconsciência que os sentidos
não têm. E este fato que confere significado especial à
distinção introduzida por Locke entre idéias sensitivas e idéias
reflexivas, uma distinção que não será encontrada nem em
Hobbes, nem em Berkeley, nem em Hume.
A segunda qualificação introduzida por Locke deve ser
encontrada em passagens em que ele lida com o que ele
chama “idéias gerais ou abstratas”. Apenas o homem tem tais
idéias; “os brutos não abstraem”, ele sustenta.
Uma vez mais, é a visão oposta que confere significado
especial a este ponto no pensamento de Locke; pois, de acordo
com essa visão, a abstração é uma atividade do intelecto, não
dos sentidos. A mente humana só tem idéias abstratas (ou
seja, conceitos) porque se constitui não apenas dos sentidos,
mas igualmente de um intelecto.
Neste segundo ponto, os outros três autores — Hobbes,
Berkeley e Hume — são mais enfaticamente negativos. Eles
são mais consistentes que Locke em reconhecer que, na
medida em que a mente humana é uma faculdade
inteiramente sensitiva, não pode ter quaisquer idéias
abstratas.
Berkeley e Hume, que seguiram a Locke e leram seu Ensaio,
o atacam explicitamente por sua inconsistência nesse ponto.
Ele deveria ter percebido que nada de genérico ou abstrato
pode ser encontrado em todo o espectro das percepções
sensíveis e imaginações.
A crítica que eles dirigem a Locke é bem fundamentada num
certo sentido. Desde que Locke não reconhece a presença de
um intelecto humano como algo bem distinto de todas as
outras potências humanas sensitivas, sua tentativa de explicar
idéias gerais e abstratas vacila e fracassa. Ele afirma a
existência delas, mas não consegue explicá-las. Ele as trata
como se fossem fotografias compostas, nas quais os detalhes
que as particularizam são turvados pela superposição de
imagens sobre imagens. Isso, como veremos, está muito
distante do caráter abstrato de um conceito intelectual,
produzido por um ato de entendimento, que é radicalmente
diferente de qualquer ato sensitivo ou imaginativo.
Chegamos agora ao cerne da questão entre essas visões
opostas da mente humana — uma que nega o intelecto, outra
que o afirma. Elas constituem respostas opostas a uma
questão: Temos ou não temos idéias abstratas (ou seja,
conceitos), bem como percepções sensoriais e imagens?
Hobbes, Berkeley e Hume dizem, categoricamente, que nós
não as temos. Locke tergiversa. Ele deveria ter dito que nós
não as temos, mas por uma razão muito boa, que surgirá
atualmente, ele não poderia tê-lo feito.
Dos três, o Bispo Berkeley leva ao máximo o seu esforço
para expor o que ele considera ser o absoluto nonsense de
supor que qualquer idéia possa ser geral ou abstrata. Uma
grande parte da introdução ao seu Princípios do conhecimento
humano é ocupada com uma refutação dessa doutrina e com
uma crítica a Locke por tê-la abraçado.
Por questão de brevidade, podemos tomar o resumo que
Hume faz do argumento, ao qual ele anexa uma nota de
rodapé expressando a sua dívida para com Berkeley
Que qualquer homem tente conceber um triângulo em
geral, que não seja isóscele nem escaleno, nem tenha qualquer
tamanho ou proporção particular de lados; e ele logo perceberá
o absurdo de todas as noções escolásticas em relação à
abstração e às idéias gerais.
Digamo-lo em poucas palavras: se tudo o que temos são
percepções sensíveis e imagens derivadas dos sentidos, então
não podemos nunca estar conscientes de nada a não ser de um
triângulo em particular — um triângulo que seja ou isóscele ou
escaleno ou equilátero, um triângulo que tenha um certo
tamanho ou área, um triângulo cujas linhas sejam ou pretas ou
de alguma outra cor, e assim por diante.
O que se diz aqui a respeito de triângulos pode ser dito no
mesmo sentido em relação a tudo o mais. Nunca estamos
conscientes de nada senão de individualidades em particular,
seja perceptiva ou imaginativamente, isto é, desta ou daquela
vaca, desta ou daquela árvore, desta ou daquela cadeira, cada
uma com suas próprias características individuantes, o que as
torna um exemplo particular de um certo tipo de coisa.
Podemos ter um nome para esse tipo específico, como
fazemos quando usamos palavras tais como “triângulo”,
“vaca”, “árvore” e “cadeira”, mas não temos idéia alguma dos
próprios tipos enquanto tais. Não temos nenhuma idéia ou
compreensão da triangularidade enquanto tal, ou de como
alguma individualidade deve ser para poder ser considerada
um triângulo, uma vaca, uma árvore ou uma cadeira em
particular. Apenas as nossas palavras (como estas acima, as
quais chamamos “substantivos comuns”) são genéricas. Nada
na realidade é genérico; tudo é particular. Assim, também,
nada na mente é genérico; tudo é particular. A generalidade
existe apenas nas palavras da nossa linguagem, nas palavras
que são nomes comuns, não nomes próprios.
Aqueles que consideram a mente humana como composta
tanto de potências intelectivas quanto sensitivas não têm
qualquer dificuldade em encarar frontalmente o desafio
proposto por Hume. Por meio de um conceito abstrato,
compreendemos o que é comum a todas as vacas, árvores e
cadeiras em particular que possamos perceber ou imaginar.
 
4
 
Que sérias consequências decorrem da concepção errônea
da mente segundo a qual o intelecto é negado e, com ele,
também o são os conceitos ou as idéias abstratas?
A consequência é uma doutrina inerentemente
insustentável chamada nominalismo, a qual é tão repugnante à
razão e ao senso comum quanto os -ismos (subjetivismo,
solipsismo e o completo ceticismo) que, no capítulo
precedente, assinalamos como sendo consequências do
engano em relação aos objetos de consciência. Uma
consequência mais remota é aquela que afeta a nossa
compreensão acerca do lugar do homem na natureza.
Antes de chegar a esse ponto, tentarei explicar por que o
nominalismo é inerentemente insustentável. Mostrar ser este o
caso equivale a mostrar que a concepção da mente que
inevitavelmente conduz ao nominalismo é também
inerentemente insustentável.
O respeito de Locke pela razão e pelo senso comum o
preveniu de se tornar um nominalista, embora a sua falha em
reconhecer a presença no homem de uma potência intelectual
distinta o tenha impedido de dar uma resposta adequada ao
problema das idéias genéricas e abstratas.
Na concepção de Locke, os nomes que usamos derivam sua
significação das idéias a que se referem em nossas mentes.
Uma vez que nossa linguagem inclui nomes que têm
significado geral, tais como “triângulo”, “vaca”, “árvore”, e
assim por diante, devemos ter idéias gerais. De outro modo
esses nomes não poderiam ter qualquer significado, pois não
haveria nada a que se referirem.
Corrigindo a concepção errônea que Locke tem das idéias
como sendo os objetos dos quais estamos diretamente
conscientes, podemos recolocar o seu argumento nos
seguintes termos: a menos que, por meio dos nossos conceitos
abstratos, possamos compreender a triangularidade enquanto
tal ou aquilo que é comum a vacas, árvores e cadeiras em
particular, os nomes genéricos ou comuns que usamos não
podem ter nenhum significado, pois não se referem a este
triângulo em particular ou a esta vaca em particular, mas a
triângulos em geral e a vacas em geral.
Como os nominalistas, que negam que qualquer coisa de
genérico exista, seja na realidade seja na mente humana,
lidam com esse argumento e explicam o significado dos nomes
genéricos, os quais, diga-se, eles também utilizam?
Eles dizem que um substantivo comum, como “cachorro”, é
um nome genérico, ou um nome que é genérico em sua
referência, porque o aplicamos indiferentemente a qualquer
ente num universo de entes particulares, isto é, sem
discriminar entre este e aquele ente em particular de alguma
maneira que faria a palavra “cachorro” não ser aplicável a
ambos.
O significado geral da palavra “cachorro” é tal, sustentam
eles, que eu posso usá-la hoje, ao ver um poodle descer a
pista, e amanhã, ao ver um airedale descer a pista, em ambas
as ocasiões podendo dizer igualmente “eu vejo um cachorro
descer a pista”. Se, em ambas as ocasiões, uma outra pessoa
presente ouvir minha afirmação e não estiver olhando na
mesma direção que eu, ela compreenderá que me refiro a um
cachorro em particular, mas não saberá sem olhar se me refiro
ao mesmo cachorro de ontem ou a um cachorro diferente.
Ambas as hipóteses são possíveis.
A explicação oferecida, ora em exame, se reduz à assertiva
de que um nome abstrato ou genérico é aquele que pode ser
aplicado a duas ou mais individualidades que são a mesma em
certo sentido, ou que têm alguma característica ou
características em comum. Afirmá-lo é, decerto, equivalente a
reconhecer que dois ou mais objetos percebidos, a que um
nome comum pode ser aplicado, são entes particulares, sendo
cada um dos quais um ente particular único ou singular, mas
também cada um dos quais um ente particular de um certo
tipo, ao qual o nome comum ou genérico se aplica.
Se todos esses entes particulares não tivessem algo em
comum, ou não fossem o mesmo em alguma medida, então o
mesmo e único nome comum ou genérico não poderia ser
corretamente aplicado a todos eles indiferentemente, como
insistem aqueles que aderem a essa concepção.
Se, neste ponto, eles negassem que dois ou mais entes
podem ser o mesmo em algum aspecto, ou que tivessem
qualquer coisa de comum, então a única explicação que
poderiam nos oferecer estaria invalidada na base, deixando-
nos enfim sem nenhuma explicação. Suponhamos, então, que
eles não chegassem ao extremo de negar que dois entes
pudessem ter qualquer coisa de comum ou ser o mesmo em
algum aspecto. Estamos, então, obrigados a indagar-lhes se
somos capazes de apreender o que é comum a dois ou mais
entes ou de apreender os aspectos em que eles são o mesmo.
Se a resposta que derem a essa questão for negativa,
novamente eles invalidaram na base a própria explicação
acerca do significado dos nomes comuns na condição de serem
aplicáveis a dois ou mais itens indiferentemente (isto é, com
respeito a algum ponto em que não sejam diferentes). Se não
podemos apreender qualquer aspecto em que dois ou mais
itens sejam o mesmo, não podemos aplicar-lhes o mesmo e
único nome indiferentemente.
A única alternativa que lhes foi deixada aberta é uma
resposta afirmativa à seguinte questão: somos capazes de
apreender aquilo que é comum a dois ou mais entes, ou de
apreender aspectos nos quais eles são o mesmo?
Se eles responderem afirmativamente, porque devem ou dar
essa resposta afirmativa ou admitir que não têm nenhuma
explicação a oferecer, tal resposta equivalerá, então; a uma
refutação do seu posicionamento original.
Afirmar que aquilo que é comum a dois ou mais entes, ou
que aquilo que é o mesmo em relação a eles, pode ser
apreendido, é estatuir um objeto de apreensão que é bem
distinto do objeto apreendido quando da nossa percepção
deste ou daquele ente particular enquanto tal. Mas essa é
precisamente a posição que os oponentes do nominalismo
consideram como a solução correta para o problema; a saber,
que há outros objetos de apreensão que os entes particulares
percebidos. Mas é precisamente isso que é inicialmente negado
por aqueles que negam o intelecto e, como ele, todos os
conceitos abstratos ou idéias gerais.
 
5
 
Para rejeitar o nominalismo como uma doutrina que se auto-
invalida não é preciso chegar ao extremo oposto — aquele a
que Platão chegou.
Atribuindo ao homem um intelecto independente dos
sentidos, Platão também conferiu realidade independente aos
objetos inteligíveis — os arquétipos universais. Em sua visão,
são esses arquétipos eternos e universais — do triângulo, da
vaca e de tudo o mais — que verdadeiramente têm ser, e mais
realidade que os sempre mutáveis entes particulares do mundo
sensível.
Não é necessário chegar a esse extremo para corrigir a
errônea concepção da mente humana que considera esta como
uma faculdade totalmente sensitiva e que, negando o
intelecto, fica compelida a adotar um insustentável
nominalismo. Dizer que os objetos do pensamento conceitual
são sempre universais não é dizer que esses universais existem
como tal na realidade, independentes da mente humana que
os apreende.
Basta dizer que os universais inteligíveis do pensamento
conceitual são públicos do mesmo modo que os sensíveis
particulares da percepção, memória e imaginação também o
são. Assim como duas ou mais pessoas podem conversar uma
com a outra sobre um objeto perceptual ou evento lembrado
que é apreendido comumente por elas, assim também duas ou
mais pessoas podem conversar sobre a liberdade ou a justiça
como objetos comuns do pensamento, ou sobre a
triangularidade ou a circularidade, ou sobre as diferenças entre
a árvore e o arbusto como tipos distintos de vegetação.
Elas o podem fazer sem qualquer referência aos particulares
sensíveis que podem fornecer exemplos concretos dos
universais sobre os quais estão debatendo. Pode ser útil a elas
referir-se a tais particulares, quando se dispõe deles, para
deixar claro que elas têm o mesmo objeto de pensamento ante
suas mentes; mas há outras maneiras de identificar um objeto
de pensamento no sentido de alcançar tal clareza.
Uma questão ainda permanece. Estabelecido que os
universais que apreendemos como objetos inteligíveis podem
ser objetos de consideração e discussão para duas ou mais
mentes, o que pensar acerca da realidade desses universais?
No caso dos objetos perceptuais, essa questão, como já
observamos, não se coloca. O que é percebido é uma coisa
individual realmente existente. Se a coisa realmente não
existe, não pode ser percebida; do contrário, estaríamos tendo
então falsas percepções, estaríamos alucinando ou sonhando.
No caso dos objetos da memória ou imaginação, podemos
perguntar se o objeto lembrado alguma vez existiu no passado
ou se, talvez, ainda existe; podemos perguntar se o objeto
imaginado pode vir a existir no futuro. Há várias maneiras de
averiguar as respostas a tais questões.
Enquanto os objetos universais do pensamento nunca
realmente existem como tal, isto é, existem na realidade
independentes da nossa mente, algum grau de realidade é
exigido por eles.
Talvez possamos apontar para exemplos particulares deles
que realmente existam. Podemos nos lembrar de exemplos
particulares deles que uma vez existiram na realidade.
Podemos inclusive imaginar exemplos particulares deles que
venham a ter existência real no futuro.
Sempre que um universal inteligível é exemplificado, ou
seja, sempre que conseguimos apontar para um exemplo
particular percebido, lembrado ou imaginado de um objeto
conceituai, transcendemos o objeto de pensamento e
alcançamos existências reais ou possíveis.
Mas não precisamos fazer isso. Podemos contentarmos em
lidar com o objeto de pensamento enquanto tal, e não ir além
disso. Desconsiderando todos os exemplos particulares atuais
ou possíveis do objeto universal sobre o qual estamos
pensando, podemos nos concentrar sobre este por seu próprio
valor e natureza.
Há ainda um outro modo pelo qual os objetos universais do
pensamento conceituai adquirem certo grau de realidade. Para
que certo número de indivíduos sejam exemplos particulares
de certo universal, eles devem realmente ter algo em comum.
Um exemplo talvez nos ajude a esclarecer este ponto e o que
isso quer dizer.
Tomemos o objeto universal ao qual o substantivo comum
“cisne” se refere. Esta palavra denomina um tipo que tem
exemplares na realidade; ela designa uma classe de coisas
perceptíveis que possui membros realmente existentes. Dizer
que cada um desses exemplares é um cisne particular é
também dizer que cada um deles participa no que quer que
seja comum a todos os cisnes.
Se não houvesse nada de comum a todos os cisnes — nada
que fosse o mesmo em todos eles —, os exemplos em questão
não poderiam ser apreendidos como cisnes particulares.
Apreender algo como um exemplo particular de um certo tipo
envolve uma apreensão do próprio tipo. Isso, por sua vez,
depende da apreensão do que é comum ou o mesmo nos
diversos exemplos concretos que estão sendo considerados.
Logo, no caso do tipo nomeado pelo vocábulo “cisne”,
quando exemplos particulares realmente existem, é também
verdadeiro que o elemento comum que os une na condição de
cisnes particulares é algo que realmente existe neles. Negar tal
realidade a um universal que tem exemplos particulares é
serrar o próprio galho em que se está sentado, como fazem os
nominalistas, que negam que possamos apreender universais e
atribuem generalidade apenas às palavras, sem serem capazes
de explicar como palavras podem ter significado geral se não
somos capazes de apreender quaisquer objetos universais.
Uma outra complicação deve ser observada. Nem todos os
universais, que são os objetos inteligíveis do pensamento
conceituai, podem ser instanciados pela percepção, memória
ou imaginação de particulares. A instanciação —
exemplificação por meio de particulares — é possível apenas
para aqueles conceitos que o intelecto forma por meio da
abstração a partir da experiência sensível.
Nem todos os conceitos que o intelecto é capaz de formar
são abstrações da experiência sensível, como o são, por
exemplo, nossos conceitos de “vaca”, “árvore” ou “cadeira”.
Alguns são construções intelectuais feitas a partir do material
conceituai oriundo dos conceitos abstraídos da experiência
sensível.
Nesse sentido, o intelecto funciona de modo análogo à
imaginação. Algumas das nossas imagens são memórias das
percepções sensíveis, mas algumas são constructos da
imaginação — imagens construídas a partir do material
fornecido pela experiência sensível; por exemplo, a imagem
construída de uma sereia ou de um centauro.
Chamamos a essas ficções de imaginação. Assim, também,
constructos conceituais podem ser chamados de ficções do
intelecto, com esta única e muito importante diferença.
Reconhecemos ao mesmo tempo que as ficções de nossa
imaginação são objetos que não têm existência atual na
realidade. Mas muitos dos constructos conceituais que
empregamos no pensamento filosófico e científico dizem
respeito a objetos tais como buracos negros e quarks na física,
e Deus, espíritos e almas na metafísica. Estes são objetos cuja
existência na realidade é de fundamental importância indagar.
Desde que estes constructos conceituais não tenham
exemplos perceptivos, tentar responder a essa questão é algo
que se deve dar de modo necessariamente indireto e
inferencial. A existência real de exemplares concretos de tais
objetos pode ser postulada apenas com base no fato de que, se
não existissem, os fenômenos observados não poderiam ser
adequadamente explicados.
 
6
 
A descendência do homem, de Charles Darwin, livro
publicado em 1871, mais de uma década depois de A origem
das espécies, rejeitou a visão tradicional do estatuto ontológico
da espécie humana, uma visão que foi reinante no pensamento
ocidental desde a Antiguidade até o século XVII e, em algumas
partes, até depois disso.
De acordo com a visão tradicional, o homem, como animal
racional, difere radicalmente em tipo de todos os outros
animais em virtude do fato de que o homem — e apenas o
homem — tem, além dos sentidos, que compartilha com os
outros animais, um intelecto. Darwin compilou evidências que
tentavam mostrar o oposto; a saber, que o homem diferia
apenas em grau dos outros animais.
Hobbes e Hume anteciparam Darwin em séculos, embora
pouco se tenha notícia deste fato. A consequência mais séria
da errônea visão que estes pensadores tinham da mente
humana como constituída por sentidos e imaginação e
destituída de intelecto é a conclusão de que os homens diferem
dos outros animais apenas em grau, não em tipo.
Eles não hesitaram em chegar a essa conclusão. Pois se as
várias potências que nos proporcionam experiências sensíveis
e nos permitem aprender com elas são comuns ao homem e às
outras espécies animais, então as únicas diferenças entre um e
outros só poderão ser diferenças de grau.
Desde a época de Darwin, a experimentação com animais
em laboratórios de psicologia apresentou muitas evidências
adicionais que foram consideradas como corroborantes dessa
conclusão. Interpretaram-se essas evidências como se
mostrassem que os outros animais tivessem tanto conceitos
quanto perceptos, mesmo que não tenham intelectos no
sentido tradicional deste termo. Junto com esta atribuição de
inteligência conceituai aos outros animais veio a atribuição de
performances linguísticas a eles, as quais se supõem diferir
apenas em grau do uso humano da linguagem.
Se essas interpretações e atribuições estivessem corretas,
muito do que foi dito nas páginas precedentes teria de ser
retirado. Mas elas não estão corretas. Reservando minhas
críticas às reivindicações falaciosas sobre as performances
linguísticas dos outros animais para o próximo capítulo,
concentrar-me-ei aqui sobre a falsa interpretação da evidência
que supostamente mostra que outros animais têm conceitos
que lhes permitem lidar tanto com generalidades quanto com
particularidades.
Para colocar a questão brevemente, a evidência
experimental mostra que outros animais, sob condições
laboratoriais, podem aprender a discriminar entre diferentes
tipos de objetos percebidos. Eles aprendem a reagir de um
determinado modo em relação a quadrados e de outro em
relação a círculos, por exemplo; ou a comer o que é colocado
sobre uma superfície verde e a evitar o que é colocado sobre
uma superfície vermelha. Tais discriminações indicam que eles
são capazes de generalizar, e esta é considerada a base para
lhes atribuir tanto conceitos quanto perceptos.
O erro aqui consiste em pensar que ser capaz de discriminar
entre diferentes tipos de objetos é equivalente a ser capaz de
entender tipos distintos e suas diferenças. Considerar a
habilidade de um animal para discriminar entre similaridades
percebidas e dissimilaridades como evidência de pensamento
conceituai por parte dele implica em um equívoco uso do termo
“conceito”.
Em sentido estrito, conceitos são disposições adquiridas
para (a) reconhecer objetos percebidos como um ser deste ou
daquele tipo; (b) entender, ao mesmo tempo, como este ou
aquele tipo de objeto é; e (c) perceber, por conseguinte, certo
número de particulares como sendo o mesmo em tipo e
discriminar entre eles e outros sensíveis particulares que são
diferentes em tipo.
Ademais, conceitos são disposições adquiridas para
entender o que certos tipos de objetos são (a) quando, embora
perceptíveis, não são atualmente percebidos, e (b) também
quando não são de modo algum perceptíveis, como é o caso de
todos os constructos conceituais que empregamos na física, na
matemática e na metafísica.
Não há qualquer evidência empírica de que conceitos, assim
precisamente definidos, estejam presentes no comportamento
animal. A inteligência destes é inteiramente sensorial. Suas
operações são limitadas ao mundo dos objetos perceptivos e
imaginativos. O que transcende a percepção e a imaginação
ultrapassa totalmente as potências da mente ou inteligência
animal. Apenas animais com intelecto, apenas membros da
espécie humana, possuem potências conceituais que lhes
permita lidar com o não percebido, o imperceptível, e o
inimaginável.
É necessário corrigir a errônea visão da mente humana
primeiramente propalada por Hobbes, Berkeley e Hume, de
modo a defender a proposição segundo a qual o homem difere
radicalmente em tipo dos outros animais.
A diferença é antes de tipo que de grau, porque apenas a
mente humana inclui potências tanto intelectuais quanto
sensitivas. A diferença em tipo é radical porque as potências
intelectuais do homem não estão atreladas às operações do
cérebro e do sistema nervoso do mesmo modo que as
potências sensitivas estão.
A explicação completa do que acabou de ser dito é muito
complexa para ser exposta aqui. Eu abordei este assunto em
pelo menos dois livros anteriores, A diferença do homem e a
diferença que isso faz, publicado em 1967, e Os anjos e nós,
publicado em 1982. Entretanto, um ponto crucial pode ser
brevemente colocado aqui.
A relação das potências sensitivas com o cérebro e o
sistema nervoso é tal que o grau em que uma espécie animal
possui essas potências depende do tamanho e complexidade
de seu cérebro e sistema nervoso. Não é este o caso em
relação às potências intelectivas. Que a mente humana tenha
tais potências não depende do tamanho ou complexidade do
cérebro humano. A operação do cérebro é apenas uma
condição necessária, mas não suficiente, para o funcionamento
da mente humana e para as operações do pensamento
conceituai. Não pensamos com nossos cérebros, embora não
consigamos pensar sem eles.
CAPÍTULO III
As palavras e os significados
 
1
Todos nós já tivemos a experiência de ver as páginas de um
jornal estrangeiro ou de ouvir uma conversa sendo conduzida
em uma língua estrangeira. Percebemos que as marcas
impressas na página e os sons falados são palavras dotadas de
significado para aqueles que conseguem ler e falar o idioma
estrangeiro — mas não para nós. Para nós, são marcas e sons
desprovidos de significado, e marcas e sons desprovidos de
significado não são mais do que o balbucio de um bebê antes
que este aprenda a produzir sons que nomeiem coisas para as
quais ele aponta.
Quando um bebê aprende a falar e posteriormente a ler, ou
quando aprendemos um idioma estrangeiro, marcas e sons
(utilizemos o termo “notações” para nos referir a ambos)
inicialmente desprovidos de significado tornam-se
significativos. Uma notação significativa é uma palavra.
Notações podem ser desprovidas de significado, mas não há
palavras que o sejam.
Outro fato com o qual estamos todos familiarizados é que a
maioria das palavras tem múltiplos significados. A mesma
palavra pode ter uma ampla gama de significados. Ademais, no
curso do tempo, uma palavra pode perder um determinado
significado e ganhar outro — um novo significado.
Um dicionário é o livro de referência que usamos quando
queremos averiguar os vários significados de uma determinada
palavra. Os grandes dicionários frequentemente nos contam a
história daquela palavra — os significados que já teve, mas já
não tem, e os novos significados recém-adquiridos.
Tudo isso é familiar a todos nós. Mas nós raramente
paramos para perguntar como aquilo que inicialmente era uma
notação desprovida de significado adquiriu o significado que a
transformou numa palavra significativa ou inteligível — uma
unidade no vocabulário de uma determinada língua, algo a ser
encontrado no dicionário daquela língua. De onde vieram o
significado ou os significados adquiridos pela notação não-
significativa para transformá-la numa palavra?
Procurar a palavra no dicionário não responde a essa
questão. O que se encontra ao olhar o significado de uma
palavra no dicionário é um conjunto de outras palavras que
pretende estabelecer o seu significado ou significados. Se
nesse conjunto de palavras houver um ou dois significados
desconhecidos, pode-se, é claro, conferi-los em seguida no
mesmo dicionário, em seus respectivos verbetes. O que se
encontrará de novo é um outro conjunto de palavras que
pretende estabelecer os significados daquelas, e então ou se
entenderão os significados de todas essas novas palavras
encontradas ou se terá uma vez mais de repetir todo o
processo de procurar os significados destas últimas palavras no
mesmo dicionário. Se fossem conhecidos os significados de
todas essas palavras no dicionário, jamais seria preciso, é
claro, recorrer a ele. Mas, mesmo que o fosse, o dicionário não
poderia ajudar a descobrir como qualquer uma dessas palavras
nele contidas adquiriu significado pela primeira vez.
Deixe-me garantir que isso tenha ficado bem entendido.
Consideremos alguém que busque um dicionário para aprender
o significado de uma notação que, à primeira vista, lhe pareceu
uma “palavra” estranha ou simplesmente uma notação, não
sendo, portanto, ainda propriamente uma palavra para ela.
Este procedimento, embora adequado para algumas notações,
não o pode ser para todas. Se a única abordagem ou meio de
uma pessoa aprender um idioma estrangeiro fosse consultando
um dicionário desta língua — e precisamente um que se
utilizasse apenas desta língua —, ela não conseguiria aprender
o significado de nenhuma das suas palavras. Apenas sob a
condição de que ela já soubesse ou pudesse de algum modo
aprender os significados de certo número de palavras sem
precisar recorrer ao dicionário, poderia este tornar-se útil como
meio de aprendizado dos significados de outras palavras
naquele idioma.
Para que uma criança chegue ao ponto em que consiga
mover-se eficazmente dentro da circularidade de palavras de
um dicionário, é preciso que algumas notações não- -
significativas tenham se tornado palavras significativas para
ela — e isso sem a ajuda de um dicionário. O dicionário,
portanto, não pode ser a resposta para a questão de como
marcas ou sons não-significativos tornam-se palavras
significativas.
Isto não é desmerecer a utilidade dos dicionários.
Aprendemos frequentemente o significado de uma palavra que
nos é nova e estranha por meio de outras cujos significados já
conhecemos. Então, por exemplo, quando uma criança que
está crescendo ouve a palavra “jardim-de-infância” pela
primeira vez, e pergunta o que ela significa, pode ser que fique
bem satisfeita com a seguinte resposta: “É um lugar onde
crianças vão para brincar umas com as outras e para
aprender”.
Se as palavras na resposta forem inteligíveis para a criança,
ela será capaz de acrescentar uma nova palavra ao seu
vocabulário. Uma notação que era desprovida de significado
para ela se tornou uma palavra por meio de uma descrição
verbal do objeto significado. A resposta à questão da criança é
como uma definição dicionarizada — uma descrição verbal do
objeto significado pela palavra em questão. Tais descrições
podem ser reforçadas por aquilo que é chamado “definição
ostensiva” — apontar para o objeto ou palavra.
Isso, no entanto, não é suficiente como solução para o
problema de como notações não-significativas tornam- -se
palavras significativas para nós. Pode funcionar para algumas
palavras, mas não para todas. Aprendemos os significados de
algumas palavras em nossos vocabulários aprendendo as
descrições verbais dos objetos que elas significam. Mas se
tentássemos aplicar essa solução a todas as palavras,
andaríamos em círculo infinitamente até não mais
conseguirmos encontrar uma solução para o problema.
De que outra maneira, sem ser por descrições verbais,
podem as notações não-significativas adquirir significado e se
tornar palavras? A resposta é pela familiaridade direta com o
objeto que a notação não-significativa é usada para significar.
O mais simples exemplo disso pode ser encontrado no nosso
aprendizado dos significados dos nomes próprios. Lembremos
ou não do que nos foi ensinado na escola sobre a diferença
entre nomes próprios e comuns — ou substantivos próprios e
comuns —, todos nós sabemos a diferença entre “George
Washington” e “homem” como nomes ou substantivos. O
primeiro nomeia uma única e singular pessoa — este e apenas
este. O segundo nomeia um tipo distinto de organismo vivo,
um tipo que inclui apenas certos organismos vivos e exclui
outros. Palavras que nomeiam objetos únicos, singulares, são
nomes ou substantivos próprios; palavras que nomeiam tipos
ou classes de objetos são nomes ou substantivos comuns.
Escolhi “George Washington” como exemplo de nome
próprio justamente para deixar claro que podemos aprender o
significado de alguns nomes próprios apenas por meio de
descrições verbais. Nenhum de nós jamais foi ou será
apresentado a George Washington. Podemos não ter nenhuma
familiaridade direta com ele. Sabemos o que o seu nome
próprio significa quando nos é contado que significa o primeiro
presidente dos Estados Unidos.
A situação é bem diferente com outros nomes próprios — os
nomes de todas as pessoas em nossas próprias famílias ou
pessoas a que fomos apresentadas no curso de nossa
experiência. A apresentação verbal pode ser tão breve quanto:
“Deixe-me apresentá-lo a John Smithers”. Mas esta
apresentação acompanha a sua familiaridade direta com o
objeto nomeado. E assim que “John Smithers” torna-se para
você o nome próprio da pessoa que lhe foi apresentada.
Por ora, tudo bem. Mas como notações não-significativas se
tornam nomes comuns, em contraste com os nomes próprios,
antes por familiaridade direta que por meio de descrições
verbais? Praticamente do mesmo jeito. E dito ao bebê que o
animal em seu parquinho é um cão ou cãozinho. Pode ser que
isso seja repetido algumas vezes. Logo o bebê, apontando para
o animal, profere “cão” ou “cãozinho” ou algo que soe
parecido. Um nome comum significativo foi adicionado ao
vocabulário do bebê.
Isso terá de ser confirmado por uma outra etapa do
aprendizado. Pode ser que o bebê, em outra ocasião, encontre-
se na presença de um outro animalzinho, desta vez um gato, e
o chame de cãozinho. O erro de designação deve ser corrigido.
Nem todos os animaizinhos são cães. Quando a palavra “gato”
é adicionada ao vocabulário do bebê como um nome comum
que significa um objeto bem distinto de um cão — ambos
objetos com os quais o bebê travou contato e se familiarizou
diretamente —, as duas palavras não apenas têm significado
para o bebê, mas significados diferentes.
E agora, resolvemos o problema? Não exatamente. Pois no
curso do crescimento da criança, com sua educação na escola
e posteriormente na faculdade, e com todo o aprendizado que
ela adquire através de uma ampla variedade de experiências, o
seu vocabulário de nomes comuns será enormemente
expandido. Para designar aqueles mesmos dois objetos que, no
berçário, chamou de gato e cão, ela estará apta a usar outros
nomes comuns como “felino” e “canino”, “persa” e “poodle”,
“mamífero”, “quadrúpede”, “vertebrado”, “animal doméstico”,
“animal de estimação”, “organismo vivo”, e assim por diante.
Se disséssemos que todos esses nomes comuns adquiriram
seu significado através de nosso contato direto com os objetos
nomeados, deveríamos estar bastante confusos com a questão
de como exatamente o mesmo objeto com os quais lidamos
diretamente pode resultar nessa extraordinária variedade de
nomes. Se uma notação não-significativa adquire significado e
se torna uma palavra para nós quando é atribuída a um objeto
com o qual lidamos diretamente, como é possível que
exatamente o mesmo objeto com o qual lidamos diretamente
dê significados bem distintos a todos os nomes comuns que
utilizamos para nos referir a ele?
O problema complica-se ainda mais pelo fato de que nem
todos os nomes comuns que usamos se referem a objetos que
percebemos por meio dos sentidos, tal como cães e gatos.
Nem todos significam objetos perceptuais com os quais
podemos travar contato diretamente.
O que dizer de nomes ou substantivos comuns tais como
“liberdade”, “igualdade”, “justiça”, ou “elétron”, “nêutron”,
“positron”, ou “inflação”, “crédito”, “incentivo fiscal”, ou
“mente”, “espírito”, “pensamento”? Nenhum destes é um
objeto perceptual com o qual possamos lidar diretamente.
Como, em tais casos, se tornaram palavras úteis para nós
aquelas que devem ter sido primeiramente notações não
significativas?
Seria a resposta aquela que diz que, nesses casos, todos os
significados foram adquiridos por meio de descrições verbais?
Ora, já vimos que essa resposta é insatisfatória, pois nos lança
num problema de circularidade infinita.
Seria a resposta aquela que, de novo, afirma que nesses
casos travamos contato diretamente com os objetos
nomeados, mas por outros meios que não a percepção, a
memória e a imaginação que, em última análise, repousam no
uso dos sentidos? Se for assim, qual a natureza deste contato
direto e qual o caráter dos objetos nomeados, com os quais
lidamos diretamente por outros meios que a operação dos
nossos sentidos em ordem à percepção, imaginação e
memória?
Somos confrontados agora com um problema que os
filósofos modernos falharam em resolver por causa de uma
série de erros filosóficos que cometeram. Dois dos três erros
que irei comentar e tentar corrigir neste capítulo são
consequências dos erros discutidos nos dois capítulos
precedentes: um é o erro de tratar nossas idéias — nossas
percepções, memórias, imaginações, concepções e
pensamentos — como objetos dos quais estamos diretamente
conscientes; outro é o erro de reduzir todas as nossas
potências cognitivas àquelas dos cinco sentidos externos e
falhar em distinguir entre os sentidos e o intelecto como meios
bem distintos, embora interdependentes, de apreender
objetos.
Mas antes que eu me volte para uma consideração da falha
moderna em resolver o problema de como notações não-
significativas se tornam palavras através da aquisição de
significado, devo chamar a atenção para um outro ponto que
talvez seja familiar a todos nós ao considerar palavras e
significados.
Uma palavra significativa, uma notação dotada de
significado, é um signo. Um signo funciona apresentando à
atenção da mente um outro objeto diferente dele mesmo.
Assim, quando eu digo a palavra “cão”, você não apenas ouve
a palavra em si, mas ouvi-la serve para trazer à sua mente o
objeto assim nomeado.
Nem todos os signos funcionam desse jeito, especialmente
signos que não são palavras. Dizemos que nuvens significam
chuva; que fumaça significa fogo; que o soar da sineta significa
que a refeição está pronta. Tais signos, diferente das palavras,
são sinais, ao passo que as palavras são usualmente usadas
não como sinais, mas como designadores — signos que se
referem aos objetos que elas nomeiam.
Palavras podem, é claro, funcionar tanto como sinais quanto
como signos. “Fogo”, gritado em um teatro lotado, não apenas
designa o objeto assim nomeado, mas também significa um
iminente perigo que clama por ação. Assim, também, a palavra
“jantar”, gritada dos degraus de uma escada de uma casa de
fazenda para os trabalhadores no campo, funciona exatamente
do mesmo modo que o soar da sineta que anuncia que a
refeição está pronta.
Com uma leve exceção que não nos deve preocupar aqui,
todos os signos são ou sinais ou designadores ou ambos, em
ocasiões diferentes e quando usados com intenções diferentes.
O que é comum a todos os signos, que são ou sinais ou
designadores ou ambos, e que viemos considerando até agora,
é que eles mesmos são objetos dos quais estamos
perceptivamente conscientes, bem como instrumentos cuja
função é trazer à mente os objetos que significam.
Denominemos, então, tais sinais e designadores “signos
instrumentais”. O ser inteiro deles não consiste em apenas
significar. Eles têm existência perceptível em si mesmos além
de significar, mas são também instrumentos que funcionam
neste último sentido.
A distinção entre signos que são apenas e sempre sinais e
signos que são designadores sejam estes ou não também
sinais, terá um efeito direto, como veremos, sobre a diferença
entre o uso humano dos signos e o uso que outros animais
fazem deles. Uma outra diferença dirá respeito ao único modo
pelo qual os animais adquirem signos que são designadores e
aos dois modos pelos quais isso acontece no caso dos seres
humanos.
Retornaremos a esse assunto em uma seção posterior deste
capítulo, mas primeiro, e mais importante, é a consideração do
problema que colocamos sobre palavras no vocabulário
humano que funcionam como signos designadores. Como
iremos descobrir, a solução desse problema envolverá a
descoberta de um outro tipo de signo designativo, um cuja
totalidade do ser consiste em significar outra coisa.
Como outros signos, os signos desse tipo especial
apresentam à mente objetos diferentes deles mesmos. Mas
diferente de outros signos, eles mesmos são entidades das
quais não temos qualquer consciência. Eles são então
radicalmente distintos do tipo de signos que denominamos
“signos instrumentais”. Chamemo-los “signos puros” ou
“formais”.
O erro filosófico sobre o qual ora nos debruçamos consiste
na negligência dos signos puros ou formais na tentativa de
explicar como notações não significativas adquirem seu
significado designativo e se tornam palavras nos vocabulários
das línguas humanas ordinárias.
 
2
 
Em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1689),
dividido em quatro livros, John Locke devota a totalidade do
terceiro livro às palavras e seus significados. Tendo
inicialmente, nas próprias páginas de abertura do Ensaio,
cometido o erro de considerar as idéias como objetos que
apreendemos diretamente, ou dos quais estamos
imediatamente conscientes, ele não poderia evitar um erro
crucial em seu esforço de explicar como palavras adquirem
seus significados.
Ele estava correto em pensar que notações sem sentido
(não-significativas) se tornam palavras significativas por meio
de nossa imposição voluntária delas sobre objetos que
apreendemos. Isto, como vimos, vale para algumas palavras,
mas não para todas — apenas para aquelas cujo significado
para nós depende do nosso contato e familiaridade com o
objeto nomeado, não para aquelas cujo significado depende de
descrições verbais do tipo que encontramos nos dicionários.
Locke foi negligente em observar essa distinção entre
significados adquiridos por contato direto e significados
adquiridos por meio de descrições verbais. Mesmo assim, ele
estava correto em pensar que nossa imposição voluntária de
uma notação não-significativa sobre um objeto apreendido é o
meio pelo qual ao menos algumas palavras devem adquirir
seus significados.
Seu erro consistiu em pensar que idéias são objetos aos
quais todas as palavras significativas se referem diretamente e
a nada mais. Dizer isso é dizer que, quando um indivíduo usa
palavras referencialmente, ele está sempre e apenas se
referindo a suas próprias idéias e a nada mais. “E perverter o
uso das palavras”, escreve Locke, “e traz inevitável
obscuridade e confusão à sua significação, sempre que as
fazemos representar algo diferente daquelas idéias que temos
em nossas próprias mentes”.
Locke negou explicitamente que pessoas possam usar
palavras para se referir às idéias nas mentes das outras. E
ainda mais firmemente negou que pessoas possam usar
palavras para significar as coisas que existem na realidade,
suas qualidades ou outros atributos, ou os eventos que
ocorrem no mundo em que elas vivem. Nós não temos e não
podemos ter nenhuma consciência direta de tais coisas. Os
únicos objetos que nós apreendemos diretamente são nossas
próprias idéias.
Mas mesmo sendo explícito e firme quanto a esses dois
pontos, Locke percebeu que esse relato de como as palavras
ganham sentido e têm significado referencial derrota
completamente aquele propósito que torna a linguagem tão
importante para a vida humana — a comunicação. As idéias
que cada pessoa tem em sua própria mente existem em um
domínio que é completamente privado. Como podem duas
pessoas conversar sobre suas idéias, se as palavras que cada
uma delas usa se referem apenas às idéias próprias e
exclusivas de cada uma? Ainda mais acachapante é o fato de
que duas pessoas não possam conversar sobre as coisas ou
eventos realmente existentes ou que ocorrem no mundo em
que elas vivem.
Tendo dito que “palavras não podem ser signos
voluntariamente impostos sobre coisas desconhecidas”, e
tendo, ao longo de seu Ensaio, sustentado que nós
apreendemos diretamente apenas nossas próprias idéias, não
coisas existentes na realidade (as quais, de acordo com Locke,
agem sobre nossos sentidos e permitem que tenhamos idéias),
como pode ele explicar que conversemos uns com os outros
sobre o mundo real que é constituído por “coisas
desconhecidas”, isto é, coisas que não se podem apreender
diretamente?
A simples verdade desta questão é que Locke não pode
explicar satisfatoriamente o uso da linguagem para o propósito
da comunicação sobre o mundo real em que todos nós
vivemos. O esforço que ele empreende para fazê-lo o envolve
numa contradição tão autodestrutiva quanto o embaraço do
qual não pode escapar ao postular a existência de coisas físicas
que, agindo sobre os nossos sentidos, são as causas originais
das idéias que surgem em nossas mentes; pois, de acordo com
seus próprios princípios, ele não tem nenhum meio de
apreender tais realidades físicas e nenhuma base para a crença
na existência delas.
Os esforços de Locke para explicar o que para ele deveria
ser inexplicável envolve um segundo passo em sua narrativa
de como as palavras adquirem significado. Nossas idéias,
sendo representações das coisas que existem na realidade,
elas próprias significam as coisas que elas representam.
Nossas idéias, em outras palavras, são signos que se referem a
coisas, coisas que nós mesmos não podemos apreender
diretamente. Em sendo assim (embora não haja maneira de
explicar como isso é assim), o segundo passo de Locke lhe
permite dizer que as palavras, significando diretamente nossas
próprias idéias, indiretamente se referem às coisas reais que
nossas idéias significam. Logo, podemos usar palavras para
conversas uns com os outros não sobre nossas próprias idéias,
mas sobre o mundo real em que vivemos.
 
3
 
Se, como se argumentou no primeiro capítulo, as idéias nas
nossas mentes não são aquilo que apreendemos diretamente,
mas aquilo pelo que apreendemos o que quer que
apreendamos, todas as contradições e embaraços em que
Locke se enreda podem ser evitados. Os objetos aos quais
damos nomes e aos quais nos referimos quando usamos as
palavras que os significam são os objetos que diretamente
apreendemos por nossas idéias, não as idéias pelos quais os
apreendemos. Isto, como podemos presentemente ver, é
verdadeiro tanto para os objetos inteligíveis do pensamento
conceituai quanto para os objetos sensíveis da percepção,
memória e imaginação.
Anteriormente neste capítulo, chamei a atenção para a
distinção entre signos instrumentais e signos formais. Signos
instrumentais — tais como nuvens significando chuva ou a
palavra “nuvem” designando certas formações visíveis no céu
— são eles mesmos objetos que apreendemos tanto quanto o
são os objetos a que esses signos se referem. Mas um signo
formal nunca é um objeto que apreendemos. Toda sua
existência ou ser consiste na função que ele desempenha como
signo, ao referir-se a algo que apreendemos, algo que ele serve
para trazer às nossas mentes. Ele é, por assim dizer, discreto
ao desempenhar essa função.
A verdade básica aqui, aquela que corrige o erro de Locke e
nos fornece uma explicação satisfatória ao problema do
significado das palavras, é que as idéias em nossas mentes são
signos formais. Um outro jeito de dizer isso é que as nossas
idéias, enquanto signos dos objetos que elas nos permitem
apreender, são significados.
Deixe-me repetir este ponto: nossas idéias não têm
significado, elas não adquirem significado, elas mudam,
ganham ou “perdem” significado. Cada uma das nossas idéias
é um significado e isso é tudo que elas são. A mente é o reino
no qual os significados existem e através do qual tudo o mais
quanto tenha significado adquire significado, muda de
significado ou perde significado.1
Os significados referenciais que algumas de nossas palavras
adquirem quando notações não-significativas nelas se
convertem derivam do fato de serem tais notações
voluntariamente impostas sobre os objetos com os quais
travamos contato direto. Estes objetos são os objetos
significados, referidos, intencionados, trazidos ante nossas
mentes pelas idéias que são seus signos formais.
Locke nos obrigaria a apreender diretamente esses signos
formais (que são completamente inapreensíveis) e, por meio
deles, indiretamente apreender as coisas da realidade (cuja
representação é inexplicável). Assim, sustentou ele
erroneamente que nossas palavras significam diretamente
nossas idéias como seus objetos, e, por meio de nossas idéias,
indiretamente significam as coisas da realidade que elas
representam.
A correção deste erro filosófico consiste em ver que nossas
idéias são os signos formais que não conseguimos jamais
apreender. Eles nos permitem apreender todos os objetos que
apreendemos. Aquelas palavras que não adquirem significado
por meio de descrições verbais dos objetos nomeados o
adquirem por meio de nosso contato direto com os objetos que
nossas idéias nos permitem apreender. Estes são também os
objetos a que nossas idéias, funcionando como signos formais,
se referem.
Além disso, porque as palavras que usamos têm significado
referencial como signos instrumentais através da associação
com as idéias que funcionam como signos formais,
conseguimos usar palavras não apenas para nos referir aos
objetos que diretamente apreendemos por meio de nossas
idéias, mas também para fazer emergir nas mentes de outras
pessoas aquelas idéias associadas, de modo a que elas tenham
os mesmos objetos ante suas mentes. É nesse sentido que nos
comunicamos uns com os outros sobre objetos que são
públicos, no sentido de que são objetos apreendidos por duas
ou mais pessoas, e assim são comuns a elas.
É de tão grande importância que compreendamos tais
coisas que elas merecem uma exposição mais detalhada —
primeiramente, com respeito aos objetos sensíveis que
apreendemos pela percepção, memória e imaginação; depois,
com respeito aos objetos inteligíveis do pensamento
conceituai. Tal exposição será encontrada nas duas próximas
seções.
 
4
 
Os objetos apreendidos pela percepção diferem de maneira
radical dos objetos apreendidos por nossa memória e nossa
imaginação.
Os objetos da nossa imaginação podem ou não existir na
realidade; podem ser objetos que não existem agora, mas
podem vir a existir em algum tempo futuro; ou podem mesmo
ser objetos puramente ficcionais que não existem, nunca
existiram nem nunca existirão na realidade.
Os objetos da nossa memória — eventos passados que
alegamos lembrar — podem não ter existido tal como deles nos
lembramos. Nossas memórias podem ser mudadas por outros
que alegam lembrar-se do evento de maneira diferente, ou
mesmo por quem nega que aquilo que alegamos lembrar não
aconteceu realmente.
Em outras palavras, os objetos tanto da nossa imaginação
quanto da nossa memória são objetos sobre os quais um
questionamento relativo às suas existências reais pode sempre
ser colocado. Não é assim no caso da percepção.
Quando você ou eu dizemos que percebemos a mesa ante a
qual estamos ambos sentados, estamos também afirmando
que aquela mesa existe na realidade. Se estamos percebendo
algo, não tendo uma alucinação (que é exatamente o oposto
de perceber), então o objeto que estamos percebendo é
também algo que realmente existe.
Não deveríamos nunca perguntar se um objeto percebido
realmente existe. A única questão possível é se estamos de
fato percebendo ou padecendo de alguma alucinação, tal como
os alcoólatras quando alegam ver elefantes cor-de-rosa que
não estão realmente presentes.
A não ser por apreensão perceptual, apreender um objeto
não envolve o juízo sobre se o objeto realmente existe tal como
apreendido, se existirá no futuro ou se existiu no passado.
Apreensão e juízo são dois atos distintos e separados da
mente, um anterior, o outro posterior. Em si mesmas,
apreensões não são nem verdadeiras nem falsas: elas não
afirmam nada. Apenas juízos fazem asserções — afirmações ou
negações — que são verdadeiras ou falsas.
O que a percepção tem de especial é que, nela, enquanto
apreensão e juízo são distintos, são também inseparáveis.
Alegar que percebemos algo é afirmar que o objeto percebido
também existe realmente. Se este juízo for falso, então o que
alegamos ser uma percepção é na verdade uma alucinação.
Com estes apontamentos em mente, podemos agora colocar
a seguinte questão: é possível que o exato mesmo objeto de
discurso seja um objeto perceptual para uma pessoa, um
objeto lembrado para outra, e ainda um objeto imaginado para
uma terceira? Desde que uma das três pessoas esteja se
referindo a um objeto perceptual (neste caso, assumamos que
ela está percebendo, não tendo uma alucinação), o objeto
sobre o qual as três estão conversando deverá ser também
algo que realmente existe.
O caso de uma conversação entre duas pessoas sobre um
objeto de que uma delas está se lembrando e a outra
imaginando não levanta ·nenhuma nova consideração. As
mesmas precauções devem ser tomadas; os mesmos princípios
se aplicam.
Dediquemos um momento a mais ao uso que fazemos de
palavras para significar objetos imaginários que não são nunca
objetos de percepção ou de memória. Frequentemente
conversamos uns com os outros sobre tais objetos. Estamos
aqui preocupados com objetos que ninguém pode perceber ou
lembrar porque são entidades2 que nunca existiram na
realidade, não existem agora nem nunca virão a existir.
Chamemo-los “objetos puramente imaginários” ou, como às
vezes são chamados, “ficções da imaginação”.
De todas as artes criativas, apenas a literatura, porque a
linguagem é o seu meio, produz objetos imaginários ou ficções
da imaginação sobre os quais podemos nos comunicar
descritivamente. O poeta, novelista ou dramaturgo descreve
um personagem ficcional que é o produto de sua imaginação
(Capitão Ahab, por exemplo, em Moby Dick, ou, nesse mesmo
sentido, a própria Baleia Branca); ou descreve algumas
entidades ou lugares imaginários (a majestosa cúpula do
prazer de Kublai Khan em Xanadu) que sua imaginação
produziu. Dependendo de suas capacidades imaginativas, e da
assiduidade dos seus esforços, os leitores da obra deste autor
estarão aptos a produzir por si próprios os mesmos objetos
imaginários, ou ao menos alcançá-los de maneira aproximada,
suficiente para os propósitos da conversação.
Tais diálogos se dão de muitas formas e com uma miríade
de exemplos sempre que os seres humanos conversam uns
com os outros sobre os livros que leram. O fato de que o
Capitão Ahab ou a própria Baleia Branca não existam
realmente, e de que nunca venham a existir, não impede que
as pessoas conversem sobre esses objetos como objetos de
referência comum, exatamente como conversam sobre o atual
presidente dos Estados Unidos, ou sobre Abraham Lincoln, ou
sobre o cavalo branco que George Washington cavalgou, ou
sobre a fronteira de Delaware em Valley Forge. Se
pensássemos que é impossível para as pessoas conversarem
sobre os objetos imaginários inicialmente produzidas pelos
poetas e ficcionistas, estaríamos forçados a concluir
contraditoriamente que um professor de literatura e seus
alunos não poderiam nunca se engajar em uma discussão
sobre uma mesma obra que todos leram. Basta pensar nas
incontáveis horas que foram devotadas por estudantes,
professores, críticos literários e outros à discussão das ações e
do próprio personagem Hamlet, de Shakespeare, para
descartar como absurda mesmo a mais débil sugestão de que
os objetos imaginários não possam ser objetos comuns de
discurso.
A menção ao Hamlet de Shakespeare nos levanta uma
última questão sobre os objetos no reino da imaginação.
Alguns deles, como os personagens fictícios da mitologia
(por exemplo Cérbero ou Caronte), têm nomes próprios que
não aparecem nas páginas da História; mas alguns, como
Hamlet e Júlio César, aparecem nas peças de Shakespeare e
também em escritos que não são normalmente considerados
ficcionais.
O nome próprio “Hamlet” pode ser usado para se referir não
apenas ao personagem criado por Shakespeare, mas também
àquele que pode ser considerado o seu protótipo na Historiae
Danicae de Saxo Grammaticus, um historiador dinamarquês do
século xii; ademais, se o relato de Saxo Grammaticus for
confiável, “Hamlet” foi o nome próprio de um singular príncipe
da Dinamarca, que viveu em uma certa época e estava
envolvido com regicídio, usurpação, incesto e outras coisas do
tipo.
Assim, também, “Júlio César”, como nome próprio, se refere
a, pelo menos, três objetos singulares diferentes: (1) o
personagem principal de uma peça de Shakespeare; (2) uma
figura histórica descrita em uma das Vidas de Plutarco; e (3) o
general romano que viveu em certa época, conquistou a Gália,
escreveu uma história das suas batalhas naquela província,
cruzou o Rubicão, e assim por diante.
Se desejamos conversar sobre o personagem e as ações de
Júlio César tal como retratado na peça homônima de
Shakespeare, temos de identificar o objeto imaginário do nosso
discurso por meio de uma descrição definida sua, como “o
personagem que tem tal nome em uma peça de Shakespeare
intitulada Júlio César, primeiramente produzida em tal data,
etc.”. Seria confuso, decerto, se uma ou duas pessoas que
estivessem engajadas em um debate sobre Júlio César
usassem este nome próprio uma para se referir ao Júlio César
de Shakespeare e outra ao Júlio César de Plutarco. Elas
poderiam chegar ao ponto de fazer afirmações contraditórias
sobre o objeto aparentemente comum de seus discursos,
apenas para descobrir que elas não tinham um objeto comum,
mas estavam de fato conversando sobre objetos diferentes —
objetos parecidos sob certos aspectos, mas diferentes sob
outros.
O Júlio César de Shakespeare é um objeto imaginário de
discurso que ninguém questionará. O fato de que haja certas
semelhanças entre o Júlio César de Shakespeare e o de
Plutarco, e também entre este e o Júlio César romano, que foi
general, primeiramente cônsul, e ditador entre os anos 55-44
a.C., não muda o estatuto da invenção de Shakespeare. O seu
Júlio César é uma ficção da imaginação não menos que o
Cérbero e o Caronte da mitologia. Seríamos nós, por força
deste argumento, levados à mesma conclusão a respeito do
Júlio César de Plutarco e, ainda mais, sobre todos os
personagens históricos descritos pelos historiadores e
biógrafos?
 
5
 
Voltemo-nos agora dos objetos de percepção, memória e
imaginação, que são objetos que nomeamos quando usamos
palavras para nos referir a eles, para os objetos do pensamento
conceituai. Defrontamo-nos de imediato com o mesmo
problema que enfrentamos antes com respeito aos objetos da
memória e imaginação. Aqui como lá, a apreensão do objeto
não é apenas distinta, mas também separada de qualquer juízo
que possamos fazer acerca de se o objeto que estamos
apreendendo realmente existe.
Para ser mais preciso o juízo não deveria versar sobre se o
objeto apreendido do pensamento conceitual realmente existe,
mas se um ou mais exemplos particulares perceptíveis — ou,
de outro modo, detectáveis — deste objeto existem na
realidade. A razão para isso é que as palavras que nomeiam os
objetos apreendidos do pensamento conceituai são sempre
nomes ou substantivos comuns. Estes são nomes que
significam um tipo ou classe de objetos, não um objeto único
singular que é significado por um nome próprio.
A única maneira de indagar sobre a realidade existencial de
um tipo ou classe é indagar se esta é uma classe vazia (uma
classe que não contém nenhum exemplar concreto existente)
ou cheia (uma classe que tem um ou mais exemplares
concretos realmente existentes). Em outras palavras, tipos ou
classes, ou o que às vezes é chamado universais, não existem
realmente como tal. Todos os constituintes da realidade são
indivíduos particulares. Se os universais, ou tipos de classes,
têm algum grau de realidade, este reside em alguma
propriedade ou atributo comum a certo número de particulares
que são todos exemplares do mesmo tipo ou membros da
mesma classe.
O que acabou de ser dito explica, a propósito, como o objeto
perceptivo que uma criança em desenvolvimento nomeia
chamando-o “cãozinho” pode posteriormente ser nomeado
pelo adulto educado por meio de palavras tais como “canino”,
“mamífero”, “quadrúpede”, “vertebrado”, “organismo vivo”.
Estes outros nomes significam exatamente o mesmo objeto
perceptivo, mas agora conceitualmente entendido de maneiras
variadas. Como Tomás de Aquino apontou, “podemos nomear
um objeto apenas na medida em que o compreendemos e de
acordo com o modo com que o compreendemos”. Desde que o
mesmo objeto perceptual possa ser conceitualmente entendido
de diversas maneiras (isto é, possa ser compreendido como um
exemplo particular de uma variedade de diferentes tipos de
classes), toda uma série de nomes comuns pode ser usada
para se referir a ele.
Quanto a muitos dos objetos apreendidos do pensamento
conceituai a que nos referimos por nomes comuns, raramente
paramos para nos colocar a questão judicativa acerca da sua
real existência: os exemplos concretos perceptíveis ou
detectáveis de um determinado tipo ou classe nomeada
realmente existem?
Não nos ocorreria perguntá-lo em relação a cisnes brancos,
mas certamente nos ocorreria se pensássemos em cisnes
negros. Não o faríamos em relação a cães ou gatos, ou árvores
e vacas, mas decerto o faríamos em relação a buracos negros,
quarks, mésons e outros objetos da física teorética
contemporânea, e também em relação a anjos, espíritos e
outros objetos totalmente imperceptíveis, e ainda em relação
aos objetos sobre os quais conseguimos pensar por meio dos
conceitos que formamos.
O relato anterior sobre a maneira como usamos palavras
para nomear e nos referir aos objetos do pensamento
conceituai coloca-nos uma vez mais face a face com outro sério
erro filosófico, amplamente prevalente no pensamento
moderno, embora não tenha origem exclusivamente moderna.
Trata-se do erro conhecido como nominalismo, que consiste
na negação do que é chamado às vezes de “idéias abstratas”,
às vezes de “conceitos gerais”, mas que, embora nomeadas,
são idéias que nos permitem entender tipos ou classes sem
qualquer referência a exemplos particulares concretos que
possam ou não existir.
É por meio dessas idéias que os nomes comuns no nosso
vocabulário significam e se referem aos tipos ou classes que
nos permitem apreender como objetos do pensamento. A
negação nominalista de que tenhamos tais idéias compele os
seus adeptos a oferecerem outra explicação para o problema
do sentido ou significado dos nomes comuns ou para o que é
às vezes chamado “termos gerais”. Já mostramos em outra
parte que todos os esforços envidados por eles para realizá-lo
são autodestrutivos.3
 
6
Outro erro relativo à linguagem que se segue como
conseqüência da falha em distinguir o intelecto humano dos
sentidos é, estritamente falando, não um erro filosófico, mas
um do qual psicólogos da vida animal e cientistas de
orientação behaviorista têm a maior parte da culpa, embora
muitos filósofos contemporâneos se associem à posição
tomada por estes estudiosos do comportamento animal.
No estudo que fazem sobre a evidência da comunicação
animal, eles raramente — para não dizer nunca — observam a
diferença entre signos que funcionam meramente como sinais
e os signos que funcionam como designadores — como nomes
que se referem a objetos. Quase todos os berros, sons, gestos,
que tanto animais selvagens quanto domésticos usam para
expressar suas emoções e desejos funcionam como sinais, não
como designadores. E apenas no laboratório e sob condições
experimentais, frequentemente com aparatos especiais muito
engenhosamente inventados, que tais mamíferos superiores e
chimpanzés, bem como golfinhos nariz-de-garrafa, parecem
estar se comunicando pelo uso de palavras como se elas
fossem nomes, e mesmo formulando sentenças com algum
vestígio de sintaxe pela justaposição de tais supostas palavras.
A aparência é então interpretada erroneamente pelos
cientistas como uma base para asseverar que as diferenças
entre a linguagem humana e a animal são apenas de grau, não
de tipo — uma diferença no número de palavras-nomes em
relação ao vocabulário de um animal e uma diferença na
complexidade dos enunciados que são tomados por sentenças.
Esta falsa interpretação surge da negligência ou ignorância,
da parte dos cientistas, acerca da diferença entre pensamento
perceptual e conceituai. Isto, por sua vez, decorre da falha
deles em reconhecer a diferença entre os sentidos e o intelecto
ou da sua negação de que tal diferença existe.
Que estas diferenças não devessem ser ignoradas nem
pudessem ser negadas, deveria ter sido admitido por quem
quer que olhasse para a evidência com um olhar puro,
desprovido de preconceitos — por qualquer um que não
partisse do princípio de que seres humanos e bestas diferem
apenas em grau. Enquanto há evidência de que chimpanzés,
submetidos a condições experimentais, utilizam signos
artificialmente inventados para designar ou nomear coisas, as
coisas que eles nomeiam são todas elas objetos da percepção
concreta. Não há nem um átomo de evidência que mostre a
habilidade dos chimpanzés de utilizar signos para designar o
que não é percebido por meio dos seus sentidos ou o que se
encontra para totalmente além do reino sensível e é
intrinsecamente imperceptível.
Reside aí a diferença entre a potência animal para o
pensamento perceptual e a potência humana para o
pensamento conceituai. Não há dúvidas de que a potência
animal para o pensamento perceptual permite aos animais
realizarem atos de abstração e generalização que guardam
certa similitude com a abstração e generalização humanas.
O comportamento animal manifesta diferentes reações aos
objetos que são diferentes em tipo. Mas os tipos de coisas que
os animais parecem diferenciar são todos do tipo que
encontram exemplos perceptuais concretos na experiência do
animal. Já os seres humanos são capazes de diferenciar tanto
tipos ou classes para os quais não há quaisquer exemplos
perceptuais concretos em sua experiência, quanto tipos ou
classes para os quais nem mesmo pode haver essa percepção.
Esta é a característica distintiva do pensamento conceituai e a
evidência irrefutável da presença do intelecto no homem e da
sua ausência nas bestas.
Se os psicólogos da vida animal tivessem observado um
pouco mais, talvez seus olhos tivessem sido abertos para a
diferença de tipo, não de grau, entre a linguagem humana e a
aquisição de signos que parecem funcionar como nomes
designativos por parte dos animais — o que envolve a
distinção, já feita, entre uma palavra que adquire seu
significado designativo por meio do contato perceptual direto
com o objeto nomeado e uma que o adquire por meio da
descrição verbal, como quando uma criança aprende o
significado da palavra “jardim-de-infância” ao lhe ser ensinado
que se trata de um lugar onde crianças se reúnem para brincar
e aprender.
Em nenhuma das pesquisas experimentais já feitas com
animais há algum exemplo de um signo utilizado por um
animal que tenha adquirido seu significado a partir do uso de
outros signos que parecessem expressar seu significado. Em
todos os casos de aquisição de vocabulário por parte do
animal, um novo signo adquirido só se torna significativo ao ser
associado a um objeto perceptual com o qual o animal tem
contato direto.
Se os estudiosos do comportamento animal se tivessem
aprofundado em suas observações e experimentos com
reconhecimento da diferença entre pensamento perceptual e
conceituai, e de que seres humanos têm tanto intelecto quanto
sentidos, ao passo que aos animais falta o primeiro, decerto
não estariam tão propensos a ignorar ou negar a diferença de
tipo entre o uso animal e o humano de signos como nomes ou
designadores.
7
 
Finalmente, chegamos a mais um erro filosófico que teve
consequências muito sérias para a filosofia contemporânea da
linguagem. Diferente de todos os erros observados nas seções
precedentes deste capítulo, não é um erro que decorre dos
erros discutidos nos capítulos um e dois.
Este erro foi introduzido no pensamento moderno por
Thomas Hobbes em seu Leviatã (1651), capítulo quatro, que se
ocupa do discurso. Nos séculos anteriores a Hobbes, o termo
“não-significativo” teve um significado puramente
descritivo. Significava que um determinado som ou marca
simplesmente carecia de sentido; que era como as sílabas glub
e trish [em inglês], desprovidas de sentido.
Hobbes introduziu um uso não lógico do termo “não- -
significativo”. Para ele, uma palavra como “anjo”, ou seu
equivalente frasal “substância incorpórea”, é uma expressão
desprovida de significado por causa de sua adesão ao
materialismo como doutrina metafísica, de acordo com o qual
apenas corpos ou coisas materiais existem na realidade. Uma
vez que, de acordo com esta doutrina, anjos ou substâncias
incorpóreas não existem, as palavras “anjo” ou “substância
incorpórea” devem ser desprovidas de significado. Elas nada
designam; não se referem a nada.
Hobbes fundamenta o erro que comete aqui sustentando
que uma expressão como “substância incorpórea” é uma
contradição em termos e não pode existir. Mesmo que alguém
pudesse provar com absoluta certeza a verdade de sua
premissa materialista, segundo a qual nada existe exceto os
corpos ou substâncias corpóreas, ainda assim não se seguiria
necessariamente disto que as substâncias incorpóreas, isto é,
os anjos, não pudessem possivelmente existir. A única
conclusão que se pode extrair daquela premissa é que os anjos
não existem, não que são impossíveis, como se a expressão
“substância incorpórea” fosse auto-contraditória no mesmo
sentido em que a expressão “quadrado redondo” o é.
Este, contudo, não é o principal ponto a ser considerado. O
ponto principal é que Hobbes reduziu a referência designativa
das palavras-nomes a uma única modalidade, que é a da
referência a algo realmente existente ou a uma classe de
coisas das quais há exemplos concretos particulares realmente
existentes.
Se apenas colocarmos a questão de se os anjos existem ou
não, e se certamente afirmarmos ou negarmos que sim, a
palavra “anjo” deve ter algum significado. Se fosse totalmente
desprovida de significado, como afirma Hobbes, não
poderíamos colocar essa questão, nem lhe afirmar ou negar
qualquer resposta, não mais do que poderíamos indagar [em
inglês] se glub existe ou negar a existência de trish..
As únicas notações verdadeiramente não-significativas são
sílabas desprovidas de sentido, como glub ou trish [em inglês],
ou uma contradição em termos, como “quadrado redondo”. Um
quadrado redondo é simplesmente inconcebível ou impensável.
Em assim sendo, não pode haver qualquer idéia sua, e nenhum
objeto de pensamento que possamos apreender. Logo, a
expressão nada designa, não se refere a nada.
“Se um homem viesse me falar de substâncias imateriais,
ou de sujeito livre, vontade livre”, escreve Hobbes, “eu não
diria que ele está em erro, mas que suas palavras são sem
significado; quer dizer, absurdas”. Ele prossegue dizendo que
afirmações sobre coisas que nunca foram, “e que não podem
incidir sobre os sentidos”, são absurdas, “tomadas a crédito,
sem qualquer significação”.
O ponto focal do erro de Hobbes é a eliminação de todas as
referências designativas que não são também existencialmente
denotativas (isto é, referências ao realmente existente). Como
observamos anteriormente, exceto em relação aos nomes
próprios e aos nomes comuns de objetos realmente percebidos
— não para alucinações —, todos os outros nomes comuns têm
também referências designativas que não são existencialmente
denotativas. Em relação a quase todos os objetos da memória
e da imaginação que podemos nomear, e certamente também
em relação a todos os objetos do pensamento conceituai que
podemos nomear, devemos colocar a questão sobre se o que
está sendo nomeado tem efetivamente existência real.
Se tais objetos, sobre os quais esta deve ser colocada, não
puderem ser nomeados por signos que tenham significado
referencial, então as questões que deveriam ser colocadas
simplesmente não o poderão ser. A eliminação do significado
referencial que não seja também existencialmente denotativo
tornaria impossível colocar tais questões.
Os seguidores de Hobbes do século xx, mesmo aqueles que
sabem estar elaborando extensamente um ponto da obra
daquele, mencionado apenas de passagem e então descartado
como indigno de maiores comentários, tentam evitar a
impossibilidade que acabou de ser apontada distinguindo entre
o que eles chamam por um lado “sentido” e, por outro,
“referência”.
Para eles, o único significado referencial que substantivos
podem ter envolve denotação existencial — referência ao
realmente existente. Um número relativamente pequeno de
nomes próprios especiais, ou seus equivalentes em frases que
são descrições definidas, tal como em “o primeiro presidente
dos Estados Unidos”, tem tal significado referencial.
Todo o restante das palavras em nosso vocabulário tem
apenas sentido, mas não referência. Estes sentidos consistem
em suas conotações, que podem ser expressas por um
conjunto de outras palavras. Mas a rigor eles não se referem a
nada.
Como é possível que estes modernos filósofos da linguagem
tenham chegado a tal absurda conclusão? Qual a raiz ou
origem desta absurdidade? A única explicação, a meu ver, é
que ela reside na sua ignorância acerca da distinção entre
signos formais e signos instrumentais, e em sua consequente
falha em entender que palavras que se tornam nomes por meio
do contato direto com os objetos nomeados se referem a
quaisquer objetos significados por idéias que, em nossa mente,
funcionam como signos formais daqueles mesmos objetos.
Assim, todas as palavras que nomeiam os objetos de
pensamento, sobre cuja existência poderiamos nos perguntar,
têm significado referencial. Seu significado designativo consiste
em sua referência a tais objetos, independentemente de
qualquer instância deles poder ou não ser percebida, porque
realmente existem na realidade. Tais palavras têm mais que
sentido ou mero significado conotativo. Elas têm tanto
significado referencial quanto qualquer nome próprio ou
descrição definida corretamente utilizados.
Este erro reducionista, que consiste em reduzir o significado
referencial ao único modo de significação envolvendo uma
referência a algo realmente existente, se encontra no coração
da famosa teoria das descrições de Bertrand Russell. E o que
se encontra no coração deste erro é o engano de supor que
nomear é afirmar — o engano de supor que não podemos
nomear algo sem também afirmar que a coisa nomeada
realmente existe.
Nomear não é afirmar, não mais do que apreender um
objeto de pensamento é idêntico a emitir o juízo acerca da
existência do objeto na realidade. Apreender um objeto e emitir
o juízo acerca da existência real deste mesmo objeto são atos
inseparáveis somente no caso de percepções verdadeiras. Em
todos os outros casos, os atos de apreensão e julgamento não
são apenas distintos, mas inclusive bem separados. Um ato
pode ocorrer sem a ocorrência do outro. Do mesmo modo,
podemos usar palavras para nos referir a objetos apreendidos
sobre cujas existências suspendemos o juízo ou as colocamos
em questão.
Como resultado desses erros, originados em Hobbes, a
filosofia da linguagem no século XX abandonou o esforço por
explicar o significado referencial da maioria das palavras que
usamos em nosso vocabulário cotidiano — palavras todas estas
que não têm o único modo de significado referencial que
denota algo realmente existente (de acordo com o que quer
que a doutrina metafísica possa ter sustentado acerca dos
componentes da realidade).
Isto conduziu à tola injunção “não olhe para o significado;
olhe para o uso”, como se fosse possível descobrir o uso de
uma palavra sem primeiro averiguar seu significado tal como
usado, um significado que ela deve ter tido antes de ser usada,
de modo a que pudesse ser usada antes de certa maneira que
de outra. A linguagem não controla o pensamento, como os
filósofos da linguagem contemporâneos parecem crer. A
verdade é o exato oposto.
Outra possível explicação para o abandono de toda
tentativa de dar conta dos significados lexicais da maioria das
palavras que utilizamos em nosso vocabulário cotidiano por
parte dos filósofos da linguagem contemporâneos é a
consciência que estes têm das dificuldades que não puderam
ser evitadas quando da tentativa de Locke de fazê-lo.
Incapazes de evitar os erros cometidos por Locke e incapazes
de dar uma correta resolução ao problema por ignorarem os
insights e as distinções necessárias para tanto, eles
consideraram a coisa toda como um mau negócio.
CAPÍTULO IV
Conhecimento e opinião
 
1
 
Segundo Aristóteles, todo homem tem por natureza o desejo
de conhecer. Pode não ser verdade que, nascidas com essa
propensão inata, todas as pessoas de fato continuem a nutri-la.
Mas certamente há poucos que não consideram o
conhecimento como algo desejável, um bem a ser valorizado, e
um bem sem limites — que quanto mais se tem, melhor.
Entende-se geralmente que aqueles que têm conhecimento
de algo estão na posse da verdade sobre isso. As pessoas
podem equivocar-se às vezes quanto à alegação de estarem na
posse do conhecimento, mas se elas o estiverem, elas se
apegam à verdade. A expressão “conhecimento falso” é uma
contradição de termo; e “conhecimento verdadeiro” é
manifestamente redundante.
Entendido isto, a linha divisória entre o conhecimento e a
opinião também deveria estar clara. Não há nada auto-
contraditório na expressão “opinião verdadeira”, ou redundante
na expressão “opinião falsa”. Opiniões podem ser verdadeiras
ou falsas, o conhecimento não o pode. Quando as pessoas
alegam ter um conhecimento que se revela não ser
conhecimento algum por ser falso, o que elas tomaram por
conhecimento era apenas opinião.
Intimamente conectadas a esta distinção entre
conhecimento e opinião estão outras duas distinções. Uma é a
distinção entre as coisas sobre as quais podemos ter certeza —
para além de qualquer sombra de dúvida — e coisas sobre as
quais ainda paira alguma dúvida. Podemos estar persuadidos
delas para além de uma dúvida razoável, mas isso ainda não
as retira inteiramente do reino da dúvida. Algumas dúvidas
persistem.
A outra distinção é aquela entre o corrigível e mutável e o
incorrigível e imutável. Quando temos certeza de algo, nos
apegamos à verdade que é tanto incorrigível quanto imutável.
Quando alguma dúvida permanece, mesmo no mais ínfimo
grau, ela é tanto mutável quanto corrigível. Deveríamos
reconhecer que podemos mudar nossas mentes em relação a
ela e corrigir o que quer que esteja errado.
De acordo com tais critérios para distinguir entre
conhecimento e opinião, quanto conhecimento cada um de nós
tem? A maioria de nós admitiria que tem muito poucos
conhecimentos. A maioria de nós está consciente de que na
história da ciência mesmo as formulações mais reverenciadas
estiveram sujeitas à mudança e correção. E, ao mesmo tempo,
a maioria de nós relutaria em dizer que as grandes
generalizações ou conclusões da ciência, ora reinantes, não
são senão meras opiniões. A palavra “opinião”, especialmente
quando qualificada pela palavra “mera”, carrega uma tal
conotação derrogatória que sentimos, bem propriamente, que
chamar a ciência antes de opinião que de conhecimento é
inadmissível.
A única saída para essa dificuldade que eu conheço é aquela
proposta por mim em um livro anterior contendo uma série de
capítulos sobre a idéia de verdade.4 Eu a repito aqui em vista
de pavimentar o terreno para discutir dois erros filosóficos
modernos sobre o caráter e limites do conhecimento humano.
A solução, assim me parece, consiste em reconhecer o
sentido em que a palavra “conhecimento” quer dizer algo bem
distinto de qualquer coisa que possa ser chamada uma opinião,
e o sentido em que certo tipo de opinião pode também ser
chamado, bem propriamente, de conhecimento. Isso a
distinguiria de um outro tipo de opinião, bem distinta do
conhecimento, que poderia ser propriamente chamada mera
opinião.
Quando os critérios para chamar algo de conhecimento são
tão exatos quanto a certeza, a incorrigibilidade e a
imutabilidade da verdade que é conhecida, então as poucas
coisas que são conhecimentos ficam bem separadas de tudo
quanto possa ser chamado opinião.
Exemplos de conhecimento nesse sentido extremo do termo
são um pequeno número de verdades auto-evidentes. Uma
verdade auto-evidente é aquela que estatui algo cujo oposto é
impossível de ser pensado. Pode também ser chamada uma
verdade necessária porque o seu oposto é impossível.
Que um todo finito seja maior que qualquer de suas partes
componentes e que cada parte de um todo finito seja menor
que o todo são verdades auto-evidentes, necessárias. Não
podemos pensar-lhes o oposto. Os termos parte e todo são
indefiníveis. Não podemos dizer o que uma parte é sem
recorrer à noção de todo, nem o que um todo é sem recorrer à
noção de parte, e assim não podemos definir o que sejam parte
ou todo por si mesmos. Ainda assim, tanto compreendemos o
que parte e todo são em relação um ao outro, que não
podemos compreender uma parte como sendo maior que um
todo ou um todo como menor que uma parte.
Às vezes, as definições entram em nossa compreensão de
verdades auto-evidentes. Definimos um triângulo como uma
figura plana de três lados. Definimos uma diagonal como uma
linha desenhada entre ângulos não-adjacentes em um polígono
plano regular. Sabemos que, possuindo três lados, um triângulo
não tem nenhum ângulo não-adjacente. Logo, sabemos com
certeza que é necessariamente verdadeiro que não pode haver
diagonais em triângulos, como o pode em quadrados,
pentágonos e em outros polígonos como estes.
Quer eles saibam ou não, aqueles que dizem que temos
muito pouco conhecimento, e que têm tanta certeza disso,
talvez não percebam que o pouco conhecimento que temos
desse tipo consiste em um punhado de verdades auto-
evidentes ou necessárias, como as que acabamos de
mencionar.
Tudo o mais é opinião, então? Sim e não; sim, se insistirmos
sobre os critérios de certeza, incorrigibilidade e imutabilidade
da verdade conhecida; não, se relaxarmos tais critérios e
reconhecermos haver opiniões que podem ser afirmadas com
base em evidências e razões com força probante suficiente
para justificar nossa alegação no momento em que a opinião
afirmada é tida como verdadeira.
Enfatizo “no momento” porque, desde que desistimos dos
critérios de incorrigibilidade e imutabilidade, devemos estar
preparados para que a opinião que ora desposamos como
verdadeira com base em evidências e razões disponíveis neste
momento torne-se falsa no futuro, ou necessite de correção ou
alteração quando novas evidências e novas razões vierem à
tona.
Deveríamos estar preparados para dizer que tais opiniões
corrigíveis e mutáveis são conhecimento — conhecimento de
verdades dotadas de um futuro em que podem ser corrigidas,
alteradas ou mesmo rejeitadas. Contra as opiniões que
merecem os status de conhecimento neste sentido do termo,
permanecem aquelas que devem ser chamadas meras opiniões
por serem afirmadas sem nenhuma base na evidência ou na
razão.
Nossos preconceitos pessoais são tais meras opiniões. Nós
os afirmamos firme e às vezes teimosamente, embora não
consigamos apontar um único traço de evidência a seu favor
nem oferecer uma única razão para alegar-lhes a veracidade.
Isto também é verdadeiro em relação a algumas das crenças
que acolhemos e acalentamos.
Às vezes, usamos a palavra “crença” para significar que
temos algum grau de dúvida sobre a opinião que alegamos ser
verdadeira com base em evidências e razões. Neste caso, não
é incorreto dizer acerca de algo que o conhecemos (porque
temos bases suficientes para afirmá-lo como verdadeiro) e que
também cremos nisso (porque as bases que temos ainda nos
deixam com algum traço de dúvida em relação à sua
veracidade).
Entretanto, em outros tempos, utilizamos a palavra “crença”
para significar total falta de evidência ou razões para afirmar
uma opinião. Aquilo em que acreditamos ultrapassa todas as
evidências e razões disponíveis naquele momento. Então, não
deveríamos nunca dizer que sabemos, mas apenas que cremos
na mera opinião sustentada por nós.
A única circunstância em que é totalmente inapropriado
utilizar a palavra “crença” é no caso de estar em presença de
verdades necessárias ou auto-evidentes. Sabemos que o todo é
maior que qualquer de suas partes. Dizer que nós acreditamos
[que o todo é maior que a parte], é uma notória incompreensão
da verdade que está sendo afirmada. O mesmo se aplica a
muitas, mas não a todas, verdades matemáticas. Sabemos,
não cremos, que dois mais dois somam quatro.
Não apenas preconceitos pessoais, mas tudo quanto diz
respeito ao gosto pessoal — gostar disto ou desgostar daquilo
—, recai no terreno da mera opinião. Em tais matérias de gosto
ou preferência pessoal, podemos ter nossas próprias razões
para gostar disto ou desgostar daquilo, mas estas razões não
terão peso para outros cujos gostos e desgostos, ou
preferências, forem contrários aos nossos.
A extensão do vocábulo “conhecimento” para cobrir todas
as opiniões corrigíveis e mutáveis que possam ser afirmadas
com base em razões e evidências disponíveis num dado
momento abrange mais do que opiniões que possam ser
afirmadas para além de uma dúvida razoável ou mesmo para
além de qualquer sombra de dúvida. Ela inclui também
opiniões cujas evidências ou razões preponderam a seu favor
contra outras cujas evidências ou razões são mais fracas.
Em geral, pode-se dizer que conhecer não é como comer.
Quando comemos algo, colocamos essa coisa dentro de nossos
corpos, digerimo-la, assimilamo-la. Ela se torna parte de nós.
Não mais permanece o que era antes de ser comida. Mas com
impressionante diferença, o nosso ato de conhecer de maneira
alguma afeta ou altera aquilo que conhecemos. De algum
modo, podemos colocar a coisa conhecida dentro de nossas
mentes, mas fazê-lo a deixa exatamente como se encontrava
antes de a havermos conhecido. A única exceção ocorre no
caso da mecânica quântica, onde os instrumentos utilizados
para investigar os fenômenos que serão observados e medidos
afetam estes mesmos fenômenos quando os observamos e
medimos.
O que acabei de dizer sobre a diferença entre conhecer e
comer me obriga a chamar a atenção para um outro uso
especial, ou indevido, da palavra “conhecer”. Tal uso diz
respeito à distinção entre dois atos mentais para os quais
chamei atenção no capítulo anterior.
O primeiro ato mental é a simples apreensão. Algum objeto
é apreendido, seja um objeto perceptual, um objeto da
memória ou imaginação, ou um objeto do pensamento
conceituai. Estritamente falando, com uma única exceção, não
deveríamos usar o termo “conhecimento” para nos referir a tais
apreensões.
À exceção das apreensões perceptuais, que não podem ser
separadas dos juízos perceptuais, todas as outras apreensões
estão totalmente privadas de qualquer juízo sobre o objeto
apreendido — exista este objeto ou não, sejam suas
características idênticas ou não às características de como ele
se encontrava quando apreendido. Privada de tais juízos, uma
apreensão não é conhecimento, pois não há nada que se possa
dizer de verdadeiro ou falso a respeito dela. Verdade ou
falsidade entram em cena apenas com o ato judicativo, e só
então transcendemos a apreensão, para alcançar aquilo que,
estritamente falando, podemos chamar conhecimento.
Há um sentido em que conhecer é como comer. O
comestível, antes de ser comido, existe de maneira bem
independente daquele que o come e é o que é independente
de como será transformado ao ser comido. Assim, também, o
cognoscível existe de maneira bem independente daquele que
o conhece e é o que é seja ele conhecido ou não, e, no entanto,
é conhecido.
A palavra que a maioria de nós usa para designar o caráter
independente do cognoscível é “realidade”. Se não houvesse
realidade, nem nada cuja existência e caráter fosse
independente da mente cognoscente, não haveria nada
cognoscível. Realidade é aquilo que existe quer pensemos nela
quer não, e cujas características são tais e quais não
importando o que delas pensemos.
A realidade que é cognoscível pode ser ou não física. Ela
pode consistir ou não apenas de coisas perceptíveis aos nossos
sentidos. Mas como quer que a caracterizemos, sua existência
deve ser pública, não privada. Ela deve ser cognoscível para
duas ou mais pessoas. Nada quanto seja cognoscível a apenas
uma única pessoa pode ter o status de conhecimento. O que
quer que possa genuinamente ser conhecido por alguém deve
ser capaz de ser conhecido por outras pessoas.
Que isto fique assentado como pano de fundo para a
discussão a seguir. Utilizarei o termo “conhecimento” para
cobrir tanto aquelas verdades necessárias e auto-evidentes
que conhecemos com certeza quanto aquelas opiniões que
somos capazes de afirmar com base em razões e evidências
suficientes para sobrepujar qualquer opinião contrária.
Utilizarei esse termo para me referir a coisas sobre as quais
podemos dizer tanto que conhecemos quanto que cremos,
porque algum grau de dúvida ainda paira sobre elas. Utilizarei
sempre este termo para me referir a juízos que podem ser
verdadeiros ou falsos, mas nunca para apreensões que não são
nem verdadeiras nem falsas. E utilizarei a expressão “mera
opinião” para o que quer que não possa ser considerado
conhecimento em nenhum dos sentidos anteriores.
 
2
 
Os autores dos dois erros filosóficos de que ora nos
ocupamos são David Hume e Immanuel Kant. A influência que,
historicamente, Hume exerceu sobre Kant, admitida por este
como tendo sido a responsável por levar seu edifício filosófico a
evitar as conclusões alcançadas por Hume (as quais
considerava insustentáveis, até mesmo desastrosas), lança
alguma luz sobre a relação entre os dois erros.
Vistos por um lado, os dois erros representam extremos
opostos. Vistos por outro, representam faces opostas de um
mesmo erro. Em ambos os casos, o erro tem a ver com o papel
que a experiência sensível desempenha com respeito à origem
e limites do conhecimento. Os dois erros são opostos um ao
outro por assumirem posições opostas em relação à certeza,
imutabilidade e incorrigibilidade pertencentes ou não ao
conhecimento.
O erro de Hume tem suas raízes ou origem em erros
anteriores, já discutidos nos capítulos i e n, e especialmente
nos erros cometidos por John Locke com respeito aos sentidos e
ao intelecto, e às idéias enquanto objetos diretamente
apreendidos por nós.
Por outro lado, o erro de Kant teve sua origem no erro
cometido por Hume. Ele poderia ter evitado seu próprio erro
assinalando que as conclusões alcançadas por Hume, as quais
repugnou, baseavam-se em falsas premissas.
Tivesse ele rejeitado tais premissas, isto por si teria sido
suficiente para evitar as conclusões de Hume. Mas ele não o
fez. Em vez disso, ele inventou e erigiu uma sutil e intrincada
estrutura filosófica em um esforço por alcançar e sustentar
conclusões as mais opostas às de Hume, e do mesmo modo
incorretas.
 
3
 
Comecemos com Hume e então partamos para Kant. O
ponto de partida é com a conclusão alcançada por Hume bem
nas páginas finais de sua Investigação sobre o entendimento
humano.
É aqui que Hume propõe adotar o que ele chama “um
ceticismo mais mitigado”, em oposição à forma mais extrema
de ceticismo que nega a nossa possibilidade de obter qualquer
conhecimento — segundo a qual não há nada verdadeiro ou
falso. Assim, ele admite que possamos ter conhecimento de
dois tipos.
O primeiro é o tipo de conhecimento que se encontra nas
matemáticas. Ele se refere a esse tipo como “ciência abstrata”,
por não implicar nenhuma afirmação ou juízo sobre questões
de fato ou existência real, mas lidar apenas com a relação
entre nossas próprias idéias — nossas idéias de quantidade e
número. Aqui, é possível haver demonstração e certo grau de
certeza, mas ele acrescenta: “Todas as tentativas de estender
esta espécie mais perfeita de conhecimento para além destes
domínios são mero sofismo e ilusão”.
Nossas definições de certos termos nos dão algumas
proposições ou juízos que também têm certo grau de certeza.
Assim, se definirmos injustiça como uma violação da
propriedade, então podemos ter certeza de que onde não
houver propriedade, não poderá haver injustiça. Mas isto é só
uma questão de definição. Injustiça pode ser definida de outra
maneira, de modo que não é intrinsecamente impossível
pensar que possa haver injustiça mesmo onde não haja
propriedade.
Hume então nos diz que, aparte às matemáticas, “todas as
outras inquirições dos homens dizem respeito apenas a
questões de fato e existência; e estas são, evidentemente,
incapazes de demonstração”. O oposto de qualquer juízo
segundo o qual algo existe ou é isto ou aquilo é sempre
possível. Juízos sobre questões de fato e existência real podem
ser sustentados por evidências e razões. Quando o são,
constituem conhecimento, não mera opinião; mas sempre são
conhecimento ao qual falta certeza e que recaem na esfera do
duvidoso — a esfera do corrigível e do mutável.
Tal conhecimento depende de nossa experiência sensível. “É
apenas a experiência”, escreve Hume, “quem nos ensina a
natureza e os limites da causa e do efeito, e nos permite inferir
a existência de um objeto a partir de outro”. De acordo com
estes critérios, Hume admite à esfera do conhecimento
empírico (enquanto contrastado com a ciência abstrata) tais
coisas como a história, a geografia e a astronomia, e também
as ciências “que tratam de fatos gerais [...], política, filosofia
natural, física, química, etc.”.
Isto o conduz à sua estrondosa conclusão no último
parágrafo da Investigação:
Quando percorremos nossas bibliotecas, persuadidos destes
princípios, que estragos devemos fazer? Se tomarmos em
nossas mãos qualquer volume, de teologia ou metafísica
escolástica, por exemplo, indaguemos: este volume contém
algum raciocínio abstrato concernente à quantidade ou ao
número? Não. Contém algum raciocínio experimental
concernente a matérias de fato e existência? Não. Lance-os
então ao fogo: pois não podem conter nada senão sofismas e
ilusões.
A linha divisória entre o que merece ser honrado e
respeitado como genuíno conhecimento e o que deve ser
descartado como mera opinião (ou pior, como sofismas e
ilusões) é determinada por dois critérios. (1) Trata-se de
conhecimento e pode ser chamada ciência se lidar apenas com
abstrações e não envolver nenhum juízo sobre questões de
fato ou existência real. Aqui temos as matemáticas e, junto
com elas, a ciência da lógica. (2) Trata-se de conhecimento se
lidar com fatos particulares, como o fazem a história e a
geografia, ou com fatos gerais, como a física e a química.
Em ambos os casos, trata-se de conhecimento apenas na
medida em que se baseia em raciocínios experimentais,
envolvendo investigações empíricas do tipo das que ocorrem
em laboratórios e observatórios, ou investigações metódicas do
tipo das que são conduzidas por historiadores e geógrafos.
O que Hume excluiu do reino do conhecimento? Embora ele
se refira ao que denomina “filosofia natural”, que em seu
século era idêntica ao que viríamos chamar de ciência física,
sua intenção era rejeitar enquanto sofisma e ilusão, ou ao
menos enquanto mera opinião, o que na Antiguidade e na
Idade Média era a filosofia tradicional, que incluía tanto uma
filosofia da natureza — ou uma física que não era experimental
nem se baseava em investigações empíricas — quanto uma
metafísica e uma teologia filosófica.
Esta visão do conhecimento e da opinião nos chegou, nos
séculos XIX e XX, na forma de uma doutrina que foi chamada
ou positivismo ou cientificismo. O termo “positivismo” extrai
seu significado do fato de que as ciências experimentais ou
investigativas, e outros corpos de conhecimento, tais como a
história, que se baseiam em investigação e pesquisa, vieram a
ser chamadas ciências positivas.
O positivismo, então, é a visão segundo a qual o único
genuíno conhecimento da realidade ou do mundo dos
fenômenos observáveis (isto é, matérias de fato ou existência)
deve ser encontrado nas ciências positivas. Matemática e
lógica são também conhecimento genuíno, mas não são
conhecimento do mundo dos fenômenos observáveis, ou de
matérias de fato e existência real. A forma específica do
positivismo ou cientificismo no século xx veio então a ser
chamada “positivismo lógico”.
Aqui temos uma faceta do erro sobre conhecimento e
opinião, a outra faceta devendo ser encontrada na Crítica da
razão pura de Immanuel Kant. Esta última é de longe a mais
séria e aquela cujas conseqüências tiveram um alcance mais
extenso.
 
4
 
Kant nos diz que David Hume o fez despertar de seus
sonhos dogmáticos. Seu dogmatismo de base, assim como o
ceticismo de Hume, que Kant também considerou repugnante,
foram substituídos pela filosofia crítica que ele desenvolveu, a
qual, às vezes, também é chamada filosofia transcendental,
por causa de sua transcendência com relação à experiência.
Para compreender isso, é necessário, primeiro, prestar
atenção a duas distinções que são operativas no pensamento
de Kant. Uma é a distinção entre o a priorieoa posteriori; outra
é a distinção entre o analítico e o sintético.
O a priori, de acordo com Kant, inclui o que quer que esteja
na mente anteriormente a qualquer experiência sensível e
também quaisquer juízos que esta possa fazer que não se
baseiem na experiência sensível. O a posteriori é, obviamente,
o oposto do a priori em ambos os aspectos.
O analítico consiste de juízos cujas verdades dependem
inteiramente de definições. Então, se o chumbo é definido
como um metal não-condutor, então o juízo segundo o qual o
chumbo não conduz eletricidade é um juízo analiticamente
verdadeiro. Assim, também, se o homem for definido como
animal racional, o juízo segundo o qual o homem é dotado de
razão é analiticamente verdadeiro. Em cada um desses
exemplos, o termo que é predicado do sujeito em questão
(“não conduz eletricidade” e “é dotado de razão”) já está
contido na definição do próprio e respectivo sujeito (“chumbo”
e “homem”).
Claramente, tais juízos analíticos podem ser — a rigor,
devem ser — a priori. A verdade deles depende unicamente da
definição dos termos, não da experiência sensível. Hume teria
considerado tais juízos analíticos como verdades que lidam
com a relação entre nossas próprias idéias, não com questões
de fato e existência. John Locke, antes dele, as considerou
como meras tautologias verbais; em suas palavras, juízos que
são “insignificantes e não-instrutivos”. Locke, a meu ver, está
correto em dispensá-los como indignos de séria consideração.
Anteriormente neste capítulo, expliquei o caráter das
verdades auto-evidentes, verdades a que se podem atribuir os
atributos da certeza e da incorrigibilidade por nos ser
impossível pensar em seus opostos. Uma tal verdade como
“um todo finito é maior que qualquer de suas partes” não é
analítica no sentido de Kant: seus termos focais — “todo” e
“parte” — são indefiníveis. Nem o será a priori no sentido de
Kant: sua verdade depende de nossa compreensão dos termos
“todo” e “parte”, uma compreensão que é derivada de uma
única experiência, como rasgar uma folha de papel em
pedacinhos, assim dividindo um todo em suas respectivas
partes.
Desde Kant, muitos filósofos vêm concebendo erroneamente
aquilo que uma tradição filosófica mais antiga já havia
entendido como sendo verdades ou axiomas auto-evidentes.
Eles aceitaram erroneamente a redução kantiana de tais
verdades a meras tautologias verbais, a meras sentenças
insignificantes e não-instrutivas.
Mas este não é o pior dos erros kantianos. Muito pior é a sua
visão dos juízos sintéticos a priori. Um juízo sintético não é
insignificante ou não-instrutivo. Ele não depende de uma
definição arbitrária dos termos. É o tipo de juízo que Hume
considerou como uma verdade sobre questões de fato ou
existência real. Em todos os casos, o oposto do que é afirmado
é possível — pensável, concebível. Mas para Hume, o próprio
fato de que um juízo seja sintético implica a dependência deste
em relação à experiência de um ou de outro tipo. Ele não pode,
portanto, ser um a priori — um juízo independente da
experiência sensível.
Sustentar que haja juízos sintéticos a priori, como o faz
Kant, é, talvez, o único passo mais revolucionário dado por ele
para superar as conclusões alcançadas por David Hume que
ele considerou repugnantes. Qual era seu propósito
fundamental ao fazer isso? Era estabelecer a geometria
euclidiana e a aritmética tradicional como ciências que não
apenas carregam certeza, mas que também contêm verdades
que são aplicáveis ao mundo da nossa experiência. E também
atribuir o mesmo status à física newtoniana.
Para fazê-lo, Kant preencheu a mente humana com formas
transcendentais da apreensão sensível ou intuição (as formas
do espaço e do tempo), e também com categorias
transcendentais do entendimento. Não se deve confundi-las
com as “idéias inatas” de Descartes. A mente traz essas
formas e categorias transcendentais à experiência, para assim
constituir a forma e o caráter da experiência que temos.
Segundo Kant, a mente não é (como John Locke
corretamente insistiu em sua refutação das idéias inatas
cartesianas) uma tabula rasa — um vazio total — até que
adquira idéias inicialmente a partir da experiência sensível.
Locke acertadamente subscreveu a máxima medieval segundo
a qual nada está na mente sem que de algum modo tenha
derivado da experiência sensível. Foi esta máxima que Kant
rejeitou.
As formas transcendentais da apreensão sensível e as
categorias transcendentais do entendimento são inerentes à
mente e constituem sua estrutura anterior a qualquer
experiência sensível. A experiência comum que todos nós
compartilhamos tem o caráter que tem porque este caráter lhe
foi dado pela estrutura transcendental da mente humana. Ela
foi formada e constituída por essa estrutura transcendental.
Este elaborado mecanismo inventado por Kant lhe permitiu
pensar que havia sido bem-sucedido em estabelecer e explicar
a certeza e incorrigibilidade da geometria euclidiana, da
aritmética pura e da física newtoniana. Três eventos históricos
são suficientes para mostrar quão ilusória era a visão segundo
a qual ele havia sido bem-sucedido em realizá-lo.
A descoberta e desenvolvimento das geometrias não- -
euclidianas e da moderna teoria dos números deveriam bastar
para mostrar quão totalmente artificial fora a invenção
kantiana das formas transcendentais do espaço e do tempo
enquanto controladoras das nossas apreensões sensíveis e
doadoras de certeza e realidade à geometria euclidiana e à
aritmética pura.
Similarmente, a substituição da física newtoniana pela
moderna física relativista, a adição de leis probabilísticas ou
estatísticas às leis causais, o desenvolvimento da física de
partículas e da mecânica quântica, deveriam também bastar
para mostrar quão totalmente artificial fora a invenção
kantiana das categorias transcendentais do entendimento para
atribuir certeza e incorrigibilidade à física newtoniana.
Que ninguém no século XX consiga levar a sério a filosofia
transcendental de Kant é algo desconcertante, embora ela
possa sempre permanecer admirável sob certos aspectos como
uma invenção intelectual extraordinariamente elaborada e
engenhosa.
E isto muito devido ao caráter ilusório daquilo que Kant
reclamou para sua filosofia transcendental como uma tentativa
de dar às matemáticas e à ciência natural um grau de certeza
e incorrigibilidade que elas não possuem. O que dizer do
caráter crítico alegado por Kant para sua filosofia — crítico no
sentido de que ela nos salvaria do dogmatismo da metafísica
tradicional, especialmente de sua cosmologia e teologia
natural?
Kant advoga pela exclusão da metafísica tradicional do reino
do conhecimento genuíno alegando que este deve empregar
conceitos derivados da experiência para fazer afirmações que
vão além da experiência — a experiência que é constituída por
uma estrutura a priori da mente humana. Onde Hume
descartou a metafísica tradicional como sofisma e ilusão, Kant
a descartou como trans-empírica.
Entretanto, nenhuma idéia usada na metafísica é um
conceito empírico. A idéia de Deus, por exemplo, e a idéia do
cosmos como um todo não são conceitos derivados da
experiência sensível. São, ao contrário, construções teoréticas.
Não há, portanto, nada de inválido em empregar tais idéias,
mesmo que ultrapassem toda experiência sensível a que
podemos ter acesso. Deixe-me acrescentar aqui que, diferente
de um conceito empírico, uma construção teorética não tem e
não pode ter quaisquer exemplos particulares percebidos.
O que acabei de dizer sobre tais conceitos metafísicos como
Deus e o cosmos se aplicam igualmente a algumas das mais
importantes idéias da física teorética do século xx, como a
idéia de quark, de algumas partículas elementares, tais como
mésons, ou de buracos negros. Todas estas são construções
teoréticas, não conceitos empíricos.
Kant não tem consciência da distinção entre conceitos
empíricos e constructos teoréticos. Suas razões para descartar
a metafísica tradicional como desprovida da validade
apropriada ao genuíno conhecimento se aplicaria igualmente a
muito da física do século XX. Aqui, uma vez mais, temos
motivos para não levar muito em consideração as
reivindicações de Kant quanto ao caráter crítico de sua
filosofia.
Finalmente, chegamos àquele que é, talvez, o erro mais
grave que a filosofia moderna herdou de Kant — o erro de
substituir o realismo pelo idealismo. Embora Locke e seu
sucessor Hume tenham cometido o erro de pensar que as
idéias em nossas mentes são os únicos objetos que
diretamente apreendemos, eles de algum modo (embora não
sem se contradizerem) consideravam que nós temos
conhecimento de uma realidade que é independente de nossas
mentes. Isto já não se dá em Kant.
O conhecimento válido que nós temos é sempre e apenas
conhecimento de um mundo que experimentamos. Mas
precisamente porque este é um mundo experimentado por nós,
ele não é, segundo Kant, um mundo independente das nossas
mentes. Ele não é independente, como já tivemos ocasião de
ver, porque a experiência é constituída pela estrutura
transcendental ou a priori de nossas mentes — suas formas da
intuição ou apreensão e suas categorias do entendimento. Não
sendo independente de nossas mentes, ele dificilmente poderá
ser considerado como realidade, pois a principal característica
do real é a sua independência com relação à mente humana.
Para Kant, as únicas coisas que são independentes da
mente humana são, em suas palavras, “Dinge an sich” — as
coisas em si mesmas que são intrinsecamente incognoscíveis.
Isto equivale a dizer que o real é incognoscível, e que o
cognoscível é ideal no sentido de que está investido das idéias
que nossas mentes lhe trazem para torná-lo o que é.
O positivismo ou cientificismo que tem suas raízes nos erros
filosóficos de Hume, e o idealismo e criticismo que têm as suas
nos de Kant, geraram muitas consequências embaraçosas que
têm atormentado o pensamento moderno desde seus dias. Em
quase todos os casos, o problema consistiu em que pensadores
posteriores tentaram evitar estas consequências sem corrigir
os erros ou enganos que as geraram.
Neste curto capítulo, é impossível abordar todas as
deficiências, confusões e erros adicionais no pensamento dos
séculos xix e xx. Restringir-me-ei a um breve tratamento do
tema do conhecimento e da opinião que corrija e evite os erros
filosóficos cometidos por Hume e Kant.
 
5
 
Retomemos ao ponto focal desta discussão — a distinção
entre conhecimento e mera opinião. Por um lado, temos
verdades auto-evidentes que carregam certeza e
incorrigibilidade; e também temos verdades que estão ainda
sujeitas à dúvida, mas que são embasadas por evidência e
razões em um grau que as coloca para além da dúvida
razoável ou ao menos lhe dá predominância sobre visões
contrárias. Tudo o mais é mera opinião — sem nenhuma
pretensão de ser conhecimento ou ter alguma influência sobre
a verdade.
Não se discute que as descobertas e conclusões da pesquisa
histórica sejam conhecimento neste sentido; nem que as
descobertas e conclusões das ciências experimentais ou
empíricas, tanto natural quanto social, também o sejam.
Contrastadas a tal conhecimento, que é conhecimento da
realidade ou, como diria Hume, conhecimento de matérias de
fato e existência real, as matemáticas e a lógica também são
conhecimento, mas não da realidade. Elas não são
conhecimento experimental ou empírico. Elas não dependem
da pesquisa investigativa para alcançar suas descobertas e
conclusões.
A questão que resta por ser respondida é aquela a que, a
meu ver, Hume e Kant responderam erroneamente. Uma
resposta que persistiu de várias formas até os nossos dias.
Onde a filosofia teorética ou especulativa (pela qual me refiro à
física filosófica, à metafísica e à teologia filosófica) se situa
neste quadro? Será ela mera opinião ou genuíno conhecimento
— conhecimento que, como as ciências empíricas, é
conhecimento da realidade?
Conforme Sir Karl Popper, um dos mais eminentes filósofos
da ciência de nossos tempos, a linha demarcatória entre
conhecimento e opinião é determinada por um único critério:
falseabilidade pela evidência empírica, pelos fenômenos
observados. Uma opinião, uma concepção, uma teoria que não
possa então ser falseada não é conhecimento, mas mera
opinião, nem verdadeira nem falsa em qualquer sentido
objetivo destes termos. Desenhando esta linha demarcatória,
Popper coloca as ciências experimentais e empíricas de um
lado da linha, e a filosofia teorética (abarcando o que eu
indiquei acima) do outro.
Embora o expresse em termos de certo modo diferentes,
Popper repete a conclusão alcançada por Hume em sua
Investigação. As razões para alcançar a conclusão oposta são
as seguintes.
Em primeiro lugar, o que foi esquecido foi a distinção entre
experiência comum e especial. A evidência empírica à qual a
ciência e a história apelam é a evidência que consiste em
dados observados produzidos por investigação metódica,
utilizando todos os dispositivos e instrumentos do laboratório e
do observatório. Tais dados observados não fazem parte da
experiência das pessoas comuns que não estão engajadas na
investigação científica ou histórica.
Em nítido contraste a tal experiência especial, disponível
apenas aos que se engajam na investigação, há a experiência
cotidiana e comum de todos nós durante as horas em que
estamos despertos ao longo da vida. Esta experiência nos
chega simplesmente por estarmos acordados, em estado de
vigília, e nossos sentidos operando. Não fazemos esforços para
alcançá-la; não estamos buscando responder determinadas
questões por meio dela; não empregamos nenhum método
para refiná-la; não utilizamos nenhum instrumento de
observação para obtê-la. Subjacente ao espectro deste tipo
geral de experiência, encontramos um núcleo que constitui a
experiência comum da humanidade experiência que é a
mesma para todos os seres humanos de todos os tempos e
lugares.
Com esta distinção em mente, entre experiência comum e
especial, entre experiência resultante de esforços
investigativos e experiência alcançada sem tais esforços,
podemos distinguir entre corpos de conhecimento que, na
medida em que dependem tanto da experiência quanto do
pensamento reflexivo, recaem em diferentes tipos de
experiência.
As matemáticas representam um caso notável. A pesquisa
matemática é conduzida principalmente por pensamento
reflexivo e analítico, mas também recai sobre algum tipo de
experiência — a experiência comum que todos os seres
humanos têm. Os matemáticos não se engajam em
investigações empíricas. Eles não precisam de nenhum dado
observacional especial. As matemáticas podem ser chamadas
uma “ciência-poltrona”, mas mesmo assim alguma experiência
— a experiência comum da humanidade — subjaz ao
pensamento reflexivo e analítico em que os matemáticos se
engajam.
A filosofia especulativa ou teorética, como as matemáticas,
é um corpo de conhecimento que pode ser produzido em uma
poltrona ou em uma escrivaninha. A única experiência de que
os filósofos precisam para o desenvolvimento de suas teorias
ou para o suporte de suas conclusões é a experiência comum
da humanidade. Refletindo sobre tal experiência e procedendo
por meio de análise racional e argumentação, o filósofo alcança
conclusões de um modo que parece o proceder de um
matemático, não de um cientista empírico.
Contudo, não devemos falhar em notar uma diferença
importante, uma diferença que aproxima o filósofo teorético
mais ao cientista empírico do que ao matemático. Diferente
das matemáticas, mas semelhante às ciências empíricas, a
filosofia teorética alega ser conhecimento da realidade.
À luz do que já foi dito, podemos dividir a esfera do
conhecimento em (1) corpos de conhecimento que são
metodicamente investiga ti vos e (2) corpos de conhecimento
que são não-investigativos e que empregam apenas
experiência comum, não especial. Ao primeiro grupo
pertencem a história, a geografia e todas as ciências empíricas,
tanto naturais quanto sociais. Ao segundo pertencem as
matemáticas, a lógica e a filosofia teorética.
Se a divisão for feita nos seguintes termos: se o corpo de
conhecimento alega ter um domínio sobre a verdade da
realidade, então a filosofia teorética, conquanto seja
metodicamente não-investigativa, pertencerá, junto com a
história, a geografia e as demais ciências empíricas, ao
primeiro grupo.
Cada uma dessas disciplinas, conforme seu caráter
distintivo, tem um método peculiarmente próprio e, conforme
as limitações desse método, pode responder apenas a algumas
questões, não outras. O tipo de questões que os filósofos ou os
matemáticos podem responder sem quaisquer investigações
empíricas não pode ser respondido por cientistas empíricos,
assim, em sentido inverso, o tipo de questões que os cientistas
podem responder por seus métodos investigativos não pode
ser respondido por filósofos ou matemáticos.
A linha demarcatória entre todos esses corpos de
conhecimento e a mera opinião implica em critérios outros que
aquele proposto por Popper. Falseabilidade por experiência —
trate-se de dados observados pela investigação científica ou da
substância da experiência comum — é certamente um critério
pelo qual separamos o conhecimento genuíno da mera opinião.
Mas não é o único.
Um outro critério é a refutabilidade pela argumentação
racional. As únicas verdades irrefutáveis que possuímos são as
muito poucas proposições auto-evidentes dotadas de certeza,
finalidade e incorrigibilidade. Desde que nosso conhecimento
da realidade, seja científico ou filosófico, não consiste
exclusivamente de verdades auto-evidentes nem de
conclusões demonstradas verdadeiras por meio da dedução a
partir de premissas estas sim auto-evidentes, teorias ou
conclusões científicas e filosóficas devem ser refutáveis de, ao
menos, três maneiras.
Uma é o falseamento pela experiência, que produz
evidência contrária à evidência empregada para suportar a
opinião alegadamente verdadeira e com status de
conhecimento. Outra é pela argumentação racional, que
apresenta razões que corrigem e substituem as razões
apresentadas para sustentar a opinião alegadamente
verdadeira e com status de conhecimento. A terceira é pela
combinação da primeira com a segunda — evidência nova e
melhor, e razões novas e melhores, que juntas sustentem uma
visão contrária àquela refutada.
Opiniões que não podem ser refutadas de uma ou outra
dessas três maneiras não são conhecimento, apenas mera
opinião.
Não fosse isto assim, este livro seria fraudulento em sua
alegação de apontar os erros filosóficos e corrigi-los oferecendo
evidências e razões para expô-los como tais. Nem poderíamos
substituí-los pelas visões que consideramos verdadeiras ou
mais próximas da verdade.
Se a filosofia fosse questão de mera opinião, não haveria
erros filosóficos, concepções errôneas, falsas doutrinas. Não
haveria meios de substituí-los por visões ou doutrinas mais
próximos da verdade, pois, por um motivo ou outro, aqueles
que cometeram tais erros empregaram insights e apelaram a
distinções em cuja posse não se encontravam.
6
 
A análise anterior não foi exaustiva. Não incluiu corpos de
conhecimento que resultam da pesquisa acadêmica em
campos tais como a filologia, a religião comparada, ou as belas
artes. Se estes corpos de conhecimento recaem sob a
categoria da investigação metódica, eles pertencem ao grupo
das ciências empíricas, não ao da filosofia. A outra questão a
ser decidida é se eles são ou não conhecimento da realidade.
Referências à fé ou crença religiosa também foram omitidas.
Alega-se que seja efetivo conhecimento, e perderia toda sua
eficácia se fosse reduzida à mera opinião. Mas os motivos pelos
quais isto é alegado são tão diferentes dos critérios que
empregamos até agora para distinguir o genuíno conhecimento
da mera opinião que é impossível, no breve escopo desta
discussão, situar a crença ou fé religiosa dentro do quadro ora
em tela.
Com base na experiência comum que todos nós possuímos,
temos conhecimento de senso comum sobre matérias de fato e
existência real, conhecimento que não é nem científico nem
filosófico. Há, contudo, uma relação entre tal conhecimento de
senso comum e a filosofia teorética que não existe entre ele e
a ciência empírica.
A filosofia teorética é um refinamento reflexivo e analítico
do que sabemos por senso comum à luz da experiência
comum. O nosso conhecimento de senso comum é
aprofundado, iluminado e elaborado pelo pensamento
filosófico. Praticamente não há filosofia sólida que entre em
conflito com nosso conhecimento de senso comum, pois ambos
se baseiam na experiência humana comum, da qual emergem.
Foi por isso que reiterei de novo e de novo que a filosofia,
diferentemente das ciências investigativas, da pesquisa
histórica, ou das matemáticas, é um negócio para todos. Todos
esses são campos que tendem cada vez mais para uma maior
especialização e se tornam a província de uma ampla
variedade de especialistas. Só a filosofia, por causa de sua
íntima conexão com o conhecimento de senso comum das
pessoas comuns, permanece não-especializada — a província
do generalista, um negócio para todos.
A importância de refutar os erros cometidos por Hume e
Kant, erros que são amplamente prevalentes no século XX, é
que, em uma época tão dominada pela crescente
especialização em todas as outras áreas do saber, relegar a
filosofia teorética ao reino da mera opinião conduz a um
desastre cultural. Se as especulações filosóficas não forem
respeitadas em suas reivindicações de ter domínio sobre a
verdade da realidade, nossa cultura deixará de ter
generalistas.
O conhecimento não é o mais elevado dos bens intelectuais.
De maior valor é o entendimento e, além dele, a sabedoria.
Estes são bens que, não importa em que medida sejam
obtidos, se tornam nossos sempre através do pensamento
filosófico, nunca do conhecimento científico. A filosofia nos dá
suas contribuições não apenas como corpo de conhecimento,
mas também porque é através do pensamento filosófico que
nos tornamos aptos a entender tudo o mais quanto
conheçamos. Estamos justificados em esperar que de tal
entendimento, com maturidade de juízo e ampla experiência,
algum grau de sabedoria será finalmente alcançado.
 
CAPÍTULO V
Valores morais
 
1
 
No capítulo precedente, lidamos com o conhecimento da
realidade — com matérias de fato e existência real. Levamos
em consideração, ali, o status da filosofia teorética ou
especulativa, que reivindica ser genuíno conhecimento da
realidade.
A questão que enfrentamos aqui é se há outro tipo de
conhecimento, tal como a filosofia moral, que não reivindica
ser conhecimento da realidade, mas que está preocupado com
os valores morais — com o bem e o mal, o certo e o errado,
com o que devemos buscar em nossas vidas, e com o que
devemos ou não devemos fazer.
Há claramente um abismo entre juízos sobre o que existe ou
não, ou sobre quais são ou quais não são as características de
alguma coisa existente, e juízos sobre o que deve ou não ser
buscado ou o que deve ou não ser feito. Ao primeiro tipo de
juízo, envolvendo asserções que são existenciais ou
caracterizadoras, chamemo-lo descritivo. Ao segundo tipo,
envolvendo deveres e não-deveres, chamemo-lo prescritivo. Às
vezes, este último é também chamado normativo, porque
estabelece padrões ou normas de conduta a serem seguidos.
O abismo acima referido se dá entre matérias de fato por
um lado, e questões de valor por outro, especialmente valores
tais como bem e mal, certo e errado. Juízos sobre estas
matérias estão intimamente relacionados ao tipo de juízo que
acabei de denominar prescritivo ou normativo. Se pensarmos
que algo é realmente bom, isto equivale a dizer que este algo
deve ser buscado. Assim, também, se pensarmos que algo é
realmente o certo a se fazer, isto equivale a dizer que este algo
deve ser feito.
Em geral, se as pessoas fossem perguntadas sobre que
posição tomariam em relação à questão de se a filosofia moral
é um conhecimento genuíno atrelado à verdade dos valores
morais, descobriríamos, penso eu, que elas se dividem em dois
grupos. Eu não arriscaria um palpite sobre qual grupo
representa uma clara maioria, mas o meu palpite é de que
nenhum supera muito o outro.
Um grupo consiste daqueles que pensam que quando
lidamos com a realidade, com questões de fato e existência
real, realmente temos conhecimento genuíno e algum apego à
verdade, embora esta verdade possa estar sujeita à dúvida e
correção. Mas na visão deles, nossos juízos de valor sobre o
bem e o mal, o certo e o errado, ou nossos juízos prescritivos
sobre o que deve ou não ser feito, não são nem verdadeiros
nem falsos. Eles não expressam nada mais que nossas
preferências pessoais, nossos gostos e desgostos.
Para este grupo, a filosofia moral não é um corpo de
genuíno conhecimento. Juízos morais são apenas mera opinião,
sobre o qual não faz sentido argumentar, assim como não faz
sentido argumentar sobre questões de gosto ou predileção
pessoal. Ao enfrentar disputas sobre valores morais, este grupo
os descarta como desprovidos de sentido, repetindo aquela
frequente observação segundo a qual “o que para uns é
comida, para outros é veneno”. Eles podem até citar Montaigne
ou Shakespeare no sentido de que não há nada de bom ou mau
que não seja produzido pelo pensamento.
O outro grupo assume a visão diametralmente oposta. Para
eles, há padrões absolutos e universais de certo e errado, do
que deve e do que não deve ser feito. Eles não se empenham
em argumentações sobre tais matérias, pois se sentem seguros
em sua afirmação dogmática de que a existência objetiva dos
valores e padrões morais é incontroversa. Eles às vezes se
acham a maioria, mas o sejam ou não, constituem uma
considerável parcela da população.
Há muito pouca, para não dizer nenhuma, disputa ou debate
genuíno entre esses dois grupos. Cada um, por suas próprias
razões, consideraria qualquer tentativa de resolver o problema
entre eles como completamente fútil. Nesse sentido, ambos
são igualmente dogmáticos. O primeiro grupo seria incapaz de
defender sua atitude subjetivista e relativista em relação aos
valores morais, se esta fosse criticamente desafiada. O
segundo grupo seria incapaz de sustentar a visão oposta por
meio de argumentos racionais: ele provavelmente apelaria a
artigos de fé religiosa, mas isto seria o mais longe que
conseguiria chegar.
Antes de continuar, deixe-me assegurar que todos nós
entendamos tão claramente quanto possível o significado de
tais termos como subjetivo e relativo, de um lado, e objetivo e
absoluto, do outro.
Subjetivo é aquilo que difere para você, para mim e para
todos os demais. Em contraste, objetivo é aquilo que é o
mesmo para você, para mim e para todos os demais.
Relativo é aquilo que varia de um tempo para outro e se
altera conforme as modificações circunstanciais. Em contraste,
absoluto é aquilo que não varia de um tempo para outro e não
se altera conforme as modificações circunstanciais.
De um lado deste problema relativo aos valores morais e
juízos prescritivos estão os que sustentam que tais valores e
juízos são subjetivos e relativos. Do outro estão os que
sustentam que tais valores e juízos são objetivos e absolutos.
Não apenas as pessoas em geral, mas também os filósofos
se dividiram quanto ao posicionamento em face deste
problema. Os erros filosóficos de que este capítulo se ocupará
afirmam, por diferentes razões, que os valores morais e os
juízos prescritivos são subjetivos e relativos. Um destes erros, o
erro hedonista de identificar o bem ao prazer, é tanto antigo
quanto moderno. Os demais são distintivamente modernos em
sua origem.
Aqueles dentre os quais, em geral, sustentam a visão de
que os valores morais e os juízos prescritivos são subjetivos e
relativos não estão familiarizados com os erros filosóficos
subjacentes a esta visão. Até que lhes chegassem, estes erros
foram aos poucos sendo filtrados, e lhes penetraram as mentes
sem que deles estivessem explicitamente conscientes.
Aqueles dentre os quais, em geral, tão dogmaticamente
sustentam a visão oposta estão igualmente inconscientes dos
insights, distinções e argumentos pelos quais a concepção a
que aderem pode ser racionalmente defendida e sustentada.
Eles não sabem como, racional e argumentativamente,
poderiam corrigir os erros cometidos por seus oponentes.
Com tudo isso em mente, proponho proceder da seguinte
maneira: tentarei, primeiramente, abordar o erro hedonista,
que é tanto antigo quanto moderno; e então me voltarei para o
erro mais fundamental que o pensamento moderno herdou de
David Hume, um erro que Immanuel Kant tentou corrigir, mas
em que falhou miseravelmente, por haver ido muito longe na
direção oposta.
Tendo feito isso, tentarei, em uma sessão seguinte, expor o
que subjaz na raiz destes erros, particularmente daqueles de
origem moderna. Finalmente, de modo breve e resumido, direi
o que penso no tocante às sérias conseqüências do
subjetivismo e do relativismo com respeito aos valores morais,
e falarei da importância de corrigir os erros filosóficos que as
engendram.
 
2
 
A versão popular e vulgar do hedonismo leva seus
expoentes a serem subjetivistas e relativistas quanto aos
valores morais. Identificando o bem ao prazer, é fácil concluir
que aquilo que determinada pessoa considera bom, porque lhe
dá prazer, talvez não seja do mesmo modo considerado por
outra pessoa. Os prazeres que os seres humanos
experimentam variam de indivíduo para indivíduo, de época
para época, e conforme mudem as circunstâncias.
Mas a partir do momento em que se fazem
questionamentos e distinções, a posição hedonista, tal como
popularmente sustentada, deixa de ser defensável. Dizer que
somente o prazer é bom é dizer que a riqueza, a saúde, a
amizade, o conhecimento e a sabedoria não são bons. Isto, por
sua vez, quer dizer que eles não são nem desejáveis nem
desejados de fato por ninguém, pois o que quer que seja
desejável ou desejado será, decerto, bom (ou um bem) em
algum sentido. Os fatos da vida cotidiana, então, tornam
impossível sustentar que a única coisa que de fato todos
desejam ou prezam como desejável seja o prazer.
Foi nesse sentido que Platão, em seu diálogo Filebo,
argumentou contra a visão sofistica segundo a qual o prazer e
o bem são a mesma coisa. Se uma vida que inclua tanto prazer
quanto sabedoria é mais desejável do que outra que inclua
apenas prazer, então o prazer não é o único bem.
De maneira similar, Aristóteles, no livro décimo de sua Ética
a Nicômaco, argumentou contra Eudoxo. O prazer acompanha
nossas atividades, escreveu ele, mas “o prazer próprio de uma
atividade digna é bom e o prazer próprio de uma atividade
indigna é mau”.
Na Antiguidade, Epicuro e seus seguidores, por
corajosamente afirmar que o prazer e o bem são idênticos,
começaram sendo simples hedonistas, mas tão logo se
puseram a investigar quais os caracteres delineadores de uma
boa vida, logo se lhes tornou evidente que há nela outras
coisas desejáveis — e até mais desejáveis — que o simples
prazer. Eles distinguiram entre prazeres inferiores e superiores,
sendo os prazeres do intelecto, em sua visão, mais desejáveis
que os prazeres dos sentidos. Mas, para sustentar tal distinção,
os epicuristas devem ter tido algum outro critério de bondade
distinto do mero prazer em si e por si.
No mundo moderno, o principal hedonista confesso é John
Stuart Mill, que, em seu Utilitarismo, reconhece Epicuro e a
escola epicurista como seus precursores. Mas, como Epicuro,
Mill não consegue sustentar por muito tempo a visão simplista
segundo a qual o único bem é o prazer. Também ele distingue
entre prazeres que são mais ou menos desejáveis.
“Não se conhece nenhuma teoria epicurista da vida”,
escreve Mill, “que não atribua aos prazeres do intelecto, dos
sentimentos, da imaginação e dos sentimentos morais, um
valor mais elevado que àqueles da mera sensação”. E
acrescenta, em uma passagem muito famosa:
 
É melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco
satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito que um tolo
satisfeito. E se o tolo, ou o porco, forem de uma opinião
diferente, é porque eles apenas conhecem seu próprio lado da
questão. O outro pólo da comparação conhece os dois lados.
 
Esta passagem contém duas palavras, “satisfeito” e
“insatisfeito”, que carregam a chave para a insustentabilidade
do hedonismo simplista. As pessoas que em geral são
hedonistas, e também filósofos que alegam sê-lo, como Epicuro
e Mill, ignoram uma distinção que muda o cenário
radicalmente. Trata-se da distinção entre os prazeres sensíveis
enquanto objetos de desejo e o prazer a que chamamos
satisfação quando qualquer um dos nossos desejos é realizado.
Prazeres sensíveis (ou sensuais) não podem ser
identificados ao bem, pois certamente não são as únicas coisas
que desejamos, nem os consideramos sempre mais desejáveis
que outras coisas, para cuja aquisição estamos dispostos até a
sofrer. Por outro lado, o prazer que experimentamos quando
algum dos nossos desejos é satisfeito — o prazer que é idêntico
à satisfação do desejo — é um acompanhante do bem, mas
não idêntico a ele.
Seja o bem tanto riqueza, saúde, amizade, conhecimento ou
sabedoria, quanto prazer sensível. Quando este ou aquele bem
é desejado por nós e somos bem-sucedidos em obter o objeto
de nosso desejo, experimentamos o prazer que consiste em ter
nosso desejo satisfeito.
Quando Epicuro ou Mill falam sobre prazeres inferiores e
superiores, eles estão, na verdade, falando de bens inferiores e
superiores — sobre a sabedoria como um bem superior ao
prazer sensível, por exemplo. O prazer ou satisfação que
experimentamos ao obter um bem antes superior do que
inferior é, então, ele mesmo um prazer superior ou uma
satisfação maior.
A distinção entre os dois sentidos da palavra “prazer” — ao
referir-se, por um lado, aos prazeres sensíveis e, por outro, à
satisfação de qualquer desejo — torna o hedonismo simplista
indefensável. Mas isso não resolve o problema dos valores
morais: se eles são objetivos e absolutos ou subjetivos e
relativos.
Em primeiro lugar, não podemos encontrar em Epicuro ou
Mill as bases para ordenar os bens em superiores e inferiores,
ou para mostrar que aquilo que alguns indivíduos consideram
como bens superiores deveria ser assim considerado por todos
os demais em todos os tempos e lugares e sob todas as
circunstâncias.
Mill condena aqueles “que perseguem indulgências sensuais
em detrimento da saúde, embora perfeitamente conscientes de
que a saúde é o bem maior”. Mas isto inclui todas as pessoas,
ou só algumas? E quanto àqueles que buscam prazeres
sensíveis à revelia de sua saúde, considerando não esta última
como bem maior? Como proporemos argumentos racionais
para persuadi-los de que estão errados — de que todos
deveríam preferir a saúde aos prazeres sensíveis porque
aquela é o bem maior? E esta deve ser — a proposição
prescritiva — objetiva e absolutamente verdadeira?
Estas são questões para as quais não podemos encontrar
respostas satisfatórias em Epicuro ou Mill. Embora talvez eles
tenham sido forçados por seu próprio senso comum a
abandonar seu hedonismo simplista inicial, não estão
totalmente resguardados de erros. Em quaisquer dos dois
sentidos, identificar o bem com o desejável, em vez de com o
prazer, ainda os deixa vulneráveis ante o subjetivismo e o
relativismo.
Por quê? Porque as pessoas diferem nos seus desejos, e,
portanto, o que é desejado por uma pode não o ser por outra, e
o que é desejado em certo tempo e sob certas circunstâncias
pode não o ser em outro e sob outras circunstâncias. O que é
bom ou mau muda, então, de pessoa para pessoa, de um
tempo para outro, de um conjunto de circunstâncias para
outra.
Foi Spinoza quem, no princípio dos tempos modernos,
avançou a visão segundo a qual o que quer que alguém deseje
parecerá bom a essa pessoa como consequência do seu ato de
desejá-lo. O que quer que realmente desejemos, denominamos
bem. Bem, sustentou Spinoza, não é nada mais que o nome
associado a quaisquer objetos que nos ocorra desejar. Nós os
consideramos bens (ou bons) porque os desejamos, não o
contrário — desejá-los porque eles são de fato bens.
A menos que se possa provar que Spinoza está errado, não
há meios de escapar do subjetivismo e do relativismo que se
segue inexoravelmente à identificação do bem com aquilo que
é conscientemente desejado por alguém ou explicitamente
pensado como desejável pelas pessoas. Como desejos efetivos
ou opiniões sobre o desejável mudam de pessoa para pessoa e
de tempo para tempo, o juízo de que algo é bom ou mau
permanece sendo subjetivo, uma predileção pessoal, e relativo
ao tempo e às circunstâncias.
Embora seja verdadeiro que Spinoza, assim como Epicuro
antes dele e Mill depois, propôs teorias éticas nas quais certos
bens são enfaticamente afirmados como superiores ou
melhores que outros — não apenas para este ou aquele
indivíduo, mas para todas as pessoas e sob todas as
circunstâncias —, tais autores não têm em suas éticas ou
filosofias morais bases adequadas para estabelecer a verdade
de suas concepções, nem para se contrapor ao subjetivismo e
relativismo que não conseguem superar por causa de outras
coisas que dizem ou falham em dizer.
Bases adequadas podem ser encontradas, mas eu as
postergarei até que tenhamos enfrentado um ataque ainda
mais sério à validade da filosofia moral e de sua legitimação
como genuíno conhecimento em vez de mera opinião.
 
3
 
A origem daquele ataque mais sério pode ser encontrada no
Tratado sobre a natureza humana de David Hume, no século
xviii. Em uma famosa passagem, Hume pontua que, em suas
leituras de obras que lidam com questões de moralidade, ele
frequentemente se surpreende ao descobrir que seus autores
alternam entre dizer qual é ou não é a questão na realidade e
fazer asserções sobre o que deve ou não ser feito na condução
da vida humana. Ele então prossegue dizendo:
 
Como este deve ou não deve expressa alguma nova relação
de afirmação, é necessário que seja observado e explicado; e,
ao mesmo tempo em que uma razão deva
ser dada para o que parece totalmente inconcebível, do
mesmo modo esta nova relação pode ser uma dedução a partir
de outras, que são inteiramente diferentes dela. Devo me
atrever a recomendá-la aos leitores; e estou persuadido de que
esta pequena atenção subverteria todos os sistemas de
moralidade vulgares.
 
Deixe-me explicar o importante ponto que Hume está aqui
assinalando, sobre o qual não está de todo incorreto.
Chamando a atenção para a distinção entre sentenças
descritivas (envolvendo asserções sobre o que é ou não é) e
sentenças prescritivas (envolvendo asserções sobre o que deve
ou não ser feito), Hume corretamente declara que o primeiro
tipo de sentença não pode nos fornecer bases adequadas para,
de modo válido e convincente, alcançar uma conclusão que
consiste no segundo tipo de sentença.
Mesmo se as premissas que fôssemos empregar
consistissem em conhecimento completo de matérias de fato e
existência real (todo o conjunto de sentenças sobre o que a
realidade é), não poderíamos, partindo delas, argumentar
validamente a favor de uma única conclusão prescritiva ou
normativa. Ao assinalar esse ponto, Hume estava inteiramente
correto. Não se pode validamente extrair uma conclusão
prescritiva partindo de premissas inteiramente descritivas.
Há alguma saída para este problema? Podemos encontrar
bases para afirmar a verdade das conclusões prescritivas? A
resposta será sim, se pudermos encontrar uma maneira de
combinar uma premissa prescritiva com uma descritiva e tomá-
las como base para o nosso raciocínio até que cheguemos à
conclusão. Hume não encontrou, nem o poderia, o caminho
para solucionar este problema, e, por causa desta falha,
tornou-se o grande responsável pelo ceticismo em relação à
verdade objetiva da filosofia moral que veio a ser prevalente no
século XX.
O ceticismo que tenho em mente atende pelo nome de
“ética não-cognitiva”. Trata-se de uma maneira elegante de
dizer que a ética ou filosofia moral não tem estatuto de
conhecimento genuíno. Ela consistiria apenas de opiniões que
expressam nossos gostos e desgostos, nossas preferências ou
predileções, nossos desejos ou aversões, e mesmo os
comandos que damos a outros. Como Bertrand Russel disse
certa vez de maneira espirituosa: “A ética é a arte de
recomendar aos outros o que fazer para se dar bem conosco”.
O conteúdo da ética não-cognitiva, consistente de meras
opiniões deste tipo, não é nem verdadeiro nem falso. O que
vale para as meras opiniões de qualquer tipo vale para as
meras opiniões sobre valores morais e deveres. Elas são
inteiramente subjetivas e relativas ao tempo e à mudança das
circunstâncias.
Um argumento a favor da ética não-cognitiva deriva do
apontamento crítico de Hume segundo o qual nosso
conhecimento da realidade, não importa quanto dele tenhamos
nem com que sabor se nos apresente, não pode por si
estabelecer a verdade de um único juízo prescritivo. Contudo,
este não é o único argumento. Há um outro apontamento
crítico que tende a remover os juízos prescritivos da esfera da
verdade e a realocá-los no reino das meras opiniões que não
são nem verdadeiras nem falsas.
Esse apontamento foi feito por um filósofo inglês do século
xx, A. J. Ayer, bem como por outros em seu círculo. Ele apela à
teoria da verdade como correspondência. Estamos em posse
mental da verdade quando o que pensamos concorda com o
modo como as coisas são. A antiga formulação dessa teoria
declarava que nós dominamos a verdade quando afirmamos
que o que é, é, e o que não é, não é; e que a falsificamos
quando afirmamos que o que é, não é, ou que o que não é, é.
Essa teoria da verdade como correspondência, como
concordância da mente com a realidade, obviamente se aplica
apenas a sentenças descritivas — sentenças que envolvem
asserções sobre o que é ou não. Do mesmo modo, essa teoria
obviamente não se aplica às sentenças prescritivas. Quando
dizemos que algo deve ou não ser feito, a que isto pode
corresponder na realidade? Claramente a nada; e assim, se o
único tipo de verdade existente é aquele definido pela teoria
da verdade como correspondência, então sentenças
prescritivas não podem nem ser verdadeiras nem falsas.
É com isso em mente que A. J. Ayer escreve:
Se uma sentença não afirma nada, não faz obviamente
nenhum sentido perguntar se o que ela diz é verdadeiro ou
falso. E, como vimos, sentenças que simplesmente expressam
juízos morais não dizem nada. Elas são puramente expressão
de sentimentos e, como tal, não recaem sob as categorias da
verdade ou falsidade. Elas são inverificáveis pelas mesmas
razões que um grito de dor ou uma palavra de comando é
inverificável — porque elas não expressam proposições
genuínas.
Ayer vai além do que precisa para sustentar a sua tese de
que a ética é não-cognitiva. Não há fundamento para dizer que
a sentença “os seres humanos devem buscar o conhecimento”
não afirma nada. O fato de que a sentença seja prescritiva
(uma sentença contendo um “deve”) em vez de descritiva
(uma sentença contendo um “é”) não justifica que Ayer
despreze a sentença como não-assertiva ou não-afirmativa.
Entretanto, se o único tipo de verdade possível e existente
consiste na concordância da mente com a realidade, Ayer está
justificado em desprezar as sentenças prescritivas como nem
verdadeiras nem falsas, pois não há matérias de fato ou
existência real com que um juízo prescritivo possa concordar.
Apontamos agora os três principais argumentos para a visão
amplamente prevalente, tanto entre os filósofos quanto entre
as pessoas em geral, de que os valores morais e os juízos
prescritivos são inteiramente subjetivos e relativos.
Um é a identificação operada por Spinoza do bem com
aquilo que parece bom ao indivíduo ou que este considere bom
ou chame de bem apenas porque o objeto considerado bom ou
chamado de bem é conscientemente desejado pelo indivíduo.
Outro é a crítica de Hume a quem quer que tente
argumentar a favor de uma conclusão prescritiva alcançada
tomando por base apenas conhecimentos referentes a
questões de fato ou existência real. Isso não pode ser feito,
como Hume corretamente apontou.
O último é o apontamento feito pelos expoentes do século
xx no campo da ética não-cognitiva. Se a verdade só puder ser
encontrada em sentenças descritivas que se conformam ao
modo como as coisas realmente são, então eles estão corretos
em excluir sentenças prescritivas do reino do que é verdadeiro
ou falso.
Com respeito ao primeiro ponto, devemos observar que o
erro aí envolvido pode ser removido chamando a atenção para
uma outra relação entre o bem e o desejo que não aquela
considerada por Spinoza. Esta envolve uma distinção entre dois
tipos de desejo, com a qual os filósofos modernos, desde
Spinoza até Mill e outros, não parecem estar familiarizados.
Com respeito ao segundo ponto, devemos observar que é
possível combinar uma premissa prescritiva com uma
descritiva, de modo a argumentar convincentemente a favor da
verdade de uma conclusão prescritiva. Esta premissa
prescritiva deve, certamente, ser uma verdade auto-evidente;
pois, de outro modo, teríamos de argumentar a seu favor e
seríamos incapazes de fazê-lo.
Com respeito ao terceiro ponto, devemos observar que há
outro tipo de verdade sem ser aquela do tipo que se aplica
unicamente a sentenças descritivas — um tipo de verdade que
não envolve a concordância da mente com a realidade. Foi
apenas na Antiguidade e na Idade Média que essa distinção
entre dois tipos de verdade — uma, descritiva; outra,
prescritiva — foi reconhecida e entendida. Quase todos os
filósofos modernos estão totalmente inconscientes disso.
Na próxima seção, explicarei como os problemas levantados
pelos três pontos anteriores podem ser resolvidos, assim
corrigindo os erros filosóficos que conduzem ao subjetivismo e
ao relativismo com respeito aos valores morais e aos juízos
prescritivos. Mas antes de fazê-lo, gostaria de gastar um tempo
analisando a tentativa de Kant de evitar tal subjetivismo e
relativismo — uma tentativa que, segundo meu juízo, falha
justamente por ir longe demais na direção oposta.
Reconhecidamente, um erro com respeito à relação entre o
bem e o desejável é, em parte, responsável pelo subjetivismo e
relativismo. Reconhecemos ainda que um erro sobre a relação
entre juízos de valor e juízos de realidade é também em parte
responsável por isso. Por fim, outra coisa, que é também em
parte responsável, é a falha em responder à questão sobre
como juízos prescritivos podem ser verdadeiros.
A solução de Kant para estes problemas vai longe demais na
direção oposta porque Kant tenta tornar os deveres ou
obrigações morais, expressos em juízos prescritivos,
totalmente independentes dos nossos desejos e totalmente
desprovidos de qualquer referência a matérias de fato,
especialmente dos fatos sobre a natureza humana. Seu
imperativo categórico é uma sentença prescritiva que ele
considera como uma lei moral à qual nossa razão deve estar
vinculada, por tratar-se de uma verdade auto-evidente.
Em primeiro lugar, não se trata de uma verdade auto-
evidente. Em segundo, tudo se resume à regra de ouro que,
por reverenciada que seja, não passa de uma recomendação
vazia. Dizer que devemos fazer aos outros o que desejaríamos
que eles nos fizessem deixa totalmente sem resposta a
questão fundamental: o que devemos corretamente desejar
que os outros nos façam? Esta questão não pode ser
respondida sem referência aos nossos desejos e aos fatos da
natureza humana, que Kant exclui inteiramente de
consideração.
Finalmente, a asserção de Kant de que a única coisa
realmente boa é uma boa vontade, uma vontade que obedece
ao imperativo categórico e que cumpre as obrigações morais
que ele lhe impõe, voa diante dos fatos. Identificar o bem com
uma boa vontade, tanto quanto com o prazer sensível, viola
fatos com o quais estamos todos familiarizados.
 
4
 
Debruçar-me-ei agora sobre os três apontamentos críticos
que colocam problemas a serem resolvidos. Mas não
procederei na mesma ordem em que aqueles pontos foram
apresentados na seção anterior.
Em vez disso, lidarei primeiro com o tipo especial de
verdade adequada aos juízos prescritivos. Introduzirei então
uma distinção entre dois tipos de desejo que se relaciona com
uma distinção entre o bem real e o bem aparente. Tal distinção
lançará as bases para a formulação do único tipo de juízo
prescritivo detentor de verdade auto-evidente, funcionará
como o primeiro princípio necessário da filosofia moral, e nos
permitirá extrair conclusões prescritivas a partir de premissas
que combinam verdades prescritivas e descritivas.
No livro vi de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, claramente
ciente do que ele mesmo disse sobre o caráter da verdade
descritiva, declarou que o que ele chamou de juízos práticos
(juízos prescritivos ou normativos com respeito à ação) possui
verdade de um tipo diferente. Os últimos filósofos, a não ser
pelos discípulos medievais de Aristóteles, não mostraram
qualquer conhecimento que fosse desta passagem breve,
porém crucialmente importante, em seus escritos.
No caso dos juízos práticos ou prescritivos, o requisito de
conformidade que os torna verdadeiros é conformidade com o
reto desejo, não com o modo como as coisas são, como no
caso da verdade descritiva. Mas o que é reto desejo?
Obviamente, a resposta deve ser que reto desejo consiste em
buscar o que devemos desejar ou buscar. O que devemos
então desejar? A resposta não pode simplesmente ser o bem,
pois o que quer que desejemos tem aparência de bem, quer
nossos desejos sejam retos, quer não.
Isto nos traz à distinção entre dois tipos de desejo —
natural, por um lado, e adquirido, por outro. Nossos desejos
naturais são aqueles inerentes à nossa natureza e, por
conseguinte, os mesmos em todos os membros da espécie
humana, todos os quais partilham da mesma natureza. Em
contraste, nossos desejos adquiridos diferem de indivíduo para
indivíduo conforme suas diferenças individuais de
temperamento e conforme as diferentes circunstâncias em que
vieram à tona e diferentes condições capazes de afetar o seu
desenvolvimento.
Duas palavras portuguesas expressam adequadamente esta
distinção entre desejos naturais e desejos adquiridos. Uma é
“necessidade”; a outra é “vontade”. A introdução dessas duas
palavras carrega conotações que todos logo reconhecerão no
uso que fazemos delas.
O que quer de que precisemos ou necessitemos será
realmente bom para nós. Não há necessidades erradas. Nunca
precisamos de algo em excesso que seja realmente mau para
nós. As necessidades inerentes à nossa natureza são todas
retos desejos. Podemos dizer, então, que um juízo prescritivo
contém verdade prática se expressa o desejo por um bem de
que necessitamos.
Em contraste às nossas necessidades naturais, nossas
vontades individuais nos levam às vezes a buscar o que pode
nos parecer bom no momento, mas que pode realmente acabar
se revelando mau para nós. Sabemos todos que algumas de
nossas vontades adquiridas podem ser desejos errados e que
frequentemente queremos em excesso algo que é realmente
bom para nós. O bem correspondente às nossas vontades é,
enquanto querido, apenas um bem aparente que pode vir a se
revelar ou como realmente bom para nós ou como realmente
mau, a depender de se nos ocorre querer o de que precisamos
ou se nos ocorre querer algo que frustre ou interfira na
obtenção daquilo de que precisamos.
Spinoza, recordemos, disse que o “bem” é o nome que
damos às coisas que conscientemente desejamos. Aqueles
objetos parecem bens para nós simplesmente porque
realmente os desejamos. Desde que os desejos adquiridos ou
vontades de um indivíduo tendem a diferir das vontades de um
outro, o que parece bom para diferentes indivíduos diferirá.
Em contraste a tais bens aparentes, bens reais são as coisas
de que todos nós precisamos por natureza, desejemo-las ou
não conscientemente como objetos dos nossos desejos
adquiridos. Às vezes, como no caso das nossas necessidades
biológicas, tais como fome e sede, a privação dos bens
necessários que lhes correspondam carrega consigo um
sofrimento que nos move a querer buscar a comida e a bebida
necessárias à sua satisfação. Mas no caso de outras
necessidades naturais, tal como a necessidade de
conhecimento, a privação do bem necessário correspondente
não carrega em si um sofrimento que gere uma vontade
consciente de obter o objeto de nossa necessidade. A
necessidade existe estejamos ou não conscientes dela e
queiramos realmente ou não aquilo de que precisamos.
Algumas coisas nos parecem boas porque as queremos, e
elas têm aparência de bem apenas no momento em que as
queremos e na medida em que as queremos. Em acentuado
contraste, devemos desejar algumas coisas porque delas
precisamos, queiramo-las ou não; e, porque delas precisamos,
elas são realmente boas para nós.
As duas distinções com que ora nos defrontamos,
geralmente negligenciadas no pensamento moderno — a
distinção entre desejos naturais e desejos adquiridos, ou
necessidades e vontades, e a distinção entre bens reais e bens
meramente aparentes —, nos permitem postular a existência
de uma verdade auto-evidente que funcione como primeiro
princípio da filosofia moral. Devemos desejar o que quer que
seja realmente bom para nós e nada mais.
O critério da auto-evidência, recordemos, é a
impossibilidade de pensar o oposto. E impossível para nós
pensar que devemos desejar aquilo que nos faz realmente mal,
ou que devemos não desejar aquilo que nos faz realmente
bem. A própria compreensão da expressão “realmente bom”
[ou “nos faz realmente bem”] carrega em si a nota prescritiva
de que “devemos desejar” esse bem. Não podemos entender
os termos “devemos” e “realmente bom” [ou “nos faz
realmente bem”] como relacionados de alguma outra maneira.
Com esta verdade auto-evidente como primeiro princípio,
podemos resolver o problema colocado por David Hume.
Empregando este primeiro princípio como premissa maior e
acrescentando-lhe uma ou mais verdades descritivas sobre
matérias de fato (neste caso, verdades descritivas sobre a
natureza humana), podemos validamente alcançar uma
conclusão que é outra verdade descritiva.
Um exemplo de tal raciocínio deve bastar. Começando com
a verdade auto-evidente de que devemos desejar o que quer
que seja realmente bom para nós, e acrescentando a verdade
descritiva de que todo ser humano naturalmente deseja ou
precisa conhecer (o que equivale a dizer que o conhecimento é
realmente bom para nós), chegamos à conclusão de que
devemos buscar ou desejar conhecimento. Esta conclusão
contém uma verdade prescritiva, baseada no critério de que o
que ela prescreve está em conformidade ao nosso reto desejo,
pois deseja algo de que realmente precisamos.
O raciocínio acima exemplificado pode ser aplicado a todos
os nossos desejos naturais ou necessidades e produz toda uma
série de juízos prescritivos verdadeiros. Para a elaboração de
uma filosofia moral em cujo coração resida tal raciocínio, é,
certamente, necessário produzir evidências ou razões que
sustentem uma enumeração de todas as necessidades
humanas, e também lidar com as várias complicações
emergentes de um exame mais pormenorizado das
necessidades e vontades. Mas o que foi dito até então é
suficiente para resolver todos os problemas colocados pelo
pensamento moderno. Ao falhar em resolvê-los, o pensamento
moderno negou à filosofia moral o estatuto de genuíno
conhecimento.
 
5
 
Nem todos os bens reais são igualmente bons. Alguns são
superiores a outros na escala dos desejáveis. Os bens inferiores
são bens limitados, tais como o prazer sensível e a riqueza,
coisas que são boas apenas moderadamente, não
ilimitadamente. Os bens superiores são ilimitados, tal como o
conhecimento, o qual nunca é excessivo.
Mas, inferiores ou superiores, todos os bens reais são coisas
às quais temos direito natural. Nossas necessidades naturais
são base para os nossos direitos naturais — direitos às coisas
de que precisamos para cumprir nossas obrigações morais,
para que então possamos buscar tudo quanto nos seja
realmente bom e isto nos possa conduzir à realização de boas
vidas humanas.
Se as necessidades naturais não fossem as mesmas para
todos os seres humanos em toda parte, em todos os tempos e
sob todas as circunstâncias, não teríamos base alguma para
postular uma doutrina global que clama pela proteção dos
direitos humanos por parte de todas as nações do planeta.
Se todos os bens fossem meramente aparentes, assim
parecendo apenas por ocorrer a este ou àquele indivíduo
querê-los, não poderiamos evitar o relativismo e o subjetivismo
que reduzem os juízos morais a meras opiniões. Se não
pudéssemos apreender nenhuma verdade a respeito do que é
certo ou errado, ficaríamos à mercê da impiedosa doutrina
segundo a qual a correção advém do poder.
Nada mais é preciso dizer para sublinhar a importância
prática de corrigir os erros que reduzem os juízos morais à
mera opinião, assim estabelecendo a objetividade e
universalidade dos valores morais e dando à filosofia moral o
estatuto de genuíno conhecimento
PARTE I
CAPÍTULO VI
Felicidade e contentamento
 
1
As pessoas em geral esposam o erro cometido pela maioria
dos filósofos modernos segundo o qual a felicidade é antes de
tudo um estado psicológico em vez de ético — isto é, que diga
respeito à qualidade de uma vida moralmente boa.
Ninguém pode legislar sobre como o termo “felicidade”
deveria ser usado. A menos que seja usado em seu sentido
ético em vez de em seu sentido psicológico, seu significado não
será, de modo algum, o de fim último que estamos moralmente
obrigados a perseguir.
Todo mundo, cometa o erro supracitado ou não, concorda
em reconhecer que a felicidade é sempre um fim, nunca um
mero meio. Mais do que isso, é um fim último, buscado por si,
em função de nada mais.
Para qualquer outro bem, ou objeto de desejo, podemos
sempre dizer que o desejamos em função de alguma outra
coisa. Queremos riqueza, saúde, liberdade e conhecimento
porque estes bens são meios para algum outro bem que os
transcenda. Mas é impossível completar a sentença começando
com as palavras: “Queremos ser felizes ou queremos felicidade
porque... ”.
Qualquer outro bem que possamos nomear é algo que, uma
vez obtido, ainda deixa outros bens por serem buscados. Cada
um é um bem entre outros, mas a felicidade não é um bem
entre outros. Ela é o bem completo, a soma de todos os bens,
nada mais restando por ser desejado. Assim concebida, a
felicidade não é o bem superior — o bem mais elevado entre
muitos na escala axiológica —, mas o bem total.
O que acabou de ser dito sobre a felicidade vale, se bem
que de diferentes maneiras, para a felicidade entendida tanto
como estado psicológico quanto como estado ético. Mas ela é
muito mais bem compreendida quando se lhe atribui o sentido
ético em vez do psicológico. Felizmente, há outro termo que
adequadamente designa o estado psicológico, tornando
desnecessário o uso do vocábulo “felicidade” com dois sentidos
distintos.
Este outro termo é “contentamento”. Ele não pode significar
outra coisa senão o estado psicológico emergente no momento
em que nossos desejos são satisfeitos. Quanto mais satisfeitos
estes desejos estiverem num determinado momento, mais
consideraremos este momento como próximo do
contentamento supremo.
 
2
 
As distinções apresentadas no capítulo anterior (entre
desejos naturais e adquiridos, ou necessidades e vontades, e
entre bens reais e bens meramente aparentes) nos permitem
lidar brevemente aqui com o erro filosófico de identificar a
felicidade com o estado psicológico de contentamento.
Se todos os nossos desejos fossem vontades, que diferem
de indivíduo para indivíduo, e se todos os bens que os seres
humanos desejassem simplesmente parecessem bons para
este indivíduo ou aquele apenas por haver-lhes ocorrido querê-
los, seria impossível evitar a conclusão segundo a qual, para
toda pessoa, a felicidade consiste apenas em conseguir o que
se quer e, ao consegui-lo, aproveitar-lhe o contentamento
decorrente naquele momento.
Neste caso, a felicidade seria então uma coisa mutável e
impermanente. O indivíduo estaria contente um dia por haver
sido bem-sucedido em conseguir os bens aparentes que queria,
mas no dia seguinte poderia não sê-lo devido à frustração de
suas vontades — frustração que traria consigo um doloroso
descontentamento. A felicidade individual mudaria dia após
dia, raramente firmando-se por um período relativamente
longo de tempo. Ela também diferiria em caráter de pessoa
para pessoa, conforme as diferenças em suas vontades
individuais. O que traria felicidade para um poderia não trazer
para outro.
Há ainda outras razões para argumentar contra a
identificação da felicidade ao contentamento. Ninguém, penso
eu, questionaria a depravação moral de um avaro, o indivíduo
psiquicamente enfermo cujo único propósito na vida é estar na
presença de sua pilha de ouro acumulado e que não hesitaria
em sacrificar sua saúde, amizades, e outros bens reais para
consegui-lo.
Se a felicidade não é nada mais que o contentamento
resultante da satisfação das vontades, então o avaro que
conseguiu o que queria deve ser considerado feliz, embora
devesse, por critérios morais, ser considerado uma criatura
miserável, à qual falta a maioria dos bens reais de que um ser
humano precisa. Identificada ao contentamento, a felicidade
seria igualmente alcançável por indivíduos moralmente bons
ou moralmente maus.
Pessoas entram em conflito umas com as outras na
tentativa de obter o que querem. Alguém que queira muito
obter riquezas pode frustrar a vontade de outro que também a
queira para satisfazer suas necessidades. Alguém que queira
muito o poder sobre os demais para dominá-los e controlá-los
pode acabar interferindo indevidamente na tão necessária
liberdade alheia.
Se um governo justo deve fazer tudo quanto seja necessário
para garantir e encorajar a busca da felicidade por parte de seu
povo, este mandato não pode ser levado a cabo quando a
felicidade é identificada ao contentamento resultante da
satisfação das vontades individuais. Confrontado com vontades
conflitantes, ou com as vontades de uns que, satisfeitas,
frustram a satisfação das vontades de outros, nenhum governo
pode assegurar para todos os cidadãos as condições
necessárias para uma bem-sucedida busca da felicidade.
Concebida como contentamento, com seu caráter transitório
e mutável, mudando dia após dia com as mudanças por que
passam as vontades individuais, e mudando de vontades
satisfeitas para vontades frustradas, a felicidade torna-se um
objetivo tão variável e impermanente que nenhum governante
poderia sequer tentar pensar em garantir ou encorajar a busca
da felicidade para todo o seu povo. Nem poderia ele prometer
promover a busca da felicidade para todos nestes termos,
porquanto as vontades conflitantes dos diferentes indivíduos
tornariam impossível que todos tivessem a oportunidade de
satisfazer suas vontades.
Ora, tudo quanto foi dito clama pela separação da felicidade
em relação ao contentamento. Tal separação é bem possível e
fácil de explicar uma vez que tenhamos empregado as
distinções entre necessidades e vontades e entre bens reais e
bens aparentes.
A felicidade pode então ser definida como uma vida inteira
enriquecida pela posse cumulativa de todos os bens reais de
que todo ser humano precisa e pela satisfação daquelas
vontades individuais que resultam na obtenção de bens
aparentes inócuos.
A busca da felicidade, assim concebida, consiste no esforço
para cumprir nossa obrigação moral no sentido de buscar tudo
quanto nos seja realmente bom e nada mais, a não ser que se
trate de algo, tal como um bem aparente inócuo, que não
interfira negativamente no nosso processo de obtenção de
todos os bens reais de que precisamos.
Um governo justo pode então garantir e encorajar a busca
da felicidade ao seu povo assegurando-lhe o direito natural aos
bens reais de que necessita para alcançar a felicidade — vida,
liberdade, e tudo o mais de quanto uma pessoa precisa, tal
como a proteção à saúde, uma quantidade suficiente de
riqueza, e outros bens reais que ela mesma, apenas por seus
esforços, é incapaz de obter.
 
3
 
Apesar de tudo quanto se disse, o erro amplamente pre-
valente de confundir a felicidade com um estado psicológico
momentâneo de contentamento pode ainda permanecer a
menos que outras dificuldades sejam superadas.
Por um lado, não apenas filósofos, mas também pessoas em
geral, acham difícil aceitar uma noção de felicidade que a torna
intrinsecamente desagradável. Concebida como a qualidade
moral de toda uma vida humana, a felicidade é estritamente
desagradável. O gozo ou a agradabilidade da vida ocorre de
momento a momento. O contentamento, quando e no exato
momento em que ocorre, é agradável. Mas em nenhum
momento específico da vida é possível desfrutar de uma
qualidade que pertence não a um momento, mas à vida como
um todo. Apenas quando uma vida se completa é possível dizer
se foi uma vida moralmente boa ou má — se a felicidade foi ou
não alcançada.
Outra dificuldade reside na compreensão da felicidade como
um fim último ou meta final. Tal dificuldade carrega consigo,
tanto para filósofos quanto para pessoas em geral, a noção de
que um fim último ou meta final é algo que, buscado com
afinco, pode ser alcançado e no qual se pode repousar. Quando
a felicidade é concebida como contentamento, ela não é
apenas algo de que possamos desfrutar, mas também algo que
em algum momento podemos parar de perseguir e no qual
repousar — ao menos por um tempo.
Mas não é assim quando a felicidade é concebida como a
totalidade de uma vida bem vivida.
Ela pode ser o fim último ou meta final de todos os nossos
esforços, mas não é algo que possamos cessar de buscar
enquanto estivermos vivos, ou algo em que possamos vir a
repousar quando alcançado, pois então não estaremos mais
vivos.
Podem-se remover estas dificuldades, penso eu, ainda por
outra distinção que é, em geral, negligenciada. Trata- -se da
distinção entre meta ou objetivo terminal e meta ou objetivo
normativo. A inconsciência desta distinção levou John Dewey,
em seu Natureza humana e conduta, a negar que houvesse
qualquer fim último para esta vida. Tudo quanto buscamos,
segundo Dewey, é um meio para algum outro bem que o
transcenda. Nada é, portanto, um fim último ou meta final,
nem mesmo a felicidade concebida como contentamento.
Desfrutá-la por um dia ou por um período curto de tempo deixa
ainda outras coisas por perseguir no tempo restante de uma
vida.
Para esclarecer a distinção entre metas ou objetivos
terminais e normativos, alguns exemplos deverão bastar.
Você planeja uma viagem para Viena. Você toma decisões
sobre como realizar este objetivo, e você cumpre as etapas
necessárias para colocar aquelas decisões em ação. Você
finalmente chega a Viena — o fim ou término da sua viagem —
e, por algum período de tempo, repousa no que diz respeito a
viagens. Neste simples exemplo de traçar uma meta e adotar
os meios necessários para realizá-la, Viena é uma meta ou
objetivo terminal. Alcançá-lo e nele repousar é uma experiência
agradável.
O maestro de uma orquestra sinfônica se prepara para
executar certa composição musical em um concerto que
acontecerá dali a algum tempo. Ele estuda a peça musical. Ele
ensaia com a orquestra várias vezes. Finalmente, chega o dia
do concerto e o maestro leva a efeito tudo por quanto se
empenhou anteriormente, fazendo todo o possível para
conduzir a orquestra a uma execução da peça que alcance alto
nível de excelência musical.
Suponhamos que o maestro tenha sido bem-sucedido em
seus propósitos. A excelência musical a que ele visou e
alcançou é uma meta ou objetivo normativo em vez de
terminal. A excelência musical não existe em nenhum
momento durante a execução da composição. O maestro e a
orquestra nunca o alcançam, no sentido de nele poderem
repousar, porque a excelência almejada vem à existência
temporalmente. Ela existe apenas durante o período de tempo
da sua execução.
Metas normativas são metas que existem apenas em
totalidades temporais, não de momento a momento ou a
qualquer momento. O que é verdadeiro para a meta normativa
almejada na boa execução de uma peça musical também o é
para a excelência almejada na encenação de uma obra
dramática no palco, para uma apresentação de balé, para
qualquer tipo de performance artística, e, do mesmo modo,
para a realização de partidas esportivas que ocorram durante
um determinado período de tempo.
Muito diferente é a excelência almejada pelos arquitetos e
construtores que, quando terminam seu trabalho, podem
apontar para a existência de um belo edifício como resultado. A
construção terminada é uma meta terminal que pode ser
alcançada, na qual se pode repousar, e da qual se pode
desfrutar num dado momento.
Não se pode dizer que a construção em que o arquiteto está
trabalhando é uma boa construção até que esteja terminada e
de pé para ser contemplada. Assim, também, não se pode
dizer de uma partida de futebol ou de beisebol que foi uma boa
partida até que a última jogada tenha sido feita e o apito soe.
Quando, em uma partida de beisebol, torcedores se levantam
no sétimo turno para se alongar, talvez um diga ao outro: “Tem
sido um bom jogo, não acha?”; o outro deveria responder:
“Não, ainda não acabou; está se tornando um bom jogo; se
continuar sendo jogado nos próximos turnos tão bem quanto
veio sendo até então, terá sido um bom jogo quando estiver
terminado”.
Por trivial que seja dizê-lo, levar uma vida moralmente boa
ou viver bem lembra bastante a execução de qualquer arte
performática ou a prática de jogos desportivos. A felicidade que
é idêntica a uma vida moralmente boa é um objetivo
normativo. A excelência aí almejada é inerente a uma
totalidade temporal — uma vida inteira, do nascimento à
morte.
Se a uma pessoa, em algum ponto no meio da vida, é
perguntado se ela alcançou ou não a felicidade, a resposta
deveria ser como aquela do torcedor no jogo de beisebol: “Não,
ainda não, minha vida ainda não acabou; mas se os meus anos
finais continuarem a ter a mesma qualidade dos anos
passados, atrevo-me a dizer que terei levado uma vida feliz
quando ela tiver chegado ao seu fim”.
O que é verdadeiro para as metas terminais é igualmente
verdadeiro para as normativas. A meta almejada controla a
decisão da pessoa sobre que meios devem ser empregados
para alcançá-la. O fato de que uma meta terminal possa ser
alcançada e nela se possa repousar, enquanto uma meta
normativa não o possa, não faz nenhuma diferença neste caso.
Uma meta normativa almejada determina, não menos que uma
meta terminal, o que devemos fazer para alcançá-la.
Assim, não deveria haver dificuldade para compreender
como a felicidade, entendida como a excelência de toda uma
vida bem vivida, uma vida moralmente boa, funciona como um
fim último que é uma meta normativa, não terminal. Cada
passo que damos em sua direção nos aproxima de sua plena
realização, embora nunca desfrutemos desta plena realização
em nenhum momento da vida. Cada meio escolhido é bom ou
mau na medida em que tende para a direção certa ou errada —
se para perto do fim último a que almejamos ou se para longe
dele. Um grande insight pode ser encontrado na afirmação
segundo a qual os meios retamente dirigidos são o fim
almejado em processo de vir a ser alcançado ou realizado.
Outro ponto deve ser observado. Quando, segundo John
Dewey, não há nenhum fim último e todo fim é um meio para
outro fim que o transcenda, não temos nenhuma obrigação
moral inexorável de almejar estes fins. Podemos reconhecer
um imperativo hipotético do seguinte tipo: se desejamos
alcançar este fim particular, então devemos escolher tais e
quais meios para alcançá-lo.
A compreensão do “se” e do “então” indica o caráter
hipotético do imperativo — o juízo prescritivo. Apenas quando o
fim almejado é verdadeiramente um fim último (e assim o
poderá ser nesta vida apenas se também for um fim normativo
em vez de terminal) devemos reconhecer estar na presença
antes de um imperativo categórico que de um hipotético.
O princípio auto-evidente segundo o qual devemos buscar
tudo quanto nos seja realmente bom coloca-nos sob o jugo de
uma obrigação moral que é categórica. Não há nenhum “se”
nem nenhum “então” neste caso. Não podemos dizer “se
desejamos levar uma vida moralmente boa, então devemos
agir desta ou daquela maneira”. Se tentarmos realizá-lo,
teremos de recorrer necessariamente a uma obrigação moral
categórica.
Acabei de dizer que a felicidade pode ser um fim último
nesta vida apenas se for uma meta normativa em vez de uma
meta terminal. Reitero esta verdade apenas para chamar a
atenção para o fato de que, na teologia moral cristã, o que vale
para a felicidade terrestre e temporal não vale para a felicidade
celeste e eterna — a felicidade daqueles que, na presença de
Deus, desfrutam da Visão Beatífica. Esta última é uma meta
terminal, ao passo que a outra não é.
 
4
 
Há ainda outro erro sobre a felicidade que pode ser
encontrado na obra Utilitarismo, de John Stuart Mill. Ele vacila
entre identificar, em certas passagens, a felicidade com o
contentamento momentâneo, e, em outras, concebê-la como
verdadeiramente um fim último, a excelência a ser desejada ao
longo de toda uma vida humana. A sua falha em distinguir
entre bens reais e bens aparentes como objetos dos desejos
naturais e adquiridos (necessidades e vontades) aumenta a
confusão. Mas não é para este erro que pretendo chamar a
atenção agora.
Em vez disso, o erro de Mill para o qual pretendo apontar
consiste em nos colocar ante dois fins, cada qual sendo
supostamente um fim ou objetivo último, em que um deles,
contudo, deve estar subordinado ao outro. Por um lado, Mill
propõe como verdade auto-evidente que o objetivo último que
um indivíduo deve almejar é a sua própria felicidade. Por outro,
ele também propõe que cada um de nós deveria trabalhar pelo
que ele chama “a felicidade geral”, às vezes também
mencionada como o bem maior do maior número de pessoas.
Quando há algum conflito entre esses dois objetivos, o
último deve prevalecer sobre o primeiro. Deveríamos almejar a
felicidade geral mesmo que isto não tenha serventia para o
propósito de buscar por nós mesmos nossa própria felicidade.
E impossível que haja dois fins últimos em que um não
esteja ordenado ao outro; e se eles estão assim ordenados pela
subordinação de um ao outro, então não podem ambos ser fins
últimos.
O erro cometido por Mill poderia ter sido evitado se ele
tivesse conhecido e entendido a distinção entre o bonum
commune hominis (a felicidade ou bem último que é comum ou
o mesmo para todos os seres humanos) e o bonum commune
communitatis (o bem comum da comunidade organizada na
qual participam seus membros).
Porque cada ser humano é, enquanto pessoa, um fim a ser
servido, e não um meio a ser usado. A comunidade organizada,
em relação aos seus membros, é um meio, não um fim. Apenas
e unicamente a felicidade da pessoa individual é o fim último
desta vida. Ela é um bem comum no sentido de que é a mesma
para todos os seres humanos.
O bem que é comum e compartilhado por todos os seres
humanos como membros da sociedade (o bonum commune
communitatis) é. um fim a ser servido pela comunidade
organizada como um todo. Referimo-nos às vezes a este bem
comum como ao bem-estar geral. Participar no bem comum ou
no bem-estar geral provê aos membros da sociedade meios
que servem à busca da felicidade individual. Almejando
diretamente o bem comum ou o bem-estar geral, uma
sociedade boa e um governo justo também almejam
indiretamente a felicidade de todas as pessoas que constituem
a sociedade e estão sob o seu governo.
O bem comum ou bem-estar geral é apenas o objetivo
aproximado que uma boa sociedade e um governo justo
deveríam almejar. O objetivo alcançado serve como meio para
a realização do fim último da sociedade — a felicidade
individual de cada um dos membros da sociedade ou a
felicidade geral de todos.
O ponto crucial aqui é que os indivíduos não conseguem,
por eles mesmos, trabalhar diretamente para a felicidade geral
— a felicidade de todas as outras pessoas na sociedade em que
vivem. Eles só o conseguem indiretamente, cooperando com
outros para o bem comum ou bem-estar geral da comunidade
política, que é, em si mesma, um meio para a felicidade de
cada um e de todos os indivíduos.
 
5
 
Finalmente, chegamos a um erro sobre a felicidade que
pode ser encontrado na filosofia moral de Kant. O que tenho
em mente aqui não é o erro que se mostrou prevalente ao
longo de praticamente todo o pensamento moderno — o erro
de identificar a felicidade com o contentamento experimentado
quando nossos desejos, quaisquer que sejam, são satisfeitos.
Kant comete este erro e, como resultado, rejeita,
considerando-a meramente utilitária e pragmática, toda
filosofia moral que afirme tratar-se a felicidade de um fim
último, para cuja realização é preciso escolher os meios. Ao
fazer esta associação, ele se refere desdenhosamente à
“sinuosidade serpentina do utilitarismo”. Ele repudia toda ética
utilitária ou pragmática, que se ocupa de meios e fins, como
desprovida daquilo que é essencial a uma verdadeira filosofia
moral, a saber, deveres morais, obrigações que são
categóricas, não hipotéticas.
Como já tivemos ocasião de ver, é sem fundamento sua
acusação contra a filosofia moral que faça da felicidade,
propriamente concebida, um objetivo final. E possível lançá-la
contra a felicidade quando esta é identificada ao
contentamento, mas não o é quando a felicidade é concebida
como uma vida moralmente boa — um objetivo normativo, não
terminal. Encontramo-nos sob a égide do imperativo categórico
segundo o qual devemos almejar a excelência de uma vida
moralmente boa quando reconhecemos a verdade auto-
evidente de que devemos buscar tudo quanto nos seja
realmente bom.
Se abandonarmos a palavra “felicidade” e lidarmos, em vez
disso, simplesmente com a noção de uma vida moralmente
boa, poderemos identificar o erro tão dominante na filosofia
moral de Kant. Trata-se de um erro que pode também ser
encontrado na Antiguidade (no pensamento platônico e nos
ensinamentos dos estóicos), bem como nos escritos de outros
filósofos modernos.
O erro consiste em dizer, como Kant tão explicitamente o
diz, que, para o propósito de levar uma vida moralmente boa,
basta ter uma boa vontade ou uma vontade retamente
ordenada, que cumpra suas obrigações morais. A maneira de
Platão de dizer a mesma coisa pode ser encontrada no fim de
sua Apologia de Sócrates, onde o próprio Sócrates afirma que
“nenhum mal pode sobrevir a um homem bom nesta vida ou na
próxima”. Do mesmo modo, Epiteto e outros estóicos romanos
repetem reiteradamente que uma boa vontade é suficiente
para alcançar a felicidade.
O erro aqui se encontra na palavra “suficiente”. Não se pode
de maneira alguma duvidar de que ter virtudes morais (o que
equivale a ter uma vontade retamente ordenada à felicidade
como ao seu fim último e habitualmente disposta a escolher os
meios corretos e adequados para alcançá-la) é absolutamente
necessário para a condução de uma vida moralmente boa.
Necessário, sim, mas não por si suficiente. O outro ingrediente
— igualmente necessário, mas também não suficiente — é ser
abençoado por uma boa sorte.
Há muitos bens reais — a maioria deles bens externos, tais
como a riqueza material, um ambiente saudável, a liberdade
política, e assim por diante — que não podem ser usufruídos
pela maioria dos indivíduos virtuosos apenas por seus próprios
esforços, pois não está em seu poder consegui-lo. Obter estes
bens durante o processo de busca da felicidade depende de
circunstâncias afortunadas tais que estão para além da
capacidade de controle individual.
Privada destes bens advindos da boa fortuna, mesmo a vida
do mais moralmente virtuoso dos indivíduos pode arruinar-se.
Este pode ser uma pessoa moralmente boa e ainda assim ser
privado da felicidade de uma vida bem vivida por infortúnios
tais como a escravidão, a pobreza extrema, a doença
incapacitante, ou a perda dos amigos e das pessoas amadas.
Ser um ser humano moralmente bom não resulta
automaticamente na realização de uma vida moralmente boa.
Aristóteles resume este ponto crítico em sua simples
definição de felicidade como “toda uma vida, vivida de acordo
com a virtude moral, e acompanhada por uma moderada posse
de riquezas [e de todos os outros bens externos que se tornam
nossos pelas bênçãos da boa sorte]”. Coloquei entre colchetes
o que penso servir para explicar um ponto expresso de maneira
tão breve.
Não fossem as coisas assim, haveria pouca ou nenhuma
razão para todos os esforços históricos que foram feitos para
reformar nossas instituições políticas e econômicas por meio
da remoção de injustiças e melhoria das condições sob as quais
os seres humanos vivem. Se a felicidade pudesse ser
alcançada apenas pela virtude moral, então por que abolir a
escravidão, por que tentar aliviar a situação de pobreza
extrema em que muitos vivem, por que preocupar-se em
prover saúde pública, por que instituir o sufrágio universal para
que todo ser humano possa exercer a liberdade política tendo
uma voz em face de seu próprio governo?
Para estas questões, só pode haver uma resposta. As
reformas políticas e econômicas que ocorreram no curso da
História não fariam sentido se a virtude moral, por si mesma,
bastasse para a obtenção da felicidade e para levar uma boa
vida. Nada mais precisa ser dito, a meu ver, para persuadir
qualquer um da seriedade do erro cometido por Platão, pelos
estóicos, por Immanuel Kant, e por outros filósofos modernos.
CAPÍTULO VII
Liberdade de escolha
 
1
 
Quando as pessoas pensam em liberdade, o que elas
tendem a ter em mente é uma liberdade cuja existência não
pode ser nem nunca foi negada. Trata-se também de uma
liberdade que todos possuem e da qual ninguém pode ser
completamente privado.
E a liberdade que possuímos quando somos capazes de agir
conforme nos apraz ou desejamos. Possuímo-la em um alto
grau sob as mais variadas circunstâncias: na ausência de
coerção e restrição e na presença de meios facilitadores. Tais
obstáculos como a coerção limitam a extensão do quanto
podemos agir em conformidade com nossos desejos; e também
a limita a falta de meios facilitadores. Como disse R. H. Tawney,
o homem pobre não é livre para jantar no Ritz.
Entretanto, ninguém, nem mesmo um escravo acorrentado
ou um prisioneiro confinado em uma solitária, está totalmente
desprovido da liberdade para agir como deseje. Há sempre
alguma esfera de ação, conquanto mínima, em que pode agir
conforme lhe agrade.
Outra liberdade circunstancial é a liberdade política. Trata-se
de uma liberdade possuída por aqueles que são
suficientemente afortunados para viver em uma república, sob
um governo constitucional, e legitimamente eleito pelos
cidadãos através de um sufrágio que lhes permite ter uma voz
perante esse governo. Não se pode negar que tal liberdade
exista, se não para todos, ao menos para alguns seres
humanos, embora alguns tenham considerado indesejável ou
imerecida a concessão desta liberdade a todas as pessoas.
Os dois tipos remanescentes de liberdade não dependem
das circunstâncias externas, e ambos foram objetos de
controvérsias em que suas existências foram negadas.
Uma delas é a liberdade adquirida de ser capaz de querer
como se deve. Apenas através da virtude moral adquirida e da
sabedoria prática alguém chega a possuir essa liberdade. Trata-
se de uma liberdade em relação às paixões e aos desejos
sensíveis que nos levam a fazer o que não devemos, ou a não
fazer o que devemos. Quando, no conflito entre a razão e as
paixões, a razão domina, então somos capazes de querer como
devemos em conformidade à lei moral ou às regras normativas
de conduta.
Obviamente, aqueles que negam a existência de quaisquer
valores morais objetivos, deveres válidos ou prescrições
normativas, não podem senão negar, por conseguinte, a
existência da liberdade moral assim descrita. E mesmo aqueles
que afirmam a sua existência não a consideram universal.
Enquanto a liberdade circunstancial para agir conforme se
deseja é, em alguma medida, apanágio universal, inclusive
daqueles que se encontram sob as mais desfavoráveis
circunstâncias, as pessoas ou possuem a liberdade moral ou
esta lhes falta inteiramente; ou bem elas adquiriram ou bem
não adquiriram a virtude moral e a sabedoria prática
necessárias ao exercício desta liberdade.
Somos deixados, por fim, com um quarto tipo de liberdade
que foi objeto da mais extensa e intrincada controvérsia ao
longo dos séculos. Sua existência foi afirmada por um grande
número de filósofos e igualmente negada por muitos outros, a
maioria deles modernos, e também por uma série de cientistas
modernos.
Para aqueles que afirmam a sua existência, todos a
possuem, pois se considera que seja inerente à natureza
humana: trata-se de uma liberdade natural, nem afetada pelas
circunstâncias nem dependente de habilidades ou virtudes
adquiridas.
Esta liberdade natural é a liberdade da vontade em seus
atos de escolha. A liberdade de escolha consiste em ser
sempre capaz de escolher de outra maneira, não importa o que
já tenha sido escolhido em alguma circunstância concreta.
Contrastada com a liberdade de agir conforme os desejos, ela
pode ser descrita como a liberdade de querer conforme os
desejos.
Quando declaramos que a liberdade é um direito humano
natural, devemos ter em mente as duas liberdades
circunstanciais — a liberdade de agir como se deseja (dentro
da circunscrição de leis justas) e a liberdade política que vem
com a cidadania e o sufrágio. Não faz nenhum sentido afirmar
que a liberdade moral, que só pode ser possuída por meio da
aquisição de virtudes morais e sabedoria prática, seja um
direito; bem como não faz o menor sentido afirmar a existência
de um direito à liberdade de escolha, pois, se esta existe, é um
dom natural possuído por todos.
Contudo, a menos que a liberdade de escolha de fato exista,
é difícil compreender o fundamento do nosso direito a essas
outras liberdades. Se não temos liberdade de escolha, como
justificar nosso direito de agir conforme desejamos ou de
exercer nossa voz em face do governo?
Estas considerações, e há outras sobre as quais nos
debruçaremos em seguida, tornam a controvérsia relativa à
existência da liberdade de escolha uma das que mais
consequências a longo prazo tiveram.
 
2
 
Este capítulo difere de todos os anteriores. Nos outros
capítulos, lidamos com concepções filosóficas errôneas cujos
erros ou inadequações podiam ser apontados e corrigidos. Isto
não pode ser feito aqui.
Com conhecimento de todos os aspectos interiores e
exteriores da controvérsia, não posso mostrar que os
defensores do livre-arbítrio estão certos e que os deterministas
que a eles se opõem estão errados. A questão aqui não é tanto
um erro filosófico demonstrável quanto uma incompreensão do
próprio problema.
Esta incompreensão se encontra principalmente do lado dos
filósofos e cientistas modernos que são deterministas. O que
estou dizendo aqui não é que a negação que eles fazem do
livre-arbítrio seja um erro demonstrável, mas que, em vez
disso, eles não compreendem corretamente o que negaram —
isto é, as premissas sobre as quais uma afirmação do livre-
arbítrio repousa.
Antes do fim do século xix, os deterministas sustentaram
que todos os fenômenos da natureza são governados por leis
causais cujos efeitos são necessariamente engendrados a
partir de suas causas. Nada acontece por acaso, no sentido em
que se diz que um “evento casual”, que se deu por força do
acaso, é algo incausado. Na visão destes deterministas, uma
livre escolha intrinsecamente imprevisível é exatamente como
um evento casual e, portanto, não pode ocorrer dentro de um
domínio natural. Embora seja verdadeiro que uma escolha livre
e um evento casual sejam ambos imprevisíveis com certeza e
precisão, não é verdadeiro que ambos sejam incausados.
Começando no início do século XIX e tornando-se mais
significante em nosso próprio tempo, a ciência acrescentou leis
estatísticas ou formulações probabilísticas às leis causais, e,
assim procedendo, introduziu aspectos de indeterminação no
reino dos fenômenos naturais.
Tal indeterminação, contudo, não se reduz à ausência de
causalidade própria do acaso. Um punhado de filósofos e de
cientistas ganhadores do Prêmio Nobel avançaram a suposição
segundo a qual tal indeterminação poderia ser uma ante-sala
para o livre-arbítrio nos domínios da natureza; mas mentes
mais sóbrias corretamente descartaram a suposição. A
indeterminação causal associada a certas formulações
científicas, especialmente aquelas da mecânica quântica, não
tem simplesmente nenhuma semelhança com a
indeterminação causai própria ao livre-arbítrio.
O que os deterministas que negam a liberdade de escolha
com base nos argumentos acima colocados falham em
compreender é que os defensores do livre-arbítrio situam a
ação da vontade fora do domínio dos fenômenos físicos
estudados pela ciência. Se a teoria destes defensores
concebesse o livre-arbítrio como um evento físico no mesmo
sentido em que a ação dos nossos sentidos e a moção das
nossas paixões são eventos físicos, então eles teriam de
aceitar os argumentos dos deterministas como bases
adequadas à negação desta faculdade.
Mas não é esse o caso. A vontade, como a concebem, é um
apetite — uma faculdade do desejo e da decisão — intelectivo,
não sensitivo. Em sua visão, a mente humana, consistindo
tanto do intelecto quanto da vontade, deve ser formalmente
distinta dos sentidos, da memória, da imaginação e das
paixões. Estas últimas potências podem operar conforme os
mesmos princípios e leis que governam todos os outros
fenômenos do mundo físico, mas o intelecto e a vontade sendo
imateriais, não o podem. Eles são regidos por leis próprias.
Os atos do intelecto são ou necessários ou arbitrários. Eles
são necessários quando são atos de genuíno conhecimento,
pois o intelecto não pode negar uma verdade auto-evidente,
nem pode negar qualquer proposição que seja sustentada por
evidências e razões que a coloquem para além de uma dúvida
razoável ou lhe dêem predomínio sobre todas as opiniões
contrárias.
Nos casos acima, todos os juízos são necessários. Apenas
quando confrontado com meras opiniões, não sustentadas por
evidências e razões, seu juízo é arbitrário — um ato do
intelecto movido antes por uma escolha livre da parte da
vontade do que por uma verdade que se lhe apresente. Em
nenhum dos casos, porém, a ação do intelecto é incausada ou
um evento casual.
Como os atos do intelecto, alguns atos da vontade são
necessários e alguns envolvem a liberdade de escolha. O único
objeto que torna necessário o ato de vontade é o bem
completo ou total. Na presença do bem completo ou total, a
vontade não pode desviar-se dele para querer qualquer outra
coisa. Então, quando a felicidade é compreendida como o
totum bonum — a soma de todos os bens reais —, ela atrai a
vontade necessariamente. Não podemos querer não buscar a
felicidade. O nosso querer a felicidade como nosso fim último
não é um ato incausado.
Todos os outros bens são bens parciais. Cada um é um bem
entre outros. Na presença de tais bens como objetos de desejo,
o ato da vontade não é necessário, o que equivale a dizer que
a escolha de um bem parcial em detrimento de outro é, por
parte da vontade, uma escolha livre. Tal indeterminação da
vontade é totalmente diferente da indeterminação causal
encontrada na mecânica quântica. Mas, em ambos os casos, a
indeterminação causai não se reduz ao acaso — a completa
negação da causalidade.
As teorias da liberdade da vontade e da liberdade de
escolha são muitas e complicadas. Não fingirei que os pontos
brevemente colocados anteriormente fazem justiça à variedade
e complexidade de tais teorias. Entretanto, alego que, em
todos eles, a afirmação da liberdade de escolha repousa nos
apontamentos feitos — a imaterialidade da vontade; a
diferença entre o modo como seus atos são causados e a
operação das causas no reino dos fenômenos físicos; e, acima
de tudo, a insistência em que a indeterminação da vontade não
reduz uma livre escolha a um evento casual.5
O que acontece por acaso, segundo os deterministas, é
totalmente imprevisível; e porquanto nada, segundo eles, é
totalmente imprevisível, nada acontece por acaso. Embora os
eventos causalmente indeterminados no reino dos fenômenos
quânticos e os atos causalmente indeterminados da escolha
livre sejam ambos intrinsecamente imprevisíveis (no sentido de
não ser previsível com certeza apropriada à necessidade dos
efeitos decorrentes de suas causas), eles não são totalmente
imprevisíveis. A previsibilidade é possível em ambos os casos
com variados graus de probabilidade. A possibilidade de
previsões prováveis descarta a identificação de tal
indeterminação causal com o acaso.
A incompreensão dos deterministas quanto ao que está
envolvido na liberdade de escolha torna ilusória a controvérsia
histórica sobre esta matéria. São problemas diferentes.
Os deterministas não argumentam contra a verdade das
premissas sobre as quais repousa a afirmação do livre- -
arbítrio, mas rejeitam a escolha livre como algo que ela não é
(um evento casual) e como algo que, se não por acaso, não
pode ocorrer dentro do domínio dos fenômenos físicos,
considerado por eles a totalidade exaustiva do mundo real.
Os defensores do livre-arbítrio não argumentam a favor das
premissas sobre as quais repousa sua afirmação da liberdade
de escolha. Eles não tentam mostrar exitosamente que o
domínio dos fenômenos físicos não corresponde à totalidade do
real ou como a causalidade operante no domínio imaterial
difere da causalidade operante no mundo físico. A única coisa
sobre a qual eles estão suficientemente certos, e na qual
corretamente insistem, é que o livre-arbítrio, tal como o
concebem, não deve ser identificado com o acaso. E este é o
único ponto que os deterministas teimosamente ignoram.
Embora ambos os lados falhem em lidar um com o outro, a
falha de compreensão principal pertence aos deterministas.
3
 
A controvérsia entre os deterministas e os defensores do
livre-arbítrio vai além da mera negação ou afirmação da
liberdade. Ela se preocupa com questões tais como se a
responsabilidade moral, o louvor e a culpa, a justiça das
premiações e punições, dependem ou não da liberdade de
escolha.
David Hume estava certamente correto quando, tendo
primeiramente identificado livre-arbítrio com mero acaso,
concluiu que a responsabilidade moral era incompatível com a
liberdade de escolha. O que alguém faz por acaso não lhe pode
ser imputado como de sua responsabilidade, não lhe pode ser
louvado ou atribuído como culpa, nem premiado ou punido. O
erro de Hume, é claro, estava na identificação do livre-arbítrio
com o acaso.
Nos tempos recentes, os deterministas se dividiram em dois
grupos — o dos mitigados e o dos radicais. Os deterministas
mitigados sustentam a visão segundo a qual a liberdade
circunstancial de ser capaz de agir conforme se deseja fornece
bases suficientes para atribuir responsabilidade moral àqueles
que agem com tal liberdade. Eles podem ser louvados e
culpabilizados, premiados e punidos pelo que fazem, embora
este agir não tenha sido livremente escolhido de sua parte,
porquanto não tenham podido escolher de outra maneira.
Eles foram determinados por todo o seu passado, por tudo
quanto veio a entrar na constituição deles mesmos, para agir
como agiram. Contudo, sua ação, procedendo deles mesmos,
tal como então eles se encontravam constituídos, era a ação
deles e, por isso, poderiam ser responsabilizados por ela.
Os deterministas radicais discordam. Embora neguem a
liberdade de escolha, concedem que, sem ela, ninguém
poderia ser moralmente responsabilizado pelo que faz;
ninguém poderia ser louvado ou culpabilizado, premiado ou
punido.
Contra os deterministas mitigados, os defensores do livre-
arbítrio sustentam que tal liberdade é indispensável a todo
aspecto da vida moral. Como se poderia responsabilizar uma
pessoa por um ato que ela não poderia ter escolhido realizar —
um ato que foi o produto de fatores em sua atual condição
derivados de todo o seu passado? Por que se deveria louvar ou
culpabilizar uma pessoa, ou premiá-la ou puni-la, por atos que
não foram livremente escolhidos, atos que poderiam ter sido
diferentes se ela tivesse podido ter a chance de escolher?
A punição para atos criminosos talvez tenha alguma
justificativa pragmática ou utilitária. Pode servir ao propósito
de reabilitar socialmente o criminoso e de demover outros
tantos de cometer o mesmo crime, assim protegendo a
sociedade no futuro de tais eventuais depredações. Mas como
pode uma punição ser retributivamente justa se o criminoso
não é moralmente responsável pelo crime que praticou,
supondo-se que a prática deste crime não foi uma escolha livre
de sua parte?
Por estas razões, segundo meu juízo, a posição assumida
pelos defensores do livre-arbítrio é muito mais poderosa do que
a assumida pelos deterministas mitigados. Há ainda outras
considerações a seu favor.
Uma delas é a resolução da polêmica entre aqueles que
consideram os valores morais e os juízos prescritivos como
questões de mera opinião e aqueles que consideram a filosofia
moral como conhecimento genuíno. Se esta última visão
prevalecer, a virtude moral — a direção habitual da vontade
para o reto fim e a disposição habitual da vontade para
escolher os meios corretos para alcançar este fim — será um
ingrediente indispensável (necessário, mas não suficiente) na
busca da felicidade.
Que mérito se poderia atribuir à virtude moral se os atos
que formam tais tendências e disposições habituais não fossem
atos de livre escolha da parte do indivíduo que esteve
engajado no processo de adquirir virtude moral? Nesta
concepção, pessoas de caráter moral vicioso teriam seus
caracteres formados de uma maneira não muito diferente
daquela pela qual o caráter de pessoas normalmente virtuosas
foi formado — por meio de atos inteiramente determinados, e
de outro modo não poderia ter sido se fosse pela liberdade de
escolha.
A outra consideração diz respeito a controvérsias
envolvendo ciência e filosofia — controvérsias que versam
sobre sérios problemas em relação ao que é verdadeiro e o que
é falso, ou ao que é mais ou menos verdadeiro. O que tais
controvérsias acrescentam se não podem ser resolvidas
apelando às melhores evidências e melhores razões?
Certamente, elas não podem ser resolvidas se as melhores
evidências e as melhores razões não constrangem os intelectos
das partes envolvidas na questão. A necessidade gerada por tal
constrangimento é diferente da determinação causai de um
juízo científico ou filosófico operada por fatores alheios ao
passado do cientista ou filósofo.
CAPÍTULO VIII
Natureza humana
 
1
É geralmente aceito nos dias de hoje que a espécie Homo
sapiens é mais antiga do que já se pensou, tendo emergido
dentro da família dos hominídeos há aproximadamente alguma
data entre 35 mil e 50 mil anos. Também é geralmente aceito
que todos os seres humanos vivos hoje, e todos que viveram
desde que o Homo sapiens pela primeira vez apareceu sobre a
terra, são membros de uma única e mesma espécie.
Mesmo assim, no século XIX, a unidade essencial de todos
os seres humanos, em virtude de sua participação na mesma
natureza específica, foi amplamente posta em questão. O
questionamento partiu de antropólogos culturais, de
sociólogos, de outros cientistas comportamentais, e mesmo de
historiadores.
O questionamento, equivalente à negação da natureza
humana, radica-se em um erro profundo, mas não um erro
filosófico — ao menos em sua origem. Contudo, deve-se
acrescentar que os filósofos não se esforçaram por corrigir este
erro e que, para alguns deles — os existencialistas —, acabou
se tornando o erro fundamental em seu pensamento. Merleau-
Ponty, por exemplo, declarou que “a natureza do homem é não
possuir uma natureza”.
Acabei de dizer que a negação da natureza humana é um
erro profundo — um erro com consequências extremamente
sérias para a filosofia, especialmente a filosofia moral.
Para que isso faça maior sentido, basta darmos uma olhada
novamente no capítulo V, sobre os valores morais. Ali, vimos
que a distinção entre desejos adquiridos e desejos naturais —
as necessidades inerentes à natureza humana — nos levou à
distinção entre bens aparentes e bens reais, o que, por sua vez,
nos ajudou a estabelecer a verdade dos juízos prescritivos e
lançou as bases para o nosso entendimento dos direitos
naturais — os assim chamados direitos humanos.
Se a filosofia moral deve ter uma poderosa base factual,
esta deve ser encontrada nos fatos sobre a natureza humana e
em nenhuma outra parte. Se esta base nos for negada por
meio de uma negação da natureza humana, a única alternativa
restante é a do racionalismo extremado de Immanuel Kant, que
procede sem qualquer consideração dos fatos atinentes à vida
humana e sem nenhuma preocupação com a variedade de
casos aos quais as prescrições morais devem ser aplicadas de
um modo flexível em vez de rigoroso.
Neste ponto, os leitores podem pedir por uma pausa e uma
explicação. O que pode significar a negação da natureza
humana? Somos todos seres humanos, não somos? Deve ser
extremamente raro, se é que já aconteceu alguma vez, que
alguém tenha alguma dúvida sobre se um determinado
espécime em exame seja humano ou não.
Em assim sendo, os critérios que empregamos para
determinar se estamos lidando com um ser humano ou não
implicam alguma compreensão de nossa parte quanto aos
traços comuns pertencentes a todos os membros da espécie
humana? Esses traços comuns constituem a natureza que é a
mesma em todos os membros da espécie. E isto que queremos
dizer com o termo “natureza humana”, não é?
 
2
 
Deixe-me tentar explicar agora o que é que leva à negação
da natureza humana.
Primeiramente, consideremos outras espécies animais. Se
investigássemos cada uma delas tão cuidadosamente quanto
possível, descobriríamos que os membros da mesma espécie,
vivendo em seus habitats naturais, manifestam um notável
grau de similaridade. Talvez descobríssemos diferenças de
tamanho, peso, forma, ou coloração entre os indivíduos
examinados. E talvez até mesmo desvios aqui e ali em relação
ao que se teria tornado evidente como o comportamento
normal daquela espécie. Mas, de um modo geral, ficaríamos
impressionados com as semelhanças reinantes nas espécies
examinadas.
A semelhança dominante de todos os membros da espécie
nos levaria a descartar como relativamente insignificantes as
diferenças encontradas, a maioria das quais poderia ser
explicada como o resultado de condições ambientais
levemente diferentes. Esta semelhança dominante constituiria
a natureza da espécie em questão.
Consideremos agora a espécie humana. Ela habita todo o
globo. Seus membros vivem em todos os hemisférios e regiões,
sob as condições ambientais mais amplamente variadas.
Suponhamos que tivéssemos tempo de visitar as diversas
populações humanas, onde quer que tenham existido — todas
elas. E que estas visitas não fossem meramente casuais,
passageiras, mas do tipo em que pudéssemos conviver com
cada uma dessas populações por um tempo e estudá-las desde
perto.
Retornaríamos de nossa viagem com impressões
exatamente opostas àquelas obtidas em nossa investigação
das populações pertencentes a uma ou outra espécie animal.
Na investigação das espécies animais, ficaríamos
impressionados com a esmagadora semelhança reinante entre
os membros de cada espécie. Já na investigação das diversas
populações humanas, descobriríamos que, entre umas e
outras, as diferenças prevalecem sobre as semelhanças.
É claro que os seres humanos, como os outros animais, têm
de comer, beber e dormir. Todos têm certos traços biológicos
em comum. Não pode haver dúvidas de que eles têm a
natureza de animais. Mas quando chegamos aos traços
propriamente humanos, quão profundamente uma população
humana diferirá da outra!
Elas diferirão no idioma em que falam, e teremos alguma
dificuldade em dar conta de modo preciso do vasto número de
idiomas que teremos descoberto.
Elas diferirão no seu vestuário, nos seus adornos, na sua
culinária, nos seus usos e costumes, na organização de suas
famílias, nas instituições de suas sociedades, em suas crenças,
em seus padrões de conduta, em suas mentalidades, em quase
tudo quanto integre os estilos de vida que elas levam. Estas
diferenças serão tantas e tão variadas que talvez tendamos —
a não ser que tenhamos sido prevenidos contra esse tipo de
conduta — a achar que elas não são todas pertencentes a
membros da mesma espécie.
De todo modo, não podemos evitar estar persuadidos de
que, no caso humano, a pertença à mesma espécie não
carrega consigo a semelhança dominante descoberta no caso
das outras espécies animais. Bem ao contrário, as diferenças
entre uma raça humana e outra, entre uma variedade racial e
outra, entre um grupo étnico e outro, pareceriam ser
dominantes.
É isso que talvez nos faça chegar à conclusão de que não há
nenhuma natureza humana no mesmo sentido em que se diz
que certa natureza constante pode ser atribuída às demais
espécies animais. E mesmo que não tenhamos nós mesmos
alcançado tal conclusão, entendemos sua plausibilidade.
Diferente da maior parte dos membros das outras espécies
animais, os da espécie humana parecem ter formado
subgrupos que se diferenciam uns dos outros. Cada subgrupo
tem seu caráter distintivo. As diferenças que separam um
subgrupo do outro são tão numerosas e profundas que nos
desafiam a afirmar o que neles há de permanente — se é que,
de fato, há algo — que possa ser considerado uma natureza
humana comum a todos.
Que fique claro que a negação da natureza humana
repousa, em última análise, no impressionante contraste entre
a semelhança dominante, prevalente entre os membros de
outras espécies animais, e a diferenciação aparentemente
dominante, prevalente entre os subgrupos da espécie humana.
Se uma natureza específica é uma natureza comum aos
membros da espécie, então, obviamente, outras espécies
animais teriam, cada uma, a sua própria natureza específica.
Mas a espécie humana não parece ter, como o têm as espécies
animais, uma natureza específica própria.
Mesmo se admitíssemos, como é de nossa obrigação, que
todos os membros da espécie humana têm efetivamente certos
traços em comum, principalmente atributos biológicos ou
características compartilhadas com outras espécies de animais
superiores, estes traços parecem estar subordinados a todas as
diferenças comportamentais que separam um subgrupo
humano do outro. Longe de compartilhar os mesmos atributos
ou características comportamentais, tais grupos se diferenciam
uns dos outros por estes aspectos.
 
3
 
Vista de certa maneira, a negação da natureza humana está
correta. Os membros da espécie humana não têm uma
natureza comum ou específica no mesmo sentido em que os
membros de outras espécies animais a têm. Esta é, a
propósito, uma das mais notáveis diferenças entre o homem e
os outros animais — uma diferença que tende a corroborar a
conclusão segundo a qual aquele difere destes em tipo, não em
grau.
Mas admitir que os membros da espécie humana não
tenham uma natureza comum ou específica no mesmo sentido
em que a têm os membros das outras espécies animais não é
de modo algum admitir que eles não tenham nenhuma
natureza específica. Uma alternativa permanece aberta: a
saber, a de que os membros da espécie humana têm a mesma
natureza em um sentido bem diferente.
Em que sentido, então, se pode dizer que há uma natureza
humana, uma natureza específica que seja comum a todos os
membros da espécie? A resposta pode ser dada em uma única
palavra: potências. A natureza humana é constituída por
potências, que são as propriedades específicas comuns a todos
os membros da espécie.
E da essência de uma potência ser capaz de uma ampla
variedade de diferentes modos de atualização. Assim, por
exemplo, a potência humana para articular sintaticamente o
discurso é atualizada de mil maneiras diferentes nos diversos
idiomas humanos. Tendo esta potência, para uma criança
humana que tenha nascido neste ou naquele outro subgrupo,
cada um dos quais falando um idioma próprio, quando chegar o
momento de ela aprender a falar, aprenderá o idioma próprio
do seu subgrupo e não outro. As diferenças entre todos os
idiomas humanos são superficiais se comparadas com a
potência para aprender e falar qualquer idioma que já está
presente na criança desde o momento do seu nascimento.
O que acabou de ser dito de apenas uma potência humana
aplica-se do mesmo modo a todas as demais, que não são
senão os traços comuns e específicos que caracterizam o ser
humano. Cada uma delas subjaz a todas as diferenças que,
entre os diversos subgrupos humanos, surgem como o
resultado dos muitos modos diferentes pelos quais a mesma
potência pode ser atualizada. Reconhecer isto equivale a
reconhecer a superficialidade das diferenças que separam um
subgrupo humano do outro, se comparadas estas com aquilo
que reúne todos os seres humanos como membros da mesma
espécie e como portadores da mesma natureza específica.
Em outras espécies animais, aquilo que une os seus
membros e constitui sua natureza comum não são potências,
mas antes características bem determinadas, tanto
comportamentais quanto anatômicas e fisiológicas. Isso explica
a impressão decorrente do estudo dessas outras espécies
animais — a impressão de que há uma semelhança dominante
entre seus membros.
Voltando nossa atenção à espécie humana, a impressão
oposta de que são as diferenças que predominam entre os
diversos subgrupos humanos também pode ser explicada. A
explicação para isso reside em que, no concernente às
características comportamentais, a natureza comum
compartilhada por todos os subgrupos é inteiramente
composta por potências próprias da espécie, as quais são
atualizadas pelos subgrupos de todas as maneiras diferentes
que possamos descobrir em um estudo global da humanidade.
Um recém-chegado às ciências comportamentais, à
sociobiologia, tentou mostrar que tanto o comportamento
animal quanto o humano é, em larga medida, geneticamente
determinado. No que concerne à espécie humana, a pequena
verdade contida na sociobiologia se aplica apenas à
determinação genética das potências humanas, não ao seu
desenvolvimento comportamental.
O erro que os antropólogos culturais, os sociólogos, e outros
cientistas comportamentais cometem quando negam a
existência da natureza humana tem sua raiz na falha deles em
compreender que a natureza específica no caso da espécie
humana é radicalmente diferente da natureza específica no
caso das outras espécies animais.
Deixem-me repetir uma vez mais que diferença é essa. No
caso das outras espécies animais, a natureza específica
comum a todos os membros da espécie é constituída
principalmente por características ou atributos bem
determinados. No caso da espécie humana, ela é constituída
por características ou atributos determináveis, e não
totalmente determinados. Uma potência inata é precisamente
isso — algo determinável, portanto não totalmente
determinado, e determinável em uma ampla variedade de
modos.
O homem é, em grande medida, uma criatura que se faz a si
mesma. Dada uma gama de potências no momento de seu
nascimento, o homem se torna o que se torna por meio do
modo como livremente escolhe desenvolver essas potências
através dos hábitos que elas formam.
Foi isso, então, que diferenciou entre si os diversos
subgrupos humanos que vieram a existir. Uma vez existentes,
eles passaram a influenciar o modo como aqueles que nascem
nesses subgrupos vieram a desenvolver as características
adquiridas que diferenciam um subgrupo do outro. Estas
características adquiridas, especialmente as comportamentais,
são o resultado da aculturação; ou, ainda mais em geral, o
resultado do modo pelo qual aqueles que nascem num ou
noutro grupo são educados.
Nenhum outro animal é uma criatura que se faz a si mesma
no sentido acima indicado. Ao contrário, outros animais têm
naturezas determinadas, naturezas geneticamente
determinadas de tal maneira que não admitem, enquanto
amadurecem, uma ampla variedade de modos distintos de se
desenvolver.
A natureza humana também é geneticamente determinada;
mas, porque a determinação genética consiste, em termos
comportamentais, em uma doação inata de potências que são
determináveis de diversos modos, os seres humanos diferem
notavelmente um do outro à medida que amadurecem.
Embora tenham se originado primeiro, a maioria daquelas
diferenças é devida a diferenças de aculturação, a diferenças
de educação. Confundir a natureza com o ambiente (cultural ou
físico), o meio ou os modos que ela assume é um erro filosófico
de primeira ordem. Este erro filosófico subjaz à negação da
natureza humana. Os filósofos contemporâneos deveríam tê-lo
apontado aos seus colegas acadêmicos da área das ciências
comportamentais. A persistência nesta negação parece indicar
que eles falharam neste propósito.
 
4
 
A correção do erro filosófico que acabou de ser mencionado
é da maior importância, por causa das consequências
decorrentes desta correção.
O mais importante de tudo é superar o persistente
preconceito — racista, sexista, elitista e até étnico — de que
uma porção ou subgrupo da humanidade é distintamente
inferior em natureza a outro. A inferioridade pode existir, mas
não devida à natureza, e sim à organização social.
Quando, durante a maioria dos séculos da História
registrada, a metade feminina da população foi criada —
ensinada e tratada — como inferior à metade masculina, esta
concepção a fez aparentemente inferior quando ela
amadureceu. Se essa aparente inferioridade tivesse sido
corretamente atribuída à sua cultura, isto teria indicado
instantaneamente como ela poderia ser eliminada. Mas ao ser
incorretamente atribuído à natureza no momento do
nascimento, ela é aceita como algo irremediável.
O que foi dito em relação ao preconceito sexista
concernente à desigualdade entre homens e mulheres aplica-
se igualmente a todos os demais preconceitos racistas e
étnicos sobre a desigualdade humanas ainda existentes. Todas
essas aparentes desigualdades são acidentais. Nenhuma é
uma desigualdade natural entre um subgrupo humano e outro.
Nos séculos anteriores a este, a visão elitista assumida
pelas classes mais abastadas sobre a inferioridade da classe
trabalhadora fundava-se, similarmente, em graves deficiências
na educação dos trabalhadores, os quais, por necessidade e
sem escolarização, começavam a trabalhar desde muito cedo
na vida, frequentemente adotando uma jornada de trabalho de
quatorze horas por dia, durante sete dias por semana.
Thomas Jefferson estava certo em declarar que todos os
seres humanos foram criados (ou, se você quiser, constituídos
pela natureza) iguais. Eles também são, em termos de suas
diferenças individuais, desiguais nos variados graus em que
possuem as potências específicas comuns a todos.
Estas desigualdades individuais, quando reconhecidas como
subordinadas à igualdade básica de todos os seres humanos
em sua humanidade comum ou natureza específica, não geram
dificuldades que devam ser superadas ou erradicadas para
garantir a justiça social. Mas, quando as desigualdades entre os
subgrupos humanos, inteiramente devidas à aculturações, são
tidas como desigualdades naturais, este erro deve ser
superado e erradicado em nome da justiça social.
A correção do erro que confunde natureza com seus modos
conduz a certas conclusões que muitos leitores podem achar
desconcertantes. Todas as diferenças culturais e psicofísicas
que separam um subgrupo humano do outro são superficiais se
comparadas com a natureza humana comum subjacente que
unifica os membros da humanidade.
Embora aquilo que em todos nós é idêntico seja mais
importante do que aquilo que é diferente, temos uma
tendência inveterada a enfatizar este último em detrimento do
primeiro. Achamos difícil acreditar que a mente humana seja a
mesma em toda parte porque falhamos em perceber que todas
as diferenças, por abissais que nos pareçam, entre a mente do
homem ocidental e a daqueles nascidos e criados nas diversas
culturas orientais são, em última análise, superficiais —
inteiramente o resultado de diferentes processos de educação.
Se uma comunidade cultural mundial em algum momento
vier a existir, ela será baseada no pluralismo ou diversidade
cultural com respeito a tudo quanto seja acidental na vida
humana — coisas tais como culinária, vestuário, modos,
costumes, etc. Estas são as coisas que variam de um subgrupo
humano para o outro em conformidade ao modo como cada um
deles educa os seus membros.
Em contraste, os elementos comuns que unirão todos os
seres humanos em uma única comunidade cultural estarão
relacionados a coisas essenciais como a verdade científica e
filosófica, os valores morais e os direitos humanos, a
compreensão que os homens têm de si mesmos, e a sabedoria,
que é o bem maior da mente humana. Quando isto acontecer,
teremos enfim superado a ilusão cultural de que há uma mente
ocidental e uma mente oriental, uma mente européia e uma
mente africana, ou uma mente civilizada e uma mente
primitiva. Há apenas uma única mente humana, que é sempre
a mesma em todos os seres humanos.
CAPÍTULO IX
Sociedade humana
 
1
Uma das potências inerentes ao homem — logo, uma de
suas propensões inatas — é associar-se com seus confrades. O
homem é, por natureza, um animal social e que precisa viver
em sociedade.
Outra potência inerente é a capacidade de engajar-se no
governo, e isso também dá origem a uma tendência inata e a
uma necessidade natural.
Outros animais são gregários, formam elaboradas
sociedades, como os insetos sociais (abelhas, vespas, formigas
e cupins), ou pastoreiam juntos de uma ou outra maneira,
como os lobos em alcatéias e os peixes em cardumes. O
homem difere deles em dois aspectos. Um é a maneira pela
qual os membros da espécie humana formam sociedades. O
outro reside no fato de que o homem, de todos os animais
sociais, é o único que se organiza politicamente: ele é o único
que cria leis, que forma uma sociedade civil, um estado ou uma
comunidade política, e que estabelece instituições políticas.
Há ainda uma última diferença fundamental entre a vida
social da espécie humana e a dos outros animais gregários. Os
seres humanos vivem juntos e se associam uns aos outros de
variadas formas: em famílias; em tribos ou vilas; em estados ou
sociedades civis; e, além de todas essas formas, eles se
associam em numerosos subgrupos organizados para servir a
um propósito ou outro. Nenhum desses modos de associação
existe em quaisquer outras espécies de animais gregários.
Dizer que o comportamento gregário do homem é
exatamente igual ao dos outros animais, controlado pelos
mesmos fatores e com o mesmo modo de funcionamento, seria
delirante em face dos mais óbvios fatos. Mesmo assim, não
podemos evitar encarar o problema que se impõe a partir do
reconhecimento do fato de que apenas alguns animais são
gregários ou sociais por natureza.
O que é comum ao homem e aos demais animais sociais é
que eles são naturalmente gregários — a propensão para se
associar já está arraigada neles desde o nascimento. Mas
seriam eles naturalmente gregários exatamente no mesmo
sentido da palavra “naturalmente”?
Se voltarmos nossa atenção por um momento para as
colméias elaboradamente organizadas, as colônias ou os
monturos de terra onde habitam os insetos sociais
descobriremos que o modo ou plano de organização de sua
vida social será exatamente o mesmo para os insetos de uma
determinada espécie, geração após geração, por tanto tempo
quanto dure a espécie. O modo pelo qual os membros de uma
espécie em particular de insetos se associam uns com os
outros, a estrutura de sua organização social, o padrão do seu
comportamento social, é geneticamente determinado por
instintos dos quais aquela espécie em particular está dotada.
O que é tão obviamente verdadeiro em relação aos insetos
sociais é igualmente verdadeiro, embora talvez não tão
obviamente, em relação aos grupamentos sociais e
comportamento dos animais gregários superiores. A sua
gregariedade é natural no sentido de ser geneticamente
determinada para todas as gerações de uma determinada
espécie enquanto ela durar.
Já tivemos ocasião de observar no capítulo anterior que, em
acentuado contraste com todas as outras espécies animais, os
membros da espécie humana se dividem em uma miríade de
subgrupos caracterizados pela mais ampla variedade de
atributos ou traços distintivos. Foi este fato que levou a dúvidas
e negações em relação à existência de uma natureza humana
comum a todos.
O mesmo tipo de fato levanta uma questão sobre a
naturalidade das sociedades humanas. Onde quer que, neste
planeta, se encontrem seres humanos vivendo em famílias,
organizações tribais, e sociedades civis ou estados, tais
sociedades domésticas, tais tribos ou vilas, e tais sociedades
civis ou estados estarão estruturados, organizados e operados
das mais variadas maneiras possíveis.
Dificilmente elas podem, portanto, ser geneticamente
determinadas por dados instintivos. Fosse este o caso, elas
deveriam todas ser a mesma, porquanto, o que quer que seja
um dado instintivo, está presente exatamente do mesmo modo
em todos os membros de uma determinada espécie.
Se as sociedades humanas não são naturais em sua origem,
como então elas vieram a existir? A resposta usualmente dada
é: por convenção; ou, em outras palavras, pela concordância
voluntária dos indivíduos em formar uma associação em vistas
deste ou daquele propósito. Este é, certamente, o modo pelo
qual muitas associações são formadas — clubes, hospitais,
universidades, empresas, associações profissionais,
companhias, corporações, e assim por diante. Elas são todas
voluntariamente instituídas, formadas e organizadas por
convenções acordadas pelas partes associadas.
Ainda assim, tanto na Antiguidade quanto na Idade Média as
três principais formas de associações humanas — a família, a
tribo ou vila, e a sociedade civil ou o estado — eram todas
consideradas naturais. Apenas nos tempos modernos,
começando com O Leviatã de Thomas Hobbes e culminando
n’O Contrato social de Jean-Jacques Rousseau, a sociedade civil
ou estado foi considerada totalmente convencional, não mais
em qualquer sentido natural, como pode ser a família humana
e como são as associações formadas pelos outros animais
gregários.
 
2
 
O mais importante dos erros filosóficos modernos sobre a
sociedade pode ser encontrado na teoria do contrato social
como sendo a origem convencional do estado ou da sociedade
civil. Este erro repousa sobre dois mitos.
Um é o mito que atende pelo nome de “estado de
natureza”. Esta expressão, quando usada por Hobbes, Locke,
ou Rousseau em suas versões levemente variadas da origem
da sociedade civil, significa uma condição da vida humana
sobre a terra em que os indivíduos vivem isolados uns dos
outros e anarquicamente, com completa autonomia.
O que é chamado de “estado de natureza” é algo
totalmente mítico e que nunca existiu na terra. Isto deveria ser
óbvio a todos, à luz do fato incontroverso de que a espécie
humana não poderia ter sobrevivido sem a existência de
famílias que protegessem as crianças dos perigos do mundo,
incapazes que são de cuidar de si mesmas.
O segundo mito, inseparável do primeiro, é a ficção segundo
a qual os seres humanos, insatisfeitos com a precariedade e
brutalidade da vida no estado de natureza, decidiram não mais
aceitar essa situação e concordar com certas regras e
convenções para conviver sob alguma forma de governo que
substituísse a anarquia e eliminasse o seu isolamento e
autonomia.
Dos três expoentes modernos desta teoria contratual,
Rousseau ao menos admite que o contrato social e o estado de
natureza não possuem realidade histórica, mas constituem
apenas uma hipótese explicativa de como a sociedade civil
veio a existir, o que poderia vir a abonar a teoria, mas apenas
se a hipótese fosse necessária para fins explanatórios. Ocorre
que ela não é. A origem do estado pode ser satisfatoriamente
explicada sem recorrer a nenhuma destas ficções como o
contrato social e o estado de natureza. Eis aí o erro filosófico
que exige correção.
3
 
A correção do erro passa pelo reconhecimento de que a
distinção entre uma origem natural e uma convencional para o
estado ou para a sociedade civil não é uma disjunção simples
— uma do tipo “ou-isto-ou-aquilo”.
Se uma forma de associação é natural apenas no sentido
em que sociedades de insetos são geneticamente
determinadas por dados instintivos que são peculiares a uma
espécie em particular, e se uma forma de associação é
convencional apenas no sentido em que corporações ou
empresas privadas e associações profissionais se originam a
partir do resultado da concordância voluntária das partes
envolvidas, segue-se daí então, forçosamente, que nenhuma
forma de associação pode ser simultaneamente natural e
convencional. Neste caso, as associações deverão ser,
necessariamente, ou exclusivamente naturais ou
exclusivamente convencionais.
Os expoentes modernos da teoria contratualista sabiam
que, historicamente, os homens nem sempre viveram em
sociedade civis ou estados. Eles também sabiam que, quando
as sociedades civis ou estados passaram a existir, não se
encontravam todos estruturados ou organizados da mesma
maneira. Assim, eles não poderiam considerar o estado como
natural no sentido em que “natural” significa o resultado da
operação de dados instintivos. Como eles bem viram, a única
alternativa era considerar o estado como puramente
convencional, não natural em qualquer sentido do termo.
A raiz do erro reside em não reconhecer dois diferentes
sentidos da palavra “natural”: um em que uma associação não
pode ser simultaneamente natural e convencional, e outro em
que pode.
Este outro sentido da palavra “natural” era bastante comum
na Antiguidade. Um filósofo político como Aristóteles não
encontrou dificuldades para descrever o estado ou a
comunidade política como sendo simultaneamente natural e
convencional.
Entre os três maiores expoentes da teoria contratualista nos
tempos modernos, apenas Rousseau revela que ele também
levou em consideração o sentido da palavra “natural” em que o
estado pode ser simultaneamente natural e convencional.
Infelizmente, este reconhecimento deu-se apenas de maneira
implícita e jamais foi trazido à superfície explicitamente.
Rousseau nunca abandonou as ficções de um estado de
natureza e de um contrato social para explicar a origem da
sociedade civil.
O reconhecimento tácito acima referido pode ser
encontrado, como se segue, no Livro I, Capítulo 2, de seu O
contrato social:
 
A mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a
família. Mesmo assim, os filhos só estão ligados ao pai
enquanto precisam dele para sobreviver. Tão logo cessa tal
necessidade, esse vínculo natural se dissolve [grifos nossos].
A família é vista, então, como natural porque há uma
necessidade natural para a sua constituição, não porque os
seres humanos estejam geneticamente determinados pelos
instintos a se organizar de modo relativamente permanente em
grupos domésticos.
Que estas sociedades domésticas sejam naturais por
necessidade, não por instinto, patenteia-se também a partir do
fato de que as famílias humanas estão organizadas em uma
miríade de modos diferentes. E elas não estariam assim
organizadas se fossem instintivamente determinadas em vez
de voluntariamente formadas pela livre escolha. A família
humana é, então, tanto natural quanto convencional —
simultaneamente.
No Livro I, Capítulo 6, intitulado “Do pacto social”, podemos
ler no parágrafo de abertura de Rousseau o seguinte:
Suponho os homens chegados a um ponto em que os
obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de
natureza vencem, por sua resistência, as forças que cada
indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado. Esse
estado primitivo, então, não pode mais subsistir, e o gênero
humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.
Por que, então, os seres humanos abandonam o estado de
natureza mítico ou hipotético (em que nunca viveram, pois
sempre viveram, no mínimo, associados em famílias)? Eles não
foram levados a agir assim por instintos inatos, mas por uma
necessidade natural, exatamente como foram levados a viver
em famílias por uma necessidade natural. A sociedade civil é
tão natural quanto a família, e natural no mesmo sentido do
termo.
Mas a necessidade natural é a mesma? Não, pois a pequena
sociedade doméstica, a família isolada, e a sociedade
expandida, que consiste em famílias consanguíneas associadas
em tribos e vilas, bastam para a mera preservação da vida
humana. O trabalho dos membros de uma família, ou da
população de uma tribo, provê os meios diários de
subsistência, ou um pouco mais do que isso, que pode ser
estocado para tempos de privação. O estado ou a sociedade
civil não passa a existir por tais motivos, nem para satisfazer a
necessidade de preservação da espécie.
Rousseau tacitamente o admite quando, no capítulo final de
seu primeiro livro, chama a atenção para a diferença entre a
vida primitiva e a vida civilizada (“civilizada” no sentido de ser
vivida em uma sociedade civil ou em uma comunidade
política). O estado ou a sociedade civil passou a existir para
satisfazer a necessidade natural humana por condições que
propiciassem a realização de uma vida moralmente boa — com
o fim de não apenas viver, mas de viver bem.
Se o assim chamado “estado de natureza” não existe e a
naturalidade da sociedade civil é fundada sobre uma
necessidade natural, não sobre instintos inatos, por que se
insiste ainda no mito de que os homens saíram de um estado
de natureza para entrar em um contrato social uns com os
outros e assim instituir a sociedade civil e o estado? Não há
outra explicação possível para a origem do Estado?
Sim, há uma explicação que apela para os fatos
historicamente conhecidos. As primeiras comunidades políticas
surgiram de grandes organizações tribais que, por uma razão
ou outra, se associaram umas com as outras para formar uma
sociedade ainda maior — uma sociedade composta por tribos
ou vilas associadas. O tipo de regra ou governo que prevaleceu
nas tribos, uma regra absoluta ditada pelos mais velhos,
penetrou nas grandes sociedades que elas formaram quando
se associaram. Em vez de chefes tribais, elas agora tinham
reis, regendo absolutamente ou despoticamente, como fizeram
os grandes reis da Pérsia ou os faraós do Egito.
Um pouco depois, o governo despótico ou absoluto dos reis
foi substituído pela adoção de constituições nas cidades-estado
da Grécia. Sólon deu aos atenienses uma constituição que,
adotada por eles voluntariamente, estabeleceu a República
Ateniense. Assim, também, Licurgo deu aos espartanos uma
constituição por meio da qual, uma vez mais voluntariamente,
a República de Esparta passou a existir.
Cônscio desta história, Aristóteles, após enfatizar a
naturalidade do estado em função da necessidade natural que
a sua constituição satisfaz, escreveu que “aqueles que primeiro
fundaram o estado foram os maiores dos benfeitores”. Ele
tinha Sólon e Licurgo em mente como fundadores do estado,
porque, em sua visão, o governo absoluto ou despótico, trazido
das culturas tribais, era incompatível com um estado — uma
sociedade civil ou comunidade política.
Se os seres humanos são, por natureza, não apenas animais
sociais, mas também políticos, então eles têm uma inclinação
natural para se organizar politicamente e uma necessidade de
participar do governo. Isto é possível apenas quando eles se
tornam cidadãos de uma república e vivem sob um governo
constitucional. Eles então passam a gozar e dispor de liberdade
política, o que significa ser governado a partir do próprio
consentimento e tendo voz perante o próprio governo.
A adoção voluntária de uma constituição que cria uma
república, com os cidadãos como a classe dominante e os
administradores do governo sempre ocupando cargos públicos
com autoridade e poder constitucionalmente limitados, é uma
versão muito melhor, historicamente mais precisa, da origem
do estado do que a teoria do contrato social de Rousseau.
Rousseau, não menos que Aristóteles, considerava a
república, ou a sociedade civil submetida a um governo
constitucional, a única forma legítima de governo civil. Sem
ela, não poderia haver uma verdadeira comunidade política. As
demais formas de governo, como o absolutismo e o
despotismo, seriam anômalas: nem organizações de tipo
estritamente tribal nem verdadeiras comunidades políticas.
Dois outros erros devem ser mencionados brevemente. Um
é cometido por Rousseau quando ele diz que, após os
indivíduos terem concordado em formar uma sociedade civil
nos termos de um contrato social, cada pessoa, “apesar de
unir-se a todas as demais, pode ainda obedecer apenas a si
mesma e permanecer tão livre quanto antes”.
Viver sob um governo, mesmo sob o regime constitucional
mais perfeitamente concebido de todos, torna impossível ao
indivíduo obedecer apenas a si mesmo. Ele não “permanece
tão livre quanto antes”, pelo que Rousseau quer dizer tão livre
quanto ele era em um estado de natureza antes de haver
ingressado em um contrato social. Esta liberdade do estado de
natureza mítico seria completamente autônoma. O homem,
neste estado hipotético, seria o legislador de si mesmo — sua
própria lei.
Ele teve de abandonar sua completa autonomia, segundo
Rousseau, quando, pelo contrato social ou quaisquer outros
meios, tornou-se um membro da sociedade civil. O que então
substituiu a liberdade ilimitada da completa autonomia foi a
liberdade limitada da civilização, a liberdade civil — isto é, a
liberdade sob um governo, não a liberdade contra ou apesar de
um governo.
A menção à completa autonomia como sendo algo
incompatível com a vida sob um governo civil nos coloca diante
de outro erro caracteristicamente moderno sobre a sociedade
humana. Trata-se de um erro que não pode ser encontrado na
Antiguidade ou na Idade Média. Ele surge no século xix com
filósofos anarquistas como Kropotkin, Bakunin, Marx e Lênin.
O erro consiste em pensar que é possível aos homens viver
juntos pacífica e harmoniosamente em sociedade sem qualquer
tipo de governo e de leis que são tornadas eficazes justamente
pelo exercício coercitivo da força. Mais do que meramente
possível, este é o ideal sustentado por Kropotkin e Bakunin — a
eliminação do estado e do governo como instituições
irremediavelmente más.
Diferente de Bakunin, que advogou a derrubada do estado
pela ação direta, Marx e Lênin podem ser descritos como
anarquistas fabianos. Em sua visão, o ideal último do
comunismo só será alcançado após a instauração de uma
ditadura do proletariado — penúltimo estágio antes da
realização daquele ideal — que dará cabo de si mesma. Então
o estado opressivo, com a força coercitiva de seu governo e de
suas leis, irá aos poucos se dissolver.
Nesse sentido, a utopia almejada seria uma pacífica
anarquia, o que não poderia ser senão impossível, dada a
natureza humana tal como ela é. A visão marxista é aquela
segundo a qual as condições externas, especialmente as
condições sob as quais a riqueza é produzida e distribuída,
quando radicalmente alteradas, alteram também a natureza
humana.. Deste cenário emergiria um novo homem — um
homem capaz de viver pacífica e harmoniosamente com seus
confrades em uma sociedade sem regulações governamentais
ou restrições e constrangimentos legais de qualquer espécie.
A noção de “novo homem” é tão mitológica quanto a noção
de “estado de natureza” e de “contrato social”. A fantasia
utópica de uma pacífica anarquia é tão impraticável e
irrealizável quanto qualquer outra utopia já sonhada.6
CAPÍTULO X
Existência humana
 
1
O que as pessoas têm em mente quando perguntam sobre a
existência de algo?
Antes de tudo, elas estão perguntando se a coisa em
questão tem realidade. Existirá esta coisa no mundo real de
maneira bem independente de nossas mentes e do que quer
que pensemos ou saibamos a seu respeito, ou será apenas um
objeto que existe para nós quando exercemos nossas potências
perceptivas e de pensamento?
Uma segunda questão que elas podem ter em mente diz
respeito ao modo de existência. Existirá esta coisa em e por si
mesma, não como uma parte ou aspecto de outra coisa, ou
será justamente isso, uma parte ou aspecto de outra coisa? Se
ela existir junto com outras coisas que, tomadas todas juntas
como um agregado organizado, constituem o todo da
realidade, então, certamente, existirá como parte, e não
inteiramente nem por si mesma. Mas se, quando uma destas
outras coisas cessar de existir, ela ainda permanecer na
existência, então não será uma parte daquela outra coisa no
mesmo sentido em que se diz que uma perna de mesa é uma
parte da mesa inteira, e que esta perna cessaria de existir caso
a própria mesa também cessasse.
O que acabei de dizer da perna da mesa pode também ser
dito da sua cor, do seu formato, do seu peso e assim por
diante. Estes são os atributos ou as características da mesa.
Como tais, eles não existem em e por si mesmos; eles
existem na mesa, e continuam a existir apenas enquanto a
própria mesa existir.
Na filosofia antiga, as palavras “substância” e “acidente”
foram usadas para demarcar esta distinção entre o que existe
em si mesmo e o que existe em outro. Esses termos não são
mais correntes e podem ser enganosos. Em seu lugar, usarei,
portanto, os termos mais familiares “coisa” e “atributo” para
designar aquilo que já foi um dia considerado como tendo
existência substancial e acidental, respectivamente.
Há ainda outra questão que diz respeito à duração ou
durabilidade da existência. Comparados com uma coisa, ou
mesmo com os atributos desta, eventos são existências de
curta duração. Um flash de luz, por exemplo, é considerado um
evento instantâneo; já um longo estrondo de trovão é um
evento de curta duração, tendo início, meio e fim dentro de um
breve período de tempo. Não nos referiríamos a ele, portanto,
como uma coisa. Em contraste, uma casa que permanecesse
de pé por um século ou mais, mudando muito pouco neste
período de tempo, não é um evento, mas uma coisa.
No mundo dos fenômenos físicos, materiais, as coisas são as
únicas existências que estão sujeitas à mudança. Eventos não
mudam. Os atributos de uma coisa não mudam. O verde de
uma maçã que ainda não amadureceu não se torna vermelho
quando ela amadurece. Ao contrário, foi a própria maçã quem
mudou qualitativamente, mudando de verde para vermelha. É
a maçã que muda de lugar quando é movida daqui para ali. E é
o bebê humano que muda de tamanho e peso, e em muitos
outros aspectos, quando cresce, não os atributos ou
características que foram substituídas por outros atributos e
características quando essas mudanças ocorreram com o
crescimento.
A existência mutável das coisas envolve outro ponto de
grande importância. Para que uma coisa mude em qualquer
aspecto, ela mesma deve permanecer a mesma ao longo de
todo o processo. Se ela não permanecesse a mesma, como
poderiamos sequer falar a seu respeito como de algo que
muda?
Resumidamente, aquilo que é o sujeito da mudança deve ter
uma identidade clara e durável. Deve também ter uma unidade
persistente. Se a coisa é um todo com partes componentes, ela
é, certamente, divisível; mas enquanto ela for um único sujeito
de mudança, deve permanecer indivisa. Quando então é
dividida, cessa de ser aquela única coisa individual.
Como, então, o ser humano existe? O nosso senso comum
quanto a isso, baseado em nossa experiência comum, nos diz
que os seres humanos existem como coisas individuais, tendo
muitos atributos em relação aos quais podem mudar enquanto
permanecem sendo a mesma coisa durável que está sujeita a
todas essas mudanças.
O que acabou de ser dito pode parecer simples e óbvio,
talvez até desnecessário de ser dito, mas é algo de não pouca
importância. Sem o tipo de identidade clara que pertence à
coisa individual como a um sujeito de mudança, os seres
humanos, tendo uma existência obviamente mutável, não
poderiam ser moralmente responsabilizados por seus atos.
O nosso próprio senso de identidade pessoal é o de que,
momento a momento, dormindo ou acordados, somos o
mesmo indivíduo, a mesma totalidade composta por suas
partes, o mesmo portador de muitos atributos. Não
cessaríamos de ser esta coisa individual única mesmo se, por
uma cirurgia de amputação, viéssemos a perder uma parte de
nosso corpo; ou se, no curso do envelhecimento, sofrêssemos
mudanças radicais em nossas características físicas, nossos
atributos pessoais e nossos traços temperamentais.
Enxergamos outros seres humanos à mesma luz com que
nos enxergamos. Eles também têm uma identidade clara e
uma unidade que permanece a mesma enquanto está sob
mudança. Não experimentamos as suas identidades como
experimentamos a nossa, mas não temos dúvidas de que eles
a possuem no mesmo sentido em que nós, e que através dela
eles são capazes de assumir a mesma responsabilidade moral
por seus atos que nós pelos nossos.
Mas nosso senso comum em relação a essa questão ainda
vai mais além. Todos os objetos físicos no mundo da nossa
experiência perceptual diária — as mesas e cadeiras, as casas
e automóveis, os animais de estimação, as árvores e plantas
no jardim, as rochas e estátuas — são todos coisas individuais,
identidades permanentes que estão sujeitas à mudança. E
pensamos nelas como portadoras de várias qualidades
sensíveis — as cores, texturas, odores, e assim por diante —
que podemos experimentar como suas.
 
2
 
Esta imagem que o senso comum faz do mundo em que
vivemos talvez fosse contestada pelo que nos é dito pelos
cientistas (físicos) de nossos dias.
Nunca esquecerei meu choque quando, mais de cinquenta
anos atrás, li as Gifford Lectures de Sir Arthur Eddington, que
foram reunidas sob um volume intitulado A natureza do mundo
físico. Em suas observações iniciais, Sir Arthur diz à sua
audiência que a mesa defronte à qual está sentado, a mesa
que lhes parecia tão sólida a ponto de lhes machucar os
punhos se tentassem socá-la, era, na realidade, uma área de
amplo espaço vazio em que corpúsculos invisíveis estavam se
movendo em alta velocidade, interagindo uns com os outros de
variados modos, fazendo a mesa parecer ser sólida, ter certo
tamanho, formato e peso, e ter certas outras qualidades
sensíveis, tais como sua cor, suavidade e assim por diante.
Aparência e realidade! Como Sir Arthur falou, não parecia
haver dúvida em sua mente sobre qual era qual.
A mesa que o palestrante e sua audiência percebiam
através de seus olhos e podiam tocar com suas mãos talvez
lhes parecesse ser uma coisa individual que tem uma
identidade perdurável clara e que pode sofrer mudanças
enquanto permanece a mesma. Esta seria a aparência, uma
aparência que talvez pudesse ser considerada ilusória se
comparada com a realidade invisível e intocável das partículas
atômicas em movimento que preenchem o espaço ocupado
pela mesa visível, um espaço amplamente vazio, embora
impenetrável por nós.
Meu choque inicial aumentou quando deixei de pensar na
mesa e passei a pensar em mim mesmo e nos outros seres
humanos. Não éramos diferentes da mesa. Nós também
éramos coisas físicas individuais. Talvez parecêssemos ser a
nós mesmos e aos outros tão sólidos quanto a mesa, embora
um pouco mais suaves ao toque, mas, assim como ela, do
mesmo modo impenetráveis a um dedo. Mas, na realidade, o
espaço ocupado pelos nossos corpos aparentemente sólidos
era tão vazio quanto o da mesa. Quaisquer que fossem os
atributos ou características que nossos corpos parecessem ter,
tal como os percebemos por nossos sentidos, não seriam senão
o resultado de movimentos e interações de partículas as quais
não teriam, elas mesmas, nenhuma dessas características
sensíveis.
De acordo com esta visão, as partículas imperceptíveis que
compõem todos os objetos da nossa experiência perceptual
ordinária possuem apenas propriedades quantitativas, não
qualidades sensíveis de quaisquer tipos. Estas últimas existem
apenas em nossa consciência dos objetos percebidos,
sustentam os adeptos desta concepção, não nos objetos
mesmos. Elas não têm qualquer estatuto na realidade. Então
vem à tona o enigma relativo ao que se convencionou chamar
“qualidades secundárias”, um quebra-cabeça que sempre
acompanha a falácia reducionista a que os atomistas são tão
propensos.
O que será da minha identidade pessoal, ou da sua, e da
responsabilidade moral por nossas ações, se cada um de nós
deixar de ser uma coisa individual e vier a se tornar, em vez
disso, uma congérie de partículas físicas que não permanecem
as mesmas durante o período de tempo de nossas vidas?
Para enfrentar o problema aqui levantado, eliminemos de
uma vez uma maneira fácil, porém errônea, de tentar saná-lo.
Esta maneira fácil de tentar resolver o problema é considerar
as duas representações — a que temos como objeto do senso e
da experiência comuns, e a que nos é dada pelos físicos —
como ficções úteis e convenientes. A primeira delas serviria
para todas as exigências práticas de nossa vida diária. A
segunda, aplicada em inovações tecnológicas, nos daria uma
maestria e controle extraordinários sobre o mundo físico em
que vivemos.
Colocadas desta maneira, não há conflito entre as duas
visões do mundo em que vivemos e de nós mesmos enquanto
organismos vivos existentes nele. Não precisamos perguntar o
que é realidade e o que é mera aparência ou ilusão.
Antes da metade do último século, considerava-se que a
teoria dos atomistas postulava uma ficção científica útil, de
modo a não desafiar a realidade da cosmovisão de senso
comum endossada por uma potente filosofia. Até então,
começando com Demócrito no mundo antigo e chegando a
Newton e Dalton no mundo moderno, o átomo foi concebido
como a unidade absolutamente indivisível da matéria. Nas
palavras de Lucrécio, o átomo seria uma unidade de “sólida
singularidade”, sem nenhum vazio dentro de si, como deve
haver um vazio em qualquer corpo composto — tendo átomos
como suas partes componentes — e, portanto, divisível.
Sabemos que no século XIX, e em nossos próprios dias, tudo
isso mudou radicalmente. Não há mais qualquer dúvida sobre a
existência real dos átomos, que agora se sabem serem
divisíveis e preenchidos microscopicamente de vazio como o
sistema solar o é macroscopicamente. Neste espaço vazio se
movem as partículas elementares que foram agora
descobertas pelos mais engenhosos dispositivos detectores —
partículas cuja existência real é verificada por inferência a
partir de fenômenos observados, os quais não podem ser
explicados senão pela postulação da existência real dessas
partículas inobserváveis.
Deixe-me ter certeza de que este último ponto esteja
perfeitamente claro. As partículas elementares, que são os
componentes móveis do átomo divisível, são intrinsecamente
imperceptíveis aos nossos sentidos. Como um escritor
contemporâneo coloca, as partículas elementares são
essencialmente irrepresentáveis — “irrepresentáveis em
princípio”. Elas e o átomo que constituem não têm quaisquer
das qualidades sensíveis possuídas pelas coisas físicas
perceptíveis da experiência comum. Nem mesmo as
propriedades quantitativas possuídas pelos átomos e
moléculas, tais como tamanho, peso, formato, ou configuração,
essas partículas elementares têm.
A afirmação de Werner Heisenberg sobre a matéria confirma
quão radical, de fato, é a irrepresentabilidade das partículas
elementares. Eis o que ele diz:
As partículas elementares indivisíveis da física moderna
possuem a qualidade de ocupar espaço em medida não
superior a quaisquer outras propriedades, por exemplo, a cor e
a força do material. [Elas] não são mais corpos no sentido
próprio do termo.7
Heisenberg prossegue dizendo que as partículas
elementares são unidades de matéria apenas no sentido em
que massa e energia são intercambiáveis. Este substrato
fundamental, segundo ele, “é capaz de existir em diferentes
formas”, mas “sempre aparece em definidos quanta”.8
Estes quanta de massa e energia não podem sequer ser
descritos exclusivamente em termos de partículas, pois eles
também são ondas ou pacotes de ondas.
Falando de átomos e moléculas, não devemos dizer a
respeito deles o mesmo que dizemos de nós mesmos e das
outras coisas perceptíveis da experiência comum? Eles,
também, são totalidades divisíveis feitas de componentes
mutáveis e móveis. O que dizer da realidade dos átomos e
moléculas quando comparada com aquela das partículas
elementares que os compõem? Se pudéssemos ver a olho nu
átomos e moléculas, não seríamos obrigados a dizer que eles
apenas parecem ser daquele modo como foram por nós
percebidos — um corpo sólido, indivisível —, mas que, na
realidade, o que percebemos era apenas ilusão?
Somos aqui confrontados com a falácia do reducionismo, um
erro que se tornou muito comum em nossos dias, não apenas
entre cientistas, mas também entre filósofos contemporâneos.
Este erro consiste em considerar os constituintes últimos do
mundo físico, as partículas elementares, como mais reais do
que os corpos compostos que nos são acessíveis aos cinco
sentidos e que são constituídos por elas. O reducionismo pode
avançar e declarar esses constituintes últimos — as partículas
elementares — como a única realidade, relegando tudo o mais
ao estatuto de mera aparência ou ilusão.
 
3
 
Como podemos corrigir este erro filosófico da falácia do
reducionismo — o qual deve ser corrigido para que validemos
tanto nossa cosmovisão de senso comum quanto uma filosofia
da natureza que concorde com ela?
Antes de eu tentar sugerir uma solução, permitam-me ter
certeza de que o conflito entre as cosmovisões científica e de
senso comum esteja claro. A cadeira na qual estou agora
sentado ocupa uma determinada área no espaço. Dizer, por um
lado, que o espaço está preenchido com um corpo sólido e
único que experimentamos como sendo a cadeira percebida é
contraditório a dizer, por outro lado, que o espaço é, em
grande medida, um vazio preenchido por partículas
imperceptíveis que estão se movendo e interagindo umas com
as outras.
O conflito ou a contradição aqui não é simplesmente entre o
espaço vazio e o espaço cheio. Trata-se de uma contradição
entre o uno e o múltiplo. A cadeira da nossa experiência
comum, cuja realidade é defendida por uma filosofia baseada
no senso comum, não é apenas um corpo sólido, senão que, de
modo ainda mais fundamental, é um ente único, singular. A
cadeira da teoria física consiste de uma multiplicidade
irredutível de unidades discretas, cada uma tendo sua própria
existência individual.
Se o ente unitário que é a cadeira sólida, com todas as suas
qualidades sensíveis, é desprezada como uma ilusão que nos é
imposta pela experiência sensível, então nenhum conflito
subsiste. Ou se o átomo dos físicos, as partículas elementares,
os pacotes de ondas ou os quanta de massa forem entidades
meramente teoréticas às quais não se pode atribuir nenhuma
existência real (isto é, se elas forem formas meramente
matemáticas sem nenhuma realidade física), então a sua
postulação para fins teoréticos como ficções úteis não desafia a
cosmovisão segundo a qual o que realmente existe lá fora é a
cadeira sólida da nossa experiência.
Se, contudo, uma existência real do mesmo tipo for
igualmente atribuída às entidades descritas pelas cosmo-
visões científica e de senso comum, então não poderemos
evitar um conflito que reclamará resolução.
Uma pista ou dica que pode ajudar a nos levar à solução
está contida nas palavras grifadas em itálico na sentença
anterior: “do mesmo tipo”. Tanto a cadeira sólida quanto as
partículas imperceptíveis têm existência real, mas a realidade
de cada uma delas não é do mesmo tipo, nem da mesma
ordem ou grau. Em virtude disso, o conflito pode ser resolvido.
A contradição é vista, então, como meramente aparente.
O problema seria insolúvel se as duas asserções a serem
reconciliadas estivessem em relação uma com a outra do
mesmo modo em que a afirmação de que Jonas está sentado
em uma determinada cadeira em um determinado momento se
relaciona com a afirmação de que Smith está, neste mesmo
momento, sentado na mesma cadeira, e não sentado em cima
de Jonas ou no braço da cadeira, mas exatamente onde Jonas
está sentado. As sentenças sobre Jonas e Smith não podem ser
ambas verdadeiras — não podem ser reconciliadas.
A asserção sobre as partículas nucleares serem os
constituintes imperceptíveis da cadeira e a asserção sobre a
cadeira sólida perceptível ser uma coisa individual, ambas
ocupando o mesmo espaço, podem ser reconciliadas sob a
condição de que reconheçamos os diferentes graus da
realidade.
Werner Heisenberg utilizou o termo potência — possibilidade
de ser — para descrever o grau extremamente baixo de
realidade — talvez o mais baixo de todos — que as partículas
elementares podem ter. Escreveu ele:
Para fazer experimentos sobre eventos atômicos, temos de
partir de coisas e fatos, fenômenos que são tão reais quanto
qualquer outro fenômeno da vida cotidiana. Mas os átomos ou
as partículas elementares não são reais do mesmo modo; eles
formam antes um mundo de potencialidades ou possibilidades
do que um mundo de coisas ou fatos.
Heisenberg, ao dizer que as partículas elementares não são
reais do mesmo modo que as coisas individuais perceptíveis da
vida cotidiana, não nega que elas ainda tenham alguma
realidade.
O meramente possível, aquilo que não tem qualquer
existência atual, não tem nenhuma realidade. Aquilo que tem
alguma potência para existir, e tende a esta existência, tem
algum grau de realidade, conquanto ínfimo: é algo um pouco
mais do que meramente possível.
Deixe-me resumir a solução do problema que corrige o erro
filosófico emergente a partir da falácia do reducionismo,
solução esta que compreende duas etapas.
A realidade das partículas elementares da física nuclear não
pode ser reconciliada com a realidade da cadeira como uma
substância individual sensível se é asseverado que ambas,
partículas e cadeira, têm o mesmo modo de existência ou grau
de ser. O mesmo pode ser dito das partículas nucleares e dos
átomos dos quais elas são as partes componentes. As
partículas são menos reais que os átomos; quer dizer, elas têm
menos atualidade. Este é o significado da afirmação de
Heisenberg de que as partículas estão em um estado de
potência — “possibilidades ou tendências para ser”.
O modo de ser dos constituintes materiais de um corpo
físico não pode ser o mesmo quando estes constituintes
existem isoladamente e quando entram na constituição
material de um corpo atualizado. Assim, quando a cadeira
existe atualmente como um corpo único, singular, a multidão
de átomos e de partículas elementares que a constituem existe
apenas virtualmente. Uma vez que a existência destes é
apenas virtual, assim também é sua multiplicidade; e sua
multiplicidade virtual não é incompatível com a unidade atual
da cadeira. Novamente, pode-se dizer a mesma coisa de um
átomo singular e das partículas nucleares que o constituem; ou
de uma única molécula e dos vários átomos que a constituem.
Quando um átomo ou uma molécula existem atualmente como
uma unidade de matéria, seus constituintes materiais têm
existência meramente virtual e, por conseguinte, também a
multiplicidade destes é meramente virtual.
O que existe virtualmente tem mais realidade que o
meramente potencial e menos que o totalmente atual. Os
componentes virtualmente existentes de qualquer totalidade
composta só se atualizam plenamente quando o composto se
decompõe em suas partes constituintes.
A existência virtual e a multiplicidade dos constituintes
materiais não ab-rogam a capacidades destes para a existência
e a multiplicidade atuais. Se a cadeira unitária — ou um único
átomo — fosse explodida e assim decomposta em suas partes
constituintes materiais últimas, as partículas elementares
assumiriam o modo de existência atual que as partículas
isoladas têm em um cíclotron; a multiplicidade virtual delas
seria transformada em multidão atual.
O ponto crítico aqui é que o modo de existência em que as
partículas são unidades discretas e têm multiplicidade atual
não pode ser o mesmo que o modo em que elas são
constituintes materiais de uma cadeira em estado de
existência atual.
Se dissermos que as partículas em um cíclotron e as
partículas que integram a constituição atual de uma cadeira
têm o mesmo modo de existência, o conflito entre a física
nuclear e a doutrina filosófica que afirma a realidade dos
objetos materiais da experiência comum deixa de ser
meramente aparente e passa a ser um conflito real — e do tipo
que é insolúvel, pois as teorias conflitantes são irreconciliáveis.
Mas se as reconhecermos como tendo modos de existência
distintos, as teorias que parecem estar em conflito podem ser
reconciliadas.
Não apenas reconciliamos o conflito entre a visão do mundo
físico avançada pela ciência moderna e aquela sustentada pelo
senso comum, como chegamos também à conclusão de que as
coisas individuais perceptíveis da experiência comum têm um
alto grau de realidade atual, o que se aplica também às
qualidades sensíveis — as assim chamadas “qualidades
secundárias” — que experimentamos nas coisas e que não são
meros fragmentos da nossa consciência sem qualquer estatuto
no mundo real, que é independente de nossos sentidos e de
nossa mente.
Alcançada essa conclusão, o desafio à realidade da
existência humana e à clara identidade da pessoa individual é
superado. Não pode haver dúvidas sobre a responsabilidade
moral que cada um de nós carrega por seus próprios atos.
 
EPÍLOGO
Ciência moderna e sabedoria antiga
 
1
A mais notável conquista e a glória intelectual dos tempos
modernos foi a ciência empírica e a matemática a que ela deu
um bom uso. O progresso que se fez nos últimos três séculos,
junto com os avanços tecnológicos daí resultantes, é de tirar o
fôlego.
Do mesmo modo, a mais notável conquista e a glória
intelectual da Grécia antiga e da Idade Média foi a filosofia.
Herdamos dessas épocas um fundo de sabedoria acumulada, o
que também é de tirar o fôlego, especialmente quando se
considera quão pouco progresso filosófico foi feito na
Modernidade.
Isto não equivale a dizer que não foram feitos avanços no
pensamento filosófico nos últimos três séculos. Eles se deram
principalmente na lógica, na filosofia da ciência, e na teoria
política, não na metafísica, na filosofia da natureza ou na
filosofia da mente, e menos ainda na filosofia moral. Nem é
verdadeiro dizer que, na Grécia antiga e na última Idade Média,
do século XIV em diante, a ciência não prosperou de maneira
alguma. Ao contrário, os fundamentos foram postos na
matemática, na física matemática, na biologia e na medicina.
Foi na metafísica, na filosofia da natureza, na filosofia da
mente e na filosofia moral que os antigos e seus sucessores
medievais fizeram mais do que simplesmente lançar as bases
para o nosso reto entendimento das coisas, apesar de nossa
módica sabedoria. Eles não cometeram os erros filosóficos que
têm sido a ruína do pensamento moderno. Ao contrário, eles
tiveram insights e operaram as indispensáveis distinções que
nos fornecem os meios para corrigir esses erros.
Na melhor das hipóteses, a ciência investigativa nos fornece
conhecimento da realidade. Como argumentei anteriormente
neste livro, a filosofia também é, em última análise,
conhecimento da realidade, não mera opinião. Melhor: é
conhecimento iluminado pela compreensão. E ainda muito
melhor: é uma aproximação à sabedoria, tanto especulativa
quanto prática.
Precisamente porque a ciência é investigativa e a filosofia
não o é, não deveria nos surpreender o notável progresso
científico a que assistimos nos últimos três séculos nem a
igualmente notável falta deste progresso em nível filosófico.
Precisamente porque a filosofia se baseia na experiência
comum da humanidade e é um refinamento e elaboração do
conhecimento de senso comum e da compreensão derivada da
reflexão sobre aquela experiência, a filosofia alcançou sua
maturidade precocemente, e só se desenvolveu para além
deste ponto muito lenta e suavemente.
O conhecimento científico muda, cresce, melhora, se
expande, como resultado de refinamentos e acréscimos de
dados observacionais ao tipo especial de experiência em que a
ciência, enquanto modalidade investigativa de perquirir a
realidade, deve se basear. Já o conhecimento filosófico não
está sujeito às mesmas condições de mudança e crescimento.
A experiência comum ou, mais precisamente, os delineamentos
gerais ou núcleo comum dessa experiência, que basta para o
filósofo, permanece relativamente constante ao longo das eras.
Descartes e Hobbes no século xvn, Locke, Hume e Kant no
século XVII, e Alfred North Whitehead e Bertrand Russell no
século xx não desfrutam de maiores vantagens com relação a
Platão e Aristóteles na Antigüidade ou Santo Tomás de Aquino,
Duns Scott e Roger Bacon na Idade Média.
 
2
 
Como os pensadores modernos poderiam ter evitado os
erros filosóficos que foram tão desastrosos em suas
consequências? Sugeri a resposta em capítulos anteriores.
Achando insustentáveis as conclusões de um filósofo, deve-se
voltar ao ponto inicial e ver se ele cometeu algum pequeno
erro no princípio.
Um exemplo impressionante de falha em seguir esta regra
pode ser encontrado na resposta de Kant a Hume. As
conclusões céticas de Hume e o seu fenomenalismo eram
inaceitáveis para Kant, embora elas o tenham despertado de
seu sono dogmático. Mas, apesar de olhar para os pequenos
erros cometidos por Hume no princípio e então desprezá-los
como sendo a causa das conclusões que ele descobriu serem
inaceitáveis, Kant pensou ser necessário construir um
intrincado maquinário filosófico cujo propósito fosse produzir
conclusões de um teor oposto às de Hume.
A complexidade desse maquinário filosófico e a ingenuidade
do seu projeto em nada ajudam a corrigir os erros de Hume,
embora causem admiração inclusive naqueles que suspeitam
da sanidade de todo este empreendimento e julgam necessário
rejeitar tanto as conclusões de Kant quanto as de Hume.
Embora opostas em teor, elas não nos ajudam a chegar à
verdade, que só poderá ser encontrada se os pequenos erros
principiológicos de Hume forem corrigidos - e também os de
Locke e Descartes antes daqueles. Para fazer isso, é preciso
estar na posse de insights e distinções com as quais estes
pensadores modernos não estavam familiarizados. E por que
não estavam é justamente o que tentarei explicar a seguir.
O que acabei de dizer sobre Kant em relação a Hume se
aplica também a toda a tradição do empirismo inglês que
passa por Hobbes, Locke, Hume e assim prossegue. Todas as
aporias, paradoxos e falsos problemas que a filosofia analítica,
a filosofia da linguagem e a terapia positivista em nosso
próprio século tentaram eliminar nunca teriam sequer existido
se os pequenos erros principiológicos cometidos por Locke e
Hume tivessem sido explicitamente rejeitados em vez de
serem deixados passar despercebidos.
Como surgiram pela primeira vez estes pequenos erros
principiológicos? Uma resposta é que algo que precisava ser
conhecido ou entendido para evitar esses pequenos erros ainda
não havia sido descoberto ou aprendido. Tais erros são
desculpáveis, por lamentáveis que sejam.
A segunda resposta é que os erros são cometidos como um
resultado da ignorância culpável — ignorância de um ponto
essencial, um insight ou uma distinção indispensável, que já
havia sido descoberta e explicada, e que não poderia ser
ignorada.
E principalmente neste segundo sentido que os filósofos
modernos cometeram seus pequenos erros no princípio. Eles
são feias homenagens às falhas educacionais — falhas devidas,
por um lado, a corrupções na tradição de aprendizado e, por
outro, a uma atitude que antagoniza ou mesmo despreza o
passado e as conquistas daqueles que a precederam.
 
3
 
Dez anos atrás, em 1974-1975, escrevi minha autobiografia,
uma biografia intelectual intitulada Filósofo em geral. Enquanto
releio seu capítulo final, posso ver a substância deste livro
emergir do que ali escrevi.
Confessei francamente o meu compromisso para com a
sabedoria filosófica de Aristóteles, tanto especulativa quanto
prática, e com a de seu grande discípulo, Santo Tomás de
Aquino. Os insights essenciais e as distinções indispensáveis
necessárias à correção dos erros filosóficos cometidas nos
tempos modernos podem todas ser encontradas nestes dois
autores.
Algumas coisas ditas no capítulo final daquele livro são
repetidas aqui, no capítulo final deste livro. Uma vez que não
posso melhorar o que escrevi há dez anos, trarei um excerto e
farei uma paráfrase do que disse naquela ocasião.
Aos olhos dos meus contemporâneos, o rótulo “aristotélico”
tem conotações pejorativas, as quais foram assumidas pela
maioria dos filósofos desde o início da Modernidade. O adjetivo
“aristotélico”, atribuído a alguém, tem implicações altamente
derrogatórias. Ele sugere que essa pessoa tem mente fechada,
e em tal grau de sujeição escravizante ao pensamento de um
único filósofo que a torna impermeável aos certeiros insights
ou argumentos de outros filósofos.
Entretanto, é certamente possível ser um aristotélico — ou o
devoto discípulo de algum outro filósofo — sem também aderir
cegamente e de modo escravizante a suas visões, jurando
piamente que ele nunca erra, que sempre está certo em tudo
quanto diz, ou que ele monopolizou o mercado da verdade e
não tem, em hipótese alguma, nenhum defeito ou deficiência.
Tal declaração seria tão absurda que apenas um tolo ousaria
afirmá-la. Tolos aristotélicos deviam haver entre os escolásticos
decadentes que ensinaram filosofia nas universidades nos
séculos XVI e XVII. Eles são, provavelmente, os responsáveis
tanto pela veemência da reação contra Aristóteles, quanto pela
flagrante incompreensão ou ignorância relativa ao seu
pensamento que pode ser encontrada em Thomas Hobbes,
Francis Bacon, Descartes, Spinoza e Leibniz.
A loucura não é a aflição própria dos aristotélicos. Casos
assim podem ser certamente encontrados, no último século,
entre aqueles que de bom grado chamaram a si mesmos
kantianos ou hegelianos; e em nossos próprios dias, entre
aqueles que se orgulharam de ser discípulos de John Dewey ou
de Ludwig Wittgenstein. Mas se é possível ser seguidor de um
desses filósofos modernos sem chegar ao extremo da tolice,
não é menos possível ser um aristotélico que rejeite os erros e
deficiências de Aristóteles ao mesmo tempo em que abrace as
verdades que ele é capaz de nos ensinar.
Mesmo garantindo que é possível ser aristotélico sem ser
dogmático quanto ao pensamento de Aristóteles, permanece a
pecha de que ser um aristotélico é, de algum modo, menos
respeitável, nos últimos séculos e em nosso tempo, que ser um
kantiano ou um hegeliano, um existencialista, um utilitarista,
um pragmatista, ou qualquer outro “-ista” ou “-iano” que
possamos pensar. Sei, por exemplo, que a maioria dos meus
contemporâneos se sentiu ultrajada com a minha afirmação de
que a Ética de Aristóteles é um livro único na tradição ocidental
de filosofia moral, a única ética que é sólida, prática e não-
dogmática.
Se uma afirmação similar fosse feita por um discípulo de
Kant ou de John Stuart Mill em um livro que expusesse ou
defendesse as concepções kantiana ou utilitarista da filosofia
moral, ela seria recebida sem o franzir de cenhos ou o balançar
de cabeças em tom de reprovação. Por exemplo, foi dito
repetidas vezes neste século, e assim a coisa permaneceu
inquestionável, que a teoria das descrições de Bertrand Russell
foi fundamental para o desenvolvimento da filosofia da
linguagem; mas isto simplesmente não aconteceria se eu
dissesse o mesmo da teoria aristotélico- -tomista dos sinais
(acrescentando que ela coloca a teoria das descrições de
Russell em perspectiva melhor que a concepção corrente que
se tem dela).
Por que isso é assim? A minha única resposta para isso é
que há, da parte dos modernos contemporâneos, muita
dificuldade em razoavelmente crer que Aristóteles e Santo
Tomás, dada a antiguidade de seus pensamentos, pudessem
estar certos em relação a questões nas quais filósofos
posteriores estavam errados. Certamente muita água deve ter
rolado debaixo da ponte da filosofia ao longo dos últimos três
ou quatro séculos para que se prefira optar por uma postura
mental mais aberta e que abandone ensinamentos tradicionais
em favor de outros mais recentes e, portanto, supostamente
melhores.
Minha resposta a essa visão é negativa. Encontrei falhas nos
escritos de Aristóteles e Santo Tomás, mas não foi a minha
leitura das obras filosóficas modernas que me chamou a
atenção para tais falhas, nem o que me ajudou a corrigi-las. Ao
contrário, foi minha compreensão dos princípios subjacentes e
dos insights formativos que governam o pensamento desses
dois autores que me forneceu a base para apurar e amplificar
seus pontos de vista naquilo em que são deficientes ou
falaciosos.
Devo dizer uma vez mais que em filosofia, tanto
especulativa quanto prática, poucos avanços, para não dizer
nenhum, foram feitos nos tempos modernos. Ao contrário,
muito se perdeu como resultado de erros que poderiam ter sido
evitados se antigas verdades tivessem sido preservadas na
Modernidade em vez de ignoradas.
A filosofia moderna, como eu a vejo, teve um começo muito
ruim — com Hobbes e Locke na Inglaterra, e com Descartes,
Spinoza e Leibniz no continente. Cada um destes pensadores
agiu como se não tivesse predecessores a quem consultar,
como se estivesse começando a construir pela primeira vez, do
zero, todo um sistema de filosofia.
Não conseguimos encontrar em seus escritos nenhuma
evidência de que partilhassem da idéia aristotélica de que
homem algum é capaz, por si mesmo, de alcançar e esgotar a
verdade total, embora, coletivamente, seja possível dela
aproximar-se consideravelmente; nem nunca manifestaram o
menor traço de vontade de opor dialeticamente as visões de
seus predecessores para tentar reconciliá-las no que fosse
possível e, com isso, se beneficiarem de tudo quanto fosse
positivo em seus pensamentos e evitarem seus erros. Bem ao
contrário, carentes de algo como um exame crítico e cuidadoso
das visões dos seus predecessores, em vão estes pensadores
modernos repudiam o passado como se fosse um repositório de
erros. A descoberta da verdade filosófica começa neles
mesmos.
Procedendo, portanto, com ignorância ou incompreensão
das verdades que poderiam ter sido encontradas na tradição
do pensamento ocidental fundada há quase dois milênios,
estes filósofos modernos cometeram erros cruciais em seus
pontos de partida e em seus postulados iniciais. A comissão
destes erros pode ser explicada em parte pelo antagonismo
com relação ao passado, e mesmo pelo desprezo com relação a
ele.
A explicação do antagonismo reside no caráter dos
professores sob cuja disciplina estes filósofos modernos
estudaram em sua juventude. Estes professores não lhes
transmitiram a tradição filosófica como uma coisa viva
recorrendo aos escritos dos grandes filósofos do passado. Eles
não leram nem comentaram as obras de Aristóteles, por
exemplo, como fizeram os grandes mestres do século XIII.
Apesar disso, os escolásticos decadentes que ocuparam
postos de ensino nas universidades dos séculos XVI e XVII
fossilizaram a tradição apresentando-a em um formato mofado
e dogmático, usando um jargão que antes ocultava, ao invés
de revelar, as verdades nela contidas. Suas palestras devem
ter sido tão grosseiras e desestimulantes quanto são a maioria
dos livros didáticos e manuais escolares; seus exames e
investigações das doutrinas antigas devem ter enfatizado
antes a sua letra do que o seu espírito.
Não é de admirar que os primeiros pensadores modernos,
assim enganados por seus professores, rejeitassem o
pensamento antigo. Sua repugnância, embora certamente
explicável, não pode ser de todo perdoável, pois eles poderiam
ter reparado os danos voltando-se aos textos de Aristóteles ou
de Santo Tomás nos seus anos de maturidade e lendo-os atenta
e criticamente.
Que eles não o tenham feito se pode depreender de um
exame de suas principais obras e de suas biografias
intelectuais. Ao rejeitar certos pontos da doutrina herdada do
passado, fica perfeitamente claro que eles não os entendem
propriamente; ademais, cometem erros que derivam da
ignorância de distinções e insights altamente relevantes para a
resolução dos problemas que pretendem resolver.
Com muitas poucas exceções, tal incompreensão e
ignorância das conquistas filosóficas obtidas anteriormente ao
século XVI foi o pecado original do pensamento moderno. Seus
efeitos não estão restritos aos filósofos dos séculos XVII e XVIII,
mas são evidentes nas obras dos filósofos do século XIX e nos
escritos de nossos dias. Podemos encontrá-los, por exemplo,
nas obras de Ludwig Wittgenstein, o qual, apesar de todo seu
brilhantismo e fervor filosófico, tropeça no escuro ao lidar com
problemas sobre os quais seus predecessores pré-modernos,
desconhecidos dele, lançaram grande luz.
A filosofia moderna nunca se recuperou de seu falso
começo. Como homens que, debatendo-se na areia movediça,
agravam suas dificuldades ao lutar para se libertar, Kant e seus
sucessores multiplicaram as dificuldades e perplexidades da
filosofia moderna por meio de seus extenuantes — e até
ingênuos — esforços para se libertar da confusão deixada em
seu passado por Descartes, Locke e Hume.
Para recomeçar com o pé direito, é necessário apenas abrir
os grandes livros filosóficos do passado (especialmente aqueles
escritos por Aristóteles e pela tradição que se lhe seguiu) e lê-
los com o esforço de compreensão que eles merecem.
Recuperar verdades fundamentais há muito perdidas de vista
eliminaria os erros que tiveram consequências tão desastrosas
nos tempos modernos.
 

FIM
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nos tempos modernos, poucos avanços foram feitos
(para não dizer nenhum) em filosofia. Ao contrário, muito se
perdeu como resultado de erros que teriam sido evitados se
a modernidade tivesse preservado, e não ignorado, algumas
verdades antigas.
A filosofia moderna começou muito mal — com Hobbes e
Locke na Inglaterra, e com Descartes, Spinoza e Leibniz no
continente. Cada um desses pensadores agiu como se não
tivesse predecessores a quem consultar, como se estivesse
começando a construir pela primeira vez, do zero, todo um
sistema de filosofia.
Carentes de algo como um exame crítico e cuidadoso das
visões dos filósofos antigos e medievais, em vão os
pensadores modernos repudiaram o passado como se fosse
um repositório de erros. Mas ao rejeitar certos pontos da
doutrina herdada do passado, fica perfeitamente claro que
eles não a entenderam propriamente, porque os erros que
cometem provêm da ignorância de distinções e insights já
consagrados, essenciais para a resolução dos problemas
que os modernos se propõem a resolver.
 
 
 
 
 
 
 
NOTAS
 
1 O autor tem o tempo todo utilizado o termo meaning para se referir ao
significado das palavras, ao seu aspecto inteligível, em oposição ao significante, seu
aspecto material ou sensível — ao qual o autor se refere como meaningless
nottation [notação não-significativa, em nossa tradução] —, os quais ambos,
tomados juntos, unitivamente, como um sínolo hilemórfico (substância composta de
matéria e forma) no sentido aristotélico, perfazem aquilo que os lingüistas lograram
chamar “signo”, dos quais as palavras são um perfeito exemplo, como aliás bem
explica o autor. Por esse motivo, optamos nesta tradução por verter meaning por
“significado” em vez de “sentido”, embora esta última opção — se por ela
tivéssemos optado — não fosse também de todo ruim e apontasse para outras
nuances semânticas do termo, com implicações inclusive de ordem filosófica, como
a explicitação para o leitor da identificação do significado ou forma inteligível dos
entes com o seu sentido, isto é, com o fim ou propósito ou causa final a que se
ordenam — tese esta fundamental para a reta compreensão da metafísica
tradicional de base aristotélico-tomista. — NT
2 Esta questão foi respondida detalhadamente no primeiro capítulo e a
resposta não precisa ser repetida aqui. Cf. supra.
3 Cf. a seção 4 do capítulo n, acima.
4 Six Great Ideas (1981) [Seis grandes idéias, ainda inédito no Brasil — NT].
5 O Institute for Philosophical Research publicou, após oito anos de trabalho,
dois volumes de A idéia de liberdade, em 1958 e 1961. No segundo destes volumes,
mais de trezentas páginas (223-525) foram dedicadas a delinear e esclarecer a
controvérsia entre os deterministas e os defensores da vontade livre e do livre-
arbítrio. Leitores que desejem ir além do breve e inadequado resumo dado aqui
neste livro poderão dirigir-se àquelas páginas.
6 Em um livro anterior meu, Ao anjos é nós (1982), o capítulo 11, intitulado
“Política angelista”, fornece brevemente todas as razões pelas quais uma pacífica
anarquia pode ser considerada tanto uma fantasia utópica quanto uma falácia
angelista.
7 Philosophical Problems of Nuclear Physics, pp. 55-56.
8 Ibid., p. 103.
 
 
 

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