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EICHMANN EM JERUSALÉM E A BANALIDADE

DO MAL: PERCEPÇÕES NECESSÁRIAS PARA A


URGÊNCIA DE UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS
HUMANOS
Letícia Regina Konrad1

Resumo: O presente artigo traz à baila o sentido da banalidade do mal para Hannah Arendt, em sua obra
“Eichmann em Jerusalém”. Após a percepção desse contexto, inicia-se uma interlocução com o discurso
atual dos direitos humanos e, consequentemente, com a iminente educação em direitos humanos. Analisa-
se a proposta da emancipação a partir da educação de modo que tais atrocidades não mais se repitam, ou
seja, uma educação para a humanização, em que o sujeito se perceba como de direitos e deveres para
com o outro. Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar a questão da alteridade, como componente
estrutural para a prática desse discurso. Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo,
fundamentado na análise de bibliografias sobre o tema.

Palavras-chave: Direitos humanos. Banalidade do mal. Educação em direitos humanos. Estado


democrático de Direito.

Abstract: The present article brings up the sense of the banality of evil to Hannah Arendt in her book
“Eichmann in Jerusalem”. After the perception of such a context, it starts a dialogue with the current human
rights discourse and consequently with the impending human rights education. Analyzes the proposal
of emancipation through education so that such atrocities not recur, ie, an education for humanization,
where the subject is perceived as rights and duties towards each other. And in that sense, one can not fail
to mention the issue of otherness, as a structural component to the practice of this discourse. For this, we
use the method of hypothetical-deductive approach, based on analysis of bibliographies on the subject.

Keywords: Human Rights; Banality of Evil; Human Rights Education; Democratic State.

“O mundo não é humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim
somente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em
objeto do discurso[...] Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos
apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos. Esse
humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos
de filantropia, o amor do homem, já que se manifesta na presteza em compartilhar
o mundo com outros homens.” (Hannah Arendt)

1 Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc,
linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com bolsa Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante do grupo de Pesquisa Direitos Humanos, coordenado
pelo Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski, e do grupo de Pesquisa “Comunitarismo, instituições
comunitárias e políticas públicas”, coordenado pelo Prof. Dr. João Pedro Schmidt e pelo Prof. Pós-
Dr. Inácio Helfer, ambos grupos vinculados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), bacharela em Direito, especialista em Direito Civil com ênfase em família e
sucessões, advogada, mediadora familiar e professora do Centro Universitário UNIVATES. E-mail:
leticiakonrad@gmail.com.

Caderno pedagógico, Lajeado, v. 11, n. 2, p. 50-72, 2014. ISSN 1983-0882 50


Letícia Regina Konrad

1 INTRODUÇÃO
Assim que os nazistas chegaram ao poder, colocaram fim à República de Weimar e,
consequentemente, à sua democracia parlamentar. Adolf Hitler, nomeado chanceler em
30 de janeiro de 1933, transforma a Alemanha, com o imediato retrocesso de direitos
fundamentais básicos garantidos na Constituição de Weimar2. O parlamento alemão
prontamente suspende os direitos civis constitucionais e declara estado de emergência.
Essa situação demonstra que se está diante do Terceiro Reich, momento mais
sombrio vivenciado na Alemanha e com consequências para toda a humanidade. É
iniciada a perseguição aos judeus, ciganos, deficientes físicos e mentais, minorias
consideradas inferiores ao povo alemão, segundo a ideologia nazista. Coloca-se em
prática o holocausto, um genocídio3 em massa de quase seis milhões de judeus, a partir
de um programa de extermínio étnico idealizado pelos nazistas, conhecido como
“Solução Final”.
Não há, no entanto, sombra que paire para sempre na história esquizofrênica da
humanidade. Assim, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda da Alemanha,
vários são os responsáveis trazidos a julgamento, dentre eles um personagem merecedor
de análise: Adolf Eichmann.
Pretende-se no presente artigo trazer a baila o sentido da banalidade do mal para
Hannah Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. Após a percepção desse
contexto, inicia-se uma interlocução com o discurso atual dos direitos humanos e
consequentemente com a iminente educação em direitos humanos.
Analisa-se a proposta da emancipação a partir da educação de modo que essas
atrocidades não mais se repitam, ou seja, uma educação para a humanização, como
denota Paulo Freire, em que o sujeito se perceba como de direitos e deveres para com o

2 “A Constituição de Weimar nunca foi ab-rogada durante o regime nazista, mas a lei de plenos
poderes de 24 de março de 1933 teve não só o efeito de legalizar a posse de Hitler no poder como o
de legalizar geral e globalmente as suas ações futuras. Dessa maneira, como apontou Carl Schmitt –
escrevendo depois da II Guerra Mundial –, Hitler foi confirmado no poder, tornando-se a fonte de
toda legalidade positiva, em virtude de uma lei de Parlamento que modificou a Constituição. [...] Esta
subversão do Direito do Estado, que deixa de ser, em consonância com os procedimentos e técnicas
do constitucionalismo moderno, um mecanismo para controlar o poder e, destarte, uma qualidade de
governo, viu-se aprofundada pela importância de instituições não-disciplinadas por normas, como o
partido e a polícia” (LAFER, 1988, p. 95).

3 “O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico racial ou religioso. É um crime que
ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados – das comunidades políticas. Diz
respeito ao mundo como um todo. É, portanto, um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu
ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária. [...] Indico, inspirado por Hannah Arendt, como
o crime de genocídio, administrado por Eichmann e perpetrado no corpo do povo judeu, é um crime
contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade – características da
condição humana na proposta arendtiana de um mundo centrífugo” (LAFER, 1988, p. 23).

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outro. E nesse sentido, não se pode deixar de mencionar a questão da alteridade como
componente estrutural para a prática desse discurso.
Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, fundamentado
na análise de bibliografias sobre o tema.

2 EICHMANN EM JERUSALÉM: UM RELATO SOBRE A


BANALIDADE DO MAL
Na Casa da Justiça em Jerusalém, o palco foi montado para o espetáculo do
julgamento daquele que deveria ser o maior carrasco nazista: Adolf Eichmann. O
comando israelense havia o encontrou o homem e sequestrou-o no subúrbio de Buenos
Aires em 1960, na Argentina, onde vivera foragido por anos. Após ser encontrado, foi
levado de forma arbitrária para julgamento em Jerusalém, cidade judia.
Na época, Hannah Arendt, representando a Revista The New Yorker, acompanhou
o julgamento, trazendo seus relatos sob perspectiva filosófica e política, que se encontra
na sua obra “Eichmann em Jerusalém”.
Quando da publicação de tal obra, a autora foi muito criticada, pois na condição de
judia lhe era esperado um posicionamento judeu nesse julgamento, que vislumbrasse a
favor de sua “identidade judaica”. Entretanto, para a surpresa de muitos, não foi o que
a autora fez. Ela, na condição de filósofa, ateve-se à descrição dos fatos e trouxe em sua
obra uma reflexão que se encontra atual até os dias de hoje.
O julgamento de Eichmann deveria ser o maior da história após o julgamento do
Tribunal de Nuremberg, entretanto, Hannah traz à tona a figura de um funcionário
mediano, burocrata, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês
burocráticos, descobrindo, a partir de sua análise filosófica, um “coração das trevas”,
cuja capacidade destrutiva e de burocratização da vida pública poderiam representar
uma ameaça à democracia (ARENDT, 1999).
O “monstro da cabine de vidro”, que representava ser funcionário público honesto
e obediente, cumpridor de metas e da lei, a cada dia de julgamento que se passava,
tornava-se mais “arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a
qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral – em suma,
um homem sem consistência própria, em que os clichês e eufemismos burocráticos
faziam às vezes do caráter” (ARENDT, 1999, orelha do livro).
A justiça exige que o acusado seja processado, defendido e julgado, e que fiquem em
suspenso todas as questões aparentemente mais importantes – ‘Como pôde acontecer
uma coisa dessas?’ e ‘Por que aconteceu?’, ‘Por que os judeus?’, ‘Por que os alemães?’, ‘Qual
o papel das outras nações?’ e ‘Até que ponto vai a responsabilidade dos aliados?’, ‘Como
puderam os judeus, por meio de seus líderes, colaborar com sua própria destruição?’ e

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‘Por que marcharam para a morte como carneiros para o matadouro?’. A justiça insiste
na importância de Adolf Eichmann, filho de Karl Adolf Eichmann, aquele homem
dentro da cabine de vidro construída para sua proteção: altura mediana, magro, meia-
idade, quase calvo, dentes tortos e olhos míopes, que ao longo de todo o julgamento fica
esticando o pescoço para olhar o banco de testemunhas (sem olhar nenhuma vez para
o banco da plateia), que tenta desesperadamente, e quase sempre consegue, manter o
autocontrole, apesar do tique nervoso que lhe retorce a boca provavelmente desde muito
antes do começo deste julgamento. Em juízo estão os seus feitos, não o sofrimento dos
judeus, nem o povo alemão, nem a humanidade, nem mesmo o anti-semitismo e o
racismo (ARENDT, 1999, p. 15).
Importante destacar que, com o juramento realizado para Hitler, renunciava-se
à própria consciência4. Nesse sentido, as dimensões dos atos de Eichmann estariam
legitimadas, afinal, este estaria apenas obedecendo às leis e ordens. Arendt (1999) traz
em sua obra a figura de um burocrata, um funcionário a serviço da Alemanha, que
devia obediência ao Führer de forma incondicional5, fato esse que alerta para a reflexão
da banalidade do mal.
Eichmann não se perturbou com questões de consciência. Sua cabeça estava
inteiramente tomada pelo gigantesco trabalho de organização e administração, não
apenas em meio a uma guerra, mas – e isso era muito mais importante para ele –
em meio a inúmeras intrigas e disputas sobre as esferas de autoridade entre os vários
departamentos do Estado e do Partido envolvidos em ‘resolver a questão judaica’
(ARENDT, 1999, p. 168).
Eichmann, quando é ouvido no banco dos réus, tem presente de forma muito
tranquila em seu discurso que apenas “transportava os judeus”, não se sentindo em
momento algum o responsável pela morte deles. A mediocridade de Eichmann espanta,
afinal, era incapaz de pensar, de transcender o que representavam seus atos e atitudes.
Tinha para si apenas o cumprimento de uma tarefa, enaltecendo que a sua maior honra
era sua lealdade.
Nesse sentido, encontra-se a banalidade do mal, a que inviabiliza a capacidade
para juízos morais. Trata-se de apenas um burocrata zeloso, seguidor de regulamentos,
orgulhoso de quando completa suas tarefas com êxito, mesmo que essas tarefas

4 "[...] quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada
quando não fazia aquilo que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para
a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado” (ARENDT, 2009, p. 37).

5 “Aquilo que para Hitler, o único e solitário arquiteto da Solução Final (jamais uma conspiração, se
tal fosse, precisou de menos conspiradores e mais executores), estava entre os principais objetivos
da guerra, cuja implementação era de máxima prioridade, a despeito de considerações econômicas e
militares, e que para Eichmann era um trabalho, com sua rotina diária, seus altos e baixos, era para os
judeus, bastante literalmente, o fim do mundo”. (ARENDT, 1999, p. 170).

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sejam encaminhar judeus para câmaras de gás, valas de morte ou, ainda, campos de
concentração.
Para Arendt (1999), o pensamento, como uma manifestação do ato de pensar, não
é o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio, o bom
do ruim. É o pensar de forma consciente que possibilita a autonomia nas pessoas para
que contemplem a sua liberdade de forma digna e protagonizem as próprias capacidades
dos juízos morais.
Ao observar Eichmann descrevendo o seu trabalho de Chefe da Seção de Assuntos
Judaicos, Arendt (1999) denota a alienação moral dos oficiais nazistas. É evidente
o orgulho sentido por Eichmann ao falar das suas tarefas muito bem desenvolvidas
para atender as ordens do Führer6. Essa obediência é tão cega que nem em seu próprio
julgamento conseguiu dar-se conta das imoralidades cometidas sob o manto das ordens
de Hitler. Intitula-se com muito orgulho, um cidadão respeitador das leis e moralmente
acobertado pelas leis da época.

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do
Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das
leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele
não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção
de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes
jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas bem gastas das ‘ordens superiores’
versus os ‘atos de Estado’ circulavam livremente; haviam dominado toda a discussão
desses assuntos durante os julgamentos de Nuremberg, pura e simplesmente por
dar a ilusão de algo absolutamente sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com
seus dotes mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de
quem podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria. Como
além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador
das leis, ele também agia sob ordens – sempre cuidado de estar ‘coberto’ –, ele
acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e
vícios da obediência cega, ou ‘obediência cadavérica’ (kadavergenhorsam), como ele
próprio a chamou (ARENDT, 1999, p. 152).

6 "O que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente
a ideia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único (‘uma grande tarefa que só ocorre
uma vez em 2 mil anos’), o que, portanto, deve ser difícil de aguentar. Isso era importante porque os
assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático
para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam. As tropas dos Einsatzgruppen
tinham sido convocadas da SS Armada, uma unidade militar que não tinha em seu histórico nada além
da cota normal de crimes de qualquer unidade comum do Exército alemão, e seus comandantes foram
escolhidos por Heydrich entre a elite da SS, gente com diplomas acadêmicos. Por isso o problema
era como superar não tanto a consciência, mas sim a piedade animal que afeta todo o homem normal
em presença de sofrimento físico. O truque usado por Himmler – que aparentemente sofria muito
fortemente com essas reações instintivas – era muito simples e provavelmente eficiente; consistia em
inverter a direção desses sentidos, fazendo com que apontassem para o próprio indivíduo. Assim, em
vez de dizer ‘Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas’, os assassinos poderiam dizer ‘Que coisas
horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros!’ ”
(ARENDT, 1999, p. 122).

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Ainda, verifica-se a “banalidade do mal” trazida por Arendt (1999) quando se


depara com o fato de nenhum traço de perversão ou sadismo, demonstrando, portanto,
a normalidade de Eichmann ante aquela engrenagem insana de eliminação de pessoas
tão humanas quanto os executores à época do Terceiro Reich.

O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e
muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e
assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos
padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do
que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente
em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de
criminoso, efetivamente hostis generis humanis, que comete seus crimes em
circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que
está agindo errado. Sob esse aspecto, as provas no caso de Eichmann eram ainda
mais convincentes que as provas apresentadas no julgamento dos criminosos de
guerra, cujas alegações de consciência tranquila podiam ser descartadas mais
facilmente porque combinavam o argumento da obediência a ‘ordens superiores’
com várias bazófias sobre ocasionais desobediências. Mas embora a má-fé dos
acusados fosse manifesta, a única base para se provar efetivamente a consciência
pesada seria o fato de os nazistas, e especialmente as organizações criminosas a que
Eichmann pertencera, terem estado muito ocupados em destruir a prova de seus
crimes durante os últimos meses de guerra. E essa base era bastante frágil. Não
fez mais que comprovar o reconhecimento de que a lei de assassinato em massa,
devido a sua novidade, ainda não era aceita por outras nações; ou, na linguagem
dos nazistas, que eles tinham perdido sua luta para ‘libertar’ a humanidade do
‘domínio dos subumanos’, principalmente da dominação dos Sábios de Sion; ou,
em palavras comuns, o fato não provara mais do que a admissão da derrota. Algum
deles teria sofrido de consciência pesada se tivesse vencido? (ARENDT, 1999, p.
299-300).

É impressionante como o funcionário público Eichmann tinha introjetado dentro


de si o discurso de que cumpria “atos de Estado”, devendo obedecer sem pensar no
significado de uma ordem. Tanto é verdade que no seu julgamento nega fervorosamente
ter algo a ver com a morte dos judeus, dizendo nunca ter matado um judeu, ou um não
judeu, ou ainda um ser humano, ou seja, demonstra desconhecer a prática de qualquer
crime nesse sentido e declara-se inocente até o final do julgamento.
Assim como Eichmann, vários eram considerados “normais” reproduzindo o mal,
entretanto, no Terceiro Reich houve alguns momentos de luz, de esperança, em que
houve a recuperação da consciência. A Dinamarca7, por exemplo, foi um dos poucos

7 Lafer (1988, p. 27) foi aluno de Hannah Arendt e menciona em suas obras a análise desta sobre
a desobediência civil na situação verificada na Dinamarca frente à política antissemita do invasor
nazista. Ele denota que, para a filósofa política, a desobediência civil é legítima, podendo ser bem
sucedida na resistência à opressão. Ainda, cumpre ressaltar que a “obediência como virtude foi a base
da condição verdadeiramente abjeta da possibilidade do nazismo enquanto um modelo de assassinatos
em massa” (ANDRADE, 2010, p. 115).

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países que teve uma jogada de mestre quando foram abordados pelos alemães para
entregarem os seus judeus do país. Uma vez que o Estado foi solicitado para introduzir
o emblema amarelo na sua população judia como identificador, eles simplesmente
disseram que o seu rei seria o primeiro a fazer questão de usá-lo. Claro que, para essa
resposta, tiveram a cautela de saber no que implicaria a renúncia ao uso, misturando,
então, os dinamarqueses nativos de origem judaica aos judeus alemães refugiados
asilados no país antes da guerra, agora declarados apátridas pela Alemanha.
Assim, utilizaram-se do argumento dos judeus alemães apátridas não mais serem
cidadãos alemães e, nesse sentido estarem sob a responsabilidade da Dinamarca,
necessitando, portanto, do consentimento do país para a requisição daqueles. Ou seja,
pode-se dizer que foi um ato em que o governo dinamarquês optou por proteger os
judeus do seu Estado, dando-se conta do que aconteceria se os entregasse ao Estado
Alemão.

Política e psicologicamente, o aspecto mais interessante desse incidente é talvez


o papel desempenhado pelas autoridades alemãs na Dinamarca, sua evidente
sabotagem das ordens de Berlim. É o único caso que conhecemos em que os
nazistas encontraram resistência nativa declarada, e o resultado parece ter sido que
os que foram expostos a ela mudaram de ideia. Aparentemente eles mesmos haviam
deixado de ver com naturalidade o extermínio de todo um povo (ARENDT, 1999,
p. 193-194).

Embora a Alemanha tenha burlado a verdadeira proposta do Terceiro Reich,


maquiando a Solução Final e iludindo os povos com a ideia de que se direcionavam para
uma “nova pátria”, alguns países conseguiram se dar conta do que estava efetivamente
acontecendo e mostraram-se contrários principalmente às deportações judias, para
proteger essas vidas. Ou seja, conseguiram recuperar a consciência antes de auxiliar a
Alemanha.
Eichmann teve papel fundamental na logística da deportação da comunidade
judaica. Era considerado um especialista na concentração e evacuação de judeus da
Alemanha, da Áustria e da Tchecoslováquia pelo transporte ferroviário que conduzia
aos campos de concentração. Pode-se dizer que sua inteligência foi otimizada para a
realização das maiores atrocidades possíveis contra o ser humano.
Embora tenha apresentado uma vida comum, sem grandes méritos e congratulações
frente a sua comunidade, em 1932 Eichmann entrou para o Partido Nacional Socialista,
desconhecendo totalmente a ideologia partidária, nunca tendo sequer lido o livro
referencial “Mein Kampf ”, que desenvolvia o programa partidário.
Em 1934, solicitou um emprego público e tornou-se empregado da SD (Serviço de
Inteligência do Partido), com atuação na SS (uma espécie de tropa de elite a favor do

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partido). Posteriormente foi promovido a chefe de Seção de Assuntos Judaicos, eis que
apresentou grande destaque na questão da logística8 para o holocausto.
O que restou nas memórias de Eichmann não foi a evacuação e deportação de
judeus, pois isso, para ele, eram práticas diárias, da rotina. Suas memórias eram
preenchidas com o jogo de boliche, com o fato de ser hóspede de um ministro
(ARENDT, 1999). Essas lembranças assustavam ainda mais Arendt, pois o grande
carrasco esperado não passava de um homem pragmático incapaz de ter consciência de
seus atos e atitudes.
Para Arendt (1999), o mal é a ausência de pensamento, vinculando-se à capacidade
humana de discernir o bem do mal. Eichmann respondeu por seus atos mecanizados,
por suas más ações diante de um sistema capaz de tornar uma simples conduta repetitiva
em completa alienação. A banalidade do mal é quando não mais se percebe o próprio
agir, não consegue se colocar no lugar do outro e ter a dimensão do que representa o
próprio ato.

Os buracos de esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e


simplesmente existem no mundo pessoas demais para que seja possível o
esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história. Portanto,
nada pode ser ‘praticamente inútil’, pelo menos a longo prazo. Seria de grande
utilidade prática para a Alemanha de hoje, não meramente para o seu prestígio no
estrangeiro, mas para a sua condição interna tristemente confusa, se houvesse mais
dessas histórias para contar. Pois a lição dessas histórias é simples e está ao alcance
de todo o mundo. Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a
maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a
lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela ‘poderia acontecer’
na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente
falando, não é preciso nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro dos limites
do razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio para a vida
humana (ARENDT, 1999, p. 254).

A humanidade deve aprender a indignar-se para que possa alterar o seu presente
e construir um futuro digno. Assy (2001) diz que Arendt vislumbrou em Eichmann
alguém com ausência de pensamento crítico e autônomo, em que foi verificada a
banalidade do mal, quando os agentes identificavam as suas vítimas não mais como
pessoas, mas como, simplesmente “algo supérfluo”, sem valor, desumano. A banalização

8 Era impressionante a capacidade de logística de Eichmann. Ele otimizou, inclusive, os passaportes


para os judeus, que antes levavam meses para conseguir: “Quando Eichmann entendeu como a coisa
toda funcionava, ou melhor, não funcionava, ele ‘se pôs a pensar’ e ‘concebi a idéia que achei que iria
fazer justiça a ambas as partes”. Ele imaginou “uma linha de montagem, na qual o primeiro documento
era posto no começo, depois iam sendo inseridos os outros papéis, e no final o passaporte teria de sair
como produto final”. Os judeus entravam na fila ainda com suas propriedades e “saíam na outra ponta
sem dinheiro, sem direitos, apenas com um passaporte onde se lê: ‘Você deve deixar o país dentro de
quinze dias. Senão irá para um campo de concentração’” (ARENDT, 1999, p. 58).

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do mal representa, portanto, a falta de reflexão sobre os acontecimentos, a falta de


alteridade.
Interessante trazer os apontamentos de Lafer (1988, p. 178):

De fato, num Estado totalitário fundado em princípios criminosos, a lei é


instrumento de uma dominação posta a serviço da perversidade, que não se
encontra nas pessoas que agem em conjunto ou individualmente, mas sim na
dinâmica corruptora do totalitarismo. Esta dinâmica marcou os algozes, permeou
a sociedade e alcançou até mesmo as vítimas. É por essa razão que o mal, no III
Reich, deixou de ser uma tentação individual ou a conspiracy de um grupo para
converter-se em legalidade.

Tanto Eichmann quanto a maioria dos cidadãos alemães respeitavam e acatavam a


lei, daí a inadequação frente à ruptura totalitária, valendo-se do positivismo jurídico, que
identifica o Direito com a lei. Justificavam-se as banalidades a partir do cumprimento
legítimo da lei, afinal, próprio da cultura positivista: uma vez escrito, cumpra-se.
Para Lafer (1988, p. 179), o genocídio não significa “uma discriminação em relação
a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de guerra, nem um
crime contra a paz”. Trata-se de um “crime burocrático, sem precedentes, cometido por
pessoas ‘aterradoramente normais’ como Eichmann”. Essas pessoas agem sob o manto
da capacidade profissional e não por inclinação para o mal radical. É a técnica que
torna banal o assassinato em massa, inviabilizando todo e qualquer pensamento.

É minha opinião agora que o mal nunca é ‘radical’, que ele é apenas extremo e
que não possui nem profundidade nem dimensão demoníaca. Ele pode invadir
e destruir todo o mundo precisamente porque se propaga como um fungo na
superfície. Ele desafia o pensamento, como disse, porque o pensar busca a
profundidade, procura alcançar as raízes e, no momento em que se ocupa do mal,
se vê frustrado porque nada encontra. Esta é a banalidade do mal. Só o bem tem
profundidade e pode ser radical (ARENDT apud SOUKI, 1998, p. 101).

O ato de pensar e refletir apresenta consequencias morais, gera discursos consigo


mesmo para que se previna o mal. O totalitarismo, ao fixar formas homogêneas para
o agir e o pensar, priva o ser humano para algo de mais humano que é capaz de fazer:
pensar e refletir.
Para Arendt, o mal9 não tem raízes, não tem profundidade. Como um fungo,
espalha-se pela sociedade, alastrando-se na “massa de cidadãos inaptos para a capacidade

9 “A questão do mal não é, assim, uma questão ontológica, uma vez que não se apreende uma essência do
mal, mas uma questão da ética e da política. [...] O problema do mal sai, verdadeiramente, dos âmbitos
teológico, sociológico e psicológico e passa a ser focado na sua dimensão política” (SOUKI, 1998, p.
104).

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de pensar e incapazes para dar significado aos acontecimentos e aos próprios atos”
(ANDRADE, 2010, p. 113). O mal, portanto não tem inspiração própria, mas nem
mesmo por isso pode ser menos catastrófico frente as suas consequências. O precipício
entre a gravidade dos atos e a simplicidade das motivações é o que dá ênfase ao conceito
de banalidade de Arendt.

O mal, portanto torna-se banal a partir da superficialidade e da superfluidade.


A superficialidade está contida na ideia de que quanto mais superficial for uma
pessoa, maior a probabilidade de ela ceder aos encantos do mal. Para tanto,
utilizam-se os clichês, as frases feitas, adesão a códigos e expressão e conduta
convencionais e padronizadas, que impedem a percepção da realidade e do
consequente pensamento aprofundado. Essa superficialidade é facilmente
verificada em Eichmann. Já a superfluidade vincula-se ao sentido utilitário das
sociedades de massa, em que a política e a economia tornam o homem supérfluo a
partir de seus instrumentos totalitários (ARENDT, 1999).

Assim, frente a essa discussão, não há como deixar de mencionar a importância


da educação em direitos humanos justamente para evitar o retrocesso humano e a
continuidade das banalidades do mal, que foi objeto de estudo do presente item.
Quantos são os Eichmanns espalhados pelo mundo, que, induzidos por um discurso,
se esquecem da própria consciência10 , perdendo-se de si mesmos, e perdidos os seus
valores, cometem crueldades.
Não é necessário ir muito longe para lembrar algumas situações brasileiras, como
o caso do índio pataxó, Galdino Jesus dos Santos, líder indígena, queimado vivo em
um abrigo de um ponto de ônibus em Brasília, no dia 20 de abril de 1997, após ter
participado de manifestações do Dia do Índio. O crime foi praticado por cinco jovens
da classe média-alta da cidade.
O discurso dos direitos humanos, o qual é evidenciado a partir da proteção do
ser humano, independente da cor, classe, credo ou raça, dá-se de forma igualitária e
universal. Esse discurso surge de forma iminente após as barbáries da Segunda Guerra
Mundial. Nesse período, o mundo se dá conta dos momentos sombrios, dos crimes
cometidos para com o outro. A falta de alteridade talvez possa ser buscada nesse mesmo
discurso, que prevê a universalização da democracia a partir da cultura da paz. Nesse
sentido, traz-se o próximo item do presente artigo.

10 "Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que cria o comprometimento.


Não é saber que a bomba mata, e sim saber o que queremos fazer com ela que determina se a faremos
explodir ou não. Em geral, ignoramos ou fingimos desconhecer isso, para evitar a responsabilidade que
nos cabe em todos os nossos atos cotidianos, já que todos estes – sem exceção – contribuem para formar
o mundo em que existimos e que validamos precisamente por meio deles, num processo que configura
o nosso porvir. Cegos diante dessa transcendência de nossos atos, pretendemos que o mundo tenha
um devir independentemente de nós, que justifique nossa irresponsabilidade por eles. Confundimos a
imagem que buscamos projetar, o papel que representamos, com o ser que verdadeiramente construímos
no nosso viver cotidiano” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 270-271).

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EICHMANN EM JERUSALÉM E A BANALIDADE DO MAL: PERCEPÇÕES...

3 DIREITOS HUMANOS: APENAS UM DISCURSO? A EDUCAÇÃO


EM DIREITOS HUMANOS COMO PRÁTICA DIÁRIA NA
CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é um marco fundamental
na história dos direitos humanos, uma vez que trouxe consigo um olhar de proteção
para a sociedade, relembrando valores como cidadania, democracia, participação
política, igualdade e solidariedade que são intimamente reforçados na educação em
direitos humanos. Ela trouxe consigo princípios morais e éticos que devem servir de
orientação para todas as nações, representando a baliza da internacionalização dos
direitos humanos.
Sabe-se que o momento histórico no qual a Declaração foi redigida ocorreu
justamente após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial,
demonstrando, portanto, a preocupação mundial com a paz.
O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos traz a grande
necessidade de esforços entre indivíduos e entidades, no sentido de viabilizar a educação
em direitos humanos, de modo a reforçar que os homens devem ser livres e iguais em
dignidade e direitos.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros


da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento
da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o
desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram
a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor
e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de
Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião
contra tirania e a opressão, Considerando essencial promover o desenvolvimento
de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações
Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na
dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e
das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições
de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros
se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o
respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância
desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses
direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse
compromisso [...] (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO
HOMEM, 1948, preâmbulo)

Tamanha a importância da Declaração, ela foi transcrita para mais de 360 idiomas,
sendo o documento mais traduzido do mundo e servindo de inspiração para muitos
Estados e democracias da atualidade (ONU, 2013).

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A partir da perspectiva trazida pela Declaração, “[...] somos iguais na diferença e na


diversidade”, de modo que a “consciência do outro como um igual precisa ser lembrada,
reconhecida, aperfeiçoada a cada momento de nosso processo de permanente educação”
(FORTES, 2010, Apresentação).
A partir da Conferência de Viena, realizada no ano de 1993 pela Organização
das Nações Unidas, instaurou-se a “Década Internacional da Educação em Direitos
Humanos”, fomentando que todos os países membros organizassem processos
educacionais para promoção da compreensão dos direitos fundamentais do ser
humano como forma eficiente no enfrentamento aos abusos e violações de “direitos
civis e políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, bem como no combate
à intolerância étnico racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual,
de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política” etc. (FORTES,
2010, Apresentação).
Então, no Brasil, criou-se o Programa Nacional de Direitos Humanos, no ano de
1996, apresentando uma segunda versão no ano de 2002 e uma terceira no ano de 2009.
A partir do Programa Nacional, houve mobilização para a realização de um plano de
ação, o qual consistuiu posteriormente o Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos, que atualmente se encontra conjecturado em sua segunda versão e dispõe de
diretrizes e princípios gerais que estabelecem ações programáticas a serem alcançadas
em cinco eixos ou áreas, a saber: educação básica, educação superior, educação não
formal, educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e educação e
mídia (BRASIL, Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, 2009).
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) representa o
compromisso do Estado com a concretização dos direitos humanos, tendo como princípio
a afirmação dos direitos humanos como universais, indivisíveis e interdependentes,
buscando, consequentemente, a promoção da igualdade de oportunidades e da
equidade no que diz respeito à diversidade e, principalmente, na consolidação de uma
cultura democrática e cidadã. Trata-se de uma política pública que visa a aperfeiçoar os
ideais do Estado Democrático de Direito (BRASIL, Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, 2009).
A educação em direitos humanos pode ser compreendida como:

[...] um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação dos sujeitos


de direitos, articulando várias dimensões, como apreensão do conhecimento sobre
Direitos Humanos; a afirmação de valores, atitudes e práticas que expressam
uma cultura de Direitos Humanos; a afirmação de uma consciência cidadã; o
desenvolvimento de processos metodológicos participativos; e o fortalecimento
de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da
promoção e da defesa dos Direitos Humanos (FORTES, Apresentação, 2010).

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Para Carbonari (2009, p. 149), existem princípios fundamentais que devem orientar
a educação em direitos humanos. São eles:

a) aprendizagem reflexiva e crítica, pelo acesso ao saber acumulado historicamente


pela humanidade e sua reconstrução a partir das vivências; b) aprimoramento da
sensibilidade (artística e estética), para perceber, promover e produzir na e com
a diversidade, como congraçamento; c) capacidade de acolhimento, cuidado e
solidariedade no reconhecimento do outro, especialmente o mais fraco; d) postura
de indignação ante todas as formas de injustiça e disposição forte para a superação
– não somente punitiva; e) disposição à corresponsabilidade solidária na garantia
de promoção da vida de/para todos.

A Unesco (2009, p. 1) afirma ser imprescindível a construção de ações pedagógicas


capazes de possibilitar que os educandos possam compreender a agir ante as carências
de direitos do outro. Assim, “tanto o que é ensinado como o modo que é ensinado
deve refletir os valores dos direitos humanos, estimular a participação a esse respeito e
fomentar ambientes de aprendizagem nos quais não existam temores e carências”.
Sabe-se que o atual constitucionalismo contemporâneo volta-se para a promoção
da dignidade da pessoa humana11, irradiando em todo o sistema jurídico. Nesse sentido,
uma política pública voltada para a educação em direitos humanos vem ao encontro
da afirmação dos ideais vislumbrados pelos Estados Democráticos, que, por sua vez,
corrobora com a afirmação de Bobbio12, de que não há democracia sem proteção de
direitos humanos e não há possibilidade de construção de paz sem a democracia.

Compreender a democracia e os direitos humanos como uma construção que se faz


ao longo da história, e que tem diante de si o futuro, pressupõe atribuir à educação
um lugar indispensável de formação em e para os direitos humanos, na medida em

11 Com a Constituição Federal de 1988, resta evidente a busca do equilíbrio entre a esfera de proteção
social e o regime capitalista de mercado. O Estado assume o papel de médium entre sua função de
regulador econômico em contraponto ao seu papel de garantidor social, perquirindo sempre a proteção
da dignidade da pessoa humana e a concretização dos direitos fundamentais.

12 “A princípio, a enorme importância dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente
ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a
proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz
é pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema
internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente tivemos uma nova experiência – que diz
inter arma silent leges. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpétua só
pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa
democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do
homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos
e entre grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os
Estados, apesar de serem democráticas com os próprios cidadãos” (BOBBIO, 2004, p. 203).

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que, através do ato educativo, pode-se senão transformar a sociedade, construir a


cultura indispensável para esta transformação (VIOLA, 2010, p. 22).

Deve haver uma ligação indissolúvel entre os direitos humanos, a democracia e a


resolução pacífica de conflitos para que efetivamente possa se pensar no ser humano
como elemento central do ordenamento não só jurídico.
O tema educação em direitos humanos atrela-se ao discurso do processo de
redemocratização no Brasil, marcando os anos 1980, em que é visada a construção de
uma cultura de participação cidadã, em que o ser humano se reconheça como um sujeito
de direitos. Há um momento de “reorganização da sociedade civil e dos movimentos
sociais nela organizados” (VIOLA, 2010, p. 15-16).
Destaca-se que os debates sobre direitos humanos são um tanto quanto tardios
na América Latina, principalmente no Brasil. Embora fosse perceptível o destaque ao
princípio da liberdade nas lutas anticolonialistas e antiescravistas dos séculos XVIII
e XIX, assim como o princípio da igualdade, presente nas manifestações da classe
operária do século XX, essa defesa acontecia em prol de um grupo, sem conexão ao
discurso da defesa dos direitos humanos. Os direitos humanos compõem a história
nacional efetivamente como resposta às práticas ditatoriais do autoritarismo militar,
quando este aboliu quase que de forma irrestrita espaços de liberdade da sociedade
civil. Começam em pequenos espaços, principalmente vinculados às igrejas cristãs
(VIOLA, 2010).
Os direitos humanos são fruto de lutas libertárias e emancipatórias, viabilizando
a construção de uma nova cultura de direitos humanos, tendo sua base na indignação
e na solidariedade. A luta faz a denúncia de violações (momento da indignação), como
também propõe “a partir do conteúdo construído pelas vítimas, propostas alternativas
de justiça (solidariedade). Uma nova cultura dos direitos humanos é um novo modo de
ser pessoal, grupal e social” 13 (CARBONARI, 2010, p. 87).

[...] a educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, é exatamente


aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’,
da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa,
disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção
do poder (FREIRE, 2001, p. 99).

13 Para Carbonari (2010, p. 86), o sentido dos direitos humanos pode ser desdobrado conforme a luta
almejada: a) luta por direitos humanos conjuga temporalidade e territorialidade; b) luta por direitos
humanos é pretender ser reconhecido como gente [simplesmente humana]; c) luta por direitos humanos
é universalizar demandas; d) luta por direitos humanos é gerar presença; e) luta por direitos humanos
constrói sujeitos.

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Para Kant (1996, p. 15) “homem é aquilo que a educação dele faz”. O filósofo, ao
retratar a educação como uma ferramenta de transformação social, como um processo
de constante libertação do homem, vem ao encontro da fala de Freire, que denota: “É
exatamente em suas relações dialéticas com a realidade que iremos discutir a educação
como um processo de constante libertação do homem” (FREIRE, 2006, p. 75).
A educação é, portanto, amplamente reconhecida na formação do indivíduo, sendo
um dos pilares para o desenvolvimento de uma sociedade. Sabe-se que a educação
já foi utilizada apenas para a formação das classes dominantes, não apresentando a
universalidade que hoje se concebe.
Pisón (2003, p. 18) ensina que a popularização da educação nas camadas sociais
inicia-se no século XVI, época de grandes transformações na Europa. O Iluminismo
rompe com os ideais da Idade Média e as “luzes” invadem as perspectivas do Novo
Mundo. Portanto, a ruptura com a religião, a queda do Feudalismo e a abertura à
racionalidade fazem com que a educação passe a ser entendida como um potencial
instrumento de transformação do homem nos novos tempos. Atualmente, a
educação é um direito fundamental reconhecido na Constituição Federal e, também,
internacionalmente, por meio de pactos, tratados e declarações internacionais
(GORCZEWSKI, 2009). Ante a fundamentalidade e a importância assumida pela
educação nos dias atuais, embasa-se a necessidade da educação em direitos humanos.
Arendt (2007) destaca ser a missão primordial da educação “apresentar o mundo”,
conscientizando os indivíduos que este mundo é pertencente a um conjunto, ou seja, a
uma comunidade plural. Pode-se dizer que, para a autora, é a partir do nascimento que
o indivíduo é contextualizado no mundo. Nesse sentido, o nascimento, ou a natalidade,
termo utilizado pela autora, representa justamente um novo ser no mundo, que será
abrigado, acolhido e estreado no mundo já existente a partir da educação, tornando-se,
para tanto, apto à herança da humanidade.

A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade


humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através
do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além
disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser (ARENDT, 2007,
p. 234).

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Para Arendt (2007), a preservação do mundo e o amor14 ao mundo (amor mundi)


são de suma essencialidade e devem ser transmitidos pelo educador aos seus alunos na
escola. A educação resultará nas responsabilidades do “novo ser” para com o mundo já
existente.
Logo, a renovação do mundo se dá a partir da natalidade. Nascer significa trazer
uma nova ordem a partir da mera presença (ARENDT, 2007). Todo o homem tem
como característica ser um “iniciador na humanidade”. Nesse contexto, entra o papel
primordial da educação.

A tarefa da educação é justamente a de apresentar o mundo às gerações do


presente, tentando fazê-las conscientes de que comparecem a um mundo que é o
lar comum de múltiplas gerações humanas. Ao conscientizá-las do mundo a que
vieram, estas deverão compreender a importância de sua relação e ligação com as
outras gerações, passadas e vindouras. Tal relação se dará, primeiro, no sentido
de preservar o tesouro das gerações passadas, isto é, no sentido de a geração do
presente tomar o cuidado de trazer a esse mundo sua novidade sem que isso
implique a alteração, até ao irreconhecimento, do próprio mundo, da construção
coletiva do passado (FRANCISCO, 2008, p. 34).

Essa responsabilização pelo mundo trazida por Arendt (2007) está intimamente
ligada à participação social, uma vez que a educação vai contribuir com o processo de
emancipação do ser humano, de modo que este tenha autonomia no mundo.
Nas palavras de Freire, “Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na
prática social de que tornamos parte” (FREIRE, 2001, p. 40). A educação apresenta-
se como o fio condutor a perquirir o desenvolvimento da autonomia, da tomada de
consciência.
A inconclusão do ser humano e sua consciência de inacabado torna a educação algo
constante, uma vez que a procura do conhecimento se faz contínua. É a análise crítica
da educação que faz com que o ser humano se torne mais humano. A educação sob
perspectiva revolucionária viabiliza a liberdade de forma humanizadora, visando ao “ser
mais”, possibilitando a emancipação do ser humano.

É esta percepção do homem e da mulher como seres ‘programados, mas para


aprender’ e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz
entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção

14 A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a


responsabilidade por ele e, com esse gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação
e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças
o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,
preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT,
2007, p. 247).

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e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Como a prática


estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria,
sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem
ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista (FREIRE, 1996, p. 54).

Cumpre advertir que, para a educação ser libertadora, proporcionar a emancipação


que vislumbra, ela tem que vir ao encontro da efetivação dos direitos humanos. Freire
propõe que:

A educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela


educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização,
da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem
manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder. [...] essa
educação tem que ver com uma compreensão diferente do desenvolvimento, que
implica uma participação, cada vez maior, crescente, crítica, afetiva, dos grupos
populares (FREIRE, 2001a, p. 99).

Então, quando se fala em educação, não se pode esquecer que ela vem para
contemplar os direitos humanos. A educação deve ter como fim o educar para “ser
mais humano”, para ter mais qualidade enquanto gente, simplesmente, educar para
humanizar.
Nesse sentido, se traz a educação em direitos humanos, quando Eichmann,
um burocrata nato, sem consciência própria, manipulado por clichês e eufemismos
burocráticos, não consegue pensar além de suas tarefas e nem na dimensão daquilo que
elas representam. A proposta da educação libertadora vem no sentido de possibilitar a
reflexão para um pensar com profundidade, de modo a resgatar-se a consciência.
Para Warat, a educação em seu fim refere-se “ao objetivo de fazer crescer as pessoas
em dignidade, autoconhecimento, autonomia e no reconhecimento e afirmação dos
direitos da alteridade (principalmente entendidos como o direito à diferença e à inclusão
social)” (WARAT, 2003, p. 57).
Warat (2010, p. 85) conceitua a emancipação como “o conjunto das experiências
radicais de alteridade, entendendo esta última expressão como minha possibilidade
de estabelecer vínculos de cuidado e afeto”, não no sentido de dependência tóxica, ou
codependência ou, ainda, alienação.

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Pensar a alteridade15 também é importante para verificar o sentido de uma educação


em direitos humanos, uma vez que

[...] Os direitos humanos jamais podem triunfar; eles podem padecer e até mesmo
ser temporariamente destruídos. Mas sua vitória e sua justiça estarão sempre em
um futuro aberto e um presente fugaz, porém premente. É nesse sentido que os
direitos humanos representam nosso princípio utópico: um princípio negativo que
coloca a energia da liberdade a serviço da nossa responsabilidade ética em relação
ao Outro (DOUZINAS, 2009, p. 374).

O signo do Outro é o seu rosto único, um somatório total das características faciais,
que “aproxima a fala e o olhar, o dizer e o ver”, de modo a se verificar no outro o meu
rosto (DOUZINAS, 2009, p. 355).

O Outro vem primeiro. Ele é condição de existência da linguagem, do Eu e da lei.


O Outro sempre me surpreende, abre uma brecha em meu muro, sucede o ego. O
Outro me precede e me convoca: qual é o seu lugar? Onde você está agora e não
quem você é. Todas as perguntas ‘quem’ terminaram nos movimentos fundadores
da (de)ontologia. O Ser, ou o Eu do cognito cartesiano e o sujeito kantiano
transcendental começam com o Eu e criam o Outro como um imitatio ego. Na
filosofia da alteridade, entretanto, o Outro jamais pode ser reduzido ao Eu, ou
o diferente ao mesmo. Tampouco constitui o Outro uma instância da alteridade
ou de alguma categoria geral, um objeto para um sujeito que pode se tornar um
movimento na dialética (DOUZINAS, 2009, p. 354).

Pode-se dizer que o discurso dos direitos humanos é duplo e paradoxal e


reconhece dois tipos de intersubjetividade e comunidade. Ao mesmo tempo que
viabiliza a liberdade, também abre a linguagem como forma de estratégia política do
funcionamento da sociedade.
Os direitos humanos ainda conseguem institucionalizar uma “ética da alteridade
e o dever de respeitar a existência singular e única do Outro”. Nesse sentido, “a
experiência da falta de fundamento e a experiência da liberdade tornam impossível

15 Nesse mesmo sentido, Maturana e Varela (2001, p. 268-269) trazem a questão do amor como um
ato de ver o outro como igual: “A esse ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo – que sempre
implica uma experiência nova –, podemos chegar pelo raciocínio ou, mais diretamente, porque alguma
circunstância nos leva a ver o outro como um igual, um ato que habitualmente chamamos amor.
Além do mais, tudo isso nos permite perceber que o amor ou, se não quisermos usar uma palavra tão
forte, a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social.
Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade.
Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a posse da verdade,
passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o acontecimento do fenômeno social. Portanto,
destrói também o ser humano, porque elimina o processo biológico que o gera. Não nos enganemos.
Não estamos moralizando, nem fazendo aqui uma prédica do amor. Só estamos destacando o fato de
que biologicamente, sem amor, sem aceitação do outro, não há fenômeno social. Se ainda se convive
assim, vive-se hipocritamente, na indiferença ou na negação ativa”.

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definir, descrever ou delimitar uma sociedade de direitos humanos. Tal sociedade


sempre vislumbra redefinições e reconciliações, novas possibilidades e subjetividades”
(DOUZINAS, 2009, p. 362), como discorre Freire frente à constante inconclusão do
ser humano e sua consciência de estar inacabado.
De certo modo, o compreender o outro “faz com que cada um conheça melhor a si
mesmo”. É “complexa a forma como nos identificamos”. Cada ser humano “define-se em
relação ao outro, aos outros e aos vários grupos a que pertence”. As múltiplas relações
fazem com que se busque valores comuns, que “funcionam como base da ‘solidariedade
intelectual e moral da humanidade’, de que se fala no documento constitutivo da
Unesco” (DELORS, 1999, p. 59).
Para Douzinas16, o fim dos direitos humanos, tema polêmico trazido em sua obra,
implica justamente na sua crítica da necessária positivação daqueles para concretização,
em que os mesmos são dinâmicos e precisam sempre ser alargados pelo olhar do eu
no rosto do outro. Para o autor, a humanidade está no rosto de cada pessoa, devendo
cada um conseguir colocar-se no lugar do outro (alteridade) e, com isso, respeitar
integralmente cada indivíduo na sua dignidade ímpar.
De certo modo, Douzinas (2009) propõe uma ética da responsabilidade universal,
assim como Freire e Habermas. Para Freire, a luta política atrela-se ao “horizonte ético
da transformação social, da superação das injustiças, através de um esforço que provém
da capacidade humana de agir” (POLLI, 2012, p. 137).
Freire entende que o desenvolvimento da libertação humana é uma tarefa não
experimentada pela sociedade e alerta para as dificuldades de se promover a mudança a
partir de uma nova forma de existência, voltada para o ato solidário-transformador, e o
compromisso em ajudar a promover a emancipação17 de todos (POLLI, 2012).

16 “[...] Os direitos humanos não podem ser reduzidos à categorização e à classificação; seu conteúdo não
se presta à apresentação categórica. Temos uma sensação de estar cercados por injustiça sem saber onde
a justiça reside. Os direitos humanos representam essa denúncia de injustiça e continuam necessária
e radicalmente negativos, tanto em sua essência quanto em sua ação. Para uma política que protege
os direitos humanos, a injustiça seria a tentativa de cristalizar e fixar identidades individuais e de
grupo, de estabelecer e policiar as fronteiras do social, de torná-lo co-extensivo e encerrá-lo em torno
de alguma figura de autoridade ou lei. Para uma lei que protege os direitos humanos, a injustiça seria
o esquecimento de que a humanidade existe no rosto de cada pessoa, em seu caráter único e em sua
singularidade não repetida, e que a natureza humana (o universal) está constituída na e por meio de
sua transcendência pelo mais particular” (DOUZINAS, 2009, p. 373).

17 “O dualismo oprimido-opressor ainda configura o interior de cada um dos homens, que podem tomar
consciência do seu opressor interno e assumir um compromisso pela libertação do oprimido, estando
ao seu lado e percebendo que ninguém mais do que ele, o oprimido, pode entender o significado da
opressão. A percepção que os oprimidos podem ter de sua própria opressão os qualifica como agentes
de mudança para um mundo mais solidário e justo” (POLLI, 2012, p. 137-138). Essa configuração,
trazida por Freire, corrobora com a atualidade dos problemas mundiais da fome, da pobreza, da miséria
e do desemprego.

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A ideia de uma ética universal do ser humano, enquanto uma ética da solidariedade,
parte do compromisso pessoal de cada um com a solidariedade e a transformação. O
oprimido, uma vez que se sente capaz e livre, como alguém que faz parte do mundo
e é agente de mudança, terá atuação sob a perspectiva da ética da solidariedade,
posicionado-se contra tudo o que for oposto à ética. Assim é viável se pensar um projeto
humanista de sociedade. “A atuação consciente e a presença do homem mundo não
permitem que ele escape à sua responsabilidade ética. Todos os condicionamentos não
impedem de assumir um compromisso transformador” (POLLI, 2010, p. 139).
O mesmo valerá para o pensamento de Habermas (2003)18, quando, a partir da
comunicação, diz ser possível a superação da insensibilidade proveniente dos processos
de dominação, que, por sua vez, intensificam posturas egocêntricas e narcisistas,
inviabilizando o reconhecimento do outro. Habermas destaca a importância da
linguagem na interação humana, pois o entendimento entre as pessoas, com a
consequente integração sócial, ocorrerá a partir do diálogo. Portanto, a teoria do agir
comunicativo vem ao encontro também da democracia19.
Diante da democracia há sempre que se trazer o discurso dos direitos humanos,
em especial da educação em direitos humanos. O esforço para as práticas democráticas
vem ao encontro de uma luta por mudanças, vislumbrando transformações a partir de
práticas solidárias que contribuem com a utopia de um mundo melhor. Ou seja, uma
práxis libertadora e humanizadora, com vistas à emancipação do ser humano, pode ser
encontrada na perspectiva da educação em direitos humanos e, portanto, auxiliar na
superação da banalidade do mal.

18 Para Habermas, a sociedade não funciona como um organismo. Ele a vislumbra sob duas esferas:
sistema e mundo da vida. Na esfera do sistema, encontra-se a reprodução material dada pela lógica
instrumental (adequação dos meios aos fins), incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e
de intercâmbio (economia). Já na esfera do mundo da vida é que se encontra a reprodução simbólica
da linguagem, das redes de significados possibilitadores da visão de mundo: fatos subjetivos, normas
sociais e conteúdos subjetivos. O mundo em que se vive é um processo constante de entendimento
no qual pessoas distintas se entendem a partir de um mesmo pano de fundo: o mundo objetivo dos
fatos, muito bem ilustrado pela cultura; o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências.
A comunicação acontecerá quando ocorrer a interação dessas estruturas. O mundo da vida é parte
fundamental na teoria de Habermas, sendo constituído de três elementos essenciais: cultura, sociedade
e personalidade. A cultura é facilmente verificada com o conhecimento que é repassado de geração para
geração ao longo dos anos. A sociedade pode ser explicada e visualizada nas noções de solidariedade
e convivência com o outro. Já a personalidade advém da cultura e da sociedade em que o indivíduo se
insere pela linguagem e consequente entendimento.

19 Habermas veicula a proteção dos direitos e a participação política à sobrevivência da democracia, uma
vez que esta é percebida como um grande ideal de vida ética. Assim, no mundo da vida é possível à
cidadania. É a partir do diálogo no mundo da vida que reside a participação ativa dos cidadãos na
esfera pública, resultando no crescimento do sentimento de responsabilidade civil, de cidadania: eis a
democracia deliberativa.

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EICHMANN EM JERUSALÉM E A BANALIDADE DO MAL: PERCEPÇÕES...

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo trouxe à baila o sentido da banalidade do mal para Hannah
Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. A banalidade do mal, de certo modo,
ainda não foi superada e pode acontecer a qualquer momento nas práticas diárias.
Todos podem ser um Eichmann, não há como superar essa possibilidade. Trata-se de
um trabalho árduo e cotidiano.
Aqui entra o papel da educação, mais especialmente da educação em direitos
humanos, que seja capaz de tornar mais humano e realmente diferenciar o ser humano
dos demais seres. A sua racionalidade nem sempre poderá ser usada para o bem, no
entanto, cumpre a cada um ter presente que o respeito ao direito do outro também
faz parte de um valor ético a ser perseguido no atual Estado Democrático de Direito.
Colocar-se no lugar do outro é o primeiro passo, ou como já dizia Maturana, “colocar
o sapato do outro [...]”, para que se possa vivenciar os direitos humanos de todos na
prática, e não só no discurso.
A emancipação a partir da educação é um discurso que traz esperanças, que
renova a utopia, de modo que as atrocidades vivenciadas pela humanidade não mais
se repitam. O pensamento crítico e autônomo pode ser amparado pela educação em
direitos humanos, que promove a liberdade e a consciência dos direitos e deveres.

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