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HOSPITAL
dor e morte
como OFÍCIO

"T. .nç ao
c\ .
E
ste trabalho consegue, não perden­
do a possibilidade de valorizar a in­
tersubjetividade como elemento de
detenninação na vida de trabalho dos seus
trabalhadores, utilizar um modelo epide­
miológico de investigação que, ao genera­
lizar suas individualidades, está tão-somen­
te a serviço de uma discussão mais sistema­
tizada dos determinantes psicossociais nos
agravos à saúde mental dos trabalhadores
de um setor. O estudo de caso que esta­
belece associações entre características do
processo de trabalho e o sofrimento psíqui­
co de 1.525 trabalhadores de hospital geral
de 412 leitos no município de São Paulo,
através de análises estratificadas, contro­
ladas por variáveis confundidoras e/ou
modificadoras de efeito, é pioneiro no país.
A própria natureza surpreendente dos re­
sultados associado a cuidado.sa elaboração
metodológica do estudo faz desta inves­
tigação uma contribuição das mais insti­
gantes para os estudiosos de saúde coleti­
va, da Psicopatologia do trabalho, e para
o� principais e mais diretamente interessa­
dos, no caso os trabalhadores de saúde.

T@íbhoteta jf reullíana
na Pitta é psiquiatra e professora

A do Departamento de Medicina
Preventiva da Faculdade de Me­
dicina da Universidade de São Paulo e
Centro de Estudos e Pesquisas em Direito
Sanitário- USP, pesquisadora do CNPq,
dirigindo suas atividades de ensino e pes­
quisa para a área de Saúde Mental.

Militante dos movimentos de transforma­


ção da assistência psiquiátrica manicomial
no país, dirigiu a Divisão de Ambulatório
da Coordenadoria de Saude Mental da Se­
cretaria de Estado de Saúde de São Paulo
de 83 a 86, e atualmente pesquisa no Cen­
tro de Atenção Psicossocial Prof. Luís da
Rocha Cerqueira, onde, com outros, intro­
duziu uma importante inflexão na perver­
sa política hospitalocêntrica deste estado.

Atualmente, articulando conhecimentos na


área de Psicopatologia, Epidemiologia e
demais Ciências Sociais, desenvolve meto­
dologia própria de avaliação do processo
tecnológico do trabalho em saúde, toman­
do como referência a atividade singular dos
que trabalham em hospitais, ambulatórios
e outros espaços assistenciais.

Capa: Renata L. de Barros


DA MESMA AUTORA, NA EDITORA HUCITEC

Reabilitação Psicossocial no Brasil, Ana Pitta (org.)


ANAPITTA

HOSPITAL
'

dor e morte como OFICIO

QUARTA EDIÇÃO

EDITORA HUCITEC
SãoPaulo, 1999
© Direitos reservados, 1990, de Ana Maria Fernandes Pitta. Direitos de publicação
reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 São
Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9318 e 543-0653. Vendas: (011)530-4532.
Fac-símile: (011 )530-5938.

E-mail: hucitec@mandic.com.br

Foi feito o depósito legal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Sandra Regina Vitzel Domingues)

P 761 Pitta, Ana Maria Fernandes


Hospital: dor e morte como oficio. I Ana Pitta. -
3. ed.- São Paulo : Hucitec, 1999.

198 p. ; 21 em. -(Saúde em Debate; 34. Série


SaúdeLoucura)
Bibliografia: p. 191-198
ISBN 85-271-0137-8

l. Psicologia 2. Psicologia Social - Sociologia


II. Título III. Série

CDD- 150.
301.1
Índice para catálogo sistemático:

l. Psicologia 331
2. Sociologia: Psicologia Social 301.1
À Lígia e ao Gabriel,

e aos trabalhadores do hospital,


anônimas figuras, que povoam com
suas vidas as verdades aqui contidas.
SUMÁRIO

PREFÁCIO. DA 3a EDIÇÃO .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

PREFÁCIO DA la EDIÇÃO . . . . . . ... . . ...... . . . . . .... . . . . . .. . . . . . 17

Primeira Parte
OS CONCEITOS

l. DOENÇA E MORTE COMO OFÍCIO - A NA­


TUREZA DO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
2 . O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS . . . . 39
O processo de trabalho no hospital moderno . . . . . . . . . . . 44
A divisão do trabalho hospitalar e o doente . .. . .. .. .. . . . 51
3 . A NATUREZA DO SOFRIMENTO- A CON-
TRAPARTIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
4 . SINTOMA COMO EXPRESSÃO D O SOFRIMEN-
TO PSÍ QUICO . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . .. . . . . . . . . .. . . . . 79
10 SUMÁRIO
Segunda Parte
OS MÉTODOS

5. A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE- ESTU-


DOS E PESQUISAS .. . .. . ... 91 . . ... . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . ..... . ..

Terceira Parte
A INVESTIGAÇÃO

6. O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 17 . .

Breve retrospectiva- gestão· e participação . . 1 19 .. . . . . . .... . .. . . . ...

Os instrumentos de pesquisa .. .. 123


. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. .. . . . . .

Trabalho hospitalar em saúde- o T.H.S. ........................ 124


Trabalho de campo: a supervisão .. . 128 . . . . . .. . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . .

O processo de análise dos dados ..................................... 128


Análise dos resultados . . . . . . . . . .. ..... . . .
. . . . 1 29. . .. .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . .

Características da força de trabalho . .. . 1 32 . . .... . . .. . .. . . . .. . . . . .. ... . .

O gênero .................................. . ............ . . ............ . . ... 1 32


.

A idade dos trabalhadores e o tempo na ocupação e


trabalho no hospital . . . . .. ..... .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . .. 134
A qualificação . . .
. . . . . ... . .
. . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . ... 137
O estrato social . . .. . . . .. . .
... . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . ... . .. . . . .. . . .... . . . . . . 139
Sintomas psicoemocionais como indicador de sofrimento
psíquico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 143
Problemas de saúde . . . . . .... . .. . . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . .. . . .... . . . . . .. . . 151
Sofrimento psíquico e ambientes de trabalho . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . 153
Divisão de tarefas . . . . .
. . .... . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . ..... . . . . . . . . . . .. 157
Tempos de exzposição ao tipo de trabalho . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 158
O ritmo de trabalho . . . .. . ...
.. . . . . . .
. . .. .. . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . 159
O controle do trabalho . . . . . . ... . . . ..
.. . . . . . . . . . . .... . . . . . . .. .. . . . . . . . . ..... 159
As pressões ..
. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . 161
Repetitividade/monotonia . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . .. ... 162
Os duplos ou múltiplos vínculos . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . .... . . . . . . . . .. . 163
Algumas variáveis de condições de trabalho e sócio-econô-
micas - medidas de associação . ... . . . . . . . .... . . . . . .. .. . .. . . . . . . . . . 166
SUMÁRIO ll
Análise tabular estratificada para medida de modificação de
efeito 169
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Quarta Parte

7. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . .. ... . . . . . . . . .. . . . . . 179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . .. . . . . . . . . . .... . . .. . . .. . .. . . . 191


PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO

I ntroduzir tudo o que foi discutido e revisado des­


de que este livro foi lançado e, mais ainda, acrescentar aspec­
tos que estudos etnográficos posteriores puderam enriquecer
as primeiras percepções deste campo de investigação, tem
sido uma grande tentação. Maiores tentações ainda quando
. ele teve a possibilidade de introduzir um debate, um caminho
teórico-metodológico que suscita aplausos, ataques, discus­
são. O desejo de legislar sobre todo esse resplandecer de
simulacros, prescrever, dar forma, impor uma marca, esclare­
cer todas as dúvidas, aparece como avatares de uma arrogân­
cia e vaidade que, embora humanas, nada justificam além do
risco de transformar o livro num acúmulo enfadonho de
abordagens. Opto por manter o texto original expurgado
apenas de alguns pecados gráficos.
As relações entre o sofrimento psíquico e o trabàlho hospi­
t� têm interessado a tantos, e ainda são tão poucos os títulos
14 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
disponíveis para estimular o diálogo com esses interessados que
reapresentar uma conversa possível entre o "qualitativo" e o
"quantitativo" na busca de decifrar negociações entre o doen­
te, seu cuidador e as organizações de saúde ainda traz o encan­
to de uma descoberta e o desafio de muito chão a trilhar.
Nesses últimos anos os encontros regulares com alunos e
professores de Psicologia Hospitalar da PUC-SP, da Psicolo­
gia do INCOR, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, dentre
outros grupos e pessoas, têm sido instigantes tanto na
deteção de avanços metodológicos no desenho inicialmente
proposto, como na identificação de uma incomensurável rede
de relações entre subjetividades vivendo diferentes papéis
numa organização complexa como o hospital, e toda a difi­
culdade de percepção de evidências, de sinais e sintomas de
prazer e dor dos que convivem nessas organizações. Este
livro nasceu de uma tentativa de decifração e considero mais
honesto não mexer nas suas incompletudes. Estas serão moti­
vo para novos trabalhos.
Não posso deixar de referir a dificuldade de assimilar duas
mortes estúpidas, evidências claras das minhas limitações de
lidar com elas. Na primeira, a perda singular e dolorosa de
Ada, a editora amiga, estimuladora, inquieta e intrigada com a
morte, como oposto complementar à sua grande vitalidade. O
translúcido olhar azul, cujas órbitas pareciam saltar ao encon­
tro do que produzias, do que arquitetavas, do que fora capaz
de te roubar as madrugadas sem pena, era um pouso seguro
para vôos transcendentais, ao tempo em que discutia a viabili­
dade de uma nova edição, estimulava um novo prefácio e
discorria sobre vicissitudes femininas e uma nova ordem mun­
dial para a sociedade . . . a um só tempo . . . Saudade . . . Muita
saudade . . .
PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇAO 15
A outra morte, a do Hospital U mberto I, que agoniza
vítima de um casamento macabro da irresponsabilidade pú­
blica do Estado, mantenedor majoritário da secular organiza­
ção, e a malversação dos recursos em mãos inescrupulosas , só
pode causar indignação! Este livro procura demonstrar que a
qualificação dos serviços de saúde é uma equação onde estão
em jogo o trabalhador com seus afetos, os saberes advindos
de práticas tecnológicas, e a justa retribuição econômica alia­
da ao reconhecimento técnico pela "boa prática", impulso à
espiral de qualidade dos cuidados que ali se prestam.
Observando o desespero com que os remanescentes tra­
balhadores daquele hospital, neste momento fechado,
reeditam o movimento que em 1986 foi capaz de sensibilizar
governo, sociedade civil, autoridades sanitárias, para construir
o sonho de um "hospital público não estatal", agora, desta
vez sem nenhuma escuta, nos faz temer que muitas vidas, até
mesmo as que nos são próximas e muito caras, estejam mais
cercadas da ajuda oportuna que poderia minimizar dores e
mortes desnecessárias.

São Paulo, verão de 1994.


PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

NAs TRÊS úLTIMAS DÉCADAS, A sAúDE ENQUANTO


instituição, atividade econômica e necessidade social tem pre­
enchido espaços cada vez mais. amplos nos meios de comuni­
cação e nas políticas públicas. Cresce com ela o número de
trabalhadores com as suas tarefas de combater as doenças,
alongar a duração da vida ou, quando não, bem acompanhar
os que morrem.
Para estas demandas o hospital tem sido um lugar
nevrálgico de aglutinação de trabalhadores diversificados,
que inclui desde médicos, enfermeiros, auxiliares, fisiote­
rapeutas, telefonistas, nutricionistas, operadores de má­
quinas e auxiliares outros, numa extensa lista de profis­
sões e ocupações. Do outro lado estão os usuários, fre ­
qüentemente em dramáticas situações d e resolução dos
seus processos de saúde/doença, dada a habitual comple­
xidade dos serviços ali ofertados.
18 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
O hospital também tem sido o local preferencial onde o
avanço científico e tecnológico exibe maiores marcas, através
da sofisticação de técnicas e requintes de equipamentos e
insumos outros, absolutamente desejáveis como reflexo dos
níveis de prosperidade e desenvolvimento de uma sociedade.
Muito mais que a riqueza material, entretanto, é o traba­
lho do pessoal que determina a qualidade e eficácia de aten­
ção e tratamento, e, ao longo dos tempos, a atividade de lidar
com a dor, doença e morte tem sido identificada como in­
salubre, penosa e difkil para todos.
Na literatura científica cresce o número de comunicações
referentes a agravos psíquicos, medicalização, suicídios de
médicos, enfermeiros, porteiros de hospitais etc. Aqui, não
temos ainda estas questões estudadas, mas a incômoda e do­
lor_9sa presença de alunos do curso médico que se suicidam
ao tomar contato com doentes e doenças tem sido uma
desconcertante experiência nos últimos doze anos e deve ter
influenciado sobremodo a escolha deste objeto de inquieta­
ção.
No entanto, o conhecimento de que o trabalho adoece é
milenar. Aliás, a legislação trabalhista de vários países, a brasi­
leira entre elas, reconhece a relação de causa e efeito de vários
agentes fisicos, químicos e biológicos na produção de doen­
ças ditas "ocupacionais" . Bem menos tranqüila é a aceitação,
mesmo em países economicamente avançados, do trabalho
enquanto forma de organização, e muito menos de sua pró­
pria natureza, como fator morbigênico em si, em que pese o
crescente número de evidências.
Nossa tese, que resultou nesse texto/é de que a insalubri­
dade ou a penosidade, isto é, a permanente exposição a um
ou mais fatores que produzam doenças ou sofrimento no
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO 19
trabalho hospitalar, decorre da própria natureza deste traba­
lho e de sua organização, evidenciados por sintomas e sinais
orgânicos e psíquicos inespecíficos. As determinantes princi­
pais desse sofrimento que agem dinâmica e eficientemente
enl're si e com outras, estaria no próprio objeto de trabalho,
ou seja, a dor, o sofrimento e a morte do outro, e nas formas
de organização desse trabalho essencial e diuturno.
Este mesmo objeto de trabalho, paradoxalmente, é capaz
de produzir satisfação e prazer através de mecanismos defen­
sivos de natureza sublimatória quando condições facilitadoras
permitem aos trabalhadores terem suas tarefas socialmente
valorizadas
Entre os estudiosos existe unanimidade sobre a influência
e, ao mesmo tempo, acerca da complexidade das relações
entre saúde e trabalho, a requerer a construção de modelos
novos e necessariamente interdisciplinares de investigação.
Esta pluralidade não implica tão-somente lidar com questões
técnicas e científicas, mas também outras de natureza filosó­
fica, moral, política, econômica e social.
Menos simples e fácil ainda é pretender mesclar contri­
buições tão diferentes nos campos da Epidemiologia, da
Psicopatologia e de outras ciências, imprescindíveis à discus­
são das relações de determinações entre trabalho hospitalar e
sofrimento psíquico dos que o exercem.
Neste momento, em que dou por concluída uma etapa
dessa pesquisa, fica uma incômoda sensação e uma ins­
tigante pergunta: fui louca ou sábia ao pretender articular
tantas diferenças?
Como os sábios não são tão facilmente encontráveis,
resta-nos defender a pretensão holística de juntar "a tira­
nia das matemáticas" ao "império subjetivo do psiquismo
20 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
humano" na busca de uma possibilidade teórico-metodológi­
ca que venha contribuir para identificar uma hierarquia de
determinantes psicossociais que estabeleçam nexos de causa­
lidade entre a natureza e condições de trabalho e a saúde dos
trabalhadores envolvidos.
Sem perder a possibilidade de valorizar a intersubjetivida­
de como elemento de determinação na vida de trabalho das
pessoas sobre as quais nos debruçamos - os trabalhadores de
um hospital - ' este estudo tenta apreendê-los empiricamen­
te, utilizando um modelo epidemiológico que, ao generalizar
individualidades, deve tão-somente estar a serviço de uma
discussão mais sistematizada das relações entre um fato social
- o trabalho - e a vida psíquica de quem o efetua: o
trabalhador de hospitais.
Num primeiro instante deste texto, percorremos, a vôo de
pássaro, o espaço de uma discussão teórico-conceitual acerca do
trabalho hospitalar, ou seja, da dor, sofrimento e morte como ofi­
cio. Dois autores, Phillipe Aries (Sobre uma história de morte no
Ocidente) e Michel Foucault (O nascimento da Clínica, princi­
palmente) a embasaram. Recortamos depois o Hospital como um
campo de Práticas, disciplinares a princípio, e sanitários mais re­
centemente, levando, por conseguinte, a ajustes ou agressões à
vida psíquica dos trabalhadores. Nesse ofiCio ou métier, que com
o passar do tempo tomou-se "processo de trabalho", necessari­
amente parcelado e influenciado pela doutrina da orgaiüzação
científica do trabalho.
A seguir, examinamos as conseqüências dessas mudanças,
isto é, a natureza do sofrimento dos que trabalham com o
sofrimento do outro, recorrendo às investigações de Isabel
Menzies, Alain Wisner e, sobretudo, a Christophe Dejours,
situando o conceito de carga psíquica e das estratégias defen-
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO 21
sivas, apoiada no conceito de sublimação tomado de Freud.
A visão dinâmica do adoecer é vista a seguir, ao analisar­
mos o sintoma como expressão do sofrimento psíquico, obri­
gando-nos a repassar a teoria do "stress" de Selye, para, na
seqüência, discutirmos a saúde dos que trabalham em saúde,
tomando como referência alguns estudos clássicos e outros
mais recentes, como os de Estryn-Behar, Tonneau, Seibel e
Almeida Filho.
Caminhamos discutindo os métodos para chegar ao
relato da investigação empírica que referencia este traba­
lho desenvolvido no Hospital Umberto I, na região central
da cidade de São Paulo em pesquisa financiada pelo CNPq .
O desejo é poder continuar tendo a linguagem e o pensa­
mento como formas privilegiadas de compreensão do mun­
do, explorando as infinitas possibilidades de apreender fatos
sociais de um modo universal, para poder estabelecer com
outros preocupações e diálogo que possibilitem um movi­
mento mais amplo de transformação das condições adversas
que agridem o homem, contribuindo com este e outros es­
tudos para a identificação das dificuldades e ajustes indivi­
duais e coletivos ao trabalho desenvolvido no interior dos
hospitais.
Uma política de saúde correta ou mesmo uma adminis­
tração hospitalar tecnicamente adequada, embora influen­
ciem, não irão determinar a singular relação do doente
com quem o cuida. Qualquer atitude generalizadora que não
leve em conta o cotidiano do trabalho hospitalar com as
cargas de tensão e conflito a mobilizar sujeitos concretos que
se situam nos limites geográficos desta atividade humana,
correrá o risco de passar ao largo das suas determinantes
fundamentais, contribuindo pouco para a tripla perspectiva
22 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
de melhorar as condições de trabalho, a eficácia da organiza­
ção e uma melhor resposta ao usuário dos seus serviços.
Cabe, agora, um registro pessoal: o oficio de escrever não
é fácil tanto quanto a tarefa de bem ler também o é. Tole­
rante e disciplinada foi a ajuda que Herval Pina Ribeiro pôde
prestar, assistindo angústias narcísicas no trabalho de revisão
do texto.

Ana Pitta
São Paulo, agosto de 1990.
Primeira Parte
OS CONCEITOS
Capítulo l

DOENÇA E MORTE COMO OFÍCIO


A NATUREZA DO TRABALHO

A morte recuou e trocou a casa pelo hospital:


está ausente no mundo familiar do dia-a-dia. O
homem de hoje, como conseqüência de não a ver
suficientes vezes e de perto, esqueceu-a: ela tor­
nou-se selvagem e, a despeito do aparelho cien­
tífico que a envolve, perturba mais o hospital -
lugar da razão e da ordem - do que o quarto da
casa, sede dos hábitos da vida cotidiana.

Philippe Aries, 1975

o HOMEM MODERNO, PELO HORROR DE ADOECER E


de sua própria morte, necessita do saber e da técnica como
refúgio para o seu medo e precariedade.
Outros homens vendem a sua força de trabalho administran­
do tais incômodos, construindo histórica e socialmente um
processo de trabalho onde o poder e a técnica se encarregam. de
diluir o impacto e o sentimento de impotência desconcertante.
A atitude atual dos homens diante da dor, sofrimento e
morte é buscar negá-los como fim do inexorável percurso da
26 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
vida humana, prolongando esta a não mais poder, através de
todos os dispositivos disponíveis nos hospitais, afastando a
morte do convívio social, reforçando-lhe sempre o seu caráter
de presença incômoda e mítica, e como tal, devendo ser
ocultada e distanciada1.
Em fins da Idade Média o homem tinha uma consciência
aguda de que era um morto adiado e que este adiamento era
curto, uma vez que a morte, sempre presente no interior de si
mesmo, destruía as suas ambições e envenenava os seus prazeres.
Esta intimidade perene com a morte, e a vida mais curta que
objetivamente se levava, tornavam o homem medieval mais
apaixonado pela vida e seus prazeres e simultaneamente mais
resignado e humilde na constatação de uma degenerescência e
morte inerentes ao próprio curso da vida de cada um.

"Ó cadáver, que não passas de vergonha,


Quem te fará depois companhia?
O que sairá do teu licor,
Vermes engendrados pelo fedor
Da tua vil carne putrefata." ( Nesson) *

p horror da morte, da doença, da velhice j á se constituía


em inquietações de poetas pelos idos do século XV. Podia-se
ver com Ronsard, mestre da poesia da Renascença, toda a
humilhação e desconforto antevisto no processo de decom-

1Aries, P. Sobre uma história de morte no Ocidente, desde a Idade Mé­

dia, Teorema, Lisboa, 1988, p. 21-37, constitui-se em cuidadosa reflexão


sobre a construção histórica social da incapacidade do homem moderno de
lidar com a morte e, por extensão, com o sofrimento e a doença.
*Nesson. "Vigiles des morts; paraphrase sur Job", Anthologie Poétique
Française Moyen Age, Paris, Garnier, apud Aries, P. Op. cit., p. 37.
A NATUREZA DO TRABALHO 27
posição humana engeºdrado pela doença, envelhecimento e
conseqüente morte.

"Já não tenho senão ossos, um esqueleto eu pareço


descarnado, sem músculos nem polpa . . .
Meu corpo vai descer onde tudo s e desagrega"
( Ronsard ) * .

Esta decomposição ganha foro de ruína humana, impla­


cável, mas perseguida e sobretudo tolerada como um fato da
própria existência.
A morte até mesm.g_ nos seus aspectos mais macabros
circulava no cotidiano das pessoas de uma forma íntima, em­
bora preservando o seu sentiçlo_ novo, original e singular para
cada um. Tinha uma inegável dimensão humana.

"A devassidão e a mort� são duas amáveis rapari­


gas.
E o caixão e a alcova em blas!emias fecundas ofe­
recem-nos sucessivamente, como boas irmãs, terrí­
veis prazeres e horríveis doçuras." ( Baudelaire)

Não será necessário continuar na trilha poética, percor­


rendo os caminhos de Aries para encontrarmos no mundo
atual um homem desaparelhado para enfrentar a morte como
uma contingência, posto que sua emergência vem sempre
acompanhada da idéia de fracasso do corpo, do sistema de
atenção médica, da sociedade, das relações com Deus e com
os homens etc. O traço fundamental da diferença entre a

*Ronsard, P. "Demiers vers", soneto I, Oeuvres completes, Ed. Ron­


sard, P. Laumonier, vol. XVII, p. 176-177, apud Aries P. Op. cit., p. 37.
28 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO

forma de lidar com a doença e a morte do homem medieval


e do homem moderno é a absoluta dissociação que se estabe­
lece hoje entre a vida, sua efemeridade, a naturalidade do
adoecer e a fatalidade de morrer impregnadas de um pessi­
mismo existencial, da depressão que invade os homens das
sociedades industriais, como se a primeira nada tivesse a ver
com as demais.
A morte não mais é vista como um limite natural para o
sofrimento humano; morte e sofrimento são construídos pa­
ralelamente, causando, quando juntos, perplexidade, até por­
que são concebidos separadamente pelo próprio homem.
Na Idade Média, a morte estava nas salas de visitas; hoje,
ela se esconde nos hospitais, nas UTis, controlada por guar­
diães nem sempre esclarecidos da sua penosa e socialmente
determinada missão : o trabalhador da saúde.
E é esta missão que aqui nos cabe examinar, exerci­
da agora não mais por todos em suas casas, mas por al­
guns que, ao vender sua força de trabalho, assumem em
contrapartida o mandato social de cuidar dos vivos e dos
mortos de modo exclusivo e silencioso. Assim, o que foi
propriedade do homem por milênios - sua doença e morte
- passa a ter em outros e em outras intituições os deposi­
tários de tal sina.
Voltando à Idade Média, a morte entendida como coi­
sa normal era percebida espontaneamente ou informada por ter­

ceiros de forma natural. "Nesse tempo, raramente a morte era


súbita mesmo em caso de acidente ou de guerra, e a morte
súbita era muito receada, não só porque não permi­
tia arrependimento, mas porque privava o homem de sua morte.
A morte era então quase sempre anunciada - num tempo em
que as· doenças um pouco mais graves eram quase sempre
A NATUREZA DO TRABALHO 29
mortais"2• Em outras palavras, as doenças cursavam sem grandes
inteiVenções, acostumando os corpos por elas acometidos a um
desfecho natural. O médico, desde a Idade Média até o século
XIX, tomava a iniciativà de prevenir a morte próxima, como
uma baixa probabilidade de erros de prognósticos, dado
o pequeno arsenal de possibilidades terapêuticas disponível.
Após o século XIX, coincide com o desenvolvimento científico e
tecnológico da medicina a recusa do médico de querer fàlar sobre
doença e morte aos pacientes. Doravante o médico fàlará quan­
do indagado, produzindo-se na sociedade a cultura do 'poupar))
.
e ''á.liviar» o doente das suas próprias e más notícias.
Constituiu-se dever da família e do médico dissimular ao
moribundo a gravidade do seu estado. Ele não mais deverá
saber, salvo raras exceções, que seu fim se aproxima. O fato é
que, com os progressos da terapêutica e cirurgia, sabe-se cada
vez menos quando uma doença grave será mortal ou não. As
possibilidades de escapar de qualquer vaticínio são muitas, por­
tanto, é melhor silenciar que arriscar palpites. A morte vefl1_
assim quase em surdina com uma cumplicidade dos amigos e
familiares que, por amarem o moribundo e não querendo vê-lo
partir, negam-lhe a morte, e dos profissionais que, obstinados
pela cura da doença, estarão sempre lançando mão de suas
onipotências e de uma 'ültima medida terapêutica eficaz" para
prolongar-lhe a vida.
ObseiVando como reagem frente à morte o doente, a
família, os médicos e enfermeiros em hospitais de São Fran­
cisco, Glaser & Strauss3 registraram peculiares atitudes dos

2Aries, P. Op. cit., p. 150-151.


3Glaser, B. F. & Strauss, A. L. Awareness of Dying, Aldine, Chicago,
1965 e Time for Dying, Aldine, Chicago, 1968. Ambos citados e comen­
tados in Aries, P. Op. cit., p. 56, 150, 151.
30 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO

últimos com relação ao avisar ou não o doente e a família,


prolongar uma vida mantida artificialmente (em que momen­
to será permitido ao doente morrer?) e seus comportamentos
com aqueles doentes, que não sabem de nada sobre suas
doenças e destinos.
Os dois sociólogos americanos investigaram tais práticas
cotidianas, enfatizando a especial dificuldade que a equipe de
técnicos têm para lidar e comunicar aos doentes suas doenças
e mortes e todas as estratégias inconscientes ou não que lan­
çam mão para ocultá-las. Chegam a identificar uma ((dying
trajectory», ou seja, uma trajetória defensiva do pessoal do
hospital, que embora já tenha clara, após a etapa diagnóstica,
a "morte certa» do seu paciente, produz uma cultura da
(fuorte incerta» ao tempo em que traça roteiro de atitudes a
serem seguidas. Se o doente se conforma com ele e o obedece,
tudo correrá bem, isto é, o equilíbrio moral do meio hospitalar
não será perturbado. Se, entretanto, o paciente tem a infeliz
idéia de morrer de modo diferente do previsto, ((quer por
ardil da natureza quer por culpa dele próprio)) , isso poderá
trazer uma grave e perturbadora situação na instituição.
Reconhecem eles que, mesmo se esta trajetória é escrupu­
losamente observada, a dificuldade atual de lidar com a morte
é de tal ordem que ela não chega sem comprometer, em alguma
medida, a dignidade do doente, (pobre coisa eriçada de tubos
que não conseguiu resistir))' a sensibilidade de uma família
destroçada pela espera e a desmoralização de enfermeiros e
médicos que não encontraram durante a espera uma fórmula
mágica de reverter a trajetória. E concluem interrogando se
uma melhor formação psicossociológica permitiria ao pessoal
do hospital domesticar a morte, encerrá-la num novo ritual,
'inspirado pelo progresso das Ciências Humanas".
A NATUREZA DO TRABALHO 31

Onipotências à parte, o certo é que, ao se transformar o


hospital, e não a casa, no local onde as pessoas adoecem e
morrem, todas essas questões anteriormente compartidas pela
sociedade como um todo se encontram agora circunscritas
àquele espaço. Um padrão aceitável de morte começa a se
instituir entre doentes, família e os que trabalham com as
doenças. É quase consenso que médicos e enfermeiros adiem
o mais possível o momento de avisar a família, e mais ainda,
de avisar o doente de sua morte próxima. O temor é de que
sentimentos e reações descontroladas os façam perder o con­
trole de si e da situação. O prolongamento da vida através de
recursos tecnológicos esvai a necessidade dessa comunicação
dramática, permitindo que o sentimento de luto se inicie
antes do defunto se ter feito fato. Diferente de outrora, falar·
da morte se constitui em ousadia não admitida nas relações
sociais habituais. Não é sequer de bom tom estar desfiando
um rosário de doenças e padecimentos em ambientes públi­
cos ou até mesmo em relações de amizade. "A morte era
n'outro tempo uma figura familiar e competia aos moralistas
torná-la horrível para causar medo. Hoje em dia, basta no­
meá-la para provocar uma tensão emocional incompatível
com a regularidade da vida cotidiàna" 4• Esta situação é vivida
num hospital (menos que em outros lugares, certamente)
como embaraçosa, quanto mais provoque crises de desespero
entre os doentes e famílias com lágrimas e todas as demais
manifestações de emoção, dor, sofrimento que perturbem a
serenidade do hospital.

4Aries, P. "A morte invertida. A mudança de atitudes perante a morte


nas sociedades ocidentais", in Sobre a história da morte no Ocidente, desde a
Idade Média, cit., p. 161-165.
32 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Cabe, portanto, aos que trabalham no hospital produzir
uma homeostasia entre vida e morte, entre saúde e doença,
entre cura e óbito que tende a transcender suas impossibilida­
des pessoais de administrar o trágico e, por cumplicidade,
caberá também ao enfermo comportar-se com elegância e
discrição, de modo a fazer com que a dura tarefa seja m'lis
suave para eles e para quem os assiste. No dizer de Aries
existiriam duas maneiras de morrer mal: uma seria procurar
intercâmbio de emoções com quem fica e a outra seria a
recusa na comunicação desta emoção. Estaríamos por conse­
qüência frente a um impasse onde quer o excesso de comuni­
cação entre doente e técnico quer a sua escassez estariam
determinando uma situação embaraçosa e mobilizadora de
conteúdos afetivos contraditórios.
A construção de todo um dispositivo de cuidados, to­
mando como referencial a morte, faz com que a Medicina e
todas as práticas de saúde assumam um caráter sagrado/pro­
fano que as empurra para uma perigosa e fascinante mítica.
"Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à ex­
periência médica que a doença pôde se desprender da contra­
natureza e tomar corpo no corpo fisico dos indivíduos"5•
Esse tomar corpo, entretanto, não se fez de modo mecânico
ou obedeceu um trajeto linear na história de maneira que
possa parecer que o cuidado ao doente se vai constituindo de
modo ordenado, disposto em prateleiras do saber médico,
sobre o qual os demais agentes se debruçam para organizar
suas práticas e cuidados. Foucault, a propósito da ordenação
do desenvolvimento das doenças, assinala que "o que é novo

5Foucault, M. O nascimento da clínica, Editora Forense Universitária,


Rio de Janeiro, 1977, p. 129.
A NATUREZA DO TRABALHO 33
não é o fato da ordenação, mas seu modo e seu fundamento.
De Sydeham a Pinel, as doenças se originavam e se configu­
ravam em uma estrutura geral de racionalidade em que se
tratava da natureza e da ordem das coisas. A partir de Bichat,
o fenômeno patológico é percebido tendo a vida como pano
de fundo, ligando-se assim às formas concretas e obrigatórias
que ela toma em uma individualidade orgânica"6•
Esta ambivalência entre o privilegiar a busca da vida e o
medo da morte na constituição de um campo de práticas,
onde alguns indivíduos por ele se interessam e o assumem
como oficio, vai atravessar até os nossos dias este todo con­
traditório, navegando na dependência de inflexões externas
(sóCio-histórico-políticas) e internas (socioculturais e intrapsí­
quicas).
"Entendamo-nos bem: conhecia-se, bem antes da anato­
mia patológica, o caminho que vai da saúde à _dQ_ença e desta
até a morte. Mas esta relação, que nunca tinha sido cientifica­
mente pensada, assume, no início do século XIX, uma figura
que se pode analisar em dois níveis. O que já conhecemos: a
morte como ponto de vista absoluto sobre a vida e a abertura
(em todos os sentidos da palavra, até o mais técnico) para sua
verdade. Mas a morte é também aquilo contra o que._ em seu
exercício cotidiano, a vida vem se chocar; e a doença perde
seu velho estatuto de acidente para entrar na dimensão inte­
rior, constante e móvel na relação da vida com a morte. Não
é porque caiu doente que o homem morre; é fundamental­
mente porque pode morrer que o homem adoece"7.

6Foucault, M. Op. cit., p. 129.


7Foucault, M. El hospital en la tecnología moderna, Educación médica
y salud, vol. 1 3 , n2 2, 1979, p. 2 3 .
34 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Este limite natural que é a morte se constitui num arca­
bouço, num recorte geográfico importante para a delimitação
de um território de intervenções que vem a ser a cinzenta área
entre a saúde e a doença, não mais vistas desde Claude Bemard
como instâncias estanques e de qualidades distintas: fazem parte
de um mesmo processo onde os diferentes estados de sani­
dade e doença transversalizam este campo instituído. Claude
Bernard considera a Medicina como a ciência das doenças e a
Fisiologia como a ciência da vida. "Toda doença tem uma
função normal correspondente, da qual ela é apenas uma
expressão perturbada, exagerada, diminuída ou anulada"...
essas idéias de luta entre dois agentes opostos, de antagonis­
mo entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, já são
ultrapassadas. É preciso reconhecer em tudo a continuidade
dos fenômenos, sua gradação insensível e sua harmonia8•
A resignada aceitação da morte como contingência, doença
como intermediação entre vida e morte. e os sintomas como
sínais de alerta e não elementos a ser-em �!iminades. ng seu
surgimento, são leituras dialéticas de um instigante processo.
A atitude complacente com a doença e a morte, que as
fez transitar no espaço doméstico com naturalidade e pro­
priedade até a metade do século XIX, foi desde então substi­
tuída como conseqüência do desdobramento das sociedades
industriais. A dor, a doença e a morte foram interditas num
pacto de costumes, aprisionadas e privatizadas no espaço hos­
pitalar sob novos códigos e formas de relação. A mentira, a
não revelação do real estado do doente é o que rege o bom
comportamento: "A primeira motivação da mentira foi o de-

8Bernard, C. apud Sigerist, H. E. Historia y sociologia de ta medicina,


Gustavo Molina, Bogotá, 1974, p. 14.
A NATUREZA DO TRABALHO 35
sejo d e poupar o doente d e assumir a sua provação. Mas,
desde muito cedo, este sentimento cuja origem nos é conhe­
cida (a intolerância da morte do outro e a confiança renovada
do doente no seu círculo familiar) foi recoberto por um sen­
timento diferente, característico da modernidade- evitar, já
não ao doente mas à sociedade e ao próprio círculo de rela­
ções, o incômodo e a emoção demasiado forte, insustentável,
provocados pela fealdade da agonia e a simples presença da
morte em plena vida feliz, pois se admite agora que a vida é
sempre feliz ou deve parecê-lo sempre"9•
Contar uma estória em meio a uma discussão que se
pretende densa, traz apenas o sentido de elucidar algumas
coisas que aqui estão sendo discutidas.
Dora, médica, profissional liberal exercendo circunstan­
ciais funções de gerência de um empreendimento público,
sente um dia dor súbita que a faz curvar-se sobre si, embora
continue nos procedimentos rotineiros de telefonemas e assi­
naturas que alimentavam seus dias de trabalho.
Não dera importância ao que sentia - cear preso".
Sua assistente, vendo-a curvada, estimula-a a procurar
um facultativo, rindo ambas com as suas incapacidades na
clínica. Os sintomas que começam a se·manifestar se agravam
com rapidez. A consulta se faz sempre acompanhada de risos
e chistes como que para afugentar qualquer mau agouro.
Enquanto os sintomas se agravavam, tratavam de ser dissimu­
lados e escamoteados pela própria doente e os que a assisti­
am. A barriga em tábua e a detecção do "abdômen agudo",
embora assinalasse que alguma coisa não estava bem, conti­
nuava não tendo nenhuma importância (ou se fingia não ter).

9Aries, P., Op. cit., p. 1 7 1 .


36 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Para o médico o que importava era o diagnóstico. E, num
pacto sinistro, também para a doente, não era o seu mal-estar
o que mais importava. A sua angústia existencial naquele
momento estava perfeitamente deslocada para as preocupa­
ções do médico: transportar-se para um hospital e estabelecer
um diagnóstico.
D'ito e feito. A chegada ao hospital se dá apenas porque lá
se proporciona recursos diagnósticos não possíveis noutro
local e a sensação de todos é que bastava resolver o debate
entre a "anexite )) ou a "apendicite)) e estaria resolvida a
questão. Clínico, cirurgião, gastroenterologista, ginecologis­
ta, RX, ultra-sonografia. Despojam-na de roupas e pertences,
deitam-na, ordenam-lhe novas posições. Ela obedece, embo­
ra ainda questione a necessidade de todo o aparato, já que,
certamente, com o diagnóstico firmado, deve ter rapidamente
de se recompor para voltar a sua vida, ao seu trabalho, à
família, aos filhos, aos subordinados. O ambiente ainda é
dissimulado e de conversas apenas, quando um súbito cho­
que hipovolêmico obriga a uma intervenção brusca. Inicia-se
aí uma ruptura de comunicação com o círculo de relações, o
isolamento, a intervenção anti-séptica. Acorda livre do abs­
cesso puro-sanguinolento que lhe invadia as entranhas, mas
infantilizada e despojada de sua responsabilidade, da capaci­
dade de refletir, de observar, de decidir. É uma criança, e
como tal requer uma maternagem que a nutra e alimente,
mas, antes de tudo, voltada a produzir uma ignorância pueril
que cpoupe)) a doente de conhecer a extensão de suas mazelas,
competente estratégia defensiva do pessoal do hospital para
não ter de volta indagações maduras, adultas, desestruturan­
tes. Afinal, um sofrimento demasiado visível não inspira só
piedade mas repugnância; é um sintoma de falta de educação
A NATUREZA DO TRABALHO 37
ou desarranjo mental. Hesita-se ainda em deixar exteriorizar
a dor por receio de impressionar as crianças e os mais velhos
na sociedade de hoje, como se esses não a sentissem tantas e
tantas vezes. O lidar com tais sentimentos incômodos requer
gestos solitários, masturbatórios.
Por que este ocultar? O doente, antes de sê-lo, é e se
sente um ser produtivo, integrante de uma força de trabalho,
através da qual se movem as máquinas, as coisas e a sociedade
e, necessariamente, se assentam os valores que o cercam e o
fazem aparentemente estável.
Adoecer nesta sociedade é, conseqüentemente, &HEar tie
produzir e, portanto, de ser; é vergonhoso; logo, deve ser
ocultado e excluído, até porque dificulta que outros, familia­
res e amigos, também produzam. O hospital perfaz este papel
recuperando quando possível e devolvendo sempre, com ou
sem culpa, o doente à sua situação anterior. Se um acidente
de percurso acontece2 administra o evento desmoralizador,
deixando que o mito da continuidade da produção transcorra
silenciosa e discretamente.
O impedimento de poder sentir e expressar este sofri­
mento na ocorrência de doenças, com a interdição da sua
manifestação pública, obriga aos doentes sofrerem às escondi­
das e aos que assistem a um discreto e sofrido trabalho. A
exclusão, que acaba sendo recíproca, e o não poder fazer
esquecer ou mesmo afastar os incômodos, só agravam a im­
portância de ambos. No caso dos que trabalham com doentes
o recalcamento do desgosto cria mecanismos que dificultam
�a sublimação compensatória 10 absolutamente necessária

10 Apropósito de "sublimação compensatória" estaríamos nos referin­


do ao processo postulado por Freud para explicar atividades humanas, sem
38 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
aos que têm como oficio o lidar cotidiano com dores, perdas,
sofrimento e morte, dia a dia, ano a ano. _

qualquer relação aparente com a sexualidade ou mesmo com pulsões agres­


sivas, mas que encontrariam seu elemento propulsor na força dessas pul­
sões. Embora Freud tenha descrito como atividades de sublimação princi­
palmente as artísticas e intelectuais, diz-se que uma pulsão é sublimada
desde que ela vise um objeto socialmente valorizado, que, no nosso caso, o
trabalho em saúde bem se situa.
Capítulo 2

O HOSPITAL COMO CAMPO


DE PRÁTICAS

É que a Medicina oferece ao homem moderno a


face obstinada e tranqüilizante de sua finitude;
nela a morte é reafirmada mas ao mesmo tempo
comparada; e se anuncia sem trégua ao homem o
limite que ele traz em si, fala-lhe também deste
mundo técnico, que é a forma armada, positiva e
plena de sua finitude.

Michel Foucault, 1963

DA PROFANA INCUMBÊNCIA DE SEQÜESTRAR POBRES,


moribundos, doentes e vadios do meio social, escondendo o
incômodo e disciplinando os corpos e guardando-os até a
morte, à nobre função de salvar vidas, o hospital tem percor­
rido um caminho complexo e tortuoso em busca do tecni­
cismo científico adequado às suas novas funções.
O surgimento do hospital como cenário privilegiado da
tecnologia médica, cumprindo finalidades terapêuticas, é fato
relativamente recente e tem como marco da transformação de
suas atribuições o final do século XVIII. Quando Howard, o
40 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
filantropo inglês, provavelmente sem esta intenção, desenvol­
ve um primeiro trabalho de conhecimento e denúncias das
condições de trabalho hospitalar, documentando-lhe caracte­
rísticas, fluxos, aberrações, e, à mesma época ( 1 775 - 1780), a
Academia de Ciências da França designa Tenon, um médico,
para percorrer os mesmos hospitais da Europa e elaborar seu
relatório, têm esses documentos se constituído nas primeiras
sistematizações de olhar o hospital com intenções terapêuti­
cas, examinando os postos de trabalhos, fluxos e identifican­
do e denunciando suas condições de maus tratos com a fina­
lidade de desenvolver um programa de reforma e reconstru­
ção dos hospitais. "Nenhuma teoria médica por si mesma é
suficiente para definir um programa hospitalar. Além disso,
nenhum plano arquitetônico abstrato pode dar a fórmula do
bom hospital. Este é um objeto complexo de que se conhece
mal os efeitos e as conseqüências, que age sobre as doenças e
é capaz de agravá-las, multiplicá-las ou atenuá-las. Somente
um inquérito empírico sobre esse novo objeto ou esse objeto
interrogado e isolado de maneira nova - o hospital - será
capaz de dar idéia de um novo programa de construção de
hospitais." Assim, assinala Foucault1 1, acentuando a impor­
tância dos registros daqueles que, ao desprezarem as fachadas
dos hospitais, objeto da observação dos viajantes clássicos,
valorizaram o número de doentes, leitos, área útil, extensão e
altura das salas, fluxo de pacientes e outros, inaugurando uma
outra forma de olhar, transformando e delegando ao hospital
a sagrada incumbência de curar pessoas.
Embora os hospitais de um modo geral àquela época não
tivessem a função precípua de cura, é certo que a,lguns deles

11Foucault, M. Microftsica do poder. Graal, Rio de Janeiro, 198 1 , p. 100.


O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 4 1
já a tinham. O que muito provavelmente esses estudos pude­
ram revelar é que os hospitais não curavam tanto quanto
deviam; e, ao contrário, pela não observância de regras bási­
cas de higiene, costumavam produzir, no seu interior, surtos
epidêmicos dizimadores.
Foucault, aliás, refuta a tese de que o hospital tivesse qual­
quer função terapêutica na sua origem, uma vez que sempre
existiram duas séries paralelas no cuidado das pessoas: uma série
médica, cujos cuidados eram exercidos em espaço não hospita­
lar, nas casas; e uma série hospitalar, onde a acolhida e disciplina
da pobreza e das anomalias humanas eram administradas. Com
aquelas visitas se inicia a era do hospital como disposi�vo de
cuidado médico, e se estava a produzir efeitos patológicos, esses
deveriam ser corrigidos para que o hospital seguisse a exercer
suas funções disciplinadoras no combate à pobreza e marginali­
dade presentes nos espaços urbanos, agregando desde então a
nobre função de tratar e conceder alívio aos que iriam morrer.
"O personagem ideal do hospital até o século XVIII não é o
doente que é preciso curar, mas o p�bre que está morrendo. É
alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último
sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se cor­
rentemente, nesta época, que o hospital era um morredouro,
um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era funda­
mentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas conse­
guir a sua própria salvação. Era um pessoal caritativo - religioso
ou leigo - que estava no hospital para fazer uma obra de
caridade que lhe assegurasse a salvação eterna" 12 •
Essas idas e vindas na história servem apenas para reforçar
esse caráter .religioso caritativo das práticas hospitalares, que,

12Foucault, M. Op. cit., p. 1 02.


42 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
apesar de submetidas a outras regras no modo de produção
capitalista, mantêm até os dias atuais características ambíguas
entre uma mítica religiosa/caritativa e as regras gerais de
mercado típicas das formas de organização das sociedades
concretas.
Em outras palavras, queríamos aqui examinar em que
momento o "oficio" * de cuidar se transforma em "tecnolo­
gia" - "desde quando saberes e equipamentos e suas formas
de articulação nos processos de trabalho sejam tomados na
perspectiva totalizante em que correspondem, a um só tem­
po, à arquitetura técnica desses processos e as conexões so­
cialmente determinadas que ligam seus agentes à dinâmica de
reprodução social, a tecnologia deixa de ser o que é só nas
aparências, uma opção entre as várias possíveis ainda que
tomada por referência a motivações de ordem técnica e
também a motivações de ordem econômica, política e soci­
al"13. Recorreremos à definição de "tecnologia de processo
de trabalho" para caracterizar o saber e a técnica dos traba­
lhadores enquanto instrumentos tecnológicos tão ou mais
indispensáveis que os materiais e equipamentos que costu­
mam se confundir com o próprio uso do vocábulo tecnolo­
gia, estendendo-o a esse campo de práticas, constituído desde

* Oficio (do latim officiu), dever, onde o modo de fazer, além de


transmitido artesanalmente de uns a outros, tem um sentido introjetado de
dever, de fazer "o todo" necessário para que a atividade aconteça.
13Gonçalves, R. B . M. Tecnologia e organização das práticas de saúde.
Características tecnológicas do processo de trabalho na Rede Estadual de Saú­
de de São Paulo, tese de doutoramento, DMP-FMUSP, 1986, 415 p.
Acrescente-se ainda toda a contribuição teórico-metodológica que o con­
junto de projetos abrigados no núcleo de investigação "Tecnologia e Orga­
nização Social da Prática Médica" vem desenvolvendo no Departamento
de Medicina Preventiva da FMUSP a partir da década de setenta.
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 43
o seu nascedouro, com uma dupla ordem de técnicas: as
técnicas do poder disciplinar - disciplinando o coletivo de
corpos em desarranjo social; e as técnicas de cuidados médi­
cos - introduzindo seus ritos e saberes instrumentalizados
pela Clínica enquanto tecnologia individual.
Podemos tomar aquelas visitas como marcos de transpo­
sição das funções do hospital, registro das mudanças de suas
características; pelo processo de trabalho transmuda-se o sim­
ples "metier" para uma nova face da tecnologia por força da
organização do conhecimento e do trabalho; mas na prática,
se observarmos cada hospital individualmente, veremos que
tal processo ainda está se constituindo, e que, em muitos
deles, é possível identificar ambas as fases convivendo nos
seus interiores.
Foucault e Gonçalves concordam que as práticas de saúde
foram estruturadas sobre concepções a respeito da natureza
da saúde e da doença de alcance social, supra-individual*.
"Costuma explicar-se esse fato pela ausência de conhecimen­
tos sobre a dimensão individual que fossem capazes de ins­
trumentalizar a prática clínica no sentido de torná-la capaz de
responder às necessidades socialmente postas: técnicas mate­
riais e diagnósticas que traduzissem o conhecimento do cor­
po anátomo-fisiológico enquando sede dos processos da do­
ença"14. Com isso, fica desde já implícito o caráter plural do
trabalho hospitalar, enquanto preocupação e obrigações cole­
tivas exercidas no lugar privilegiado de desenvolvimento de

*Ambos os autores demonstram de diferentes modos que a medicina


do capitalismo, ou seja, medicina que se constitui da segunda metade do
século XVIII para cá, é antes de tudo uma medicina social, ao contrário do
que se apregoa do caráter individualista desta emergência.
14Gonçalves, R. B . M. Op. cit., p. 1 38 .
44 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
práticas sobre a doença. "O capitalismo, desenvolvendo-se
em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou
um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de pro­
dução, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os
indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou
pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, in­
vestiu a sociedade capitalista"15•
É certo que a história posterga bastante a entrada em
cena do corpo produtivo, o corpo do trabalhador enquanto
objeto das práticas de saúde. Somente na segunda metade do
século XIX, com Chadwick na Inglaterra, é que os produtivos
e não os mendigos e vagabundos se constituem clientela pre­
ferencial das preocupações sanitárias. E é também nesta época
que certamente o trabalho na doença também, pressionado
pela força da industrialização, vai abandonando suas caracte­
i
rísticas artesanais, de "of cio" e absorve as novas tecnologias,
dentro de um movimento mais amplo, desencadeado a partir
do século XVIII, com as invenções da química, da metalur­
gia, da fisica e outras. A medicina e suas técnicas vão sistema­
ticamente preenchendo espaços e determinando novas formas
de relação e divisão do trabalho no interior dos hospitais16•

O PROCESSO DE TRABALHO NO HOSPITAL MODERNO

As diferentes funções que o hospital tem desempenhado


ao longo de sua história têm dificultado em muito a tarefa
dos que buscam entender o processo de trabalho hospitalar
como um corpo de práticas institucionais articuladas às de-

15Foucault, M. Op. cit., p. 80.


16Foucault, M. Op. cit., p. 105.
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 45
mais práticas sociais numa dada sociedade e submetido a de­
terminadas regras históricas, econômicas e políticas.
Gonçalves, num cuidadoso trabalho de caracterizar o
processo de trabalho médico, faz algumas observações que
muito se aplicam ao trabalho hospitalar, na medida em que
este último sempre se constituiu no cenário por excelência do
desenvolvimento das práticas médicas: "é preciso não confun­
di-las com uma atividade criadora livre, à semelhança das
concepções românticas vulgarizadas sobre a criação artística e
a investigação científica. Donnangelo chama a atenção para o
fato de que, por via dessas concepções, os meios de trabalho
empregados na medicina tendem a ser compreendidos como
um conjunto de recursos tecnológicos menos ou mais com­
plexos cuja historicidade se perde tanto no caráter científico
em si, suposto como fato de um desenvolvimento linear,
como no obscurecimento que esse caráter científico, concei­
tualmente simplificado, promove de sua função de 'instaura­
ção de uma relação particular entre o médico e o objeto da
sua prática"'17•
Mas, se o trabalho hospitalar constitui prática concreta,
em que pesem as suas imprecisões no imaginário dos seus
agentes e usuários, cabe-nos buscar identificar, como em qual­
quer outro processo de trabalho, quais as suas caracteristicas
enquanto tal, sobre o que ele se aplica, quais seriam os agentes
e instrumentos necessários à sua consecução, e que produtos
estariam construídos no final do seu ciclo de produção.
Para Marx "Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de
força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa

17Gonçalves, R B. M. Medicina e história, raízes sociais do trabalho médico,


dissertação de mestrado, apresentada ao DMP-FMUSP, São Paulo, 1979.
46 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano
abstrato gera valor da mercadoria. Todo trabalho é, por ou­
tro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob for­
ma especificamente adequada a um fim, e nesta qualidade de
trabalho concreto e útil produz valores de uso"18. Localizado
no setor terciário, enquanto prestação de serviços, padece o
trabalho hospitalar de todas as dificuldades "do trabalho sem
modelo", como rotula Fraivet et alii19• Ele acompanha a ge­
ografia e desejos de sujeitos e objetos dos seus serviços, utili­
zando-se de uma intensa plasticidade e interpenetração de
modelos de trabalho. A preocupação em melhor instrumenta­
lizar discussões técnicas e sindicais que valorizem e delimitem
funções e tarefas, habitualmente transigidas no cotidiano dos
hospitais, tem levado nos últimos anos a um esforço teórico e
de investigação deste particular processo de trabalho.
Garcia buscou conceituar os "modos de produção de ser­
viços de saúde" chegando a identificar dois tipos. O primeiro
seria o "modo de produção artesanal" com as características
seguintes: os agentes são proprietários dos meios de diagnós­
tico, tratamento e cuidado; não existe um domínio claro de
uma categoria sobre a outra na relação médico-paciente;
observa-se uma relação de cooperação entre os membros de
uma mesma categoria, embora a complexidade de instrumen­
tos e conhecimentos possa gerar uma contradição entre o
desenvolvimento da medicina e as relações existentes, uma
vez que ficará cada vez mais distante a possibilidade de um só
indivíduo realizar todas as tarefas de diagnóstico e tratamento

18Marx, K. O capital - l, Editora Nova Cultural, 2 a edição, São Pau­


lo, 1986, p. 5 3 .
19Fraivret, ].; Missika, ]. L . & Wolton, A . L e tertiaire éclaté - Le tra­
vail sans modele, Paris, É ditions du Seuil, 1 980.
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 47
na medida em que elas se tornam mais complexas. O segun­
do modelo ele denominou de "burocrático", onde os agentes
perdem o controle do processo global do trabalho: "o indiví­
duo são ou' doente é visto de forma parcelada e surge a
necessidade de uma organização total do trabalho. Ocorre,
desta forma, a transformação do hospital, que se converte no
centro de operações desta nova forma de atenção médica. O
hospital, cuja função inicial foi o controle social da produção
considerada desviada e cuja atividade se centrava no cuidado,
transforma-se no mecanismo coordenador de atenção"20 •
Refere ainda o alto custo e complexidade do arsenal diagnós­
tico e terapêutico, neste segundo tipo de produção de servi­
ços de saúde, além de alertar para o fenômeno de transforma­
ção da prática médica individual na formação de grupos de
trabalhadores irtdiretos, aos quais os proprietários dos meios
de trabalho delegam essa função. A propósito desta coletivi­
zação do processo de trabalho em saúde, Donnangelo assi­
nala que o desenvolvimento do trabalho por grupos aparece
"como características comuns à organização dos serviços de
saúde nas sociedades que criaram ou incorporaram conheci­
mentos e técnicas médicas refinadas"21; a impossibilidade do
domínio por um único profissional da totalidade dos conhe­
cimentos e técnicas disponíveis é também enfatizada por ela,
que destaca o surgimento da especialização como forma de
divisão técnica do trabalho, resultante da inovação técnico­
científica e a conseqüente dependência entre especialidades:
"A complementaridade e a dependência manifestam -se, já na

20García, ]. C. "As ciências sociais em medicina", in Nunes, E. D. (org.)


Juan Cesar García, ABRASCO/Cortez Editora, São Paulo, 1989, p. 62-63.
21Donnangelo, M. C. F. Medicina e sociedade, São Paulo, Pioneira
Editora, 1975, p. 54.
48 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
divisão do trabalho, nas duas grandes áreas representadas pela
Clínica e pela Cirurgia. E tendem a reforçar-se, não apenas
pelas diferenciações internas a elas, mas também pelo apare­
cimento de formas de trabalho referentes a parcelas cada vez ·

menores, embora não menos significativas, da totalidade do


processo de diagnóstico e terapêutica'm.
A divisão do trabalho no hospital é a reprodução no seu
interior da evolução e divisão do trabalho no modo de produção
capitalista, preservando-se entretanto algumas características da
religiosidade caritativo-assistencial da etapa anterior.
Nogueira23 assinala que esta organização de trabalho co­
letivo em saúde tem uma divisão técnica que absorve as ca­
racterísticas de manufatura, e como tal teria no valor de uso e
sua lógica de qualificação no interior do setor terciário como
serviço a ser consumido. Identifica que a decomposição do
processo de trabalho em tarefas isoladas é acompanhada de
uma integração através de uma hierarquia de profissionais e
serviços que se constitui no fundamento da produtividade do
setor, e depende ainda, substancialmente, do conheciment0 e
destreza do trabalhador. Ele chama a atenção para o quão
dinâmica tem sido a área de assistência à saúde na incorpora­
ção de novas tecnologias, o que entretanto não tem significa­
do uma economia da força de trabalho, ou seja, a despeito do
acentuado dinamismo tecnológico, o setor é essencialmente
de trabalho intensivo.
À guisa de situarmos esta discussão das novas tecnologias
no âmbito do moderno hospital a partir da identificação de

22Idem, ibidem, p. 55.


23Nogueira, K. P. Força de trabalho em saúde. Textos de apoio, Pla­
nejamento I, ABRASCOjFIOCRUZ, Rio de Janeiro, 1987, p. 1 3 - 1 8 .
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 49
aportes tecnológicos introduzidos no sentido de aperfeiçoa­
mento de diagnósticos e terapêuticas, poderemos assinalar
algumas mudanças significativas que o hospital vem incorpo­
rando nas últimas décadas, transformando cada vez mais suas
características de "oficio" em "processo tecnológico" de tra­
balho.
As análises biológico-bioquímicas processadas há várias
décadas induziam a uma possibilidade de erro de leitura em
torno de 20% e o tempo de divulgação dos resultados ultra­
passava 24 horas. O uso da informatização no processamento
dos resultados e o aperfeiçoamento dos aparelhos de análises
reduziu em muito a margem de erros, aumentou o número e
velocidade dos exames e certamente introduziu a mudança
do número e perfil do trabalhador do laboratório24• Se por
um lado este avanço tecnológico ao automatizar e agilizar a
realização de exames trouxe inequívocos beneficios, por ou­
tro, reduziu o número de pessoas envolvidas na sua execução
e desqualificou um saber antes totalizado pelo trabalhador. A
automatização de segmentos do processo de trabalho reori­
entou o seu ritmo e domínio das suas etapas, mas ao des­
qualificá-lo tornou seus autores elementos dispensáveis. Pa­
radoxalmente, a atenção requerida pelos novos procedimen­
tos e aparelhagem cada vez mais ágeis e especializados requer
a presença de um trabalhador mais atento e condicionado.
A complexidade em se pensar o binômio saúde-doença
enquanto prestação de serviço, força de trabalho e institui­
ções concretas que operacionalizam o atendimento a pessoas
não é nova, nem tem sido de simples equacionamento. No­
gueira tem desenvolvido uma tentativa teórico-conceitual de

24Fraivret, J. et alii. Op. cit., p. 179.


50 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
definir serviços de saúde privilegiando conceitos e categorias
marxistas. Busca na obra de Marx identificar em quais mo­
mentos aquele autor pôde dirigir sua atenção a esse ramo
terciário da economia25. Embora refira uma citação do pró­
prio Marx: "todas as manifestações da produção capitalista
nesta esfera são tão insignificantes, comparadas com a totali­
dade da produção, que podem ser postas de lado"26, certa­
mente oportuna, posto que tal atividade, que hoje cresce
significativamente, tinha realmente pouca expressão à sua
época.
Apesar disso há quem classifique o trabalho em saúde
como algo que se limita ao seu efeito útil, "a produzir valores
de uso estrito, não mercantis. É o trabalho que s� consome
como atividade útil por si mesma, devido ao conhecimento e
capacidade técnica que o orientam, dirigindo-se quer a perso­
nalidade viva do usuário, quer a algum objeto de sua pro­
priedade" * . Esse esboço de discussão é para assinalar que o
trabalho hospitalar, enquanto serviço, obedece às mesmas re­
gras gerais de determinação econômica que outras atividades,
oferecendo porém maior complexidade de análise ao envolver
a discussão sobre valor.
Por uma cultura própria, onde as relações de poder e
disciplina atravessam as diversas atuações no seu interior sem
serem vistas ou examinadas de forma clara, até porquanto

25Nogueira, R. P. N. Capital e trabalho dos serviços de saúde. Introdu­


ção e o conceito de serviços. Determinação geral ( mimeo) .
26Marx, K. Theories of Surplus Value, Moscou, Progress Publishers,
1969, Part I, in Nogueira, R. P. Op. cit., p. 5 .
* Brigton Labor Process Group. " O processo d e trabalho capitalista",
in Capital and Class I. Inglaterra, 1976 (mimeo), discutindo no trabalho
de Marx a noção de valor.
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 5 1
não se manifestam de modo transparente, é tendência institu­
ída infantilizar o doente, submetendo-o ao paternalismo, fato
que se manifesta de incontáveis maneiras no dia-a-dia do
hospital. Ao doente cabe confiar no médico e na medicina,
comunicando suas experiências íntimas, pessoais e corporais.
Em contrapartida não é sequer de bom tom, ou melhor, fere
as recomendações éticas e técnicas mais elementares, que um
gesto afetivo e igual apareça na relação do técnico com o
enfermo. A posição "infante" do doente frente às autoridades
do hospital se vê simbolizada a cada momento nos signos
utilizados, mais particularmente pelos médicos, no que é se­
guido pelos demais trabalhadores do hospital. A linguagem é
uma forma muito característica desta forma de dominação: o
doente se comunica do seu modo vulgar, coloquial. O médi­
co, ao contrário, fala parcialmente a mesma linguagem com
ele, e de uma outra forma sobre ele, utilizando-se dos jargões
próprios da técnica; técnica que é a própria materialização do
desenvolvimento científico e tecnológico e que tem no saber
e no como fazer, ou seja, no processo de trabalho, as deter­
minantes dos seus êxitos maiores ou menores.

A DIVISÃO DO TRABALHO HOSPITALAR E O DOENTE

As primeiras vocações para o cuidado dos enfermos certa­


mente se situam no âmbito da religião e não da ciência e da
técnica. "0 conjunto das transformações tecnológicas, eco­
nômicas e sociais, correlatas ao nascimento e ao desenvolvi­
menta das cidades e, em particular, aos progressos de divisão
do trabalho e à aparição da separação do trabalho intelectual
e do trabalho material, constitui a condição comum de dois
processos que só podem realizar-se no âmbito de uma relação
de interdependência e de reforço recíproco, a saber, a cons-
52 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
tituição de um campo religioso relativamente autônomo e o
desenvolvimento de uma necessidade de 'moralização' e de
sistematização de crenças e práticas religiosas"27. Bourdieu,
ao discorrer sobre os sistemas simbólicos no campo religioso,
nos instiga a buscar o entendimento da resignação e renúncia
que se apresentam nas atitudes abnegadas dos que se dedi­
cam ao cuidado dos enfermos, moribundos, desejando talvez
o deslocamento de aspirações e conflitos através da compen­
sação e transfiguração simbólica - promessa de salvação, por
exemplo.
Considerando a separação dos trabalhos intelectual e ma­
terial, atravessada por determinantes econômico-sociais mais
diretas, não se pode deixar de lado a religiosidade dos sujei­
tos. Malgrado administrada dentro de um arsenal religioso
específico ou não, tem através dos tempos desempenhado
uma importante função no estabelecimento de regras gerais
de sociabilidade como as que, por exemplo, determinam que
pessoas enfermas devam ser cuidadas e que tais cuidados pos­
sam significar o oficio de um contingente de pessoas cujas
características externas e internas à sua individualidade devam
merecer um reconhecimento social de generosidade e abne­
gação.
Generosidade dos que tratam versus gratidão dos tratados
e suas famílias se constitui numa troca simbólica que se mate­
rializa e modifica através dos tempos e das mudanças concre­
tas, das regras gerais de produção das sociedades. O trabalho
era anteriormente despendido de modo generoso, sem qual­
quer remuneração, por pessoas cujas vocações religiosas e

27Bourdieu, P. A economia das trocas simbólicas, 2il edição, São Paulo,


Editora Perspectiva, 1987, p. 52-53.
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 5 3
humanitárias, por caridade o u penitência, buscavam apenas
uma compensação de ordem moral e espiritual como contra­
partida ao tempo e esforço utilizados28.
Numa breve cronologia dos cuidados com os doentes ao
longo dos tempos, Mello assinala na era pré-cristã o preparo
de pessoas que possuíam algumas habilidades e conhecimen­
tos para assumir o cuidado dos doentes (sacerdotes, feiticei­
ros e mulheres, habitualmente) . No Egito já se estratificavam
os sacerdotes que cuidavam de ricos e os sacerdotes que cui­
davam de pobres, assim divididos. Na Roma antiga tal ativi­
dade era indigna para os cidadãos romanos, sendo exercida
por estrangeiros ou escravos. Na Idade Média os religiosos a
assumem, desenvolvendo-a muito nos séculos XI e XII com a
organização das Cruzadas.
No entanto, uma questão de gênero sempre se impôs.
Este tem sido um trabalho tipicamente feminino em todas as
épocas: "Por séculos, as mulheres foram doutores sem gradu­
ação, afastadas de livros e leis, aprendendo umas das outras e
passando experiência de vizinha a vizinha, de mãe para filha.
Foram chamadas de mulheres sábias pelo povo e bruxas e
charlatãs pelas autoridades"29• Contemporaneamente, entre­
tanto, as leigas e religiosas são fatos quase passados, substitu­
ídas que foram por profissionais de enfermagem que parce-

28Até fins do século XVIII os doentes, especialmente os pobres (já que


os ricos sempre receberam tratamento nas suas casas pelos médicos e bru­
xos disponíveis), Úam cuidados em casas pias. O cuidar entendido como
todos os intuitivos e domésticos rituais de ajuda e não necessariamente
prescrições e tratamentos. Presume-se que uma parcela desses abrigados
acabaram melhorando ou mesmo curando-se. O mais provável é que estes
cuidados propiciaram, no mínimo, uma morte abrigada e menos solitária.
29Mello, C. A divisão social do trabalho de enfermagem, São Paulo,
Cortez Editora, 1986, p. 34, citando Ehrenreich, 1973: 148.
54 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
lam suas atividades, dividindo-as entre os mais e os menos
graduados. Os atos técnica e socialmente mais qualificados,
herdados, por sua vez, dos atos médicos, ficam com a enfer­
magem de nível superior - os enfermeiros, que chefiam e
supervisionam, por sua vez, a enfermagem de nível médio e
elementar, auxiliares e atendentes, que executam o trabalho
menos qualificado, expondo-se mais tempo aos enfermos. Tal
organização piramidal recupera a disciplina enquanto técnica,
docilizando e contendo os corpos, através de uma competen­
te estratégia de controles e olhares hierarquizados, aprovei­
tando a mesma hierarquia instituída com base no saber.
As tarefas dos auxiliares e atendentes são, a um só tempo, as
mais intensas, repetitivas e social e financeiramente pior valoriza­
das. Além de conviver mais tempo com os enfermos, os acompa­
nham mais de perto, anotam com detalhes suas reações, cum­
prindo toda a estratégia de vigiar a vida e a morte dos internados, que
é, em si, a atribuição do hospital como um todo.
A questão que aqui se coloca, no interior da divisão do
trabalho hospitalar, são as estratégias que fazem com que a
inteligência necessária na administração dos cuidados aos enfer­
mos cada vez mais se concentre em um número restrito de
trabalhadores (alguns médicos e algumas enfermeiras) que con­
cebem instrumentos, automatismos, rotinas e padronizações de
conduta, e cada vez mais subtraem a atividade de reflexão dos
demais trabalhadores sobre o seu objeto de trabalho. Cabe a
esses executar as prescrições dos primeiros de modo autômato.
Não é o que supõe Freyssenet ao discutir esta questão sobre
os trabalhadores em geral: "Se a diversidade das qualidades so­
licitadas aos assalariados tomam incomparáveis as tarefas que
estes efetuam em períodos diferentes, a qualificação que exigem
pode ao contrário ser avaliada pelo único ponto comum que elas
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 55
têm entre si: o tempo de reflexão sobre a prática requerida para
adquirir e manter as qualidades singulares que necessitam, sejam
estas a habilidade, a força fisica, a imaginação, a capacidade de ler
e escrever, de raciocínio matemático etc . . . todas essas qualidades
exigindo reflexão para serem adquiridas e empregadas"30 • Tratar­
se-ia então de conceber um processo de qualificação técnica do
·trabalho que considere as habilidades necessárias para o trabalho
cotidiano de quem efetivamente assiste no hospital, valorizando
inclusive o que há de tecnologias informais e domésticas no
desempenho das atividades, criando uma espiral de conhecimen­
tos onde o saber técnico e o saber informal intuitivo se com­
plementem, modificando o fluxo de mão única na legitimação
dos saberes: trabalho intelectual - trabalho material ( en,rique­
cendo-os mutuamente). Até porque, a distância entre o trabalho
prescrito e o trabalho real, objeto de investigação da moderna
ergonomia, é uma demonstração de que, sem determinados ar­
ranjos desenvolvidos individualmente por cada trabalhador, di­
ficilmente as prescrições e rotinas de trabalho produzidas em
escritórios, ou qualquer espaço de normatização, se executam tal
qual prescritas, e uma vez assim acontecendo, nada garante que
os resultados sejam os esperados.
A questão não é simples e a "ficção e realidade do traba­
lho" tem sido objeto de algumas e cuidadosas investigações31

3°Freyssenet, M. A divisão capitalista do trabalho, texto mimeografado


do curso "Tecnologia, Processos de Trabalhos e Políticas de Emprego",
Sociologia USP (tradução Helena Hirata).
31Daniellou, F.; Laville, A. & Teiger, C. Fiction et realité du travail
ouvrier, Les Cahiers Français, n° 209, jan.jfev., 1983:39-45; e Rolle, P. O
que é a qualificação do trabalho?, in Hirata, H. (org. ) - A Divisão Capi­
talista do Trabalho, Tempo Social, Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1 (2) 73-
1 03, 2°. sem. 1989.
56 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
que têm demonstrado que uma separação radical entre o
trabalho de concepção e a execução de tarefas, além de pro­
duzir uma divisão de trabalho socialmente perversa e "racis­
ta", separando de um lado a minoria pensante, detentora do
conhecimento, e, de outro, a maioria alienada, executora das
atividades desqualificadas e repetidas, parece não estar dando
os resultados previstos sequer para os detentores dos meios
de produção ou, no nosso caso, os responsáveis pelas organi­
zações.
Sobre os danos causados aos trabalhadores nesses proces­
sos de dissociação e fragmentação das tarefas, para além do
senso comum, já se acumulam vários trabalhos que assim os
demonstram (inclusive o aqui citado de Daniellou e colabora­
dores) onde conseqüências psicossociais, econômicas e da
vida global dos trabalhadores estão sendo mapeadas.
Fica ainda uma discussão sobre a qualificação dos traba­
lhadores, entendida enquanto conjunto de procedimentos
que sancionam a autonomia do trabalhador para o desempe­
nho de sua tarefa. Esta fica bastante prejudicada dentro da
divisão do trabalho que estamos observando. "Admitamos,
por exemplo, que existe uma qualificação do posto e uma
qualificação do trabalhador que o ocupa. É então inconcebí­
vel que tais qualificações coincidam necessariamente, assim
como é inconcebível que elas divirjam. Se essas duas realida­
des evoluem independentemente uma da outra, a noção de
qualificação é artificial e inútil. Se elas são relacionadas uma a
outra, a qualificação designa evidentemente esta correspon­
dência."
Quando Taylor, um dos idealizadores da organização ci­
entífica do trabalho (OCT, 1 9 1 1 ), propôs uma racionalidade
científica para o trabalho baseado na divisão das tarefas em
O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 57
seus elementos mais simples, seguida d,e um agrupamento em
funções semelhantes, fragmentando e especializando �s tare­
fas com o intuito de reduzir movimentos e gastos energéti­
cos, fez aumentar assim a produção, instituindo "um modo
operatório cientificamente estabelecido", onde cada gesto,
cada seqüência, cada movimento na sua forma e no seu rit­
mo, uma vez dividido o modo operatório complexo em
gestos elementares mais fáceis de controlar por unidades,
puderam ser vigiados e controlados por um sistema hierárqui­
co complexo formado por mestre, contramestres, cronome­
tristas etc. 32
Dejours, ao comentar os danos psicopatológicos da
OCT, identifica uma tripla divisão: "divisão do modo ope­
ratório, divisão do organismo entre órgãos de execução e
órgãos de concepção intelectual, enftm, divisão dos homens
compartimentados"33. Dos elementos mais danosos desta te­
oria e prática, que inegavelmente é um pormenorizado estu­
do e sirimltaneamente uma proposta até hoje muito bem
aceita por cientistas e capitalistas, é a perda da responsabilida­
de pelo trabalhador na sua relação com a tarefa elementar,
desencadeando um processo de estranhamento e alienação do
processo de trabalho, elementos facilitadores de estados e
manifestações patológicas de ansiedade.
Um outro aspecto que nos cabe aqui examinar como
característica do trabalho hospitalar enquanto prestação de
serviço é a necessidade de funcionamento diuturno, implican­
do, no nosso meio, o regime de plantões.

uTaylor, F. W. Princípios da administração cientiftca, Ed. Atlas, 7a


·

edição, São Paulo, 1 978, p. l l O .


33Dejours, C. A loucura do trabalho, Cortez/Oboré, São Paulo, 2 a
edição, 1987, p . 59.
58 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Rutenfranz chama a atenção para o fato de que o traba­
lho em turnos não é uma invenção da era industrial, já exis­
tindo desde que os homens se organizam em cidades e esta­
dos. Entre as atividades que têm seus grupos profissionais
trabalhando em regime de turnos há mais tempo estão justa­
mente os de serviços de auxílio (enfermeiras, parteiras e médi­
cos) e os de serviços de guarda (vigias, policiais, bombeiros etc.).
Destaca como razões para a organização do trabalho em
turnos, na atualidade, três ordens de justificativas: as necessi­
dades de natureza tecnológica, onde em certos ramos da pro­
dução a interrupção do processo produtivo, se respeitadas as
jornadas habituais de trabalho, não se faria sem o prejuízo da
qualidade dos produtos (altos-fornos, por exemplo é citada);
as imposições econômicas exigindo que maquinaria de preço
alto tenha de ser utilizada ininterruptamente para permitir o
retorno do investimento em tempo hábil, e o atendimento da
população, situação essa em que nos incluímos pelo fato de o
hospital constituir uma reíftguarda diuturna de atendimento
de demandas de cuidados intensivos de saúde, particularmen­
te nos espaços urbanos. Rutenfranz et alii, comentando a
pouca discussão que acontece a respeito do assunto, assi­
nala: "Pode-se atestar a pouca consciência pública dos pro­
blemas específicos dos turnos no setor de serviços pelas difi­
culdades dos grupos profissionais desta área em torná-los
compreensíveis e divulgá-los para o grande público. É preciso
lembrar sempre que nossos desejos e nosso comportamento,
em parte egoístas, determinam a extensão dos turnos da so­
ciedade"34.

34Rutenfrani, J.; Knauth, P. & Fisher, F. M. Trabalho em turnos e

noturno, São Paulo, Hucitec, 1989, p. 23.


O HOSPITAL COMO CAMPO DE PRÁTICAS 59
Estudos de cronobiologia aplicados à organização do tra­
balho têm levantado aspectos irreconciliáveis do trabalho rea­
lizado em turnos (noturno por excelência), onde os sincroni­
zadores individuais estão invertidos em relação aos demais
sincronizadores sociais, violentando também os ritmos circa­
dianos, trazendo desordens na esfera biológica, psicológica e
social desses trabalhadores e seus familiares, habitualmente
desconsiderados nos acordos de trabalho e sequer presentes
como eixo de preocupação deles próprios ou mesmo dos
profissionais de saúde: "As conseqüências a longo prazo
dessas alterações estão ainda por ser esclarecidas. Teiger et
alii, comparando taxas de mortalidade entre trabalhadores
exercendo profissões semelhantes no setor gráfico, mostraram
que, entre trabalhadores noturnos, a mortalidade era mais
precoce do que a dos trabalhadores diurnos. Não se pôde
afirmar com certeza que o trabalho em turnos fosse o res­
ponsável pelos resultados mas os autores o consideraram
como um dos fatores a serem levados em conta"35•
O regime de turnos e plantões abre a perspectiva de du­
plos empregos e jornadas de trabalho, comum entre os traba­
lhadores de saúde, especialmente num país onde os baixos
salários pressionam para tal. Tal prática potencializa a ação
daqueles fatores que por si só danificam suas integridades
fisica e psíquica.

35Ferreira, L. L. "Aplicações de cronobiologia na organização do tra­


balho humano", in Introdução ao estudo da cronobiologia, São Paulo, Íco­
ne/Edusp, 1988, p. 248 (editado por Cipola-Neto, J.; Marques, N. e
Menna-Barrçto, L. S.).
Capítulo 3

A NATUREZA DO SOFRIMENTO
A CONTRAPARTIDA

La vie et non la mort, !e travail et non l'émotion,


l'expérience humaine en un mot, c'est-à-dire la
liberté. Car c'est la présence implicite de la mort
qui transforme la liberté en ce pouvoir théorique
et en cette pureté idéale et impuissante qui n'a de
cessé !e travail a !'origine de l'être, c'était pour
indiquer que la liberté n'est rien d'autrc que la
nature humanisée et justifiée, l'acte ontologiquc
du travail, l'expérience humaine.

Vuillemin, 1949

EXAMINEMOS AS RESPOSTAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS


·
,que o lidar cotidiano com doenças e morte, enquanto avatar
da própria existência humana, provoca e transforma impulsos
primitivos desses atores privilegiados que são os trabalhadores
de hospitais, em atuação concreta através de processos tecno­
lógicos de saúde.
"A situação de trabalho suscita sentimentos muito fortes
e contraditórios na enfermeira: piedade, compaixão e amor;
culpa e ansiedade; ódio e ressentimento contra os pacientes
62 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
que fazem emergir esses sentimentos fortes, inclusive inveja
ao cuidado oferecido ao paciente�'36. De modo tocante,
Menzies pontua sentimentos e ansiedades profundos e inten­
sos que o trabalhador de um hospital enfrenta na sua rotina
de trabalho, que se prende fundamentalmente em assumir os
cuidados de pessoas doentes que por esta ou aquela razão
não podem ser tratadas nas suas próprias casas. A principal
responsabilidade no exercício dessa tarefa costuma recair com
maior intensidade sobre a equipe médica, diretoria técnica e,
de modo mais contundente, sobre o serviço de enfermagem
que deve prover de cuidados contínuos os pacientes ali inter­
nados, durante as vinte e quatro horas do dia, dia após dia,
até o desfecho esperado, um amplo leque de possibilidades
que vai da cura à morte.
Esse contato constante com pessoas fisicamente doentes
ou lesadas, adoecidas gravemente, com freqüência, impõe um
fluxo contínuo de atividades que envolvem a execução de
tarefas agradáveis ou não, repulsivas e aterrorizadoras muitas
vezes, que requerem para o seu exercício, ou uma adequação
prévia à escolha de ocupação (refiro-me aos ajustes que o
psiquismo de cada um estabelece para alcançar um grau míni­
mo de satisfação com as profissões escolhidas) ou um exercí­
cio cotidiano de ajustes e adequações dê estratégias defensivas
para o desempenho das tarefas. "0 contato íntimo com os

36Menzies, I. "The Functioning of Organizations as Social Systems of


Defense against Anxieties", Institute of Human Relations, 1970, artigo
traduzido e adaptado por Arackcy Martins Rodrigues. Relata um trabalho
de uma psicanalista desenvolvido num hospital-geral de Londres, de 700
leitos, com programas de formação de médicos e enfermeiros, a convite da
administração do próprio hospital para rever métodos de desenvolvimento
do trabalho hospitalar.
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 63
pacientes mobiliza fortes desejos e conteúdos libidinosos e
eróticos que podem ser dificeis de controlar"37• Buscando
entender a natureza da ansiedade produzida neste contato,
Menzies invoca as fantasias inconscientes, habitualmente es­
truturadas na primeira infància, quando a criança experimenta
dois tipos opostos de sentimentos e impulsos: os libidinosos,
que caminham conceitualmente para o que se denomina
instinto de vida, e os impulsos agressivos que se associam ao
conceito de instinto de morte. "A criança experimenta oni­
potências e atribui uma realidade dinâmica a esses sentimen­
tos e impulsos. Ela acredita que os impulsos libidinosos são
_
literalmente doadores de vida e os impulsos de morte, assas­
sinos. A criança atribui sentimentos, impulsos e poderes si­
milares a outras pessoas e a partes importantes das pessoas.
Os objetos e instrumentos dos impulsos libidinosos e agres­
sivos são sentidos como sendo o corpo e os produtos cor­
póreos da própria criança ou de outras pessoas. As experiên­
cias fisicas e psíquicas estão intimamente ligadas nesse perío­
do . A criança teme pelo efeito das forças agressivas sobre as
. .

pessoas que ela ama e sobre si mesma. Ela teme as exigências


que recairão sobre seus ombros para a reparação, punição e
revanche que podem atingi-la . . A pungência da situação é
.

maximizada porque o próprio amor e o desejo são sentidos


como sendo muito próximos.da agressão"38• E Menzies con­
tinua desenvolvendo um modelo de entendimento da ansie­
dade infantil, utilizando-se de referenciais analíticos kleinia­
nos para intuir que o impacto que a doença dos doentes,
associado ao "stress" psicológico de familiares de stes ou

37Idem, ibidem, p. 6.
38Ibidem, p. 8.
64 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
mesmo de colegas de trabalho, são capazes de produzir uma
cadeia inconsciente de associações que fazem com que
o papel de enfermagem reedite situações primitivas que in­
crementam sua própria ansiedade e dificuldade em lidar
com ela.
"Os pacientes e parentes nutrem sentimentos complica­
dos em relação ao hospital, que são expressos particularmente
e mais diretamente às enfermeiras e que, freqüentemente, as
confundem e angustiam. Os pacientes e parentes demons­
tram apreço, gratidão, afeição, respeito; uma comovente
crença de que o hospital funciona; prestimosidade e preocu­
pação para com as enfermeiras em seu dificil trabalho. Mas os
pacientes freqüentemente se ressentem de sua dependência;
aceitam de má vontade a disciplina imposta pelo tratamento e
pela rotina hospitalar; invejam as enfermeiras pela sua saúde e
competência; são exigentes, possessivos e ciumentos. Os paci­
entes, tal como as enfermeiras, experimentam fortes senti­
mentos libidinosos e eróticos, estimulados pelos cuidados de
enfermagem, e às vezes se comportam de maneira a aumentar
as dificuldades das enfermeiras, por exemplo, através da expo­
sição fisica desnecessária. Os parentes podem igualmente ser
exigentes e críticos, principalmente porque sentem que a
hospitalização implica inadequações em si mesmos. Eles inve­
jam a competência da enfermeira e têm ciúmes do contato
íntimo que ela mantém com o seu paciente"39• O que a au­
tora assinala na sua observação cuidadosa é que, de modo
sutil, as exigências psicológicas que são feitas, paciente e fa­
miliar, vão além do simples cuidado fisico, das tomadas de
pressão e temperatura e das aplicações de terapêuticas. O

39Ibidem, p. 9.
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 65
hospital é um espaço mítico que deve conter e administrar os
problemas emocionais provocados pelo doente e sua doença
e toda a rede de relações sociais que a eles se vinculam.
Sentimentos como depressão e ansiedade de doentes e
familiares devem naturalmente ser projetados no hospital,
através de seus elementos de mediação - os trabalhadores
do hospital -, a quem cabe decidir questões importantes, e
assumir responsabilidades que, de uma forma igualmente na­
tural, poderiam e até mesmo deveriam ficar com os enfermos
e suas famílias.
O risco de ser invadido por ansiedade intensa e incon­
trolada está presente na própria natureza do trabalho e cer­
tamente atenuada ou estimulada pelo próprio processo tec­
nológico do trabalho no hospital.
Para Menzies, ao se desenvolver uma estrutura, uma cul­
tura e seu modo de funcionamento, uma organização social é
influenciada por vários fatores interatuantes, principalmente:
as tecnologias40 disponíveis para a execução da tarefa, as ne­
cessidades de satisfação social, profissional e psicológica dos
membros da organização e os relacionamentos e pressões so­
ciais que sobre esta atuam.
Os membros da organização desenvnlvem mecanismos de
defesas estruturados socialmente que tendem a se torn.ar as­
pectos da realidade externa com a qual os nevas e os antigos
membros da instituição devem entrar em acordo.
Tais defesas poderiam, de um modo esquemático, ser
classificadas em: l ) Fragmentação da relação técnico-paciente

40Menzies, I. Op. cit., p. 1 5 . Tecnologia aqui vista, como define Ricar­


do Bruno M. Gonçalves, não como um conjunto de parafernálias hospita­
lares, mas o "modo de fazer", socialmente articulado de uma referida
prática.
66 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
(quanto mais íntimo for este relacionamento, mais o técnico
e�tará· propício a experimentar angústia, portanto vale qual­
quer iniciativa na direção de parcelar as tarefas no sentido de
reduzir os tempos de contato do técnico com o doente);
2 ) Despersonalização e negação da importância do indivíduo
- qualquer paciente é igual a qualquer outro paciente, por­
tanto, ele não é alguém com registro afetivo diferenciado.
Existe uma "ética" implícita de que todos devam ser tratados
de igual maneira e que não existem doentes ou doenças que
se individualizem e personifiquem. As vestes iguais de doen­
tes e os uniformes dos técnicos se encarregam de introduzir
um signo asséptico, embora, é claro, preservando uma relação
de poder no cuidado pasteurizado e indiferenciado destes
sobre aqueles; 3 ) Distanciamento e negação de sentimentos, é
o terceiro e conseqüente momento aos dois primeiros, onde
sentimentos têm de ser controlados, o envolvimento refrea­
do, as identificações perturbadoras evitadas. Para isso a redu­
ção das diferenças individuais exerce um importante papel no
desenvolvimento desta necessária couraça; 4) Tentativa de
eliminar decisões pelo ritual de desempenho das tarefas. A
eterna procura de rotinas e padronizações de condutas não
tem justificativa apenas na econo.mia objetiva de gestos e
procedimentos. Embora exista sempre nas instituições con­
cretas um dispêndio de tempo no esforço de padronizar os
processos de cuidados aos enfermos, tal dispêndio de tempo
e energia funciona como um ritual de postergação e controle
de decisões a serem tomadas frente a numerosas demandas
que cada doente é capaz de produzir. Nada como antecipar
escutas e respostas para não ter, a cada momento, de dedicar­
se de corpo e alma às demandas brutas, não estabelecidas em
quaisquer sistemas de classificação e respostas. O ritual co-
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 67
nhecido cumpre uma função de reduzir ansiedades e minimi­
zar o discernimento individualizado de cada profissional em
planejar o seu trabalho; 5 ) Redução do peso da responsabili­
dade - todas as possibilidades de fuga da angústia da res­
ponsabilidade e decisão estarão sendo mobilizadas através de
uma série de verificações e contraverificações que o próprio
parcelamento e fragmentação das tarefas, de cuidados aos
doentes numa instituição concreta, se encarrega. "O peso
psicológico da ansiedade gerada por uma decisão final e total
feita por uma única pessoa é dissipado de inúmeras maneiras,
de forma a reduzir seu impacto . . . uma proteção adicional
contra o impacto da responsabilidade específica para tarefas
específicas é fornecida pelo fato de que a estrutura formal e o
sistema de papéis não logram definir de maneira suficiente­
mente clara quem é responsável pelo que e por quem"41. A
obscura linha de definições e mando deverá percorrer a hie­
rarquia - acima e abaixo - diluindo sempre e criando solu­
ções facilitadoras para projeções e fugas nos atos de descuido
e imperícia. "As enfermeiras enquanto subordinadas tendem
a se sentir muito dependentes de suas superioras sobre quem
elas investem psicologicamente através da projeção de algu­
mas de suas próprias partes melhores e mais competentes.
Elas sentem que suas projeções lhes dão o direito para esperar
que suas superioras assumam seu trabalho e tomem decisões
por elas. Por outro lado, as enfermeiras, enquanto superioras,
sentem que não podem confiar inteiramente em suas subor­
dinadas, nas quais elas psicologicamente colocam as partes
irresponsáveis e incompetentes de si mesmas"42•

41Menzies, I. Op. cit., p. 22.


42Idem, ibidem, p. 2 5 .
68 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Os assim chamados sistemas sociais de defesa43, como os
descritos acima, cuja função primordial é ajudar o indivíduo a
fugir da ansiedade, culpa, dúvida e incerteza, são aqui trazi­
dos como um modelo explicativo para a complexa dinâmica
da interação técnico-paciente numa instituição hospitalar,
embora não único ou exclusivo.
Uma outra linha de contribuições interessantes para os es­
tudos de saúde mental e trabalho vem dos estudos desenvolvi­
dos no Laboratoire de Physiologie du Travail et d'Ergonomie
du CNAM, Paris, em trabalhos conduzidos por Wisner44. Ao
buscar estabelecer uma relação entre organização do trabalho,
carga mental e sofrimento psíquico, avalia que a evolução da
tecnologia para uma série de trabalhos, inclusive o trabalho hos­
pitalar, tem se revestido de componentes cognitivos complexos e
determina muitas vezes sobrecargas mentais nos trabalhadores.
O desafio se coloca justamente na constituição de um
instrumental teórico-metodológico que se encarregue de me­
dir tais sobrecargas, estabelecendo um nexo causal com de­
terminadas condições e características do trabalho. Nas suas
análises e medidas face às atividades mentais no trabalho,
Wisner costuma considerar a percepção, a identificação, a
decisão, a memória para fatos recentes, e o programa de ação.
E tais análises se fazem não com o que os operadores supõem
fazer, mas sim com o que eles realmente realizam como res­
postas às exigências do sistema.

43Categorias criadas por Jacques ( 1955) e detalhadas por Izabel Men­


zies no trabalho anteriormente citado para ajudar a entender as estratégias
defensivas utilizadas pelos trabalhadores !}O trabalho hospitalar.
44Wisner, A. Ergonomie, travail mental, antropotechnologie, textes gé­
néreux 111, 1976- 198 1 , Paris, Collection de Phisiologies du Travail et
d'Ergonomie du CNAM, 198 1 .
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 69
Os sinais de sofrimento psíquico ( expressão verbal, com­
portamento neurótico, doenças psicossomáticas) podem estar
relacionados, a partir das suas observações, a aspectos especí­
ficos de certos grupos de tarefas. Tais aspectos são particular­
mente encontrados em modalidades de organizações que ex­
põem trabalhadores a atividades perigosas (caldeiras, platafor­
mas), que costumam produzir mais situações de conflito que
momentos de prazer no trabalho, condicionando o uso de
alguns estereótipos: a interrupção freqüente das tarefas, uma
auto-aceleração mental etc.
A ênfase de "melhor adaptar o trabalho ao trabalhador"
assumida por este grupo de investigação, que o diferencia de
modo substancial da ambigüidade encontrada na ergonomia
clássica e de uma atitude antitrabalhador, mais explícita da
administração científica de Taylor, onde a adaptação do tra­
balhador à linha de produção é a tônica da cientificidade da
teoria, tem trazido contribuições importantes para a identifi­
cação da organização do trabalho como objeto de atenção
particular, ainda que outros fatores tenham a ver com o sofri­
mento psíquico dos trabalhadores. Assinala que a profunda
ignorância por parte dos gerentes das organizações quanto às
características fisiológicas e psicológicas do homem se consti­
tui num fator importante na inadaptação entre o que se su­
põe que os trabalhadores façam e aquilo que efetivamente
eles são capazes de fazer, e justamente a distância entre a
tarefa prescrita e o trabalho real é o que constitui a chave
desta análise ergonômica do trabalho. Wisner também defen­
de que se examine três ordens de comportamento nas análises
ergonômicas do trabalho: primeiro, os comportamentos de
ação medida em estudos de tempos e movimentos; segundo,
os comportamentos de observação, avaliados essencialmente
70 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
graças a posturas e movimentos dos corpos, cabeças e olhos
(por exemplo, seqüência de movimentos oculares numa de­
terminada tarefa), e terceiro, o comportamento da comunica­
ção, de captação essencialmente verbal, embora também se­
miótica, uma vez que não se contenta com a linguagem for­
mal dos sinais corporais codificados, mas também com a ex­
pressão corporal informal45•
A inegável contribuição trazida por Wisner para o estudo
de correlações de agressões dos ambientes de trabalho com a
saúde dos trabalhadores consiste no aproveitamento e elabo­
ração da noção da carga de trabalho que, uma vez discrimi­
nada nos seus três aspectos (fisicos, cognitivos e psíquicos),
são passíveis de identificação nos ambientes de trabalho:
"Esta última pode ser definida em termos de novos conflitos
no seio da representação consciente ou inconsciente das rela­
ções entre a pessoa (ego) e a situação (neste caso: a organiza­
ção do trabalho) . Mas é também onde o sofrimento e a
fadiga fisica provocada pela distribuição dos períodos de tra­
balho durante o ciclo circadiano podem provocar uma sobre­
carga de trabalho cognitivo, determinando alterações afeti­
vas". A visão de sobredeterminação de uma carga sobre ou­
tra é alguma coisa que Dejours de modo crítico retoma na
discussão sobre a divisão de cargas de trabalho nos dois seto­
res: cargas fisicas de um lado e carga mental do outro, assina­
lando que atrás da carga mental teríamos ainda uma ordem
de fenômenos de natureza neurofisiológica e psicológica
(psicossensorial, sensomotor, perceptivo, cognitivo) e outros
fenômenos de ordem psicológica ou psicossociológica que
implicam variáveis comportamentais, caracteriais, psicopata-

45Wisner, A. Op. cit., p. 126.


A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 7 1
lógicas, motivacionais etc.46
O fato é que Dejours, numa extensa produção de pesqui­
sa em psicanálise e na área específica de psicopa_tologia do
trabalho, vem dirigindo os seus estudos para a interpretação
dos conteúdos das vivências subjetivas dos trabalhadores nos
seus ambientes de trabalho, não os considerando apenas
como corpos biológicos submetidos a formas distintas de or­
ganização do trabalho, mas tratando-os como sujeitos sexua­
dos, com intensa produção e interação intersubjetiva, onde o
universo do trabalho costuma ocupar a maior parte de suas
vidas . Sem atribuir uma etiologia específica determinando
doenças laborais específicas, demonstra que uma descompen­
sação psiconeurótica ou neurótic� em trabalhadores sobrevi­
ria a estruturas neuróticas ou psicóticas de personalidades,
assim organizadas em etapas mais primitivas do desenvolvi­
mento, e que, provocadas por condições adversas de traba­
lho, poderia inclusive fazer eclodir uma produção psicopato­
lógica, onde o mundo do trabalho seria um privilegiado ce­
nário de projeções e atuações.
Estabelece, entretanto, uma relação de determinação ape­
nas na "síndrome subjetiva pós-traumática que compreende­
ria uma gama variável de problemas funcionais sem substrato
orgânico e a persistência de sintomas de condições clínicas já
superadas"47. Esta síndrome costuma ser crônica e o seu sen­
tido e significado não têm sido desvendados na história indi-

46Dejours, C. "La charge psychique de travail", in Societé Française de


Psychologie. Equilibre ou fatigue par te travail, Paris, 1980, p. 45-54,
Entreprise Moderne d'Édition.
47Dejours, C. A loucura do trabalho - Estudo de psicopatologia do
trabalho, cit., p. 123/4, onde ele examina as características especificamente
laborais desta síndrome.
72 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
vidual de cada trabalhador acometido, encontrando associa­
ções fortes com determinados aspectos desvantajosos ou peri­
gosos das condições e organização do trabalho. Para ele, a
mediação entre a organização do trabalho e as descompensa­
ções psíquicas dar-se-ia pelo impedimento do trabalhador de
ter um desenvolvimento livre dos modos operatórios adequa­
dos à sua estrutura mental; o trabalhador estaria "lesado em
suas potencialidades neuróticas e obrigado a funcionar com
uma rígida estrutura caracterial e comportamental". A carga
psíquica48 não seria apenas um efeito do processo e organiza­
ção do trabalho, mas uma etapa onde se atualizaria a sub­
missão do próprio corpo do trabalhador. A dificuldade que
Dejours encontra - que não é apenas sua ou da esfera
"psi"49 - é exatamente a de precisar um nexo causal entre
determinadas condições de trabalho e a emergência de algum
sintoma ou doença mental a elas diretamente relacionadas:
"mesmo intenso o sofrimento, é razoavelmente bem contro­
lado pelas estratégias defensivas, para impedir que se trans­
forme em patologia"50. O desafio consiste em identificar se é
possível evitar descompensações atuando sobre situações
frente às quais se tenha estabelecido algum tipo de nexo
causal. Não se trata de ressuscitar a causalidade, psíquica
desta vez, para validar a associação entre determinadas con-

48"Carga psíquica" como um conceito que parece fluir do trabalho


teórico conjunto com Alain Wisner, onde os aspectos psicoafetivos ganham
uma grande ênfase na sua consideração.
49Neste momento temos dois ótimos trabalhos que polemizam essa
questão no âmbito das ciências sociais. A discussão sobre a construção da
identidade operária em Minayo, M. C. S. Os homem de forro. Dois pontos,
1986, 244 p. e também em Morei, R. L. M. A ferro e fogo, tese de dou­
toramento, FFCL-USP, 1989, 505 p.
50Dejours, C. Op. cit. , p. 120.
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 73
dições de trabalho e sintomas e doenças detectadas, embora
caudalosas sejam as inferências em estudos observacionais de
situações de pressão organizacional e emergência de sintomas
de descompensação.
Um outro filão a ser valorizado e explorado em investiga­
ções de sofrimento psíquico nos ambientes de trabalho tem a
ver com as doenças somáticas que aparecem sobretudo em
indivíduos que apresentam uma estrutura mental caracteriza­
da pela pobreza ou ineficácia das defesas mentais, como assi­
nala Dejours, referindo-se à teoria da Escola Psicossomática
de Paris. "Quando as defesas caracteriais e comportamentais
não conseguem conter a gravidade dos conflitos ou a realida­
de, tais sujeitos não descompensam de modo neurótico, nem
de um modo psicótico. A desorganização a qual sucumbe o
doente não se traduz por sintomas mentais mas pelo apareci­
mento de uma doença somática"51•
Se nos interessa buscar uma evidência empírica de sinais e
sintomas de sofrimento psíquico num coletivo de trabalhado­
res de uma organização concreta, de pronto se justifica a
pesquisa de manifestações e sintomas somáticos que possam
estar escudando expressão de sobrecarga psíquica nesses tra­
balhadores.
As respostas sintomáticas carecem de uma teoria explica­
tiva para a sua causação, e embora estejamos lidando com um
fenômeno coletivo, ou seja, o sofrimento psíquico de um
grupo de trabalhadores, acreditamos que os conceitos psica­
nalíticos de desejo, angústia, sublimação; regressão dentre
outros, construídos numa dimensão individual, talvez nos
auxiliem a fazer uma ponte na compreensão do funcionamen-

51ldem, ibidem, p. 121.


74 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
to psíquico do indivíduo enquanto individualidade e do indi­
víduo enquanto parte de uma coletividade.
Dejouts dedicou um seminário interdisciplinar a discutir o
sofrimento e prazer no trabalho52• A sua própria contribuição, ao
discutir as três linhas fundamentais na psicopatologia do trabalho
- o medo, o tédio, a tristeza - e a exploração, parecem-nos
elementos primorosos na revelação dos enigmáticos mecanismos
que fazem do trabalho fonte inesgotável de dores e prazeres.
Embora pudéssemos encontrar elementos elucidadores na
discussão de outros aspectos do psiquismo humano (e abando­
narmos em muito a intencionalidade primitiva deste texto), creio
que determo-nos no entendimento da sublimação enquanto
forma de administrar pulsões de vida e morte presentes em
todos, nos facilitaria a tarefa de entender alguns aspectos da
natureza do sofrimento do trabalho em saúde.
É significativa a importância que Freud atribui à sublima­
ção enquanto mecanismo competente de transformar pulsões
inconscientes, primitivas, individuais, em atividades de utili­
dade e reconhecimento sociais, através de uma dessexualiza­
ção das pulsões, oferecendo uma via não sexual para a sua
satisfação, apesar de não lhe dedicar um trabalho extenso.
Estabelec.e assim uma continuidade psíquica entre o incons­
ciente e o campo social, sendo um primoroso instrumento
em Psicopatologia do Trabalho na investigação de determi­
nantes psíquicas em atividades classicamente relacionadas
com a sublimação, como a criação artística, a pesquisa cien­
tífica e a atividade religiosa53•

52Séminaire Interdisciplinaire de Psychopathologie du Travail, patroci­


nado pelo CNRS, França, realizado em Paris, em janeiro de 1986.
53Dejours, C. "La sublimation in soufrance et plaisir dans le travail",
op. cit., p. 1 19-122 .
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 75
Freud propôs distinguir dois tipos fundamentais de pul­
são: as sexuais e as de autoconservação. Entre ambas o confli­
to é irredutível e faz parte da própria existência humana. As
pulsões sexuais indicam o caminho do prazer, enquanto as de
autoconservação, levando em conta os eventuais perigos a
que os sujeitos estariam expostos, os freariam. Isto o levou,
inclusive, a trocar seu nome para pulsões do Ego54 e a de­
senvolver a "economia" da pulsão de morte numa segunda
discussão sobre as pulsões, examinando os aspectos econômi­
cos em termos de energia libidinal investida cotidianamente
num funcionamento psíquico habitual.
Talvez esteja no conhecimento do psicodinamismo desta
última (a pulsão de morte), a chave do entendimento da
satisfação ou adoecimento pelo trabalho. Pode-se encarar três
destinos fundamentais para a pulsão de morte: a confusão
apaixonada, que "se traduz pela componente apaixonada do
projeto, do qual a pulsão de vida (sexual) é o mestre de
obras"55; a realização pulsional pela percepção, onde o indiví­
duo se coloca através de uma atividade em contato com o
horror e o sofrimento, e a profissão funciona como um álibi
de um gozo secreto através da percepção de certas situações
atrozes - "encontram-se numerosos exemplos entre as situ­
ações dos abatedouros e dos açougues, dos necrotérios, ce­
mitérios etc. Freqüentemente essas pessoas levam uma espé­
cie de vida dupla, que reproduz fielmente o duplo funciona­
mento psíquico separado pela barra da clivagem. Durante o

54Dejours, C. O corpo entre a biologia e a psicanálise, Artes Médicas,


Porto Alegre, 1988; Freud, S. Além do princípio do prazer, edição standard
brasileira das obras completas, Imago, Rio de Janeiro, vol. XVIII, 1976,
p . 17-85.
55Dejours, c. o corpo ... , cit., p. 1 39.
76 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
dia de trabalho exercem seu sadismo sem limite e, de volta a
casa, aparecem como os personagens mais pacíficos, os mais
urbanos e os mais sensíveis que existem"56; a terceira possi­
bilidade é a sublimação, onde o processo vai até a representa­
ção mental interiorizada e a satisfação das pulsões é obtida
através de percepções visuais, olfativas, auditivas, cenestésicas;
e o que mais a caracteriza é a criação, pelo próprio sujeito da
forma a ser percebida. "O criador age, portanto, sobre a
realidade, não somente para encontrá-la, mas para enriquecê­
la . . . aquilo sobre o que trabalha o artista ou o artesão não é a
causa de um gozo que ocorre independentemente do seu
conhecimento . . . Necessita da autorização, ou da aprovação
dos outros, senão duvida da legitimidade de sua obra"57.
A sublimação busca resolver conflitos intrapsíquicos entre
pulsões, e, embora seja um processo individual, é o que mais
se estende ao campo coletivo, como já dissemos, daí a sua
utilidade na Psicopatologia do Trabalho. Com isso não esta­
mos estabelecendo paralelos entre a organização mental e a
organização do trabalho; entre elementos subjetivos, singula­
res, simbólicos, e realização, sofrimento, adoecimento coleti­
vo do trabalho.
Ao trazermos aqui a discussão que se faz em torno da
sublimação, buscamos apenas desenvolver o entendimento
dos mecanismos de reparação que fazem com que uma ener­
gia libidinal primitiva, dessexualizada, possa se deslocar para
objetos e finalidades valorizados social e narcisisticamente. A
sublimação é um processo de transformação fecundo da eco­
nomia psíquica e Freud, ao discuti-la, a propósito da obra de

56Idem, ibidem, p. 142 .


57Ibidem, p. 145.
A NATUREZA DO SOFRIMENTO - A CONTRAPARTIDA 77
Leonardo da Vinci, considera: "a observação da vida cotidia­
na dos seres humanos nos mostra que . a maioria consegue
guiar para sua atividade profissional porções muito considerá­
veis de suas forças pulsionais sexuais, e a pulsão sexual é
particularmente idônea para prestar estas contribuições, pois
.
está dotada de uma atitude para a sublimação; ou seja, que é
capaz de permutar sua meta imediata por outras que possam
ser mais estimadas e não sexuais"58• O cuidar de uma pessoa
doente é inserido num contexto social onde a piedade e soli­
dariedade são sentimentos socialmente valorizados dentro de
uma estratégia de sobrevivência da espécie e de uma certa
sociabilidade que tem na harmonia o seu paradigma e na
saúde um elemento indissociável a esta harmonia; este cuidar
deverá ter um valor de natureza moral e ética que canalize
energias e simpatias. "A possibilidade de deslocar sobre o
trabalho profissional e sobre os vínculos humanos que com
ele se envolvem uma considerável medida de componentes
libidinosos narcisistas, agressivos e até eróticos confere um
valor não desprezível ao seu caráter indispensável para afian­
çar e mistificar a vida na sociedade"59•
Para entender alguns mecanismos pelos quais a "voca­
ção" para o trabalho em hospitais se institui e mantém, apesar
do trabalho duro de esforço fisico e do penoso lidar com
dejetos e situações mais desfavoráveis dos usuários dessas ins­
tituições, parece ter na sublimação uma forma de lidar com
pulsões instintivas, transformando-as em atos e atividades so­
cialmente reconhecidos e possibilitando a realização transa-

58Freud, S. "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infància",


standard brasileira, Rio de Janeiro, Imago, vol. XI, 1974, p. 122.
59Freud, S. "O mal-estar na civilização", standard brasileira, obras
completas, Rio de Janeiro, Imago, vol. XXI, p. 1 18.
78 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
cional do desejo num caminho alternativo à repressão. Se­
gundo Hornstein, a sublimação é uma via mais interessante
para contribuir com o patrimônio cultural e social que a
repressão ou o sintoma seu derivado habitual: "O processo
sublimatório deixa subsistir a carência e implica um trabalho
de luto pela perda das imagens ideais (idealização), o que
evita que os objetos sejam ou bem rechaçados por inacessí­
veis, ou bem exaltados como suporte de uma relação de fas­
cinação. As fixações diversas da libido obstaculizam a realiza­
ção sublimatória sob as formas de idealização latente, da su­
perestima perversa ou dos fenômenos passionais. Ao contrá­
rio, a cooperação entre sistemas de que fala Freud em O in­
consciente faz possível um prazer naquelas atividades que pela
presença de prazer aliado à valorização narcisista se podem
chamar de sublimadas"60.
Ao buscarmos selecionar um mecanismo de defesa indivi­
dual como a sublimação, com a possibilidade de um sistema
social de defesa, e portanto coletivo, de trabalhadores num
ambiente hospitalar, não gostaríamos de passar a imagem de
uma via única de resolução de conflitos no interior de um
campo de práticas e sim levantar elementos que nos possam
ser úteis na discussão desse trabalho, que exige do pesquisa­
dor ousadia e prudência, simultaneamente: "Onde se possa
opor uma psicanálise da angústia a uma sociologia de defesas
contra o sofrimento"61.

60Hornstein, L. La sublimación: otro continente negro, 1989, 72 p., p.


5 5 (mimeo).
61Dejours, C. "Plaisir et soufrance . . . , cit., p. 122.
"
Capítulo 4

SINTOMA COMO EXPRESSÃO DO


SOFRIMENTO PSÍQUICO

Souffrance et plaisir qualifient !e rapport de


l'homme à la réalité et recrutent la participation
de l'individu et du colletif. Souffrance et plaisir
peuvent donc s'étudier dans l'ordre individuei et
dans l'ordre colletif du rapport homme(s)/tra­
vail.

Christophe Dejours, 1987

QuERER DISCUTIR RELAÇÃO ENTRE SOFRIMENTO PSÍ­


quico, este tomado como uma manifestação de mal-estar,
"distúrbio psíquico menor", uma etapa prévia à eclosão de
uma situação patológica evidenciável pelos instrumentos ha­
bitualmente utilizados pela clínica, enquanto tecnologia fi.m­
damentada na individualidade e o trabalho hospitalar, implica
necessariamente uma retomada de concepções sobre a natu­
reza desse sofrimento.
No mundo greco-romano, Heródoto aceitava duas expli­
cações para o origem dos transtornos psíquicos: a primeira
estaria centrada no divino ou sobrenatural e sobre o qual
80 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
pouco se tinha a intervir, exceto no plano dos sacrificíos e ora­
ções; a segunda, nas causas naturais, coincidindo com a inter­
pretação dos médicos da época, isto é, os distúrbios psíquicos
considerados como doença ou sintomas de uma enfermidade
seriam determinados pelos mesmos fatores que influenciavam as
demais doenças de natureza fisica incorporadas à teoria dos hu­
mores; a "loucura", como de resto se denominava todo tipo de
disfunção mental, era tida como resultado da produção excessiva
da "bile negra" desarranjando as faculdades mentais62•
Essas duas concepções atravessaram a Antiguidade e Ida­
de Média com pequenas variações: o distúrbio mental foi tido
como vício originado da transgressão das normas de respeito
a certas forças naturais; a loucura também foi vista como
demonstração de revelação divina e, portanto, uma via para
se alcançar um maior conhecimento dos mistérios do mundo,
os quais sem esses estados especiais da mente estariam inaces­
síveis aos mortais.
No século XV, a loucura passa a ser vista como um defei­
to, uma precariedade humana, uma irracionalidade, ou seja, a
loucura somente se circunscreve quando oposta a uma razão
humana ou divina. Assim, enquanto fenômeno de transgres­
são social, aos loucos caberia a exclusão, a segregação social
ao lado de outros pecados e defeitos como a feitiçaria, a
vagabundagem e outros incômodos.
As diferentes conformações históricas, como se vê, modu­
lam a integração da loucura sem que a ciência ou técnica
tenham sido os principais elementos nesta homeostasia com
as sociedades concretas.

62Rosen, G. "A evolução da medicina social", in Textos organizados


por Everardo Nunes da Silva, São Paulo, Global Editora, 1983, p. 27-82.
SINTOMA COMO EXPRESSAO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO 8 1
As correntes de pensamento inovadoras e radicalizantes
que marcaram o século XVIII o foram também com relação
ao sofrimento psíquico. Pinel, sumamente talentoso em ob­
servar e dotado de um dinamismo incomum, pôde emergir
como o pai da Psiquiatria moderna, articulando o disponível
no plano nosológico, institucional e terapêutico de seu tem­
po, inaugurando uma clínica de orientação sistemática do
mundo consciente, embora, segundo Bercherie, pouco tives­
se acrescentado concretamente às descrições dos seus prede­
cessores. Herdeiro da tradição nominalista, Pinel considerava
"que o conhecimento era um processo cuja base era a obser­
vação empírica dos fenômenos que constituíam a realidade.
Esses fenômenos, matéria-prima da percepção, cabia ao es­
tudioso agrupar e classificar em função de suas analogias e de
suas diferenças; assim ele constituiria classes, gêneros e espé­
cies, evitando introduzir neste trabalho de análise e síntese
sua própria subjetividade, sob a forma de 'ídolos', cuja ori­
gem Bacon denunciaria no limiar da idade clássica: os ídolos
da tribo, antropomorfismo espontâneo do pensamento; os
ídolos da caverna, inércia que não contestava as noções in­
culcadas pela educação, ou seja, pela cultura ambiental; os
ídolos do fórum, redução das palavras e da retórica, mas
também das classificações inteiramente feitas da linguagem
vulgar; e os ídolos do teatro, prestígio dos grandes sistemas
filosóficos "63• Bercherie tem razão ao relativizar a importância
de Pinel na abordagem da desrazão humana como objeto de
um olhar científico. Naturalista e empiricista, seu grande mé­
rito teria sido inaugurar uma tipologia classificatória que nos

63Bercherie, P. Os fundamentos da clínica, história e estrutura do saber


psiquiátrico, Rio de Janeiro, J. Z. E. Editor, 1989, p. 31 -32.
82 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
posteriores trabalhos de Esquirol, Morei, Magnam, Gsinger,
Falret, Kahlbaum, Kraepelin, Kretschmer, Clérrambault e
outros só fizeram mais complexa. O certo é que a clínica
reina absoluta nesta contínua tarefa classificatória, evidencian­
do que, respeitadas as especificidades da época, o contato
com o empírico tem sido maximizar a tarefa de classificar e
reclassificar o objeto investigado, encontrando-se sempre um
estímulo e uma possibilidade para uma nova etapa classifica­
tória. Talvez seja essa e não outra a forma pela qual os sinais
e sintomas psíquicos possam se insinuar no mundo objetivo
das ciências. Não é nosso propósito um percorrer exaustivo
das concepções psiquiátricas de sintomas e enfermidades ao
longo da história, mas situar o conceito de sofrimento psí­
quico enquanto instrumento mediatizador das reações do
psiquismo humano aos estímulos e agressões do mundo do
trabalho e buscar uma forma operácional de o estar identifi­
cando através de mecanismos diretos e indiretos para a sua
detecção.
No Seminário Interdisciplinar de Psicopatologia do Traba­
lho, de janeiro de 1986 a julho de 1987, patrocinado pelo
Conselho Nacional de Pesquisa da França ( CNRS), Dejours
dedicou-se a uma longa discussão para encontrar um concei­
to que pudesse expressar o campo de investigação diferente
da doença mental (com suas acepções já dadas pela psiquia­
tria) e que compreendesse a interação do psiquismo humano
com o mundo do trabalho. A psiquiatria clássica opera uni­
camente com duas noções de estados: de doença mental e
saúde mental polarizando as duas condições extremas de sa­
nidade e insanidade. A quantos têm trabalhado com o psi­
quismo humano preocupa o destino da grande zona cinzenta
situada entre a saúde e a doença mental, "espaço que se
SINTOMA COMO EXPRESSÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO 83
caracteriza por uma luta contra a doença mental" enquanto
esta não se manifesta, situação que melhor caracteriza a re­
sistência humana às agressões dos ambientes de trabalho.
Assinala Dejours que a doença não é uma situação per­
manente. Enquanto processo, a saúde e a doença podem ser
perdidas e reconquistadas, como estados dinâmicos e ineren­
tes à própria vida64 •
A noção do sofrimento psíquico designa esta difusa zona
entre a saúde e a doença significando um conceito mais pre­
ciso no âmbito da Psicopatologia do Trabalho: " Ela é co­
nhecida como uma noção específica variável em Psicopato­
logia do Trabalho, mas verdadeiramente não exportável para
outras disciplinas, notadamente em psicanálise"65• Entre a
organização do trabalho prescrito e quem trabalha existe um
espaço de liberdade que autoriza uma negociação, o uso da
criatividade e ações de modulação do modo operatório que
constitui uma forma de intervenção do trabalhador sobre o
trabalho, num ajuste de desejos e possibilidades. Só quando
este limite de negociação é esgotado é que a "relação" ho­
mem-organização do trabalho é bloqueada, dando início a
uma demanda de "sofrimento" e a luta contra esse "sofri­
mento". Dejours observa, também, que o espaço próprio
desta margem de negociação pode ser detectado no trabalho
de ergonomistas quando estes estudam a distância entre a
organização do trabalho prescrito e a organização do traba­
lho real, existindo sempre uma possibilidade de negociação e
adaptação a ser feita quer pela própria organização do traba-

64Dejours, C. "Note de travail sur la notion de souffrance", in Plaisir


et souffrance dans te travail, tome I, sous la direction de C. Dejours, Paris,
CNRS, 1987, p. 1 1 5-123.
65Dejours, C. Op. cit., p. 1 1 5 .
84 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
lho e, mais freqüentemente, pelo trabalhador. Quando a pri­
meira cede, o faz melhorando a qualidade do trabalho e
quando é o trabalhador quem o faz é sempre no sentido de
minimizar a carga de trabalho, a despeito das exigências con­
trárias.
Se tais exigências se fazem contínuas, deverão imprimir
determinadas marcas na vida psíquica do trabalhador. Resta­
nos identificar um instrumento, uma possibilidade de nos
aproximarmos dele e detectar, de algum modo, a expressão
deste sofrimento.
Apesar da generalizada opinião de que agressões psicosso­
ciais assumem papéis importantes na determinação de sinto­
mas e enfermidades, a demonstração empírica desta assertiva
não tem sido fácil nem suficientemente convincente.
Caudalosa e contemporânea é a bibliografia disponível
conceituando o "stress" e identificando-o como determinan­
te de inúmeras patologias. Cassei analisou formulações teó­
ricas para "stress" e processos psicossociais concluindo que
"as tentativas de comprovação do papel de tais fatores
em estudos epidemiológicos têm levado a resultados con­
flitantes e freqüentemente confusos . . . isso se origina de uma
adesão acrítica e uma interpretação freqüentemente errônea
da teoria do stress, um não reconhecimento de que os pro­
cessos psicossociais provavelmente não serão diretamente
patogênicos (da mesma forma que, por exemplo, um micro­
organismo )" 66.
O fascínio exercido pelas respostas positivistas às indaga­
ções humanas tem sido enorme, particularmente na Medicina

66Cassel, ]. Psychosocial Process and "Stress':: the Retical Formulati­


on, 1 974, Int. J Health Serv., 4( 3 ) :471-482.
SINTOMA COMO EXPRESSÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO 85
com toda a sua matriz positiva das Ciências Biológicas. Na
busca de identificação de fatores do ambiente humano que
influenciariam o processo saúde-doença, o enfoque tem sido
sobre fatores fisicos, químicos, neuroquímicos, endócrinos,
microbiológicos, enfim, os mais evidenciáveis à luz das técni­
cas disponíveis de demonstração.
Wolff, que, ao lado de Seyle, é considerado o criador do
vocábulo "stress" aplicado à medicina, afirmou a propósito
do mesmo: "Eu tenho usado a palavra 'stress' em Biologia
para indicar o estado de uma criatura que resulta da interação
do organismo com estímulos ou circunstâncias nocivas, ou
seja, é um estado dinâmico interior ao organismo; não é uma
agressão de estímulos, símbolo de opressão, carga ou qual­
quer aspecto do ambiente, interno ou externo, social ou
não" * .
Entretanto, as investigações mais criteriosas têm reforça­
do a percepção da impossibilidade de esses fatores explicarem
a ocorrência dos estados mórbidos presentes nas sociedades
modernas, trocando o eixo das explicações para o ambiente,
para o meio social, deslocando destarte, do biológico ao soei­
al, da vida fisica à psíquica e social, o local das verdades
explicativas encobertas.
Um olhar mais amplo tem sido frustrado diante das gran­
des dificuldades metodológicas para captar processos de difi­
cil alcance. É nesse contexto que a teoria do "stress" surge
buscando as já conhecidas abordagens das ciências naturais na
pesquisa de sinais e sintomas psíquicos.
Várias modificações neuroendócrinas demonstraram este
estado nas investigações de Wolff e Seyle, mas a produção de

*Apud Cassel, J., p. 1 1 .


86 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
uma teoria explicando e definindo tais estímulos nocivos,
suas origens e características, não esteve presente no trabalho
de ambos, embora tenham seus nomes invocados em pesqui­
sas subseqüentes. As múltiplas denominações de "stress",
"estado de stress" não parecem significar apenas uma questão
semântica e sim realçar uma questão conceitual importante.
Para um grande contingente de epidemiólogos e cientistas
sociais a relação entre um estressar e o surgimento da doença
será similar à relação entre um microorganismo e o surgimen­
to da doença. De um outro modo, um fator psicossocial
estressar teria um efeito patogênico igual a agentes químicos,
fisicos, biológicos etc.
Assim, num exercício de lógica formal teríamos: uma do­
ença só pode ser produzida pela ação patogênica direta dos
agentes patológicos; logo, se os processos psicossociais são
capazes de produzir doenças, eles o farão certamente dispon­
do de alguma ação patogênica direta. O paradigma desta
assertiva é que a relação do estressar com uma doença será
similar à de um microorganismo com a sua _ doença, bastando
apurar o olhar e logo o identificaremos como causadores
específicos de uma doença, tal qual o Bacilo de Koch seria
propriedade privada da tuberculose.
Isso nos remete à antiga discussão de Claude Bernard
reeditada por Canguilhem67 , em O normal e o patológico
onde, mesmo para as patologias com agentes infecciosos es­
pecíficos como a tuberculose, a presença ou ausência da do­
ença não é questão qualitativa de estar ou não estar presente
o bacilo, mas sim uma modificação quantitativa do estado
normal que costuma conviver com tais bacilos sem adoecer

67Canguilhem, G. O normal e o patológico, p. 52.


SINTOMA COMO EXPRESSAO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO 87
necessariamente desde que em quantidades suportáveis e em
circunstâncias não favorecedoras do adoecimento.
Embora não considere satisfatórias as transposições mecâ­
nicas das induções e deduções físico-biológicas para a discus­
são da participação dos fatores psicossociais na produção do
adoecer, há evidências, tanto de experiências em animais
como em seres humanos, indicando que variações no meio
social estão certamente associadas a alterações endócrinas sig-
. nificativas nas pessoas expostas. Isto impõe uma outra ordem
de reflexão: qualquer fator psicossocial inespecífico poderá
estar associado a uma patologia Jambém inespecífica, não ha­
vendo portanto necessidade ou utilidade em se buscar es­
tressares isolados para patologias isoladas, uma vez que,
como concordam alguns pesquisadores da área, todas as do­
enças podem estar relacionadas a tais agentes.
Argumenta Hinkle que "atualmente a explicação do
"stress" não é mais necessária. É evidente que qualquer pro­
cesso patológico, na verdade, qualquer processo dentro do
organismo vivo, pode ser influenciado pela reação do indiví­
duo a seu ambiente ou a outras pessoas"68• Como estudioso
do campo, ele minimiza os esforços de buscar correlações
diretas entre estímulos nocivos e doenças correspondentes e
caminhar concebendo processos psicossociais como responsá­
veis pelo aumento da suscetibilidade às doenças.
Não temos dúvidas de que estamos lidando com questões
antigas e não resolvidas. O fato porém é que sintomas cons­
tituem uma camada que mediatiza o mundo intrapsíquico do
indivíduo com a sua vida de relação, estabelecendo seu porta­
dor sinais e possibilidades de uma tradução objetiva de incô-

68Hink1e, apud Cassei, J. Op. cit., p. 479.


88 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
modos e mal-estares que o fazem um "caso" por oposição a
um "não caso", num campo semiológico entre a saúde e a
ausência dela. A redução que um instrumento padronizado
imprime na captação de elementos subjetivos que indiquem
fenômenos complexos como os do psiquismo humano, é o
preço que assumimos por ousar estender_ uma discussão, que
costuma acontecer no âmbito individual, pará um contexto
coletivo e social.
Com o propósito de medir, dentro de uma perspectiva
epidemiológica, "marcas" de sofrimento psíquico numa popu­
lação de trabalhadores e buscar estabelecer medidas de ocor­
rência e associação entre tais achados e algumas condições de
vida e trabalho dos investigados, retornamos a Dejours com
o seu conceito de sofrimento psíquico. Conscientes do re­
ducionismo que estaremos imprimindo ao referido conceito,
no momento em que o utilizemos como um instrumento de
mensuração de sintomas psíquicos, o fazemos situando no
campo transdisciplinar que as questões de saúde e ambientes
de trabalho nos impõem, entendendo assim estar contribuin­
do para uma aproximação entre as chamadas abordagens
qualitativas e as quantitativas da investigação.
Segunda Parte
OS MÉTODOS
Capítulo 5
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE
ESTUDOS E PESQUISAS

. .. há um vazio teórico, que, necessariamente,


tolera um outro vazio metodológico, em relação
a como abordar o estudo do processo de traba­
lho, na sua relação com a saúde.

Cristina Laurell, 1989

lNTERE..'iSA-NOS ESTUDAR O HOSPITAL ENQUANTO AM­


biente de trabalho interagindo com os seus trabalhadores,
agentes privilegiados do "colóquio singular" da relação
"técnico-paciente" e, como tais, elementos indispensáveis da
equação capital x trabalho enquanto responsáveis pelo "como
fazer" na tecnologia de processo do trabalho hospitalar. Este
processo dado pelo "avanço científico e tecnológico", ex­
presso materialmente por equipamentos e técnicas, tem o seu
equilíbrio ou desequilíbrio determinado pelo indivíduo ou
coletivo de indivíduos participantes. Dentro da lógica do
modo de produção a que estão submetidos, podemos assistir
a uma curiosa e insólita peleja: ao tempo em que se multi­
plicam nas atividades econômicas dos diferentes setores (pri-
92 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
mário, secundário e terciário) agressões à vida e saúde dos
trabalhadores, são também produzidas formas cada vez mais
sofisticadas de reparação desses danos em serviços de saúde,
mediatizados por um contingente de trabalhadores de diver­
sos níveis hierárquicos. Esses, os trabalhadores de saúde, sal­
vo algumas iniciativas, não têm merecido o necessário olhar
que especifique os seus múltiplos papéis enquanto usuários e
enquanto prestadores de serviços, e analise seus agravos. Já
em 1 828, Halliday fazia uma menção específica ao papel das
condições de trabalho e o adoecimento mental: "a loucura
ocorre pelo superesforço da mente que faz trabalhar em ex­
cesso seus instrumentos até debilitá-los . . . e também pelo es­
forço das faculdades corporais e o transtorno das funções
vitais que provocam uma reação no cérebro e desequilibra
suas atividades"69•
Mais tarde, em 1 842, Chadwick procura sensibilizar as
autoridades e o mundo científico para as condições de traba­
lho nas fábricas, que deveriam ser investigadas suspeitando-se
de sua influência nas deploráveis condições de saúde da po­
pulação da Grã-Bretanha70 •
Hawkes, em 1857, chegou a propor medidas preventivas
para a proteção da saúde mental das classes trabalhadoras, atra­
vés da permissão de períodos adequados de descanso e diversão
sem os quais o "homem se converteria em uma máquinam1 .
Rosen, ao estudar o grande avanço das ciências e da me­
dicina na primeira metade do século XIX, atribui a Virchow e

69Halliday ( 1 828) apud Santana, V. Condições de trabalho assalariado e


transtornos psíquicos em Salvador - BA, PEES-UFBa, 1989 (mimeo), p. 2.
7°Chadwick, E. Report on the Sanitary Conditions of Great Britain,
1 842. M. W. Flinn, Edinburg, 1 842, 320 p.
71Santana, V. Op. cit., p. 5 .
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 93
seus seguidores a construção de uma teoria sociopolítica so­
bre as enfermidades, marcada por forte conteúdo reformista e
idéias de transformação social. Sua análise das "epidemias
psíquicas" e de suas relações com a civilização desencadeia o
processo para a consolidação do que atualmente se constitui
o campo da Psiquiatria Social72 .
Mesmo aquelas enfermidades tidas de natureza biológica,
como a paralisia geral progressiva, teriam, entre outros fato­
res, o "esgotamento em conseqüência do trabalho", como
elemento complicador da situação clínica. Lilienfeld nos traz
o relato do estudo de Semmelweiss, provavelmente o pri­
meiro estudo epidemiológico desenvolvido no interior de um
hospital, tomando como objeto de investigação o usuário e
seus trabalhadores. Entre 1 833 e 1 840, médicos e estudantes
de medicina circulavam entre as duas salas da maternidade de
um grande Hospital Universitário de Viena, onde a mortali­
dade por febre puerperal era alta e igual em ambas as salas.
Em 1 840, por uma mudança do sistema de treinamento, uma
das salas ficou destinada à formação de parteiras e a outra aos
médicos e estudantes de medicina. Apareceu então uma dife­
rença na mortalidade materna nas duas salas que se manteve
num período de cinco anos ( 1 841 - 1846). A mortalidade
materna era maior (9,0%) na sala utilizada pelos médicos e
estudantes de medicina, enquanto que na sala utilizada pelas
parteiras a mortalidade era 3,9%. Tendo observado que os
médicos e estudantes de medicina, antes de irem à materni­
dade, realizavam autópsias lidando com material contamina-

72Rosen, G. "A Evolução da Medicina Social", in Nunes, E. D., Op.


cit., p. 70.
94 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
do, e as parteiras não, Semmelweiss formulou a hipótese de
que a mais alta mortalidade materna era devida à transmissão
de material infeccioso trazido pelos médicos e estudantes de
medicina da sala de autópsias, tomando medidas preventivas
a partir desta evidência empírica73 •
Interessante observar que o estudo desenvolvido por
Semmelweiss nada mais foi que uma boa sistematização do
que Howard * j á observara nas suas visitas aos hospitais no
século anterior, enriquecida tão-somente por uma técnica,
um método e um tempo de observação compatível com
ambos.
O desenvolvimento da teoria da monocausalidade como
resposta à etiologia das enfermidades, desenvolvida a partir
dos fins do séc. XIX, reduziu o interesse sobre as questões
"sociais" suscitado até então por pesquisadores e centros de
investigação. Esses, em busca do agente patogenético único,
afastaram-se das preocupações múltiplas a nível de causas e
determinações. Estivemos mais próximos de preocupar cien­
tistas e pesquisadores com as relações saúde-doença, com
Chadwick, na Inglaterra de 1 842, do que estivemos na pri­
meira metade deste século, por exemplo.
Aquelas inquietações ressurgem com novo fôlego na dé­
cada de setenta, embora não se possa desconsiderar os traba­
lhos desenvolvendo o conceito de "stress" das décadas ante­
riores, onde a articulação com ocupações e atividades j á eram
variáveis consideradas.

73Lilienfeld, A. M. & Lilienfeld, D. E. Op. cit., p. 33.


*Discussão feita no segundo capítulo.
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 95

OS ESTUDOS MAIS RECENTES

Na atualidade, é inegável a contribuição de LaurelP para


a construção de uma proposta teórico-metodológica de abor­
dagem das questões de saúde e doença no âmbito do que ela
própria ajuda a definir como da "epidemiologia social". Ela
faz uma generosa e detalhada descrição de caminhos
metodológicos percorridos para enfrentar questões que vão
do individual ao coletivo; do biopsíquico ao social; da in­
vestigação acadêmica e neutra ao envolvimento sindical; en­
fim, infinitas possibilidades de problematizações são coloca­
das, ancoradas numa investigação empírica de 4.033 trabalha­
dores distribuídos em dezesseis áreas de trabalho de uma
siderúrgica estatal mexicana.
Laurell e Noriega lançam mão de uma metodologia de
múltiplas abordagens - enquete coletiva com os trabalhado­
res fora dos ambientes de trabalho, informações constantes
nos arquivos dos exames médicos periódicos, informes de
acidentes de trabalho, "observação participante" e visitas de
inspeção à fábrica, do "Método Lest" da moderna ergono mia
francesa através do conceito de "carga de trabalho", do Mo­
delo Operário Italiano e da proposta Gardell-Frankenhaeuser
- para construir um modo de aproximação com o objeto
empírico eleito, com a observação da autora de que não se
tratava de preencher o marco teórico com os fatos empíri­
cos, mas com o propósito justo de confrontá-los e analisar a

74Laurell, A. C. "Proceso de trabajo y salud", Cuadernos políticos,


México, 1 7:69-71 , 1978; "Processo de trabalho e saúde", Saúde e Debate,
São Paulo, 1 1:8-22, 1978; La salud - enfermedad como proceso social,
México, Revista Latino-Americana de Salud, 2:7-48, 1982; e Noriega, M.
Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo, Huci­
tec, 1989, p. 332.
96 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
capacidade explicativa das relações estabelecidas na formula­
ção teórica. Por essa intenção "totalizadora" talvez não se
aplicasse mesmo um uso epidemiológico mais sofisticado, ou
quiçá devesse sê-lo no sentido de reforçar a discussão que ela
estabelece sobre o "processo de desgaste" do trabalhador. De
qualquer modo, o mérito de formulação de um método e
uma teoria para abordar a questão se situa no relato detalha­
do dos caminhos percorridos por esses pesquisadores.
Entretanto, as investigações sobre a saúde dos trabalhadores
de hospitais vêm se desenvolvendo mais tardiamente quando se
compara com outras pesquisas que buscam aprofundar a análise
da relação entre saúde e trabalho em outras categorias.
Examinando os trabalhos mais recentes que estudam o
hospital enquanto campo de atuação do processo tecnológico
da atenção médica, a noção de "risco" é facilmente identi­
ficável como uma preocupação dos seus pesquisadores, mas, a
rigor, tais trabalhos não poderiam se localizar dentro dos
desenhos de pesquisa da moderna epidemiologia . A
epidemiologia estaria orientando o espírito de investigação
sobre o coletivo de trabalhadores, mas não estaria sendo ex­
plorada enquanto método e técnica, que ao dar lugar à socio­
logia do trabalho, à moderna ergonomia e à recém-criada
psicopatologia do trabalho, tornaria a sua contribuição como
mera referência estatística, embasando outras disciplinas.
Estryn-Behar encontra explicação para o fato . analisando
que o trabalho da enfermeira, por exemplo, está envolto na
idéia de vocação, caridade, benevolência, extrapolando por­
tanto as relações típicas de trabalho75• Realmente, não é sim-
75Estryn-Behar. "Conditions de travail et difficultés sociales de femmes
travaillant à l 'hôpital", in Équilibre ou fatigue par le travail, Paris, Ed. ESF,
p. 1 4 1 - 1 5 1 , 1980.
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 97
ples encontrar categorias que possam adequar-se às caracterís­
ticas sagradas de uma atividade que historicamente se consti­
tui em práticas empíricas oriundas do cuidado doméstico
propiciado por escravos e religiosos, envolvendo desde sem­
pre as mulheres. É o que discute Silva ao analisar a enferma­
gem como profissão, desde o século XIX aos nossos dias, e
suas articulações com a instituição hospitalar* .
Na última década, evidenciam-se esforços de alguns pes­
quisadores em conhecer este complexo ambiente de trabalho
e seus trabalhadores.
A própria Estryn-Behar vem desenvolvendo uma extensa
investigação nos ambientes de trabalho hospitalar. Analisando
as condições de trabalho e dificuldades sociais de mulheres
que trabalham em hospitais, relata o resultado de uma
enquete realizada pelo Laboratoire d'Ergonomie et de
Sociologie du Travail ( LEST) do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS), onde se conclui que 40 a
45% das jovens enfermeiras interrompem suas atividades por
volta do sexto ano da sua entrada na atividade76. Na sua
análise sistemática das condições de trabalho, ela utiliza
referencial ergonômico e a medicina ocupacional, com incur­
sões na sociologia do trabalho, apontando sobrecargas fisicas
importantes que determinam problemas ósteo-articulares, e
que o número de pausas durante a jornada de trabalho é
inversamente proporcional ao surgimento de doenças. O
trabalho noturno e problemas de sono foram detectados,
ocasionando p erturbações na vida familiar, tendências

*Silva, G. B. Enfermagem profissional: análise crítica, São Paulo, Edi­


tora Cortez, 1989, 143 p.
76Estryn-Behar, M. Op. cit., p. 1 5 0- 1 5 1 .
98 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
depressivas, problemas gástricos decorrentes das modificações
horárias na ingestão de alimentos, e outros. As dificuldades
na esfera social detectadas iam desde os baixos salários e a
limitação do acesso ao lazer, até condições mínimas de con­
forto em moradias superlotadas, que constituem uma fonte
de angústia, o que, segundo a autora, seria responsável pela
presença de 50% de distúrbios psiquiátricos.
Uma outra abordagem interessante tem a ver com a ar­
quitetura e espaço hospitalar, estudados por Theureau
( 1980), engenheiro do CNAM, de Paris, que microdetalhou
a programação das atividades num hospital e estudou o es­
forço despendido para a execução das diferentes tarefas ne­
cessárias ao exercício das jornadas de trabalho cotidianas.
Analisou mais detidamente as atividades de enfermeiros e au­
xiliares destacando as atividades seriadas (série de operações,
série de doenças, série de seqüências), discutindo a economia
de tempo e deslocamento que implica a atividade em série,
permitindo uma estruturação de informações e constituição
de estoques de registros. Embora conclua o seu artigo invo­
cando uma relação individualizada do pessoal com os enfer­
mos e convencendo-nos que uma melhor observância desta
economia de gesto deverá resultar numa redução da carga
global de trabalho, fica a dúvida se todo este processo, sem
sujeito e sem que esse conhecimento seja apropriado pelos
trabalhadores, não poderá tão-somente racionalizar tarefas
agilizando rotinas, de forma incompatível com o contato
humanizado almejado pelo autor77.

77'fheureau, J. "La programmation de son travail par l'infirmiere des


unités des soins hospitalieres", in Équilibre ou fadigue par le travail? Ed.
ESF, Paris, 1980, p. 141 - 1 5 1 .
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 99
Gadbois78, estudando as condições de trabalho de enfermei­
ras e auxiliares de enfermagem que trabalhavam à noite, em
sessenta e um hospitais franceses que responderam a uma
enquete realizada em fevereiro de 1979, iniciou uma ampla linha
de investigação sobre as cargas de trabalho a que estão subme­
tidos esses profissionais. Caracterizando a força de trabalho
nesses hospitais, identificou-a como predominantemente femi­
nina e dentro da faixa etária de 3 1 a 40 anos. Embora sem
desenvolver nenhum tratamento estatístico para medidas de as­
sociação dos dados encontrados, conseguiu mapear cargas fisicas
(dispêndio de importante força muscular, manipulação de obje­
tos perigosos, fadiga fisica geral, despendimento de energia,
acidentes ósteo-articulares, entre outros) e cargas mentais ( ne­
cessidade de armazenar muitas informações e nomes). Para uma
tarefa simples de perfusão, por exemplo, ele demonstrou ser
necessário armazenar 48 informações diferentes. Detalhou ainda
circuito de vigilância permanente, sistema de sinalização e alarme
visual e sonoro, memorização de informações de características
flutuantes, evolução rápida de doentes etc.79
Tonneau, por solicitação do Ministério da Pesquisa e da
Direção dos Hospitais (Ministere des Affaires Socíales) da
França, define uma proposta de natureza metodológica de
investigação e simultaneamente um mapeamento dos aspec­
tos institucionais de serviços de saúde e condições sociais dos
trabalhadores, constituindo-se num primoroso roteiro de ava­
liação das condições de trabalho no meio hospitalar-8°.

78Gadbois, C. Aides - soignantes et infirmieres - conditions de travail


et vie quotidienne, Paris, Anact, 77 p., 198 1 .
79Gadbois, C . Op. cit., p . 74.
80'fonneau, D. Les conditions de travail en milieu hospitalier - des intentions
· dijficiles à mettre en pratique, Éd. de l'Anact, Paris, janeiro, 1987, 54 p.
100 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
No Brasil, Ribeiro Franco fez um levantamento de
morbidade geral de trabalhadores no Hospital das Clínicas de
Ribeirão Preto, detectando freqüência importante de fadiga
entre os funcionários do arquivo médico, manutenção, radio­
logia, limpeza, laboratório, enfermeiras, unidade de terapia
intensiva e outros. A fadiga ocupou o quarto lugar entre as
queixas e doenças mais prevalentes81 •
A partir do grande movimento reivindicatório vivido du­
rante o ano de 1988 pelas enfermeiras e trabalhadores de
hospitais franceses que culminou em greves, estendendo-se
de março a outubro daquele ano, num movimento autôno­
mo que sequer os sindicatos e associações tradicionais da
categoria conseguiram conduzir (no qual reivindicações sala­
riais evoluíram para uma crítica mais contundente das condi­
ções de trabalho), experiências singulares e inovadoras em
pesquisa começaram a acontecer. Kergoat, socióloga, desen­
volve, junto a uma das coordenações de enfermeiras emer­
gentes do movimento de 88, um trabalho conjunto de inves­
tigação de condições de trabalho, através de entrevistas com
integrantes deste coletivo. O processo de pesquisa deverá
mapear dificuldades e propor soluções para a sua superação
com ampla participação, na produção do conhecimento e
saber necessários à transformação daquelas condições, dos
seus maiores interessados82 •
Até aqui, podemos constatar que a EpidemiolQgia não
tem sido a disciplina mais presente nos estudos de condições

81Ribeiro Franco, A. Estudo preliminar das repercussões do processo de


trabalho sobre a saúde dos trabalhadores de um hospitalgeral, Ribeirão Preto,
SP, tese de doutorado, DMP-FMUSP, Ribeirão Preto, 198 1 , 214 p .
82Coordination des Infirmieres de Beaumont. Conditions de travail -
on ne veut plus se lasser faire, 1989, 12 p .
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE l0l
e ambientes de trabalho, particularmente no setor hospitalar.
Não dissemos que ela não está presente no setor porque seria
uma injustiça para com um dos mais bem sistematizados es­
tudos de ambientes de trabalho a que tivemos acesso, desen­
volvido na Alemanha por Seibel e Lühring, que estudaram
as condições de trabalho de 840 trabalhadores (numa
amostragem de 2.060), através de instrumento especialmente
construído para tal fim, e, paralelamente, avaliaram as condi­
ções psíquicas desses trabalhadores através da aplicação de
um instrumento padronizado de detecção de sintomas (o
Langner Test, 1962 ) . Trabalhando seus dados através de uma
regressão logística, alcançaram medir por meio de análise
multivariada, quais fatores de risco estariam influenciando
mais ou menos a saúde mental dos trabalhadores investiga­
dos. Em que pesem as discussões que se possa fazer acerca
das reduções impostas pelo modelo, este nos pareceu um
bom exemplo de estudo metodologicamente bem conduzi­
do, lamentando que não tivesse estendido para trabalhadores
de hospitais, facilitando um confronto de achados83•
Não obstante, alguns estudos com desenho exclusi­
vamente epidemiológico por nós levantado se valem de apli­
cações de escalas de "stress" entre trabalhadores de hospitais.
Livingston & Livingston, buscando estudar o grau de des­
conforto mental entre enfermeiras, constataram existir uma
relação significativa entre ansiedade destas e o tempo des­
pendido diretamente com o paciente84• Já Lyons et ·alii, em
pesquisa onde comparou níveis de "stress" ocupacional em

83 Seibel, H. D. & Lühring, H. Arbeit und psychische Gesundheit,


Verlag fur- Psichologie, Ar. C. J. Hogrefe, Gottingen, 1 984, 204 p .
84Livingston, M. & Livingston, H. Emotion Distress in Nurses at
Work, British ]ournal of M_edical Psychology, 57:291 -294, 1984.
1 02 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
várias unidades de um grande hospital universitário, usan­
do uma escala específica de quatro componentes de uso fre­
qüente em pesquisa médica, encontrou nos seus resultados
diferenças de taxas de "stress" entre as diversas unidades;
onde os trabalhadores de enfermagem responderam ao ques­
tionário, mas não houve diferenças significativas entre os di­
versos extratos de qualificação que compunham o "stafP' do
hospital85 .
Entre nós, Silva tem procurado sistematizar o que existe
a nível mundial em metodologias de investigação das re­
lações entre os ambientes de trabalho e as repercussões so­
bre a saúde mental dos trabalhadores, assinalando as ten­
dências psicológicas, sociológicas, ergonômicas e, mais sucin­
tamente, epidemiológica, discutindo autores e métodos com
uma ênfase especial no trabalho fabril e de alguns setores de
serviços.
Um dos aspectos em que ela insiste é que a organização
do trabalho atua na gênese do sofrimento psíquico através de
alguns elementos facilmente identificáveis, quais sejam: as
jornadas prolongadas de trabalho, os ritmos acelerados de
produção, a pressão claramente repressora e autoritária insta­
lada numa hierarquia rígida e vertical, a inexistência ou exi­
güidade de pausas para descanso ao longo das jornadas, o
não controle do trabalhador sobre a execução do trabalho, a
alienação do trabalho e do trabalhador, a fragmentação de
tarefas e a desqualificação do trabalho realizado e, por conse­
guinte, de quem o realiza. Tudo isso como fontes de insatis-

85Lyons, J. S.; Hammer, J. S.; Johnson, N. & Silberman, M. United


Specific Variation in Occupacional Stress across a General Hospital, Gen.
Hosp. Psychiatry, 6:435-438, 1987.
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 1 03
fação e conseqüente agressão à vida psíquica do trabalhador
vinculadas à organização do trabalho86•
Com relação às pesquisas epidemiológicas ela recomenda
estudos prévios de casos individuais e em profundidade, uma
vez que "a investigação dos trabalhadores, para não ser
reducionista, precisará, além de levar em conta os conheci­
mentos que as diversas disciplinas possam oferecer à pesquisa,
manter-se fora do alcance das poderosas forças que têm até
aqui determinado tantas distorções". Entendemos necessário
relativizar os saberes advindos de modelos oriundos do
"biologismo estrito" ou "da própria epidemiologia" sem, no
entanto, desqualificá-los, enquanto disciplinas complementa­
res de um campo necessariamente interdisciplinar de investi­
gações, para dar conta da c omplexidade da tarefa . A
epidemiologia poderá estabelecer medidas de associação for­
tes ou fracas entre determinadas condições de trabalho e de­
terminadas reações de trabalhadores, estabelecendo uma te­
oria, um método e uma técnica de lidar com populações de
trabalhadores de modo generalizado, exploratório ou não,
que suscite pistas que estimulem outras formas de investigar,
incorporando os beneficios que a quantificação de problemas
ou situações possa trazer para este campo de conhecimento.
Estamos. absolutamente ao lado de Thiollent quando nos
previne que a metodologia não deve ser considerada como
uma simples coleção de métodos ou técnicas e que a referên­
cia de uma análise empírica não pode ser confundida com o
"empiricismo" advindo da ingênua crença de que tudo que é
verdadeiro advém da observação dos fatos, não levando em
conta a abstração requerida para ligar fatos isolados e

86Sílva, E. S. "Saúde mental e trabalho", cít., p. 2 1 8-283.


1 04 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
empiricamente observáveis e uma construção teórica que es­
ses fatos articul�dos devem necessariamente promover, num
trabalho que se pretende de construção científica87 •
O dificil é a travessia que nos leve da identificação de um
fenômeno que por qualquer razão nos interesse, nos impres­
sione, a uma discussão aceita por uma comunidade a quem
. caberá examinar e julgar a consistência de teorias e instru­
mentos na construção do paradigma que, talvez, jamais se
constitua enquanto tal.
Temos visto até aqui uma série de iniciativas de pesquisa­
dores para analisar condições e ambientes de trabalho e seus
efeitos sobre a saúde dos trabalhadores. Seus autores se dis­
puseram a desbravar uma área e encontrar fatores de risco
ocupacional que nos fizessem pensar tais agravos como fenô­
menos coletivos, carecendo neste momento aprofundar testes
de hipóteses, de medidas de associação entre tais riscos e o
adoecimento do trabalhador.
Deixando mais claro: é preciso que tais evidências se
constituam um instrumento mais sólido para que as necessá­
rias mudanças das condições adversas possam ser assumidas
técnica, jurídica e politicamente.
A questão será definir uma estratégia por onde começar.
Estratégia que possa ser a melhor para um pesquisador que,
num campo de investigação pouco conhecido, busque apre­
ender a maior parcela de conhecimentos possível e organizá­
los de modo sistemático, no sentido de fazer avançar o co­
nhecimento científico neste campo específico. Simultanea­
mente, tornar disponível aos sujeitos da investigação, e su-

87Thiollent, M. "Problemas de metodologia", in Organização do tra­


balho, uma abordagem interdisciplinar, Atlas, São Paulo, p . 54-83, 1983.
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 105
postamente os seus principais interessados, um volume de
informações e estudos, cientificamente balizados, que possam
contribuir nas suas lutas específicas por melhores condições
de trabalho.
Ambos os caminhos seriam possíveis desde que trilhados
com o rigor teórico e a plasticidade técnica necessários ao
enfrentamento de um objeto sobre o qual se conhece pouco.
Entretanto, sensibilizada talvez pelo que Févre denominou o
império tirânico das matemáticas, ao qual estamos todos irreme­
diavelmente submetidos88, desencadeamos o presente processo
de investigação através de uma abordagem epidemiológica.
Os caminhos metodológicos de qualquer disciplina das
diversas ciências nos levam sempre a buscar encontrar uma
lógica, um modo de desenvolver um pensamento, para
a seguir identificar estratégias compatíveis ao desenvolvimen­
to deste pensar e, como conseqüência imediata, a eleição de
uma ou mais técnicas entre as inúmeras disponíveis para servir
de instrumentos para conhecer o desconhecido proposto.
O espírito da pesquisa epidemiológica, como defende
Kleinbaun89, é: ( 1 ) descrever o estado de saúde de uma popu­
lação, enumerando a ocorrência de fenômenos mórbidos;

88"Hoje vivemos submetidos - e eu observo sem nenhum entusiasmo


particular - a um império tirânico: o das matemáticas. Não há nada em
nossas vidas atuais que não dependa delas. Todos os objetos que nos
cercam foram calculados matematicamente ( . . . ) . Em tudo existe a matemá­
tica. Em tudo, com as suas conseqüências e suas duas características: de um
lado a abstração, de outro a precisão". Févre, L. O mundo do século VI,
Revista de História, FFUSP, 1950, vol. 1, nQ 1950, vol. 1 3 : 1 7, apud No­
gueira, O. Pesquisa social: introdução às suas técnicas, São Paulo, Editora
Nacional, 1977, p. 10.
89Kleinbaun, D.; Kupper, L.; Morgenstem. Epidemiologic Research: Princi­
pies and Quantitative Methods, Califórnia, Wardsworth, 1982, p. 20-22.
1 06 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
(2) explorar a etiologia de doenças através da determinação
de fatores causais; ( 3 ) predizer o número de ocorrência de
doenças e a distribuição do estado de saúde de populações; e
( 4) controlar a distribuição de doenças e prevenir novas ocor­
rências eliminando-se fatores identificáveis que agridam a
saúde de populações. Podemos afirmar que o presente estudo
se propõe a seguir tais objetivos e para tanto se impõe um
percurso metodológico que nos conduza a tais produtos,
apesar das dificuldades antevistas.
Uma questão que se coloca para o desenvolvimento desta
investigação é que conceito de doença operar, já que a iden­
tificação e rotulação de trabalhadores do hospital dentro de
parâmetros nosográficos de quaisquer sistemas de classifica­
ção vigentes não se adaptam à realidade estudada. Isso por­
que embora tal esforço possa encerrar seus méritos, não nos
parece eticamente defensável aguardar o surgimento de pa­
tologias mentais explícitas e evidenciáveis para assumir uma
atitude de controle e prevenção em determinados aspectos do
processo de trabalho hospitalar que possam agredir a vida
psíquica dos seus trabalhadores.
A abordagem de um processo morbigênico e não uma
morbidade declarada no estudo de uma população certamen­
_
te nos traz dificuldades de delimitação e especificação do
objeto investigado. Mais ainda, estabelecer uma correlação
entre fatos empiricamente observáveis e uma teoria explica­
tiva sobre tais fatos não é coisa fácil ou simples se a correlação
buscada implica definições tão vagas quanto "condições de
trabalho" e "sofrimento psíquico", buscando um nexo entre
ambos.
Ao constatar o que poderia ser uma impossibilidade
paralisante no sentido de encontrar um instrumento capaz de
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 1 07
medir as repercussões da vida no trabalho sobre a saúde psí­
quica dos trabalhadores, temos apenas claro um preciso limite
em que a epidemiologia poderá contribuir neste campo
transdisciplinar, onde as diversas ciências apenas engatinham
na constituição de modelos de investigação que abarquem a
totalidade das determinantes que influenciam no processo
saúde-doença.
Cabe à contribuição epidemiológica justamente incorpo­
rar uma vertente quantitativa que possa mensurar e criar con­
dições de reprodutividade das investigações, através de um
saber científico já consagrado e permanentemente aperfeiçoa­
do, no sentido de estabelecer correlações imediatas ou
mediaras entre fatos universalmente observáveis e a relação de
ocorrência de estados, eventos, enfermidades projetadas em
grupos populacionais.
Tal contribuição, no entender de Kalimo90, embora
incipiente para a articulação ambiente de trabalho e saúde
psicossocial, poderá ser muito enriquecida através de estudos
exploratórios de tipo corte transversal, examinando-se, de um
lado, a prevalência de distúrbios mentais, insatisfação com o
trabalho, e de um outro, o conflito de papéis, repetitividade,
ruídos, controles e demais fatores.
É preocupação entre os epidemiólogos que a associação
entre duas variáveis, acompanhada ou não de correlação esta­
tística, não pode constituir um estabelecimento de nexo
causal entre uma e outra* . Em outras palavras: a mera

90Kalimo, R. "Assessment of Occupational Stress", in Epidemiology of


Occupational Health 392, European Series, nº 20, OMS, Copenhagen,
1 987, p. 2 3 1 a 247.
*A propósito ver discussões desenvolvidas por Laurell ( 1989), Possas
( 1989) e Almeida F. ( 1989 ) .
l 08 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
constatação de fenômenos que ocorrem a um mesmo tempo
não pode ser traduzida mecanicamente numa relação causa­
efeito. Até porque a possibilidade de eles se interpenetrarem,
se potencializarem ou se anularem, na dependência de outras
determinantes não controladas que estariam agindo sobre o
mesmo objeto, é imensa.
Embora angustiante, a percepção de que estaremos sem­
pre determinados por uma dupla redução quando nos dispo­
mos a estudar um campo complexo como o das relações
saúde-trabalho é, mais do que um exercício de humildade,
uma delimitação de possibilidades de inferências acerca de
um material empírico dado.
A dupla redução de que falamos tem a ver com o objeto,
na medida em que teremos sempre que nos contentar com o
exame de "parte" da realidade que nos interessa e tem a ver
com o método, que nos molda a visão e a lógica de apreen­
são possível, a partir do momento que definimos um deter­
minado desenho de investigação.
Da clássica concepção da Epidemiologia como o estudo
das epidemias das doenças transmissíveis, o objeto epidemio­
lógico vem sofrendo profundas transformações para fazer face
aos desafios que o próprio oficio de investigar coloca a cada
momento.
Grove, um clássico precursor da moderna Epidemiologia,
ao ter publicado On nature of Epidemics em 1 85 1 , informava
ao mundo científico de então a possibilidade de uma afecção
ter o poder de reproduzir sua própria espécie, intuindo a
existência de um "germen" responsável por esta repro­
dutividade, assumindo a doutrina do "contagium vivum" .
Vinte e cinco anos mais tarde Pasteur demonstrava para o
mundo a existência concreta de microscópicas figuras respon-
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 1 09
sáveis por algumas patogenias. O certo é que, com a consis­
tência e rigor das primeiras "intuições científicas" de Grave,
se estabeleceriam bases científicas para a filtragem parcial da
água para consumo público em Londres antes de se conhecer
os microorganismos91 •
Um outro famoso estudo na mesma cidade, desenvolvido
por John Snow ( 1836) no sistema de distribuição de água,
avança na caracterização de um método indutivo de investi­
gação onde, a partir de um fato isolado - a morte por cólera
de habitantes de uma cidade -, se vão desvendando relações
de causalidade, chegando-se a uma teoria explicativa de hipó­
tese causal que localiza na água poluída ingerida por parte
dos habitantes de Londres o risco de adoecer por cólera,
muito antes de se ter identificado o vibrião ao microscópio92 •
Se já em 1 927, para Frost, primeiro professor de Epide­
miologia na Universidade Johns Hopkins, "a Epidemiologia

91Lilienfeld & Lilienfeld, ao comentarem a constituição da Epidemio­


logia enquanto ciência, que como tal tem como objetivo básico a compre­
ensão do mundo através da explicação, assinalam que a base racional para a
forma moderna do estudo epidemiológico resultou da revolução científica
do século XVII, a qual indicou que o funcionamento ordenado do uni­
verso físico podia expressar-se em termos de relações matemáticas. Neste
mesmo período Francis Bacon desenvolvia as bases da lógica indutiva e
com elas o conceito de "leis de indução". Da mesma forma que era pos­
sível matematicamente descrever, analisar e compreender fenômenos físicos
era possível transpor para fenômenos biológicos. Tais "leis" influenciaram
sobremodo as bases filosóficas dos estudos epidemiológicos. Lilienfeld, A.
& Lilienfeld, D. 1980. Foundations of Epidemiology, Oxford University
Press, New York, 341 p. (Observar o 1 ° capítulo "Bases fundamentais: o
enfoque epidemiológico da enfermidade" e o 2° capítulo: "Traços histó­
ricos da Epidemiologia" . )
92Snow, J. Snow o n Cholera - A Reprint of Two Papers. The Com­
monwealth Fund, New York, 1 936, p. 1 -75 .
1 10 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
é uma ciência indutiva, preocupada não somente em descre­
ver a distribuição de doenças, porém mais ainda em
compreendê-la a partir de uma filosofia consistente", pode­
mos observar que desde então os epidemiólogos têm feito
um esforço de, para além da Clínica, operar com conceitos de
doenças e processos de adoecimento que acompanham a
complexidade do processo saúde-doença, muito embora na
visão de Almeida F . , que tem desenvolvido um cuidadoso
trabalho de revisão e análise crítica sobre o objeto da Epide­
miologia, as gerações de epidemiologistas que se seguiram a
Greenwood, Wislow, Ryle e o próprio Frost, nas décadas de
30 e 40 não tenham demonstrado maiores preocupações
conceituais, "o que reflete na estagnação e mesmo retrocesso
em termos teórico-metodológicos da maior parte dos textos
fundamentais da disciplina a partir da década de 60"93•
Nas duas últimas décadas o esforço teórico de Mac­
Mahon & Pugh ( 1970)94 ao definir "epidemiologia como o
estudo da distribuição e determinantes da freqüência de do­
enças no homem", além da grande repercussão que alcançou
no meio científico, novamente coloca a antiga questão do
estabelecimento da doença como um conceito que se situa na
ruptura do horizonte clínico. Questão que já se colocava
problemática desde Claude Bernard ( 1 865 ), quando conside­
rava o fenômeno patológico como uma variação quantitativa
do fenômeno normal. Não existiria portanto uma qualidade
de ser diferente; o estado patológico seria uma disfunção de

93Almeida F. Notas sobre o objeto da Epidemiologia, Conferência pro­


ferida na oficina de trabalho sobre Epidemiologia Social do DMPSC, São
Paulo, texto revisado, PEES, 1989, p. 2 .
94MacMahon, B . & Pugh, T. Epidemiology: Principies and Methods,
Boston, Little Brown & Co., 1970, p. 5 .
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE lll
um mecanismo normal que consistiria numa variação quan­
titativa por exagero dos fenômenos normais95.
Tomando como referência as dificuldades de precisar e
delimitar os agravos mentais e seu espectro de atuação, recor­
reremos à contribuição freudiana da teoria dos mecanismos
de defesa do Ego que, se excessivos, diminuídos ou ausentes,
poderiam determinar expressões mórbidas. A existência de
tais mecanismos, inerentes à existência humana e à sua vida
psíquica nos impõe, certamente, superar a noção clínica da
doença e mais uma vez nos aproximarmos de Almeida Filho,
quando assinala "Evidentemente que não se deve subestimar
a submissão histórica e conceitual do conhecimento
epidemiológico em relação ao saber clínico. Só que, a ma­
nutenção de tal referência, nos termos apresentados, não
traduz qualquer especificidade para o obj eto da Epidemio­
logia, porque implica em um termo de definição de obj eto-

95A propósito de Claude Bernard, Georges Canguilhem, in O normal


e o patológico, cit., ao também discutir doença e saúde como fenômenos
humanos, chama atenção para o fato de Bernard utilizar indiferentemente
as expressões "variações qualitativas" e "diferenças de grau", utilizando, de
fato, dois conceitos: homogeneidade e continuidade. "Ora, a utilização de
um ou outro desses conceitos não leva necessariamente às exigências lógi­
cas. Se afirmo a homogeneidade de dois objetos, sou obrigado a definir ao
menos a natureza de um dos dois ou então alguma natureza comum a um
e a outro. Mas se afirmo a continuidade, posso apenas intercalar entre
extremos, sem reduzi-los um ao outro, todos os intermediários cuja dispo­
sição obtenho pela dicotomia de intervalos progressivamente reduzidos.
Isso é tão verdadeiro que certos autores tomam como pretexto a continui­
dade entre a saúde e a doença para se recusarem a definir tanto uma
quanto outra" e sai em defesa de Claude Bernard dizendo-o bem longe de
um relativismo tão fácil, uma vez que, à sua época, muitas eram as dificul­
dades de estabelecer precisão nos dados fisiológicos, uma vez que não se
dispunha da sofisticação técnica e laboratorial atualmente disponíveis.
1 12 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
doença que, conforme iremos verificar, nada tem a ver com a
prática da investigação epidemiológica"96•
Caminhando ainda na linha das definições do objeto
epidemiológico, não deixa de ser herética - considerando-se
a construção teórica e a fundamentação metodológica que se
vem fazendo até aqui - a contribuição de Mareei Goldberg
em "Esse obscuro objeto da epidemiologia"97 quando esta­
belece "a relação entre variáveis que representam determi­
nantes de saúde e variáveis que representam o estado de
saúde", deixando de fora a classificação de sadios e enfermos
para o desenvolvimento do campo epidemiológico. Mais re­
centemente, Miettinen, ao definir o objeto da ciência epide­
miológica como "a relação de uma medida de ocorrência a
um determinante", amplia muitíssimo o leque de possibilida­
des para uma investigação epidemiológica . Ao valorizar o
controle experimental da relação em estudo, buscando iso­
lar os efeitos produzidos pelo determinante, ele 'atinge um
grau de abstração do objeto que torna possível utilizar a
análise da relação de ocorrências de objetos de qualquer na­
tureza, chegando inclusive a propor a criação de uma nova
disciplina, na medida em que o vocábulo Epidemiologia já se
encontra comprometido com formas tradicionais de seleção
com o objeto em estudo. A construção lógica derivada de
Miettienen prescinde de um tipo de doença ou evento rela­
cionado à saúde - o que existiria numa população não é
morbidade, doença ou saúde, mas sim sujeitos sadios ou do­
entes incluídos nos grupos considerados; por conseguinte, o

96Almeida F. Op. cit., p. 2 .


97Goldberg, M. "Cet obscur objet de l'épidemiologie", Sciences Soei­
ales et Santé, ( 3 ) : 5 5 - 1 1 0 , 1982.
A SAÚDE DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE 1 13
objeto original da pesquisa epidemiológica não seria "doen­
ças no homem" e sim, mais apropriadamente, "doentes inclu­
ídos em populações", o que melhor traduziria as relações de
ocorrência de Miettinen98.
Interessa-nos apenas realçar a inadequação do uso d<t no­
ção de doença ou morbidade para classificar o coletivo de
trabalhadores de um dado hospital e estudar suas correlações
com determinantes do processo de trabalho e poder; a partir
daí, estabelecer alguma relação entre faces de um mesmo
processo (saúde-doença) e quiçá contribuir para a discussão
de um possível desgaste psíquico do trabalhador.
Para Almeida Filho99 o objeto-modelo da Epidemiologia
constitui-se em objeto intermediário que serve a uma função
de ligação entre campos do conhecimento na saúde, a fim de
dar conta da lacuna que existe entre o individual e o coletivo;
isso após ter afirmado que o determinante epidemiológico,
por definição, pode ser tomado como parte do objeto das
ciências sociais, ao nível das relações sociais . . . "Na pesquisa
epidemiológica, idade será sempre mais do que o número de
anos vividos, sexo mais que definição genital, dieta mais que
ingestão alimentar, herança mais que genética, exposição
mais que efeitos químicos, lugar mais que geografia e tempo
sempre mais que história individual. Trata-se de uma outra
maneira de considerar inescapável o caráter social da ciência
epidemiológica" .

98Miettinen, O. Theoretical Epidemiology) New York, John Wiley &


Sons, New York, 1 9 8 5 .
99Almeida F. Op. cit., p. 8 .
Terceira Parte
A I NVESTIGAÇÃO
Capítulo 6
O HOSPITAL COMO CAMPO
DA INVESTIGAÇÃO

A tarefa do conhecimento científico consiste na


"ordenação racional da realidade empírica". Ou
seja: não se trata de reproduzir em idéias uma
ordem objetiva já dada, mas de atribuir uma or­
dem a aspectos selecionados daquilo que se apre­
senta à experiência como uma multiplicidade in­
finita de fenômenos.

Gabriel Cohn

o HOSPITAL, SOBRE O QUAL NOS DEBRUÇAMOS PARA


estudar as relações entre o processo de trabalho e o sofri­
mento psíquico dos seus trabalhadores, tem características
especiais que caberia aqui mencionar.
Trata-se de hospital geral com 400 leitos, situado na área
central do município de São Paulo. Distribui-se em quatro
pavilhões numa extensa área de 32 .000 m2, de grande valo­
rização imobiliária, o que tem motivado, nas últimas décadas,
várias tentativas de expropriação. No início da pesquisa con­
tava com cerca de 1 .600 funcionários distribuídos entre as
diversas categorias profissionais técnicas e de apoio.
1 18 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Sendo um hospital geral, oferece serviços de diferentes
especialidades como as clínicas, incluídos quimioterapia, ra­
dioterapia, hemodiálise; as cirúrgicas, como, a cirurgia cardía­
ca, transplante renal, além dos serviços de urgência, com
atendimento a queimados e politraumatizados. Opera ainda
com uma maternidade, unidades de terapia intensiva para
adultos e crianças, além de ambulatórios de diferentes es­
pecialidades e serviços de apoio como laboratório e radiolo­
gia. No quadro seguinte observa-se a produção das diferentes
clínicas no período de agosto de 1 986 a maio de 1 987.

Atendimentos
Atendimento Atendimento
Meses de urgência ambulatorial Internados Cirurgias

Agosto 6.064 o 92 89
Setembro 5 .787 o 259 199
Outubro 6.331 o 5 14 297
Novembro 6.239 o 550 275
Dezembro 6.301 o 663 320
Janeiro 8 . 1 05 380 774 483
Fevereiro 7.357 1 .909 972 632
Março 8.658 2.883 1 . 1 75 706
Abril 8 .220 4.387 1 . 399 689
Maio 8 .648 6.65 1 1 . 543 928

Cerca de 98% da clientela é beneficiária do Sistema Uni­


ficado e Descentralizado de Saúde (SUDS) e a assistência a
clientes particulares corresponde a apenas 2% dos pacientes
atendidos.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 19
BREVE RETROSPECTIVA - GESTÃO E PARTICIPAÇÃO

Este hospital, fundado por uma sociedade beneficente de


imigrantes, teve sua pedra fundamental lançada em 1 897,
conseguindo inaugurar o seu primeiro pavilhão em 1904,
como uma propriedade comunitária de finalidade não lucrati­
va, com a participação de religiosos e filantropos.
Tem atravessado a história, como de resto as demais enti­
dades similares, ao sabor das políticas públicas e privadas para
o setor e da ganância dos seus gestores contingenciais 1 00. As
características benemerentes e assistenciais caritativas dos seus
idealizadores haveriam de sofrer radicais mudanças em decor­
rência do avanço ao sistema previdenciário, mas a opção da
previdência social por comprar serviços médico-hospitalares,
em vez de prestá-los ela própria, acabou por incluir os hospi­
tais filantrópicos neste sistema de compra e venda.
A crise econômico-financeira deste decênio, com reflexos
conhecidos sobre as políticas previdenciárias e, mais particu­
larmente, no campo da assistência médica, atingiu em cheio o
hospital estudado, levando-o a um processo que combinava
sucateamento de seus serviços e fraude de toda ordem contra
a Previdência Social, praticamente seu único comprador de
serviços, culminando com insolvência econômico-financeira
e, finalmente, fechamento de janeiro a junho de 86. Isto
implicou a perda de emprego, da totalidade de cerca de
1 .000 funcionários, já então mobilizados num processo que
garantiu a reabertura do hospital. Estes fatos ocorreram du-

100Uma série de trabalhos tem caracterizado esta passagem, entre eles:


Ribeiro, H. P. Políticas de saúde e assistência médica no Brasil, São Paulo,
AMB, 1983; Costa, N. R. O Estado e políticas de saúde pública, tese de
mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro, 1983; Braga, J. C. S. A questão da
saúde no Brasil, tese de mestrado, DEPE, UNICAMP, Campinas, 1978.
120 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
rante o primeiro governo estadual eleito por voto popular
após vinte anos, com expressiva maioria de votos, e com uma
plataforma social na qual a saúde surgia como uma das ban­
deiras prioritárias. Isto viabilizou uma intervenção oficial não
estatizante, do Estado e do Instituto Nacional de Assistência
Médica e Previdência Social ( INAMPS ) numa campanha
moralizadora e de ruptura de compromissos com o setor
privado da saúde.
Observou-se, na ocasião, uma forte campanha dos diri­
gentes da sociedade beneficente mantenedora na tentativa de
vender parte ou todo o patrimônio do hospital, num movi­
mento denunciado publicamente pelos próprios funcionários.
O tombamento da área fisica e a reforma dos estatutos
acordada entre a sociedade beneficente proprietária dos seus
bens, o Governo do Estado e o Instituto Nacional de Assis­
tência Médica da Previdência Social ( INAMPS), que assumi­
ram o seu passivo, e seus funcionários (agora já organizados
em associação) permitiram a reformulação da direção do hos­
pital. Assim, criou-se um Conselho Diretor composto de
onze membros dos quais seis eram representantes do setor
público, dois representantes dos funcionários e corpo clínico
e três membros eleitos pela Assembléia Geral da Sociedade,
inaugurando uma forma singular de "instituição pública não
estatal" que a diferenciou de outras entidades congêneres 1 01 .
Preocupado com a modernização administrativa, pressio­
nado pelo movimento social dos trabalhadores por melhores

101Enquanto realizávamos a pesquisa de campo, em novembro de


1988, a instituição se transformou em fundação, após uma intensa partici­
pação nas discussões do hospital, gerido agora por um conselho curador
com participação paritária do governo do Estado, sociedade beneficente e
funcionários do hospital.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 2 1
condições de trabalho e abastecido com recursos advindos da
Previdência Social para sua recuperação, o hospital pode ab­
sorver novas preocupações. Junto ao então INAMPS, propi­
ciou a criação do Centro de Processamento de Dados ( CPD)
e do Centro de Estudos e Pesquisas Aplicados à Área Hospi­
talar ( CEPAU) que, na programação de pesquisas para 1 988,
identificou como uma das prioridades a investigação sobre
"Trabalho e Organização do Trabalho no Hospital" , ofere­
cendo a instituições de pesquisa e pesquisadores a possibilida­
de de desenvolvê-las nas suas dependências.
Da convergência positiva de interesses do centro de estu­
dos do hospital, de sua associação de funcionários e de pes­
quisadores na área, um conjunto de projetos foi formulado;
entre os quais "Trabalho Hospitalar e Saúde Mental dos
Trabalhadores", que oferece subsídios para a presente refle­
xão.
Definiu-se como objetivos da Pesquisa:
- Conhecer as características da força de trabalho do hospi­
tal com relação a variáveis sócio-econômicas e de trabalho.
- Conhecer aspectos do processo e organização que
possa funcionar como indicadores ou, mais precisamente,
variáveis indicativas de condições de trabalho.
- Conhecer o padrão de doenças em geral e utilização
de consultas médicas, no hospital ou fora do hospital, com
finalidade de obter informações para desenvolver serviço de
atenção médica para os trabalhadores no hospital ( demanda
do centro de estudos e associação de funcionários do hospi­
tal).
- Conhecer padrão de sintomas psicoemocionais entre
os trabalhadores do hospital como elemento indicativo de
sinal de sofrimento psíquico.
122 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
- Conhecer padrão de uso abusivo de álcool entre traba­
lhadores do hospital como indicativo de sinal de sofrimento
psíquico.
- Estabelecer correlações entre sofrimento psíquico e
determinadas condições de trabalho hospitalar e de vida.
- Contribuir para o desenvolvimento de uma metodo­
logia de avaliação do processo tecnológico do trabalho hospi­
talar, tomando como recorte privilegiado a dimensão psicos­
social dos trabalhadores.
- Contribuir para a discussão de aspectos penosos e in­
salubres em ambientes de trabalho hospitalar.
Para se ter acesso ao material empírico e sistematizar o
seu registro visando perseguir os objetivos já mencionados e
avaliar hipóteses anteriormente levantadas, optou-se por inici­
ar os trabalhos desenvolvendo um estudo epidemiológico de
caráter exploratório.
Uma vez definido um estudo de corte transversal ou sec­
cional para buscar estabelecer estimativas de prevalência de
sintomas psíquicos como indicativo de sofrimento psíquico,
utilizou-se posteriormente medidas de associação (ODDS­
RATIO ou Risco Relaciona!) entre sintomas e determinantes
características do processo de trabalho e atributos pessoais
(sexo, idade, profissão/ocupação, escolaridade, renda) .
U m questionário auto-aplicável, contendo sessenta e três
questões, a maioria das quais fechadas e pré-codificadas e
algumas abertas, foi o instrumento utilizado na coleta de
dados que serão apresentados.
Uma vez tendo-se claro o desenho da investigação bus­
cou-se uma estratégia para a sua viabilidade, que implicou
contatos e entrevistas com a administração e os trabalhadores
organizados em associação de funcionários. Levantamentos
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 123
dos dados disponíveis de pessoal, organogramas administrati­
vos, boletins de segurança e medicina do trabalho, mapea­
mento da área fisica do hospital com o conhecimento de
áreas e seções que o compõem, identificação de lideranças,
participações em reuniões e jornadas para sensibilização para
o trabalho de pesquisa e busca de colaboração foram passos
iniciais e necessários.

OS INSTRUMENTOS DE PESQUISA

Definido que se trabalharia com uma abordagem de to­


dos os integrantes do universo investigado, caminhou-se na
elaboração de um instrumento padronizado que contem­
plasse:
l . A caracterização sócio-econômica da força de trabalho
no hospital.
2. Características e percepção dos trabalhadores sobre as­
pectos do processo de trabalho hospitalar.
3 . Perfil de morbidade referida para problemas gerais de
saúde e utilização de serviços.
4. "Screening" para sintomas psicoemocionais nos traba­
lhadores do hospital.
5 . "Screening" específico para uso habitnal de bebida
alcoólica entre os trabalhadores.
Desde as reuniões preparatórias com o pessoal do hospi­
tal, aceitou-se o desafio de se desenvolver um questionário
simples, que pudesse ser aplicado no ambiente de trabalho
sem acarretar transtornos :l dinâmica de funcionamento do
mesmo.
Decidiu-se também que buscar-se-ia encontrar um instru­
mento auto-aplicável, o que comportaria apenas a presença
de uma equipe de monitores especialmente treinados para
1 24 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
garantir informações e orientações padronizadas no decorrer
das aplicações.
O instrumento deveria ser auto-explicativo para reduzir
ao máximo o viés de interpretação do monitor/entrevistador,
reservando-se apenas a interferência destes quando houvesse
problemas na dificuldade de leitura ou escrita, visando com
isso reduzir fontes de erro.
Como um dos objetivos desta investigação era identificar
indicadores de natureza sócio-econômica, da organização do
trabalho, de morbidade geral e sofrimento psíquico para bus­
car construir uma rede de associações entre si, no primeiro
momento da pesquisa buscou-se encontrar conceitos, classifi­
cações sociais e nosológicas adequadas, uma vez que, com
relação à condição e organização do trabalho, ela ainda está
por ser construída .
Restou portanto a tarefa de se encontrar um instrumento
padronizado e adequado à detecção e mensuração de sinto­
mas psíquicos que pudesse ser um instrumento indicativo do
padrão de sofrimento psíquico daquela população.

Trabalho Hospitalar em Saúde - o THS


O THS foi o instrumento especialmente elaborado para
esta pesquisa, compreendendo trinta e cinco questões relati­
vas à caracterização sócio-econômica e do ambiente de traba­
lho, quatro questões relativas a problemas de saúde atual e
utilização de serviços no hospital e fora dele, vinte questões
para detecção de sintomas psíquicos em geral e quatro ques­
tões específicas para o uso abusivo de álcool.
A avaliação das informações obtidas das trinta e cinco
questões relacionadas à caracterização da força e ambiente de
trabalho seria feita mediante confrontação de informações
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 125
com os registros da instituição (pessoal, finanças, Centro de
Processamento de dados e outros) .
As vinte questões específicas para sintomas psicoemocio­
nais são extraídas e adaptadas do SRQ, ou seja "Self Report
Questionaire" (SRQ-20), um instrumento introduzido por
Harding em 1980 para "screening" de distúrbios não psicó­
ticos ou distúrbios psiquiátricos menores em populações.
A escolha do SRQ como instrumento de detecção de
sintomas psicoemocionais numa população de trabalhadores
de um hospital na região metropolitana recai sobre o fato de
o instrumento já se encontrar validado, acompanhando ca­
racterísticas de linguagem e psicopatologia do município.
Trata-se de instrumento bastante simples, já que repousa em
estrutura binomial sim-não, de facilidade operacional, uma
vez que tem questões claras e um tempo médio de respostas
de três minutos.
Derivado de quatro outros instrumentos (PASSR, PGI,
GHQ, PSE ) foi testado e validado em pesquisa patrocinada
pela OMS e conduzida por Harding et alii em quatro países
"em desenvolvimento" ( Colômbia, Índia, Sudão e Filipinas),
sendo aplicado em usuários de serviços de atenção primária.
Percorreu rigorosos critérios de validade e confiabilidade,
tendo revelado uma boa performance. Trazia como mérito
ser um instrumento simples, com um bom grau de discrimi­
nação para detecção de si,ntomáticos. Os trabalhos de valida­
ção do instrumento alcançaram graus de sensibilidade de 73 a
83%, especificidade de 72 a 85% e erros de classificação
de 1 8 a 24%.
No Brasil, Busnello e colaboradores ( 1983) introduziram
o seu uso em serviços de atenção primária em Porto Alegre,
sem, entretanto, ter publicado seus parâmetros de avaliação.
126 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Mari ( 1986 ) , utilizando-se do mesmo instrumento, proce­
deu a cuidadoso trabalho de validação em serviços de atenção
primária em São Paulo, utilizando-se do Clinicai Interview
Schedule ( CIS-Goldberg et alii , 1970 ) , entrevista psiquiátrica
semi-estruturada, originalmente produzida para estudos de dis­
túrbios não psicóticos na comunidade. (A CIS também foi tra­
duzida e adaptada entre nós por Mari & Wtlliams, 1983-4).
No estudo de Mari os coeficientes de validação do instru­
mento para a população da cidade de São Paulo resultaram
numa sensibilidade de 83%, especificidade 80%, valor prediti­
vo positivo 8 1 %, valor preditivo negativo 82%, e erro de
classificação 1 9%, considerados bastante satisfatórios para es­
tudos similares.
Para a detecção de uso de bebida alcoólica entre os traba­
lhadores do hospital utilizou:se o CAGE. Trata-se de um
instrumento de detecção da Síndrome de Dependência ao
Álcool, de Erwing & Rouse ( 1970), cuja sigla significa a
junção de quatro palavras-chave: Cut-down, Anoyed, Guilt e
Eye-opener1 02, e que tem sido utilizado em diversos países do
mundo em estudos para detecção do hábito de beber.
Constam quatro questões discriminativas, e se o indiví­
duo responde positivamente a duas delas é considerado
CAGE positivo, o que, embora não signifique certeza da
presença da Síndrome de Dependência do Álcool, torna-se
um forte indicador de que o indivíduo tenha problemas com
o uso de bebida.
O CAGE, como instrumento de triagem, foi validado por
Mayfield, McLeod e Hall ( 1974) em pacientes admitidos em
102 Cut-down (cortar o consumo de bebida), Anoyed (aborrecimento
por críticas ao comportamento devido a bebida), Guilt (culpa pelo uso de
bebida) e Eye-opene1· (beber de manhã para aliviar o nervosismo ou ressaca).
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 127
serviço psiquiátrico de Hospital Geral Universitário (n= 366;
39% de alcoolistas) . Segundo Mayfield ( 1974), embora se
tenha alcançado graus satisfatórios de confiabilidade ( 82 a
89% de sensibilidade e 72 a 79% de especificidade ), fica a
recomendação da necessidade de avaliação em diferentes gru­
pos culturais.
No Brasil, inúmeros estudos o têm referido como instru­
mento confiável e capaz de levantar estimativas de prevalência
da dependência do álcool. Masur & Monteiro ( 1983) proce­
deram a um estudo de validação deste instrumento de "scre­
ening" em pacientes hospitalizados em hospital psiquiátrico
de São Paulo e que referiram uso de bebida. Encontraram
sessenta e oito alcoolistas e quarenta e seis não-alcoolistas e
calcularam uma especificidade de 1 00% e sensibilidade de
43%, considerados bastante satisfatórios pelos autores.
A experiência de aplicá-lo em 1 .525 trabalhadores de
hospital mostrou a exasperação de alguns deles frente às
questões formuladas. Embora seja o CAGE reconhecido
como o menos intimidativo dos questionários para seu fim,
para esta população em especial suscitou rechaço e provavel­
mente um número de respostas positivas não correspondente
ao número real de bebedores. Os achados não refletem a
prevalência esperada. Embora isso não desqualifique o instru­
mento, optamos por não utilizá-lo na etapa de tratamento
estatístico das medidas de associação.
Visando a uma posterior análise de dados, desenvolveu-se
uma sistematização para os mesmos constando de : 1 ) uma
classificação própria da pesquisa para as variáveis de condições
de trabalho e características sócio-econômico-demográficas;
2 ) a sistematização proposta por Singer ( 1975 ) na organiza­
ção dos dados de profissão/ocupação; 3 ) classificações dos
128 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
dados nosográficos seguindo a "9 ª Classificação Internacio­
nal de Doenças" ; e 4 ) Classificações dos dados referentes aos
"screenings" psicopatológicos, segundo as validações dos ins­
trumentos realizados anteriormente.

Trabalho de campo: a supervisão


Os questionários foram aplicados durante os três turnos
(manhã, tarde, noite) buscando acompanhar o funcionamen­
to do hospital. As duas etapas da coleta tiveram duração de
um mês, seguindo-se recomendações para estudos semelhan­
tes de não se estender por um período muito longo a primei­
ra e a última aplicação, reduzindo-se, assim, desvios nos pa­
drões de respostas.
A organização do trabalho de campo esteve a cargo de
uma supervisara que, além de controlar o material utilizado,
o revisava e o devolvia a campo, quando necessário.
Uma segunda revisão dos questionários era procedida numa
reunião semanal de supervisão com a coordenadora, supervisara
e demais integrantes da equipe de pesquisa, na qual se atualizava
o cronograma de trabalho e se examinavam dificuldades opera­
cionais, aprofundando a atividade de revisão.
Estas reuniões foram mantidas semanalmente durante
toda a fase de coleta, codificação e digitação dos dados, nas
duas etapas dos trabalhos, com modificações na composição
da equipe.

O PROCESSO DE ANÁLISE DOS DADOS

Sendo o objetivo deste processo quantificar ou estimar as


características tanto da força de trabalho e algumas condições
de trabalho como da prevalência de sintomas naquela popula­
ção, observando a relação entre ambas e testando a signifi-
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 29
cância estatística desta relação, tentando contribuir com ele­
mentos empíricos sistematizados para o conhecimento e in­
vestigação no setor, buscamos planejar uma trajetória de
análise com os passos seguintes:
1 . Distribuição de freqüências dos dados, examinando
tendências e identificando as variáveis de maior interesse.
2 . Análise simples através de cruzamentos das va­
riáveis independentes em relação à variável de interesse, ou
seja, a condição de "suspeito" ou "não suspeito" de sofri­
mento psíquico, observando-se a existência de associação en­
tre elas.
3. Análise estratificada, que implica a estratificação dos
dados controlados por variáveis mais relevantes, identificadas
na análise de freqüências simples como confundidores poten­
ciais ou modificadores do efeito.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Num universo de cerca de 1 . 600 trabalhadores do hos­


pital investigado aplicou-se o THS (Trabalho Hospitalar e
Saúde ) , instrumento padronizado especialmente construí­
do para a realização desta pesquisa, em 1 . 525 deles. As
perdas ficaram por conta de licenças, férias e afastamentos
outros que acontecem habitualmente na instituição ( < 5%)
(75 perdas) .
Partindo de questionários preenchidos procedeu-se a re­
visão e codificação dos mesmos segundo "livro de códigos"
previamente construído. Digitou-se banco de dados em siste­
ma PC-XT com procedimentos de limpeza do banco e pro­
grama de crítica ( em amostragem de 1 0% do material digita­
do, revelou-se percentual de erros menor que 0,2%) .
Uma vez corrigido o banco de dados, através do progra-
130 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
ma SPSS, listou-se a distribuição de freqüências para se ob­
servar tendências do material coletado.
Caracterizar a força de trabalho do hospital estudado foi
o primeiro movimento no sentido de identificar a face indi­
ferenciada dos seus trabalhadores para que inferências advin­
das de análise do material empírico colhido recaíssem sobre
uma população específica e discriminada.
Antes de passarmos ao exame dos dados coletados con­
vém esclarecer por que se tomou emprestado à economia
política o conceito de força de trabalho, no que tem a ver
com produção, divisão de trabalho, assalariamento, saúde e
demais questões ligadas às relações sociais do processo de
trabalho, deixando de lado outras denominações igualmente
consagradas. Por que não lidar, por exemplo, com a aborda­
gem dos "recursos humanos" que, advinda da teoria da ad­
ministração e preocupada com seleção, capacitação e aprimo­
ramento de pessoal visando desenvolver a capacidade de tra­
balho nos seus aspectos técnico-operacionais, poderia ser
sentida como de maior utilidade?
Embora utilizados de modo indiferenciado, Nogueira
( 1983) chama a atenção para o caráter irreconciliável dos dois
conceitos, uma vez que o primeiro - força de trabalho -
traz em si a idéia de descrever e interpretar o contingente de
trabalhadores estudados como unidade social, enquanto que
o segundo - recursos humanos - tem a ver com o desen­
volvimento da capacidade de trabalho nos seus aspectos
operacionais, com raízes conceituais saídas das teorias da ad­
ministração103.

103
Força de trabalho, termo consagrado pela economia política, ligado
particularmente à escola clássica de Smith, Ricardo e Marx, prestando-se
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 131
Em que pese a grande importância dos dois enfoques, os
limites deste trabalho nos orienta para o primeiro, onde a
descrição e interpretação dos achados empíricos se impõe.
Um segundo aspecto será a prevalência da morbidade
referida e a utilização de serviços, buscando-se subsídios para
a implantação de um serviço ambulatorial de atendimento à
clientela interna de funcionários do hospital (reivindicação da
associação de servidores) que já funciona de modo informal e
não sistemático, fazendo uso de consultas médicas no hospi­
tal nas diversas especialidades.
Um terceiro aspecto a ser examinado, ainda seguindo
tendência das freqüências das variáveis estudadas, serão algu­
mas características do processo de trabalho no hospital, ob­
servando-se alguns indicadores da divisão e organização do
trabalho, buscando-se correlacionar com os achados de sinto­
mas psicoemocionais e de morbidade referida.
Para o fim da pesquisa em si, interessa saber o perfil da
morbidade da população de trabalhadores estudada, e dentro
deste perfil privilegiar o lugar ocupado pelas patologias de
provável etiologia psicossomática104•

atualmente, em diversos campos científicos, a um uso que é simultanea­


mente descritivo c analítico, no processo de conhecimento de fenômenos
demográticos e macroeconômicos. Recursos humanos, em contrapartida, é
expressão advinda da ciência da administração e se subordina à ótica de
quem exerce algum tipo de função gerencial ou de planejamento, já no
âmbito microinstitucional (órgão público ou empresa privada), in Médici,
A.; Machado, M. H . ; Nogueira, R. P . & Girardi, S. P. A força de trabalho
em saúde: aspectos teóricos conceituais e metodológicos, in CADRH U ,
DMP-FMUSP (mimeografado), 1 989, p. l i . Ver também Nogueira, R . P .
A força do trabalho em saúde, 1 3 - 1 4.
c i t . , p.
u14Psicossomática é aqui tomada no seu sentido clássico de pertencente
aos domínios do orgânico e do psíquico, incluindo perturbaçôes ou doen­
ças orgânicas produzidas por influências psíquicas.
1 32 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
CARACTERÍSTICAS DA FORÇA DE TRABALHO NO HOSPITAL

O gênero
Os resultados dos dois momentos da coleta de dados só
reforçaram a constatação de uma predominância de mulheres
na força de trabalho empregada no hospital.

1 º etapa 2º etapa Distri buição


nov. 8 8 a bril 89 fi nal

§ 34% § 32%

11 66% 11 68%

m u l heres - 72,0% mulheres - 66,0% m u l heres - 68,0%


homens - 2 8,0% homens - 34,0% homens - 3 2 ,0%

Historicamente, as atividades de cuidar dos doentes com


suas características tecnológicas próprias de assistir, higieni­
zar, alimentar, prover dos elementos indispensáveis ao bom
desenvolvimento do enfermo, seguindo os padrões da divisão
social do trabalho, sempre estiveram delegadas à mulher.
O hospital constitui um privilegiado espaço de profissio­
nalização do trabalho doméstico, uma vez que utiliza desta
tecnologia introjetada arquetipicamente pelas mulheres, cri-
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 33
ando uma situação singular: pelo fato de a qualificação para o
desempenho das tarefas cotidianas não ser adquirida por vias
institucionais reconhecidas, ela costuma ser negada quer pe­
los hierarquicamente superiores, quer 'pelas próprias trabalha­
doras, servindo como um pano de fundo importante para a
"subqualificação" deste tipo de trabalho ("a profissão de fu­
turas mulheres quando eram meninas" como nos diz Danie­
lle Kergoat, 1987) seguida de uma "educação continuada"
no próprio desempenho dos trabalhos domésticos. Embora
possa não parecer nos parâmetros da educação formal, ela é
responsável pelo "savoir faire" mínimo, que permite o fun­
cionamento do hospital, sendo um processo tecnológico de
trabalho em saúde que não costuma ser dimensionado nas
políticas de capacitação ou valorização deste trabalho.
A predominância feminina na força de trabalho em saúde
tem também merecido a atenção dos observadores macro­
estruturais. Médici ( 1986 ), além de reafirmar a "tendência à
feminização" no setor, tem acrescentado que o crescimento
do trabalho feminino em saúde tem sido mais significativo
entre os trabalhadores do nível superior que entre os de nível
médio e elementar, na última década. Isto nos leva a suspeitar
de pelo menos duas ordens de determinação: uma, de nature­
za econômica, que teria relação com tendências do mercado
de trabalho e política de empregos, que não caberia aqui
discutir; outra, de ordem mais subjetiva, fala de uma adequa­
ção, através de atividades reparadoras dos processos femini­
nos de sublimação, estendendo para locais de trabalho pul­
sões habitualmente satisfeitas na esfera doméstica, qualifican­
do e monetarizando impulsos primitivos femininos. Tais ati­
vidades tenderiam a melhor estimular defesas socialmente
consentidas e utilizadas numa estratégia de profissionalização
1 34 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
e "emancipação" das mulheres. Também não era propósito
deste trabalho aprofundar esta discussão, mas levantá-la signi­
fica ter a dimensão das dificuldades e conflitos que têm de ser
administrados nesses espaços de trabalho105•

A idade dos trabalhadores e o tempo na ocupação e trabalho no


hospital
Este hospital não se caracteriza particularmente por estar
composto de força de trabalho essencialmente jovem, signifi­
cando porta de entrada no mercado de trabalho com curto
período de fixação e saída rápida para outras atividades mais
rentáveis e lucrativas, como vêm assinalando os estudos de
Médici ( 1986) e Nogueira ( 1 986). A tendência ao "rejuve­
nescimento" da população de trabalhadores do setor saúde,
de um modo geral assinalada pelos dois autores, talvez se
explique pela baixa remuneração destas categorias profissio­
nais e uma subseqüente exigência de qualificação profissional
igualmente baixa, onde a profissionalização do trabalho do­
méstico é o maior aporte tecnológico disponível, o que em
última instância termina constituindo uma passagem quase
que obrigatória da mão-de-obra feminina.
Neste hospital os trabalhadores não estão ingressando
logo após completarem a maioridade ( 1 8-21 anos); pode-se
perceber que o maior contingente de trabalhadores situa-se
na faixa de trinta e um a quarenta anos ( 36% ), portanto,
pessoas mais maduras e possivelmente com experiências ante­
riores de inserção no mercado de trabalho. Seria interessante

1 05Kergoat, D. Da divisão de trabalho entre os sexos, texto mimeo, curso


"Tecnologia, Processo de Trabalho e Política de Emprego", da Prof'l He­
lena Hirata, USP, São Paulo, 1988.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 35
examinar-se o tempo de trabalho na ocupação para avaliar se
essas pessoas ingressaram mais jovens, (logo após a maiorida-

Tabela 1 - Distribuição etária da força de trabalho do Hos­


pital. São Paulo, 1989 (THS) .

Idade (anos) Número %

1 7-20 45 3
2 1 -30 483 33
3 1 -40 522 36
4 1 -50 289 20
5 1 -60 94 6
61+ 25 2

Total 1 .458 1 00,0

de e permanecem nos seus postos) ou se o ingresso na ativi­


dade está se dando numa etapa mais tardia, significando ou­
tras experiências profissionais anteriores.
O que se observa é que os trabalhadores estão na profis­
são predominantemente de um a quatro anos e de cinco a
quatorze anos ( o que perfaz um total de 73,7% dos trabalha­
dores com um tempo de ocupação maior que um e menor
que quinze anos) .
Dispondo da informação do tempo de trabalho na unida­
de estudada, isto nos permite uma visão do tempo de traba­
lho num mesmo hospital e, muito possivelmente, exercendo
uma mesma profissão-ocupação* .

* 0 exaustivo levantamento do Conselho Federal de Enfermagem,


Força e trabalho em enfermagem - O exercício da enfermagem nas institui-
1 36 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 2 Distribuição dos trabalhadores por tempo de
-

exposição na profissão e no hospital - THS/89.

Tempo de trabalho Na profissão No hospital


N % N %

<l 1 15 10,1 572 14,9

l a4 494 43,1 577 49,9

5 a 14 350 30,6 263 22,8

15 a mais 1 86 1 6,2 144 1 2,5

Total 1 . 145 1 00,0 1 . 1 56 1 00,0

O tempo de trabalho no hospital, de um a quatro anos, é


predominante na faixa de tempo que os trabalhadores exercem a
ocupação no hospital, embora não nas mesmas proporções, o
que pode significar ser este hospital o primeiro emprego no
setor para um contingente significativo de trabalhadores .
Chama a atenção, entretanto, que 22,8% trabalham no hos­
pital entre cinco e quatorze anos e 1 2 ,5% está há mais de
quinze anos. Juntos, os dois contingentes alcançam 3 5,3% de
indivíduos que ultrapassam no hospital o período probatório
para "teste de vocação" ou escolha de atividade economica­
mente mais rentável. Este fato talvez se explique pelas carac-

ções de saúde do Brasil 1982/1983 - vol. 1 , é uma importante contribuição


na caracterização de profissionais de saúde no país nas categorias de enfer­
meiros e ocupacionais de enfermagem (técnicos, auxiliares e atendentes) e
serve de contraponto para nossas considerações.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 37
terísticas do hospital estudado, de origem filantrópica religio­
sa, com trabalhadores que lá exercem suas atividades há lon­
go tempo, alguns inclusive residindo nas suas dependências.

A qualificação
Embora fuja dos limites deste trabalho discutir mais
exaustivamente a qualificação dos trabalhadores para o setor
hospitalar, pareceu-nos ser um viés rico para analisar a escola­
ridade, a profissão-ocupação e a renda per capita familiar, na
medida em que se concebe qualificação enquanto coinci­
dência entre um modo de organização do trabalho, um saber
e algo dotado de valor econômico.
Ao tomar como local de observação um hospital funcio­
nando, deve-se concluir que as pessoas que ocupam seus
diversos postos de trabalho estão ali por serem portadoras
de alguma habilidade, exp eriência ou formação. A qualifica­
ção aparece justamente ft;t nte à impossibilidade de se colo­
car qualquer trabalhadoi em "qualquer" posto de trabalho.
Está o hospital, enquanto local que presta um serviço bas­
tante diferenciado, conseguindo, dadas as regras gerais eco­
nômicas e de mercado, aprimorar esta qualificação na mes­
ma medida em que outros setores mais dinâmicos da econo­
mia, onde as qualificações dos gestos, das tarefas, dos ins­
trumentos, dos grupos, são objeto de controle e aperfeiçoa­
menta cotidiano? Falou-se já anteriormente que, se existe
uma qualificação do posto e uma qualificação do trabalha­
dor, é indispensável que elas se correspondam e não criem,
a partir de uma dissociação entre ambas, uma qualificação
artificial e inútil ( Rolle, 1 988 ) .
Voltando para estes dados, o que se observa, para deses­
pero daqueles preocupados com uma melhor qualificação,
1 38 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
dos profissionais do setor106 , é que mais da metade deles
( 50,4%) se encontram dentre os que nunca freqüentaram
escola até os que apenas alcançaram completar o primeiro
grau. Isto implica um tempo de exposição às atividades for­
mais de educação excessivamente pequeno para atividades
que se pretendem cada vez mais complexas e sofisticadas.
Que relações se estabelecem entre este coletivo de pesso­
as de baixa escolaridade e o conjunto de exigências relaciona­
das aos diversos elementos do emprego é alguma coisa que
mereceria aprofundamento em estudos futuros.
Tentando agora vê-los sob o prisma dos níveis salariais,
através do exame de sua renda per capita, pode-se inferir que
a remuneração do trabalhador decorre de sua qualificação,
porém esta não a defin e.
Considerando que o Piso Nacional de Salário em abril*
de 1989 era de NCz$ 63,40 (sessenta e três cruzados novos
e quarenta centavos) e tomando-se este como indicador de
consumo, observa-se que a possibilidade de consumo deste
contingente de trabalhadores é muito baixa, ficando 5 1 ,2%
dentre eles com um consumo per capita mensal de até três
pisos nacionais de salário.
A qualificação, seguindo as suas três vertentes de saber)
salário) ocupação) é histórica e deveria refletir o status do traba­
lhador na organização, e sua retribuição financeira deveria va-

106Atualmente, no setor público, há um grande empenho, através de


"programas de larga escala", de eliminar a categoria atendente de enferma­
gem, qualificando-os para auxiliares e técnicos, para os quais habitualmente
se exige uma escolaridade formal equivalente ao segundo grau.
*Foi tomado este valor (de abril) como padrão, tendo-se feito o ajuste
para os questionários aplicados em novembro de 88, cujo valor era outro
(NCz$ 30,80).
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 39
riar com o tempo de formação e função social da atividade
desempenhada. Entretanto, não há uma história inteligível do
trabalho concreto. As formas tradicionais da divisão do traba­
lho fragmentam as atividades de uma tal maneira que mesmo
no trabalho hospitalar já não mais se localizam de forma dife­
renciada. O trabalho humano tende a perder toda a qualidade
distintiva e toda espontaneidade e "o assalariamento seria esta
forma última de economia onde o trabalho tornou-se quase
uma mercadoria como as outras, e parece não poder ser carac­
terizada senão quantitativamente"107•
Embora seja perigoso pensar que o saber e a retribuição
do trabalhador variam relativamente pouco com a dimensão
do trabalho, o que poderia levar a "desqualificar" a qualifica­
ção para o mesmo, na medida em que ele não signifique o
reconhecimento coletivo e institucional da especialização do
trabalhador para o desempenho de uma determinada função,
o certo é que os baixos salários pagos aos profissionais de
saúde são um grande estímulo à rotatividade no setor108 e um
pobre estímulo para que eles aprimorem suas qualificações.

O estrato social
Os estudos de populações em sociedades não igualitárias,
como a nossa, impõem um problema na abordagem empírica
quando, por exemplo, numa organização como um hospital
os indivíduos e grupos que ocupam posições sociais distintas,
vivendo sob condições de existência diversas, estão sendo
examinados nas suas dimensões de trabalho e saúde.

1 07Rolle, P. Op. cit., p. 3 .


1 080 hospital estudado, por características próprias já examinadas, não
se constitui num bom exemplo para essa discussão, uma vez que o tempo
de permanência na instituição se mostra elevado, em média.
1 40 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
A posição diferencial que os indivíduos e grupos ocupam
em uma estrutura ou organização social tem sido estudada
como um fenômeno de estratificação ou, por outra perspecti­
va, tem sido vista como relacionada à sua inserção de dasse109.
"Stavenhagen analisa os problemas teóricos e metodoló­
gicos relativos aos conceitos de estratificação social e classes
sociais, distinguindo-se os dois conceitos, mostrando suas li­
mitações, seu alcance e as relações existentes entre estrutura
de classe e estratificação social. Para o autor, as estratificações
são fenômenos universais e representam a distribuição desi­
gual de direitos e deveres em uma sociedade"110.
Para este trabalho, utilizar uma sistematização estratifica­
da de dados como escolaridade, profissão e renda significa
apenas uma tentativa de, através de um indicador composto,
buscar uma melhor correspondência à realidade social do co­
letivo de trabalhadores aqui estudado no limite de uma des­
crição dos elementos empíricos por nós conhecidos e a esses
estratos referenciada. "O fenômeno de estratificação é, assim,
considerado como a aparência de uma estrutura social, cuja
essência real seria a estrutura de classes"m.
Os nossos limites de análise alcançam uma estimativa do
padrão de consumo de grupos de trabalhadores uma vez que,
para o estudo da relação processo de trabalho e sofrimento
psíquico, o padrão de consumo poderia constituir uma variá­
vel confundível. Entretanto Lang, comentando um artigo de

109Lang, A. B. S. G. Considerações sobre os conceitos de estratificação


social e de posição no sistema de relações sociais de produção: sua opera­
cionalização em uma pesquisa empírica, São Paulo, Ciência e Cultura,
34( 1 ) : 1 3-2 1 , janeiro de 1982.
1 10Idem, ibidem, p. 1 3 .
111Idem, Ibidem, p. 1 3 .
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 141
Luiz Pereira, "Notas para o estudo d o Sistema d e Classe
Regional" 112 , assinala que "a possibilidade de mobilidade so­
cial ascendente, preconizada pela ideologia da sociedade capi­
talista, remete aos estratos e não às classes antagônicas" . Não
é uma discussão que se tenha aqui condições ou necessidade
de aprofundar, bastaria, sim, criar parâmetros para estabelecer
operacionalmente estratos sócio-econômicos que possibilitem
o exame do material.
A proposta é considerar três níveis sócio-econômicos:
alto, médio e baixo, tomando-se como parâmetros classifica­
tórios os elementos escolaridade) profissão-ocupação e renda.

l . Escolaridade -os níveis já considerados de ( l ) até o


primeiro grau; (2) até o segundo grau, superior incompleto;
( 3 ) superior completo.

2. Profissão-ocupação - frente às oitenta e uma profissões­


ocupações diferentes que se encontrou no hospital, fez-se uma
adaptação da classificação proposta por Singer ( 1976 )11 3•

3 . Renda - Coletou-se a renda mensal e familiar e o


número de pessoas da família, o que nos permitiu o cálculo
da renda per capita, um indicador mais próximo do consumo
do trabalhador.

112Pereira, L. Estudos sobre o Brasil contemporâneo, Livraria Pioneira,


1 978, apud Lang. Op. cit., p . 14.
113Singer, P. Demanda por alimentos na área metropolitana de Salva­
dor, São Paulo, Cadernos CEBRAP, 23, 1 976, onde o autor agrupa cate­
gorias de ocupações em: 1 ) serviços domésticos remunerados; 2 ) trabalho
não qualificado; 3) trabalho artesanal de baixa qualificação; 4) artesãos
modernos de média qualificação; 5 ) trabalho qualificado; 6) ocupações e
profissões de nível superior.
1 42 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
A caracterização da renda familiar e renda per capita nos
estudos de população tem-se constituído em indicadores clás­
sicos ao padrão de consumo dessas populações, embora tenha
sido uma informação colhida com alguma dificuldade, já que
os trabalhadores temem publicar suas diferentes formas de
ganho quer entre si e suas famílias, quer entre si e qualquer
equipe de pesquisas que se disponha a vasculhar suas vidas.
Tais informações poderão ser utilizadas contra si como de­
monstrativo de outros vínculos de trabalho, em comprova­
ções de pendências judiciais, vergonha pelo salário reduzido e
várias outras alegações.
Como formulação inicial para a composição dos três es-
·

tratos, foram propostos:

l . Baixo -Escolaridade (até primeiro grau incompleto);


profissão-ocupação (trabalho doméstico remunerado + traba­
lho sem qualificação); Renda per capita (menor que dois Pi­
sos Nacionais de Salário - PNS ) .

2 . Médio - Escolaridade (primeiro grau completo até


superior incompleto); profissão-ocupação ( trabalho de baixa
e média qualificação); Renda per capita ( maior ou igual a dois
PNS até menor que cinco PNS ) .

3 . Alto - Escolaridade (superior); profissão-ocupação


(trabalho qualificado até superior); Renda per capita (Maior
ou igual a cinco PNS ) * .

*Obs.: A quantidade de pessoas que não se enquadram nesta catego­


rização foi tal que teve de se montar um programa especial, levando em
conta as três variáveis, oferecendo um menu de possibilidades para que os
indivíduos pudessem ser agrupados nas três categorias.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 143
- Outras características sociodemográfi c as. Podemos ob­
servar, examinando a tabela 3, que a população trabalhadora
é predominantemente branca e solteira. Aliás, se agruparmos
os solteiros, viúvos e separados, teremos que 58% dos traba­
lhadores estão sozinhos, e seria interessante num trabalho
futuro examinarmos a representação para esses indivíduos do
trabalho nos seus aspectos de lidar e cuidar com um "outro"
que requer cuidados fisicos e emocionais.
Destaca-se também que a grande maioria dos trabalhado­
res do hospital é de tora da cidade de São Paulo, particular­
mente oriundos de outros estados ( área urbana e rural ) e do
próprio interior do Estado de São Paulo.
Este contingente de trabalhadores está em São Paulo há
bastante tempo (de dez a vinte anos), igual a 44,5%, embora
se observe um fluxo de pessoas, com menor tempo na cidade,
alimentando a ocupação dos postos de trabalho.
Observa-se também que a entrada como trabalhador no
hospital não deverá estar se constituindo no primeiro ingres­
so no mercado de trabalho, uma vez que os trabalhadores se
encontram na cidade há mais de dez anos, enquanto que o
tempo de exercício da profissão e o tempo de trabalho
no hospital é predominantemente da tàixa de um a quatro
anos.

SI;-.JTOMAS PSICOEMOCIONAIS COMO INDICADOR DE SOFRIMENTO


PSÍQUICO
Tem-se desde já claro os limites e reduções que um ins­
trumento padronizado de detecção de sintomas psicoemocio­
nais deverá trazer no momento que se busca entender a dinâ­
mica do sofrimento psíquico, tomando como recorte um
dado ambiente de trabalho, querendo estabelecer medidas de
144 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Estratificação sócio-econôm ica/q ual ificação. THS/89.

- Escolaridade
Primeiro grau completo
(25%)

����11=����r: Não freqüenta escola


(2%)
� Superior incompleto
(5%)

Superior completo
Segundo grau incompleto
( 1 9%)
( 1 1 %)

- Profissão - ocupação Não qual ificado


( 3 %) Doméstico remu nerado
( 1 0%)
Artesa nal de
baixa qualificação

(25%)
- Renda per capita Artesa nal de média qual ificação

Até 1 PNS
( 1 1 %)

5 a <
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 145
Tabela 3 - Distribuição de freqüências, segundo raça, estado
civil, naturalidade e tempo de moradia em São Paulo. THS/
89.

Variáveis Número %

Raça
branco 989 64,9
mulato 261 1 7,1
negro 1 49 9,8
amarelo 51 3,3
outros 40 2,6
sem informação 35 2,3

Total 1 .525 1 00,0

Estado Civil
solteiros 716 47,0
casados 589 38,6
separados 1 36 8,9
viúvos 30 2,0
outros 49 3,2
sem informação 5 0,3

Total 1 . 525 1 00,0

Naturalidade (local)
Grande São Paulo 46 1 30,2
Interior de São Paulo 351 23,0
Outro Estado ( Zona Urbana) 375 24,6
Outro Estado ( Zona Rural) 303 1 9,9
Outros países 29 1 ,9
sem informação 6 0,4

Total 1 .525 1 00,0


146 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 3 (continuação)

Tempo de moradia em São Paulo Número %


(anos)

O a 4 98 6,4
4 a 9 121 7,9
10 a 29 679 44,5
30 a 49 146 9,6
5 0 a mais lO 0,7
não s e aplica 464 30,4
sem informação 7 0,5

Total 1 . 525 1 00,0

associações entre o sofrimento exibido pelos indivíduos ali


referidos e determinadas condições de organização do traba­
lho ali realizado, uma vez que um tempo significativo da vida
daquelas pessoas acontece naquele ambiente. Tentar medir
uma coisa ( "o sofrimento" ) e outra ("condições de traba­
lho") é querer sair da esfera do individual, enquanto manifes­
tações singulares que atuam sobre os indivíduos e os impres­
sionam, para buscar alcançar uma esfera coletiva de análise,
na medida em que determinadas condições de trabalho esta­
riam atingindo um objeto, trabalhadores, que, enquanto tais,
recebem de forma igual ejou diferente tais manifestações.
O que se perde em profundidade se deve recuperar em
extensão, foi a lógica que animou a partir de: l º ) um instru­
mento confiável submetido a um processo de validação cien­
tificamente adequado (SRQ); 2 Q ) o uso de um segundo
instrumento para detecção de uso abusivo de álcool, embora
com problemas de validação para os não usuários de bebidas
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 147
Tabela 3a - Distribuição de freqüência de características da
força de trabalho do Hospital. São Paulo 1989 (THS) .

Características Número %

Cor
Branco 989 66
Mulato 261 18
Negro 149 lO
Amarelo 51 3
Outros 40 3

Estado Marital
Solteiro 716 47
Casado 589 39
Separado 1 36 9
Viúvo 30 2
Outros 49 3

Naturalidade
Grande São Paulo 46 1 30
Interior de São Paulo 351 23
Outro estado 678 45
Outros países 29 2

Tempo de moradia em São Paulo


Menos de 4 anos 98 6
5 - 9 anos 121 8
l O 29 anos
- 679 45
30 + anos 1 56 lO
Sempre morou e m São Paulo 464 31

( CAGE); e 3 Q ) a s técnicas habituais de consulta de morbida­


de referida, de ampla utilização, embora de alcance limitado,
a desencadear um processo de investigação, onde os próprios
instrumentos estariam sob observação.
148 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Nesta ordem de prioridades, examinou-se as respostas e por
ocasião dos procedimentos analíticos e estatísticos para testes de
hipóteses, privilegiou-se os dados obtidos pelo SRQ (Schedule
Research Questionaire) adaptado por Mari, Williams ( 1986),
por considerá-lo melhor validado e mais confiável.
A propósito da validade de um instrumento, Selltiz et alii
assinalam "a validade de um instrumento de medida pode ser
definido como a extensão com que as diferenças de resulta­
dos obtidos com tal instrumento refletem diferenças reais
entre os indiví�uos, grupos ou situações quanto à caracterís­
tica que procura medir, ou diferenças reais no mesmo indiví­
duo, grupo ou situação de uma ocasião para outra e não
erros constantes ou casuais" 11 4.
Com relação à confiabilidade do SRQ para discriminar
sintomas psicoemocionais tomados como expressão de sofri­
mento psíquico e as quatro questões do CAGE, específico
para detecção do hábito de beber, foram tomadas num único
momento, c9m as questões mescladas numa mesma folha de
papel na segunda fase ( 1 . 1 8 1 questionários) uma vez que na
primeira fase ( 344 questionários) as questões ordenadas em
separado (primeiramente as vinte questões do SRQ seguidas
das quatro do CAGE) suscitaram respostas exasperadas do
tipo "não bebo!", "não sou bebum" etc.
Em ambos os instrumentos foi estabelecido um ponto de
corte acima do qual os indivíduos seriam considerados "sus­
peitos" para sintomas de sofrimento psíquico ou de uso ex­
cessivo de álcool, mantendo-se os escores de sete para o SRQ
(conforme trabalho de validação para a população do municí-

114Aimeida F., N. Epidemiologia sem números, Editora Campus, Rio de


Janeiro, 1989.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 49
pio de São Paulo desenvolvido por Mari ( 1986 ), e para o
CAGE o escore seria dois, conforme também trabalho de
validação desenvolvido por Masur e col. ( 1985 ) ) .
No exame das freqüências simples das vinte e quatro
questões aplicadas, observou-se a tendência decrescente de
sintomas para o SRQ que se segue:
1 º . Sente-se nervoso, tenso ou preocupado? 52,2%
2 º . Sentindo-se triste ultimamente? 33,9%
3 º . Dores de cabeça freqüentes? 28,7%
4 º . Dorme mal? 26,3%
5 º . Assusta -se com facilidade? 26,2%
6 º . Sensações desagradáveis no estômago? 25,6%
7 º . Dificuldades de realização satisfatória das
atividades diárias? 23,4%
8 º . Tem má digestão? 2 3,3%
9 º . Dificuldade para tomar decisões? 22,9%
1 O º . Falta de apetite? 1 8,3%
Para o CAGE a freqüência decrescente de respostas posi-
tivas assim se coloca:
1 º . Deveria diminuir a bebida? 4,5%
2 º . Sente-se Chateado por beber? 2,9%
3 º . Aborrece-se com o modo como as pessoas
criticam o seu modo de beber? 1 ,4%
4 º . Bebe de manhã para ressaca? 0,5%
A presença de 20,8% de SRQ positivos, ou seja, os traba­
lhadores que responderam ao instrumento de "screening"
para distúrbios psicoemocionais, que apresentaram uma mé­
dia de respostas positivas superior ao ponto de corte estabe­
lecido para a condição de "suspeição" para distúrbios psí­
quicos (SRQ 20), coloca esta população estudada num nível
semelhante aos demais estudos de prevalência de distúrbios
1 50 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
psíquicos realizados no país, o que estimula considerar que o
SRQ incluído na composição do THS como um instrumento
adequado para medir sintomas indicativos de sofrimento psí­
quico em população de trabalhadores, embora não tenha sido
construído especialmente para tal fim.
O fato de se lidar com uma população com vínculos
empregatícios estabelecidos, e que já passou necessariamente
por um crivo de seleção, onde muito possivelmente os mais
frágeis ou mais sintomáticos não ultrapassaram a barreira dos
exames pré-admissionais, uma prevalência desta ordem é fato
bastante expressivo e impõe a análise e reflexão de correlações
possíveis com variáveis independentes que estariam atuando
na vida desses trabalhadores.
A segurança com que se transita no uso do SRQ como
instrumento de "screening" para detecção de sintomas psico­
emocionais sugestivos de distúrbios psíquicos na população
estudada, na medida em que se analisaram os dados coleta­
dos, foi inversamente proporcional ao que se experimentou
aos examinarmos os dados do CAGE para a medida de uso
de álcool entre os trabalhadores.
O fato de se ter utilizado questionário auto-aplicado, no
ambiente de trabalho, onde a informação positiva para hábito
de beber poderia introduzir algum prejuízo para as vidas pro­
fissionais dos trabalhadores, poderia ser um elemento explica­
tivo para o padrão de respostas negativas, ou até mesmo de
anotações exasperadas nos questionários, reafirmando o não
uso de bebidas alcoólicas. O certo é que, considerando as
informações disponíveis em estudos no país, que estimam de
2 a 58% a presença de alcoolismo em graus variados na popu­
lação brasileira, os achados encontrados por nós parecem su­
bestimar o que de fato acontece na realidade. Impõe-se, en-
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 151
tretanto, uma melhor observação antes de negar a adequação
do instrumento para trabalhos semelhantes.

PROBLEMAS DE SAÚDE

Dos 1 .525 trabalhadores que responderam ao questioná­


rio e excluídos os 6 questionários perdidos para esta questão,
tivemos 639 ( 42,1%) trabalhadores que referiram problemas
de saúde no hospital, nos últimos 6 meses antes da consulta.
As manifestações somáticas de distúrbios e sofrimento
psíquico são antigas e conhecidas. Frente à dificuldade de as
pessoas habitualmente elaborarem no nível de pensamento
angústias e dificuldades na esfera psíquica, pensou -se em
utilizar de modo indireto as doenças referidas para ampliar
as evidências de sofrimento psíquico dos trabalhadores. Pre­
tendia-se também avaliar a sensibilidade do instrumento uti­
lizado na detecção de doenças de atribuída etiologia psicos­
somática.
Além de aspectos óbvios, por exemplo, de 60,2% dos
trabalhadores terem tido problemas do aparelho gênito-uri­
nário numa população onde as mulheres predominam, ou
outro fator expressivo no cruzamento destes problemas com
o "screening" psicopatológico chama a atenção: o número de

"suspeitos" por alguns grupos de doenças como poliqueixas


( 57, 7%), transtornos mentais ( 5 3 , 1%), doenças mal definidas
( 50,0% ), doenças do aparelho digestivo ( 42,0%) (dentro des­
sas a "gastrite nervosa" se destaca como a queixa mais fre­
qüente) .
Embora, para efeito deste trabalho, os procedimentos de
validação do instrumento considerados foram aqueles desen­
volvidos por Mari ( 19 8 5 ) para o município de São Paulo, não
deixa de ser uma indicação sugestiva de validade do instru-
152 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 4 - Distribuição de freqüências de problemas de saú­
de referidos de suspeitos ( e não) de sofrimento psíquico da
força de trabalho no Hospital. São Paulo, 1989 .

SRQ SRQ
Problemas de saúde referidos Suspeitos Não suspeitos
Número % Número %

Aparelho gênito-urinário 96 30,5 814 68,1


Aparelho ósteo-articular 49 1 5 ,6 82 6,9
Aparelho circulatório 33 1 0,5 76 6,4
Sist. nervoso e órgãos dos sentidos 23 7,3 60 5,0
Aparelho digestivo 42 13 ,3 58 4,9
Aparelho respiratório 18 5,7 37 3,1
Transtornos mentais 17 5,4 15 1 ,3
Infecciosas e parasitários 9 2,9 15 1 ,3
Poliqueixas 15 4,8 11 0,9
Alergia 3 1 ,0 11 0,9
Endócrino, nutrição e metabólicas 5 1 ,6 9 0,8
Pele e tecido celular subcutâneo 1 0,3 4 0,3
Mal definidas 4 1 ,3 4 0,3

Total 315 100,0 1 . 196 1 00,0

mento utilizado observar-se a média de respostas posltlvas


alcançadas pelo SRQ para esses grupos de patologias.
Um outro dado de interesse é que, ao destacarmos do
quadro geral de problemas de saúde (excluídos os transtornos
mentais) aquelas patologias de provável etiologia psicossomáti­
ca, a prevalência das mesmas atingiu 20,6% no total de proble­
mas de saúde referido. Se agruparmos para efeito de discussão
etiológica as doenças psicossomáticas, as poliqueixas, os trans­
tornos mentais e as enfermidades mal definidas, teremos cerca
de 27,7% dos problemas de saúde assim representados.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇAO 153
SOFRIMENTO PSÍQUICO E AMBIENTES D E TRABALHO

Na análise dos dados brutos das variáveis independentes


sociodemográficas e do processo de trabalho, cruzadas com a
variável dependente eleita - os escores dos sintomas psico­
emocionais detectados por um instrumento sensível* - tra­
tamos de identificar entre os que trabalham no hospital quais
estariam "expostos" ao contato direto com o paciente e quais
não estariam, e examinar a tendência dos escores de sintomas
entre os dois grupos.
O critério geográfico de separar áreas técnicas ( onde o
doente recebe cuidados diretos) e áreas operacionais ( onde
isso não acontece) e observar o cruzamento com os "suspei­
tos" e "não suspeitos" de sofrimento ou distúrbio psíquico
foi um primeiro passo ( observar tabela 5 ) .
O que se observa neste quadro é que algumas áreas que
desenvolvem trabalhos técnicos de atenção a pacientes assim
como outras, de atividades de apoio, apresentam medidas de
prevalência de sintomas bastante expressivas.
Com os 20% de prevalência média salientam-se os 32%
dos suspeitos da UTI pediátrica, que já na observação direta,
durante a aplicação dos questionários, chamou-nos a atenção
por se tratar de uma área exígua do hospital com um ritmo
de trabalho bastante tenso e onde a presença constante de
crianças com patologias graves deveria mobilizar conteúdos
afetivos intensos, num contingente de trabalhadores predo­
minantemente feminino, onde a possibilidade de identifica­
ção com filhos e familiares adoecidos deverá ser freqüente.
*Sensibilidade aqui vista como "a capacidade de um instrumento reco­
nhecer os verdadeiros positivos numa população", Cooper & Morgan,
1973, e que no caso específico do SRQ a teve testada entre nós por Mari,
1 986, conforme já visto.
1 54 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 5 - Distribuição de trabalhadores por área hospitalar e
freqüências de sintomas psíquicos referidos suspeitos de sofrimento
psíquico. São Paulo, 1989.

Área do hospital Trabalhadores Suspeitos de sofri-


mento psíquico
Número % Número %

Trabalham diretamente com paciente


Nefrologia (hemodiálise) 22 1 ,4 lO 45,5
UTI Pediátrica 28 1 ,8 9 32,1
Laboratório 35 2,3 ll 3 1 ,4
Enfermarias de eletivas 89 5 ,8 21 23,6
Queimados 43 2,8 10 23,3
Pronto-Socorro 186 12,2 43 23,1
Arquivo estatístico e recepção 61 4,0 14 23,0
Maternidade 1 58 1 0,4 34 2 1 ,5
Cardiologia 61 4,0 15 2 1 ,3
UTI Geral 45 3,0 9 20,0
Pediatria 98 6,4 19 19,4
Centro cirúrgico 48 3,1 8 1 6,7
Ambulatório 80 5,2 ll 1 3 ,8
Convênios 15 1 ,0 2 1 3 ,3
Radiologia 31 2,0 4 12,9

1;Jão trabalham diretamente com paciente


Ortese e prótese 6 0,4 4 66,7
Centro de materiais 23 1 ,5 lO 43,5
Farmácia 41 2,7 12 29,3
Rouparia 78 5,1 19 24,4
Centro de processamento de dados 10 0,7 2 20,0
Nutrição e dietética 1 03 6,8 20 1 9 ,4
Manutenção 46 3,0 7 1 5 ,2
Faturamento 28 1 ,8 • 4 14,3
Serviços gerais 72 4,7 9 1 2,5
Administração 67 4,4 8 1 1 ,9
Superintendência 9 0,6 1 1 1 ,1
Áreas de apoio 24 1 ,6 2 8,3
Almoxarifado 13 0,9 1 7,7
Gasoterapia 5 0,3

Total 1 . 525 1 00,0 317 20,8


O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 155
Uma outra taxa expressiva é os 45,5% da nefrologia, onde
um serviço de hemodiálise atende pacientes renais crônicos com
prognósticos sombrios ("condenados à morte") que aguardam
descobertas de drogas milagrosas ou a possibilidade de trans­
plante para se livrarem do ritual regular das idas ao Serviço para
purificar-se das toxinas não excretadas pelo mau funcionamento
dos seus rins. A presença de crianças nesta unidade também é
freqüente e mereceria uma abordagem posterior.
Quando assinalamos a necessidade de se desenvolverem
estudos de uma outra ordem para buscar estabelecer relações
de determinação sobre esses primeiros achados exploratórios
é porque não nos parece satisfatório explicar graus distintos
de sofrimento psíquico detectável por instrumento padroni­
zado, levando em conta apenas o já consagrado e estabeleci­
dp entre os profissionais de saúde sobre locais de trabalho
mais ou menos ansiogênicos ou estressares.
Tivemos algumas surpresas ao observarmos, por exemplo,
a Unidade de Queimados que, lidando com quadros dramá­
ticos, quer de natureza fisica quer emocional (não esquecer
das histórias pregressas dos pacientes, onde queimaduras pro­
vocadas por tentativas de suicídio, homicídio, acidentes intàn­
tis, explosões domésticas e fabris e outros são a rotina da
unidade), acum_ula numa pequena área fechada uma quanti­
dade significativa de problemas intensos. Apesar disso, foi um
dos locais onde encontramos uma maior coesão intra-equipe.
Tal fato nos fez lembrar o trabalho de Libouban ( 1985) que,
ao analisar cargas psíquicas num ambiente hospitalar, identifi­
ca cinco tipos de estratégias defensivas utilizadas pelo pessoal
do hospital para proteger-se da sobrecarga emocional e afeti­
va face ao contato com a dor e sofrimento: l Q . a coesão in­
terna entre a equipe baseada numa ajuda mútua; 2 Q. a hipe-
1 56 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
ratividade verbal ou cinética como modo de afastar a angús­
tia; 3 Q . o absenteísmo como expressão da falência de defesas
competentes para o enfrentamento de dificuldade; 4 Q . a ver­
balização de questões não vinculadas ao trabalho - os chis­
tes e as anedotas como válvula de escape da tensão; e 5 Q . a
agressividade reativa contra o paciente através de zombarias,
colocações cínicas e ridicularizações como fumaça encobrido­
ra de sentimentos de culpa desencadeados pela exibição do
sofrimento do outro, evitando que se coloquem numa posi­
ção de fragilidade, passividade e sensibilidade.
A observação direta da unidade de queimados, por exemplo,
durante a aplicação dos questionários, oferecia uma demonstra­
ção didática de alguns desses mecanismos inconscientes de de­
fesa através das falas e gestos dos seus trabalhadores.
A organização interna alcançada parece valorizar muito a
presença e atividade de cada um, criando compromissos entre
os seus integrantes. O isolamento imposto pelo controle da
infecção hospitalar favorece o estabelecimento de uma cultu­
ra interna própria, que igualmente suscita investigações com­
plementares de sua lógica de funcionamento.
Um achado interessante se encontrou ao compararmos as
expectativas prévias e os escores de "suspeitos" da UTI Geral
e Maternidade. Na primeira, vista a UTI como um ambiente
fechado e tenso onde o manejo de situações intensas e peno­
sas, o dano psíquico estaria fatalmente espelhado, utilizando­
se de qualquer instrumento de detecção. A maternidade, de­
sempenhando suas funções de ajudar a fisiologia humana a
trazer bebês ao mundo, trazia a expectativa de local de traba­
lho paradisíaco quando comparada com outros setores do
hospital. Além da prevalência de sintomas acima da média, a
observação direta de campo, particularmente nos plantões
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 57
noturnos na maternidade, nos alertou para uma série de difi­
culdades no plano da organização do trabalho e das relações
de poder que também estimulariam futuros estudos para bus­
car entender tal fenômeno.
Outras áreas, embora com um número de funcionários
(N) pequeno (o que nos impede de fazer maiores conjetu­
ras), surpreenderam-nos pelos altos percentuais de "sintomá­
ticos" lá encontrados ( órteses e próteses, centro de materiais,
rouparia, centro de estudos etc . ) .

DNISÃO D E TAREFAS

Sobre a clássica discussão de divisão do trabalho na qual


destacamos elementos mais gerais quando vimos a divisão
sexual do trabalho feminino, interessar-nos-ia neste momento
examinar a percepção dos trabalhadores sobre a divisão coti­
diana de tarefas e como o sentimento de considerar adequada
ou não tal divisão estaria repercutindo na saúde mental dos
trabalhadores.
Na análise dos dados agrupados, pode-se perceber uma

Tabela 6 - Distribuição da força de trabalho pesquisada se­


gundo sintomas referidos e opinião de adequação (ou não)
de tarefas rotineiras.

Divisão de tarefas Suspeito Não suspeito


Número % Número %

Inadequada 107 30,3 246 69,7


Adequada 207 1 8 ,2 932 8 1 ,8

Total 314 2 1 ,0 1 . 1 78 79,0


1 58 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
maior prevalência de "sintomáticos" (SRQ+ ) entre os que
consideram inadequada a divisão do que entre os que a con­
sideram adequada, numa proporção de 1 ,65 por um pela
razão de produtos cruzados.

TEMPOS DE EXPOSIÇÃO AO TIPO DE TRABALHO

Observando-se a tabela a seguir (7) percebe-se uma coin­


cidência de maior prevalência de sintomas nos trabalhadores
que trabalham de cinco a quatorze anos na profissão e tam­
bém entre os que trabalham em igual faixa de tempo no
hospital estudado. Acompanham mais ou menos o mesmo
perfil nas demais faixas de tempo, dando a impressão de que
as pessoas chegam na profissão e na instituição mais "saudá­
veis", e com o passar do tempo se tornam mais "sintomáti­
cas" e tendem a se defender melhor quando este tempo ul­
trapassa os quinze anos de trabalho, o que se refletiria em
menores taxas de sintomas neste intervalo de tempo.

Tabela 7 - Distribuição de freqüência de suspeitos de sinto­


mas referidos segundo tempo de trabalho na profissão e tem­
po de trabalho no Hospital. São Paulo, 1989 .

Tempo Trabalhadores na profissão Trabalhadores no hospital


(anos) Número Prevalência % Número Prevalência %

< 1 20 1 7,39 28 16,28


1 -4 113 22,87 119 20,62
5 - 14 74 2 1 ,1 4 64 24,33
15 + 35 1 8 ,82 31 2 1 ,53

Total 242 21,13 242 20,93


O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 59
O RITMO DE TRABALHO

A maioria dos trabalhadores (53,2%) considerou entre in­


suficiente e corrido o tempo disponível para o desempenho das
atividades, e é interessante observar que ficaram nestes grupos
os maiores percentuais de "sintomáticos" (observe tabela 8 ).
Para os que consideraram mais que suficiente o tempo
existente para as tarefas, a prevalência de sintomas se situou
acima da média dos trabalhadores do hospital, o que levanta
suspeitas com relação à falta de crítica ou desenvolvimento de
rotinas neuróticas compensatórias neste grupo específico,
embora com o estudo aqui desenvolvido não possamos apoi­
ar nenhuma dessas hipóteses. Teríamos também de conside­
rar o grau de organização individual para administrar as tare­
fas diárias de trabalho de cada trabalhador.

O CONTROLE DO TRABALHO

O conhecimento dos diversos passos e a participação do

Tabela 8 - Distribuição de freqüência de suspeitos de sinto­


mas referidos na força de trabalho pesquisada segundo a per­
cepção do tempo disponível para o desenvolvimento das tare­
fas rotineiras. São Paulo, 1989.

Tempo disponível Suspeitos de sintomas referidos


Número Prevalência percentual %

Insuficiente 45 29
Corrido 1 54 23
Suficiente 1 09 16
Mais d e suficiente 7 23

Total 315 2l
1 60 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 9 - Distribuição de freqüência de suspeitos de sintomas
referidos na força de trabalho pesquisada segundo participação
no planejamento de atividades do Hospital. São Paulo, 1989.

Participação Suspeito de sintomas referidos


Número Prevalência percentual %

Sim 182 20
Não 1 28 23

Total 310 21

processo de tomada de decisão no planejamento das ativida­


des se constitui no instrumento possível de delegação ao tra­
balhador de sua condição de sujeito no processo de trabalho,
contribuindo para a desalienação do trabalho e redução do
sentimento de "estranhamento", freqüente nos ambientes de
trabalho onde o trabalhador é transformado em mero execu­
tor de prescrições isoladas e estereotipadas. Tal atitude em
atividades onde interessa um envolvimento e interação huma­
na tenderia a criar estereotipias de conduta dissociadas e bu­
rocratizadas de grande prejuízo para os usuários de um servi­
ço hospitalar, por exemplo, que necessita estímulos humanos
para a sua recuperação.
Na observação dos dados anteriores percebeu-se que a
maioria dos trabalhadores deste hospital participa do planeja­
mento do hospital, e entre os que não participam a prevalên­
cia de sintomas é maior, onde se pode inferir que o controle
e participação no processo de trabalho protege melhor o tra­
balhador (independente dos beneficios que possa trazer aos
usuários dos seus serviços) .
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇAO 161
Tabela 1 0 - Prevalência de "suspeitos" (SRQ+ ) de trabalha­
dores do hospital segundo pressão da chefia. THS/89.

Sintomas Suspeitos Não suspeitos Total

Pressão da chefia Número % Número % Número %

Muito 41 4 1 ,8 57 58,2 98 6,5


O necessário 99 2 1 ,5 361 78,5 460 30,5
Pouco 75 24,3 131 75,7 1 73 1 1 ,5
Nào pressiona 83 1 7,0 644 83,0 1 32 1 7,0

Total 3 14 20,8 1 . 193 79,2 1 . 507 100,0

Casos Perdidos: 1 8

AS PRESSÕES

A presença do chefe é referida por 1.033 trabalhadores ou


69,1% deles. Os demais 30,9% trabalham sem a presença do chefe.
Embora a pressão da chefia seja vista como um indicador
clássico de sobrecarga e tensão no trabalho, devemos exami­
ná-la aqui com algum cuidado. A presença do chefe pressio­
nando poderá estar significando uma sobrecarga de trabalho,
mas a sua ausência poderá estar significando também um
abandono das equipes de trabalho à sua própria sorte, ampli­
ando em muito as ansiedades advindas da falta de suporte
técnico e administrativo para que esses trabal�adores corres­
pondam às inúmeras demandas dos pacientes e familiares.
Como se observa, "muita" pressão da chefia se associa a
um padrão elevado de sintomáticos positivos, seguindo-se de
"pouca" pressão. A pressão necessária e a "não pressão" atin­
gem as menores taxas, reforçando a percepção de que a pres-
1 62 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
são da chefia é tensiogênica mas é seguida, a nível de produ­
ção de tensão, pelo "abandono das chefias" e conseqüente
ausência de supervisão e acompanhamento dos trabalhos de
campo.

REPETITIVIDADE / MO�OTONIA
Apesar da pluralidade de atividade desenvolvida num
hospital do tipo investigado, 25 ,6% dos seus trabalhadores,
examinando suas tarefas cotidianas "per se", classificam
como "sempre as mesmas" as atividades que desempenham.
Juntando-se aos que informaram "varia pouco", ou "pouco
dependendo do dia" ou "sempre as mesmas dependendo do
dia" ou ainda "sempre as mesmas variando pouco", teremos
52,3% de trabalhadores que consideram suas atividades repeti­
tivas.
Na correlação desta variável com as medidas de sofri­
mento psíquico utilizadas para os que referiram "variar mui­
to" suas atividades diárias, foi onde se observou a mais baixa
prevalência de sintomas ( 1 6,4% ) ; as demais combinações
apresentaram achados não conclusivos para um exame de
tendência.

Varia muito dependendo do dia 6


tz2Z3 Atividades

Varia pouco dependendo do dia s


17"'7'"'7'-r-7'"'7'-r-7'"'7'""'7""l
Dependendo do dia 4 ���;:!:;:�;:!;:�-.
Varia muito 3
������..,....,
Varia pouco
Sempre as mesmas 1
������
!O 15 20 25 30 %
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 63
OS DUPLOS OU MÚLTIPLOS VÍNCULOS

As dificuldades do modelo de trabalho hospitalar têm


explicações que certamente se localizam na esfera das difi c ul­
dades próprias do setor terciário, mas certamente no nosso
meio com as especificidades da sub-remuneração do setor
surgem questões de difícil manejo técnico.
Vejamos, por exemplo, as informações colhidas acerca da
vinculação exclusiva ou não com o hospital estudado. Embo­
ra grande contingente de trabalhadores dediquem sete a doze
horas nos seus postos de trabalho, 30,3% (460 deles) referi­
ram outros vínculos de trabalho. Sabemos que tal informação
está subestimada, uma vez que os próprios trabalhadores ex­
ternam temores de serem penalizados trabalhisticamente por
deverem manter, por legislação, um vínculo único com des­
canso remunerado. O que ocorre na prática é que os baixos
salários para muitos e a ideologia de ascensão social, para
outros, pressionam no sentido de assumirem dois ou mais
empregos sacrificando descanso, lazer e vida familiar. O rou­
bar do atendimento ao doente as horas de descanso que
deveriam ser vividas no repouso remunerado são práticas fre­
qüentes nos plantões de clínicas e hospitais.
Das 1 . 52 0 respostas ( cinco deixaram de responder),
1 .060 disseram trabalhar só no hospital ( 69,7%) e 460
( 30,3%) admitiram outro vínculo empregatício. Não foi ob­
servada uma maior prevalência de sintomas entre os trabalha­
dores do segundo grupo.
A visão de conjunto da tabela seguinte ( tabela l l ) serve
para examinarmos as situações de turnos de trabalho, jorna­
das diárias e o critério geográfico de trabalhar ou não direta­
mente com pacientes, e de suspeição para sintomas psicoe­
mocionais e uso abusivo de álcool.
1 64 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Turnos de trabalho - A grande maioria dos
funcionários trabalha durante o horário diurno: 922, ou 60,45%,
em regime regular de trabalho e mais 187, ou 12,26%, em
plantões diurnos de 12/36 horas. Fica para o trabalho noturno
fixo 127, ou 8,32% dos funcionários, aos quais se acrescentam
221 , ou seja, 14,49% que trabalham em plantões de 1 2/36
horas/noite. Fica evidente um número menor de funcionários à
noite, embora em algumas unidades o fluxo de atividades per­
maneça constante.
O que se observa nos cruzamentos é que a prevalência de
distúrbios observáveis dos diferentes modos (doenças psicos­
somáticas, transtornos mentais, SRQ e CAGE) é maior para
os turnos alternados. No trabalho noturno se apresenta uma
maior prevalência de transtornos mentais.
Jornada de trabalho - As jornadas de trabalho diárias
oscilam entre quatro e vinte horas diárias (estando entre os
últimos médicos residentes, que acumulam plantões extras
pela alegada razão de sobrevivência, técnicos de RX, labora­
taristas, auxiliares e atendentes de enfermagem, que mantêm
dois ou mais vínculos regulares de trabalho diário) .
O trabalho de meio-período, jornadas de quatro a seis
horas deve significar uma segunda jornada de trabalhos do­
mésticos, considerando a mão-de-obra feminina que o hospi­
tal abrange.
No exame da tabela, os que trabalham mais de doze horas
são campeões em doenças psicossomáticas, transtornos mentais,
sintomas psicoemocionais e abuso de bebida alcoólica.
As jornadas de quatro a seis horas aparecem como melhor
protegendo dos transtornos mentais e uso abusivo de álcool,
mas não protegendo tanto dos surgimentos de sintomas psi­
coemocionais e doenças psicossomáticas. Talvez outras variá-
Tabela 11 - Distribuição de freqüência de suspeitos de sintomas referidos pelo SRQ, pela
CAGE, por doenças psicossomáticas e por doenças mentais na força de trabalho pesquisada
do segundo turno de trabalho. São Paulo, 1989.

Turnos Suspeitos pelo SRQ Suspeitos pelo CAGE doenças • psicossomá- Transtornos
ticas referidas mentais referidos
Número Prevalência Número Prevalência Número Prevalência Número Prevalência
percentual percentual percentual percentual o
:r
o
Diurno 1 86 20 13 1 128 14 12 1 V>

Noturno 25 20 1 1 10 8 6 5 :::!
Alternado 105 23 9 2 80 17 7 2 �
Total 3 16 21 23 2 218 15 25 2 (1
o
;!::
Jornada o
De 4 a 6 1 05 23 5 1 71 15 5 1
De 7 a 12 183 19 17 2 1 39 15 17 2 �
"'
13 + 15 38 1 3 7 18 2 5 o
o
Total 303 21 23 2 21 15 24 2 >

Contato com
pacientes

::l
Sim 205 22 1 19 13 18 2 Cl
>
Não 1 12 20 101 18 8 1 o()
>•
Total 317 21 220 15 26 2 o

-
* doenças psicossomáticas: gastrites nervosas, asmas brônquicas, alergias. 0..
<:Jl
1 66 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
veis como sexo, por exemplo (há um grande contingente de
mulheres trabalhando durante o dia), possam estar explican­
do este comportamento. As jornadas intermediárias de sete a
doze horas apresentam prevalência menor de sintomas psico­
emocionais e doenças psicossomáticas.
Contato ou não contato com pacientes segundo critério geo­
gráfico de área - Embora as áreas que trabalhem diretamen­
te com pacientes apresentem prevalências discretamente mai­
ores para sintomas psicoemocionais e transtornos mentais,
para doenças psicossomáticas a situação se inverte, e quem
trabalha em atividades de apoio parece adoecer mais.

ALGUMAS VARIÁVEIS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO E SÓCIO-ECO­


NÓMICAS - MEDIDAS DE ASSOCIAÇÃO

Uma vez examinada a tendência da totalidade das variá­


veis em estudo e levando-se em conta o comportamento des­
sas variáveis, as informações existentes na literatura e toman­
do sempre como referência as hipóteses iniciais deste traba­
lho, elegemos algumas delas para medir a força ou magnitude
da associação estatística entre fatores de exposição ou de ris­
co� ou seja, determinadas condições de trabalho ou caracte­
rísticas sócio-econômicas, por nós escolhidas, e o sofrimento
psíquico dos trabalhadores.
Utilizamos como medida da associação o "ODDS-Ra­
tio " * . Conceitualmente ela é uma medida de razão que divi­
de um valor observado de uma população pelo valor de uma
outra população que serve como referência. Desta forma, o
valor do grupo de estudo é tomado como o valor "observa-

* Risco relaciona! é a terminologia adotada por Guilherme Rodrigues


da Silva para a mesma medida de associação.
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 67
do", enquanto se considera o valor da população de referên­
cia o valor "esperado". Portanto, as medidas de razão têm
habitualmente a forma do observado dividido pelo esperado.
Teríamos, a partir disto, a medida do excesso de risco que o
grupo exposto a determinados fatores de agravo teria sobre o
outro grupo "não exposto", expresso como uma razão. Ra­
zão esta que deverá ser sempre maior que 1 (um) quando
houver uma diferença de risco entre os "expostos" e os "não
expostos" a determinadas condições em estudo.
As condições de "exposição" escolhidas tiveram a ver
com: l . Contato ou não contato com o paciente, avaliando a
natureza do trabalho e para tal estratificação destacamos:
a) os trabalhadores de enfermagem (enfermeiros, técnicos,
auxiliares e atendentes) e b) os demais trabalhadores. 2 . Jor­
nada de trabalho em estratos de até oito horas e mais de oito
horas. 3 . Os turnos de trabalho foram transformados em
tabela dicotômica de turnos alternados e não alternados. 4. A
disposição ao final da jornada de trabalho em querer descan­
sar num estrato e divertir, trabalhar e estudar no segundo. S .
Sexo, idade e estratificação sócio-econômica pelo j á consagra­
do poder de interferência e modificação nas associações entre
sintomas ou enfermidades e fatores de exposição ou risco,
entrariam naturalmente num programa de análises.
Caberia então examinar por que medir e como medir as
associações levantadas nas hipóteses de trabalho. Em verda­
de utilizamos os testes estatísticos para quantificar a probabili­
dade de uma associação observ:1da ser devida ao acaso, em vez
de ser uma associação verdadeira na população-fonte. Um teste
estatístico pode determinar até que grau os dados estão consis­
tentes com uma hipótese específica ou não. Habitualmente
faz-se uma primeira suposição de que as taxas de ocorrência de
1 68 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
um sintoma ou enfermidade numa população são iguais para
os grupos "expostos" e "não expostos" ao fator que estamos
estudando, portanto, não há associação entre sintoma e expo­
sição. A isso chamamos de "hipótese nula".
Um outro índice de variabilidade estatística da associação
é o intervalo de confiança (LS limite superior e LI limite
= =

inferior) que nos diz a extensão dentro da qual o valor "real",


consistente com os dados do estudo, se situa. No nosso caso
utilizam�s o intervalo de confiança do valor do ODDS- Ratio,
e sempre que o 1 (um) esteve incluído na sua extensão con­
sideramos a hipótese nula.
Calculamos em seguida uma medida de associação (no
nosso caso ODDS-Ratio ou Razão de ODDS ) . Depois calcu­
lamos a probabilidade (o p) de observar uma associação igual
ou maior que aquela observada no estudo, se a hipótese nula
fosse realmente verdadeira. Uma probabilidade muito peque­
na significa que é muito pouco provável observar uma tal
associação se fosse verdadeira a hipótese nula. Conseqüente­
mente, pode-se rejeitar a hipótese nula em favor da hipótese
alternativa de que a exposição e o sintoma ou doença estão
associados na população estudada. Existem possibilidades de
erros estatisticamente previstos, mas na prática costuma se
estabelecer 0,05 . ( 5%) como um valor arbitrário contra o qual
se compara o valor de p. Se o valor p for menor que o
arbitrado, aceita-se a hipótese testada como verdadeira.
Uma vez se encontrando uma associação verdadeira, cabe
ainda observar a probabilidade "exata" de esta associação ser
verdadeira. Para tal utilizamos o teste do Qui - Quadrado,
que apesar de não conseguir penetrar na consistência dos
dados (não conseguindo medir por exemplo vieses de seleção
de dados), quantifica a probabilidade estimada em p .
O HOSPlTAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 1 69
A tabela que se segue ( 1 2 ) é o recorte escolhido para a
análise cujos títulos explicam a associação examinada, toman­
do-se sémpre como hipótese que o fator disposto na casela A
horizontal teria uma relação de determinação com a caracte­
rística A da linha vertical da tabela.
Nelas temos calculado:
ODD Razão de ODDs ou Risco Relaciona!.
=

LI Limite inferior do intervalo de confiança.


=

LS Limite superior do intervalo de confiança.


=

p probabilidade da associação se dar ao acaso.


=

X2 medida "exata" da probabilidade da associação.


=

ANÁLISE TABULAR ESTRATIFICADA PARA MEDIDA DE MODIFICAÇAO


DE EFEITO

A modificação de efeito significa que o grau da associação


entre um fator de risco ou exposição e a sua conseqüência varia
em distintos subgrupos da população. Embora partam de uma
mesma técnica de procedimentos metodológicos, "modificação
de efeito" é totalmente diferente de "confundimento", que é
uma distorção, uma descrição enganosa de uma associação en­
contrada entre fator de exposição e sintomas ou doenças. En­
quanto o confundimento distorce e deve ser eliminado, a modi­
ficação de efeito informa a possibilidade de subgrupos mais sus­
cetíveis ou mais resistentes a determinados fatores de risco.
A modificação de efeito é para o epidemiologista uma
intenção secundária ou uma interação de três caminhos. Veja­
mos, na relação: A fator, B conseqüência e C um outro fator
por ação de uma modificação de efeito, A estaria determinan­
do B mas, na presença do terceiro elemento C, esta relação se
tornaria mais ou menos forte A + __.. B na dependência
I _;:.._.­
c -
1 70 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 12 Freqüência de força de trabalho P.esquisada se­
-

gundo presença (ou não) de sintomas referidos de sofrimento


psíquico e características especificadas com respectivo trata­
mento estatístico e testes de significância.

Características Sofrimento psíquico Risco Significáncia


especificadas Suspeito Não suspeito relaciona/ estatística

Tipo de trabalhador
Enfermagem 168 531
1,44 Significante
Outros trabalhadores 148 675

Jornada de trabalho
Mais de 8 horas 170 656
1,01 Não significante
Até 8 horas 130 496

Turno de trabalho
Alternado 186 736
0,89 Não significante
Não alternado 130 458

Disposição após final


da jornada de trabalho
Descansar 259 693

Divertir + trabalhar + 3,29 Significante


estudar 55 404

Sexo do trabalhador
Feminino 250 759
2,21 Significante
Masculino 66 443

Extrato sócio-econômico
Baixo 101 281
I ,95 Significante
Alto 46 249
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO 171
do subgrupo que se estivesse considerando. A presença da
modificação de efeito quer dizer simplesmente que o grau de
associação entre os fatores de risco ou exposição e a conse­
qüência difere em grupos diferentes.
No presente estudo, os passos que se seguiram no sentido
de avançar para uma análise estratificada, controlada por ou­
tras variáveis de provável efeito modificador ou confundidor,
foi, a partir das medidas de associação feitas anteriormente,
estratificar-se os dados e controlar-se pelas variáveis modifica­
doras e/ou confundidoras.
Para essa etapa dos trabalhos, utilizou -se o programa
SAS-PC ( Cochram-Mantel-Haenszel Statistics - Based on
table Scores), e, de modo artesanal, foi-se introduzindo uma
a uma as possíveis variáveis com potencial de modificação.
Operando sempre com tabelas 2 x 2 (com variáveis não dico­
tômicas como idade e estrato sócio-econômico utilizou-se do
expediente de trabalhar dois a dois os estratos da tabela).
Mediu-se então as associações "estratificadas" utilizando-se o
Risco Relaciona! sumarizado, ou ODDS-Ratio sumarizado
ou sintético ( ODDs) conforme proposto por Mantel-Haen­
sel. Observou-se também os intervalos de confiança dessas
medidas (LI e LS), a probabilidade de elas acontecerem ao
acaso (p) e a homogeneidade ou heterogeneidade entre os
ODD encontrados nos diversos estratos através do teste de
"heterogeneidade", que tem a utilidade de identificar rela­
ções entre variáveis.
Na tabela 1 3 se pode observar um consolidado das
. diversas tabelas, dos diversos estratos e suas medidas calcu­
ladas .
Um achado interessante foi o crescimento proporcional
das prevalências de sintomas na medida em que o estrato
1 72 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Tabela 13 - Risco relaciona! ( ODDS-Ratio) entre diversas
variáveis e sofrimento psíquico de trabalhadores, utilizando­
se modelo de análise estratificada controlada por outras vari­
áveis. São Paulo, 1989.

Variável Controle Risco Signiftcância


relaciona! estatística

Natureza do Sem 1 ,44 Significante


trabalho
Por sexo, estrato,
idade, jornada, turno 1 ,04 Não significante
Por cansaço 1 ,53 Significante

Jornada Sem 0,98 Não significante

Por sexo, estrato,


idade, jornada, turno 1 ,02 Não significante
Por cansaço 0,89 Não significante

Turno Sem 0,89 Não significante

Por sexo, estrato,


idade, jornada, turno 1 ,09 Não significante
Por cansaço 0,92 Não significante

"Cansaço" no Sem 3,29 Significante


fim da
jornada de Por sexo, estrato,
trabalho idade, jornada, turno 3,01 Significante
Estrato 1 4,70 Significante
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAÇAO 1 73
Tabela 14 -Análise de tendência linear das proporções de
"suspeitos" de sofrimento psíquico nas categorias de estratifi­
cação sócio-econômicas, controladas por sexo.

Características Sofrimento psíquico (SRQ) Proporção


percentual de
Suspeito Não suspeito suspeitos %

Feminino
Baixo 83 1 18 31
Médio 1 17 360 23
Alto 33 129 20

Masculino
Baixo 18 90 17
Médio 29 1 79 13
Alto 13 1 20 10

Total 293 996

Risco relaciona! = 2,13

sócio-econômico decrescia, quer no estrato feminino quer no


masculino, observados através de uma análise de tendência
linear* das categorias de estratificação sócio-econômica, con­
troladas por sexo. Tal procedimento, possível para variáveis
do tipo ordinal, nos permite visualizar a associação inversa de
crescimento de prevalência de sintomas e estratificação social,
conforme podemos observar na tabela 1 3 .

*A respeito de "análise de tendência linear em tratamento estratifica­


dor", in Mantel, N. Chi-Square Tests with one Degree of Freedom; Exten­
sions of the Mantel-Haensel Procedure, American Statistical Association
Journal1 USA, set. 1 963:690-700.
1 74 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Na análise do conjunto de tabelas necessárias aos contro­
les realizados chamou-nos a atenção o comportamento da
variável sexo, que além de manter uma forte associação entre
mulheres e sofrimento psíquico, controlada pelas demais vari­
áveis estudadas (M.H5 • = 2,28), foi capaz de tornar menor ou
não significante a associação das outras variáveis de condições
de trabalho em estudo, quando por ela controladas.
Observou-se ainda que o trabalhador do estrato sócio­
econômico baixo, quando comparado com o do alto e con­
trolado pelas variáveis em estudo, apresentou uma maior pro­
babilidade ( M.H.ç- = 1 ,97) de sintomas psíquicos, reduzindo­
se tal probabilidade ( M.H5• = 1 ,56) quando se comparou o
estrato sócio-econômico médio com o alto.
Um nível mais fraco de intensidade da associação foi visto
examinando-se a variável idade na relação de sintomas pelos
três estratos de idade considerados. Os trabalhadores com
mais de 40 anos, quando comparados com aqueles na faixa de
idade abaixo de 25 anos, demonstraram uma maior probabi­
lidade de apresentar sintomas ( M.Hs. = 1 ,46) se comparados
com a relação entre os mais jovens ( <25 anos) e os localiza­
dos no estrato etário médio de 25 a 30 anos (M.H5• = 1 , 3 1 ) .
A idade pareceu não interferir no controle das demais variá­
veis por ela controladas.
As variáveis sexo e estratificação sócio-econômica pare­
cem se constituir em importantes modificadores de efeito na
relação estudada de "condições de trabalho" e "sofrimento
psíquico", nos procedimentos até aqui realizados. ·
O HOSPITAL COMO CAMPO DA INVESTIGAçAO 1 75
Um nível mais fraco de intensidade da associação foi visto
examinando-se a variável idade na relação de sintomas pelos
três estratos de idade considerados. Os trabalhadores com
mais de 40 anos, quando comparados com aqueles na faixa de
idade abaixo de 25 anos, demonstraram uma maior probabi­
lidade de apresentar sintomas (M.H5• = 1 ,46) se comparados
com a relação entre os mais jovens ( >25 anos) e os localiza­
dos no estrato etário médio de 25 a 30 anos ( M.H5• = 1 ,3 1 ).
A idade pareceu . não interferir no controle das demais variá­
veis por ela controladas.
As variáveis sexo e estratificação sócio-econômica pare­
cem se construir em importantes modificadores de efeito na
relação estudada de "condições de trabalho" e "sofrimento
psíquico", nos procedimentos até aqui realizados.
Quarta Parte
Capítulo 7

ALGl!MAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

A passagem da verdade/prova à verdade/


constatação é sem dúvida um dos processos mais
importantes na história da verdade, ainda que a
palavra "passagem" não seja inteiramente ade­
quada, pois não se trata aí de duas formas estra­
nhas entre si que se oporiam e das quais uma
triunfaria sobre a outra. A verdade/constatação
na forma do conhecimento talvez não passe de
um caso particular da verdade/prova na forma
do acontecimento; acontecimento que se produz
como podendo ser de direito repetido sempre e
em toda parte ... É essa forma singular de pro­
dução da verdade que pouco a pouco foi
recobrindo as outras formas de produção da
verdade e que, ou pelo menos, impôs sua forma
como universal.

Michel Foucault, 1979

- SE QUISÉSSEMOS IMAGINAR UM PADRÃO DOS TRA­


balhadores do hospital estudado, diríamos que ele seria es­
sencialmente feminino, solteiro, branco, migrante, numa fai­
xa de idade entre 25 e 40 anos, majoritariamente tendo cur-
180 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
sado até o primeiro grau, exercendo ocupações artesanais de
baixa qualificação, tendo uma renda per capita de até dois
salários mínimos.
- Trabalham de dez a doze horas por dia em turnos
fixos ou alternados. Sentem como ora corrido, ora suficiente
o tempo destinado a executar as tarefas que consideram re­
petitivas e com uma distribuição inadequada; participam do
planejamento das atividades, não fazem pausas, e quando
saem do trabalho querem descansar, sem disposição para se
divertir, estudar ou continuar trabalhando.
- Consideram o trabalho insalubre e perigoso, e têm ou
tiveram problemas de saúde, em especial geniturinários, psi­
cossomáticos e osteomusculares.
- A natureza do trabalho, ao lidar com dor, sofrimento
e morte, influencia a produção de sintomas psíquicos. Para
alguns grupos ocupacionais, entretanto, até atua como fator
de proteção quando comparados com outros que, não lidan­
do diretamente com pessoas, se encontram mais lesados.
- O trabalho em turnos e noturno, neste modelo de
investigação, não apresentou significância estatística na pro­
dução de sintomas, embora o trabalho em turno alternado
noturno, isolado proporcionalmente apresentasse a maior
prevalência de sintomas psíquicos.
- As jornadas diárias de trabalho maiores que oito horas
não apresentaram significância nos procedimentos feitos. En­
tretanto na análise de dados agrupados, operando com uma
estratificação menor (mais que doze horas, por exemplo),
revelou um aumento da prevalência de sintomas.
- Entre as mulheres a prevalência de sintomas é maior
que entre os homens, e a condição feminina parece influenci­
ar de tal modo o sofrimento psíquico que, quando no proce-
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 1 8 1
dimento da análise estratificada se controla · o sexo, ele reduz
drasticamente a significação estatística em todas as demais
variáveis estudadas.
- Os que estão no estrato sócio-econômico inferior so­
frem maiores danos que os que estão no estrato médio, que
por sua vez estão piores que os de estrato alto - há uma
relação inversa entre a ascensão no estrato sócio-econômico e
os valores das taxas de proporcionalidade de sintomas psí­
quicos.
-
.A idade pareceu não influenciar significativamente
como fator de risco para o surgimento de sintomas.
- Os trabalhadores menos qualificados estão mais expos­
tos a apresentarem sofrimento psíquico.
Embora o rigor das matemáticas, ou mais provavelmente
as limitações dos que manejam os seus conceitos, imponham
uma linguagem positiva ao examinar seus resultados, não de­
vemos nos esquecer que testar estatisticamente relaciona-se
apenas a examinar o papel da sorte na explicação de uma
associação observada. Os testes de significância não levam em
conta as possíveis contribuições de vieses de seleção, de infor­
mação, confundimento, e outras fontes de erro no desenho,
execução e análise do estudo. Significância estatística indica
apenas que o acaso é uma explicação pouco provável, mas
não impossível, da associação. Os modelos estatísticos, por
mais sofisticados que sejam ou venham a ser, não prescindem
ou prescindirão jamais do juízo crítico do pesquisador que os
utiliza.
Neste trabalho buscamos avançar no sentido de examinar
a consistência das associações encontradas, embora tenhamos
claro o caráter não exaustivo desta investigação. O não en­
contrar significação estatística entre variáveis examinadas não
182 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
significa encerrar o assunto com relação à discussão acerca da
determinação de umas sobre as outras. A possibilidade de
equívocos no desenho e análise de um objeto como o aqui
estudado é de tal ordem que só a multiplicação e o aprofun­
damento de estudos semelhantes poderiam contribuir para
minimizá-los, o que certamente estará na dependência de um
maior acúmulo de pesquisas na área.
Ao tecer comentários contrários a enfoques empiricistas
categóricos, não se pretende desqualificar os métodos e técni­
cas aqui utilizados como não adequados ao exame de variá­
veis imprecisas e sujeitas a milhares de interpretações de natu­
reza ética, política, psicopatológica e outras. Temos claro que
o desafio de se construir uma nova disciplina que estude as
complexas relações da saúde e trabalho implica uma provoca­
ção de proporções não dimensionadas quando iniciamos um
processo de investigação neste campo. Concordamos com
Kuhn quando, ao discutir a "estrutura das revoluções cientí­
ficas", chega a afirmar qua a ciência normal não tem como
objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos, prefe­
rindo não ver aqueles que não se ajustam aos paradigmas já
estabelecidos. Neste sentido, a evidência empírica de um pa­
radigma ou um conjunto de paradigmas poderia significar
tão-somente a repetição compulsiva de um conjunto de
procedimentos relativamente seguros, que reforçariam a
confiança do pesquisador nos seus métodos e técnicas, satisfa­
zendo também o olhar de uma certa comunidade científica.
Entretanto, é científico perseguir o insólito, articular novas
possibilidades, "ao concentrar a atenção numa faixa de pro­
blemas relativamente esotéricos, o paradigma força os cientis­
tas a investigarem alguma parcela da natureza com uma pro­
fundidade e de uma maneira tão detalhada que de outro
·
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 183
modo seriam inimagináveis. E a ciência normal possui um
mecanismo interno que assegura o relaxamento das restrições
que limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual
derivam deixa de funcionar efetivamente"115.
Com o propósito de estabelecer relações significativas
entre o trabalho hospitalar na sua natureza e o sofrimento
psíquico dos seus trabalhadores, teve-se de enfrentar de início
o pr_oblema das reduções dos objetos no sentido de ajustá-los
a um método de abordagem que, se introduzia uma dimen­
são mais coletiva e generalizadora ao buscar agregar elemen­
tos empíricos de um expressivo contingente de trabalhadores,"
teve de, necessariamente, amputar uma franja de signos e
significados constitutivos dos objetos em análise. Nenhuma
apreensão única de um fenômeno mental ou imaginário
pode, naturalmente, representar todas as suas formas histori­
camente significativas. Para fins deste trabalho, portanto, ti­
vemos de nos contentar com um corte instantâneo. A histo­
ricidade seria recuperada na medida em que uma série de
estruturas puntiformes da investigação compusessem um mo­
saico de interpretações que estabelecesse um nexo entre as
diversas partes do objeto investigado. Afinal, uma das preten­
sões deste trabalho foi apreender elementos simbólicos, por
essência da ordem da subjetividade, como fatos empíricos
observáveis e quantificáveis com os quais se poderia inferir
associações significativas entre fatores e conseqüências psicos­
sociais.
A observância de uma fraca medida da associação entre
natureza do trabalho - o trabalho de enfermagem - e os

115Kuhn, T. S. A estrutura das revoluções científicas, Editora Perspec­


tiva, São Paulo, 1 987, p. 4 5 .
1 84 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
sintomas psicoemocionais, que foi severamente reduzida
quando controlada pela variável sexo, por exemplo, nos im­
põe uma dupla reflexão. A primeira, de ordem teórico-meto­
dológica, que nos faz argüir a adequação do desenho e dos
instrumentos de investigação como os mais sensíveis para a
apreensão da relação a ser estabelecida. Esta primeira questão
tornou-se ultrapassada, na medida em que, apesar dos cuida­
dos e relativizações, elegeu-se um desenho e instrumentos
que foram capazes de produzir os dados sobre os quais nos
debruçamos neste momento.
A segunda ordem de reflexão relaciona-se com um enten­
dimento psicodinâmico do comportamento desta associação
de variáveis. Seria o contato direto com o paciente, ou seja, o
lidar com a dor, sofrimento e morte, o elemento mais de­
terminante para a produção de sintomas psíquicos detectáveis
e utilizados como elementos indicativos do sofrimento psí­
quico dos trabalhadores no hospital?
A resposta não simples leva-nos a considerações da ordem
do indivíduo e dos mecanismos subjetivos de ajustes e adapta­
ções necessários à administração da sua economia psíquica e
como tais arranjos ou desarranjos estarão se expressando en­
quanto manifestação coletiva, à medida que desloquemos o eixo
de preocupações para o coletivo de trabalhadores submetidos a
determinadas condições de vida e trabalho.
A primeira questão a ser vista, dispondo da discussão
anteriormente feita a propósito da sublimação, é que o conta­
to direto com o paciente, na nobre função socialmente va­
lorizada de cuidá-lo e provê-lo dos elementos essenciais à sua
subsistência e recuperação, se constitui num fator de proteção
à saúde psíquica do trabalhador da área. Mesmo assisti-los no
seu leito de morte, ultrapassando cotidianamente a barreira
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 185
do medo e da comiseração de um outro submetido aos seus
cuidados, são estímulos suficientes para desencadear um
deslocamento, para fins valorizados social e narcisisticamente,
da energia libidinal que de outra forma poderia resvalar para
uma via sintomática. A dessexualizaÇão da energia libidinal
posta a serviço de atividades não sexuais, como tem discutido
Hornstein, confere à sublimação um conceito - valor que,
além de cumprir suas funções ético-morais de normatizar
relações entre pessoas, perseguindo um bem comum e ne­
cessário à preservação da espécie, não faz apenas isso. "A
sublimação não consiste apenas numa passagem a um nível
mais elevado da hierarquia de valores senão também numa
troca de um modo de funcionamento psíquico a outro radi­
calmente heterogêneo. A sublimação é um processo de
transformação fecundo da economia psíquica" 1 1 6 •
E o interessante é que chegamos a este raciocínio por
uma via matemática. Quando procedíamos a tarefa de isolar
as variáveis confundidoras e de modificação de efeito num
procedimento de análise estratificada, observamos que, em­
bora as mulheres que trabalhavam em atividades diretas com
paciente ou não se mantivessem mais sintomáticas que os
homens trabalhadores ( tendo-se controlado todas as demais
variáveis em estudo), ao chegar a vez de controlar a variável
sexo, apesar da não significância estatística, observou-se uma
inversão: os homens passavam a apresentar maior proporção
de sintomas psíquicos no estrato dos que lidavam direta­
mente com pacientes. Como já vimos anteriormente, a divi­
são social do trabalho impõe historicamente um aprendizado

116Hornstein, L. La sublimación: otro continente negro ?, comunicação


escrita (mimeografado), 72 p.
1 86 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
às mulheres das tarefas de cuidar e prover crianças, velhos e
doentes. O aprendizado desta via para os homens é mais
dificil e penoso. Ele, que na mesma divisão de trabalhos de­
verá ir à guerra, ao mercado, aos trabalhos pesados, aos co­
mandos, de um modo natural, não "saberia" canalizar para
cuidados de natureza "feminina" a sua energia libidinal des­
locada. As lutas, as atividades de arte, a construção civil, por
exemplo, ser-lhes-iam cultural e historicamente mais fáceis.
Aqui, os homens estariam em desvantagem por não dispor de
um aprendizado arquetípico que mediatizasse pulsões incon­
troladas que o contato com o outro só estimula, tendendo a
reprimir ou inibir a energia libidinal. E a inibição de energia
por um mecanismo de repressão tenderá a resvalar numa via
sintomática ou reativa com inibições intelectuais, impossibi­
lidade de investir em atividades criativas, aborrecimento e
desprazer com o trabalho, a repetição obsessiva de um mes­
mo pensamento, o tédio, entre outros. Reprimir implica
sempre uma regressão a etapas mais primitivas do desenvolvi­
mento da personalidade, fixando-se ou detendo-se em etapas
anteriores não resolvidas. Terreno fácil para adoecer ou reagir
com mecanismos defensivos infantis onde o rechaço ao do­
ente, a competição pelo excesso de identificação com quem
estará regredido pela sua situação de natural desvalido e es­
pectante dos cuidados hospitalares. Freud em O Mal-estar na
Civilização escreve que, por seu desvalimento, a criança de­
pende do amor materno que tem um poder modelador. O
instrumento da autoridade é a negação deste amor e sobre o
fundo do desamparo infantil se ergue a onipotência parenta!.
As aspirações do que se deve ser e ter e as premissas sobre o
que não se deve fazer estarão limitadas pelos valores dos pais.
A ameaça da perda de amor é uma constante desde os pri-
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 187
mórdios infantis e deverá nortear nossas reações adultas quer
nas relações mais protetoras e afetuosas, quer nos rechaças
agressivos e destrutivos. Na relação técnico-paciente num
hospital não é diferente, e dependerá do destino das pulsões
"escolhido" a satisfação ou insatisfação dos trabalhadores e o
melhor ou pior atendimento ao usuário. Isto numa discussão
essencia1mente individual e metapsicológica que nos cabe
aqui apenas mencionar.
A oposição que procuramos demonstrar entre a sublima­
ção e o sintoma não deixou de ser, no campo das individua­
lidades, na luta da vida contra a morte, a vitória da primeira
sobre a segunda na medida em que sublimação é "não uma
nova expressão do conflito mas o triunfo em oposição aos
renovados fracassos do neurótico, já que as mesmas proble­
máticas que conduzem a um empobrecimento libidinal e nar­
cisista, levam, àquele capaz de lograr sublimações, a transfor­
mar suas necessidades singulares em finalidades originais e a
converter suas debilidades em forças" 1 17 •
Podemos agradecer a uma aparente anomalia estatística a
possibilidade de repensarmos a natureza do trabalho na sua
relação com o sofrimento psíquico de homens e mulheres
trabalhadores do hospital, a possibilidade de desenvolvermos
um modo de compreensão deste todo contraditório sobre o
qual nos debruçamos. Resta, entretanto, uma articulação en­
tre fenômenos individuais de ordem subjetiva e o todo social
no qual eles acontecem, onde pode-se discutir um "nexo
causal", ou uma "relação de determinação" entre uma série
de fatores ligados ao processo de trabalho, de um lado, e
conseqüências ligadas ao sofrimento psíquico, do outro.

117Hornstein, L. Op. cit., p. 60.


1 88 HOSPITAL: DOR E MORTE COMO OFÍCIO
Não é propósito deste trabalho entrar na histórica disputa
entre os "empiristas" e "racionalistas" na discussão do que
causa o que, neste intrincado processo de relações. Conside­
ramos as discussões feitas por Franco & Possas ricas e sufici­
entemente amplas118. Bunge, por sua vez, já levantara um
amplo espectro na discussão do tema, indicando suas oito
possibilidades de exploração, das quais a "interação ou cau­
sação recíproca por ação mútua" e a "determinação estatística
pela função conjunta de variáveis independentes ou semi­
independentes no interior de um modelo matemático"ll9 se­
riam categorias a serem examinadas desde que fosse possível
associá-las ao que tem sido a rica contribuição da corrente
latino-americana da Medicina Social, com suas "estruturas
causais dinâmicas historicamente determinadas" , que tem em
Laurell ( 198 1 , 82, 83, 84, 89) das mais produtivas divulga­
claras.
Os obstáculos que se colocam para a construção de um
instrumental adequado à apreensão consistente da determina­
ção social em Epidemiologia, têm sido preocupação de mui­
tos pesquisadores. Entretanto, buscar articular estratégias
empiricistas aos conhecimentos totalizadores de disciplinas
que estudam um me!)mo campo, poderá consistir numa for­
ma de agregar o que existe de fecundo no manejo das "pro­
babilidades estatísticas", da "consistência lógica" de um certo
caminho teórico-metodológico conhecido e aceito, para que,
de modo cientificamente confortável, se possa exercitar a ou-

u8Possas, C. Epidemiologia e sociedade, cit., p. 1 80-193; Franco, S. A.


La cuestión de la causalidad en medicina, Asociación Latinoamericana de
Medicina Social, 1988 (mimeografado).
119Bunge, M. El principio de la causalidad en la ciencia moderna,
Buenos Aires, EUDEBA, 1965 .
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 189
sadia de querer cada vez mais estabelecer uma hierarquia de
determinantes psicossociais no estabelecimento de nexos de
causalidade entre condições de trabalho e saúde.
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