Você está na página 1de 8

BRAVERMAN, H.

TRABALHO E CAPITAL MONOPOLISTA

CAPÍTULO 13 - O MERCADO UNIVERSAL


É somente na era do monopólio que o modo capitalista de produção recebe a
totalidade do indivíduo, da família e das necessidades sociais e, ao subordiná-los ao
mercado, também os remodela para servirem às necessidades do capital. É
impossível compreender a nova estrutura ocupacional - e, em conseqüência, a
moderna classe trabalhadora - sem compreender esse fato. Como o capitalismo
transformou toda a sociedade em um gigantesco mercado é um processo que tem
sido pouco estudado, embora constitua uma das chaves para toda a história social
recente. O capitalismo industrial começou com uma limitada quantidade de
mercadorias em circulação normal. No nível doméstico elas incluíam os gêneros
básicos sob forma mais ou menos inacabada, tais como cereais e carnes, peixe e
alimentos, derivados do leite, legumes, bebidas destiladas e fermentadas, pão e
biscoitos e melaços. Outras necessidades domésticas normais incluíam fumo, carvão e
velas, lamparinas e sabão, sebo e cera, livro e jornais. A produção de roupas estava
em seus inícios, mas o mercado na primeira parte do século XIX já estava bem
desenvolvido para fios e têxteis, inclusive artigos de tricô, botas e sapatos. Os artigos
domésticos incluíam também artefatos de madeira de serrarias e carpintarias,
ferragens, tijolos e pedra, artigos de argila e vidro, móveis, utensílios domésticos,
porcelana e utilidades, instrumentos musicais, lataria e prataria, cutelaria, relógios e
carrilhões, produtos farmacêuticos e drogas.

Além desses artigos estavam as mercadorias necessárias como matérias-primas para


a manufatura de tais artigos: ferro e minérios não ferrosos, metais, madeira bruta,
alcatrão, breu, terebentina, potassa, peles, cânhamo, artigos de pedra etc. O
transporte exigia a fabricação de carroças, carretas, coches e carruagens, navios e
botes, tonéis e barris. E as indústrias que produziam ferramentas e implementos tais
como foices, arados, machados e martelos haviam começado a produzir maquinaria
sob a forma de bombas, máquinas a vapor, equipamento de fiação e tecelagem, e as
primeiras máquinas-ferramentas ...

No estágio mais primitivo do capitalismo industrial, o papel da família permanecia


fundamental nos processos produtivos da sociedade. Embora o capitalismo estivesse
preparando a destruição daquele papel, não havia ainda penetrado na vida diária da
família e da comunidade; tanto assim que um estudioso da história industrial dos
Estados Unidos definia como o "estágio familiar, no qual a fabricação domiciliar
dominava. Praticamente todas as necessidades da família eram supridas por seus
membros. O produtor e consumidor eram virtualmente idênticos. A família era a
unidade econômica, e todo o sistema de produção baseava-se nela. Antes de 1810
este estágio era comum através de muitas seções do país; depois deste ano tornou-
se mais ou menos localizado ".1

Enquanto o grosso da população vivia em fazendas ou em pequenas aldeias, a


produção de mercadorias enfrentava uma barreira que limitava sua expansão. Nas
fazendas norte-americanas, por exemplo, muito do trabalho de construção (exceto
sua estrutura básica, como era norma) era feito sem recorrer ao mercado, como era o

1
caso de inúmeras utilidades domésticas. A produção de alimentos, inclusive cultivo de
cereais e criação de gado, assim como o preparo desses produtos para consumo
doméstico constituía atividade diária da família rural, e em grande grau o mesmo
acontecia com a produção domiciliar de roupas. O agricultor, sua mulher e filhos
dividiam entre si tarefas tais como as de fazer vassouras, colchões, sabão, carpintaria
e pequenos trabalhos em metal, curtumaria, fermentação e destilação, manufatura de
arreios, desnatação e fabricação de queijos, prensamento e fervura de suco para
melaços, corte de moirões e ripas para cercas, panificação, compotas e às vezes até
mesmo fiação e tecelagem. Muitas dessas atividades rurais continuaram como o
modo natural de vida da família, mesmo após os inícios da urbanização e
transferência do emprego da fazenda para a fábrica ou demais locais de trabalho. O
trecho seguinte descreve a vida dos trabalhadores na virada do século, mencionando
o grau de transformação que ocorreu nos últimos setenta a oitenta anos:
"Exceto nos distritos residenciais populosos das grandes cidades que abrigavam uma
pequena parcela da população urbana total -os habitantes da aldeia e da cidade
freqüentemente produziam parte de sua alimentação. Sobretudo nas regiões do
carvão e do aço, os terrenos em volta das casas urbanas e suburbanas pareciam às
vezes muito mais uma propriedade rural. Muitas famílias criavam galinhas ou coelhos,
outras vezes porcos ou cabritos, e até uma ou duas vacas, e cultivavam legumes e
frutos em suas hortas. Um estudo de 2.500 famílias residentes nas principais regiões
do carvão, ferro e aço, realizado em 189 O, indica que cerca de metade delas criava
gado, galinhas, tinha hortas ou todas essas coisas. Aproximadamente 30 por cento
não compravam legumes de espécie alguma a não ser batatas durante todo o ano. Ao
descrever a região do carvão de antracito da Pensilvânia em 1904, Peter Roberts
escreveu que 'é interessante percorrer os vales de Schuylkill e Tremont e ver as
muitas granjas que são cultivadas por empregados das minas da Companhia de
Carvão e Ferro de Filadélfia e Reading. Na greve de 1902, centenas de famílias de
mineiros não poderiam continuar na luta se não fossem as pequenas fazendas e
grandes hortas que eles cultivavam'.

Embora apenas a alguns quilômetros do centro das maiores metrópoles no


continente, Queens County e grande parte de Brooklyn eram ainda semi-rurais em
1890, e muitas famílias eram tão dependentes da agricultura de pequena escala
quanto do emprego industrial ou comercial dos homens da família. O norte do que
hoje é a zona central, até Manhattan, era mais bucólica do que urbana, vendo-se
porcos e cabritos freqüentemente em plena East River até a rua 42. Ao mesmo
tempo, quando os homens trabalhavam dez a doze horas por dia, durante seis dias
da semana, a maior parte dos cuidados com a criação e hortas cabia inevitavelmente
às mulheres -excluído o fato de que essas tarefas lhes pertenciam por tradição.

A maior parte dos alimentos comprados vinha à casa urbana em seu estado natural,
em bruto, sem latas nem embrulho. Talvez a maioria das mulheres enfrentasse a
cansativa luta anual de conservar, fazer compotas, enlatar e fazer geléias, e a maior
parte da panificação era feita na cozinha da casa. Dentre 7 000 famílias da classe
trabalhadora estudadas pelo Departamento do Trabalho, entre 1889 e 1892, menos
de metade comprava qualquer tipo de pão, e quase todas compravam enormes
quantidades de farinha, em média 450 quílos por família anualmente. Mesmo entre as
famílias dos artífices qualificados, que ganhavam mais que os outros trabalhadores,

2
um quarto delas não comprava pão, e o consumo de farinha era em média de um
quilo por família diariamente.

Nenhuma casa respeitável em 1890 deixava de ter sua surrada máquina de costura
-um dos primeiros artigos amplamente vendidos pelo plano de prestações. A maioria
das roupas masculinas era comprada, mas a' maior parte das roupas femininas e de
crianças era ainda feita em casa. Além disso, havia cortinas e lençóis a serem
remendados, chapéus, blusas e meias a serem tricotadas e cerzidas. Era normal que
toda futura mamãe tricotasse e costurasse um enxoval completo para o seu primeiro
filho, e o completasse depois quando necessário,"2

Antes da atual estágio do capitalismo, o processamento de alimentos era atribuição


da granja familiar e em seguida pela dona-de-casa. O papel do capital industrial era
mínimo, exceto no transporte. Mas durante os últimos cem anos o capital industrial
lançou-se entre a fazenda e a dona-de-casa, e se apropriou de todas as funções de
ambas, estendendo assim a forma de mercadoria ao alimento semi-preparado ou
inteiramente preparado. Por exemplo, quase toda a manteiga era produzida em
granjas em 1879; já cm 1899 havia sido reduzida bem abaixo de três quartos, e em
1939 pouco mais de um quinto da manteiga era feita em granjas. A matança de gado
mudou-se da fazenda tanta mais cedo quanto mais rapidamente. A proporção de
farinha utilizada pelas padarias comerciais subiu rapidamente de apenas um sétimo
em 1899 para mais de dois quintos em 1939. E durante o mesmo período, a produção
per capita de legumes em conserva multiplicou-se por cinco, e as compotas de frutas
mais de doze vezes.3
Do mesmo modo que o alimento, o vestuário, a habitação, os artigos domésticos
rapidamente de todos os tipos: a gama de produção de mercadorias estendeu-se.

Esta conquista dos processos de trabalho, antigamente executadas pelas granjas


familiares, ou em lares de todo a tipo, naturalmente deu nova energia ao capital pelo
crescente escopo de suas operações e tamanho da "força de trabalho" sujeita a sua
exploração. Os trabalhadores para o novo processamento e indústrias fabris eram
retirados dos locais anteriores desses processos de trabalho: das fazendas e dos
lares, em grande parte mulheres progressivamente transformadas, em número cada
vez maior, de donas-de-casa em operárias. E com a industrialização da fazenda e das
tarefas domésticas, veio a sujeição desses novos trabalhadores a todas as condições
do modo capitalista de produção, a principal das quais é que eles agora pagam tributo
ao capital e servem assim para ampliá-lo.

A maneira pela qual essa transição foi efetuada inclui uma ‘multidão de fatores inter-
relacionados, nenhum das quais pode ser destacada dos demais. Em primeiro lugar, o
condicionamento urbano mais apertado destrói as condições sob as quais é possível
levar a vida antiga. O anel urbano fecha-se em torna do trabalhador, e em torno do
agricultor expulso da terra, e as confina nas circunstâncias que impedem as antigas
práticas de auto-abastecimento dos lares. Ao mesmo tempo, a renda proporcionada
pelo trabalho torna disponível a dinheiro necessário para adquirir os meios de
subsistência fabricados pela indústria, e assim, exceto em períodos de desemprego, a
coação da necessidade que compelia a trabalhos domésticos é muito enfraquecida.

3
Freqüentemente, o trabalho domiciliar torna-se anti-econômico em comparação com
o trabalho assalariado pelo barateamento dos artigos manufaturados, e isto,
juntamente com todas as demais pressões sobre a família da classe trabalhadora,
contribui para impelir a mulher da lar para a indústria. Mas muitos outros fatores
contribuem: a pressão do costume social sobretudo sobre a geração mais jovem
alternadamente pelo estilo, moda, publicidade e processos educacionais (tudo isto
que transforma o "feito em casa" em menosprezo com o "fabricado" ou "comprado
fora" em vanglória); a deterioração das especialidades (junto com a disponibilidade
de materiais); e a poderosa necessidade de cada membro da família de uma renda
independente, que é um dos sentimentos mais fortes instiladas pela transformação da
sociedade em um gigantesco mercado de trabalho e artigos, uma vez que a fonte de
status já não mais é a capacidade de fazer coisas mas simplesmente a capacidade de
comprá-las.

Mas a industrialização do alimento e outros utensílios domésticos elementares é


apenas o primeiro passo num processo que de fato leva à dependência de toda a vida
social, e de fato atadas às inter-relações da humanidade para com o mercado. A
população das cidades, mais ou menos excluída da meio natural pela divisão entre
cidade e campo, torna-se inteiramente dependente do artifício social para cada uma
de suas necessidades. Mas o artifício social foi destruído em tudo, menos suas formas
comerciáveis. Assim a população não conta mais com a organização social sob forma
de família, amigas, vizinhos, comunidade, velhos, crianças, mas com poucas exceções
devem ir ao mercado e apenas ao mercado, não apenas para adquirir alimento,
vestuário e habitação, mas também para recreação, divertimento, segurança,
assistência' aos jovens, velhos, doentes e excepcionais. Com o tempo, não apenas
necessidades materiais e de serviço, mas também as padrões emocionais de vida, são
canalizados através do mercado. Por conseguinte, vem a acontecer que enquanto a
população é comprimida cada vez mais apertadamente junta com o ambiente urbano,
a atomização da vida social continua aceleradamente. Em seu aspecto mais
fundamental, este fenômeno, tão freqüentemente observado só tem explicação pelo
desenvolvimento das relações de mercado como sucedâneo das relações individuais e
comunitárias.
A estrutura social, erguida sobre o mercado, é tal que as relações entre indivíduos e
grupos sociais não ocorre diretamente, cama combates cooperativos humanos, mas
através do mercado como relações de compra e venda. Assim, quanto mais a vida
social se transforma em uma densa e compacta rede de atividades interligadas nas
quais as pessoas são totalmente independentes, tanto mais atomizadas elas se
tornam, e mais seus contatos com os outros as separam em vez de torná-las mais
próximas. Isto é verdade por razões afins, quanto à vida familiar. Além de suas
funções biológicas, a família serviu como uma instituição chave da vida social, da
produção e do consumo. Dessas três, o capitalismo' deixa apenas a última, e isso em
forma atenuada, visto que mesmo como unidade consumidora a família tende a
romper-se em partes componentes que efetuam o consumo separadamente. Termina
a função da família como uma empresa cooperativa empreendendo a produção
conjunta de um modo de vida, e com isto as demais funções são progressivamente
enfraquecidas.
Esse processo é apenas um aspecto de uma equação mais complexa: à medida que a
vida social e familiar da comunidade são enfraquecidas, novos ramos da produção

4
surgem para preencher a lacuna resultante; e à medida que novos serviços e
mercadorias proporcionam sucedâneos para relações humanas sob a forma de
relações de mercado, a vida social e familiar são ainda mais debilitadas. Trata-se pois
de um processo que implica alterações econômicas e sociais de um lado, e profundas
mudanças nos padrões psicológicos e afetivos de outro.

O movimento da sociedade capitalista nesse sentido liga-se, no aspecto econômico,


ao impulso capitalista de inovar produtos diversos, novos serviços, novas indústrias.
O excedente produzido primeiro de tudo nas indústrias fabris sob a forma de
concentrações da riqueza é igualado no aspecto do trabalho pelo relativo declínio na
demanda de trabalhadores naquelas mesmas indústrias à medida que elas são
mecanizadas.
As amplas correntes de capital encontram o trabalho "liberado" no mercado no
terreno dos novos produtos e indústrias. Isto resulta, acima de tudo, na conversão de
todo o produto do trabalho humano em mercadoria, de modo que o trabalho produtor
de bens é efetuado apenas em sua forma capitalista, com exclusão de todas as
demais. As novas mercadorias surgem igualando as condições de vida do morador
urbano, e são postas em circulação nas formas ditadas pela organização capitalista da
sociedade. Assim, uma copiosa matéria impressa torna-se um veículo para o
mercadejamento empresarial, como o fazem os prodígios científicos do século XX tais
como o rádio e a televisão. O automóvel é aperfeiçoado como uma forma
imensamente lucrativa de transporte, que no fim destrói as formas mais práticas de
transporte no interesse do lucro. Como a maquinaria na fábrica, a maquinaria da
sociedade torna-se um pelourinho em vez de uma conveniência, e um sucedâneo
para a competência, em vez de uma ajuda para ela.
Em uma sociedade em que a força de trabalho é comprada e vendida, o tempo de
trabalho torna-se aguda e antagonisticamente dividido a partir do tempo de lazer, e o
trabalhador suspira pelo tempo "livre" a que dá extraordinário valor, enquanto a hora
do trabalho é considerada tempo perdido ou desperdiçado. O trabalho deixa de ser
uma função natural e converte-se numa atividade extorquida, e o antagonismo a ele
expressa-se numa tendência a encurtar a jornada, de um lado, e do outro os
aparelhos domésticos simplificadores do trabalho ganham prestígio, pelo que o
mercado apressa-se em fornecê-los. Mas a atrofia da comunidade e a aguda divisão
do meio natural deixa um vazio quando ele entra nas horas "livres". O preenchimento
do tempo ocioso também se torna dependente do mercado, que inventa
continuamente divertimentos passivos, entretenimentos, e espetáculos que se
ajustam às restritas circunstâncias da cidade e são oferecidos como sucedâneos da
própria vida. Uma vez que se tornam meios de encher as horas "livres", eles fluem
em profusão das instituições empresariais que transformaram todos os meios de
entretenimento e "esporte" num processo de produção para ampliação do capital. *
Pela sua própria profusão, perdem o valor, e tendem a padronizar a mediocridade e
vulgaridade que avilta o gosto popular, resultado que é ainda mais garantido pelo fato
de que mercado de massa tem um poderoso efeito de mínimo denominador comum
devido a que procura um lucro máximo. Tão empreendedor é o capital que mesmo
onde é feito o esforço por um setor da população para ir em busca da natureza, do
esporte, da arte através de atividade pessoal e amadorista ou de inovação
"marginal", essas atividades são rapidamente incorporadas ao mercado tão logo
possível.

5
* Um anúncio no New York Times de 20 de fevereiro de 1973 fala de urna competição
para destruição de carros, assistida por quase 24 000 pessoas: "Em meio a um monte
de automóveis destroçados, um Cadillac Eldorado trazendo a inscrição: 'Veja Parnelli
Jones destruir este carro'; um Rolls Royce Silver Shadow. um Lincoln Continental
Mark IV e outros carros de último tipo no valor de cerca de 50.000 dólares foram
destruidos batendo-se uns contra os outros ontem nesse lugar. Considerada a
'competição de destruição mais rica do mundo', terminou num claudicante e baboso
confronto entre um Ford LTD e um Mercury destruidos ...
. 'Imagino isto como o fim do Império Romano', disse George Daines, quando
comprava ingressos (oito dólares para adultos e 4 para menores) para ele e seu filho.
'Gostaria de'estar aqui para presenciar o fim do império americano'. "

A ruína das habilidades da família, e da própria família, da comunidade e os


sentimentos de vizinhança de que o desempenho de muitas funções dependia
antigamente, deixa um vácuo. À medida que os membros da família, muitos deles
agora trabalhando longe do lar, tornam-se cada vez menos aptos a cuidar uns dos
outros em caso de necessidade, e à medida que os vínculos de vizinhança,
comunidade e amizade são reinterpretados em uma escala mais estreita para excluir
responsabilidades onerosas, o cuidado dos seres humanos uns para com os outros
torna-se cada vez mais institucionalizado. Ao mesmo tempo, os detritos humanos da
civilização urbana aumentam, não devido à população idosa cuja vida é prolongada
pelo progresso da medicina; os carentes de cuidado incluem as crianças -não apenas
as que não podem "funcional''' normalmente, mas mesmo as "normais" cujo único
defeito é sua tenra idade. Cria-se todo um novo estrato de desamparados e de,
pendentes, enquanto o antigo e já conhecido amplia-se enormemente: a proporção
dos "doentes mentais" ou "deficientes", os " criminosos", as camadas pauperizadas na
parte baixa da sociedade:, todos representando variedades de desmoronamento sob
as pressões do urbanismo capitalista e das condições de emprego ou desemprego
capitalista. Além do mais, as pressões da vida urbana crescem muito intensas e ela
torna-se mais difícil aos necessitados de amparo na selva das cidades. Uma vez que
nenhum cuidado se pode esperar de uma comunidade atomizada, e uma vez que a
família não pode arcar com todas essas incumbências, já que tem que arrojar-se na
ação para sobreviver e "ter êxito" na sociedade de mercado, o cuidado de todas essas
camadas torna-se institucionalizado, muitas vezes das maneiras mais bárbaras e
opressivas. Assim compreendido, o maciço aumento das instituições que se estendem
de todos os modos, das escolas e hospitais de um lado, a prisões e manicômios de
outro, representa não precisamente o progresso da medicina, da educação ou da
prevenção do crime, mas a abertura do mercado apenas para os "economicamente
ativos" e em "funcionamento" na sociedade, em geral à custa pública e para um
vultoso lucro para as empresas fabris e de serviços que em geral possuem ('
invariavelmente patrocinam essas instituições. O aumento dessas instituições produz
um enorme volume de serviços", mais inflado ainda pela reorganização da
hospitalidade, em base de mercado sob a forma de motéis, hotéis, restaurantes, etc.
O aumento dessas instituições, como também de imensos espaços a supermercados e
lojas, escritórios e unidades integradas habitacionais, enseja o surgimento de imenso
pessoal especializado cuja função nada mais é que de limpeza; ainda uma vez

6
efetuada em grande parte por mulheres que,de acordo com os preceitos da divisão do
'trabalho, executam uma das funções que antigamente executavam em casa, mas
agora a serviço do capital que lucra com o seu trabalho diário. Na fase do capitalismo
monopolista, o primeiro passo na criação do mercado universal é a conquista de toda
a produção de bens sob forma de mercadoria; o segundo passo é a conquista de uma
gama crescente de serviços e sua conversão em mercadorias; e o terceiro é um
"ciclo"de produtos, que inventa novos produtos e serviços, alguns dos quais tornam-
se indispensáveis à medida que as condições da vida moderna mudam para destruir
alternativas. Desse modo o habitante da sociedade capitalista é enlaçado na teia
trançada de bens-mercadoria e serviços-mercadoria da qual há pouca possibilidade de
escapar mediante parcial ou total abstenção da vida social tal como existe. Isto é
reforçado de outro lado por um desenvolvimento que é análogo ao que continua na
vida do trabalhador: a atrofia da competência. No fim, a população acha-se quer
queira quer não, na situação de incapacidade de fazer qualquer coisa que facilmente
não possa ser feito mediante salário no mercado, por um dos múltiplos ramos novos
do trabalho social. E enquanto do ponto de vista do consumo isso signifique total
dependência quanto ao mercado, do ponto de vista do trabalho significa que todo o
trabalho é efetuado sob a égide do capital e é suscetível de seu tributo de lucro para
expandir o capital ainda mais. O mercado universal é amplamente celebrado como
uma generosa "economia de serviço", e louvado por sua "conveniência",
"oportunidades culturais", "instituições modernas para cuidar dos excepcionais" etc.
Não precisamos ressaltar o quanto loucamente age a civilização urbana e quanta
desgraça ela abrange. Para os fins de nossa análise, é o outro lado do mercado
universal, seus aspectos desumanizadores, seu confinamento de amplo segmento da
população ao trabalho degradado, o que interessa principalmente.

Assim como na fábrica, não é nas máquinas que está o erro, mas nas condições do
modo capitalista de produção sob as quais elas são utilizadas; do mesmo modo, não é
na existência dos serviços que está o erro, mas nos efeitos de um mercado todo-
poderoso que, dominado pelo capital e seu investimento lucrativo, tanto é caótico
quanto profundamente hostil aos sentimentos de comunidade. Assim os próprios
serviços sociais que deveriam facilitar a vida social e a solidariedade social têm o
efeito contrário. À medida que os avanços da indústria de utilidades domésticas e de
serviços aliviam o trabalho da família, aumentam a futilidade da vida familiar; à
medida que removem os fardos das relações pessoais, esvazia-as de sentimentos; à
medida que criam uma intrincada vida social, despem-na dos vestígios da
comunidade e deixam em seu lugar um vínculo monetário.

É característico da maioria das funções criadas nesse "setor de serviços" que, pela
natureza dos processos de trabalho que elas incorporam, são menos suscetíveis de
mudança tecnológica do que os processos da maioria das indústrias produtoras de
bens. Assim, enquanto o trabalho tende a estagnar ou encolher no setor fabril, ele
aumenta nos serviços e encontra uma renovação das formas tradicionais de
concorrência anterior ao monopólio entre as muitas firmas que proliferam em campos
que exigem pequeno capital inicial. Essas indústrias, recorrendo a força de trabalho
amplamente não sindicalizada e retirada da reserva de pauperizados da parte inferior
da sociedade, criam novos setores de baixa remuneração, e essas pessoas são mais

7
intensamente exploradas e oprimidas do que as empregadas nos setores mecanizados
da produção.

Trata-se do campo de emprego, juntamente com as funções burocráticas, no qual as


mulheres em grande número são retiradas do serviço do lar. De acordo com as
convenções estatísticas da Economia, a conversão de muito trabalho no lar em
trabalho nas fábricas, escritórios, hospitais, fábricas de conservas, lavanderias,
boutiques, varejos, restaurantes etc. representa um vasto aumento do produto
nacional. Os bens e serviços produzidos pelo trabalho não pago no lar não são
absolutamente computados, mas quando os mesmos bens e serviços são produzidos
por trabalho fora do lar, entram nas estatísticas. Do ponto de vista capitalista, que é
o único reconhecido para fins de contabilidade nacional, esse cômputo faz sentido. O
trabalho da dona-de-casa, embora tenha o mesmo efeito material ou de serviço que o
da camareira, da garçonete, faxineira, porteira ou lavadeira, está fora do alcance do
capital; mas quando ela assume uma dessas funções fora de casa, torna-se um
trabalhador produtivo. O trabalho dela agora enriquece o capital e assim merece um
lugar no produto nacional. Esta é a lógica do mercado universal. Seus efeitos sobre os
padrões de emprego e na composição da classe trabalhadora serão tratados
pormenorizadamente a seguir.

Você também pode gostar