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A estética da existência.

Foucault e Psicanálise Psicanálise e Filosofia

A estética da existência.
Foucault e Psicanálise.

Rodrigo Cardoso Ventura*

Unitermos: técnicas de si; estética da Na antiguidade greco-romana as realidade, mas de lhe permitir viver
existência; filosofia; ética; formas de técnicas de si ou técnicas de cuidado melhor na realidade deste mundo,
subjetividade; pulsão; intensidade. de si possibilitavam aos indivíduos a sendo um processo de intensificação
realização, por eles mesmos, de de sua subjetividade. A askésis estava
determinadas operações em seu intrinsecamente relacionada com o
corpo, em sua alma, em seus processo de subjetivação, constituindo-
Resumo
pensamentos e principalmente em se como um motor capaz de
Na produção tardia de Michel Foucault,
suas condutas. movimentar e modificar a subjetividade.
a partir da década de 80, ou como
alguns gostam de chamar: no último Estas técnicas eram procedimentos Neste contexto, a prática ascética
Foucault, este se dedicou ao projeto "prescritos aos indivíduos para fixar desafiava os modos de existência
de escrever a história da sexualidade. sua identidade, mantê-la ou prescritos, representando uma forma
No terceiro volume deste projeto: transformá-la em função de de resistência social, uma vontade de
História da Sexualidade III - O Cuidado determinados fins, isso graças a singularizar-se e de afirmar a sua
de Si (1985), Foucault trabalha, a partir relações de domínio de si sobre si ou alteridade.
da antiguidade greco-romana, dois
de conhecimento de si por si"1 . Elas Esse treinamento de si caracterizado
importantes conceitos: as técnicas de
si e a estética da existência, que representavam a prática de pela askésis, mais do que um exercício
apontam para a possibilidade de determinadas ações onde o próprio feito em intervalos regulares, era
criação de um estilo próprio, visando sujeito era o objetivo final destas. caracterizado por uma atitude
a produção de si mesmo como o Portanto, as técnicas de si devem ser constante de atenção e cuidado em
artesão da beleza de sua vida, fazendo entendidas como práticas, através das relação a si próprio. Não era estóico
desta uma obra de arte. quais o homem não apenas quem ensinava ou praticava
Apesar do diálogo entre a obra
determinava para si mesmo as regras esporadicamente o estoicismo, mas
filosófica de Foucault e a psicanálise
ter sido pautado por críticas e de sua conduta, como também quem vivia como um estóico.
questionamentos, este trabalho versa buscava modificar-se para alcançar a Durante a antiguidade greco-romana,
sobre a possibilidade de pensarmos, sua singularidade. A prática destas vários filósofos como: Sêneca,
a partir do estabelecimento de uma técnicas resultava em uma reflexão Epicuro, Epiteto e Marco Aurélio,
articulação entre estes dois campos sobre os modos de vida e sobre as dedicaram-se à prática destas
de saber, a experiência psicanalítica escolhas de existência de cada um. técnicas de si, das quais se pode
no sentido de "possibilitar ao sujeito a
produção de um estilo para a sua Para o estabelecimento desta relação destacar: o exame de consciência, a
existência"(BIRMAN,1997. p. 43). consigo era necessário instituir um escrita de si, a correspondência, a
O que pretendemos com este trabalho trabalho de si sobre si mesmo, ou seja, meditação, os procedimentos de
é apenas levantar algumas hipóteses um treinamento de si, que se realizava provação e a interpretação dos sonhos.
iniciais de pesquisa, enfatizando a através de uma askésis (palavra grega Neste período, as técnicas de si eram
clínica psicanalítica enquanto que quer dizer: exercício, prática). Ou práticas relacionadas com o cuidado
possibilidade de criação inventiva de seja, era necessário "ocupar-se com os atos e não com a preocupação
novos modos de existência e estilos consigo" (epiméleia heautoû).
de vida, ou seja, de formas de com algum tipo de interioridade. Por
subjetividade. Entretanto, longe de implicar em exemplo, a técnica conhecida como
qualquer tipo de renúncia de si mesmo exame da consciência que visava um
e da realidade, como posteriormente domínio sobre as representações
1
Resumo dos Cursos do Collège de France -
Foucault aponta que aconteceu no mentais, não tinha como objetivo
Subjetividade e Verdade (1980-1981) p. 109 cristianismo, na tradição filosófica descobrir a origem profunda ou o
inaugurada pelo estoicismo, a askésis sentido oculto de uma idéia, mas sim
era definida pela consideração entender a relação entre o que estava
* Psicanalista do Círculo Brasileiro de progressiva de si.
Psicanálise - Seção Rio de Janeiro e representado e si mesmo, e as
Mestrando do curso de pós-graduação em O objetivo final da askésis não era implicações disto nas atitudes de um
Teoria Psicanalítica da UFRJ preparar o indivíduo para uma outra indivíduo. A ênfase estava sempre na

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Rodrigo Cardoso Ventura

atitude e não nas intenções. existência ganha ainda mais de subjetivação), fazendo da sua
Em toda a dinâmica que caracteriza a importância quando é destacada a sua própria vida uma obra de arte, assim
prática das técnicas de si, gostaríamos dimensão ética. Para Foucault, assim como também está implicada na
de enfatizar o aspecto da luta que se como para grande parte da tradição capacidade de transformação do
trava de si para consigo. Conforme filosófica, o problema ético consiste em mundo que o cerca.
ressalta Foucault: responder a questão de como se pode Judith Revel em seu comentário
praticar a liberdade. A ética seria a preciso nos afirma: "A estética da
Mas ela tem também uma função prática racional e refletida da liberdade
de luta. A prática de si é concebida existência, na medida em que ela é
e a liberdade a condição ontológica da uma prática ética de produção de
como um combate permanente. ética. Mas ético no sentido grego,
Não se trata, simplesmente, de subjetividade, é, ao mesmo tempo,
como êthos, que é a maneira de ser e assujeitada e resistente: é, portanto,
formar para o futuro um homem de a maneira de se conduzir.
valor. É preciso dar ao indivíduo as um gesto eminentemente político"5.
armas e a coragem que lhe permitirá Para os gregos, ser livre era não ser
lutar a vida inteira2. escravo de ninguém e muito menos de
si mesmo e de seus apetites. Segundo BREVE CONCLUSÃO
Duas metáforas eram frequentemente Sêneca: "ser escravo de si mesmo é O que interessava a Foucault com os
utilizadas para descrever esta postura a mais grave, a mais pesada de todas estudos da sexualidade na era greco-
combativa: a da "justa atlética", que as servidões, [...] é uma servidão romana não era um retorno nostálgico
dizia que o indivíduo devia se comportar
assídua, isto é, pesa sobre nós sem à antiguidade, mas, muito pelo
na vida como um lutador capaz de
cessar"4. Diferentemente dos cristãos, contrário, o aqui e agora de nós
resistir aos acontecimentos que se
para os gregos o perigo residia na mesmos. A análise de Foucault dos
podem produzir; e a da "guerra", que
apontava para a necessidade da alma servidão e não na mácula. conceitos de técnicas de si e estética
estar sempre organizada como um Na cultura de si não existiam códigos da existência nos fazem pensar, na
exército pronto a enfrentar o inimigo. exteriores e as regras de conduta atualidade, as condições de
deviam ser buscadas no próprio possibilidade para a afirmação de uma
sujeito, na relação de si para consigo, maneira singular de se fazer sujeito,
A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ou seja, para a criação de modos de
enquanto uma ética do cuidado de si,
A estética da existência, que teve seu fundada nas práticas de liberdade do existência e estilos de vida (formas de
apogeu durante a antiguidade greco- sujeito. subjetivação) dotados do direito à
romana, está diretamente relacionada diferença e à variação, capazes de
com a criação de um estilo próprio, Logo, a ética do cuidado de si resistir e escapar dos dispositivos de
através da prática de técnicas de concerne à maneira pela qual cada captura e fixação de identidades
cuidado de si, e visa a constituição de indivíduo constitui a si mesmo como individuais, transformando a vida em
si mesmo como o artesão da beleza sujeito de sua própria conduta, uma obra sempre por se fazer.
de sua própria vida. estando intimamente relacionada com
os seus atos e suas ações para Para Foucault, que efetua uma crítica
A estética da existência (ou artes da ferrenha ao conceito de sujeito
existência) não só abre a possibilidade consigo e também para com os outros.
soberano, fundador e universal, a
de um caminho singular capaz de Na antiguidade, o cuidado de si não subjetividade é pensada como um
conduzir a ação de um indivíduo, como representava um solipsismo e nem processo em movimento, sempre por
também produz mudanças neste estava em oposição ao cuidado com se fazer. A subjetividade é processo e
indivíduo, quando Foucault afirma que: os outros. É fundamental destacar que produto. Como processo está sempre
As "artes da existência" devem ser o cuidado de si era indissociável das em aberto e em movimento, em eterno
entendidas como as práticas práticas sociais, estando intimamente desprendimento em relação a ela
racionais e voluntárias pelas quais relacionado com o cuidado com os mesma, dirigida para a produção de
os homens não apenas determinam outros. novas e diferentes formas de
para si mesmos regras de conduta, O cuidado de si não é um convite a um subjetivação ou modos de existência
como também buscam transformar-
tipo de inércia narcisista ou à inação, (modos de agir, sentir e dizer o
se e modificar seu ser singular, e
mas pelo contrário, este possibilita nos mundo). Como produto aponta para a
fazer de sua vida uma obra que seja
portadora de certos valores constituirmos eticamente como o noção de sujeito, instante único e
estéticos e que corresponda a sujeito de nossos atos. Antes que nos sempre inacabado deste processo.
certos critérios de estilo3. isolar do mundo, é o que nos permite É justamente o processo de criação
nele nos situar e agir. de modos de existência e estilos de
Assim, a estética da existência, sob
o signo do cuidado de si e da Desta forma, a estética da existência vida (formas de subjetivação) que
transformação da existência em uma pensada como uma ética do cuidado constitui o solo comum capaz de
espécie de exercício permanente, de si, que se efetua em atos e ações instaurar uma conexão possível entre
define os critérios estéticos e também para consigo e para com os outros, a obra de Foucault e uma determinada
éticos do bem viver. está implicada diretamente na leitura da psicanálise, inscrita no
Por isso, o tema da estética da produção inventiva de si (novas formas registro das intensidades do sujeito.

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A estética da existência. Foucault e Psicanálise

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Em 1920, no texto Além do Princípio de subjetivação, sempre inacabado e Resumo dos Cursos do Collège de France - A
de Prazer, Freud conceitua uma pulsão por se fazer. Hermenêutica do Sujeito (1981-1982). p. 124.
3
sem representação, a pulsão de morte, Ditos e Escritos V - O Uso dos Prazeres e as
Portanto, trabalhando na positivação Técnicas de Si (1983). p. 198-199.
e estabelece uma virada crucial em sua das intensidades do sujeito e na 4
obra. Em oposição à pulsão de vida, A Hermenêutica do Sujeito - Aula de 17 de
invenção de novas possibilidades de Fevereiro de 1982. p. 332.
já capturada pelo aparelho psíquico e expressão destas intensidades no 5
ligada a uma cadeia de Michel Foucault - Conceitos Essenciais (2005).
mundo, o trabalho da clínica p. 44.
representações, a pulsão de morte é psicanalítica deve possibilitar ao sujeito 6
totalmente descolada de Análise terminável e interminável (1937). p.
a produção de um estilo singular para 256.
representações, muda, invisível, a sua existência. Calcada nas idéias &
Estilo e Modernidade em Psicanálise - Sujeito
desordenada e pré-psíquica, ou seja, de estilo, autoria e criatividade, tão e Estilo em Psicanálise (1997). p.67.
é pura força. caras a qualquer tipo de arte, a
Esta inflexão teórica lança os holofotes psicanálise deve trabalhar no vir a ser
da psicanálise na direção do conceito da subjetividade, a partir da construção
de pulsão como força e como de "caminhos possíveis para que as
exigência de trabalho, destacando os forças pulsionais encontrem percursos
seus aspectos quantitativo e de satisfação no universo psíquico e
econômico, e implicando o sujeito no no campo da alteridade"7.
trabalho infinito e interminável de Nesta direção, a psicanálise está
remanejar, ligar e simbolizar a força implicada tanto em uma dimensão
constante da pulsão, que não se estética da existência humana, não
esgota jamais. apenas no sentido de arte, mas
principalmente no sentido de aísthesis
Neste ponto é importante frisar que a
(sensação), visto o prazer sentido na
valorização do fator quantitativo da
satisfação pulsional, quanto em uma
energia que está presente no aparelho
dimensão ética desta existência, na
psíquico permeia toda a obra de Freud, medida em que responsabiliza este
desde O Projeto para uma Psicologia sujeito desejante na construção de um
Científica (1895) até quase no fim de destino singular, a partir da invenção de
sua vida, no texto Análise Terminável si e de um mundo possivelmente melhor.
e Interminável (1937), quando Freud
destaca muito bem a importância do
fator quantitativo na experiência clínica
da psicanálise: REFERÊNCIAS
Mais uma vez nos confrontamos
com a importância do fator BIRMAN, J. Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Editora 34 Ltda., 1997.
quantitativo e mais uma vez somos
lembrados de que a análise só pode BIRMAN, J. Entre Cuidado e Saber de Si - Sobre Foucault e a Psicanálise.
valer-se de quantidades de energia 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2004.
definidas e limitadas que têm de ser FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade, Política, Rio de Janeiro,
medidas contra as forças hostis. E Editora Forense Universitária Ltda., 2004.
parece como se a vitória, de fato, FOUCAULT, M. A . Hermenêutica do Sujeito. 6.ed.São Paulo: Martins Fontes, 2004.
via de regra esteja do lado dos
grandes batalhões6. FOUCAULT, M.A. História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres. 6 ed.São
Paulo, Edições Graal, 1984.
Como conseqüências teóricas e
clínicas da virada de 1920, podemos FOUCAULT, M. A. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 8 ed. São
destacar, resumidamente: I) a crítica Paulo, Edições Graal, 1985.
aos limites da representação e a FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France 1970 - 1982, Rio de
colocação em primeiro plano do fator Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1997.
quantitativo no trabalho clínico da
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. [1895]. In:___.Edição
psicanálise; II) o abandono paulatino
de um ideal de cura, afastando a Standard das Obras Psicológicas Completas. v. I. Rio de Janeiro: Imago,1996.
psicanálise do discurso científico e FREUD, S. Além do princípio de prazer. [1920] In:___.Edição Standard das
inscrevendo a experiência clínica nos
registros ético e estético da
Obras Psicológicas Completas. v. XVIII, Rio de Janeiro, Imago,1996.
constituição de modos de existência FREUD, S. Análise terminável e interminável. [1937] In:___.Edição Standard
que sejam capazes de lidar com os das Obras Psicológicas Completas. v. XXIII, Rio de Janeiro, Imago,1996.
conflitos de força insuperáveis,
incessantes e inerentes ao processo REVEL, J. Michel Foucault. Conceitos Essenciais. São Paulo: Clara Luz, 2005.

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