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NOSSA SENHORA DAS NUVENS

(Segundo exercício sobre o exílio)

Aristides Vargas
Tradução: Fernando Yamamoto

Este texto é um rascunho para uma possível encenação que, devido à forma que o Grupo Malayerba
trabalha, será reformulado e aprofundado a partir do contato com o ator.

Narra os sucessivos encontros entre Oscar e Bruna, dois exilados que, no transcurso de um tempo
impreciso, se veem em diferentes lugares e recordam de suas vidas em um vilarejo chamado Nossa
Senhora das Nuvens.

CENA UM
Primeiro encontro entre Bruna e Oscar.

BRUNA Acho que vi a sua cara por aí.

OSCAR Impossível, minha cara sempre anda comigo.

BRUNA Tá fazendo o quê?

OSCAR (Pausa) Olho os pássaros.

BRUNA Empassarinhado.

OSCAR Como?

BRUNA Nada, é que em meu país os pássaros enlouquecem às seis da manhã como se um professor
de canto, neurótico por silêncio, houvesse arrancado seus rabos.
OSCAR No meu, no entanto, os maridos batem em suas esposas.

BRUNA (Pausa longa) No meu também, e a cada quarenta cacetadas fazem uma gentileza: levam
suas esposas ao cinema para ver filmes mudos em preto e branco.
Pausa longa.

OSCAR Perdão, de que país você é? BRUNA De Nossa Senhora das Nuvens. OSCAR Ah, eu
também sou de lá!
BRUNA De Nossa Senhora das Nuvens?

OSCAR Sim.

BRUNA E como nunca te vi?

OSCAR É que eu nunca saio à noite.


BRUNA (Pausa) Mas você não tem sotaque.

OSCAR O sotaque é algo que se perde com facilidade.

BRUNA Como a virgindade.

OSCAR Perdão, você perdeu a virgindade?

BRUNA Não, ela foi extraviada.

OSCAR E não pôs um anúncio nos classificados?

BRUNA Não foi necessário, um professor de literatura a encontrou.

OSCAR Não me diga!

BRUNA Sim, ele se chamava... Como se chamava o professor...? Ele morava ao lado da praça... Bem,
já faz muitos anos, no colégio; esse professor gostava de representar os personagens da literatura
universal.

OSCAR Um clássico.

BRUNA Um clássico do toque.

OSCAR Um clássico tátil?

BRUNA Um degenerado que aplicava o sistema Braille pra conhecer a anatomia de suas alunas.
OSCAR O que aconteceu?

BRUNA Um dia lemos O Lazarillo de Tormes: então ele decidiu representar o cego e nós, Lázaro.
Ele nos tocou tanto que corri ao banheiro, vi minhas pernas e me dei conta que estava urinando rosas.
OSCAR (Pausa) Em meu país houve um cidadão que urinou arco-íris.

BRUNA Perdão, de que país você é?

OSCAR De Nossa Senhora das Nuvens.

BRUNA Não se preocupe, há coisas piores.

OSCAR Sim, ser de Nossa Senhora das Nuvens, por exemplo.

BRUNA Não admito que fale mal de meu país!

OSCAR Perdão, achei que fosse de lá, como eu.

BRUNA Não! Sou de Nossa Senhora das Nuvens e com muito orgulho!
OSCAR Não grite comigo, que sou capaz de qualquer coisa!

BRUNA Sabe de uma coisa?

OSCAR Não.

BRUNA Estou farta de ficar em silêncio.

OSCAR Eu também.

BRUNA Pobres de nós, que não levantamos a voz porque somos estrangeiros.

OSCAR (Pausa) Também não é preciso andar pelo mundo aos berros, como o Tarzan.

BRUNA Mas também não dá pra sumir no silêncio dos tolos.

OSCAR Eu não fico calado, ainda que as leis proíbam aos estrangeiros opiniões políticas, ainda que
me atreva a dizer a verdade quando o que deveria fazer é me calar ou mentir, eu não me silencio.

BRUNA Você faz muito bem, porque o silêncio é a casa dos que não têm casa e nada a contar, porque
não contam para nada.

OSCAR (Pausa) A propósito, você tem casa?

BRUNA Não.

OSCAR Nem eu.

BRUNA E onde dorme?

OSCAR No ar. BRUNA Como a flor.OSCAR Que flor?

BRUNA A flor do ar.

OSCAR A flor do ar?

BRUNA A flor do ar vive no ar, e não do ar, que disso todos vivemos. A flor do ar vive nos galhos
das árvores secas. Nos cabos de energia, nos postes... Sempre encostada em outros, como se dissesse
“deixem-me estar aqui um pouco, um pouquinho”... Uma flor aleijada.

OSCAR (Pausa) Uma vez um cara... Como se chamava? Morava... Bem, o que importa é que ele teve
uma ferida no braço direito, gangrenou, e não havia médico, não havia hospital; ele decidiu fazer uma
autointervenção cirúrgica. Pegou um machado e começou o dilema: “como cortar o braço direito
com o braço direito?” Conclusão: precisamos do outro para nos mutilarmos, precisamos do outro para
nos apoiarmos, sempre precisamos do outro.
BRUNA Para nos ferirmos...

OSCAR Para nos mutilarmos...

BRUNA Para nos apoiarmos... Eu sinto que o meu país me feriu. OSCAR Um país espadachim...
Perdão, mas de que país você é? BRUNA De Nossa Senhora das Nuvens.

OSCAR Mas você não tem sotaque.

BRUNA O sotaque é um graveto que se perde com facilidade, ainda mais quando se vive em um
lugar que faz tanto frio.
Fazem silêncio como se não soubessem o que falar.

OSCAR E por que a expulsaram do seu país?

BRUNA Porque um dia eu disse que as senhoras do meu vilarejo não têm peitos, e sim xícaras de
porcelana chinesa onde os senhores de fraque bebem cappuccino sem leite; e que não têm vagina, e sim
leques com dentes de crocodilo.

OSCAR Você disse isso?

BRUNA Sim, e que os militares do meu vilarejo são tantos que nos feriados nacionais desfilam pela
rua e a rua parece que não havia feito a barba há três dias.

OSCAR (Rindo) Você disse isso?

BRUNA Sim, e também que em meu vilarejo os corruptos denunciam os corruptos e fica tudo bem,
porque uns sabem do que os outros estão falando.

OSCAR Com razão a botaram pra fora, você enfureceu as forças vivas.

BRUNA Eles nos agrediram primeiro.

OSCAR Como assim?

BRUNA Confundiram o país com um avião.

OSCAR Não diga!

BRUNA Primeiro disseram que era pra apertar os cintos, e nós assim fizemos; depois disseram que
eram tempos turbulentos, nós acreditamos; em seguida disseram que era um caso de asfixia econômica,
e uma máscara cairia automaticamente. Nenhuma dessas coisas serviu pra nada, o país caiu e nunca
encontramos a caixa preta.

OSCAR Ninguém se salvou.


BRUNA Ninguém.

OSCAR É que não apertaram bem os cintos.

BRUNA Sim, nós apertamos tanto, que nossas caras ficaram a poucos centímetros do chão.

OSCAR Mas não se desanime, no meu vilarejo também se vive nessa posição.

BRUNA É incrível com que facilidade o corpo social perde o respeito.

OSCAR A propósito, o corpo social fica nu?

BRUNA Não creio, nessa posição é perigoso.

OSCAR Pois é.

BRUNA Porque o expulsaram do seu país?

OSCAR Não me expulsaram.

BRUNA Ah, não?

OSCAR Não, me mataram.

BRUNA A polícia?

OSCAR Não, os vizinhos.

BRUNA Com uma faca?

OSCAR Não, com o silêncio. Veja só meus vizinhos... gente comedida: me faltava óleo, eles me
emprestavam. Eles não sabiam que eram assassinos, por isso se comportavam como vizinhos;
descobriram que eram assassinos no dia em que fui levado preso, porque não disseram nada; trataram de
esquecer o que haviam visto e eu fui fulminado pelo esquecimento, pelo desdém e o medo, no mesmo
instante em que eles fechavam suas janelas.

BRUNA Em meu país aconteceu o mesmo com um amigo.

OSCAR Perdão, de que país você é?

BRUNA Do país chuvoso.

OSCAR Sinto você nostálgica.

BRUNA Nós, exilados, somos gente triste, propensos a imaginar coisas que nunca aconteceram.
Nos castigaram com tanta perversidade
que nos fizeram esquecer que aqueles que nos castigaram pertencem ao mesmo país que nós, e ainda
assim acreditamos que éo melhor país do mundo. Que ironia, né? Sentir saudade de um lugartão perverso
e acreditar que é o melhor do mundo.

OSCAR O que sinto saudades é da minha mãe. (Pausa) Mas o que tem a ver minha mãe com os
assassinos? Nada. Dividem o mesmo espaço, mas não o mesmo país.

BRUNA Em meu país as mães morrem jovens no almoço e se suicidam solitárias no jantar, e morrem
mais um pouco de manhã, e se alguém pergunta a elas por seus filhos, nada respondem, por medo de
morrerem de pena...
Voltam a fazer silêncio como se não soubessem sobre o que falar.

OSCAR Perdão, de que país você é?

BRUNA De Nossa Senhora das Nuvens.

OSCAR Eu também sou de lá, mas nunca te vi.

BRUNA É que eu passava muito por sobre as árvores.

OSCAR Era jardineira.

BRUNA Não, era pássaro.

OSCAR Os pássaros são animais sem memória.

BRUNA Com asas para pairar sobre o esquecimento.

OSCAR Mas me diga, há quantos anos você saiu do seu vilarejo?

BRUNA Vinte anos.

OSCAR Eu também. Sabe, o vilarejo já não é mais o mesmo.

BRUNA Claro, por isso o inventamos cada vez que recordamos.

CENA DOIS

A fundação de Nossa Senhora das Nuvens, segundo Bruna. Ela recorda como Don Tello levava sua
filha Irma para passear, vestida de noiva, mostrando aos homens suas mãos.
D. TELLO Você vai ver, filhinha, não sou uma pessoa má, simplesmente acontece que você já tem
idade pra se casar, e se os homens não pedem a sua mão é porque você não as mostra.

IRMA Mas pai... neste vilarejo não mora ninguém.

D. TELLO Vai, filhinha, mostre suas mãos aos homens.

IRMA Não há homens, papai... Além do que, me sinto ridícula.

D. TELLO Melhor ridícula que solitária, e a solidão se reconhece por duas coisas: as mãos e o hálito.
Vai, filha, exale seu hálito aos homens.

IRMA Por que o senhor é tão cruel?

D. TELLO Levante as mãos. Tá vendo? Não tem aliança! Suas mãos estão solteiras, é terrível para
uma mulher ter as mãos virgens e o hálito de nada.

IRMA Não me querem, papai.

D. TELLO Miseráveis, são todos uns miseráveis! E sabe por quê? Porque sentiram o seu hálito de
coisa velha, de quem está em jejum.

IRMA Pai, não quero respirar.

D. TELLO Todos na família temos o mesmo hálito de flores desidratadas.

IRMA Não, pai, meu hálito não cheira a nada, meu corpo também não, uma porta possui um
perfume mais intenso que o meu.

D. TELLO Cale-se, você não sabe de nada! A esta hora o sol aquece arua e aquece os juízos dos
homens.

IRMA As ruas estão vazias e eu estou fria.

D. TELLO Os olhos dos homens te derreterão.

IRMA Ninguém por trás das portas me vê porque não há ninguém; só o frio mora aqui.

D. TELLO Cale-se, você não sabe de nada!

IRMA Sou uma montanha gelada.

D. TELLO Cale-se!

IRMA Podem me escalar, mas no topo do meu corpo as neves são eternas.
D. TELLO Cale-se, Irma! Se levantar as mãos poderá tocar o outro sol.

IRMA Não vale a pena, pai, já me acostumei com o frio. O senhor não se dá conta que não há
ninguém, que o vento fecha as portas atrás de nós?

D. TELLO Não importa, você abrirá as portas, mostre do que é capaz, mostre que é minha filha,
mostre como as suas mãos abrem as portas dos homens, bate na porta dos homens.

IRMA Só o vento bate na porta de Nossa Senhora das Nuvens, e ainda assim não abrem pra ele,
porque dentro não há ninguém, as portas desse vilarejo guardam o vazio.

D. TELLO Eles não abrem ao vento porque dá azar. Anda, diz que lhe queiram, diz que lhe queiram...!

IRMA Não me querem, pai. Sou uma mulher que...

D. TELLO Cale-se! Você é como a sua finada mãe: chata e cheia de dúvidas.

IRMA Papai... Não quero me casar.

D. TELLO Hoje você se casa!

IRMA Não vou me casar.

D. TELLO Vai, sim!

IRMA Pai, por favor...

D. TELLO Fale, eles vão entender!

IRMA Está bem, vou falar.

D. TELLO Essa é a minha filha!

IRMA Senhores...

D. TELLO Homens...

IRMA Senhores homens de Nossa Senhora das Nuvens, sou uma mulher solitária, solitária e tola,
porque a miúde nos consideram tolas, tolas e solitárias. Para nós, o sol não é radiante, é um sol sem
brilho e besta; para nós, os dias felizes são as segundas, porque é um dia besta, onde há tanta coisa a se
fazer que esquecemos por um instante que no domingo cometemos a besteira de ser profundamente
infelizes. Solitárias e tolas vamos pelo mundo até morrermos como os tolos: de um ataque de solidão no
coração...! Queiram-me, por favor...!

D. TELLO Você é como a sua finada mãe: chata e cheia de dúvidas.


IRMA Como estava dizendo, queiram-me, porque se não terão que me apontar o dedo, remexer
com o dedo a textura do meu coração tolo e nublado, e inventar apelidos que, com muita amargura,
carregam as mulheres como eu: solteirona, panela velha, caritó... Para evitar tudo isso, vou me casar
com o único homem que tem interesse por mim: meu pai.

D. TELLO Você tá louca? O que tá dizendo?

IRMA Assim tudo ficará em família, pai; teremos filhos que serão nossos irmãos e netos; por sua vez,
minha finada mãe será suafinada sogra, os netos serão sobrinhos, filhos irmãos de seu pai e assim vamos
encher de famílias as casas vazias de Nossa Senhora das Nuvens...

D. TELLO Me solta, Irma! Você tá completamente louca!

IRMA Vamos à igreja, pai... Deus irá compreender. Temos que encher de filhos esse vilarejo.

D. TELLO Você tá louca! Tá completamente louca!

IRMA Não, estou solitária, é preciso encher de solidão este povo.

CENA TRÊS

Bruna lembra como a Vó Josefa contava a Memê, o bobo do vilarejo, sua árvore genealógica. Memê
só emite sons incompreensíveis para que a Avó continue sua contação.

MEMÊ (Girando, com o dedo apontado para o ar) Ete céu... Eta é terra... eta é a minha Vovó... Agora
vai dizê: Memêêêê! Memêêêê!

VÓ JOSEFA Memêêêê!

MEMÊ Viu?

VÓ JOSEFA...e foi assim, Memê, como Don Tello e a Irma encheram de gente este vilarejo,
fundaram, Memê, e fundar um vilarejo; não é qualquer bobagem... Arranca meus cabelos brancos que
te darei uma moeda de prata por cada fio que arranque. (Memê começa a arrancar os cabelos da avó)
Você viu esse que mora em frente à pracinha? Como é o nome dele...? Chamam de Vinagre, pelo
azedume... Como se chama? Bom, esse irmão da Matilde Herrera, a cabelereira celestial, a que cuida do
cabelo dos santos e virgens de Nossa Senhora das Nuvens... Sim, ela é uma cabelereira muito boa; Desde
que ela começou a cortar o cabelo do Santo Antônio, Santo Antônio é outra coisa... Mas o que eu
queria te dizer é o que eu já disse: que são irmãos, mas eles não sabem...

MEMÊ Quem?

VÓ JOSEFA Como quem? O Vinagre e a Matilde! Não tô dizendo? Por sua vez, estão irmanados
com os Vásconez*, mas como os Vásconez são indígenas, não se dão bem; também não se bicam com
os Molina, que sendo seus tios, são dos Costa... Digo, que são tios dos Vásconez, porque do Vinagre e
da Matilde, são irmãos de sangue, ainda que com sobrenomes diferentes... (Memê está se enrolando com
os cabelos da Avó) Mas pelas veias de todos eles corre sangue dos Bezerra...

MEMÊ Bezerra?

VÓ JOSEFA ...que de bovino não têm nada, porque conhecendo a mansidão desses animaizinhos que
nos dão leite e seus derivados, é bem diferente... Ai, meu filho! Se o sobrenome emprestassetambém a
característica do animal, deveriam se chamar Galo, Galo de Rinha, porque são bons pra armar confusão.
Esse sobrenome caiu pra família Gallo justamente porque eles moram no fundo da casa dos Molina,
como um galinheiro. Os Gallo, sabe, são tios do Vinagre e da Matilde... Caiu justamente esse
sobrenome... E os Bravo sãomais bonzinhos que um pão franc ês, e os França são os que moram em
frente à prefeitura... Claro que eles são irmãos dos Bezerra e primos dos Vásconez, mas como eles são
indígenas e não se bicam, se dão bem com os Duque, que vivem como duques às custas dos Vásconez,
que por sua vez são irmãos dos Duque Molina Bezerra, que são os que sempre ganham as eleições,
porque aqui, ganhequem ganhe, sempre ganha a família Robles, que são Duque por parte de mãe e
por parte de pai são Robles, ainda que as más línguas digam que foram os Plaza os verdadeiros pais de
todos os que aqui vivem, menos eu, que sou Villahermosa, de sobrenome, digo. Mas o Vinagre também
é Villahermosa, e por sua vez a Matilde é Armendáriz Salin. Os Salin são turcos do Líbano, e não me
pergunte como um turco pode nascer no Líbano, porque isso é coisa de turco; eu dizia que os
Armendáriz são irmãos dos Vásconez, mas não se dão bem, porque eles são indígenas, mas você,
Memê, é descendente direto dos Vásconez, que ao misturarem com os Nunes que são... De onde são
eles? Pela cor, devem ser de Angola; dessa mistura que você vem, Memê, por isso que é assim, porque
aqui todos somos parentes, e quando o sangue se mistura dá nisso, lerdo e bobão. (Memê está
completamente atrapalhado com os cabelos da Avó) Angelita Vásconez me contava como a difamavam
porque era indígena, e isso me deixa furiosa porque aqui todos temos de tudo, e isso nunca serviu pra
nada. Que pensam os Duque, se sua riqueza fizeram às custas dos Vásconez? Os Molina, com essa pose
de nobre, são uns emergentes; os Robles fizeram fortuna na fronteira contrabandeando miojo, e agora se
te encontram na rua nem te cumprimentam, nós nos matamos trabalhando para que outros vivam como
reis... Os Reis são outros cretinos que de reis só têm o sobrenome, deveriam chamar-se bufões, ao invés
de Reis. Só a morte é justa, porque levará todos por igual, os ricos, os pobres, os espertos, os bestas,
como você, Memê... (Sons de Memê) Memê? (Memê está completamente atrapalhado com os cabelos
da Avó) Que faz no chão, Memê?

MEMÊ Mão. Enganchada...

VÓ JOSEFA Então tira a mão do gancho!

MEMÊ Não... Enganchada... Aqui! Merda... Caraio... Putapaiu!

VÓ JOSEFA Cala a boca, Memê! Não me deixa falar em paz um segundo! É melhor que pelas tuas
veias corra a inocência e a leseira e não a avareza e a solidão como nas veias dos teus outros parentes.
Memê, a tua árvore genealógica é uma selva genealógica.

CENA QUATRO

Bruna recorda como o Governador contou a sua esposa a hecatombe que Memê causou, influenciado
por histórias da Vó Josefa, enquanto dançam uma valsa.

GOVERNADOR Claro que não, Memê! Não! A fundação de Nossa Senhora das Nuvens não foi a
partir de um incesto! Fora do meu gabinete! (Pausa) Fora do meu gabinete! Isso é uma vergonha, uma
vergonha! Querida! Querida!

ESPOSA Sim, meu amor?

GOVERNADOR Sabe quem veio agora há pouco ao meu gabinete?

ESPOSA Eu não, como eu não estava no seu gabinete...

GOVERNADOR Sim, por isso que eu tô te contando... Memê, aquele idiota, veio ao meu gabinete
pra quê, sabe pra quê? Pra me dizerque segundo vínculos familiares recentemente revelados, eu sou o
pai dele... E eu disse: “Veja bem, Memê, eu sou o governador de Nossa Senhora das Nuvens, sou
como um pai da pátria, Memê, mas isso não quer dizer que eu seja teu pai!, é uma metáfora cívica”.

ESPOSA Mas que ideia!

GOVERNADOR E sabe de quem é a culpa?

ESPOSA Minha é que não é.

GOVERNADOR Não, tua não, mas que mania você tem de se culpar por tudo, querida.

ESPOSA É que você sempre diz que eu meto os pés pelas mãos.

GOVERNADOR Mas agora não, a culpa é da avó de Memê, essa velha demerda que inventa histórias
cabeludas, vai lá saber com que propósito.

ESPOSA É preciso manter-se unidos contra esses vagabundos, como você sempre diz.

GOVERNADOR Eu lhe disse, espera um momento, Memê, veja bem, somos um povo religioso e
franciscano, mas isso não quer dizer que sejamos todos irmãos, assim, unha e carne, como se diz
vulgarmente por aí”. Um dia desses esse povinho do vilarejo arma uma baderna descomunal... E aí me
pergunto: Quem é Memê? Quem é Memê?

ESPOSA Bem, o Memê é aquele rapazinho que vive só com a sua avó, e todo mundo diz que é
retardado, mas eu acho que ele é...

GOVERNADOR Não perguntei pra você! Não perguntei pra você!

ESPOSA Mas então perguntou pra quem? Só estamos eu e você aqui!

GOVERNADOR É uma pergunta genérica e abstrata e eu, de maneira geral e abstrata, me respondo:
Memê é um estúpido, um idiota, um pinel!

ESPOSA Um o quê?

GOVERNADOR Um pinel. Agora, imagine que o povo segue esse louco como se fosse um Messias.
Vão acabar armando uma baderna descomunal, aí um dia desses se escutam três tiros e não resta pedra
sobre pedra. E sabe de quem é a culpa?

ESPOSA Minha é que não é...

GOVERNADOR Não, tua, não! Que mania você tem se se sentir culpada por tudo, querida.

ESPOSA É que você faz umas perguntas...

GOVERNADOR Neste caso a culpa não é tua, a culpa é da avó do Memê, essa velha de merda que
anda gritando aos quatro ventos que aqui todos somos irmãos. E sabe o que o Memê disse?

ESPOSA Não, né? É que eu não estava no gabinete...

GOVERNADOR Por isso que eu tô te contando! Pelas abobrinhas desse maluco, esses índios dos
Vásconez arranjaram confusão com os Molina. E tudo por quê? Porque o idiota do Memê veio com o
boato de que a terra pertence a eles. Pra que querem a terra? Já não basta a que tem nas unhas? O que
querem os Vásconez? Que as famílias honoráveis deem de presente o que ganharam com esforço e
sacrifício? Não, por favor, isso é o cúmulo!

ESPOSA Sempre foram uns mortos de fome, e agora querem sentar-se à nossa mesa.

GOVERNADOR E tudo porque essa velha de merda que anda gritando aos quatro ventos que aqui
todos somos parentes. Imagine!

ESPOSA Nem imagino!

GOVERNADOR Nem eu imagino!

ESPOSA E quem teve essa ideia?

GOVERNADOR O idiota do Memê, que não contente com o incômodo causado nas honoráveis
famílias, agora se dedica em inquietar aos populares, como a família Galo, com a fofoca de que a casa
em que moram os Robles pertence a eles, porque o Vovozinho Galo a construiu; claro que construiu,
ele era pedreiro! Queriam o que? Que o bacharel Robles a construísse, ele que era advogado? Assim vão
armar uma baderna, é um povo condenado à desordem e à anarquia, uns vândalos. E tudo por que?
Porque o idiota do Memê enfiou na cabeça que aqui todos somos irmãos. Não, por favor, não vamos cair
tão baixo!

ESPOSA Nós já demos tudo a eles. Que mais querem?


GOVERNADOR Que mais querem? Uma vergonha!

ESPOSA É só darmos a mão, que eles logo querem o braço!

GOVERNADOR Mas quem é Memê para que este vilarejo entre em tal desordem? Um idiota que
não sabe onde nem onde está.

ESPOSA Um pinel sem cura, como você costuma dizer.

GOVERNADOR Imagina que as pessoas seguem essa besta como a um Messias.

ESPOSA Inimaginável!

GOVERNADOR Imagina que esse idiota disse que sou o pai dele!

ESPOSA Você é o pai dele?

GOVERNADOR Pai dele? Claro que não! Além do mais, você saberia, é a minha esposa e eu jamais
teria um filho sem o consentimento da minha esposa.

ESPOSA Mas eu não tive filhos.

GOVERNADOR Nem eu.

ESPOSA O Memê é filho de quem?

GOVERNADOR Não sei. Além do mais, disse que você é minha irmã.

ESPOSA É só darmos a mão...

GOVERNADOR Você é a minha irmã?

ESPOSA Claro que não! Afinal, se você fosse casado com a tua irmã, onde eu dormiria? Não... Eu
seria tua cunhada! Que confusão!

GOVERNADOR Claro que você não é minha irmã!

ESPOSA É o que eu estava dizendo...

GOVERNADOR É que você diz de um jeito...

ESPOSA Eu tava tentando raciocinar...

GOVERNADOR É que é um raciocínio cheio de dúvidas, não dá pra raciocinar desse jeito, um
raciocínio cheio de lacunas, não dá pra ficar dizendo: sim... Talvez... Quem sabe... Aaaaaaahhh! E cair
em um abismo!
ESPOSA Você tá me agredindo.

GOVERNADOR Você não é minha irmã e ponto.

ESPOSA Esse Memê é um idiota! Eu, sua irmã! Imagina!

GOVERNADOR Essa velha tá de sacanagem, tem pensamentos podres. E se fôssemos irmãos, qual
o problema?

ESPOSA Não somos irmãos.

GOVERNADOR E se fôssemos, que que tem?

ESPOSA É, que que tem?

GOVERNADOR É, que que tem?

ESPOSA E se somos irmãos, que que tem?

GOVERNADOR Que que tem? Seria horrível, mas que que tem?

ESPOSA Terrível! Que que tem?

GOVERNADOR Tá me olhando assim por que? Não sou seu irmão.

ESPOSA Tô olhando como sempre olhei pra você, mas se você encontra em meu olhar algum sinal
familiar é culpa sua, algum motivo há de ter. Você tá me escondendo algo?

GOVERNADOR Você acha que estou escondendo algo porque com certeza você tá escondendo
algo.

ESPOSA Não sou a sua irmã, pra que me trate assim.

GOVERNADOR Eu não disse que você é minha irmã.

ESPOSA Tá insinuando na forma de tratar.

GOVERNADOR Depende do maltrato que você me faz.

ESPOSA (Depois de uma pausa) Tenho medo. Por via das dúvidas, nunca mais dormiremos juntos,
não nos beijaremos na boca, nãonos acariciaremos nunca mais.

GOVERNADOR Esse idiota conseguiu fazer que duvidemos do quesomos. A tarde não passa, a
noite não cai. Viveremos sempre no acinzentado do crepúsculo, conseguiram nos arrastar à melancolia
desse idiota; este vilarejo se afunda na tristeza e na dúvida.
CENA CINCO

Segundo encontro de Bruna e Oscar

BRUNA Nós, os exilados, somos gente triste, propensos a imaginar coisas que nunca aconteceram,
recordar feitos que nunca houveram, até o dia em que nos surpreendemos com a morte de um país
estrangeiro do qual só recordamos que havia um homem que tocava piano.

OSCAR Perdão, acho que vi a sua cara por aí.

BRUNA É possível, eu sempre a esqueço nas cadeiras onde tento botar a cabeça no lugar.

OSCAR Não foi você que me contou aquela história da fundação de Nossa Senhora das Nuvens?
Sem dúvida, uma história cabeluda, a de Memê e Irma e todo aquele...

BRUNA Claro, você era... Sim, me lembro, sente-se. Já jantou?

OSCAR Não.

BRUNA Nem eu.

OSCAR É que eu janto às oito; mas, como agora não tenho relógio...

BRUNA Tive um gato vermelho que atacava os relógios; cada vez que o ponteiro dos segundos se
mexia, meu gato vermelho avançava!

OSCAR Não resistia ao passo do tempo?

BRUNA Talvez. Destruiu vários relógios até que o sacrificamos... acho que era três e quinze, ou seis
da tarde, numa segunda, acho... ou terça; não me lembro bem, só sei que o sacrificamos porque tinha
fobia a relógio.

OSCAR Um livro sagrado disse: “amai a vossos animais como a vós mesmos”.

BRUNA O problema é quando alguém odeia a si mesmo.

OSCAR Não entendi.

BRUNA Tenho visto muitas vezes os homens tratarem os animais como são tratados por outros
homens. Somente se algum dia as coisas mudarem, os homens e os bichos comerão à mesma mesa.

OSCAR Isso soou bem religioso.


BRUNA O bom de se exilar em um país latino-americano é que não se perde a raiz religiosa; perde-
se a dignidade, mas não a raiz religiosa.

OSCAR Eu acho que existem dois tipos de exílio: o exílio de férias, com vista pro mar, reservado para
gerentes, ministros e ex-presidentes, eo exílio dos que não têm relógios, ou seja, nós. Também acho que
existem dois tipos de dignidade: a dignidade dos dignos, e a dignidade dos que não são dignos de
dignidade, porque não tem relógios, ou seja, nós.

BRUNA Pra mim, o exílio é um problema de abraços.

OSCAR Como assim?

BRUNA Veja, quando eu era criança, abraçava meu cachorro, então meus pais se zangavam e me
exilavam no meu quarto; na adolescência, abracei um rapaz e ele me exilou na saudade; em seguida, já
adulta, abracei ideias e me exilaram neste país, sem contar as vezes que fui castigada quando tentei
abraçar a religião. Agora, por via das dúvidas, não abraço a ninguém.

OSCAR E como faz amor?

BRUNA Sem abraçar.

OSCAR E o afeto, o carinho?

BRUNA Tenho observado que os presidentes se abraçam cada vez que se encontram, e alguns se
beijam; não acredito que isso pressuponha que depois eles tenham que ir pra cama.

OSCAR Conclusão: você não gosta de abraços.

BRUNA Eu gosto quando não são os braços, e sim as asas que abraçam; os braços para o trabalho e
as asas para os abraços.

OSCAR Conheci uma menina que tinha asas.

BRUNA É?

OSCAR Sim, e por mais que pareça mentira, se chamava democracia, Democracia da Silva, e por
mais que pareça mentira, a violaram.

BRUNA É que esse nome é um convite ao estupro.

OSCAR Uma noite... a destroçaram, pobre menina... Uma gangue.

BRUNA Uma gangue legislativa?

OSCAR Sim, mas se decepcionaram, ela já havia sido violada por uma gangue executiva. Sua família,
gente de muito dinheiro, a escondeu, imagine...
BRUNA Claro, não se pode andar por aí exibindo uma violada como se tratasse de uma constituição.

OSCAR Sem dúvida, e isso porque era um bom partido, cheio de gente altruísta, limpinha.

BRUNA Tomavam banho.

OSCAR Claro, e saíam do chuveiro aos gritos: “estamos limpos e não aceitaremos calúnias contra
nós!”

BRUNA Com certeza lavaram seus antecedentes.

OSCAR O que quer dizer?

BRUNA Que um homem que faz política deve ter um passado limpo, sem manchas; sem passado, se
possível.

OSCAR Perdão, eu não falava de política.

BRUNA Nem eu, ainda que às vezes me pergunte de onde vêm os políticos.

OSCAR E o que tem se respondido?

BRUNA Que não vêm de nenhum lugar, sempre estiveram ali.

OSCAR Ali? Onde?

BRUNA Ali, nos chuveiros, esfregando a consciência com pedra-pome. Mas quem consegue apagar
as listras da zebra?

OSCAR Isso é muito certo. Quem consegue apagar as listras da zebra? A propósito, me surpreendi
com a quantidade de termos de higiene aplicados na vida política. Por exemplo: um passado sem
manchas, um histórico brilhante, uma lavagem de dólares, o que me levou à pergunta: que tipo de
detergente um país deve usar para limpar o fracasso que gruda na pele como graxa?

BRUNA Não fique triste, também se aplicam termos musicais à vida política, por exemplo, um
concerto de nações.

OSCAR A propósito, nesse concerto, que instrumento musical você daria ao nosso país?

BRUNA Um bumbo.

OSCAR Por que?

BRUNA Porque faz muito barulho, é escandaloso e poderia perfeitamente nem existir.
OSCAR Voou alto, hein?

BRUNA É que tenho asas, por isso me custa tanto abraçar.

OSCAR E como você faz amor?

BRUNA O que isso tem a ver? Estávamos falando de asas!

OSCAR Digo... Sem abraçar! Como faz amor? De peixinho, como os pinguins?

BRUNA Veja bem, eu não faço amor, o amor é que me faz e medesfaz, o que não deixa de ser um
disparate; é como se um raio de lua derretesse a manteiga.

OSCAR Não entendi.

BRUNA No amor não há o que entender.

OSCAR Como não, se podemos defini-lo?

BRUNA Sim, se tiver tempo e vontade, por exemplo, poderíamos dizer que atrás de um biombo
podemos nos despir do coração, e depois pintar o céu com uma escova de dentes e cortar queijo com a
espada de Cid, e depois morrer de solidão até que alguém nos ressuscite, e outra vez vamos para atrás
do biombo. Cheguei à conclusão que o amor é dar-se mas, por favor, que me devolvam.

OSCAR Não tem se dado bem no amor?

BRUNA Não me queixo, no entanto ainda não aprendi a me despir sozinha atrás de um biombo... A
propósito, houve amor em Nossa Senhora das Nuvens?

OSCAR Claro, lindas histórias de amor, especialmente quando os irmãos Aguilera diziam galanteios
às mulheres, lembra?

BRUNA Não.

OSCAR Escute...

CENA SEIS
Oscar recorda os galanteios dos irmãos Aguilera. Bobagens e excitações que desabrocham paixões
em Nossa Senhora das Nuvens.

IRMÃO 01 Quando te vejo vindo, tu pareces uma estátua, e quando te vejo partir, te desestatuo com
a olhar. Quando te vejo vindo, as flores me crescem nas mãos e um junco no meio da água.

IRMÃO 02 Queria ser um parafuso e tu, minha arruela... Então eu... Enrosco. (Olhar de censura do
Irmão 01)

IRMÃO 01 Queria violar... tua intimidade, queria violar teu espaço vital, queria violar tua
correspondência, violar teu silêncio, porque com ele tu violastes todos os meus desejos... (Gestos como
se dissesse: como recito bem)

IRMÃO 02 Queria ser uma tocha... (Olhar de censura do Irmão 01) para iluminar as noites.

IRMÃO 01 Queria ser a lágrima que deixa a chuva em teus cabelos.

IRMÃO 02 Queria ser... queria ser... Como se chama aquele equipamento para detectar submarinos?

IRMÃO 01 (Interrompendo) Adeus te digo à tarde e a tarde tosse e suscita girassóis sob teu
decote.4
IRMÃO 02 (Com ímpeto) Adeus mamãezinha, mamã, mainha, mãezinha, mamacita... Mãe?
Adeus, mãe.

IRMÃO 01 Queria ser marinheiro e que tu fosses minha corveta.

IRMÃO 02 E eu queria ser corveta... (Silêncio) Queria ser corveta... (Não sabe como
continuar) Queria ser corveta.

IRMÃO 01 Queria ser teu trenó e que tu fosses meu cãozinho para que me arrastes do frio ao fogo.

IRMÃO 02 Queria ser papoula e que tu fosses florista ou tinteiro... para untar meu talo à sua
tinta.

IRMÃO 01 Para outra não tenho olhos, o que significa que és a menina dos meus olhos.

IRMÃO 02 Para outra não tenho mãos, o que significa que és meu pulso... (Mostra a seu irmão
o pulso, tentando explicar seu galanteio)

IRMÃO 01 (Censurando-lhe) Queria que fosses porta, para poder fechá-la.

IRMÃO 02 (Respondendo) Tu és a larva que nunca será mariposa.

IRMÃO 01 (Aborrecido) Pegaste meu amor e nunca me devolveste.

IRMÃO 02 Minha vida é um deserto e tu sequer um camelo.

IRMÃO 01 Do nosso amor não resta mais que uma camisa amassada.

IRMÃO 02 Me saíram garras quando entrou um réptil na minha cama.

IRMÃO 01 (Mudando ante a presença de uma mulher) Queria ser um hematoma e estar sempre na
tua boca.
IRMÃO 02 Queria estar esgotado.

IRMÃO 01 (Interrompendo-o) Queria ser a sombra da tua língua para estar sempre na tua boca.

IRMÃO 02 Queria...

IRMÃO 01 Queria ser a pele dos teus lábios e estar sempre na tua boca.

IRMÃO 02 (Explodindo) Basta, acabou! Eu também quero estar dentro da tua boca, ser tua escova
de dentes, teu dentista, um insulto... Uma pessoa desprezível, alguém que te traiu, que roubava dinheiro
do teu criado-mudo à noite e bebia em botecos pé-sujo, que te enganou, aquele a quem diariamente
insultas e que conseguiu o que queria: estar uma porra de uma vez na tua boca, como um hematoma,
como uma baba, um tártaro, uma afta, como uma sombra... (Pausa) que enche tua boca de palavras
sombrias.

IRMÃO 01 (Pausa) Quando te vejo vindo, me cresce um junco no meio da água...

CENA SETE

Oscar recorda como Ângela Lucien, afetada pelas palavras dos irmãos Aguilera, decide visitar seu
marido, o maestro Renan, diretor da Sinfônica de Nossa Senhora das Nuvens que, em pleno ensaio, se
sente incomodado pela presença de Ângela. A música suave, no princípio, vai se desestruturando até o
final da cena.

ÂNGELA Renan, meu amor... Vinha caminhando pela praça e esses charmosos dos irmãos Aguilera
me disseram coisas, Renan... Essas palavras... Não são galanteios comuns, não, te desnudam com
as palavras... Renan? Tá me escutando?

RENAN Sim, Ângela, meu amor, mas você não deve vir ao ensaio, os músicos resmungam
quando te veem chegar, meu amor.

ÂNGELA É que aquelas palavras me excitaram e senti desejo de te ver, Renan.

RENAN Meu amor, mas os músicos... Veja como nos olha o primeiro violino, nos olham feio,
Ângela.

ÂNGELA O que você quer que eu faça, Renan, mas continue regendo, você fica tão bonito com o
pauzinho na mão.

RENAN Ângela, os músicos reclamam quando te veem chegar.

ÂNGELA Inveja, Renan, o que acontece é que eles não têm uma esposa que venha vê-los no
ensaio.

RENAN Olhe o percussionista, com que força bate nos timbales, bate e nos olha, bate e nos olha.

ÂNGELA (Pegando uma tortilla) Meu amor, trouxe uma tortilla debatata, com pimentão e cebola,
do jeito que você gosta.

RENAN Ângela, por favor, estou regendo uma orquestra, não posso reger música e comer tortilla
ao mesmo tempo.

ÂNGELA Você sempre disse que gosta da minha tortilla!

RENAN Eu gosto, meu amor, eu gosto, mas não nessas circunstâncias.

ÂNGELA Está bem, não te perturbo mais, Renan.

RENAN Obrigado. (Pausa)

ÂNGELA Renan... (Pausa) Renan!

RENAN O que você quer agora?

ÂNGELA Tem muitos russos na sua orquestra.

RENAN Armênios.

ÂNGELA Digamos que são a mesma coisa.

RENAN Digamos, mas não são a mesma coisa.

ÂNGELA Tem certeza que não quer tortilla?

RENAN Me deixa ensaiar, Ângela. Me deixa ensaiar.

ÂNGELA Está bem, Renan, está bem, você nunca me tratou dessa maneira!

RENAN Mas meu amor...

ÂNGELA Eu sempre fui gentil e amável, ainda que às vezes me exceda, eu reconheço, mas faço tudo
por amor.

RENAN Ângela...

ÂNGELA (Aflita) Se fosse possível jogar fora todo o amor que se sente, como quando sacudimos a
terra de um tapete, ah, se fosse possível... Eu jogava, Renan, juro por minha santa mãe que eu jogava...
Adeus.
RENAN (Interrompendo-a) Mas me entenda, Ângela, meu amor...

ÂNGELA Se você quer que eu vá, eu vou.

RENAN Está bem, fique, mas quieta.

ÂNGELA Obrigada. (Pausa) Tem certeza que não quer tortilla?

RENAN Não, Ângela, e faz silêncio, por favor.

ÂNGELA Está dormindo.

RENAN Quê?

ÂNGELA O que toca oboé está dormindo.

RENAN Está concentrado.

ÂNGELA Pois eu digo que está dormindo.

RENAN Basta, por favor, basta!

ÂNGELA Mas olha pra ele! Se eu fosse você, colocava aquele dos pratos ao lado dele, pra acordá-
lo.

RENAN Ângela, cale-se! Eu sei o que se passa com meus músicos, eu sei quando estão dormindo,
quando tocam, quando estão tristes, sei tudo sobre meus músicos, tudo.

ÂNGELA E se sabe tudo dos seus músicos, porque comigo você desafina tanto?

RENAN Ângela, por favor, não levante a voz.

ÂNGELA Você nunca toca meu instrumento, e quando toca, só consegue tirar música regional.

RENAN Fala baixo, Ângela, fala baixo.

ÂNGELA Não vou falar baixo, olha só você com esse pauzinho na mão.

RENAN Batuta, isso se chama batuta.

ÂNGELA Pra mim é pauzinho... Mas o que seria de você se te tirassem o pauzinho? Se sente todo
poderoso com o pauzinho na mão, a Deus rogando e mexendo o pauzinho...

RENAN Ângela, meu amor...


ÂNGELA Não tenha pena de mim, Renan; eu sei que você é um artista e eu sou um estorvo, uma
coisa sem sensibilidade, prefiro o ódio à pena... O segundo clarinete tá desafinando. Eu me sacrifiquei
praque você pudesse fazer música... Perdão... Senhor do trompete! Pode tocar um pouquinho mais baixo,
eu tô tentando falar com meu marido. Obrigada...

RENAN Ângela! O que tá fazendo? Vai me fazer explodir!

ÂNGELA Não seja ridículo, você nunca explodiu! Eu não aguento, Renan, o clarinete tá desafinando,
eu não aguento... (Gritando) Senhor! Onde aprendeu a tocar clarinete?

RENAN Ângela, fica quieta, eu sei que ele desafina.

ÂNGELA E por que não diz nada?

RENAN Porque ele é armênio, não me entende.

ÂNGELA Me empresta essa batuta e vai ver como ele para de desafinar.

RENAN Não, meu amor, a batuta é minha.

ÂNGELA Isso te dá poder, né?

RENAN Eu queimei as pestanas por quinze anos no conservatório pra ter uma batuta, e você não vai
me fazer largar.

ÂNGELA Isso é abuso de autoridade, Renan. Me empresta a batuta.

RENAN Chega, Ângela, olha como os músicos estão resmungando, olha como o trompetista baba de
raiva, olha como se treme todo o violinista, olha, Ângela, olha...

ÂNGELA Me dá a batuta.

RENAN Assim vai acabar correndo sangue por aqui.

ÂNGELA Quem vai correr é você. (Tentando pegar a batuta)

RENAN Solta, miserável.

ÂNGELA Miserável é a sua mãe!

RENAN Não mete a minha mãe no meio! (Disputam, a música se descompassa, a batuta se
quebra)

ÂNGELA O pauzinho quebrou!

RENAN Você quebrou!


ÂNGELA Nós quebramos!

RENAN E agora, o que eu faço sem batuta?

ÂNGELA Nada. (Pausa)

RENAN Por mais estranho que pareça, me sinto mais aliviado sem a batuta na mão.

ÂNGELA Agora você tem as mãos livres.

RENAN Pra fazer o que, meu amor?

ÂNGELA Pra tocar meu instrumento e comer tortilla de batata!

CENA OITO

Oscar se lembra de como Soledad foi visitar a seu esposo Juan, que está no hospício. Ela está
afetada pelas palavras dos irmãos Aguilera.

SOLEDAD Eu vinha pela praça, e os irmãos Aguilera me disseram uns galanteios e me deu
vontade de vir te visitar.

JUAN A mim?

SOLEDAD É.

JUAN Os irmãos Aguilera dizem galanteios bonitos?

SOLEDAD Pois é, um pouco desbocados...

JUAN Você vem me ver porque me ama.

SOLEDAD Não há nada mais alegre do que vir te ver.

JUAN Estou há quanto tempo neste lugar?

SOLEDAD Um ano.

JUAN O que eu fiz?

SOLEDAD Você inventou a pólvora e as rabanadas, depois ficou em silêncio alguns meses, e
quando falou de novo foi pra dizer que tinha inventado a rosa dos ventos e as gaivotas.
JUAN Mas essas coisas já tinham sido inventadas.

SOLEDAD Por isso te internaram aqui, por inventar coisas que outras pessoas já tinham inventado.

JUAN O bom de estar aqui é que você pode inventar coisas sem correr o risco que te internem,
porque você já está aqui, mesmo.

SOLEDAD É bom inventar coisas que já inventaram. Cada vez que você faz alguma coisa, inventa,
né?

JUAN Pois é.

SOLEDAD Às vezes invento que você volta pra nossa casa, então estendemos um lençol no quintal
e contamos as estrelas até que amanheça, mas claro que não digo isso a ninguém, talvez porque não
tenho coragem de me expor e me chamarem de louca, então enlouqueço em silêncio, sem que ninguém
saiba... é triste estar louca dessa forma.

JUAN (Depois de uma pausa) Eu inventei uma canção.

SOLEDAD Ah, é?

JUAN É.

SOLEDAD Quer cantar pra mim?

JUAN Sim... não.

SOLEDAD Canta.

JUAN Certeza?

SOLEDAD Certeza.

JUAN Bom...“Ela era boa e ele era bom um sol bondoso os aquecia era muito bom porque pegava
um espelho que era muito bom ela, ele e o gato se refletiam cara de bons eles tinham e bondosamente
se surpreendiam porque ela era boa e ele era bom e o gato era bom e um sol bondoso os aquecia tinham
um gato que era muito bom...” E assim se repete até que alguém se canse de cantar e se cale.

SOLEDAD Uma canção linda, como as que você costumava cantar quando te conheci.

JUAN Faz tempo.

SOLEDAD Sim, mas eu tenho um álbum de fotos onde o tempo não passa; às vezes eu o abro e posso
sentir o cheiro que nós tínhamos então.
JUAN Cheirávamos mal?

SOLEDAD (Rindo.) Não.

JUAN Eu já não tenho cheiro, nem ruim, nem bom.

SOLEDAD Eu também não.

JUAN Por que?

SOLEDAD Não sei, talvez porque aos vinte anos um só cheiro nos envolvia... dizem que o amor é
uma flor com dois perfumes, e se essa flor morre...

JUAN Você seria capaz de me matar?

SOLEDAD Por que?

JUAN Porque nesse lugar... estou um pouco morto.

SOLEDAD Mas você pode ir embora e voltar pra casa...

JUAN Eu falei desse lugar... na minha cabeça? Às vezes escuto um barulho como se soprasse vento
na minha cabeça, como se esse vento arrastasse laranjas podres e jornais velhos, e arrastasse pobreza, e
esse vento não me despenteia, porque passa por dentro de mim... bem dentro. Eu queria te amar melhor,
mas esse vento não me deixa te ver com clareza, então a vida vai de vento em popa e eu não posso...
sou uma sombra daquele rapaz que costumava cantar canções.

SOLEDAD (Enquanto o mata suavemente) Uma vez, há muitos anos, havia um jovem em um
vilarejo que costumava cantar canções de amor muito tarde da noite; as pessoas não gostavam dele
porque tinham que trabalhar pra viver, e essas canções lhes roubava horas de sono, mas o rapaz seguia
sempre cantando sua canção; umanoite ouviu-se um tiro, não se sabe quem disparou; o rapaz saltou e
a bala roçou seu ombro e acertou o chão. O rapaz saiu correndo, mas sua sombra ficou morta no
chão, e as sombras não cantam canções de amor.

CENA NOVE

Terceiro encontro entre Bruna e Oscar

BRUNA O exílio começa quando começamos a matar as coisas que amamos; mas não matamos elas
de uma vez, talvez por anos... É como se o tempo nos pusesse uma faca nas mãos, e com ela matássemos
os instantes nos quais alguma vez fomos felizes; não o fazemos com fúria, porque não creio que o tempo
atue com fúria sobre nossas pobres lembranças, fazemos com a mesma suavidade com que essas
lembranças se fazem presentes, e com a mesma violência com que se produz o “depois”, o “não me
lembro” e o “como se chamava”.
OSCAR Não pode ser! Essa gente me olha como se eu fosse um marciano!

BRUNA Perdão, acho que vi a sua cara por aí.

OSCAR Impossível, tenho só uma cara e a uso pouco.

BRUNA Claro! Foi você que me contou aquelas histórias de amor, um pouco truculentas.

OSCAR Ah, você era... Claro! O que você tá fazendo?

BRUNA Recitando.

OSCAR Você é poetisa?

BRUNA Sim.

OSCAR Recite algo que se possa dançar e saibamos todos.

BRUNA Com prazer: as pobres casas de Nossa Senhora das Nuvens fazem chapinha nos dias quentes
de agosto, e nos dias chuvosos de abril se despenteiam. As viaturas policiais de Nossa Senhora das
Nuvens bocejam suas janelas de onde nos gritam escopetas anãs.

OSCAR Por fazer esses poemas dançantes a expulsaram do seu país?

BRUNA Em meu país dançar era considerado delito de segundo grau.

OSCAR Mas são poemas inocentes.

BRUNA Em meu país nada era inocente.

OSCAR Mas agora não se persegue mais por fazer poemas.

BRUNA Agora ninguém é exilado por motivos políticos, se exila porque fizeram um desfalque, ou
porque roubaram.

OSCAR Eu acho que ainda existe um exílio por motivos políticos.

BRUNA Qual?

OSCAR Aquele em que se exila por fome. A fome é a forma mais sutil de perseguição política.

BRUNA É seu esse pensamento?

OSCAR Não, comprei na venda da esquina; ficou um pouco largo, mas encolhe na primeira
lavagem.
BRUNA Por que nos olham dessa maneira?

OSCAR Viu só? Nos olham como se fôssemos marcianos.

BRUNA Será que é porque falamos diferente?

OSCAR Se acham os donos deste país.

BRUNA Só porque chegaram aqui antes de nós.

OSCAR Uns descarados.

BRUNA Me deixaram aborrecida. Que direito têm de nos olhar assim?

OSCAR Se eu fosse você, falaria no idioma deles, e lhes diria que não vamos mais permitir ultraje.

BRUNA (Em inglês) Senhores, somos exilados, e lhes damos cinco minutos para que nos deixem um
lugar em suas casas e nos convidem para almoçar, não temos papéis nem passaportes e suas leis não nos
interessam, o mundo é de todos os serem humanos, estamos fartos de que nos tratem a patadas e estamos
fartos que nos peçam documentos em cada esquina, como se um documento fosse mais importante que
um sentimento.

OSCAR (Pausa) O que você disse a eles?

BRUNA Nada... Que viemos de um país distante que já não existe porque nós deixamos de existir
nele, um país onde cresciam as castanheiras e os álamos, e pessoas que não nos olhavam assim.

OSCAR Agora não nos olham como marcianos, olham com pena.

BRUNA Não nos resta mais que seguir recordando que alguma vez fomos de um lugar onde não nos
olhavam assim.

CENA DEZ

Bruna recorda como morreram dois militantes nos anos de violência. Dois personagens, Alicia e
Frederico, se movem mecanicamente, e têm os rostos cobertos.

ALICIA Suponhamos que eles chegam e derrubam as portas...

FREDERICO Suponhamos que temos um minuto para fugir.

ALICIA Suponhamos que a porta está travada, e ganhamos um minuto para fugir.
FREDERICO Suponhamos que estamos dormindo.

ALICIA Suponhamos que acordamos de repente, e você consegue fugir e ganha a rua, e eu vejo a
tua imagem, se afastando, e é a última coisa que vejo neste mundo...

FREDERICO Suponhamos que é você quem consegue fugir e ganha a rua, e eu vejo a tua imagem,
se afastando, e é a última coisa quevejo neste mundo...

ALICIA Suponhamos que nós dois conseguimos fugir...

FREDERICO Suponhamos que conseguimos fugir os dois e eles ficam sós nesta casa, junto aos
nossos livros cheios de boas intenções...

ALICIA Suponhamos que eles, cheios de raiva, queimam nossos livrose nossas boas intenções...

FREDERICO Suponhamos que nenhum de nós dois escapa.

ALICIA Suponhamos que caímos abraçados porque nos amávamos tanto.

FREDERICO Suponhamos que nos derrubam abraçados.

ALICIA Suponhamos que nos fazem desaparecer.

FREDERICO Suponhamos que desaparecemos completamente.

ALICIA Suponhamos que estávamos enganados, porqueacreditávamos que éramos os únicos que
não podíamos morrer.

FREDERICO Suponhamos que tudo foi um grande engano, porque certamente podíamos morrer
como morremos.

ALICIA Suponhamos que começamos tudo de novo.

FREDERICO Suponhamos que nos enganamos de novo.

ALICIA Suponhamos que não temos tempo e nos matam de novo.

FREDERICO Suponhamos que outros enganados recorrem aos nossos enganos e, por engano,
fazem um mundo melhor.

ALICIA Suponhamos... que não é assim que nos afogamos em nossos enganos.

FREDERICO Suponhamos... que nos olham com raiva e sem indulgência.

ALICIA Suponhamos que nos esquecem.


FREDERICO Suponhamos que não nos esquecem.

ALICIA Suponhamos...

FREDERICO Suponhamos...

CENA ONZE

Bruna recorda uma última imagem: a de um homem solitário em um bote num lago.

HOMEM Um garoto me ensinou o ofício de pescar com pelicanos; fui até o mar e trouxe um. Não
precisei de gaiolas ou armadilhas; só foi necessário falar com ele, convencê-lo... Lhe disse: “quero ter
um ofício impossível: pescar com você, que é pelicano, para mostrar à minha única filha que se pode
sonhar com algo impossível, pescar com pelicanos...” Estiquei a vara e o pássaro pousou suavemente, e
assim o trouxe; no começo ele sentia saudade dos rochedos e dos golfos, mas logo se acostumou a viver
longe de sua praia. E tudo por quê? Porque o convenci que se pode fazer coisas impossíveis. Comecei o
trabalho amarrando uma fita vermelha no seu pescoço. Logo ele mergulhou na água e voltou com a boca
cheia de peixes, e a fita vermelha não deixava que ele os engolisse. Ele sabia que só eu poderia tirar a
fita vermelha, por isso vinha a mim com a boca cheia de peixes, eu abria a sua boca, pegava um peixe,
afrouxava a fita e ele engolia o resto dos peixes. Parece cruel, mas apenas se tratavade uma pequena
sociedade impossível... Assim passávamos os dias, o pelicano e eu... às vezes tristes, às vezes alegres...
que pena, minha filha, que te mataram nesse vilarejo, assim você nunca poderá aprender um ofício
impossível: pescar com pelicanos.

CENA DOZE

Bruna se lembra como a Vó Josefa morreu nos anos de violência.

VÓ JOSEFA Mas vejam o que temos aqui! O pequeno Memê...

MEMÊ Vovó!

VÓ JOSEFA Vem, Memê, faz companhia pra tua avó tomar um banho de lua. Eu sei que é proibido
sair de casa depois das dez, mas essa noite a lua parece uma bola de névoa; a noite está tão clara que
posso ver como as casas de Nossa Senhora das Nuvens começam a apodrecer, como os faróis choram
lâmpadas apagadas... Olha, Memê, olha como chove farinha... Não, não é névoa, Memê, é farinha ou
talvez seja um deus terrível que está fumando cachimbo ejogando baforadas de fumaça sobre nós... Vem,
não tenha medo; já não basta o medo das casas trêmulas de Nossa Senhora das Nuvens... Veja, tem
uma espada cravada nos tetos, por isso não voam... Vizinhos, abram suas janelas, abram suas asas
que esta noitetem lua cheia!

MEMÊ Vovó... Soldados! Não, não!

VÓ JOSEFA Não vou me calar, Memê! Já não basta o silencio que nos deixa a fome e a desolação,
não vou me calar porque estou mais triste que um gato castrado, que um pensamento pendurado em um
cabide, que uma paisagem pintada por um homem sem orelha... Não vou me calar porque não tenho
vontade de me calar!
Sou uma velha que sempre tomou banhos de lua... Minha mãe, minha avó, em noites como essa,
tomaram banhos de lua. Posso ver seus corpos molhados pela luz da lua, como lhes alisa o cabelo,
como as deixa prateadas. Devemos ter a fortaleza suficiente para noites como essa, oferecer a nossa nuez
para que se molhe com a lua, ou do contrário somente teremos forças para fechar as janelas e nos
sepultarmos cheios de temor em nossas trêmulas casas... (Pausa. Mudando.) Mas vejam quem temos
aqui, o pequeno Memê! Vem, Memê, veja esse pontinho vermelho no meu coração, tá vendo? Se
aproxime... Veja por dentro e talvez veja um montão de gente tomando banhos de lua em noites como
essa...

MEMÊ Vovó? Vovó...? (Pausa) Ete... Ete céu... Eta é terra... eta não... Vovó... Não Vovó, já não
Vovó... (Memê pega o corpo inerte da avó e coloca em um tecido. A última imagem é de Memê,
arrastando o corpo da avó e dizendo insultos incompreensíveis pelas ruas de Nossa Senhora das
Nuvens).

CENA TREZE

Última conversa entre Oscar e Bruna

OSCAR Que estranho, acho que vi a sua cara por aí, mas não me lembro onde, talvez naquela rua...
Como se chamava? Terminava em um rio, como um suicida.

BRUNA A rua morria no rio, sim, deixava de ser rua para ser leito, mas não consigo lembrar como se
chamava aquela rua e aquele rio.

OSCAR E aquela senhora, como se chamava?

BRUNA A senhora que vendia fósforos? Sim, e nas caixinhas vinham artistas de cinema, então eu
organizava as caixinhas até fazer um filme; eu era criança e só tinha medo de que aquela senhora
desaparecesse com seus fósforos e eu não pudesse terminar o filme. Sabe, às vezes tenho medo de ficar
vazia, quero dizer, que todos meus fósforos se queimem e não sobre nada mais que um monte de imagens
desordenadas com as quais não se possa fazer... um filme, uma vida, algo para sofrer, vazia e assustada,
ao dar-me conta que o que vivi cabe em uma caixa de fósforos vendida por uma senhora... Como se
chamava? Posso ver a esquina e a rua, mas não consigo lembrar o nome dela.

OSCAR Não se preocupe, o esquecimento nos consumirá, porque não temos alma... Como se chamam
as imagens que vêm depois do ato de fechar os olhos?
BRUNA Como se chama isso...?

OSCAR Não importa, estamos lá.

BRUNA Na cabeça de alguém que fechou os olhos e respira com dificuldade, e que move com
desespero duas esferas debaixo dapele de suas pupilas, como se observasse algo que desaparece no
tempo e não pudesse fazer nada para evita-lo.

FIM

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