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A essência do Evangelho

de Paulo
A essência do Evangelho
de Paulo

Marcos Granconato

São Paulo / 2009


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
CIP-Brasil. Catalogação na fonte

G7624e Granconato, Marcos


A essência do evangelho de Paulo/Marcos Granconato
São Paulo: Arte Editorial, 2008
160 p.: 14X21 cm

ISBN: 978-85-98172-38-5

1. Evangelho 2. Carta de Paulo I. Titulo

226 CDD

Copyright © 2009 por Arte Editorial. Todos os direitos reservados.

Coordenação editorial e projeto gráfico: Magno Paganelli


Revisão: Marcelo Smeets
1ª Edição: janeiro / 2009
Publicado no Brasil por Arte Editorial

Todas as citações bíblicas foram


extraídas da Nova Versão Internacional
(NVI), © 2001, publicada pela Editora
Vida, salvo indicação em contrário.

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SUMÁRIO

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Aspectos Introdutórios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
Autoria, data e destinatários. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
Ocasião e propósito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12
Contribuição para a doutrina cristã. . . . . . . . . . . . . . . . . .14

1 - O EVANGELHO VERDADEIRO
E SUA SINGULARIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Saudações iniciais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
A ameaça de um outro evangelho. . . . . . . . . . . 20
A origem divina do evangelho. . . . . . . . . . . . . . . 25

2 - O EVANGELHO VERDADEIRO E
SUA INDEPENDÊNCIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
A unidade apostólica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
A simulação de Pedro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42

3 - O EVANGELHO VERDADEIRO E SEU PODER. . . . . . 49


A inutilidade do zelo legalista. . . . . . . . . . . . . . . . 49
A bênção que vem da fé. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
A maldição da lei. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
A harmonia entre a promessa e a lei. . . . . . . . . . 63
6 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

4 - O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE. . . . . . . . 73


O fim da escravidão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
O perigo de uma nova escravidão. . . . . . . . . . . . . . . . 78
Apelos, lembranças e anseios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
O contraste entre Sara e Hagar. . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

5 - O EVANGELHO VERDADEIRO E AS
VIRTUDES ESPIRITUAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .99
Prejuízos do legalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Uma corrida interrompida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
O amor é o cumprimento da lei. . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
A vida sob o controle do Espírito. . . . . . . . . . . . . . . 115

6 - O EVANGELHO VERDADEIRO E OS
DEVERES CRISTÃOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
Cuidando dos outros e de si mesmo. . . . . . . . . . . 129
A colheita futura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
O que realmente importa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

APÊNDICE - O CURSO POSTERIOR DO


LEGALISMO JUDAICO-CRISTÃO. . . . . . . . . . 143
NOTAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
“Senhor Deus único, Deus Trindade, o que
disse nestes livros, de teu, reconheçam-no
os teus; o que neles disse de meu, perdoa-
me Senhor, e perdoem-me os teus. Amém.”
(Agostinho de Hipona. De Trinitate)
prefácio

Quando comecei a estudar teologia, quatro décadas atrás,


um livro foi muito importante para mim. Tratava-se do
comentário de Merrill C. Tenney sobre a carta de Paulo aos
Gálatas. Além de trazer uma significativa contribuição à defesa
da suficiência e exclusividade da graça, Tenney ensinava seus
leitores, mesmo os mais inexperientes e desavisados, como
eu, a ler a Bíblia com método e objetividade.
Quarenta anos depois, percebo que a Igreja não aproveitou
o suficiente daquela histórica publicação. Legalismos de
diversos matizes e matrizes ameaçam roubar à igreja brasileira
a singeleza de sua fé, oferecendo outros (e falsos) evangelhos,
apelando à mesma insensatez que atacou os gálatas de outrora.
Tenho, em tal situação, a alegria e a honra de apresentar à
Igreja brasileira um novo comentário sobre a carta aos
Gálatas. O que me influenciou, trazia a marca de alguém que
fez da cátedra um púlpito; o que apresento, A Essência do
Evangelho de Paulo, traz a marca de alguém que faz do púlpito
uma cátedra – que, como eu, ainda acredita que uma igreja
forte tem um púlpito onde o ensino da Palavra filtra e corrige
as cosmovisões oferecidas à igreja pela mídia secular e,
infelizmente, por alguns que “mercadejam a Palavra de Deus”
por todos os meios que a (pós-) modernidade oferece.
10 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Marcos Granconato refuta tais idéias de maneira persuasiva


e simples, sem deixar de lado a erudição. Professores e pastores
usarão com proveito este livro, tanto em seu preparo para a
aula quanto para o sermão. Opiniões divergentes terão de lidar
com os argumentos apresentados neste livro, sob pena de
ignorarem evidência relevante e parecerem, assim,
preconceituosos.
A Essência do Evangelho de Paulo desafia o leitor a
desfrutar da aventura da graça – aventura que, embora não
isenta de perigos, oferece eterna segurança com base exclusiva
e suficiente nos méritos de Jesus Cristo, nosso grande Deus e
Salvador, cuja vinda é a bendita esperança da Igreja.

Carlos Osvaldo Cardoso Pinto


Professor, autor, e teólogo
Aspectos Introdutórios

AUTORIA, DATA E DESTINATÁRIOS

A Epístola aos Gálatas foi escrita pelo apóstolo Paulo. Ainda


que um pequeno grupo de críticos tenha levantado objeções
contra a origem paulina, as evidências internas apontam
claramente para Paulo como o autor dessa carta (Cf. 1.1). Na
verdade, o calor e a autoridade com que a epístola trata do
problema dos falsos mestres, considerando-os uma terrível
ameaça contra o evangelho e contra a própria igreja, são
características próprias de um missionário e líder zeloso, que
se vê no dever de cuidar daqueles que são fruto de seu
trabalho, o que reforça o argumento em prol de Paulo. Frise-
se ainda que uma porção proporcionalmente grande da carta
é autobiográfica (1.13–2.13), o que logicamente esvazia de
propósito a autoria de outra pessoa qualquer.
Paulo escreveu aos gálatas no ano 48 d.C., um pouco antes
do Concílio de Jerusalém, ocorrido no mesmo ano (At 15). A
falta de menção das decisões do concílio, as quais seriam tão
úteis aos propósitos da epístola, é prova cabal em favor da
data mencionada, ainda que haja quem situe a composição
em 57 ou 58 d.C, entendendo que, em 2.1-10, Paulo faz alusão
às conclusões conciliares de Atos 15.1
12 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

A data mais antiga, se aceita, coloca a composição da carta,


num período após o fim da primeira viagem missionária de
Paulo (At 13-14), depois dele e Barnabé terem visitado pela
segunda vez o sul da Galácia (At 14.21-23).2 O local em que
Paulo escreveu é difícil, senão impossível, de precisar.
Quanto aos destinatários, muita tinta tem sido gasta na
defesa de duas opiniões distintas. A primeira entende que
Paulo escreveu aos gálatas étnicos que viviam no norte da
província. Porém, parece certo que o apóstolo jamais visitou
essa região. A segundo opinião, aparentemente melhor
fundamentada, entende que os destinatários eram pessoas
de várias raças que ocupavam a região sul da Galácia, visitada
por Paulo em sua primeira viagem missionária (At 13-14).3
Paulo, portanto, teria escrito sua carta aos crentes de
Antioquia da Pisídia (próxima à fronteira da Galácia), Listra,
Icônio e Derbe. As igrejas dessas cidades, conforme veremos,
estavam sofrendo influência de mestres judaizantes (6.12-
13) que, para obterem sucesso em seus objetivos, tentavam
desacreditar o apóstolo Paulo (4.17). Conforme se depreende
da epístola, os gálatas se tornaram vulneráveis a esses
ataques (3.1), revelando forte atração por um sistema religioso
cuja essência não ultrapassava o dever de cumprimento de
meras exigências externas (4.10-11; 5.2).

OCASIÃO E PROPÓSITO

O que foi dito acima acerca dos destinatários fornece os


elementos do cenário que motivou Paulo a escrever sua
epístola. De fato, fica claro em toda a carta que os crentes da
Galácia estavam acolhendo os ensinos de mestres judaizantes
que afirmavam a necessidade dos cristãos se submeterem à
lei judaica. Mesmo sendo provavelmente em sua maioria
gentios (Cf. At 13.46-52), aqueles crentes viram certo atrativo
na mensagem dos mestres legalistas.
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS 13

Quem eram, afinal, aqueles mestres? Tudo indica que eram


cristãos judeus com uma compreensão defeituosa do evangelho,
confundindo-o com um judaísmo alterado por certos
acréscimos. Pelo modo como Paulo se refere a eles, parece que
não pertenciam às igrejas destinatárias, sendo procedentes de
fora (veja 1.7, 9; 4.17; 5.10). Talvez viessem da Judéia, onde
encontramos judeus cristãos com uma compreensão do
evangelho que parece idêntica à dos falsos mestres sobre quem
Paulo escreve (At 11.1-3; 15.5). Em Atos 15.1 vemos que alguns
desses cristãos judeus eram propagadores ativos do evangelho
legalista, visitando crentes gentios de outras cidades a fim de
convencê-los a se submeter à Lei Mosaica (veja tb. At 15.23-
24). Parece certo, portanto, que Paulo se refere a essas pessoas
quando escreve aos gálatas.
Os discursos dos mestres judaizantes, conforme se
depreende da epístola, abrangiam ataques contra a
autoridade apostólica de Paulo, levando-o a se defender
(1.1,11-12; 2.6-9,11). Esses ataques também eram dirigidos
contra a mensagem paulina, acusando-a de incentivadora de
uma vida desregrada. Aliás, é possível que alguns crentes da
Galácia tenham de fato visto a mensagem do evangelho da
graça como uma licença para a libertinagem (5.13, 19-21; 6.8).
Ademais, os mestres judaizantes acusavam Paulo de
apresentar uma mensagem vacilante que pregava a
circuncisão quando isso era conveniente (1.10; 5.11).
Também em seus discursos os mestres do evangelho
legalista insistiam na necessidade da circuncisão (5.2-6; 6.12-
13), bem como na guarda da Lei Mosaica (4.10,21). Segundo
eles, a justificação não seria possível caso, além da fé em
Cristo, os preceitos mosaicos não fossem rigidamente
observados (5.4). Para Paulo, tudo isso descaracterizava o
evangelho a tal ponto que seu produto não podia, de modo
algum, ser chamado de evangelho (1.6-7). Para ele, segundo
parece, os proponentes dessa soteriologia legalista, sequer
14 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

deveriam ser considerados crentes, posto que eram dignos de


ser amaldiçoados (1.8-9).
A partir da observação do contexto que subjaz e dá motivo
à composição da carta, fica fácil concluir que o propósito de
Paulo nessa epístola é protestar contra a distorção do
evangelho em seu ponto essencial, a saber, a justificação
unicamente pela fé, defendendo assim a mensagem e a
liberdade cristãs diante dos ataques do legalismo.
Não se pode, porém, dizer que esse propósito era a meta
final e única que o apóstolo tinha em mente ao escrever sua
primeira epístola. Na verdade, a meta teológica supra
mencionada era também um instrumento para a consecução
de um alvo vivencial. De fato, Paulo afirma a liberdade do
crente em relação à Lei não somente para realçar a justificação
unicamente pela fé, mas também, e talvez principalmente, para
ensinar que a maturidade cristã autêntica não pode ser
construída através da obediência mecânica a um conjunto de
regras (Gl 3.3). Antes é alcançada por meio da obra do Espírito
Santo na vida de quem foi redimido pela fé. Sob a esfera,
influência e controle do Espírito, o homem justificado é
capacitado a viver aquela real santidade que o simples esforço
pessoal, ainda que sincero, jamais será capaz de produzir (Gl
5.16-18, 22-26). Assim um segundo propósito igualmente
importante em Gálatas é desmascarar o falso conceito que
reduz a vida cristã à mera obediência estéril de normas
exteriores, demonstrando que o aperfeiçoamento do caráter
do crente só ocorre por obra do Espírito Santo na vida daqueles
que, salvos pela fé, submetem-se ao seu domínio.

CONTRIBUIÇÃO PARA A DOUTRINA CRISTÃ

Gálatas resume a essência do evangelho pregado por Paulo


aos gentios, mostrando que o homem, por seu esforço pessoal,
não pode jamais resolver o problema da culpa que lhe foi
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS 15

imposta e que o separa de Deus, restando-lhe apenas a fé em


Cristo como meio de justificação (2.16).
Além disso, Gálatas mostra que essa fé que justifica, não
apenas leva o crente a desfrutar de um novo status diante de
Deus, mas também o livra do viver vazio e corrupto próprio
dos homens deste mundo (1.4) e o capacita a andar sob a
influência e controle do Senhor que agora habita nele (2.20).
Assim a ética cristã também recebe forte contribuição da
Carta aos Gálatas. Nela aprendemos que a liberdade do crente
não é liberdade sem fronteiras, mas sim, uma liberdade
limitada pelo amor (5.13) e pela influência do Espírito Santo
(5.16-26).
Finalmente, não se pode deixar passar em branco a
contribuição de 3.13 para a compreensão dos limites da morte
substitutiva de Cristo. Ele nos substituiu até o ponto de se
fazer “maldição em nosso lugar”, o que aponta para o estado
deplorável em que nos encontrávamos antes de conhecer a
salvação, além de mostrar a profundidade do abismo a que
Cristo desceu para nos buscar.
o evangelho verdadeiro e
1. sua singularidade

Após se apresentar como apóstolo de Cristo, Paulo repudia


vigorosamente qualquer evangelho que não se harmonize com
o que tem pregado, realçando que o aprendera do próprio
Cristo, sem mediação de ninguém, nem mesmo dos apóstolos
de Jerusalém.

SAUDAÇÕES INICIAIS
GÁLATAS 1.1-5
1. Paulo, apóstolo enviado, não da parte de homens nem
por meio de pessoa alguma, mas por Jesus Cristo e por
Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos,
2. e todos os irmãos que estão comigo, às igrejas da Galácia:
3. A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do
Senhor Jesus Cristo,
4. que se entregou a si mesmo por nossos pecados a fim de
nos resgatar desta presente era perversa, segundo a vontade
de nosso Deus e Pai,
5. a quem seja a glória para todo o sempre. Amém.

O autor da carta, Paulo, apresenta-se logo no início como


“apóstolo enviado, não da parte de homens nem por meio de
pessoa alguma, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai...” (1).
18 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Conforme visto no estudo sobre os aspectos introdutórios, Paulo


vinha sofrendo ataques de falsos mestres que, atuando entre
as igrejas da Galácia, diziam que ele não tinha a mesma posição
e autoridade dos apóstolos de Jerusalém. Por isso, a fim de que
sua epístola não fosse recebida como uma carta qualquer, vazia
de credibilidade e poder e, assim, fosse de pronto desprezada,
Paulo, de antemão, enfatiza aos seus leitores que o que têm em
mãos são ensinos procedentes de um apóstolo verdadeiro;
alguém que recebeu essa função do Filho de Deus e do próprio
Pai. Nisto, entre outras coisas, ele se diferenciava daqueles que,
já em seu tempo, se autodenominavam apóstolos, movidos
apenas pelo desejo de se destacar entre os crentes comuns e,
assim, enganá-los (2Co 11.13; Ap 2.2).
No v. 1, Deus Pai é mencionado como aquele que ressuscitou
Jesus dentre os mortos. A menção da ressurreição de Cristo é
importante aqui porque foi o Cristo ressurreto quem
diretamente investiu Paulo no ofício apostólico (Rm 1.5).
Ademais, a ênfase na ressurreição era sempre conveniente
numa época em que os homens estavam tão familiarizados
com o pensamento grego que, em algumas de suas
manifestações, considerava a matéria má, a ponto de mais tarde,
dentro de uma roupagem cristã, negar a encarnação do Filho
(1Jo 4.2; Hb 2.14) e a ressurreição física (1Co 15.12; 2Tm 2.18).
Ao escrever a Carta aos Gálatas, Paulo estava na companhia
de um grupo de irmãos. Não sabemos onde o Apóstolo estava
quando escreveu essa epístola e, portanto, nem de que cidade
eram os irmãos que tinha em sua companhia. Seja como for,
Paulo faz alusão a eles como se fossem participantes da
composição da carta (2). Sem dúvida o objetivo disso era
sensibilizar os destinatários ao mostrar-lhes que os apelos
ali constantes não eram fruto das preocupações de uma mente
isolada, mas que essas preocupações eram compartilhadas
por irmãos na fé sinceros, que se uniam a Paulo em suas
exortações, fazendo com ele um coro.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 19

Eis aqui uma forma produtiva de como a igreja deve


demonstrar unidade: aliando-se aos ministros em seus apelos
e exortações, dando assim maior força às suas mensagens e
mostrando aos que estão no erro a reprovação unânime do
povo de Deus. De fato, nada encoraja mais os rebeldes do que
a consciência de que há crentes que não concordam com as
reprovações que lhes são dirigidas.
Como é seu costume, Paulo deseja que seus destinatários
desfrutem da graça e da paz que vem de Deus Pai e do Senhor
Jesus Cristo (3). A graça é o favor de Deus ministrado aos
homens quando estes nada fizeram para merecê-lo. A paz é a
ausência de intrigas nas relações entre as pessoas e também
a serenidade interior experimentada por quem desfruta de
saúde e do suprimento das necessidades em geral. A fonte de
tudo isso, para Paulo, é Deus.
Se, por um lado, o Pai foi descrito como quem ressuscitou
Jesus dentre os mortos (1), no v. 4, ao mencionar novamente
as duas Pessoas, Paulo focaliza Cristo, apontando-o como
aquele que “se entregou a si mesmo por nossos pecados”. A
morte voluntária de Cristo é afirmada aqui (Jo 10.17-18), bem
como o seu sentido teológico, ou seja, o fato de sua morte ser a
satisfação pelos nossos pecados (1Jo 2.2; 4.10). Para os gálatas,
fascinados com a idéia de que a observância da Lei Mosaica
poderia salvá-los, era crucial que Paulo frisasse que somente a
morte de Cristo pôde satisfazer as exigências de Deus. Buscar
satisfazer a justiça divina através de obras humanas seria o
mesmo que afirmar a insuficiência da cruz (Gl 2.21).
Ao sofrer a morte que era a punição pelos nossos pecados,
Cristo não somente teve como alvo nos substituir no castigo
a nós devido. Ao tirar-nos dentre os condenados à morte, ele
conseqüentemente nos resgatou “desta presente era perversa”
(4). O verbo traduzido como “resgatar” é exairew ´ e também
significa livrar ou libertar do poder de outra pessoa. Há aqui
um breve lampejo do tema “liberdade cristã”, presente em toda
20 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

a epístola. A “presente era” da qual Cristo nos resgatou é o


atual sistema cultural com seus valores, crenças e apelos.
Trata-se de um sistema que rejeita Deus e, por isso, é perverso
e merecedor de justo castigo.
Cristo sofreu a nossa condenação e, assim, nos libertou deste
mundo condenado. Não somos mais participantes do seu
destino e também não devemos mais ser participantes de suas
práticas e modo de pensar. Fomos tirados de uma Sodoma que
em breve conhecerá o fogo do juízo e, não sendo mais seus
cidadãos, não devermos adotar seu estilo de vida (Rm 12.1-2).
Paulo conclui dizendo que todo esse livramento aconteceu
pela vontade do Pai (Ef 1.5; Tg 1.18). A origem da salvação está
sempre em Deus. É ele quem parte em busca do homem (Gn 3.9;
Os 11.1-2; Lc 19.10). O contrário nunca acontece (Jo 5.40; Rm
3.11). Por isso é natural que a seção termine com o apóstolo
atribuindo e ele “a glória para todo o sempre. Amém.” (5).

A AMEAÇA DE UM OUTRO EVANGELHO


GÁLATAS 1.6-10

6. Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão


rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo,
para seguirem outro evangelho
7. que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que
algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter
o evangelho de Cristo.
8. Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um
evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja
amaldiçoado!
9. Como já dissemos, agora repito: Se alguém lhes anuncia
um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja
amaldiçoado!
10. Acaso busco eu agora a aprovação dos homens ou a de
Deus? Ou estou tentando agradar a homens? Se eu ainda
estivesse procurando agradar a homens, não seria servo
de Cristo.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 21

Depois das palavras iniciais de saudação, Paulo entra


diretamente no assunto principal que o motivou a escrever a
epístola: o desvio dos crentes da Galácia para as sendas do
“evangelho” legalista, isto é, a crença de que para ser salvo e
prosseguir na vida como um cristão modelo é necessário ser
um bom prosélito do judaísmo, guardando a Lei Mosaica em
todos os seus aspectos.
Paulo demonstra-se admirado com o desvio tão rápido dos
gálatas (6). De fato, como já vimos, a carta em análise foi
escrita entre o fim da Primeira Viagem Missionária, quando
Paulo visitou a Galácia (At 13–14) e o Concílio de Jerusalém
(At 15). Assim, os gálatas começaram a abandonar o verdadeiro
evangelho tão logo Paulo os deixou. Isso causava espanto no
apóstolo. Lembremos que o problema na Galácia não dizia
respeito ao desvio relativamente comum de alguns novos
convertidos que com certa freqüência retornam para o mundo
(Mt 13.1-23). Paulo trata aqui da apostasia de, pelo menos,
quatro igrejas, ocorrido quando mal ele virara as costas.
No v. 6 o apóstolo demonstra que abandonar o evangelho
equivale a abandonar o próprio Deus. Isso se torna ainda
mais grave quando lembramos que Deus é “aquele que os
chamou pela graça de Cristo”. Mais uma vez a origem da
salvação é colocada em Deus (Veja v. 4). Nota-se aqui que é
ele quem chama (tb. v. 15), sendo essa uma convocação cujo
atendimento implica ser resgatado (Rm 8.30; 1Ts 2.12; 2Ts
2.13-14; 1Pe 2.9). Esse chamamento é viabilizado pela graça
de Cristo (2Tm 1.9-10a). Deus chama o pecador porque, pela
graça de Cristo dada a nós desde os tempos eternos e revelada
em sua manifestação, é possível agora ter acesso ao Pai (2Co
5.18-19; Ef 2.17-18; 3.11-12; Hb 10.19-20). Os gálatas, ao
abandonarem o evangelho, estavam dando as costas para o
Deus que havia realizado tudo isso em seu favor.
Esse abandono de Deus se expressava na disposição para
seguir “outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho”
22 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

(vv. 6-7). Na busca de agradar a Deus por meio da Lei, os


crentes da Galácia tinham, na verdade, abandonado o Senhor,
seguindo uma mensagem que não era dele, um evangelho
tão desfigurado que não podia, de modo algum, ser chamado
de evangelho. Daqui se depreende duas preciosas lições.
Primeira: quem quer aproximar-se de Deus à parte do único
evangelho acaba por distanciar-se ainda mais dele. Segunda:
qualquer acréscimo à mensagem de salvação que esvazia a
obra de Cristo de suficiência, perverte o evangelho verdadeiro
e deve ser de pronto rejeitado por nós como ímpio e profano.
Paulo aponta para a causa daquele desvio tão rápido. Diz
ele: “O que ocorre é que algumas pessoas os estão
perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo.” (7).
É evidente que Paulo está se referindo aos mestres legalistas
que, possivelmente vindos de Jerusalém (Veja “Aspectos
Introdutórios”), anunciavam que para ser justificado diante
de Deus era necessário que o cristão fosse circuncidado (5.2-
6; 6.12-13) e guardasse toda a Lei (2.16; 3.11; 4.10, 21). Tal
era, de fato, o conteúdo dominante do “outro evangelho”
combatido por Paulo na Carta aos Gálatas.
Essa perversão do evangelho trazia perturbação às igrejas.
“Perturbar” aqui significa agitar, promover distúrbios,
tumultuar ou criar confusão. Em Atos 15.24, onde o mesmo
verbo tarassw
´ aparece, aprendemos que essa perturbação
consistia especificamente em transtornar ou confundir a mente
dos crentes com discursos heréticos. Esse efeito da mentira é
útil aos falsos mestres porque a mente confusa é vacilante e,
aos poucos, pela insistente proclamação do erro, termina por
ceder aos apelos da heresia. A mente dos novos crentes, onde
a Sã Doutrina, pelo pouco decurso do tempo, ainda não foi
digerida, assimilada e firmemente incorporada, é alvo fácil
dessa estratégia. Os falsos mestres sabiam disso e usaram
com maestria o repugnante artifício na Galácia, onde as igrejas
haviam acabado de nascer.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 23

Por outro lado, que essa mesma mente vacilante seja


encontrada em crentes antigos é inadmissível, pois neles se
espera que a verdade esteja claramente delineada e solidamente
fixada, ao ponto de não poderem mais ficar confusos ou
perturbados, cheios de questões e dúvidas, quando doutrinas
estranhas lhes são propostas (Cl 4.12; 2Pe 1.12).
O pronunciamento de Paulo em face da atuação dos mestres
judaizantes se constitui num dos mais impetuosos de todo o
Novo Testamento. Ele afirma com rigor: “Mas ainda que nós
ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele
que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!” (8). Com o
pronome “nós”, o apóstolo se refere a si próprio. Dessa forma
ele pretende levar a hipótese ao absurdo a fim de mostrar
com que grau de firmeza o crente deve comprometer-se com o
evangelho genuíno. Por outro lado, ainda que a hipótese do
próprio Paulo pregar um falso evangelho fosse praticamente
impossível, havia a real possibilidade de alguém ensinar
mentiras por meio de cartas e assiná-las fraudulentamente
com o nome do apóstolo. Parece que falsificações desse tipo
aconteceram nessa época no ministério de Paulo (2Ts 2.1-2).
Tanto que, para frustrá-las, ele assinava suas epístolas de
próprio punho (2Ts 3.17).1 O que Paulo diz no v. 8, portanto,
serviria, inclusive, para prevenir os crentes contra heresias
ensinadas em seu nome.
Ainda no v. 8, o leitor se vê diante de uma hipótese ainda
mais incrível. Desta vez é um anjo celeste que Paulo apresenta
como eventual proponente de um evangelho diferente daquele
que fora pregado aos gálatas. A possibilidade de um ser
angelical maligno apresentar-se como um mensageiro de Deus
e, assim, enganar os homens é vislumbrada em 2 Coríntios
11.14, onde Paulo diz que o próprio Satanás se disfarça de
anjo de luz.2 Dificilmente, contudo, Paulo estava receoso disso
realmente acontecer com os crentes da Galácia. Sua intenção
era apenas expressar quão fortemente os crentes devem se
24 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

opor a qualquer pessoa que se aproxima deles com uma


mensagem que tira da cruz de Cristo a sua suficiência.
Diante das duas hipóteses levantadas por Paulo no v. 8, a
reação do crente deve ser uma só: considerar o tal mensageiro,
seja ele quem for, maldito. Na prática isso não significa que o
crente tenha que pronunciar maldições contra o falso mestre.
O que Paulo ensina é que o cristão deve considerar quem
anuncia um evangelho falso como estando debaixo da ira de
Deus (Cf. Rm 9.3 e 1Co 16.22, onde esse é claramente o sentido
em que a palavra “amaldiçoado” deve ser entendida). Essa
orientação tem que sempre estar presente na mente dos crentes
de todas as épocas, uma vez que mensageiros mentirosos
existem desde os primórdios da igreja (Rm 16.17-18; 2Co 11.3-
4) e podem ser encontrados em qualquer lugar. Se essa postura
rígida fosse adotada pelos cristãos modernos, há muito
veríamos nossas igrejas livres do estranho evangelho que é
pregado em nossos dias.3
O v. 9 repete o que foi dito no 8, com ligeiras modificações.
Aqui ele não fala de “nós ou um anjo vindo dos céus”. Antes
usa a palavra “alguém”, um termo amplo que lógica e
propositalmente inclui os falsos mestres que perturbavam os
gálatas. Além disso, Paulo substitui a expressão “evangelho...
que lhes pregamos” por “evangelho... que já receberam”. Com
a primeira fórmula Paulo evoca a fonte da mensagem pregada
inicialmente na Galácia, ou seja, um apóstolo enviado pelo
próprio Deus (1.11-12). Com a segunda, Paulo traz à lembrança
dos seus leitores o compromisso que assumiram com essa
mesma mensagem. Nos dois casos ele quer estimular as igrejas
da Galácia a reafirmar sua fidelidade ao evangelho puro.
A força do texto em análise, contudo, não está em suas
pequenas variações. É a repetição que naturalmente dá ênfase
ao que é dito. Por meio da repetição, Paulo realça e assume
plenamente o que afirma, mostrando coragem, convicção e
clareza, ao anular qualquer possibilidade de que às suas
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 25

palavras seja dada uma interpretação mais branda. De fato,


ele afirma e repete que o proponente de um outro evangelho
deve ser considerado maldito!
O v. 10 parece a princípio apresentar uma rápida digressão.
Nele Paulo rejeita terminantemente a idéia de ser um ministro
que no exercício de suas funções se preocupa em agradar a
homens. O que ocorre aqui, contudo, não é propriamente um
desvio do assunto. Na verdade, o que o apóstolo diz nos vv.
8-9 são uma prova clara de que não tem receio de desagradar
quem quer que seja. Ademais, é possível que na Galácia
fermentassem comentários maldosos (estimulados pelos
mestres judaizantes) de que ele pregava a necessidade da
guarda da Lei, quando isso lhe era conveniente (Veja-se 5.11).
A sensibilidade de Paulo aos escrúpulos dos judeus incrédulos,
demonstrada muitas vezes na sua prática evangelística, pode
ter servido de base para essas falsas acusações (1Co 9.20-
21). Paulo agora destaca a falsidade delas. Segundo ele, seria
impossível ser servo de Cristo e ao mesmo tempo buscar o
aplauso humano. Parece que para Paulo uma coisa exclui a
outra e esse fato deveria ser levado em conta por todos
quantos se dizem chamados para o ministério. A tentativa de
esvaziar o trabalho de Cristo dessa dimensão incômoda tem
levado muitos pastores a abandonar o ensino escriturístico
para pregar e fazer o que agrada as mentes carnais.

A ORIGEM DIVINA DO EVANGELHO


GÁLATAS 1.11-24
11. Irmãos, quero que saibam que o evangelho por mim
anunciado não é de origem humana.
12. Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado;
ao contrário, eu o recebi de Jesus Cristo por revelação.
13. Vocês ouviram qual foi o meu procedimento no
judaísmo, como perseguia com violência a igreja de Deus,
procurando destruí-la.
26 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

14. No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da


minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos
meus antepassados.
15. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me
chamou por sua graça. Quando lhe agradou
16. revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse
entre os gentios, não consultei pessoa alguma.
17. Tampouco subi a Jerusalém para ver os que já eram
apóstolos antes de mim, mas de imediato parti para a
Arábia, e voltei outra vez a Damasco.
18. Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer
Pedro pessoalmente, e estive com ele quinze dias.
19. Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago,
irmão do Senhor.
20. Quanto ao que lhes escrevo, afirmo diante de Deus que
não minto.
21. A seguir, fui para as regiões da Síria e da Cilícia.
22. Eu não era pessoalmente conhecido pelas igrejas da
Judéia que estão em Cristo.
23. Apenas ouviam dizer: “Aquele que antes nos perseguia,
agora está anunciando a fé que outrora procurava destruir”.
24. E glorificavam a Deus por minha causa.

O texto que passamos agora a analisar compõe uma grande


seção autobiográfica em que Paulo narra parte de sua
trajetória tanto dentro do judaísmo quanto do cristianismo.
Seu propósito é claramente oferecer elementos históricos que
comprovem a sua autoridade apostólica que, como se sabe,
estava sendo atacada pelos falsos mestres que atuavam dentro
das igrejas da Galácia.
Paulo inicia esclarecendo que o evangelho que pregava não
era de origem humana (11). É evidente que sua intenção ao
alertar os gálatas acerca disso era criar em suas mentes uma
idéia de contraste entre o que lhes anunciara no princípio e o
que eles estavam agora ouvindo dos mestres judaizantes. Há,
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 27

portanto, aqui a acusação implícita de que a mensagem dos


legalistas não passava de algo criado por eles mesmos.
Do que foi dito acima, facilmente se depreende uma
característica típica das falsas religiões: suas crenças, ensinos,
rituais e práticas são apenas produto da fértil imaginação de
seus fundadores e líderes. Em contrapartida, o seguinte fato
sobre a verdadeira religião deve enraizar-se fortemente em
nosso coração: a religião genuína é dada, não construída. É
Deus quem a revela; não é o homem que a inventa. Esse é o
motivo pelo qual não podemos fazer alterações no
cristianismo. Não fomos nós que o criamos e, portanto, não
temos o direito de alterá-lo. Se quisermos recebê-lo, temos de
aceitá-lo como ele é.4
No v. 12, Paulo desenvolve ainda mais o ensino de que o
evangelho que pregava não se originou em homens.
Primeiramente afirma que não o recebeu de ninguém e que
nenhuma pessoa o ensinou. Nessas palavras pode-se
vislumbrar um dos traços do verdadeiro apostolado que Paulo
reivindicava de modo tão veemente: o apóstolo de Cristo não
aprendia a mensagem que pregava com outros homens. Essa
mensagem lhe era dada diretamente pelo Cristo ressurreto (1.1;
1Co 11.23ss). Esse é um dos principais pontos de distinção entre
os apóstolos de Cristo e os crentes comuns, já que estes recebem
ou aprendem o evangelho de um outro cristão que se dispõe a
pregar (1Co 15.1,3). Essa também é uma das razões pelas quais
podemos afirmar que não existem mais apóstolos hoje, uma
vez que ninguém mais pode alegar com sã consciência que
aprendeu o evangelho sem a mediação humana.
Paulo completa o v. 12 com a declaração aberta de que recebeu
o evangelho do próprio Jesus Cristo “por revelação”. Enquanto
os gálatas tinham recebido o evangelho pela pregação (3.1-2;
4.13), Paulo o recebera por meio de uma manifestação especial
de Deus, uma revelação (Ef 3.2-4). Assim foi com os demais
apóstolos e profetas do período neotestamentário (Ef 3.5) e
28 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Paulo realçava essa experiência a fim de defender a sua


autoridade apostólica (1.15-16; 1Co 2.9-13).
O apóstolo passa agora a narrar a mudança dramática que
se operou em sua vida após ter conhecido a Cristo. Ele quer
demonstrar com a exposição desses fatos o grande impacto
que o evangelho que pregava causou em sua própria história.
É evidente que uma transformação tão profunda não podia
ser procedente de uma mensagem que o próprio apóstolo
houvesse dolosamente inventado. Para Paulo, ele mesmo era
a prova viva da origem sobrenatural da mensagem que
anunciava. De fato, só uma mensagem oriunda de fontes
celestes poderia transformar o mais cruel dos inimigos da
igreja no apóstolo dos gentios, talvez o maior cristão que já
pisou neste mundo.
No v. 13, Paulo afirma que os gálatas ouviram acerca do
seu procedimento no judaísmo, “como perseguia com violência
a igreja de Deus, procurando destruí-la”. Algumas informações
sobre a ferocidade com que Saulo de Tarso investia contra os
crentes podem ser deduzidas de Atos 8.1-3; 9.1-2, 13-14; 22.4-
5; 26.9-11; 1 Coríntios 15.9; e 1 Timóteo 1.13-16.
Esses textos, associados ao versículo em análise, mostram
que o objetivo maior dos inimigos da fé, entre os quais Paulo
um dia foi contado, é nitidamente destruir a igreja. Essa
verdade deve preocupar os crentes. Não por nutrirem medo
de que a igreja um dia seja aniquilada. É sabido, e a própria
história comprova, que isso é impossível (Mt 16.18; 1Pe 5.8-
11). Contudo, o anseio de destruir a igreja, típico dos inimigos
de Cristo, deve preocupar o crente no sentido de evitar agir
também nessa direção. Na verdade, todas as ações dos cristãos
devem ser avaliadas à luz do tipo de impacto que elas
porventura causarão sobre a igreja de Deus. Qualquer ação
ou omissão que a enfraqueça deve causar-nos pavor, uma
vez que nos torna cooperadores dos adversários da família
de Deus.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 29

Se de um lado Paulo era severo na perseguição do


cristianismo, de outro era também severo no cuidado pelo
judaísmo (14). Na verdade, Saulo de Tarso, juntamente com
as autoridades judaicas e romanas, não via o cristianismo
como uma religião autônoma.5 Para eles, o cristianismo era
apenas o judaísmo “corrompido” pela idéia de que Jesus era o
Messias prometido nas páginas do AT. A perseguição
promovida por Saulo, portanto, tinha como alvo purgar a
religião de seus antepassados dos “desvios” anunciados pelos
cristãos. Assim, sua perseguição era fruto de zelo religioso
extremado (Fp 3.6). De fato, Saulo amava o judaísmo e queria
livrá-lo de supostas contaminações (1Tm 1.13).
A menção desse zelo anterior de Paulo pelo judaísmo é
extremamente útil para os seus propósitos na Carta aos
Gálatas. Isso porque, como se sabe, os falsos mestres que
atuavam na Galácia se apresentavam como grandes
observadores da Lei Mosaica6, exigindo que os crentes se
submetessem ao jugo judaico e acusando Paulo de ter uma
mente apegada ao desregramento. A fim de expor a loucura
que tudo isso representava, o apóstolo mostra que ele sim
havia sido um real observador da Lei, não do tipo que tentava
ser amigo dos cristãos (como os falsos mestres), mas como
alguém indisposto a tolerar qualquer sombra que nublasse o
centro de suas convicções religiosas. Paulo afirma que foi um
observador da Lei sem igual entre os judeus de sua idade,
zelando extremamente pelas tradições de seus antepassados.7
O apóstolo quer com isso, indiretamente dizer: “Eu já
percorri com todo o empenho o caminho no qual vocês e esses
tais mestres estão agora engatinhando e sei que é um caminho
inútil, incapaz de salvar. Toda a minha trajetória mostra o
quanto fui zeloso dessas coisas que hoje atraem tanto vocês.
Fui autoridade nisso tudo e agora, como apóstolo, sou
autoridade no caminho novo do evangelho de Cristo. Por isso,
creiam-me: não há relação alguma entre o evangelho de Cristo
30 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

e o legalismo judaico. Conheço muito bem o primeiro e conheci


muito bem o último. Sei que aquele é poderoso para salvar e
que o último só escraviza”. Uma linha semelhante de
pensamento pode ser vislumbrada em Filipenses 3.4-9.
No v. 15, Paulo contrasta a vida que tinha no judaísmo
com uma nova e gloriosa etapa; uma etapa de serviço a Cristo,
serviço esse marcado por prontidão em obedecê-lo (16) e
independência dos líderes de Jerusalém (17). Ao iniciar esse
assunto, o apóstolo cita apenas de passagem a causa primária
que o lançou nesse ministério. Segundo ele, o próprio Deus o
separou desde o ventre materno e o chamou por sua graça.
A menção desses mistérios é muito propícia neste ponto.
Evidentemente a meta de Paulo ao mencioná-los é demonstrar
a origem sobrenatural de seu chamado e assim neutralizar
os ataques que os falsos mestres faziam contra a
autenticidade de seu apostolado. De fato, ao dizer que Deus o
separou desde o ventre materno, além de ensinar num breve
lampejo a predeterminação divina, também eleva seu
ministério ao nível dos mais eminentes servos de Deus do
Antigo Testamento (Is 49.1; Jr 1.4-5), o que deveria inspirar
temor e honra nos gálatas que estavam vacilantes quanto à
sua opinião acerca de seu pai espiritual (Ver tb. Rm 1.1).
Ademais, ao dizer que Deus o chamou por sua graça, golpeia
o ensino dos falsos mestres no próprio coração, pois está com
isso dizendo que seu zelo pela Lei e tradições judaicas, em
nada influiu na obtenção do favor com que foi aquinhoado
pelo Senhor. Na verdade, foi unicamente pela graça de Deus
que alcançou o privilégio de ser contado entre os ministros
do evangelho. Resumindo, Deus chamou Paulo por sua graça,
não em virtude de seu zelo pregresso na prática do judaísmo.
Assim, com uma linha apenas, Paulo destrói as duas
principais mentiras que emanavam da boca dos judaizantes:
a de que Paulo era um falso apóstolo, e a de que a prática da
Lei era fundamental para a obtenção do favor divino.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 31

O v. 16 termina o pensamento que a má divisão dos versículos


deixou incompleto no verso anterior. Houve um momento que o
Deus que separou Paulo antes dele nascer e o chamou por sua
graça, também lhe revelou seu Filho.8 Tal revelação, conforme se
depreende do texto, foi especialmente feita com o propósito de
habilitar Paulo como pregador aos gentios.
É pouco provável, portanto, que o apóstolo esteja se
referindo aqui à sua experiência no caminho de Damasco.
Certamente alude a outra ocasião em que o Senhor revelou-
se a ele de forma visível e gloriosa, provavelmente nas regiões
da Arábia mencionada no v. 17, desvendando-lhe os mistérios
que deveria anunciar e escrever (Ver vv. 11-12; 2Co 12.1,7; Ef
3.2-3) e incumbindo-o da pregação aos povos de todo o mundo
(Rm 1.5, 14).9
Aqui vemos, pois, um importante processo: O Deus que
separa e chama é também o Deus que capacita para a obra.
Dele é o plano ao escolher; dele é a voz ao chamar, e dele são
os recursos ao tornar seu servo pronto para o serviço. Aliás,
essa verdade deve ser gravada de forma indelével na mente
de todo o que trabalha em prol do Reino de Cristo, pois o
resultado de sua assimilação será gratidão por ser contado
entre aqueles que o Senhor preparou, prontidão por saber
que é o próprio Deus quem chama, e coragem advinda da
certeza de que é o Chefe Onipotente quem nos capacita.
Tais foram as disposições presentes no apóstolo. Tanto que,
ao ver-se encarregado dos grandes mistérios e deveres dados
por Deus, não consultou “pessoa alguma”.
Paulo prossegue afirmando, no v. 17, que ao tempo do seu
chamado não subiu a Jerusalém para ver os que já eram
apóstolos antes dele. Sua intenção aqui é reforçar ainda mais
a alegação de que não aprendeu a mensagem que pregava
com homem algum (cf. vv. 11-12). Nem mesmo os apóstolos
de Jerusalém lhe haviam transmitido essa mensagem. Nem
tampouco acrescentaram algo a ela ou tiveram que corrigi-la
32 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

em algum ponto. Paulo insiste em sua defesa contra os falsos


mestres alegando que é um apóstolo genuíno, ou seja, alguém
que recebeu sua mensagem diretamente do Cristo ressurreto,
sem qualquer mediação humana.
Diz ainda o apóstolo que, quando da sua vocação, em
vez de consultar os líderes de Jerusalém, partiu para a Arábia
e depois voltou outra vez para Damasco. A Arábia era o reino
de Aretas (2Co 11.32) que abrangia as regiões a leste de
Damasco, estendendo-se em direção ao sul sobre a
Transjordânia e abarcando toda a Península do Sinai (4.25)
até Suez. Paulo foi para algum lugar dentro desses limites e
depois voltou para Damasco. Certamente isolou-se naquelas
regiões a fim de refletir sobre tudo o que lhe acontecera e
também para receber capacitação de Deus para a pregação.
Essa ida de Paulo para as regiões da Arábia não é
mencionada no livro de Atos, mas é provável que se situe
entre os versículos 19 e 20 de Atos 9, o que, se for aceito,
coloca a ida à Arábia antes do início de seu ministério como
pregador.
No v. 18 o apóstolo diz que foi a Jerusalém somente três
anos depois dos eventos narrados. Talvez ele tenha passado
todo esse tempo pregando em Damasco (Veja em At 9.23 a
expressão “decorridos muitos dias”). Então, como não pudesse
mais permanecer ali sem correr grave perigo, fugiu (At 9.23-
25; 2Co 11.32-33) e aproveitou a oportunidade para seguir
até a Palestina, onde poderia finalmente conhecer Pedro.
Com a ajuda de Barnabé (At 9.26-27), Paulo chegou a Pedro
e permaneceu com ele apenas quinze dias, o que seria
insuficiente se tivesse ido ali para receber qualquer
treinamento nas funções que desempenhava. Além disso,
acrescenta sob juramento (20) que não viu nenhum dos outros
apóstolos, exceto Tiago, irmão do Senhor.10 Assim, mais uma
vez Paulo destaca que não era um apóstolo de “segunda
categoria” como diziam seus oponentes. Antes, como ocorrera
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE 33

com os seus colegas de Jerusalém, havia recebido o múnus


apostólico diretamente de Jesus Cristo ressurreto (1Co 9.1-2).
Depois de ter estado em Jerusalém, Paulo foi para a Síria e
Cilícia (21). A descrição desses fatos encaixa-se na narrativa
de Atos 9.29-30. Nesse texto aprendemos que em Jerusalém
Paulo corria perigo e, por isso, foi enviado para a Cilícia
(sudeste da atual Turquia), mais especificamente para Tarso,
sua cidade natal (At 21.39; 22.3). Foi nessa cidade que, mais
tarde, Barnabé, saindo à sua procura, o encontrou. Ele então
levou-o até a recém formada igreja de Antioquia que,
finalmente, enviou ambos para a Primeira Viagem Missionária
(At 11.22-26; 13.1-2).
O que Paulo diz nos vv. 22-24 mostra que ele não visitou
as igrejas da Judéia. Seu objetivo é dar provas ainda mais
fortes de que seu contato com a área de influência dos
apóstolos de Jerusalém foi praticamente inexistente, sendo
certo que sua “formação” apostólica não dependeu de Pedro
ou de qualquer outro líder influente de Jerusalém.
Ao afirmar isso, refere-se às igrejas da Judéia como
estando “em Cristo”, o que significa estar sob a autoridade e
sob a esfera de influência do Senhor ressurreto. Aqui é
importante destacar que não são todas as igrejas da
atualidade que podem ser qualificadas desse modo. Qualquer
grupo que se apresente como igreja de Cristo, para que honre
esse título deve curvar-se ao senhorio de Jesus, ser sensível à
sua mensagem proclamada na Escritura, e buscar a sua
presença atuante em seu meio. É somente com esses traços
que uma igreja pode dizer que está em Cristo.
Paulo destaca que, mesmo não tendo visitado aquelas
igrejas, sua fama corria entre elas, de modo que, perplexas,
diziam: “Aquele que antes nos perseguia, agora está
anunciando a fé que outrora procurava destruir” (23); e
louvavam a Deus por causa dele. Assim, o grande apóstolo
mostra como ele, que inspirava terror, passou a inspirar
34 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

louvor; como ele, que arrancava gemidos de angústia, passou


a estimular orações de gratidão. Com isso Paulo quer mostrar
que mesmo igrejas que não o conheciam pessoalmente, ao
menos reconheciam sua conversão e trabalho e com isso se
alegravam. Quanto mais não deveriam os gálatas também
honrá-lo, já que o conheciam de perto e eram fruto do seu
próprio empenho!
o evangelho verdadeiro e
2. sua independência

A mensagem pregada por Paulo, a qual não impunha a


circuncisão aos crentes gentios, não estava em conflito com a
mensagem dos demais apóstolos. Aliás, Paulo repreendera
Pedro por haver tratado os crentes gentios com desprezo em
Antioquia a fim de agradar os defensores da circuncisão vindos
da igreja de Jerusalém.

A UNIDADE APOSTÓLICA
GÁLATAS 2.1-10
1. Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalém, dessa
vez com Barnabé, levando também Tito comigo.
2. Fui para lá por causa de uma revelação e expus diante
deles o evangelho que prego entre os gentios, fazendo-o,
porém, em particular aos que pareciam mais influentes,
para não correr ou ter corrido inutilmente.
3. Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, foi obrigado
a circuncidar-se, apesar de ser grego.
4. Essa questão foi levantada porque alguns falsos irmãos
infiltraram-se em nosso meio para espionar a liberdade que
temos em Cristo Jesus e nos reduzir à escravidão.
5. Não nos submetemos a eles nem por um instante, para
que a verdade do evangelho permanecesse com vocês.
36 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

6. Quanto aos que pareciam influentes o que eram então


não faz diferença para mim; Deus não julga pela aparência
tais homens influentes não me acrescentaram nada.
7. Ao contrário, reconheceram que a mim havia sido
confiada a pregação do evangelho aos incircuncisos, assim
como a Pedro, aos circuncisos.
8. Pois Deus, que operou por meio de Pedro como apóstolo
aos circuncisos, também operou por meu intermédio para
com os gentios.
9. Reconhecendo a graça que me fora concedida, Tiago,
Pedro e João, tidos como colunas, estenderam a mão direita
a mim e a Barnabé em sinal de comunhão. Eles
concordaram em que devíamos nos dirigir aos gentios, e
eles, aos circuncisos.
10. Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o
que me esforcei por fazer.

No capítulo 2, Paulo continua a narrativa, sempre com o


propósito de defender sua autoridade apostólica e a liberdade
cristã. O capítulo começa com a afirmação que, passados
quatorze anos, ele foi novamente a Jerusalém. É difícil detectar
o ponto de partida para a contagem desses quatorze anos.
Pode-se contá-los tanto a partir de sua primeira visita àquela
cidade (1.18-20), como a partir de sua conversão, sendo esta
última hipótese a mais provável.
No v. 1 Paulo diz que foi a Jerusalém acompanhado de
Barnabé. Sabe-se que ambos por esse tempo eram líderes na
igreja de Antioquia (Atos 11.25-26; 13.1) e certamente partiram
dali para Jerusalém. Paulo diz que Tito, um gentio convertido
também os acompanhou. O apóstolo prossegue dizendo que
a visita foi motivada por uma revelação e que, graças a ela,
teve a oportunidade de expor o evangelho que pregava aos
homens influentes da principal igreja da Judéia (v. 2).
Esses detalhes se encaixam perfeitamente na narrativa de
Atos. A revelação de que Paulo fala é descrita em Atos 11.27-
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 37

30 e diz respeito a uma profecia de Ágabo que predisse uma


grande fome que assolaria o mundo romano.1 Em virtude
dessa revelação, Paulo foi enviado com Barnabé a Jerusalém
a fim de entregar uma oferta levantada em Antioquia para os
crentes da Judéia (Veja tb. At 12.25). Como narrado em Gálatas,
nessa ocasião Paulo não só realizou a entrega da oferta, mas
também aproveitou a oportunidade para expor aos líderes da
igreja em Jerusalém a mensagem que pregava aos gentios.
A fim de manter em mente o lugar que esses episódios
ocupam na cronologia de Atos, é bom lembrar que tudo isso
aconteceu antes da Primeira Viagem Missionária a qual
redundou na implantação das igrejas da Galácia (At 13-14) e
antes do Concílio de Jerusalém (At 15.1-30), ocorrido em 48
d.C.
Paulo realça, ainda no v. 2, que fez a exposição de sua
mensagem “aos que pareciam mais influentes”. Além disso,
deixa claro que agiu assim para não correr inutilmente. Isso
tudo significa que Paulo se preocupava em manter clara a
harmonia entre seus ensinos e os dos demais apóstolos.2 Isso
faria com que seus esforços não fossem inúteis, ou seja,
evitaria as divisões e até apostasias que as disputas entre
mestres invariavelmente trazem sobre a igreja do Senhor e
que tornam o trabalho de alguns uma corrida vã.
O v. 2 mostra, portanto, quão importante é que quem
trabalha na obra de Cristo nutra a unidade não só com os
crentes comuns, mas principalmente com aqueles que
desempenham na igreja uma função de alta responsabilidade.
Ter a aprovação somente dos que não ocupam lugar de
destaque dado por Deus, com desprezo em relação ao parecer
dos líderes, dos mestres e dos que são realmente influentes
na igreja torna o trabalho uma corrida inútil, destinada ao
fracasso, uma vez que só produzirá divisões e discórdias.
Trabalha, pois, em vão o obreiro que arranca os aplausos do
povo, mas está em desacordo com os homens que Deus
38 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

constituiu como colunas na sua igreja. Paulo sabia disso e,


ainda que não estivesse sob a autoridade dos apóstolos de
Jerusalém, buscou cuidadosamente e para o bem da Causa
estar em harmonia com eles.
Nos vv. 3-5, Paulo mostra que os ataques que estava
enfrentando por parte dos falsos mestres da Galácia não lhe
eram novidade. Ele narra que em sua segunda visita a
Jerusalém, Tito3, apesar de ser grego, não foi obrigado a
circuncidar-se (3). Esse fato tinha especial importância para
o enfraquecimento das acusações dos mestres judaizantes,
pois dava provas de que os apóstolos de Jerusalém, ao
contrário do que aqueles falsos mestres diziam, não exigiam
a circuncisão de convertidos gentios4. Paulo, assim, comprova
ainda mais a harmonia entre seu evangelho e o dos apóstolos
da Judéia. Isso corrobora a tese de que é um verdadeiro
apóstolo e destrói a acusação de que pregava um cristianismo
modificado por seus caprichos.
A questão da necessidade da circuncisão de Tito, conforme
Paulo narra, foi levantada na ocasião por falsos irmãos (4).
Aqui Paulo diz abertamente que quem defende a justificação
pela prática da Lei não é crente. É claro que isso atingia
diretamente os mestres judaizantes que estavam ensinando
nas igrejas da Galácia. O alvo claro de Paulo em toda essa
sessão é desmascarar esses homens.
O v. 4 mostra uma das estratégias de Satanás no uso de
seus ministros para destruir a obra de Cristo. Em primeiro lugar,
eles se infiltram em nosso meio. Assim, cada crente deve estar
alerta para o fato de que nem todos os que estão na igreja são
irmãos de verdade. É comum incrédulos fingirem-se de crentes
para cumprirem os desígnios de Satanás no meio do povo de
Deus. Tais pessoas são, portanto, muito perigosas (2Co 11.26;
Fp 3.2-3) e o crente precisa de discernimento para detectá-las.
Uma das formas pelas quais podemos detectar essas pessoas
encontra-se ainda no v. 4. Paulo deixa claro que os falsos irmãos
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 39

se introduziram na igreja para “espionar” a liberdade dos


crentes. Espionar é atividade própria de estrangeiros inimigos.
O verbo sugere a idéia de espiar um território. Assim o espião
é sempre um inimigo disfarçado que procura os pontos fracos
do seu alvo a fim de cooperar com sua destruição. Em Jerusalém,
os “espiões” procuravam encontrar dentro da igreja fraquezas
na compreensão da liberdade conquistada por Cristo para os
crentes. Fazendo pressões sobre esses pontos de maior
fragilidade eles tinham como alvo destruir a liberdade cristã e
tornar os crentes escravos da Lei.5
Toda essa estratégia usada pelos maus nos ajuda a detectar
os inimigos de Cristo infiltrados entre os irmãos. Sempre que
alguém no meio da igreja milita contra algo que Cristo
conquistou para nós na cruz, certamente tal pessoa é um servo
de Satanás a serviço de seu senhor no meio do povo de Deus.
Exemplos do que Cristo conquistou para nós no Calvário, além
da liberdade, são a alegria (Jo 7.38), a comunhão pacífica (Ef
2.14-16), o acesso a Deus (Hb 10.19-20) e o poder para uma
vida de consagração (Rm 6.10-11; 2Co 5.15). Sempre que
alguém, dentro da igreja, luta contra essas coisas, tal pessoa
deve ser olhada com suspeita como um falso irmão infiltrado
em nosso meio para destruir a obra do Mestre e, assim,
cumprir os planos de Satanás.
O v. 5 deixa implícito que os falsos irmãos, além de tentar
destruir o que Cristo conquistou para o seu povo também tentam
se impor sobre o rebanho. Paulo dá a entender que os legalistas
de Jerusalém queriam que ele e todos os crentes se sujeitassem
às suas idéias (o paralelo com os legalistas que estavam na
Galácia é óbvio, cf. 4.17; 6.12-13). É, de fato, traço típico dos
falsos irmãos tentar ocupar posições de influência, de onde seus
ataques podem ser feitos com maior eficácia (3Jo 9-10). O apóstolo,
porém, em nenhum momento se sujeitou a eles. Com isso ele
buscava preservar a verdade do evangelho. A verdade que o
apóstolo tem em mente aqui é a consubstanciada em 3.11.
40 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Demonstrar que sua mensagem não lhe fora entregue por


homem algum, mas sim pelo próprio Cristo, era fundamental
para Paulo na defesa de seu apostolado (1.11-12). Por isso
insiste em dizer que em sua segunda visita a Jerusalém, os
apóstolos que ali estavam nada lhe acrescentaram (6). Com a
expressão “quanto aos que pareciam influentes”, Paulo dá a
entender que tem em mente outros líderes, pouco conhecidos
por ele, além dos apóstolos. Ao mencionar tais homens e sua
aparente autoridade, Paulo observa que a grandeza deles
naquela igreja não o impressionava, pois, conforme lembra,
“Deus não julga pela aparência”.
De fato, é comum na igreja vermos pessoas se destacando,
tornando-se conhecidas e influentes, obtendo um lugar de
proeminência no meio da irmandade, dando a todos a
impressão de que são “grandes” e cheios de autoridade entre
os crentes. Alguém assim pode impressionar os homens, mas
não passar de uma figura desprezível aos olhos de Deus,
alguém que até mesmo muito o aborrece com seus ares de
orgulhoso, com sua preocupação em passar uma falsa imagem
de santidade e zelo (Mt 6.16; 2Tm 3.1-5), e com sua
incapacidade de aceitar qualquer autoridade sobre si. Paulo
sabia que muitas vezes as aparências não correspondem aos
fatos. Por isso, não se deixava levar pelo aspecto externo das
coisas, sabendo que o justo Juiz julga de acordo com critérios
que vão além das nossas possibilidades (1Sm 16.6-7; Is 11.1-
4), o que também deveria nos conduzir a um cuidado maior
com o que realmente somos e com o modo como tratamos as
pessoas (Jo 7.24; Tg 2.1-10).
Paulo prossegue dizendo que a liderança da igreja em
Jerusalém reconheceu seu apostolado como estando no mesmo
nível do apostolado de Pedro, o apóstolo de maior destaque
entre os Doze (7). A diferença entre ambos era apenas no
tocante ao alvo de cada ministério. O principal alvo de Paulo
era os gentios; o principal alvo de Pedro era os judeus. Isso,
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 41

evidentemente, não significava que Paulo não deveria pregar


aos judeus (At 9.15), ou que Pedro não deveria evangelizar
gentios. Na verdade, os judeus eram os primeiros que Paulo
tentava conduzir à fé nas cidades por onde passava (At 13.45-
48; 14.1; 18.5-6; 28.16-28), e Pedro foi personagem
fundamental no “processo de inclusão” dos gentios na igreja
(At 10; 15.7). Aqui, no entanto, é-nos ensinado acerca da
ênfase do trabalho de cada um (Rm 11.13; 1Tm 2.7).
A despeito de atuarem em esferas diferentes, a igualdade
entre o apostolado de Paulo e o de Pedro estava no fato de
que Deus operara da mesma maneira por meio de ambos (8).
Não havia, pois, razão alguma para que Paulo fosse
considerado um falso apóstolo ou um apóstolo de categoria
inferior como pretendiam os mestres legalistas. Paulo ensina
no v. 8 que nem mesmo o próprio Deus fazia essa distinção.
A operação de Deus por meio de Pedro e Paulo como
apóstolos, consistiu em manifestar seu Filho a eles depois de
ressurreto (Jo 20.19-20; 1Co 9.1), incumbi-los pessoalmente da
missão de proclamar o evangelho (Jo 20.21; At 26.15-18; 1Co
9.17), dar-lhes singular intrepidez e sabedoria ao pregar (Mt
10.17-20; At 4.13; 2Co 10.3-5; 11.23-29), abrir o coração de
incrédulos para a sua mensagem (At 2.37-41; 16.14) revelar-
lhes verdades doutrinárias até então desconhecidas (2Co 12.1,7;
Ef 3.2-6; 2Pe 3.1-2), e realizar milagres jamais vistos como prova
de que sua mensagem vinha de Deus (2Co 12.12; Hb 2.3-4).
Paulo conclui o relato sobre sua segunda visita a Jerusalém
falando que os líderes da igreja ali reconheceram a
legitimidade de seu ministério e estenderam a mão a ele e a
Barnabé, um sinal de harmonia e amizade, estando em acordo
quanto às diferentes esferas de atuação missionária (9). É
bom ressaltar que os líderes aqui, Tiago, Pedro e João, são
chamados de colunas, o que lembra o dever dos que estão à
frente de sustentar a igreja com força e firmeza inabalável
(2Tm 1.7).
42 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

O v. 10 revela que os líderes de Jerusalém somente pediram


que Paulo e Barnabé se lembrassem dos pobres. Isso fazia
sentido, considerando que a visita tinha sido motivada pela
profecia de Atos 11.27-30. Tal pedido, porém, não refletia
qualquer autoridade dos apóstolos de Jerusalém sobre Paulo.
Mesmo assim, ele se esforçou para atendê-lo. De fato, o cuidado
com os carentes foi uma marca presente ao longo de todo o
ministério de Paulo (Rm 15.25-26; 1Co 16.1-4).

A SIMULAÇÃO DE PEDRO
GÁLATAS 2.11-21
11. Quando, porém, Pedro veio a Antioquia, enfrentei-o face
a face, por sua atitude condenável.
12. Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele
comia com os gentios. Quando, porém, eles chegaram,
afastou-se e separou-se dos gentios, temendo os que eram
da circuncisão.
13. Os demais judeus também se uniram a ele nessa
hipocrisia, de modo que até Barnabé se deixou levar.
14. Quando vi que não estavam andando de acordo com a
verdade do evangelho, declarei a Pedro, diante de todos:
“Você é judeu, mas vive como gentio e não como judeu.
Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como
judeus?
15. “Nós, judeus de nascimento e não ‘gentios pecadores’,
16. sabemos que ninguém é justificado pela prática da Lei,
mas mediante a fé em Jesus Cristo. Assim, nós também
cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em
Cristo, e não pela prática da Lei, porque pela prática da Lei
ninguém será justificado.
17. “Se, porém, procurando ser justificados em Cristo
descobrimos que nós mesmos somos pecadores, será Cristo
então ministro do pecado? De modo algum!
18. Se reconstruo o que destruí, provo que sou transgressor.
19. Pois, por meio da Lei eu morri para a Lei, a fim de
viver para Deus.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 43

20. Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem


vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no
corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim.
21. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça vem pela
Lei, Cristo morreu inutilmente!”

A presente etapa da narrativa de Paulo refere-se a uma


severa repreensão que ele dirigiu a Pedro quando este visitou
Antioquia. Com a menção desse episódio, Paulo pretende
alcançar o propósito de mostrar que não era em nada inferior
aos apóstolos de Jerusalém (já que repreendeu o maior dentre
eles), bem como defender a salvação unicamente pela fé, ao
reproduzir as palavras que dirigiu a Pedro.
A seção se inicia com a menção de uma visita de Pedro a
Antioquia (11). O Livro de Atos não faz nenhuma referência
a esse fato. Presume-se, a partir dos eventos narrados em
Atos12, que, depois de ter sido milagrosamente libertado da
prisão em que Herodes o havia lançado, Pedro foi a Antioquia.
Em Atos é dito apenas que ele se ausentou indo “para outro
lugar” (At 12.17). Depois disso, Pedro só aparece novamente
na narrativa em Atos 15, no Concílio de Jerusalém (At 15.7).
É possível, portanto, situar a visita de Pedro a Antioquia entre
sua extraordinária libertação e o Concílio de Jerusalém.
Paulo afirma que por aquele tempo teve de enfrentá-lo “face
a face, por sua atitude condenável”. Essa atitude é descrita
no v. 12. Nele aprendemos que Pedro comia com os gentios
até a chegada de uma delegação de crentes judeus, vindos de
Jerusalém, enviados por Tiago. Porém, com a chegada dessa
delegação a Antioquia, ele ficou receoso de ser reprovado pelos
legalistas e, para passar-lhes uma boa impressão, afastou-se
dos irmãos gentios.
De fato, antes do concílio mencionado em Atos 15, a igreja de
Jerusalém, predominantemente judaica, tinha em aberto a
44 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

questão de como receber os gentios em sua comunhão. Não


faltavam os que viam o cristianismo como um simples ramo do
judaísmo e diziam que a fé não era suficiente para que um gentio
fosse aceito como irmão, sendo necessária também a circuncisão
e a guarda da Lei Mosaica (At 15.1, 5). Para esse grupo, era
inadmissível que um judeu comesse com um gentio (At 11.1-3).
Não estando esse problema ainda formalmente
solucionado, Pedro, diante dos irmãos judeus, ficou com medo
de ser reprovado em sua associação com crentes incircuncisos
e, assim, rompeu a comunhão com eles. Com isso ele
demonstrou hipocrisia, covardia e desobediência, uma vez que
já havia aprendido do próprio Senhor a não desprezar os
crentes não judeus (At 10.27-28, 34-35; 11.1-17). Ele também
demonstrou desprezo pela sã doutrina, preocupando-se mais
com a aprovação dos homens do que com a de Deus. Segundo
o v. 13, essa conduta vacilante e reprovável influenciou outros
crentes judeus que a imitaram. Paulo admirou-se do fato de
que o próprio Barnabé, exemplo máximo de piedade (At 4.36-
37; 11.22-24), também tivesse se deixado levar.
Evidentemente, tamanha falta não poderia passar em
branco e Paulo tomou em suas mãos a tarefa de admoestar
Pedro, o principal responsável por toda aquela farsa. Paulo
entendeu que Pedro e os demais judeus não estavam andando
“de acordo com a verdade do evangelho” (14). De fato, a
verdade do evangelho, além de ensinar que a salvação é pela
fé somente (16; Rm 3.28), estabelece também que em Cristo,
não há distinção entre judeus e gentios (At 15.8-9; Gl 3.26-
28); que em sua morte, o Filho de Deus rompeu a barreira de
separação que estava entre os dois e criou de ambos um novo
homem, fazendo a paz (Ef 2.11-19); e que os gentios são co-
participantes da graça de Deus dada em Cristo (Ef 3.5-6).
Quando Pedro e seus companheiros se afastaram dos irmãos
gentios, era como se negassem todas essas verdades,
passando a andar em desarmonia com elas.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 45

A repreensão de Paulo destacou inicialmente a incoerência


do procedimento de Pedro: “Você é judeu, mas vive como gentio
e não como judeu. Portanto, como pode obrigar gentios a
viverem como judeus?” (14). Com essas palavras, Paulo toca
na ferida do farisaísmo. Nelas vemos implícitos os dois erros
principais cometidos por todos os que querem viver sob a Lei.
Primeiro, sua conduta exterior é uma farsa. Os legalistas têm
uma vida dupla: diante dos homens apresentam-se como
zelosos da Lei, mas longe dos olhos alheios vivem conforme
outros padrões (Mt 23.23-28). Em segundo lugar, os fariseus
legalistas têm o hábito de impor fardos sobre os outros, mas
eles próprios não se dispõem a carregar esses mesmos fardos
(Mt 23.4). É assustador que Pedro, que viu quão severamente
o Senhor, em seu ministério terreno, reprovou a conduta
farisaica (Mt 23.1-3), tenha incorrido em tão grave erro.
A reprodução da repreensão dirigida por Paulo a Pedro
prossegue nos vv. 15-16. Nesses versículos Paulo conta ter
trazido à lembrança de Pedro que mesmo eles, sendo judeus
de nascimento, portadores de privilégios e conhecimentos
espirituais que os colocavam em vantagem em relação a
qualquer pagão ignorante (Rm 9.1-5), já haviam descoberto
“que ninguém é justificado pela prática da Lei, mas mediante
a fé em Jesus Cristo”. Esse princípio tão resistido pelos homens
em todas as eras já havia sido descoberto por judeus agora
convertidos, os quais outrora tinham tentado ser justificados
pela prática da Lei e haviam falhado. Como então Pedro,
alguém que, como um desses judeus, já tinha experimentado
a impotência da Lei, era agora capaz de sutil e
dissimuladamente impor sua observância aos gentios? Se, com
todos os privilégios espirituais que tinham, os judeus haviam
falhado e recorrido à fé, reconhecendo ser esta a única saída,
como poderiam agora impor o fardo da Lei a povos que jamais
tiveram privilégio algum? É, pois, como se Paulo dissesse:
“Nós judeus, com todo o favor que recebemos, descobrimos
ser impossível alguém salvar-se pela Lei. Como podemos
46 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

esperar agora que os pobres gentios consigam essa


façanha?”.
Assim, Paulo conclui o v. 16 realçando que, mesmo eles,
judeus com vantagens sobre todos os povos, tiveram que crer
em Cristo para ser justificados, já que pela observância da Lei,
a qual exige uma obediência perfeita, ninguém, nem mesmo o
povo da Aliança com todo o seu conhecimento, direitos e
prerrogativas, pode ser considerado justo aos olhos de Deus.
No v. 17, Paulo sugere que se o homem justificado pela fé
em Cristo, porventura ainda buscar a justificação pela Lei, isso
será o mesmo que, estando em Cristo, considerar-se ainda preso
ao pecado. Seria como se dissesse: “Mesmo tendo encontrado
a justificação pela fé em Cristo, isso não me é suficiente, pois
considero-me ainda um pecador não justificado”. Ora, isso
significaria que crer em Cristo nos manteria ainda sob o pecado.
Nesse caso, o ministério do Senhor, ou seja, seu ensino e obra,
não nos livraria, mas sim manteria nossas almas sob a culpa
do pecado que não pôde remover. Cristo seria assim, um
ministro que ainda nos deixaria no pecado. Para Paulo, essa
hipótese é absurda. É, de fato, repugnante blasfêmia atribuir
ainda que só uma parte da justificação à observância da Lei, já
que isso implica afirmar que Cristo não é suficiente para salvar
e que a simples fé nele ainda nos mantém enredados em culpa
e condenação (veja o v. 21).
O procedimento de Pedro em Antioquia trazia em si todas
essas horríveis implicações. Sendo já justificado em Cristo,
ele se apresentara diante dos judeus de Jerusalém como
alguém que buscava a justificação pela prática da Lei e, agindo
assim, blasfemava, já que com essa prática era como se
dissesse que o Senhor não o livrara da culpa, mas como
ministro do pecado, ainda o mantinha em triste escravidão.
De fato, era como se dissesse que ainda estava em busca da
salvação, considerando Cristo como alguém que o conservara
preso aos seus pecados.
O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA 47

Dando seqüência à sua argumentação, Paulo,


provavelmente ainda reproduzindo sua censura a Pedro, faz
uso de uma figura tirada do contexto da construção civil (18).
Ele afirma que “se reconstruo o que destruí, provo que sou
transgressor”. O significado disso é simples: Paulo, Pedro e os
demais crentes judeus, quando creram em Cristo, haviam como
que “destruído” sua antiga confiança nas obras da Lei. Eles
tinham chegado à conclusão de que a Lei não era capaz de
fornecer abrigo contra a culpa do pecado e, por isso, tinham
posto ao chão todas as paredes de confiança que se alicerçavam
sua observância. Então, passaram a viver em outra casa, a
casa da fé em Cristo, única edificação que oferece real segurança.
Agora, porém, Pedro e seus companheiros estavam agindo como
se voltassem a viver sob o teto da Lei. Era como se estivessem
edificando novamente as paredes de confiança nas obras que
eles próprios haviam destruído quando creram no Senhor. Ora,
isso era o mesmo que reconhecer que erraram quando deixaram
de confiar na Lei. Era o mesmo que afirmar que cometeram
grave transgressão quando depositaram somente em Cristo a
esperança de justificação.
No v. 19, ressaltando o absurdo da hipótese prevista no v.
18, Paulo mostra quão impossível era para ele qualquer
reconstrução da confiança na Lei. Ele havia morrido para ela,
ou seja, havia se libertado totalmente do seu domínio (Rm
7.4-6). Isso acontecera por meio da própria Lei que lhe
mostrara, quando ainda o tinha sob seu domínio, quão
incapaz era de livrar do pecado, posto que tão somente o
realçava e, dada a nossa malícia, até o estimulava ainda mais
(Rm 7.7-14). Nesse sentido, foi a própria Lei que encorajou
Paulo a abandonar a confiança nela. Morto para os preceitos
legais e, dessa forma, livre de seus fardos, Paulo passou a
“viver para Deus”.
O apóstolo explica o significado da expressão “viver para
Deus” no v. 20. Num dos versículos mais tocantes de todo o
48 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

NT, Paulo diz que morreu para a Lei ao unir-se a Cristo em sua
crucificação. Essa é uma forma viva de dizer que morreu para
a Lei ao apropriar-se dos benefícios da morte de Cristo. Assim,
estar crucificado com Cristo é prender-se à cruz pela fé e, assim,
morrer para a velha vida com seus padrões e crenças vãs
(6.14). Lembremos que essas palavras provavelmente ainda
compõem a admoestação dirigida a Pedro que, com seu
procedimento, revelara um modelo diferente de vida.
Paulo prossegue explicando, ainda no v. 20, o sentido da
expressão “viver para Deus” (v. 19). Ele diz que, além de estar
morto para o antigo estilo de vida baseado na confiança na
Lei, tem agora seu “eu” totalmente dominado por Cristo. “Já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. Aqui reside o
“segredo” de toda a piedade cristã. Esta não consiste de
obediência exterior a regras, como ensinavam os mestres
legalistas da Galácia, mas sim de um deixar-se dominar
totalmente por Cristo, de tal forma que o indivíduo desapareça,
inundado por uma onda de caráter transformado e santo (5.24).
Essa vida que implica morte para padrões antigos e inúteis;
essa vida que implica a renúncia de si próprio; essa vida que
consiste na construção do viver de Cristo em nós, só é possível
“pela fé no Filho de Deus”. Não há espaço nela para a confiança
nas obras pessoais. Aliás, admitir, como Pedro dera a entender,
que a justiça vem pela Lei, seria o mesmo que anular a graça
de Deus e afirmar a inutilidade do sacrifício de Cristo (21).
o evangelho e seu poder
3.

É mediante a fé que o homem é justificado, e é por obra do


Espírito Santo que participa das bênçãos da vida cristã, sendo
a Lei incapaz de realizar qualquer uma dessas coisas, conforme
se vê no relato bíblico acerca de Abraão. De fato, a Lei não foi
dada para salvar, mas para dar limites ao mal e conduzir o
pecador a Cristo, em quem desaparecem as barreiras entre os
homens.

A INUTILIDADE DO ZELO LEGALISTA


GÁLATAS 3.1-5
1. Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi diante
dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?
2. Gostaria de saber apenas uma coisa: foi pela prática da
Lei que vocês receberam o Espírito, ou pela fé naquilo que
ouviram?
3. Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado
pelo Espírito, querem agora se aperfeiçoar pelo esforço
próprio?
4. Será que foi inútil sofrerem tantas coisas? Se é que foi
inútil!
5. Aquele que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre
vocês realiza essas coisas pela prática da Lei ou pela fé
com a qual receberam a palavra?
50 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

No capítulo 3 de Gálatas, Paulo passa a tecer diversos


argumentos em defesa da fé como instrumento de justificação
e ação especial de Deus em detrimento da observância da Lei.
A seção se inicia com fortes palavras de censura que
expõem a triste condição dos gálatas. Com elas, Paulo quer
claramente despertar seus leitores de forma que tornem à
sensatez. “Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou?” (1),
escreve o apóstolo. Daí se depreende em primeiro lugar que
abandonar a confiança exclusiva em Cristo e se estribar numa
justiça própria imaginária, que busca a salvação por meio da
obediência externa a regras, é a mais absurda loucura.
Também um conceito mais amplo de sabedoria advém disso:
o homem sábio é aquele que reconheceu a impotência dos
seus esforços pessoais e lançou-se pela fé, sem reservas, nos
braços do Salvador. Há, assim, sabedoria na fé. O homem sábio
é, basicamente, o homem que crê. Sua sabedoria se expressa
na fé em Cristo (2Tm 3.15).
A partir do v. 1 também se deduz que o legalismo exerce
um notável fascínio sobre a natureza humana. É como se
enfeitiçasse o homem, nublando sua mente e impedindo-o
de andar à luz das verdades mais elementares do evangelho.
O homem fica fascinado com a idéia de ser capaz de produzir
sua própria justificação; sente-se atraído pela aparência de
piedade que acompanha o zelo pelas tradições e pelas regras
religiosas; busca cegamente a aprovação e admiração dos
homens que mostram-se sempre impressionados com a
religiosidade exterior; enfim, fica encantado com o que tem
ares de grandeza e seriedade, mas não tem poder para fazer
o indivíduo andar um centímetro sequer no rumo da
santidade (Cl 2.23). Aqui, portanto, Paulo toca num dos
fatores que fazem do legalismo uma das mais perigosas
armadilhas: o fato dele fascinar as pessoas e, após entorpecer
suas mentes, conduzi-las à apostasia, ao abandono da fé
na suficiência de Cristo (5.4).
O EVANGELHO E SEU PODER 51

A insensatez dos crentes da Galácia ganhava contornos


ainda mais fortes quando se considerava que o evangelho
fora exposto a eles com clareza indescritível. Paulo lhes
apresentara o sacrifício do Senhor e o significado de sua obra
com tamanha vivacidade que era como se eles tivessem sido
testemunhas oculares da crucificação (1Co 1.23; 2.2).1 A
suficiência da obra de Cristo no Calvário fora apresentada a
eles de forma tão enfática que nenhum espaço restara para a
confiança nas obras da Lei. A despeito disso, aqueles cristãos
deixaram-se levar pelos encantos da doutrina da justificação
pelas obras, sendo seduzidos pelos contornos de um sistema
religioso centrado no esforço humano, com seu zelo
aparentemente piedoso e glórias transitórias. Isso reforça o
fato de que o problema dos gálatas não fora ingenuidade ou
ignorância, mas verdadeira e surpreendente estupidez, o que
mostra quão poderosa pode se tornar a influência de falsos
mestres no seio da igreja.
A fim de despertar os crentes da Galácia do sono da insensatez,
Paulo passa, a partir do v. 2, a dirigir-lhes perguntas cujas
respostas são fáceis e óbvias. Aliás, tão óbvias são as
respostas que tais perguntas requerem que, por meio delas,
fica ainda mais patente a insensatez dos gálatas.
Paulo dirige aos seus leitores, no v. 2, a seguinte pergunta:
“foi pela prática da Lei que vocês receberam o Espírito, ou
pela fé naquilo que ouviram?” Daqui se depreende tanto que
os gálatas haviam recebido o Espírito Santo quanto que
tinham plena consciência disso. Aqui é preciso deixar claro
que essa consciência não era decorrente de nenhuma evidência
sobrenatural externa. De fato, os relatos da conversão dos
crentes da Galácia constantes do Livro de Atos mostram que
tais conversões não foram acompanhadas de nenhuma
manifestação externa de dons espirituais (At 13.43, 48; 14.1,
20-21). Portanto, a consciência de que tinham o Espírito estava
presente nos gálatas em virtude de uma obra interna do
52 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

próprio Espírito em seus corações, a qual consistira a princípio


de enchê-los com uma alegria especial num ambiente que lhes
era hostil (At 13.52) e agora se manifestava num testemunho
interior que lhes dava a certeza de que eram filhos de Deus
(Rm 8.15-16).
Ora, certos de que tinham o Espírito, aqueles crentes não
eram ignorantes ao ponto de crer que tal dádiva lhes fora
concedida por meio da observância da Lei mosaica. Além disso,
o propósito da própria pergunta do v. 2 é realçar algo óbvio,
ou seja, que o Espírito de Deus passara a habitar neles a
partir do momento em que creram na mensagem anunciada
por Paulo e não pelo fato de terem cumprido a Lei, já que,
como se sabe, ninguém é capaz de cumpri-la de fato.
O ensino da habitação do Espírito Santo no crente é parte
integrante do Novo Testamento (Rm 5.5; 1Co 2.12; 3.16; 6.19;
2Co 1.21-22; 5.5), sendo certo que a ausência do Espírito em
alguém, é prova de que tal pessoa não é salva (Rm 8.9; 1Co
2.14; Jd 19). Que essa dádiva nos advém pela fé em Cristo é
fato que também compõe o ensino bíblico (Jo 7.37-39; Ef 1.13).
Paulo, assim, faz uso dessa verdade para, mais uma vez,
mostrar a superioridade da fé em relação à prática do
legalismo. Ele mostra dessa forma que somente a fé os
introduzira no rol dos homens habitados por Deus, sendo a
Lei incapaz de conceder-lhes tal privilégio.
A pergunta que Paulo faz no v. 2 reveste-se de uma
importância singular nos dias modernos. Isso porque na
atualidade existem igrejas evangélicas que incentivam seus
membros a buscar o batismo do Espírito Santo por meio de
certas práticas cultuais ou de zelo religioso. Chegam mesmo
a dizer que só recebe o Espírito o crente que durante um
período indeterminado se dedica a jejuns e orações,
submetendo-se ainda a outras regras impostas pela igreja.
Ora, isso equivale a dizer que o Espírito é dado por meio das
obras e não pela fé. É justamente esse pensamento que o v. 2
O EVANGELHO E SEU PODER 53

rejeita. Paulo, desde o início, havia ensinado aos gálatas que


a justificação é pela fé, e não pela prática da Lei (At 13.39).
Agora ele os faz lembrar que também a habitação de Deus no
homem advém somente da fé em Cristo, nada restando à Lei
que faça dela fonte de benefícios espirituais.
Paulo prossegue demonstrando a insensatez dos crentes
da Galácia. Agora, no v. 3, ele mostra quão absurda tolice é
terem iniciado a carreira cristã pela atuação do Espírito Santo
e, então, depois de conhecerem a incomparável força
transformadora dele, se voltarem para si mesmos, crendo que
em si encontrarão recursos para serem aperfeiçoados. Aqui
Paulo deixa claro primeiramente que é pela atuação
sobrenatural do Espírito de Cristo que nos tornamos cristãos.
É nele que encontramos o início de toda a nossa carreira
espiritual como filhos de Deus (Jo 16.8; Rm 2.29; 1Co 2.4-5;
6.11; Ef 1.13; 2Ts 2.13; 1Pe 1.2). O papel do Espírito, porém,
na transformação do homem não pára aí. Sua obra no crente
continua (Rm 5.5; 8.13; 2Co 3.18; Ef 3.16; Fp 1.6) e, sem ela,
o cristão que confia meramente em seus esforços pessoais,
não progride um centímetro sequer.
Na Galácia, porém, os crentes não assimilaram essas
verdades indo ainda muito além em seu erro. De fato, estavam
confiando no esforço pessoal legalista não somente para servir
a Deus, mas também para de alguma forma obter o que criam
ser a justificação completa. Eles acreditavam que pela atuação
do Espírito neles, a obra de justificação havia apenas se
iniciado e que agora dependia deles a conclusão dessa obra.
Essa crença é herética porque, além de reduzir a real amplitude
da obra de Deus na salvação humana, no fim das contas coloca
sobre os ombros do homem a responsabilidade por sua própria
salvação, como se ele tivesse poderes para obtê-la. Portanto,
diminuir a obra de Deus e exaltar a obra do homem é o
resultado final desse desvio doutrinário. Paulo rejeita tudo
isso. Em seu ensino, a consagração a Deus depende da obra
54 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

do Espírito (Rm 7.6) e, além disso, nenhuma confiança pode


ser depositada no esforço humano para a obtenção da justiça
de Deus (Fp 3.3; Tt 3.5).
No v. 4, Paulo faz os crentes da Galácia recordarem um
pouco de sua história. Quando eles receberam o evangelho
da salvação pela fé, rompendo muitos deles com o antigo
sistema judaico, essa decisão lhes trouxe inúmeros
dissabores. Aliás, foram precisamente os judeus, homens que
confiavam na justiça de Lei que, vendo suas crenças serem
ameaçadas, se insurgiram contra Paulo na Galácia (At 13.49-
51; 14.2,4-5,19-20). Evidentemente essa perseguição atingiu
também os que creram na pregação de Paulo (At 14.22). Dessa
maneira, foi por terem abraçado uma mensagem que
desprezava o legalismo judaico que os crentes da Galácia
haviam sofrido tanto. Agora, porém, respondendo aos apelos
dos falsos mestres, eles estavam se voltando precisamente
para o legalismo judaico, cuja rejeição lhes havia custado preço
tão alto. “Teria sido desnecessário todo aquele sofrimento?”
pergunta Paulo. Que terrível prejuízo ter sofrido por algo que,
como pareciam agora crer, não tinha valor algum! Antes
tivessem permanecido na Lei. Assim receberiam os aplausos
daqueles que os perseguiram e não teriam passado inutilmente
por tantas provas. Ao encerrar o v. 4 com a frase “se é que foi
inútil”, Paulo faz transparecer que duvida da hipótese que
levantou. É como se dissesse: “prefiro, contudo, ainda
acreditar que vocês não consideram inútil tudo pelo que
passaram”.
Com o v. 5, Paulo termina o parágrafo reforçando o ensino
já exposto (v. 2) de que a dádiva do Espírito vem pela fé e não
pela prática da Lei. A isso ele acrescenta, valendo-se ainda de
perguntas inquietantes, que a operação de milagres entre os
gálatas era resultado da fé e não do zelo legalista. Não se
sabe de que milagres ele fala aqui. Talvez tenha em mente os
que ele próprio realizou na Galácia (At 14.3, 8-10), mas é
O EVANGELHO E SEU PODER 55

possível que outras manifestações especiais do Espírito fossem


testemunhadas por aqueles cristãos, considerando que tais
operações eram muito comuns nos dias apostólicos. Seja como
for, Paulo quer aqui tão-somente frisar que a graça operante
de Deus é resultado da fé e não um pagamento pelas obras.
Se assim fosse, não poderia mais ser chamada de graça.

A BÊNÇÃO QUE VEM DA FÉ


GÁLATAS 3.6-9

6. Considerem o exemplo de Abraão: “Ele creu em Deus, e


isso lhe foi creditado como justiça”.
7. Estejam certos, portanto, de que os que são da fé, estes
é que são filhos de Abraão.
8. Prevendo a Escritura que Deus justificaria os gentios
pela fé, anunciou primeiro as boas novas a Abraão: “Por
meio de você todas as nações serão abençoadas”.
9. Assim, os que são da fé são abençoados junto com
Abraão, homem de fé.

Nesse novo parágrafo, Paulo deixa de argumentar a partir


da lógica exposta em perguntas retóricas e passa a fazer uso
de argumentos escriturísticos. Inúmeras citações do Antigo
Testamento são feitas a partir do v. 6. Com elas, Paulo repisa
a tese de que a justificação é pela fé, independentemente das
obras da Lei Mosaica.
É bom destacar que o largo uso de citações bíblicas feito
por Paulo demonstra como o apóstolo tinha em alta conta a
Sagrada Escritura. De fato, quando deseja provar a veracidade
de seu ensino, recorre a ela muito mais do que ao raciocínio
lógico, mostrando que a tinha como palavra final nas questões
que estava discutindo. Essa visão da Bíblia como fonte última
de autoridade tem sido abandonada pelos cristãos modernos,2
o que redunda em tristes prejuízos doutrinários e morais.
Apelar para o que o texto sagrado diz na hora de dirimir
56 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

questões de fé e conduta é prática que deve ser resgatada


pelos crentes de hoje.
No v. 6, portanto, Paulo, citando Gênesis 15.6, introduz o
exemplo de Abraão como prova bíblica de que a justificação é
pela fé.3 De fato, o texto de Gênesis ensina que foi a fé que
Abraão teve e não a sujeição a regras4 que o levou a ser
considerado justo diante de Deus. Aliás, esse exemplo de Abraão
foi citado por Paulo com o mesmo objetivo cerca de nove anos
mais tarde, na Epístola aos Romanos. Ali, o apóstolo expõe de
modo ainda mais completo o fato do grande patriarca da nação
judaica ter sido justificado somente por ter crido em Deus e
ainda antes de ser circuncidado (Rm 4.1-3, 9-10, 13). Esse fato
tinha relevância especial no combate aos ensinos dos falsos
mestres da Galácia que impunham aos crentes a necessidade
da circuncisão caso quisessem ser salvos (5.2-6; 6.12-13).
Entretanto, esse uso reiterado que Paulo faz de Gênesis
15.6 pode levantar objeções. Isso porque, aparentemente, o
objeto da fé de Abraão não foi idêntico ao objeto da fé cristã.
Abraão, mesmo sendo já velho e não tendo nenhum filho,
creu na promessa de que Deus faria uma grande nação a partir
de um descendente seu (Gn 15.4-6). A fé cristã, por sua vez,
tem um foco distinto. Por ela o crente crê que Jesus Cristo é o
Filho de Deus que morreu e ressuscitou pelos nossos pecados,
depositando nele sua confiança para a vida eterna. Parecem,
portanto, bem distintos os contornos que caracterizam a fé
de Abraão e a fé dos crentes em Cristo. Como, então, Paulo
pôde compará-las?
A resposta a essa questão pode ser obtida observando-se
Romanos 4.18-22. Nesse texto, especialmente nos vv. 20-21,
Paulo deixa claro de que modo a fé de Abraão se identifica
com a dos cristãos. À luz desse texto, o patriarca creu no que
Deus prometeu (Hb 11.11) e os cristãos fazem o mesmo ao
crerem nas promessas que Deus fez em seu Filho (2Tm 1.1;
Hb 9.15; 10.23; 2Pe 3.13; 1Jo 2.25). Além disso, Abraão creu
O EVANGELHO E SEU PODER 57

que Deus era poderoso para cumprir sua promessa. Ora,


também os cristãos, quando crêem na promessa de que em
Cristo receberão o dom da vida eterna não duvidam que Deus
é poderoso para cumprir sua Palavra (Fp 3.21). Nesse aspecto,
a fé de Abraão e a dos cristãos se harmonizam plenamente,
sendo sob esse ângulo que Paulo traça um paralelo entre elas.
O que não se pode perder de vista aqui é o ponto central
que Paulo quer realçar, ou seja, que a justiça só é creditada ao
homem que tem fé. A resposta à velha pergunta do coração
de Jó (Jó 9.1-2), foi dada pela Escritura na história da Abraão
(Gn 15.6) e expandida no Novo Testamento pela pena do
apóstolo Paulo.
No v. 7, Paulo leva o leitor à implicação do que foi dito no
versículo anterior: se Abraão foi justificado pela fé, os
verdadeiros filhos dele são aqueles que crêem. O ensino de
que os crentes são descendentes de Abraão aparece algumas
vezes, direta ou indiretamente, no Novo Testamento (Rm 2.28-
29; 4.11-12; Gl 6.16; Fp 3.3). Esse ensino realça, basicamente,
que os crentes, independentemente de sua origem racial,
quando creram em Cristo passaram a desfrutar das bênçãos
espirituais prometidas a Israel (Rm 15.27; Hb 8.8-12 cp. 9.15).
Aqui é necessário fazer uma ressalva. O fato de Abraão
ter uma descendência espiritual não implica a desconsideração
de sua descendência física. O Israel “segundo a carne”
obviamente ainda existe e ocupa um lugar no plano de Deus
(Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2, 11, 25-29). A igreja não surgiu para
substituí-lo, mas sim para entrar na sua herança (Rm 11.17-
18; Ef 2.12-13; 3.5-6). É, portanto, errado dizer que a igreja
agora é o novo Israel (1Co 10.32). É claro que dentro da igreja,
judeus e gentios são um só, não havendo diferença entre
ambos (1Co 12.13; Gl 3.26-28; Ef 2.11-16; Cl 3.11). Mas no
aspecto externo, a igreja não se confunde com Israel, sendo
ambos distintos, ocupando espaços diversos na visão e nos
decretos de Deus.
58 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Um dos benefícios oriundos dessa visão se relaciona com


o modo como o crente entende as promessas de bênçãos
materiais feitas a Israel no Antigo Testamento. O povo judeu
recebeu de Deus promessas de saúde e prosperidade caso fosse
obediente. Também recebeu promessas de castigo, caso fosse
rebelde (Dt 28). Entendendo erradamente que a igreja é o
“novo Israel de Deus”, muitos intérpretes da Bíblia tentam
aplicar essas promessas aos crentes de hoje. Nessa tentativa,
alguns espiritualizam aquelas promessas, dizendo que elas
são simbólicas e não devem ser entendidas literalmente.5 Um
outro grupo, fugindo da alegorização, cai na chamada
Teologia da Prosperidade, ensinando que os crentes, sendo o
novo Israel, podem desfrutar daquelas promessas de riqueza
e saúde num sentido real e concreto, devendo também temer
maldições que afetem suas finanças e seu corpo. Essas duas
vertentes estão erradas e as conclusões falhas de ambas, ainda
que distintas, apóiam-se no mesmo falso pressuposto, a saber,
que a igreja é o Israel moderno.
Para que evitemos, portanto, esses erros, mantenhamos
nítida em nossa mente a seguinte verdade: como crentes
procedentes dos gentios somos considerados descendência de
Abraão porque, em Cristo, como herdeiros daquela patriarca,
participamos das promessas feitas a Israel. Isso, porém, não
nos torna substitutos de Israel, que continua ocupando um
lugar de importância nos propósitos do Senhor. Decididamente,
o estranho que participa da herança por meio de um
testamento não anula com isso os direitos dos herdeiros
naturais. Também o cãozinho maroto que bebe o leite da vaca,
não vira bezerro, nem toma o seu lugar.
Conforme se vê, o ensino do v. 7 é que os que crêem em
Cristo adquirem o status de herdeiros de Abraão, mesmo não
descendendo fisicamente dele. Dessa forma, por meio da fé,
pessoas de todo o mundo e das mais diversas famílias, podem
participar das promessas feitas ao velho patriarca e serem
O EVANGELHO E SEU PODER 59

abençoadas com ele. Crendo em Cristo, elas participam da


promessa da herança, feita a Abraão. De fato, é claramente
isso o que o apóstolo diz nos vv. 8 e 9. Neles as palavras de
Gênesis 12.3, a saber, “por meio de você todas as nações serão
abençoadas”, significam que quem crê como Abraão,
independentemente de sua origem racial, desfruta junto com
ele da promessa que lhe foi feita de ser herdeiro do mundo
(Rm 4.13)
A descendência espiritual de Abrão, porém, não exclui do plano
de Deus sua descendência física. A igreja não substitui Israel.
Ela desfruta das bênçãos prometidas à nação judaica, mas não
ocupa seu lugar nem se confunde com ela (Rm 15.27; Ef 2.12-
13; 3.5-6). Na verdade, a igreja se sub-roga em alguns direitos
de Israel, mas não se torna Israel. A distinção essencial entre os
dois povos permanece e Deus trata a ambos de modo distinto,
reservando um lugar diferente em seu plano para cada um deles.

A MALDIÇÃO DA LEI
GÁLATAS 3.10-14

10. Já os que se apóiam na prática da Lei estão debaixo de


maldição, pois está escrito: “Maldito todo aquele que não
persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da
Lei”.
11. É evidente que diante de Deus ninguém é justificado
pela Lei, pois “o justo viverá pela fé”.
12. A Lei não é baseada na fé; ao contrário, “quem praticar
estas coisas, por elas viverá”.
13. Cristo nos redimiu da maldição da Lei quando se tornou
maldição em nosso lugar, pois está escrito: “Maldito todo
aquele que for pendurado num madeiro”.
14. Isso para que em Cristo Jesus a bênção de Abraão
chegasse também aos gentios, para que recebêssemos a
promessa do Espírito mediante a fé.
60 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

No v. 9, o apóstolo dos gentios ensinou que “os que são da


fé são abençoados junto com Abraão, homem de fé”. Agora, no
v. 10, Paulo aponta para o contraste existente entre a condição
espiritual dos que “são da fé” e a condição espiritual dos que
“se apóiam na prática da Lei”. Se por um lado, os que são da fé
são abençoados (v. 9), os que buscam sua justificação através
da observância dos preceitos da Lei Mosaica estão debaixo de
maldição. Paulo se refere a estes, literalmente, como “os que
são das obras da Lei”. Isso realça o contraste com “os que são
da fé” e, considerando que o apóstolo trata aqui do meio pelo
qual alguém é liberto da condenação eterna, a expressão aponta
para a atitude de quem põe a confiança em sua própria justiça
para a salvação da alma.
Para provar a existência de maldição sobre os mestres
legalistas e sobre todos os que buscavam ser justificados pela
prática da Lei, Paulo mais uma vez recorre à Sagrada
Escritura, palavra final em qualquer discussão de ordem
doutrinária. Citando, a princípio, Deuteronômio 27.26,
demonstra que é maldito todo aquele que não pratica a
totalidade dos preceitos legais. Paulo tem em mente aqui um
pressuposto claro: ninguém jamais conseguiu guardar a Lei
(6.13; At 15.10). Logo, todos os que se colocam sob o seu
jugo fatalmente a transgridem e, assim, tornam-se objeto de
sua terrível maldição.
Cabe a esta altura levantar a seguinte questão: em que
consiste, exatamente, a maldição da Lei? À luz do texto citado
por Paulo (Dt 27.26), a maldição consiste em estar sob a
reprovação e ira de Deus, bem como sujeito ao seu terrível e
certo castigo (Dt 28.15ss). No texto usado por Paulo, a
maldição decorrente da transgressão da Lei apresenta
conseqüências marcantemente materiais. Paulo, porém, não
fixa o olhar nesse aspecto do castigo. Antes, como se vê,
estende o seu significado para abranger a punição de Deus
sobre os que não crêem, especialmente aqueles que,
O EVANGELHO E SEU PODER 61

procurando estabelecer uma justiça própria, põem sua


confiança nas obras que realizam. Tais pessoas estão sob a
ira de Deus e sujeitas a um castigo futuro que, como se sabe,
ultrapassa os revezes da presente vida (2Ts 1.9).
Em resumo, estar sob a maldição da Lei é estar em
inimizade com Deus, excluído da bênção da justificação pela
fé e aguardando o castigo iminente.6 Sob essa maldição toda
a humanidade sem Deus se encontra, mas para os que são da
Lei ela é pronunciada por Paulo de forma especial e aberta,
quando ele cita a própria Lei e amplia o seu sentido.
Nos dias modernos, vários grupos evangélicos têm pregado
a existência dos mais diversos tipos de maldição que, segundo
eles, recaem indiscriminadamente sobre crentes e incrédulos.
Tais grupos realizam correntes de oração, cultos de libertação
e outras práticas supersticiosas para libertar os homens de
supostas maldições hereditárias ou coisas semelhantes. Nada
disso, porém, tem amparo bíblico. A única maldição que paira
sobre a humanidade perdida é a maldição da Lei, ou seja, a
maldição de não ser justificado pela fé e, assim, não ser
herdeiro de Deus. Tal maldição só recai sobre os incrédulos e
somente pela fé em Cristo alguém pode ser colocado fora do
seu alcance (vv. 13-14).
O uso do testemunho da Escritura como prova cabal da
veracidade de seus argumentos continua a ser feito por Paulo
no v. 11. Agora ele cita Habacuque 2.4. Esse texto traz a
resposta de Deus a uma questão levantada pelo profeta que
via a Babilônia levantar-se como instrumento do juízo de Deus
para destruir Judá: “Como um Deus santo e justo pode usar
os ímpios como seu instrumento de castigo sem agir para
refreá-los?” (Hc 1.12-13, cf. 1.5-6). A resposta de Deus é que
essa situação não perdurará para sempre, pois um dia o ímpio
será castigado (Hc 2.16-17), e que, enquanto isso não acontece,
o justo será preservado por sua fé. Paulo detectou o princípio
presente nas palavras de Habacuque de que somente a fé
62 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

pode livrar o homem do castigo, sendo ela o traço distintivo


do justo. Esse princípio é o núcleo da doutrina da justificação
pela fé, tanto que o apóstolo o repete em Romanos 1.17,
quando novamente quer ensinar essas verdades.
Uma terceira citação do Antigo Testamento é feita por Paulo
no v. 12. Trata-se de Levítico 18.5. Aqui o contraste entre a fé
e as obras da Lei é notável. Se de um lado, conforme mostra o
profeta Habacuque, o justo viverá pela fé (v. 11), sob a Lei o
homem só viverá se observá-la, sem que necessariamente
tenha fé no coração. Paulo mostra assim a superioridade do
seu evangelho comparado com a mensagem dos falsos
mestres. Esta sequer exigia uma nova disposição interior para
com Deus, baseando-se apenas em expressões externas e na
mecânica observância de regras. A falta de importância dada
à fé no sistema legalista já seria, por si só, um motivo para
rejeitá-lo. Ademais, e aqui reside a questão principal, se o
justo viverá pela fé e a Lei a dispensa, não a tomando por
base, logo os que são da Lei não viverão!
O que Paulo disse nos vv. 11-12 tem como objetivo reforçar
o ensino de que os que se apóiam na prática da Lei estão sob
maldição (v. 10). Resumindo, é como se dissesse: “A Lei traz
maldição sobre quem a desobedece (v. 10). O único modo de
se livrar do castigo é pela fé (v. 11). A Lei, porém, não se
baseia na fé (v. 12). Logo, a maldição sobre os que são da Lei
permanece”. Essa é a situação dos que buscam ser justificados
pela prática dos preceitos mosaicos: a maldição da Lei é para
eles um problema perene cuja solução nem mesmo a própria
Lei oferece.
É pela obra de Cristo na cruz que o homem é redimido da
maldição da Lei (v. 13). Cristo nos substituiu, tomando o nosso
lugar como maldito criminoso e sofrendo as conseqüências
daquela maldição. Paulo enxerga esse sentido da morte de
Cristo na forma como ele foi executado. Olhando para
Deuteronômio 21.23, o apóstolo se recorda da cruz do Calvário
O EVANGELHO E SEU PODER 63

e vê ali o Senhor sendo considerado transgressor em nosso


lugar, colocando-se assim sob a maldição da Lei.7
O v. 14 explica que essa obra substitutiva de Cristo foi
realizada para que, mediante a fé, homens de todas as famílias
da terra se livrassem da maldição da Lei e, em vez de sofrer
seus castigos, passassem a desfrutar da bênção prometida a
Abraão (Gn 12.3; Rm 4.13-16). Assim, Cristo provou a
maldição de Moisés para que os crentes provassem a bênção
de Abraão. E não somente isso. Por meio dessa fé o homem
recebe o Espírito Santo, tornando-se habitação dele, uma
bênção que a prática da Lei jamais poderia obter (Gl 3.2).8

A HARMONIA ENTRE A PROMESSA E A LEI


GÁLATAS 3.15-29
15. Irmãos, humanamente falando, ninguém pode anular
um testamento depois de ratificado, nem acrescentar-lhe algo.
16. Assim também as promessas foram feitas a Abraão e
ao seu descendente. A Escritura não diz: “E aos seus
descendentes”, como se falando de muitos, mas: “Ao seu
descendente”, dando a entender que se trata de um só, isto
é, Cristo.
17. Quero dizer isto: A Lei, que veio quatrocentos e trinta
anos depois, não anula a aliança previamente estabelecida
por Deus, de modo que venha a invalidar a promessa.
18. Pois, se a herança depende da Lei, já não depende de
promessa. Deus, porém, concedeu-a gratuitamente a Abraão
mediante promessa.
19. Qual era então o propósito da Lei? Foi acrescentada por
causa das transgressões, até que viesse o Descendente a
quem se referia a promessa, e foi promulgada por meio de
anjos, pela mão de um mediador.
20. Contudo, o mediador representa mais de um; Deus,
porém, é um.
21. Então, a Lei opõe-se às promessas de Deus? De maneira
nenhuma! Pois, se tivesse sido dada uma lei que pudesse
conceder vida, certamente a justiça viria da lei.
64 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

22. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a


fim de que a promessa, que é pela fé em Jesus Cristo, fosse
dada aos que crêem.
23. Antes que viesse essa fé, estávamos sob a custódia da
Lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse
revelada.
24. Assim, a Lei foi o nosso tutor até Cristo, para que
fôssemos justificados pela fé.
25. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais
sob o controle do tutor.
26. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo
Jesus,
27. pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se
revestiram.
28. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem
nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.
29. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão
e herdeiros segundo a promessa.

No parágrafo anterior, Paulo ressaltou que, mediante a fé


em Cristo, pessoas de todos os grupos étnicos (e não somente
os judeus) podem desfrutar da bênção prometida a Abraão
(14). Tendo agora, portanto, introduzido o tema relativo à
promessa feita a Abraão, Paulo prossegue enfatizando sua
natureza pactual, mostrando que tal promessa não pode
depender de exigências (como as normas da Lei Mosaica)
impostas posteriormente.
Assim, no v. 15, o apóstolo usa a ilustração da aliança
para explicar em que consistiram as promessas feitas a
Abraão. Ele diz, apontando para a figura de um instrumento
jurídico comum também em nossos dias, que um contrato9,
depois de ratificado, ou seja, uma vez confirmado e concluído,
não pode ser alterado, muito menos podem ser acrescentadas
a ele exigências inexistentes ao tempo de sua celebração.
Ora, o que é verdade no tocante a acordos feitos
formalmente entre os homens, aplica-se às promessas feitas
O EVANGELHO E SEU PODER 65

a Abraão e ao seu descendente (16), ou seja, Deus não poderia


se comprometer a abençoar Abraão e o seu descendente de
forma incondicional (cf. Rm 4.13) e, depois de algum tempo,
“mudar as regras do jogo”. É fácil concluir onde Paulo quer
chegar: a Lei não se constitui numa exigência necessária para
que alguém se beneficie da promessa feita a Abraão. Se assim
fosse, Deus teria agido de modo injusto, incluindo exigências
novas a um contrato já concluído.10
O v. 16 apresenta uma breve nota hermenêutica esclarecedora
de um ponto que é essencial para o ensino de Paulo. O apóstolo
se detém sobre um detalhe presente no texto de Gênesis em que
a referência à descendência de Abraão é feita por meio de uma
palavra no singular, a palavra “semente” (Gn 12.7; 13.15; 24.7).
A princípio, a presença desse termo no texto hebraico significa
apenas que a promessa de Deus não se limitaria ao tempo de
vida de Abraão, mas se estenderia ao longo das eras, alcançando
inúmeras gerações procedentes do grande patriarca.
Paulo, contudo, vê algo mais aqui. Ele observa que o uso do
singular em Gênesis não é acidental e que o termo “semente”
também não deve ser entendido de modo coletivo. Para o
apóstolo, o uso do singular conduz ao entendimento de que a
“semente” se refere a um descendente só, ou seja, Cristo. A
implicação disso é que as promessas não seriam restritas aos
que descendem fisicamente de Abraão, mas a todos, tanto
judeus como gentios que, pela fé, se encontram “em Cristo”, ou
seja, se revestiram dele e a ele pertencem (vv. 27-29). De fato,
estando em Cristo, homens do mundo inteiro tornam-se
beneficiários das promessas feitas a esse descendente de Abraão
e, portanto, juntamente com ele, hão de herdar o mundo,
conforme estabelece o pacto de Deus com Abraão (Rm 4.13).
Cabe ainda nesta altura ressaltar o modo como Paulo faz
uso do texto bíblico. É notável a atenção que o apóstolo dá a
detalhes, fixando sua atenção em aspectos gramaticais e
mostrando sua relevância para a construção da Sã Doutrina.
66 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Essa busca de sentido baseada não na imaginação ou na


criatividade do intérprete, mas na gramática e na análise
objetiva, deve servir como padrão para todos os intérpretes
da Bíblia na modernidade.11
A intenção de Paulo ao usar a ilustração do testamento ou
do contrato (15) é exposta claramente no v. 17. Vê-se ali que,
sendo a promessa feita mediante uma aliança já ratificada,
não haveria como a Lei, dada séculos depois, invalidá-la. De
fato, Deus não poderia se comprometer a dar gratuitamente
uma herança e, depois de selado o compromisso, impor
requisitos para que o homem desfrutasse dessa mesma
herança. Isso faria com que a dádiva da herança passasse a
depender do preenchimento dos novos requisitos e não mais
da promessa gratuita de Deus (18). A verdade, porém, é que a
herança foi concedida a Abraão e ao seu descendente (Cristo
e, conseqüentemente, os que são dele, cf. vv. 26-29) mediante
uma promessa, independentemente de qualquer exigência
prévia ou posterior como a Lei Mosaica.
Do que Paulo disse até aqui, surge naturalmente uma
questão: se a Lei não é um requisito para o desfrute da
promessa, então qual é a sua razão de ser? Para que ela foi
dada? Com que objetivo foi imposta? No v. 19 o apóstolo explica
que as normas estabelecidas no Sinai foram promulgadas “por
causa das transgressões”. O significado disso pode-se deduzir
a partir de Romanos 3.20; 4.15; 5.20; e 7.5,7. Nesses textos
aprendemos que a Lei de Moisés torna o homem consciente
do seu pecado12, uma vez que ressalta a sua desobediência.
Ademais, por causa dela, todos são colocados sob a condição
de transgressores (vv. 22-23). Assim, a Lei foi dada para
realçar o fato de que somos maus, demonstrar essa verdade
a nós mesmos e encerrar o homem sob a desobediência. É
isso o que Paulo quer dizer quando afirma que a Lei foi dada
“por causa das transgressões”. Ela veio para realçar o pecado
e demonstrar que somos pecadores.13
O EVANGELHO E SEU PODER 67

O propósito da Lei, como descrito acima, vigorou “até que


viesse o Descendente a quem se referia a promessa” (19), o
qual, segundo o v. 16, é Cristo. Isso significa que ao longo de
séculos a Lei Mosaica demonstrou satisfatoriamente,
especialmente na história de Israel, a pecaminosidade humana
(Rm 9.31). Tendo cumprido seu objetivo, a Lei deixou de
vigorar. Isso aconteceu tão logo a solução para a transgressão
do homem demonstrada na Lei, ou seja, Cristo, se manifestou
neste mundo. Ainda que o Senhor tenha nascido sob a Lei
(4.4), sua obra pôs fim ao império da Lei (4.5; Ef 2.14-15).
Esta, tendo atingido seu propósito de realçar a desobediência,
deu lugar à solução para essa mesma desobediência, a saber,
a Cruz (Jo 1.17; Rm 8.3-4; 2Co 3.7-10; Cl 2.16-17; Hb 7.12;
8.13; 9.10). Na verdade, como será visto adiante, a Lei,
expondo a deplorável condição do ser humano, serviu para
conduzi-lo a Cristo, em quem encontra a solução para sua
tão terrível situação (v. 24. Vd tb. Rm 10.4).
Prosseguindo em sua apologia da gratuidade da promessa,
Paulo acrescenta que a Lei foi “promulgada por meio de
anjos”. A presença dos anjos na entrega da Lei é vista também
em Deuteronômio 33.2; Atos 7.38,53 e Hebreus 2.2. Paulo
menciona esse detalhe para afastar qualquer acusação de
desprezo pela santidade da Lei, pois ao ensinar que a mesma
não tinha utilidade para justificar o pecador, mui facilmente
seus inimigos poderiam apegar-se a isso, distorcendo suas
palavras e acusando-o de tratar a Lei de Deus com desprezo
inaceitável. Paulo, porém, longe de desprezar a Lei, tão
somente mostra o objetivo distinto dela que, como vimos, não
é justificar o homem, mas realçar seu pecado e, por fim,
conduzi-lo à busca de socorro em Cristo.14
O v. 19 termina dizendo que a Antiga Aliança veio por meio
de um mediador, ou seja, Moisés. A seguir, no verso 20, há
um contraste entre aquela aliança e a feita anteriormente com
Abraão. O pacto da Lei teve um mediador que representava o
68 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

povo colocando-se sob as disposições legais impostas por


Deus. No Pacto Abraâmico nenhum mediador havia, pois nele
somente Deus se obrigou, nada impondo ao homem. Na
Aliança Mosaica havia duas partes entrando numa relação
em que ambas tinham deveres, sendo uma delas (a parte
humana) representada por Moisés, o mediador. Na Aliança
Abraâmica também havia duas partes, Deus e o homem, mas
só Deus se comprometeu, sem impor nada a Abraão que
servisse como condição para que ele cumprisse sua promessa
de abençoá-lo juntamente com seu Descendente. O v. 20,
portanto, pode ser entendido da seguinte maneira: no caso
da Lei houve um mediador que representava a obrigação de
muitos; já no caso da promessa somente Deus figurou como
a parte comprometida. Paulo aponta esse contraste para
fortalecer sua tese acerca da gratuidade da promessa e
desmantelar o ensino dos falsos mestres que teimavam em
dizer que a herança de Deus poderia ser obtida pelo
cumprimento de preceitos legais.
Surge, então, uma importante questão: há contradição em
Deus? Como ele pode fazer uma promessa e depois estabelecer
preceitos que em nada cooperam com o cumprimento dela?
Como ele pode prometer uma herança e, em seguida,
estabelecer regras que afastam ainda mais o homem do gozo
dessa herança? Como ele pode prometer que o homem será
bendito e justo e então criar um sistema de normas que o
tornam maldito e culpado? Acaso a Lei não se opõe às
promessas de Deus? (21).
A resposta de Paulo a essa pergunta é um enfático “não”.
O apóstolo ensina que se Moisés tivesse trazido aos judeus
uma lei que pudesse levar à vida eterna, então a justificação
seria oriunda da Lei, e os judeus, ao observá-la, constituiriam-
se um povo livre da culpa do pecado e pronto a receber a
herança prometida. Dessa maneira, a promessa da herança e
a promulgação da Lei estariam em clara harmonia. Deus,
O EVANGELHO E SEU PODER 69

porém, decidiu harmonizá-las de forma diferente. Seu plano


consistiu em fazer da Lei um meio de colocar todos sob o
pecado15, a fim de conceder pela fé a herança prometida (22).
Dessa forma, a Lei não vai contra a promessa de Deus. Antes,
pondo o homem debaixo do pecado, deixa unicamente a fé em
Jesus Cristo como solução para a sua culpa e, assim, o
estimula a crer. Crendo, então, o homem torna-se participante
da promessa. Portanto, a Lei é útil para mostrar que a fé em
Cristo é o único caminho para as bênçãos da promessa. É
assim que ela não se opõe às promessas de Deus.
É importante que o certo grau de complexidade de raciocínio
presente no texto não venha nublar a principal e claríssima
lição que o apóstolo quer incutir nos seus leitores, a saber, a
de que a promessa feita a Abraão é dada somente aos que
crêem em Jesus Cristo. Paulo estende os efeitos do Pacto
Abraâmico até os nossos dias, mostrando que a salvação é
simplesmente a inserção do homem nos benefícios desse pacto.
E para que essa inserção ocorra é preciso tão somente que o
homem creia em Cristo, o Descendente de Abraão. O apóstolo
quer deixar claro que abraçar a Lei liga o homem a Moisés e
faz dele mais um transgressor. Enquanto abraçar a fé em Cristo
liga o homem a Abraão e faz dele mais um herdeiro.
Antes que o evangelho fosse revelado, mostrando que é pela
fé em Cristo que alguém pode tornar-se herdeiro da promessa
abraâmica, o homem estava debaixo da Lei Mosaica (23). A
linguagem de Paulo traz a idéia de estar sob a tutela de um guarda
que tem a função de proteger. De fato, a Lei dada no Sinai se
constitui na perfeição da justiça e o esforço do homem em
conformar a sua vida aos seus preceitos, ainda que seja incapaz
de produzir a justificação, torna a conduta humana virtuosa e
protege a sociedade da degradação total. Por outro lado, estar
sob semelhante tutela implica também redução da liberdade, um
preço muito alto quando se considera que a obediência da Lei
não nos faz merecedores da herança prometida.
70 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Dentro do claustro da Lei, portanto, o homem teve sua


conduta controlada e, como já visto (v. 19), aprendeu da sua
pecaminosidade e miséria. Dessa forma a Lei foi útil,
especialmente porque, em vez de se opor às promessas de
Deus, mostrou que o único caminho para recebê-las é a fé
(vv. 21-22). O exercício dessas funções atribuídas ao código
mosaico, contudo, deveria perdurar somente até o advento
do evangelho de Cristo, já prometido nos escritos proféticos
(Rm 1.1-2). É a esse evangelho que Paulo se refere com a
expressão “a fé que haveria de vir” (23).
A conclusão lógica a que se chega disso tudo é que a Lei
realizou a tarefa de um tutor que nos levou até Cristo (24). A
palavra traduzida no português por “tutor” (NVI) ou “aio”
(ARA) é, na língua grega, o termo usado para designar a
pessoa que cuidava de uma criança (paidagwgoj. ´ Lit.
“pedagogo”), realizando, entre outras coisas, a tarefa de
escoltá-la na sua ida à escola. Assim, a Lei tomou o homem
pela mão e, enquanto exercia sobre ele alguma influência
moral, também mostrava que a perfeita obediência era
impossível e, desse modo, o conduzia à fé em Cristo, o único
meio pelo qual o homem pode ser justificado diante de Deus.
Evidentemente, tendo realizado plenamente sua função, o
tutor torna-se agora uma figura desnecessária (25).
Aproveitando a figura usada por Paulo, pode-se dizer que a
criança está agora com o Mestre. Não é mais preciso a custódia
do tutor.
Paulo realça que a fé à qual fomos conduzidos nos tornou
filhos de Deus (26). A idéia de filiação, obviamente, é essencial
quando se fala em direito de herança. No constante propósito
de desmontar a idéia de que é possível entrar na posse da
herança prometida a Abraão por meio da guarda da Lei, o
apóstolo demonstra que é a fé em Cristo que nos torna filhos
de Deus, de modo que só por meio dela pode-se chegar à
herança (Rm 8.17).
O EVANGELHO E SEU PODER 71

No v. 27 nos é dito, com mais detalhes, no que consiste o


processo pelo qual alguém é inserido na esfera de filiação
mencionada no versículo anterior. Segundo o texto, o homem
batizado em Cristo, reveste-se do Filho de Deus. Ser batizado
em Cristo significa simplesmente unir-se a ele pela fé. Nos
tempos neotestamentários havia forte conexão entre crer e
ser batizado, já que essas duas coisas aconteciam quase que
ao mesmo tempo na prática da igreja primitiva (At 2.41; 8.37-
38; 16.33). Por isso, algumas vezes Paulo refere-se à
experiência de conversão usando a figura do batismo (Rm
6.3-4; Cl 2.12. Pedro faz o mesmo em 1Pe 3.21). È também
fora de dúvida que muitas vezes Paulo usa a palavra “batismo”
não para se referir à ordenança observada com água, mas à
realidade espiritual da inserção do crente no corpo de Cristo e
na sua esfera de atuação e influência especiais (1Co 12.13). É
o chamado batismo do Espírito Santo. Aliás, é bem provável
que esse seja o sentido pretendido no texto em análise. Que
Paulo não via o batismo com água como necessário à salvação,
deduz-se facilmente de 1 Coríntios 1.14-17.
Segundo os vv. 26-27, portanto, o homem passa a desfrutar
do status de filho de Deus quando se une ao Salvador pela fé
(Jo 1.12). Dessa forma ele se reveste de Cristo, ou seja, sua
união com o Senhor é tamanha que Deus, ao olhá-lo, vê antes
Cristo nele do que ele próprio. É como se Cristo fosse um manto
que cobrisse e envolvesse o crente de tal forma que ambos se
tornam como um só. Nessa união, o Filho de Deus como que
“contagia” aquele que crê com sua filiação. Isso prova ser
correto dizer que o crente é filho de Deus “em Cristo Jesus”.
Sob a vestimenta de Cristo, todas as distinções entre as
pessoas tornam-se irrelevantes (28). A união com o Senhor
faz de todos um só corpo (1Co 10.17; 12.12-13; Cl 3.15),
anulando as desigualdades e desencorajando qualquer forma
de inimizade e discriminação (Ef 2.14-16; Cl 3.11). Contudo, o
efeito principal da fé é que, recebendo a adoção decorrente da
72 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

união com Jesus, o homem se torna um descendente de Abraão


tal como o seu Senhor e, conseqüentemente, passa a ter direito
à herança prometida ao grande patriarca (29).
o evangelho verdadeiro e
4. a liberdade

Os crentes da Galácia, tendo sido libertos de todo tipo de jugo


legalista, tornaram-se filhos e herdeiros de Deus, não
devendo, portanto, acolher os falsos mestres e seu ensino
escravizante, mas sim rejeitá-los, da mesma forma como Sara
rejeitou a escrava Hagar e o filho dela.

O FIM DA ESCRAVIDÃO
GÁLATAS 4.1-7
1. Digo porém que, enquanto o herdeiro é menor de idade,
em nada difere de um escravo, embora seja dono de tudo.
2. No entanto, ele está sujeito a guardiões e administradores
até o tempo determinado por seu pai.
3. Assim também nós, quando éramos menores, estávamos
escravizados aos princípios elementares do mundo.
4. Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou
seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei,
5. a fim de redimir os que estavam sob a Lei, para que
recebêssemos a adoção de filhos.
6. E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de
seu Filho ao coração de vocês, e ele clama: “Aba, Pai”.
7. Assim, você já não é mais escravo, mas filho; e, por ser
filho, Deus também o tornou herdeiro.
74 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

A menção da figura do herdeiro em 3.29 dá ensejo a que


Paulo, no início do capítulo 4, transporte essa figura para a
experiência humana comum, a fim de acrescentar outras
verdades àquelas que já enunciou ao longo da carta até este
ponto. O apóstolo, no texto agora em análise, fala da condição
prévia de todos os homens, tanto judeus quanto gentios, que
Deus haveria de salvar. Tais pessoas são comparadas a filhos
menores que aguardam, sob tutela, a maioridade para que,
então, desfrutem plenamente do status de herdeiro. A figura
pretende ilustrar o fato de que aqueles que Deus haveria de
salvar estiveram sujeitos a sistemas morais e religiosos
diversos até o tempo em que Cristo se manifestou. Tendo
chegado esse tempo, não há mais porque submeter-se a tais
sistemas.
É já nos vv. 1-2 que Paulo apresenta a figura do herdeiro
menor. No afã de realçar sua condição de sujeição, o apóstolo
diz que, ao longo do período de menoridade, o herdeiro em
nada difere do escravo, estando sob o controle e as ordens de
tutores e curadores1, estendendo-se essa situação até o tempo
que ao pai aprouver.2
Paulo quer mostrar, com a figura constante dos vv. 1-2,
que o ser humano teve, ao longo da sua história, o seu tempo
de menoridade. Foi o tempo em que esteve sujeito de modo
servil aos “rudimentos do mundo” (3). Precisamente nesse
ponto, Paulo deixa de falar somente da Lei Mosaica como fator
opressor. O jugo dessa Lei era sentido apenas pelos judeus.
Paulo tem agora a humanidade inteira em mente (Veja-se v.
8). Segundo ele, não somente quem estava sob o sistema
judaico vivia curvado em sujeição, mas todos os seres
humanos, uma vez que se encontravam debaixo do jugo dos
“rudimentos do mundo”.
A expressão “rudimentos do mundo” (stoiceia tou kosmou)
´
aponta aqui para as regras e crenças elementares que estão
presentes nas diversas expressões da religiosidade humana.
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 75

Nos vv. 9-10 vemos exemplos desses “rudimentos”, os quais,


segundo o apóstolo, escravizavam tanto quanto a Lei de
Moisés. Também na Epístola aos Colossenses, na qual Paulo
combate especialmente o protognosticismo asceta, pode-se ter
um vislumbre da natureza dessas regras impostas aos
homens, denominadas também ali como “rudimentos do
mundo” (Cl 2.8, 20-23).
O tempo de submissão a tais preceitos, contudo, perdeu sua
razão de ser com o advento de Cristo. Em sua soberania, Deus
determinou que chegasse ao fim a fase da história em que as
pessoas deveriam ser regidas em sua religiosidade por normas
oriundas da Lei Mosaica (no caso dos judeus) ou da consciência
humana (no caso dos gentios). Então ele enviou seu Filho (4),
a fim de livrar da escravidão os que estavam sob qualquer
fardo legal3 e fazer deles membros de sua família (5).
Falando especificamente sobre o v. 4, deve-se notar que a
expressão “plenitude do tempo” corresponde ao “tempo
determinado pelo pai” mencionado na ilustração constante
dos vv. 1-2. Plenitude do tempo é, portanto, a fase da história
em que Deus, em sua soberania, julgou por bem enviar seu
Filho ao mundo, pondo fim ao tempo de tutela das leis. Não
nos é revelado na Sagrada Escritura as razões pelas quais o
Senhor não enviou Cristo antes, mantendo os homens em
trevas durante milênios.4 Somente nos é dito que o evangelho
foi guardado como um mistério, havendo a possibilidade de
certo grau de conhecimento dele por meio das escrituras
proféticas (Rm 16.25-27). Os motivos específicos, porém, pelos
quais a Deus aprouve revelá-lo ao tempo que o fez, estão
guardados em sua mente, sendo impossível conhecê-los.5
O que vem a seguir no versículo 4 é de extremo valor para
a cristologia. A frase “Deus enviou seu Filho”, implica a
divindade de Cristo, pois sendo Filho de Deus ele é igual a
Deus (Jo 5.17-18). A frase também implica a pré-existência de
Cristo. Deus antes o enviou para que então nascesse de
76 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

mulher. Sua geração no ventre de Maria, portanto, não deu


origem à sua existência. Ele já existia antes da encarnação
(Jo 1.1-3; 8.58; 12.41 [cf. Is 6.1]; 17.5; Cl 1.16-17).
É notável ainda que Paulo se refira a Cristo como “nascido
de mulher”. Isso, acrescido da verdade de que ele é o Filho de
Deus, desemboca na doutrina das duas naturezas de Cristo.
Ele é Deus-homem. É o Filho de Deus e o Filho do Homem (Jo
5.26-27). Todo o Novo Testamento afirma a realidade tanto
da natureza humana quanto da natureza divina em Cristo,
ainda que não esclareça o modo como elas se relacionam (Jo
1.14; At 20.28; Rm 9.5; Hb 2.14). A união das duas naturezas
na pessoa singular e única de Cristo é chamada tecnicamente
de União Hipostática.6
O v. 4 termina com a afirmação de que Cristo nasceu “sob
a Lei”, ou seja, Cristo colocou-se debaixo da Lei, sujeitando-
se a ela. Sua humilhação não se manifestou apenas no fato
de fazer-se carne, mas também no fato de fazer-se servo
obediente (Fp 2.5-8). Assim como assumiu nossa humanidade,
porém sem pecado (1Jo 3.5), também assumiu nossa
escravidão, porém sem desobediência (Mt 5.17; Rm 5.19).
Qual foi a intenção do apóstolo ao mencionar esses
aspectos relativos ao advento de Cristo. Por que dizer que
Cristo nasceu de mulher e sob a Lei? O apóstolo quer, sem
dúvida, mostrar Cristo como o substituto perfeito do homem.
Paulo apresenta Jesus como um homem verdadeiro debaixo
de um jugo verdadeiro. Como tal, Cristo pôde participar do
drama humano e substituir perfeitamente o homem ao morrer
sob a Lei, submetendo-se inclusive à maldição que ela impõe
aos que a desobedecem (3.13). Portanto, a plena substituição
é o que Paulo tem em mente aqui. Foi essa perfeita substituição
que tornou possível o resgate dos que estavam sob a lei (5).
A destruição da heresia gálata dependia da demonstração de
que o Filho de Deus, fazendo-se homem, colocou-se sob a Lei
de Moisés até o ponto de provar o castigo aplicável aos
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 77

desobedientes. Essa sua obra, tendo um caráter substitutivo


(3.13), libertou o homem do jugo legal, não havendo mais
qualquer razão para que as igrejas da Galácia novamente o
tomassem sobre os ombros.
O Filho de Deus fez-se homem e nasceu sob a Lei a fim de
“resgatar os que estavam sob a lei” (5). Nessa condição estavam
todos os homens, tanto judeus, debaixo da Lei Mosaica, quanto
os gentios, debaixo dos rudimentos do mundo (vv. 3, 8-9). Paulo
afirma que a encarnação e auto-sujeição de Cristo tiveram por
propósito resgatar o ser humano dessa situação. Resgatar é
livrar mediante o pagamento de um determinado preço. Ora, é
sabido que o preço pago para o livramento do homem foi o
sangue do próprio Filho de Deus (At 20.28; 1Pe 1.18-19; Ap
5.9). Assim, nos vv. 4-5, o apóstolo faz alusão à encarnação de
Cristo, ao seu ministério terreno e à sua morte e explica que o
alvo disso tudo foi libertar o homem da escravidão. Que grande
absurdo seria agora os próprios crentes em Cristo se sujeitarem
aos ditames de leis estéreis!
Segundo o v. 5, a obra de resgate não é o estágio final na
salvação do ser humano. Ao contrário, o resgate é o caminho
para a realização de um bem ainda maior: Deus livra o escravo
para adotá-lo como filho! Ele não somente o desobriga dos
deveres da escravidão, não somente tira-lhe dos ombros o
jugo da servidão, mas vai além e o recebe em sua casa,
incluindo-o em sua própria família. Tira-lhe as correntes, mas
não o despede. Antes, abre-lhe as portas, cobre-o com finas
vestes, põe-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés (Lc 15.22).
Por serem filhos de Deus, os crentes recebem o Espírito
Santo (6). Paulo mostra aqui que a adoção implica a habitação
(Rm 8.9). No v. 6 o Espírito Santo é chamado “Espírito do seu
Filho” porque o Apóstolo quer realçar a intensidade da filiação
do crente. O cristão é filho de Deus num sentido tão amplo
que a ele é dado o Espírito do verdadeiro Filho, o Espírito do
único Filho que é consubstancial ao Pai. O efeito disso é que o
78 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

crente “se sente” filho. Ele não tem a sensação de ser um


estranho na casa do Pai; não se sente inadequado e sem
liberdade para se achegar a ele e desfrutar de sua intimidade.
Em vez disso, movido pelo Espírito do Filho que nele habita,
aproxima-se do Senhor e clama: “Aba7, Pai!”, expressão que
denota relacionamento íntimo e afinidade com Deus.
Esse mesmo ensino é encontrado também em Romanos 8.14-
16. Nesse texto vemos que a habitação do Espírito, além de
estimular a intimidade com o Senhor, faz com que o crente viva
sob a direção da Terceira Pessoa da Trindade, livre do domínio
da carne e do medo. Além disso, por meio dessa habitação, o
crente recebe o testemunho interno do Espírito que lhe traz a
certeza de ser alguém que pertence à família de Deus.8
O v. 7 encerra o desfecho do pensamento de Paulo nesse
parágrafo: o crente não é mais escravo. Agora é filho! Para os
gálatas essa afirmação tinha o propósito assumido de varrer
de suas mentes qualquer forma de doutrina que refletisse ainda
que a menor sombra de escravidão. Abraçar uma doutrina assim
seria andar em desconformidade com a própria posição a que,
pela obra do Filho de Deus, o crente foi alçado.
Tendo ficado para trás o tempo de escravidão, e
desfrutando agora, aquele que crê, da posição de filho de Deus,
os benefícios de que desfruta não se limitam à presente era.
Sendo filho ele é herdeiro (7). Pelo próprio Deus foi elevado a
essa condição. Como filho que é, desfruta agora da liberdade
e amanhã se regozijará na herança (Gl 3.29; Rm 8.17).

O PERIGO DE UMA NOVA ESCRAVIDÃO


GÁLATAS 4.8-11
8. Antes, quando vocês não conheciam a Deus, eram
escravos daqueles que, por natureza, não são deuses.
9. Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo por
ele conhecidos, como é que estão voltando àqueles mesmos
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 79

princípios elementares, fracos e sem poder? Querem ser


escravizados por eles outra vez?
10. Vocês estão observando dias especiais, meses, ocasiões
específicas e anos!
11. Temo que os meus esforços por vocês tenham sido
inúteis.

A menção do elevado status atual dos crentes da Galácia,


constante dos vv. 6-7, conduz o pensamento do apóstolo ao
chocante contraste existente entre essa gloriosa situação e a
condição na qual os crentes da Galácia viviam anteriormente.
De acordo com Paulo, antes eles “não conheciam a Deus” (8).
O verbo usado aqui (oida) sugere mais do que o mero
conhecimento de dados sobre alguém. Na verdade, a palavra
admite o sentido de estar ligado a uma pessoa, relacionando-
se com ela. Decorre disso a verdade de que à parte do
evangelho, é impossível que o homem tenha acesso a Deus e
ande com ele, não importa quão religioso seja.
O modo como o desconhecimento de Deus se manifestara
na vida dos crentes da Galácia, ao tempo da sua incredulidade,
foi a idolatria. De fato, os gálatas haviam sido escravos de
falsos deuses.9 No v. 8 há uma forte ênfase no fato de não
serem deuses aqueles que os pagãos serviam. Paulo
desenvolve mais esse ensino em 1 Coríntios 8.4-6, onde diz
que ainda que muitos tomem para si o nome de “deuses”, só
há um Deus, ou seja, o Pai, e um só Senhor, a saber, seu Filho,
Jesus Cristo. Por outro lado, ainda que os ídolos não passem
de objetos inanimados (1Co 8.4; 12.2), Paulo adverte que o
culto a eles prestado é dirigido a demônios (1Co 10.19-20)10,
de modo que o crente deve fugir de qualquer forma de idolatria
(1Co 10.14; 1Jo 5.21).
A escravidão aos ídolos, à qual os gálatas estiveram
sujeitos, havia acabado. Se o v. 8 descreve o que havia
acontecido outrora, o v. 9 fala do “agora”. Ao receber o
80 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

evangelho, os destinatários de Paulo tornaram-se conhecedores


de Deus. Na verdade, a melhor maneira de descrever seu
privilégio era afirmando que eles eram conhecidos de Deus, ou
seja, seu relacionamento com o Senhor não foi o resultado de
empenho ou iniciativa próprios, já que eram escravos
absolutamente incapazes de dar um passo sequer na direção
da verdade (Rm 3.11). Foi o próprio Deus quem se antecipou
na busca de um relacionamento com aqueles irmãos, quando
eles ainda se encontravam na mais mísera condição. Esse fato
tornava os gálatas ainda mais culpados. Depois de terem sido
objeto de tão grande graça que os libertou, de quão grave erro
não seriam autores caso voltassem novamente a um viver
curvado sob o jugo da escravidão?
São esses os pensamentos que Paulo quer despertar em
seus leitores ao perguntar “como é que estão voltando àqueles
mesmos princípios elementares, fracos e sem poder? Querem
ser escravizados por eles outra vez?” (9). Já foi visto o que
são os “princípios elementares” (veja o comentário ao v. 3).
Deve-se, no entanto, realçar aqui a conexão dos tais
“princípios” com a escravidão da idolatria. De fato, depois de
afirmar que os seus leitores haviam se libertado da escravidão
dos falsos deuses, Paulo diz que eles agora estavam voltando
novamente ao seu procedimento anterior. Isso significa que a
vida sob a escravidão dos falsos deuses era caracterizada pela
observância dos princípios elementares, ou seja, aqueles
conjuntos de regras predominantemente religiosas carentes
de qualquer força contra o pecado (Cl 2.20-23).
As perguntas de Paulo no v. 9 evocam o absurdo de um
retorno do cristão à escravidão debaixo de qualquer sistema
legalista. No entanto, por mais incrível que pudesse parecer,
era exatamente esse retorno que os crentes da Galácia haviam
empreendido. Vêem-se assim, no v. 10, exemplos do modo de
agir daqueles cristãos que revelavam sua retomada do fardo
típico de quem adora deuses falsos. Voltando para o mesmo
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 81

estilo de vida que caracterizara seus tempos no paganismo,


eles estavam observando “dias especiais, meses, ocasiões
específicas e anos”.
É claro que todas essas observâncias tinham conotações
judaicas, fruto do trabalho dos mestres da Lei Mosaica
infiltrados nas igrejas da Galácia. No entanto, seu efeito
escravizador era o mesmo produzido pelo paganismo em que
antes haviam vivido. Assim, em última análise, observar
preceitos judaicos resultava no mesmo cativeiro em que se
encontravam os adoradores de falsos deuses. O novo cuidado
da Lei judaica conduzia os homens de volta à velha prisão
pagã.11 Ora, sendo certo que Paulo, ao anunciar o evangelho
aos gálatas, os conduzira pelo caminho da liberdade que há
em Cristo, era óbvio que, vendo-os novamente agrilhoados a
normas inúteis, suspeitasse que todo o seu trabalho entre eles
tivesse sido vão (11). De fato, inútil é o evangelho libertador
para aqueles que, deliberadamente, sobre si mesmos atam
fardos pesados, impossíveis de carregar, assim como também
vã é a luz para aqueles que teimam em ficar de olhos fechados.

APELOS, LEMBRANÇAS E ANSEIOS


GÁLATAS 4.12-20
12. Eu lhes suplico, irmãos, que se tornem como eu, pois
eu me tornei como vocês. Em nada vocês me ofenderam;
13. como sabem, foi por causa de uma doença que lhes
preguei o evangelho pela primeira vez.
14. Embora a minha doença lhes tenha sido uma provação,
vocês não me trataram com desprezo ou desdém; ao
contrário, receberam-me como se eu fosse um anjo de Deus,
como o próprio Cristo Jesus.
15. Que aconteceu com a alegria de vocês? Tenho certeza
que, se fosse possível, vocês teriam arrancado os próprios
olhos para dá-los a mim.
16. Tornei-me inimigo de vocês por lhes dizer a verdade?
82 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

17. Os que fazem tanto esforço para agradá-los não agem


bem, mas querem isolá-los a fim de que vocês também
mostrem zelo por eles.
18. É bom sempre ser zeloso pelo bem, e não apenas quando
estou presente.
19. Meus filhos, novamente estou sofrendo dores de parto
por sua causa, até que Cristo seja formado em vocês.
20. Eu gostaria de estar com vocês agora e mudar o meu
tom de voz, pois estou perplexo quanto a vocês.

Depois de expressar seu inconformismo com as práticas


legalistas a que os gálatas estavam novamente se
submetendo, o apóstolo passa agora a dirigir-lhes um apelo
emocionado, lembrando-lhes alguns momentos de amizade e
labor que haviam partilhado juntos e que revelavam o
profundo afeto que um dia os unira. Sua intenção é claramente
despertar novamente aqueles afetos, uma vez que, à luz do
texto, o trabalho dos falsos mestres infiltrados nas igrejas
estava logrando êxito em afastar de Paulo o coração dos seus
queridos filhos na fé (Ver vv. 15-17).
O apelo de Paulo se consubstancia inicialmente nas
palavras “sede qual eu sou; pois também eu sou como vós”
(ARA). Essas palavras significam o seguinte: os crentes da
Galácia nunca haviam ofendido Paulo (v. 12b) e ele se refere
a isso quando diz “também eu sou como vós”. Portanto, ele
se assemelhava aos gálatas em seu modo de tratá-los, jamais
os agredindo ou sendo grosseiro, apesar da dificuldade do
momento. Por outro lado, o apóstolo sentia que os seus filhos
na fé (v. 19) estavam se distanciando dele mais e mais (vv.
16-17), enquanto ele próprio procurava desesperadamente
uma reaproximação. É nesse aspecto que Paulo suplica
humildemente que os crentes da Galácia sejam como ele. Assim
como o apóstolo os imitava, não os ofendendo, os gálatas,
por sua vez, também deviam imitá-lo, empenhando-se em
reconstruir os laços de comunhão afrouxados pela influência
dos inimigos hipócritas (v. 17).
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 83

Paulo lembra, a partir do v. 13, que essa comunhão ora


abalada tinha nascido num momento tão sublime e atingido
tamanha intensidade que era inaceitável que fosse agora
destruída pelo trabalho de pessoas mal intencionadas e por
expoentes de erros doutrinários tão grosseiros. Segundo ele,
a primeira vez que pregou o evangelho na Galácia foi por
causa de uma doença de que foi acometido. A narrativa de
Atos sobre a visita missionária de Paulo à Galácia (At 13.14-
14.21) não faz menção dessa enfermidade12 e não há como
saber qual foi exatamente o mal físico de que sofreu o
apóstolo.13
Seja como for, não pairam dúvidas sobre os propósitos de
Paulo ao relembrar o tempo que, fragilizado em sua saúde,
esteve entre os irmãos a quem escreve. O apóstolo quer trazer-
lhes à memória os tempos de união e, assim, despertar o desejo
de revivê-los. De fato, um grande estímulo à unidade dos
crentes no presente é procedente das recordações das batalhas
que juntos travaram no passado. Portanto, sempre que as
armadilhas do mundo e do diabo fizerem os crentes se
distanciar dos seus irmãos, um bom impulso ao retorno é a
memória dos momentos mais sublimes que marcaram a sua
jornada em comum (Hb 10.32-34). Só os corações
terrivelmente endurecidos pelo pecado são capazes de se
manter insensíveis ao se lembrarem dos momentos mais
tocantes de sua própria história.
A enfermidade de Paulo, segundo seu parecer, se constituiu
numa prova para os gálatas (14). Isso significa que receber o
missionário doente gerou-lhes um grau considerável de
incômodo, o que seria motivo para que o apóstolo fosse tratado
com manifestações de impaciência e desprezo. Contudo, o que
aconteceu foi exatamente o contrário. Nem desprezo nem
aversão os gálatas revelaram naquelas circunstâncias.14
Antes, Paulo foi recebido como “um anjo de Deus” e até mesmo
“como o próprio Cristo Jesus”.
84 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Ao descrever nesses termos (e com aprovação) a atitude


que os crentes da Galácia tiveram outrora para com ele, Paulo
ensina indiretamente que é como anjos e como o próprio Cristo
que os ministros do evangelho devem ser recebidos e tratados
pelos cristãos em geral. De fato, a escritura chama os mestres
da verdade de anjos, uma vez que são mensageiros de Deus
(Ml 2.7; Ap 2.1, 8,12, 18; 3.1, 7, 14). Além disso, os proclamadores
do evangelho são embaixadores de Cristo, atuando em seu
lugar como porta-vozes, de forma que desprezá-los
corresponde a rejeitar aquele que eles representam (Mt 10.40;
Lc 10.16; 2Co 5.20). Por outro lado, há aqui também uma forte
indicação da responsabilidade que paira sobre os pastores.
Estes têm o dever de zelar pela mensagem de Deus como se
fossem anjos celestes ou mesmo genuínos arautos de Cristo
a pregar (Tt 1.7-9). A consciência disso faria com que os
púlpitos de nossas igrejas deixassem de ser palco de
fanfarronadas e passassem a se constituir na maior força
transformadora do tempo presente.
Após lembrar com saudades do amor demonstrado pelos
gálatas, Paulo pergunta com tristeza: “Que aconteceu com a
alegria de vocês?” (15. NVI). Mesmo estando Paulo enfermo,
os gálatas haviam manifestado intensa alegria em recebê-lo.
Aliás, o prazer deles com a presença de Paulo era tanto que o
apóstolo tinha plena consciência de que outrora aqueles
irmãos, se possível fora, teriam “arrancado os próprios olhos”
para auxiliá-lo. Essa linguagem, evidentemente é figurada. É
bom também frisar que não há aqui nenhum sinal de que a
doença de Paulo fosse nos olhos, conforme sugerem alguns
intérpretes (vide nota 2). A frase indica tão somente que, em
outros tempos, os gálatas não mediriam esforços para
beneficiar aquele que tinha sido um hóspede tão querido.
A pergunta constante do v. 15 mostra claramente que
aquela alegria que os crentes da Galácia haviam demonstrado
por ter Paulo junto de si havia acabado. Agora eles não
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 85

sentiam satisfação alguma, nem mesmo com a possibilidade


de ter o apóstolo por perto. Que grande mudança em seus
afetos! Era como se a pessoa mais amada daquelas igrejas,
num breve período de tempo, e sem nenhuma justificativa,
passasse a ser considerada seu mais detestável inimigo!
Ainda que perplexo (v. 20), Paulo sabia a causa de mudança
tão radical. Aqueles cristãos estavam aceitando a mentira dos
falsos mestres e, por isso, a verdade dita pelo apóstolo lhes
causava aversão. Esse fato é apontado por meio da pergunta
retórica do v. 16. Nesse versículo, vê-se que ao anunciar o
evangelho genuíno e denunciar o desvio dos mestres
enganadores, Paulo havia despertado real antipatia nas
jovens igrejas corrompidas doutrinariamente. Esse fato que
tomou lugar na experiência de igrejas neotestamentárias deve
despertar a atenção das igrejas atuais. Que seja lembrado
que abrir os braços para doutrinas novas e estranhas faz
com que igrejas inteiras desenvolvam rancores e até
construam barreiras contra os verdadeiros expoentes da
Palavra de Deus. Ministros fiéis também devem ter isso em
mente. Muitas vezes a inimizade é o preço pago pela
proclamação da verdade, mesmo quando isso é feito de modo
brando e amoroso.
Com a pergunta do v. 16, Paulo revela seu desejo de trazer
os gálatas de volta para junto de si. Ele quer incomodar suas
consciências fazendo-os ver de quão grande impiedade eram
culpados ao abandonar a mais terna comunhão, não porque
tivessem sido ofendidos, mas porque tinham sido instruídos
na Palavra da verdade. De fato, é difícil imaginar maior
estupidez do que se tornar inimigo de um irmão precisamente
porque ele nos beneficiou.
A estratégia usada pelos falsos mestres para difundir sua
doutrina perversa dentro das igrejas da Galácia transparece
no v. 17. Tal estratégia consistia em demonstrar cuidado,
preocupação e interesse pelos crentes. Os legalistas se
86 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

apresentavam como pastores “zelosos”. Paulo, no entanto,


alerta seus leitores dizendo que aquele cuidado não era bom,
ou seja, tratava-se de um zelo indigno de aprovação, sem
sinceridade, pois tinha como objetivo isolar os crentes.15
Segundo Paulo, os falsos mestres, com sua demonstração
hipócrita de estima, queriam distanciar dele os seus leitores e
reuni-los em torno de si para, então, obter daquelas igrejas o
mesmo cuidado e afeto que antes haviam dispensado ao
apóstolo (vv. 14-15). Nota-se aqui que os ardis de outrora
são usados ainda hoje pelos falsos pastores. Estes sempre
trabalham em três direções: conquista da simpatia da igreja;
afastamento dos irmãos dos pregadores verdadeiros; e
obtenção do serviço e cuidado dos crentes em seu favor (2Pe
2.3; Jd 16).
No v. 18, Paulo se volta novamente para o cuidado que os
gálatas haviam demonstrado por ele no passado. Aqui o
apóstolo ensina que era lamentável que aquele interesse tão
tocante só existisse quando ele estava por perto. Para Paulo
era preocupante que aquelas igrejas se mantivessem fiéis a
ele e, conseqüentemente, aos seus ensinos tão somente em
sua presença. Infelizmente, como se sabe, é comum também
as igrejas de hoje se desviarem da verdade quando os
ministros de Deus, movidos por diversas necessidades, são
obrigados a se ausentar delas. O quadro moderno, porém, é
pior, uma vez que na Galácia esse erro era cometido por igrejas
recém-formadas, enquanto hoje o desvio se dá na vida de
crentes que conhecem o evangelho há dezenas de anos. Paulo
expressa, no v. 18, o singelo ideal da igreja de Deus ser
continuamente zelosa pelo bem, mesmo nos momentos que
se vê, por uma razão ou outra, longe da benéfica influência
dos proponentes da sã doutrina.
O coração de Paulo se enternece ao ver os crentes naquela
situação. Dirigindo-se aos seus leitores de forma carinhosa,
com a alma repleta de afeição, ele os chama de “filhos” (19)16
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 87

e diz que, por causa deles, novamente sentia as dores de parto


até que Cristo fosse formado em suas vidas. A metáfora pode
ser simplificada da seguinte maneira: Paulo se apresenta como
uma mãe que sofre dores de parto para dar à luz filhos que
tivessem a aparência de Cristo. O significado óbvio é que em
seu ministério o apóstolo trabalhava por gerar pequenos
cristos (Rm 8.29), isto é, pessoas que tivessem em si os traços
do caráter de Jesus, um caráter marcado pelo zelo por aquilo
que é bom, tanto na esfera doutrinária quanto moral. Na busca
desse ideal, Paulo sofria com freqüência e intensidade. Ele é
um pai espiritual e aqui aprendemos que na esfera espiritual
tanto pais como mães sofrem dores para dar à luz. Aqui
aprendemos também que o verdadeiro pai espiritual é aquele
que trabalha e sofre na busca incessante de criar em alguém
o caráter de Cristo. Que marcante diferença havia entre esse
alvo de Paulo e as intenções dos mestres legalistas (v. 17). E
quão útil ferramenta o crente tem nesse texto, que mostra
indiretamente como identificar o verdadeiro pastor. Este será
simplesmente o homem que não mede esforços no sentido de
fazer com que as pessoas que o Senhor lhe confiou se tornem
mais parecidas com Jesus (Ef 4.11-13).
Sabendo que sua ausência era, em parte, a causa do desvio
dos gálatas, Paulo, no v. 20, manifesta o desejo que tinha de
estar com eles naquelas horas. O versículo dá a entender que
essa possibilidade não existia naquele momento. Mesmo
assim, o apóstolo diz que gostaria de estar entre eles para
poder falar com “outro tom de voz”. De fato, a Epístola aos
Gálatas tem trechos severos (1.6-9; 3.1-5; 4.9-11, 15-16; 5.4,
7-9, 12, etc.). Paulo acreditava que, estando presente, não
precisaria usar daquela severidade, pois confiava que diante
dele os gálatas se submeteriam. A razão que o impulsionava
a desejar um contato mais direto não era apenas o impacto
mais forte que uma visita pessoal teria. Ele também queria
vê-los porque cria que isso lhe traria algum alívio, uma vez
88 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

que estava “perplexo” quanto aos crentes da Galácia. O termo


usado por Paulo (aporew)
´ denota desespero e dúvida. A idéia
de estar desnorteado se encaixa bem aqui. Paulo indica que
aquela situação o deixara um tanto sem rumo, refletindo sobre
que medidas tomar para remediar o problema. Ele acreditava
que uma visita seria útil para clarear suas idéias e mostrar
como proceder de maneira eficaz.

O CONTRASTE ENTRE SARA E HAGAR


GÁLATAS 4.21-31
21. Digam-me vocês, os que querem estar debaixo da Lei:
Acaso vocês não ouvem a Lei?
22. Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da
escrava e outro da livre.
23. O filho da escrava nasceu de modo natural, mas o filho
da livre nasceu mediante promessa.
24. Isto é usado aqui como uma ilustração; estas mulheres
representam duas alianças. Uma aliança procede do monte
Sinai e gera filhos para a escravidão: esta é Hagar.
25. Hagar representa o monte Sinai, na Arábia, e corresponde
à atual cidade de Jerusalém, que está escravizada com os
seus filhos.
26. Mas a Jerusalém do alto é livre, e é a nossa mãe.
27. Pois está escrito:”Regozije-se, ó estéril,você que nunca
teve um filho;grite de alegria,você que nunca esteve em
trabalho de parto;porque mais são os filhos da mulher
abandonada do que os daquela que tem marido”.
28. Vocês, irmãos, são filhos da promessa, como Isaque.
29. Naquele tempo, o filho nascido de modo natural
perseguiu o filho nascido segundo o Espírito. O mesmo
acontece agora.
30. Mas o que diz a Escritura? “Mande embora a escrava e
o seu filho, porque o filho da escrava jamais será herdeiro
com o filho da livre”.
31. Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da
livre.
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 89

O método de interpretação da Bíblia usado pelos evangélicos


atuais que seguem na esteira dos reformadores do século XVI
é eventualmente denominado método histórico-gramatical.
Uma das marcas desse modelo hermenêutico é sua forte
ênfase no sentido literal do texto escriturístico. Para os
defensores desse método de interpretação, as palavras da
Bíblia têm apenas um significado, ou seja, aquele pretendido
pelo autor sagrado. Até mesmo em face das figuras de
linguagem, quando logicamente as palavras adquirem duplo
sentido, os proponentes desse método entendem que a
intenção autoral deve ser preservada como um fator que impõe
limites ao intérprete, impedindo-o de atribuir ao texto
significados oriundos da sua imaginação ou que atendam aos
seus interesses e opiniões pessoais.
Esse método tão defendido nos séculos IV e V pelos teólogos
da Escola de Antioquia e distintivo dos protestantes ao longo
da história está em franca oposição ao chamado método
alegórico, popularizado já na igreja antiga especialmente por
Orígenes de Alexandria (185-253 d.C) e que consiste, grosso
modo, na busca de um significado oculto por trás da letra. O
método alegórico, praticado largamente pelo catolicismo
romano, ainda que não despreze o sentido literal do texto
bíblico, entende que há nele um sentido espiritual, mais
profundo do que aquele que se obtém a partir de uma leitura
natural. A tarefa do exegeta é descobrir esse sentido que
transcende as palavras e até mesmo a intenção do autor
inspirado.17 É por adotarem esse método hermenêutico que
muitos expositores católicos e também evangélicos sentem-
se à vontade para fazer as interpretações mais extravagantes
e absurdas da Bíblia.
A seção da Carta aos Gálatas colocada agora sob análise
se constitui num grande desafio para os defensores do método
histórico-gramatical. Isso porque o modo como Paulo
interpreta a história de Sara e Hagar (Gn 16.15; 21.1-10)
90 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

parece ser marcantemente alegórico, já que se afasta


flagrantemente da intenção autoral e dá ao texto de Gênesis
um sentido a que é impossível chegar pela via da leitura
natural. Seria esse modo como Paulo lê a narrativa um “sinal
verde” para o método alegórico? Pode o intérprete cristão
moderno, seguindo o exemplo do Apóstolo, mergulhar no texto
bíblico à busca de sentidos ocultos, no afã de descobrir
verdades jamais sonhadas sequer pelos seus autores?
Os defensores do método histórico-gramatical têm explicado
o procedimento de Paulo na texto em questão de três diferentes
maneiras. A primeira é a afirmação de que ali o apóstolo não
estava “alegorizando”, mas sim traçando um paralelo entre o
que aconteceu na história do povo de Israel e o que acontecia
agora na igreja de seus dias. É o caso, portanto, de tipologia
e não de alegoria.18 Segundo esse entender, a palavra “alegoria”
´
(allhgoumena) presente no v. 24, teria um sentido pouco
preciso, não podendo corroborar o método alegórico de
interpretação. De fato, o argumento de Paulo no texto em
análise é marcantemente comparativo. Diferente dos
alegoristas, ele não trabalha com o texto isolado e, unicamente
a partir dele, cria um sentido que considera adequado. Antes,
apresenta duas realidades (o conflito entre Sara e Hagar, e o
conflito entre a velha e a nova aliança) e realça o que ambas
têm em comum. Mais do que inventar sentidos, Paulo compara
fatos e, dessa forma, vê nas duas mulheres tipos ou figuras
das duas alianças agora em franca oposição. Ora, o uso de
tipos é comum nas Escrituras (e.g., o sacerdote
Melquisedeque, o cordeiro pascal, o Tabernáculo), sendo certo
que só podem ser reconhecidos quando a própria Bíblia os
aponta. É esse o caso em Gálatas 4.21-31.
A segunda maneira, também revestida de alto grau de
plausibilidade, pela qual se explica o método hermenêutico
de Paulo nesse texto em particular consiste na afirmação de
que o apóstolo está fazendo uso momentâneo de um método
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 91

muito familiar para grande parte dos judeus que compunham


o número de seus leitores. Com isso ele quer apenas usar
mais um recurso para reforçar sua mensagem e não
demonstrar como Gênesis deve ser lido. Esse entendimento,
mais recente que o primeiro, se constitui realmente numa
excelente hipótese. 19
Finalmente, há o entendimento de que Paulo, ao associar
Sara e Hagar aos conflitos teológicos de seu tempo, agia com
uma capacitação especial dada pelo Espírito Santo. Como
apóstolo, Paulo foi um instrumento de Deus para revelação
de seus mistérios (1Co 2.1,7; Ef 3.3-9; Cl 1.26-27), sendo certo
que, por meio do processo de inspiração das Escrituras, ele
os registrou em suas cartas que hoje compõem o Novo
Testamento. Foi no exercício desse dom apostólico que Paulo
pôde vislumbrar o liame existente entre a história das duas
mulheres e o conflito entre os “filhos” das duas alianças. O
fim do período apostólico, já no primeiro século da Era Cristã,
implica o fato de que ninguém mais tem autoridade para
interpretar textos bíblicos da mesma forma que Paulo o fez
em Gálatas 4.21-31.53. 20
Das três linhas de argumentação acima expostas, todas
são aceitáveis para o estudante honesto da Bíblia. Este deve
tão somente abster-se a todo custo do malfadado método
alegórico, sob o risco de, ao adotá-lo em suas leituras e
estudos, atribuir sentidos ao texto bíblico jamais pretendidos
pelos escritores sagrados e, desse modo, passar a seguir e
defender idéias que sejam meros frutos de sua criatividade.
Assim, após lamentar o afeto que tinha perdido por parte
dos gálatas e expressar seu desejo de estar perto deles a fim
de corrigi-los de maneira mais eficaz (vv. 12-20), Paulo retoma
a estratégia de ataque contra os mestres legalistas. É a eles e
aos simpatizantes de seus ensinos que o apóstolo se dirige
diretamente agora, referindo-se a essas pessoas como “os que
querem estar debaixo da Lei” (21[NVI]), ou seja, os que se
92 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

submetiam à Lei Mosaica crendo que, com isso, poderiam obter


a justificação (5.4).
Num tom provocativo, Paulo lhes pergunta: “Acaso vocês
não ouvem a Lei?” Há aqui a sugestão de que era de se esperar
que os mestres legalistas, com sua suposta autoridade
espiritual, tivessem uma percepção mais clara da mensagem
que a própria Lei, tão defendida por eles, transmitia. A
pergunta de Paulo deixa claro que especialmente aqueles
mestres, diferentemente dele, eram incapazes de captar as
verdades profundas da Palavra e não estavam qualificados
para apresentar mistérios antes desconhecidos, como os
apóstolos de Cristo tinham autoridade para fazer (1Co 2.1,7;
Ef 3.3-9; Cl 1.26-27).
A partir do v. 22 Paulo expõe o que tem em mente quando
fala sobre a capacidade de ouvir a Lei. Ele menciona porções
da história de Abraão, recordando que o grande patriarca teve
dois filhos: Ismael, que nasceu de Hagar, a escrava (Gn 16.1-
16); e Isaque, que nasceu de Sara, uma mulher livre (Gn 21.1-
7).21 O contraste na condição das duas mulheres (uma escrava
e outra livre) é fundamental para o raciocínio que Paulo quer
construir. Percebe-se, desde o início, que o apóstolo pretende
ressaltar a superioridade daquela que gera filhos livres sobre
aquela que gera filhos escravos.
Prosseguindo, Paulo reforça o contraste entre as duas
mulheres no v. 23, ao chamar a atenção para o fato de que o
filho da escrava nasceu de modo natural (literalmente,
“segundo a carne”), enquanto o filho de Sara nasceu de forma
extraordinária, em cumprimento à promessa de Deus. Têm-
se, então, afinal, duas realidades opostas, impossíveis de se
harmonizar. De um lado, o nascimento de um escravo que
passa a existir a partir de processos humanos comuns; de
outro, o nascimento de um homem livre, só possível graças à
intervenção poderosa de Deus que o traz ao mundo por causa
de uma promessa que fez.
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 93

Vê-se desde já onde Paulo pretende chegar. Desses


versículos se depreende de antemão que os mestres legalistas
e seus discípulos da Galácia eram escravos e existiam como
tais não como resultado da atuação milagrosa de Deus em
suas vidas, mas sim em virtude de esforços humanos carnais.
Por outro lado, os que buscavam a justificação pela fé em
Cristo obtinham liberdade do jugo da Lei, eram livres e existiam
como resultado da obra poderosa de Deus que fez a promessa
de dar a bênção de Abraão, ou seja, a justificação e a herança,
a todos os que têm a fé de Abraão (Rm 4.11-16).
No v. 24, o apóstolo esclarece finalmente que aqueles fatos
narrados em Gênesis têm um sentido figurado (Lit. “essas
coisas são uma alegoria”), sendo que Sara e Hagar
representam duas alianças. A escrava é uma figura da Aliança
Mosaica, ou seja, a aliança da lei, estabelecida no Monte Sinai
(Ex 34.29-32; Lv 26.46; Ne 9.13-14). Essa aliança, tão cara
aos mestres legalistas e aos cristãos da Galácia, tinha como
marca distintiva a exigência de sujeição a regras e normas de
diversas naturezas, impondo aos homens um peso que jamais
podiam carregar (At 15.10) e gerando, dessa forma, escravos.
“Hagar é o monte Sinai, na Arábia”, diz Paulo (25),
querendo com isso demonstrar o paralelo entre a serva de
Abraão e o pacto da lei, firmado ao tempo do êxodo de Israel.
Ademais, o apóstolo esclarece que Hagar também é uma figura
da Jerusalém dos seus dias, cujo povo permanecia debaixo do
jugo da Lei Mosaica. Paulo menciona especificamente a cidade
de Jerusalém porque nela se focalizava o culto israelita, sendo
também ali o centro do judaísmo com sua ênfase na guarda
da lei em seus mínimos detalhes.
De fato, Jerusalém era a grande fortaleza em que a lei de
Moisés era protegida com um zelo que chegava às raias do
fanatismo.22 Além disso, é bem provável que os mestres
judaizantes que estavam atuando de forma tão perniciosa junto
aos cristãos da Galácia fossem procedentes de Jerusalém (At 15.1,
94 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

23-24) e se gloriassem no radicalismo daquela maravilhosa


cidade. Talvez eles até se aproveitassem do fato de terem vindo
de Jerusalém para afirmar sua autoridade, considerando o
destaque que aquela cidade tinha como reconhecido núcleo
religioso. Sendo esse o caso, pode-se entender porque Paulo
mostra a real condição da metrópole de que tanto se jactavam.
Na verdade, seus filhos, ou seja, seus cidadãos e todos os que
adotavam seus princípios, homens tão meticulosos no tocante
às determinações da antiga aliança, estavam sob escravidão,
oprimidos sob o fardo de uma religiosidade exterior incapaz de
tornar o homem livre e justo diante de Deus (Rm 3.20). Para
Paulo, portanto, o sistema mosaico, em vez de criar novos
israelitas, criava novos ismaelitas!
Em contraste com a Jerusalém terrena que, sendo serva
como Hagar, é mãe de escravos, há a Jerusalém celestial que,
como Sara, é livre (26). Essa Jerusalém também é mãe. De
fato é nossa mãe, ou seja, mãe dos crentes, aqueles que são
livres da Lei mediante a fé em Cristo (v. 31; Rm 7.6). Paulo se
refere à Nova Aliança (1Co 11.25; 2Co 3.6; Hb 9.15) como “a
Jerusalém lá de cima” porque seus filhos são gerados pelo
poder do alto e, ainda que se encontrem por um tempo neste
mundo, não têm aqui nenhuma cidade sagrada em que se
concentrem (Hb 13.14). Antes são, na verdade, cidadãos
celestes (Fp 3.20), homens livres cuja liberdade lhes advém
do Pacto da Cruz, no qual Deus se compromete a dar a vida
eterna aos que tão somente crêem em seu Filho (Jo 6.40). A
pátria deles está, pois, nos céus (Hb 11.10, 16; 12.22; 1Pe
2.11; Ap 21.2), mas a liberdade que têm como cidadãos do
alto já é desfrutada aqui (5.1).
Mantendo viva a comparação entre os filhos da Nova
Aliança e Isaque, o filho de Sara, Paulo recorda mais uma vez
que, além de ambos serem gerados em liberdade, também
ambos nasceram por causa do milagre realizado por Deus.
Citando Isaías 54.1, o apóstolo aponta para o fato de que o
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 95

profeta se refere à Jerusalém restaurada como uma mulher


que tinha sido estéril, mas que, por causa da promessa e do
poder de Deus terá numerosos filhos (27). A princípio, o texto
se refere à restauração da Jerusalém exilada em Babilônia.23
Paulo, porém, movido pelo Espírito Santo, estende seu sentido
para ensinar que os filhos da Jerusalém celeste, ou seja, do
Novo Pacto, são obra sobrenatural do Senhor e também realçar
o grande número de cidadãos dessa pátria gloriosa. De fato,
a graça de Deus, ainda que a cada geração alcance um número
comparativamente reduzido de pessoas (Mt 7.14; 22.14), ao
final se mostrará como tendo sido eficaz na vida de uma
multidão redimida ao longo dos séculos (Ap 5. 9-10; 7. 9).
O v. 28 inicia o desfecho de toda a analogia de Paulo entre as
duas mulheres de Abraão e as duas alianças. Ele conclui que os
crentes são como Isaque por serem também filhos da promessa.
De fato, neles é cumprida a promessa de que Abraão teria uma
grande descendência (Rm 4.16-17; 9.8). É por isso que o apóstolo
os descreve como “filhos da promessa, como Isaque”.
Ocorre, porém, que da mesma maneira que o filho da
escrava perseguia o filho da livre, assim é também agora (29).
A história de Gênesis mostra que o filho de Hagar, nascido
sem qualquer intervenção especial de Deus, atormentava o
menino nascido de forma sobrenatural (Gn 21.8-9), e Paulo
vê nisso um paralelo com o que acontecia na Galácia. Ali,
mestres que não haviam nascido de Deus, filhos naturais da
Aliança Mosaica e escravos da Lei, perseguiam os crentes,
filhos livres da Nova Aliança, nascidos graças à atuação
milagrosa de Deus.
É interessante notar que o assédio dos falsos mestres à
igreja, tentando impor sobre ela o fardo das exigências legais,
é tido pelo apóstolo como verdadeira perseguição. Assim, não
se deve conceber o ataque contra os santos apenas sob a
forma de oposição sangrenta, com prisões, mortes, e torturas.
A perseguição contra o povo santo também acontece quando
96 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

pregadores da mentira tentam seduzi-lo, conduzindo-o pelos


caminhos tortuosos de um evangelho adulterado. Na Galácia
os “perseguidores” eram mestres judaizantes que, com
sorrisos e agrados, colocavam sobre os crentes a carga
insuportável da guarda da Lei. Hoje esse tipo de perseguição
ainda existe. Aliás, sempre que alguém se aproxima de um
crente e o exorta ou ensina a se submeter a regras, dizendo
que é assim que se vive o cristianismo autêntico. Tal pessoa
atua como verdadeiro perseguidor, um escravo ismaelita
perturbando os filhos livres da Jerusalém celeste.24
Como terminará a história do embate entre os filhos da
escrava e os filhos da livre? Paulo recorre novamente à história
de Gênesis e sugere o modo como os crentes devem por um
fim à oposição dos legalistas que pervertem o evangelho
genuíno. Ali, Sara diz a Abraão: “Mande embora a escrava e
o seu filho” (30). Parece clara aqui a sugestão de Paulo de que
os gálatas deveriam rejeitar não somente o ensino dos mestres
judaizantes, mas também eles próprios. A citação de Gênesis
21.10 parece indicar que os crentes da Galácia deveriam
mandar embora aqueles que lhes estavam ensinando a
justificação pela guarda da Lei. Como Sara, aqueles crentes
não podiam tolerar os ataques ousados e maldosos dos
escravos contra os filhos da promessa, devendo adotar uma
postura firme contra eles, eliminando qualquer grau de
influência que tivessem e até afastando-os do seu convívio.25
O versículo 30, por outro lado, tem um sentido que suplanta
a orientação dada aos crentes de rejeitar os legalistas. O
sentido dominante no texto aponta para a certeza de que,
num dia futuro, os que confiam na justiça própria mediante a
guarda de leis serão expulsos do convívio dos herdeiros de
Deus. Aqui Paulo confere às palavras da esposa de Abraão
um sentido profético e é para realçar a autoridade de tais
palavras que o apóstolo as atribui à Escritura e não
diretamente a Sara.
O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE 97

De Gênesis 21.10, Paulo aduz, portanto, o destino


escatológico dos filhos das diferentes alianças. Aqueles que
insistem na justificação pela guarda da Lei e oprimem os
crentes impondo fardos sobre eles serão um dia afastados
para sempre, e os salvos, de posse da herança, se verão livres
de sua presença e perseguição. Do texto citado depreende-se
também facilmente que os legalistas não receberão a herança
devida aos crentes que foram gerados livres pelo evangelho
da graça (Rm 4.14). De fato, o apóstolo ensina claramente
aqui que os que confiam na guarda da Lei estão perdidos,
não têm parte na herança de Deus e serão finalmente banidos
da congregação dos santos. A força desse texto esvazia de
qualquer esperança aqueles que buscam ser salvos pela
observância dos mandamentos mosaicos.
O v. 31 tão somente reforça a identidade dos crentes como
filhos livres, como Paulo ressaltou em versículos anteriores
(vv. 26, 28).
o evangelho verdadeiro e
5. as virtudes espirituais

A busca da justificação pelo cumprimento da Lei é condenável,


posto que implica afastamento de Cristo em quem a justiça é
obtida pela fé. Contudo, estar livre da Lei não deve conduzir à
vida desregrada, uma vez que a liberdade cristã é vivida dentro
dos limites do amor e sob a influência do Espírito que produz
virtudes no crente.

PREJUÍZOS DO LEGALISMO
GÁLATAS 5.1-6
1. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto,
permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente
a um jugo de escravidão.
2. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem
circuncidar, Cristo de nada lhes servirá.
3. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar,
que está obrigado a cumprir toda a Lei.
4. Vocês, que procuram ser justificados pela Lei, separaram-
se de Cristo; caíram da graça.
5. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a
justiça, que é a nossa esperança.
6. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem
incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo
amor.
100 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

O capítulo 5 de Gálatas inicia-se com a afirmação de que


Cristo nos libertou para sermos, de fato, livres (1), ou seja, ao
redimir-nos Cristo almejou que realmente desfrutássemos da
liberdade e não a tivéssemos apenas como um conceito
abstrato, sem qualquer reflexo no modo como vivemos. Antes,
sua obra libertadora deveria ser desfrutada pelos crentes.
Assim, Paulo prossegue ainda no v. 1 advertindo os gálatas
a permanecerem firmes. Firmeza aqui implica fixar-se na
verdade pregada por Paulo e usufruir, sem vacilar, da liberdade
que Cristo conquistou. De fato, ao demonstrar simpatia pelos
ensinos legalistas, os crentes da Galácia revelavam uma fé
vacilante e um modo de viver que, como uma estaca solta,
pendia para o lado da escravidão sob a força do vento de um
evangelho falso (1.6-7). O apóstolo ordena, portanto que
aqueles crentes se apeguem com maior tenacidade ao
evangelho verdadeiro e, conseqüentemente, ao desfrute da
liberdade obtida por Cristo.
Paulo prossegue deixando claro que deixar-se levar pela
mensagem dos judaizantes, como os gálatas já estavam fazendo
(4.10-11), representava um retrocesso, ou seja, significava
submeter-se “de novo, a jugo de escravidão” (ARA). O apóstolo
usa a expressão “de novo” (palin),
´ porque ainda que seus
leitores, sendo gentios, não tivessem vivido sob o jugo da Lei
Mosaica, tinham sido escravos de sistemas religiosos pagãos
marcados por inúmeras e severas exigências (4.8-11).
Desse modo, para Paulo, a resposta positiva ao apelo dos
falsos mestres implicava, basicamente, um retorno ao modo
de vida que os gálatas tinham experimentado no paganismo.
A partir daí é fácil concluir que “judaizar” a igreja é, na
verdade, uma forma de paganizá-la. Em vista disso, os crentes
modernos devem estar atentos contra os ataques de alguns
pregadores atuais que ensinam a necessidade de retorno aos
deveres da religião mosaica até mesmo em seus aspectos
cerimoniais. Na prática, quem hoje promove a observância
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 101

das normas do judaísmo, conduz os homens ao estilo de vida


próprio do paganismo.
No v. 2, Paulo deixa transparecer o aspecto da Lei que os
mestres judaizantes tinham em mais alta conta e, certamente,
aquele que mais insistiam que os gálatas observassem: a
circuncisão. Para eles, se os gentios não recebessem essa
marca em sua carne, não poderiam ser salvos (At 15.1,5).1
Assim, os falsos mestres da Galácia apontavam um caminho
para a justificação no qual a fé em Cristo não era suficiente,
fazendo-se necessárias as obras da Lei. A circuncisão seria
talvez a principal dessas obras. Por isso, Paulo vê nessa prática
uma declaração de falta de confiança na suficiência da Cruz;
uma afirmação de que ela não tem nenhum valor à parte do
rito legal judaico.
Ademais, a circuncisão era o sinal externo de adesão à Lei.
Ora, Cristo se manifestou especialmente para livrar o homem
do jugo insustentável da Lei Mosaica (Ef 2.14-15; Cl 2.14).
Logo, aderir à Lei por meio daquele sinal no corpo seria o
mesmo que tornar sem proveito a obra libertadora que Cristo
completou no Calvário (2.21). De fato, pela circuncisão os
crentes da Galácia estariam assumindo o compromisso de se
colocarem sob a escravidão das normas esculpidas na pedra,
tornando sem valor a liberdade obtida pelo Deus-Homem
fixado no madeiro.
Que Paulo entendia a circuncisão como um sinal de adesão
completa à Lei depreende-se facilmente do v. 3. O apóstolo
mostra aqui que, sendo aquele rito judaico uma evidência de
submissão plena às normas mosaicas, não seria coerente
circuncidar-se e, então, dedicar-se ao cumprimento de apenas
algumas determinações da Antiga Aliança, escolhidas ao bel
prazer. A circuncisão implicava comprometimento integral do
homem com as normas do Sinai. Não poderia alguém
submeter-se a meia aliança, assim como não pode um homem
colocar-se debaixo das responsabilidades de meio casamento.
102 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Eis o perigo a que se expunham os legalistas. Ao adotarem


um “cristianismo judaizado”, punham sobre os próprios
ombros e dos seus discípulos não só alguns pesos
selecionados pela vontade livre, mas um fardo completo que
homem nenhum na história humana jamais pôde suportar
(Jo 7.19; At 15.10). Acrescente-se a isso a verdade de que quem
quer viver debaixo da Lei deve antes entendê-la como um bloco
monolítico que não pode ser partido num ponto sem que tudo
o mais se perca (Tg 2.10). A conclusão a que se chega é que o
ensino dos falsos mestres da Galácia implicava não só a
adoção completa da Lei, mas também o dever de uma
obediência perfeita, daquele tipo que só o Filho de Deus foi
capaz de praticar (Jo 8.46; Hb 4.15; 1Jo 3.5).
O comprometimento com a Lei a que os crentes da Galácia
eram impelidos por força da influência dos falsos mestres era,
como se sabe, nada mais que um arranjo doutrinário no qual
predominava a busca de justificação pelo esforço próprio. Eles
queriam somar as obras à fé e obter a justificação como
produto dessa operação. Paulo mostra, porém, que na busca
da salvação é impossível andar de mãos dadas ao mesmo
tempo com a Lei e com Cristo. É assim que, dirigindo-se
especificamente aos falsos mestres e aos seus mais leais
seguidores, ele afirma que, ao buscarem a justificação pela
Lei, não poderiam manter-se unidos a Cristo (4). De fato, ao
agirem daquela forma, eles haviam se “desligado” de Cristo.
O verbo usado por Paulo é katargew ´ e significa ser liberto de,
romper com alguém.
O ensino de Paulo nessa passagem deixa claro que mesmo
o comprometimento com uma parte ínfima da Lei implica
necessariamente a nulidade do compromisso com o Senhor.
Para o apóstolo, ou o homem fica absolutamente livre da Lei
pela fé em Cristo ou fica absolutamente livre de Cristo pela
adesão à Lei. Não há como manter liames com ambos. A mais
tênue ligação com um só, para fazer qualquer sentido, requer
o abandono total do outro.
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 103

Os legalistas já tinham feito a sua opção! Aderindo à Lei


na busca da justificação, tinham se separado de Cristo e,
assim, caído da graça, ou seja, tinham abandonado a
possibilidade de desfrutar do favor gratuito de Deus oferecido
em seu Filho.
É comum no meio evangélico o entendimento de que as
expressões “desligar-se de Cristo” e “cair da graça” apontam
para a possibilidade da perda da salvação. Esse entendimento,
porém, está equivocado, mesmo porque o ensino de que a
salvação não se perde é amplamente fundamentado nas
páginas do Novo Testamento (Jo 10.27-29; Rm 8.30-39; 1Ts
5.23-24; 1Pe 1.3-5, etc.). Assim, considerando o ensino bíblico
em geral e os fatores distintivos que permeiam o texto em
análise, conclui-se que desligar-se de Cristo é buscar
inutilmente a salvação nele e em algo além dele, desprezando
a sua suficiência. É manter uma união parcial com Cristo,
dividindo a confiança da salvação entre ele e algo mais. Para
Paulo, esse tipo de comprometimento com o Salvador é nulo e
implica, na verdade, total separação dele.
Da mesma forma, cair da graça (Lit. “cair para fora”) significa
colocar-se fora da esfera dos benefícios da graça.2 É afastar-se
do domínio em que o perdão de Deus é dado independentemente
de méritos. É deixar para trás a possibilidade de ser salvo
gratuitamente. A busca da justificação pelo esforço próprio faz
com que o indivíduo deposite a confiança na força do seu braço
e, dessa forma, vire as costas para a salvação gratuita que
Deus oferece em seu Filho. Assim, tal pessoa não perde a graça
que obteve, mas perde a possibilidade de desfrutar a graça que
é oferecida, uma vez que viaja rumo ao território da lei e das
obras, onde a referida graça não habita. Como se vê, Paulo
dirige as palavras do v. 4 a um grupo de pessoas específico que
havia nas igrejas da Galácia. Tratava-se de legalistas que nunca
tinham realmente se convertido. É notável que, em 2.4, Paulo
chama pessoas assim de “falsos irmãos”.
104 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Os vv. 1-4 apresentam um deslocamento no público alvo a


quem Paulo dirige suas palavras. Observe-se que nos vv. 1-2,
o apóstolo fala aos crentes que, mesmo vacilantes, ainda não
tinham se submetido aos rigores do legalismo que os falsos
mestres estavam propondo. Já nos vv. 3-4, Paulo se dirige “a
todo homem que se deixa circuncidar”, ou seja, àqueles que
“procuram ser justificados pela Lei”. Estes, conforme visto
acima, não eram crentes. Eram pessoas separadas de Cristo,
vivendo em meio à fantasia de um relacionamento com ele
que, na verdade, era nulo, já que não o consideravam um
salvador suficiente. Além do mais, tinham sido banidos do
“território da graça”, descambado para além das suas
fronteiras, uma vez que buscavam a salvação no reino do
esforço próprio.
Após dirigir suas palavras a alvos alternados, Paulo passa
agora a falar de um terceiro grupo no qual ele se inclui. Esse
grupo é o que, firmemente e pela atuação do Espírito, aguarda
a justiça pela fé (5).3 O apóstolo inicia o v. 5 com uma conjunção
(gar que significa pois) que expressa aqui o intento de explicar
o que foi dito no v. 4. Assim, o v. 5 é útil para esclarecer que
os que buscavam a justificação mediante a Lei fracassaram
porque seu intento não tinha qualquer relação com a obra do
Espírito Santo. A segura esperança de ser justificado pela fé
advém ao homem pela atuação do Espírito. A ausência dessa
esperança em alguém e a conseqüente tentativa de ser
justificado pelas obras revelam que esse alguém não foi objeto
do salutar ministério do Consolador. Isso porque, onde o
Espírito atua, não resta espaço para a confiança na carne.
Esta só persiste no coração ainda não tocado pela graça.
O contraste básico que transparece no v. 5 é que a confiança
na Lei é mera intuição da mente carnal, enquanto a esperança
de justificação pela fé é obra sobrenatural de Deus no coração
do homem. Acrescente-se a isso o ensino de Paulo em 2
Coríntios 3.6-9. Ali, realçando ainda mais fortemente o
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 105

contraste entre o ministério da Lei e o ministério do Espírito,


o apóstolo ensina que aquele mata e traz condenação,
enquanto este vivifica e traz justificação. Ora, os legalistas
estavam sob o ministério da letra. Sua conexão com o Espírito,
portanto, não existia. Logo, não havia como serem justificados.
É por isso que as palavras terríveis do v. 4 se ajustavam tão
perfeitamente a eles.
Resumindo: os homens que confiam no mérito pessoal para
serem salvos estão, na realidade, perdidos. Isso porque essa
confiança é mera inclinação da mente degenerada e não obra
do Espírito Santo, já que este, na verdade, leva o homem a
desistir de si mesmo e o conduz à justificação convencendo-o
a confiar unicamente em Cristo. Os legalistas da Galácia
demonstravam, portanto, que não tinham sido objeto dessa
obra do Espírito que opera a justificação pela fé somente.
Faltava-lhes a ministração do Consolador e, sem ela, viviam
na ilusão de que, com sua suposta obediência à Lei, poderiam
forçar as portas do céu.
Nunca é demais ressaltar nos dias atuais, tão marcados
pela visão otimista acerca do homem, que, à luz do v. 5, é
exclusivamente mediante a atuação do Espírito Santo que
alguém pode nutrir a esperança de ser justificado somente
pela fé. Não se pode esperar que o homem, de si mesmo e por
si mesmo, desenvolva essa esperança. Ela é obra de Deus,
realizada naqueles que, sem mérito algum, são contemplados
por sua graça (Rm 2.29; 1Co 12.3; 2Ts 2.13).
Concluindo o parágrafo, Paulo faz alusão ao fato de que o
homem que creu e foi justificado está em Cristo, ou seja, dentro
de sua esfera de influência e benefícios. Considerando que tal
homem desfruta das bênçãos dessa posição, sendo a
justificação a principal delas, não há para esse indivíduo
utilidade alguma na circuncisão (6). Para o crente, ser
circuncidado ou não é algo absolutamente sem importância.
Submeter-se a esse rito não o fará ganhar nada, e deixar de
106 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

submeter-se não o fará perder nada (1Co 7.18-19). O que faz


o homem ganhar ou perder no âmbito espiritual é a fé. Eis o
fator que faz toda a diferença. Note-se, porém, que a fé de
que Paulo fala aqui, ou seja, a genuína fé salvadora que é
dádiva de Deus (Ef 2.8) e que tem Cristo como autor (Hb 12.2),
é uma fé que se evidencia no mundo dos fatos.
Paulo ensina que o modo como a fé salvadora se movimenta,
tornando-se perceptível, é por meio de atos de amor (1Jo 3.10,
14; 4.7-8). A fé tem no amor o seu rosto. A face da fé é o amor.
Não há, portanto, espaço no cristianismo para uma fé
meramente conceitual e abstrata. A fé salvadora é viva e
atuante, sendo nos atos de amor que ela se corporifica e mostra
que é real. Carente dessa dimensão palpável a fé é morta (Tg
2.14-17), está longe de ser a que vem de Deus e, por isso, não
pode salvar ninguém.4

UMA CORRIDA INTERROMPIDA


GÁLATAS 5.7-12
7. Vocês corriam bem. Quem os impediu de continuar
obedecendo à verdade?
8. Tal persuasão não provém daquele que os chama.
9. “Um pouco de fermento leveda toda a massa.”
10. Estou convencido no Senhor de que vocês não pensarão
de nenhum outro modo. Aquele que os perturba, seja quem
for, sofrerá a condenação.
11. Irmãos, se ainda estou pregando a circuncisão, por
que continuo sendo perseguido? Nesse caso, o escândalo
da cruz foi removido.
12. Quanto a esses que os perturbam, quem dera que se
castrassem!

Nos primeiros dias de sua jornada como cristãos, os gálatas


tinham demonstrado boa disposição e realizado notáveis
avanços. Paulo os compara, no v. 7, a atletas que, durante
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 107

uma corrida, apresentam um bom desempenho.5 Algo, porém,


aconteceu. Adversários os alcançaram e impediram que
avançassem.6 Fica claro no texto o que Paulo tem em mente
com essa comparação: os crentes da Galácia, no início, haviam
seguido a verdade do evangelho com força e vontade. Eles
permaneceram firmes nessa fé até que os falsos mestres, com
sua doutrina legalista, fizeram-nos parar e dar ouvidos a uma
mensagem que apresentava a justificação mediante a guarda
da Lei Mosaica.
Do v. 7 se depreende que correr bem a carreira cristã não é
só enfrentar as perseguições que geralmente advêm aos santos,
mas também sustentar a fé na verdade, sem deixar-se levar
pelos convites dos pregadores mentirosos que, especialmente
nos dias atuais, alastram-se como uma epidemia. De acordo
com a figura de Paulo, todo crente que abandona a Sã Doutrina
e dá ouvidos a tais pregadores é como um atleta que parou de
correr. Estendendo essa figura, pode-se perguntar: “que
utilidade têm tais atletas? Que prêmio receberão?”.
A causa da interrupção da corrida na pista da verdade por
parte das igrejas da Galácia era uma “persuasão” (8). O termo
usado pelo apóstolo (peismonh) sugere o uso de falácias
sedutoras empregadas com o objetivo de convencer os gálatas
a abandonar o caminho que estavam seguindo. Que os
judaizantes faziam uso de atrativos para fascinar e induzir
os crentes à desobediência da verdade fica claro em 3.1 e 4.17.
Paulo afirma que a origem dessa persuasão não era o Senhor,
querendo dizer com isso que o trabalho e a mensagem dos
falsos mestres infiltrados nas igrejas não estavam em
harmonia com a vontade e os planos de Deus para o seu povo.
No v. 8, Paulo se refere a Deus como “aquele que os chama”
(NVI). Essa designação é cheia de significado. De fato, para
Paulo o crente é alguém que foi chamado à fé em Cristo por
meio da pregação do evangelho (Gl 1.6; 2Ts 2.13-14) e
respondeu positivamente a essa santa vocação. Note-se,
108 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

porém, que o particípio grego usado no texto está no tempo


presente (kalountoj), apontando para uma ação atual de
Deus. É provável, portanto, que Paulo tenha em mente aqui
um convite de Deus dirigido continuamente aos que já
atenderam ao chamado para a fé.7 À luz de outras passagens,
esse chamado contínuo consiste num apelo para que os
crentes sejam santos (Rm 1.7) e vivam em paz com Deus (2Co
5.20). Assim, ao falar de Deus como “aquele que os chama”,
o apóstolo talvez pretenda despertar a consciência dos seus
leitores para o fato de que o Senhor, vendo seus filhos se
distanciar mais e mais de si, em virtude da persuasão dos
falsos mestres (1.6), continuamente os convoca para que
retornem a ele, rejeitando definitivamente o falso evangelho.
Se de um lado os mestres da mentira convidavam os gálatas
para que seguissem suas invenções, de outro o Senhor os
chamava docemente para que retornassem à sobriedade e à
fé na verdade.
Por impedirem os gálatas de obedecer a verdade, atendendo
assim ao chamado de Deus, os falsos mestres se constituíam
numa influência maligna que, aos poucos e num tempo breve,
poderia corromper completamente as igrejas da Galácia. Paulo
alerta os seus leitores para isso citando o conhecido brocardo:
“Um pouco de fermento leveda toda a massa” (9). O apóstolo
usaria o mesmo adágio mais tarde, ao escrever aos coríntios
(c. 55 d.C.), para ensinar a necessidade de expulsar um homem
imoral da igreja (1Co 5.6-8). Ali, assim como no texto em
análise, o “fermento” é símbolo da “maldade e da perversidade”
(1Co 5.8). A diferença é que, em Corinto, a maldade e a
perversidade manifestaram-se, entre outras coisas, por meio
de um chocante desregramento sexual, enquanto na Galácia
revelaram-se por meio do rápido e aberto desvio doutrinário.8
Da consideração de ambos os casos, pode-se concluir que
tanto a conduta errada quanto o ensino errado, quando
admitidos na igreja, são capazes de, lentamente e de várias
maneiras, afetar todos os seus membros.
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 109

Para que continue, portanto, a existir como igreja verdadeira,


a comunidade que se coloca sob esse título não pode tolerar o
erro nem de conduta nem de doutrina, impondo-se a
necessidade de corrigir e, se preciso for, até expulsar aqueles
que se sujeitam a quaisquer desses desvios (1Co 5.2,13). A
figura do fermento mostra que disso depende a pureza e a saúde
de toda a igreja. Por isso, ainda que medidas severas sejam
muitas vezes necessárias para extirpar a influência má e
crescente, deve-se lembrar que dessas medidas depende a
sobrevivência do próprio grupo eclesiástico. De fato, a
experiência mostra que a tolerância adotada muitas vezes em
nome de uma noção errada de amor ou por causa do medo de
ser taxado de “radical” tem, no fim das contas, um preço alto.
Basta observar que igrejas que no passado deram pouca
importância a pequenos desvios práticos e teológicos,
considerando-os inofensivos, hoje se vêem marcadas por um
quase irremediável ambiente mundano e também por grosseiras
heresias instaladas nas mentes de seus membros. Eis o efeito
do fermento! Sua ação silenciosa e lenta faz com que os danos
que produz se alastrem por sobre tudo e sejam percebidos tarde
demais. Daí a necessidade de lançá-lo fora com urgência (1Co
5.7), por mais que isso gere dissabores e desgaste emocional.
Paulo sabia que a doutrina dos falsos mestres judaizantes
tinha o potencial de corromper por completo as igrejas da
Galácia. Isso, porém, ainda não tinha acontecido (5.1-2), e o
apóstolo estava confiante que seu ensino prevaleceria sobre
as falácias dos legalistas (10). Sabendo que escrevia a crentes
genuínos, Paulo acreditava no arrependimento dos gálatas e
no seu retorno à Sã Doutrina. Essa sua confiança era
fundamentada “no Senhor”. Isso significa que Paulo cria que
o arrependimento dos seus leitores seria, em última análise,
obra de Deus no coração deles. O apóstolo tinha plena certeza
em seu íntimo que o Senhor não deixaria seus filhos vagando
pelas sendas da mentira.
110 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Ainda no v. 10, Paulo afirma: “Aquele que os perturba,9


seja quem for, sofrerá a condenação”. O uso do singular não
significa que havia somente um falso mestre atuando entre
as igrejas. Em 1.7, 4.17, 5.12 e 6.12, Paulo deixa claro que
havia um grupo presente ali. Certamente, portanto, o singular
foi usado para referir-se ao líder desse grupo ou ao mais
influente entre os legalistas. Sem dúvida, esse indivíduo se
apresentava como detentor de grande autoridade doutrinária,
um rabino acima da média que, com seus ares de grande
intelectual, associados às suas técnicas de bajulação, havia
conquistado uma posição de alto prestígio entre os irmãos.
Paulo mostra, no entanto, que, independentemente da posição
que ocupava, aquele homem seria castigado. A expressão
“seja ele quem for” indica que sua suposta autoridade não
teria valor algum diante do Deus que o condenaria por desviar
as igrejas da verdade.
A palavra traduzida por “condenação” (krima) ´ tem aqui o
sentido de punição. No versículo sob análise, o termo aparece
associado a um verbo cujo significado é “carregar” (bastazw,´
também usado em 6.2,17).? É possível, portanto, que Paulo
esteja dizendo que Deus lançaria um grande fardo sobre a
vida daquele homem, desconsiderando totalmente a sua
posição de preeminência. Isso porque, para Deus, o bom
ministro não é necessariamente o que se destaca, mas sim o
que é fiel (1Co 4.1-2). Não se pode deixar impune o homem
que, aproveitando-se de sua posição privilegiada, conduziu o
povo santo para longe da verdade, causando prejuízos
incalculáveis para a causa do Reino (1Co 3.17).
Concluindo o parágrafo em análise, Paulo deixa
transparecer uma das acusações que os falsos mestres
dirigiam contra ele, a saber, a de que ele pregava a circuncisão
quando isso era conveniente. Ao que tudo indica, os
judaizantes diziam que a mensagem de Paulo era oscilante,
pendendo para este ou aquele lado, dependendo das
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 111

circunstâncias e sempre com o intuito de evitar oposição e


cair no agrado de todos. Paulo já se defendera dessa acusação
em 1.10. Agora ele o faz novamente, desta vez demonstrando
o quanto ela ia contra as mais claras evidências. Assim, no v.
11 ele diz: “Irmãos, se ainda estou pregando a circuncisão,
por que continuo sendo perseguido?”.
É óbvio que Paulo tem em mente aqui, especificamente, a
perseguição dirigida contra ele pelos adeptos do judaísmo.
Por que estes o perseguiam se sua mensagem se ajustava às
suas convicções? Ora, a perseguição contra Paulo por parte
dos judeus era um fato inegável. Aliás, na própria região da
Galácia, quando as igrejas a quem escreve foram fundadas,
ao tempo da Primeira Viagem Missionária, o apóstolo
encontrou terríveis obstáculos entre os seus compatriotas
exatamente porque sua pregação contradizia a expectativa
reinante entre eles de que o homem pudesse ser justificado
pelas obras da Lei, e enfatizava unicamente a necessidade da
fé em Cristo (At 13.49-50; 14.1-2). Logo, os próprios gálatas
tinham sido testemunhas da perseguição que Paulo sofrera
quando anunciou pela primeira vez o evangelho entre eles
(At 14.19-20), e puderam perceber o quanto sua mensagem
incomodava os adeptos do judaísmo. Como agora podiam crer
que ele era um pregador que mudava o conteúdo do seu
discurso a fim de evitar problemas com os supostos seguidores
de Moisés?
É verdade que Paulo tinha grande disposição em evitar
ferir os escrúpulos dos judeus e, assim, criar barreiras
desnecessárias ao anúncio do evangelho (At 16.1-3). Contudo,
esse modo de agir estava muito longe de ser uma forma de
anunciar a necessidade da circuncisão como os falsos mestres
diziam que Paulo estava fazendo. A perseguição que o
apóstolo sofria era evidência de que não era esse o caso, pois
se sua mensagem incluísse a salvação pela guarda da Lei, o
“escândalo da cruz” cessaria.
112 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

“Escândalo” (skandalon)
´ significa, literalmente,
armadilha. É uma palavra usada no NT para fazer referência
ao incitamento ao pecado (Mt 16.23; 18.7; Rm 16.17). A partir
desse significado básico, o sentido se estende a ponto de
abranger qualquer coisa que cause repulsa ou reprovação.
Esse é o sentido adotado no v. 11. “Escândalo da cruz” é,
portanto, a indignação que a mensagem da cruz gera. De fato,
para o judeu, essa mensagem causava repugnância como algo
que induzia os outros ao erro, a tal ponto que incitava sua
oposição (1Co 1.23). Se Paulo pregasse a circuncisão, essa
repulsa deixaria de existir; o escândalo cessaria e com ele a
perseguição. Ora, a constante inimizade dos judeus contra
Paulo era a prova de que isso jamais tinha acontecido.
Naturalmente, acusações tão absurdas contra Paulo geravam
em seu íntimo a mais intensa indignação. Por isso, com mordaz
ironia, ele termina o parágrafo insurgindo-se abertamente
contra seus covardes caluniadores (12). O apóstolo se refere a
eles como pessoas que provocam tumulto e agitação. Em 1.7 e
5.10, os mestres judaizantes já foram descritos como pessoas
que perturbam. Agora, um outro verbo é usado (anastatow), ´
cujo sentido é semelhante. De fato, Paulo sugere que os mestres
legalistas eram instigadores de tumulto. Sendo assim,
ironicamente faz votos de que aqueles homens que eram tão
radicalmente afeiçoados à circuncisão, até o ponto de conduzir
a igreja à rebeldia, também fossem radicais na realização do
ritual, e se castrassem de uma vez por todas!10 Diziam que ele
pregava a circuncisão. Eis aí, portanto, a circuncisão que Paulo
prega! Que os mentirosos agora façam uso dela.
A reação de Paulo diante da mentira que tentava corromper
o evangelho e também sua própria reputação pode parecer
demasiadamente severa. No entanto, aprendemos na Escritura
que na defesa da verdade, ainda que deva predominar a
mansidão no coração dos seus expoentes (2Tm 2.24-25; 1Pe
3.15-16), há situações que exigem a tomada de atitudes mais
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 113

rígidas. Nos escritores do NT essa rigidez aflora sempre que a


paz, a pureza e a sã doutrina são fortemente ameaçadas,
colocando a igreja em constante e real risco de destruição (1Co
3.1-3; 5.13; Tt 1.10-13; Tg 4.4; 2Pe 2.1ss; 3Jo 9-10).

O AMOR É O CUMPRIMENTO DA LEI


GÁLATAS 5.13-15
13. Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas
não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne;
ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor.
14. Toda a Lei se resume num só mandamento: “Ame o seu
próximo como a si mesmo”.
15. Mas se vocês se mordem e se devoram uns aos outros,
cuidado para não se destruírem mutuamente.

O convite para crer em Cristo é uma vocação para ser livre


não só do mundo, do pecado e da perdição, mas também do
fardo que a Lei Mosaica impõe aos que tentam viver sob suas
determinações (5.1). Essa é a lição que Paulo repisa em toda a
Carta aos Gálatas. Contudo, certamente em virtude das
acusações que lhe estavam sendo dirigidas de pregar uma
mensagem que induzia os crentes ao desregramento, o
apóstolo vê, nesta altura, a necessidade de apresentar um
contrapeso. Assim, passa a ensinar que a liberdade a que o
crente foi chamado não implica uma vida em que são dadas
asas às inclinações naturais (1Pe 2.16). Antes, essa liberdade
deve conduzir a uma forma nova de escravidão: a escravidão
do amor. Paulo ensina, então, que em vez de usar a liberdade
cristã para servir suas próprias paixões, o crente deve usá-la
para servir amorosamente aos seus irmãos (13. Vd. tb. 1Co
8.9,13).
É preciso, portanto, compreender que a pureza e o amor são as
cercas da liberdade do crente. É somente dentro desses limites
que a liberdade se mantém saudável e verdadeira, sendo certo
114 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

que ao ultrapassar tais fronteiras, ela se desfigura, transformando-


se em escravidão ao pecado (Jo 8.34; 2Pe.2.17-19).
A ênfase sobre o amor aos irmãos é notável no parágrafo
em análise. Paulo deixa transparecer com isso o fato de que os
crentes da Galácia não tinham apenas problemas doutrinários.
Eles também tinham sérios problemas de relacionamento,
havendo terríveis atritos entre os crentes. Fica evidente no texto
que na Galácia as igrejas acolhiam falsos mestres e feriam
verdadeiros irmãos. Por isso, Paulo, além de mostrar que a
liberdade que Cristo dá deve conduzir ao amor que se dispõe
ao serviço dos santos, também demonstra que o dever de amar
consta da própria Lei como uma ordem que resume todos os
demais mandamentos (14).11 É óbvio que a menção da Lei aqui
não é despropositada. Paulo está escrevendo a pessoas que
diziam ter os preceitos mosaicos em alta conta. Na verdade, é
como se dissesse: “Vocês realmente querem cumprir a Lei?
Muito bem. Então amem-se uns outros, pois toda a Lei se
resume nesse mandamento e, curiosamente, ele não tem
recebido a atenção devida da parte de vocês, que se apresentam
como zelosos cumpridores das determinações de Moisés!”.
No v. 15, percebe-se o grau de atrito que havia entre os
crentes da Galácia. Ao usar os verbos “morder” (daknw) ´ e
“devorar” (katesqiw),´ o apóstolo sugere a figura de animais
selvagens brigando ferozmente entre si, cada qual tentando
brutalmente estraçalhar e destruir o outro, em meio à completa
balbúrdia, gritos e confusão. É claro que a figura sugerida
por Paulo tem um toque de exagero, com o intuito de dar maior
impacto à admoestação. No entanto, considerando a lista das
“obras da carne” constante de 5.19-21, bem como a exortação
de 5.26, parece certo que nas igrejas da Galácia existiam
chocantes problemas de inimizade.
A partir disso tudo, é fácil concluir que o ministério dos
mestres legalistas, com sua ênfase sobre uma religião
mecânica e cerimonialista, conduzia os homens ao apego a
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 115

meras formalidades exteriores. Assim, os crentes não davam


atenção às virtudes espirituais e jamais as cultivavam. O
resultado era a divisão e a discórdia, pois os vícios da alma
de uma pessoa fatalmente são sentidos por aqueles que estão
ao seu redor. Esse fato pode ser verificado em qualquer grupo
social. Aliás, é curioso perceber na atualidade, que, tal como
na Galácia, igrejas apegadas a um sem número de regras são
verdadeiros palcos de intrigas, provocações e calúnias. A
religiosidade puramente externa consome totalmente o tempo
e a atenção, não deixando espaço para o cuidado da
espiritualidade interna. Ora, quando se descuida do coração,
ele passa a produzir espinhos que cedo ferem os que se
aproximam. Paulo alerta que esse estado de coisas, com as
brigas que gera, fatalmente conduz à destruição de todos, ou
seja, a feridas incuráveis em indivíduos e ao fim da igreja
como um núcleo cristão de comunhão e testemunho (Jo 13.35).

A VIDA SOB O CONTROLE DO ESPÍRITO


GÁLATAS 5.16-26
16. Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum
satisfarão os desejos da carne.
17. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o
Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito
um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam.
18. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão
debaixo da Lei.
19. Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade
sexual, impureza e libertinagem;
20. idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira,
egoísmo, dissensões, facções
21. e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu
os advirto, como antes já os adverti: Aqueles que praticam
essas coisas não herdarão o Reino de Deus.
22. Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência,
amabilidade, bondade, fidelidade,
116 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

23. mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não


há lei.
24. Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e os seus desejos.
25. Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo
Espírito.
26. Não sejamos presunçosos, provocando uns aos outros
e tendo inveja uns dos outros.

O remédio para os graves conflitos interpessoais que


agitavam as igrejas da Galácia é apresentado por Paulo no v.
16. As palavras “por isso digo” (legw´ de) ´ indicam que o que
está para ser dito é a solução para o problema descrito no v.
15. Assim, segundo Paulo, o única meio de superar aquela
forte inimizade que havia entre os crentes da Galácia era a
submissão à influência do Espírito Santo.
O apóstolo descreve essa maneira de viver como “andar
´
no Espírito’ (pneumati peripateite). O significado básico
dessa expressão, como já sugerido, é um caminhar em que o
indivíduo permite que o Espírito de Deus controle suas reações
e guie a sua vontade (Veja tb. v. 18).12 O homem que se dispõe
a isso diz “não” para suas inclinações pessoais (Lc 9.23) e
“sim” para as orientações do Espírito de Deus (Rm 8.5).
Frise-se que só os cristãos podem dispor dessa maneira de
viver, uma vez que somente neles o Espírito Santo habita,
apontando-lhes o modo de proceder (Rm 8.9,14). Deve também
ficar claro que andar no Espírito não é uma experiência mística,
em que o crente tem sua personalidade anulada, vivendo como
que num êxtase. Antes, trata-se de um estilo de vida a que o
cristão se submete voluntária e conscientemente, sabendo que
não existe outra maneira pela qual seja possível viver o
cristianismo de modo real e satisfatório (Rm 8.8).
O que vem em decorrência do andar no Espírito é uma
conduta em que a carne, ou seja, a inclinação pecaminosa do
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 117

individuo, não é satisfeita, ou seja, tal tendência é como que


mortificada (Rm 8.13). É claro que o apóstolo não está dizendo
aqui que o submeter-se ao controle de Deus levará o crente a
uma vida sem pecado. A própria experiência de Paulo mostra
que esse ideal é impossível neste mundo (Rm 7.15-25). Porém,
é fora de discussão que o crente que se sujeita às orientações
e influência do Espírito Santo não vive sob o domínio de suas
inclinações naturais. Estas, é claro, não desaparecem num
crente assim, mas também não são capazes de tomar as rédeas
de sua vida e ditar-lhe a conduta. No cristão que vive pelo
Espírito, o pecado mostra-se presente, perturbando-o,
entristecendo-o e contrariando sua vontade, mas isso nunca
até o ponto de estabelecer-se no centro de sua vida, reinando
soberano (Rm 6.12-14).
Dando seguimento ao seu ensino, Paulo destaca que há
no íntimo do cristão uma verdadeira batalha entre sua
natureza pecaminosa e as orientações do Espírito Santo que
nele habita. De acordo com o ensino do apóstolo, de um lado
há as inclinações naturais tentando determinar a conduta do
homem já regenerado, enquanto de outro lado há a atuação
do Espírito que insiste em guiar a vida daqueles que pertencem
a Deus (17). Paulo diz que essa batalha, travada no âmbito
da vontade, faz que as decisões morais dos crentes nunca
sejam absolutamente livres. Antes, sempre resultam ou dos
impulsos carnais ou da obra do Espírito de Deus.
Deve ficar claro que, com a frase “... de modo que vocês
não fazem o que desejam” (NVI), Paulo não está dizendo que
o crente não tem vontade própria. Antes, a frase aponta para
o fato de que a vontade moral do cristão sempre sofre
influências determinantes. Com isso o apóstolo resvala num
tema da teologia cristã que tem sido objeto de calorosos
debates: a vontade livre. Ainda que esse assunto tenha
inúmeras ramificações, à luz do texto em análise, parece certo
dizer que, no que diz respeito ao cristão, a vontade moral
118 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

sempre reage aos impulsos de uma entre duas forças, isto é,


ou o crente toma decisões induzido por suas paixões carnais,
ou o faz sob a direção do Espírito. Em todo caso, sua vontade
própria sempre se expressa no campo da ética respondendo a
fatores que a contrariam, mas que fatalmente a conduzem
nesta ou naquela direção (Rm 7.19; Fp 2.13). Assim, parece
que a liberdade plena da vontade, nos termos como é
geralmente entendida, não encontra suporte para sustentação
no ensino paulino.
O fato é que, no crente, a vontade é um misto de bem e mal.
Por isso, não importa o rumo que tome, seu querer sempre será
contrariado. Se optar pelo mal, sentir-se-á frustrado, pois o bem
que ele aprova e no qual tem prazer não será alcançado. Se, por
outro lado, optar pelo bem, terá de fazê-lo dizendo “não” para si
mesmo, ou seja, para aquilo que seu coração naturalmente deseja
(Lc 9.23; 1Co 9.27). Assim, enquanto o pecado estiver em seus
membros (Rm 7.23), o cristão jamais poderá dizer que desfruta
de plena liberdade em suas decisões morais.
Paulo sabia que as discórdias existentes nas igrejas da
Galácia (vv. 13-15) eram o resultado indesejado daquela
batalha entre os impulsos da carne a que aqueles crentes
estavam dando vazão, e as orientações do Espírito. Sobre eles
recaía, portanto, o dever de administrar corretamente essas
inclinações, refreando a natureza pecaminosa e submetendo
seus desejos aos ensinos do Espírito.
Isso tudo conduz o apóstolo a uma implicação óbvia: se
era ao Espírito que os gálatas deviam sujeição, isso significava
também que, como argumenta em toda a carta, seu senhor
não poderia ser a Lei (18). Nesse ponto, é como se o apóstolo
estivesse dizendo: “Essas brigas que há entre vocês são
reflexos do domínio da carne em suas vidas e só poderão
desaparecer se houver submissão às orientações do Espírito
Santo. Esse Espírito, de fato, atua em vocês, opondo-se às
suas inclinações carnais. Ora, se o Espírito de Deus quer
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 119

controlar sua vida, é óbvio que sua obediência deve ser a ele
e não às normas da Lei Mosaica, como os mestres judaicos
têm lhes ensinado”.
De tudo isso se depreende o seguinte: há três influências
sob as quais é possível que um crente se coloque. Essas três
influências são: a Lei, a carne e o Espírito.13 Sob as duas
primeiras, o cristão jamais conseguirá agradar a Deus (Rm
7.9; 8.8) e, para desespero de Paulo, era exatamente a essas
duas que os gálatas se sujeitavam. Já a terceira influência, a
do Espírito, permanece a única sob a qual o crente pode
realmente fazer a vontade do Senhor (v. 16). Debaixo dela, a
força da carne é neutralizada e o cristão é capacitado
sobrenaturalmente a cumprir as justas exigências da Lei, da
forma como Deus requer (Rm 7.6; 8.4).
Nos vv. 19-21, o apóstolo apresenta uma lista da qual
constam quinze “obras da carne” específicas. Paulo pretende
mostrar vividamente o modo como as inclinações na natureza
pecaminosa se manifestam no dia-a-dia das pessoas que se
deixam dominar por ela. Fica claro aqui, antes de tudo, que a
carne induz à realização de certas obras e que essas obras
são facilmente identificáveis. O termo traduzido na NVI por
“manifestas” (fanera) indica que tais obras são praticadas
sem qualquer discrição, sendo expostas diante de todos numa
chocante demonstração de ausência de escrúpulos.
A lista de obras da carne pode ser dividida em quatro grupos
distintos de pecados. O primeiro deles abrange os pecados de
natureza sexual. Estes são: imoralidade sexual, impureza e
libertinagem (19). O termo traduzido por “imoralidade sexual”
(porneia)
´ abrange todos os tipos de relação sexual ilícita, desde a
´ sugere
fornicação até a prostituição. Já a “impureza” (akaqarsia)
a idéia de podridão no íntimo, ou seja, as más intenções na área
sexual ainda que também signifique imoralidade de um modo
geral. Quanto à “libertinagem” (aselgeia)
´ a palavra poderia ser
traduzida como “lascívia” (cf. ARA) ou “sensualidade”. Porém, o
120 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

termo pode denotar um comportamento realmente ousado, próprio


daquele que se entrega à licenciosidade, assumindo um modo
devasso, impudico e dissoluto de viver.
O segundo grupo de obras da carne mencionado pelo
apóstolo pode ser classificado como composto de pecados de
natureza religiosa. Paulo menciona, no v. 20, a idolatria
(eidwlolatria) ´ e a feitiçaria (farmakeia).´ A primeira é a
adoração de ídolos ou imagens de falsos deuses.14 Quanto à
feitiçaria, a palavra sugere inicialmente a prática da magia
que faz uso de drogas e poções (a partir do termo grego temos,
em português, a palavra “farmácia”). Porém, num sentido
amplo, “feitiçaria” é qualquer arte de bruxaria, magia ou
encantamentos. A prática popular de “simpatias” insere-se
perfeitamente no conceito que Paulo repugna aqui. Assim
também o uso de drogas no preparo do indivíduo para
exercícios mentais próprios das religiões orientais.
É curioso notar que a natureza pecaminosa também inclina
o homem para a religião falsa e para a superstição. Assim, os
atos cultuais realizados pelos adeptos de qualquer seita idólatra
e as crendices populares não são meros frutos da ignorância,
do costume ou da tradição. Antes, refletem o caráter reprovado
de quem se envolve com elas; um caráter em que a natureza
pecaminosa reina governando a mente e as ações do indivíduo.
Essa é a “psicologia da religião” ensinada por Paulo.
Como é sabido, a sociedade pagã do primeiro século da Era
Cristã era caracterizada tanto por um baixo nível moral quanto
pelo desvio religioso e, sem dúvida, os leitores da epístola
estavam familiarizados com as formas de comportamento
referidas pelo apóstolo. Portanto, não há dúvida de que, nesse
ponto, seu ensino assume um caráter vívido, pois no contexto
em que viviam os gálatas, não faltavam exemplos das coisas
até aqui mencionadas. Assim, ao definir toda essa conduta
como carnal, Paulo incita seus leitores a não adotarem o
comportamento próprio da sociedade que os cercava.
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 121

Depois de listar os pecados na área da religião, Paulo


prossegue enumerando os pecados de natureza relacional,
isto é, aqueles que normalmente se insinuam no âmbito do
convívio social, destruindo os relacionamentos interpessoais.
Esse grupo concentra o maior número de pecados (oito, ao
todo), certamente porque era exatamente na esfera da
convivência que os gálatas tinham mais problemas (vv. 14-
15, 26). São eles ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo,
dissensões, facções e inveja (20-21).
O ódio (Lit. “ódios”. Gr. — ecqrai)
´ não é aqui um mero
sentimento. Trata-se da manutenção de inimizades. O homem
carnal considera-se inimigo de certas pessoas e age como tal,
alimentando suas hostilidades. Na igreja, é o crente que
sempre está “de mal” com alguém; constantemente
construindo barreiras entre si e os outros. Trata-se do homem
que tem uma forte inclinação para arrumar encrencas e
geralmente é bem sucedido nesse propósito.
´
O vocábulo “discórdia” (erij) denota a rivalidade que
aflora em contendas. Discussões verbais (1Co 1.11; Tt 3.9) e
provocações (Fp 1.15) são manifestações desse tipo de pecado.
Quanto ao ciúme (zhloj. Daí a palavra “zelo”, em português),
seu significado aqui é o sentimento de inveja, o incômodo
que nasce no coração de alguém quando vê o sucesso, o
destaque ou o simples bem estar de outrem (At 5.17). O
invejoso não se conforma com as conquistas de outra pessoa
e, cedo ou tarde, esse seu inconformismo se expressa em
maledicência e oposição. É por isso que Tiago coloca a inveja
na raiz de todas as confusões e coisas ruins que surgem na
igreja e em qualquer outro grupo de pessoas (Tg 3.14-16).
´
A palavra que vem a seguir é “ira” (Lit. “iras”. Gr. qumoi).
Significa, basicamente, raiva e furor (Lc 4.28-29). Paulo tem
em mente aqui as explosões de cólera, sempre acompanhadas
de gritos, ameaças e ofensas. O homem carnal reage de modo
agressivo bem depressa e por muito pouco. Ele também se
122 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

orgulha por ser assim e até mesmo gaba-se dos ataques que,
cheio de ira, empreendeu contra seus semelhantes nesta ou
naquela ocasião.
O próximo item na lista de Paulo é “egoísmo”, que no texto
também aparece no plural (eriqeia). O vocábulo denota a
ambição egoísta, também mencionada em Tiago 3.14-16 como
a causa de tudo o que é ruim nas relações entre os homens. O
indivíduo que pratica esse pecado é aquele que faz as coisas
visando a glória pessoal, em detrimento dos interesses e bem
estar dos outros, chegando mesmo a desrespeitá-los (v. 26).
Para ele o cuidado e a promoção de si mesmo estão acima de
tudo e de todos (Fp 2.3-4).
Quanto às dissensões (dixostasiai), ´ são as divisões e
partidos que muitas vezes se insinuam até mesmo dentro das
´
igrejas (Rm 16.17). Já as facções (aireseis), referem-se a
conflitos de opinião (1Co 11.19). Da palavra grega que aparece
aqui surgiu o termo “heresia”, usado para descrever conceitos
doutrinários que causam cisma dentro da igreja.
A última palavra pertencente à terceira classe de pecados
´
alistados por Paulo é traduzida por “inveja” (fqonoi). Seu
significado é, basicamente, o mesmo atribuído a zhloj (Veja
acima).
O quarto e último grupo de obras da carne abrange os
pecados de desregramento que Paulo especifica mencionando
a embriaguez e as orgias (21).
´
A embriaguez (meqai) é o uso abusivo da bebida alcoólica.
O cristianismo não ensina a abstinência total do álcool (Jo
2.3-10; 1Tm 5.23)15, mas reprova a bebedice (Pv 20.1; Is 5.11-
12,22; 1Tm 3.2-3,8; Tt 2.3). Diferentemente da concepção
moderna, a Bíblia refere-se à embriaguez como um pecado
que impõe a quem o pratica a necessidade de arrependimento
(Rm 13.13-14) e não como uma doença pela qual o homem
não pode ser responsabilizado. Assim, Paulo alista a bebedice
entre as obras da carne, mais especificamente entre os pecados
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 123

de desregramento, vendo-a como um reflexo da busca egoísta


e irresponsável pelo prazer que, inegavelmente, a bebida traz
tanto ao paladar quanto aos sentimentos (Sl 104.14-15; Pv
31.6-7). O beberrão é reprovado por Deus porque atende aos
impulsos de sua natureza pecaminosa que, na bebida, busca
a todo custo o prazer do corpo e o alívio da mente. Além disso,
invariavelmente, o resultado dessa busca descontrolada é a
escravidão ao vício, a miséria (Pv 21.17) e a degradação do
indivíduo (Is 28.7; Ef 5.18).
A mesma busca desenfreada pelo prazer dos sentidos que
move o escravo da bebida também está presente naqueles
que se entregam às orgias. A palavra usada por Paulo aqui
(kwmoi) denota um banquete festivo em que as pessoas se
entregam à glutonaria e a todos os tipos de prazer corporal.
A orgia sexual compõe o quadro que a palavra sugere. No
ambiente pagão do século 1º, essas festas devassas eram
comuns (1Pe 4.3), fazendo parte, inclusive, dos cultos devidos
aos deuses.16
Com a expressão “coisas semelhantes”, Paulo indica que a
lista de obras da carne aqui apresentada não é exaustiva. Ele
também lembra que já havia falado sobre essas coisas com os
gálatas numa outra ocasião, provavelmente ao tempo de sua
visita àquela região (At 14.1-23). Naquela oportunidade, assim
como agora, o apóstolo advertira a todos que “aqueles que
praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus”. Isso
significa que as pessoas que vivem sob o domínio das obras da
carne revelam sua verdadeira condição espiritual de incrédulos
perdidos. Ainda que muitos se apresentem como cristãos, num
discurso que revela conhecimento das principais doutrinas
bíblicas e até certo envolvimento com a igreja de Deus, o fato é
que uma vida onde o pecado reina jamais experimentou
realmente a redenção que Cristo dá. A verdade é que quem
vive no pecado, mostra que nunca foi liberto do pecado e, ao
final, receberá o galardão do pecado (Ap 22.14-15).
124 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Em contraste com as obras da carne, Paulo apresenta o


“fruto do Espírito” (22). Há quem diga que a palavra fruto
(kartoj) aparece no singular porque Paulo queria ensinar
que as virtudes que vêm alistadas a seguir surgem todas
juntas, como uma coisa só, na vida do homem espiritual. Isso,
porém, dificilmente estava na mente do apóstolo, mesmo
porque seria muito improvável que uma lição tão importante
e surpreendente fosse transmitida por ele de forma meramente
implícita. Ademais, a própria experiência cristã mostra que
as virtudes espirituais nem sempre se desenvolvem
simultaneamente na vida do indivíduo.
Assim, Paulo não tinha nenhuma lição oculta no uso do
singular. Ele queria simplesmente afirmar que a obra do
Espírito no crente resulta num produto e que esse produto se
manifesta em virtudes variadas. A lição principal que Paulo
dirige aos gálatas com a menção do fruto do Espírito é que o
caráter cristão nasce como resultado da obra sobrenatural de
Deus e não em decorrência de uma rígida disciplina moral e
legalista (Rm 8.4).
´
A virtude que encabeça a lista de Paulo é o amor (agaph),
termo usado para descrever uma disposição favorável em
relação ao outro, que chega ao ponto do sacrifício, se preciso
for, para beneficiá-lo (2.20; 5.13).17 O amor é a forma como a
fé verdadeira se expressa (5.6); e os gálatas precisavam
crescer nessa virtude, já que o convívio entre eles era marcado
por terríveis discórdias (5.14-15, 26).
Paulo prossegue mencionando a alegria (xara) que é,
basicamente, a doce satisfação que existe em quem tem os
anseios realizados. Desse conceito se depreende que o
invejoso é carente de alegria, posto que se sente frustrado
por não ter o que é do outro. Esse era o caso dos gálatas
(5.26).
Na Epístola aos Filipenses, Paulo menciona a alegria mais
do que em qualquer outro lugar. Curiosamente, ele escreveu
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 125

essa carta quando estava em prisão domiciliar em Roma, o


que demonstra que a alegria que advém da obra do Espírito é
uma satisfação decorrente da consciência de que Deus está
atuando e que, qualquer que seja o rumo das coisas, sua
bondade boa e santa sempre estará por trás de tudo (Fp 2.17).
A alegria cristã também consiste em ter na pessoa e obra de
Deus a principal fonte de vibração e entusiasmo (Fp 4.4).
A terceira virtude alistada como fruto do Espírito é a paz
(åéñçíç), conceito que contrasta com oito obras da carne
mencionadas por Paulo nos vv. 20-21. Paz, considerada em seu
aspecto interior, é serenidade mental (Fp 4.7). Exteriormente
se expressa em harmonia entre as pessoas (Rm 12.18) e
ausência de desordem (1Co 14.33). Deus é um Deus de paz (Fp
4.9) que nos chamou para vivermos em paz (1Co 7.15b).
Longanimidade (makroqumia) ´ vem a seguir. Longânimo é
aquele que permanece firme, perseverando mesmo em face
dos mais severos ataques da vida, e sendo paciente diante
das provocações dos homens (2Tm 4.2).
O quinto traço do homem que vive no Espírito é a
´
benignidade (xrhstothj), termo usado a princípio para
descrever a pessoa que faz o bem, sendo generosa em seus
atos de benevolência. O termo que vem a seguir, bondade
(agaqwsunh)´ é quase um sinônimo de benignidade. Contudo,
é bem provável que o apóstolo concebesse alguma distinção
entre as duas palavras. No afã de manter mais nítida essa
´
distinção, a NVI traduziu xrhstothj por “amabilidade”, ou
seja, a postura de quem trata os outros com docilidade, livre
de qualquer aspereza. De fato, há o consenso de que a primeira
palavra se refere mais à atitude de alguém, enquanto a
segunda denota uma carga maior de ação. Essas distinções
são relevantes, pois pode-se encontrar alguém amável que
não faz o bem; ou ainda alguém que faz o bem, mas não é
amável. Assim, as duas virtudes juntas descreveriam o homem
dócil que também é pródigo em seus atos de bondade.
126 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

´
A lista de Paulo prossegue, e fé (pistij) é a palavra que
vem a seguir. Considerando, porém, que a fé é um elemento
básico nas relações do homem com Deus, constituindo-se no
fator que possibilita o início da vida cristã (Rm 5.1-2; Gl 3.2),
dificilmente Paulo, no presente contexto, incluiria a fé em Deus
na lista em pauta. Fé em Deus é raiz, não fruto. Por isso,
parece correto entender o termo usado por Paulo como
“fidelidade”, aliás, uma tradução perfeitamente possível. De
fato, a palavra pistij
´ é usada para descrever a pessoa
comprometida e leal (Rm 3.3; Tt 2.9-10). Assim, certamente
Paulo quer ensinar que o homem espiritual é alguém confiável,
incapaz de trair a verdade (especialmente a doutrinária) e fiel
nas suas relações com as pessoas. Os crentes da Galácia não
tinham essa virtude (1.6; 4.14-16).
:

O vocábulo mansidão (prauthj) ´ inicia o v. 23. Manso é o


homem brando, aquele que não é dominado pela ira. Não se
trata de alguém que nunca se irrita, mas da pessoa que não
tem o rancor e a agressividade como marcas distintivas. Cristo,
o modelo maior, se apresenta como manso (Mt 11.29), ainda
que sejam notórias as suas eventuais manifestações severas
de reprovação (Mt 21.12-13; 23.33). Andando em mansidão,
o crente desestimula a discórdia, enfraquecendo o império das
obras da carne dentro da igreja.
Pondo fim à sua bela lista, o apóstolo menciona o domínio
´
próprio (egkrateia) que é o controle das inclinações naturais.
Literalmente a palavra aponta para o ato de agarrar ou
segurar o eu, o que requer do crente certo grau de empenho
(2Pe 1.5-6). O domínio próprio se constitui no avesso do modo
de vida dos incrédulos. Ensinar essa virtude produz grandes
incômodos nos homens que vivem dando plena expressão
aos seus instintos naturais (At 24.25).
Evocando o zelo das igrejas da Galácia pela Lei, Paulo, numa
branda ironia, recorda que ninguém transgride os
mandamentos ao praticar as virtudes que ele alistou (23 in
fine). Assim, se quisessem viver sem quebrar a Lei, os gálatas
O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS 127

tinham que se colocar sob o domínio e influência do Espírito


Santo, crescendo no fruto que esse mesmo Espírito produz. De
fato, em outro lugar, Paulo ensina que o crente que vive segundo
o Espírito tem um procedimento no qual se percebe o
cumprimento substancial das justas exigências da Lei (Rm 8.4).
O apóstolo insiste que não é a prática legalista que santifica
o homem. Ele realça que para se livrar do domínio das
inclinações do pecado é preciso, antes de tudo, pertencer a
Cristo (24).18 Isso não significa que no crente o pecado está
morto, mas sim que, quando passa a pertencer a Cristo, o
homem experimenta a neutralização do poder da carne que,
como um homem crucificado, se vê despojada de sua força.19
É claro que aquele que pertence a Cristo ainda comete pecados
(1Jo 1.8-10). Contudo, ao crente são dadas condições de viver
de tal modo que a iniqüidade não ocupe mais o trono de sua
vida (Rm 6.12-14). Essas condições advêm da habitação do
Espírito Santo nele.
Resta ao crente agora ser zeloso e submeter-se ao controle
do Espírito que nele está (v. 16). Já vivemos no Espírito, ou
seja, quando passamos a pertencer a Cristo fomos inseridos
na esfera de atuação do Espírito de Deus.20 Isso é fato
consumado. Agora, porém, é preciso andar no Espírito (24), o
que não nos advém como num passe de mágica, mas antes
implica o dever de acolher suas orientações com perseverança
e responsabilidade.
Assim, o crente já está no Espírito, devendo agora andar
como ele determina. Em resumo, o cristão tem o dever de ajustar
sua vida à nova realidade em que agora se encontra. Tal como
o homem que entrou para o casamento deve conformar sua
vida à realidade de alguém casado, assim também o homem
que, pela conversão, entrou para a vida no Espírito deve andar
como alguém controlado por esse mesmo Espírito.
Na Galácia, essa harmonização entre viver no Espírito e
andar no Espírito ocorreria quando os crentes deixassem de
128 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

lado o orgulho, as provocações mútuas e as invejas, o que


reforça o ensino de que, para andar no Espírito, é necessária
consciente e perseverante sujeição.
o evangelho verdadeiro e
6. os deveres cristãos

A verdadeira prática da vida cristã se manifesta na dócil


disposição de restaurar o irmão que caiu, no cuidado em face
da tentação, na análise honesta de si mesmo, na submissão
ao controle do Espírito e na prática do bem. O legalismo, ao
contrário, busca apenas a aprovação do mundo, algo que o
crente despreza por ter na cruz de Cristo todo o seu prazer.

CUIDANDO DOS OUTROS E DE SI MESMO


GÁLATAS 6.1-5
1. Irmãos, se alguém for surpreendido em algum pecado,
vocês, que são espirituais, deverão restaurá-lo com
mansidão. Cuide-se, porém, cada um para que também não
seja tentado.
2. Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim,
cumpram a lei de Cristo.
3. Se alguém se considera alguma coisa, não sendo nada,
engana-se a si mesmo.
4. Cada um examine os próprios atos, e então poderá
orgulhar-se de si mesmo, sem se comparar com ninguém,
5. pois cada um deverá levar a própria carga.

A partir da análise do Fruto do Espírito, em contraste com


as obras da carne, descobre-se que a vida cristã tem uma
130 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

dimensão marcantemente relacional. O homem espiritual


apresenta marcas de caráter que se manifestam especialmente
no trato com as pessoas ao seu redor. Assim, nas orientações
constantes do início do capítulo 6, Paulo ainda mantém o foco
nesse aspecto da vida de quem anda no Espírito, apontando
agora a forma correta de lidar com o irmão que cai no erro.
No versículo 1, Paulo se dirige aos “irmãos”, ou seja,
àqueles que partilhavam com ele da genuína fé cristã. Como
se sabe, nem todos nas igrejas da Galácia podiam ser
classificados desse modo (5.4). Por isso, o apóstolo aponta
com maior clareza a quem se dirigem as orientações que está
prestes a transmitir.
O parágrafo começa com uma hipótese: “se alguém for
surpreendido em algum pecado” (NVI). É provável que essas
palavras vislumbrem a possibilidade de, na dinâmica dos
relacionamentos entre os crentes, acontecer de um irmão
flagrar outro praticando uma das “obras da carne”. De fato, o
verbo que Paulo usa aqui (prolambanw)´ traduzido nas bíblias
em português por “surpreender”, aponta fortemente para o
sentido de pegar de surpresa. Há também, contudo, a
possibilidade da hipótese referir-se a alguém que foi pego de
surpresa pelo próprio pecado, caindo repentinamente.1
Seja qual for o caso que Paulo tinha em mente, o fato é que
a questão que levanta se refere a alguém que cometeu uma
falta. A palavra que Paulo usa aqui para se referir ao pecado
´
(paraptwma) significa “passo em falso”. Denota a situação
de quem, numa caminhada, desliza e cai para o lado. Desse
modo, tudo indica que Paulo não está tratando aqui do pecador
contumaz ou do homem obstinado na prática do mal. Antes,
tem os olhos voltados para o crente sincero que, ao longo da
jornada, tropeça em virtude do cansaço, da sua própria
fraqueza ou do peso das circunstâncias.
Diante de um irmão nessas condições, os que são
“espirituais” (pneumatikoi), ou seja, os que vivem no Espírito
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 131

e andam no Espírito (5.25), mantendo-se debaixo de sua


´
influência e controle2, têm o dever de corrigi-lo (katartizw),
isto é, atuar como restauradores de sua vida prejudicada por
conta da má conduta. De fato, corrigir aqui tem o sentido de
reparar algo quebrado3, o que mostra que um dos deveres mais
nobres do crente maduro é recuperar um irmão que, ao dar um
passo em falso, caiu e sofreu graves danos. Evocando ainda
as virtudes do Fruto do Espírito, Paulo ensina que esse trabalho
de recuperação deve ser feito com espírito de brandura, ou seja,
:

´
com a mansidão (prauthj) que mencionou em 5.23.
Os crentes “espirituais”, ou seja, os responsáveis pela
recuperação de um irmão que pecou, não são pessoas livres
do perigo da queda. Por isso, Paulo se dirige, anda no v. 1, a
esses irmãos, orientando-os no sentido de evitar qualquer
tentação que os leve à prática do mal. Segundo Paulo, o crente
´ ficar atento, observar cuidadosamente
deve vigiar (skopew),
as circunstâncias ao seu redor e, dessa forma, detectar os
momentos, os lugares e as áreas em que a tentação pode
surgir para, então, evitá-la. Aliás, muitas vidas não teriam se
arruinado se tivessem sido mais cautelosas, detectando as
fontes de tentação e fugindo delas. Assim, os crentes, mesmo
os mais maduros (aliás, lembremos que Paulo se dirige
exatamente a esses aqui), não devem se expor ao perigo. A
vigilância é o preço que se paga pela pureza.
No v. 2 Paulo ensina que na igreja as pessoas devem levar
as cargas umas das outras. Carga (baroj) ´ sugere um peso
excessivo, difícil de carregar e capaz de prostrar quem está
sob ele. O contexto aqui aponta para os fardos que um irmão
carrega em decorrência de sua fraqueza moral e do pecado
em que caiu. Os gálatas, preocupados em observar aspectos
exteriores da Lei Mosaica, deixavam de lado o cuidado fraternal
(5.15,26). Paulo, então, oferece a eles, que tanto valorizam a
Lei, uma outra lei: a Lei de Cristo. De fato, o Senhor enunciou
aos seus discípulos um novo mandamento. Ele disse: “Um
132 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como


eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros.” (Jo 13.34.
Veja-se tb. Jo 15.12,17). Para Paulo, o cumprimento dessa
ordem transcende o mero sentimento de simpatia e afeto.
Cumpri-la implica fazer algo. Por isso, o apóstolo mostra aqui
que uma forma de obedecer ao novo mandamento de Cristo é
tomar sobre si uma parte do peso do irmão que sofre em
virtude da falta que cometeu.
Levar essas cargas, porém, requer a atitude humilde de um
servo (5.13) e, infelizmente, muitos crentes pensam de si mais
do que convém, de modo que, movidos por essa ilusão, negam-
se a se humilhar na prática de servir um irmão fraco. Antes,
mostram-se orgulhosos, sentem-se superiores e se tornam
rígidos e cruéis no trato com quem caiu. É a esse grupo de
crentes que Paulo se refere no v. 3, dizendo que o indivíduo
que tem uma visão muito elevada de si mesmo dentro da igreja,
está se enganando, uma vez que não é nada, ou seja, não está
acima de ninguém, posto que todos estamos sujeitos à queda.
Os falsos mestres tinham a atitude soberba descrita acima,
tanto que instigavam os gálatas a se circuncidarem justamente
para que fossem aplaudidos pelo mundo e se gloriassem no
seu sucesso em conquistar prosélitos (6.12-13). Pessoas com
essa postura, jamais se colocam no mesmo nível do irmão
que tropeçou, achando-se maiores do que ele e pensando
pertencer a uma elite espiritual dentro da igreja. Tratam o
que caiu com desprezo e se gloriam por não terem sido fracos
como ele. Ademais, de sua parte não fazem nada para
recuperá-lo, notando-o apenas com o propósito de se gloriar
por não ter agido de forma semelhante. Paulo diz a essas
pessoas no v. 4 que se alguém quiser gloriar-se deve fazê-lo
ao dar provas de seu próprio empenho na vida cristã, o que,
aliás, abrange socorrer os irmãos feridos.
O v. 5 parece entrar em choque com o v. 2. Porém, a contradição
é apenas aparente. No v. 2 Paulo fala sobre o dever de ajudar o
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 133

irmão que está curvado sob o peso de dificuldades excessivas,


as quais lhe sobrevieram por causa de um desvio moral. Já no v.
5 ele lembra aqueles que se apresentam como superiores e nada
fazem, que cada um tem seu fardo, ou seja, seu conjunto de
fraquezas pelas quais é pessoalmente responsável. Em vez de
observar as dos outros e se gloriar nelas, o crente deve cuidar
das suas, posto que é por estas e não por aquelas que há de
responder um dia diante de Deus. Basicamente, portanto, as
cargas mencionadas no v. 2 são os problemas de um irmão
decorrentes do seu tropeço, enquanto que o fardo mencionado
no v. 5 são as fraquezas que cada um tem em sua vida e com as
quais tem o dever intransferível de lutar.

A COLHEITA FUTURA
GÁLATAS 6.6-10
6. O que está sendo instruído na palavra partilhe todas as
coisas boas com aquele que o instrui.
7. Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o
que o homem semear, isso também colherá.
8. Quem semeia para a sua carne, da carne colherá
destruição; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito
colherá a vida eterna.
9. E não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo
próprio colheremos, se não desanimarmos.
10. Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem
a todos, especialmente aos da família da fé.

A benignidade dos crentes não deve ser direcionada


unicamente àqueles que são vítimas quebrantadas do seu
próprio pecado. Paulo sabia que a religiosidade mecânica e
exterior do legalismo tinha esfriado não só o afeto dos crentes
nas suas relações entre si, mas também o amor pelo próprio
apóstolo, seu verdadeiro instrutor espiritual (4.12-16). Para
piorar a situação, os falsos mestres infiltrados naquelas igrejas
134 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

trabalhavam intensamente para colocar os gálatas contra


Paulo (4.17). Incitado por esses fatos tão preocupantes, no v.
6 o apóstolo exorta os crentes acerca do dever da generosa
benevolência em prol dos verdadeiros mestres da Palavra.
´
O texto ensina que os que são ensinados (kathxoumenoj)
na Palavra devem compartilhar todas as coisas boas com
aqueles que os instruem (kathxew). ´ Aquilo que é bom
´
(agaqoj), a que Paulo se refere aqui, tem um sentido tanto
moral quanto material. Ele quer, portanto, que os gálatas
aprendam a oferecer aos mestres da Palavra sua amizade,
hospitalidade e simpatia, bem como recursos para o sustento
físico que possibilitem um envolvimento maior com o ensino
da igreja (1Co 9.7-14; 1Tm 5.17-18).4
Toda a exortação de Paulo referente ao dever de praticar o
bem, tanto em face dos irmãos comuns quanto dos ministros
da Palavra, deve ser acolhida porque os atos dos homens se
assemelham a uma semeadura (7). A tendência das pessoas
é acreditar que suas ações são estéreis, que o que fazem não
é capaz de gerar nada mais tarde. Paulo sabia que o coração
humano facilmente se convence de que as coisas que o homem
realiza não terão implicações futuras. Por isso diz: “Não se
deixem enganar!”
De fato, até mesmo a experiência humana mostra em certa
medida que nossos atos são como sementes boas ou más,
sendo tolice pensar que, ao lançá-los ao solo, nada poderão
produzir. Cair nesse engano é zombar de Deus. Isso porque
foi o próprio Senhor quem estabeleceu uma lei moral no
universo, de acordo com a qual a conduta ética é capaz de
gerar resultados bons ou maus para o próprio ser humano
que a adota. Essa “lei” mostra o quanto Deus é justo e o
quanto se inclina a recompensar o bem e punir o erro.5
Assim, quando alguém despreza essa verdade, está com
isso dizendo que o modo como Deus diz que administra a
história, na realidade não funciona, ou que essa
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 135

administração nem mesmo existe, sendo perfeitamente


possível praticar o mal e viver para sempre desfrutando de
paz e segurança. É essa atitude que Paulo descreve como
zombar de Deus, enfatizando em seguida que o homem colherá
sim o que, ao longo de sua vida, plantou.
Paulo prossegue apontando o perigo que existe para quem
“semeia para a sua carne” (8). Evidentemente, semear para a
carne consiste em cultivar na vida os pecados próprios da
natureza pecaminosa, os quais foram alistados em 5.19-21.
Aqueles que, no dia-a-dia, “plantam” os atos que suas próprias
paixões estimulam, são os que semeiam para a carne. O
apóstolo adverte no sentido de que a corrupção será o fruto
colhido por essas pessoas. A palavra que usa aqui (fqora) ´
significa ruína e destruição e é usada no Novo Testamento tanto
para se referir à vida de decadência que caminha para a morte
em meio à desolação temporal (Rm 8.20-21; 2Pe 2.12), quanto
para descrever a degradação moral (2Pe 1.4; 2.19). Paulo está
dizendo, portanto, que quem cultiva as obras da carne arruinará
sua vida e entrará em acelerado declínio moral.
Por outro lado, “quem semeia para o Espírito”, ou seja,
quem cultiva as virtudes mencionadas em 5.22-23, as quais
são reconhecidas como obras do Espírito Santo na vida dos
salvos, desse mesmo Espírito “colherá a vida eterna”. Uma
interpretação apressada diria que, à luz desse texto, a salvação
é mediante o cultivo do fruto do Espírito e não unicamente
pela fé. Esse entendimento, porém, iria de encontro ao ensino
principal de Paulo na própria Epístola aos Gálatas (3.22). Na
verdade, é bem possível que o apóstolo esteja falando aqui
sobre o desfrute presente das alegrias da eternidade. Se for
esse o caso, o texto diz que quem plantar atos de retidão e
bondade colherá, desde já, as bênçãos da vida feliz que
aguarda o crente no céu. Que a vida eterna pode ser
experimentada em certa medida mesmo agora, depreende-se
também de João 4.14; 5.24; 17.3; e 1 Timóteo 6.12.
136 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Uma outra possibilidade é considerar o texto em análise


sob a luz de Romanos 6.22, que diz: “Mas agora que vocês
foram libertados do pecado e se tornaram escravos de Deus,
o fruto que colhem leva à santidade, e o seu fim é a vida
eterna.” De acordo com esse texto, a vida santa chegará à
eterna felicidade. Porém, a vida santa não é a causa de se
chegar lá. A causa é a libertação do pecado que, como se sabe,
é pela fé (Rm 5.1). Essa libertação do pecado pela fé, produzirá
santidade e o fim de tudo será o céu. Talvez Paulo tivesse isso
em mente ao escrever o v. 8. Seja como for, não resta dúvida
de que o homem que se preocupa em produzir em seu dia-a-
dia os traços do genuíno caráter cristão experimentará desde
já um vislumbre da alegria celeste e, sendo esses traços uma
prova de que é redimido pela fé, entrará afinal para o descanso
eterno na cidade de Deus.
A certeza de que nossos atos produzirão resultados bons
ou maus para nós mesmos deve estimular o crente a não se
cansar de fazer o bem (9). De fato, a prática da virtude pode
produzir fadiga e desânimo, especialmente quando há
ingratidão, falta de reconhecimento, oposição e poucos
resultados. Paulo, contudo, recorda seus leitores de que a
colheita é inevitável, ainda que não saibamos ao certo o seu
tempo. Ele afirma ainda, com o propósito de encorajar seus
leitores, que ceifaremos se não desfalecermos.
É inegável que a ceifa a que Paulo se refere aqui tem uma
conotação escatológica. Os crentes fatalmente colherão os
resultados dos seus atos no dia futuro, quando estiverem
diante de Deus, e só receberão coisas boas se não desistirem.
Isso mostra que, ainda que a vida eterna seja dada pela fé, o
desfrute dos galardões de Deus depende daquilo que o crente
faz por meio do seu corpo (2Co 5.10). É por isso que há no v.
10 uma nota de urgência: “enquanto temos oportunidade”.
Paulo sabia que o tempo de plantar é hoje. Diante do tribunal
divino não teremos mais como semear. Lá somente ceifaremos,
desde que, neste mundo, perseveremos na prática do bem.
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 137

O v. 10 termina enfatizando que todos devem ser alvo dos


gestos de bondade dos crentes, mas de forma especial os
irmãos na fé. De fato, priorizar os irmãos no socorro dos
necessitados e em outros gestos de amor mostra ao mundo a
nossa unidade e faz com que sejamos conhecidos como
discípulos de Jesus (Jo 13.35).

O QUE REALMENTE IMPORTA


GÁLATAS 6.11-18
11. Vejam com que letras grandes estou lhes escrevendo de
próprio punho!
12. Os que desejam causar boa impressão exteriormente,
tentando obrigá-los a se circuncidarem, agem desse modo
apenas para não serem perseguidos por causa da cruz de
Cristo.
13. Nem mesmo os que são circuncidados cumprem a Lei;
querem, no entanto, que vocês sejam circuncidados a fim
de se gloriarem no corpo de vocês.
14. Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser na
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo
foi crucificado para mim, e eu para o mundo.
15. De nada vale ser circuncidado ou não. O que importa é
ser uma nova criação.
16. Paz e misericórdia estejam sobre todos os que andam
conforme essa regra, e também sobre o Israel de Deus.
17. Sem mais, que ninguém me perturbe, pois trago em
meu corpo as marcas de Jesus.
18. Irmãos, que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja
com o espírito de vocês. Amém.

A importância de tudo o que Paulo diz às igrejas da Galácia


se reflete no tamanho das letras que escreve6 e no fato de
compor a carta de próprio punho, isto é, sem o auxílio de um
secretário que poderia, conscientemente ou não, alterar em
um grau ou outro o que fosse ditado (11). Ele considera tão
138 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

sério o problema dos gálatas que não quer correr o risco de


transmitir com pouca precisão o que tem em mente. Por isso,
faz uso de uma caligrafia clara e evita intermediários.
Não é, porém, somente na forma que Paulo compõe sua
carta que ele demonstra quão preocupado está com os crentes
da Galácia. Ele também revela seu cuidado chamando a
atenção de seus leitores para o fato de que os falsos mestres
eram pessoas interesseiras, que procuravam obter a
aprovação dos outros por meio da ostentação de sinais
exteriores, mais especificamente a circuncisão.7 A real
intenção deles ao induzir os gentios da Galácia a se
circuncidarem era receber o aplauso dos judeus, evitando,
assim, a perseguição (12).
Sabe-se que ao tempo do surgimento do cristianismo, os
judeus foram seus primeiros perseguidores. Uma das razões
disso era a pregação liberal dos apóstolos que insistiam em
afirmar que a justificação não depende da observância dos
preceitos mosaicos, mas sim da fé no Cristo crucificado (At
13.38-39). Ora, os mestres judaizantes que atuavam entre os
gálatas não estavam dispostos a sofrer a oposição dos seus
compatriotas que se escandalizavam com a pregação da cruz
(1Co 1.23; Gl 5.11). Estavam, isto sim, interessados em agradá-
los. Segundo Paulo, esses eram os reais motivos pelos quais
defendiam tanto a circuncisão. Na verdade eles não eram
zelosos da Lei, mas sim da sua própria comodidade.
A maior prova disso era que eles próprios não guardavam
a Lei (13). Aliás, nenhum legalista, nem mesmo o mais sincero,
jamais conseguiu guardá-la (At 15.10). O discurso dos mestres
da Galácia era apenas uma tentativa de obter prosélitos entre
os gentios, circuncidando-os e recebendo depois o louvor dos
israelitas, um louvor decorrente do fato de terem induzido
gentios a se submeterem a práticas judaicas.
Paulo, por sua vez, tinha essas intenções mui longe de
sua mente (14). Ele não buscava satisfação e alegria na
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 139

aprovação dos homens (1.10). Era na cruz de Cristo que tinha


a base da sua exaltação e da sua exultação (Fp 3.3), pois na
cruz há provisão para que o homem seja justificado, já que
nela Cristo se fez maldição em nosso lugar (3.13). Além disso,
graças aos benefícios oriundos da obra de Cristo na cruz, um
rompimento ocorreu. Paulo e o mundo estavam crucificados
um para o outro. De fato, a transformação que advém da fé
em Cristo incluíra mudanças no modo de Paulo considerar a
realidade ao seu redor e relacionar-se com ela (2.20-21; 5.24).
Agora o apóstolo via o mundo como algo desprezível e
repugnante. O mundo, por sua vez, via Paulo da mesma forma.
Sendo alguém que pouco se importava com o aplauso do
mundo em geral e dos seus compatriotas em particular, Paulo
não impunha a necessidade da circuncisão aos convertidos
do seu ministério. Ademais, havia o fato de que a circuncisão
não tem qualquer relevância dentro da aliança do evangelho.
Na mensagem dada pelo Espírito, o que importa é fazer parte
da nova criação de Deus (15).
As diferenças entre o Antigo e o Novo Pacto, bem como o
fato da nova criação em Cristo, são mais amplamente tratados
por Paulo em 2 Coríntios 3 e 4, onde ele estabelece um forte
contraste entre o Evangelho, (também chamado de “nova
aliança” [2Co 3.6], “ministério do Espírito” [2Co 3.8] e
“ministério da justiça” [2Co 3.9]) e a Lei Mosaica (também
chamada de “letra” [2Co 3.6], “ministério da morte” [2Co 3.7],
“ministério da condenação” [2Co 3.9] e “antiga aliança” [2Co
3.14]). Segundo Paulo, o pacto mosaico, outrora glorioso, “já
não resplandece” diante da glória do Novo Pacto (2Co 3.10).
Contudo, o brilho do evangelho não pode ser percebido por
todos porque um véu foi posto no coração dos judeus (2Co
3.14-16) e Satanás cega os homens em geral (2Co 4.3-4). Para
que essa condição espiritual seja alterada é preciso um ato
criador de Deus. Assim, em 2 Coríntios 4.6, Paulo ensina que
da mesma forma como Deus, por sua palavra, fez brilhar a
luz ao tempo da criação do universo, assim também, ao criar
140 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

agora um novo homem, ele faz com que sua luz brilhe nas
trevas dos corações humanos, capacitando as pessoas a ver
a glória de Deus que está em Cristo. De fato, tanto para criar
quanto para salvar, Deus diz “haja luz!” É por causa desse
paralelo que o apóstolo, em Gálatas 6.15, chama o crente de
nova criação (Veja-se tb. 2Co 5.17).
Dentro da Nova aliança, portanto, a circuncisão é
absolutamente irrelevante (Rm 2.28-29; 1Co 7.19; Gl 5.6). Só
o livramento das trevas, com o conseqüente surgimento de
um novo homem é que importa. Paulo, aliás, expressa o desejo
de que a paz e a misericórdia de Deus estejam sobre todos os
que andarem conforme essa “regra” (16). A palavra usada
aqui (kanwn)´ tem o sentido de “padrão” ou “limite”. Desse
modo, o apóstolo deseja paz e misericórdia às pessoas que
adotam como princípio ou padrão de conduta a verdade de
que tudo o que importa é ser nova criação, gloriando-se nisso
e não em rituais exteriores. Refere-se, assim, àqueles que
encontram motivo de exaltação e base para o comportamento
dentro dos limites da verdade de que são nova criação, e não
buscam glórias além dessa fronteira (Fp 3.3), como faziam os
falsos mestres da Galácia.
O desejo de Paulo de que Deus abençoe os homens com
paz e misericórdia não se estende apenas aos que conheceram
a realidade da nova criação. Ele pede as mesmas bênçãos para
todo o Israel de Deus (16 in fine). Se a igreja precisava de paz
e misericórdia, considerando suas perturbações internas
(5.10,15) e os perigos externos (6.12), Israel também carecia
dessas bênçãos. Paulo via os judeus em geral como o povo de
Deus (Rm 9.3-5; 11.28), um povo para o qual Deus tem
reservado uma herança (Rm 11.25-27; Ef 3.6). Por isso, o fato
de rejeitar a circuncisão como requisito para a justificação
não significava desprezo pela nação israelita. De fato, o
apóstolo estava longe de menosprezar seu próprio povo.
Antes, sofria em face da sua incredulidade (Rm 9.1-3) e orava
O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS 141

continuamente, desejando que ele conhecesse a paz e a


misericórdia de Deus que podem ser provadas pela fé em Cristo,
o Messias já vindo.
Concluindo, Paulo expressa o desejo de que deixem de
perturbá-lo (17). O apóstolo estava sendo incomodado com
questionamentos referentes à sua autoridade apostólica (1.1;
2.8-10), com acusações de mudar sua mensagem de acordo
com as circunstâncias (1.10; 5.11) e com denúncias de
anunciar um evangelho liberal que encorajava a vida
desregrada (5.13,16) e tirava dos adoradores de Deus as
suas obrigações ritualistas, em especial a circuncisão (5.2).
Uma vez que os mestres legalistas da Galácia tanto prezavam
a marca corporal da circuncisão e só deixavam em paz quem
a recebia, Paulo afirma ter marcas no corpo muito superiores,
de modo que deveriam parar de molestá-lo. Ele tinha as
marcas de Cristo: cicatrizes adquiridas no trabalho
missionário e que os gálatas conheciam muito bem (At 14.19;
2Tm 3.11). Paulo as chamava de “marcas de Jesus” porque
entendia que o sofrimento dos servos do Senhor em prol do
seu trabalho é uma espécie de complemento das torturas do
próprio Senhor, dada a união que há entre Cristo e seu povo
(Rm 8.17; 2Co 1.5; Fp 3.10; Cl 1.24).
Ele encerra a epístola suplicando aos gálatas que
experimentem a graça de Cristo em seu espírito (18). De fato,
era nessa esfera que a graça deveria atuar a fim de livrar os
crentes da mentira, das discórdias e das inclinações carnais
que reinavam entre eles. O fato de chamá-los de irmãos realça
que se sente fraternalmente unido a eles e que tem consciência
de que escreve a pessoas que pertencem à família da fé. Sem
dúvida, com essas breves palavras de docilidade e simpatia,
espera criar nos crentes da Galácia uma disposição favorável
ao acolhimento das verdades consubstanciadas nessa
magnífica carta.
apêndice

O CURSO POSTERIOR DO LEGALISMO


JUDAICO-CRISTÃO

Se 48 A.D. for a data aceita para a composição da Carta aos


Gálatas, então, ao escrevê-la, a luta de Paulo contra o legalismo
estava apenas começando. De fato, o capítulo 15 de Atos narra
como, naquele mesmo ano, reuniu-se um concílio em
Jerusalém para tratar exatamente da relação dos crentes
gentios com a Lei Mosaica, mais especificamente com a
circuncisão. A causa direta da convocação do concílio foi a
visita desautorizada de alguns judeus convertidos de
Jerusalém à igreja de Antioquia da Síria. Eles passaram a
ensinar ali que se os gentios que receberam o evangelho não
recebessem também a circuncisão, não poderiam ser salvos
(At 15.1). Paulo e Barnabé se opuseram a eles e, não sendo
possível resolver a questão, foram até Jerusalém para discutir
o assunto com os apóstolos e presbíteros (At 15.2).
Em meio às manifestações de um forte partido legalista
presente na própria igreja de Jerusalém, a liderança se reuniu
para examinar a questão (At 15.4-6). Ao longo dos debates
foi decisiva a participação de Pedro que narrou sua experiência
144 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

como o apóstolo que Deus usou para abrir a porta do


evangelho aos gentios, sem obrigá-los a se submeter a
nenhum fardo legal (At 15.7-11).
Os relatos das maravilhas que Deus tinha feito entre os
gentios ao longo da Primeira Viagem Missionária foram
expostos por Paulo e Barnabé à igreja atenta (At 15.12).
Quando terminaram de falar, Tiago, irmão do Senhor,
destacado líder da igreja em Jerusalém, manifestou seu parecer
contrário à visão legalista. Ele sugeriu que uma carta fosse
escrita aos crentes gentios de Antioquia livrando-os de
qualquer obrigação com a Lei Mosaica e orientando-os a tão-
somente evitar certas práticas que, mesmo sendo de segunda
importância, poderiam ferir os escrúpulos dos judeus não
crentes, impedindo-os de receber a genuína fé (At 15.13-21).
O parecer de Tiago foi acolhido por todos (At 15.22). A carta
foi escrita e endereçada aos irmãos de Antioquia, Síria e Cilícia
(At 15.23-29). Uma delegação foi nomeada para fazê-la chegar
às mãos dos crentes gentios que, com alegria, a receberam
(At 15.30-31). O legalismo judaico-cristão recebera seu
primeiro golpe.
As decisões do concílio, porém, não puseram fim definitivo
ao ensino de que a observância da Lei Mosaica é fator essencial
à salvação. Quando escreveu 2 Coríntios, em 57 AD, Paulo
ainda demonstrava sua preocupação em afirmar que os
crentes estavam livres da Antiga Aliança (2Co 3.6-11), apesar
do legalismo não figurar entre os terríveis problemas da igreja
coríntia. Também em sua Carta aos Romanos, datada de 58
AD e, dentre todas, a de maior conteúdo teológico, o apóstolo
se viu obrigado a corrigir distorções relativas a essa matéria
que, à época, ainda eram correntes e afirmar a desnecessidade
da circuncisão e da guarda da Lei para a justificação do homem
perdido (Rm 4.9-15; 7.1-6).
Ao tempo que esteve em prisão domiciliar em Roma (At
28.16), Paulo escreveu, em cerca de 61 AD, as famosas
APÊNDICE 145

“Epístolas da Prisão” (Efésios, Filipenses, Colossenses e


Filemom). Na carta à igreja de Éfeso, o apóstolo toca apenas
superficialmente na questão do livramento da Lei (Ef 2.14-
15). Já na Epístola aos Filipenses, Paulo dirige severos ataques
contra o ainda atuante grupo dos judaizantes, chamando seus
partidários de “cães”, “maus obreiros” e “falsa circuncisão”
(Fp 3.2-3) e passando, em seguida, a dizer que considerava
toda a sua trajetória dentro do judaísmo como repugnante
refugo, já que a justiça não procede da Lei (Fp 3.4-9).
Na Carta aos Colossenses, Paulo combate uma forma
embrionária de gnosticismo que reunia elementos da Lei
Mosaica (Cl 2.11,16; 3.11) e outros fatores oriundos da
filosofia grega e do paganismo asceta (Cl 2.8,18,20-23). A
resposta do apóstolo inclui a afirmação de que Cristo cancelou
as ordenanças que nos eram prejudiciais ao morrer na cruz
do Calvário (2.14).
O legalismo judaico-cristão ainda estava vivo na fase final
do ministério de Paulo. Ele o combate nas “Epistolas Pastorais”,
escritas entre 63 e 66 AD. Ensinos distorcidos acerca da Lei e
práticas legalistas que proibiam o casamento e certos tipos de
alimento preocupavam Paulo quando escreveu sua primeira
carta a Timóteo, cujo ministério então estava centralizado em
Éfeso (1Tm 1.5-11; 4.1-5). Tito, por sua vez, ao longo de seu
trabalho em Creta foi relembrado por Paulo de que a salvação
independe do esforço humano (Tt 3.5) e recebeu instruções no
tocante ao modo como deveria agir em face de debates inúteis
sobre a Lei (Tt 3.9). É possível que em sua última carta (2
Timóteo), escrita em 66 AD, pouco antes do seu martírio, Paulo
se refira a questões acerca da Lei em 2.14, 23.
Nos últimos anos da década de 60 foi escrita a Epístola
aos Hebreus, de autor desconhecido. Tendo que lidar com o
perigo da apostasia que cercava os crentes hebreus que se
viam diante das aparentes grandezas do judaísmo, o escritor
realçou a transitoriedade da Lei Mosaica (Hb 7.11-12,19,28;
146 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

8.6-7,13; 10.9, etc.), o que indica que a ameaça da sujeição


aos preceitos judaicos, mesmo em suas expressões cerimoniais,
ainda estava viva dentro da igreja pouco antes da destruição
do templo de Jerusalém, em 70 AD.
Parte da força do legalismo era decorrente da instintiva
supremacia da igreja de Jerusalém sobre as demais. Mestres
judaizantes procedentes da Judéia eram recebidos com respeito e
submissão pelos crentes gentios de todas as partes, uma vez que
pertenciam à singular igreja dos apóstolos. Isso facilitava a
disseminação de suas idéias, pois era natural que se
apresentassem e fossem vistos como detentores de autoridade,
dado o status notável da comunidade eclesiástica a que pertenciam.
Porém, com o martírio de Tiago, em 62 AD, a igreja de
Jerusalém começou a perder sua hegemonia. O grande líder
que era irmão de Jesus foi apedrejado, sendo seu cargo
ocupado por Simeão, um outro irmão do Senhor que logo
também sofreu o martírio. Os chefes da igreja decidiram então
transportá-la para Pela, uma cidade além dos Jordão, onde a
segurança certamente seria maior. Outra causa da fuga foi a
nítida oposição dos romanos ao crescente sentimento
nacionalista judaico. De fato, os romanos perceberam os sinais
de uma revolta em Jerusalém e, evidentemente, o movimento
cristão, dirigido pelos parentes de um descendente de Davi
que se dizia rei, preocupava muito as autoridades e fazia da
igreja um alvo especial de opressão. Por isso, quando a rebelião
judaica estava prestes a eclodir, os cristãos que, aliás, já
tinham sido prevenidos pelo Senhor acerca desses fatos (Mt
23.37-39; Lc 21.20-24), saíram de Jerusalém. Pouco tempo
depois, no ano 70 AD, tendo deflagrado a revolta, o general
Tito a sufocou, destruindo a cidade, ateando fogo ao Templo
e matando cerca de um milhão de judeus. Graças à fuga para
Pela, provavelmente nenhum cristão pereceu no massacre.
Esses fatos redundaram num notável recrudescimento do
movimento judaizante cristão e do legalismo que o
APÊNDICE 147

caracterizava. A própria destruição do Templo anunciava que


a Antiga Aliança perdera a possibilidade de ser vivida,
considerando que muitas prescrições da Lei deviam ser
realizadas dentro do santuário erguido em Jerusalém. Com a
queda do judaísmo, os escritos de Paulo que ensinavam a
independência do cristão em relação aos preceitos mosaicos
ganharam força e uma crescente “paulinização” da igreja
começou a ocorrer, enquanto as formas nitidamente judaicas
de cristianismo caiam no esquecimento. Ademais, a igreja
judaica refugiada em Pela jamais recuperou o prestígio dos
tempos de Pedro e Tiago. Antes, entrou na obscuridade, isolou-
se das demais igrejas e, em contato com diferentes seitas,
também de origem judaica, desenvolveu costumes e doutrinas
que nunca foram acolhidos pelo cristianismo oficial,
desaparecendo, finalmente, poucos séculos mais tarde.
Um dos grupos de judeus cristãos que perseverou na
prática dos costumes de seus ancestrais, mesmo depois da
queda de Jerusalém, ficou conhecido como “nazarenos”, talvez
porque esse fosse o nome dado pelos judeus a todos os
seguidores de Jesus de Nazaré. Esse grupo adotava a
observância da Lei Mosaica, mesmo em seu aspecto ritual, e
também cria em Jesus como o Messias divino. Eles usavam o
Evangelho de Mateus, escrito em hebraico, não eram críticos
do apóstolo Paulo e não condenavam os crentes gentios por
não observarem a Lei. É um exagero dizer que fossem hereges.
Na verdade, era um grupo de cristãos separatistas de pequena
importância.
Bem diferente dos nazarenos eram os ebionitas. Estes eram
muito mais numerosos e foram os verdadeiros sucessores dos
falsos mestres combatidos por Paulo na Epístola aos Gálatas.
Seu nome vem da palavra hebraica ebion, que significa
“pobre”, talvez uma designação a princípio dada
maldosamente a todos os cristãos que, como se sabe, eram
em sua maioria pessoas de baixa condição social. Há indícios
148 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

de que os ebionitas surgiram entre os cristãos que fugiram


para Pela ao tempo da invasão de Jerusalém. Suas marcas
características eram a redução do cristianismo ao nível do
judaísmo, a defesa da validade perpétua e universal da Lei
Mosaica, e a intensa antipatia nutrida contra o apóstolo Paulo.
Ainda que o ebionismo apresentasse certas variações, seu
ramo principal cria que Jesus era o Messias prometido, mas
rejeitava sua divindade e nascimento virginal. Para eles a
circuncisão e a observância da totalidade da Lei eram
indispensáveis para a salvação de todos os homens. O
personagem que mais odiavam era Paulo que, segundo seu
entender, tinha nascido no paganismo, abraçara o judaísmo
por razões escusas e depois tornara-se apóstata e herege,
devendo todas as suas epístolas ser rejeitadas.
Os ebionitas se espalharam pela Palestina e arredores.
Chegaram a Chipre, Ásia Menor e Roma. Em sua maioria,
obviamente, eram judeus, mas era possível encontrar também
gentios entre eles. Essa seita perdurou até o século IV, não
havendo mais indícios dela no século seguinte.
O fim do ebionismo não fez com que o legalismo cristão
deixasse definitivamente de existir1. Sob diferentes formas, a
exaltação da Lei Mosaica sempre se insinuou dentro do
cristianismo ao longo da história. Seja por meio de seitas como
o Adventismo do Sétimo Dia ou de modelos teológicos
protestantes que defendem a absoluta irrevogabilidade da Lei.
O espírito do legalismo combatido por Paulo permanece vivo.
O velho erro infelizmente permanece, impondo sobre os
homens fardos desnecessários, impossíveis de serem
carregados (At 15.10). Ele ainda grita suas ordens,
negligenciando o precioso ensino de que a salvação é pela
graça somente (Gl 2.16) e de que a Lei se cumpre não naqueles
que vivem sob o seu jugo, mas sim naqueles que, tendo
recebido a Cristo, vivem agora debaixo da influência
santificadora do Espírito Santo (Rm 7.6; 8.4; 2Co 3.3; Gl 5.16-
APÊNDICE 149

18). Por isso, cabe à igreja ainda hoje defender a mensagem


cristã contra os ataques de dentro e de fora que põem em
risco a compreensão da genuína dinâmica da salvação. Cabe
a ela ensinar que essa salvação não somente vem pela fé,
mas também por meio dela se desenvolve, não como o
resultado da sujeição a preceitos legais, mas como fruto do
Espírito que habita em todo o que crê.
notas

Aspectos Introdutórios
1
Os que situam a produção da carta em 48 d.C. vêem 2.1-10 como uma
passagem que se refere à visita de Paulo a Jerusalém, mencionada em Atos
11.27-30, e não ao Concílio de Jerusalém que, segundo essa corrente, estava
ainda prestes a acontecer quando a epístola foi escrita.
2
Na Epístola aos Gálatas, Paulo faz alusão ao seu trabalho naquelas regiões em
4.13-14.
3
Os destinatários, segundo parece, conheciam Barnabé, o companheiro de
Paulo em sua primeira viagem missionária (Cf. 2.1,9,13). Como já dito, essa
viagem abrangeu a região sul da Galácia.

1. O Evangelho Verdadeiro e sua Singularidade


1
As duas cartas de Paulo aos tessalonicenses foram escritas por volta do ano
50 AD, ou seja, bem pouco tempo depois que ele escreveu aos crentes da
Galácia (48 AD).
2
2 Coríntios 11.14 e Gálatas 1.8 geralmente são textos usados contra o
mormonismo cujos adeptos afirmam que sua religião foi revelada a Joseph
Smith por um anjo chamado Moroni. Essas aplicações são cabíveis, ainda
que dificilmente Smith tenha realmente tido contato com algum espírito.
Pelas informações que temos acerca de sua vida e caráter, com certeza o
próprio Smith inventou aquela história e a levou adiante a fim de atingir
propósitos egoístas e escusos.
3
Nos dias modernos alguns exemplos de falsos evangelhos são: a Teologia da
Prosperidade, cuja salvação proposta consiste apenas no livramento de
doenças e de problemas financeiros; o Catolicismo Romano, que ensina a
salvação pelas obras; e o Adventismo que, exatamente como os falsos mestres
da Galácia, crê que o homem é salvo pela prática da Lei (Gl 2.16; 4.10-11).
152 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

Todos os mestres desses movimentos devem ser considerados malditos pelos


crentes genuínos.
4
No Catolicismo Romano encontramos a mais rica fonte de invenções humanas
associadas ao termo “cristianismo”. Doutrinas como a da imaculada conceição
de Maria, da transubstanciação, da intercessão dos santos, da infalibilidade
papal, da adoração da virgem, da canonização de pessoas mortas, entre
inúmeras outras, não têm nenhum amparo na Sagrada Escritura. São antes
mitos inventados por mentes corrompidas. Coisas do gênero devem ser
rejeitadas com todo o vigor pelos cristãos genuínos.
5
Somente a partir da destruição de Jerusalém pelo General Tito, em 70 DC, o
cristianismo passou a revelar sua autonomia como modelo religioso
independente.
6
Essa imagem passada pelos mestres judaizantes era flagrantemente falsa, cf.
6.12-13.
7
Essas tradições eram comentários e aplicações da Lei de Moisés à vida diária
que, a partir do Exílio Babilônico (605 aC – 535 aC) eram transmitidos
oralmente pelos judeus às gerações que se sucediam. Jesus censurou
severamente a prática de colocá-las acima da Palavra de Deus (Mt 15.1-6).
8
A expressão “em mim” transmite a idéia de que a revelação foi dada a Paulo
de modo pessoal e íntimo. Calvino sugere que a tradução “a mim” é possível
(CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Parácletos, 1998. p. 42).
9
Deve ser admitido, porém, que a incumbência de pregar lhe fora dada já no
caminho de Damasco (At 26.15-18).
10
Tiago, o meio irmão do Senhor, não era um dos Doze. Aparentemente ele é
incluído aqui entre os apóstolos em virtude de sua posição de preeminência
na igreja de Jerusalém (At 12.17; 15.13ss; 21.17-18; Gl 2.9,12), bem como
por sua relação singular de parentesco com o próprio Senhor, além do fato de
ter visto Cristo ressurreto (1Co 15.7). Ademais, é possível entender o termo
“apóstolo” num sentido não técnico, quando aplicado a Tiago, ou seja, apenas
como um “mensageiro de Cristo” (Esse uso é aplicado a Barnabé em At
14.14). Sabe-se que para ser apóstolo no sentido que Paulo aplicava o termo
a si próprio era preciso não só ver Cristo ressurreto (1Co 9.1-2), mas também
receber diretamente dele a função de mensageiro (Mt 28.16-20; Lc 6.13; Gl
1.1), as revelações dos mistérios divinos a serem anunciados (2Co 12.7; Gl
1.11-12; Ef 3.2-6) e o poder de realizar milagres (2Co 12.12).

2. O Evangelho Verdadeiro e sua Independência


1
A fome mencionada em Atos aconteceu, provavelmente, entre 46 e 48 d.C.,
mas não abrangeu o Império inteiro, sendo a Judéia o seu cenário. Contudo,
aqueles dias foram marcados por fomes freqüentes que sobrevieram a
diferentes regiões de todo o Império.
NOTAS 153

2
Isso era especialmente importante porque, como se sabe, os falsos mestres da
Galácia estavam dizendo que o ensino de Paulo era contrário à doutrina dos
apóstolos de Jerusalém.
3
Tito foi, posteriormente, delegado de Paulo com a missão de administrar a
crise em Corinto (2Co2.12-13; 7.5-7). Ele também coordenou as igrejas de
Creta (Tt 1.5).
4
Como se sabe, os judaizantes entendiam que a circuncisão era fundamental
para que o homem fosse justificado. Veja 5.2-4, 6; 6.12-13, 15.
5
A atividade e ensino dos judaizantes de Jerusalém num tempo posterior mas
muito próximo da composição da Epístola aos Gálatas podem ser vistos em
Atos 15.1-2,5.

3. O Evangelho e seu Poder


1
A figura implícita aqui sugere a apresentação do evangelho por meio de
algum recurso visual como uma pintura em um quadro (CALVINO, João.
Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998. p. 82) ou um cartaz de notícias colocado
num lugar público, o que era comum na antiguidade (GUTHRIE, Donald.
Gálatas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão,
1984. p. 114). Paulo não havia usado esses recursos, mas suas palavras
tinham fluído de tal forma que era como se tivessem desenhado na
consciência dos gálatas os pontos centrais da mensagem cristã. É de
pregadores assim que a igreja moderna precisa.
2
Para o ensino acerca da autoridade da Sagrada Escritura, veja-se Jo 10.35;
17.17; 1Co 2.13; 2Tm 3.16-17; 2Pe 1.20-21.
3
Tiago 2.20-24 usa o mesmo exemplo de Abraão para ensinar que a justificação
é pelas obras. Contudo, Tiago pensa na justificação como comprovação visível
da fé. Daí a importância que confere às obras. Paulo, por sua vez, usa o termo
no sentido de “livramento de culpa”, o qual decorre da fé somente.
4
Note-se que ao tempo de Abraão a Lei sequer havia sido dada (Rm 4.9-10; Gl
3.17).
5
Um dos problemas com esse método de interpretação é que ele não se
harmoniza com o modo como os profetas do AT entenderam as promessas de
bênção e maldição feitas a Israel. Mesmo uma leitura superficial de seus
escritos revelará que os profetas entendiam literalmente tais promessas (2Rs
18.10-12; Is 24.5-6; Jr 11.6-8; 32.24; Lm 2.17; Dn 9.11-13; Zc 1.6, etc.).
Obviamente, se foi assim que os homens movidos por Deus interpretaram as
palavras da Escritura, é também assim que devemos entendê-las.
6
O v. 13, como se verá, também contribui para a formulação do conceito de
maldição que Paulo tem em mente. Daquele versículo se depreende que ser
maldito é também ser merecedor da pena de morte.
7
A prática prevista em Deuteronômio envolvia a morte do transgressor e a posterior
colocação do seu corpo num madeiro. Era permitido que o cadáver ficasse
154 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

pendurado até o fim do dia como um sinal de que ali estava alguém que havia
morrido sob a maldição de Deus, por transgredir a Lei (Dt 21.22-23).
8
A habitação do Espírito no crente é uma bênção singular porque lhe confere
segurança de um dia ser plenamente resgatado (Ef 1.13-14), também prova
e testifica que ele pertence a Deus (Rm 8.9, 15-16), capacita-o a viver em
santidade (Rm 8.13-14) e enche sua vida de satisfação (Jo 7.38-39).
9
A palavra usada por Paulo pode significar “testamento”, isto é, a declaração
de última vontade. Também tem o sentido de contrato ou aliança. No versículo
em análise trata-se de uma declaração da vontade feita por Deus na qual
somente ele se obrigou, sem nada impor ao homem.
10
Deve-se lembrar que, à luz do v.17, a Lei só veio 430 anos depois de
estabelecida a aliança com Abraão.
11
Em Mateus 22.31-32, 41-45 vê-se que nosso Senhor também dava especial
atenção a aspectos gramaticais do texto bíblico.
12
A consciência de pecado existe mesmo naqueles que jamais conheceram a
Lei de Moisés (Rm 2.14-15). Porém, ela é muito limitada. Por exemplo: não
se sabe, por meio da mera “lei interior”, que a cobiça é pecado (Rm 7.7).
13
O ensino de que a Lei Mosaica foi dada com o propósito de refrear as
transgressões parece encontrar obstáculos no que Paulo ensina em Romanos
7.7-14. Ali aprendemos que a Lei, apesar de santa, justa e boa, estimula o
pecado na humanidade carnal. É verdade que, idealmente, o mandamento
seria dado para produzir vida (Rm 7.10). Seu objetivo real e prático, contudo,
foi outro, a saber: dar maior força ao pecado (Rm 7.12-13; 1Co 15.56).
14
Outros textos em que Paulo mostra apreço pela Lei são Romanos 3.31;
7.7,12,14; 8.4; 1Tm 1.8.
15
A frase “a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado” significa que o Antigo
Testamento declarou a transgressão de todos (Rm 3.9-19), demonstrando
que a Lei que foi dada a Moisés era incapaz de justificar e conceder vida.

4. O Evangelho Verdadeiro e a Liberdade


1
O tutor, na lei romana, figurava como responsável pela criança até os 14 anos.
O curador respondia pelo jovem até que completasse 25. Há ainda quem
entenda que o tutor cuidava da pessoa, enquanto o curador administrava
seus bens.
2
A maioridade, na lei romana, era atingida aos 25 anos de idade. Não estava,
portanto, ao arbítrio do pai o tempo de sua duração. Assim, é possível que
Paulo tinha em mente aqui um outro sistema jurídico desconhecido de nós,
mas familiar aos seus leitores originais. É também possível (e mais provável)
que o apóstolo queria apenas realçar o papel do pai como aquele que está no
controle da situação. Esse entendimento se harmoniza melhor com as
intenções do autor bíblico ao usar a presente ilustração.
NOTAS 155

3
A ausência de artigo antes da palavra “lei” no v. 5, sugere que Paulo não
tinha em mente aqui somente e Lei Mosaica, mas qualquer conjunto de
normas imposto ao homem.
4
Todos esses milênios compõem o período chamado de “tempos da ignorância”
(At 17.30).
5
Earle E. Cairns, em O cristianismo através dos séculos (São Paulo: Vida Nova,
1984. p. 29-36) afirma que a “plenitude dos tempos” em Gálatas 4.4 diz
respeito à preparação do cenário mundial de tal forma que contribuísse para
que a mensagem de Cristo tivesse o maior impacto possível. De acordo com
esse entendimento, Deus, ao longo dos séculos, foi preparando o ambiente
político, intelectual e religioso para que o advento do Messias ocorresse num
contexto que favorecesse a sua divulgação. O tempo em que tudo estava
pronto seria entendido como a “plenitude dos tempos”. No entanto, apesar
de não haver dúvidas de que Deus usou o ambiente instalado no século 1º
para favorecer a expansão da fé, é muito difícil que isso se relacione com o
sentido da expressão “plenitude dos tempos” pretendido por Paulo em Gálatas
4.4. O entendimento mais natural e simples, à luz inclusive do v. 2, é que a
expressão diz respeito apenas ao tempo em que soberanamente Deus julgou
necessário livrar o homem do jugo da lei, determinando que o período de
“tutela” não devia mais se prolongar.
6
Hipóstase, em grego, significa, essência ou natureza substancial. Na discussão
cristológica, contudo, esse termo é usado predominantemente com o sentido
de “pessoa”. Para conhecer melhor os contornos dessa matéria, é fundamental
que sejam estudados os quatro concílios ecumênicos da igreja antiga e,
especialmente, a Definição de Calcedônia. Uma leitura esclarecedora é
OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001.
7
Aba é o termo aramaico para Pai.
8
Outras verdades sobre a habitação do Espírito Santo são as seguintes: ela é
dada aos que crêem (Jo 7.38-39; Gl 3.2); todos os crentes desfrutam dela
(1Co 12.13); ela se constitui numa das bases para a pureza sexual do cristão
(1Co 6.18-19); e ela é a garantia de que somos “propriedade” de Deus (Ef
1.13-14).
9
Em 1 Tessalonicenses 4.5, Paulo ensina que quem não conhece a Deus
também é escravo de desejos lascivos.
10
Na Igreja Antiga era pacífico o entendimento de que foram os demônios
que, em tempos remotos, haviam se manifestado aos homens apresentando-
se como deuses e dando origem às múltiplas formas de adoração pagã.
11
O proto-gnosticismo, filosofia pagã que ameaçou o cristianismo nascente,
acolhia com prontidão diversos preceitos judaicos (Cl 2.8, 16). Portanto, o
retorno à Lei também poderia ser facilmente interpretado como a adoção de
sistemas filosóficos pagãos.
12
É possível traduzir a palavra proteron
´ (próteron: “a primeira vez”) como
156 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

“anteriormente”. Se aceitarmos essa tradução, pode-se entender que Paulo


está falando aqui do fim da primeira viagem missionária, quando voltou
para Listra, Icônio e Antioquia fortalecendo as igrejas (At 14.21). Se for este
o caso, talvez Paulo tenha empreendido o retorno de sua Primeira Viagem
movido pelas imposições de uma doença da qual se tem muito pouca
informação.
13
Alguns entendem, à luz de 4.15, que se tratava de uma doença nos olhos.
Esse entendimento também tenta explicar as “grandes letras” a que Paulo
alude em 6.11. Segundo esse ponto de vista, o suposto problema de visão do
apóstolo teve início em sua experiência de conversão, quando seus olhos
foram cobertos por algo semelhante a escamas (At 9.18). Essa opinião, porém,
não é conclusiva. Calvino, por exemplo, entende que a palavra “enfermidade”
significa aqui simplesmente “vilipêndio”, ou seja, ausência de pompa ou
grandeza. Essa interpretação, por sua vez, mui dificilmente se ajusta com a
restante da passagem que indica claramente que Paulo está falando de uma
debilidade em sua saúde.
14
Nesse ponto Paulo usa verbos enfáticos para descrever a atitude dos seus
destinatários. Literalmente, ele diz que os gálatas não o trataram com desdém,
nem o “cuspiram fora”. Essa linguagem denota nojo, o que pode sugerir que
a doença de Paulo provocava certa repugnância.
15
Veja o contraste entre esse zelo interesseiro e o zelo do apóstolo mencionado
em 2 Coríntios 11.2.
16
Essa expressão tão comum nos escritos do carinhoso apóstolo João (1Jo 2.1,
12, 14, 18, 28, etc.) é usada somente aqui por Paulo.
17
Para um maior aprofundamento nesse tema, veja-se LOPES, Augustus
Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
18
Esse é o argumento de Calvino constante de seu comentário a Gálatas 4.22.
19
Essa alternativa encontra-se em KAISER Jr., Walter C. e SILVA, Moisés.
Introdução à hermenêutica bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos
ruídos de nossa época. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
20
Veja esse argumento em LOPES. Op. Cit., p.120-121.
21
Ao longo da história tem sido comum os teólogos apresentarem a Lei de
Moisés sob duas grandes divisões: a lei cerimonial (relativa especialmente
aos serviços no templo) e a lei moral (apresentada especialmente nos Dez
Mandamentos). Ainda que seja útil para fins didáticos, essa divisão às vezes
conduz a conclusões erradas como, por exemplo, a doutrina adventista de
que fomos libertos apenas da lei cerimonial, estando ainda sujeitos aos Dez
Mandamentos. Deve, porém, ficar claro que, para Paulo, a distinção entre lei
cerimonial e moral inexiste. O próprio texto em questão mostra que, em seu
conceito de Lei, o apóstolo inclui até mesmo o livro de Gênesis e não apenas
disposições cerimoniais constantes do Pentateuco. Ademais, em outras
NOTAS 157

ocasiões, ao argumentar contra o legalismo, Paulo não cita leis cerimoniais,


mas alude às chamadas normas morais (Rm 7.6-7; Gl 3.10; Ef 2.15) e chega
até a ensinar com notável clareza que o crente está livre do “ministério
gravado com letras em pedras”, ou seja, o Decálogo, dizendo que a glória
desse ministério se desvaneceu (2Co 3.7-11. Veja tb. Cl 2.14). Daqui se conclui
que os cristãos só devem obedecer aos Dez Mandamentos na medida em que
eles são “reaproveitados” no ensino do Novo Testamento, o que não acontece,
por exemplo, com a norma referente à guarda do sábado ou de um outro dia
qualquer. Ademais, mesmo aquela obediência deve ser resultado de uma
vida sob o controle do Espírito e não do apego carnal a regras (Rm 8.3-4).
22
Veja-se o legalismo de Jerusalém em face do ministério de Jesus em Mateus
23.1-4; Marcos 7.1-8; João 5.18; 9.16, etc. Para a presença do legalismo na
igreja nascente daquela cidade, veja-se Atos 11.1-3; 15.4-5.
23
Isaías 54 também evoca as glórias de Jerusalém no Reino Milenar de Cristo
(Lc 1.32-33; Ap 20.4-6).
25
Essa perseguição branda e, às vezes, até simpática contra os cristãos é
empreendida hoje especialmente pelos adventistas do sétimo dia que
procuram intensamente fazer prosélitos entre os crentes. Porém, pode-se vê-
la também na atuação de indivíduos que, dentro das igrejas, exigem que os
crentes se submetam a regras oriundas de costumes antigos. Seja qual for o
caso, sempre que alguém tenta vergar os ombros dos cristãos com o peso de
normas, esse alguém se torna um perseguidor da igreja e pode ser identificado
como real inimigo dos santos (Veja-se 2.4).
25
Veja-se a mesma orientação dada de forma expressa em Romanos 16.17-18
e 2 João 9-11.

5. O Evangelho Verdadeiro e as Virtudes Espirituais


1
A forma condicional como Paulo constrói a frase dá a entender que os gálatas
ainda não estavam praticando o antigo rito.
2 ´
O verbo traduzido aqui por “cair” (ekpiptw ) é usado nos escritos clássicos
para referir-se, inclusive, a pessoas que por razões políticas ou por outros
motivos, foram enviadas para o exílio, longe dos privilégios de seu país.
3 ´ ) não é mero desejo, mas sim uma forte
A esperança de que fala o v. 5 (elpij
certeza. Note-se também que o versículo evoca uma expectativa futura, ou
seja, o dia em que, diante de Deus, o crente será recebido como justo.
4
Veja-se exemplos da fé falsa em Mateus 13.20-21; João 2.23-25; 12.42-43.
5
Paulo usa a metáfora da corrida também em 2.2, aplicando-a a si mesmo.
Veja-se também Filipenses 2.16; 2Timóteo 2.5; 4.7.
6
O verbo usado por Paulo, egkoptw
´ , significa impedir, obstruir ou deter.
Trata-se de um termo militar que descreve um exército que impede o avanço
158 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

do inimigo destruindo uma estrada e levantando obstáculos. Usada na figura


de uma corrida, como é o caso aqui, a palavra sugere a ação de um atleta que
tenta prejudicar o desempenho de outro, atrasando-o de alguma forma ou
até mesmo tirando-o da prova.
7
É preciso, contudo, reconhecer que o uso do particípio, como consta no v. 8,
implica muitas vezes num sentido indefinido, sendo também possível que
Paulo tenha em mente aqui o chamado de Deus ocorrido ao tempo da
conversão (1Co 1.26; 7.18). Se for esse o caso, é interessante notar que, em
Gálatas, os crentes são apresentados como pessoas que, ao ouvirem o
evangelho, foram chamadas à liberdade (5.13).
8
Também no ensino de Jesus a figura do fermento é usada para se referir a
doutrinas e práticas reprováveis (Mt 16.6, 12; Mc 8.15; Lc 12.1). Há uma
exceção em Mateus 13.33.
9
Veja o comentário em 1.7 sobre o verbo perturbar, também usado aqui.
10
No paganismo dos dias de Paulo, existiam rituais grotescos cujo ápice era
atingido quando os adoradores se emasculavam. Se o apóstolo tinha esses
rituais em mente, pode-se concluir que para ele a circuncisão não tinha mais
significado do que as repugnantes práticas religiosas dos gentios.
11
O mesmo ensino encontra-se em Romanos 13.9-10. Observe-se que há aqui
um eco do ensino de Jesus que disse que toda a Lei e os Profetas se sustentam
em apenas dois preceitos: amar a Deus e amar ao próximo (Mt 22.35-40).
12
Observe o mesmo ensino em Efésios 5.18, onde Paulo exorta os crentes a
que não se deixem dominar pelo vinho, mas sim pelo Espírito. Com essa rica
figura, o apóstolo realça que, assim como o homem embriagado é totalmente
dominado pela bebida em sua forma de falar, andar e reagir, da mesma
maneira, o crente cheio do Espírito, como ébrio de Deus, anda, fala e age da
forma como o Senhor determina.
13
Veja-se essas três influências mencionadas explicitamente em Romanos
7.4-6.
14
Veja-se o relato de Atos 14.11-13 para uma noção do grau de idolatria
reinante na Galácia.
15
Por outro lado, num país como o nosso, em que muitos irmãos na fé se
escandalizam quando vêem um crente bebendo qualquer bebida alcoólica, é
melhor que haja abstinência total, de acordo com o que ensina Paulo em
Romanos 14.15-21.
16
Bebedices e orgias eram associadas ao culto de Dionísio, também conhecido
por Baco. Considerado o deus do vinho e da vida animal e vegetal, seus
adoradores se entregavam à bebida e comiam carne com sangue para participar
da vida do deus. Nesses banquetes, os participantes, em meio a danças
sagradas, eram levados ao êxtase e à orgia sexual.
17
Paulo descreve detalhadamente o amor genuíno em 1 Coríntios 13.1-7.
18
Note-se aqui a conversão descrita como “pertencer a Cristo”. O convertido é
NOTAS 159

realmente como um escravo adquirido por Cristo. Tendo agora um novo senhor,
não precisa mais viver sob o jugo da Lei.
19
Paulo tinha experiência própria desse fato (2.20). Note-se ainda que, em sua
vida, não somente o próprio eu carnal havia sido crucificado, mas também o
mundo com seus atrativos e apelos (6.14).
20
Veja-se em 3.2,5,14; 4.6; e 5.5 os fenômenos próprios dessa realidade.

6. O Evangelho Verdadeiro e os Deveres Cristãos


1
Assim entende CALVINO, op. cit., 175.
2
O oposto dessa figura é o crente carnal (1Co 3.1-3).
3
Esse verbo é usado para se referir à correção de ossos deslocados e ao conserto
de redes de pesca. Tem sempre o sentido de restabelecer algo danificado ao
seu estado anterior.
4
Uma igreja que mais tarde se destacou nesse aspecto foi a de Filipos, na
Macedônia, para a qual Paulo escreveu uma carta cheia de gratidão, em 61
A.D. (Fp 4.10-19).
5
O Livro de Provérbios ensina que o sábio é aquele que reconhece que vivemos
num universo regido não somente por leis físicas, mas também morais, as
quais, se violadas, nos trarão prejuízos. Logo, o sábio é aquele que tem temor
do Senhor (Pv 1.7), reconhecendo que ele próprio fixou na história a norma
irrevogável de que quem faz o mal, cedo ou tarde colhe o mal.
6
A sugestão de que Paulo escreveu com letras grandes porque, desde a sua
experiência na estrada de Damasco, passou a ter problemas de visão, é
puramente especulativa. O entendimento mais natural é que Paulo escreveu
com letras grandes para dar ênfase ao que dizia.
7
Em Romanos 2.29 há mais uma indicação de que a circuncisão promovia o
louvor decorrente dos homens, tão caro aos falsos mestres.

Apêndice
1
Que a ameaça do judaísmo persistiu ainda no século II com força suficiente
para preocupar os mestres cristãos, pode-se ver em diversos escritos da
época. As cartas de Inácio de Antioquia, por exemplo, escritas por volta do
ano 107, refletem esse fato. Especialmente duas de suas epístolas, a dirigida
aos magnésios (Caps. 8-10) e a endereçada à igreja de Filadélfia (Cap. 6),
advertem os crentes a não se corromperem com práticas ou discursos
judaicos. Também a Epístola de Barnabé, datada de cerca de 135, revela
claramente o propósito do autor em demonstrar as distinções entre os
aspectos exteriores da religião do VT e a “nova lei” do cristianismo, o que
pode indicar que a ameaça do legalismo judaico ainda vigorava nos dias
em que essa carta foi composta. Preocupação semelhante se verifica na
Carta a Diogneto (c. 120), em que o autor, um dos primeiros apologistas
160 A ESSÊNCIA DO EVANGELHO DE PAULO

cristãos (Quadrato?), se dedica a refutar o culto judaico e todas as suas


práticas rituais, inclusive a circuncisão (Caps. 3-4).

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