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Em 1730 um curioso fato acontecera na Rua Saint-Séverein, em Paris.

Dois
tipógrafos, Contat e Léveillé, incomodados com o barulho dos gatos a noite,
promovem uma verdadeira carnificina contra os felinos. Mas porque exatamente os
gatos foram os únicos carrascos desse acontecimento? Primeiramente é necessário
frisar o contesto histórico-social da época do massacre. Como certa vez o sociólogo
francês Jean Marc Salmon afirmara: “Há Marx em tudo”. O que no fundo os
tipógrafos queriam eram denunciar sua situação miserável (baixos salários,
péssimas condições de trabalho, instabilidade no emprego) em seus trabalhos e a
opressão burguesa diariamente – o que depois de Karl Marx ficou conhecido como
materialismo histórico. A luta de classes existente naquele contexto contribuiu – e
muito – para esta “explosão” no ânimo dos trabalhadores.
Não foi o simples fato dos gatos atrapalharem o sono do proletariado a noite – e
assim afetando em sua jornada de trabalho -, mas também uma forma de protestos
dos tipógrafos. A escolha dos gatos para carrasco desta revolta não está só
relacionado aos seus uivos a noite, mas a criação dos “bichanos” eram um habito
burguês. Os gatos recebiam tratamento melhor que os próprios operários, como, por
exemplo, na hora da comida que os gatos comiam carne enquanto o proletariado
comia ossos ou restos de carne.
O hábito de criar gatos, inclusive, era um costume novo da burguesia que era
constituída por oligarquias de mestres surgidas a partir do fechamento das antigas
corporações de oficio. Com a criação desta oligarquia – com ajuda do governo
francês - acabaria a velha tradição e união entre mestres e aprendizes, que fazia
com que todos se sentissem uma comunidade – inclusive, mestres e aprendizes
comiam no mesmo local. O posto de mestre passou a ser repassado pela
hereditariedade, portanto, um aprendiz continuaria a ser aprendiz para todo sempre,
e assim, não existiria mais uma mobilidade social.
A desvalorização do trabalhador – tema também muito presente em Marx – depois
do fim das corporações foi um dos grandes motivos para a revolta. Os mestres
(agora burgueses) queriam aumentar seus lucros cada vez mais, daí então
contratavam trabalhadores menos especializados – os alloués – para fazer o serviço
e assim amedrontar os trabalhadores especializados com o perigo iminente da
demissão. A prática de contratação de mão-de-obra barata é muito freqüente até
hoje, como se pode ver nos documentários do cineasta americano Michael Moore,
Roger and Me e The Big One.
Mas a ligação dos gastos com a cultura burguesa, não justifica a forma como a
chacina foi executada – com bastante violência, seguida de um julgamento. A
simbologia por trás desse massacre de gatos revela algumas características da
cultura francesa no século XVII. A figura do gato na cultura francesa despertava
diferentes sensações entre a população: repulsa, ódio, admiração, etc. Em algumas
partes da França, a imagem do gato estava ligada ao demônio, má sorte ou
feitiçaria. Isso pode nos dar pistas sobre a significação de alguns fatos que
ocorreram no massacre. Quando Léveillé e Jerome mataram a gata de estimação de
sua patroa com um golpe que partiu-lhe a espinha, intuitivamente eles estavam
cumprido uma antiga tradição de “quebra de azar”: segundo esta tradição, feiticeiras
se transformavam em gatos para atrair pessoas e amaldiçoa-las, assim matando o
gato (ou quebrando alguma parte de seu corpo) a “onda de azar” acabaria.
A idéia de Léveillé em ir até o telhado do quarto do seus patrões miando e uivando é
uma temática referente a cultura francesa da época, pois, o gato também era ligado
a sexualidade da mulher. Segunda a tradição, os uivos dos gatos estavam ligados a
traição, feitiçaria, orgia, massacre, etc. Contat sugeriu que a sua patroa traia seu
marido com o vigário que freqüentava a casa dos seus patrões com freqüência, já
que o seu patrão era um homem extremamente religioso. Ai estava feita a
“vingança” perfeita dos tipógrafos: além de chamar a patroa de feiticeira e adultera,
criava-se o estereotipo de corno para o patrão, assim, atacando os dois de um modo
simbólico sem que percebessem.
Robert Danrton tenta através desse texto mostrar como os trabalhadores daquela
gráfica estavam influenciados por sua cultura, chegando a tal ponto de manifesta-la
no meio de uma revolta. O que Danrton se precipitou foi sugerir uma relação entre o
Grande Massacre de gatos em Saint-Séverin com a Revolução Francesa, que
aconteceria 60 anos depois. Esta revolta de Saint-Séverin só se assemelha com a
Revolução Francesa em um único fator: ambas aconteceram por causa das
condições em que os trabalhadores estavam submetidos, e as duas revoltas
culminaram na explosão de fúria e insatisfação dessa classe.
Os operários não tinham como se expressar através dos livros que eles mesmos
fabricavam, mas tinham a sua cultura do seu lado. Utilizaram de uma simbologia
dentro da cultura popular francesa que nenhum burguês (que vivia em um mundo e
cultura diferente) poderia compreender, e assim, nunca poderiam puni-los. A reação
(ou nenhum reação) dos patrões ao ver la grise (a gata de estimação) morto, passa
a impresão que aquela matança na verdade não era para atingir os gatos, e sim aos
patrões, demonstrando que o ódio ali demonstrado estava relacionado ao que os
tipógrafos pensavam deles. Por fim, o que os operários desejavam não era mais do
que a volta a “era de ouro” de seus antepassados, a “republica”, onde todos
partilhavam da mesma cultura e se sentiam uma comunidade, não a luta de classes
que se transformara.

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