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Quando em 1948, Arturo Uslar Pietri resolveu aplicar o termo realismo mágico à
literatura não imaginava a confusão teórica que iria iniciar. Desde então diversos
estudiosos tentam definir o que é o realismo mágico e suas diferenças com o fantástico.
Pietri afirma que o realismo mágico seria “una adivinación poética o una negación
poética de la realidad”(CHIAMPI: 1980, p.23). Para Angel Flores este modelo literário
seria uma forma de naturalizar o irreal, enquanto Luiz Leal afirma que esta “nova
tendência não cria mundos imaginários, já que a magia está na própria vida, nas coisas e
no modo de ser do homem” (FIGUEIREDO: 2005, p.397). Para o ensaio que aqui nos
propomos a escrever ficaremos com o estudo de Spindler. Diante das diversas maneiras
como o termo realismo mágico é empregado, Spindler numa tentativa de descomplicar o
tema, o dividiu em três tipos: realismo mágico metafísico (mais aplicado à pintura),
antropológico (aproxima-se do realismo maravilhoso, recorrência freqüente a
perspectivas culturais) e ontológico (os elementos sobrenaturais não entram em choque
com o que seria racional). O realismo mágico foi amplamente utilizado na literatura
hispano-americana durante o período do boom literário, quando uma vasta gama de
escritores se libertou do modelo literário realista tradicional e partiu em busca do que
representava ser latino-americano. Durante as décadas de 60 e 70 (pós-boom), este
modelo literário também foi muito utilizado por escritores que lutavam contra as
ditaduras latino-americanas, entre estes escritores encontramos Gioconda Belli, objeto
de estudo do presente artigo.
Gioconda Belli nasceu em uma das famílias mais importantes de Manágua.
Passou sua infância na Nicarágua sendo espectadora da dinastia ditatorial dos Somoza.
Fez parte de sua educação na Espanha e formou-se em Publicidade nos Estados Unidos.
Voltando a Nicarágua passou a dividir sua vida entre a agência de publicidade onde
trabalhava e as festas da alta sociedade no Nejapa Country Club. Casou-se aos dezenove
anos, viveu durante algum tempo uma vida pacata até conhecer vários poetas e
escritores contemporâneos. Foi em convívio com estes artistas que sua visão de mundo
começou a se alargar. Em pouco tempo Gioconda se viu arrastada para a Frente de
Libertação Sandinista e entrou em contato com a literatura revolucionária hispano-
americana, descobrindo autores que a deixaram inquieta, tais como Ernesto Cardenal,
Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez. A obra de Gioconda Belli surge
juntamente com a nova geração literária nicaragüense, que deu a literatura local um
estilo revolucionário capaz de romper com a memória histórica oficial, mostrando uma
nova forma de realidade. Começa a publicar poemas na década de 1970. Devido ao teor
político e erótico de seus versos, além de sua participação na guerrilha, ela é perseguida
pelo governo ditatorial de Somoza, é julgada e exilada. Viveu errante na Costa Rica,
México e Cuba, só retornando a Nicarágua em 1979, ano em que os sandinistas
conseguem derrubar a ditadura de Somoza.
Em 1988 publica o seu primeiro romance, A Mulher Habitada, obra que lhe
trouxe notoriedade internacional e colocou seu nome no hall dos escritores
contemporâneos de maior expressividade da literatura hispano-americana. A Mulher
Habitada trilha os caminhos de uma busca desenfreada da consciência social através
dos discursos da índia asteca Itzá e da arquiteta Lavínia. Dentro do romance
encontramos diversas características do que Spindler chamou de realismo mágico
antropológico. Para Spindler nesta modalidade do realismo mágico ocorre a inclusão de
mitos indígenas que fazem o racional e o sobrenatural conviverem harmoniosamente,
além de tempos históricos diferentes se fundirem. Vejamos como isto funciona dentro
da obra de Belli.
Separadas 500 anos historicamente, a consciência destas duas mulheres se funde
através do resgate da crença asteca de que os guerreiros renasciam em plantas e animais.
O romance inicia-se com o ressurgimento de Itzá:
Na passagem que acaba de ser transcrita notamos que a natureza indígena não
fora passiva como pintava os manuais tradicionais de história. Os índios foram
guerreiros e resistiram de diversas formas, não apenas através da luta armada. Muitas
mulheres astecas, como Itzá, recusaram-se a engravidar de seus companheiros, pois, não
queriam gerar escravos para os espanhóis. Lutavam também contra as investidas
espanholas, recusando-se a manter relações com eles. Márcia Navarro, em seu artigo
Perspectiva de Gênero na América Hispânica, ressalta que devido a resistência das
nativas, o estupro das indígenas passou a se tornar uma pratica tão atrativa quanto a
busca pelo ouro, como nos aponta Herren em seu livro La Conquista Erótica de las
Índias. Herren afirma que a conquista do Novo Mundo pode também ser medido a partir
da conquista sexual das índias. Através da mestiçagem dos dois povos, os espanhóis
conseguiram aumentar o número de escravos graças a estes filhos ilegítimos que
começavam a ser fecundados forçadamente nas índias. A mestiçagem entre os dois
povos se deu de forma muito difícil, mas a mestiçagem entre índios e espanholas se deu
de forma mais fluida, como Herren nos mostra na seguinte passagem, destacada por
Márcia Navarro:
“Como uma precisa mostra das estreitas relações que existem entre
sexo e poder, ali onde os espanhóis não conseguiram um rápido
triunfo sobre os indígenas, por sua obstinada resistência, produziu-se
“a mestiçagem ao contrário”: os índios fecundaram os ventres das
espanholas, em sua grande maioria escravas, com filhos que
acabariam sendo seus amos”
O problema desta “mestiçagem ao contrário” é que ela acabou por se voltar contra os índios,
que viam nesta mestiçagem uma forma de triunfo contra o invasor. Dentro do romance, é
graças a mestiçagem que ao ressurgir como laranjeira, Itzá consegue identificar traços
de seu povo em Lavínia, como já fora dito anteriormente, em outra passagem ouvimos
Flor revelar:“(...) levamos o indígena no sangue”(p.243). Estes traços peculiares, como
o jeito de andar, podem servir de exemplo para o que Rama classifica como
“transculturação bem-sucedida”. Aqui podemos observar que mesmo sofrendo uma
subalternização, os indígenas conseguiram deixar encravado nas gerações futuras,
surgidas depois da invasão, suas marcas observadas no cotidiano das nações latino-
americanas, de uma maneira sutil. Ressaltando tais aspectos através do realismo mágico,
Belli nos mostra a América Latina como um “protoplasma incorporador”, característica
sentida por José Lezama Lima. (Moreiras, 2001 :222). A América Latina se forma como
uma região onde raças e culturas se misturam e se assimilam.
No começo deste texto afirmamos que Itzá relembrava seu passado enquanto
tentava entender a nova época na qual ela havia submergido. Ao tentar entender esta
nova época, surge diante do leitor detalhes do período ditatorial da Nicarágua, que no
romance aparece ficcionalizado com o nome de Fáguas. Com o passar da narrativa, as
frutas da árvore de Itzá vão brotando até atingir o estado perfeito para serem
consumidas. Em um dia de domingo, Lavínia decide fazer um suco com as laranjas do
seu quintal. Ao ingerir o suco, Itzá passa a habitar o sangue de Lavínia:
Ao percorrer as veias de Lavínia, Itzá passa a conhecer seu interior, descobrindo lacunas
que deveriam ser preenchidas, espaços de silêncios que estavam adormecidos. O espírito
guerreiro de Itzá começa a preencher estes espaços, acordar os silêncios. Lavínia ao
passar uma temporada na Europa, deixou-se influenciar pela onda feminista que atingia
o ápice do movimento. Volta para Fáguas, decide morar sozinha, numa casa deixada de
herança pela tia, e trabalhar num escritório de arquitetura. Passa a viver sua vida da
maneira que lhe parece mais cômoda, sem prestar conta de seus atos, sem pretensões de
achar o tal homem ideal e completamente alheia às contradições sociais que a
circundam. Depois de tomar o suco, Lavínia passa a ter sonhos estranhos com povoados
sendo queimados, arcos e flechas, lembranças de um passado histórico que a incomoda.
Através do suco, simbolicamente, passado e presente se misturam despertando em
Lavínia uma herança cultural e genética que havia sido lançada ao ostracismo. Itzá
reconhece o sangue do seu povo dentro de Lavínia, este sangue deve ser acordado para
que Lavínia possa ampliar sua visão de mundo. Ao mesmo tempo em que Itzá atua no
insconsciente de Lavínia, esta passa a se relacionar com Felipe, um colega de trabalho.
Felipe é um homem misterioso, recebe ligações que o fazem sumir no meio do
expediente e ficar fora durante dias. Com o andamento da relação Lavínia descobre que
Felipe faz parte da Frente de Libertação Nacional. O amor por Felipe e o trabalho de
Itzá acabam por despertar Lavínia para uma nova consciência de mundo. O despertar
angustiado de Lavínia para esta nova vida, faz com que a personagem sinta-se
desconfortável junto aos antigos amigos e a desperte para a existência de uma realidade
social que existia paralela a sua.
A missão de Itzá fora cumprida. Resgatando a memória cultural de seu povo que
estava adormecida no sangue Lavínia, Itzá consegue expor as feridas históricas da sua
nação, denunciar o progresso que é feito através da subjugação do outro e idealizar um
futuro que não deixará em vão os séculos de luta contra a opressão. Quando é
despertado em Lavínia uma nova consciência social e sua identidade passa por um
processo de reconstrução, o ideal feminista puramente subjetivo de ter “um teto todo
seu” passa a ser encarada de maneira insuficiente. O ideal de Virginia Woolf de ver as
mulheres independentes financeiramente e donas de seu próprio destino passa a ser
alargados por uma consciência maior. Ao achar que sua vida está vazia, Lavínia nos
mostra que a mulher também é parte de um todo que deve se unir para modificar a
história da nação e construir uma sociedade mais justa. Esta nova consciência é
despertada a partir do convívio com a enfermeira e guerrilheira Flor. A enfermeira
representa dentro da obra o ideal de luta de classes. Para ela a única forma de
emancipação feminina e de outros estratos sociais oprimidos seria a partir do fim da
ditadura de Somoza. Para que tal propósito fosse alcançado dever-se-ia haver uma luta
de classes onde trabalhadores e trabalhadoras se uniriam contra o capitalismo. Através
da fusão de duas mulheres separadas 500 anos, a obra de Gioconda Belli nos mostra que
a emancipação da mulher só seria completa a partir do momento que ela abandonar o eu
para abraçar o nós, além de fazer saltar o índio escondido no inconsciente latino-
americano.
BIBLIOGRAFIA