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A sÉ vELhA DE COIMBRA

A sÉ vELhA DE COIMBRA
MARIA DE LURDES CRAVEIRO

SÉ VELHA
d CoIMBRA
A sÉ vELhA DE COIMBRA
MARIA DE LURDES CRAVEIRO

SÉ VELHA
d CoIMBRA
1
2
TÍTULO 012
A SÉ VELHA DE COIMBRA A DIOCESE DE
COIMBRA E A SÉ
AUTOR
MARIA DE LURDES CRAVEIRO 013
MARIA LEONOR PONTES: 004 DE CONIMBRIGA 076
Os “Tesouros da Sé”: APRESENTAÇÃO A COIMBRA ESPAÇOS FÍSICOS
a memória recuperada E SIMBÓLICOS
008 018
EDITOR INTRODUÇÃO A RENOVAÇÃO 077
DIRECÇÃO REGIONAL DE ROMÂNICA DA SÉ A IGREJA
CULTURA DO CENTRO A FACHADA POENTE
026 A FACHADA NORTE
RESPONSÁVEL DA EDIÇÃO A CONVIVÊNCIA MEDIEVAL A CABECEIRA
ANA MARIA BOTELHO COM OS PODERES O CORPO DA IGREJA
A CAPELA-MOR
COORDENAÇÃO EDITORIAL 032 A CAPELA DE S. PEDRO
MARIA JOSÉ BENTO O BISPADO DE A CAPELA DO SACRAMENTO
D. JORGE DE ALMEIDA
FOTOGRAFIA 126
PEDRO MEDEIROS 040 A SACRISTIA
A GESTÃO DA
ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA CULTURA RENASCENTISTA 132
JOÃO MOURA RELVAS O CLAUSTRO
045 A GALERIA POENTE
DESIGN A SÉ BARROCA A LIGAÇÃO INTERROMPIDA
FEB DESIGN À IGREJA
048 A GALERIA NASCENTE
IMPRESSÃO O TUMULTO POMBALINO A GALERIA SUL
GRÁFICA MAIADOURO OS ANDARES ALTOS
052
ISBN DE MISERICÓRDIA À 148
978-989-95354-5-9 UTOPIA DAS ORIGENS A TORRE

DEPÓSITO LEGAL 057


xxx xxx A ACTUALIDADE 150
BIBLIOGRAFIA
TIRAGEM 058
1000 exemplares OS “TESOUROS DA SÉ”: 153
Coimbra 2011 A MEMÓRIA RECUPERADA CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
ANTÓNIO PEDRO PITA
DIRECTOR REGIONAL DA
CULTURA DO CENTRO DO
MINISTÉRIO DA CULTURA
INTRODUÇÃO na sábia gestão dos valores humanistas do O papel da Igreja Moderna e a focalização
MARIA DE LURDES CRAVEIRO renascimento, na incorporação do dina- no desempenho dos bispos de Coimbra
mismo barroco, na adaptação às novas tem sido, nos últimos anos, estabelecido
funções decorrentes da Reforma Pomba- por José Pedro Paiva.
lina da Universidade ou na aceitação das
práticas interventivas dirigidas pela cultura No âmbito da historiografia artística, a en-
romântica na obsessão da conquista pela trega vai também para o momento capital
“pureza original”, o carácter valorativo da da fundação da Sé que, no século XII, se
Sé extrai-se da “generosidade” com que erguia de novo e plasmava no país o mais
sempre aceitou todas as interferências categorizado dos edifícios religiosos.
dadas pelo tempo. As operações, de natu- Disso dá conta a investigação de Manuel
reza mais ou menos “cirúrgica”, a que o Luís Real e, particularmente, a dedicação
A Sé Velha de Coimbra desempenhou edifício foi sendo sujeito nunca, afinal, des- de Vergílio Correia e António Nogueira
sempre um papel de tremenda projecção virtuaram um patamar reconhecidamente Gonçalves. A monografia elaborada por
nos caminhos traçados ao longo do tempo qualificado que sempre envolveu a concor- António de Vasconcelos permanece, volvi-
na cidade. No domínio e protecção da co- rência de muitas e diversas vontades. dos 75 anos após a sua publicação, como
munidade cristã, ameaçada até 1064 pelo o trabalho mais consistente na leitura
perigo islâmico, na construção dos meca- Assim, quase se estranha que não tenha ha- global da vida da Sé. No rescaldo das
nismos da Fé, no alicerçar das estruturas vido outro investimento historiográfico em grandes obras de restauro efectuadas
urbanas sedimentadas na zona alta da ci- torno de uma estrutura que, durante sécu- nos finais do século XIX e até à década
dade ou no apoio aos equipamentos fun- los, dinamizou a matéria espiritual no ter- de 30 do século seguinte, o registo das
damentais a uma dinâmica social e ritório alargado da diocese e suscitou todas informações coligidas constitui, ainda
cultural, a Sé Velha adquiriu o estatuto de as práticas no terreno da construção mate- hoje, o ponto de partida para muitas inda-
uma dignidade alcançado a partir dos ní- rial da Fé, ao mesmo tempo que reivindi- gações que não esgotam a riqueza patri-
veis de qualidade com que foi interferindo cava a actualização dos procedimentos nos monial da Sé.
nos destinos cruzados das populações e domínios do artístico. A historiografia que
dos poderes. inclui a Sé tem, sobretudo, privilegiado as Este livro é tanto o resultado dos diversos
faixas do medieval nas interacções econó- contributos historiográficos como o fruto
Ponto alto na captação das correntes artís- micas e sociais estabelecidas, nas relações de um percurso implementado pelo Insti-
ticas mais actualizadas em tempos diferen- diplomáticas com a Santa Sé ou na abor- tuto Português do Património Arquitectó-
ciados, o edifício da Sé Velha pautou a sua dagem mais circunstanciada da acção dos nico a que agora a Direcção Regional de
actuação por critérios de rigor e erudição. bispos (vejam-se, no desenvolvimento dos Cultura do Centro deu forma. É, em suma,
Desde o século XII, na implementação de estudos de Pierre David, os trabalhos de uma homenagem à Velha Sé que, prescin-
um românico internacional, na exposição Maria Helena da Cruz Coelho, Maria Te- dindo das funções catedralícias, não abdi-
dos primeiros sinais da cultura gótica resa Veloso, Leontina Ventura ou, mais re- cou de uma solenidade majestosa que
(abstraindo o caso particular de Alcobaça), centemente, Maria do Rosário Morujão). persiste ainda e sempre...
1 A DIOCESE DE
COIMBRA E A SÉ
DE CONIMBRIGA
A COIMBRA

em Conimbriga até cerca de 585, no rescaldo


dos ataques suévicos de 465-466, não obs-
tante a suspeita de que alguns bispos aqui
tenham, esporadicamente, regressado.
A cidade foi então entrando em declínio e
progressivamente abandonada, mesmo
que, por hipótese, Almansor a tenha ainda
atacado em 986. Enquanto Conimbriga,
também pela ausência de achados arqueo-
lógicos esclarecedores, não teve ocupação
islâmica relevante, a antiga Aeminium,
conquistada em 714, haveria de configurar

A
história da diocese de Coimbra en- um território marcante de poder civil e re- (página anterior)
contra-se indissociavelmente ligada ligioso. Na mudança da designação para Tecto de alfarge
madeira policromada,
à história da cidade. E, a estas his- Coimbra teria, aliás, tido um papel funda- inícios do séc. XVI,
tórias, junta-se também o percurso da ci- mental o facto de os bispos se continuarem MNMC, Inv. nº 12179
dade de Conimbriga, sem que, até hoje, se a intitular como episcopi conimbrienses,
tenham estabelecido contornos claros ainda que o rei visigodo Quintila (636-640)
sobre a mudança espacial operada pelos aqui tivesse cunhado moeda como Iminio.
bispos ou as circunstâncias precisas em A Coimbra islâmica (nos dois grandes pe-
que ocorreu a passagem. De facto, a dio- ríodos entre 714 e 878 e entre 987 e 1064)
cese sedeada em Conimbriga haveria, em assumiria a designação de Qulumbriya ou
época ainda não completamente apurada, Qulumriya, ao mesmo tempo que pac-
de transitar para Aeminium, a designação tuava com a instalação da frágil estrutura
romana da cidade de Coimbra. A historio- da Igreja cristã.
grafia divide-se entre os séculos VI e IX,
com especial fundamento ou na importân- Numa reconfiguração historiográfica ainda
cia estratégica de Coimbra banhada pelo não comprovada, a sede do bispado teria
Mondego e na identificação dos bispos que condições para efectuar a transferência de
frequentaram os concílios ocorridos nesta Conimbriga apenas no âmbito da recon-
faixa temporal ou nas condições diferencia- quista de Coimbra por Afonso III em 878.
das que a cidade podia oferecer a partir da Esta hipótese centra-se na convicção de
primeira reconquista de Afonso III em 878. que a cidade, longe de desempenhar o
papel “marcadamente militar” que lhe
Uma posição historiográfica firmada de- anda precocemente atribuído, teria
fende que a sede de bispado se manteve construído, de facto, esse arrojo militar

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(associado à efectiva presença do governa- gações parecem orientar-se para a identifi-
dor e à formidável alcáçova que iria para cação do local onde hoje assenta a Sé
sempre dominar a cidade) apenas a partir como o exacto espaço de implantação de
do século X. A fragilidade da defesa da ci- uma primeira catedral e, porventura, coin-
dade islâmica ou cristã até ao domínio de cidindo também (ou numa área de grande
Almansor e do califado de Córdova inviabi- proximidade) com a ocupação da mesquita
lizaria então o acolhimento condigno e se- islâmica. O fragmento de pedra calcária
guro das estruturas do bispado. Da mesma com a inscrição MARIAE VIRGINIS, encon-
forma que a decadência generalizada da trado pelas obras da restauração iniciada
antiga cidade romana de Aeminium, com em 1898 nas fundações da igreja (do ter-
os consequentes níveis de ruralização, ha- ceiro pilar da nave ao Evangelho), atesta a
veria de promover a manutenção do bis- preexistência de uma estrutura arquitectó-
pado em Conimbriga. Nesta perspectiva, nica cristã já dedicada à Virgem. Ou seja,
Nausto, bispo entre 867 e 912, teria efecti- as próprias evidências arqueológicas de-
vamente inaugurado uma implantação da monstram que a catedral que hoje perma-
qual o bispado nunca mais haveria de nece substituiu uma outra de contornos
prescindir. ainda imprecisos. Tal como mostram, na
sequência dos registos árabes reaproveita-
Fosse como fosse, foi a cidade projectada dos, a presença da influente comunidade
para o papel de reduto fronteiriço (que moçárabe no território da cidade.
manteve depois da sua incorporação na
taifa de Badajoz em 1022), a inexpugnável Depois da conquista definitiva de Coim-
Coimbra, que acabou por sucumbir sob a bra em 1064 ficam mais claras as estraté- bispo D. Paterno (1080 - c. 1087), homem O território da diocese foi sendo reconfi- Inscrição com
pressão do cerco de Fernando Magno e gias políticas e administrativas de um culto e capaz de promover (por docu- gurado até ao século XX. Um primeiro do- dedicatória à Virgem
“MARIAE VIRGINIS”
voltar em 1064, definitivamente, às mãos poder controlado pelo moçárabe Sesnando mentação não totalmente credível) a di- mínio (até aos meados do século VI)
dos cristãos. Foi o que lhe permitiu tam- Davides, a quem caberia também funda- nâmica de uma escola catedralícia ou coincidente, grosso modo, com a larga
bém resistir a nova invasão muçulmana mental desempenho na reorganização do instituir o cabido da Sé. Mas as pressões faixa entre os rios Douro e Tejo viu altera-
em 1117. E foi, em suma, o sistema de mu- dividido espaço religioso. Representante do partido franco, no sentido de imple- dos os seus limites pela criação das dioce-
ralha, o ingrediente vital para a segurança, dos interesses de Fernando Magno e, de mentar também em Coimbra o rito ro- ses de Lamego (569), Idanha (570) e Viseu
que possibilitou a construção de um poder igual modo, da confiança de Afonso VI, mano proposto pela reforma gregoriana, (572), sempre no acompanhamento do
episcopal alicerçado na sábia gestão da co- Sesnando pautou a sua actuação por uma levariam então à mudança encabeçada processo de solidificação da Reconquista
munidade social diversificada e portadora política de conciliação social, protegendo pelo novo bispo D. Crescónio (1092-1098). cristã. O percurso da Igreja portuguesa ha-
de diferentes crenças religiosas. a comunidade moçárabe e apoiando o Com o diluir das pretensões moçárabes veria de assistir à criação de novas dioce-
rito hispânico peninsular. Na nova confi- representadas em D. Paterno, e morto ses, com a necessária partilha do território
Se as dúvidas subsistem em torno da guração da diocese restaurada, a ele se Sesnando em 1091, virava-se nova página e a consequente oscilação das fronteiras
transferência do bispado, todas as investi- deve em grande parte a nomeação do na vida da Catedral. diocesanas.

a sé velha de coimbra 014 | 015


A RENOVAÇÃO
ROMÂNICA DA SÉ

António de Vasconcelos, de uma hipotética


passagem subterrânea entre a Catedral e a
zona da alcáçova consubstancia uma liga-
ção física dos poderes, que haveriam de ser
geridos num quadro de equilíbrio mais ou
menos instável ao longo de toda a Idade
Média. A renovação da Sé decorre, assim,
da dupla necessidade de transmissão da
imagem fortalecida de autoridade: do bispo,
na causa pela supremacia face à concor-
rência dos poderes religiosos instalados na
cidade, e do rei, no complexo processo de

A
(página anterior) construção da independência do alargamento territorial para sul. É desta
Fachada poente território português, associada à forma que se pode também interpretar a
e norte
séc. XII instalação da corte em Coimbra participação de Afonso Henriques no cus-
em torno de Afonso Henriques, marcou teamento das obras da nova igreja.
Igreja da Sé não apenas a estrutura urbana com a obri-
séc. XII
gatória instalação dos equipamentos ade- O momento inaugural da reconstrução da
quados à sua natureza de capitalidade Sé permanece uma incógnita. Se é certo que,
mas implicou também o reforço da di- no rasto das indicações do Livro Preto da Sé,
mensão religiosa sustentada pelo bispado. parece ter sido o bispo D. Miguel Salomão
Ao longo do decisivo século XII, a cons- (1162-1176) o grande responsável pelas
trução do mosteiro de Santa Cruz, a nova campanhas que conduziram a Sé a uma re-
ponte sobre o Mondego ou as obras na formulação sem precedentes, a verdade
torre de menagem do castelo são indicado- também é que parece ter havido essa inten-
res suficientes para compreender as dinâ- ção esboçada anteriormente, sem que a ini-
micas instaladas na cidade, no âmbito da ciativa tivesse condições de concretização.
criação de novos pólos de desenvolvi- Por esse motivo, uma datação aceite para
mento religioso, económico, social ou a renovação da Sé situa-se em torno a 1162,
militar. projectada até 1184, altura em que teria
sido sagrada a capela-mor e inaugurado
A Sé, pilar da comunidade cristã e impor- o culto, mesmo que os estaleiros monta-
tante instrumento de poder na conquista dos não tivessem ainda concluído todas
da aceitação e credibilidade do jovem as obras. Por outro lado, e contrariando
reino, não podia também deixar de sofrer esta posição, tem-se afirmado uma alter-
profunda remodelação. A notícia, dada por nativa de leitura para a cronologia da Sé.

a sé velha de coimbra
Com base em estudos de Pierre David e portal axial da Sé e tem como colaborador Portal poente
Manuel Luís Real, prefigura-se a possibili- directo um mestre Bernardo substituído, séc. XII
dade de fazer recuar o início dos trabalhos após a sua morte, por Soeiro. Para ins- Sigla de canteiro na
ao pontificado de D. Bernardo (1128-1146), peccionar o obra e traçar o portal ter-se-ia fachada poente da Sé
a coincidir também com o momento cru- chamado o arquitecto francês, por quatro séc. XII
cial do arranque da independência do novo vezes vindo de Lisboa onde se encontrava, Capitel da galeria
reino. Assim, a D. Miguel Salomão caberia, dando cumprimento ao programa constru- do trifório
em fase de encerramento dos principais tivo a realizar no contexto das novas linhas séc. XII
trabalhos, a dotação de benesses, onde se fronteiriças estabelecidas com as conquis-
incluíram ricas alfaias litúrgicas, e uma ati- tas de Santarém e Lisboa em 1147.
tude mecenática dirigida particularmente à
capela-mor e à edificação do portal. Fosse como fosse, a construção da Sé, nos
meados do século XII, decorreu sobre a
Na mesma indefinição historiográfica co- constituição de fortíssima estrutura ele-
loca-se o problema da identificação de uma vada de podium, a partir do qual se definiu
mão-de-obra sem contornos precisos e o mais impressionante programa arquitec-
com formações diferenciadas que englo- tónico do românico português. Com afini-
bam a cultura moçárabe. Apurada, desde dades às marcas europeias de reconhecida
há muito, está a participação de Roberto, qualidade formal e espacial, a Sé configu-
mestre francês que teria chegado a Coim- rou um espaço de três naves e cinco tra-
bra em data incerta, seduzido por um mos, com as galerias altas do trifório sobre
mercado de trabalho dinamizado pelos as naves laterais, e uma cabeceira tripar-
progressos da Reconquista. Nunca foi tida e decrescente. Sobre a estrutura geral
contestada a origem francesa do arqui- assenta poderosa abóbada de berço reves-
tecto com, porventura, filiação à região de tida de torais (com abóbada de aresta sobre
Clermont e com um percurso incerto que as naves laterais), em equilíbrio sustentado
passaria por eventuais contactos com a também pelos pilares cruciformes no corpo
arte italiana mas, seguramente, pelo grande da igreja. A decoração, remetida sobretudo
caminho da peregrinação até Santiago de aos capitéis e ao portal, evoca as sensibili-
Compostela. Ligado ou não à edificação do dades expressas ao longo dos caminhos da
mosteiro de Santa Cruz (1131) (que Antó- peregrinação e privilegia o encontro de um
nio Nogueira Gonçalves identifica como mundo interpretativo de bizarras fantasias
pedra basilar de um românico B – tecnica- ornamentais (de catequéticos objectivos?)
mente evolucionado e culturalmente pró- com o incipiente afloramento vegetalista
ximo dos modelos internacionais), Roberto que, em explosão controlada da natureza,
está presente na definição específica do haveria de dominar os séculos seguintes.

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Planta actual da Tal como a sugestiva influência islâmica Idade Média. Acérrimo defensor da ausên-
Sé Velha patente no portal reentrante se esgotaria cia de qualquer escada no portal principal,
DRCC
na subsequente cultura medieval. Vasconcelos divulgaria os resultados da
Capitel da igreja campanha arqueológica de 1933: o der-
séc. XII A organização geral da igreja, orientada rube da plataforma que unia desde o bis-
pela cabeceira a nascente, estrutura os dois pado de D. Jorge de Almeida as duas
eixos perpendiculares (das linhas traça- portas da igreja (a axial e a porta Espe-
das do portal à capela-mor e pelos braços ciosa), ampliada com D. Afonso Castelo
salientes do transepto) com intersecção Branco e reconfigurada em 1898 com An-
no cruzeiro e identificando a simbólica da tónio Augusto Gonçalves, pôs a desco-
cruz. Por esta via, a Sé transforma-se berto o cemitério medieval frente à Sé e as
também no espaço de salvação por exce- fundações da casa do vodo (da relação ou
lência. da audiência) a escasso metro e 70 da
linha do portal da igreja. A presença de
Na década de 30 do século XX, por ocasião registos desenhados na zona parietal in-
da construção da escada que António de ferior da fachada poente, bem como a
Vasconcelos rotulou como macabra, de- falta de quaisquer indícios de encosto de
sencadeou-se intensa polémica relacio- uma presumível escada frontal ou lateral
nada com o protagonismo da entrada axial ao portal e sobre a necrópole levaram o
na igreja românica. Tratava-se de resolver ilustre erudito de Coimbra, socorrendo-se
a questão da acessibilidade pelo portal a de outros exemplos (alguns de distante
poente, sabendo-se que a porta a norte paralelismo), a defender a entrada princi-
(sempre aberta no século XVIII) desempe- pal pela porta Especiosa românica, de-
nhou também esse papel ao longo da pois oculta pela que lhe foi sobreposta.

a sé velha de coimbra
Sé com a plataforma Ainda para Vasconcelos, o acesso pela porta Comprovadamente, porque a linha da fa- A noroeste, portanto, da linha da fachada a coroação dos reis além-Pirinéus; da fabri- Demolição do
ampliada por axial passou apenas a fazer-se a partir do chada da Sé corta algumas sepulturas, veri- poente da Sé, inviabilizando também cada imposição da capitalidade em Coimbra tabuleiro da Sé
D. Afonso Castelo 1933 (António de
Branco séc. XIV com passadiço de dois degraus la- ficou-se em 1933 que a necrópole era anterior desta forma os critérios de Vasconcelos. (na qual o mosteiro de Santa Cruz desempe- Vasconcelos, A Sé-
1890 (António de terais. Certo é que antes da intervenção de à sua construção, mesmo que pelo adro se Os muros romanos encontrados em 1933 nharia tão importante papel), António Filipe velha de Coimbra...,
Vasconcelos, D. Jorge de Almeida havia já uma estrutura continuassem a praticar enterramentos. poderiam, no século XII, estar há muito Pimentel sustentou a mudança de estraté- vol. II, Coimbra,
A Sé-velha de 1935, Est. XII)
Coimbra..., vol. I, montada que dava acesso à Sé pelo portal Em 1933 as sepulturas foram encontradas tempo desactivados e permitir, assim, uma gia construtiva da Sé pela década de 60 do
Coimbra, 1930, Est. V) axial: a pretensão do bispo em comprar a preservadas depois das três intervenções estrutura de acesso à igreja preservando século XII (quando se encontra aqui docu- Desenho com a
casa da Câmara foi justificada “para se conhecidas no adro; da mesmíssima também as sepulturas. mentada a presença de mestre Roberto). marcação dos
Plataforma da Sé tabuleiros de
recriada em 1898 fazer e acrecentar o tauolleiro della mais do forma que a possível entrada românica a A partir daí, o românico internacional em D. Jorge de Almeida,
por António que era por seer muito pequeno” (Vascon- poente as podia ter protegido. Nesse ano, Foi recentemente recuperada a tese de Coimbra seria também dirigido para servir D. Afonso Castelo
Augusto Gonçalves celos, 1935, p. 222). Certo é também que se os critérios da ciência arqueológica falharam Vasconcelos, defendendo a impossibili- os propósitos régios ligados à coroação e Branco e António
IBMC, C-575 Augusto Gonçalves
a documentação é explícita sobre a entrada a divulgação de um conjunto de informa- dade do acesso a poente. Por via de uma sagração litúrgica (e aqui teve também sobre a necrópole
axial no século XIV não se pode concluir ções que teria sido vital para a compreensão política ideológica sustentada pela dina- lugar a coroação de D. Sancho I, em 1185), medieval
pela sua ausência no período anterior. deste espaço; por exemplo, a revelação pre- mização de uma imagem de autoridade actos da mais alta solenidade que reque- (António de
Vasconcelos,
Disso mesmo dá conta o registo de enterra- cisa das cotas ou a identificação mais cui- que Roma negou a Afonso Henriques até riam a montagem de adequado aparato ce- A Sé-velha de
mento de um benfeitor da Sé, efectuado em dada da definição dos muros encontrados Alexandre III em 1179; da projecção de idên- nográfico. Ao portal axial, inacessível do Coimbra..., vol. II,
1222, num “monumento de pedra do lado (que Vergílio Correia reconhece como roma- tica afirmação de poder pelo rito da coroa- exterior e em posição elevada, seria reser- Coimbra, 1935, p. 199)
dos degraus pelos quais se sobe à porta nos e medievais). De facto, a convicção de ção a que se tinham submetido os reis vada uma espécie de último acto, lugar onde
ocidental, do lado da torre dos sinos” (Alar- António de Vasconcelos na identificação leoneses (consanguíneos do primeiro rei o rei, consagrado por Deus, podia então ser
cão, 2008, p. 123). E bem perto, cronoló- das estruturas murais frente ao portal com português) em Oviedo; das práticas con- aclamado pelos homens.
gica e culturalmente, a igreja de S. Tiago a casa do vodo foi já contrariada por Jorge substanciadas no Pontifical de Santa Cruz
ostenta também o portal com o muro devi- de Alarcão que a localiza mais a norte e de Coimbra (ou Pontifical de Braga, orga- O problema da acessibilidade do portal a
damente aparelhado, muito acima do pavi- junto à linha definida pela actual rua de nizado para uso do respectivo arcebispo); poente, longe de estar solucionado, conti-
mento do largo. Quebra Costas (Alarcão, 2008, pp. 123-125). da consuetudinária tradição que estabelecia nua, assim, em aberto.

a sé velha de coimbra 024 | 025


A CONVIVÊNCIA manteve com a Sé uma atitude constante
MEDIEVAL COM OS de desafio, escudada na sua directa sujei-
PODERES ção a Roma e no seu estatuto de Isento
face aos direitos reconhecidos do bispo.
A primeira contenda surgiu logo por altu-
ras da fundação do mosteiro em 1131, pre-
tendendo a Sé que os crúzios lhe fizessem
doação de todos os seus bens assegu-
rando, assim, a respectiva subordinação.
Tais ambições provocaram a pronta reac-
ção do arcediago D. Telo que obteve de
Inocêncio II, por bula de 26 de Maio de
1135, o privilégio de Isento e colocando o
mosteiro sob a protecção directa do pa-
pado. Expressivamente, o Papa recomen-
dava ao rei D. Afonso Henriques que,
“não permitas que alguém os perturbe”
(Cruz, 1963-1964, p. 25). Os conflitos nesta
matéria arrastar-se-iam durante anos e ha-
veriam de serenar apenas em Março de
1162, pela chamada Carta de Liberdade
concedida ao mosteiro pelo bispo D. Mi-
guel Salomão, crúzio convicto que renun-
ciaria ao bispado acolhendo-se então ao

P
Túmulo de ode dizer-se que, desde os começos, claustro regrante. A autonomia do mos-
D. Egas Fafes a Sé restaurada atravessou perío- teiro face à tutela diocesana seria reco-
segunda metade
do séc. XIII dos de grande intranquilidade em que nhecida por Alexandre III logo em 1163,
se sucederam conflitos a diversos níveis. quase duas décadas antes do reconheci-
(página seguinte) As pressões iniciais para instaurar a opera- mento papal da independência nacional.
Claustro da Sé
1218 tividade da reforma gregoriana conviveram De uma habilidade diplomática exemplar,
com uma atmosfera onde a competição os crúzios garantiam, assim, a protecção
entre moçárabes e reformadores atingiu ní- papal e colocavam-se também sob a
veis lendários vertidos ainda na pena de guarda régia. Durante a Idade Média, os ar-
Alexandre Herculano com a história do gumentos esgrimidos pelas duas partes,
“bispo negro”. Em tempos de cerrado in- mosteiro e Sé, no sentido de capitalizar ra-
vestimento no processo da independência zões próprias, mostram um equilíbrio ins-
jogava-se também, paralelamente, a car- tável e pronto a exacerbamentos muitas
tada do domínio eclesiástico e da sujeição vezes difíceis de conter.
da diocese de Coimbra à supremacia me-
tropolítica de Braga, contrariando outras Por outros tantos episódios de atribulação
pretensões de obediência a Toledo ou a passaram as relações com a Ordem do
Santiago de Compostela. Templo, quando esta se furtava ao paga-
mento dos direitos episcopais sobre as igre-
A rivalidade entre a Sé e as Ordens reli- jas de Ega, Pombal ou Redinda. Pelos anos
giosas foi, de igual força, sentida ao 50 do século XIII, o bispo D. Egas Fafes
longo de toda a Idade Média. Particular- travava a mesma batalha da arrecadação
mente, o mosteiro de Santa Cruz, de cóne- da dízima sobre os mosteiros cistercien-
gos regrantes de Santo Agostinho, ses de Seiça, Almaziva, Lorvão e Celas.

a sé velha de coimbra
Túmulo de Pela dimensão do preenchimento do celeiro As iniciativas explícitas no sentido de instaurar construiu o primeiro coro alto de que há no- D. Afonso II nas obras do claustro, emer- Escultura jacente de
D. Pedro Martins da Sé (porventura situado na linha do casario regras disciplinares, na sequência das directi- tícia no espaço catedralício em Portugal. gindo para outras directivas estéticas dife- D. Estêvão Anes
inícios do séc. XIV Brochardo
frente à fachada norte da igreja) passavam, de vas emanadas dos concílios de Constança Terminado em 1477 com uma estrutura sus- rentes da igreja da Sé, vai ao encontro de primeira metade
igual forma, os níveis da autoridade do bispo (1417-1418) e Basileia (iniciado em 1431), pas- tentada por dois arcos de cantaria, corria uma atitude moderna em rota de colisão do séc. XIV
sobre as paróquias e mosteiros da diocese. saram pelas operações de distanciamento sobre a porta axial e avançava até ao se- com a pretendida independência do clero
entre os clérigos e a comunidade laica; pas- gundo par de pilares da igreja. O governo do diocesano. As contendas arrastar-se-iam
Os conflitos entre os bispos e o cabido saram também, assim, pela revolução ope- bispo D. Afonso de Castelo Branco (1585- com particular agudeza no reinado de
foram também uma realidade frequente. rada no coro da Sé. No século XV, o coro 1615) haveria de o aumentar, dotando-o de D. Sancho II.
As nomeações papais ou a interferência estava instalado na nave central elevado por nova balaustrada e de abundante revesti-
régia sobre os bispos, à revelia das expecta- um degrau relativamente ao pavimento da mento de talha. Foi com D. Afonso III que se tornou evi-
tivas do cabido, conduziram a vida interna igreja e com muro ou gradeamento sepa- dente a aposta régia no sentido de captar a
da Sé a uma atmosfera com períodos de rando os cónegos dos leigos. Entrava-se no As medidas régias pelo controlo sobre a fidelidade dos bispos. Numa aproximação
oposição mais ou menos declarada e coro pelo transepto e a sua localização ia até Igreja forneceram, em suma, um quadro de conveniente às duas partes, o processo da
mesmo à ausência de reconhecimento do ao terceiro par de pilares da igreja. Nos ban- relações delicadas, com uma estabilidade corrida aos poderes episcopais passaria
bispo pelo cabido, como aconteceu com cos que o delimitavam havia espaço para 40 precária de difícil gestão entre o rei e a Sé. pela confiança do rei e pela dependência
D. Mateus Martins (1268-1279). Por outro cónegos; o trono do bispo situava-se no topo À projecção de uma vontade de centraliza- dos privilégios eclesiásticos à tutela e ao
lado, e numa antevisão da reforma da Igreja, a poente, de frente para o altar e tinha, à sua ção régia do poder, explícita na primeira di- patrocínio régios. Exemplos reveladores
os bispos tentaram, desde cedo, discipli- esquerda, o assento para o chantre e o te- nastia, a Sé reagiu prontamente apelando dessa ligação estreita ao círculo da corte
nar as várias instâncias do clero diocesano. soureiro-mor e, à sua direita, o deão e o mes- à defesa dos direitos episcopais. É nesse são os bispos D. Egas Fafes (1247-1267),
Registe-se, nesta matéria, a atitude particu- tre-escola. No topo nascente sentavam-se contexto de conflito aberto que se situa o D. Pedro Martins (1296-1301) ou D. Estêvão
larmente enérgica de D. Aimerico d’Ébrard outras quatro dignidades eclesiásticas. bispado de D. Pedro Soares (1192-1232), Anes Brochardo (1303-1318). Em direcção
(1279-1295), tentando controlar abusos e voz activa contra a ingerência de D. San- à Idade Moderna, a engrenagem da liga-
contrariar uma prática instalada de demis- Em 1469 o bispo D. João Galvão (1460- cho I e D. Afonso II nos assuntos inter- ção dos poderes estava definitivamente
são das responsabilidades eclesiásticas. 1482), o primeiro bispo-conde de Coimbra, nos da Igreja. A expressiva participação de lançada.

a sé velha de coimbra 030 | 031


O BISPADO DE mais alto nível (Enea Silvio Piccolomini – o Manteve correspondência assídua com o Portador de uma carga italianizante explí-
D. JORGE DE ALMEIDA futuro Pio II - ou Nicolau V), bem como a Magnífico Lourenço de Médici, foi embai- cita, desenvolveu uma proximidade às
viagem a território francês em 1471 em mis- xador do rei D. João II em Roma e não se correntes humanistas do Renascimento
são diplomática para tratar do casamento da furtou, no desempenho desse cargo, a atri- que a sua actuação à frente da diocese
infanta D. Joana com o rei de França Luís XI, tos com o papa Sisto IV, na contenda sobre de Coimbra e a sua abertura mecenática
proporcionaram a D. Lopo uma abertura às o bispo de Silves. Na corrida aos benefí- não deixaram de traduzir. O bispo não
novas correntes estéticas e exigências cien- cios eclesiásticos, o rei pretendia para a deixou de se fazer acompanhar em
tíficas que haveriam então de estimular os governação da diocese de Silves o seu con- Coimbra por italianos como o decano do
próprios filhos. sanguíneo D. Afonso mas Roma obstava Cabido, Michelagnolo Bonichi di Casena,
com o facto de este ter casado clandesti- falecido em 1507 e sepultado na capela do
D. Jorge de Almeida era irmão de D. João de namente o que inviabilizava a nomeação. Sacramento, em obra promovida pelo so-
Almeida, segundo conde de Abrantes, A questão resolveu-se já com Inocêncio VIII, brinho, Marco António Bonichi, arcediago
guarda-mor de D. João II e vedor da sua declarando D. João II obediência ao papa e da Sé.
Fazenda; de D. Diogo Fernandes de Al- o resultado saldou-se, em 1486, pela no-
meida, sexto prior do Crato, monteiro-mor meação de D. Jorge Martins para a Sé de No seu longo período de governação, o
de D. João II, alcaide-mor de Torres Novas Braga, de D. João Álvares, prior do mos- bispo de Coimbra, segundo conde de
e a quem D. João II confiou a educação a teiro de Grijó, para a Sé de Silves e de Arganil e inquisidor-mor do reino a partir
protecção dos interesses de seu filho ilegí- D. Afonso de Portugal para a Sé de Évora. de 1536, atravessou as conjunturas políti-
timo D. Jorge; de D. Pedro da Silva, comen- Não eram, de facto, novidade as desinteli- cas diferenciadas que percorreram os rei-
dador-mor da Ordem de Avis, enviado em gências entre o poder régio e as mais altas nados de D. João II, D. Manuel e D. João III.
1492 a Roma por D. João II para prestar instâncias da Igreja. Pela mesma altura, o A sua presença em momentos de impor-
obediência ao papa Alexandre VI, homem Príncipe Perfeito acabava de rematar o con- tância política e diplomática como em
próximo de D. Manuel que acompanhou o flito com o bispo de Évora, D. Garcia de Évora em 1490 (na recepção à princesa
rei em 1498 na viagem a Castela e Aragão; Meneses (regressado de Roma em 1482), D. Isabel, filha dos Reis Católicos, prome-

O
governo de D. Jorge de Almeida de D. Fernando de Almeida, bispo de Ceuta que tinha reagido contra os oficiais régios tida ao infante D. Afonso e futura mulher
(1482-1543) ofereceu à Sé um dos desde 1493, núncio do papa Alexandre VI e que violavam as liberdades eclesiásticas. de D. Manuel) atesta bem a força do seu
seus capítulos mais brilhantes. com fortíssimas ligações à família Bórgia, O bispo é preso em Palmela onde morre a testemunho no sonho acalentado da
Atravessando um momento crucial na vira- entre quem viria a morrer em 1499 ou 1500; 1484, na mesma data em que, em Roma, união dos dois reinos; tal como o acom-
gem de uma cultura política, ideológica e ou de D. Francisco de Almeida, primeiro D. Jorge de Almeida se manifesta adepto da panhamento da morte de D. João II em
estética o bispo centrou esforços na cons- vice-rei da Índia. Seus sobrinhos eram, por causa do rei na questão delicada do procla- 1495 no Alvor revela uma proximidade
trução de uma imagem alicerçada em co- exemplo, o primeiro reitor da Universidade mado exílio do bispo de Silves. No percurso constante aos círculos mais altos do
nhecimento e habilidade na gestão do em Coimbra, D. Garcia de Almeida; D. Leonor da centralização régia, entre a expectativa poder.
património à sua guarda. Era filho de D. Lopo de Vasconcelos, a abadessa do mosteiro de dos benefícios e os compromissos de con-
de Almeida (terceiro neto de D. Pedro I e Celas que contrata com Nicolau Chanterene veniente obrigação, também era hora de cor- Em Coimbra é a figura marcante e tutelar
D. Inês de Castro, primeiro conde de a execução do seu túmulo em 1526; ou rer riscos e assumir posições partidárias da espiritualidade, em constante e ade-
Abrantes e vedor da fazenda de D. Afonso V, ainda D. Joana de Noronha, casada com o explícitas. quada renovação. O esforço evidenciado
alcaide-mor das vilas de Abrantes, Punhete 2º barão do Alvito, D. Diogo Lobo da Silveira, nas Constituições do Bispado, as primeiras
(Constância) e Torres Vedras, senhor de o responsável pela construção do castelo do A 22 de Maio de 1482, com 25 anos de publicadas pela diocese na cidade de Braga
Abrantes, Sardoal, Mação e Almendra) e de Alvito (1494-1504). idade, clérigo de Ordens menores e cónego em 1521, no sentido de imprimir regras de
D. Beatriz da Silva. O pai integrou, em 1451- de Lisboa, Sisto IV nomeava-o então admi- comportamento e disciplina aos clérigos
1452, o séquito de elite que acompanhou à Encontra-se hoje comprovada a estadia de nistrador do bispado de Coimbra, no encontra correspondência numa política
Itália a futura imperatriz da Alemanha, a in- D. Jorge de Almeida em território italiano mesmo dia em que D. João Galvão era de autoridade levada a cabo pela Igreja
fanta D. Leonor de Portugal, irmã de desde, pelo menos, 1469. O futuro bispo transferido para Braga; no ano seguinte, a Moderna que, simultaneamente, desen-
Afonso V, para o negociado casamento com frequentou, muito jovem, os estudos em 14 de Dezembro de 1483, em carta autógrafa volve mecanismos variados para a reforma
Frederico III. A viagem aos focos importan- Pisa e Perugia e teve uma longa perma- e enviada de Roma para o secretário do em curso. Neste contexto, não surpreende
tes da cultura humanista do Renascimento nência na Cúria Romana, à semelhança, duque de Milão, Bartolomeu Chalco, ainda a vertente mecenática que enquadrou a
(Siena, Florença, Roma e Nápoles) e os con- aliás, do que aconteceu com outros prela- se intitulava embaixador do rei de Portugal e gestão de D. Jorge de Almeida à frente da
tactos com as entidades mecenáticas do dos portugueses no mesmo período. bispo de Coimbra. diocese de Coimbra.

a sé velha de coimbra 032 | 033


Sé com a cobertura Desde muito cedo, o bispo preocupou-se Das escavações arqueológicas no adro da Sé se auerem derribar certas casas que hy movia a encenação montada no espaço da Revestimento
no coro alto com uma política construtiva estendida a já no século XX, pôde apurar-se a campanha stauam...” (Correia, 1930, p. 187). Um pro- capela-mor. Cerca de 35 anos mais tarde e azulejar da igreja da
fotografia da década Sé por D. Jorge de
de 70 do séc. XIX: todas as áreas da sua tutela. Sem que se realizada aqui no governo de D. Jorge de Al- cesso iniciado em 1498 e que implicava o em momento esteticamente diferente, cabe- Almeida
Ramirez, Alexandre... possa precisar com rigor o volume e a meida e depois aumentada em tempo de derrube da casa da Câmara (na altura desti- ria a vez à Porta Especiosa de manifestar a (António de
(Coord.), Passado ao orientação das obras que efectuou no paço D. Afonso Castelo Branco. Aquilo que o pri- nada às audiências judiciais) situada em preponderância da Sé pela aplicação de uma Vasconcelos, A Sé-
Espelho...“, velha de Coimbra...,
Coimbra, 2006 episcopal, “afogadas” por reconstruções meiro fez, foi criar uma plataforma artificial frente da fachada poente da Sé (ou um linguagem arquitectónica e decorativa de vol. I, Coimbra, 1930,
posteriores, as evidências do período ma- por cima da necrópole medieval que, anu- pouco mais a noroeste). Na mesmíssima rigor canónico e clássica erudição. Est. XXV)
Retábulo principal, nuelino que sobreviveram até tarde, e que lando o declive do terreno, se estendia em data de 1498, movia D. Jorge de Almeida es-
Crucifixão
Olivier de Gand e incluíam os tectos de alfarge, provam a ex- forma rectangular a 6.30 metros e a 6.10 forços junto do Cabido no sentido da anga- É longa a lista de peças oferecidas pelo
Jean d’Ypres, tensão do sentido reformista no paço. metros para além da linha do último corpo riação de fundos para a construção do novo bispo à sua Sé. O exemplo do conjunto de
1498-1502 Hoje preservam-se no local, convertido no saliente da fachada à sua esquerda e abran- retábulo que viria a ser executado pelos dois alfaias litúrgicas e peças ornamentais, elen-
Museu N. de Machado de Castro, os tectos gia as duas entradas principais do edifício. artistas flamengos que haveriam de impri- cado por Pedro Álvares Nogueira, é revela-
provenientes da Sé com a mesma sedução O novo tabuleiro criado vinha, assim, resol- mir na escultura de Coimbra uma nota mar- dor da enorme reformulação dos objectos
pelo serpentinado geométrico da decoração ver problemas de circulação e visibilidade cante do dinamismo nórdico. É, pois, de culto por que passou então a Catedral.
islâmica. porque, em 1501, “...ho adro da dita See era notória a unidade entre estas obras, cujo es- Dessa lista faziam parte ricos paramentos
muito pequeno e a mayor parte delle staua pírito obedecia a um programa explícito de ornados de ouro e seda, um anel com pe-
Na Catedral, a expressão máxima do poder na rua publica e assy por a emtrada e se- engrandecimento da Sé, a breve prazo com- dras preciosas, um missal de pergaminho
espiritual na cidade, o esforço não foi ruentia da dita see seer em luguar fraguoso plementado com o revestimento azulejar no iluminado e coberto de veludo carmesim
menor. Com a atenção concentrada no pro- e nom seer boõa seruentia, que o dito sñor seu interior, e, por analogia, de enalteci- com brochas de prata esmaltadas e doura-
tagonismo da Sé, promoveu as medidas ne- bispo determinara de fazer huum patim mento do seu bispo, arvorado em reconhe- das, várias tapeçarias ou peças litúrgicas
cessárias à configuração de uma imagem de amte as portas principaaes da dita see e cido príncipe mecenático. A entrada axial de prata como a conhecida custódia da-
poder assente na renovação estética e no fazer diamte .s. huum terreiro larguo e es- ganhava um outro aparato (nobilitado pela tada de 1527, a caldeirinha renascentista
impacto urbanístico pela criação de novas paçoso que fosse adro. E pera esto assy construção do podium) que, por sua vez, na e alguns cálices que se guardam no
e mais dinâmicas áreas de sociabilidade. fazer e fabricar como deuia era necessario representação do espectáculo do poder, pro- Museu Nacional de Machado de Castro.

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No seu testamento lavrado a 29 de Abril vida persiste nesse cuidado que o leva a ram a sua modernização num espírito Custódia
de 1542, nomeando como testamenteiros providenciar a continuidade das “obras da que emprega aqui os artistas mais cre- prata dourada, 1527,
MNMC, Inv. nº 6091;
os seus sobrinhos D. Pedro de Almeida e minha see das que eu ora mais tenho na denciados da época. A oficina de escul- O26
o arcebispo de Lisboa D. Fernando de Al- vontade de se fazerem saom acabaremse tura mais criativa na cidade, liderada por
meida, juntamente com o protonotário os hornamentos para que mandey jaa Diogo Pires-o-Moço, encarregou-se da Caixa de hóstias de
D. Jorge de Almeida
Heitor Rodrigues de Gouveia, cónego da comprar hua boa parte de brocado e pe- execução das duas lápides (também no prata dourada,
Sé, e Fernão Brandão seu criado, ainda dras que tenho em meu poder e se entre- Museu Machado de Castro), uma evoca- 1º quartel do séc. XVI,
deixa à Sé, “todo o balsamo e reliquias garão ao meu cabido se os eu primeiro tiva da renovação do altar do Santíssimo MNMC, Inv. nº 6080;
O17
que se acharem em minha casa ao não acabar por meu falecymento e desco- Sacramento e datada de 1491, a outra, a
tempo de meu falecymento e as caixas brir as abobodas da see que tem sobre a inscrição funerária do bispo de Fez, D. Ál- Caldeirinha de
em que forem guardadas ora sejão douro crasta e fazeremse novos peitoris de ma- varo, assinada por Diogo Pires. Do mesmo água benta
prata, 2º quartel do
ou de prata” (A.N.T.T.: Cabido da Sé de neira que fiqe tudo em cima limpo e des- escultor é ainda a pia baptismal que, em- séc. XVI, MNMC,
Coimbra, 2ª Incorp. Caixa 47, Doc. 1867, cuberto e se ouver inda pera mais na bora se encontre hoje na Sé (para onde Inv. nº 6093; O29
fl. 3/v). metade se despendera nas ditas obras transitou em 1901), foi uma encomenda
como bem parecer aos senhores arce- do bispo para a sua igreja de S. João de
No mesmo enquadramento decorrem o bispo e dom pedro dalmeida meus testa- Almedina e ostenta uma iconografia po-
revestimento azulejar da Sé (com azule- menteiros” (A.N.T.T.: Cabido da Sé de derosa e ligada à vocação evangelizadora
jos comprados por Olivier de Gand em Coimbra, 2ª Incorp. Caixa 47, Doc. 1867, do cristianismo. A pia que em 1772 foi
Sevilha em 1503) e o novo retábulo para a fl. 4/v). transferida da Catedral Velha para a Nova,
capela-mor, executado entre 1498 e 1502 é obra de Pero e Filipe Henriques e de-
por Olivier de Gand e Jean d’Ypres, onde Os critérios de renovação da imagem corre das empreitadas que os filhos de
constam repetidamente as armas do pre- através da utilização das artes plásticas Mateus Fernandes levaram a cabo na Sé,
lado numa criação paradigmática de leitura manifestam-se, assim, em obras que não também por iniciativa de D. Jorge de Al-
ascensional obrigatória. No final da sua alteraram a estrutura da Sé mas implica- meida.

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Guirlanda da torre Sobre o cruzeiro da igreja, a base quadrangu- da magnífica Senhora da Anunciação, datá- Neste capítulo, podem invocar-se os exem- A partir desta, foi reforçada a ligação da Virgem da
do cruzeiro com lar sobre a qual assentava a torre de três anda- vel da década de 20, que fazia parte de altar plos das igrejas de S. João de Figueiró dos igreja ao claustro com a presença de dois Anunciação
motivos flamejantes “mestre dos Túmulos
do tempo de res em forma de coruchéu piramidal foi colocado na capela de Santa Maria no claus- Vinhos ou de S. Miguel de Penela. arcos: um abrindo para a igreja, o outro com dos Reis”, calcário,
D. Jorge de Almeida ornada de guirlanda com motivos flamejantes tro ou ainda no retábulo de Nicolau Chante- ligação imediata ao claustro (transposto de- c. 1525, MNMC,
IHRU, 095704 que seriam destruídos em 1932. Uma campa- rene invocando a vida e martírio de S. Pedro, Atento às necessidades espirituais de uma pois para o piso alto) e cujas afinidades ao Inv. 3441; E107

Fachada norte da nha de obras, iniciada em 1635 no bispado de sintomaticamente o tema imposto na ca- comunidade e com um percurso de vigi- seu congénere, em cota inferior, não ofere- Painel cerâmico
igreja com o túmulo D. Jorge de Melo, revestiu a torre de azulejos pela do lado do Evangelho, o local do sepul- lância sobre o património construído, a cem dúvidas quanto à encomenda ou ao com brasão de
de D. Sesnando azuis e brancos. É esta emblemática torre cro do bispo. D. Jorge de Almeida estava, assim, reservada tempo artístico envolvido. D. Jorge de Almeida
(foto posterior a produção sevilhana,
1898) (António de que surge na vista panorâmica de Coimbra, a categoria de protector das estruturas físi- inícios do séc. XVI,
Vasconcelos, A Sé- executada em 1669 por Pier Maria Baldi, e A presença do brasão do bispo nas obras cas de suporte da religião e da fé. O centro Verdadeiro príncipe humanista, e à seme- MNMC, Inv. nº 1400;
velha de Coimbra..., que faz parte do acervo iconográfico com sob a esfera do seu patrocínio é uma cons- do poder episcopal, a Sé, estava na primeira lhança de idênticos procedimentos encetados C1680
vol. I, Coimbra, 1930,
Est. VII) que foi documentada a viagem de Cosme de tante observável, não apenas no âmbito es- linha das atenções do bispo. Atravessando o pelo rei D. Manuel em Santa Cruz, também
Médicis à Europa ocidental. No governo de pecífico da arquitectura da Sé ou do paço período crucial da imposição dos mecanis- o bispo ensaiou uma acção política de apro-
D. António de Vasconcelos e Sousa (1706- episcopal mas também na vasta área da dio- mos ligados à formação do Estado Moderno ximação do seu poder a uma espécie de mito
1717) a torre seria demolida para dar lugar cese como, por exemplo, na igreja de Santa e à necessidade de transmissão de renovada fundacional. As ossadas de D. Sesnando,
ao zimbório revestido de azulejos azuis e Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho. e eficaz imagem de poder, o bispo não se recuperadas da campa rasa no adro da Sé,
brancos que hoje se mantêm. Em território geográfico e cultural de rivali- poupou a esforços no sentido de conferir foram colocadas em túmulo cuja visibili-
dades, não ficou o bispo alheado do seu aos espaços sob a sua tutela uma outra rou- dade se construiu na fachada norte da igreja.
A adopção explícita dos formulários renas- papel interventor na modernização das es- pagem feita de suprema autoridade. Estabe- A memória da figura mais representativa da
centistas, introduzida na Sé por D. Jorge de truturas presentes na diocese; quer através lecendo o contraponto com a reforma em libertação da cidade ao jugo muçulmano
Almeida, conciliada com a vontade de das obras de encomenda directa quer atra- curso no mosteiro de Santa Cruz, numa lin- emparceirava com a obra realizada pelo
aliança à mão-de-obra mais qualificada, re- vés da concessão das necessárias licenças guagem de sedução e com tremendo im- bispo no exterior da Sé (a breve prazo com-
gista-se na obra sem autor (atribuída ao des- à realização dos trabalhos, também eles pacto urbanístico, a Porta Especiosa foi plementada com a Porta Especiosa) e legiti-
conhecido Mestre dos Túmulos dos Reis) controlados pela entidade episcopal. uma das suas realizações mais brilhantes. mava a autoridade de uma Igreja renovada.

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A GESTÃO DA É com o governo de D. Jorge de Almeida
CULTURA que o Renascimento ganha uma expressão
RENASCENTISTA de visibilidade, sobretudo no contexto da
porta Especiosa ou do retábulo da capela
de S. Pedro. Mas os ingredientes da cultura
renascentista identificam-se antes de 1482
na Sé e prolongar-se-iam muito para além
da sua morte (1543) sob diferentes roupa-
gens e assumindo outras componentes
formais. E, tal como não é possível dividir
a personalidade mecenática do bispo nas
categorias aparentemente dicotómicas com
que a historiografia classificou o Gótico e
o Renascimento, também não é legítimo
retirar as heranças clássicas que se perfi-
lam na Sé ao longo de todo o século XVI,
numa declaração de vontade que chega ao
século seguinte.

Deste modo, a capela do Sacramento


(1566), pela sua aposta no plano centrali-
zado e no retábulo organizado na conci-
liação entre o dinamismo de linhas e
volumes e o preenchimento ornamental de

A
moderna historiografia tem vindo a obstinada matriz renascentista, constitui a Em tempos obstinadamente designados tal como se projectam também nas referên- Retábulo do
assumir a falácia da conceptualiza- marca expressiva da continuidade refres- como maneiristas, a condição imposta pelo cias ornamentais provindas de um outro Sacramento
João de Ruão, 1566
ção rígida dos tempos artísticos, cada pelas instruções da Contra Reforma. bispo Frei Gaspar do Casal é explícita no tempo cultural de “primeiro” Renascimento.
organizados de forma marcadamente ti- A gravidade figurativa que se inscreve na sentido da obediência ao modelo imposto Para a mesma sacristia, o bispo mandou
pológica e não deixando espaço à conti- atmosfera da capela, longe de anular a di- pelo arco da passagem ao claustro, do executar (1607) um conjunto notável de tá-
nuidade dos fluxos criativos. Assim, a mensão humana da representação, efectua tempo de D. Jorge de Almeida: “tudo de buas pintadas pela parceria formada por
atitude de D. João Galvão em 1469, na im- um percurso no tempo reconduzindo-o, maneira que fique comforme ao que com- Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão.
posição do novo coro alto, pode ser ins- assim, às faixas culturais do classicismo. vem ao decoro desta casa e delle se espera Hoje à guarda do Museu Nacional de Ma-
crita no capítulo da reformulação da Igreja O concílio que se desenrola no interior da fazemdose o arco na forma da traça que chado de Castro, as dez tábuas da série da
em direcção a uma plataforma moderna capela em torno do Santíssimo promove digua com ho outro do principio da escada” Vida de Cristo representam os temas da
de disciplina interna e reconversão das uma cosmogonia que dialoga na plata- (Almeida, 1973, pp.18-19). Anunciação, Adoração dos Pastores, Adora-
políticas de poder eclesiástico. Da mesma forma discursiva da Igreja renovada e sus- ção dos Magos, Circuncisão, Repouso na
forma, e ainda nos finais do século XVI tentada pela credibilidade da herança A atmosfera criada na nova sacristia (muti- Fuga para o Egipto, Cristo no Horto das Oli-
sob o governo de D. Afonso Castelo clássica. Uma Igreja, em suma, que não lada entre 1912 e 1918) viria a privilegiar, nos veiras, Traição de Judas, Flagelação, Coroa-
Branco, o aumento considerável do tabu- prescinde ainda do território do “antigo”, finais do século XVI, a organização de um ção e Caminho do Calvário.
leiro da Sé (mais 4.80 metros para oci- firmando nele as bases da sua actuação universo decorativo filtrado da gravura nór-
dente, para além do que tinha sido catequética e moralizadora. dica ou italiana que circulou abundantemente A circulação estabelecida no interior da Sé, pro-
estabelecido por D. Jorge de Almeida) em todo o espaço europeu. A poderosa abó- movendo a passagem da igreja para o claustro
continua a reivindicar uma cultura fundada A capela de Duarte de Melo, mestre escola da bada de caixotões preenchida com as carte- e para os andares superiores, teve, no patamar
no classicismo e nas consequentes refe- Sé, aberta no primeiro tramo à Epístola em las que dinamizaram a plástica classicizante intermédio onde se localiza hoje a fabricada
rências urbanísticas que integram o poder 1583 por Tomé Velho, ostentava o arco agora do governo de D. Afonso Castelo Branco (1939) capela do claustro, dois arcos com o
do sagrado. colocado nos andares altos do claustro. em Coimbra (1585-1615) encontra eco nou- mesmo sentido decorativo que integra a con-
tras construções patrocinadas pelo bispo, jugação de meios círculos, ovais ou losangos.

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Um dos arcos era encimado pelo brasão de filiação nessa cultura clássica “eternizada” e Arco no patamar
D. Afonso Castelo Branco que não deixou, constantemente renovada. Mesmo assim, intermédio de
ligação entre a igreja
como o fez noutras ocasiões e noutros lo- não deixam de evidenciar um caminho clara- e o claustro com o
cais, de aliar-se a D. Jorge de Almeida pela mente apontado em direcção às práticas ca- brasão de D. Afonso
manutenção de heranças reconfiguradas tequéticas e ao sentido da piedade e Castelo Branco
IHRU, 095633
sobre uma matriz ornamental. devoção barrocas.
Elmo no arco de
Os arcos construídos na igreja por Isidro O enclausuramento desta plasticidade nas ligação ao claustro
João de Ruão,
Manuel em 1638 são, mais uma vez, a evi- unidades tipológicas do maneirismo mais c. 1535-1540
dência clara de uma celebração da cultura não faz, afinal, do que comprometer a inte-
renascentista do século XVI. Os registos de- ligibilidade do processo artístico inscrito na Elmo, decoração
nos arcos laterais
corativos que os preenchem (cornucópias, fluidez do tempo. Reconhecer as variantes da igreja
motivos militares, enrolamentos vegetalis- do tempo não pode, assim, implicar o silen- Isidro Manuel, 1638
tas ou figuras geométricas de meios círcu- ciamento da continuidade e a identificação
los e losangos, sempre tratados com outro de um fio condutor sempre presente.
sentido volumétrico) reportam-se ainda ao
modelo plasmado no arco da passagem ao
claustro mas prescindem agora da repre-
sentação figurativa, obrigatória na percep-
ção do universo humanista. Por outro lado,
as pinturas seiscentistas que neles se en-
caixam estabelecem, na sua corporalidade
romanizada (veja-se particularmente o tema
do martírio de S. Sebastião), a expressiva

a sé velha de coimbra 042 | 043


A SÉ BARROCA

sou a dominar a capela-mor estendendo-se


até à zona central do transepto. Nesta si-
tuação se manteria, no entanto, durante
pouco tempo.

No governo de D. João de Melo (1684-1704)


rasgaram-se as duas grandes janelas na fa-
chada poente da igreja que assim se manti-
veram até 1900. A composição lumínica do
espaço redefinia-se então para a obtenção
de efeitos de maior visibilidade do espec-
táculo montado internamente. Pela acção

N
ão deixou a Sé de acompanhar tam- do mesmo bispo fez-se um grande investi- Zimbório da Sé
bém as exigências do tempo cultu- mento sobre o coro baixo, enquadrado por sécs. XVII-XVIII
ral que se inscreve na percepção do grades baixas de pau preto e servido por
espectáculo barroco. No âmbito do teatro dois púlpitos nos topos. Uma descrição do
litúrgico, da música ou da epifania da cor e primeiro quartel do século XVIII descreve-o
da luz, a Sé ganhou uma riqueza patrimo- da seguinte forma: “O choro he todo de
nial que, não anulando as preexistências, madeira de Angelim muito bem feito, e tem
as integrou no dinamismo dos novos mo- por cada banda dezouto cadeiras em que
delos culturais. se assentam os Conegos, meyos Conegos,
e Tercenarios, e por baixo destas em se-
O coruchéu da torre do cruzeiro foi reves- gundo andar tem outros tantos assentos
tido de azulejos azuis e brancos, num tra- que servem para cappelães, e mossos de
balho rematado em 1643 ao tempo do choro, e no espaldar do dito choro estam
bispo D. João Mendes de Távora. O exte- mettidos em molduras de talha dourada
rior da Sé ganhava assim um dinamismo admiraveis quadros de pintura romana
cromático que se manteria até hoje, pese todos de passos de Nossa Senhora, e
embora a alteração do zimbório no go- toda esta obra de cadeiras, e quadros
verno de D. António de Vasconcelos e mandou fazer o Bispo Dom João de Mello,
Sousa. excepto quatro cadeiras que ha poucos
annos se acrescentaram por ter mostrado
Entre 1635 e 1638 a igreja viu alterada a de- a experiência que em algumas funções
finição do coro baixo. De uma ocupação nam cabiam no tal choro os Conegos
coincidente com a nave central, do tran- desta See, e alguns das outras que se acha-
septo ao terceiro par de pilares, o coro pas- vam hospedes, e tambem se acrescentarão

044 | 045
quatro quadros em que estam pintados os Transepto à Epístola
Evangelistas ficando cada hum nas extremi- IHRU, 541567
dades do tal choro, e fichando-o todos” Capela-mor com
(Vasconcelos, 1930, p. 464). O cadeiral seria preenchimento de
transferido para a Sé Nova onde se mantém talha barroca
IBMC, PB-00707
na capela-mor.

O trabalho de talha dourada com que se


preencheu a capela-mor, num diálogo dinâ-
mico de formas e movimento com o retábulo
flamejante de D. Jorge de Almeida, foi inte-
grado também no pontificado de D. João
de Melo, pelos anos 80 de Seiscentos.
Atribuída ao entalhador portuense António
Gomes e possivelmente dourada pelo lis-
boeta Luís de Oliveira, a talha transportou a
Sé aos mais refinados escalões da plástica
barroca. A referida descrição do século XVIII
identifica a capela-mor preenchida “de talha
mais moderna pellas ilhargas, tecto e fronta-
ria, e na ilharga da parte do Evangelho tem
em quazi meya altura as imagens de dous
Santos Evangelistas em vulto, e da mesma
sorte hum Anjo que está anunciando à
Senhora que lhe fica de fronte na parte da situavam-se as casas do cartório e do
Epistola, aonde tambem estam as Imagens órgão, executado em 1722 por Calisto de
dos outros dous Evangelistas, e na fronta- Barros Pereira (Garcia, 1923, pp. 318-320),
ria em sima do arco tem o Anjo S. Gabriel (“hum orgão novo de vinte e quatro, cuja
em figura agigantada com o Letreiro na caixa, de madeira entalhada sem ainda ser
mão que diz Ave Gratia plena, e aos pes dourada, occupa a largura de dous arcos
deste estão em hum escudo as armas dos sinco que ... tem por banda cada nave,
reais, e nas ilhargas deste anjo estam de ficando ja sobre o choro de baixo ametade
cada banda duas imagens de Profetas que da dita caixa”) enquanto o lado da Epístola
todos fazem o numero de quatro com vesti- era ocupado pelo dispensário ou antecoro.
dos, e carapuças como taes” (Vasconcelos,
1930, pp. 465-466). A eficácia do programa Obra maior deste período, e hoje dispersa
iconográfico da capela era, assim, reforçada entre a Sé Nova e o Museu N. Machado de
com a presença das armas reais. No âmbito Castro, é a banqueta de prata do altar-mor
da pretensa recuperação da “pureza” româ- da Sé, encomendada pelo Cabido entre 1707
nica do edifício, esta talha foi apeada nos fi- e 1725. O ourives de Lisboa, António Nunes
nais de 1893 e parcialmente vendida no ano Neves, deu corpo ao projecto do ourives-ar-
seguinte. quitecto João Frederico Ludovice e o resul-
tado saldou-se pela exposição qualificada de
Nos inícios do século XVIII as galerias altas uma plástica barroca romanizada, de que dá
do trifório na igreja contribuíram também, conta o conjunto formado pela cruz, pelos
numa complexidade funcional requerida, castiçais e pelos seis bustos de Santa Cata-
para esse grau de espectacularidade própria rina, Santo António, S. Pedro, S. Paulo,
dos tempos barrocos. Do lado do Evangelho Santa Luzia e S. Francisco.

046 | 047
O TUMULTO Estudos e dos espaços a partir de 1772 e
POMBALINO que a ela se manteria fiel até à sua morte
em 1822.

O fecho do primeiro acto da odisseia refor-


mista da Universidade culminou em 1779
na exoneração de D. Francisco de Lemos.
No mesmo ano, a 12 de Setembro, tomava
posse do Bispado de Coimbra, vago por
morte de D. Miguel da Anunciação, e era
nessa qualidade que celebrava em Pombal,
a 11 de Maio de 1782, as exéquias fúne-
bres de Sebastião José de Carvalho e Melo.
De 1777 a 1799, desempenhou as funções
dos vários cargos em que foi sendo suces-
sivamente investido, destacando-se a sua
actividade à frente do Bispado com uma
acção renovadora consubstanciada na
enorme quantidade de Cartas Pastorais da
sua responsabilidade.

Em condições mais agrestes, D. Francisco


de Lemos voltaria ao governo da Universi-
dade, tomando posse como reformador-rei-

1
Retrato do 772 ditou o fim do percurso catedralí- tor a 16 de Maio de 1799. Ao bispo-reitor
Bispo-Conde, Reitor cio para o edifício. A Reforma Pomba- estava então reservada a contestação que
da Universidade,
D. Francisco de Lemos lina da Universidade contextualizou crescia no seio da Universidade, cada vez
óleo sobre tela, então um dos momentos de maior con- mais afastada do antigo espírito refor-
séc. XIX, Reitoria vulsão na sua história. O bispo D. Miguel mista, bem como a incompreensão dos
da Universidade
de Coimbra, da Anunciação (1739-1779) foi preso em meios políticos nacionais. No país devas-
Inv. nº PIN/89 1768 sob alegada acusação de interferir tado pelas invasões francesas, fragilizado
nas competências da recém-criada Real por uma Corte ausente e em vésperas das
Mesa Censória (importante instrumento conturbações do sopro liberal, o mo-
do dirigismo estatal), assumindo então a mento era propício ao rolar de cabeças.
governação da diocese, como vigário ca- Quando, a 17 de Março de 1808, o reitor
pitular, D. Francisco de Lemos de Faria partia de Lisboa, integrado numa comis-
Pereira Coutinho. Em 1774 seria nomeado são que deveria cumprimentar Napoleão
por Clemente XIV coadjutor e futuro em Baiona e discutir com o Imperador os
sucessor de D. Miguel da Anunciação. negócios do país, estava, no apuramento
Reitor da Universidade em 1770 e Refor- caótico de responsabilidades que se se-
mador em 1772, o marquês de Pombal guiria, a fornecer aos seus adversários
pôde contar com o seu mais fiel aliado na o pretexto que apressaria a sua queda.
prossecução do projecto reformista da Em Novembro de 1810, de regresso a
Universidade. Nascido no Rio de Janeiro, Portugal, era alcunhado de jacobino e
D. Francisco de Lemos acabaria por ser traidor à pátria. Desterrado no Porto du-
em Coimbra a extensão “natural” dos de- rante dois anos, só em Setembro de 1812
sígnios pombalinos para a Universidade, seria chamado a Lisboa para ser conside-
o homem que viabilizou a reforma dos rado inocente de pactos com o invasor.

a sé velha de coimbra
E, se a 21 de Maio de 1821 era eleito Depu- alfaias litúrgicas, relíquias, esculturas, a pia Plano do terreno
tado às Cortes pela Província do Rio de Ja- baptismal, os sinos da torre, o relógio, mo- que pertence à
Impressão da
neiro, a mesma assembleia haveria, pela voz biliário, o órgão, o cadeiral... Universidade
de Borges Carneiro, de o rotular de “Reliquia Guilherme Elsden,
do marquez de Pombal, magico, vingativo, A antiga igreja da Sé era entregue à Mi- 1773, BGUC,
Ms. 3377/43
despota que desterra lentes e faz quanto sericórdia e o claustro (provavelmente
quer, e exerce funções incompativeis como por sugestão do próprio reitor) adaptado
são as de bispo e reitor” (Teixeira, 1890, pp. para a instalação da Imprensa universitária.
11-12). A 8 de Outubro pedia a renúncia do As obras que aqui decorreram a um ritmo
cargo e no mesmo ano de 1821 (a 20 de veloz no cumprimento dos planos do ar-
Agosto) desistia também da Universidade quitecto Guilherme Elsden (director do
pedindo a exoneração do cargo de reforma- Gabinete das Obras e responsável pelo
dor-reitor. A 16 de Março de 1822 descansou. programa construtivo da Reforma), pu-
seram os prelos a funcionar logo em 1773.
A D. Francisco de Lemos se deverá a coni- A Imprensa ocupava toda a área delimitada
vência do Cabido em aceder à mudança a sul pela zona da Universidade e pelo colé-
(ordenada em provisão do marquês a 14 de gio dos Padres Grilos; a poente pela rua da
Outubro de 1772) da Sé para a igreja dos je- Ilha, casas do Cabido e casas e quintas par-
suítas. A expulsão da Companhia de Jesus ticulares; a nascente pela rua do Norte e a
em 1759 ditou o abandono dos seus espa- norte pela igreja, reconvertida na igreja da
ços em Coimbra, agora vagos e disponíveis Misericórdia. Os espaços que implicaram
para acolher a Sé, o Cabido e diversos recin- maior investimento centraram-se em torno
tos universitários. O argumento da estrei- do claustro e da área adjacente pela rua da
teza da velha Sé para o desempenho com Ilha que iria receber a fachada principal da
dignidade das suas funções foi largamente Imprensa.
desenvolvido. A 21 de Outubro de 1772,
com pompa e circunstância, em procissão Tratada com a atenção que derivava do seu
que incorporava todo o clero da cidade, o real estatuto, a Imprensa constituiu vital ins-
corpo universitário, representantes da no- trumento de propaganda da Reforma univer-
breza e as forças do exército, com o reitor sitária, assegurando a projecção do sentido
sob o palio transportando o Santíssimo, o ideológico reformista e desencadeando, ao
cortejo que chegou à igreja jesuítica dava mesmo tempo, o delicado processo de des-
por encerrado um capítulo de séculos e ini- sacralização da antiga Sé. O derrube da
ciava um outro em articulação mais directa torre dos sinos junto ao claustro, em 1775,
(e física) com a Universidade. Com a alte- desobstruindo a vista para a zona da Alcá-
ração imposta, transitava também para a çova e facilitando o trabalho na Imprensa,
Nova Sé o espólio categorizado que deixou seria o último contributo da Sé Velha para o
o velho edifício despido de paramentos, engrandecimento da Universidade.

a sé velha de coimbra 050 | 051


DE MISERICÓRDIA À
UTOPIA DAS ORIGENS

A
Planta da Sé Velha 15 de Outubro de 1772, a igreja da Sé Durante anos os sinos repicaram aqui, ani-
adaptada a igreja da (com casas adjacentes viradas à rua mando o espaço urbano e acelerando também
Misericórdia com a
indicação da sacristia do Norte) era entregue à Misericórdia a decomposição da estrutura renascentista.
Guilherme Elsden, e, nessa qualidade, figurou já em todas as
c. 1773, MNMC, plantas e documentos executados no âm- Numa etapa seguinte, e fruto da desactiva-
2231; DA118
bito da Reforma Pombalina. O atribulado ção da igreja românica de S. Cristóvão como
percurso da Irmandade tinha passado pela sede da paróquia, passou a Sé Velha a assu-
ocupação de várias casas na cidade até à fi- mir essas funções. Em 1839, a evidência
xação na igreja românica de S. Tiago, sobre mais forte das intervenções efectuadas foi a
a qual se ergueram as dependências julga- construção do campanário (com quatro
das necessárias. Os constrangimentos pro- sinos, provenientes do também desactivado
vocados pela ocupação da grande igreja da colégio de Tomar da Ordem de Cristo) na fa-
Sé em tão insólitas circunstâncias motivou o chada principal da igreja. O campanário, vi-
descontentamento da Mesa que, à morte do sível em muitas fotografias antigas, seria
rei D. José em 1777, aproveitou a oportuni- demolido nas obras de 1933.
dade para voltar a S. Tiago. No ano seguinte,
a igreja da Sé ficava vaga. Na segunda metade do século XIX, o con-
junto edificado da Sé Velha ressentia-se
Foi a Ordem Terceira de S. Francisco que da falta de compreensão e de abandono.
voltou a ocupar a antiga Sé, instalando-se A pressão citadina, do bispo-conde D. Ma-
aqui entre 1785 e 1816. Desta ocupação há nuel de Bastos Pina e a ajuda crucial da rai-
notícias sobre a construção de um campa- nha D. Amélia (que visitou a Sé em 1892)
nário em madeira sobre a Porta Espe- ajudaram a erguer um projecto de recupe-
ciosa, concorrendo para a sua deterioração. ração que ganharia forma a partir de 1893.

a sé velha de coimbra
Portal poente, Liderada por António Augusto Gonçalves, se restaurou também; retirou-se a balaus- ajuntavam as Ecomodidades da pesca aos Restauro do claustro
coluna com uma primeira campanha de obras foi orien- trada de pedra no grande janelão superior; prazeres da caça. E à frequência dêste passa- IHRU, 095671
decoração capitelar
c. 1898 tada no cumprimento das regras que pauta- em 1898, reconfigurou-se o patamar exterior tempo se devem atribuir as numerosas Sé com o patamar
vam então a filosofia interventiva sobre o (encurtando a extensão dada por D. Afonso mutilações dos ornatos ... O corpo supe- de D. Afonso
património edificado. O grande objectivo Castelo Branco, anulando o ângulo N/O rior é em grande parte construído de can- Castelo Branco, as
janelas barrocas e o
era, de comum acordo com as mais concei- numa linha onde se colocou a fonte e taria friável; e, encontrando-se fendilhada campanário
tuadas práticas levadas a cabo na cultura criando uma entrada a sul) e substituiu-se pela acção da geada, facilmente se desa- IBMC, PB-00685
ocidental, reconduzir os edifícios à sua natu- o anterior remate de pedra por grade de gregará, em assolação progressiva. Basta
reza “primitiva”. Uma ideologia de contor- ferro; no mesmo ano de 1898, em Setem- um brando ponteiro de pau, para desfazer
nos nacionalistas legitimava a crença na bro, deu-se início ao restauro possível da porções sensíveis...” (Vasconcelos, 1930,
possibilidade de recondução dos espaços Porta Especiosa, sempre acompanhado por pp. 382-384).
a uma espécie de estado puro de fabrica- António Augusto Gonçalves e cujos relató-
ção e na “autenticidade” dessa prática e dos rios constituem um lamento profundo No interior da igreja removeu-se a generali-
seus resultados. Por isso se trabalhou, com pelos níveis irrecuperáveis a que a digna en- dade dos azulejos, retiraram-se rebocos de
os meios possíveis, na perseguição da uto- trada do edifício tinha chegado: “Os destro- cal, suprimiu-se a talha que revestia a abó-
pia da reconversão ao românico e à suposta ços de tôda a fachada são certamente o bada e as paredes laterais da capela-mor,
atmosfera lumínica deste período; por isso efeito do abandono e desleixo, e da incon- desmantelou-se o coro alto, deslocaram-se
se mutilou também o rosto da Sé, despo- sistência específica da pedra de Ançã; mas túmulos, restauraram-se os retábulos e rede-
jando-o de uma riqueza construída ao longo outro motivo existe de poucos conhecido. finiu-se o pavimento. No claustro iniciou-se
de séculos e apagando os traços da memó- Haverá setenta anos, as pombas vagabun- uma campanha de restauro que só ao longo
ria “indesejável”. das, que pousavam nas saliências da arqui- da primeira metade do século XX teria mais
tectura, eram alvejadas pelos amadores forte envolvimento, a partir das obras de de-
Na igreja, a fachada poente foi limpa dos venatórios, que tranquilamente sentados molição efectuadas já pela Direcção Geral
vãos barrocos que ladeavam o portal que na fronteira escada do celeiro do Cabido, dos Edifícios e Monumentos Nacionais.

a sé velha de coimbra 054 | 055


A ACTUALIDADE

E
Cabeceira românica A 4 de Julho de 1902, depois desta primeira No ano seguinte constrói-se a escada frente m meados dos anos 70 do século XX O recinto aberto do claustro foi igualmente
com a ligação à campanha de restauro e após a vinda da pia ao portal poente que, mau grado todas as nota-se acentuada mudança de atitude intervencionado, identificando-se a rede de
sacristia de D. Afonso
Castelo Branco baptismal da igreja de S. João de Almedina críticas, se mantém ainda como o principal nas intervenções levadas a cabo pela canalização das águas e as cotas do aflora-
IHRU, 095686 em 1901, a igreja foi solenemente reaberta acesso à igreja. Em 1939 é desactivada a D.G.E.M.N. As preocupações pela conserva- mento rochoso. A antiga torre dos sinos,
ao culto. Para esse efeito, veio a imagem da ligação entre a igreja e o claustro no eixo ção, como reflexo das orientações prescritas submetida às obrigatórias campanhas ar-
Capela fabricada
com o encerramento Rainha Santa Isabel, a escultura de Teixeira da porta Especiosa e forja-se uma outra pela Carta de Veneza de 1964, teriam conti- queológicas, foi, então, o espaço conside-
da ligação entre a Lopes venerada em Coimbra, para a celebra- que rompe o espaço anteriormente ocu- nuidade nos últimos anos do mesmo sé- rado de eleição para a constituição de um
igreja e o claustro ção pontifical presidida pelo bispo D. Manuel pado pela capela de S. Tomás de Vila Nova. culo. Os problemas colocados no âmbito da centro interpretativo e expositivo em torno
(1939), IHRU, 095814
de Bastos Pina e acompanhada com grande No lado do claustro transforma-se então o manutenção e salvaguarda da Sé foram da riqueza patrimonial da Sé.
emoção na cidade. circuito da passagem em capela que viria, então enfrentados pelo Instituto Português
durante algum tempo, a albergar a pia bap- do Património Arquitectónico. Os trabalhos O projecto de musealisação da Sé, levado a
Entre 1912 e 1918 sacrificou-se a sacristia tismal e hoje mantém o retábulo quinhen- de consolidação, iniciados pela porta Espe- cabo nos primeiros anos do século XXI, im-
de D. Afonso Castelo Branco em nome da tista da Natividade. Reconvertida à nudez ciosa, estenderam-se à limpeza e conserva- plicava, portanto, um compromisso assu-
visibilidade da cabeceira românica. Mas é minimalista da ideia fabricada em torno do ção dos outros portais e das superfícies mido entre as tutelas do Estado e da Igreja.
na década de 30 do século XX que o con- românico e despojada de um sentido lumí- murais exteriores da Sé. Particularmente de- O conjunto edificado não podia perder a sua
junto edificado da Sé Velha adquire a defini- nico que não se lhe autorizava, a Sé podia licada, a intervenção sobre a porta Especiosa natural componente religiosa, ao mesmo
ção que hoje apresenta. Em 1932 então apresentar-se como o produto mais obrigou, desde logo, à constituição de equi- tempo que saía reforçada a dignidade e a
elimina-se a guirlanda com que D. Jorge de eloquente dos conceitos historiográficos do pas multidisciplinares e implicou o dificí- importância histórica e patrimonial do edifí-
Almeida tinha coroado a torre lanterna; em século XIX e, por conseguinte, o mais limo repto lançado aos técnicos para a cio já classificado, em 1907, como Monu-
1933 destrói-se o campanário que rema- “puro” modelo de uma cultura erudita recu- resolução dos graves problemas que afec- mento Nacional. Este projecto, ou uma
tava desde 1839 a fachada poente, su- perada do século XII português. O mesmo é tavam toda a estrutura. No interior da igreja iniciativa de maior viabilidade no âmbito
prime-se a plataforma que unia a porta dizer que a Sé transporta tanto uma plastici- fizeram-se sondagens nas abóbadas das museológico, continua por desenvolver.
poente à porta Especiosa e constroem-se dade do românico nacional como a visão naves laterais que permitiram a constatação
nesta os cinco degraus de ligação à rua. que a recriou a partir do século XIX. de registos quase contínuos de pigmento.

a sé velha de coimbra 056 | 057


OS “TESOUROS DA SÉ”:
A MEMÓRIA RECUPERADA

MARIA LEONOR PONTES

O
Cruz de altar património móvel que actualmente em documentos; por exemplo, nos Inven-
prata branca e se encontra na Sé Velha não re- tários onde se arrolavam todas as peças
dourada, 1º quartel
do séc. XVI, MNMC, flecte a riqueza do templo que foi que estavam à guarda do tesoureiro da Sé.
Inv. nº 6084; O21 durante séculos a Catedral da importante A documentação permite acompanhar o
cidade de Coimbra. Se a generalidade das progressivo enriquecimento deste tesouro
Concha e patena do
cálice abaixo igrejas possui um conjunto (mais ou menos e, ao mesmo tempo, observar como, por
ouro, 2ª metade do numeroso e rico) de alfaias, ornamentos e razões diversas, algumas peças foram de-
séc. XVI, MNMC, livros necessários à realização dos actos li- saparecendo. Mas o tesouro da Sé não se
Inv. nº 6095; O31A /
6095A; O32 túrgicos, pode imaginar-se a quantidade e reduz às alfaias e ornamentos de valor que
o valor do tesouro que se foi acumulando aqui se foram reunindo; envolve muitos
Cálice com brasão na Sé. Nos rituais religiosos, a preciosidade outros objectos e acontecimentos que bem
de D. João Soares
ouro, 2º metade do das alfaias, a cor dos ornamentos e vestes, o se podem considerar «tesouros», porque
séc. XVI, MNMC, aroma do incenso e a melodia da música as- preciosos: os livros, a paramentaria, a pin-
Inv. nº 6095; O31 sumiam um significado simbólico, que em tura, a escultura, o espólio musical, etc.
Cálice de D. João tudo devia concorrer para a glória de Deus
Mendes de Távora e do espaço à salvaguarda dos homens. Ourivesaria
prata dourada, Este acervo inclui uma multiplicidade de
1ª metade do
séc. XVII, MNMC, Desse manancial (simultaneamente mate- objectos de Ourivesaria. Para celebração
Inv. nº 6106; O47 rial e espiritual) apenas parte chegou aos do esplendor divino as alfaias litúrgicas
nossos dias e a maioria das peças que sub- são, por adequada simbologia, feitas em
siste encontra-se noutros locais. No en- metais preciosos. Na realização das ceri-
tanto, mesmo quando faltam os objectos, mónias de culto são requeridos diversos
ainda é possível resgatar a sua memória vasos sagrados: o cálice e a respectiva
pelas referências e descrições registadas patena, usados na celebração eucarística;

a sé velha de coimbra 058 | 059


Gomil a píxide ou cibório, onde se guardam as com eles relacionados e, em especial, por ordem do rei Afonso Henriques, e uma cruz Relicário de S. Tomás
prata dourada, hóstias consagradas; a custódia ou ostensó- pequenas fracções do Santo Lenho onde que tinha cravadas partículas do Santo Se- de Vila Nova
1520-1540, MNMC, produção espanhola,
Inv. nº 6092; O27 rio, para expor o Santíssimo Sacramento à Cristo foi supliciado. Ao valor testemunhal pulcro, mandada fazer pelo mesmo prelado. prata dourada com
adoração dos fiéis. São ainda necessárias das relíquias juntava-se muitas vezes o valor Lamentavelmente, ambas as peças foram esmaltes, 1686-1687,
Salva várias outras alfaias, como a cruz e os cas- artístico das caixas ou cofres onde eram roubadas. MNMC, Inv. nº 6223;
prata dourada, O142
1520-1540, MNMC, tiçais sobre o altar, as galhetas destinadas guardadas, podendo ser verdadeiras jóias
Inv. nº 6092A; O28 ao vinho e à água da missa, o turíbulo e a artísticas em materiais preciosos, adop- O notável tesouro artístico da Sé foi-se cons- Nossa Senhora
naveta para a queima do incenso, a caldei- tando configurações variadas, nomeada- tituindo através de aquisições do cabido prata dourada com
vestígios de
rinha e o hissope para as aspersões de mente, a forma da parte do corpo que (nomeadamente em períodos de vacância, policromia, séc. XVI,
água benta, os vasos para os santos óleos, continham. como aconteceu entre 1717 e 1739) e, sobre- MNMC, Inv. nº 6105;
ou o gomil e a lavanda para as abluções. tudo, graças a numerosas doações e lega- O45
Além destas, a Sé possuía ainda muitas ou- A maior parte das peças de ourivesaria sacra dos dos fiéis. Entre os principais donatários
tras peças de ourivesaria como frontais de era de prata, muitas vezes dourada, podendo da Sé contam-se os reis D. Afonso Henri-
altar, sacras, salvas, imagens, cruzes proces- ainda ter decorações com esmaltes e pedras ques e D. Afonso III, assim como muitos
sionais ou insígnias episcopais. Entre elas preciosas. Os ourives recorreram também a dos seus bispos com destaque para D. Mi-
merecem referência particular os relicá- outros materiais como madeiras raras, mar- guel Salomão e D. Jorge de Almeida.
rios, pelo facto das relíquias terem sido alvo fim, cristal ou azeviche. Havia relativamente
de grande devoção ao longo dos tempos. poucas peças em ouro, embora se regis- Paralelamente, ao longo dos tempos e por
Um bom testemunho disso é a generosa tem, por exemplo, cruzes e anéis, como os motivos vários, foram desaparecendo peças.
doação feita pelo bispo D. Gonçalo Pais anéis legados à Sé pelo bispo D. Egas Fafes Algumas, por estarem gastas pelo uso ou
(1109-1127) que incluía exemplares trazi- que lhes atribuía propriedades curativas. por razões de gosto, foram fundidas para
dos de Jerusalém, Constantinopla e Roma. São, por isso, especialmente dignas de nota se fazerem outras novas. Outras, ainda,
As relíquias podiam ser constituídas por duas peças em ouro: um cálice, que o bispo foram roubadas; há, por exemplo, referência
fragmentos do corpo de Santos ou objectos D. Miguel Salomão mandou fazer por a um grande roubo ocorrido no ano de 1528.

a sé velha de coimbra 060 | 061


Contudo, o maior desfalque que se conhece edifício da Companhia de Jesus (Sé Nova). Cruz processional
aconteceu em 1476 quando D. Afonso V É aí que hoje se pode admirar a magnífica Santiago de
Compostela,
requisitou por empréstimo a prata de banqueta de prata, da autoria de Ludovice, azeviche, 2ª metade
todas as catedrais, igrejas e mosteiros do mandada fazer pelo cabido no início do do séc. XVII, MNMC,
Reino, para com ela mandar cunhar séc. XVIII (1717-1725). Inv. nº 6133; O77
moeda e assim acudir aos gastos na Cruz peitoral
guerra com Castela. Mais tarde, o rei de- Diversas outras peças que pertenceram à cristal de rocha,
volveu parte desse valor porque o Papa Sé Velha encontram-se hoje no Museu séc. XVI, MNMC,
Inv. nº 1359; O670
lhe perdoou metade do peso da prata re- Nacional de Machado de Castro, a insti-
quisitada. Mas jamais se recuperou o tuição que herdou o espólio do Museu Turíbulo com o
valor artístico ou a antiguidade de algu- das Pratas, e onde, graças à acção do brasão de D. João
Mendes de Távora
mas das peças. Observe-se, particular- bispo D. Manuel de Bastos Pina a partir prata dourada,
mente, a perda de uma imagem de prata de 1882, se foram recolhendo (e assim sal- inícios do séc. XVII,
dourada representando a Virgem com o vando) muitos exemplares de ourivesaria MNMC, Inv. nº 6510;
O193
Menino ao colo, registada num inventário e paramentaria provenientes da Sé de
do séc. XIV com o peso de cerca de 10 kg. Coimbra e de alguns dos conventos extin-
Devem ter ocorrido outras sangrias se- tos da diocese.
melhantes, pois há notícia de que o rei
D. Fernando mandou tomar os tesouros
das igrejas para pagar o soldo aos ingle-
ses. Por fim, em 1772, grande parte do
tesouro da Sé, visto que continuava a
ser pertença do cabido, acompanhou a
mudança do título catedralício para o

a sé velha de coimbra 062 | 063


Porta-paz No Museu vejam-se: caldeirinha para água benta (MNMC
prata branca e O cálice (MNMC 6081) de prata dourada 6093), produzida no 2º quartel do século
dourada, séc. XVI,
MNMC, Inv. nº 6088; do princípio do século XVI; exuberante- XVI, em prata trabalhada em relevo e inci-
O22 mente decorado com seis bustos de Profe- sões com elementos decorativos como la-
tas na falsa copa, motivos arquitectónicos çarias, mascarões e querubins. E também
Cálice
prata dourada, no nó e as figuras da Virgem, de S. Sebas- a imponente custódia (MNMC 6091), da-
1º quartel do séc. XVI, tião e de quatro Apóstolos no pé. tada de 1527, reveladora do grau de re-
MNMC, Inv. nº 6081; quinte e erudição a que chegava, nesta
O18
Entre os relicários destaca-se um (MNMC altura, a plástica renascentista. Esta peça
Relicário do 6077) do 2º quartel do séc. XV em prata era usada para expor a hóstia consagrada à
Deão João dourada. Este exemplar do gótico flame- adoração dos fiéis durante a procissão do
prata dourada,
2º quartel do séc. XV, jante, com o característico recurso às dia do Corpo de Deus.
MNMC, Inv. nº 6077; micro-arquitecturas, assume a simbólica
O14 forma de um templete. Uma inscrição em
letra gótica esclarece que continha um véu
de Santa Maria e um lenho da Vera Cruz
oferecidos á Virgem pelo Deão João, có-
nego da Sé e médico do Infante D. Pedro.

As diversas peças que ostentam as armas


de D. Jorge de Almeida (escudo esquarte-
lado com besantes e leões rampantes) tes-
temunham a generosidade das doações
feitas por este prelado. É o caso de uma

a sé velha de coimbra 064 | 065


Cruz processional Um dos exemplares mais sumptuosos da
prata branca e colecção de ourivesaria deste museu é
dourada com
esmaltes azuis e uma cruz processional (MNMC 6078) em
vermelhos, prata dourada, datável do 2º quartel do
2º quartel do séc. XV, séc. XV. Profusamente decorada com moti-
MNMC, Inv. nº 6078;
O15 vos vegetalistas, tem vários esmaltes polí-
cromos onde estão representados a
Virgem, S. João e os Evangelistas. Na inter-
secção dos braços desta cruz grega ainda
se pode ver, no verso, uma escultura de
vulto da Virgem com o Menino; da frente
terá desaparecido a imagem de Cristo cru-
cificado. Esta peça magnífica protagonizou
uma história curiosa. O bispo D. Fernando
Coutinho, falecido em 1429, deixou à Sé
prata destinada à confecção de uma cruz.
Mas esta prata foi alvo de uma disputa que
durou vários anos: João Álvares Alvernaz
pretendia que esse valor fosse usado para
pagar o fretamento de uma barca que o
bispo lhe ficara a dever. Por fim, a questão
foi resolvida a favor do cabido que assim
fez «a mais nobre cruz da Sé».

Os lavores de ourivesaria encontram-se


também aplicados na decoração de capas
de livros litúrgicos: como na capa de mis-
sal (MNMC 6182 O-101) em veludo carme-
sim com aplicações de prata, que tem ao
centro o brasão de armas do bispo D. Frei
Álvaro de S. Boaventura (1672-1783). Já não
encerra o missal original mas um exemplar
impresso em 1867, pois era frequente que
fossem mudando as obras que continham.

a sé velha de coimbra 066 | 067


Missal da Manuscritos capas ou lombadas de livros, constituindo
Sé de Coimbra Foram igualmente as exigências cultuais na hoje um importante testemunho de alguns
AUC, cofre, nº 42
Sé que levaram à formação do que viria a ser dos exemplares desaparecidos.
uma importante Biblioteca, pois eram ne-
cessários livros para a leitura no altar e livros Na biblioteca da Sé predominavam, obvia-
para o canto no coro. O cabido possuía um mente, os livros litúrgicos: sacramentários,
scriptorium próprio onde se copiavam e re- evangeliários, antifonários, missais, domin-
digiam livros e, além disso, também os com- gais, breviários, epistolários, saltérios, etc.
prava ou mandava fazer. Mas boa parte deles Havia ainda exemplares da Sagrada Escri-
resultaram de doações e legados dos bispos. tura e obras dos Doutores da Igreja como
É essencialmente através de documentos Santo Agostinho, S. Gregório Magno e
como os testamentos ou os já citados Inven- Santo Isidoro de Sevilha. Mas também se
tários que se pode formar uma ideia do con- podiam ler escritores latinos, obras de Di-
teúdo deste acervo, embora por vezes a reito (canónico e civil) e de outras ciências
maneira como os livros aparecem referidos como a Aritmética, a Astronomia, a Filoso-
(indicando-se apenas o nome do autor ou o fia, a Física ou a Medicina.
título pelo qual a obra era mais conhecida)
não permita a sua exacta identificação. Outro factor determinante para o desenvolvi-
mento da biblioteca foi a escola da Catedral,
O carácter extremamente perecível dos ma- porventura criada logo em finais do séc. XI
teriais de suporte de escrita, quer fosse o por D. Paterno para formação do clero; eram
pergaminho ou mesmo o papel, explica o re- então necessários livros para ensinar o sal-
duzido número de exemplares que chega- tério, os hinos e cânticos, as Epístolas, os
ram até aos nossos dias. Mas há outras Evangelhos e as orações. Mas a escola mi-
causas para esta escassez. Os livros da Sé nistrava outros conhecimentos, pelo que ha-
eram frequentemente emprestados, mas na veria livros para ensinar as disciplinas do
maior parte dos casos não eram devolvidos. trivium (gramática, retórica e dialéctica) e do
Por outro lado, muitos foram negligenciados quadrivium (aritmética, música, geometria
ou mesmo eliminados por se considerar que e astronomia).
tinham perdido a sua utilidade: os escritos
em letra visigótica que, com a evolução da Tudo isto contribuiu para que a Sé, tal como
caligrafia, se tornaram difíceis de ler ou os o mosteiro de Santa Cruz e depois a Univer-
grandes códices em pergaminho, pouco ma- sidade, fosse um importante pólo de cultura
nuseáveis em comparação com os volumes e ensino, patente no alto nível cultural eviden-
impressos em papel. Assim, muitos códi- ciado por alguns dos membros do seu cabido
ces foram queimados ou vendidos a peso; assim como na correcção e elegância do
outros foram reutilizados, por exemplo, em latim usado em documentos aqui redigidos.

a sé velha de coimbra
Livro de orações Música existentes na Sé, demonstra uma organiza- Trata-se de um missal (livro com os textos e Livro de orações
AUC, cofre, nº 43 Muitos dos livros litúrgicos tinham notação ção musical desenvolvida. normas indispensáveis para a celebração da fl. com notação
musical, AUC,
Livro Preto da Sé musical. Para indicar a melodia colocavam-se Eucaristia) para uso dos pontificais na Sé de cofre, nº 43
fl. XXX sinais debaixo das sílabas – os neumas. Registem-se alguns exemplos relevantes do Coimbra, que terá sido feito em finais do sé-
(ed. fac-similada) A música fazia parte da liturgia, sendo mui- património da Sé neste domínio: culo XIII ou inícios do século XIV. Curiosa-
tas das cerimónias religiosas acompanha- mente, a folha de pergaminho que servia de
das de canto. Foi criado um género de Dos manuscritos redigidos na Sé destacam-se guarda ao fim do códice estava escrita em
música própria conjugando os textos sagra- dois pela quantidade de informações histó- letra visigótica e tinha trechos de notação
dos e o ritmo melódico: o canto gregoriano ricas que fornecem: o Livro Preto – um car- musical neumada. É um fragmento de um
ou cantochão, que era um canto em unís- tulário, ou seja um conjunto de documentos, Antifonário (livro com as partes cantadas na
sono, sem acompanhamento. Todos os dias que regista doações, vendas e outros assun- missa e no ofício coral) visigótico dos fins
a Missa de Prima e as Horas do Ofício eram tos referentes à Sé, que foi mandado organi- do século X com notação musical moçárabe.
cantadas, tarefa superintendida pelo Chan- zar no século XII pelo bispo D. Miguel
tre (significativamente a segunda dignidade Salomão; e o Livro das Kalendas – que Um breviário-hinário, códice de pergami-
dentro do cabido, depois do Deão). transcreve o Martirológio de Usard (com in- nho, escrito em letra gótica e com notação
dicação do nome e pequena história dos musical de uma só linha. É posterior a 1340
Por se tratar da igreja catedral, o culto era cele- mártires e santos, assinalados no dia do ano porque já tem o hino da vitória do Salado.
brado com maior solenidade dando origem a correspondente à data da sua morte) a que
um património musical significativo mas cujo se acrescentaram extractos de testamentos, Um catenatus, com encadernação de ma-
carácter volátil torna difícil avaliar a sua riqueza. comemorações pias e outras notas. deira revestida a cabedal gravado, que con-
No entanto, conhecem-se os nomes de vá- serva ainda a corrente. Este códice do século
rios cantores ligados à Sé, como Fernão Um missal pontifical em pergaminho, com XIV, em pergaminho, é um Saltério (livro
Gomes Correia (cantor do bispo D. Jorge de encadernação de couro, escrito em letra caro- com os salmos distribuídos pelos dias da
Almeida). Um inventário datado de 1635, lina e com trechos de música gregoriana es- semana e horas do ofício) com notação mu-
elencando os livros de canto d’orgão então crita em pauta de uma única linha vermelha. sical de uma só linha.

a sé velha de coimbra 070 | 071


nhos e imagens. Nas peças mais ricas Pluvial
usava-se o fio de ouro, pérolas e pedrarias. fio de seda e fio
laminado dourado,
As cores dos paramentos e de alguns or- 1ª metade do
namentos usados nas cerimónias religio- séc. XVI, MNMC,
sas variavam segundo o tempo litúrgico: Inv. 6419; T525
branco, vermelho, verde, roxo e negro. Tapeçaria, Vénus e
O facto de haver referência a tecidos de ori- Marte surpreendidos
gem castelhana, flamenga, muçulmana e por Vulcano
produção de
até oriental permite inferir que seriam va- Bruxelas, lã e seda,
liosos e de qualidade. A maior parte destas 2º quartel do
peças perdeu-se devido ao desgaste do séc. XVI, MNMC,
Inv. nº 6050; T774
tempo e ao próprio uso. Mas ainda se
Têxteis podem admirar exemplares como um plu- Pormenor da figura
Era variado e rico o acervo têxtil que incluía vial (MNMC 6419) do século XVI, em bro- ao lado com a
representação de
paramentos (como casulas, dalmáticas, cado com decoração renascentista de S. Pedro
pluviais, manípulos e estolas), ornamentos motivos vegetalistas estilizados; tendo bor- fio de seda e fio
(toalhas, frontais de altar ou bolsas de cor- dado no sebasto seis Apóstolos represen- laminado dourado,
1ª metade do
porais) e outras peças como uma almofada tados em nichos e no capuz a Virgem com séc. XVI, MNMC,
do século XVI de influência oriental, em o Menino. Ou uma amostra de cetim de Inv. 6419; T525
seda decorada com motivos florais ou uma seda bordado e com aplicação de galões,
tapeçaria flamenga do século XVI em lã. correspondente a um fragmento de mitra,
Os tecidos mais usados eram o linho e a proveniente do túmulo do bispo D. Estê-
seda, muitas vezes decorados com dese- vão Anes Brochardo, falecido em 1318.

a sé velha de coimbra 072 | 073


Painel de azulejos O Museu Machado de Castro guarda uma Escultura
com motivo de diversidade de outros elementos que fize- Na secção de escultura encontram-se duas
laçarias
produção sevilhana, ram parte do recheio da igreja e testemu- das mais reputadas obras da imaginária de-
barro vidrado, inícios nham a riqueza, hoje ausente, da Sé: vocional portuguesa. Uma peça do séc. XIV
do séc. XVI, MNMC, em calcário, representando a Virgem
Inv. nº 5752; C1606
Azulejos (MNMC 645) popularmente conhecida
Painel de azulejos Dos azulejos comprados em Sevilha em como Senhora do Ó, da autoria de Mestre
produção sevilhana, 1503, encomendados pelo bispo D. Jorge Pêro e uma escultura renascentista da Vir-
barro vidrado, inícios
do séc. XVI, MNMC, de Almeida, decorados com esmaltes poli- gem da Anunciação (MNMC 3441), atri-
Inv. nº 5750; C1586 cromos nas técnicas da corda seca ou de buída ao “Mestre dos Túmulos Reais”.
aresta; repare-se no painel (MNMC 1401)
Nossa Senhora do Ó
mestre Pêro, calcário que apresenta um padrão semelhante ao
policromado, dos tectos mudéjares, que foram igual-
séc. XIV, MNMC, mente transferidos da Catedral para o
Inv. nº 645; E20
Museu.

Pintura
Quanto à pintura destacam-se as dez tá-
buas representando episódios da vida de
Cristo (c. 1605-1608), da autoria de Simão
Rodrigues e Domingos Vieira Serrão, enco-
mendadas por D. Afonso Castelo Branco
para a sacristia.

a sé velha de coimbra 074 | 075


2 ESPAÇOS FÍSICOS
E SIMBÓLICOS
A IGREJA

A FACHADA POENTE

A fachada poente da igreja ganha a di- dos fustes das colunas: os motivos zoo- Portal poente e
mensão de uma transparência qualitativa mórficos dos capitéis articulam-se com janelão superior
séc. XII
projectada ao conjunto edificado. A proxi- signos geométricos, espinhados ou arcos
midade aos modelos além-fronteiras trans- em ferradura e explicitam a atmosfera (página seguinte)
forma este edifício no mais representativo multicultural que molda a cidade do sé- Fachada poente e
norte da Sé
da cultura erudita do românico em Portu- culo XII. Ao portal sobrepõe-se o mata-cães séc. XII
gal e esta fachada na expressão mais aca- com o grande janelão, numa estrutura
bada de grandeza no momento capital da compositiva directamente proveniente do
consolidação dos poderes. modelo do portal das Platerías da cate-
dral de Santiago de Compostela, indi-
A fachada apresenta hoje o resultado das ciando a passagem de mestre Roberto
sucessivas intervenções que aqui se foram pelo caminho da peregrinação. Para além
inscrevendo. Organizada em cinco corpos, da igreja na Galiza, encontram-se tam-
três avançados e dois recuados em alter- bém outros exemplares europeus cujas
nância, define uma estratégia em que os afinidades com a fachada da Sé de Coim-
dois laterais funcionam como contrafor- bra são expressivas do mesmo tempo cul-
tes e o central integra o portal principal tural.
reentrante, alcançando uma projecção ex-
tensível às igrejas coevas da cidade ou a A fachada poente, tal como as outras, é
outros territórios como a igreja de S. Pedro rematada pelas ameias que reforçam o
em Leiria. A decoração do portal inscreve sentido assumido de fortaleza, à qual se
os temas mais comuns da arquitectura tem acesso pela escada construída em
românica, pactuando também com a in- 1934 e que gerou intensa polémica na ci-
terferência islâmica presente no trabalho dade.

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A FACHADA NORTE

Inscrição árabe na A linha da fachada norte da igreja integra, tal A Porta Especiosa, sobre a qual não se en-
fachada norte da como acontece a poente, algumas pedras si- contraram, até hoje, informações docu-
igreja da Sé
séc. XII gladas com as marcas de pedreiro que têm mentais precisas, e cuja designação decorre
correspondência com aquelas que ainda se do uso, de tradição medieval, dado às por-
Gárgula da mantêm na fachada da igreja do mosteiro tas catedralícias por onde entravam as pro-
fachada norte
sécs. XV-XVI de Santa Cruz, também do século XII, ou na cissões em que era rezado o salmo
torre de Belcouce denunciando o mesmo Speciosa est Maria, constitui um dos mar-
Fachada norte da Sé corpo laboral activo na cidade. O registo cos incontornáveis de referência obrigató-
mais interessante é a inscrição árabe que se ria quando se alude à arquitectura
encontra, num lugar alto, entre as duas por- portuguesa do Renascimento erudito.
tas desta fachada, a comprovar a integração Congrega vários saberes que passam pela
pacífica de mão-de-obra muçulmana ou mo- teoria e prática arquitectónica e decorativa
çárabe no estaleiro montado no século XII. da cultura clássica, pelo domínio da mito-
logia antiga e pelo conhecimento da estra-
No paramento românico da fachada, ali- tégia de localização das referências da
nham-se as frestas que iluminam a nave la- cultura cristã.
teral e o trifório e, num plano superior, as
gárgulas quinhentistas com a sua dupla na- A estrutura quinhentista vem “colar-se” à
tureza simbólica e funcional. porta românica que em tempos medievais
já usufruía de tal designação e se apresen-
Ganham especial relevo as portas que aqui tava de feição semelhante à do portal a oci-
se construíram no século XVI sob a gover- dente, embora mais sóbria e desprovida dos
nação de D. Jorge de Almeida. lavores ornamentais deste.

a sé velha de coimbra
Acompanhando o flanco da parede lateral
norte da Sé, a Porta regista três níveis dife-
renciados que vão estreitando no sentido
da altura criando, assim, uma ilusão de
acentuada verticalidade. Na globalidade,
poder-se-ia dizer que aqui se expõe um
tratado de geometria passado à pedra.
Pelo desenho da Porta Especiosa pode
constatar-se uma preocupação evidente de
simetria vertical com a utilização de uma
composição matematizada que privilegia as
figuras geométricas do quadrado, do rectân-
gulo e do triângulo. O remate superior, onde
hoje subsistem os torreões, coincidia com
um frontão triangular, parcialmente desa-
bado em 1890. O nível intermédio apre-
senta uma estrutura rectangular que se
identifica com a proporção áurea acen-
tuando a centralidade deste espaço: a va-
randa reservada à presença do bispo nas
cerimónias de impacto e projecção da dig-
nidade episcopal, com o portal deste piso
intermédio arvorado em centro de gravi-
dade da Porta. A orgânica fundamental da
Porta Especiosa exige a utilização do esqua- com o Menino no tímpano do portal, as fi- Porta Especiosa
dro e do compasso, instrumentos impres- guras que emergem dos medalhões ou a Nicolau Chanterene (?)
e João de Ruão,
cindíveis na definição de um programa desaparecida representação das quatro Vir- c. 1535-1540
arquitectónico racionalizado, onde todos os tudes Cardeais) ou com a escultura avulsa,
registos, no rasto das lições de Alberti, se de S. João Baptista e Isaías, inserta nos ni- Linhas de proporção
compositiva na
articulam entre si. De forma incontornável, o chos laterais. O tratamento dado aos rele- Porta Especiosa
projecto prévio alcança uma essência cria- vos decorativos é da mais fina execução que sobre desenho
dora como a obediência na sua execução se pressupõe o trabalho de um mestre familia- estereofotogramétrico
afirma uma necessidade pragmática de in- rizado com os temas e com a técnica em
teligibilidade. evidência.

O registo inferior da Porta, onde se incor- O segundo nível, de interesse acrescido pela
pora o portal reentrante em harmonia com presença dos cubelos sobrepostos lateral-
o românico portal principal da fachada mente, que já foram apresentados em sin-
poente, obedece a uma estrutura composi- tonia com os resquícios de uma sensibilidade
tiva sólida e de suporte aos estratos supe- extraída da força da arquitectura militar em
riores. Nele se desenvolve todo um jogo de Portugal, em correspondência, aliás, com
formas e volumes da mais pura fraseologia idêntica expressão na Fonte do Jardim da
renascentista que aceita os ingredientes de- Manga, revela-se inesperadamente de inspi-
corativos adequados ao tempo. Arcos su- ração palaciana. A loggia, de espaço usu-
cessivos de volta perfeita, colunelos, fruído onde duas colunas centrais e duas
pilastras ou frisos, convivem com os desig- pilastras de ângulo suportam o entablamento
nados motivos lombardos, motivos de gru- e definem uma balaustrada, assume então a
tesco, relevos figurativos (como a Senhora centralidade dos efeitos cénicos propostos.

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Figura de grutesco A porta de acesso, dotada de frontão curvo, constituída pela sucessão de losangos e cír-
Porta Especiosa, é ladeada por duas faixas verticais que os- culos ou meio círculos (tal como acontece
João de Ruão,
c. 1535-1540 tentam a meio duas circunferências vazadas numa das arquivoltas do portal de entrada)
e expressivas de uma simbólica de rotundi- que voltam a ter correspondência na decora-
Porta Especiosa dade. Não saindo do âmbito mais restrito ção colocada internamente nos arcos que
João de Ruão,
c. 1535-1540 do país, não é difícil perceber o elo de liga- estabeleciam a ligação ao claustro ou nas
ção entre o carácter emblemático deste es- pequenas portas que dão acesso aos púlpi-
paço e a estrutura perfilada na varanda da tos no refeitório do mosteiro de Santa Cruz,
Torre de Belém, executada cerca de uma partindo, eventualmente destes dois conjun-
quinzena de anos mais cedo. É o espectá- tos, uma tipologia decorativa que haveria de
culo cénico do poder que decorre deste re- assomar, com maior ou menor incidência,
gisto da Porta Especiosa, utilizando na arquitectura do Renascimento na zona
fraseologias retiradas da arquitectura civil e centro do país e seria desenvolvida com
militar e aplicadas agora no contexto sacro outro dinamismo em tempos designados
da condução espiritual dos povos. maneiristas.

Finalmente, o terceiro nível termina com a Se a organização arquitectónica da Porta vai


incorporação das figuras de S. Joaquim buscar todos os seus ingredientes ao mundo
(desaparecido) e de Santa Ana em nicho clássico, a decoração em finíssimo relevo
central encimado pelo frontão triangular. que acompanha os três níveis é extraída da
Ao lado deste, mais dois nichos adintelados força triunfante dos motivos que, desde o
com as figurações de S. Miguel vencendo o Quattrocento italiano, contribuíam para o
demónio (à esquerda) e de Rute (?) (à di- dinamismo plástico da pintura, escultura ou
reita), estipulam a simetria do conjunto e arquitectura. Grutescos, vasos, enrolamen-
promovem a formação embrionária do mo- tos vegetalistas, frutos, rótulos, fitas ou cor-
tivo da serliana. Nos dois vãos superiores, nucópias, integrados em locais de natureza
definidos por arcos de volta perfeita, dois protocolar, concorrem para a vitalidade da
evangelistas fixam pelo acto da escrita os composição que, também por esta via, se
fundamentos da Religião: à esquerda S. João pretende de expressivo aggiornamento.
e à direita S. Lucas. A cimalha superior, muito Cumpre destacar, como excepção à matriz
danificada também, é sustentada por mísu- clássica na decoração em baixo relevo, os
las sucessivas com ligação ao remate irre- temas religiosos dos anjos músicos nas pi-
mediavelmente perdido. Dele, apenas restam lastras do primeiro nível, do anjo que sobre-
os quatro pequenos torreões de canto que voa o motivo representado no arco central
prolongam toda a estrutura. As pilastras late- superior ou do medalhão no tímpano do
rais deste corpo assimilam uma decoração portal, com a Senhora e o Menino.

a sé velha de coimbra
Do medalhão da direita surge com ímpeto É sobretudo na escultura avulsa e de alto
o busto de um jovem barbado com uma ex- relevo que, na Porta Especiosa, se impõe a
pressão dinâmica acentuada pela boca en- inevitável iconografia religiosa. Existem sete
treaberta e pelo olhar de poderosa e “temas” concentrados no primeiro e no
dolorosa perplexidade. Cinge-lhe a cabeça terceiro níveis que não deixam espaço
um turbante, atributo frequentemente uti- para pensar numa escolha fortuita e de-
lizado para evocar o Oriente, sobre o qual sarticulada entre si. É um programa icono-
se aninha a águia apenas perceptível a gráfico de Salvação que se oferece à
quem dela se acercar. A eventualidade de cidade de Coimbra, anunciado no Antigo
se tratar da representação de Zeus ou Júpi- Testamento, desenvolvido nos textos do
ter é preterida por outra hipótese mais Novo e creditado pela presença dos guar-
plausível que recai sobre o jovem troiano diães da Verdade. Sem esforço, a compo-
Ganimedes, por cuja beleza física Zeus se sição tripartida da Porta adquire uma
enamorou ao ponto de se transformar em espécie de sentido materializado da
águia e o raptar conduzindo-o ao Olimpo, “Visão de Deus” quando, no dizer de Ni-
onde substitui Hebe (filha de Zeus e Hera colau de Cusa, “o amor [divino] é de uma
e deusa da juventude, que casa com Hér- essência ternária” e constitui “um tesouro
cules quando este já se encontra morto) secreto e escondido que, ainda que encon-
nas suas funções de copeira dos deuses. trado, permanece escondido. Encontra-se
Se a riqueza iconográfica da águia foi dentro do muro da coincidência do escon-
sempre explorada à escala planetária na dido e do manifesto” (Cusa, 1988, pp. 202,
generalidade das culturas, não deixou 200).
igualmente de o ser nos contextos da An-
tiguidade e da cultura cristã em que se Em situação de grande destaque no pri-
Coroação da Virgem Os medalhões inscritos no primeiro nível identifica com estados intelectuais superio- Os dois medalhões, que remetem para meiro nível da Porta, a comparência das Ganimedes
com o Menino são reveladores das intenções no estabeleci- res e mantidos por uma luz de carácter di- uma iconografia de referência clássica arti- quatro Virtudes Cardeais, a Justiça, a Pru- medalhão na Porta
medalhão no Especiosa, João de
tímpano da Porta mento de um programa iconográfico coe- vino. As vertentes da contemplação e da culados com os valores de natureza cristã, dência, a Fortaleza e a Temperança, recu- Ruão, c. 1535-1540
Especiosa, João de rente e preciso nas conotações simbólicas espiritualidade, conjugadas com a exalta- dão a dimensão da distância a que, necessa- peradas do espaço profano da República
Ruão, c. 1535-1540 que ligam os elementos decorativos da ção da beleza fazem, assim, de Ganime- riamente, estaria a recepção da ideia ex- de Platão, remete para um temário
Porta. Mesmo que a sua decifração perma- des um representante fidedigno dos pressa, com um programa cuja decifração comum da cristandade (a cidade ideal pre-
necesse hermética e apenas reservada às propósitos episcopais na transmissão de se reservava às elites. E se a exibição dos conizada por Platão deve ser “sábia, cora-
esferas intelectuais, também detentoras valores cristológicos com os quais o bispo elementos dicotómicos e complementares josa, temperante e justa ... sábia, uma vez
dos códigos de acesso ao universo da mito- se confunde e se identifica. Ao mesmo do masculino e do feminino também é a que é ponderada ... essa mesma quali-
logia clássica, nem por isso o bispo prescin- tempo, arvora-se em condutor avisado da mais normal nesta geografia ornamental, dade, a ponderação, é evidente que é uma
diu de apresentar no Largo preparado por comunidade sobre a qual exerce o papel a inserção das duas figuras masculinas espécie de ciência. Efectivamente, não é
ele verdadeiro manifesto humanista que de pastor generoso e líder atento e irredu- num programa geral de erudição só podia pela ignorância, mas pela ciência, que se
exaltava com a firmeza da pedra a imagem tível no percurso dominante e autorizado obedecer a uma ideia precisa de conteú- delibera bem” (Platão, 1993, pp. 176-177)).
do prelado. A dificuldade na identificação da Igreja. dos iconográficos previamente estabeleci- Por outro lado, a representação da morte,
das duas figuras que emergem dos meda- dos. Poder-se-á ver aqui o pressuposto com o motivo da caveira tratado em baixo
lhões, que não têm qualquer inscrição, Em articulação com este medalhão surge, neoplatónico da vida contemplativa (na re- relevo e nas mãos dos putti que se recli-
contribui ainda mais para a suspeita de que do lado esquerdo, o busto de uma outra fi- presentação de Ganimedes) em confronto nam no frontão triangular do terceiro
D. Jorge de Almeida jamais se preocupou gura masculina com barba farta e de sem- com a vida activa (se assim o for entendido nível, pode ser vista como alusão ao vício,
com a clareza da mensagem usufruída a blante determinado. Adorna-lhe também a através do voluntarismo e firmeza que dita- “Omnia Vanitas”, com o qual as virtudes
partir da observação da Porta. Pelo contrá- cabeça um turbante sobre o qual são ainda ram a vida do herói grego). Ou antes a ex- partilham o jogo intrincado do equilíbrio
rio, no seu carácter impenetrável e de oculta visíveis os restos de um atributo (a cabeça pressão de ideias que passam pela de forças entre o bem e o mal. Num dis-
significação residia a projecção da sua força do leão de Nemeia) que identifica a repre- exposição da sabedoria na sua vertente ilu- curso cristianizado, a Porta é a cidade
ligada ao inevitável distanciamento face à sentação de Hércules, reconhecível apenas minada e alicerçada pela força e determina- ideal do crente e a cidade é a Porta da Sal-
cultura popular. em fotografias antigas. ção da fé? vação.

a sé velha de coimbra 086 | 087


O “edifício da Fé” que se consolida na Porta execução de um programa arquitectónico e Porta Especiosa
Especiosa não pode deixar de ser visto iconográfico de acordo com a natureza es- João de Ruão,
c. 1535-1540
como a consagração apoteótica da figura da pecífica do local e que pudesse, ao mesmo
Virgem e, portanto, de seu Filho. D. Jorge de tempo, ser expressivo do poder da Igreja
Almeida é aqui o supremo representante da conduzida pelo bispo. Um tal programa di-
Igreja e o guardião por excelência dos seus ficilmente poderia encontrar-se nas festas
fundamentos. O entendimento de Salomão ocorridas para receber o rei. Mesmo que a
como rei pacificador, sábio, magnânimo e ideia se tenha desenvolvido a partir do
justo é facilmente recuperado na projecção contexto da régia entrada, o que parece alea-
da imagem do bispo: um conciliador entre tório, as adaptações ao espaço físico da pa-
os interesses dos poderes civis e religiosos, rede e do portal norte da Sé, bem como à
um homem de erudição nos saberes teoló- especificidade da iconografia, teriam for-
gicos e mundanos, um distribuidor magnâ- çosamente de configurar um resultado
nimo da riqueza espiritual e o mecenas bem diferente das arquitecturas efémeras
incansável patrocinador de espaços e for- realizadas no âmbito da celebração do
mas plásticas. Atentando na distribuição poder régio.
dos três níveis da Porta verifica-se, de facto,
um registo repetido das áreas marcada- As fontes de inspiração da Porta Especiosa
mente sagradas no primeiro e terceiro ní- têm, assim, de ser encontradas no terreno
veis, enquanto que o piso intermédio é mais vasto (e também mais escorregadio)
reservado a uma outra concepção de natu- da imprecisão. Apuradas as grandes linhas
reza palaciana enquadrada pelos dois cube- condutoras que passam pela erudição e pela
los. Tal como em Jerusalém, onde o templo familiaridade com as directivas da cultura ar-
se articulava com o palácio de Salomão, o quitectónica do Renascimento que, cada vez
carácter civil do nível intermédio estabe- menos, prescindia da consulta dos tratados,
lece a ligação aos outros níveis organiza- parece igualmente aceitável (se não mesmo
dos à maneira de retábulos e dita, também obrigatório) remeter para a figura do bispo,
por esta via, a eficácia da aliança expressa. pelo menos, parte da responsabilidade do
No século XII, um bispo, de seu nome Salo- programa exposto. A sua longa estadia na
mão, tinha-se esforçado para erigir em Itália e os conhecidos contactos que man-
Coimbra o espaço condutor da Fé, no século teve não podem ter deixado de o apetrechar
XVI, um outro cimentava os caminhos da re- com a cultura renascentista, alicerçada pela
denção e chamava a si a glória da recupera- sua directa visibilidade, e de o transformar
ção de uma cadeia cujas origens se perdiam em potencial transmissor da herança clás-
no tempo. sica. A Porta Especiosa deve, pois, ser enca-
rada como o fruto da conciliação dos
No plano formal, já foi avançada a tese de interesses do bispo, da sua ligação ao meio
que a porta possa representar, “... a passa- artístico do Renascimento e da respectiva ar-
gem à pedra de uma estrutura postiça eri- ticulação à capacidade teórica e prática para
gida para receber D. João III” (Moreira, 1981, a sua realização.
p. 300), por ocasião da sua régia entrada na
cidade em 1527. Neste sentido, e através da Não existe um exemplar que, dentro ou fora
subtil ligação à esfera do poder temporal, sa- do país, possa constituir-se em modelo explí-
lienta-se igualmente a imagem representada cito. A especificidade da “colagem” à super-
do bispo. Para além disso, e na impossibili- fície parietal da Sé e a justaposição ao velho
dade da comprovação ou rejeição de seme- portal românico faz deste conjunto uma refe-
lhante hipótese, fica a suspeita de que ao rência na arquitectura portuguesa do Renas-
chefe da cristandade em Coimbra conviria a cimento que conjuga a técnica e o talento.

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Não se trata apenas da simples sobreposição tor de formas e espaços transmitidos nas que reproduzir uma cultura plástica em S. João Baptista
de “arcos triunfais” em sequência, mas antes micro-arquitecturas que preenchem as com- voga, com antecedentes firmados no século Porta Especiosa,
João de Ruão,
da sua articulação numa dimensão perspéc- posições retabulares com que inundou o anterior e que chegou também a Portugal c. 1535-1540
tica que a cultura arquitectónica da época país, emerge com o domínio intelectuali- pela ânsia generalizada pelo “antigo”.
também privilegiou. E se a procura pelas zado das vertentes ligadas à construção e Se assim não fosse, não se encontraria,
fontes materiais construídas ou desenhadas como digno sucessor de Alberti em territó- ainda no primeiro quartel do século XVI, a
se revela infrutífera, a verdade é que a própria rio português. Os ensinamentos do italiano expressão “ao romano” em fórmulas contra-
Itália quatrocentista não deixou de apresen- contidos nos seus tratados sobre arquitec- tuais ou noutros documentos de utilização
tar soluções construtivas que, pese embora tura, escultura e pintura passava-os João de quotidiana. Refira-se, especialmente, o In-
a diversidade de contextos, evocam, em Ruão à pedra com idêntica e disciplinada ventário do tesouro da Sé de Coimbra de
parte, a energia sentida na Porta Especiosa. força pedagógica, constituindo, nesta al- 1517, onde se anotam: “Item outro de linho
tura, a chave para o entendimento da per- pintado de romano; Item o altar mor com
Mas não foi exclusivamente na Itália que se manência de modelos arquitectónicos e sua cortina de linho pintado de romano”
empregou esta moldura configurada pela escultóricos de extracção clássica, vertidos, (IAN/TT: Cabido da Sé de Coimbra, 2ª Incor-
sobreposição. A Europa mais próxima dos grosso modo a partir da segunda metade poração, Maço 97, Doc. 4709a, fls. 10, 12/v).
modelos culturais italianos não deixou de a do século XVI, no ambiente cultural da Con-
utilizar sempre que circunstâncias adequadas tra Reforma. Os estreitos contactos que o A Porta Especiosa é uma obra que joga na
o permitiram. A título de exemplo, citem-se francês tinha com as esferas do poder local, ambiguidade entre os campos da arquitec-
as empreitadas italianas promovidas em desde o mosteiro de Santa Cruz ao Cabido, tura e da escultura; e se João de Ruão se
Quinhentos pelo cardeal George de Amboise à Universidade e às diversas Ordens Religio- configura numa grandeza de escultor-arqui-
no castelo de Gaillon, expressão requintada sas que iam crescendo à sombra da Acade- tecto, de forma idêntica, toda a obra de
do Renascimento nórdico que contou, a vá- mia, permitiram-lhe alicerçar uma prática Chanterene se dirige exactamente a este
rios níveis, com a participação italiana. com fortíssimos fundamentos teóricos e campo de alternância dialogante entre a es-
aglutinar mão-de-obra diversificada e com- cultura e a arquitectura. E se já foi intuída a
Não é, portanto, necessário extrair de um posta por diferentes sensibilidades que abar- uma datação do projecto coincidente com a possibilidade de colaboração entre os dois
contexto preciso a fonte de inspiração que cava portugueses, espanhóis, franceses, mesma década de 30. Ou seja, não é obri- maiores expoentes da escultura renascen-
alimentou a Porta Especiosa. Nos centros italianos ou flamengos. gatório entender a definição dos planos e a tista em Coimbra, sintomaticamente no
eruditos frequentados pela intelectualidade sua execução num mesmo tempo cronoló- contexto preciso do retábulo de S. Pedro no
mais exigente circulava material mais do que Não pode, assim e por vários motivos, duvi- gico. Na década anterior, de verdadeira re- interior da igreja, parece também credível
suficiente para a sua realização. Ao bispo de dar-se da capacidade de João de Ruão para velação da cultura clássica em Coimbra, (se não mesmo provável) a extensão dessa
Coimbra faltava apenas encontrar adequado a execução da Porta Especiosa. É, pois, in- estava presente na cidade um potencial possibilidade alargada à Porta Especiosa.
interlocutor que pudesse pôr em prática o contornável a sua marca no plano escultó- humano capaz de interpretar na pedra as
manifesto pétreo da cultura clássica. rico para a generalidade do conjunto, intenções do bispo. Particularmente, Nico- Numa sensibilidade desenvolvida a partir
estendido ao relevo e à figuração avulsa. lau Chanterene, ao serviço de D. Jorge de das mesmas fontes referenciais, a presença
De há muito que a autoria mais admitida A serenidade das representações de S. João Almeida para a construção do retábulo de de elementos arquitectónicos e/ou decorati-
pela historiografia para o projecto da Porta Baptista ou de Isaías, tão próxima do seu S. Pedro e comprometido com a sobrinha vos comuns nas obras apuradas de Ruão ou
Especiosa radica em João de Ruão, presumi- trabalho nas esculturas da fachada da igreja do prelado, D. Leonor de Vasconcelos, para Chanterene torna-se inevitável. Neste con-
velmente na década de 30 de Quinhentos. de Santa Cruz, bem como o comportamento a obra tumular de Celas. Embora se tenha texto de forçosa linguagem romanizada in-
Não apenas pelos paralelismos flagrantes plástico adoptado na escultura de alto relevo recentemente (Gonçalves, 2005, pp. 529-539) serem-se abóbadas de caixotões, capitéis
verificados ao nível do trabalho escultórico, do primeiro ou do último nível, ou ainda o insistido na “fidelidade” aos desenhos pu- fantasiados, grutescos, quimeras a segurar
quer em termos da execução minuciosa do tratamento de minúcia no baixo relevo, blicados por Sebastiano Serlio, no seu motivos heráldicos, etc. Concluindo: João de
baixo-relevo quer na delicada concepção im- fazem indiscutivelmente de Ruão um execu- Livro Quarto (1537), e, portanto, remetido o Ruão poderá não ser o autor do projecto
posta na figuração avulsa, mas, sobretudo, tor presente na obra que, desta forma, tem projecto da Porta para um período posterior para a Porta Especiosa. Na segunda metade
porque na cidade não havia, nesta altura, que ser remetida para os finais da década de a 1537, a verdade é que nenhuma das gravu- da década de 20, num momento de grande
outro capaz de dar consistência à força do 30 do século XVI. ras de Serlio, que configuram o afinco pela dinamismo plástico na cidade, D. Jorge de
desenho que previamente exige um pro- sobreposição dos vários registos, é igual à Almeida pode ter aproveitado a mão-de-obra
jecto desta natureza. O maior artista do Por outro lado, o que não pode aceitar-se definição da Porta Especiosa. As imagens ao mais autorizada que, na altura, trabalhava
Renascimento em Coimbra, criador e inven- ainda como dado comprovado e resolvido é longo dos seus livros mais não fazem do para si.

a sé velha de coimbra 090 | 091


O estado de conservação da Porta Espe- Porta de Santa Clara
ciosa não é problema recente. Já na primeira Nicolau Chanterene,
c. 1530
metade do século XVIII se registavam de-
núncias ao seu grau de deterioração e foi ne- Porta de Santa Clara,
cessário substituir os colunelos balaústre da coluna decorada
Nicolau Chanterene,
varanda do registo intermédio, em trabalho c. 1530
executado por Gaspar Ferreira. Em 1898
deu-se início ao restauro possível da Porta,
numa campanha que culminou em 1933
quando foram construídos os cinco degraus
de acesso que ainda se mantêm e que,
acrescentados aos quatro no vão reentrante
da Porta, vieram alterar o enquadramento
urbanístico dado por D. Jorge de Almeida.

A vizinha Porta de Santa Clara, com a qual a


Porta Especiosa se sintonizava no jogo dos
percursos litúrgicos, tem uma datação que
deverá ser situada numa área cronológica de
grande proximidade. Também nela, num
processo de “colagem” à parede do topo Se o programa exposto não fizesse suspeitar
norte do transepto da Sé, se evidenciam da participação de mestre Nicolau a contem-
preocupações compositivas que articulam a plar também esta encomenda de D. Jorge de
geometrização do traçado ao sentido deco- Almeida, bastaria o confronto com o motivo
rativo patente nas colunas laterais, apenas que, no púlpito da igreja de Santa Cruz, re-
tornado visível pelas últimas obras de lim- mata a concha do nicho que protege a figura
peza e conservação (2005). Ao nível do tím- de Santo Ambrósio, para perceber a clarís-
pano, onde ainda é possível ver o medalhão sima transposição do mesmo modelo deco-
com a figura de Santa Clara, inscreve-se um rativo. Na Porta de Santa Clara, com outra
plano de desenho que incorpora os ortodo- dimensão e outra escala, à possibilidade de
xos medalhões nas cantoneiras (o mascu- fazer “encaixar” fielmente este tema confi-
lino à esquerda e o feminino à direita) e dois nado à curvatura da concha (o que obrigaria à
colunelos que apoiam o entablamento e fe- duplicação para quatro do número de putti),
cham, de cada um dos lados, este registo. junta-se a hipótese de que os putti e as aves
O tema que superiormente remata a cornija possam daí “descer”, apoiando-se na cornija
encontra-se profundamente deteriorado. superior. De qualquer das formas, ressalta ní-
Dele restam apenas o motivo concheado tido o envolvimento na mesma ideia progra-
central com um pequeno pedestal onde se mática que ditou o específico registo do nicho
apoiam as pernas de um putto (hoje desa- de Santo Ambrósio no púlpito de Santa Cruz.
parecido), a definição lateral dos cachos de
frutos (muito mutilados) tão comuns em A Nicolau Chanterene poderá então ser entre-
Chanterene e, do lado direito com obrigató- gue a autoria do projecto para as duas portas
ria correspondência ao lado esquerdo (agora da fachada norte da igreja e cuja execução prá-
totalmente inexistente), duas pernas flecti- tica não pôde acompanhar de perto. Rapida-
das e acompanhadas pela marcação de asas mente sairia da cidade onde Ruão se instalava
que indiciam a presença de mais um putto e criava as condições adequadas à formação
e de uma ave. de um estaleiro apto a desempenhar a tarefa.

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A CABECEIRA

Cabeceira da igreja A organização da cabeceira é denunciada


sécs. XII-XVI pelos paramentos exteriores: as duas cape-
las laterais são mais pequenas e mais baixas
do que a capela-mor, em sintonia com os
programas românicos do tempo, aos quais
também dão sentido tanto a decoração que
reveste os capitéis e a linha da cachorrada
como a definição dos vãos. A capela da Epís-
tola foi alterada no século XVI para acolher
a capela do Sacramento, uma encomenda
do bispo D. João Soares (1545-1572).

O recinto que hoje se estende à sua frente


integrava a sacristia de D. Afonso castelo
Branco, alinhada pela zona medial da capela
ao Evangelho e demolida entre 1912 e 1918.
As “feridas” no paramento ainda deixam per-
ceber o vão de passagem entre a capela-mor
e a sacristia. Ficou a parede no topo sul
onde, em arranjo fabricado pelo século XX,
o brasão do bispo se encaixa entre duas ja-
nelas de verga recta.

a sé velha de coimbra
Alçado norte e
poente da Sé
DRCC

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Corte longitudinal e
transversal da igreja
DRCC

a sé velha de coimbra 098 | 099


O CORPO DA IGREJA

Galeria do trifório Depois de transposto o portal a ocidente


séc. XII entra-se no corpo da igreja que mantém a
Igreja da Sé estrutura românica dividida em três
séc. XII naves, cinco tramos e transepto: a central
mais alta com cobertura em abóbada de
berço onde se inscreve a regularidade dos
arcos torais e as laterais mais baixas, re-
matadas por abóbadas de aresta e garan-
tindo a presença das galerias do trifório
que se lhes sobrepõem, com aberturas
em duplo arco para a nave. As arcarias
sucessivas, formadas por arcos de volta
perfeita assentes em pilares cruciformes
conduzem ao transepto (demarcado por
dois pilares cruciformes mais robustos)
que repete a mesma fórmula de cober- Na decoração capitelar da igreja represen-
tura da nave principal. A zona quadran- tam-se os motivos zoomórficos comuns à
gular do cruzeiro é encimada pela arquitectura românica em conjugação
lanterna já do século XIII sobre a qual se com um sentido vegetalista (onde se en-
eleva a torre (séc. XIII) com o zimbório contra também reflectida a influência islâ-
setecentista revestido de azulejos azuis e mica) próprio dos primeiros tempos da
brancos dispostos em perfil escamado. cultura gótica.

a sé velha de coimbra
Os quatro arcos abertos nas paredes das dourada, um trabalho do marceneiro Sa- Torre-lanterna e
naves laterais da Sé foram executados pelo muel Tibau. A qualidade pictórica dos vá- zimbório da Sé
sécs. XIII-XVIII
mestre pedreiro Isidro Manuel num traba- rios temas representados já foi identificada
lho concluído em 1638. Distanciando-se com o pintor Martim Conrado (Serrão, Lanterna do
(em escala, temáticas e finura de execução) 2000, p. 415), numa atribuição que merece cruzeiro da igreja
séc. XIII
da configuração dos vãos da Porta Espe- reservas. Em Abril de 1637 registam-se
ciosa e do acesso ao claustro, não deixam também trabalhos de decorações e doura-
de ter neles a sua mais directa e fidedigna mento de molduras, executados pelo pin-
fonte de inspiração. Os arcos seiscentistas tor Francisco da Fonseca, eventualmente
integram telas dos meados do século XVII relacionados com esta campanha (Serrão,
inscritas em moldura de talha de madeira 1992, II, p. 477).

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Avançando pela nave lateral da parte do viajar durante 3 anos e que o pretendente Capitel da igreja
Evangelho (à esquerda de quem entra na se instruísse, entretanto, na doutrina cristã séc. XII
Sé), encontra-se, no segundo tramo, o tú- em ordem a receber o baptismo. Aceites as Motivo decorativo
mulo de um bispo, com jacente muito mu- condições, converteram-se ao cristianismo com cornucópias
tilado e brasão com cinco vieiras, datável todas as 11 mil virgens e preparou-se a via- arcos laterais da
igreja, Isidro
do século XIV. O tramo seguinte é ocupado gem. Os barcos fizeram-se ao mar e, pelo Manuel, 1638
pela estrutura interna da Porta Especiosa; rio Reno, chegaram a Colónia onde um
no quarto tramo (vazio de tumulária) loca- anjo advertiu Úrsula de que aí sofreriam Motivo decorativo
com cornucópias
liza-se a pintura com o tema do martírio de martírio. Prosseguindo viagem até Roma, arco de ligação ao
Santa Úrsula acompanhada de mártires. foram recebidas pelo papa Ciríaco que, avi- claustro, João de
A lenda, popularizada por Santiago Vorá- sado por revelação divina da tragédia emi- Ruão, c. 1535-1540
gine, remonta a 383 (se bem que as fontes nente, renunciou ao papado e seguiu com
não sejam coincidentes na data), quando as jovens em busca da glória do martírio.
Úrsula e as 11 mil virgens sofrem martírio À medida que esta “legião” de santidade ia
às mãos dos hunos na cidade de Colónia. crescendo com novas e contínuas adesões,
Embora haja versões diferenciadas foi a generais ímpios em Roma sobressaltaram-se
Lenda Dourada, de cerca de 1264, que lhe com a extensão das conversões e maquina-
deu a consistência que permitiu a sobrevi- ram traição, preparando o massacre pelos
vência do culto. Úrsula, jovem princesa da hunos que esperariam o regresso da comi-
Bretanha e pretendida pelo filho do rei de In- tiva em Colónia. Ao mesmo tempo, o pre-
glaterra, exigiu condições para o seu casa- tendente inglês, já rei e já baptizado, recebeu
mento: ser rodeada por um séquito de 11 mil também (no mesmo dia em que as donze-
donzelas, ser colocada à sua disposição las saíam de Roma) a visão de um anjo
uma frota de naves para que pudessem que lhe ordenava que saísse de Inglaterra e

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Martírio de se juntasse à sua prometida para com ela so-
Santa Úrsula frer martírio (Vorágine, 1994, II, pp. 677-681).
óleo sobre tela,
meados do séc. XVII A pintura da Sé organiza o massacre de
Colónia a partir da centralidade de Santa Úr-
sula que arvora o estandarte com o mono-
grama de Cristo (não é por acaso que a
Companhia de Jesus adopta o mesmo sím-
bolo, expressão da ambição das conver-
sões em massa, e tenha dedicado ao culto
das 11 mil virgens uma tão grande afeição).
As cores vibrantes da pintura exaltam a pie-
dade e o fervor religioso pela observação de
um sentido de heroicidade da Santa que se
alheia do caos em seu redor. Antes de ser
trespassada no coração pela seta que a ha-
veria de sacrificar, permanece incólume à
vertigem da matança dos mártires (onde se
encontra o papa Ciríaco – ajoelhado em ora-
ção à direita da Santa) e estrutura a compo-
sição que incorpora uma cidade arruinada, o
rio com as naus de velas hasteadas e os
anjos que, sobrevoando a catástrofe, trans-
portam as coroas de flores.

O quinto e último tramo do corpo da igreja


é preenchido pelo túmulo de D. Vataça, dama
da corte da rainha Isabel de Aragão, uma
obra da primeira metade do século XIV (1336-
1337), da autoria de mestre Pêro. A categoria
social de D. Vataça Lascaris de Vintemiglia,
descendente dos imperadores bizantinos
como o atesta a presença das armas impe-
riais com águia bicéfala de asas abertas, re-
vela-se a partir da sua própria escolha para
o local do sepulcro (Macedo, 1986, p. 162).

a sé velha de coimbra
Por outro lado ainda, o jacente filia-se no Circulando do transepto para a nave da Santo António, a
modelo definido no jacente da Rainha Santa Epístola encontra-se mais um túmulo com Virgem e o Menino
óleo sobre tela,
(na igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra) jacente do bispo D. Tibúrcio (1234-1246) dos meados do séc. XVII
também da oficina de mestre Pêro (Goulão, inícios da segunda metade do século XIII, e
2009, pp. 64-67). Ocupando a parede fun- com a estátua jacente, a cujos pés se colo- Túmulo de D. Vataça
mestre Pêro,
deira encontra-se a pintura de Santo Antó- cou um leão, apresentando o rosto barbado 1336-1337
nio com a Virgem, o Menino e anjos, onde e vestes de tratamento pouco flexível. A arca
a dinâmica emocional extraída do claro-es- enquadra as armas do Reino com as armas Túmulo de
D. Tibúrcio
curo é levada à sua máxima expressão, di- do prelado. No tramo seguinte, o túmulo do meados do séc. XIII
luindo a postura mais convencional das bispo D. Estêvão Anes Brochardo (1303-
figuras representadas. 1318), da primeira metade do século XIV, re- Túmulo de
D. Estêvão Anes
pete os mesmos ingredientes no tratamento Brochardo
No transepto, no topo norte, situa-se o ar- seco dos panejamentos e na marcação vin- primeira metade do
cossólio de volta perfeita com a estátua ja- cada do rosto mas, desta vez, com o jacente séc. XIV
cente do bispo de Coimbra e arcebispo de tendo aos pés um dragão serpentiforme,
Compostela, D. Egas Fafes (1247-1267), da símbolo reconhecido do Mal. Os corpos dos
segunda metade do século XIII. Junto deste, dois bispos foram trasladados em 1894 da
o retábulo de matriz renascentista, já da capela-mor para onde hoje se encontram.
segunda metade do século XVI, conserva a
escultura em madeira de S. Cristóvão (sé- São os dois acompanhados pelas grandes
culo XVIII) no nicho central. No topo sul do telas que retratam, a primeira, o milagre
transepto, outro arco tumular alberga o ja- das rosas da Rainha Santa Isabel, a se-
cente do bispo D. Pedro Martins (1296- gunda, na linguagem mais romanizada
1301), dos primeiros anos do século XIV. das quatro telas, o martírio de S. Sebastião.

a sé velha de coimbra 108 | 109


Martírio de A primeira, restaurada recentemente, invoca O martírio de S. Sebastião constitui a indi-
S. Sebastião tanto a piedade da Rainha (distribuindo cação mais evidente da aposta que privile-
óleo sobre tela,
meados do séc. XVII pão aos pobres num segundo plano, à di- gia os grandes volumes pictóricos e as
reita) como o milagre que alimentou a de- poses grandiloquentes, em estratégia que
Rainha Santa Isabel voção popular e levou à sua beatificação em utiliza uma paleta larga de onde se ausenta
de Aragão
óleo sobre tela, 1516 e à canonização em 1625, também sob a preocupação de minúcia interpretativa.
meados do séc. XVII a pressão dos interesses da dinastia filipina. A luz que incide sobre o mártir não anula a
Em plano central, a figura hierática da completa visibilidade de todos os figuran-
Rainha coroada e acompanhada pelos anjos tes, distribuídos de forma equilibrada pelo
que seguram o seu brasão, mostra o regaço campo pictórico, tal como as soluções mal
com as rosas. O ambiente resolve-se pela resolvidas na articulação entre o desenho e
integração de uma arquitectura palaciana o pigmento (vejam-se as indecisões ao
que contempla a abertura a uma paisagem nível do tratamento das musculaturas)
de fundo com uma ponte, porventura, a também não afectam os efeitos cénicos em
exibição da ponte medieval de Coimbra. torno do tema principal.

a sé velha de coimbra
Desactivação da A antiga passagem da igreja ao claustro unidade em que o acesso aberto para o Sem qualquer confirmação, poder-se-á pen- Pormenor decorativo
ligação entre a igreja (no tramo intermédio à Epístola), no alinha- claustro complementa a eficácia da Porta sar numa atribuição a Mateus Coronado, no arco de ligação
e o claustro (1939) ao claustro
IHRU, 095638 mento da Porta Especiosa, deu lugar a uma Especiosa. pintor e “criado” do bispo D. Afonso Castelo João de Ruão,
capela-nicho com o retábulo de colunas sa- Branco, porventura também, o autor da c. 1535-1540
Arco de passagem lomónicas onde se colocou a escultura de Nos dois últimos tramos do lado da Epís- série da Vida da Tobias no Museu de Arte
para o claustro Figura de grutesco
João de Ruão, madeira de castanho da Senhora da Concei- tola, hoje completamente desvirtuados, si- Sacra da Universidade de Coimbra (Serrão, no arco de ligação
c. 1535-1540; ção, dos finais do século XVII e já atribuída tuavam-se as capelas de S. Tomás de Vila 2009, pp. 59-60). ao claustro
Nossa Senhora da a frei Cipriano da Cruz (Gac, Alcoforado, Nova (onde em 1939 se abriu uma passa- João de Ruão,
Conceição c. 1535-1540
Frei Cipriano da 2003, p. 130). Numa estrutura compositiva gem para o claustro, destruindo a capela e No transepto, no mesmo lado da Epístola,
Cruz (?), finais do semelhante à parte interna da Porta, o toda a estrutura retabular de talha dourada encontra-se hoje a pia baptismal, mais uma Capelas de Duarte
séc. XVII acesso ao claustro (fechado em 1939) é re- que a revestia por inteiro), executada em encomenda do bispo D. Jorge de Almeida de Melo e S. Tomás
de Vila Nova
matado pelo brasão de D. Jorge de Almeida 1684, e a do doutor Duarte de Melo, cónego para a igreja de S. João de Almedina. É obra (foto anterior às
amparado por duas figuras de grutesco, da Sé (no primeiro tramo junto à porta), de Diogo Pires-o-Moço, datável dos finais obras de 1939),
numa definição porventura próxima daquela obra do arquitecto Tomé Velho em 1583. do primeiro quartel de Quinhentos, e traduz IHRU, 095636
que hoje praticamente desapareceu no lado O arco desta capela colocou-se na galeria o percurso do artista formado na sensibili-
externo da Porta. O intradorso dos dois sul do andar alto do claustro, na entrada dade manuelina em direcção a uma estética
arcos, com tratamento em abóbada pers- das escadas de acesso à torre, permane- traçada “ao romano”. Divide-se em oito
pectivada, bem como os temas decorativos cendo in situ a parte inferior da estrutura do faces por colunas-balaústre vegetalistas
(a alternância entre os motivos do losango retábulo em madeira. Deste, ainda existem, (num esquema que tem sequência na parte
e do meio círculo, grutescos, máscaras, ca- preservadas no complexo associado à Sé, superior da base) onde se registam as cenas
veiras, cornucópias, vasos, enrolamentos as três pinturas dos finais do século XVI do Baptismo de Cristo e Moisés salvo das
vegetalistas) e o mesmo sentido de delica- com os temas da Crucifixão, Santa Catarina águas, que emparceiram com motivos de
deza na execução fazem do conjunto uma e o Arcanjo S. Miguel pesando as almas. grutesco e com as insígnias episcopais.

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Pia baptismal Numa iconografia dos efeitos purificadores muros da igreja dão conta do brilho com
Diogo Pires-o-Moço, da água, a que se junta a presença do vinho que o bispo D. Jorge de Almeida revestiu a
c. 1525
eucarístico, os anjos que exercem a função sua Sé. Particularmente, o primeiro tramo
Pintura a fresco em de tenentes são seres estranhos, nus ou co- ao Evangelho, junto à porta axial, mantém,
abóbada da nave bertos de folhagem com grossos cordões, em organização redefinida, a força que
lateral à Epístola
primeira metade do misto de homens silvestres e senhores coroa- transportava a igreja para um nível de cinti-
séc. XVI dos de um qualquer mundo inquietante: a ex- lação e riqueza cromática.
posição de um reino passível de conversão à
Azulejos
hispano-árabes mensagem evangelizadora do cristianismo. Pelas obras de intervenção ocorridas em
na igreja da Sé Em plano inferior, e num campo preenchido 2005-2006 nas naves laterais foi possível
inícios do séc. XVI por larga folhagem, inscrevem-se seres pôr a descoberto alguns registos de pintura
monstruosos, espécie de cães deformados a fresco onde predominam os azuis, o ver-
e rastejantes, também eles criaturas do mal, melho e o ouro. A nave do lado do Evange-
a acompanhar a curvatura da base apoiada lho conserva-os no primeiro e quarto tramo
em quatro leões. Mantém-se, não obstante a partir da porta axial e a nave da Epístola
a renovação estética, a filiação remota a um em todos os tramos. Frente à antiga passa-
sensibilidade geradora de movimento e si- gem para o claustro, e em ligação explícita
muladora de vida. aos temas decorativos que ornam o arco es-
culpido, os motivos renascentistas presen-
Os azulejos mudejares (comprados em Se- tes na abóbada pintada demonstram que a
vilha por Olivier de Gand em 1503, aos olei- Sé foi sujeita a fortíssima campanha de
ros Fernan Martinez Quijarro e Pedro de obras ao tempo de D. Jorge de Almeida.
Herrera) que ainda subsistem em vários

a sé velha de coimbra
A CAPELA-MOR

Retábulo principal, Na organização da cabeceira tripartida e os Evangelistas, a Adoração dos Pastores e


homem silvestre decrescente da Sé cabe o lugar central à Ressurreição na predela; o tema central da
entre outros motivos
Olivier de Gand e capela-mor, mantendo a escala românica Assunção da Virgem ladeado pelos Apósto-
Jean d’Ypres, inicial e preservando ainda a abóbada de los, Pedro e Paulo, e pelos santos físicos
1498-1502 berço e alguns registos dos azulejos mude- Cosme e Damião; a Crucifixão que dá, fi-
Retábulo principal jares que revestiam a generalidade da nalmente, acesso ao motivo do Paraíso
Olivier de Gand e igreja. A definição das paredes laterais é acompanha já a curvatura da abóbada.
Jean d’Ypres, fruto da intervenção realizada nos finais do Na teatralidade figurativa articulada à exu-
1498-1502
século XIX e apresenta três registos na lei- berância das micro-arquitecturas de “gótico
tura vertical dos alçados: arcos-nichos no final” ou na captação de categorias simbóli-
nível térreo e arcos cegos duplos no nível cas alternativas como o “homem silvestre”
intermédio. fica a expressão de uma cultura humanista
onde se manifesta a dinâmica dos equilí-
O retábulo (1498-1502), encomendado por brios entre o Homem e o Mundo. O retá-
D. Jorge de Almeida e executado pelos fla- bulo constitui, aliás, momento alto na
mengos Olivier de Gand e Jean d’Ypres, os- configuração de uma cultura plástica que,
tenta repetidamente as armas do bispo, utilizando muitos dos ingredientes do de-
numa criação paradigmática de leitura as- signado “gótico internacional” (de incon-
censional obrigatória. O programa iconográ- tornável factura nórdica), não deixa de se
fico montado (e onde faltam algumas posicionar numa atitude moderna, fa-
esculturas que se encontram no Museu Na- zendo apelo ao sentido exacerbado de
cional de Machado de Castro) passa pela uma espectacularidade controlada pelo
imposição dos fundamentos da religião: bispo, arvorado em faustoso mecenas.

a sé velha de coimbra
Retábulo principal, A conciliação entre os interesses da Igreja,
Assunção da Virgem em pleno processo reformista, e a capita-
Olivier de Gand e
Jean d’Ypres, lização da imagem do condutor espiritual
1498-1502 da diocese de Coimbra, ganha corpo na
leitura do retábulo como catecismo ilus-
Retábulo principal,
Evangelista S. Lucas trado para os fiéis. Por outro lado, a men-
Olivier de Gand e sagem da Salvação que dimensiona a
Jean d’Ypres, estrutura retabular apoia-se de forma explí-
1498-1502
cita nas categorias mais caras à cultura do
Retábulo principal, Renascimento: a comparência de Cosme e
Crucifixão e Paraíso Damião mais não faz do que chamar a
Olivier de Gand e
Jean d’Ypres, atenção para um sentido regenerador con-
1498-1502 templado nos efeitos benéficos da saúde
física e espiritual. Aclamada pelos intelec-
tuais do Renascimento, a saúde ganhava
um estatuto de obrigatoriedade moral en-
quanto o retábulo podia assumir uma di-
mensão de protagonismo na gestão da
harmonia universal.

a sé velha de coimbra
A CAPELA DE S. PEDRO

Lápide de Abrindo directamente para o transepto, do A figura do Padre Eterno, enquadrada em


D. Jorge de Almeida lado do Evangelho, a capela de S. Pedro res- moldura circular, remata todo o conjunto.
Capela de S. Pedro,
c. 1543 peita ainda a anterior estrutura românica do A insistência na representação do principal
séc. XII. apóstolo da Igreja não é inocente. Como
Retábulo de S. Pedro aconteceu em tantos outros circuitos da cul-
Nicolau Chanterene,
c. 1526 A sua designação provém do retábulo execu- tura do Renascimento e, particularmente,
tado por 1526 pelo escultor Nicolau Chante- depois do esforço tenaz levado a cabo pelo
rene. Numa adopção explícita dos formulários papa Nicolau V (nos meados do século XV),
renascentistas, o retábulo da vida e martírio no sentido da reabilitação de uma imagem
de S. Pedro divide-se em registos sobrepos- fragilizada da Igreja, a figura de S. Pedro ad-
tos (com sectores muito mutilados) apre- quiriu uma projecção reforçada pela repeti-
sentando um programa que contempla a ção de uma iconografia com claríssimos
dupla natureza da vida espiritual e material, objectivos propagandísticos. Sucederam-se
em que as cenas religiosas pactuam com os as invocações de templos e capelas a S. Pedro
assuntos (tratados em conversa de varanda) ou, como neste caso, a duplicação figurativa
do quotidiano da sociedade civil. Com cer- do apóstolo e primeiro representante de Cristo
rado preenchimento decorativo, o retábulo na Terra. Assim, a afirmação de S. Pedro ar-
adopta uma definição de arco triunfal com rastava também consigo a importância con-
vigorosa predela onde se assiste, central- sagrada dos representantes da Igreja.
mente, à crucificação do apóstolo. As repre-
sentações de S. Pedro e S. Paulo ladeiam o Sintomaticamente, esta capela, do lado do
motivo central com, mais uma vez, Pedro e Evangelho, é o local do sepulcro do bispo
Cristo a caminho do calvário, sobrepondo-se D. Jorge de Almeida, também ele chefe da
à silhueta da cidade tratada em perspectiva. Igreja e condutor da cristandade.

a sé velha de coimbra
A CAPELA DO
SACRAMENTO

A Capela do Sacramento (1566) resulta da pelo artista normando: numa rede de ca- (página anterior)
intervenção efectuada na capela românica pelas nas igrejas de Coimbra e na zona do Cúpula da Capela
do Sacramento
do lado da Epístola, quando o bispo D. João Baixo Mondego, na fonte do Jardim da João de Ruão, 1566
Soares de Albergaria (1545-1572) fez ins- Manga do mosteiro de Santa Cruz, no
crever aqui o retábulo executado pelo ar- mosteiro da Serra do Pilar (Gaia) ou na ca- Capela e retábulo
do Sacramento
quitecto-escultor João de Ruão. A capela pela dos Reis Magos do mosteiro jerónimo João de Ruão, 1566
manteve a parte recta à qual se articulou o de S. Marcos em Tentúgal (Craveiro, 1995,
plano centralizado, rematado pela cúpula pp. 431-432). Na concepção de retábulos Fundo de cálice
com brasão de
artesoada e lanternim, e acolhe o sacrário ou na projecção ideal dos espaços físicos D. João Soares
montado na estrutura circular do retábulo. usufruídos demonstra-se a sua versatili- ouro, 2ª metade do
Os nichos contêm as figuras de Cristo e dade e uma capacidade ímpar de pensar o séc. XVI, MNMC,
Inv. nº 6095; O31
dos Apóstolos no registo superior e os Homem e o espaço; de conjugar a mate-
Evangelistas, a Senhora e outro Apóstolo rialidade cultural no patamar da criação.
no inferior. Organizado em atmosfera de À data da sua morte (1580), a engrenagem
austeridade conciliar, o retábulo pactua entretanto montada, na linha de um ensino
com os modelos ornamentais do Renasci- pragmático por via da produção oficinal,
mento conciliando a gravidade figurativa permitiu a longa sobrevivência da “ma-
com um outro dinamismo nórdico, exem- neira ruanesca”, à revelia de outros e reno-
plificado no motivo do rollwerk no remate. vados pressupostos artísticos e culturais.

A figura geométrica do círculo, expressão


maior da perfeição cósmica, implica um
domínio da cultura arquitectónica de ma-
triz clássica, testada em diversas ocasiões

124 | 125
A SACRISTIA

C
om segurança, nada se pode adian- brasão ovalado de D. Afonso Castelo Os dez painéis pintados pela dupla formada Planta da Sé
tar sobre a localização e as dimen- Branco entre duas aletas curvas. O corre- por Simão Rodrigues e Domingos Vieira anterior às obras de
1939
sões da primitiva sacristia que dor que circunda a capela do Sacramento Serrão em 1608 (hoje à guarda do Museu DRCC
servia a igreja da Sé. É possível que se ti- desemboca no espaço diminuto em que se Nacional de Machado de Castro), alusivos à
vesse instalado já na zona definida entre a mantém o topo sul da sacristia, rasgado Vida de Cristo (com os temas da Anuncia- Lavabo da sacristia
1598
capela românica da Epístola e o claustro com três vãos adintelados, correspon- ção, Adoração dos Pastores, Adoração dos
mas a sala rectangular encaixada entre a dendo o central ao lavabo de mármore, Magos, Circuncisão, Repouso na fuga para Abóbada mutilada
parede sul da igreja, ocupando o espaço datado de 1598 e exibindo novamente o o Egipto, Cristo no Horto das Oliveiras, da sacristia de
D. Afonso Castelo
dos dois tramos junto ao transepto, e a ala brasão do bispo. A escada projectada a Traição de Judas, Flagelação, Coroação dos Branco
norte do claustro constitui também uma nascente conduz a um segundo piso (ine- Espinhos e Cristo a caminho do Calvário) es- finais do séc. XVI
opção de fortes argumentos, até pela liga- xistente inicialmente) onde se observa tabelecem a dimensão erudita de uma gran-
Linha actual da
ção directa entre esta e o transepto. então parte da cobertura abobadada que deza cenográfica que se conjuga também antiga sacristia de
Quando D. Afonso Castelo Branco fez cons- servia toda a sacristia. A poderosa abó- com a qualidade da arquitectura e das al- D. Afonso Castelo
truir a nova sacristia, esta sala foi desacti- bada de berço, com caixotões decorados faias litúrgicas presentes. Branco
vada das suas funções. Revestiu-se de por uma sensibilidade geométrica ao ritmo
azulejos, projectou-se a escadaria (apoiada dos motivos comuns nos finais do sé- A sacristia projectava-se, numa definição
na parede sul) que estabelecia a ligação ao culo XVI, revela bem a expressão plástica rectangular, até à linha média da capela românica da igreja, mutilando irreversivel-
claustro e aos andares altos e abriu-se, a que o bispo aderiu e que marca tantas absidial de S. Pedro, com ligação directa mente e reduzindo a sacristia ao espaço di-
assim, o topo poente com arco onde se co- das construções sob o seu alto patrocínio. para a capela-mor. Nos inícios do século XX minuto que hoje ocupa. Entaipou-se a entrada
locou o brasão de armas do bispo. a filosofia de intervenção sobre o patrimó- de acesso à capela-mor e fabricou-se a linha
Mutilada e desprovida dos elementos nio determinava a devolução dos edifícios da fachada recuada com o brasão do bispo
A actual sacristia tem acesso pelo grande que a enriqueciam, o brilho atingido a uma suposta “integridade” original. datado de 1593, ladeado por duas janelas de
portal de verga recta (1593) situado no tran- pela sacristia deduz-se apenas a partir Entre 1912 e 1918, as campanhas de restauro vergas rectas e decoradas com motivos de
septo do lado da Epístola e ostentando o de alguns indicadores documentais. optaram por deixar a descoberto a cabeceira matriz renascentista.

a sé velha de coimbra 126 | 127


Coroação de espinhos O beijo de Judas
Simão Rodrigues e Simão Rodrigues e
Domingos Vieira Domingos Vieira
Serrão, óleo sobre Serrão, óleo sobre
madeira de carvalho, madeira de carvalho,
c. 1608, MNMC, c. 1608, MNMC,
Inv. nº 2586; P93 Inv. nº 2584; P96

a sé velha de coimbra 128 | 129


O CLAUSTRO

firmando aqui a tutela com o selo da novi-


dade na orientação estética assumida.

O recinto constitui a primeira obra do gó-


tico nacional, sem correspondência com as
tipologias anteriormente definidas para a
arquitectura local. Depois da experiência
cisterciense em Alcobaça, o claustro da Sé
de Coimbra pode também ser considerado
como ensaio que garantiria uma plastici-
dade de sucesso durante os séculos seguin-
tes. Quadrangular, de cinco tramos em cada

O
(página anterior) claustro (1218) construiu-se a sul uma das alas, organiza-se dentro de um es-
Claustro da Sé da igreja, em cota superior e des- quema de arcos geminados de volta perfeita
1218
centralizado quanto ao lugar que enquadrados por um arco quebrado supe-
Galeria norte tradicionalmente ocupa, não tendo, para rior, em ritmo sequencial nos vários tramos
do claustro além das naturais dificuldades de implan- demarcados por contrafortes salientes.
primeiro quartel
do séc. XIII tação no terreno, justificação plausível a A atmosfera de gótico inicial integra a diver-
planta insólita que apresenta. De autoria sidade compositiva dos óculos presentes
desconhecida, o claustro deve ser enten- nos tímpanos assim formados. Toda esta
dido como obra de grande relevo no pano- estrutura assenta num murete rebaixado
rama do equilíbrio instável que envolveu o que resguarda as galerias internas e impede
longo governo do bispo D. Pedro Soares a passagem para o recinto aberto, à excep-
(1192-1232). Figura proeminente no domí- ção das quatro aberturas junto dos ângulos.
nio do Direito Canónico, acérrimo defen- As galerias têm abóbadas com arcos cru-
sor da protagonização do poder episcopal zeiros redondos e torais quebrados.
(que o levou a duras contendas com os po-
deres concorrentes do mosteiro de Santa É sobretudo a decoração capitelar que tem
Cruz e da Ordem do Templo) e de uma te- chamado a atenção dos estudiosos. Revela-
nacidade combativa precoce contra a polí- dora de um momento em que importava
tica de centralização e a ingerência régia nos convocar também a natureza ao espaço re-
assuntos da Igreja, o bispo pagaria o preço ligioso, a matriz vegetalista (mais depurada
da rebeldia com o encarceramento ordenado ou mais elaborada como nos designados
por D. Afonso II; o mesmo rei que, numa capitéis de colchete) que preenche os ca-
inteligente conduta de liderança, patroci- pitéis torna-se, assim, uma espécie de ban-
naria grande parte das obras do claustro, deira dos novos tempos medievais.

a sé velha de coimbra
A GALERIA POENTE A LIGAÇÃO INTERROMPIDA
À IGREJA

Capitéis de Sem que seja possível conhecer com rigor A nave poente foi conhecida como nave do A galeria norte, ou nave de S. Miguel, pro- arcos apontados e subverte definitivamente (página seguinte)
colchete no claustro as estratégias implementadas no pátio Cabido por aqui se realizarem as reuniões longa-se desde a antiga passagem entre a a lógica de circulação inicial. Os degraus que Antiga ligação
primeiro quartel ao claustro.
do séc. XIII aberto do claustro sabe-se que, ainda no sé- capitulares na Idade Média e sofreu altera- igreja e o claustro até à capela de S. Miguel, atravessavam a parede sul da igreja, pelo Em segundo plano
culo XVIII, era preenchido com lápides fune- ções de monta a partir de 1773 quando a ins- já no topo nascente. Acompanha a sala, em arco aberto por D. Jorge de Almeida, forma- são visíveis os arcos
rárias (tal como acontecia também nas talação da Imprensa da Universidade obrigou cota muito inferior onde, porventura, terá vam uma plataforma onde se encontravam de D. Afonso Castelo
Branco e D. Jorge de
quatro galerias) e renques de laranjeiras. à construção da grande escadaria que con- funcionado a sacristia, desactivada nos fi- com as escadas que ascendiam da (possível) Almeida, no acesso
duz aos pisos altos. nais do século XVI quando se construiu uma antiga sacristia e subiam aos andares altos imediato ao claustro
Abundam, de resto, as inscrições funerá- O piso térreo incluía, nos inícios do século XVIII, nova. Ultrapassa também a linha do tran- da igreja e do claustro. Subindo mais cinco IHRU, 095632
rias disseminadas pelas diversas galerias. no ângulo noroeste, a sacristia da Confraria septo até ao limite do corredor que dá degraus chegava-se à ala claustral, depois de
Uma outra lápide, comemorativa dos restau- do Senhor, com ligação directa ao exterior. acesso à actual sacristia. transposto o arco renascentista (que o res-
ros efectuados entre 1893 e 1902, foi descer- Logo a seguir, existia uma capela com o re- tauro de 1939 substituiu pelos arcos aponta-
rada no claustro em 1922 onde se encontra tábulo de Nossa Senhora da Encarnação Ao longo da parede vêem-se diversas inscri- dos em articulação à atmosfera gótica do
(depois de acrescentado o nome da rainha com diversas imagens em tratamento escul- ções e arcos tumulares com campas grava- claustro) que rematava todo o alinhamento
D. Amélia de Bourbon Orléans e Bragança, tórico de meio relevo em pedra. Esta capela das do século XV. As obras de restauro definido por D. Jorge de Almeida. A plata-
entusiasta convicta da recuperação da Sé) deveria corresponder ao actual átrio de en- mantiveram igualmente o registo de duas es- forma foi fechada e removeram-se também os
incluída na parede da nave poente, junto da trada no claustro, dotado de um grande arco cadas rematadas a um nível alto na parede. dois arcos redondos que aqui estabeleciam
entrada para o claustro. clássico, onde ainda se mantém a estrutura o acesso à (possível) antiga sacristia e aos
arquitectónica e decorativa do século XVI. A “capela” fabricada em 1939 pela D.G.E.M.N. andares altos: o primeiro, mais simples e as-
O claustro foi amplamente reformulado ao surge na sequência do encerramento da liga- sente em pilastras decoradas com losangos
longo dos tempos. Nos primeiros anos do Há ainda notícias de uma capela dedicada a ção à igreja. Núcleo fundamental na circula- e meios círculos (uma decoração que a Porta
século XX, em estado de avançada ruína, foi S. Nicolau e Santa Catarina onde, no século ção que se processava desde a entrada a eixo Especiosa já tinha utilizado), tinha superior-
enfim restaurado, suprimindo construções, XV, se fez sepultar João Vaz de Camões, avô na Porta Especiosa, organizando os circuitos mente o brasão de D. Afonso Castelo Branco;
recuperando as estruturas dos pavimentos do poeta humanista. A capela, praticamente para o piso térreo do claustro e, no plano su- o segundo integrava, no intradorso e nas pi-
ou elementos arquitectónicos, substituindo desactivada em 1624 quando Manuel Seve- perior, para as galerias altas do claustro, para lastras que o sustinham, uma decoração
partes degradadas, alterando percursos de rim de Faria a referencia, desapareceu engo- o trifório e coro alto da igreja, esta “capela” com motivos ovais e rectangulares ligados
circulação... lida pela escadaria de acesso à Imprensa. liga-se ao claustro por uma estrutura de entre si, própria dos finais do século XVI.

a sé velha de coimbra 134 | 135


Na abóbada de cruzaria desta “capela”, re- Construção da
matada com chave decorada com quatro “capela” surgida com
o encerramento da
anjos com livro, foi recentemente (2005) ligação entre a igreja
posta a descoberto a pintura a fresco do e o claustro (1939)
século XVI que conferia um brilho intenso à IHRU, 095653
passagem. Executados a partir de cartões que Retábulo da
definiam motivos circulares entrelaçados, os Natividade
frescos privilegiam uma tonalidade azul cin- escola de João de
Ruão, 1559
tilante de implícitas alusões ao paraíso.
Pintura a fresco na
Para aqui transitou primeiro a pia baptismal abóbada da “capela”
de ligação entre a
(vinda do primeiro tramo da igreja à esquerda igreja e o claustro
e daqui para o transepto) e só depois se co- séc. XVI
locou o retábulo da Natividade datado de
1559 e deslocado da capela de Santa Maria na
ala nascente do claustro. É obra em calcário
de Ançã da escola de João de Ruão e repre-
senta, lateralmente ao tema central, as duas
figuras da Anunciação e cenas campestres.

136 | 137
arco quebrado da entrada, datável dos iní-
cios do século XIV. Era, por 1725, capela com
altar de pedra dedicado a Nossa Senhora da
Assunção.

Capela de Santa Maria


A capela de Santa Maria, ocupando os tra-
mos médios da galeria, é hoje a maior das
que subsistem no claustro. Os três tramos
que a organizam correspondiam, no pri-
meiro quartel do século XVIII, a duas casas
de despejos laterais à capela que ocupava o
A GALERIA NASCENTE tramo central com altar de pedra dedicado a
S. Jerónimo. Ainda são visíveis as abóbada
com arcos cruzados dos séculos XIII-XIV que
repousam em mísulas com decoração vegeta-
lista, zoomórfica ou com elementos híbridos.
O acesso à capela não é, portanto, o primitivo
bem como as frestas laterais à entrada que
pertencem ao restauro dos primeiros anos
do século XX. A antiga capela identificada no
tramo médio reporta-se ao século XVI, como
o comprova a definição dos elementos arqui-
tectónicos na descarga dos arcos preenchidos
Também conhecida como a nave da Fonte com volutas e querubins. Frente à entrada, Capela de
pela presença de uma fonte de bica que se onde estava (ainda nos meados do século XX) Santa Maria
sécs. XIII-XIV e XVI
situava no topo sul desta nave e por onde o retábulo da Natividade que transitou para
se captavam as águas exteriores, canaliza- a “capela” fabricada com o encerramento da
das para o lavatório da sacristia. passagem para a igreja, colocou-se o cru-
zeiro do Arnado com uma coluna compósita
Capela de S. Miguel (de fuste ornado com a cruz filipina, o escudo
A pequena capela de S. Miguel, do século XIII, e a coroa régia) rematada pela imagem de
no topo da nave com a mesma designação, Cristo crucificado. À direita estão duas arcas
integra arcos tumulares. Foi o local esco- tumulares simples, protegidas sob arcos que-
lhido para alojar as ossadas do chanceler brados abertos na parede cavada na rocha.
dos primeiros reis portugueses e figura pró-
xima de D. Afonso II, D. Julião Pais, falecido Foi desta capela que a escultura da Senhora
em 1215. No mesmo local encontra-se tam- da Anunciação, datável da década de 20, foi
bém o registo sepulcral do seu irmão e deão levada para o Museu Machado de Castro e
da Sé, D. Gonçalo Dias. A descoberta destes cuja qualidade plástica levou à sua atribuição
sepulcros ocorreu em 1903. a Nicolau Chanterene. O anónimo Mestre
dos Túmulos dos Reis mantém-se como a
Nos inícios do século XVIII esta capela era designação possível de um artista cujos mé-
dedicada aos santos físicos, Cosme e Damião, ritos foram aproveitados pela encomenda
pintados no altar. de prestígio em que se contam, para além
do bispo de Coimbra, D. Jorge de Almeida, os
Capela de Santa Cecília mosteiros de Santa Cruz, Santa Clara e do Lor-
No tramo seguinte encontra-se a Capela de vão ao tempo de D. Catarina de Eça ou a Sé
Santa Cecília cujo único interesse reside no de Braga no governo de D. Diogo de Sousa.

138 | 139
A GALERIA SUL

A antiga designação de nave do Poço justi- e resultado da política de engrandecimento (página anterior)
ficava-se pela presença de uma cisterna lo- da Sé levada a cabo por D. Jorge de Almeida. Capela de
Santa Catarina
calizada no ângulo formado a ocidente. Ainda conserva a inscrição em gótico ressal- séc. XIV
tado e a decoração vegetalista que acompa-
Capela de Santa Catarina nhava as duas faces visíveis da arca tumular. Túmulo de D. Afonso
Castelo Branco
A capela de Santa Catarina, datável do sé- capela de Santa
culo XIV, de dois tramos e de razoável pro- O túmulo de D. Afonso Castelo Branco, do Catarina ao claustro,
jecção vertical é a única aberta nesta galeria. século XVII, foi levado em Janeiro de 1908 1633
Dois grandes arcos quebrados dão acesso a do convento de Santa Ana (onde se procedia
esta capela também cavada na rocha e com a obras para adaptação a quartel), edifício
as paredes simulando os silhares de pedra. construído sob o seu alto patrocínio. O bispo
Tinha, nos inícios do século XVIII, um altar repousa em arca sepulcral, datada de 1633 e
pintado com o tema da Santíssima Trindade assente sobre quatro leões, com inscrição e
e era cemitério dos cónegos sem sepultura o seu brasão de armas.
eleita.
Junto à capela mantém-se uma entrada, as-
Para aqui foram deslocadas duas arcas tumu- sinalada com arco trilobado do período ma-
lares: à direita, o túmulo de D. Sesnando e seu nuelino, da escada de acesso aos andares
sobrinho D. Pedro, à esquerda o de D. Afonso altos do claustro.
Castelo Branco. O primeiro, recuperado da
parede norte da igreja, ligeiramente elevado
e encastoado no contraforte angular a
poente (tal como se vê em fotografias anti-
gas), é obra da transição dos séculos XV-XVI

142 | 143
OS ANDARES ALTOS

(página anterior) A estrutura dos pisos altos, para onde tran- habitação do padre tesoureiro. Estes blo-
Piso alto do sitaram os dois arcos quinhentistas da ca- cos superiores eram iluminados por 16 ja-
claustro da Sé
pela de Duarte de Melo e da ligação entre a nelas gradeadas, revestidos a azulejo e
Pormenor igreja e o claustro, foi profundamente alte- tinham cobertura em madeira guarnecida
decorativo do arco rada. Nas grandes obras do último restauro com estuques.
do claustro com
ligação à igreja efectuado suprimiram-se os blocos superio-
João de Ruão, res mas, ao longo dos tempos, são constan- A Reforma Pombalina instalou aqui os prelos
c. 1535-1540 tes as notícias que se lhes referem: em 1542, da Imprensa da Universidade, removidos
Pormenor D. Jorge de Almeida recomendava a cons- nas campanhas de restauro da primeira me-
decorativo do arco trução de novos peitoris para um piso reno- tade do século XX, e reconfigurou por com-
do claustro com vado; nos inícios do século XVIII, albergava pleto também a atmosfera dos pisos altos.
ligação à igreja
João de Ruão, na ala norte a casa do ante-cabido, a casa do
c. 1535-1540 despacho do cabido e a casa do tesouro, No ângulo sudoeste do claustro permanece
mantendo públicas as restantes galerias. o bloco inferior da torre, parcialmente demo-
Arco da capela de
Duarte de Melo A ala poente acolhia a casa da cera e demais lida em 1775.
Tomé Velho, 1583, e utensílios necessários ao serviço litúrgico
arco do claustro da Sé e, no ângulo sudoeste, a zona reser-
com ligação à igreja
João de Ruão, vada às necessárias; no bloco do sul encon-
c. 1535-1540 trava-se a escada de acesso à torre e à casa
do sineiro; a ala nascente, com duas por-
tas de ligação ao exterior, era preenchida
por uma sala destinada ao estudo de gra-
mática, mantendo viva a tradição medieval
do studium, e, na parte norte, pela casa de

a sé velha de coimbra
A TORRE Será através do fundamental contributo da
Arqueologia que a torre da Sé pode recupe-
rar uma identidade desconhecida e captar
então as potencialidades interpretativas de
que carece hoje.

O acesso à torre faz-se através da entrada


no piso alto da galeria sul do claustro, onde
está colocado o arco deslocado da capela de
Duarte de Melo, e pela escada que conduz à
única porta que a serve. O grande salão abo-
badado encontra-se desactivado das suas
antigas funções.

A descrição mais completa que se conhece


da torre é do primeiro quartel do século
XVIII: “A torre dos sinos fica desviada da
Igreja para a parte do Sul, mas com serven-
tia pello claustro, e tem nove ventanas com
sinos, dos quais tres ficam inclinados ao
nascente, tres ao poente e tres ao norte, e
estes sam os mayores, e no numero delles
entra hum de estremada grandeza a que vul-
garmente chamam o Balão e tem sessenta e

C
O claustro e a ontinua por fazer uma leitura histo- quatro quintaes de pezo, e por sima delle na
torre da Sé riográfica consistente sobre a torre mesma parede está outra ventana em que
dos sinos da Sé, localizada no ângulo está colocado o Relogio, e por sima delle
sudoeste do claustro. A poderosa estrutura hum sino pequeno que dá os quartos, e esta
quadrangular que subsiste não conseguiu torre tambem tem o tecto de azulejo azul, e
ainda fornecer as indicações necessárias branco, e mixtas a ella estam as cazas que a
para a pretendida descodificação. Surgiram, See dá para morar o sineiro” (Vasconcelos,
no entanto, ensaios de interpretação que 1930, p. 460).
vale a pena fixar. Walter Rossa avançou a
possibilidade de fazer coincidir a torre da A partir do momento (1775) em que D. Fran-
Sé com uma das torres de uma hipotética cisco de Lemos ordenou a sua demolição, a
muralha de protecção à zona da alcáçova. torre foi sistematicamente votada ao aban-
Essa situação, de aproveitamento mais tar- dono. Restou um piso sobre o qual, entre a
dio de uma estrutura islâmica, explicaria Universidade e a Sé, se instituiria a tradição
também o carácter não alinhado da torre de miradouro sobre a cidade. O projecto de
relativamente às fachadas do claustro. musealização para a Sé, com a participação
Uma outra hipótese vai, da mesma forma, do atelier do arquitecto João Mendes Ribeiro
ao encontro do período islâmico, na presun- e remetido para intervenção futura, privile-
ção de que a torre da Sé pudesse constituir giou a torre como espaço expositivo colo-
o “embasamento (na tradição de outros) do cando-a novamente no mapa dos circuitos
alminar da antiga mesquita, a confirmar-se estabelecidos para o conjunto edificado.
a sua implantação sobre os alicerces da pri-
mitiva catedral”: (Pimentel, 2005, p. 215).

a sé velha de coimbra
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