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Edição nº1, agosto de 2020

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Revisão:
Gabriel Varandas Lazzari e Geomarque
Sousa Carneiro

Conselho Editorial:
Gabriel Varandas Lazzari
Antonio Ugá Neto
Poliana Mendes Cavalheiro
Lígia Fernandes de Oliveira
Tulio Cesar Dias Lopes
Caio Cesar Andrade Bezerra da Silva
Luca Magli
Pamela Christy Mesquita Muniz
Kim Taiuara Chavarria Brochardt
Geovane Rocha da Silva
Felipe Amaro Freitas Ferreira

Capa, projeto gráfico e diagramação:


Luciano Gomes Teixeira e Raíssa Oliveira

1ª edição: agosto de 2020


Tiragem: 700 exemplares

Ficha Catalográfica

F996 Futuro, O : O comunismo é a juventude do mundo / União da Juventude


Comunista. – n. 1 (ago./nov. 2020)-- [s.l] : União da Juventude
Comunista, 2020 - .
il. ; 14x21 cm.

Descrição baseada em: n. 1 (ago./nov. 2020).

1. Comunismo. 2. Comunismo – Juventude – Brasil. 3. Socialismo e


juventude. I. União da Juventude Comunista.

CDD 335.43

3
sumário
7 Editorial

11 O capitalismo brasileiro e a criminalização da juventude


Daniel Buarque de Almeida

17 Juventude e cultura política


André Brandão

29 Por um Fanon revolucionário


João Rafael Chió Serra Carvalho

43 A precarização e as relações de trabalho para a


juventude brasileira
Poliana Mendes Cavalheiro

53 Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica


global emerge novamente
Edmilson Costa

73 O Poema Pedagógico Soviético para a


Juventude Revolucionária
Vinícius Okada M. M. D’Amico

87 Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas


da juventude pelo socialismo no século XXI
Gabriel Lazzari
99 Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma
aposta para o futuro a partir da juventude marxista
Felipe Gomes Mano e João Vitor Sichieri

111 O orgulho, dever e desafios da juventude comunista


Raul Santos do Nascimento

117 Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica


Fábio Ornelas

129 A política é violência


Fernando Savella

141 A hora da juventude do mundo


Leonardo Silvestrin

151 “São gentis porque são ricos”: Subjetividade de


classe e realismo em Parasita e Bacurau
Fêh Sung

155 Movimento estudantil de Medicina e a luta pela


transformação da educação médica no Brasil
Lucas Uback e Daniel Felix Valsechi
Editorial
O comunismo é a juventude do mundo!

Q
uando estoura a Primeira Guerra Mundial, em 1914, Lênin se en-
contrava autoexilado na Galícia, atualmente parte da Polônia.
Para garantir sua própria segurança, muda-se logo para a Suíça,
país neutro da guerra. É em Berna que Lênin vai voltar sua atenção à Ciên-
cia da Lógica, de Hegel, e muitos atribuem a esse estudo o desenvolvimento
mais apurado do conteúdo dialético do materialismo marxista do revolu-
cionário russo. Com esse estudo, Lênin nos deu uma lição: independente-
mente do calor do combate em que estivermos, uma parte fundamental da
intervenção na luta se deve ao estudo teórico.
No começo de 2020, a Coordenação Nacional da União da Juventude Comu-
nista decide por organizar e lançar uma revista teórico-política. Não sabíamos
ainda que pouco tempo depois começaria a crise do coronavírus, a maior pan-
demia global desde a gripe espanhola (que começou justamente no fim da Pri-
meira Guerra Mundial). As dificuldades impostas por essa fase da luta de clas-
ses não representaram, para nós, uma diminuição no ímpeto de contribuir à
luta teórica. Ao contrário: foi durante a pandemia que empreendemos grandes
esforços para converter nossas dificuldades em formulação política. Cientes
da importância da tarefa, seguimos de cabeça erguida para a organização des-
se trabalho, não apenas fundamental, mas inexistente na atual cena política
brasileira: uma revista teórico-política marxista-leninista voltada à juventude.
Assim, é com muita alegria e disposição para a luta revolucionária que, de-
pois de meses de trabalho intenso, apresentamos a primeira edição da revista
O Futuro – O Comunismo é a Juventude do Mundo, uma iniciativa da União da
Juventude Comunista (UJC), a juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O PCB, ao longo dos seus 98 anos de luta, atribuiu como prioridade política e
organizativa a formação de seus quadros e militantes e nossa juventude comu-
nista busca cada vez mais crescer com a qualidade revolucionária necessária
para enfrentar os desafios e problemas candentes da conjuntura atual. Através
de nossos instrumentos de agitação e propaganda (jornais, portais, redes sociais
e revistas) buscamos contribuir para a elevação da consciência e para a organiza-
ção da classe trabalhadora e da juventude brasileira. A publicação desta revista
teórico-política da UJC expressa a necessidade de fortalecer este elemento quali-
tativo característico de nossa organização de juventude.
Na concepção de organização política apresentada por Lênin, líder da Re-
volução Russa e do Movimento Comunista Internacional, um militante comu- 7
o futuro, nº1
nista deve buscar desenvolver três elementos: a organização, a agitação e a
propaganda. A organização através da disciplina consciente, do compromisso
revolucionário, do trabalho coletivo, da direção coletiva, do respeito às decisões
democráticas, do exercício da crítica e da autocrítica, entre outros; a agitação,
da intervenção junto às massas, do uso das palavras de ordem adequadas ao mo-
mento, da luta teórica imediata, da apresentação do programa das propostas e
das ideias comunistas, da apresentação de “poucas ideias para muitas pessoas”;
e a propaganda, da intervenção junto à vanguarda, da luta teórica aprofundada,
da explicação do programa, das propostas e das ideias socialistas e comunistas,
da disputa de consciência, da apresentação de “muitas ideias para poucas pes-
soas” – fundidas, as três, em uma atuação consistente, que se reflita sempre em
um chamado à ação revolucionária, contribuindo para que a vontade individual
torne-se cada vez mais uma vontade coletiva e transforme-se em vontade univer-
sal na busca pela Revolução Social e Emancipação Humana.
Os estudos teóricos políticos e as atividades cotidianas, como trabalho e
estudo, não podem ser negligenciadas ou colocadas em segundo plano pe-
los jovens militantes comunistas. Um bom militante deve ser um estudan-
te dedicado a desenvolver cada vez mais suas capacidades e habilidades.
Não faz sentido abrir mão de disciplinas acadêmicas e matérias escolares,
faltar constantemente no trabalho em função da atividade militante, nos
afastando da práxis revolucionária cotidiana. Sublinhamos a importância
do trabalho coletivo para não sobrecarregar nas costas de um militante vá-
rias atividades do movimento e/ou da entidade em que ele participa e que
ele representa. Nos momentos decisivos como congressos, encontros, mo-
bilizações, ocupações, o militante comunista compromissado com a luta
da juventude, do movimento popular e da classe trabalhadora não pode se
ausentar, daí a necessidade de se organizar pessoalmente e trabalhar coleti-
vamente para evitar possíveis desencontro com suas tarefas pessoais e com
as tarefas políticas e organizativas da luta revolucionária.
Os comunistas do PCB e da UJC concentram parte significativa de seus es-
forços na formação política, tanto teórica quanto prática, de seus militantes.
A assimilação do marxismo-leninismo é uma tarefa necessária, constante e
regular para os militantes da União da Juventude Comunista (UJC) e para o for-
talecimento do PCB, o Partido histórico do proletariado brasileiro. Neste senti-
do redobramos nossos esforços no trabalho de educação. A educação na pers-
pectiva dos comunistas brasileiros pode ser compreendida, prioritariamente,
como tarefa de formação política dos seus quadros e militantes; como trabalho
de conscientização e educação política da juventude e da classe a que pertence-
mos; e da luta em defesa de direitos sociais como a universalização do acesso
à educação pública e por uma educação popular, laica e crítica, na perspectiva
8 da politecnia e da omnilateralidade, ou seja, do amplo desenvolvimento das
editorial
mais diferentes possibilidades humanas, como um todo, nos planos da ética,
das artes, da técnica, da moral, da política, da ciência, do espírito prático, das
relações intersubjetivas, da afetividade, da individualidade etc.
O processo formativo deve ser contínuo e não se esgota em uma semana,
um mês ou um ano – deve se desenvolver por toda a vida, pois a luta revolucio-
nária não se esgota em um tempo histórico determinado. A revista O Futuro
– O Comunismo é a Juventude do Mundo é de fundamental importância neste
momento de crise do capitalismo e acirramento da luta de classes. Na atuali-
dade, compreendemos a necessidade de que a humanidade pode trilhar novos
rumos superando dialeticamente a exploração e as opressões.
Nesta edição de lançamento da revista, temos uma seleção primorosa. Dois
dos nossos artigos apresentam uma visão sobre a crise econômica, seus desdo-
bramentos e o impacto nas relações de trabalho da juventude. Guardando a re-
lação histórica dos comunistas com as luta dos “trabalhadores do mundo todo”,
apresentamos dois textos de debate internacionalista: um que analisa o vínculo do
autor martinicano Frantz Fanon com outros revolucionários comunistas; e outro
sobre o significado prático do internacionalismo proletário nos dias de hoje. Além
desses, dois dos artigos apresentam visões sobre a educação, um retomando a teo-
ria desenvolvida pelos pedagogos soviéticos e outro problematizando a educação
médica no Brasil nos dias de hoje. Dois artigos selecionados vão discutir o papel da
violência na política, tanto pelo viés da criminalização da juventude, quanto pelo
inerente papel dos elementos de coerção no capitalismo dependente e periféri-
co. O debate sobre a consciência e as formas ideológicas também ganhou espaço
em dois artigos: um refletindo sobre a subjetividade no período neoliberal; outro,
sobre o impacto da pandemia do coronavírus na disputa pela hegemonia social.
Mantendo a tradição dos comunistas de apresentar a crítica das formas ideológi-
cas, um ensaio apresenta um debate sobre os conflitos de classe em dois filmes
lançados recentemente: o brasileiro Bacurau e o sul-coreano Parasita. Por fim,
três textos apresentam o sempre atual debate sobre a organização comunista, co-
locando ênfases na cultura política comunista; no dever do militante comunista; e
nas tarefas históricas dos jovens comunistas no século XXI.
Seguimos estudando, trabalhando e lutando pelo Poder Popular e pelo So-
cialismo na perspectiva do Comunismo. Teremos muitas lutas no presente e
temos a firme convicção que o Comunismo triunfará no futuro. Os artigos e
ensaios publicados nesta edição contribuem para isso.

Conselho Editorial
Revista O Futuro – O Comunismo é a Juventude do Mundo
Junho de 2020

9
10
O capitalismo
brasileiro e a
criminalização da
juventude
Daniel Buarque de Almeida1

N
o século XIX, ao se debruçar de forma crítica sobre as penas capitais
em um artigo, Karl Marx levantou uma importante questão sobre a
relação entre o modo de produção capitalista e o seu aparato de jus-
tiça criminal. Diante da constatação de que a mais moderna criminologia de
seu tempo podia prever com boa dose de precisão a quantidade e a natureza
dos crimes que seriam cometidos a cada ano, indagava

[...] Agora, se os crimes observados em grande escala


mostram, assim, em sua quantidade e classificação, a
regularidade dos fenômenos físicos [...] não há necessidade
de refletir profundamente sobre uma alteração do sistema
que gera esses crimes, em vez de glorificar o carrasco que
executa muitos criminosos apenas para dar espaço ao
suprimento de novos?2

Alguns séculos depois, a barbárie burguesa do capitalismo consistente em


promover e glorificar carrascos continua na ordem do dia. Uma continuidade
que, no contexto do capitalismo brasileiro, se sustenta por meio da aplicação
constante de violência contra a juventude preta e periférica, que também é um
dos segmentos mais afetados pela precarização do trabalho.
Como se não bastasse o desamparo que já atinge a juventude pelas altas
taxas de desemprego, que em 2018 eram identificadas como sendo o dobro da
taxa geral3, a violência direcionada contra esse segmento da população é ope-
1 Daniel Buarque de Almeida é estudante de direito da PUC-SP e militante da UJC.
2 MARX, Karl. Capital Punishment. New-York Daily Tribune, New York, 17-18 fev.
1853. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1853/02/18.
htm. Acesso em: 22 jun. 2020.
3 SILVEIRA, Daniel. Desemprego entre os jovens é superior ao dobro da taxa geral,
aponta IBGE. G1, Rio de Janeiro, Economia, 17 ago. 2018. Disponível em: https://
g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/17/desemprego-entre-os-jovens-e-supe- 11
o futuro, nº1
racionalizada a partir de diversos vetores. De um lado, há os índices altíssimos
de assassinatos, que podem ser exemplificados pela taxa de 60 mil homicídios
registrados pelo IPEA no ano de 2017, dos quais cerca de 35 mil foram cometi-
dos contra jovens4. De outro lado, há a violência que é diretamente operaciona-
lizada pelas forças de segurança do Estado. Para além de uma população carce-
rária que atualmente orbita na marca de 800 mil detentos5, a terceira maior do
mundo, dentre os quais dados de 2017 apontam que mais da metade têm entre
18 e 29 anos de idade e que 64% são negros6.
Dentre muitas de suas características, o que sempre fica patente na atuação do
sistema de justiça criminal e dos aparatos de repressão é a seletividade que os marca.
Se de um lado há mais de 1600 crimes distintos no ordenamento brasileiro, por outro,
tão somente nos crimes relacionados ao patrimônio ou na Lei de Drogas, encontra-
mos as causas para mais de 70% das prisões feitas em todo o território nacional7.
Já a partir disso se poderia discutir quais condutas definidas como crimes
o Estado tem um interesse em reprimir, mas ainda caberia apontar justamen-
te que a seletividade permanece mesmo dentre aqueles em que esbarram nas
condutas criminalizadas. Não haveria espaço físico viável, no já superlotado8
sistema prisional brasileiro, para que todos aqueles que cometeram um cri-
me (cientes disso ou não) fossem presos simultaneamente. O sistema prisio-
nal iria desmoronar sobre o peso dos corpos amontoados se “somente” todos
os jovens brasileiros que já portaram drogas fossem presos simultaneamen-
te. De forma que se poderia afirmar que a aplicação da lei penal desvinculada
da seletividade que marca o próprio sistema seria, para além de algo impos-
sível, um grande problema para o próprio funcionamento da sociedade bur-
rior-ao-dobro-da-taxa-geral-aponta-ibge.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.
4 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência: homicídios
faixa etária de 15-29 anos. Dsponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/da-
dos-series/24. Acesso em: 22 jun. 2020.
5 BARBIÉRI, Luiz Felipe. CNJ registra pelo menos 812 mil presos no país; 41,5% não
têm condenação. G1, Brasília, Política, 17 jul. 2019. Disponível em: https://g1.globo.
com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais
-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.
6 BRASIL tem a 3ª maior população carcerária do mundo, com 726.712 mil presos.
Consultor Jurídico, 8 dez. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-
dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos. Acesso em: 22
jun. 2020.
7 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário
Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penintenciárias: atualização
– junho de 2016. Brasília, DF: DEPEN, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DE-
PEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-peniten-
ciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020.
8 MARTINES, Fernando. Brasil tem superlotação carcerária de 166% e 1,5 mil mortes
em presídios. Consultor Jurídico, 22 ago. 2019. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2019-ago-22/brasil-lotacao-carceraria-166-15-mil-mortes-presidios. Acesso
12 em: 22 jun. 2020.
O capitalismo brasileiro e a criminalização da juventude , almeida
guesa. Fato constatado mesmo por criminólogos que não integram o campo
marxista: “Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as
defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as
ameaças, etc. fossem concretamente criminalizadas, praticamente não have-
ria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado.”9
A violência estatal direta contra a juventude preta e trabalhadora é tradicio-
nalmente fundamentada a partir de um abstrato combate à “criminalidade”,
que no fim das contas serve mais com um fator de agravamento da violência
burguesa do que qualquer outra forma de intervenção que tivesse como fim a
preservação da vida. Em operações da chamada “guerra às drogas”, sejam elas
o cumprimento de mandados de prisão ou operações de busca e apreensão, ca-
sas são invadidas e jovens de comunidades periféricas mortos com a alegação
de as intervenções violentas do Estado teriam como fim a promoção da “paz”
e de uma ordem benéfica para a sociedade como um todo. Um discurso fanta-
sioso que mascara os fins e os custos daquilo que nada mais é que a dominação
burguesa expressa por meio da criminalização de segmentos da classe traba-
lhadora. O custo dessa dominação é expresso ao longo do tempo, por meio dos
nomes de vítimas como Agatha Felix10, de 8 anos de idade, e João Pedro11, de 14
anos, que vão sendo acumulados e apagados.
O nível de violência da dominação burguesa é de tal proporção que até mes-
mo os espaços de cultura ou lazer da juventude se transformam em palcos para
a repressão e tortura. A criminalização da juventude abrange situações que vão
desde a prisão preventiva do músico Renan da Penha, sob a alegação de asso-
ciação ao tráfico e que buscava reprimir um dos principais organizadores do
Baile da Gaiola (um dos maiores do Rio de Janeiro), até mesmo à verdadeiros
massacres, como o que foi promovido pelo governo de João Dória em um baile
funk no 1º de dezembro de 2019 na favela de Paraisópolis.
Este último caso, envolvendo a morte de 9 pessoas com idades entre 14 e 23
anos de idade, ilustra bem a lógica de operação dos aparatos repressivos da bur-
guesia no contexto brasileiro. Um dos principais pontos em defesa da atuação da
polícia era o argumento de que teriam entrado no baile funk para impedir que

9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan,
2014. p. 26.
10 ENTENDA como foi a morte da menina Ágatha no Complexo do Alemão, segundo a
família e a PM. G1, Rio de Janeiro, 23 set. 2019. Disponível: https://g1.globo.com/rj/
rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-
complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.
11 COELHO, Henrique et al. Menino de 14 anos morre durante operação das polícias
Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, RJ. G1, Rio de Janeiro, 19 maio. 2020. Dis-
ponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/19/menino-de-
14-anos-e-baleado-durante-operacao-no-complexo-do-salgueiro-rj.ghtml. Acesso
em: 22 jun. 2020. 13
o futuro, nº1
um determinado crime fosse consumado12. Argumento que ignora a realidade
de que, em um país com mais de 1600 condutas criminalizadas, seria impossível
aglomerar cerca de 5 mil jovens em qualquer lugar por mais de uma hora sem
que alguém acabe por esbarrar em alguma conduta prevista como crime. O Có-
digo Penal brasileiro prevê situações graves de violência, como homicídios, mas
também inclui situações mais cotidianas da realidade da juventude como o porte
de filmes piratas (receptação) ou xingamentos (injúria). Essa fábula (e depois de
tanto discutir o tema da seletividade penal talvez não se possa pensar num termo
melhor do que fábula ou fantasia) de homens e mulheres de farda numa luta
abstrata contra o crime diz muito pouco sobre qualquer preocupação do Estado
com a segurança da população. Ao contrário, ela serve como uma permanente
justificativa para a violência policial, que vez ou outra condena seus próprios
integrantes por supostos “excessos” mas, que se apresenta como legítima em seu
aspecto sistêmico na medida em que estaria agindo para defender “a sociedade”.
De todo modo, apesar de especialmente brutal, o massacre de Paraisópolis
tem sido rapidamente esquecido e enterrado pela mídia, ao passo em que o pró-
prio governador, poucos meses depois da tragédia, voltou a falar com tranqui-
lidade na repressão a bailes funk, inclusive como se fosse uma medida de saú-
de no combate ao COVID-19 e não simplesmente mais uma medida higienista
e de repressão à juventude trabalhadora brasileira13. Muito antes de viabilizar
medidas eficazes para a permanência do isolamento social, como a garantia de
rendas emergenciais ou a distribuição de alimentos em casa, os representantes
da burguesia respondem à pandemia com a constatação de mais oportunidades
para a distribuição de violência contra a juventude de origem trabalhadora.
As declarações do governador se fazem especialmente marcadas por hi-
pocrisia, na medida em que apelam para uma problemática real do combate
à aglomerações num contexto de pandemia, mas que na verdade não fazem
mais do que escancarar a seletividade que é marca da justiça criminal bur-
guesa. Enquanto o governador faz ameaças falando em polícia e prisão para
bailes funk, os apoiadores do governo Bolsonaro que bloquearam a avenida
paulista no dia 11 de abril, inclusive impedindo completamente a passagem
de ambulâncias, tiveram ampla liberdade para criticar o próprio conceito de

12 PAGNAN, Rogério; RODRIGUES, Artur. Ação da PM com 9 mortos em Paraisópolis


não teve oficial no comando. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, 10 dez. 2019.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/12/acao-da-pm-com-
9-mortos-em-paraisopolis-nao-teve-oficial-no-comando.shtml. Acesso em: 22 jun.
2020.
13 TOMAZ, Kleber et al. Coronavírus: bailes funk, igrejas e futebol desrespeitam medi-
da contra aglomeração de pessoas em SP; veja vídeos. G1, São Paulo, 23 mar. 2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/23/coronavirus
-bailes-funk-igrejas-e-futebol-desrespeitam-medida-contra-aglomeracao-de-pes-
14 soas-em-sp-veja-videos.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.
O capitalismo brasileiro e a criminalização da juventude , almeida
isolamento social sem ter de sequer se preocupar com represálias da polícia ou
do governo. O governo Dória, tal qual os demais representantes da classe do-
minante dentro do Estado burguês, tem o hábito de falar com severidade e dar
a mais dura repressão contra trabalhadores, mas é absolutamente conivente
com os desmandos, violências e irresponsabilidades dos grupos reacionários
que dão um ar de sustentação ao governo de Jair Bolsonaro.
Numa outra manifestação de sua seletividade, ao mesmo tempo em que
o aparato estatal implementa medidas de repressão desenfreada contra a ju-
ventude trabalhadora, ele também incorpora e neutraliza suas justas reivin-
dicações a partir de um extenso arcabouço jurídico. A população LGBT e os
movimentos feministas, por exemplo, constantemente apontam a violência e
desamparo ao qual estão desproporcionalmente submetidos dentro da socie-
dade. Em contrapartida, o Estado incorpora sua luta por condições mínimas de
segurança e dignidade através da formulação de novas leis criminalizadoras.
Para além do fato de que essa resposta por parte do Estado simplesmente inse-
re o conflito e a violência numa lógica punitivista e carcerária, que em ampla
medida ignora propostas de resolução de conflitos coletivas ou a reparação de
danos, essas alterações legislativas pouco representam em um aumento con-
creto da segurança dessas camadas da população.
Não surpreende que um país com cerca de 1600 condutas criminalizadas não
lide com todas elas na mesma medida, mas as prioridades da justiça burguesa
ficam ainda mais explícitas na contraposição feita entre a violência à qual diaria-
mente mulheres e LGBTs estão sujeitas em contraposição à conivência (quando
não a culpa direta) do aparato de segurança com tais atos de violência.
Nas poucas situações nas quais vítimas desses setores recebem alguma res-
posta do aparato de justiça criminal, que via de regra é a resposta prisional, o
Estado se preocupa mais com um deslocamento geográfico da violência do que
de fato com uma resolução do conflito. Nos casos de violência machista, por
exemplo, não só o agressor é exposto a situações de extrema violência e priva-
ção completamente ilegais dentro do sistema prisional, como também é comum
que outras mulheres de sua própria família passem a ser expostas a situações
de violência. Dentro de um sistema prisional que pouco oferece em termos de
condições mínimas de sobrevivência e dignidade, são mães, irmãs ou esposas de
homens condenados que diversas vezes acabam responsabilizadas por garantir
a sobrevivência de seus companheiros no interior do sistema prisional14. Para
além de um peso adicional nas finanças familiares, a rota para que mulheres tra-
balhadoras levem suprimentos a seus companheiros também envolve situações
diversas de violência psicológica e física (como revistas vexatórias).

14 QUANDO as famílias de detentos “pagam a pena”. Pastoral Carcerária, São Paulo,


Notícias, 28 jan. 2015. Disponível em: https://carceraria.org.br/noticias/quando-as-
familias-de-detentos-pagam-a-pena. Acesso em: 22 jun. 2020. 15
o futuro, nº1
Também é importante lembrar que, aos olhos da justiça criminal, a vítima tra-
dicionalmente não é muito mais que um “instrumento de prova”15. Ela participa
do processo para dar seu relato e com isso auxiliar os argumentos da defesa ou
acusação, seus traumas ou desejos são praticamente irrelevantes no que diz res-
peito a qual será a resposta dada para resolver o conflito. A garantia de autonomia
financeira para vítimas de violência doméstica, que poderia criar uma redução
importante em uma das relações de dependência que frequentemente envolvem a
vítima e o agressor em tais contextos, recebe pouca ou nenhuma atenção do Esta-
do. Programas de abrigos e incentivo a emprego para LGBTs vítimas de violência
doméstica e expulsão do lar são raros. Via de regra, a principal forma de interven-
ção do aparato de Justiça Criminal é a prisão, e a vítima que se vire depois sem
causar grande alvoroço ou incômodo para os gestores da segurança.
O mesmo Estado cujos representantes se dizem preocupados com a situa-
ção da juventude trabalhadora, toda sua heterogeneidade, é o Estado que a
submete a situações de tortura e degradação pela via do aparato criminal. A
justiça criminal que diz incorporar a demanda de proteção de jovens mulheres
trans, logo em seguida submete elas mesmas a todo tipo de barbárie quando
as direciona para estabelecimentos prisionais masculinos. A legislação que
incorporou o racismo como um crime hediondo também se valeu do status
jurídico distinto dos crimes hediondos para encarcerar e assassinar milhares
de jovens negros com a justificativa da suposta “guerra às drogas”.
Por esses, e tantos outros, motivos que a juventude trabalhadora tem uma
importante tarefa de derrubar as amarras às quais são impostas por este Esta-
do. Enquanto temas importantes como a vida, dignidade e segurança perma-
necerem presos à vista estreita ao sistema de justiça criminal, a um dos braços
do aparato repressivo do Estado burguês, as respostas para essas questões irão
permanecer como cenas de tragédia e violência contra trabalhadores.
Um futuro digno para a juventude, que seja capaz de responder aos altos
índices de violência que marcam a sociedade brasileira, só pode ser conquis-
tado como consequência da luta organizada dessa própria juventude. Não há
interesse nenhum por parte da burguesia em construir sistemas de justiça
pautados em resoluções coletivas, na reparação de danos e pedagogia como
algo mais importante que a punição, na integração das vítimas e da própria
comunidade na resolução do conflito.
O interesse da burguesia é a manutenção de suas taxas de lucro, na perma-
nência de um aparato repressivo que seja inteiramente voltado à proteção da
propriedade privada e que seja capaz de afastar toda a “ralé” para longe. Cabe
à juventude trabalhadora construir, com toda a luta e organização que isso im-
plica, um futuro onde os “carrascos” não sejam glorificados.
15 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Re-
16 vista dos Tribunais, 2014, p. 51-52.
Juventude e
cultura política
André Brandão1

A necessidade da formação de uma cultura


política em tempos de caricaturas

É
consagrada a ideia no interior da esquerda socialista de que o co-
munismo é a juventude do mundo. Não se pode dizer que se trata de
uma compreensão arbitrária: enquanto as concepções liberais, de
esquerda ou de direita, só propõem que algo mude para que “tudo conti-
nue como está”; e o neofascismo ergue bandeiras a favor do regresso a um
passado fetichizado que nunca existiu; apenas os comunistas reivindicam
efetivamente o porvir. Só a luta comunista se mostra comprometida em
constituir as bases para que se rompa com a eternização das condições do
presente e se busque o futuro.
Se isso é verdade, e o comunismo é de fato a juventude do mundo, só
podemos extrair como consequência de tal ponto de vista que a juventude co-
munista é a juventude da juventude do mundo. O próprio Lênin já tinha cons-
ciência disso, quando afirmou que “é precisamente à juventude que incumbe
a verdadeira tarefa de criar a sociedade comunista”2. É grande a responsa-
bilidade das novas gerações. Há muitas questões custosas que os erros do
passado nos legaram, e novas questões que ainda não apareceram ou ainda
não ficaram claras ainda trarão novos e mais duros desafios. É papel daqueles
que ainda estão começando a lutar encontrar as saídas necessárias para dar
novos rumos para o movimentos dos trabalhadores do século XXI, frente ao
atual cenário de ofensiva implacável do capital sobre nós.

1 André Brandão é professor da rede estadual da Bahia e mestrando em Filosofia no


PPGF-UFBA. Durante toda a sua graduação, entre 2015 e 2018, fez parte da União da
Juventude Comunista, participando de várias lutas locais, no CA de Filosofia e nos
cursinhos populares Transviando o ENEM e Pré-vest da UFBA; e lutas nacionais,
como nos movimentos em defesa do PIBID e nas ocupações de reitorias contra a
PEC dos gastos. Desde 2019, é membro da Unidade Classista, atuando na gestão da
Associação de Pós-Graduação da UFBA, e compondo a oposição sindical à atual ges-
tão do seu sindicato, a APLB, o maior do Estado.
2 LENIN, V. I. U. As tarefas das uniões da juventude. Germinal: Marxismo e Educação
em Debate, Salvador, v. 7, n. 2, p. 337-348, 2015. 17
o futuro, nº1
Todo processo de resposta política como o que é referido por nós aqui neces-
sita de uma espécie de trabalho de fundo, que permita a nós “limpar um pouco
o terreno e remover parte do lixo que está no caminho”3. Esta dimensão da vida
política, que nos dá certos fundamentos para se desdobrar na práxis correta para
cada situação que a nossa quadra histórica nos apresenta, foi mencionada por
José Paulo Netto, em conhecida análise de conjuntura realizada em meados de
2016, no calor dos movimentos do impeachment contra o governo de Dilma Rou-
sseff, quando, de maneira passageira, falou sobre a cultura política.
Mas o que seria a cultura política? Segundo Pécaut, seria o “espírito forjador
do grupo, resultante de uma influência intelectual, uma seleção social e por um
conjunto de tendências irmanadas em torno de uma ação coletiva”4. Em outros
termos, é um modo de ser, uma construção modelar da práxis que uma força
política desenvolve em meio às suas formulações, vinculações com os interesses
e o cotidiano de certos grupos sociais, e como tais fatores são canalizados em tor-
no de um projeto político em comum. É esse saldo cultural que permite a conso-
lidação de um conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas
que orientam o agir de seus componentes, no seu lidar prático com tarefas, no
trato com figuras de outras organizações, no diálogo com indivíduos indepen-
dentes, nas leituras que se possa fazer do passado, nas análises das circunstân-
cias presentes e nas projeções de como é possível construir o futuro almejado5.
Neste sentido, a cultura política não se iguala necessariamente ao que em
outro momento chamamos de “identidade revolucionária”6. Como sabemos,
os membros de um grupo político podem se mostrar organizados, disciplina-
dos, solidários, agitar e propagandear as bandeiras do projeto histórico de sua
classe e se portar como combatentes das repercussões opressivas da sociedade
mercantil não pela adesão cega a uma identidade fetichizada, mas por segui-
rem a orientação dada pelos princípios de uma cultura política, que por sua vez
só é gerada pela própria práxis coletiva desse grupo ao longo de sua história.
Não podemos perder de vista a dialética presente entre a organização e a so-
ciedade em que ela atua. Da mesma forma que um dos principais papéis de um
partido é a organização e difusão de determinada cultura política no embate pela
hegemonia em dado tecido social, também é verdade que esse operador político
não vive numa torre de marfim, apartado das influências de outras organizações
3 LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding. Oxford: Oxford University
Press, 1975, p. 9-10.
4 PÉCAUT, D. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo:
Ática, 1990.
5 MOTTA, R. P. S. A cultura política comunista: alguns apontamentos. In: NAPOLITA-
NO, M.; CZAJKA, R.; MOTTA, R. P. S. (orgs.). Comunistas brasileiros: cultura políti-
ca e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
6 BRANDÃO, A. Marxismo-leninismo: identidade ou práxis? Partido Comunista Bra-
sileiro, 5 out. 2017. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/16441/marxismo-leni-
18 nismo-identidade-ou-praxis/. Acesso em: 27 jun. 2020.
Juventude e cultura política , brandão
e do conjunto vigente de relações sociais. Para uma organização comunista, esse
dado é particularmente importantíssimo, devido à inflexão vivida na última dé-
cada, em que no Brasil e no mundo o movimento comunista sofreu graves der-
rotas e viram as organizações social-democratas, liberais e da extrema-direita
ganharem terreno nas disputas de ideias que norteiam as massas. Além disso,
novas mudanças ideológicas, tecnológicas, nas relações de produção contri-
buem para consolidar novos desafios a uma cultura política comunista.
Como Netto nos indica, o campo da esquerda brasileira passou a conviver nas
últimas décadas com uma perigosa e ainda não superada hegemonia do PT e de
uma perspectiva social-democrata em geral, o que nos levou ao reinado de uma
certo tipo de cultura política, que ele chamou de “cultura da prepotência”7, mar-
cadamente praticista, autocentrada e portadora de uma espécie de atualização
daquilo que foi o fenômeno do obreirismo, vivido pela esquerda brasileira du-
rante a década de 1930. Tais formas de agir se moviam em torno da justificação e
reprodução de um projeto político que tinha como objetivo a conservação a qual-
quer custo de um governo interessado na manutenção e gestão do capitalismo
dependente brasileiro, numa coalização marcada pela conciliação de classes.
Contudo, para além disso, ela engendrou um “espírito forjador do grupo” que
pôde se tornar autônomo a tal projeto, permeando outras organizações, educa-
das por tal hegemonia e, mesmo que não compartilhem de seu projeto político,
acabam por reproduzir sua forma de agir cotidiana, isto é, a sua cultura política.
O caldo ideológico desenvolvido pela atual etapa de reprodução ampliada, como
veremos mais adiante, só contribuirá para facilitar a adoção de tal cultura.
Uma das dificuldades geradas pela continuidade dessa cultura política é a
formação de uma esquerda caricata, que reduz as suas possibilidades de atua-
ção em uma mera reprodução acrítica de chavões, termos irrefletidos e uma
imagem tosca, completamente ininteligível para a massa de figuras indepen-
dentes, justamente por essa natura inconscientemente fechada em si, que im-
pele seus membros a serem eternas alegorias de si mesmos. As alegorias, em
sentido lukacsiano, não são simples representações, mas uma representação
abstrata, despersonalizada, desprovida de singularidade e movimento próprio,
como se fosse mera encarnação de um conjunto de características gerais.
É evidente, contudo, que a direita também é caricata. Se alguém fala so-
bre um bolsonarista, logo nos vem à cabeça uma forma de agir estúpida, um
conjunto de pensamentos irracionalistas, e uma total ausência de autocom-
preensão como tal. O que não pode fugir à nossa mente é que a cultura política
bolsonarista tem facilidades que a esquerda não tem, uma vez que ela repre-

7 NETTO, J. P. Análise de conjuntura (PPGPS/SER/UnB, 20 abril de 2016). Partido Co-


munista Brasileiro, 12 maio 2016. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/11044/
analise-de-conjuntura-com-professor-jose-paulo-netto-ppgpsserunb-20-abril-
de-2016/. Acesso em: 26 jun. 2020. 19
o futuro, nº1
senta a defesa da ordem vigente sob viés retrógrado, enquanto nós, ainda que
de uma maneira desajeitada, representamos a suplantação da miséria vigente.
A vantagem da direita é que ela defende aquilo que as massas cotidianamente
são ensinadas a defender, a partir dos aparatos de hegemonia dos capitalistas.
A tarefa de consolidar o novo é muito mais difícil, e se torna impossível se nos-
sa própria manifestação representa um fator de afastamento para as massas.
Como fetichizamos nossa própria imagem, buscamos o diálogo com a nos-
sa classe — quando procuramos — a nossa própria forma autocentrada dificul-
ta a capacidade de inserção que necessitamos para enfrentar as tarefas que
temos. Nossas análises, coerentes com um marxismo que busca renascer aos
poucos no nosso país, ainda promove um uso pouco consciente de suas pró-
prias categorias, muitas vezes a imprimindo na realidade, em vez de utilizá-las
para fazer com que a nossas análises extraiam da própria realidade as con-
siderações possíveis. Quando não buscamos construir conscientemente uma
cultura política própria, acabamos por reproduzir as imagens vistas no filme
A Chinesa (1967), quando um grupo de universitários franceses se encantam
com O livro vermelho, e passam a usar de maneira totalmente performática
uma série de passagens de Mao, transformado a obra em uma espécie de livro
de provérbios. Em uma das cenas, quando um dos rapazes toma uma surra de
outro grupo de esquerda, um dos amigos comenta, animado, “isto é sinal de
que conseguimos fazer uma distinção dialética frente a eles”.
Para purgarmos as influências nocivas de nossa prática cotidiana e pro-
duzirmos uma cultura política com a correção necessária, para realizarmos
o nosso horizonte estratégico comunista, precisamos nos perguntar, antes de
tudo: a qual cultura devemos renunciar?

Contra o praticismo e o obreirismo vulgar


Como já tratamos anteriormente, o praticismo se tornou um elemento importante
para a manutenção da hegemonia das forças conciliadoras, promovendo como
critério de avaliação de um grupo ou de um sujeito político “o total meramente
quantitativo das suas ações políticas, independente do seu viés”8. É a prática pela
prática que importa, independentemente da avaliação de sua correção ou da sua
contribuição real para a construção da revolução brasileira. Sua absorção pelas
juventudes da esquerda socialista se deve ao susto provocados em muitos pelo im-
pacto das retiradas de direitos vividos nos últimos anos e o crescimento da extre-
ma-direita em meio a esse mar de desgraças. O que parece mais razoável nestas

8 BRANDÃO, A. Marxismo-leninismo: identidade ou práxis? Partido Comunista Bra-


sileiro, 5 out. 2017. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/16441/marxismo-leni-
20 nismo-identidade-ou-praxis/. Acesso em: 27 jun.
Juventude e cultura política , brandão
condições parece a aceleração contínua das atividades militantes, de modo que
impactar o máximo possível na atual conformação da correlação de forças.
Se é fato que o tempo para lentidões e vacilações se esgotou, não se pode
tirar a partir daí que a solução é reduzir as nossas vidas a uma ininterrupta
intervenção na realidade, independente de planejamento, êxito na execução
e impacto real. Os comunistas de fato devem se aproveitar de todos espaços
e oportunidades que se abrirem para que possam desenvolver a sua prática
política, mas isso não se traduz em um esgotamento das vidas de cada indi-
víduo em uma série de atividades irrefletidas, se colocando em qualquer ato,
qualquer reunião, qualquer articulação que apareça em sua frente. Em termos
de harmonia da vida interna, movimentos de tais natureza podem provocar
um nocivo policiamento coletivo que impõe que o militante ideal é aquele que
coloca como norma a negação de sua vida pessoal para que possa seguir acu-
mulando mais e mais tarefas. É sabido que o comunista, ao se organizar, está
doando parte de sua vida para a causa da superação da sociedade de classes.
Contudo, o nível de miséria política de tal distorção é tal que ignora fatores
fundamentais. Em primeiro lugar, a luta socialista exige formulação, planeja-
mento e uma ação que se caracterize pela sua excelência. Ao tentar “ocupar to-
dos os espaços”, mas se mostrando artesanal e sem preparo, uma organização
perde credibilidade e afasta a sua base. Em segundo lugar, como acertadamen-
te argumenta o líder comunista Álvaro Cunhal,

A luta pode exigir muito, pode exigir mesmo a vida, mas o


Partido deve procurar sempre com o maior empenho reduzir
ao mínimo possível as dificuldades e problemas pessoais
que a actividade partidária crie ao militante. É justo exigir
sacrifícios. Jamais sacrifícios inúteis ou desnecessários. [...]
Seria um erro profundo dividir o Partido em comunistas
ideais e comunistas que o não são, considerar como
“verdadeiros comunistas” aqueles que sacrificam toda a sua
vida pessoal e comunistas de segunda classe aqueles que,
além da sua vida militante, têm condições para ter uma vida
pessoal regular.9

Contra tal desvio, poderia se argumentar, e de maneira alguma seria in-


correto fazê-lo, que não há contradição entre o indivíduo e o projeto político
de sua classe, e quando o há, ou é manifestação de individualismo liberal ou
de uma hipóstase indevida da vida partidária. Contudo, é possível criticar este
tipo de situação pensando exclusivamente nas necessidades coletivas. A vida
9 CUNHAL, A. O partido com paredes de vidro. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
p. 137-140. 21
o futuro, nº1
singular de um membro de uma organização interessa ao partido, não só por-
que um militante saudável é um militante a atua melhor, mas também porque
o militante, em sua vida privada, não sai do tecido social, mas se constrói no
seu interior. É preciso lembrar que o funcionamento da sua vida privada se
insere no contexto de suas atividades na sua família, no seu local de estudo,
no seu local de moradia, e no seu local de trabalho. Um trânsito mais tranquilo
por esses espaços significa uma inserção melhor. Um membro ativo e com au-
toridade moral é mais facilmente alçado ao papel de referência, o que facilita
a sua articulação enquanto vanguarda para a sua categoria, seja na sua rua, na
sua escola, no seu curso ou no seu trabalho.
É curioso que, embora tal desvio recorrentemente contribua para um acúmulo
de dificuldades para os militantes em seus espaços de trabalho, sua forma nor-
malmente tem se associado com novas manifestações do fenômeno do obreiris-
mo. Como resgata Alvaro Bianchi, O PCB viveu, nos anos 1930, duros momentos
de contaminação obreirista, quando chegou a proibir intelectuais de ter direito a
voto, convidar operários independentes para votar em reuniões do CC (“pois todo
trabalhador tem direito ao voto no partidão”) e a eleição de um secretário-geral
que tinha apenas um ano de organizado, sem qualquer capacidade técnica para
assumir tal atribuição (não é à toa que se afastou quatro meses depois)10.
Não se viu qualquer saldo político neste processo. Há aqui uma confusão en-
tre obreirização e proletarização. É evidente que uma organização comunista
precisa se proletarizar. Cunhal aponta em suas reflexões políticas a influência
favorável a um direcionamento correto em uma organização comunista quan-
do formada, especialmente em sua direção, de um conjunto forte de trabalha-
dores11. Da mesma forma, Lênin aponta como um dos fatores fundamentais da
disciplina e excelência da ação de uma força revolucionária quando consegue
uma relação íntima com as massas12. Mas isso não pode se traduzir em uma
fetichização na experiência individual de um proletário, ou de qualquer que
seja o grupo social atacado duramente pela ordem do capital. Esta ideia de
uma espontaneidade privilegiada da experiência vivida pelo trabalhador ou
pelo oprimido esquece que o empirismo só atinge o contato imediato com as
circunstâncias sociais. Quando Lênin critica essa perspectiva, afirmando que a
consciência revolucionária vem de fora, ele não quer dizer que um trabalhador
não pode atingi-la, mas que, para que possa realizar este salto, precisa ir além

10 BIANCHI, A. A “proletarização” do PCB: pequena crônica de um golpe burocráti-


co (1930-1934). LavraPalavra, 25 mar. 2016. Disponível em: https://lavrapalavra.
com/2016/03/25/a-proletarizacao-do-pcb-pequena-cronica-de-um-golpe-burocrati-
co-1930-1934/. Acesso em: 26 jun. 2020.
11 CUNHAL, A. O partido com paredes de vidro. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
p. 54-56.
12 LÊNIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão
22 Popular, 2014. p. 48.
Juventude e cultura política , brandão
de si mesmo, ao envolver a sua visão na totalidade das relações sociais, para
além de sua experiência imediata, de forma que compreenda plenamente o
funcionamento da ordem capitalista e como ela incide em sua vida.

As esferas de aproximação de uma


organização
Como argumenta Rodrigo Sá Motta, a tradição comunista no Brasil desenvol-
veu uma metáfora para caracterizar as formas de um indivíduo se aproximar
do comunismo, correspondentes a órgãos do corpo humano: pelo cérebro,
pelo estômago e pelo coração13. Isto significa que é a superioridade teórica do
marxismo, sua capacidade ímpar de viabilizar os interesses dos subalternos
e as manifestações estéticas de seu projeto histórico que movem um sujei-
to para a sua adesão à luta. Por mais que seja fato que geralmente um des-
ses fatores é preponderante na história de determinada figura, não se pode
trabalhar com a ideia de um indivíduo cindido. Todo ser humano pensa e
precisa aprender a formular corretamente. Todo ser humano no interior do
capitalismo precisa lutar e capacitar as suas formas de enfrentamento por
seus interesses de classe. Todo ser humano é um ser sensível, que padece,
e precisa de uma formação dos seus cinco sentidos que o permitam fruir e
reagir adequadamente aos impactos que a história o acomete.
Tendo ciência disso, a juventude comunista precisa formular uma cultu-
ra política que vise o sujeito concreto, e não a sua abstração em uma destas
dimensões da sua vida. Uma cultura política sem rigor e preparo científico,
em prática concreta e qualificada ou sem a devida formação estética, mes-
mo que trabalhe bem as outras dimensões, terá sérios problemas para a
realização dos seus interesses enquanto organização.

O papel do estudo para uma juventude


comunista
Talvez, a principal tarefa de uma juventude comunista seja o estudo. Quando
quis tratar das principais demandas deste tipo de organização, Lênin disse
que poderia resumi-las “com uma só palavra: aprender”14. Não poderia ser
diferente. O próprio Lênin argumenta, em outro texto sobre as juventudes
que para “toda a actividade política é necessária a mais séria preparação
13 MOTTA, R. P. S. A cultura política comunista: alguns apontamentos. In: NAPOLITA-
NO, M.; CZAJKA, R.; MOTTA, R. P. S. (orgs.). Comunistas brasileiros: cultura políti-
ca e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
14 LENIN, V. I. U. As tarefas das uniões da juventude. Germinal: Marxismo e Educação
em Debate, Salvador, v. 7, n. 2, p. 337-348, 2015. 23
o futuro, nº1
científica, a ‘formação’ de convicções firmes”15. No caso dos jovens comu-
nistas, esse elemento se torna maior, pois estão ainda no início de sua for-
mação, e um uso apressado do método marxista pode se tornar arbitrário.
Já se viu em algumas rodas pessoas questionando dados objetivos acerca
dos lucros dos bancos brasileiros argumentando que isso “descumpriria” a
lei da queda tendencial das taxas de lucros — ignorando inclusive a própria
tendencialidade inerente ao conceito. A cultura do estudo em uma organiza-
ção de juventude sempre deve ser, simultaneamente, uma busca pela leitura
dos textos mais fundamentais acompanhada pelo esforço da formulação, de
modo que se possa apreender o funcionamento do marxismo dentro do es-
tudo do movimento efetivo do real, uma vez que, para o velho filósofo, as
categoria sempre são formas de ser, determinações de existência, que vão da
realidade para os livros, e não dos livros para a realidade16.
O filósofo brasileiro Sérgio Lessa, em seu livro O revolucionário e o estudo:
porque não estudamos, fornece algumas contribuições para o entendimento do
porque o trabalho formativo das organizações brasileiras tem certa dificuldade
de se traduzir em uma construção de uma poderosa geração de quadros para a
sua luta política17. Ele apresenta um problema histórico e um problema metodo-
lógico. A atual juventude tem o desafio de se formar em um período de derro-
tas, de contrarrevoluções, pós-dissolução da URSS, de modo que é tendencial a
formação da opinião de que o capitalismo é intransponível. Aliado a esse fator,
existe um problema de manejo. Lessa cita a Escola Nacional Florestan Fernan-
des. Nessa experiência da esquerda brasileira, os melhores intelectuais marxis-
tas participaram de grandes cursos em que eram sintetizadas as principais ideias
do método, da organização política leninista etc., tudo com extrema qualidade
e precisão conceitual. Os limites de tal experiência vêm do fato que tais exposi-
ções, por mais que fossem bem realizadas, não poderiam gerar frutos se o pro-
cesso formativo não tivesse continuidade. Aquelas ideias eram suplantadas pela
pletora de contra-argumentações que a cotidianidade fornecia aos militantes.
O limite das considerações de Lessa se deve ao fato de que a solução dada
por ele é individual: ele propõe uma reorganização da cotidianidade do mili-
tante, de modo que ele reserve uma parte de seu tempo para a leitura e para
a formulação. Esse processo é necessário, mas não é suficiente. O estudo dos
jovens comunistas não promoverá grandes avanços se se prender a uma di-
mensão duplamente isolada que o filósofo indica. O trabalho conceitual de
um jovem comunista só promove o seu aperfeiçoamento se ele o faz coleti-
15 LENIN, V. I. U. As tarefas da juventude revolucionária. In: LENIN, V. I. U. Obras esco-
lhidas em seis tomos. Lisboa: Edições Avante!, 1986. p. 103-115. Disponível em: https://
www.marxists.org/portugues/Lênin/1903/09/juventude.htm. Acesso em: 26 jun. 2020.
16 MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
17 LESSA, S. O revolucionário e o estudo: porque não estudamos. Maceió: Instituto
24 Lukács, 2014.
Juventude e cultura política , brandão
vamente, dentro de uma organização que forme um sujeito coletivo, e que
tal sujeito sempre formule a partir das questões candentes das contradições
sociais. De outro modo, as limitações do pensamento individual confronta-
do com a sedução da cotidianidade mercantil distorcem gravemente o seu
pensamento. É por isso que Gramsci faz a diferenciação entre o intelectual
tradicional, que atua como se não fosse socialmente determinado, e o inte-
lectual orgânico, aquele que participa de um pensamento que se constrói co-
munitariamente, na luta coletiva para a realização da emancipação humana,
de modo que essa inserção consciente nas questões da marcha da história
direcionem o trabalho conceitual para que ele não saia do rumo.
Convergindo com tal compreensão, Lênin assevera que esse aprendizado
que ele defende não é um aprendizado numa torre de marfim, pois “[a] tare-
fa da União da Juventude consiste em formular a sua actividade prática de
modo que, ao aprender, ao organizar-se, ao unir-se, ao lutar, esta juventude
se eduque a si própria e a todos aqueles que a vêem como chefe, que eduque
comunistas.”18 É na luta organizada que os jovens comunistas se educam, e
é na educação de seus pares, isto é, na luta ideológica nos espaços em que
eles compõem que eles devem concentrar o melhor de suas forças. Como
explica José Chasin, o movimento de juventude, por se formar em espaços
policlassistas (com exceção do movimento de jovens trabalhadores), só pode
ter como seu papel fundamental formar os seus pares para o momento pos-
terior em que ingressarão no mundo do trabalho.
É curioso que, embora escreva no início dos anos 60, Chasin aponta erros de
cultura política muito semelhantes aos que podem ser identificados nos dias de
hoje. Os progressistas de seu tempo, como caracteriza, desenvolvem uma atuação
política fechada em si, focada em grandes discursos voltados para situações nacio-
nais não mediados com as particularidades locais, tomando forma política em uma
atuação de cúpulas contra cúpulas centrada na disputa de entidades, como um fim
em si mesmo, em processos de baixíssima participação das categorias19. O filósofo
argumenta que o giro necessário para um êxito maior da política das juventudes de
esquerda é a ruptura com esse caráter fechado em si, de modo que seja privilegiada
a organização das insatisfações a partir das pautas locais e as pautas nacionais me-
diadas com os problemas locais, de modo que o movimento continue num processo
de crítica, mas uma crítica que consiga ser mediada e propositiva20.

18 LENIN, V. I. U. As tarefas das uniões da juventude. Germinal: Marxismo e Educação


em Debate, Salvador, v. 7, n. 2, p. 337-348, 2015.
19 CHASIN, J. Luta ideológica: Objetivo central do movimento estudantil. Revista Bra-
siliense., São Paulo, n. 39, jan.-fev. 1962. p. 142, 144-146.
20 Sobre a necessidade de se realizar uma crítica mediada e propositiva, cabe uma
breve consideração sobre a questão das filosofias não-marxistas. Em primeiro lu-
gar, é preciso recobrar a memória de que não haviam marxistas na época de Marx
e Engels. A dupla alemã precisou formular o seu método por meio de um balanço 25
o futuro, nº1
Uma organização comunista, para conseguir operar essa inserção, pre-
cisa desenvolver um trato mais autoconsciente com sua cultura política, de
modo a concebê-la como uma porta de entrada dos seus pares a uma pers-
pectiva de luta mais radical, racionalmente fundamentada e movida pelos
sentimentos corretos. Isso exige mediação e seriedade. A figura política de
destaque precisa ser validada com uma pessoa que exprime posições rigo-
rosas e que também se façam claras. Isso significa, por um lado, que todo
tipo de atividade de agitação e propaganda, seja um livro, um artigo, uma
palestra, um curso, um grito em uma manifestação, um cartaz ou um tweet,
não pode ser algo feito de maneira desligada. Até a palavra de ordem mais
simples, como se vê em uma pequena imagem, card, cartaz ou grito na rua
precisa estar corretamente mediada com uma visão totalizante rigorosa e
ajustada ao movimento efetivo do real, em vias da superação da sociedade
de classes. Por outro lado, é preciso estar sempre atento para a possibilida-
de de ser mais elucidativo frente às questões postas por sua categoria. A luta
política reserva os destinos mais tortuosos para aqueles que têm posturas
arrogantes, impacientes ou que não saibam se expressar adequadamente.

Nossas tarefas são pelo nosso futuro


Neste texto, pudemos tratar de algumas questões que envolvem os problemas de con-
solidação de uma nova cultura política para a esquerda que busca superar os estragos
causados pela conciliação de classes. Para fugirmos dos formatos caricatos, é neces-
sário um trato autoconsciente que faça com que nossos termos, conceitos, valores
e posturas sejam aqueles que possam viabilizar o trabalho político das juventudes
comunistas, em sua tarefa de lançar as bases para uma sociedade socialista: difundir
ideias, combater preconceitos liberais e conservadores, e sobretudo formar quadros,
para depois se inserirem nos movimentos de bairro, sindicais e populares, como re-
sultado efetivo da disputa ideológica nos espaços de formação dos jovens. Para tanto,
nossa cultura política deve seguir a descrição feita por Dzerzhinsky, de que um comu-
nista necessita ter “ter a cabeça fria, o coração quente e as mãos limpas”.

crítico de figuras como Smith, Ricardo, Feuerbach e Hegel. Não é materialista cer-
tas posturas que produzem certa negação abstrata a tudo o que não tenha ligação
escancarada com o marxismo. É óbvio que, quando se trata de teorias como as de
Nietzsche e Arendt, nossa crítica precisa ser publicizada, para o embate de ideias.
O que não cabe são as críticas não mediadas, em formatos pouco generosos com
independentes que ainda estão ligados a tais perspectivas. Por fim, se é fato que é
importante apontarmos os limites do idealismo e da metafísica, acredito que a de-
monstração prática da superioridade do materialismo histórico e dialético é muito
mais atraente que a crítica recorrente e rabugenta a tais teorias, que muitas vezes
26 afastam mais do que educam.
Juventude e cultura política , brandão
O atual cenário, com séquitos protofascistas perdendo a vergonha e se
mostrando cada vez mais, uma esquerda partidária reduzida, graves cortes
de direitos e ataques brutais à população trabalhadora, podem escancarar
as nossas dificuldades, mas essas tarefas, por mais duras que sejam, são as
barreiras que precisamos enfrentar para construir o nosso futuro. As mani-
festações que ocorreram neste final de maio aqui no Brasil, contra as ins-
pirações golpistas do bolsonarismo, e nos EUA, contra a morte de George
Floyd e tantas outras vítimas que tombam diante das políticas de genocídio
sistemático, mostram que as massas, quando perdem a sua paciência, não
hesitam em derrubar qualquer limite imposto pelos capitalistas. Portanto,
que possamos promover avanços em nossa cultura política sempre se ali-
mentando do impulso de vontade que damos a nós mesmos quando temos
a consciência de que, no dia em que as massas concentrarem sua sede por
liberdade em torno do alvo correto, só a vitória nos resta.

27
o futuro, nº1
REFERÊNCIAS

BIANCHI, A. A “proletarização” do PCB: pequena crônica de um golpe burocrático (1930-


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LA CHINOISE. Direção: Jean-Luc Godard. Moema, MG: Silver Screen Collection, 1967.
28 96 m, color
Por um Fanon
revolucionário
João Rafael Chió Serra Carvalho1

RESUMO

O
objetivo do presente artigo é, por meio da análise da obra fa-
noniana, fazer escutar os ecos das influências de Ho Chi Minh
e Mao Zedong no discurso revolucionário de Fanon, sobrema-
neira naquilo que tange às querelas da chamada questão nacional, o ten-
sionando às práticas do colonialismo e imperialismo que permeavam os
contextos em que os textos foram escritos. Nesse sentido, nosso objetivo
é compreender a questão nacional em Fanon, apreendendo assim seus
tensionamentos a partir do desenrolar histórico da tradição marxista-le-
ninista bem como dos aportes dessa última nas práticas revolucionárias
que levaram à independência da Indochina e da China e que foram fontes
de pensamento e questionamentos para os escritos de Fanon.

Palavras-chave: Frantz Fanon, Mao Zedong, Ho Chi Minh, Questão Nacional.

Introdução
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo.”2 Fanon foi um desses transformadores. Em sua obra bem
como em sua vida, Fanon sempre soube aliar a teoria à prática não apenas para
compreender e tornar cognoscível o mundo que o cercava e o mundo dentro de si,
mas, sobremaneira, para transformá-lo. Dentre as ferramentas de seu vasto arse-
nal teórico, além de Freud e Hegel, se encontravam Marx, Lênin e Mao.
É compreendendo Fanon enquanto intelectual e militante cuja prática bem
como a teoria bebiam nas fontes do Marxismo-Leninismo que se torna tão im-

1 João Rafael Chió Serra Carvalho é Mestre em História Social pela USP, doutorando
em História Social da Cultura pela UFMG e educador popular.
2 MARX, Karl. Teses sobre Feurbach. In: MARX, Karl. Obras Escolhidas. Edições Pro-
gresso Lisboa; Moscou, 1982. 29
o futuro, nº1
portante compreender suas categorizações teóricas dentro desse instrumental.
“O devir enquanto necessidade é o terreno aberto no qual o processo cumula-
tivo das lutas no campo político se perpetua”, já afirma Douglas Rodrigues Barros3.
A obra fanoniana é perpassada pelo problema político e por questões de reco-
nhecimento. O reconhecimento do negro pelo branco e do branco perante o negro4,
o autorreconhecimento do negro vis-à-vis a estrutura do colonialismo5, o reconhe-
cimento da Nação e da questão nacional6, enfim, em última instância o reconhe-
cimento da urgência da tomada de consciência e da criação de um novo homem.
Fanon viveu, na pele, a época revolucionária das lutas pelo fim do colo-
nialismo. Assim, ele é perpassado por um etos mental análogo ao de outros
grandes revolucionários e teóricos que tiveram vivências similares. A questão
nacional perpassa a vida e a obra de Fanon, desde suas considerações acerca
dos antilhanos e sua visão de mundo até sua percepção da realidade argelina
que ele ajuda ativamente a transformar. Nos debruçarmos sobre estes escritos
é abrir uma janela privilegiada para a compreensão da obra fanoniana e a ge-
nialidade de sua interpretação marxista do mundo que o circundava.

Fanon leitor de Mao e Ho Chi Minh


Na quinta parte do segundo volume das obras completas de Fanon, Jean Khalfa
nos apresenta uma lista comentada da biblioteca do argelino7. Esse instigante
trabalho preenche importantes lacunas na obra fanoniana. Muitas vezes es-
crevendo durante suas andanças como revolucionário e representante diplo-
mático da FLN, Fanon não é um adepto das notas de pé de página, tampouco
possuía sua biblioteca sempre ao alcance das mãos. Assim, traçar as origens de
seu pensamento se torna um jogo de “gato e rato”.
Não obstante, para além do vasto material marxista presente na Bibliote-
ca, chama atenção especial a quantidade de obras de Lênin8 e Mao9, além de

3 FAZZIO, Gabriel Landi; MANOEL, Jones (orgs.) A Revolução Africana: uma antolo-
gia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 258
4 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
5 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968; FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1980.
6 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968; FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969.
7 KHALFA, Jean. La Bibliothéque de Frantz Fanon: Liste établie, présentée et comen-
tée par Jean Khalfa. In: FANON, Frantz. Écrits sur l’aliénation et la liberté: Œuvres
II. Paris: Éditions La Découverte, 2015, p.715-798
8 11 obras no total, op.cit.
30 9 49 obras de Mao mais 10 estudos sobre a Revolução Chinesa, op.cit.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
estudos sobre as experiências do marxismo periférico, como a da Indochina10.
É por essa janela entreaberta de suas raízes marxistas que tentaremos fazer
escutar os silêncios da obra fanoniana.

O objetivo da revolução chinesa na etapa atual não é


abolir o capitalismo em geral, mas derrotar a dominação
do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo
burocrático e estabelecer uma república de nova
democracia das amplas massas populares, com os
trabalhadores como força principal. 11

A primeira tática dos países colonialistas consiste em ir buscar


apoio aos colaboradores oficiais e aos feudais... As autoridades
colonialistas esperam com confiança, depois ansiedade, e
finalmente sem esperança, os resultados dessas mensagens.
Solicitados de novo, os servidores tomam o hábito, até então
desconhecido, de declinar convites, fogem às encenações
oficiais e adotam muitas vezes um vocabulário novo.
É que o compromisso revolucionário se revela cada vez
mais total e os colaboradores tem consciência do gigantesco
despertar do povo em armas.12

Aqui já podemos ouvir um primeiro eco das leituras maoistas de Fanon em


sua interpretação das condições específicas da situação colonial na Argélia. Os
colonialistas, ao se aperceberem do despertar da Revolução Nacional, apelam
aos seus mais fiéis súditos, seus colonos e àqueles nacionais aculturados que
compõem a burguesia e a burocracia local.
Porém, o despertar da Nação possuí um clamor que desaliena os homens. É
necessário então partir para uma guerra total. O despertar do povo em armas
romperá a um só tempo os múltiplos mundos econômicos que convivem e se
sobrepõem no solo da nação colonizada; a ruptura deve se dar, a um só tempo,
com os resquícios do feudalismo bem como com as elites arraigadas.
Uma vez principiada a marcha da conscientização nacional ela se tor-
na indelével, seu processo configura a um só tempo a libertação final da
nação e de seus homens. Seu desenvolvimento já pressupõe a sua vitória.
10 1 tomo de obras escolhidas de Ho Chi Minh, com ênfase para o estudo sobre o colo-
nialismo francês e outras duas obras sobre a revolução na Indochina, op.cit.
11 MAO, Tsé-Tung. Sobre o problema da burguesia nacional e dos Shenshi sensatos. In:
PINSKY, Jaime (org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense,
1980.
12 Decepções e ilusões do colonialismo francês. In: PINSKY, Jaime (org). Questão Na-
cional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 62-63. 31
o futuro, nº1
Sua base de apoio é toda a nação desperta que caminha, apesar de todos
os pesares, para o triunfo.

Na era do capitalismo monopolista, grandes potências


controladas por um punhado de financistas exercem seu
domínio sobre os países dependentes e semidependentes; assim,
a libertação dos povos dos países oprimidos tornou-se parte
integrante da revolução proletária. [...] a luta revolucionária
dos povos coloniais e semicoloniais auxilia diretamente o
proletariado dos países capitalistas em sua luta contra as classes
dominantes, para se libertar do jugo capitalista.13

Dizia-se que num país colonial há entre o povo colonizado


e a classe operária do país colonialista uma comunidade de
interesses. A história das guerras de libertação levadas a
cabo por povos colonizados é a história da não verificação
dessa tese.
[…] em momento algum pode estar em questão para os
democratas franceses juntarem-se às nossas fileiras ou
traírem o seu país. Sem renegar a sua nação, a esquerda
francesa deve lutar para que o governo de seu país respeite
os valores que se chamam: direito dos povos de dispor de si
próprios, reconhecimento da vontade nacional, liquidação
do colonialismo, relações recíprocas e enriquecedoras entre
povos livres.
A FLN dirige-se à esquerda francesa, aos democratas
franceses, e pede-lhes que encorajem qualquer greve levada
a cabo pelo povo francês contra a subida do custo de vida,
os novos impostos, a restrição das liberdades democráticas
em França, consequências diretas da guerra da Argélia.14

A luta contra a colonialidade perfaz um caminho dialético que a um só tem-


po deve destruir a alienação na colônia, mas também, na metrópole. Uma lei-
tura superficial do excerto citado de Ho Chi Minh pode levar a uma conclusão
mecanicista que o excerto fanoniano combate e expõe, não necessariamente
que a revolução indochinesa tenha recaído nesse erro de leitura.

13 HO, Chi Minh. O Leninismo e a libertação dos povos oprimidos. In: PINSKY, Jaime
(org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 261.
14 FANON, Frantz. Os intelectuais e os democratas franceses perante a Revolução Ar-
gelina. In: FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da
32 Costa Editora, 1980, p. 91-100.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
Lembremo-nos aqui da citação de Marx sobre a questão irlandesa no início
de nossa caminhada. Assim como na Inglaterra e na França, seja a primeira
diante da Irlanda, seja a última perante indochineses e argelinos, o estratage-
ma das forças coloniais é unívoco, a saber: tentar cooptar as massas trabalha-
doras da metrópole para apoiar o irrespaldável, alienar o proletariado metro-
politana para cessar a solidariedade internacionalista.
Fanon é taxativo em sua resposta. A situação colonial é igualmente mons-
truosa para a metrópole e seus trabalhadores. Ela é inextricável da exploração
do homem pelo homem onde quer que aconteça. É necessário que democratas
e comunistas metropolitanos ouçam as admoestações que partem da colônia e
percebam o peso nefasto da exploração colonial sobre a sua própria sociedade.
É somente rompendo-se as bases materiais da exploração no mundo colonial
que se romperão verdadeiramente tais bases no mundo metropolitano. A solidarie-
dade metropolitana não é um ato de fé ou de caráter, é a percepção desalienada das
condições que mantém o próprio trabalhador metropolitano explorado e alienado.

Pode um comunista que é internacionalista, ser, ao mesmo


tempo patriota? Sustentamos que apenas não pode, como
deve sê-lo [..] em consequência, nós, os comunistas chineses,
devemos combinar o patriotismo com o internacionalismo.15

Os povos colonizados reconheceram-se geralmente em


cada um dos movimentos, em cada uma das revoluções
desencadeadas e levadas a cabo pelos oprimidos. Para além
da necessária solidariedade com os homens que, sobre toda a
superfície da terra, se batem pela democracia e pelo respeito
dos seus direitos, impôs-se, com uma violência inusitada,
a firme decisão dos povos colonizados de quererem, para
si próprios e para seus irmãos, o reconhecimento da sua
existência nacional, da sua existência enquanto membros de
um Estado independente, livre e soberano.16

A questão levantada por esses excertos expõe a dialética dúplice entre colô-
nia e metrópole e nacionalismo e internacionalismo, seja no seio dos coloniza-
dores, seja no dos colonizados.
O despertar nacional, conforme já indicava Lênin, é a um só tempo nacio-
nal e internacional. Assim como a nação só pode ser livre se cada um de seus

15 MAO, Tsé-Tung. Patriotismo e Internacionalismo. In: PINSKY, Jaime (org). Questão


Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 211.
16 FANON, Frantz. Carta à juventude africana. In: FANON, Frantz. Em defesa da revo-
lução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980. p. 137. 33
o futuro, nº1
indivíduos se tornarem livres, também as nações só podem existir livremente
longe do julgo da alienação e da exploração por meio das liberdades nacionais.
Ao contrário da visão simplista de muitos marxistas filocidentais, o
nacionalismo revolucionário que surge contra a situação colonial bem
como o apoio desalienado dos trabalhadores da nação colonizadora são
complementares à solidariedade internacionalista que perfaz a égide do
movimento comunista mundial.
O despertar das revoluções nacionais faz ecoar de forma triunfante os lon-
gos ecos do Congresso de Baku. Aqui, de fato, temos a união do proletariado e
dos povos oprimidos de todo o mundo.

[...] Temos de construir uma sociedade inteiramente


nova e desconhecida em nossa história. Temos de alterar
radicalmente hábitos e costumes milenares, maneiras de
pensar e preconceitos .... Nosso país, ignorante e dominado
pela pobreza, será transformado numa nação de cultura
avançada e vida alegre e feliz.17

A tese de que a promoção de uma nova sociedade não


é possível senão no âmbito da independência nacional
encontra aqui seu corolário. É que ao mesmo tempo que o
homem colonizado apoia-se e rejeita a opressão, ocorre nele
uma reviravolta radical que torna impossível e escandaloso
qualquer tentativa de manter o regime colonial.
É verdade que a independência realiza as condições
espirituais e os aspectos materiais da reconversão humana.
Mas também é a mutação interior e a renovação das
estruturas sociais e familiares que impõe com o rigor da lei a
emergência da Nação e o florescimento de sua soberania.18

Os indivíduos que (sub)existem sob a psicopatologia colonialista são indi-


víduos cingidos, frutos incompletos, codependentes do conceito hegeliano da
dinâmica senhor-escravo que não conseguem plenamente ultrapassá-la19. Tan-

17 HO, Chi Minh. Nacionalismo Revolucionário: Teoria e Prática. In: PINSKY, Jaime
(org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 255-
256.
18 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968.
19 Para o conceito hegeliano da dinâmica senhor-escravo ver KOJÈVE, Alexandre. In-
trodução à leitura de Hegel: aulas sobre a Fenomenologia do Espírito ministradas
de 1933 a 1939 na École des Hautes Études reunidas e publicadas por Raymong Que-
34 neau. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014 e HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Feno-
Por um Fanon revolucionário , carvalho
to o senhor (dominador, metropolitano) quanto o escravo (dominado, colonial)
não podem ter encontros “reais” enquanto não se livrarem desse nó infraestru-
tural que perpassa cada etapa de suas dinâmicas sociais.
É somente com o advento da libertação do homem em condição colonial da
opressão da colonialidade que pode se fundar um novo indivíduo completo e
se restaurar tanto para ele quanto para seu antigo dominador a possibilidade
de um encontro real, um encontro entre iguais.
Se, em Peles Negras, Máscaras Brancas Fanon nos fala das impossibilidades e das
psicopatologias geradas pela condição da colonialidade, em L’an V de la révolution Al-
gérienne temos precisamente o momento desta ruptura. Será com o processo revolu-
cionário e a tomada de consciência da questão nacional que o povo argelino poderá
romper o processo psicopatológico da alienação e finalmente tomar consciência de
si enquanto povo livre e, dialeticamente, enquanto homens e mulheres livres.
Da mesma maneira, é sob a égide dessa libertação que a cultura sairá de seu
imobilismo, das amarras que a mumificavam e veremos um renascer criativo e
uma adaptação revolucionária de antigas formas de se vestir20 ou novos usos de
tecnologias que anteriormente somente serviam aos propósitos do colonizador21.

Em seu apelo aos revolucionários do Oriente, Lênin escreveu:


“[...] seguindo a teoria e a prática do comunismo, aplicando-as
às condições específicas que não existem na Europa, vocês
tem de adaptá-las às condições em que os camponeses são
as grandes massas; a tarefa não é lutar contra o capitalismo,
mas contra os vestígios feudais”. Essa é uma instrução valiosa
para um país como o nosso, em que 90% da população vide da
agricultura, e onde subsistem muitos vestígios medievais.22

No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem


desaparecer, a impotência burguesa dos negociantes
e de compradores, o proletariado urbano, sempre
privilegiado, o lumpen-proletariat dos bairros pobres,
todos devem alinhar na mesma posição das massas rurais,
menologia do espírito. 9ª ed. Petrópolis, RJ; Bragança Paulista, SP: Vozes; Editora
Universitária São Francisco, 2014.
20 O uso do véu na cultura argelina muda drasticamente com o despertar da revolução
nacional. Para o assunto ver “Argelia se quita el velo” em FANON, Frantz. Sociología
de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era, 1968.
21 O uso do rádio pela FLN bem como sua apropriação pelo povo argelino constitui ou-
tra novidade trazida à tona pela revolução nacional. Ver “Aquí la voz de Árgelia” em
FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968.
22 HO, Chi Minh. O Leninismo e a libertação dos povos oprimidos. In: PINSKY, Jaime
(org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 251. 35
o futuro, nº1
verdadeira fonte do exército nacional e revolucionário;
nessas regiões, cujo desenvolvimento foi sufocado
deliberadamente pelo colonialismo, o campesinato,
quando se revolta, aparece imediatamente como a classe
radical: conhece a verdadeira opressão, sofreu muito mais
que os trabalhadores das cidades e, para não morrer de
fome, necessita de derrubar todas as estruturas.[...]23

E é evidente que nos países coloniais somente o


campesinato é revolucionário. [...] A insurreição,
aparecida no campo, penetrará nas cidades por intermédio
do campesinato bloqueado na periferia urbana, o qual
não pôde encontrar ainda um osso para roer no sistema
colonial. Os homens obrigados pela crescente população
do campo e pela exploração colonial a abandonar a sua
terra natal, giram incansavelmente em volta das bonitas
cidades, esperando que algum dia possam penetrar
nelas. É nessa massa, nesse povo dos bairros de miséria,
das casas de lata, no seio do lumpen-proletariat, que a
insurreição encontrará a sua ponta de lança urbana. O
lumpen-proletariat, coorte de esfomeados, destribalizados,
descolonizados, constitui uma das forças mais espontâneas
e radicalmente revolucionárias de um povo colonizado.24

Uma das contribuições mais geniais de Fanon, contribuição essa profun-


damente devedora de seus estudos do leninismo, do maoismo e do marxismo
periférico25, é sua análise profunda, profícua e não mecanicista das bases ma-
teriais e das classes sociais na Argélia pré-revolucionária.
Fanon, ao considerar os resquícios feudais propiciados pela colonização
sui generis da Argélia enquanto colônia de povoamento bem como levando
em conta como a situação colonial, cria clivagens no interior do proletaria-
23 SARTRE, Jean-Paul. “Prefácio de Jean-Paul Sartre”, p. 8, in: FANON, Frantz. Os con-
denados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969.
24 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969, p. 57-132.
25 Entendemos aqui por marxismo periférico os desenvolvimentos práticos da teo-
ria marxiana bem como da literatura marxista posterior vis a vis às revoluções e
às experiências do socialismo real na Rússia, no Oriente, na África e no chamado
terceiro mundo. Tal conceito se constrói em par antagônico àquele de marxismo
ocidental, propugnado por Domenico Losurdo e que se preocupa com os desdo-
bramentos de um certo marxismo europeu, filocidental e autocentrado, que desco-
nhece a questão colonial e, portanto, recai em um idealismo dos derrotados. Para
mais sobre o assunto ver LOSURDO, Domenico. O Marxismo Ocidental. São Paulo:
36 Boitempo, 2018.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
do colonizado, se apercebendo a um só tempo de três fatores fulcrais para
o sucesso da revolução nacional na Argélia.
Primeiro, o proletariado autóctone argelino se comporta de forma bur-
guesa e reacionária, é classe extratora de mais valia. Fruto da situação colo-
nial, vivendo de migalhas e prebendas que “sobram” da exploração colonial
por França, tal proletariado não é verdadeiramente uma classe revolucioná-
ria, tendendo, portanto, muito mais aos conluios e pautas reformadoras dos
partidos “nacionais” que propriamente à ruptura revolucionária da guerra de
libertação devido exatamente à exploração do campo pela cidade que propicia
a essa classe a extração da mais-valia sobre o campesinato.
Segundo, dada as condições remanescentes de feudalidade do modelo econômico
do colonato argelino, somente o campesinato era em Argélia uma classe verdadeira-
mente revolucionária. Desclassificado, esfomeado, explorado, rapidamente o campo-
nês descobre que só tem a perder e nada a ganhar. Ademais, no mundo colonial a cli-
vagem entre cidade e campo é ainda mais acentuada e toda a parca mais-valia extraída
por parte do proletariado urbano o é sobre a exploração das massas camponesas.
Terceiro, dada a situação específica da Argélia a revolução penetraria as
cidades a partir dos campos, uma vez que os elementos de vanguarda oriundos
da cidade seriam repelidos pelo ambiente burguês citadino e se veriam força-
dos a buscar abrigo e apoio junto ao campesinato. Ora, as franjas citadinas que
permitiriam essa (re)penetração da revolução vinda do campo seria precisa-
mente o lumpenproletariat, de origem camponesa, que migrou forçosamente
para cidade, mas ainda não foi absorvido, vivendo em condições análogas às da
exploração do campesinato servindo como exército de reserva aos interesses
do capital na situação colonial. Por mais frágil enquanto classe, por mais alie-
nado de sua situação, esse lúmpen ainda era cooptável na situação argelina.
É essa leitura precisa que propicia o sucesso da FLN e que serve como chave
para se entender as revoluções nacionalistas decoloniais bem como para inter-
pretar, a partir das classes que são alavancadas ao protagonismo, suas possibi-
lidades de sucesso e seus ulteriores desdobramentos infra e superestruturais.
Fanon aqui nos brinda com o seu gênio único ao mesmo tempo responde à
altura ao chamado de Lênin.

A cultura revolucionária é para as grandes massas populares


uma poderosa arma de revolução. Antes da revolução,
prepara ideologicamente o terreno e durante ela, constitui
um setor necessário e importante de sua frente geral....
Disto se depreende quão importante é o movimento cultural
revolucionário para o movimento prático da revolução. Tanto o
movimento cultural quanto o prático devem ser de massas.26
26 MAO, Tsé-Tung. Cultura Nacional Científica e de Massas. In: PINSKY, Jaime (org). 37
o futuro, nº1
Pensamos que a luta organizada e consciente empreendida
por um povo colonizado para restabelecer a soberania da
nação, constitui a manifestação mais plenamente cultural
que existe. Não é unicamente o triunfo da luta que dá
validade e vigor à cultura, não existe hibernação da cultura
durante o combate. A luta, no seu desenvolvimento, no
seu processo interno, faz progredir as diferentes direções
da cultura e esboça outros caminhos. A luta de libertação
não restitui à cultura nacional o seu valor e os seus antigos
contornos. Esta luta, que tende para uma redistribuição
fundamental das relações entre os homens, não pode
deixar intactas as formas nem os conteúdos culturais
desse povo. Depois da luta não desaparece apenas o
colonialismo, mas desaparece também o colonizado. [...]. É
no coração da consciência nacional que se eleva e se aviva a
consciência internacional. E esse duplo nascimento não é,
definitivamente, senão o núcleo de toda a cultura.

Para Fanon, existem três momentos da cultura nacional sob a égide da si-
tuação colonial. Em um primeiro momento ocorre a assimilação, o colonizado
se preocupa em apreender a cultura do colonizador e seu público é o público
da metrópole. No segundo momento, temos a rememoração e o mergulho no
passado, seja o passado pessoal seja o passado imemorial dos povos coloniza-
dos, é um momento de angústia, uma experiência de náusea e morte que já
prevê a “ressurreição” e o despertar. O último momento se dá precisamente na
fase de luta, nele o colonizado se imiscui no povo e o desperta, finalmente tem-
se a ruptura das faixas que mumificavam o povo e a sua cultura, a produção
passa a ser pujante e cheia de novidades, a cultura se volta e ao mesmo tempo
cria um público interno. Passa-se da letargia à explosão.
Quando Fanon nos fala que a luta de libertação nacional, essa luta que de-
saliena a um só tempo o homem em seu caráter ontológico e os homens en-
quanto classe, enseja mudanças nas superestruturas culturais ele nos informa
também que essa luta enseja, ao mesmo tempo, uma ruptura essencial nas
estruturas materiais e econômicas dessa sociedade.
Fanon vê o despertar da cultura como uma manifestação suprassensível do
despertar do homem e da nação, esse movimento tríplice se interpenetra e é a
um só tempo causa e consequência da revolução nacional, é a suprassunção de
tudo aquilo que jazia subsumido.
Destarte, Fanon propugna uma cultura nacional verdadeiramente po-
pular e combativa, imiscuída no e para o povo, assim, se torna fácil com-
38 Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, p. 216.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
preender suas querelas contra os conceitos de negritude27, os quais muitas
vezes se baseiam em uma metafísica e um idealismo que se afastam da
prática revolucionária, a única capaz de criar definitivamente e trans-
mutar a cultura destruindo o colonialismo, o colonizador e o colonizado.
Podemos finalmente entender como o desaparecimento do colonialismo
também traz por sua vez o desaparecimento do colonizado, este ascendeu
à consciência por meio da luta de libertação nacional.

Conclusão
Ao tensionarmos as leituras marxistas e marxianas de Fanon com sua prática
revolucionária podemos concluir que, para Fanon, Nação mais que uma rea-
lidade é um horizonte, sua concepção é programática e voltada para o futuro.
Nação é a própria construção revolucionária onde a consciência ontológica in-
dividual se desaliena e torna-se devir epistemológico coletivo.
Estudar Fanon é sempre buscar compreender a um só tempo o revolucio-
nário e o psiquiatra que jamais coloca limites clínicos à sua prática revolucio-
nária nem limites revolucionários à sua prática clínica. O que importa a Fanon
não é somente a cura do homem, mas sobremaneira a cura do corpo social que
poderá de fato (re)humanizar às vítimas da violência colonial.
Nesses tempos de identitarismo rasteiro e armadilhas liberais mais que
bradar “Fanon, presente” é preciso viver as lições do grande revolucionário
para que ele esteja presente na relação entre nossa teoria e nossa prática, é
preciso que marchemos em direção à História com o ímpeto que somente cabe
aos condenados da Terra, será então que a violência revolucionária ensejará o
nascimento de um homem novo.

27 O movimento literário négritude nasceu do ambiente intelectual de Paris das déca-


das de 30 e 40 do século XX e foi um produto de escritos negros que se uniram para
por meio da língua francesa afirmar sua identidade cultural. Sobre o movimento
ver KESTELOOT, Lilya. Black Writers in French: A Literary History of Negritude.
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o futuro, nº1
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42
A precarização
e as relações de
trabalho para a
juventude brasileira
Poliana Mendes Cavalheiro

RESUMO

A
s relações de trabalho mudaram com a necessidade de acumulação
do capital, devido à crise dos modelos taylorista e fordista, foi-se
necessário o capitalismo se reinventar para recuperar o seu ciclo
produtivo. Essa reinvenção veio com a flexibilização das relações de trabalho,
aumentando a terceirização, afetando diretamente os trabalhadores. Com a
ascensão da tecnologia, a internet passou a ter um papel importante para as
empresas. As empresas-plataforma originaram o termo Economia do Compar-
tilhamento, ligando consumidores e ofertantes de serviços através da internet.
Com a Economia do Compartilhamento, surgiu o fenômeno chamado uberiza-
ção, denominado como a precarização das relações de trabalho no mundo dos
aplicativos digitais, que se vendem apenas como a ponte entre consumidor e
ofertante de serviço. Com o mercado de trabalho cada vez mais precarizado,
os jovens acabam sofrendo mais que outras categorias da classe trabalhadora,-
com empregos informais e sem carteira assinada, muitos vão para os aplicati-
vos como única forma de sustento próprio e familiar. Por fim, se conclui que a
uberização aprimorou a terceirização do trabalho por meio dos aplicativos da
economia do compartilhamento e os jovens são afetados drasticamente por
essas novas relações de trabalho precarizadas.

Palavras-chave: Uberização; Economia do Compartilhamento; Precarização;


Relações de Trabalho; Jovens.

43
o futuro, nº1
Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar as recentes relações de trabalho
caracterizando o fenômeno da uberização como uma das principais opções de
trabalho que surgem dado o desemprego estrutural que se encontra hoje na so-
ciedade brasileira. Além disso irá tratar de como os jovens estão inseridos nesse
contexto e como os mesmos não tendo empregos formais acabam indo buscar
fonte de renda com opções de trabalho precarizado e sem regulação legislativa.
As relações de trabalho durante o capitalismo mudaram conforme o avanço da
sociedade moderna. Até o século XIX na Inglaterra poder-se-ia encontrar jornadas
de 8, 10, 12, 14, 16, 19 horas sem leis especificas de trabalho que as regularizassem,
tendo em vista que a variação de jornada de trabalho atua de acordo com os limites
físicos e sociais dos trabalhadores. Apenas a partir de 1802 que leis foram promul-
gadas para a regularização das jornadas de trabalho (MARX, 2011).
Devido à crise do padrão de acumulação taylorista/fordista no fim da
década de 1960 e início dos anos 1970, o capital precisou se reestruturar
buscando recuperar o seu ciclo reprodutivo. A eliminação de postos de tra-
balho, o aumento da produtividade e o crescimento da terceirização passa-
ram a fazer parte da empresa flexível. Atualmente observa-se leis especí-
ficas sobre as condições de trabalho, porém ao mesmo tempo nota-se em
escala mundial a destruição das forças produtivas contra a força humana
de trabalho, na qual se encontram grandes grupos precarizados, elevando o
aumento do desemprego estrutural (ANTUNES, 2009, 2014).
Para a OIT (2018) as diferentes formas de trabalho passam a ter importância
nas novas relações de trabalho: os trabalhos on-demand1, ou relacionados à
gig economy2 como a Uber, são exemplos das novas relações.
Com a mudança do possuir para o compartilhar e as possibilidades que a
internet oferece para proporcionar essa mudança de hábito, a Economia do
Compartilhamento3 aparece à primeira vista como uma grande inovação den-
tro da Economia, prometendo mudanças significativas no seu funcionamento.
Porém se analisado mais a fundo, percebe-se o quão problemática e danosa
ela pode ser principalmente para os trabalhadores que “compram” a ideia à
primeira vista sem ter uma análise mais crítica e cautelosa.
A Economia do Compartilhamento consiste em negócios que utilizam a
internet como forma de conectar consumidores com plataformas de serviços
para trocas no mundo físico. Os serviços que dominam a Economia do Com-
partilhamento são: hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%). Se
à primeira vista, ela é diversa e se utiliza com frequência a linguagem do al-
truísmo e generosidade para descrevê-la, analisando mais a fundo, a economia
do compartilhamento é majoritariamente composta por grandes conglomera-
44 dos e organizações com fins lucrativos (SLEE, 2017).
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
A Uber faz parte da efervescente Economia do Compartilhamento pelo
seu modelo de “microempreendedores”, os quais escolhem quanto traba-
lhar e de maneira independentes. Parecendo à primeira vista, um modelo
simples e flexível de trabalho. Porém os modelos de negócios de empresas
do ramo são desenhadas para evitarem o vínculo de emprego entre empre-
sa e trabalhador que se utiliza dos aplicativos para oferecerem seus servi-
ços (SLEE, 2017; ZANATTA; DE PAULA; KIRA, 2017).
O celular entra como intermediário sob a forma de um empregador abs-
trato, sem jornada de trabalho pré-definida, sem cobertura social e sem
sindicalização. Os jovens latino-americanos sofrem efeitos corrosivos desse
tipo de trabalho, reforçando o que se chama a “fetichização do instante”4
(GARCIA; OROÑO; CASTILLO, 2018).
A qualificação da força de trabalho engloba diferentes elementos, como o
grau de escolaridade, a experiência adquiria no local de trabalho, hábitos e
atitudes. Os jovens saem em desvantagem por muitos ainda estarem em busca
do primeiro emprego (RIBEIRO; NEDER, 2009).

Economia do Compartilhamento
A Economia do Compartilhamento se baseia no uso da tecnologia da informa-
ção, buscando otimizar o uso de recursos através da sua reordenação, compar-
tilhamento e aproveitamento das suas principais capacidades. A tecnologia da
informação possibilita que bens e serviços antes não negociados passem a ser
negociados através da confiança depositada no sistema on-line de comparti-
lhamento (MARTINS; RIBEIRO, 2017; SOUZA; LEMOS, 2016).
A ascensão da Economia do Compartilhamento forneceu diversos exemplos
de design de mercado inovador. Empresas como Ebay5 e Airbnb6 permitem
que inúmeros vendedores testem preços, mecanismos de venda e estratégias
de publicidade. As plataformas financeiras como o Prosper7 e o Kickstarter8
usam diferentes mecanismos para permitir que pessoas consigam emprésti-
mos e/ou investimentos de maneira descomplicadas. A Instacart9 e a Uber10
utilizam técnicas centralizadas para designar trabalhadores a empregos, sem-
pre submetidos às forças de mercado. Quando um passageiro envia a rota de
destino para a Uber, a empresa anuncia o trabalho para os motoristas. Nota-se
que a alocação do trabalho é invisível para os pilotos, porém a empresa busca
equilibrar demanda e oferta, limitando o tempo de espera e ajustando os pre-
ços às condições do mercado (EINAV; FARRONATO; LEVIN, 2016).
Com diversas empresas da Economia do Compartilhamento surgindo nos
últimos anos e se consolidando, é importante analisar a movimentação econô-
mica que esse segmento apresenta para a economia. Segundo MARTIN (2016) 45
o futuro, nº1
a previsão de crescimento do setor é saltar de US$ 15 bilhões em 2015 para US$
335 bilhões em 2025. Na análise da OIT (2018) a tendência do setor é se expan-
dir ainda mais por conta do desenvolvimento das novas tecnologias.
Como pode-se notar, é um setor que está em constante crescimento e movimen-
ta cifras bilionárias. Algumas empresas já destacadas no artigo possuem valor de
mercado superior a US$ 1 bilhão11, como é o caso da Uber, Airbnb, Rappi e Ifood.
A Economia do Compartilhamento surge como uma opção de dinamização
da economia e principalmente uma descentralização do poder não mão de pou-
cas empresas comumente visto na economia atual dado o padrão de acumulação
do capital, porém a promessa de dinamização não se realiza tendo em vista as
“brechas” no mercado regulatório e consequentemente a precarização da classe
trabalhadora que precisa se submeter a esse tipo de trabalho para sobreviver.
O autor Tom Slee (2017) aborda essa contradição no seu livro “Uberização: A
nova onda do trabalho precarizado”, o estadunidense aponta que o que inicial-
mente parecia uma cooperação entre indivíduos baseado nas trocas mútuas, fa-
zendo parecer que estava havendo uma transição do reino da necessidade para o
reino da liberdade, possibilitou a criação de gigantes corporações, estando entre
as mais valiosas e poderosas do mundo, sem que necessariamente precisassem
possuir patrimônio, propriedades, estoques, máquinas ou custos de instalações.
Isso acontece porque essas empresas se eximem de toda a responsabili-
dade trabalhista e regulatória. A Uber não se apresenta como uma empresa
de transporte, ela apenas aproxima o passageiro do motorista através de uma
tecnologia – no caso um aplicativo de celular – cobrando uma taxa por corrida
realizada. O Airbnb não se coloca como uma empresa do ramo da hotelaria, ela
apenas oferece ao hóspede um local para se hospedar através de uma tecno-
logia – no caso um site e posteriormente um aplicativo de celular – cobrando
uma taxa de serviço por cada hospedagem realizada. A Rappi e o Ifood não são
empresas do ramo de logística, elas apenas oferecem a entrega de comidas e
bens de serviços através de uma tecnologia – no caso aplicativos de celulares –
cobrando uma taxa por cada entrega realizada.
A Economia do Compartilhamento surgiu no contexto da revolução digital,
da crise mundial e do desemprego, tornando-se assim uma opção de renda e so-
brevivência imediata dos trabalhadores (SAMUELSON apud SALDANHA, 2017).
A uberização aposta na promessa de que todos ganham com a tecnologia
utilizada. Para os consumidores, menores preços, melhoria dos serviços e uma
maior comodidade, enquanto para os trabalhadores uma maior autonomia e
maiores oportunidades profissionais. Porém é válido ressaltar que ao mesmo
tempo que essas plataformas promovem a liberdade de profissão, elas podem le-
var ao contrário, à precarização do trabalho (ZANATTA; DE PAULA; KIRA, 2017).
O fenômeno da uberização ratifica um estágio superior da exploração do traba-
46 lho, que propõe mudanças ao estatuto do trabalhador, à organização das empresas,
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
e, da mesma forma, aos modelos de controle, gerenciamento e expropriação do
trabalho. O fenômeno valida a passagem do trabalhador para um empreendedor
acessível ao trabalho; retira as garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém
sua submissão. A uberização pode ser entendida como um futuro possível para
empresas que se tornam responsáveis por disponibilizar a infraestrutura para que
os seus “parceiro” realizem o seu trabalho; é possível imaginar hospitais, universi-
dades e diferentes empresas que adotem esse modelo (ABÍLIO, 2017).

Juventude e precarização do trabalho


No capitalismo atual no qual se valoriza o descartável, a juventude pode ser
classificada simbolicamente um capital, porque é observada como uma repre-
sentação da competição e como potencialidade para se desenvolver. Porém o
capital da idade só se desenvolve dadas as condições na dinâmica histórico-
cultural (DE PAULA FALEIROS, 2008).
Para Bauman (2013), o que salva os jovens da sua dispensabilidade total e o
que lhes garante um grau de atenção é a sua potencial contribuição à demanda
de consumo. Se presta atenção na juventude como um novo mercado a ser ex-
plorado, esse fenômeno acontece por conta da força educacional de uma cul-
tura na qual comercializa o principal aspecto da vida das crianças, utilizando
a internet e diversas redes sociais, as empresas procuram inserir os jovens no
mundo dominado pelo consumo em massa, de maneiras mais amplas e dife-
rentes que qualquer coisa que se possa ter visto no passado.
A crise estrutural do capitalismo, que elevou a instabilidade econômica,
social e política, é vivenciada pelas reformas previdenciárias e a flexibilização
das leis trabalhistas, atingem em especial os jovens. Além disso o prolonga-
mento da escolarização das novas gerações contrasta com a diminuição das
possibilidades no mercado de trabalho e mobilidade social crescente através
da escola e do trabalho (TOMIZAKI; DANILIAUSKAS, 2018).
Para a OIT, as principais características de inserção ocupacional dos jovens
podem ser descritas pelos seguintes aspectos:
a) Desemprego: segundo dados de 2013 a taxa de desemprego entre jovens
de 18 a 24 anos é maior que a taxa de desemprego da população brasileira;
b) Altas taxas de informalidade: no ano de 2013 a taxa de informalidade
entre a população de 15 a 29 anos era maior dois pontos percentuais do que
a dos adultos entre 30 e 65 anos;
c) Elevada rotatividade no emprego: os trabalhadores mais jovens perdem
o emprego com mais frequência que os mais velhos;
d) Jornada de trabalho semana superior a 44 horas: cerca de um terço dos
trabalhadores jovens brasileiros trabalham mais que 44 horas semanais, di- 47
o futuro, nº1
ficultando a conciliação entre trabalho e estudo;
e) Baixa remuneração: cerca de 16% dos jovens entre 15 a 29 anos ganham
menos que um salário mínimo.
Para comprovar a precarização da juventude trabalhadora brasileira tendo
como base os aspectos descritos acima pela OIT, utilizaremos dados da PNAD
contínua entre os anos de 2017 ao primeiro trimestre de 2020 para analisar a
situação dos jovens. Para isso foi preciso delimitar a faixa etária na qual será
analisada, no presente artigo usaremos a faixa etária dos 18 aos 29 anos de idade.

Gráfico 1 – Porcentagem do desemprego dos jovens brasileiros e da classe tra-


balhadora brasileira nos trimestres correspondente.

Fonte: PNAD CONTÍNUA

Pela série evidenciada no gráfico, pode-se notar que no período analisado a


média do desemprego da juventude brasileira (25,21%) é mais que o dobro da
média da classe trabalhadora (11,62%).
Pelos dados fica explícito como os jovens é uma das categorias que sofrem
com a falta de empregos no Brasil, é válido ressaltar que muitos não conse-
guem emprego pela necessidade de alta experiência que o mercado exige, ou-
tro fator é que os jovens de 18 a 29 anos se encontram na fase universitária,
com as demandas acadêmicas e muitas vezes horários inconciliáveis, a juven-
tude precisa optar pelo trabalho ou pela instrução universitária.
Para além da taxa de desemprego, outra relação importante de se analisar
é o número de trabalhadores jovens ocupados em função da carteira assinada.

48
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
Gráfico 2 - Porcentagem da juventude trabalhadora brasileira que não pos-
suem carteira assinada nos trimestres correspondentes

Fonte: PNAD Contínua

Observa-se que mais de 40% dos jovens brasileiros que estão trabalhando
não possuem carteira assinada, temos assim quase metade da juventude traba-
lhadora brasileira que não possui direitos trabalhistas. A taxa de informalidade
mostra como a precarização do trabalho dos jovens no Brasil, além disso é
importante destacar um leve aumento na informalidade a partir do segundo
semestre de 2017, nesse período foi promulgada a lei de terceirização pelo en-
tão presidente golpista Michel Temer.
Em uma pesquisa sociodemográfica de entregadores de aplicativo da cida-
de de São Paulo que utilizam a bicicleta como ferramenta de trabalho, chegou-
se ao perfil médio do entregador brasileiro: é homem, negro, tem entre 18 e 22
anos, possui ensino médio completo, estava desempregado e agora trabalha
todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia e possuem um ganho médio
mensal de R$ 992,00 (ALIANÇA BIKE, 2019).

Conclusões
Os jovens é um dos setores mais precarizados dentro do mercado de trabalho,
juntamente com outros setores como mulheres, negros e LGBT’s. Além dos da-
dos expostos, um dos objetivos era analisar a precarização da juventude em meio
ao fenômeno da uberização, porém por ainda ser algo novo dentro do mercado
de trabalho, o IBGE não possui dados mais aprofundados da população que tra-
balham com os aplicativos da Economia do Compartilhamento. Mas foi possível 49
o futuro, nº1
buscar informações mais detalhadas sobre a categoria de entregadores de apli-
cativo a partir de estudos realizados recentemente. E observou-se que grande
parcela dos trabalhadores de aplicativos são jovens, chegando a 75% ter até 29
anos, segundo informações do estudo realizado pela Aliança Bike.
Para além disso, algumas políticas públicas incentivadas por grandes organi-
zações, como a OIT é o estímulo do empreendedorismo juvenil, porém deve-se
problematizar essa solução, dado que os jovens já estão inseridos na informali-
dade e possuem um salário ruim. Pergunta-se então, como os jovens teriam capi-
tal inicial para investir em algum empreendimento próprio quando os mesmos
fazem parte da parcela da população que tem rendimentos salariais pequenos?
A solução do problema da precarização da juventude brasileira não virá por
soluções que estimulam a individualidade, como o empreendedorismo e a Eco-
nomia do Compartilhamento defendem. Se faz necessário buscar soluções co-
letivas junto aos órgãos responsáveis com estímulo ao primeiro emprego. Até
mesmo compensações fiscais para empresas que estimularem a contratação
de jovens que trabalham e estudam, tendo em vista que o acesso ao conheci-
mento técnico dá mais ferramentas para o jovem, podendo dessa forma aplicar
esses conhecimentos nos seus respectivos empregos.
Para os entregadores de aplicativo, é importante a organização coletiva para
que se busque reconhecimento empregatício, dessa forma o trabalhador de apli-
cativo terá direito formal a férias, 13º salário, estrutura física fornecida pela em-
presa para descansos, vale-alimentação, seguro-desemprego e seguro acidente.

50
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A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro


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51
52
Dançando à beira
do abismo: a crise
sistêmica global
emerge novamente
Edmilson Costa1

O
sistema capitalista enfrenta o epicentro da mais grave, profunda e
devastadora crise sistêmica de sua história, muito mais grave que
as duas crises sistêmicas anteriores, cujos eventos provocaram mu-
danças quantitativas e qualitativas nesse modo de produção.2 Trata-se de um
período difícil, no qual os gestores do capital estão desarticulados, sem ho-
rizonte, sem bússola ou instrumentos, e viajando rumo ao desconhecido por
mares nunca dantes navegados. Todas as receitas, fórmulas e agendas e já fo-
ram experimentadas pelos governos, no período 2008-2020, e nenhuma delas
conseguiu restaurar a estabilidade do sistema nem a retomada sustentada da
economia mundial. A enorme quantidade de dinheiro colocada na economia
apenas serviu para adiar o desenlace do processo. Isso ocorre porque as crises
sistêmicas têm uma diferença quantitativa e qualitativa em relação às crises
cíclicas clássicas do capitalismo e, especialmente, porque nenhum dos pro-
blemas que emergiram em 2007/2008 foi resolvido. Pelo contrário, o sistema
realizou uma fuga para frente, aumentando de maneira extraordinária o
volume do capital fictício em circulação: os bancos centrais colocaram

1 Secretário-geral do PCB, é doutor em economia pela Unicamp, com pós-doutorado


no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma Instituição. É autor, entre
outros, de Reflexões sobre a crise brasileira (no prelo), A crise econômica mundial,
a globalização e o Brasil (edições ICP, 2013) e A globalização e o capitalismo contem-
porâneo (Expressão Popular, 2008), além de vários ensaios publicados em revistas e
sites do Brasil e do exterior.
2 O sistema capitalista mundial registrou apenas duas grandes crises sistêmicas an-
teriores a essa: a de 1873-1896, cujo resultado foi a passagem do capitalismo concor-
rencial para o capitalismo monopolista; e a crise de 1929-1945, que levou à segunda
guerra mundial, à divisão do mundo em dois sistemas (socialista e capitalista) e,
no interior do sistema capitalista, os trabalhadores conquistaram o Estado do Bem
Estar Social. Para melhor compreensão do significado das crises sistêmicas (em re-
lação às crises cíclicas do capital), consultar: COSTA, E. A crise econômica mundial,
a globalização e o Brasil. Rio de Janeiro: Edições ICP, 2013. 53
o futuro, nº1
cerca de 30 trilhões de dólares na economia, recursos que serviram muito
mais para evitar temporariamente o colapso dos grandes bancos e gran-
des empresas e para tornar mais ricos os rentistas do que para restabele-
cer efetivamente a demanda agregada do sistema econômico.
Essa enorme massa de dinheiro (sem lastro na produção do valor), con-
seguiu proporcionar ao sistema capitalista uma sobrevida semelhante a uma
vitória de Pirro, porque na prática os gestores do capital construíram uma
economia frágil, baseada nos setores pouco produtores da riqueza material,
e com um sistema financeiro ganhando rios de dinheiro nos frenesis da es-
peculação mundial, além de empresas-zumbis buscando norte em meio à
tempestade. Gerou também para os eternos otimistas e crentes no milagre
do capitalismo uma euforia típica dos enfermos próximos à fase terminal. Ou
seja, a dramaticidade da crise anterior não foi uma boa conselheira para os
capitalistas, como foi a segunda guerra mundial. Enebriados pelas tonterias
do capital fictício e a sede de lucro fácil e rápido, esgarçaram ainda mais as
contradições do sistema, ao aprofundar a agenda neoliberal, destruir as re-
des de proteção social, avançar sobre o fundo público, realizar um brutal ata-
que contra os salários, direitos e garantias dos trabalhadores e pensionistas,
privatizar os serviços públicos e mercantilizar a vida. Quando a pandemia
chegou encontrou um campo fértil para avançar avassaladoramente sobre
a população, especialmente os mais pobres, e desmoralizar toda a narrativa
das últimas quatro décadas neoliberal. Portanto, o vírus não é a causa da
crise: a causa da crise é o sistema capitalista e suas contradições imanentes.
É importante enfatizar ainda que os sinais obscurecidos da conjuntura
anterior à pandemia levaram muitos analistas a imaginar que o capitalismo
poderia se desenvolver tranquilamente driblando a lei do valor e evitando o
ajuste de contas entre o extraordinário desenvolvimento das forças produti-
vas, baseado nas tecnologias da informação, inteligência artificial, robótica e
microeletrônica, engenharia genética, biotecnologia, nanotecnologia, entre
outras, e as velhas relações de produção construídas no pós-guerra e mantidas
na atualidade.3 Imaginaram que a criação do dinheiro a partir do nada seria su-
ficiente para regenerar um sistema doente e esqueceram-se de que, se a pura
e simples emissão de moeda resolvesse os problemas das crises, o capitalismo
seria um regime eterno. Nunca é demais lembrar que o sistema capitalista ali-
menta o processo de acumulação através da apropriação do mais-valor gerado
pelos trabalhadores. Quando setores capitalistas hegemônicos optaram ma-
joritariamente pelo mecanismo de acumulação a partir da órbita da circula-

3 Para melhor compreensão sobre as contradições entre o desenvolvimento das mo-


dernas forças produtivas do capitalismo atual e as velhas relações de produção, con-
sultar Costa. E. em: A natureza da crise sistêmica global: às vésperas do choque das
54 placas tectônicas do capital. Resistir. info
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
ção, na verdade estavam conspirando contra os interesses de longo prazo do
capital, porque nessa esfera, por mais que os capitalistas desejem, não se cria
riqueza real na sociedade, afinal somente o trabalho social é capaz de criar o
valor. Isso explica o desastre da chamada financeirização da economia. Da mes-
ma forma, o que estamos observando, desde 2008, é uma rebelião generalizada
das sofisticadas forças produtivos criadas pelo capitalismo atual contra as ve-
lhas relações de produção, cujo desfecho só será resolvido com uma mudança
profunda no sistema, como ocorreu no passado, ou com a revolução mundial.
Na verdade, as injeções de recursos por parte dos Bancos Centrais, as po-
líticas de flexibilização quantitativa, a compra de títulos tóxicos para evitar as
quebras generalizadas e outros truques macroeconômicos realizados pelos
governos dos países centrais apenas contribuíram para reproduzir em ba-
ses ampliadas todas as contradições sistêmicas que emergiram na crise de
2008 e para transformar a crise atual num fenômeno muito mais devastador
do que a crise anterior. O vírus pode ser uma boa desculpa para apaziguar
a mentes mais desesperadas dos escribas do capital, mas não resolve a cri-
se e a devastação que está em curso. O sistema financeiro, diante das taxas
de juros praticamente negativas e do risco de crédito em função das dívidas
empresariais e dos consumidores, preferiu alocar os recursos recebidos pra-
ticamente de graça dos Tesouros dos países centrais na alavancagem de seus
negócios especulativos. A grande massa de recursos lançada na economia
não irrigou o sistema produtivo, exatamente a base motora do crescimento
econômico. Pelo contrário, foi apropriada pelas grandes corporações finan-
ceiras e monopólios em geral para especular a partir da arbitragem entre
a taxa de juros praticamente negativa definida pelo FED e bancos centrais
europeus e as aplicações nas Bolsas de Valores, em mercados futuros e de
países emergentes e, inclusive, na compra de títulos do próprio Tesouro nor-
te-americano. Resultado desse processo foi a longa euforia das bolsas e dos
mercados especulativos. Isso de certa forma explica porque, enquanto a eco-
nomia mundial enfrentava sérios problemas, os bilionários aumentavam a
sua riqueza e a concentração da renda crescia exponencialmente. Mas essas
bolhas especulativas refluirão dramaticamente com o aumento da crise e a
maior parte desses recursos será esterilizada em futuro não muito distante.
Em outras palavras, a crise atual está umbilicalmente associada à emer-
gência da crise sistêmica global em 2008, com uma particularidade muito es-
pecial: na atual crise um elemento exógeno (a pandemia do Coronavirus) veio
aprofundar, potencializar, acelerar e universalizar um processo que já estava
maduro na economia mundial capitalista, especialmente nos Estados Unidos e
na Europa, e transformar a crise já inscrita num horizonte próximo numa he-
catombe social, econômica e política, cujas consequências e resultados ainda
não temos uma dimensão plena. A pandemia apenas acelerou e dramatizou 55
o futuro, nº1
um processo que já era objetivamente inevitável nas principais economias do
mundo. Foi uma espécie de detonador, uma centelha flamejante num ambien-
te que já estava extraordinariamente inflamável, tanto do ponto de vista econô-
mico quanto social. Seria até irônico imaginar que um nano-vírus, menor que
uma bactéria, tivesse condições de por de joelho um sistema mundial com a
pujança de mais de três séculos de hegemonia no planeta. Se está produzindo
essas consequências dramáticas é porque o sistema já estava muito enfermo.
Caso contrário, a crise não seria tão devastadora, afinal países como a China e
Vietnã, que também enfrentaram a pandemia, não registraram os resultados
dramáticos que estão sendo observados no centro do capitalismo.

Os elementos da nova crise


Grande parte dos analistas das organizações multilateriais, como o Fundo Mo-
netário Internacional e Banco Mundial, bem como institutos especializados
e muitos economistas, já identificavam ainda em 2019 uma desaceleração da
economia global e outros previam que uma nova crise seria inevitável em fun-
ção dos indicadores de um conjunto de variáveis da economia mundial, espe-
cialmente nos Estados Unidos e na Europa, os centros do capitalismo mundial.
As Bolsas de Valores já vinham apresentando grande volatilidade desde 2018,
após um boom alimentado pelo dinheiro dos Bancos Centrais injetados na
economia e das posteriores flexibilidades quantitativas. Além disso, a queda
do crescimento econômico chinês, que ao longo desse período contribuiu de
maneira acentuada para manter índices positivos da economia mundial, já in-
dicava que sérios problemas estavam por vir na economia mundial. Afinal, a
China é responsável por cerca de um quarto da produção mundial, por 20% da
produção de peças e componentes e 12% do comércio mundial.4 Um indicador
fundamental para expressar o fato de que a economia já vinha se desacele-
rando pode ser observado nas taxas de crescimento globais. Dados levanta-
dos por Michael Roberts já anunciavam uma queda no nível de crescimento
da economia global, desde 2010, conforme se pode observar na tabela 1.5 Essa
performance ocorreu em função da estagnação das taxas de investimentos, que
no mesmo período se mantiveram menores que 2007. Mas o dado que melhor

4 GRUPO DE ESTUDOS E ACOMPANHAMENTO DA CONJUNTURA ECONÔMICA. Co-


ronavirus e a crise mundial: um olhar para os antecedentes da tormenta. Tricon-
tinental, Brasil, 24 mar. 2020. Disponível em: https://www.thetricontinental.org/
pt-pt/brasil/a-contribuicao-do-coronavirus-na-crise-mundial-um-olhar-para-os-an-
tecedentes-da-tormenta/. Acesso em: 30 mar. 2020.
5 ROBERTS, Michael. Lucratividade: o investimento e a pandemia. Economia e Com-
plexidade, 22 maio. 2020. Disponível em: https://eleuterioprado.blog/2020/05/25/
56 lucratividade-o-investimento-e-a-pandemia/. Acessado em: 30 maio.2020.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
expressa as dificuldades da economia mundial pode ser medido pela queda da
lucratividade desde 2010. Ainda de acordo com Roberts, a taxa interna de retor-
no do capital do G7, que pode ser considerada uma proxi da taxa de lucro, vem
caindo desde 1998, quando o período neoliberal atingiu seu ápice (Gráfico 1).6
Tabela 1 - Annual global real GDP growth

Fonte: ROBERT (2020)


Gráfico 1 – Taxa interna de retorno do capital

Fonte: ROBERTS (2020)


Se observarmos também o setor produtivo das principais economias
dos países centrais, poderemos constatar que já vinha ocorrendo proble-
mas em vários ramos da produção, especialmente na indústria automobi-
lística da Alemanha, Índia, Inglaterra. Ainda na Alemanha ocorreu tam-
bém queda no setor de máquinas e equipamentos. “No segundo semestre de
6 ROBERTS, op. cit. 57
O FUtURO, Nº1
2019 começou uma recessão no setor da produção industrial da Alemanha, Itá-
lia, Japão, África do Sul, Argentina e vários setores industriais dos Estados Uni-
dos”.7 A redução no ritmo de crescimento da China impactou também de
maneira bastante negativa os produtores dos chamados países emergen-
tes que exportavam matérias-primas para os chineses. Outros indicadores
demonstram ainda enorme fragilidade da economia mundial e da econo-
mia dos Estados Unidos em particular. Segundo Plender, que se baseou
em cálculos do Instituto Internacional das Finanças (IIF), o quantum de
endividamento mundial alcançou U$$ 253 trilhões no terceiro trimestre de
2019, quantia correspondente a 322% do PIB mundial.8 Outras fontes indi-
cam um endividamento ainda maior na economia mundial: de acordo com
Hedgs, o endividamento mundial já alcançara U$$ 325 trilhões, ressaltan-
do-se que a dívida das famílias nos EUA atinge U$ 13,2 trilhões e as dívidas
dos estudantes também nos EUA atinge U$ 1,5 trilhão.9 Vale lembrar ainda
que a dívida externa norte-americana alcança aproximadamente 100% do
PIB (gráfico 2), que sua infraestrutura está bastante deteriorada e o setor
de petróleo, no qual o País imaginava adquirir autossuficiência a partir do
xisto betuminoso, está em bancarrota, assim como todo o setor petroleiro
mundial, em razão da queda dos preços e da demanda.

Gráfico 2 - Dívida pública dos Estados Unidos

Fonte: BASSATO

7 TOUSSAINT, Eric. A pandemia do capitalismo, o coronavirus e a crise econômica.


CADTM, 23 mar. 2020. Disponível em: http://www.cadtm.org/A-Pandemia-do-Capi-
talismo-o-Coronavirus-e-a-Crise-Economica. Acesso em: 26 jun. 2020.
8 PLENDER, Jonh. Há um temor de escassez no crédito global. Valor Econômico,
06 mar. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2020/03/06/
ha-um-temor-de-escassez-no-credito-global.ghtml. Acesso em: 01 jun. 2020.
9 HEDGES, Cris. Assim arma-se a próxima crise financeira. Outras Palavras, 15 ago.
2019. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/assim-co-
58 mecara-a-proxima-crise-financeira/. Acesso em: 26 jun. 2020.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
Como na crise anterior não ocorreu a queima de capitais suficientes para
regenerar o sistema econômico, o truque de injeções maciças de recursos
por parte dos bancos centrais criou um sistema econômico baseado em fun-
damentos frágeis, um boom artificial e um sistema financeiro que ampliou
de maneira impressionante o processo especulativo. Isso ocorreu porque os
bancos, diante da montanha de recursos em seus encaixes monetários, decidi-
ram obter lucros muito mais rápido e fácil na especulação do que colocar esse
dinheiro no setor produtivo. Direcionaram esses recursos para a compra de
ações, para a compra de títulos da dívida dos países periféricos, para o mer-
cado futuro de derivativos e todo tipo de negócio especulativo. Esses negócios
criaram uma atmosfera otimista, na qual os agentes do capital, especialmente
nos meios de comunicação, difundiam a narrativa de que a economia tinha
se recuperado e estava crescendo a todo vapor. A crise teria sido apenas um
acidente de percurso e o sistema recuperara a normalidade como no passado.
Ledo engano: esqueceram-se de que o capitalismo é um sistema que não pode
se desenvolver se não extrair o mais-valor dos trabalhadores; que a dinâmica
capitalista implica investimento no processo de produção, realização das mer-
cadorias e apropriação do valor para acumular o do capital. Querer fugir dessa
lógica imanente do capitalismo é uma miragem semelhante à dos alquimistas
buscando descobrir o elixir da juventude. Como de costume, as crises emer-
gem para relembrar a todos os caprichos implacáveis da lei do valor.
Na principal economia do mundo, a crise até agora está sendo devastadora.
Não se pode afirmar com exatidão quais as consequências no ritmo de cresci-
mento dos Estados Unidos, mas as perspectivas indicam que esta crise será tão
ou mais grave que a grande depressão porque combinou, num mesmo coquetel
tóxico, a emergência de um nova erupção da crise sistêmica global com uma
pandemia mundial que potencializou e acelerou todas as contradições de um
sistema enfermo. Concentrando-se a investigação nos Estados Unidos, o coração
do sistema imperialista, como uma proxi do que acontecerá nas outras regiões
do mundo, podemos dizer que estão em cursos fenômenos dramáticos nunca
dantes observados na economia norte-americana e, por extensão, na economia
mundial. Os organismos internacionais preveem uma queda no PIB entre 5 e 10
pontos percentuais negativos, enquanto o ex-secretário do Tesouro norte-ame-
ricano e experiente representante do establishment, Larry Sammers, avalia que
esta será a maior crise desde a segunda guerra, cujo desemprego deverá atingir
20% dos trabalhadores.10 De concreto, agora em maio, 40 milhões de trabalha-
dores já perderam o emprego, número que deverá aumentar à medida em que
10 BORGES, Robinson. Líderes que negam a gravidade da pandemia não salvam a ati-
vidade econômica nem vidas, diz Larry Sumers. Valor Econômico, São Paulo, 22
maio. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/05/22/lideres-
que-negam-a-gravidade-da-pandemia-nao-salvam-a-atividade-economica-nem-vi-
59
das-diz-larry-summers.ghtml. Acesso em: 26 jun. 2020.
o futuro, nº1
a crise se agrava. De fato, a economia está numa espiral descendente: o setor de
petróleo está em bancarrota, com dezenas de empresas indo à falência em fun-
ção da queda da demanda e dos preços do óleo. No setor do comércio, milhares
de empresas também estão falindo por falta de compradores, o que significa
que todas as cadeias de fornecedores também sofrerão o impacto da queda. Da
mesma forma, os setores da aviação, do turismo, bares, restaurantes, shoppings,
cinemas e entretenimento em geral também estão a caminho do colapso. Em
breve a crise também chegará ao núcleo duro da produção, em função da insufi-
ciência estrutural da demanda agregada, e as dívidas impagáveis de empresas e
consumidores sufocarão o sistema financeiro, cuja queda será muito expressiva.
Essa crise ocorre num momento que a economia norte-americana, do
ponto de vista social, também vive uma situação difícil, levando-se em
conta ser esta a principal economia do planeta. Como vimos, o crescimen-
to econômico do período anterior foi realizado a partir de fundamentos
artificiais, tendo como lógica de crescimento a órbita da circulação, cujos
setores não produzem valor. Da mesma forma, o chamado boom dos em-
pregos, criados entre 2009 e a emergência da crise atual, também estava
baseado em fundamentos frágeis, com salários estagnados e um elevado
contingente da força de trabalho não registrado pelas estatísticas oficiais,
o que permitiu uma sofisticada manipulação estatística. “A taxa de partici-
pação da força de trabalho - a proporção da população total de 18 a 64 anos
que trabalha ou procura emprego - caiu acentuadamente no momento em
que a crise ocorreu, e ainda está longe de retornar ao seu nível de 2007...
Os salários, como muitos já sabem, não são muito maiores do que eram no
final dos anos 1970. Tivemos uma geração inteira experimentando estag-
nação salarial - e desde a Grande Recessão (de 2008, E.C.), tem sido ainda
pior”.11 Em outras palavras, o nível de emprego propagado pelo governo,
em relação à população em idade de trabalhar, não refletia a real situação
dos trabalhadores norte-americanos, ressaltando-se o fato de que se tra-
tava de empregos precários e mal remunerados, bastando dizer que cerca
de 50% dos trabalhadores dos Estados Unidos ganham menos que U$ 33
mil por ano, um nível muito baixo para os padrões daquele País. 12 Vale
lembrar ainda que existem hoje mais de 40 milhões com renda abaixo da
linha de probreza, e 550 mil sem teto, dos quais 358 mil vivendo em abri-

11 WEISSMAN, Suzi; BRENNER, Robert. Por trás da turbulência econômica. Portal da


Esquerda em Movimento,29 ago. 2019. Disponível em: https://portaldelaizquierda.
com/pt_br/2019/08/por-tras-da-turbulencia-economica/. Acesso em: 26 jun. 2020.
12 SNYDER, Michael. Prepare-se para a colisão! A economia dos EUA está caindo e
caindo com força. Blog Pos. 20 nov. 2019. Disponível em: https://www.clubpos.club/
prepare-se-para-a-colisao-a-economia-dos-eua-esta-caindo-e-caindo-com-forca-
60 17-de-novembro-de-2019/. Acesso em: 26 jun. 2020.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
gos precários e 195 mil morando na rua. 13 Para um País das oportunidades
e das liberdades, esse não é um dos mais belos cartões postais.
Do ponto de vista sanitário, a crise veio demonstrar a falência do sistema
de saúde privado no País. Atualmente, mais de 2,5 milhões estão contaminados
pelo coronavirus, com mais de 120 mil mortos, número mais de duas vezes
maior que na guerra do Vietnã. A pandemia revelou de maneira brutal as maze-
las da sociedade norte-americana, como a desigualdade, a pobreza, a miséria,
a iniquidade de um sistema de saúde onde quem não tem dinheiro morre na
porta dos hospitais, a concentração de renda, o racismo estrutural, os milhares
de sem teto e moradores de rua, mas também revelou a disposição de vários
setores da população para a luta pelas mudanças, especialmente os jovens, ne-
gros e latinos. Se o presidente Trump não tivesse subestimado a pandemia,
a partir de um negacionismo típico dos fundamentalistas neopentecostais, o
número de mortos poderia ter sido bem menor. Se o País tivesse um sistema de
saúde público, onde todos pudessem ter acesso gratuito à saúde, milhares de
vidas teriam sido poupadas. Dito de outra forma, a crise veio demonstrar com
rudeza que o sistema capitalista, especialmente na sua fase neoliberal, é hoje
o principal inimigo da humanidade porque só tem a oferecer aos povos a mi-
séria e a desigualdade. As manifestações que estão ocorrendo em todo o País,
mesmo diante da pandemia, demonstra a insatisfação profunda da maioria da
população e que pode aumentar à medida em que a crise for se agravando.

A desmoralização do discurso neoliberal


A crise demonstrou também de maneira pedagógica a natureza desumana do sis-
tema capitalista e os crimes de sua fase mais agressiva, o neoliberalismo. As polí-
ticas neoliberais, ao longo dos últimos 40 anos, sob o pretexto da ineficiência do
Estado e do equilíbrio fiscal, transformou o mercado numa entidade mítica, com
interesses superiores aos da espécie humana, numa ofensiva mundial articulada
desde as organizações multilateriais, aos diversos governos capitalistas e, especial-
mente, aos meios de comunicação. Diariamente as TVs, os jornais, o rádio e os
meios digitais promoveram as virtudes do livre mercado e da livre concorrência,
da iniciativa privada, das reformas econômicas, trabalhistas e previdenciárias e
do individualismo como a única alternativa para a vida em sociedade. Desregula-
mentaram a legislação econômica, as atividades financeiras, o mercado de traba-
lho, os direitos sociais, e colocaram toda a estrutura do Estado a serviço da nova

13 THE COUNCIL OF ECONOMICS ADVISERS. The State of Homelessness in Ame-


rica. [s.l]: [s.e.], 2019. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/
uploads/2019/09/The-State-of-Homelessness-in-America.pdf. Acesso em: 26 jun.
2020. 61
o futuro, nº1
ordem, mesmo que para tanto se utilizassem de regimes autoritários ou alianças
com bandos fascistas. Em outras palavras, transformaram o neoliberalismo num
pensamento único, a partir do qual qualquer discordância era desqualificada e
inviabilizada. O polo financeiro do grande capital passou a hegemonizar o sistema
econômico, a controlar parcela expressiva das empresas produtivas, a hegemoni-
zar politicamente o orçamento do Estado e alavancar de maneira exponencial o
processo de especulação. Por trás desse discurso e dessas ações, evidentemente,
estavam os interesses da oligarquia financeira e do grande capital buscando supe-
rar a crise capitalista e colocar todo o ônus do ajuste na conta dos trabalhadores.
Dessa maneira, a política neoliberal avançou contra os direitos e garantias
dos trabalhadores e pensionistas, direitos conquistados por nossos avós, e re-
duziu os salários, tanto dos trabalhadores do setor privado quanto dos funcio-
nários públicos. Em nome da austeridade e equilíbrio das finanças públicas
cortou gastos sociais, reduziu a participação do Estado na economia, avançou
sobre as empresas estatais mediante o processo de privatização e amealhou
parcelas expressivas do fundo público em função da dívida dos Estados. Devas-
tou os serviços públicos, como a saúde, a educação e o saneamento. Na ânsia
de acumular a qualquer custo, a selvageria neoliberal desmantelou as redes de
proteção social, destruiu parcela importante da biodiversidade, das florestas,
contaminou o solo e os rios e até mesmo o ar que respiramos.
O resultado desse processo foi a precarização no mundo do trabalho, a re-
dução da massa salarial, o empobrecimento de largas parcelas da população,
a dificuldade para acessar os serviços públicos, especialmente a educação e a
saúde, e uma concentração de renda obscena, na qual 1% da população mun-
dial detém a mesma riqueza que os 99% restantes.14 Em outros termos, por trás
das ações e do discurso neoliberal, evidentemente, estava a ação da oligarquia
financeira e do grande capital para se apropriar dos recursos públicos e da
renda expropriadas dos trabalhadores pelas contrareformas.
Mas as falácias neoliberais se transformaram em conto de fadas com a crise
sistêmica que emergiu em 2008, cujos resultados colocaram em cheque toda a
agenda neoliberal e sua narrativa teórica. Os gestores do capital, sem a menor
sem cerimônia, recorreram alegremente ao Estado para salvar do colapso os
bancos e as grandes empresas. Todo o velho discurso do livre mercado, da efi-
ciência da iniciativa privada, da maldição do Estado foi abandonado, enquanto
os Bancos Centrais colocavam montanhas de dinheiro para salvar o sistema.
Mas quem imaginava que as classes dominantes iriam tirar lições do fracasso
do neoliberalismo e da gravidade da crise, deve ter ficado bastante decepciona-

14 ROUBEN, Anthony. 1% da população global detém a mesma riqueza que


os 99% restantes, diz estudo. BBC News, 18 jan. 2016. Disponível em: ht-
tps://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_
62 oxfam_fn. Acesso em: 20 maio. 2020.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
do porque o que se verificou posteriormente foi o aprofundamento das políti-
cas neoliberais, agora mais agressivas e depredadoras que no período anterior.
Os gestores do capital retomaram, também sem a menor sem cerimônia, o
discurso da austeridade, dos ajustes fiscais, do corte dos gastos públicos, dos sa-
lários, da necessidade das privatizações, além do controle da política econômica
dos governos, para efetivar mais reformas trabalhistas e previdenciárias e maior
saque ao fundo público. Como se tratava de medidas ainda mais impopulares
que as do período anterior, pelos impactos dramáticos sobre os trabalhadores, a
juventude e a população mais pobre, e que tenderiam a gerar reação dos traba-
lhadores, as classes dominantes mundiais resolveram radicalizar as restrições às
liberdades democráticas, a partir da eleição de dirigentes fundamentalistas de
direita ou mesmo se aliando a bandos fascistas para manter a ordem. Na prática,
as liberdades democráticas se tornaram um obstáculo às políticas neoliberais
em todo o mundo. Como se pode observar desde 2009, aumentou a brutalidade
contra as manifestações populares, a criminalização dos movimentos sociais e
a perseguições a líderes sindicais, populares e dirigentes políticos de esquerda.
Na crise atual o processo se repete em bases ampliadas. Sob o argumento
de que o Coronavirus, e não as contradições do capitalismo, é a origem da
atual crise, os bancos centrais do mundo inteiro e dos países centrais em
particular, especialmente o dos Estados Unidos, liberaram novamente uma
quantidade de recursos para bancos e grandes empresas semelhante à crise
passada, agora com paz na consciência, pois aparentemente a crise teria ori-
gem a partir de um elemento exógeno ao sistema. O FED já avisou que a ajuda
ao sistema econômico não terá limites. Pelos cálculos de diversas fontes, até
gora já foram emitidos mais de US$ 20 trilhões pelos bancos centrais em todo
o mundo. Na maior parte dos países e, especialmente nos Estados Unidos, o
dinheiro recebido a taxas de juro praticamente zero tem se destinado muito
mais à especulação do que ao sistema produtivo como no passado.
Os bancos, grandes fundos e grandes empresas com acesso a esses recursos
estão preferindo comprar ações nas bolsas e investir em negócios especulativos.
As grandes corporações estão recomprando suas próprias ações. O próprio FED
tem resgatado dívida de empresas em dificuldades financeiras e adquirido títulos
tóxicos. Essa farra com dinheiro criado do nada explica o paradoxo do aumento
das cotações das Bolsas de Valores no momento em que a crise mais se agrava. En-
quanto isso, a população pobre e desamparada, que agora ficou visível para todos,
recebe apenas uma ínfima parte do botim destinado ao grande capital. Cada vez
mais fica claro também o papel do Estado não só como instrumento, mas especial-
mente como organizador coletivo dos interesses das classes dominantes.

63
o futuro, nº1
O significado político da crise
Mas essa crise veio também colocar na ordem do dia algumas velhas questões
da economia política a muito esquecidas pelas classes dominantes e por certa
esquerda reformista, que se acomodou no marxismo bastardo, na gestão pre-
tensamente humana do capitalismo e nos encantos do poder político burguês.
Nada como uma grande crise para colocar a realidade da luta de classes no posto
de comando. O primeiro grande significado político desta crise é muito especial:
só os trabalhadores criam o valor. A riqueza criada no sistema capitalista não é
resultado da habilidade gerencial dos gestores do capital, nem das máquinas e
equipamentos e muito menos do espírito empreendedor dos capitalistas: a úni-
ca forma de criação de riqueza no capitalismo é o trabalho humano. Como já
definia Engels em seu trabalho “A humanização do macaco pelo trabalho” onde
define com clareza a importância do trabalho para o ser humano: “O trabalho é
a fonte de toda a riqueza, afirmam os economistas, e o é de fato, ao lado da natureza,
que lhe fornece a matéria prima por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente
mais que isso. É a condição fundamental de toda a vida humana. E o é num grau tão
elevado que, num certo sentido, pode-se dizer que o trabalho, por si mesmo, criou o ho-
mem”.15 Poderíamos dizer que o trabalho é tão importante que, se a humanidade
deixasse de trabalhar, a espécie humana se extinguiria, pois deixariam de existir
bens e serviços para a satisfação das necessidades humanas.
E o velho Marx já dizia que as mercadorias têm valores porque são a crista-
lização do trabalho social.16 E ainda no primeiro capítulo de O Capital, citando
um panfleto anônimo escrito possivelmente entre 1739 ou 1740, muito antes de
Adam Smith, já enfatizava claramente que o valor de todas as mercadorias é re-
sultado do trabalho socialmente necessário do ser humano. “É apenas a quan-
tidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente
necessário para a produção de um valor de uso que determina a grandeza de
seu valor ... Uma quantidade maior de trabalho constitui, por si mesma, uma
maior riqueza material”.17 Nessa crise a vida se encarregou mais uma de provar
essa verdade da economia política: quando os trabalhadores ficaram em casa,
em função da pandemia, ou quando as empresas demitiram por causa da crise,
a economia entrou em colapso. Os capitalistas, em desespero, se articularam

15 ENGELS, Friedrich. A humanização do macaco pelo trabalho. In: ENGELS,


Friedrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
16 MARX, Karl. Salário, preço e lucro. São Paulo: Edipro, 2004.
17 Cf. MARX, Karl. O Capital: livro I. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 117-123.
Nessa passagem Marx cita um panfleto anônimo que possivelmente tenha
sido escrito em 1739 ou 1740 que naquela época já afirmava o seguinte;
“O valor deles (os meios de subsistência) quando são trocados uns pelos
outros, é regulado pela quantidade de trabalho necessariamente requerida
64 para a sua produção e geralmente nela empregada”.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
de todas as formas com o Estado para pressionar os trabalhadores a voltar ao
trabalho. Nada mais claro, objetivo e pedagógico do que o que estamos presen-
ciando nesses tempos de pandemia para provar que só os trabalhadores são os
responsáveis pela criação da riqueza em nosso planeta. Os capitalistas só po-
dem se apropriar do mais-valor e acumular riquezas se passar pelo processo de
produção. Sem isso, trata-se apenas de riqueza fictícia que será esterilizada nas
crises. Por mais que os capitalistas queiram abstrair essa realidade, para eles
dolorosa, por mais que a propaganda burguesa busque desviar a atenção para
esta verdade cristalina, os capitalistas não podem escapar à lei do valor. Bom,
também agora se torna mais fácil argumentar com mais precisão: se os traba-
lhadores são os responsáveis pela criação da riqueza, por que essa riqueza é
apropriada, em sua maior parte, pelos capitalistas e não pelos trabalhadores?
A essa pergunta e sua necessária resposta as forças de esquerda têm a obriga-
ção de explicar para os trabalhadores tanto agora quanto no pós-pandemia.
A crise também demonstrou a enorme superioridade dos serviços públi-
cos de saúde em relação aos serviços privados. Nos países com sistemas pú-
blicos e com dirigentes que obedeceram as recomendações da Organização
Mundial da Saúde, da ciência, dos infectologistas as perdas humanas foram
bem menores do que naqueles em que o os dirigentes ignoraram o perigo da
pandemia. Nos países em que os serviços de saúde são privados, como nos
Estados Unidos, e epidemia avançou avassaladoramente e, neste momento,
os Estados Unidos se tornaram campões mundiais de mortalidade e de in-
fectados pelo coronavirus. Ao contrário da principal economia do mundo,
a China, Vietnã e Cuba demonstraram muito mais eficiência no combate e
controle da doença. A China, primeiro país onde o vírus apareceu, tomou to-
das as medidas de precauções, com o isolamento social de regiões inteiras, a
mobilização nacional de pessoal, recursos e medicamentos para combater a
pandemia. O pequeno Vietnã também foi exemplar na mobilização e organi-
zação da sociedade no combate ao vírus, da mesma forma que Cuba. Mesmo
boicotada selvagemente, também mobilizou recursos, pessoal e medicamen-
tos para proteger a população e vencer a doença. E ainda enviou médicos
para dezenas de países para contribuir na luta contra a pandemia, mesmo
em países, como a Itália, que participa do boicote a Cuba. Esses fatos reve-
lam, de um lado, que as economias com planejamento e sistemas públicos
de saúde, têm mais condições de intervenção em larga escala no combate a
pandemias do que as economias privadas, onde o lucro se sobrepõe às neces-
sidades humanas. Por isso, muitos morrem em frente aos hospitais porque
não têm dinheiro para pagar um leito. Além disso, os governos capitalistas
são mais maleáveis a pressões do capital para retomar os negócios do que os
governos de economias planificadas. Como se pode constatar, muitas vezes
esses governos autorizaram a abertura das atividades econômicas e logo de- 65
o futuro, nº1
pois foram obrigados a voltar às medidas de distanciamento social em função
da retomada da doença, mas nesse vai e vem muitas pessoas morreram.
A crise também desmoralizou mais uma vez o discurso neoliberal sobre
austeridade, ajustes fiscais, cortes nos gastos, privatizações e escancarou de
maneira didática as mentiras que diariamente os meios de comunicação vei-
culavam para impor aos trabalhadores, à juventude e ao povo pobre das peri-
ferias a agenda neoliberal radicalizada das classes dominantes globais. Eles
diziam que os Estados estavam quebrados e endividados e que era necessário
reduzir o déficit público; que não tinham recursos suficientes para pagar as
aposentadorias e os funcionários públicos, uma vez que a máquina pública
estava inchada; que o Estado estava gastando muito com saúde educação e sa-
neamento; que as empresas públicas eram mal geridas e ineficientes e que era
necessário deixar o mercado funcionar em todas as áreas da vida social porque
o mercado alocaria os recursos escassos de maneira mais eficiente; que era
necessário a austeridade nas contas públicas, porque do contrário haveria um
desequilíbrio fiscal e uma escalada inflacionária. A partir dessa narrativa, des-
truíram as redes de proteção social, reduziram os gastos sociais, sucatearam
os serviços públicos e avançaram sobre os direitos dos trabalhadores. Quando
veio a crise, esse discurso desmoronou: rapidamente apareceram aos os re-
cursos para salvar os bancos e grandes empresas, os bancos centrais emitiram
montanhas de dinheiro para comprar dívidas e títulos tóxicos de corporações
endividadas e até sobrou uma pequena parte para a população mais pobre. De
uma hora para outra, todos se transformaram em radicais keynesianos, de-
fensores da intervenção do Estado para salvar a economia do colapso e até
da renda básica para a população pobre. Acabou o discurso de que a inflação
explodiria se o Estado gastasse mais do que arrecadava. Mas todos devem ficar
atentos: tão logo acabe a pandemia, eles voltarão cinicamente com os mesmos
discursos como se nada tivesse acontecido.

Para onde vai a crise?


Qualquer previsão sobre as consequências da crise pode ser apenas um exercício
de imaginação, mas traçar tendências e cenários possíveis pode contribuir para
compreendermos melhor o significado desta crise para o sistema capitalista e
as prováveis consequências econômicas e sociais para os trabalhadores e a ju-
ventude. Mas é importante também realizarmos um exercício prospectivo sobre
as consequências políticas da crise, seus possíveis desdobramentos em termos
de movimentos sociais, bem como os impactos na geopolítica tanto nos países
centrais quanto nos países periféricos. Podemos dizer que o mundo pós-pande-
66
mia, apesar dos desejos e manipulações das classes dominantes e seus meios de

Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa


comunicação, não será o mesmo para o sistema capitalista. A história tem nos
ensinado que todas as grandes crises desencadeiam fenômenos econômicos,
sociais e políticos novos e inesperados - e essa não será diferente. Antes de ana-
lisarmos os possíveis desdobramentos da crise, é importante atentarmos para
dois elementos macroestruturais que permeiam o desenvolvimento da conjun-
tura no pós-pandemia e um político-social que poderá emergir desse processo:
a) a questão geopolítica, envolvendo a disputa entre China e Estados Unidos, o
papel da Rússia e as mudanças geopolíticas que poderão ocorrer no próximo pe-
ríodo; b) a recessão profunda nos países centrais e, especialmente, nos Estados
Unidos, além, da possível desarticulação do sistema monetário internacional e
do poder do dólar como moeda mundial; c) a possibilidade de revoltas sociais
em várias regiões do planeta em função das condições sociais e da desigualdade
nos países capitalistas. Essas três variáveis influenciarão de maneira decisiva a
ordem internacional construída em Breton Woods e poderemos ter uma transi-
ção de hegemonia, que pode ocorrer de maneira ordenada ou a partir da guerra,
bem como a possibilidade de rupturas da velha ordem em vários países.

Antes da pandemia a China já vinha exercendo um papel central na eco-


nomia mundial, tornando-se a segunda maior economia do planeta, muito
embora já seja a primeira em termos de paridade do poder de compra.18 A
China hoje é a maior parceira comercial da Ásia, tem intensificado forte-
mente suas relações econômicas com a África e avança no relacionamento
com a Europa e América Latina. Após a construção do projeto da nova rota
da seda, um instrumento que interligará as relações comerciais dos chine-
ses com dezenas de países de vários continentes, a China tem se destacado
também nas áreas das tecnologias de ponta, como a internet 5G, satélites
e a computação quântica. Esse desenvolvimento tem despertado certo de-
sespero dos Estados Unidos, tanto que a principal empresa de tecnologia
da informação chinesa, a Huawei, que está desenvolvendo a tecnologia 5G
alguns anos à frente dos Estados Unidos, vem sendo objeto de perseguição
e boicote em vários países por pressões dos Estados Unidos. Com o fim da
pandemia, a disputa pela hegemonia da economia mundial será intensifi-
cada, especialmente porque a China já superou a doença há alguns meses
e está retomando as atividades econômicas, enquanto os Estados Unidos
estão mergulhados na crise sanitária e também numa crise econômica e
social profundas. A conjuntura pós-pandemia com certeza tende a redu-
zir a hegemonia norte-americana e fortalecer o papel da China como séria
candidata a se tornar, num futuro não muito distante, a primeira economia
do mundo, fato que terá consequências geopolíticas bastante fortes na or-
18 Método alternativo à avaliação pela taxa de câmbio, formulado pelo economista sue-
co Gustav Cassel, que busca aferir o poder de compra real na moeda de cada país. 67
o futuro, nº1
dem econômica e política internacional. Não se pode prever qual será a
reação dos Estados Unidos diante dessa nova conjuntura porque, ao longo
da história, as mudanças de hegemonia sempre foram realizadas a partir de
tensões políticas, econômicas e guerras. Mas a guerra não é um dado defi-
nitivo, porque a China possui armas nucleares capazes de atingir os Estados
Unidos e, ultimamente, tem realizado uma aliança estreita com a Rússia,
que tem paridade estratégica em armas nucleares com os norte-america-
nos. Uma guerra nessas condições seria uma catástrofe que poria em risco
a própria existência da espécie humana. De qualquer forma, está horizonte
próximo uma transição tensa de hegemonia na economia mundial.
A crise econômica nos Estados será muito mais grave que primeira erupção
em 2008 e possivelmente semelhante ou maior que a grande depressão dos
anos 30. Os cálculos realistas indicam que o Produto Interno Bruto do País
deverá cair para cerca de -10%, o desemprego poderá atingir 50 milhões de
trabalhadores, dezenas milhares de empresas irão à falência em praticamen-
te todos os setores da economia, especialmente nas áreas de comércio e de
serviços e, num ritmo um pouco menor, na área produtiva. Com as empresas
indo á falência os bancos também serão impactados fortemente em função
da cadeia de dívidas que atinge empresas e consumidores. Além disso, a crise
não será intensa apenas em 2020: a principal economia mundial continuará
em crise por muitos anos, pois as taxas de juros já estão praticamente nega-
tivas e não têm mais para onde baixar; os recursos que os bancos centrais
estão destinando ao sistema econômico estão encontrando um ambiente
encharcado de dinheiro. Os bancos não vão emprestar para as empresas pro-
dutivas porque estas não têm demanda suficiente para absorver a produção,
em função da queda na renda da população. Só numa conjuntura dessa or-
dem se pode explicar a inflação dos ativos financeiros enquanto a economia
desaba: os grandes conglomerados e os próprios bancos estão recompran-
do suas próprias ações; No caso dos Estados Unidos, mesmo que o Tesou-
ro continue resgatando as dívidas empresariais e comprando títulos tóxicos
das grandes companhias e bancos, essa prática tem um limite. Em outros
termos: essa farra em algum momento vai acabar tanto em função da cha-
mada armadilha da liquidez,19 quanto no momento em que um elo forte na
cadeia de crédito e das dívidas for quebrado. O que resultará dessa conjun-
tura será a quebra de grandes empresas, calote de dívidas, queda nos preços
dos ativos financeiros e os próprios grandes bancos também irão à bancarro-
ta porque nenhum setor pode permanecer imune a uma crise dessa ordem.

19 Conceito keynesiano no qual, quando a economia encontra-se numa situação em


que as taxas de juros se encontram em zero ou próximas de zero, e a política mone-
tária se torna inócua, ou seja, não adianta injetar dinheiro na economia porque não
68 se alcançará nenhum resultado expressivo.
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
b1) Uma economia em frangalhos, com fundamentos destroçados, não
pode ter uma moeda com o privilégio exorbitante de poder imprimir di-
nheiro sem um lastro em sua base material. Ou como diz Eichengreen: “O
Bureal of Engravind and Printing (a casa da moeda dos Estados Unidos) gas-
ta apenas alguns cents para produzir uma nota de US$ 100, mas os outros
países precisam fornecer US$ 100 em bens e serviços para obter a mesma
nota de US% 100”.20 Realmente, essa é uma artimanha muito mais vantajo-
sa que os antigos e melhores negócios da China. Mas esse privilégio pode
também acabar com a crise. Se observarmos os fundamentos da economia
norte-americana veremos uma situação aterradora: o déficit em conta cor-
rente21 está acima de 4,5% do PIB, a dívida pública por volta dos 100% do
produto, há ainda enorme dívida dos Estados e Municípios, dos consumi-
dores, dos estudantes e das empresas.22 A infraestrutura do País está aos
frangalhos, a economia em queda livre, bem como o mercado de trabalho.
Esse conjunto de adversidades vai se refletir na confiança internacional do
dólar, afinal uma economia com esse conjunto de problemas, embora seja a
maior economia do mundo, com o maior poder militar, e a emissora do di-
nheiro mundial, em algum momento os investidores podem decidir aban-
donar o barco e deixar de financiar o déficit dos Estados Unidos. Necessário
lembrar que a força e a hegemonia de uma moeda são os fundamentos da
nação emissora. Em outros termos: caso ocorra o enfraquecimento do dólar
as nações irão procurar outra moeda para realizar suas transações comer-
ciais e nenhum País vai querer comprar títulos de um País em bancarrota.
Os bancos centrais vão querer desfazer-se de suas reservas em dólar, afinal
nenhuma nação quer ter suas reservas baseadas numa moeda desvalori-
zada. Não se pode esquecer que cerca de 65% do comércio mundial é feito
em dólar, mas isso pode também mudar rapidamente numa grande crise,
especialmente se levarmos em conta a ascenção da China e se a sua nova
criptomoeda – o yuan digital – for aceita pelos parceiros comerciais da Chi-
na para suas transações comerciais. Numa situação dessa ordem teríamos
uma desarticulação do velho sistema financeiro internacional e a constru-
ção de um novo sistema possivelmente baseado numa cesta de moedas.

20 EICHENGREENN, B. Privilégio exorbitante: ascenção e queda do dólar e o futuro


do sistema monetário internacional. Rio de Janeiro: Campus, 2010.
21 A conta-corrente envolve a balança comercial de um país, a balança de serviços,
além das transferências unilaterais.
22 Os números oficiais indicam uma dívida pública de US$ 21 trilhões. Mas, cálculos do
economista Laurence Kotlikoff, da Universidade de Boston e ex-economista senior do
Conselho de Economistas do presidente Reagan, indicam que a dívida de longo prazo dos
Estados Unidos, incluindo os passivos dos seguros sociais, do Medicare, Medicaid, estu-
dantes consumidores, (inclusive levando em conta a arrecadação de impostos no perío-
do), atinge 222 trilhões. Confira o blog The end of the American Dream, de Michael Snyder. 69
o futuro, nº1
A terceira das grandes questões que esta crise está impondo ao sistema
capitalista é uma espécie de imponderável em construção, onde todas as
possibilidades estão abertas. Vale lembrar que as grandes crises são o mo-
mento da verdade para todos: governos, partidos políticos, movimentos so-
ciais e populares. Nesses períodos todos são obrigados a expor com clareza
suas ações, projetos, comportamentos, opiniões e a própria conjuntura se
encarrega de definir o rumo dos acontecimentos e aferir quais as propostas
que tinham aderência à realidade e quais estavam incorretas. Crises des-
sa dimensão cobram um alto preço pelos erros dos agentes econômicos,
sociais e políticos. Nesses momentos, os acontecimentos são velozes, a
conjuntura muda bruscamente. Aquilo que parecia impossível em dias an-
teriores se torna realidade cotidiana no dia seguinte. Para o senso comum,
é como se o mundo estivesse virando de cabeça para baixo. Mas é assim
mesmo. São essas conjunturas que abrem as janelas de oportunidades para
as grandes mudanças – no caso dessa crise tanto para os nossos inimigos
de classe quanto para os trabalhadores. Geralmente, as pessoas temem as
crises pela imponderabilidade e pela desagregação que ocorre com a velha
ordem, afinal é mais cômodo se conviver com a normalidade. Mas à medida
em que a velha ordem vai sendo derrotada e a nova ordem estabelecida, a
maioria toma conhecimento das vantagens objetivas dos novos tempos e
então se coloca em movimento para conseguir seus objetivos. Casso seja
orientada por uma direção política consequente e com objetivos estra-
tégicos, podem construir a nova ordem num patamar bastante superior.

c1) As grandes manifestações nos Estados Unidos são resultado das contra-
dições profundas que vinham se acumulando nessa sociedade desde o final
dos anos 70. A morte de George Floyd foi apenas o estopim que acendeu a
revolta que estava madura na sociedade. Estas manifestações podem ser
a senha para levantes em várias regiões do planeta, inclusive na Europa e
na América latina, pois os problemas revelados pela crise são semelhan-
tes em todas as partes do mundo capitalista. Além disso, as manifestações
nos Estados Unidos possuem um valor simbólico: estão sendo realizadas no
coração do sistema capitalista. O choque psicológico que a sociedade nor-
te-americana está sentindo com os problemas revelados dramaticamente
pela crise terá um impacto profundo na consciência das massas (tanto no
curto quanto no médio prazo), especialmente na população mais pobre e
na juventude, para a qual ficou claro que o discurso vendido pelas classes
dominantes era uma mentira longamente cultivada pelos meios de comuni-
cação. O rei se encontra completamente despido: o País das liberdades, das
oportunidades, que se comportava como palmatória do mundo para impor
70 os seus valores, agora não consegue proteger a saúde da população diante
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
de uma pandemia, enquanto países muito mais pobres controlaram a doen-
ça. Em outras palavras, quando a ira popular emergir das ruínas dessa crise
o coração da maior cidadela imperialista vai bater num compasso descon-
trolado. Mesmo antes da pandemia já se podia sentir um grande desconten-
tamento entre os trabalhadores dos Estados Unidos, tanto que ano passado
ocorreram várias greves na categoria dos professores, nos trabalhadores
de cadeias de fast food e anteriormente as manifestações dos jovens do Oc-
cupy Wall Street. Portanto, as manifestações que estamos assistindo agora
podem ser apenas a ponta de um iceberg em direção ao Titanic. Mas não
basta a revolta pura e simples contra o racismo, a brutalidade policial e as
desigualdades. O sistema é muito forte e pode absorver, cooptar, dividir e
derrotar o movimento. Vale lembrar que o Occupy chegou a se organizar em
cerca de 60 cidades e se dissolveu por falta de objetivos políticos estratégi-
cos. Portanto, se as manifestações não evoluírem para propostas políticas
para mudar o sistema, mediante a construção de uma organização politica,
baseada em forte movimento de massas organizado, pode-se novamente
perder uma grande oportunidade histórica.
O acirramento das lutas de classe em caráter mundial

Portanto, estamos diante de uma conjuntura em que haverá, no pós-pande-


mia, um acirramento da luta de classes em caráter mundial. Como avaliarmos
em trabalhos anteriores, a luta de classes só ganhará um caráter internacional
quando atingir o coração do imperialismo – os Estados Unidos, a Europa e o
Japão. Nos elos débeis dos países periféricos também ocorrerão jornadas ex-
traordinárias de lutas porque o imperialismo, ferido em seu próprio território,
não terá a mesma força para impor sua hegemonia ao resto do mundo, até
mesmo porque está emergindo da crise um competidor à altura desse momen-
to histórico. O mundo viverá uma nova conjuntura com grande lutas de massas
nos Estados Unidos, na Europa e, especialmente, na América Latina, onde os
levantes sociais já vinham ocorrendo antes mesmo da pandemia, como no Chi-
le, Equador e Colômbia. Mas aqui no lado de baixo do equador, onde a luta de
classes terá um papel decisivo será no Brasil, tanto pela dimensão geográfica
e populacional do País, quanto pelo tamanho da economia, do proletariado e,
fundamentalmente, pelo acúmulo de contradições sociais do País.
A burguesia e seu principal aliado estratégico, o Estado, irão articular es-
tratégias de todas as formas para conter as revoltas sociais, tanto pela repres-
são aberta e generalizada, criminalização dos movimentos sociais e populares,
quanto por métodos mais sofisticados de desinformação, cooptação e manipu-
lação dos meios de comunicação. A retórica deverá ser a mesma: o Estado gas-
tou muito com a pandemia, está quebrado, e todos precisam fazer sacrifícios
para que se encontre o equilíbrio fiscal, como forma de garantir a estabilidade 71
o futuro, nº1
econômica, a retomada do crescimento e dos empregos. Mas a tendência é
que esse discurso tenha poucas chances de convencer a maioria da população
porque a realidade da crise terá sido tão violenta que pode neutralizar essa
velha catilinária, ao mesmo tempo em que a própria experiência prática das
massas nesse período pode gerar um efeito pedagógico muito mais relevante
para desmoralizar e deslegitimar um discurso que vem se repetindo a cerca de
40 anos e que só serviu para concentrar renda, reduzir os salários e aumentar
a pobreza em todo o mundo.
Não se pode afirmar com certeza qual deverá ser o desfecho de curto e mé-
dio prazo no próximo período, mas algumas hipóteses podem ser exploradas:
a) caso as manifestações no coração do sistema capitalista (Estados Unidos)
se mantenham, o ritmo da luta de classes nas outras regiões será muito mais
intenso, tanto pelo exemplo, quanto pelo próprio enfraquecimento do impe-
rialismo mundial; b) independentemente do que ocorra em termos de lutas
sociais nos países centrais, a luta de classes na América Latina se intensificará
se maneira extraordinária porque a paciência das massas com a política neo-
liberal está esgotada, o que já vinha sendo demonstrado no período anterior à
pandemia. Agora, com a devastação social provocado pelas políticas neolibe-
rais, escancaradas e intensificadas para a população com a pandemia, a luta de
classes na região será muito mais intensa e violenta que nos outros continen-
tes, tanto pela feroz resistência das classes dominantes, viciadas na barbárie
social e na exclusão dos trabalhadores das decisões econômicas e políticas,
quanto pela disposição dos trabalhadores, da juventude e do povo pobre das
periferias em mudar o estado de coisas na América Latina. Vale lembrar que
nas grandes crises as massas realizam um aprendizado rápido (e a pandemia
está contribuindo muito para isso), o estado de ânimo das massas muda rapi-
damente. Fenômenos que pareciam impossíveis se tornam realidade. Como
quase todos os governos da região se alinharam com a política neoliberal e se
comportaram de maneira criminosa em relação à pandemia, poderão sair da
crise desmoralizados junto à população, perderão força política e terão poucas
opções além de reprimir barbaramente a população esfomeada e raivosa nas
ruas ou serem derrubados pelos movimentos sociais. Tudo depende do papel
que as direções politicas revolucionárias terão nessa conjuntura. Como sou um
otimista histórico, torço para que a segunda opção se transforme em realidade.

72
O Poema Pedagógico
Soviético para
a Juventude
Revolucionária
Vinícius Okada M. M. D’Amico1

“A juventude de todo planeta está conosco


Nossa brigada global de construção!
A batalha está em curso novamente
O coração está ansioso no peito
E Lênin é jovem uma vez mais
E o novo Outubro está adiante!”2

Princípios da Escola Única do Trabalho

A
discussão acerca da escola socialista e do papel da juventude
revolucionária nessa questão, partindo da crítica contra a insu-
ficiência da escola tradicional capitalista e das palavras de or-
dem pela educação pública e gratuita, é de longa data. Marx na Crítica do
Programa de Gotha, não só salienta a necessidade de um programa edu-
cacional independente da classe trabalhadora, deixando explícita a cen-
tralidade da autodireção do proletariado nesse processo, mas também,
diante da reivindicação por uma “educação popular universal e igual sob
incumbência do Estado”, diz

Educação popular igual? O que se entende por essas palavras?


Crê-se que na sociedade atual (e apenas ela está em questão
aqui) a educação possa ser igual para todas as classes? Ou se
exige que as classes altas também devam ser forçadamente
reduzidas à módica educação da escola pública, a única
compatível com as condições econômicas não só do
1 Vinícius Okada M. M. D’Amico é graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Insti-
tuto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos e militante da UJC e do PCB
na cidade de São Paulo.
2 Trecho da música soviética de 1974 “E a batalha está em curso novamente”, compos-
73
ta por Aleksandra Pakhmutova e escrita por Nikolai Dobronravov. Tradução livre.
o futuro, nº1
trabalhador assalariado, mas também do camponês?
[…]
O parágrafo sobre as escolas devia ao menos ter exigido
escolas técnicas (teóricas e práticas) combinadas com
a escola pública. Absolutamente condenável é uma
‘educação popular sob incumbência do Estado’. Uma coisa
é estabelecer, por uma lei geral, os recursos das escolas
públicas, a qualificação do pessoal docente, os currículos,
etc., e […] outra coisa muito diferente é conferir ao Estado
o papel de educador do povo! O governo e a igreja devem
antes ser excluídos de qualquer influência sobre a escola. No
Império prussiano-alemão […] é o Estado que, ao contrário,
necessita receber do povo uma educação muito rigorosa.
(MARX, 2012, p. 45-46)

Já aqui se faz presente a afirmação de que a escola socialista deve es-


tar estruturada pelos problemas fundamentais de nossa sociedade, bem
como pelos interesses objetivos da classe trabalhadora. A pedagogia revo-
lucionária não pode se valer unicamente dos métodos e instrumentos das
classes dominantes para a edificação de sua escola. A educação das massas
sob o capitalismo visa centralmente a reprodução da força de trabalho sob
condições mínimas de subsistência material e espiritual. Ou seja, a edu-
cação burguesa, é estruturada para “promover a escravidão espiritual das
massas” (KRUPSKAYA, 2017). Ela não se volta para os problemas reais da
sociedade, justamente porque sob a ditadura de classe da burguesia, a edu-
cação visa a atender os interesses objetivos dessa classe, em detrimento da
classe trabalhadora. Formam-se técnicos estreitos para o trabalho social
alienado capitalista. Por isso não basta reformarmos a educação capita-
lista, não basta trabalharmos sob seus ditames e estruturas para forjar o
homem novo, é preciso suprassumir tais condições.
A construção da escola socialista é a construção da sociedade socialista e
do novo homem socialista. Dessa forma, temos que ter claro que a escola para
o ensino e a educação somente em sala de aula são não apenas insuficientes,
mas antagônicos com os interesses da revolução. Assim afirma Krupskaya so-
bre a construção da escola socialista na União Soviética

[A]ntes, a família dava para a criança a educação geral para o


trabalho, ensinava a criança a trabalhar; agora, pelo fato de o
trabalho ser exercido cada vez mais fora de casa, esta função
de educar a criança para o trabalho deve ser tomada pela
74 escola. A escola baseada no ensino torna-se economicamente
O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico
impensável. Sem se preocupar com o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar da nova geração, ela reduziria o
montante das forças produtivas do país.

[…]

O comunismo pressupõe uma organização racional e


sistemática da produção. Não se deve perder nenhuma força,
nenhum talento.
(KRUPSKAYA, 2017, p. 84)

Portanto, podemos afirmar que a pedagogia socialista não pode se res-


tringir à sala de aula e ao ensino puramente teórico nem tecnicista. Ela deve
educar as novas gerações para as tarefas da atualidade e, mais do que isso,
para transformarem e intervirem diretamente na atualidade. A escola deve
ser um ponto de síntese dessa atualidade, nos dizeres de Pistrak; a produção
social e as determinações de nossa sociedade devem “desembocar” na Escola
Única do Trabalho, não de maneira passiva, mas sim através de uma cons-
trução ativa, forjando através do trabalho, da coletividade e integração com a
produção social a nova sociedade porvir.
Construir a Escola Única do Trabalho é também combater o intelectua-
lismo vazio e o abstracionismo pedagógico liberal sobre a juventude e o
processo pedagógico. Os processos idealizados, a romantização da criança
e do jovem, as pré-concepções abstratas, a pedagogia individualista do au-
todesenvolvimento, afastam a juventude da atualidade, da realidade concre-
ta, e fecham-na em seu imediato particular e ideológico.
O desenvolvimento da pedagogia socialista, assim como afirmam os mes-
tres soviéticos com que trabalhamos aqui, deve forjar uma base teórica e prá-
tica nova e sólida para o enfrentamento revolucionário contínuo exigido pela
história. Se a pedagogia capitalista visa a formar uma juventude servil, explo-
rada e materialmente e espiritualmente pobres, a pedagogia socialista deve
formar uma juventude sobre as bases concretas da realidade, da atualidade, e
a escola deve estar inserida no processo histórico do real, inserida de maneira
organizada, e identificar-se com ele, e transformá-lo, através de uma integra-
ção teórica e prática com o conhecimento da dinâmica do real. Assim afirma
Makarenko sobre a superação de qualquer concepção estreita de pedagogia

Sempre fui contra a ideia de que a pedagogia se estrutura


no estudo da criança e dos métodos de educação isolados,
abstratamente idealizados. Considero que a educação
é a expressão do credo político do professor e que seus 75
o futuro, nº1
conhecimentos têm um caráter auxiliar.
[…]

A habilidade pedagógica pode ser levada a um grau


de perfeição próximo à técnica. […] Insisto em que os
problemas da educação, sua metodologia, não podem ficar
limitados aos procedimentos de ensinar, principalmente
porque o processo educativo não se conclui na sala de
aula, mas continua em cada metro quadrado de nossa
terra. A pedagogia precisa dominar meios de influência tão
universais e poderosos que, quando nosso educando tropece
em qualquer influência nociva, inclusive as mais poderosas,
estas possam ser dominadas e liquidadas por nossa
influência. Portanto, de modo algum podemos imaginar que
o trabalho educativo somente possa ser exercido em classe.
Ele dirige toda a vida do aluno.
(MAKARENKO, 2017, p. 317)

Assim, podemos definir que a Escola Única do Trabalho se estrutura


a partir de três eixos fundamentais: uma análise concreta da realidade
concreta de modo ortodoxamente marxista, recusando qualquer idealis-
mo, dogmatismo e abstracionismo e guiando-se pela estrutura da atuali-
dade, conforme definida por Pistrak como o conhecimento integral das
estruturas a serem desenvolvidas pela revolução social em curso e contra
a fortaleza do capitalismo imperialista; a centralidade pedagógica do tra-
balho, ou seja, a educação estruturada pela produção social, que permi-
te a provisão de concretude, domínio e transformação do conhecimento
através de métodos científicos; a autodireção da juventude através dos
interesses objetivos de classe do proletariado através do “domínio orga-
nizado da vida” (PISTRAK, 2013).
Mas é necessário nos aprofundarmos a respeito da centralidade do traba-
lho na pedagogia socialista. A escola não deve formar, como no capitalismo,
jovens especialistas em um só ramo de produção, ou estruturar-se a partir da
concepção tecnicista limitada. A Escola Única do Trabalho deve ter um cará-
ter Politécnico justamente para fundamentar na educação a estrutura global
da produção. O trabalho, assim, é colocado como instrumento pedagógico
central na formação completa da juventude a partir da plena consciência,
domínio e prática do trabalho social em sua estrutura completa. Somente
dessa maneira a escola integra-se com a sociedade e acompanha seu desen-
volvimento social, histórico e cultural. É este o significado de uma escola que
76 dirige toda a vida do aluno. Conforme diz Krupskaya
O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico
A tarefa da escola politécnica não é preparar um especialista
estreito, mas uma pessoa que entenda toda interligação dos
diferentes ramos de produção, o papel de cada um deles, as
tendências de desenvolvimento de cada um deles; preparar
uma pessoa que saiba o que e por que algo deve ser feito
em cada momento, em uma palavra, preparar o dono da
produção, no sentido verdadeiro desta palavra. Isso de
um lado. Por outro lado, a escola politécnica deve educar,
ao mesmo tempo, um estudante e um participante ativo
desta produção. Ela deve equipá-lo com a capacidade de
aproximar-se corretamente de cada trabalho, de aprender
durante o processo de trabalho, de trabalhar de forma
consciente e criativa, de aplicar o conhecimento teórico a
prática, de orientar-se rapidamente no trabalho.
(KRUPSKAYA, 2017, p. 86)

O trabalho se coloca para a escola em sua dimensão social totalizante. Não


se coloca como mero demonstrativo ou experimentação laboratorial. Não se
educa a partir de processos laborais, demonstrações ou fragmentos da produ-
ção. Mas sim em sua plenitude. Só assim se pode ter o conhecimento de toda
a cadeia global da produção e, mais ainda, integrar-se a ela, a partir de uma
prática realmente transformadora, não no sentido do desenvolvimento indi-
vidual, mas sim em sua dialética social. Deve, portanto, ser a Escola Única do
Trabalho. Essa é sua verdadeira dimensão transformadora.
Dessa forma, podemos agora colocar de maneira clara, a Escola Única do Traba-
lho não só dirige toda a vida do aluno, mas também os alunos, em sua coletividade
organizada, devem dirigir toda a vida da Escola. Uma educação ativa não é somente
fundamentada pela centralidade do trabalho na pedagogia, mas também, em igual
proporção, pela auto-organização da juventude na escola. Superar qualquer noção
de passividade, de caráter meramente de ouvintes dos educandos, no sentido de
se construir uma coletividade forte, sólida, permanente, que tenha sobrevida para
além do processo pedagógico, mas para a vida, para formação da nova sociedade, só
é possível através da autodireção dos educandos. A juventude deve dirigir não só sua
própria vida, mas a vida orgânica da Escola. É na coletividade organizada que reside
o germe da nova sociedade. Assim como afirma Krupskaya:

Na escola de ensino a atividade do estudante se reduz a


escutar e memorizar aquilo que o professor falou. A essência
da vida escolar, portanto, fica mutilada e pobre. A criança
não tem como exercitar a organização. Outra coisa é a
escola do trabalho. Ela pressupõe que a criança não apenas 77
o futuro, nº1
ouça e memorize. Ela observa, pergunta, faz experiências,
trabalha criativamente. A vida escolar é cheia de movimento
e emoção.
[…] É preciso repensar como cada um organiza, articula e
constrói. Repensar isto exige não só uma pessoa, mas todo o
conjunto. A vida exige esta discussão conjunta, exige união
de forças, exige divisão trabalho. É impossível pensar a
escola do trabalho sem auto-organização. E nós vemos por
toda parte onde que se cria uma escola do trabalho, cria-se
também a auto-organização escolar.
(KRUPSKAYA, 2017, p. 121-122)

Contra o intelectualismo vazio


Um dos aspectos mais fundamentais da pedagogia socialista é o combate a
todo tipo de abstracionismo e idealismo fantasiado de teoria revolucionária e
transformadora. O mundo das pré-concepções moralistas é um mundo sedu-
tor e influente, mas inútil para se estudar e implementar qualquer metodologia
realmente revolucionária e transformadora na prática. Assim como afirmam
Makarenko e Pistrak, a pedagogia socialista só pode se estruturar a partir da
máxima leninista da análise concreta da realidade concreta. A Escola Única do
Trabalho só pode ser construída se responder às determinações e contradições
do processo histórico e social de que é parte atuante.
Sobre isso, levantam-se contra todos os preceitos idealistas e românticos da
análise da criança e do jovem. Terminologias e conceitos que não passam de
moralismo disfarçado de teoria pedagógica séria. A necessidade do “autode-
senvolvimento” da criança, da “autodisciplina”, da formação “livre” e “espon-
tânea” da criança para florescer sua personalidade própria nada mais é que
uma pedagogia nociva que coloca em primeiro âmbito o método individualis-
ta. Esconde, muitas vezes sob vocabulários revolucionários, uma teoria não
mais avançada que o liberalismo iluminista e, pior, a recusa da coletividade e
do trabalho social como centrais na formação dos educandos. Os limites desse
rebaixamento são visíveis pela prática e pela nulidade de tais preceitos, assim
como diz Makarenko

Nos céus, e mais próximo deles, nas alturas do “Olimpo”


pedagógico, qualquer técnica pedagógica na área da
educação propriamente dita era considerada heresia.
Nos “céus”, a criança era vista como um ser recheado de
78 um gás de composição especial, para o qual ainda nem
O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico
houve tempo de inventar um nome. De resto, isso devia ser
aquela mesma velha alma, sobre a qual já se exercitavam
os apóstolos. Presumia-se (hipótese operativa), que esse
gás possuía a virtude do autodesenvolvimento, bastasse
não mexer com ele. Sobre isto, muitos livros já foram
escritos, mas todos eles, essencialmente, apenas repetiam os
pronunciamentos de Rosseau:
“A infância deve ser encarada com veneração…”
“Temei interferir na natureza…”
O dogma principal desse credo consistia que, nas condições
de tal veneração e cautela perante a natureza, o gás acima
mencionado deveria inevitavelmente produzir o crescimento
de uma personalidade comunista. Na realidade, nas
condições da natureza pura, crescia somente aquilo que
naturalmente poderia crescer, isto é, meras ervas daninhas —
mas isto não preocupava ninguém: aos habitantes celestes só
eram caros princípios e ideias.
(MAKARENKO, 2005, p. 559-560)

Contra a ideologia vinda das “alturas do Olimpo”, Pistrak responde enfaticamente

Continuamente nos recrimina[m]: “Vocês coagem a criança,


vocês desconsideram completamente os interesses de uma dada
idade, vocês esquecem a biogênese; a ciência afirma que a criança
de uma certa idade interessa-se por isso ou aquilo, mas vocês
colocam para ela a política e a revolução social. Isto é questão de
adultos. A criança crescerá e por si mesmo aprenderá.”
[…]
Estas características gerais do cérebro da criança são apenas
a forma na qual se fundem os seus interesses, preenchida
pela vida externa, pela vida do ambiente social da criança,
a forma na qual entra um conteúdo determinado. Este
conteúdo, em nenhum grau, depende de características
fisiológicas do cérebro em desenvolvimento; ele, por inteiro,
é o reflexo de fenômenos externos da vida.
Eis por que a escola tem o direito de falar sobre a formação e a
orientação dos interesses da criança em um determinado sentido.
Nós não vemos nenhuma razão porque a escola deva aceitar o
psiquismo da criança e seus interesses atuais, que são produto
das mais variadas influências do meio e da vida —influências
sem nenhuma organização e frequentemente contraditórias 79
o futuro, nº1
umas com as outras —, como os dados dos quais ela deva partir
e neles basear seu trabalho, e não tentar, por si, tomar em suas
mãos se possível a maioria destas influências, organizá-las
numa determinada direção e fundamentar seu trabalho com
a criança já em base ao que a escola dominou e domina. Nós,
evidentemente, ficamos com a segunda.
[PISTRAK, 2013, p. 119]

E ainda citando Pistrak, para efeito de conclusão:

Pois a escola não é algo absoluto como ainda pensa o


magistério na pedagogia pré-revolucionária; a escola não pode
ter objetivos absolutos de formação, objetivos perenemente
dados de criação da personalidade harmônica abstrata; a
escola não tem também imanentemente os caminhos que
se desenvolvem na ciência sobre a criança (psicologia,
pedagogia) para realização destes objetivos. A escola sempre
foi, e não poderia deixar de ser, reflexo do seu século, sempre
respondeu àquelas exigências as quais um determinado
regime político-social colocou para ela e, se ela não respondeu
ao regime de seu tempo, então não pôde ficar viva.
(PISTRAK, 2013, p. 111)

Portanto, o intelectualismo vazio não é só impotente para derrotar as influên-


cias persistentes do capitalismo, mas trata-se, propriamente, de uma ideologia
atrasada e perniciosa edificada sobre o método individualista da educação, que
erode a ideia central da coletividade como matriz da formação da nova socie-
dade e desarma a juventude de seus instrumentos e potenciais revolucionários.
Quando falamos da auto-organização escolar e da centralidade pedagógica
do trabalho social, tratamos de uma teoria que responda às exigências de nos-
so tempo, das exigências impostas pela construção da revolução social, que ne-
cessita ser extraída fundamentalmente da prática, da construção político-pe-
dagógica cotidiana. Uma teoria que fundamente a síntese dos conhecimentos
e culturas da história humana e as organize, na práxis, de modo a forjar coleti-
vamente no seio da nova sociedade a formação sólida do novo homem por vir.

80
A organização do processo educativo

O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico


A única tarefa organizativa digna da nossa época pode ser a
criação de um método que, sendo comum e único, permita
simultaneamente que cada personalidade independente
desenvolva suas aptidões, mantenha a sua individualidade e
avance pelo caminho das suas vocações.
(MAKARENKO, 2017, p. 220)

Assim define, em síntese, Makarenko a respeito da metodologia para a


organização do processo educacional. Esse é o princípio norteador do que
chamamos de auto-organização escolar. Uma metodologia que coloque o
educando como parte ativa e viva da escola. Fazendo-o ter papel funda-
mental em cada momento, em cada tarefa, por mais básica que seja, da
vida escolar. Envolvendo num só coletivo sólido educandos e educadores,
com papéis distintos, claro, mas transformando-os como ativos edificado-
res do coletivo organizado de suas vidas.
Sobre isso, Pistrak afirma

[A] auto-organização dos estudantes, deve, em concordância


com nossa ideia básica, estender-se à participação ativa das
crianças na construção da sua escola.
Se nós queremos criar pessoas que conscientemente
se relacionem com suas obrigações sociais, elas devem
claramente compreender suas necessidades; mais que isso,
elas próprias devem estabelecê-las e livre e voluntariamente
subordinar-se a elas. Em igual medida, isto diz respeito à
escola. É impossível imaginar-se na escola uma autodireção
correta, segura, e que atinge seus objetivos, se as crianças
não são chamadas para a organização ativa de todos os
aspectos da vida escolar. […] A tese sobre a escola única do
trabalho, desta forma, chama as crianças para a construção
da escola. No fundo, este chamamento deve ser mais amplo.
Os objetivos e tarefas da escola devem ser claramente
percebidos pelas crianças, elas devem compreender e aceitar
como seus os métodos de trabalho escolar, mas o principal
— devem sentir que eles próprios, juntos com os camaradas-
pedagogos mais experientes criam sua escola, constroem sua
vida, seu centro.
(PISTRAK, 2013, p. 124)
81
o futuro, nº1
A auto-organização escolar é definida de maneira objetiva por Makarenko
e possui uma semelhança clara com a organização do proletariado revolucio-
nário nos sovietes, bem como da tradição leninista de organização política. A
centralidade da coletividade auto-organizada deve ser o que Makarenko cha-
ma de destacamentos3. Núcleos de educandos pouco numerosos (não mais de
quinze, segundo ele) em que se distribuem alunos de todas as faixas etárias. O
sistema de destacamentos a do trabalho na fábrica como base organizativa da
coletividade escolar, são assim definidas por Pistrak

[O] trabalho na fábrica deve conduzir-se da seguinte forma:


toda a produção divide-se numa série de processos específicos
e todos os jovens passam através de todos os processos num
período determinado de tempo; assim, depois de tudo isso
se atinge o conhecimento na arte de toda a produção. Ao
mesmo tempo, em ligação com o trabalho deste ou daquele
departamento, realiza-se uma excursão em uma ou outra
fábrica semelhante para a familiarização com as formas mais
acabadas (ou mesmo menos acabadas) de produção.
[…]
[A] escola não deixa de ser de formação geral. Do ponto
de vista educativo, o esquema proposto dá amplitude para
familiarização da criança com o domínio dos métodos
científicos da pesquisa e do trabalho autônomo, porque uma
fábrica e um ramo da indústria é tomado, não como uma
especialização profissional, mas como exemplo, como um
grande fenômeno, no qual eles, de forma mais concreta,
aprendem a enfocar todos os aspectos da vida. A escola não
perde de vista nenhuma das tarefas da escola politécnica —
encontrar os caminhos de sua realização em ligação com o
eixo fundamental da sua vida.
A fábrica não é vista pela escola apenas como um objeto de
estudo, objeto de ilustração para cada curso. A fábrica é uma
ampla porta para a vida; através desta porta para a vida, ela
introduz-se na escola de forma organizada, reúnem-se todos
os seus aspectos positivos e que elevam o desenvolvimento
das crianças. A fábrica é também um meio de formação

3 A palavra destacamento se refere a um termo militar utilizado durante a Revolução


Russa. Conforme descreve Makarenko, a guerra de guerrilhas na Ucrânia foi con-
duzida, na falta de regimentos e divisões mais organizadas, unicamente através dos
destacamentos (um só destacamento podia conter de centenas a mesmo milhares
82 de homens).
O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico
política e de fortalecimento da visão de mundo marxista das
crianças. Portanto, a significação principal da fábrica está
em que ela é um princípio organizador na vida das crianças,
impulsionador dos seus interesses: ela deve unir as crianças
e desenvolver nelas a vontade coletiva, organizá-los.
(PISTRAK, 2013, p. 132-13)

A passagem, apesar de longa, é primordial. Pois, em síntese com o método


organizativo escolar de Makarenko, fundamenta a base dialética da Escola Única
do Trabalho, cujos pilares são o trabalho e a auto-organização. Ambas não se dão
em separado, como instâncias e determinações distintas. Mas, pelo contrário, são
correlatas. O trabalho auto-organizado e a auto-organização através do trabalho
são o cerne da vida orgânica da Escola Única do Trabalho. E mais, são também
os fundamentos primordiais da pedagogia socialista na formação de uma juven-
tude com determinados hábitos trabalhados, determinada consciência elevada,
e determinado conhecimento amplo e geral da sociedade, que verdadeiramente
se constitui como uma educação sólida, no sentido de expulsar qualquer elemen-
to nocivo que futuramente se apresente diante dos educandos. Verdadeiramente
formar para a vida através da contribuição direta para com a revolução social em
curso. Enfim, uma formação voltada para a nova sociedade que floresce.

Conclusão: a grande montanha a se escalar

A manhã nos recebeu com um céu totalmente cinzento


e uma chuvinha mole e traiçoeira, que às vezes se
reforçava e regava a terra, como um regador, e depois
recomeçava a espirrar silenciosamente. Não havia
qualquer esperança de sol.
Na casa branca me aguardavam os colonistas já prontos
para a marcha e olhavam atentamente para a expressão
do meu rosto, mas eu coloquei propositadamente uma
máscara pétrea, e logo começou a se fazer ouvir de
diversos lados o irônico lembrete:
— Não ganir!
[MAKARENKO, 2005, p. 383, grifos meus]

Assim como lembra Lênin no memorável texto “Sobre escalar uma grande
montanha e o perigo do desânimo” (LÊNIN, 2020), o processo revolucionário
é um caminho longo e tortuoso, de altos e baixos, períodos calmos e períodos 83
o futuro, nº1
turbulentos. Ser revolucionário não é somente ter a tarefa de construir a revo-
lução durante toda a sua vida, mas é a de construir a sua vida através do dever
revolucionário. Assim como expressa a máxima: “antes deixar de ser, do que
deixar de ser revolucionário”.
O que a luta revolucionária de Krupskaya, Makarenko e Pistrak nos ensi-
na vai de acordo com as lições de Lênin no texto citado. O caminho rumo ao
cume da montanha é árduo; às vezes há de se descer um bocado para poder
subir mais habilmente por outro caminho. Há vitórias e derrotas e o processo
é longo. Mas o desânimo e a melancolia não podem tomar parte nessa luta. A
melancolia é um sentimento paralisante, e a paralisia é inútil e contrarrevolu-
cionária.
Os percalços inúmeros de se construir a Escola Única do Trabalho na União
Soviética após a guerra civil revolucionária só pode ser contada através dos
retratos literários emocionantes dos heróis soviéticos, como o caso de Poema
Pedagógico de Makarenko. Mas seu legado histórico permanece e mostra o ca-
minho para a juventude revolucionária, sem jamais esmorecer, assim como
diz Krupskaya

[O] comunista deve sempre guiar-se pelos interesses do


comunismo. O que isso significa? Isto significa, por exemplo,
que mesmo se quisesse ficar em condição costumeira e
acolhedora de conforto doméstico, pela causa, pelo sucesso
da causa comunista, deveríamos largar tudo e ir para um
lugar mais perigoso; é isso que o comunista faz. Isto significa
que, por mais difícil e importante que seja a tarefa colocada
ao comunista, uma vez necessário, o comunista toma a
tarefa e tenta resolvê-la com o melhor de sua capacidade e
habilidade; vai para o front da guerra […].
(KRUPSKAYA, 2017, p. 93)

A pedagogia socialista não somente edifica teoricamente as bases funda-


mentais da nova Escola Única do Trabalho, mas também instrumentaliza e
arma a juventude revolucionária em sua luta contínua contra a “escravidão
espiritual” legada pela educação do capital e rumo a emancipação humana.

84
REFERÊNCIAS

O Poema Pedagógico Soviético para a Juventude Revolucionária, d’amico


KRUPSKAYA, N. K. A construção da pedagogia socialista. São Paulo. Expressão Popular,
2017.
LÊNIN, V. I. Sobre escalar uma grande montanha e o perigo do desânimo. LavraPalavra,
16 mar. 2020. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2020/03/16/sobre-escalar-uma-
grande-montanha-e-o-perigo-do-desanimo/. Acesso em: 25 maio. 2020.
MAKARENKO, A. S. Poema Pedagógico. São Paulo: Editora 34, 2005.
MAKARENKO, A. S. Vida e obra: a pedagogia na revolução. São Paulo. Expressão Popu-
lar, 2017.
MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. São Paulo. Boitempo, 2012.
PISTRAK, M. M. A escola-comuna. São Paulo. Expressão Popular, 2013.

85
86
Juventude e
revolução: um
ensaio sobre as
lutas da juventude
pelo socialismo no
século XXI
Gabriel Lazzari1

É
parte da maioria dos movimentos políticos, pelo menos desde o começo do
século XX, setores ou organizações voltados ao trabalho entre a juventude.
Muitas vezes vista ao lado da classe trabalhadora, no caso dos partidos ope-
rários, comunistas, socialistas e social-democratas, a juventude tem sido tratada
como um setor da sociedade específico e, ao mesmo tempo, integrado à dinâmica
social – ora compartilhando interesses com outros setores, ora tendo seus próprios.
O que pretendo com esse ensaio é esboçar alguns pontos fundamentais do
debate sobre a juventude, buscando compreender, brevemente, (a) o que é a ju-
ventude; (b) seu lugar no modo capitalista de produção; (c) o tratamento dado
à juventude especificamente pelo movimento comunista; e (d) as potenciali-
dades desse grupo nos processos de lutas de classes, ao lado do proletariado,
na construção da Revolução Socialista (no Brasil e no mundo) no século XXI.

O que é a juventude e qual é o seu lugar no


modo capitalista de produção?
Compreender o que é a juventude exige que nos aproximemos do objeto de for-
ma gradativa, buscando suas determinações na dinâmica real da sociedade em
que vivemos. Considerando a partir do senso comum, podemos começar com a
ideia de que a “juventude” é uma discriminação etária de determinadas pessoas.
Assim sendo, a depender do critério, podemos entender a juventude como uma
1 Gabriel Lazzari é professor de Língua Portuguesa em São Paulo – SP. Ocupa atual-
mente a Secretaria Política Nacional da União da Juventude Comunista e é membro
do Comitê Regional do PCB em São Paulo.
87
o futuro, nº1
faixa que se estende dos 15 ou 16 anos até os 30. Claro que esse é um critério ab-
solutamente impreciso. Ele oferece uma aproximação inicial porque ajuda a dis-
tinguir, em momentos diversos da história humana, quais atividades a juventude
exercia. Grosso modo, essa etapa considerada como “juventude” compreende
dois mundos: o da escolarização (em seus diversos níveis) e/ou o do trabalho.
Se vasculharmos a história do capitalismo e dos direitos trabalhistas, veremos
que até meados do século XIX a divisão etária poderia ser feita de outra forma:
com 8 ou 9 anos, as crianças já adentravam o mundo do trabalho regular, em ativi-
dades que exigiam tamanhos menores que os dos adultos, como setores da mine-
ração, limpeza de chaminés etc. Nesse momento, não havia condições de escola-
rização de massa das classes trabalhadoras, com a exceção ocasional das escolas
paroquiais, ligadas às igrejas, com uma educação moral e religiosa. Ainda hoje,
temos uma imensa parcela de crianças e adolescentes que trabalham, a despeito
de diversas leis e tratados internacionais que tentem impedir essa prática.
A escolarização de toda a sociedade, por sua vez, remonta ao período ilu-
minista, da burguesia em ascensão, que via uma necessidade de impor uma
escolarização universal – meta defendida, por exemplo, na Revolução France-
sa. Nos países centrais do capitalismo, a escolarização massiva das crianças e
adolescentes de todas as classes alcançou certo grau de universalização apenas
a partir do fim da Segunda Guerra Mundial; na periferia do sistema, ainda há
muitos países em que essa escolarização não foi atingida.
Assim sendo, temos uma certa fluidez entre os três critérios (idade, mun-
do do trabalho e mundo da escolarização) que ajuda a nos aproximar do que
é a juventude. É preciso reafirmar, no entanto, que essa categorização não
prescinde da análise da classe desses jovens: jovens de famílias burguesas
têm uma inserção no mundo produtivo como herdeiros dos grandes mono-
pólios (e mesmo das pequenas empresas) e, posteriormente, como capita-
listas eles mesmos; jovens da classe trabalhadora, por outro lado, não só
contam com pouca ou nenhuma herança (em geral, não na forma de meios
de produção, mas de meios de consumo) como também inserem-se mais
cedo no mundo do trabalho. Isso é importante notar, considerando que, no
âmbito do movimento revolucionário, a juventude está tão bem definida
por sua classe quanto qualquer outro setor específico.

O papel da juventude no movimento


comunista
O papel da juventude no movimento comunista vem de longe. Desde o século
XIX, já havia na Europa algumas organizações de juventude, ainda sem o vín-
88 culo direto com a luta dos trabalhadores. É fundamentalmente a partir da or-
Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas da juventude pelo socialismo no século XXI, lazzari
ganização da Internacional Socialista da Juventude, em 1907, que a organização
dos jovens a partir dos partidos socialistas e social-democratas da Europa come-
ça a dar um salto. A tarefa fundamental que se colocavam era de aproximar o
movimento dos jovens (tanto trabalhadores quanto estudantes) do movimento
operário que vivia um momento de grande pujança, especialmente por meio do
grande partido operário da Europa, o Partido Social-Democrata da Alemanha.
No entanto, já desde a virada do século XIX para o XX, uma forte corren-
te de oposição à visão majoritária do movimento operário se destacava por
buscar retomar o ímpeto revolucionário que havia se perdido nesses grandes
partidos operários da Europa central. Nessa corrente, estavam figuras como
Vladimir Lênin, Karl Liebknecht, Rosa Luxemburg, Clara Zetkin etc. As di-
vergências envolviam o papel da agitação política e da luta econômica dos
partidos, sua posição frente aos governos burgueses, a posição dos partidos
frente ao movimento operário, entre outras. Essa batalha teórico-política se
acirrou a partir do começo da Primeira Guerra Mundial, em que a maior par-
te dos partidos da Internacional Socialista fizeram alianças “nacionais” com
as burguesias de seus países, enquanto essa corrente minoritária defendia a
negação completa da Guerra Mundial como posição proletária e a adesão a
“transformar a guerra imperialista em guerra civil”.
Curiosamente, a posição majoritária da Internacional Socialista de Ju-
ventude (ISJ), tirada em maio de 1917, foi contrária à dos partidos corres-
pondentes. A resolução foi de repúdio à guerra. O conteúdo dessa declara-
ção veio de um histórico de posicionamentos antimilitaristas e antiguerra
tomados pela ISJ nos anos anteriores. Lênin observa isso em seu texto A
propaganda antimilitarista e as Ligas de Jovens Trabalhadores Socialistas, de
Outubro de 1907, no jornal bolchevique Vperyod

Recorde-se que o Congresso Socialista Internacional em


Stuttgart discutiu a questão do militarismo e, em conexão
com ele, a questão da propaganda antimilitarista. A resolução
adotada sobre o assunto diz, em parte, que o Congresso
considera um dever das classes trabalhadoras “ajudar a
trazer os jovens da classe trabalhadora criados com um
espírito de irmandade internacional e socialismo e imbuídos
de consciência de classe”. O Congresso considera isso
como sério, porque faz com que o exército deixe de ser um
instrumento cego nas mãos das classes dominantes, que eles
usam como bem entendem e que podem direcionar contra o
povo a qualquer momento.

89
o futuro, nº1
É muito difícil, às vezes quase impossível, realizar
propaganda entre soldados em serviço ativo. A vida no
quartel, a supervisão rigorosa e as raras licenças tornam
o contato com o mundo exterior extremamente difícil; a
disciplina militar e o cuspe absurdo e o polimento acobardam
o soldado. Os comandantes do exército fazem tudo o que
podem para tirar o “absurdo” dos “brutos”, purificá-los de
todo pensamento não convencional e toda emoção humana
e instilar neles um senso de obediência cega e um ódio
selvagem e impensado por “internos” e Inimigos “externos”
... É muito mais difícil abordar o soldado solitário, ignorante
e intimidado que está isolado de seus semelhantes e cuja
cabeça foi recheada com as visões mais loucas de todos os
assuntos possíveis do que esboçar jovens de idade que vivem
com suas famílias e amigos e estreitamente ligados a eles
por interesse comum. Em todos os lugares, a propaganda
antimilitarista entre jovens trabalhadores produziu
excelentes resultados. Isso é de tremenda importância. O
trabalhador que ingressa no exército como social-democrata
consciente de classe é um apoio fraco aos poderes que o são.

Existem ligas de jovens trabalhadores socialistas em todos


os países europeus. Em algumas, por exemplo, na Bélgica,
na Áustria e na Suécia, essas ligas são organizações de larga
escala que realizam trabalhos responsáveis. Obviamente,
o objetivo principal das ligas juvenis é a autoeducação e a
elaboração de uma perspectiva socialista distinta e integrada.
Mas as ligas juvenis também realizam trabalhos práticos.
Eles lutam por uma melhoria na condição dos aprendizes
e tentam protegê-los da exploração ilimitada por seus
empregadores. As ligas dos jovens trabalhadores socialistas
dedicam ainda mais tempo e atenção à propaganda
antimilitarista. 2

Assim, o vínculo muito próximo entre esses jovens trabalhadores que eram
(e ainda são) recrutados para as guerras imperialistas mais cruentas, nas quais
combatem outros trabalhadores, recrutados em outros países em condições

2 Tradução livre de LENIN, V. I. Anti-Militarist Propaganda and Young Socialist


Workers’ Leagues. In: LENIN, V. I. Lenin Collected Works. v. 41. Moscow: Progress
Publishers, 1977. p. 204-207. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/Lê-
90 nin/works/1907/oct/08.htm.
Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas da juventude pelo socialismo no século XXI, lazzari
similares, pode ser compreendido como um grande motivo pelo qual a Inter-
nacional Socialista de Juventude manteve sua posição firme de ser contra a
guerra imperialista. Também o vínculo, desde o princípio, com algumas figu-
ras que posteriormente comporiam a ala antiguerra do movimento operário
internacional pode ser visto como um motivo: Karl Liebknecht, que foi pos-
teriormente assassinado a mando da social-democracia alemã, foi o primeiro
presidente da Internacional Socialista de Juventude, em 1907.
Já durante a guerra, a Internacional Socialista de Juventude operou uma
política antimilitarista em boa parte dos países da Europa

Nos países beligerantes, onde as atividades antiguerra


estavam proibidas, jovens corajosamente empreenderam
trabalho clandestino, contribuindo assim para a luta da
classe trabalhadora contra a guerra imperialista travada por
seus governos burgueses.

Uma amarga luta também se desenvolveu nos países neutros,


que também contou com grupos burgueses influentes
demandando a proibição de propaganda, passeatas e
manifestações antiguerra. Tanto nos países beligerantes
quanto nos neutros, as organizações de juventude
conquistaram grande sucesso através de suas várias
atividades.3

Exemplos como esse puderam ser vistos na Itália, na Suíça, na França, na


Espanha, nos EUA e em outros diversos países. O movimento de juventude,
com a exceção de lugares em que os partidos “social-chauvinistas” mantive-
ram um controle político sobre sua linha, mantinha-se decididamente contra
a guerra imperialista.
Apesar disso, como o próprio movimento operário em nível internacional
se cindia em torno dessa questão, também os partidos que se opunham à polí-
tica da burguesia imperialista (e dos partidos social-democratas que mudavam
de lado para apoiá-las) começaram a organizar-se em bloco para cindir com a
Internacional Socialista. Essa cisão futuramente levaria à fundação da Interna-
cional Comunista (ou III Internacional) em 1919, liderada sobretudo por Lênin
e pelo partido bolchevique. Nesse processo, Lênin buscou se aproximar do que
ainda havia da ISJ, sobretudo através da revista Jugend Internationale, demons-
trando apreço pelo que ele via como “intenso ódio pelos traidores do socia-

3 Tradução livre de PRIVALOV, V. V. The Young Communist International and its Ori-
gins. Moscow: Progress Publishers, 1971. Disponível em: https://archive.org/details/
TheYoungCommunistInternationalAndItsOrigins/. 91
o futuro, nº1
lismo”, ou seja, uma crítica similar à sua, uma crítica mordaz à Internacional
Socialista. No próprio processo revolucionário russo, de fevereiro a outubro,
inúmeras organizações de juventude, ainda dispersas, foram fundadas no país
– algumas inclusive com o nome de “Terceira Internacional”, já antevendo o
esforço de reagrupamento dos partidos operários sob a bandeira do interna-
cionalismo proletário e do socialismo revolucionário.
A fundação da Terceira Internacional, a Internacional Comunista, mudou a
face do movimento operário em todo o mundo. Lênin afirmou em seu artigo A
Terceira Internacional e seu lugar na história4

A III Internacional recolheu os frutos do trabalho da II


Internacional, amputou a parte corrompida, oportunista,
social-chauvinista, burguesa e pequeno-burguesa, e começou
a implantar a ditadura do proletariado.

A aliança internacional dos partidos que dirigem o


movimento mais revolucionário do mundo, o movimento do
proletariado para a derrubada do jugo do capital, conta agora
com uma base mais sólida do que nunca: várias Repúblicas
Soviéticas, que transformam em realidade, em escala
internacional, a ditadura do proletariado, a vitória deste
sobre o capitalismo.

A importância histórica universal da III Internacional, a


Internacional Comunista, reside em que começou a levar à
prática a consigna mais importante de Marx, a consigna que
resume o desenvolvimento do socialismo e do movimento
operário, durante um século, a consigna expressada neste
conceito: ditadura do proletariado.

Esta previsão genial, esta teoria genial está se transformando


em realidade.

Era o fim de um processo intenso de luta teórica e política dentro do movi-


mento operário, que chegava a um processo de reorganização em torno de outro
centro político. Mas, se para o movimento operário em geral foi a culminância de
uma grande caminhada desde a Associação Internacional de Trabalhadores (ou
Primeira Internacional, existindo de 1864 a 1872), para o movimento de juventu-
de, era apenas o começo de uma história ainda recente, que se iniciara em 1907.
4 LENIN, V. I. A Terceira Internacional e seu lugar na história. Arquivo Marxista, 6 mar.
92 2020. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/Lênin/1919/04/15.htm.
Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas da juventude pelo socialismo no século XXI, lazzari
O próprio Partido Comunista (Bolchevique) não tinha uma organização de juven-
tude correspondente, tendo aventado a possibilidade de organizá-la desde agosto
de 1917, só sendo possível fundar, finalmente, a União da Juventude Comunista,
vinculada ao Partido Comunista da Rússia em 1918, depois do Primeiro Congresso
das Ligas da Juventude de Trabalhadores e Camponeses de Toda a Rússia.
O impacto dessa criação tardia, no entanto, fez-se logo perceber na fundação,
em sequência, da Internacional Comunista da Juventude (ICJ). A fundação desse
organismo, mesmo que apoiada na vitória da Revolução de Outubro e no surgimen-
to da Terceira Internacional, não foi simples ou desprovida de polêmicas. Logo se
vislumbrou que a principal divergência (sobretudo entre organizações comunistas
de juventude dos países ocidentais em oposição à União da Juventude Comunista
russa) era sobre a independência das organizações de juventude dos partidos co-
munistas – polêmica assentada no fato de que, desde o começo da Primeira Guerra
Mundial, uma parte grande das organizações de juventude havia crescido em opo-
sição aos partidos “oficiais”, cheios do oportunismo da Segunda Internacional. A
fragilidade teórico-política fez com que essas organizações não percebessem que
nos países em que os partidos “oficiais” estavam ainda mantendo o movimento
dos trabalhadores sob influência teórica do oportunismo, essa atitude era mais do
que justa – era necessária –; mas que nos países em que já havia um partido comu-
nista ligado às concepções da Terceira Internacional, essa posição era infrutífera
e prejudicial. Assim, o impacto de uma obra como Esquerdismo, doença infantil
do comunismo, de Lênin, teve grande valia: disputou a ICJ para a linha leninista
que buscava aliar-se politicamente com os partidos comunistas já depurados do
oportunismo, mantendo a independência organizativa – marca que permaneceu
(e permanece até hoje) na juventude do movimento comunista.
Outros dos principais debates foram sobre o apoio às lutas dos países coloniais
e semicoloniais; a organização dos jovens trabalhadores nos locais de trabalho;
e o movimento antimilitarista e antiguerra, vínculo indissociável com o interna-
cionalismo proletário advogado pelo movimento comunista internacionalmente.
O começo da organização da juventude no movimento comunista contou
com uma série de polêmicas importantes, que definiram a configuração da
relação entre as organizações de juventude e os partidos comunistas nos diver-
sos países. Assim, de meados dos anos 1920 até, pelo menos, o fim da Terceira
Internacional, mas possivelmente até os dias de hoje, o trabalho das organiza-
ções comunistas de juventude foi um trabalho sempre em íntimo vínculo com
o trabalho dos partidos comunistas. Essa é uma das conclusões fundamentais,
porque afasta a possibilidade (“autonomista”, digamos) de pensar um movi-
mento comunista exclusivamente de juventude, que não esteja vinculado ao
movimento comunista em geral. Como já expressei anteriormente, isso impe-
de a unificação e a centralização necessária de um partido comunista forte e
capaz de sintetizar toda a totalidade da realidade dele. 93
o futuro, nº1
A contrarrevolução dos anos 1990 e os
impactos no paradigma da luta dos
trabalhadores

Com essa aproximação teórica e essa retomada histórica, o que me cabe agora
é tentar esboçar, em linhas gerais, as potencialidades e limites da atuação po-
lítica da juventude na luta pela Revolução Socialista no século XXI. Se coloco
o problema apenas no nosso século é porque, em que pese a possibilidade (e
talvez necessidade) de uma análise mais abstrata sobre o papel da juventude no
movimento revolucionário desde sempre, enfocar nos nossos problemas mais
candentes é uma necessidade imperiosa, porque só ela pode nos fazer avançar
na luta concreta nas realidades diversas em que estamos.
A primeira questão que se apresenta é sobre o estado do movimento comu-
nista no século XXI. É fundamental levarmos em conta que vivemos, ainda, sob
a marca da contrarrevolução operada no final da década de 1980 e começo da
década de 1990, quando um grande conjunto de países socialistas e democra-
cias populares retornaram a uma etapa anterior do desenvolvimento humano,
voltando ao capitalismo. Um balanço preciso das causas desse processo não é o
meu objetivo aqui, mas muitas análises podem dar respostas sobre isso5. O im-
pacto posterior do processo, que ainda vivemos, foi imenso: diversos partidos
comunistas se desfizeram, outros mudaram de nome (aderindo acriticamen-
te a perspectivas reformistas e social-democratas) e a grande experiência de
construção do socialismo em nível global sofreu um baque. Países como Cuba
e a Coreia Popular tiveram imensas dificuldades para manter suas condições
de vida e desenvolvimento durante a década de 1990, sobrevivendo, no entan-
to, com a firmeza em um projeto societário de superação do capitalismo.
Apesar dessas experiências pontuais, a hegemonia que se afirmou a partir
da contrarrevolução na União Soviética, culminando em 1991 com a dissolução
dela, teve um impacto ideológico imenso no movimento dos trabalhadores. Um
profundo revisionismo histórico passou a ser operado por diversas organizações,
partidos políticos e intelectuais. Como já mencionado por mim em outro artigo:

[…] A ideologia capitalista, por diversos meios, se fez


presente nos anos 1990, buscando construir um novo
consenso mundial: o socialismo seria não apenas indesejável,

5 Sugiro fortemente a leitura do artigo O Movimento Comunista no século XX, de Do-


menico Losurdo (disponível em: https://pcb.org.br/portal2/96/o-movimento-comu-
nista-no-seculo-xx/) e o documento Socialismo: Balanço e Perspectivas, resultado
do XIV Congresso do Partido Comunista Brasileiro (disponível em: https://pcb.org.
94 br/portal/docs1/texto7.pdf).
Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas da juventude pelo socialismo no século XXI, lazzari
mas impossível. A melhor expressão disso foi a obra do
ideólogo burguês Francis Fukuyama, “O fim da história e o
último homem”, em que defendia, tendo em vista os eventos
da virada dos anos 1980 para os 1990, que a democracia
liberal (burguesa) seria o ponto culminante da história da
humanidade e qualquer alternativa seria impossível.

Muitos, à direita e à esquerda, fizeram coro a essa tese. A


história teria de fato chegado a seu fim e o ideal comunista seria
enterrado junto com o século XX. À direita, a “terceira via” de
Tony Blair e Bill Clinton, governantes dos centros imperialistas,
era a solução – um capitalismo neoliberal com migalhas de
políticas sociais; no espectro “oposto”, a “nova esquerda”
buscava criar “acúmulos de força” por dentro da democracia
burguesa para pautar uma “resistência” à ordem capitalista
por meio de medidas distributivas e uma singela participação
política. Ao fim e ao cabo, a semelhança entre elas revelou a
similaridade do pensamento liberal que as fundamentou.6

Isso significou uma grande mudança de paradigma da luta social para os tra-
balhadores e para a juventude no mundo todo. Se, durante boa parte do século
XX, o paradigma contestatório ao capitalismo era a organização de uma revo-
lução que passasse o poder político para as mãos do proletariado e do campe-
sinato pobre (mesmo em momentos em que esse paradigma não foi articulado
corretamente na compreensão das necessidades objetivas das lutas de classes),
na virada para o século XXI, o paradigma havia se alterado para perspectivas de
acúmulo de forças por dentro do Estado, medidas redistributivas mínimas, dog-
mas macroeconômicos gerais para as políticas nacionais, entre outras diversas
ilusões burguesas e pequeno-burguesas sobre as perspectivas de luta do prole-
tariado pelo fim da exploração do seu trabalho. Não é objeto da minha exposi-
ção, aqui, as múltiplas determinações que confirmam, na realidade, que esse
paradigma “novo” não apenas representa uma posição de classe diversa da do
proletariado e que o paradigma do marxismo revolucionário continua vigente.
O que importa é observar, aqui, que essa mudança de paradigma corres-
ponde à confusão teórico-prática que imperou sobre a humanidade por causa
da contrarrevolução dos anos 1990. Se, antes, havia uma referência globalmen-
te reconhecida para a construção do socialismo – e, portanto, para as tarefas
que são necessárias para os trabalhadores tomarem o poder político –, agora

6 LAZZARI, Gabriel. As lutas da juventude no século XXI: devemos ainda ser leninis-
tas?. União da Juventude Comunista, 22 abr. 2020. Disponível em: https://ujc.org.br/
as-lutas-da-juventude-no-seculo-xxi-devemos-ainda-ser-leninistas/. 95
o futuro, nº1
(desde os anos 1990), essa referência foi desbancada de seu estado de amplo re-
conhecimento para um estado de marginalidade. Contribuiu para esse estado
de marginalidade, também, um sem número de formulações teórico-políticas
de matriz idealista ainda durante o século XX: um “certo” marxismo galgou
espaço dentro das instituições acadêmicas, mal disputando com correntes fi-
losóficas que nada mais eram do que a expressão ideológica das modificações
expressas no campo da produção da vida social humana em uma fase não mais
fordista da produção, mas mais fragmentada – falo aqui das diversas perspecti-
vas de corte irracionalista que, apesar de aparentemente críticas, dão suporte
para um afastamento da teoria materialista histórico-dialética da realidade. Da
mesma forma que o século XIX viu a expressão schopenhaueriana – a resposta
irracionalista à derrota dos ideais da Revolução Francesa – e nietzscheana – a
resposta irracionalista à derrota da Comuna de Paris –, o pós-modernismo (em
tuda sua diversidade) surge como expressão da retração e posterior derrota da
maioria das experiências socialistas do século XX.
No entanto, sabendo correto o paradigma marxista revolucionário (sobre-
tudo a partir dos aportes de Lênin a ele – demonstrando o vínculo indissociável
entre a forma de organização leninista e o conteúdo proletário-revolucionário
da estratégia), é importante retomar a pergunta: qual é o lugar da luta da juven-
tude no rumo da Revolução Socialista no século XXI?

Potencialidades e limites da luta da


juventude pelo socialismo no século XXI
Considerar a luta de classes e o desenvolvimento das formas de luta do prole-
tariado no rumo da tomada do poder político implica considerar a contradição
fundamental na sociedade capitalista, a contradição entre a produção sociali-
zada e a apropriação privada, entre o capital e o trabalho. Dessa forma, como já
colocado anteriormente, a juventude como tal não pode ser vista como sujeito
fundamental (força motriz principal) do processo revolucionário, porque há
setores da juventude que não estão diretamente envolvidos no confronto entre
capital e trabalho, por não estarem ainda no mundo do trabalho.
Assim, é preciso compreender o caráter de classe da juventude e, de início,
dividi-la nas classes da sociedade capitalista. Existem, assim, os jovens burgue-
ses, jovens pequeno-burgueses, jovens proletários etc. – considerados sobretu-
do a partir da vinculação com suas famílias, justamente pela consideração de
que, seja até o ensino fundamental, até o ensino médio ou até o ensino supe-
rior, a imensa maioria dos jovens está inserido na escolarização regular. Dessa
forma, se considerarmos apenas os jovens pertencentes à classe proletária,
96 podemos tirar algumas conclusões importantes para o avanço das nossas lutas:
Juventude e revolução: um ensaio sobre as lutas da juventude pelo socialismo no século XXI, lazzari
Como sabemos que a contradição fundamental da sociedade capitalista é
entre capital e trabalho, e considerando que a juventude como tal é um setor
policlassista, é uma decorrência óbvia que os jovens não sejam o sujeito revo-
lucionário. Isso não significa, no entanto, que não tenham um papel importan-
te no processo revolucionário em nosso tempo histórico.
Considerando a juventude proletária, temos uma divisão simples entre jo-
vens que já estão inseridos no mundo do trabalho – e portanto já compõem
as fileiras do potencial exército da revolução socialista – e aqueles que ainda
estão no processo de escolarização (em qualquer de seus níveis). Isso implica
que o setor da juventude comporta, dentro de si, táticas diversas e métodos de
organização diversos – para os quais a organização de vanguarda da juventude
proletária deve estar atenta.
Em um processo revolucionário no futuro, os jovens trabalhadores devem
unir-se, orgânica e politicamente, aos trabalhadores “adultos”. Isso porque tan-
to haverá mais sucesso na luta quanto mais o proletariado estiver unificado
e dividido conforme as necessidades do processo revolucionário. Um coman-
do único, que atinja todos os proletários de um determinado ramo da produ-
ção, vindo de um sindicato, por exemplo, precisa ser capaz de atingir jovens e
“adultos” da mesma maneira.
Também importa observar, como mencionado na retomada do histórico da luta
internacional de jovens comunistas, o peso que tem o trabalho entre os setores mi-
litares – ou para os setores militares, dependendo do grau de repressão. As camadas
subalternas das Forças Armadas são em geral recrutadas ou formadas a partir de jo-
vens oriundos das camadas proletárias, populares e médias e o apoio e credibilidade
desses setores subalternos a um processo revolucionário é fundamental.
Os estudantes, por sua vez, enquanto não entrarem efetivamente no mundo
do trabalho, tem como uma de suas principais tarefas no processo revolucio-
nário a função de servir de força auxiliar do proletariado. A flexibilidade de
horários, a falta de “patrões” propriamente ditos, a menor carga de tempo ocu-
pado potencializam o trabalho dos estudantes de força auxiliar do proletariado
para diversas formas de luta, desde a distribuição de literatura, latu sensu, até
auxílio em piquetes, arrecadação de fundos etc.
Igualmente, é a partir do contato com a juventude revolucionária, no pro-
cesso de escolarização, que setores da juventude pequeno-burguesa e mesmo
burguesa podem vir a se radicalizar, por meio da luta teórica e econômica,
traindo suas classes de origem e passando para o lado do proletariado.
Pensando ainda concretamente o atual quadro da juventude brasileira, te-
mos que levar em consideração uma dupla chave: se, por um lado, essa juven-
tude não estava viva ainda no momento mais drástico da contrarrevolução dos
anos 1990, e, portanto, não viu o debacle do socialismo real – o que lhes garante
uma possibilidade de olhar retroativamente para a história a despeito da ideo- 97
o futuro, nº1
logia anticomunista daquela época e ter um novo vínculo ideológico com a luta
revolucionária –, por outro lado, grande parcela dessa juventude não tem expe-
riências significativas de luta econômica, política e teórica contra a burguesia e
o Estado burguês, sobretudo se pensarmos no ciclo de apassivamento e amolda-
mento dos instrumentos de luta do proletariado no Brasil (seguido por um ciclo
de ataques frontais a esses mesmos instrumentos de luta) nos últimos 20 anos.

Considerações finais – e um chamado às


fileiras revolucionárias
Este ensaio não se pretende ser um estudo definitivo da questão; muito pelo
contrário, a ideia é que seja um disparador para aprofundamentos, pesquisas
históricas, econômicas, culturais mais amplas, que possam versar, especifica-
mente, sobre o papel da juventude no movimento revolucionário.
De qualquer forma, é importante observar algumas linhas-mestras que po-
demos traçar, de modo a subsidiar teórica e praticamente o movimento comu-
nista de juventude nos dias de hoje:
1º – é preciso compreender cientificamente o local do “jovem” na estru-
tura do modo de produção capitalista, para traçar a partir daí a estratégia
e a tática para o movimento de juventude; prescindir disso é incorrer em
idealismos sobre a condição juvenil;
2º – é preciso um vínculo íntimo entre o movimento de juventude e os Parti-
dos Comunistas em cada país do mundo; negando novamente o idealismo, sa-
bemos que é o Partido Comunista que tem o potencial de ser a forma superior
de organização do proletariado no rumo da conquista do poder, e a juventude
deve estar intimamente vinculada a ele;
3º – é preciso manter sempre viva a chama do internacionalismo proletário;
da mesma forma que a luta dos trabalhadores é uma só no mundo todo, a luta
dos jovens deve estar diretamente ligada às perspectivas do movimento comu-
nista em nível internacional;
4º – é preciso superar, teórica e praticamente, os impactos da contrarrevolu-
ção dos anos 1990 no seio da juventude, se o objetivo é organizar, mobilizar e diri-
gir um novo ascenso das lutas do proletariado contra sua exploração e opressão.
5º – é preciso desenvolver a organização; nenhuma luta pode ser individual
se quiser ser vitoriosa, porque as ideias só ganham força de mudança social se
ganham as massas – e esse é o meu chamado: jovens, incorporem-se à luta re-
volucionária do proletariado, incorporem-se à União da Juventude Comunista.

98
Subjetividade
neoliberal em
tempos de crise:
uma aposta para
o futuro a partir da
juventude marxista
Felipe Gomes Mano1 e João Vitor Sichieri2

Introdução

O
presente tem exigido muito de nós. Uma crise sanitária de ape-
lo humanitário bateu à porta, enclausurando as pessoas em suas
casas e fazendo com que repensem suas relações com o meio em
que vivem. O surto de um vírus que ignora fronteiras e não distingue clas-
ses, o desmoronamento do mercado global e a incapacidade de lidar racio-
nalmente com tais questões fez inflar os grandes problemas desta geração,
em especial aqueles relacionados ao sistema produtivo que pauta a mate-
rialidade da vida de todos e todas.
O caos vivenciado no início do ano de 2020, a distopia que se desenhava antes
da pandemia e que se materializou diante do fracasso dos governos em lidar com
a questão sanitária e social do novo coronavírus, é cenário propício para que se
coloque em pauta a maneira como administramos nossos recursos, nosso modo
de vida, as relações com o próximo e tudo o que nos permeia, sendo inevitável
repensar o valor que o ser humano tem diante da lógica mercantil que transfor-
ma todas essas questões em secundárias. Mais que filosófica, fazer tal exercício
torna-se hoje uma questão de sobrevivência. “Os filósofos apenas interpretaram

1 Felipe Gomes Mano tem 24 anos, é bacharel em direito pela Faculdade de Direito de
Franca – FDF, advogado criminalista e presidente da Comissão de Direito Constitu-
cional da 80ª Subseção da OAB/SP.
2 João Vitor Sichieri, 24 anos, mestrando em direito na Universidade Estadual Paulista
“Julio de Mesquita Filho” – UNESP, bacharel em direito pela Faculdade de Direito de
Ribeirão Preto – FDRP/USP. 99
o futuro, nº1
o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”3.
Questionar a viabilidade do modo de produção fundado no livre mercado,
cada vez mais selvagem e mais intenso no estabelecimento de subjetividades
alienadoras, tornou-se assunto urgente. É fundamental aproveitar o momento
de crise, em que as contradições do atual modelo político-econômico hege-
mônico se mostram mais evidentes e debater sobre as possibilidades de sua
reforma e superação. Trazer a juventude para esse campo de discussão é es-
sencial, uma vez que é o grupo mais afetado pelos desmandos do capital e,
portanto, o mais interessado na criação de um futuro possível.
Para isso, a difusão do pensamento crítico e revolucionário em meio a ju-
ventude é necessária. A construção de uma forte juventude de esquerda, cons-
ciente da realidade miserável em que vive, conhecedora da história e combati-
va na atuação prática é elemento fundamental para a construção de caminhos
alternativos que rompam com os horizontes da sociabilidade capitalista.

Subjetividade liberal e administração do


indivíduo no capitalismo
O surgimento e ascensão da classe burguesa durante o período de transição da
Idade Média para a Idade Moderna, da organização social e política feudalista
para a era dos Estados Nacionais, foi o embrião do modelo capitalista que vi-
vemos hoje. A nova classe não possuía os títulos e os privilégios que possuía
a nobreza, mas apresentava o crescente desejo de acumulação econômica e
compartilhava com o restante da sociedade o sentimento de indignação diante
da opressão característica do modelo político absolutista.
Com o desenrolar dos embates ideológicos entre as classes, a maior repre-
sentatividade da burguesia no espectro político fez com que seus ideais então
insurgentes passassem a permear as relações sociais de produção e organização,
promovendo mudanças estruturantes no Estado e na própria subjetividade dos
indivíduos. Movimentos libertários de inspiração iluminista, como a Revolução
Francesa e a Independência dos Estados Unidos, modificaram completamente a
normatividade cogente em tais realidades, inserindo de vez a burguesia no posto
de classe forte e de posição determinante no comando político-econômico4.
Como forma de manter um organismo social e político que positivasse seus
interesses, todos os campos de relações humanas passaram a ser desenvolvidos

3 MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filoso-
fia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo em
seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 539.
4 POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora Uni-
100 camp, 2019. p. 159-160.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
sob a lógica liberal-burguesa. Teorias políticas como a separação dos poderes e
do contrato social trouxeram a estabilidade política necessária, garantindo direi-
tos subjetivos que fundamentam o modelo capitalista - a propriedade privada, a
liberdade contratual e a igualdade meramente formal entre indivíduos - e dando
solidez à base da economia. Sob o lema laissez faire, laissez aller, laissez passer5, qua-
se tudo passou a ser possível para o indivíduo liberal, inclusive vender e comprar
a força de trabalho, que assumiu a forma-mercadoria e naturalizou-se nesse tipo
de sociabilidade. Surgia assim o sujeito liberal, dotado de uma razão e moral pró-
prias e que enxerga tudo sob o aspecto mercantil, sendo produto dos elementos
contidos na superestrutura dessa sociedade instrumentalizada e individualista6.
O discurso pautado no liberalismo clássico regeu a sociedade firmada após a Se-
gunda Revolução Industrial. A eclosão de polos fabris trouxe consigo a promessa
de que o avanço tecnológico geraria riqueza a todos e todas, motivando um grande
êxodo rural que inflou a população das cidades. Os centros urbanos não tinham ca-
pacidade para comportar toda a população, que apenas aumentava, assim como as
vagas de emprego eram limitadas. O desemprego assolava a classe trabalhadora, e a
criação de um exército proletário de reserva mantinha os salários baixos e a explo-
ração cada veza mais intensa. Formou-se um cenário contrastante, onde de um lado
a burguesia captava os lucros e operava o Estado, enquanto do outro comunidades
inteiras eram marginalizadas e sofriam com o desabrigo, a fome e a violência7.
A efervescência política no início do século XX pode ser considerada um
sintoma dessa forma de organização pautada pelo grande capital. As duas
Guerras Mundiais e a grande crise econômica que lhes intercalou no ano de
1929 tiveram papel importante na releitura da perspectiva de atuação liberal.
Na nova concepção de liberalismo, o Estado assumiu a posição de ente prote-
tor e emancipador dos indivíduos, supostamente garantindo direitos básicos
como educação, saúde, habitação, leis trabalhistas etc., buscando estabelecer
um estado de bem-estar social que nunca se concretizou plenamente.
Novas políticas de reestabelecimento econômico e social baseadas no
keynesianismo, como o Plano Marshall na reconstrução da Europa pós-
guerra e o New Deal na formação de uma sociedade de consumo e welfare
norte-americana, ganharam o mundo. A linha de bem-estar social trazia
altos gastos ao Estado, o que, atrelado à inevitável estagnação econômica
ocidental em meados da década de 1970, produziu déficits fiscais que co-
locavam em cheque o modelo keynesiano. A partir desse ponto, a figura
do Estado intervencionista passou a ser questionada e teorias liberais que
5 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC S/A,
1986. p. 137-138.
6 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, SP: Boitempo,
2013. p. 20-22.
7 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Ja-
neiro: Revan; ICC, 2006. p. 39-40. (Pensamento criminológico, v. 12). 101
o futuro, nº1
pregavam o seu afastamento da economia foram recuperadas e colocadas
em prática. Nascia assim o modelo neoliberal, estabelecido primeiramen-
te como orientação governamental no Chile, após o golpe militar de 1973,
e, posteriormente, com as suas duas figuras de maior expressão, Ronald
Reagan e Margaret Thatcher.
Diversos países aderiram ao neoliberalismo, que serviu de base para o
processo de globalização da economia financeirizada, orientando inclusive a
atuação de organizações e agências reguladoras internacionais. Nesse novo
panorama global houve a reformulação das relações sociais, sempre atreladas
ao modelo produtivo vigente, afetando desde a maneira de se produzir merca-
dorias até as formas de interação intra e intersubjetivas. É criada uma subjeti-
vidade neoliberal que, atuando inclusive a nível psicológico, leva a total sobre-
posição da consciência individual sobre qualquer aspecto de coletividade. A
ideologia mercadológica ganha força e a própria vida humana passa a ser vista
como um investimento que deve ser gerido tal qual uma empresa, sendo medi-
da pela lucratividade e não pelo bem-estar ou pelos vínculos sociais-afetivos8.
A diminuição do pensamento coletivo em detrimento de um ultraindivi-
dualismo cria relacionamentos orientados por uma lógica de cálculo de perdas
e ganhos. Na esfera econômica, são introduzidos conceitos como o de capital
humano¸ incutindo nas pessoas a ideia de que elas mesmas são meios de pro-
dução, e por isso devem receber aplicações em busca de rendimentos9. A força
de trabalho não é mais enxergada homogeneamente para fins de medição em
tempo, tornando-se diferenciada dentro de cada categoria pelas qualidades
individuais de cada trabalhador, o que modifica o referencial para a determi-
nação do valor de troca de seu tempo de trabalho. A ideologia neoliberal tenta
transformar o trabalhador em capitalista, cujo capital seria ele próprio10.
Durante a pandemia do novo coronavírus surgem casos emblemáticos que
escancaram o funcionamento da sociedade que tem como fim último a acumu-
lação irrestrita e o individualismo como valor supremo: a defesa da flexibiliza-
ção do isolamento social em prol de uma suposta retomada econômica feita
pelos liberais, além de ressaltar que a classe trabalhadora é quem tudo produz,
também demonstra que não há limite ético ao capitalismo, colocando a saúde
e a vida dos trabalhadores e trabalhadoras em segundo plano para garantir
que a economia – que muito pouco lhes aproveita – continue a render frutos
aos capitalistas – esses, sim, isolados com suas famílias em casa. Declarações e
decisões de políticos como Donald Trump e Bolsonaro, “contra quarentenas e a
8 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France
(1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 203; 331-332.
9 FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 308-316.
10 LÓPEZ-RUIZ, Osvaldo. Os executivos das transnacionais e o espírito do capita-
lismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro:
102 Azougue Editorial, 2007. p. 61; 193; 220-221.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
favor da circulação de pessoas e do envio dos pobres aos postos de trabalho são
provas de que sequer questões de vida e morte detêm o interesse do capital”11.
A lógica neoliberal, tendo como pano de fundo o triunfo individual, não
se encerra em análises de novas formatações econômicas, mas orienta as de-
mais relações sociais, em uma espécie de psicologia que rege a vida humana
e permite a reprodução do sistema com maior fluidez. Nesse sentido, da mes-
ma forma que a suposta procura da felicidade é individualizada, a gerência
dos prejuízos também deve ser suportada pelo sujeito isoladamente, razão
pela qual a queda do consumo é suportada pelos despossuídos na redução de
salários e postos de emprego disponíveis.
Diferentemente do modelo liberal keynesiano, que objetivava eliminar
o sofrimento ofertando direitos básicos para que os cidadãos pudessem
ter suas qualidades desenvolvidas sem qualquer obstáculo e assim serem
produtivos, o neoliberalismo, movido pelo método de emancipação total,
encontra no sofrimento individual o caminho para a sua reprodução. Em
vista disso, dentro da racionalidade neoliberal que faz adoecer os corpos
e mentes dos despossuídos inebriados pela necessidade do triunfo econô-
mico, o sofrimento passa a ser inoculado para que, por meio da incessante
produtividade em busca de um lucro pessoal, os sujeitos possam amenizar
o mal-estar sentido através do consumo12.
É consolidada então a subjetividade neoliberal, na qual o constante in-
vestimento no próprio capital humano e aumento de sua utilidade repre-
sentam ao mesmo tempo a reprodução do modelo econômico e a tentativa
de fuga do sofrimento individual. Se fecha um ciclo onde a superação das
angústias é seguida pelo surgimento de outras, que terão de ser igualmente
enfrentadas para que novas apareçam, isolando-se cada vez mais o indiví-
duo em sua saga pelo ideal impossível.
Em tempos de pandemia, em que o trabalho é afetado pela necessidade
de isolamento social, o resultado é uma ausência de sentido existencial,
que tem a ver com a própria compreensão de mundo de quem vive sob o
julgo constante do capital, refém da propaganda consumista e da ideia equi-
vocada de que somente a riqueza liberta o homem de seus problemas. Ao
contrário da promessa de emancipação humana pelo trabalho, a concen-
tração de renda e a alienação dos corpos e mentes da maioria da população
mostram que a meritocracia liberal é uma falácia perigosa, sendo ainda
mais evidente em tempos de crise, quando os privilégios se acentuam e a
divisão da sociedade em classes sociais torna-se evidente.

11 MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020. p.158.
12 PAVÓN-CUÉLLAR, David. O capital que jorra sangue e lodo por todos os poros. In:
PAVÓN-CUÉLLAR, David; LARA JUNIOR, Nadir (Orgs.). Psicanálise e marxismo: as
violências em tempos de capitalismo. Curitiba: Appris, 2018. p. 21. 103
o futuro, nº1
As feridas abertas do capital
Com o passar dos anos, a solidificação do modelo neoliberal trouxe consigo a
naturalização da forma de sociabilidade e um processo de criação de indivi-
dualidades que lhe são intrínsecos, fazendo com que todas as mazelas conse-
quentes de sua operabilidade passassem a ser compreendidas como normais
e elementos inerentes à sociedade13. Doses de sofrimento e ideologia são cons-
tante e estrategicamente inoculadas e tidas como parte banal da vida, manten-
do uma conjuntura sem perspectiva de modificação ou superação.
Em situações de crise, as feridas que atormentam os indivíduos tornam-se
explícitas e, portanto, produzem sintomas mais intensos que chamam a aten-
ção para o problema de forma urgente. Contudo, se não combatidas direta-
mente em suas causas, são facilmente instrumentalizadas pela ideologia do ca-
pital e transformadas em obstáculos cuja superação é necessária para garantir
a continuidade da acumulação, o que agrava ainda mais a situação das classes
trabalhadoras e despossuídas. O cenário de terra arrasada e o choque causado
na população são instrumentos dos quais o capital se vale para expandir a sua
dominação14, e como resultado surgem propostas como privatizações15 ou a
redução dos poucos direitos que detém a parcela explorada da população.
O dinheiro, mero representante de valor para a troca de mercadorias, é fe-
tichizado a tal grau que passa a ser cultuado como fim último da existência, e o
trabalho, no sentido de utilidade à reprodução do sistema, passa a ser o vínculo
que dá ao sujeito o sentimento de pertencimento à sociedade. Nessa lógica, o
desemprego marginaliza e o expulsa do corpo social, refletindo em uma insa-
tisfação existencial que impõe a necessidade de reinserir-se, reconquistar o lu-
gar ao sol, o que perpetua a situação de exploração do trabalhador16, impedin-
do-o de superá-la. Além de todas as formas adotadas pela ideologia neoliberal,
políticas de precarização da educação e movimentos anticientíficos colocam
em cheque todas as posições que critiquem o status quo e que possam contestar
esse modelo autoritário e injusto. Isso permite que o capital marche rumo ao

13 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 127.


14 Ver KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 189-204.
15 O governador Wilson Witzel encaminhou para a Assembleia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro (Alerj) um projeto de lei que, caso aprovado, possibilitará a priva-
tização da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae). “Em meio à pandemia do
novo coronavírus, o projeto pede a retomada do programa estadual de desestatiza-
ção, criado em 1995. Podem ser atingidas pela proposta as universidades estaduais,
fundações e empresas de sociedades mistas”. Cf. EM meio a pandemia, Witzel quer
urgência em privatizar água e educação. Rede Brasil Atual, Economia, 20 abr. 2020.
Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/04/witzel-pri-
vatizar-agua-educacao/#. Acesso em: 01 maio. 2020.
104 16 GIORGI, Alessandro De. Op. cit., p. 68-69.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
seu objetivo-mor, “a acumulação, almejada virtualmente como cálculo univer-
sal sem nenhum contraste”17.
Os valores difundidos nessa sociedade, modelados em certo nível por uma
aparelhagem ideológica, nos tornam incapazes de atuar conjuntamente e com
empatia para lidar com problemas essencialmente sociais, ao mesmo tempo
que nos afastam, tornando mais distantes e intransponíveis os horizontes de
superação do modelo capitalista. A busca por interesses de classe que descon-
sideram o sofrimento humano, em tempos de pandemia, é um exemplo claro
de que a escala de valores do capital não obedece a padrões humanitários, mas
exploratórios e financeiros18.
Momentos como o atual expõem a necessidade de conceber uma nova for-
ma de subjetividade, que seja capaz de agregar pessoas em torno de objetivos
minimamente comuns e estabelecer uma consciência de natureza coletiva19.
Identificar elementos de pertencimento comum e defender a coisa pública é
uma atitude que além de impedir o avanço ilimitado do capital, garante as con-
dições básicas de vida da população frente a situações nas quais as dificuldades
já existentes são agravadas.
Porém, a superação da crise e das adversidades sociais não deve se des-
tinar somente à proteção desses bens públicos em sentido formal, como
forma de salvaguardar níveis mínimos de qualidade de vida, mas também
deve passar pela crítica de sua instrumentalização que visa a um suposto
desenvolvimento nunca atingido, pensado a partir de nossa realidade de
país localizado na periferia do capitalismo e refletindo sobre as demandas
da verdadeira sociedade brasileira, sem submeter-se aos interesses escusos
da alta burguesia e do capital internacional.

A missão da juventude
O materialismo histórico ensina que a transformação é possível e para que
isso ocorra é necessário que se lute. A história nos mostra que a realidade é
transformada através de embates travados no campo da política e, hoje mais
que nunca, nas áreas de produção de conhecimento e de disseminação de
informações. O triunfo desses embates somente se alcança mediante a orga-

17 MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 102.
18 TEIXEIRA, Matheus; COLETTA, Ricardo Della; WIZIACK, Julio. Bolsonaro, Guedes
e empresários vão ao STF para pressionar pelo fim do isolamento contra coronaví-
rus. Folha de São Paulo, Economia, São Paulo, 7 maio. 2020. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-guedes-e-empresarios-vao-ao
-stf-para-pressionar-pelo-fim-do-isolamento-contra-coronavirus.shtml. Acesso em:
30 maio. 2020.
19 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 127-128. 105
o futuro, nº1
nização de frentes combativas, que sejam sólidas em suas bases teóricas – o
pensamento marxista fornece instrumental para tanto quando se desvincula
das propostas reformistas da social-democracia – e de atuação contínua, para
que pequenas vitórias sejam conquistadas a curto prazo e, no mais longo ca-
minhar, novos horizontes possam ser construídos.
A projeção de um novo futuro é sempre o guia dessas lutas. E como ar-
quitetar um amanhã diferente sem a participação de quem representa o
próprio nascer do sol? A presença da juventude no esboço de uma nova
sociedade é de suma importância para que as perspectivas progressistas
reflitam seus interesses de emancipação e justiça. O novo mundo deve ser
concebido para e pela juventude, sempre com o respaldo e sob o caminho
já trilhado por quem constrói o novo há muito tempo.
A cada dia a falência dos valores adotados pelo mundo ocidental se tor-
na mais gritante, ao passo que as contradições capitalistas – em especial do
modelo neoliberal – se apresentam de forma explícita, desnudando os reais
interesses por trás das atitudes daqueles que comandam essa racionalidade
mercadológica que rege nossas vidas.
Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci já afirmara que “quando determinada
pessoa já se encontra em crise intelectual, oscila entre o velho e o novo, per-
deu a confiança no velho e ainda não se decidiu pelo novo”20. A crise é o marco
em que os valores caem em descrença, mas também onde novos caminhos se
mostram possíveis. É nesse momento que a juventude deve erguer a sua voz
para que seja ouvida, impondo-se e expondo seus anseios e expectativas para
que se desenhe um porvir mais justo, igual, sem exploração ou qualquer tipo
de opressão irracional do homem pelo homem. O futuro deve ter a alma da
juventude, mesmo que o corpo envelheça.
Autores e autoras de orientação marxista conservam, em grande medida, o
frescor das ideias próprias da juventude. Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxembur-
go, Gramsci, Florestan Fernandes, Mauro Iasi, Angela Davis e inúmeros outros
pensadores e pensadoras, independentemente do momento histórico em que
viveram ou vivem, permanecerão jovens enquanto teimar em existir o modelo
capitalista de exploração. O comunismo é a juventude do mundo e em momen-
tos como o atual não há espaço ao reacionarismo de quem busca, inútil e con-
traditoriamente, a retomada de um modelo de bem-estar que nunca existiu.
A superação dessa ideologia neoliberal e a luta contra ideais fascistas
que surgem não pode, de forma alguma, ficar restrita ao ambiente institu-
cional da social-democracia21. É hora de expor as evidentes contradições da

20 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-


ra, 1999. p. 108.
21 MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa
106 radical ao sistema parlamentar. São Paulo: Boitempo, 2010.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
estrutura capitalista e avançar rumo a um modelo onde seja possível sus-
tentar outra sociabilidade, fundada no bem comum e não mais refém dos
desmandos irracionais do capital sobre a classe explorada22.
Não existe linearidade na história, contudo, não há qualquer previsibilida-
de acerca do momento em que se dará uma ou outra forma de ruptura social,
como ela ocorrerá e qual será seu destino. No desenrolar das relações, em acon-
tecimentos pontuais – instantes de pura aleatoriedade material, conforme nos
ensina Althusser23 –, é que encontramos o gérmen dos ideais que levam às mu-
danças. Períodos de crise exercem com excelência essa função, materializando
na sociedade os elementos que erigem o ambiente adequado para que ocorra a
ressignificação dos objetivos sociais e dos valores que os definem. A tensão que
vivemos atualmente é a erupção de um vulcão que já anunciava a sua explosão
há tempos, destruindo tudo aquilo que toca. Mas a mesma lava que mata é aque-
la que deixa o solo fértil, e a juventude é a flor que brota em meio ao caos, com a
força de seus ideais nas raízes trazendo a esperança de uma nova sociabilidade.
A flagrante subversão dos valores humanos ocasionada pelos interesses do
capital, a tragédia social que governos de extrema direita têm representado, a
necessidade de prevalência de princípios socialistas no plano econômico e po-
lítico para que possamos enfrentar questões de caráter planetário como uma
pandemia, bem como inúmeros outros sintomas da irracionalidade do modelo
capitalista que vigoram há tempos, constituem, a um só tempo, um alerta e um
chamado à necessidade de superação dessa forma de sociedade.
Sendo assim, a presença da juventude é indissociável de qualquer projeção
de futuro e, por meio de sua atuação organizada e pautada em uma práxis-mar-
xista, possui papel fundamental na renovação das expectativas e expansão das

22 “A dificuldade daqueles que defendem a submissão permanente do trabalho ao ca-


pital é que eles são forçados a hipostasiar a permanência absoluta do sistema atual.
Isso só é possível desde que sejam escondidos por completo, inclusive deles pró-
prios, os aspectos mais destrutivos do controle sociometabólico do capital, que são
visíveis não apenas aos socialistas, mas a todos aqueles que se disponham a fazer os
cálculos ambientais mais elementares”. (MÉSZÁROS, Ibid., p. 167).
23 Sobre o materialismo aleatório, conceito elaborado por Louis Althusser (1918 –
1990): “[...] Segundo esse materialismo, a origem das coisas não pode se explicar
por uma causa final ou inicial. Não há originariamente nada pelo qual ou para o
qual deva existir o que existe. Se os átomos desviam-se de sua linha reta, chocam-se
e compões coisas é por simples acaso e por nada mais. Qualquer outra explicação
terá que se dar no âmbito etéreo das ideias, no céu do idealismo e fará, então, trair a
perspectiva materialista do marxismo./Um verdadeiro materialismo, tal como com-
preende Althusser, a partir de Marx e Epicuro, terá que ser aleatório porque somen-
te assim encontrará a origem de todas as coisas em um acontecimento material e
não na ideia explicativa hipotética de uma causa ou de uma finalidade. [...]”. Cf. PA-
VÓN-CUÉLLAR, David. A violência no capitalismo: entre a luta pela vida e a paz dos
sepulcros”. In: PAVÓN-CUÉLLAR, David; LARA JÚNIOR, Nadir (orgs.). Psicanálise e
marxismo: as violências em tempos de capitalismo. Curitiba: Appris, 2018. p. 61-62. 107
o futuro, nº1
possibilidades de mudança do quadro social. A atuação de juventudes comunis-
tas, em ambientes institucionais ou através de todos os meios de comunicação
de ideias disponíveis, é fundamental para a organização do pensamento crítico
de uma juventude que sente na pele a miséria social. Iniciativas como a publica-
ção regular da revista O Futuro – O comunismo é a juventude do mundo corroboram
a opinião dos autores do presente ensaio: a juventude organizada ao redor de
ideais emancipatórios é capaz de superar o atual estado de coisas e ressignificar,
a partir da materialidade da vida, a existência humana em sociedade.
Ao passo que a crise é o momento adequado para que o capital avance em
seu processo de exploração e acumulação intensificadas, também é a abertura
de uma brecha para que os despossuídos unidos se rebelem ante a exploração
que recai sobre si. A juventude é o motor dessas mudanças, é o coração que
bombeia esperança e faz o corpo social caminhar. Os tempos que enfrentamos
são duros, dependemos de novas perspectivas para evitar catástrofes e retro-
cessos sociais. A juventude é o novo, e as resistências serão muitas, mas como
já anunciava Belchior em 1976 àqueles que amam o passado e ainda insistem
em não ver: o novo sempre vem!24

24 Referência à música Como nossos pais, mais especificamente à nona estrofe: “[...]
Mas é você que ama o passado/E que não vê/É você que ama o passado/E que não vê/
108 Que o novo sempre vem [...]”, do cantor e compositor brasileiro Belchior.
REFERÊNCIAS

Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
TEIXEIRA, Matheus; COLETTA, Ricardo Della; WIZIACK, Julio. Bolsonaro, Guedes e em-
presários vão ao STF para pressionar pelo fim do isolamento contra coronavírus. Folha
de São Paulo, Economia, São Paulo, 7 maio. 2020. Disponível em: https://www1.folha.
uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-guedes-e-empresarios-vao-ao-stf-para-pressio-
nar-pelo-fim-do-isolamento-contra-coronavirus.shtml. Acesso em: 30 maio. 2020.
EM meio a pandemia, Witzel quer urgência em privatizar água e educação. Rede Brasil
Atual, Economia, 20 abr. 2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/eco-
nomia/2020/04/witzel-privatizar-agua-educacao/#. Acesso em: 01 maio. 2020.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-
1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:
Revan; ICC, 2006. p. 39-40. (Pensamento criminológico, v. 12).
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HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC S/A, 1986.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
LÓPEZ-RUIZ, Osvaldo. Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital
humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.
__________. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020. p.158.
__________. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.
MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo em seus
diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical
ao sistema parlamentar. São Paulo: Boitempo, 2010.
PAVÓN-CUÉLLAR, David. A violência no capitalismo: entre a luta pela vida e a paz dos
sepulcros. In: PAVÓN-CUÉLLAR, David; LARA JÚNIOR, Nadir (orgs.). Psicanálise e mar-
xismo: as violências em tempos de capitalismo. Curitiba: Appris, 2018.
__________. O capital que jorra sangue e lodo por todos os poros. In: PAVÓN-CUÉLLAR,
David; LARA JUNIOR, Nadir (orgs.). Psicanálise e marxismo: as violências em tempos de
capitalismo. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018.
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2019.

109
110
O orgulho,
dever e desafios
da juventude
comunista
Raul Santos do Nascimento1

RESUMO

E
ste texto busca a reflexão e deliberação de ideias básicas em relação
à juventude comunista e aos aspectos que a rodeiam. Realizando um
aprofundamento da ponderação do que é fazer parte da juventude co-
munista, tanto quanto seus dilemas, honra e malícia necessária para atuar en-
quanto militante, buscando levantar reflexões sobre as ações dessa juventude,
utilizando por vezes as palavras e conceitos de marxistas que estão dialogando
direta ou indiretamente com as ideias aqui apresentadas.

Palavras-chave: Juventude comunista, revolucionários, revolução socia-


lista, marxistas.

Introdução
Os ensinamentos deixados pelos velhos teóricos e revolucionários marxistas, uma
vida de luta dedicada para a causa proletária desempenhada pelos variados povos
ao redor do globo e todo um legado histórico agora repousam sobre os ombros
da juventude comunista, esses que no momento de maior avanço do capitalismo
e suas severas condições impostas diante da classe trabalhadora, em seguida das
derrotas, falhas e traições obtidas pelo bloco socialista no século anterior, se si-
tuam face a face de uma massiva estrutura anticomunista. O propósito dessa ju-
ventude é seguir adiante com o desenvolvimento da revolução proletária; entre-
tanto, como realizá-la frente aos obstáculos impostos pela classe dominante?

1 Raul Santos do Nascimento é graduando em Artes Visuais pela UNESP Bauru, dese-
nhista, aspirante a escritor e membro da União da Juventude Comunista.
111
o futuro, nº1
Os contratempos da juventude comunista
O jovem comunista deve estar preparado para lidar com muitas adversidades
encontradas em seu caminho, provindas de sua escolha de seguir tal ideolo-
gia revolucionária. Essas adversidades constituem desde conflitos gerados por
laços familiares até mesmo a estrutura comandada pelo capital que lança di-
versas problemáticas em direção àqueles que negam a hegemonia capitalista.
Dominar pouco a pouco o método de análise gerado pelo materialismo históri-
co-dialético ajuda-nos a perceber os problemas de nossa sociedade e como eles
são criados. Por vezes isso pode causar séria melancolia no jovem comunista e
um afastamento das bases revolucionárias, caindo em um sentimento de exis-
tencialismo e conformidade frente ao capitalismo moderno.
A fim de acalmar os camaradas que também se encontram perante esses
problemas, gosto de destacar que desde muito cedo o próprio Karl Marx per-
cebeu os problemas de levar a ideologia comunista adiante, enfrentando seus
próprios conflitos com figuras políticas diversas, porém, sempre analisou os
dilemas de maneira material e buscou apoio sobre suas amizades próximas,
as quais sempre dividiram e ajudaram nos encargos teóricos de Marx, em des-
taque seu amigo de toda vida, Friedrich Engels, e sua esposa, Jenny von Wes-
tphalen. Marx apontava ao longo de seus estudos que as ideias dominantes na
sociedade capitalista sempre seriam aquelas atreladas e vantajosas para a bur-
guesia. Em vista disso, não deveria ser um desconforto inalterável que muitas
das ideias repercutidas ao nosso redor acabem por sustentar princípios con-
trários àqueles almejados por nós. De maneira oposta, esses desafios podem
servir como um empurrão para o jovem comunista buscar a teoria e prática
marxista, divulgando ela ao maior número de pessoas possíveis.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias


dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.
A classe que tem à sua disposição os meios da produção
material dispõe também dos meios da produção espiritual, de
modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo
tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da
produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes,
são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias;
portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe
a classe dominante, são as ideias de sua dominação.
(MARX, 2007, p. 47)
112
O orgulho, dever e desafios da juventude comunista, nascimento
A título de exemplo sobre meu caso particular, mesmo que também sirva
para muitos outros em situação semelhante, lembro-me que após ingressar no
ambiente acadêmico, um espaço majoritariamente composto por jovens, eram
variadas as discussões e discursos levantados quais sempre acabavam por carre-
gar um teor demasiadamente liberal – por óbvio aquele liberalismo excêntrico
criado e adotado pela esquerda moderada. No entanto, bem sabemos que muitos
que compõem a universidade pública também são liberais da direita política,
mas se sentem intimidados e expressam seus ideias através de vias disfarçadas –
como temos conhecimento, essas declarações são muitas vezes constituídas por
puro sofismo e argumentos que, além de clichês, são falsos ou não contemplam
a complexidade total de uma questão. Afinal, quantos dentro da militância co-
munista não foram intitulados como “stalinistas” ou acabaram sendo questiona-
dos sobre os inúmeros genocídios dos revolucionários vermelhos?
Certo período após ter iniciado minha graduação, porém, acabei por entrar em
contato com membros de uma organização política que, no dia 1° de agosto de 1927,
fora oficialmente fundada e pouco tempo depois reconhecida pela Internacional
Comunista, tendo sua primeira direção composta por Leôncio Basbaum, Jaime Fer-
reira, Elísio, Altamiro, Brasilino e Pedro Magalhães Arlindo Pinho, a União da Juven-
tude Comunista, a ala jovem do Partido Comunista Brasileiro e lugar onde consegui
encontrar camaradas adeptos do marxismo-leninismo com os quais venho obtendo
a oportunidade de me organizar politicamente, integrando um espaço composto
por uma juventude comunista disposta a formar quadros políticos.

As inspiradoras palavras de Che Guevara


Durante o II aniversário da integração das organizações juvenis cubanas, celebrado
em 20 de outubro de 1962, Ernesto Che Guevara pronunciou seu discurso sobre a ju-
ventude comunista2. Acredito que as palavras do revolucionário deveriam ser lidas e
principalmente escutadas por todo jovem comunista, em razão de seu conteúdo de-
masiadamente fascinante que nos relembra acerca do orgulho, importância e dever
que precisam ser guiados por esta juventude. Che Guevara declara que, enquanto
aqueles que escolheram seguir por esse caminho, temos que nos empenhar com
afinco em questões diversas para nos tornarmos melhores enquanto comunistas
e, consequentemente, como pessoas3. Devemo-nos lembrar de suas palavras como
2 “Eu acho que o primeiro que deve caracterizar um jovem comunista é a honra que
sente por ser um jovem comunista. Essa honra que [..] exprime a cada momento,
que lhe sai do espírito, que tem interesse em demonstrá-lo porque é o seu símbolo
de orgulho. Junto disso, um grande sentido do dever para a sociedade que estamos a
construir, com os nossos semelhantes como seres humanos e com todos os homens
do mundo. Isso é algo que deve caracterizar o jovem comunista” (GUEVARA, 1962).
3 “Quer dizer: apresenta-se a todo jovem comunista a tarefa de ser essencialmente 113
o futuro, nº1
um conforto e norteamento para qual hasteamos a bandeira que traz consigo a foice
e o martelo, sem nunca recuar, mas sempre seguindo em frente.
O jovem comunista carrega o compromisso de desenvolver-se enquanto mili-
tante, estudando para estar preparado quando uma dúvida, questionamento ou
debate surgir diante de seus olhos, ainda mais se forem direcionados diretamente
para ele, pois a perícia teórica e competência na argumentação tem a capacidade
de construir gradualmente o cenário que tanto buscamos. Declarar-se comunis-
ta sem buscar dar continuidade na contribuição desta causa pelos mais diversos
meios é um equívoco que desfaz aos poucos aquilo que já foi construído. A teoria
marxista4 é algo essencial para o movimento comunista dar continuidade na busca
de uma sociedade livre do imperialismo, colonialismo, exploração e toda a barbá-
rie legitimada pelo capitalismo atual, transformando nossa realidade concreta em
moldes benéficos aos que por agora são intensamente oprimidos.
Percebemos e por vezes disparamos gracejos para os jovens que ao começa-
rem a explorar e adentrar na esfera política se vejam facilmente atraídos pelas
ilusões de filosofias como o liberalismo e, até mesmo, ideias mais exóticas como
o anarcocapitalismo, jovens que mal dominam por exato um aprofundamento
teórico das ideologias as quais defendem, caindo nas armadilhas de think tanks e
indivíduos com trabalhos e formações teóricas muitas vezes no mínimo duvido-
sas, se dando ao luxo de espalhar informações falsas ou com referências ligadas
diretamente ao interesse burguês. Entretanto, não devemos taxar todos esses
jovens como causas perdidas, zombando ou ignorando quaisquer argumentos
provindos deles, ainda mais se estivermos em um espaço público ou acessível
para uma grande gama de pessoas (como abas de comentários nas redes sociais).
As minhas palavras neste momento se dão pelo seguinte motivo: nem todos
esses jovens estão decididamente contrários à mudança de suas ideias, alguns
podem sujeitar-se a pensar sobre uma posição distinta dependendo dos argu-
mentos utilizados, porém, mesmo que não façamos uma análise assim, assu-
mindo que essas pessoas não querem estabelecer um debate produtivo, mas
expor discursos nocivos para o jovem comunista, devemos pensar que nossas
respostas e ações terão reflexos nas pessoas ao nosso redor, ideais que defen-
demos e conjunto/coletivo que compomos. Embora aquele jovem ferrenho de-
fensor da ideologia burguesa apresente um debate no qual não estará disposto
em mudar de posição e irá anular os argumentos do jovem comunista antes

humano, ser tão humano que se aproxime ao melhor do humano, purificar o me-
lhor do homem por meio do trabalho, do estudo, do exercício de solidariedade con-
tinuada com o povo e com todos os povos do mundo, desenvolver ao máximo a sen-
sibilidade até se sentir angustiado quando um homem é assassinado em qualquer
canto do mundo e para se sentir entusiasmado quando em algum canto do mundo
se alça uma nova bandeira de liberdade” (GUEVARA, 1962).
4 “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” (LÊNIN,
114 1902).
O orgulho, dever e desafios da juventude comunista, nascimento
mesmo de ouvi-los, pense em construir respostas inteligentes, não que essas
sejam direcionadas para esse indivíduo em específico, mas sim para aqueles
que terão acesso a elas e podem pender rumo a nossa base marxista.

Conclusão
Diante da exposição apresentada no decorrer deste texto, podemos constatar
que a juventude comunista está munida de um fardo pesado, criado através
do sangue e suor daqueles que lutam ou já lutaram pelo movimento prole-
tário internacional. Nossas ações nos dias que correm representam a todos
os irmãos e irmãs dessa luta e não devem ser desperdiçadas ou produzidas
de um modo tão descortês que afaste a classe proletária de nossa causa. Ao
contrário, a juventude comunista deve se esforçar pela evolução, ter sede de
avançar a revolução brasileira e internacional, apoiando a causa comunista
como um objetivo tão importante que estará disposta a abraçá-la desde muito
cedo, afinal, se não formos nos arriscar por uma sociedade mais igualitária,
autossuficiente e benéfica a nós, para que o faremos?
A União da Juventude Comunista é um espaço que está aberto para abri-
gar jovens dispostos a debater e estudar política almejando uma sociedade
mais justa para a classe trabalhadora caso seja o interesse do leitor deste
texto. Organizar-se como um militante ativo é uma responsabilidade difícil,
mas os variados meios para desempenhá-lo são o único modo de alcançar
nossos objetivos, encontrar-se com jovens comunistas ao mesmo tempo
que aprendemos também a compartilhar nossa ideologia com as pessoas
fora do campo político se torna nosso dever, compreendendo o balanceio
entre se declarar enquanto jovem comunista, carregando orgulho por este
título e fazendo-o por merecer, ao mesmo passo que saibamos os momen-
tos nos quais propagar as ideias comunistas antes que se mostrem como tal
podem surtir maior efeito, pois, de modo infeliz, aquilo que nos acusam de
ser e aquilo que somos muitas vezes são concepções destoantes.
Por fim, faço o encerramento do discurso de Che Guevara (1962) o mesmo
de meu texto e, de suas palavras, as minhas: “Num momento dado, num dia
qualquer dos anos que venham após passarmos muitos sacrifícios, sim, de-
pois de termo-nos porventura visto muitas vezes à beira da destruição- após
termos porventura visto como as nossas fábricas foram destruídas e de tê-las
reconstruído de novo, depois de assistirmos ao assassinato, à matança de mui-
tos de nós e de reconstruirmos o que for destruído, ao fim de isso tudo, um dia
qualquer, quase sem repararmos, teremos criado, junto dos outros povos do
mundo, a sociedade comunista, o nosso ideal.”
115
o futuro, nº1
REFERÊNCIAS

DESTAQUE. União da Juventude Comunista. Disponível em: https://ujc.org.br/category/


destaque/. Acesso em 21 maio. 2020.
GUEVARA, C. O que deve ser um jovem comunista? Verde Olivo, Havana, ano 3, n. 43,
28 nov. 1962.
HISTÓRIA da UJC. União da Juventude Comunista, 22 ago. 2012. Disponível em: https://
ujc.org.br/?s=Hist%C3%B3ria+da+UJC. Acesso em: 21 maio. 2020.
LÊNIN, V. I. Que fazer?: Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expres-
são Popular, 2010.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
NOTAS Políticas. União da Juventude Comunista. Disponível em: https://ujc.org.br/cate-
gory/notaspoliticas/. Acesso em 21 maio. 2020.
JOSEF V. Stálin. Marxists, 25 out. 2019. Disponível em: https://www.marxists.org/portu-
gues/stalin/index.htm. Acesso em: 22 maio. 2020

116
Pandemia na Razão –
rascunho para
uma crítica
Fábio Ornelas1

O mal maior da memória recente

P
ode parecer contraditório, mas o isolamento em certa medida serve de
termômetro de sociabilidade, um medidor em razão inversa: quanto
mais adesão ao isolamento, mais transparece uma relativa sociabili-
dade de um país. Pode até parecer óbvio para alguns, mas somos seres sociais.
Os mais aristotélicos podem achar graça, “animais políticos”, complementa-
riam. Mas como nos lembra sempre um velo barbudo, se a aparência coinci-
disse com a essência, não teria porque existir ciência. Obviamente não se trata
da primeira pandemia que a humanidade sofre, portanto, a novidade não é a
condição pandêmica da crise. Encontrar onde reside a novidade da questão
pode ser crucial para formular paradigmas de ação e resposta a toda estrutu-
ra ideológica que se forma como reação a este fenômeno biológico. Em certa
medida, o choque que faz parecer novidade que sejamos frágeis a um contágio
global está em nossa fragmentação da memória,; pouco nos é permitido ter
esse olhar histórico como realismo crítico. Walter Benjamin nos alertava que
a barbárie não mantém impune nem os mortos, pois a luta de classes também
se dá pela memória. De modo que, também não é nenhuma novidade que a
história enquanto disciplina escolar seja alvo preferencial de políticas de su-
focamento, seja pelo reducionismo ideológico ou pelo corte direto ao acesso.
Esses conflitos nos criam um certo corte no elo racional que orienta uma socie-
dade, uma certa forma de assalto a razão, para lembrar a obra de mesmo nome
de um certo filosofo húngaro, György Lukács, que não tem sido imune a essa
mesma forma de apagamento pela memória.
Não quero ser ingênuo de ignorar, que tanto hoje quanto no passado, essa
adesão à sociabilidade através das respostas emergenciais a contágios, epidê-
micos ou pandêmicos, tem se dado por ferramentas de barbárie. Essa pande-

1 Fábio Ornelas está em busca da longa saga pelo diploma, atualmente trancou um
curso de filosofia pela Unesp, por problemas pessoais, mas segue estudando por
conta própria. Militante da UJC há um curto tempo, segue se inspirando na memó-
ria dos mais célebres nomes do Partido Comunista Brasileiro. 117
o futuro, nº1
mia deveria lembrar também aos mais idealistas que esse ser social não é um
solo separado dos seres biológicos, mas essas duas particularidades fazem par-
te de uma mesma existência. Assim, no passado, sociedades se privavam do
convívio com aqueles marcados com a peste, que por sua vez se viam libertos
a uma condição de negligência que os condenava a morte mais cruel. Fatos re-
centes nos demonstram que, em países como Filipinas e Índia, a violência tem
servido de signo orientador da barbárie que com ferro quente marca no tecido
social o lugar de cada um na divisão social do trabalho. Já em outros casos, go-
vernos e lideranças de países mais ricos, e que curiosamente foram elogiados
em sua gestão de saúde pública, sem recorrer a agressão direta, empurram vio-
lentamente os cidadãos à sua devida posição perante a divisão internacional do
trabalho. Podemos lembrar os casos de Cingapura, onde os mais abandonados
eram justamente os imigrantes que cumpriam os trabalhos de necessidade bá-
sica para que as camadas médias e altas pudessem isolar-se em segurança, fato
que ao ser negligenciado gerou uma segunda onda de contágio. Ou mesmo o
caso alemão, em que o governo amplamente elogiado por sua postura pública
é o mesmo responsável pela imposição da agenda de austeridade e destruição
das políticas de bem-estar social que tanta falta fez nos casos espanhóis e italia-
nos, onde tivemos o maior número de mortos durante a fase em que a Europa
era o epicentro da pandemia. As respostas que temos a nossa disposição quan-
do nos vemos diante de uma crise sempre está limitada aquelas possibilidades
a nosso alcance. No passado, a deficiência cientifica levava a inconsequências
mais graves do que hoje, mas hoje ainda cometemos erros e negligências que
resultam do que vinha sendo tomado como projeto político no momento do
surgimento do novo vírus. É até certo ponto natural que certas crenças que
erguemos, sobre o que define nossas prioridades, entre em contradição com
as novidades que surgem na contingência dos fatos recentes. Buscar respostas
que nos orientem nesse momento não pode tirar de foco essa ambiguidade de
lidar com tudo aquilo que nos é novo e tudo aquilo que reproduzimos de velho.
A dinâmica de classes que orienta a política internacional gera um certo
recrudescimento das exigências que se impõem ao entendimento dos fatos so-
ciais, mas ao mesmo tempo é nessa contradição, entre o novo e inesperado e
o projeto pautado no passado, que temos novas superfícies de interação social
capazes de questionar a jurisdição vigente e os impactos humanitários que es-
sas relações de propriedade impõem a todos os despossuídos das ferramentas
de dominação de classe e gerência de estado. “Tudo que é sólido desmancha no
ar”, ou seja, a realidade concreta passa a predominar nos afetos cotidianos em
relação às sólidas estruturas ideológicas há tanto tempo construídas de acordo
com os interesses e bens particulares daqueles que detêm controle real dos
meios de produção. Em dado momento, aqueles que se viam privados do aces-
118 so a certos debates, começam a enxergar na sua realidade algumas incógnitas
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
que não podem ser automaticamente completadas na consciência com as ve-
lhas fórmulas que lhes foram impostas.
O elemento novo que vemos nessa crise não são, por enquanto, as reações
de cada ator político do cenário internacional. Vimos até agora uma intensifi-
cação quantitativa do que já tinha sido construído pelo interesse de classe de
cada elemento interno as relações geopolíticas, mas na prática pouca mudança
qualitativa. As condições em que vivemos seguem o roteiro clássico que vinha
sendo diagnosticado. Seja o de um interregno entre socialismo e barbárie, en-
tre um velho que está morrendo e um novo que não pode nascer; ou de uma
situação em que não há possibilidades de avanço, mas as correlações de força
seguem engajadas em não retroceder. Ao contrário do que um certo determi-
nismo sempre preconizou, o endurecimento da conjuntura não elevou o grau
de percepção das dominações de classe, apenas intensificou e reiterou a prática
alienada em que já estávamos inseridos. “Em momentos de sublevação, de gre-
ves, de agitação, é tarde para iniciar a distribuição de literatura”2, é nessa hora
que carecemos de estrutura de agitação e propaganda, suficiente para competir
com o aparelhamento midiático de hegemonia de novo tipo, que vemos cada vez
mais se comportando como ferramenta de desmobilização e desinformação em
massa. Traçar novos rumos é o que cabe a nós, que não temos dúvidas de que
o retorno à normalidade não é uma resposta razoável, uma vez que a barbárie
em que vivemos não só já não era novidade antes da pandemia, como também
se mostra pouco disposta a retroceder com o pós-pandemia. Boa parte de nos-
sas ações nessa crise vão orientar nossa receptividade ao debate público, em
especial com a classe trabalhadora. E por isso que é crucial o trabalho de soli-
dariedade de classe. Mas nada disso trará frutos sólidos de reorganização se não
utilizarmos da crítica racional dos fatos que temos ao nosso alcance para cons-
truir uma melhor comunicação e orientação para uma prática futura. Para isso,
proponho-me, a seguir, a esboçar alguns dos problemas que considero centrais
para reinserir uma crítica da ideologia dominante conforme ela tem se expres-
sado, e aproveito a ocasião para reorientar um breve trajeto metodológico que
debata as ferramentas com que construímos nossas armas da crítica.

A necessidade como questão central


Na literatura didática sobre o marxismo, é comum uma noção de inversão
materialista da dialética hegeliana, que teria se dado em determinada fase da
obra de Marx e Engels, mais precisamente com a fundação do que os autores
nomearam como materialismo histórico-dialético, resultado das discussões
de ruptura com os hegelianos de esquerda. Não cabe espaço aqui discutir as
2 LÊNIN, V. I. Carta a um camarada. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 22. 119
o futuro, nº1
especificidades desse processo de transição, da passagem da fase hegeliana à
fase marxiana da dialética. Cabe apenas alguns esboços, com a finalidade de
chegar a uma argumentação que nos forneça ferramentas pedagógicas para
entender as bases cognoscíveis do real e do concreto que temos diante de nós.
Sem desconsiderar “as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem
consciência desse conflito e o levam até o fim”3, sendo essas formas aquelas
essenciais para se entender como se orientam as práticas sociais dos sujeitos
em coletivo, em especial na crise biológica que vivemos, de tal modo que essas
ideias não apenas “obscurecem o verdadeiro caráter das coisas”4, mas também
atuam como uma espécie de prótese ou muleta, fornecendo “capacidade de
inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação para a ação”5. Ou seja,
investigar como é possível que ideias construídas pelos sujeitos são capazes de
atuar na prática contra eles mesmos.
Hegel, em seus textos de juventude, apresentou aquela que para mim seria
a mais clara e objetiva orientação da investigação filosófica: “a filosofia exige a
provação de que o ponto de vista escolhido se impõe como necessário”6. Para
nós, tomar um posicionamento, enquanto análise conjuntural da sociedade,
de forma a cumprir o rigor cientifico e objetivo, impõe uma segunda exigência
como problema: demonstrar a necessidade de uma tomada de perspectiva so-
bre a lógica do objeto exige, como necessidade, que se atenda a razão evidente
do objeto durante sua exposição; a lógica do objeto se impõe como necessária
à especulação. Exposições, involuntariamente, implicam uma teleologia argu-
mentativa, que por sua vez, demonstram sua necessária afirmação. A tomada
de posicionamento feita de forma isolada, espontânea, puramente especu-
lativa ou intuitiva, só pode ser vista como impositiva de maneira arbitrária,
unilateralmente imposta, baseando-se em autoridades ocultas as finalidades
imediatas da questão ou dos sujeitos envolvidos nela.
Essas tomadas autocráticas de posicionamento, não são como um raio em
céu limpo, que surpreendem justamente por se impor com a autoridade sub-
jetiva de um sujeito especifico, mas fazem parte de um processo especifico
de caráter humano, e que por não se orientar pela razão comum pode cair no
flerte irracional tanto com o imobilismo quanto com a barbárie. Talvez para
Hegel esse processo não seja estranho, uma vez que, para ele, “constituindo
o pensamento a essência e o conceito do espírito, este só se satisfaz quando
penetra de pensamento todos os produtos da sua atividade e assim os torna
3 MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2008. p. 50.
4 LARRAIN, J. Ideologia. In: BOTTOMORE, T. (org.). Dicionário do Pensamento Mar-
xista. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 270.
5 Idem, p. 273.
6 HEGEL, G. W. F. Estética. São Paulo: Abril; Nova Cultural, 2000. p. 32. (Coleção Os
120 Pensadores)
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
verdadeiramente seus”7. Como seres sociais, somos empaticamente impelidos
em nosso cotidiano a processar os fatos a nosso redor de forma arbitrária, e
cabe às interações entre sujeitos, próprias da história do conhecimento filosó-
fico-científico, criar ferramentas que possibilitem um engajamento comum,
fundando bases universais de diálogo entre os seres, uma epistemologia.
Uma característica prolixa dessa conceituação dialética do conhecimento
está justamente em reconhecer que um objeto de conhecimento é produto e
produtor do conhecimento. Sendo assim, conhecer a realidade se dá pela con-
tinua consideração do processo em sua constante reprodução, ou reinserção,
subjetiva no processo histórico, atividade essa que se concretiza enquanto uma
produção intelectual humana. É importante frisar que Marx nunca nega essa
estrutura lógica da dialética hegeliana, mas apenas ressalta aquilo que ficou
em segundo plano em Hegel: entender como o processo cognitivo humano se
concretiza enquanto realidade ativa, depende diretamente da busca pela ne-
cessidade causal da formulação cognitiva; podemos praticamente afirmar que
é apenas na sua virada materialista, realizada por Marx e Engels, que a dialéti-
ca hegeliana atinge sua concretude efetiva e necessária.

Fato e Valoração
Com a virada materialista da dialética, não mais se exige apenas que as toma-
das de posição na ciência provem sua necessidade, mas também que os objetos
de sua argumentação sejam necessariamente entendidos segundo seu processo
real, concreto. Essa concretude depende, por sua vez, de uma abordagem que
indispensavelmente leve em conta as interações reciprocas nas quais se envol-
vem o simples fato ontológico de existir. Dessa forma, para que se tenha uma
análise concreta da realidade concreta, necessitamos antes de tudo considerar
a interdependência entre: necessidades fisiológicas, do ser orgânico, como co-
mer, beber, dormir etc.; e as necessidades psicológicas e cognitivas do ser social.
Lembrando sempre que quando separamos categoricamente um ser em orgâni-
co e social, não estamos falando de objetos diversos, mas instâncias diferentes
de uma mesma existência, sendo esse objeto a humanidade em sua plenitude.
Apenas por caráter ilustrativo, alguns conceitos comuns sobre o significado
de economia podem nos ajudar a repensar as prioridades econômicas no pla-
nejamento societário. De acordo com Rousseau, na sua contribuição a enciclo-
pédia francesa: “A palavra economia vem de casa e de lei, e significa de ordiná-
rio apenas o governo sábio e legítimo da casa, em vista do bem comum de toda
família”8. Quando o assunto é a origem do conceito de economia, há uma pre-
7 Idem, p. 38.
8 DIDEROT D.; D’ALEMBERT, J. L. R. (orgs.). Enciclopédia: Política. v. 4. São Paulo: 121
o futuro, nº1
valência original na atenção das necessidades humanas em jogo na sociedade;
inicialmente instituído para abordar o reduto familiar “o sentido do termo foi
em seguida estendido para o governo da grande família que é o Estado”9, e sur-
gem distinções também quanto a economia geral ou política, e entre economia
doméstica ou particular. Em um dicionário moderno, a definição se apresenta
como: “1. Contenção nos gastos. 2. Ciência que trata dos fenômenos tocantes à
produção, distribuição, acumulação e consumo dos bens materiais”10. Embora
a segunda definição pouco divirja da apresentada pela enciclopédia, a primeira
definição já nos propõe uma forma completamente moderna de pensar a eco-
nomia, pela chave da contenção de gastos. Enquanto, para uma definição, há
uma predominância da atenção básica, da questão da necessidade, sendo de
caráter contingente que essas necessidades passem por lógicas de escassez ou
abundância, para outra definição já se parte pela inversão completa dos senti-
dos, e não mais se torna prioridade da economia o atendimento a necessidades
humanas, mas ao acumulo pela lógica da escassez e austeridade.
A história da economia, assume assim a forma de uma história de como uma
“Ciência que analisa e estuda os mecanismos referentes à obtenção, à produção,
ao consumo e à utilização dos bens materiais necessários à sobrevivência e ao
bem-estar”11, se transformou em apologia do sistema jurídico que mantém as
relações de propriedade que impedem a plena posse dos sujeitos produtores dos
resultados positivos da produção social. Podemos ter uma descrição literal dessa
dinâmica quando vemos hoje profissionais da saúde sofrendo diretamente com
a falta de equipamentos básicos de segurança própria, deixando-os incapazes
de desfrutar da mercadoria saúde que fornecem com seu trabalho, o que resulta
diretamente no entendimento de que sua vida é descartável perante o acúmulo
e distribuição de recursos de acordo com a ciência da contingência de gastos.
Mas é exatamente sobre essa alienação da finalidade técnica da economia que se
ergue todo o negacionismo que propõe a falsa dicotomia entre economia e saú-
de, porque na essência primária das ciências não existe uma independência do
conhecimento em relação a humanidade. No entrelaçar entre os conhecimentos
da física, química e biológica adquiridos pela humanidade, é natural que se siga
uma certa impessoalidade no registro, e que os resultados conclusivos dessas
áreas de conhecimento se distribuam com uma certa desigualdade combinada,
simultânea, a depender de prioridades estranhas a esses mesmos pesquisadores
pois cumprem uma lógica pertinente a divisão social do conhecimento. Que por
sua vez não existe isolada em uma realidade pura, interagindo diretamente com

Editora Unesp. p. 106.


9 Ibidem.
10 FERREIRA, A. B. H. . Minidicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993. p. 196.
122 11 Disponível em: https://www.dicio.com.br/economia/. Acesso em: 28 maio. 2020.
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
a divisão social do trabalho, que por sua vez responde diretamente à distribuição
da posse dos meios de produção. Mesmo que o senso primeiro do pesquisador o
leve a crer que a distribuição desigual das conquistas adquiridas através de seus
estudos se dê unicamente porque os recursos naturais são escassos, seguindo
um certo materialismo ou realismo ingênuo, é ilusório acreditar que haja qual-
quer forma de imparcialidade do projeto científico em relação a seus resultados
diretos quando posto em prática. Isso porque quem orienta a distribuição dos
recursos, e invariavelmente a contingência de gastos, na sociedade de classes,
não são as necessidades fundamentalmente materiais dos seres, mas a divisão
social desses em relação às suas propriedades.
Podemos seguir, concordando com Marx, que “a totalidade dessas relações
de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem for-
mas sociais determinadas de consciência”12, sem nos furtar de atender a um se-
gundo questionamento. Parece-me, que a contradição central entre os dois con-
ceitos, apresentados acima, sobre a função da economia se dão em cima de uma
divisão muito mais profunda do que a falsa dicotomia entre economia e saúde.
O economicismo, por sua vez, não nasce da análise de que em cima de uma base
econômica se ergueu uma estrutura jurídica ou ideológica. Muito pelo contrário:
as bases jurídicas de manutenção e reposição do acúmulo monopolista passam
a cumprir ideologicamente uma falsa função econômica, como se ela fosse a
real economia quando nada mais é do que o processo de espoliação. Assim, o
economicismo burguês, enxerga toda uma base ideológica do que supostamente
seriam as necessidades da produção e da economia, e ergue sobre ela toda a
padronização de orientação prática da divisão social do trabalho. Nessas condi-
ções, como é de praxe, não é estranho que a reflexão das coisas na consciência
se dê em chave inversa em relação às suas dinâmicas na ordem real. É bastante
curioso que a metáfora escolhida por Marx para explicar o caráter fetichista da
mercadoria seja justamente pela reflexão luminosa da imagem na córnea:

E impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não


se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio
nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está
fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um
objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o
olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas.13

12 MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popu-


lar, 2008. p. 49.
13 MARX, K. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 147. 123
o futuro, nº1
Gostaria de retomar o potencial metafórico desta citação, e radicalizar o grau
simbólico desta proposição. No terceiro volume do Capital, o conceito de ideologia
se apresenta de forma análoga a uma espécie de consciência invertida das coisas:

[N]a concorrência, tudo parece invertido. As figuras acabadas


das relações econômicas, tal como se mostram na superfície,
em sua existência real e, por conseguinte, também nas
representações por meio das quais os portadores e os agentes
dessas relações procuram obter uma consciência clara dessas
mesmas relações, são muito distintas e, de fato, invertidas,
antitéticas a sua figura medular interior – essencial, porém
encoberta – e ao conceito que lhe corresponde.14

Enquanto cumpre esse papel de consciência invertida das coisas, a ideo-


logia pode ser muito bem representada, sob linguagem figurada, retoman-
do a metáfora do nervo óptico. Isso porque, assim como o aparelho visual
inicialmente recebe um reflexo luminoso invertido, corrigido pelo processo
cerebral, a consciência social básica se inverte no senso comum: as necessi-
dades reais dos sujeitos, quanto se manifestam como fato social, surgem ex-
pressas pela aparência ideológica; enquanto questões meramente formais,
ideologicamente estruturadas, só podem assumir empiricamente a aparên-
cia de fato consumado através da legislação vigente. Isso faz com que neces-
sidades básicas de subsistência, como pão, paz e terra, quando proferidas
como reivindicação, assumam um aparente viés ideológico, pois o concei-
to de base real da sociedade já se dá pela lei formal e hierarquia de poder
simbólico. E é assim porque os fatos sociais nunca são inéditos na história
humana, tudo se insere no momento presente apenas quando acontece no
imediato posterior de um passado, saibam os seres envolvidos ou não. Pala-
vras de ordem que reivindicam necessidades básicas, se inserem na ordem
pública retomando sempre uma série de reivindicações passadas, estejam
elas na intencionalidade dos que a pronunciam ou não. A prática que orienta
a divisão social do trabalho, se dá quando as relações de propriedade ante-
riores já estavam prontas. A forma como atendemos nossas carências de
base real sempre ocorre em uma concretude em que uma superestrutural
jurídica já estava formada. Por esse motivo, na passagem da acumulação
primitiva para a sociedade burguesa, persistem, em algum nível, modos de
dominação coerentes apenas nos antigos modos de produção, como no fa-
moso paradigma do desenvolvimento desigual e combinado. Diz Marx, em
seu esboço sobre as Formas que precederam a produção capitalista:
14 MARX, K. O Capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da
124 produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 245.
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
Na economia burguesa – e na época de produção que lhe
corresponde -, essa exteriorização total do conteúdo humano
aparece como completo esvaziamento; essa objetivação
universal, como estranhamento total, e a desintegração
de todas as finalidades unilaterais determinadas, como
sacrifício do fim em si mesmo a um fim totalmente exterior.
Por essa razão, o pueril mundo antigo, por um lado, aparece
como o mais elevado. Por outro, ele o é em tudo em que se
busca a forma, a figura acabada e a limitação dada. O mundo
antigo representa a satisfação de um ponto de vista tacanho;
ao passo que o moderno causa insatisfação, ou, quando se
mostra satisfeito consigo mesmo, é vulgar.15

Nos vemos diante do ponto que separa, de modo antagônico, aqueles que
participam da produção social, uma vez que toda produção depende de sólidas
experiências construídas enquanto consumadas socialmente, e aqueles que
juridicamente detêm apenas a posse simbólica sobre todo esse aparato. Ou en-
tão, sendo mais sucinto, tendo como base real a sociedade, como é possível que
tenhamos erguido sobre ela uma estrutura cujo interesse principal se revela na
dissolução total de qualquer forma de sociabilidade?

O discurso e o ponto de flexão


A necessidade de repensar a economia não se baseia apenas em fatores no-
vos, porém, algumas crises esporádicas revelam condições inéditas em que
a prática alienada se torna irrealizável em seu molde comum. O produzir em
simultâneo, tanto do produto quanto do ocultamento da distribuição social,
enfrenta uma pausa momentânea, em que se dificulta a manutenção da he-
gemonia padrão e do monopólio das propriedades socialmente produzidas.
Nessas situações, temos a emergência de sintomas sociais, ou seja, os sinais
de ocultamento da dominação na distribuição das propriedades se manifes-
tam de forma invertida, e o caráter de transformação para novos discursos
orientadores da prática social corre o risco de assumir outro valor referen-
cial, uma nova forma de alienação. Mas, por um breve momento, a luta de
classes se manifesta em sua forma pura, despida de seu caráter ideológico,
como se aguardasse um diagnóstico capaz de torná-la visível a olhos nus.
Ponto exato em que o proletariado “apenas revela o mistério de sua própria
existência, [...] aquilo que nele já está involuntariamente incorporado como
15 MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 400. 125
o futuro, nº1
resultado negativo da sociedade”16, e logo em seguida “ficará evidente, então,
que o mundo há muito tempo já possui o sonho de algo de que necessitará
apenas possuir a consciência para possuí-lo realmente”17.
Percebam que, as necessidades a serem atendidas só podem ser percebidas,
por sua vez, não como mero fenômeno, mas como questões de urgência. Isso
significa que os eventos e as valorações, formuladas sobre a forma como os
fatos são compreendidos, não devem ser orientados pela meta a se cumprir in-
telectualmente, mas objetivamente buscando cumprir necessidades concretas
de sobrevivência. Antes de formular como podem ser lidas essas necessidades
concretas, gostaria de destacar um detalhe crucial, a relação entre contenção
de danos e pesquisa cientifica nunca esteve tão evidentemente apresentada na
forma mais concreta de como ela realmente se dá, através da interação recipro-
ca entre a realidade objetiva e a normatividade subjetiva. Resumindo, a busca
pela solução do problema causado pelo surgimento do novo vírus depende das
descobertas coletadas pela observação dos resultados, que, por sua vez, são
obtidos na própria realização efetiva da contenção do vírus, e, de forma inter-
dependente, a própria contenção do vírus, por sua vez, depende dos resultados
da interpretação a posteriori dos fatos. Em casos extremos como esse, as rela-
ções de poder, que orientam a prática social da qual dependem as ações que
devem ser tomadas, se comportam de maneira completamente atípica. Atípi-
ca porque emerge uma nova necessidade concreta, que não depende mais da
clássica formulação organizativa ou jurídica que orienta o sistema de decisões
normativas da economia política, enquanto teoria de matriz neoclássica, pelo
simples fato de que as necessidades pautadas pela acumulação do capital não
resolvem mais os problemas que temos e nem garantem a segurança dos que
são os responsáveis por este acúmulo, a classe trabalhadora. A questão central,
em resumo, converge em duas necessidades: o desenvolvimento de pesquisa
sobre o vírus em seus efeitos práticos, e a contenção de danos preocupada em
reduzir o número de mortos, o que depende por sua vez das recomendações
que têm em base a teoria adquirida e coletada através do que foi diagnosticado
com os resultados imediatos e muito recentes.
Quando digo que a forma de organização social, jurídica e econômica que
temos não garante segurança de seus responsáveis, quero deixar bem claro
que por acumulação do capital não deve ser entendido por produção de rique-
za, mas centralização do lucro da produção social que por sua vez é convertida
em propriedade privada de poucos. O sistema que temos se orienta não com
base na riqueza das nações, o que possibilitaria cogitar a hipótese de uso da

16 MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução. In: MARX, K. Crítica


da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 162.
17 MARX, K. Cartas dos anais franco-alemães (De Marx a Ruge). In: MARX, K. Sobre a
126 questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 73.
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
renda acumulada com a proteção social, mas na ideia de riquezas privadas de
uma nação. Expostos os preceitos iniciais dessa argumentação, gostaria de res-
saltar que, na questão do negacionismo da ciência, o governo brasileiro não
está isolado, e não estando isolado, ecoa no presente momento a preocupação
restrita não dos que apoiam diretamente o governo no discurso, indo às ruas
representar as palavras de ordem religiosamente formuladas em defesa da
economia em falsa oposição com a saúde pública, mas daqueles detentores da
forma privada das riquezas de uma nação. No terceiro volume do Capital, Marx
já havia destacado que “a divisão meramente quantitativa do lucro bruto entre
duas pessoas que possuem títulos distintos sobre o mesmo capital [...] conver-
te-se, assim, numa divisão qualitativa tanto para o capitalista industrial que
trabalha com capital emprestado como para o capitalista monetário que não
investe diretamente seu capital”18, existindo assim uma distinção pura, quali-
tativa, entre o proprietário do capital e a mera acumulação quantitativa através
da expropriação da renda socialmente produzida. É mais do que necessário,
para construir uma oposição ao discurso que cria uma falsa predominância da
necessidade de salvar a economia contra as reais necessidades de preservação
das vidas, vulneráveis a infecção no caso de não se modificar a organização
produtiva da sociedade, identificar aqueles setores da burguesia que, por se
destacarem qualitativamente da população em geral, podem manter seu isola-
mento e prevenção necessária à saúde sua e de seus agregados, a classe ociosa
arrendatária, tão bem descrita por Thorstein Veblen, mas exigem justamente
dos que qualitativamente cumprem função reificada como simples custo de
manutenção da ordem reprodutiva do lucro e sustentação do capital financeiro
sua caminhada na vanguarda da produção em função análoga a descartáveis
buchas de canhão, das quais o exército de reserva aparenta-se sempre capaci-
tado a constantemente repor-se.

18 MARX, K. O Capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da


produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 424. 127
128
A política é
violência
Fernando Savella1

Política contra as margens

A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e pelos


postos da polícia. (...) Nos países capitalistas, entre o explorado
e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral,
de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao
contrário, a polícia e o soldado, pelas suas intervenções diretas e
frequentes, mantêm o contato com o colonizado e aconselham-
no, com golpes de coronha ou incendiando as suas palhotas,
que não faça qualquer movimento.2

F
anon é um desses marxistas que trazem a teoria diretamente para o
que há de mais visceral no conflito entre as classes e os povos, preci-
samente a forma mais avançada da teoria marxista - aquela que vai de
encontro com a urgência das lutas de classe, com a inquietação e os impulsos
dos dominados. Em sua análise sobre as condições de luta social e de liberta-
ção nacional na África, o argelino une num mesmo movimento a política bur-
guesa e a violência colonial que acomete o povo africano, despindo sua análise
de qualquer caráter ascético da política em sua dimensão ideológica. Ou seja,
a política não é, para Fanon, a superação da violência em direção à razão e ao
diálogo como preconiza a ideologia burguesa, nem a superação do primitivo
pelo moderno. É uma forma de organização do poder que se assenta sobre a ex-
clusão radical das massas antagônicas aos interesses da classe dominante. Não
apenas o Estado em determinada configuração ou sob um determinado gover-
no vinculado a uma classe, mas todo o seu aparato, incluindo sua disputa insti-
tucional e os valores que o cercam. Não à toa na luta pela libertação do país “[a]
arte política transforma-se simplesmente em arte militar. O militante político é
o combatente. Fazer a guerra e fazer política é uma e a mesma coisa.”3

1 Fernando Savella é cientista social, formado na Unicamp, militante do Partido Co-


munista Brasileiro e da União da Juventude Comunista.
2 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969.
3 Ibidem, p. 136. 129
o futuro, nº1
A política institucional, a forma dos partidos políticos tal qual existiam e
continuam existindo na África e em todo o mundo capitalista, foi uma forma
importada das metrópoles e, notadamente, desenvolvida conforme se desen-
volvia a burguesia e a intelectualidade urbana. Não há qualquer expressão ou
representação da sociedade colonial em sua conformação política oficial e as
forças que ali disputam, mas uma organização artificial de interesse dos colo-
nizadores e das camadas urbanas que se vinculavam ao colonialismo – como
camadas intermediárias entre a burguesia da metrópole e seus representantes;
e a massa marginalizada jogada à pauperização.

Os intelectuais colonizados que estudaram nas suas


respectivas metrópoles o funcionamento dos partidos
políticos, criam formações semelhantes com o fim de
mobilizar as massas e de fazer pressão sobre a administração
colonial. O aparecimento de partidos nacionalistas nos
países colonizados é contemporâneo da constituição de
uma elite intelectual e comerciante. As elites atribuirão
uma importância fundamental à organização como tal e o
fetichismo da organização prevalecerá frequentemente sobre
o estudo racional da sociedade colonial.4

Os partidos políticos seriam, assim, uma “noção importada da metrópole”,


e segue o argelino: “O grande erro, o vício congênito da maioria dos partidos
políticos nas regiões subdesenvolvidas, foi ter-se dirigido, segundo o esquema
clássico, principalmente às elites mais conscientes: o proletariado das cidades,
os artesãos e os funcionários, quer dizer, uma ínfima parte da população que
não representa muito mais do que um por cento.”5
A conformação social materializada pelos partidos políticos agia, nos momen-
tos de acirramento das lutas de classe, contra os impulsos das camadas radicais do
campo ou, ao apoiá-los, desmobilizando-os. As organizações próprias da forma
colonial imposta na colônia atuando no sentido de integrar – canalizar, melhor
dizendo – os impulsos populares à ordem colonial. Reproduz-se nesse bojo a ideia
da violência como resposta irracional aos problemas sociais, identificando-a com
uma postura animalesca do campesinato, do povo de fora das cidades, aquele das
cabanas e barracos. Tudo oposto ao que é desejável na realização da sociedade
europeia, ou melhor, na realização da ideologia oriunda da Europa, imposta nas
cidades africanas e adaptada às oposições próprias das colônias.
Produz-se na sociedade colonial o terreno (geográfico!) em que as mediações
são as armas, a guerra aberta às massas, e o terreno em que as mediações são as
4 Ibidem, p. 110.
130 5 Ibidem, p. 111.
A política é violência, savella
instituições políticas limitadas apenas a algumas camadas sociais minoritárias,
que pretendem representar a totalidade de uma sociedade, mas que assumem
não poder fazer nada sobre o caráter animalesco das massas. Mesmo a instala-
ção, com a independência das colônias por todo o mundo ou seus desenvolvi-
mentos ulteriores em repúblicas, da “democracia”, o sistema político não apenas
é permeado, mas constituído pelo encastelamento de uma minoria, inicialmen-
te relacionada à grande propriedade e mais tarde relacionada à formação de
uma intelectualidade urbana e suas bases sociais pouco mais amplas.
Expressão intelectual da organização política capitalista, a apologeta do ge-
nocídio e do racismo Hannah Arendt postula que a realização da política, da ra-
zão, não pertence à ação das massas, tomadas como irracionais uma vez que
suas preocupações se voltavam para sua sobrevivência imediata e os negócios
de seus ofícios específicos. Pertence às elites proprietárias e comerciantes, a
quem cabe o ócio, a formação intelectual e a visão “geral” da sociedade dada a
natureza abrangente de seu ofício (aqui reproduzo mais diretamente a versão
dos federalistas norte-americanos, protagonistas do evento mais elogiado por
Arendt). Aquelas elites que organizaram a independência dos Estados Unidos
e – sim – estabeleceram uma democracia não apenas limitada aos ricos, como
também aos brancos. Os movimentos de massa teriam, segundo Arendt, levado
apenas à desordem pública, exemplificando com as revoluções russa e francesa,
que pareciam constituir para a própria casos autoevidentes de desordem.6
Através de uma ideologia que opõe e identifica socialmente a razão dos “com-
petentes politicamente”, pertencentes às camadas abastadas e com acesso à forma-
ção intelectual, contra a não-razão dos “incompetentes” e violentos, pertencentes
às camadas populares e despojadas da propriedade, ocorre um movimento duplo e
muitas vezes simultâneo. O fortalecimento daquilo que Gramsci reconheceu como
a sociedade civil, as trincheiras ideológicas e privadas da dominação nas sociedades
“ocidentais” (as aspas explico a seguir), deslocando a dominação da coerção para a
construção do consenso através das disputas de hegemonia; e a imposição dessa
ideologia nas ex-colônias, implementando instituições políticas com formas e esté-
tica europeias, e funcionalidade, limites e contradições propriamente periféricas.
Nenhuma democracia nasce diretamente com o sufrágio universal, e muito
menos com mecanismos que permitam o acesso efetivo das massas às disputas
pelo poder, e apesar de desde seu nascimento a ideologia dominante sobre tal for-
ma política ser aquela da representação universal identificada com o exercício da
razão, o desenvolvimento das democracias é sempre descontinuado e trata-se de
uma história de exclusão e inclusão das massas a depender da correlação de forças
nas lutas de classe. O duplo movimento da sociedade civil nos países centrais e na
periferia do capitalismo foi bem identificado por Cueva7 em sua crítica a Gramsci
6 Conferir Da Revolução (1963) e A Condição Humana (1958), da própria.
7 Conferir Teoria Marxista: Categorias de base e problemas atuais, em especial o 131
o futuro, nº1
e à recepção de Gramsci na América Latina como um efeito do imperialismo. Por
isso é que, enquanto falamos da modernização da política e o fortalecimento do
consenso na dominação, não podemos falar em abstrato, mas localizadamente
nos países centrais do capitalismo, e ainda mais especificamente, na Europa. Por
isso essa caracterização da sociedade civil não pode ser conferida às sociedades
ocidentais, mas a uma posição específica na divisão internacional do trabalho.
O “consenso” como eixo da dominação não pode ser entendido, portanto, como
resultado geral do desenvolvimento capitalista, mas sim como um resultado loca-
lizado da organização mundial das contradições internas desse desenvolvimento,
relegando à periferia a coerção como regra e o “consenso” como elemento social-
mente restrito que integra uma ideologia de sustentação do Estado, da “sociedade
política” (utilizando o arcabouço gramsciano) ainda sustentada pela força física.
Não é à toa que a última crise mundial, bem como o fluxo de refugiados dos con-
flitos das periferias para os países centrais – dois fenômenos que fizeram crescer a
relevância das populações marginais na Europa, de estrangeiros, desempregados,
habitações precárias e favelas etc. – tiveram como resposta política a violência po-
licial, a exclusão espacial, criminalização de hábitos e da existência das populações
marginais, bem como – algo sempre à luz da mídia – a ascensão da extrema-direita
no movimento que os pensadores liberais chamam de queda da democracia.

Civilidade para os civilizados


Na América Latina, importamos o discurso de “queda da democracia” em relação
aos nossos próprios movimentos de extrema-direita. Porque já havíamos impor-
tado antes a noção de que temos aqui democracias plenas e bem estruturadas, a
despeito da exclusão radical das massas em relação ao poder político. No entanto,
as palavras de Werneck Sodré, dirigidas ao Brasil, continuam verdadeiras:

Não era sem razão que a Constituição de 1824 consignava


que aos parlamentares cabia o tratamento de “altos
e poderosos senhores”. Eles eram, realmente, altos,
poderosos e senhores – senhores de terras e de escravos
ou de servos, altos pela distância vertical que os separava
dos que não eram senhores, poderosos porque detinham
todo o poder, reservavam-se todos os proveitos políticos
da Independência e moldavam o Estado à imagem e
semelhança de sua classe, faziam dele instrumento
adequado à defesa de seus interesses.8
capítulo “VI: Fetichismo da Hegemonia”. Publicação original: 1987.
132 8 SODRÉ, Nelson Werneck. Quem é o Povo no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Bra-
A política é violência, savella
Até a ditadura militar-empresarial, a chamada democracia brasileira privava
formalmente a maior parte das massas trabalhadoras e desempregadas, ora di-
retamente pelos critérios de renda, ora pelos critérios de alfabetização. Sodré es-
tima que em 1876 o eleitorado, ou seja, a comunidade política, constituía apenas
0,26% da população brasileira e em 1958, já após o estabelecimento de um Es-
tado moderno, com legislação trabalhista e depois de intensas movimentações
populares, a comunidade política ainda constituía apenas 44% da população
adulta. No golpe de 1964, a classe dominante já não podia mais conviver com a
existência de poderes políticos tão amplos. Para além desses números, formais,
ainda existem mecanismos de supressão dos direitos políticos, especialmente
no campo com a compra de votos, e por meio do recrutamento de quadros po-
líticos até hoje restrito às classes altas. É apenas em 2002 que podemos identifi-
car uma “popularização” (no sentido de deslocamento para baixo na origem dos
quadros políticos do Estado, não no sentido de entrada das camadas populares
em seus aparelhos) da composição parlamentar9, tendência muitíssimo tímida e
que já foi em grande medida revertida do golpe de 2016 para cá.
Com o surgimento e engrossamento do proletariado e das camadas popula-
res urbanas em geral, a dominação política teve de ser complexificada nos países
mais avançados da periferia capitalista, mas não através de um fortalecimento
genérico da sociedade civil, como descrito por Gramsci no contexto europeu. A
ampliação da sociedade civil no Brasil se deu apenas por meio da inclusão das ca-
madas médias urbanas, fortalecendo a base social da dominação, somando uma
classe ao esforço de exclusão das camadas populares, a quem nunca pode chegar
o acesso ao poder. Na periferia capitalista, a “sociedade política” e a “sociedade
civil” de Gramsci se confundem com a constituição de uma comunidade política
que é tanto o sujeito ideológico do poder quanto o bloco de aliança que impõe a
dominação sobre o proletariado, o campesinato e as demais camadas populares.
Na Bolívia, foi uma revolução (a de 1952) que impôs à classe dominante a
inclusão de trabalhadores e indígenas na comunidade política, antes constituí-
da apenas por brancos de ascendência europeia. E mesmo após a revolução,
a participação popular não foi ativa: seu limite eram os sindicatos, sendo a
prática propriamente política ainda reservada aos brancos. O Estado aparece,
nessas configurações primeiras da política latino-americana, como um Estado
explicitamente estrangeiro e colonial, impondo-se e excluindo os povos autóc-
tones e a massa trabalhadora pobre de todos os seus circuitos. Com o esta-
belecimento mais sólido das “instituições democráticas” não se acaba com a
exclusão, mas obscurece-a através da ideologia dominante, gerando consenso
entre as camadas incluídas na comunidade política e a paralisia dos excluídos.

sileira, 1962. p. 34.


9 Conferir RODRIGUES, Leôncio Martins. Mudanças na Classe Política Brasileira.
Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. 133
o futuro, nº1
A estes, é aconselhado “com golpes de coronha ou incendiando as suas palho-
tas, que não faça qualquer movimento”, retomando as palavras de Fanon.
Porém, essa paralisia não se dá somente por meio do convencimento ideo-
lógico. Na verdade, sob uma concepção marxista de ideologia, não podemos
sequer falar num processo de convencimento. A ideologia é construída justa-
mente como tradução das relações já existentes de poder e exclusão, já exis-
tentes e asseguradas pela força física e pela coerção econômica, divisão do tra-
balho e hierarquia do trabalho. Ela se transforma dependendo da camada que
atinge e é fundamentalmente determinada pela distribuição social e espacial
da violência, suas formas institucionais e a justificação ideológica da persegui-
ção policial e violência urbana contra as camadas populares.
Evidentemente, a exclusão das massas dos circuitos do poder que estruturam a
atual ideologia da competência política não se deve a uma incompetência natural
das massas para a prática política, e nem pela ausência de condições materiais de
desenvolverem competências objetivas para a prática política. Se deve ao fato de que
desde o estabelecimento do Estado na América Latina, a população trabalhadora
e as camadas marginais foram afastadas do direito político pelas armas – o Estado
sempre foi baseado na guerra contra as massas. Sua primeira mediação foi o esta-
belecimento da distinção de raças e da imposição da religião católica em território
americano. O poder existia explicitamente como forma de coerção das raças infe-
riores e não-católicas que “(...) não podiam gozar dos mesmos direitos que os leais
súditos das majestades católicas.”10 Segundo Mariátegui, os colonizadores emprega-
ram por toda a América diversos mecanismos de inferiorização e inimizade entre os
povos nativos e os trabalhadores integrados ao modo de produção, bem como entre
as “raças” e religiões, formas de justificar multilateralmente a escravidão, a superex-
ploração, a exclusão, a perseguição, a violência e até o assassinato.
No Peru, o estabelecimento da república, apoiada pelos indígenas e com
base num discurso que os incluía na nação contra os exploradores espanhóis,
não levou a outra coisa senão o aprofundamento da pauperização indígena,
e sua exclusão ainda mais radical do poder: “Todas as revoltas, todas as tem-
pestades do índio foram afogadas em sangue. Sempre foi dada uma respos-
ta marcial às reivindicações desesperadas dos índios.”11 Num país de maioria
indígena, o Estado funciona diretamente como repressor das necessidades e
reivindicações mais básicas das maiorias, especialmente relacionadas à pro-
priedade de terras, cuja conformação sob a “democracia” peruana é a da espo-
liação do território em favor dos latifúndios.
O crescimento e a inclusão política das camadas médias urbanas não
muda essa realidade de guerra aberta. A importação das concepções pro-

10 MARIÁTEGUI, José Carlos. Ideología y Política. Caracas: MINCI, 2006. p. 54.


11 MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana.
134 Caracas, Fundación Bibloteca Ayacucho, 1979, p. 36.
A política é violência, savella
priamente europeias de modernização institucional e a correspondência
das instituições com o que se chama idealmente de democracia, por sua vez,
também não muda nada na guerra contra as massas. Isso porque essa guerra
foi travestida sob novos signos, uma vez negados discursivamente e por meio
das leis a exclusão formal de raça, de rendimento e de analfabetismo, é a
violência a chave para a exclusão prática das massas.

Fuzis apontados
Há nas obras de Fanon e de Mariátegui uma grande similaridade: a crítica radi-
cal à ideologia da modernização capitalista pela sua existência política. Ou seja,
ambos realizam uma refutação materialista da ideologia que afirma o progresso
como uma faculdade branca e europeia, vinculada ao modo de produção que
trazem consigo como modo de produção dominante e suas formas materiais
(a cidade, as instituições, as leis e suas lógicas internas); em contraposição ao
atraso dos povos não-brancos, vinculados aos modos de produção nativos ou an-
teriores, à vida no campo e, especialmente, à pobreza e não adesão às lógicas
das instituições capitalistas que, não por coincidência, não são possivelmente
reprodutíveis senão entre as classes superiores e mais abastadas.
Objetivamente, estabelecem-se as fronteiras entre aquele mundo da razão
de Arendt, da população cuja condição material pode ser enquadrada na civili-
zação (aqui com um significado poderoso: quem pode ser civil, quem pode ser
cidadão), e aquele mundo, na mira das armas, da população cuja condição ma-
terial não pode ser enquadrada na civilização. Essa condição material é aquela
que sofre cotidianamente da violência estrutural da despossessão, da pauperi-
zação, da deterioração da própria saúde e desagregação social, aquela que não
tem a possibilidade de integrar-se ao modo de produção dominante e não tem
escolha senão viver à sua margem. Em Os Condenados da Terra, Fanon descreve
essas condições como fonte de uma sociabilidade essencialmente violenta, mas
a violência não é apenas uma expressão. É um meio de vida que salta das classes
populares como única opção de sobrevivência de muitos de seus integrantes e
como única resposta política possível contra uma política que lhes é imposta
com a força física. Em Ideologia e Política, Mariátegui descreve essas condições
como fonte de uma sociabilidade alienada, “ignorante” no próprio sentido da
desagregação social e da distância social dos espaços de circulação de ideias, de
política, de organização de classe. Dois aspectos que excluem essas camadas de
todos os marcadores sociais e mediações ideológicas que permitem a entrada
nos circuitos do poder, excluem todo o processo de sociabilidade marginal.
Com efeito, a política é o espaço por excelência dos intelectuais e dos tra-
135
o futuro, nº1
balhadores não-manuais. Uma instância social propriamente europeia, sua
constituição intelectual e não-manual já é diagnosticada pela sociologia e pela
ciência política europeias – e na América Latina essa constituição não se dá
de forma diferente, sendo a construção dos Estados nacionais impulsionados
fortemente pelas camadas médias urbanas. As forças sociais que constroem
positivamente o Estado o constroem como um espaço que valoriza e funcio-
na com base em competências socialmente designadas (em especial, àqueles
que logram obter títulos escolares, marcadores sociais de apreensão de com-
petências específicas), tornando-o permanentemente um espaço monopoliza-
do por determinadas classes sociais. Mesmo os órgãos não eletivos realizam
seu recrutamento com base nos processos de comprovação de competências
intelectuais adquiridas pelas trajetórias escolares, exigindo níveis de escolari-
zação não alcançáveis pelos mais pobres. Com uma lógica própria, a “relativa
autonomia”, a política não permite, enquanto for política institucionalizada, a
entrada direta daqueles que não possuem os marcadores próprios das camadas
médias e superiores, isto é, daqueles que não foram socializados por meio da
violência e da pobreza. Essa trajetória de classe é excluída do Estado e dos cir-
cuitos do Estado por sua própria lógica interna.
Assim como o exercício da medicina requer o título universitário de compe-
tência técnica atestada, o exercício da política requer marcadores, características
e relações objetivas que comprovem o pertencimento da classe a esse exercício em
específico. Às classes populares, essas permissões são negadas sistematicamente.
Ao ocupar o espaço público, as ruas, as classes populares são duramente repri-
midas pelas forças policiais, estabelecendo aí já uma forte oposição entre o Estado
com seus aparelhos e as massas expressando-se politicamente. Os partidos radicais,
cujos quadros são aqueles oriundos das massas, ora são ilegais, ora são rechaçados
nos meios públicos de circulação de ideias (os monopólios de mídia) e pelos partidos
da ordem por conta de seus programas radicais, que preconizam as armas e as re-
formas de base, inadmissíveis nos círculos mais abastados. Nascer em um território
urbano reprimido pelas forças policiais se converte num desses marcadores sim-
plesmente pelo pertencimento a uma classe por princípio oposta à razão de Estado,
expressa na ação dos seus aparelhos mantenedores da ordem social.
Não é permitido, assim, ao corpo marginal adentrar nos circuitos monopo-
lizados pelos dominantes. Seu efeito na política é completamente reduzido à
delegação de sua representação aos quadros dos partidos da classe média e da
burguesia. Frequentemente os partidos da ordem se apropriam das reivindica-
ções dos mais pobres, aparecem em seus bairros em campanha, para se verem
ou limitados pelas próprias instituições em seus mandatos, ou apenas se apro-
veitando oportunamente do apoio de uma grossa fatia da população para sua
vitória numérica nas urnas. Da mesma forma, o apoio popular a determinado
136 quadro das classe superiores, por mais que desejoso de levar adiante as reivin-
A política é violência, savella
dicações populares, não tem a capacidade de articulá-las num campo em que
essas mesmas massas não têm qualquer poder. O poder delegado a um repre-
sentante converte as massas em apenas um indivíduo calcando precariamente
alguma posição no interior das instituições do Estado.
A imposição de um poder político das classes superiores, da comunidade polí-
tica excludente e restrita, se baseia também na desarticulação da organização po-
pular. No campo, as lideranças populares são assassinadas pelo braço armado dos
latifundiários, quando não diretamente pelo Estado, cortando sempre qualquer
expressão efetiva da política radical das massas – diga-se, a única política possí-
vel das massas – uma vez que a radicalidade é surpreendida por todos os lados
pelas restrições legais de defesa da grande propriedade, da apropriação privada
do espaço. Nas cidades, os bairros periféricos e territórios de habitação precária
são estrutural e diretamente desagregados socialmente para impedir já na raiz
qualquer estabelecimento duradouro de solidariedade de classe, uma vez que a
vida é permeada em sua totalidade pela perseguição policial, pela fome, desem-
prego, desamparo e pela violência urbana. Ao atingir certo desenvolvimento, suas
lideranças são, também, assassinadas. No momento da revolta, as manifestações
de massa são duramente reprimidas e as prisões se multiplicam dia após dia. É
assertiva a descrição de Judith Butler desses processos: desamparados por todos
os lados, os corpos marginalizados se aliam para criar as condições materiais de
sua expressão e, unidos espacialmente ocupando o espaço público, desafiam a ca-
pacidade do Estado em calá-los.12 A classe média, por sua vez, ao ocupar o espaço
público se alia diretamente às forças repressivas, convertidas em doces amigos
dos manifestantes somente com a pitada mágica de sua posição social.
O instrumento último de controle político das massas na América Latina é o
golpe. A democracia do sufrágio universal, ainda que cem por cento permeada
pelos mecanismos de restrição das disputas do poder, possui suas contradições
ainda mais marcadas na periferia capitalista do que em seu centro. Não há
espaço para conquistas trabalhistas e nem para políticas populares em eco-
nomias dependentes, se baseando centralmente na superexploração do traba-
lho13, e o sufrágio gera um efeito perigoso para essas necessidades: os grupos
políticos, para perseguirem posições de dominância no Estado, podem se ba-
sear nas camadas populares e, para se reproduzirem no poder, dependem de
sua relação com essas camadas, gerando limitações na sua utilidade enquanto
dirigente político para a classe dominante. Esse movimento depende, é claro,
do fortalecimento das organizações e da consciência da classe trabalhadora,
alterando objetivamente a força desta classe na defesa de seus interesses. Nada

12 Conferir BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.
13 Sobre isso, conferir Dialética da Dependência, artigo de Ruy Mauro Marini. Publi-
cação original: 1973. 137
o futuro, nº1
disso pode ser tolerado – e é por isso que a história da América Latina é marca-
da por sucessivos golpes, tornando o Estado de exceção não uma exceção mas
a regra, já diria Agustín Cueva. Os golpes têm a função de aprofundar a política
econômica da dependência, aumentando os espólios da classe dominante na-
cional e das burguesias das economias centrais.14

Fuzil contra fuzil


Numa sociedade dividida em classes a política não pode nunca ser objetivamen-
te desvinculada ou oposta à violência. Os momentos de relativa paz social nas
“democracias consolidadas” das economias capitalistas avançadas têm seus fun-
damentos na violência generalizada na periferia do capitalismo mundial, seja
pela violência dos Estados periféricos contra suas próprias populações, seja pe-
las intervenções militares das potências imperialistas. Já no interior das econo-
mias periféricas, a aparente paz social reina apenas entre as camadas sociais
envolvidas diretamente na comunidade política, camadas às quais os aparelhos
de hegemonia se dirigem e disputam. A violência cometida contra as massas e
o desamparo sofrido pela marginalização e precarização de todos os aspectos
da vida da grande maioria da classe trabalhadora passam despercebidos pelas
camadas médias bem como não encontram na desagregada classe a capacidade
organizativa de resposta à altura. Mais do que isso, essa violência e desamparo
servem para marcar socialmente essas massas como inimigos do Estado, alvo
das operações policiais, do encarceramento em massa, da violência urbana per-
mitida com base na descartabilidade desses corpos marginalizados.
Reconhecer esse fato básico determina a estratégia a ser adotada pelos mo-
vimentos políticos das classes dominadas. Tais movimentos podem organizar a
força material dos dominados, seus instrumentos de organização e mobilização,
de disputa efetiva do poder de Estado. Ou podem organizar a força material dos
dominantes esperando encontrar dentro das instituições estatais, das pautas dos
monopólios de mídia e no abstrato “espaço público” onde se dá, não menos abs-
tratamente, o convencimento dos corações e mentes da população, ente ainda
mais abstrato. Neste último ensejo, aceita-se o discurso burguês contrário às so-
luções “radicais”, subordina-se à via sempre pragmática do que é possível reali-
zar em conjunturas muito específicas, assumindo sempre que os dominados não
possuem, no momento, a força para impor seu programa máximo.
Os dominados não estão livres em um espaço público prontos para serem
convencidos das vias de resolução de seus problemas. Estão coagidos a perma-
necerem em seus bairros, não exercerem solidariedade entre seus pares, pre-
14 Sobre isso, conferir A Política Econômica do Fascismo, artigo de Agustín Cueva.
138 Publicação original: 1976.
A política é violência, savella
sos em presídios, mortos em cemitérios. Coagidos, pela ponta do fuzil, a não
entrar no “espaço público” ao qual não pertencem. Ao reconhecer esta reali-
dade, toda a fraseologia contra o “autoritarismo” ou o “extremismo” dos movi-
mentos de massa deixam de fazer sentido. A revolução cubana, o ato justo e ne-
cessário de um povo contra seus exploradores, a organização popular armada
na Venezuela a muralha que impede o exército americano e os oportunistas de
tomarem do povo sua autodeterminação. A derrota de Allende, a consequên-
cia inevitável da superioridade bélica da contrarrevolução, o armamento da
Coreia Popular como a última possibilidade de sobrevivência do povo coreano.
Assumindo a posição dos dominados, nas palavras de Fanon:

[...] quando Kruschev brande o seu sapato na ONU e bate com


ele na mesa, nenhum colonizado, nenhum representante
dos países subdesenvolvidos ri. Porque o que Kruschev
demonstra aos países colonizados que o contemplam é que
ele, o mujique, trata esses miseráveis capitalistas como
de fato merecem. Também Fidel Castro, ao apresentar-se
na ONU com uniforme militar, não escandaliza os países
subdesenvolvidos. Fidel Castro demonstra apenas que
tem consciência da existência do regime continuador da
violência. O que é de espantar é que não haja entrado na ONU
com a sua metralhadora.15

15 FANON, Frantz. op. cit., p. 75-76. 139


140
A hora da
juventude do
mundo
Leonardo Silvestrin1

P
restes a iniciar uma nova década, as juventudes do mundo se deparam
com um futuro duro à sua frente. O mundo capitalista entra coordena-
damente em uma nova crise, cujos efeitos devastadores devem ser ainda
piores que o da última crise mundial de 2008. As economias capitalistas, que já
sinalizavam uma desaceleração ainda antes da pandemia, foram completamente
arrasadas pelo Covid-19 e pelas necessárias medidas de isolamento social que a
comunidade científica apontou como caminho para garantir a sobrevivência da
humanidade. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) analisa que a gran-
de crise de 2020 poderá ceifar cerca de 305 milhões de empregos – um número
assombroso que vem sido reatualizado continuamente, sempre para cima. Segun-
do a agência da ONU, a classe trabalhadora mundial pode perder 3,4 trilhões de
dólares em sua renda, devido a reduções de jornadas de trabalho e salários, o que
também sinaliza um aumento no subemprego e na consequente superexploração
das e dos trabalhadores empobrecidos. Os trabalhadores informais, mais explora-
dos e destituídos de direitos, podem perder 60% de sua renda globalmente, com as
maiores quedas sendo nas regiões da América Latina e África. Enquanto esse texto
é escrito, 346.459 vidas já foram perdidas na luta contra o coronavírus – e isso sem
contar as mortes causadas pela sobrecarga causada nos precários sistemas de saú-
de dos países que seguem a infame “lei do mercado”. A crise econômica e social
destrói as vidas dos povos, tanto os que vivem no topo da cadeia imperialista quan-
to os que vivem em países dependentes e semicoloniais. Enquanto isso, capitalis-
tas do mundo todo tentam jogar o peso do caos nas costas das e dos trabalhadores.
Bilionários estadunidenses ficaram 434 bilhões de dólares mais ricos durante a
pandemia, ao mesmo tempo em que mais de 40 milhões de pessoas já solicitaram
seguro-desemprego no Estado autoproclamado “líder do mundo livre”.

1 Leonardo Silvestrin é militante da União da Juventude Comunista e do Partido Co-


munista Brasileiro. Atua no núcleo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
também é militante na área da cultura. 141
o futuro, nº1
Nessa gigantesca convulsão social, a juventude é a parcela mais afetada.
Os jovens trabalhadores do capitalismo já eram mal pagos, tinham menos
direitos trabalhistas e estavam em empregos de maior rotatividade. Se, an-
tes da crise, o desemprego juvenil já era maior do que qualquer outro grupo
social, estima-se que um em cada seis jovens perderá seu emprego durante
a pandemia. Metade dos jovens estudantes do mundo relatam um “possí-
vel atraso” na conclusão de seus estudos, enquanto 10% acreditam que não
serão capazes de concluí-los. A crise econômica acelerada pelo COVID-19
impacta a juventude mais forte em relação a outros grupos sociais, e as
mulheres jovens são especialmente afetadas. De acordo com Guy Rider, di-
retor-geral da OIT, se medidas urgentes não forem tomadas, “talvez tenha-
mos de suportar o legado do vírus por décadas”, o que tornará o horizonte
daqueles que estão começando suas vidas ainda mais tenebroso do que já
se imaginava que seria anteriormente – o que, para aqueles que já acompa-
nhavam o desenrolar das crises políticas, econômicas, sociais e climáticas
do nosso planeta no pré-coronavírus, não parecia ser possível.
A geração dos jovens que cresceu entre os últimos trinta anos foi criada em
um momento em que imperavam as ideologias que alardeavam a vitória do
capitalismo, a generalização da democracia liberal “como valor universal” e
inerente resolvedora dos conflitos sociais, a impossibilidade das revoluções so-
cialistas e a falência do comunismo. Essa ideologia foi continuamente refutada
pelo desenrolar da luta de classes. Os momentos de “desenvolvimento pacífico
e democrático” do capitalismo foram interrompidos por contínuas crises que
desmascararam o caráter parasitário e antipopular desse sistema. As mesmas
mentiras que contaram aos nossos pais já não soam tão bem aos nossos ouvi-
dos, são uma infeliz caricatura de tempos que nunca chegaram a existir.
Não é à toa que a agência da ONU para assuntos laborais tenha afirmado
que essa é a mais grave crise internacional desde a Segunda Guerra Mundial.
Como foi também naquele momento, a crise do capital acirra todas as contra-
dições sociais da sociedade burguesa. Os conflitos interimperialistas, expres-
são da luta das classes dominantes para impedir a queda da sua taxa de lucro
às custas dos povos, se acirram de forma cada vez mais aberta e violenta, em
uma luta encarniçada entre as classes dominantes do mundo para ver qual
consegue se manter ou chegar mais perto do topo da pirâmide imperialista.
O caos social aprofundado na periferia e no centro do mundo capitalista tem
gerado uma série de insurreições semiespontâneas, que começam como ma-
nifestações pacíficas contra alguma injustiça particular e, após serem reprimi-
das pelas forças da ordem, tornam-se marchas de saqueios contra o comércio,
de destruição da propriedade privada e de enfrentamento constante contra
as forças da repressão, transformando-se em faísca que as classes dominadas
142 aproveitam para exercer sua vingança contra as classes dominantes.
A hora da juventude do mundo, silvestrin
A juventude em geral frequentemente participa desses atos de massa gerados
pelo caos do capitalismo. Os dados colocados ajudam a explicar essa disposição.
Das jornadas de luta de 1968 em uma série de países, até as revoltas estudantis
chilenas contra a privatização da educação e as ocupações estudantis em escolas
e universidades no Brasil de 2016 contra o golpe que retirou a social-democracia
do poder, são inúmeros os exemplos históricos de luta da juventude. Ao mesmo
tempo, também temos exemplos negativos: a utilização de estudantes burgue-
ses e pequeno-burgueses anticomunistas e pró-imperialismo financiados pelas
classes dominantes em Hong Kong; jovens que dirigiram as chamadas “Prima-
veras Árabes”, da mesma origem social definida anteriormente, e que acabaram
servindo como massa de manobra para as lutas interimperialistas no Oriente
Médio; e a juventude que queimou bandeiras da esquerda e se aliou com os mo-
nopólios midiáticos e industriais durante as manifestações de 2013 no Brasil,
servindo como massa de manobra para o golpe de 2016.
Daí a necessidade de, ao invés de seguir a lógica de alguns ingênuos da cor-
rente política morenista, é necessário sempre se perguntar: a qual classe so-
cial pertencem esses jovens manifestantes? Quais as suas demandas? Quem os
organiza? Essas são perguntas fundamentais para fazermos agora que estamos
vendo cada vez mais manifestações de massa acontecerem em âmbito global.
Um levante das massas, mesmo que violento e claramente antissistêmico,
pode não parir organizações políticas que entendam a necessidade de ir até o
fim na guerra contra as classes dominantes. Determinadas parcelas do povo,
satisfeitas com o pequeno abalo que fizeram na estrutura de poder burguesa,
podem se contentar com saídas reformistas, que tentem regular o sistema de
exploração através do estabelecimento de uma superestrutura política “mais
igualitária”, que enxerguem que o “remédio” para o poder brutal dos monopó-
lios burgueses passa pelo incentivo ao cooperativismo na lógica do mercado e
aos pequenos patrões, que vejam no apoio aos empresários nacionais “patrióti-
cos e comprometidos com o povo” uma contraposição aos empresários do topo
da pirâmide imperialista; enfim, esse é o programa da conciliação de classes,
pequeno-burguês em seu conteúdo, pacifista e comprometido com a democra-
cia burguesa em sua práxis. Esse foi o destino político das revoltas populares
da América Latina nas últimas duas décadas do século XX, que se deram no
contexto do desgaste dos regimes empresariais-militares que imperavam prin-
cipalmente na América do Sul, por um lado, e a implementação do neolibera-
lismo na região, por outro. Uma série de novas organizações social-democratas
surgiram, recrutando muitos dos líderes que se destacaram nessas revoltas.
Hoje, vivemos o esgotamento dos governos reformistas que surgiram com o
acúmulo de forças gerados pela luta de massas desses processos anteriores.
Ao mesmo tempo, como foi citado acima, um momento de grande insatisfa-
ção popular gerada pelo acirramento das mazelas sociais geradas pelas contradi- 143
o futuro, nº1
ções do capital também corre o risco de, se não for dirigida e organizada por uma
vanguarda revolucionária, ser utilizada de massa de manobra para a reorganiza-
ção das forças do capital e do Estado burguês de forma ainda mais reacionária.
É o exemplo, também, da revolta ucraniana, que começou agregando uma série
de insatisfações geradas pela sociedade de classes e por falências das gestões da
ordem burguesa, e acabou se tornando palco da disputa interimperialista entre
Rússia e EUA e UE e acabou se tornando, com o apoio dessas duas últimas forças,
em um grande levante dirigido por organizações fascistas.
Conjuntura parecida ocorreu no já citado caso brasileiro. O aumento do
preço das passagens de ônibus dialogou com várias dos efeitos gerados pelo
acirramento da crise internacional do capital no contexto brasileiro, e acabou
ganhando grande parte das massas trabalhadoras e da juventude precarizada.
A repressão desproporcional contra as manifestações aumentou a indignação,
e gerou a sua massificação. As manifestações a partir daí acentuaram o seu
caráter policlassista, levando a rua também grandes massas de jovens peque-
no-burgueses e inclusive filhos da burguesia. A justa revolta, iniciada por orga-
nizações populares, logo foi infiltrada por forças reacionárias, que disputaram
as marchas e as colocaram à serviço das vontades das parcelas das classes do-
minantes insatisfeitas com o pacto de conciliação de classes do então governo
Dilma, uma coalizão entre o Partido dos Trabalhadores, principal organização
social-democrata desde os fins da ditadura, e o Partido Comunista do Brasil, o
PC social-democratizado do nosso país. A pouca expressividade das forças co-
munistas e revolucionárias naquele momento e a hegemonia reformista den-
tro do movimento popular e sindical brasileiro, que em grande parte não tinha
como responder às exigências feitas pela classe trabalhadora devido ao seu
pacto de classes, foi terreno fértil para a classe dominante tomar os rumos da
revolta. 2013 anunciou o fim do antigo esquema de conciliação no nosso país.
É a partir desse momento de oportunismo que o acirramento da luta de clas-
ses brasileira pode ser traçado, que evoluiria para a derrubada institucional da
coalizão reformista em 2016, a prisão inconstitucional do ex-presidente Lula
(PT) em 2018 e a eleição do fascista Jair Bolsonaro em 2018, escolhido como
representante daquele movimento das massas pequeno-burguesas iniciado
em 2013 e que evoluiu politicamente até se tornar uma força política própria –
inclusive a contragosto de algumas forças mais moderadas que ajudaram esse
movimento a se formar e que agora estão ressentidas com a possibilidade de
também serem reprimidas pelo terror fascista.
O estrago, porém, não foi absoluto. O Partido Comunista Brasileiro e a União
da Juventude Comunista também souberam se articular e recrutar muitos qua-
dros da juventude combativa que foram às ruas por aquelas pautas classistas
iniciais que geraram as marchas de 2013. Na direção das entidades estudantis,
144 disputamos ombro a ombro com uma série de organizações reformistas, algu-
A hora da juventude do mundo, silvestrin
mas que conseguiram agregar mais militantes devido à um discurso “social-de-
mocrata de esquerda”, mas que hoje se encontram estagnadas. No nosso lado,
a cada passo que o fascismo dá, mais jovens se convencem da necessidade da
construção do Partido Comunista, mais jovens procuram a UJC.
Por mantermos a independência de classe firmemente, denunciarmos
as traições da social-democracia e, ao mesmo tempo, conseguirmos firmar
a unidade de ação da classe trabalhadora sempre que essa é necessária para
contra-atacar a ofensiva burguesa e suas expressões fascistizadas, sempre nos
guiando pelos acúmulos históricos do marxismo-leninismo e do movimento
comunista internacional; enfim, é por mantermos uma posição revolucionária
consequente que conseguimos nos destacar frente às demais organizações po-
líticas e nos enraizarmos em cada vez mais setores da juventude trabalhadora.

O papel da juventude na unidade de ação


classista em nível internacional
A unidade de ação internacional é um elemento fundamental para derrotar
as classes dominantes, que unificaram o destino da esmagadora maioria dos
povos do mundo quando criaram o sistema capitalista-imperialista. Ao longo
do século XX, o movimento das juventudes trabalhadoras foi responsável por
criar instrumentos importantes para a articulação contra a exploração, a guer-
ra imperialista e a miséria causadas pelo capital. Um desses instrumentos é a
Federação Mundial das Juventudes Democráticas. Nascida após a vitória das
forças populares contra a besta nazifascista, a FMJD se tornou um poderoso
instrumento de unidade de ação internacionalista, construindo dias nacionais
de mobilização, seminários, e atividades conjuntas entre as juventudes comba-
tivas de diversos países, organizando milhões de pessoas. No mesmo sentido,
outro dos instrumentos criados com a nova correlação de forças internacional
favorável às lutas da classe trabalhadora foi a União Internacional de Estudan-
tes (UIE). Em conjunto com a FMJD, a UIE se tornou o grande sindicato mun-
dial que articulava as lutas do movimento estudantil classista, sendo até hoje a
experiência mais bem-sucedida nesse sentido, atraindo um número expressi-
vo de federações estudantis dos países dependentes e coloniais, algo até então
inédito em experiências análogas surgidas anteriormente na Europa. Ambas
as entidades nasceram com o objetivo de impedir que o fascismo voltasse a ca-
minhar sobre a terra, lutando contra a exploração da humanidade, pela demo-
cratização do ensino e pela conexão deste último com as demandas da classe
trabalhadora. Desde o início, os governos dos Estados proletários apoiaram e
ajudaram a financiar várias das atividades destas entidades. Uma das grandes
ações empenhadas pelas entidades foi a construção do Festival Mundial das 145
o futuro, nº1
Juventudes e Estudantes, que organizava atividades físicas, debates políticos
gerais e sobre as condições de ensino em cada país, geralmente sediada em
países socialistas, o que ajudou estudantes do mundo todo a romperem com a
propaganda anticomunista que colocava os povos que viviam nas ditaduras do
proletariado como “escravizados” e desprovidos de direitos e liberdades.
Embora sua composição original fosse mais ampla, a presença massiva das
Juventudes Comunistas afastou muitos dos conciliadores da FMJD e da UIE ao
longo dos seus anos iniciais. No âmbito da luta estudantil, a plena unicidade sin-
dical não foi conseguida. Diversas federações estudantis dos países capitalistas,
descontentes com a hegemonia pró-comunismo dentro da UIE e com a supos-
ta centralização excessiva do secretariado da UIE, racham e resolvem fundar a
Coordenação de Uniões Nacionais de Estudantes (COESC), entidade inicialmen-
te apolítica, seguindo a consigna “estudantes como tais”, ou seja, descolando os
debates do movimento universitário com os dilemas da luta de classes. Poste-
riormente, as divisões geradas no movimento comunista internacional, com a
vitória do revisionismo kruschevista e da linha conciliatória de “coexistência
pacífica” entre Estados proletários e Estados burgueses, o racha entre URSS e
China como tentativa malsucedida dos maoistas em fazer frente ao revisionis-
mo soviético e a linha da revolução democrático-burguesa nos países coloniais
e dependentes em aliança com as burguesias nacionais, acabaram por impedir
a UIE de se tornar vanguarda do processo de construção de uma estratégia revo-
lucionária comum para o movimento estudantil mundial. Entidades estudantis
dos países periféricos, não alinhados nem ao bloco socialista nem ao bloco ca-
pitalista, passaram a participar das atividades de ambas as entidades, aprovei-
tando o custeio das viagens internacionais que os governos que patrocinavam as
duas uniões cediam. Com isso, a COESC foi lentamente voltando a se politizar,
começando a passar resoluções de denúncia ao imperialismo e colonialismo,
sendo empurrada à esquerda pelas suas bases. No início dos anos 1960, veio à
público a informação que a COESC era financiada por fundações ligadas à CIA,
o que chocou grande parte de seus membros e refutando de vez o seu suposto
caráter “apolítico”. A direção da entidade respondeu as críticas com uma maior
centralização de poderes para o secretariado da COESC, justamente um dos pon-
tos da crítica inicial que levou ao racha com a UIE. Em 1969, após ter seus fundos
cortados pela CIA, a COESC encerra formalmente os seus trabalhos.
Ao longo de sua história, a UJC – Brasil assumiu a tarefa de fazer com que
a juventude combativa do nosso país pudesse se articular com as lutas inter-
nacionais travadas pelas organizações de jovens ao longo do mundo. Tendo
sido força fundamental para a fundação da entidade nacional representativa
das e dos estudantes, a União Nacional dos Estudantes (UNE), existente até o
dia de hoje, a Juventude do PCB articulou a aliança entre a UNE e a Federação
146 Mundial das Juventudes Democráticas (FMJD), além de mediar a filiação da
A hora da juventude do mundo, silvestrin
entidade estudantil nacional à União Internacional de Estudantes (UIE). Sob a
direção da Juventude Comunista, a UNE foi articuladora de uma série de cam-
panhas de solidariedade internacional, como a luta contra a guerra na Coreia
e a participação do Brasil no confronto como serviçal dos EUA, a luta contra a
guerra nuclear mundial, o esforço pelo reestabelecimento das relações diplo-
máticas e econômicas entre nosso país e os Estados proletários e o apoio às
lutas de libertação nacional contra o colonialismo.
Desde o início, a UJC teve que lutar contra os grupos burgueses dentro do
movimento estudantil que tentaram descolar a luta desse segmento e de suas
entidades representativas do resto da luta de classes. Grupos reacionários liga-
dos aos partidos representantes da burguesia liberal e dos latifundiários che-
garam a tomar a direção da UNE na metade dos anos 1950. Após uma ação
unitária com organizações social-democratas, esses grupos foram derrotados,
perderam a direção da entidade e passaram a definir a UNE como ilegítima,
“tomada pelo comunismo”, e iriam se empenhar em destruir essa entidade
fisicamente nos anos seguintes. Ao mesmo tempo, a UNE se radicalizou con-
tinuamente, em consonância com o restante do movimento da classe trabalha-
dora brasileiro e latino-americano, e construiu seu próprio projeto de ensino
universitário, inspirado nos acúmulos da reforma universitária de Córdoba.
Para além das mudanças na educação, o último Congresso da UNE na lega-
lidade consagrou um programa revolucionário, que propunha a socialização
dos meios de produção e a participação ativa do movimento universitário na
Revolução Brasileira. Foi se precavendo com o contexto revolucionário que
germinava no nosso país que as classes dominantes locais, em aliança com o
imperialismo, resolveram dar o golpe de 1964. Hoje, com a UNE sendo domina-
da pela UJS, juventude do PC social-democratizado, as ações internacionalistas
da entidade são apenas um pálido reflexo do que esta um dia já foi.
A mudança da correlação de forças internacional chegou ao seu ponto de
inflexão com o fim do “bloco socialista”, a vitória da restauração capitalista
e das contrarrevoluções burguesas, o que também acabou com muito do fi-
nanciamento da FMJD e da UIE. Organizações como a Juventude Comunista
da Grécia (KNE) foram fundamentais para manter essas entidades classistas
vivas. Hoje, a principal atividade da FMJD segue sendo o Festival Mundial da
Juventude e dos Estudantes, o último ocorrido em ocasião dos 100 anos da Re-
volução Bolchevique na Rússia. Nesse episódio, o governo Putin tentou fazer
de tudo para transformar o festival em uma grande festa em apoio às suas em-
preitadas imperialistas. Camaradas de diversas delegações chegaram inclusive
a serem presos a caminho do festival. Os tempos que vivemos são duros, o que
mostra que essas entidades terão que ter mais organização e mais radicalidade
para fazer frente aos desafios que nos deparamos.
Em um contexto em que o fascismo se torna uma força política em diversos 147
o futuro, nº1
países capitalistas, entidades como a FMJD podem voltar a se tornar instrumentos
da unidade de ação internacional contra o sistema capitalista-imperialista e suas
faces mais cruéis como a guerra, a política dos bodes expiatórios que busca fazer
pogroms contra as parcelas estigmatizadas dos povos e o incremento da superex-
ploração das massas. Para além de continuar organizando o Festival, é fundamen-
tal que a FMJD volte a ser um instrumento de organização real das lutas da juven-
tude proletária combativa à global. A Federação deve, para isso, se inspirar em seu
próprio passado, orientando dias nacionais de mobilização, definindo que entre
tais e tais dias se organizem seminários, atividades e atos anti-imperialistas e anti-
capitalistas. A FMJD precisa se estruturar organicamente nas diferentes regiões do
globo, fortalecendo sua estrutura comunicativa, ajudando a construir mais ativi-
dades centradas em determinadas regiões e agregando cada vez mais da juventude
combativa que desperta nesse momento. Cabe também retomar o papel da UIE
enquanto organizadora do movimento estudantil universitário revolucionário.
É fundamental combater as posições reformistas e oportunistas dentro da
FMJD e das demais entidades de unidade de ação internacional, como as que ten-
tam vincular as lutas da classe trabalhadora às disputas interimperialistas, que
fortalecem a ilusão de um “mundo multipolar” e da conciliação de classes à nível
internacional e que buscam pacifistas à serviço da democracia burguesa. Nossos
esforços pela unidade de ação à nível nacional e internacional não podem se dar
às custas da defesa intransigente do nosso ponto de vista marxista revolucionário.

O papel das Juventudes Comunistas


Em uma correlação de forças negativa em nível internacional, o papel das Juventu-
des Comunistas será duro. Terão de conseguir se firmar enquanto alternativa ante às
forças social-democratas em seus países, ao mesmo tempo em que frequentemente
terão que marchar junto com muitas destas forças quando for necessário golpear
conjuntamente a ofensiva burguesa. Terão que lutar para que os seus PCs não repi-
tam os erros do passado, não se tornem em apêndices das democracias burguesas,
não coloquem os interesses das “suas” burguesias “nacionais” acima dos interesses
da classe trabalhadora mundial. Terão que se juntar às revoltas das massas contra o
capital, incentivá-las e buscar dirigi-las, transformando-as em guerras abertas con-
tra suas classes dominantes. Ao mesmo tempo, não poderão cair em erros ultraes-
querdistas, que desvalorizam o trabalho de massas, que fetichizam a luta armada
de forma voluntarista e descolam a mesma da construção da auto-organização da
classe trabalhadora, da construção do seu próprio poder, o Poder Popular.
A UJC busca construir relações com todas as organizações comunistas do
mundo, com o objetivo de trocar experiências que possam ser úteis tanto ao
148 acúmulo de forças no nosso país quanto com as JCs que dialogamos. Ao mesmo
A hora da juventude do mundo, silvestrin
tempo, mantemos o nosso direito de crítica, de analisar cada contexto particu-
lar ao prisma da nossa própria estratégia e tática, entendendo que as lutas da
classe trabalhadora em cada localidade do globo afetam, de diferentes formas,
as lutas da classe trabalhadora no nosso país e região.
Recentemente, enviamos delegações para a última Missão de Solidariedade
com a Venezuela, organizada pela FMJD. Mantemos contatos frequentes com
as juventudes comunistas latino-americanas, do sul ao norte do continente.
A articulação das juventudes comunistas em nível regional deve se expandir
cada vez mais, em diálogo com a articulação dos PCs das Américas.
Um exemplo que deve nos inspirar são as articulações que ocorrem entre os
Partidos Comunistas de orientação marxista-leninista e revolucionária à nível
europeu. A Iniciativa de Partidos Comunistas e Operários da Europa é um bom
esforço de construção de um novo espaço que reúna os PCs que resistiram
à onda social-democratizadora do revisionismo e do eurocomunismo. Para
além de seguir construindo o Encontro Internacional dos Partidos Comunistas
e Operários (EIPCO) e seguir lutando para manter seu caráter revolucionário,
os PCs e as JCs precisam criar novos instrumentos de luta que articulem as or-
ganizações comunistas que já entenderam a necessidade de se diferenciar da
social-democracia, construir o Poder Popular e caminhar rumo à efetiva toma-
da do poder pela classe trabalhadora. Só assim iremos construir aquele mundo
que nossos avós e antepassados sonhavam: o mundo da justiça social, que os
exploradores achavam que seria possível impedir no final do século passado,
mas que dia após a dia a realidade demonstra que os povos do mundo ainda
não desistiram de sonhar.
O comunismo é a juventude do mundo, e está na hora dessa juventude vol-
tar a ter o seu merecido protagonismo.

149
150
“São gentis
porque são ricos”:
Subjetividade de
classe e realismo
em Parasita e
Bacurau
Fêh Sung1

A
vilanização das classes dominantes em filmes e na grande mídia de
entretenimento deixou de ser algo chocante faz bastante tempo. Das
patricinhas manipuladoras ao capitalista do mal que vai destruir o
meio ambiente cego por dinheiro, não faltam exemplos de produtos culturais
de massa que associam riqueza e maldade. Um dos aspectos perigosos dessa
associação é dinheiro = maldade e dinheiro = poder, logo, poder = maldade.
Mas gostaria de chamar atenção para outro aspecto.
A subjetividade burguesa tem um fascínio em representar a vida como
sociedade das aparências, “o teatro da vida”, as coisas nunca são o que apa-
rentam, se apresentam sempre como seu oposto.
Parte fundamental da personagem da patricinha do mal é que, à primeira
vista, ela parece ser uma boa menina, que por detrás da sua aparência perfei-
ta e angelical existe uma pessoa capaz de fazer e pensar maldades de forma
fria e calculada. Qualquer filme ou série adolescente aqui serve de exemplo.
Assim como o grande empresário que à primeira vista parece estar agindo
pela melhor das intenções, mas ao longo da história sua máscara cai, seus
verdadeiros interesses malignos são expostos.
Para pegar um exemplo concreto é só imaginar o Lex Luthor, arqui-inimi-
go do Super Homem, cujo personagem é baseado na aparência de ele ser um
bilionário filantropo, cientista inovador pelo avanço da humanidade, figura
pública carismática, mas secretamente é um corrupto, megalomaníaco com
planos malignos de dominação mundial.
1 Estudante de História da Arte, militante da Célula Sindical e Popular do Partido Co-
munista Brasileiro em Porto Alegre, RS. Diretora de Universidades Públicas da UNE. 151
o futuro, nº1
Na subjetividade capitalista reina a mais completa desconfiança de to-
dos contra todos e nenhuma boa intenção sincera que envolva a obtenção
de poder pode ser verdadeira. “Qual o interesse por trás?”, “o que ele está
ganhando com isso?” , são as perguntas que faz quem, para sobreviver ,
deve sempre buscar primeiramente o benefício próprio.
O importante de notar aqui é que, apesar da crítica aos ricos e capita-
listas, estamos dentro da subjetividade da própria burguesia. A visão do
mundo como um espetáculo de aparências falsas é autorreflexo da própria
sociedade capitalista e o apontar de dedos dessa situação não deixa de ser
apenas: “as coisas são realmente dessa forma, que pena”.
“O teatro da vida”, onde cada um só está interpretando um papel para impres-
sionar, não se trata de uma lei universal para todas as sociedades. A crítica fundada
nessa perspectiva, portanto, não é uma crítica de fora, mas uma autocrítica, um
recalque, uma vergonha pessoal burguesa, como que admitisse seu lado feio.
Seria fácil imaginar uma versão burguesa de Parasita: o porão da casa
esconderia o segredo sujo da rica família aparentemente perfeita que mora
ali. Onde o filme se diferencia é justamente de se basear no oposto: a famí-
lia não só não tem nenhum segredo maligno, como é totalmente ignorante
acerca do que ocorre sob seus próprios pés.
O casal burguês de Parasita é interessantíssimo nesse aspecto: não foi neces-
sário apresentar que a empresa do patriarca da família é uma megacorporação do
mal para perdermos a simpatia por ele. Em nenhum momento eles agem de forma
maliciosa ou demonstram qualquer tipo de prazer em sua posição de dominação.
“São gentis porque são ricos”, essa fala genial explicita a subjetividade de
classe do filme. Os capitalistas de Parasita não causam sofrimento porque es-
tão envolvidos em algum plano de dominação global, mas simplesmente porque
existem. Seu modo de vida sincero, movido pelas melhores das intenções, com-
pletamente adequado a sua condição, é mostrado como um completo absurdo.
A esposa não é a rica madame fofoqueira e arrogante dos bairros nobres
que aparece nos filmes de Hollywood. Toda cadeia de ações do filme só existe
porque ela age sempre na melhor das intenções buscando o bem-estar de sua
família e seus filhos. Ainda assim, no decorrer do filme, só de observar sua
vida achamos justamente sua gentileza mais sincera algo um tanto de podre.
A existência daquela família naquela casa em si aparece como um ultraje, não
importa sua inocência. O filme perderia toda sua força crítica se por exemplo a en-
chente no bairro pobre tivesse uma relação de causa e efeito com as ações da em-
presa do pai da família, pois poderia o espectador respirar aliviado: “ali o culpado!”.
Esse gostinho nunca nos é dado, pois o problema não é o caráter deste ou aquele
indivíduo, mas a estrutura social em sua normalidade que é posta como perversa.
A graça consiste justamente em a história não nos dar nenhum nexo entre a miséria
152 de uns e a fortuna de outros e quanto mais se esforça nisso mais essa conexão é feita.
“São gentis porque são ricos”: Subjetividade de classe e realismo em Parasita e Bacurau, sung
Os comentários sobre o cheiro dos empregados são mais próximos de ob-
servações de quem olha animais no zoológico – “que curioso e bizarro são es-
ses seres estranhos” – do que feitos por pura maldade e malícia. Bastante dife-
rente, por exemplo, do racismo consciente em Bacurau.
Para efeitos de comparação falemos mais de Bacurau, outro ótimo filme fei-
to a partir de uma perspectiva das classes oprimidas. Em Bacurau claramente
estamos numa situação de classe contra classe: os oprimidos estão unidos em
causa comum de resistência contra a classe dominante associada.
Apesar das motivações diversas, as intenções e objetivos dos vilões do filme
são bem explícitas: matar por prazer. Os assassinatos são passados na televisão
como uma forma de entretenimento.
O filme nunca pretende enganar o espectador de que o prefeito Tony Jr. ou
os motociclistas são boas pessoas que mais adiante se revelariam do lado dos vi-
lões. No andamento do filme ambos os lados ficam perfeitamente cientes do que
está acontecendo, afinal se trata de uma guerra, não há espaço para inocências.
A rica família de Parasita nesse universo seriam os telespectadores do pro-
grama de matança, jamais fariam eles mesmos aquilo, enxergam apenas como
um programa divertido sendo totalmente ignorantes das reais consequências
do que estão assistindo. No melhor dos casos achariam de mau gosto, muda-
riam de canal e seguiriam suas vidas.
Os conflitos em Parasita não são diretamente de classe contra classe, o con-
flito maior de classes aparece sempre mediado pelos conflitos entre os interes-
ses imediatos dos trabalhadores. Inclusive nos encontramos com personagens
que, apesar do alto nível de humilhação e condições desumanas em que vivem,
ainda assim admiram e respeitam a classe dominante.
Oportuno lembrar do personagem do Samuel L. Jackson em Django do Quen-
tin Tarantino, o negro da casa grande racista e aristocrata que fica do lado escra-
vocrata. Parasita nos apresenta um personagem parecido, mas é mais complexo.
Em Django a contradição é berrante, o escravizado defendendo seu escravizador
direto, já o marido do porão não tem vínculo real com o patriarca da casa.
Novamente a ignorância deixa a situação mais sinistra; não se trata do vi-
lão da Disney que tem em torno de si uma figura patética que se afirma na sua
adoração submissa ao chefe, mas é correspondido por algum xingamento. O
capitalista de Parasita sequer sonha com a existência do seu admirador, cuja
total existência depende dele.
Nada mais apropriado como paralelo das atuais relações de trabalho, onde as
subcontratações, terceirizações, pejoutizações e afins fazem o capitalista nem en-
xergar sua contraposição à massa dos trabalhadores, não é diretamente responsável
de nada. Esse mesmo cenário torna possível que os donos da empresa Uber podem
chamar um Uber sem o motorista sonhar que ele está dirigindo para seu patrão, é a
igualdade formal burguesa realizada. Somem as classes, todos viram colaboradores. 153
o futuro, nº1
Em Bacurau, por outro lado, não existe nenhuma possibilidade para trai-
dores entre o povo oprimido, a construção do filme impossibilita que qual-
quer personagem da cidade tenha ilusões sobre o local que ocupa naquele
universo. Estamos diante de uma situação extrema, crua, um conflito fan-
tástico de vida e morte no qual a noção de cotidiano é totalmente destruída,
tudo é excepcional. As crises morais e conflitos se dão entre os antagonistas,
reforçando a solidez da justeza da causa do povo.
Os conflitos iniciais entre os habitantes da cidade no clímax do filme se
tornam irrelevantes, em Parasita o oposto acontece: os dramas do cotidiano, a
dependência de viver como parasitas tomam uma forma monstruosa. Bacurau
é um filme sobre uma situação épica que invade a vida cotidiana, já Parasita é
um filme sobre a vida cotidiana que toma proporções épicas e por conta disso
ele mais facilmente convence o telespectador na sua crítica, pois parte de ele-
mentos comuns do seu dia a dia.
Até mesmo na sua ambientação, Bacurau é muito mais localista, particular,
o que facilita aparecer de forma fantástica e fetichizada para um cidadão mé-
dio de uma grande cidade. Observação: isso não é uma crítica negativa, é ape-
nas uma constatação. Parasita é altamente universal, como disse seu diretor:
“vivemos todos num mesmo país chamado capitalismo”, no qual se somam os
elementos regionais. Também em completo oposto a Bacurau, aqui é a coope-
ração das famílias entre si contra a classe dominante que aparece como impos-
sível. Apesar da situação altamente dramática, todas as leis da normalidade
continuam em vigor, não há estado de exceção, mas o conflito de classes tem
que ser resolvido mesmo assim.
Ambos os filmes, para mim, estão dentro do ponto de vista da subjetividade
do oprimido – em vez das histórias sessão da tarde fundamentadas na culpa
burguesa, mas é notável que nas inevitáveis comparações, Parasita conta com
vantagem cosmopolita. Parasita é muito mais próximo da nossa realidade vivi-
da, enquanto Bacurau é das nossas fantasias (com o adendo que são fantasias
inconfundivelmente brasileiras e isso tem seu valor).
Em contraponto podemos dizer também que Bacurau é a realidade burgue-
sa nua e crua, sem ilusões, a guerra aberta entre classes, enquanto Parasita é
ela vestida com suas melhores roupas e ainda assim continua feia.

154
Movimento
estudantil de
medicina e luta pela
transformação da
educação médica
no Brasil
Lucas Uback1 e Daniel Felix Valsechi2

A
f unção da educação, do ensino e da escola são debates recorrentes nos
movimentos sociais contemporâneos. Enquanto forma particular de
movimento social, todo movimento estudantil surge a partir da exis-
tência de estudantes e de sua organização coletiva por reivindicações específicas.
Considerando que grande parte das relações sociais estabelecidas pelos estudan-
tes ocorrem no contexto educacional, uma das especificidades do movimento es-
tudantil consiste em pensar a educação e suas múltiplas determinações, incluindo
o acesso às instituições de ensino e permanência nelas, organização dos conteú-
dos curriculares, metodologias de ensino-aprendizagem, entre outras.
Em cada movimento estudantil institucionalizado, as disputas entre os es-
tudantes que o compõe culmina na redefinição dessas reivindicações em seus
espaços deliberativos, expressando determinadas tendências e prioridades da
luta coletiva em cada período histórico. No que tange a organização coletiva
dos estudantes de medicina em nosso país, a Direção Executiva Nacional dos
Estudantes de Medicina (DENEM) é reconhecida juridicamente como a organi-
zação representativa dos estudantes de medicina no Brasil, capaz de articular
em âmbito nacional o movimento estudantil de medicina. Para tanto, realiza
diversos espaços deliberativos regionais e nacionais, dentre eles o Encontro
Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM), evento deliberativo anual em

1 Lucas Uback é médico residente em Medicina de Família e Comunidade no mu-


nicípio de São Bernardo do Campo, SP; militante do comitê de base da Saúde da
Unidade Classista.
2 Daniel Feliz Valsechi é médico do Consultório na Rua em Santo André, SP; militante
do comitê de base da Saúde da Unidade Classista e do Partido Comunista Brasileiro. 155
o futuro, nº1
que todo estudante regularmente matriculado no curso de medicina tem di-
reito a voz e voto. É justamente a partir dos posicionamentos construídos no
ECEM que a Executiva direciona sua linha de atuação, deliberando estratégias
e ações a serem executadas até o próximo ano.
Após a divulgação do tema do 48º ECEM, ocorrido em 2018 na cidade de Cam-
pinas (SP), a DENEM recebeu em suas redes sociais uma série de comentários
e os rebateu na cartilha de posicionamentos aprovados na plenária final desse
evento, que se inicia respondendo à proposição: a DENEM fala sobre medicina?

A nossa formação médica poucas vezes abre espaço para


pensarmos criticamente sobre ela mesma. Desde que
entramos na Faculdade de Medicina (com letras maiúsculas,
mesmo), o currículo é tido como algo dado: é assim porque
é assim. Por isso, é importante apontar: o currículo é um
projeto. As disciplinas, a forma de estudar, a organização da
grade, a divisão da carga horária... tudo isso faz parte de um
projeto. Escolher “o que” e “como” estudamos é escolher o
que é a medicina para nossa geração.
(DENEM, 2018, p. 5, grifos do original)

Apesar dessa cartilha apresentar diversos posicionamentos que indicam a


necessidade urgente de transformar a formação e o currículo nas escolas mé-
dicas brasileiras, bem como entender que “a reformulação do currículo médi-
co e modelos de ensino deve ocorrer junto a movimentos sociais e ampla par-
ticipação discente” (ibidem, p. 35), não há um posicionamento explícito sobre
qual perspectiva melhor orienta essa transformação.
Tomando como ponto de partida um breve panorama histórico das lutas do
movimento estudantil de medicina pela transformação da educação médica no
Brasil, o objetivo deste trabalho é explorar determinados posicionamentos do
42º ao 49º ECEM sobre educação, descrevendo as contradições encontradas e
apontando que é necessário a DENEM adotar uma perspectiva pedagógica que
oriente corretamente seus objetivos políticos na sociedade de classes.

Breve panorama histórico da luta pela


transformação da educação médica no
movimento estudantil de Medicina

As primeiras escolas médicas no Brasil foram criadas com a chegada da Famí-


156 lia Real em 1808 e, ao longo do Período Imperial (1822-1889), os estudantes de-
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
senvolveram atividades políticas e culturais, organizando-se em modalidades
diversas. Na década de 1930, a organização estudantil universitária passa a ser
incorporada em torno de entidades institucionais representativas e hierarqui-
camente dispostas, inseridas no âmbito da universidade e chanceladas pelo
próprio Estado, “mudança que ‘dispensa’ a presença de inúmeras federações,
ligas, agremiações, clubes e grupos diversos para compor uma organização
centralizada de cunho representativo e espírito corporativo” (PELLICCIOTTA,
1997, p. 11). Surgem, então, os Diretórios Acadêmicos, Diretórios Centrais,
Uniões Estaduais e a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Articulado em torno da UNE, o movimento estudantil travou lutas im-
portantes no âmbito político nacional, particularmente na defesa da “uni-
versidade pública, gratuita e de qualidade”. Ao longo da década de 1960,
o movimento estudantil denunciou as interferências dos Estados Unidos
da América na educação brasileira, viabilizadas pelos acordos MEC-Usaid
(agência estadunidense criada em 1961 para promover o “Desenvolvimento
Internacional”) (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p. 288).
Sob a égide da autocracia burguesa manifesta na ditadura civil-empresa-
rial-militar (1964-1985), a UNE foi duramente reprimida, conforme ilustram
“episódios como o assassinato do estudante secundarista Édson Luis e a inva-
são do Congresso da UNE em Ibiúna (SP), com a prisão de cerca de mil estu-
dantes” às vésperas do Ato Institucional nº 5 (AI-5) (UNE, 2011). Diante disso,
os Encontros de Área e as Executivas de curso se fortaleceram como espaços de
organização dos estudantes em torno de suas especificidades, potencializando
a articulação de formas de oposição às contrarreformas educacionais operadas
nesse período (BALLAROTTI, 2010, p. 38).
O primeiro ECEM ocorreu na cidade de Salvador (BA) em 1969 com o propósito
de “aumentar o congraçamento entre estudantes de outras escolas, assim como
discutir os problemas comuns à classe estudantil e promover o aperfeiçoamento
dos órgãos e entidades de representação” (ECEM, 1977 apud BALLAROTTI, 2010,
p. 17); todavia, o caráter político desse evento se evidencia a partir de 1976. Foi
durante o 17º ECEM, ocorrido em 1986 na cidade de Fortaleza (CE), que se aprovou
a criação da DENEM a partir da necessidade de os estudantes de medicina organi-
zarem suas pautas e demandas em torno de uma entidade representativa.
Pensar sobre a educação médica e elaborar posicionamentos diante da
realidade histórica de cada período sempre foram atribuições inevitáveis da
DENEM. Nesse sentido, destaca-se sua atuação na Comissão Interinstitucional
Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), criada em 1991 a partir de
uma proposta articulada às demandas da DENEM, da Associação Brasileira de
Educação Médica (ABEM) e de entidades médicas. A CINAEM “propunha a ava-
liação das escolas médicas e a criação de um novo modelo de currículo social-
mente referenciado, de forma a contemplar o Sistema Único de Saúde (SUS)” 157
o futuro, nº1
(MORELLI, 2013, p. 4) e resultou na criação em 2001 das Diretrizes Curricula-
res Nacionais do curso de graduação em Medicina (DCNs). Entretanto, “pouco
se avançou no sentido da construção de um currículo voltado para atender as
necessidades do SUS e do povo brasileiro”, culminando no seguinte balanço:

O movimento da CINAEM demonstrou que a busca dessa


transformação através da via institucional não resultou em
uma alteração significativa na formação médica, sendo [que]
a mobilização da base dos estudantes, junto com outros
movimentos sociais, é muito mais importante para que essas
mudanças aconteçam.
[ibidem, p. 5]

Análise dos posicionamentos aprovados


nos ECEMs
Pontuaremos criticamente alguns dos posicionamentos aprovados nos ECEMs
realizados entre 2012 a 2019, destacando: currículo escolar e conteúdos, for-
mação docente continuada, concepção pedagógica e relação com a ABEM. Tra-
ta-se de um estudo bibliográfico a partir das cartilhas com os posicionamentos
aprovados nesses eventos, não de um trabalho filológico sobre os posiciona-
mentos da Executiva e tampouco de um estudo que pretende abarcar a comple-
xidade da luta estudantil concreta, muitas vezes não documentada.

Currículo escolar e os conteúdos

A DENEM se posicionou inicialmente de forma crítica às DCNs de 2014, repudian-


do a “influência de interesses mercadológicos no [seu] processo de elaboração e
implantação” (2014b, p. 28), capaz de respaldar as “formas privatizantes do Siste-
ma de Saúde como Organizações Sociais (OSs) e Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (EBSERH)” (p. 30). A partir do 45º ECEM, passa a valorizar acritica-
mente a “atenção primária à saúde no internato médico, conforme preconizado
pelas DCNs de 2014” (idem, 2015, p. 25; 2017, p. 51) e defender um currículo escolar
pautado em competências e habilidades, conforme as atuais DCNs preconizam.
Ainda assim, a DENEM reiteradamente vem se posicionando “contra a influência
da iniciativa privada nos currículos da área de saúde” (2014a, p. 21; 2017, p. 45) e
nas reformas curriculares de curso (2018, p. 33), repudiando os “currículos que
reafirmem o corporativismo e a especialização precoce” (2015, p. 25).
A principal orientação educacional e de saúde utilizada pela DENEM é a
158 determinação social do processo saúde-doença (DSPSD), definindo-a recente-
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
mente como “uma concepção que compreende as particularidades dos dife-
rentes grupos marginalizados, como mulheres, povo negro, povos indígenas
e quilombolas, LGBTQI+ e outras populações negligenciadas como fruto do
modo de produção e processo histórico” (2018, p. 14). Defende a DSPSD “como
modelo de saúde a ser seguido nas graduações em medicina” (idem, 2016,
p. 57), ao longo de toda a formação médica (idem, 2017, p. 48) e no internato
(idem, 2015, p. 25), como caminho para que o estudante se identifique (idem,
2014b, p. 25) e se reconheça (idem, 2016, p. 13) como classe trabalhadora. Ain-
da que a DENEM compreenda historicamente em seus posicionamentos que
a DSPSD consiste no “método que demonstra como o adoecimento está liga-
do principalmente às desigualdades proporcionadas pelo capitalismo” (2018,
p. 28), a inserção da DSPSD nas tendências pedagógicas atuais da educação
médica modifica essencialmente seu propósito de apreender radicalmente o
processo saúde-doença, pois não interessa a essas tendências que as relações
sociais sejam compreendidas em sua totalidade.
Ao ser inserida nessas tendências pedagógicas, a DSPSD esvazia-se de seu
próprio fundamento, o materialismo histórico-dialético, e o processo saúde-
doença é entendido pelos professores e transmitido aos estudantes de manei-
ra positivista a partir do modelo dos determinantes de saúde. Nesse modelo, as
“condições de saúde e doença dos indivíduos e dos grupos populacionais são
analisadas em uma perspectiva positivista, fragmentadas, não conexas, sem
uma base unificadora que as organize racionalmente e explique sua ocorrência”
(ALBUQUERQUE; SILVA, 2014, p. 958). Não há como apreender dialeticamente
a DSPSD ao aplicá-la em uma concepção pedagógica centrada na lógica formal,
portanto as tentativas de fazê-lo carregam consigo a intencionalidade de rebaixá
-la ao “olhar social” para a dinâmica saúde-doença, ou antes, transformá-la em
mais uma habilidade ou competência a ser adquirida pelo estudante.
Há uma defesa marcante entre 2015 e 2017 de componentes do currículo
baseado em competências, em conformidade às DCNs de 2014, até então cri-
ticadas pela Executiva. Alinhada a “pedagogia das competências” nesse mo-
mento, a DENEM defende que as avaliações nos cursos de Medicina abordem
“habilidades e atitudes, e não só conteúdos” (2015, p. 20), contemplando “os
campos do saber, do saber fazer, do demonstrar e do fazer, tendo em vista as
necessidades de aprendizagem de conteúdo, habilidades e atitudes dos estu-
dantes de cada instituição” (2015, p. 21; 2017, p. 18).
Notadamente a partir do 45º ECEM, cresce a influência do neoconstrutivismo
nas disposições da Executiva sobre o currículo das escolas médicas brasileiras.
Os posicionamentos traduzem a forma pós-moderna de conceber a realidade
objetiva no campo educacional, pois ao mesmo tempo em que se defende a utili-
zação de “metodologias ativas de modo a fazer do estudante protagonista do pro-
cesso ensino-aprendizagem”, também se persegue um “currículo médico crítico, 159
o futuro, nº1
reflexivo e socialmente referenciado” e que não retire “de docentes e técnicos a
responsabilidade pelo ensino” (idem, 2015, p. 22). Questiona-se o que se entende
por crítico e por socialmente referenciado nessas proposições, uma vez que o cons-
trutivismo é sintonizado aos interesses da classe dominante.
Os posicionamentos imersos nessa concepção pedagógica incluem como
parte de um novo currículo “a contemplação das necessidades de saúde de gru-
pos historicamente marginalizados”, com o objetivo de instrumentalizar o pro-
fissional de saúde para atendê-los de modo integral (ibidem, p. 23). A DENEM
enfatizou a necessidade de reconhecer as demandas em saúde das populações
marginalizadas e oprimidas (2016, p. 16), propondo a inserção de conteúdos
curriculares que vão desde o ensino de libras (2018, p. 36) até o internato ru-
ral (2017, p. 43). Todavia, a mera inserção desses conteúdos em uma matriz
curricular construtivista vai na direção do assistencialismo acrítico na prática
médica e negligencia a superação das condições históricas que determinam
concretamente a marginalização dessas populações. Isso porque, da maneira
como vem sendo introduzidos em diversas escolas médicas, esses conteúdos
servem apenas como adornos curriculares.
A luta interessada em construir um ensino médico que instrumentalize
os estudantes para resolver essas demandas imediatas, desarticulado dos
conhecimentos objetivos capazes de promover o salto qualitativo da indivi-
dualidade em si para a individualidade para si dos estudantes de medicina,
distancia-se do objetivo político de construir uma “universidade reflexiva,
que combata a reprodução acrítica de ações e valores racistas, machistas,
LGBTfóbicos ou de qualquer outro cunho discriminatório” (idem, 2017, p.
80). Para a pedagogia histórico-crítica, a transmissão de instrumentos que
possibilitem o acesso às “objetivações genéricas para si” produzidas histori-
camente pela humanidade – ciências, arte e filosofia – constitui a centrali-
dade da educação escolar, mas por si só não garante a elevação da consciên-
cia dos estudantes, uma vez que esse processo é tendencial.
Conforme apontado por Duarte (2013, p. 146), a mudança das “categorias de em
si e para si são tendenciais porque não expressam estados puros, mas tendências”.
Essa mudança se torna ainda mais custosa quando o estudante está inserido em
uma estrutura pedagógica neoconstrutivista3, que despreza ou secundariza a fun-
ção escolar de transmitir os conteúdos científicos, artísticos e filosóficos. Portanto,

3 Sob diversos nomes e aplicações, o neoconstrutivismo se fundamenta na epistemo-


logia e psicologia genética de Jean Piaget (DUARTE, 2011, p. 33) e integra o que Savia-
ni (2013) denomina de “pedagogias da existência”, expressão educacional da agenda
neoliberal e pós-moderna. Seus principais representantes na educação médica são:
“pedagogia das competências”, pedagogia do “aprender a aprender”, Aprendizagem
Baseada em Problemas (ABP) ou Problem-Based Learning (PBL) e Aprendizagem basea-
da em times ou Team-Based Learning (TBL). Os métodos ativos são métodos escolano-
160 vistas (DUARTE, 2008, p. 210) que atravessam essas práticas educacionais.
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
ainda que a Executiva já tenha se posicionado a favor da inserção de outros conteú-
dos além dos médico-científicos, o que inclui “conteúdos das áreas de Sociologia,
Filosofia e Antropologia” (DENEM, 2014a, p. 9), o objetivo político de que apenas
com essa revisão curricular o estudante seja capaz de compreender “a sociedade
em que está inserido, seu modo de organização, a origem das contradições sociais,
entendendo-se como classe trabalhadora” (idem, 2017, p. 49) revela-se idealista
porque ineficaz quando desacompanhado de uma proposta de superação das ten-
dências pedagógicas na educação médica contemporânea.

Formação docente continuada

O corpo docente, segundo o juízo da Executiva, deveria estar em processo con-


tínuo de formação (idem, 2017, p. 34; 2019, p. 11). Isso por si só não garante que
os professores e preceptores adotarão uma postura crítico-reflexiva sobre a rea-
lidade, afinal o projeto de “aprendizagem continuada” ou ainda de “educação ao
longo da vida” foi uma iniciativa da Organização para a Cooperação e Desenvol-
vimento Econômico (OCDE) lançada na década de 1970 (PRONKO, 2015, p. 95) e
que traduz uma necessidade do capital de formar sujeitos criativos e resilientes,
portanto, adaptáveis e readaptáveis ao processo produtivo vigente. Essa noção
de educação permanente é expandida pelas pedagogias do “aprender a apren-
der”, que norteiam a formação docente e médica na atualidade.
Em vez de criticado, esse processo é aprofundado pela DENEM ao defender a
necessidade de instrumentalizar docentes com “metodologias pedagógicas e recursos
atuais que melhor contemplem as diferentes etapas na formação médica e diferentes
necessidades dos estudantes” (2017, p. 50, grifos nossos). Denota-se nessa passagem
alguns dos conceitos-chave da concepção pedagógica construtivista: inovação, eta-
pismo e adaptação. A concepção educacional pós-moderna de criatividade, caracte-
rizada por Duarte (2001, p. 38) como “capacidade de encontrar novas formas de ação
que permitam melhor adaptação aos ditames da sociedade capitalista”, auxilia-nos a
compreender os objetivos intrínsecos à lógica dominante na formação dos docentes
nas escolas médicas e dos trabalhadores médicos no Brasil.

Concepção pedagógica

De forma geral, a DENEM vem defendendo uma educação “laica, suprapartidária e


plural” (2014b, p. 39), além de “crítica, voltada à humanização, e que se coloque ao
lado do povo, visando atender às demandas sociais e suas particularidades” (2016,
p. 54; 2017, p. 46). A educação serve, portanto, como “forma de enfrentamento a
todas as formas de opressão (desigualdades regionais, de gênero, orientação sexual
e raciais)” (idem, 2014b, p. 24) e deve seguir uma direção “libertadora que combata
o modelo de sociedade patriarcal, racista e que desconsidera a diversidade sexual e 161
o futuro, nº1
identidade de gênero” (idem, 2017, p. 44). Mais recentemente, posiciona-se “contrá-
ria a qualquer sistema educacional que tenha como objetivo responder as demandas
do capital, não corroborando para a emancipação dos indivíduos” (ibidem, p. 43) e
contra o ensino a distância, a menos que utilizado de forma complementar ao ensi-
no presencial. (ibidem, 2014a, p. 13; 2014b, p. 23; 2017, p. 40).
Essa compreensão ainda sincrética da Executiva sobre a educação resulta em
posicionamentos contraditórios e genéricos: se, por um lado, a DENEM reafir-
ma a insuficiência das concepções educacionais vigentes em se articular com a
prática social; por outro, parece se distanciar da compreensão histórico-crítica
do trabalho educativo como o “ato de produzir, direta e intencionalmente, em
cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamen-
te, pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2013, p. 17), processo de mediação ne-
cessário para inserir os estudantes de forma crítica e intencional na sociedade.
Mais notadamente a partir do 45º ECEM, a DENEM se posicionou contrária
às “metodologias de ensino verticalizadas, que alienam o estudante da cons-
trução do conhecimento e consequentemente da sua formação” (2015, p. 23;
2017, p. 50) e às “práticas antipedagógicas dos métodos tradicionais de ensino,
que pretendem tornar as alunas e os alunos agentes passivos no processo de
ensino e aprendizagem e que valorizam a memorização mecânica e automá-
tica dos conteúdos, em detrimento da criticidade, criatividade e autonomia
dos estudantes” (2017, p. 34-35). A Executiva também defendeu relações insti-
tucionais horizontais, que possibilitem protagonismo estudantil em decisões
educacionais no “contexto de currículos inovadores” (idem, 2016, p. 50) e que
o professor “não seja um mero reprodutor de conteúdo, mas que estimule o
debate crítico e reflexivo, com participação ativa dos estudantes” (idem, 2017,
p. 44). Em suma: concebe a “pedagogia da essência” como portadora de todos
os vícios e a “pedagogia da existência”, de quase todas as virtudes.
O apoio explícito às metodologias ativas de ensino marca o 45º e 46º ECEM.
Compreendendo o período como “um cenário em que novas medidas pedagógi-
cas são pensadas”, a DENEM constata “a necessidade da implementação de me-
todologias de ensino centradas no estudante” (2016, p. 50), “visando uma edu-
cação emancipadora, de qualidade e que compreenda que pessoas diferentes
possuem processos de aprendizado diferentes” (ibidem, p. 54). Nesse sentido, as-
sinala-se que as metodologias ativas são necessárias e importantes nas reformas
curriculares, “embora insuficientes, para a transformação da formação médica,
dada a estrutura hegemônica da educação e trabalho médicos” (ibidem, p. 57).
Há uma suposta contradição nos posicionamentos aprovados nesses eventos,
momento histórico em que há grande influência do pensamento pós-moderno
na construção da DENEM: a defesa aberta das metodologias ativas ocorre ao
mesmo tempo em que se persegue a necessidade de “abordagens pedagógicas
162 qualificadas para fomentar a educação médica crítica” (ibidem, p. 64, grifo nos-
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
so). A noção de crítica adotada não expressa um projeto pedagógico de superação
da sociedade capitalista ou de elevação da consciência dos estudantes por meio
do ensino, mas sim de uma educação que objetive uma transgressão resignada,
mantendo intocável a estrutura de exploração no capitalismo.
Ao longo dos anos, de forma genérica e pouco elaborada, a Executiva esbo-
çou a necessidade de adotar uma perspectiva teórico-pedagógica alinhada aos
seus objetivos políticos. Entretanto, não reconhece e não critica o neoconstru-
tivismo enquanto concepção liberal de mundo aplicada à educação médica,
reflexo dos interesses dominantes.

Relação com a ABEM

Houve posicionamentos críticos da DENEM diante de ações da ABEM entre


2012 e 2014, destacadamente sobre a desresponsabilização desta em viabilizar
que estudantes de medicina participassem do 51º Congresso Brasileiro de Edu-
cação Médica (COBEM) (2014a, p. 22) e sobre sua “omissão política e de atua-
ção” diante do processo de construção das DCNs de 2014 (2014b, p. 29). Apesar
dessas críticas pontuais, a DENEM já considerava que a participação estudantil
nessa associação e em seus eventos era “estratégico para a articulação e divul-
gação do movimento estudantil de medicina” (2014a, p. 22).
A partir de 2015, as críticas à ABEM de cunho institucional arrefecem e
ganha força o apelo à participação dos integrantes da DENEM nos “espaços
burocráticos-administrativos” (idem, 2017, p. 41). Nesse sentido, a DENEM
vem buscando ampliar a “articulação entre docentes e discentes, em conjun-
to com a ABEM” (2019, p. 11), tática legítima no momento histórico em que
organizações estudantis de direita também buscam ocupar essa associação;
mas, parece ignorar a crítica à principal concepção pedagógica difundida di-
reta ou indiretamente por essa associação, que influencia desde as mudanças
curriculares nas escolas médicas até as práticas docentes.
Os posicionamentos dessa associação vêm sendo norteados explicitamente
pelo neoconstrutivismo e utilizados como delineamento nas recomendações
para as escolas médicas no contexto da pandemia da COVID-19, com “garantia
institucional de oferta de capacitação pedagógica de professores para atuação
em ambientes virtuais de aprendizagem e utilização de metodologias ativas
adequadas” (ABEM, 2020b, p. 4). Em rápida análise do temário dos últimos CO-
BEMs (idem, 2020a?), destacamos não apenas o léxico pós-moderno, mas antes
o conteúdo imanente em alguns eixos, subeixos e cursos: “Currículo embasa-
do em competências” (57º), “Competências para a docência e preceptoria” (56º),
“[...] educação na pós-modernidade e metodologias de ensino” (55º), “Avaliação
de aprendizagem em currículos com metodologias ativas” (54º) e “Metodologias
ativas de ensino-aprendizagem” (53º). 163
o futuro, nº1
A DENEM, diante do exposto, não pode apenas esperar “que a ABEM assu-
ma seu papel no debate sobre a educação médica” (2014b, p. 29), uma vez que
esta entidade já assumiu papel de destaque na defesa e difusão das pedagogias
do “aprender a aprender” na formação médica brasileira. Cabe à DENEM criti-
cá-las enfaticamente e desvelar que a chamada “educação médica transforma-
dora” propagandeada pela ABEM integra o projeto político da classe dominan-
te na manutenção da sociedade do capital.

Educação médica e luta de classes

Diante do exposto, é possível notar que o neoconstrutivismo vem norteando


nos últimos anos a elaboração de propostas e diretrizes educacionais para as
escolas médicas brasileiras. O lema “aprender a aprender” proclama o objetivo
central da educação médica baseada em problemas: capacitar o estudante para
buscar conhecimentos por si mesmo, secundarizando a função do professor
ao instituir “uma hierarquia valorativa na qual aprender sozinho situa-se num
nível mais elevado do que a aprendizagem resultante da transmissão de conhe-
cimentos por alguém” (DUARTE, 2001, p. 36). Verifica-se, ainda, o desapreço
aos conteúdos curriculares, ou antes, às objetivações genéricas; subordinan-
do a teoria à prática e propondo-se a desenvolver no estudante “habilidades e
competências” e tantos outros recursos cognitivos quanto exigidos pelo capital
para formação de um trabalhador dócil, resolutivo e eficiente.
Articulada a partir de 1979, a pedagogia histórico-crítica surge no Brasil
enquanto uma proposta educacional contra-hegemônica cuja metodologia po-
siciona a prática social como ponto de partida e ponto de chegada da prática
educativa. Tributária da concepção dialética, especificamente do materialismo
histórico, consiste em uma teoria pedagógica de inspiração marxista que tem
fortes afinidades com a psicologia histórico-cultural desenvolvida pela Escola
de Vigótski. Ao entender a educação como mediação no seio da prática global,
“procura articular um tipo de orientação pedagógica que seja crítica sem ser
reprodutivista” (SAVIANI, 2013, p. 57); o que significa entender que a escola
por si só não revolucionará a sociedade, mas a revolução é obra da classe tra-
balhadora conscientemente organizada, cabendo à prática pedagógica incidir
no processo de salto da consciência a partir dos conhecimentos objetivos que
possibilitem apreender a realidade no sentido da essencialidade concreta.
A oposição entre teoria e prática presente nas duas tendências atuais na
educação médica, o ensino médico tradicional e o ensino médico baseado em
problemas, origina-se da lógica formal que estrutura a formulação central das
duas tendências pedagógicas contemporâneas, a pedagogia tradicional (prio-
ridade da teoria sobre a prática) e a pedagogia nova (subordinação da teoria à
164 prática). Além da fundamentação teórica não dialética, essas tendências domi-
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
nantes na educação médica brasileira se colocam como supostamente neutras,
buscando ignorar ou atenuar a luta de classes. Tendo em vista que a neutralida-
de é impossível na sociedade dividida em classes antagônicas,

A educação comprometida com a possibilidade de


os trabalhadores tornarem-se dirigentes deve, então,
proporcionar a compreensão da realidade social e natural,
com o fim de dominá-la e transformá-la. Assim, todos os
indivíduos devem ter acesso a esses conhecimentos, como
meio de compreensão da realidade o mais objetivamente
possível em cada momento histórico. A noção de
competências tem seus fundamentos filosóficos e ético-
políticos radicalmente opostos a essa perspectiva. Portanto,
para ser possível uma pedagogia das competências contra-
hegemônica teríamos de suprimir exatamente o termo que nos
impede de admitir os princípios anteriores: competências.
(RAMOS, 2003, p. 111, grifos do original)

Ao posicionar-se claramente em defesa da transmissão dos conhecimentos obje-


tivos e do trabalho do professor, a pedagogia histórico-crítica também se posiciona
frente a luta de classes, pois entende que “a educação é sempre um ato político, dada
a subordinação real da educação à política” (SAVIANI, 2019, p. 344). Duarte (2016)
defende “a tese de que, na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, por um lado a
educação é um meio para a revolução socialista e, por outro, a revolução socialista é
um meio para a plena efetivação do trabalho educativo” (p. 21) e conclui: “a escola por
si só não faz a revolução, mas lutar para que a escola transmita os conteúdos clássicos
é uma atitude revolucionária” (p. 27). Assim, a pedagogia histórico-crítica deve

[...] se constituir num movimento nacional que explore as


contradições da educação escolar brasileira na direção da
socialização da propriedade dos conhecimentos científicos,
artísticos e filosóficos, entendendo-se esse movimento como
parte da luta mais ampla pela socialização da propriedade dos
meios de produção, ou seja, a luta pela revolução socialista.
(ibidem, p. 21)

Saviani (2019) afirma que os movimentos sociais “nascem de reivindicações


específicas, mantendo-se, portanto, no nível corporativo e com um caráter
transitório” (p. 207), devendo passar “do nível de consciência em-si para o nível
de consciência para-si” visando integrar a luta comum da classe trabalhadora.
No âmbito da luta pela transformação médica, a tarefa de cada estudante de 165
o futuro, nº1
medicina alinhado aos interesses da classe trabalhadora no presente momen-
to histórico não pode ser outra senão engajar-se de forma coerente nessa luta
coletiva, contribuindo para combater e superar as tendências pedagógicas que
vão no sentido oposto a essa transformação e integrando o movimento estu-
dantil de medicina cujos interesses são expressamente populares, como deter-
minados4 Centros e Diretórios Acadêmicos (CA/DAs) e a DENEM.

Conclusão
Apesar de historicamente pautar que a atual formação médica brasileira
não caminha no sentido dos interesses populares e da transformação da
prática social, as disputas estudantis na DENEM vêm resultando em po-
sicionamentos genéricos ou, pior, que endossam perspectivas que vão na
contramão dessa transformação. Frente ao exposto, concluímos que a Exe-
cutiva se posiciona claramente sobre a necessidade de transformar a edu-
cação médica vigente, mas ainda não se posiciona de forma coerente sobre
como viabilizar essa transformação. Na medida em que toda organização
coletiva de estudantes se fundamenta em determinada concepção de ho-
mem, de sociedade e da natureza, os movimentos estudantis que escolhem
caminhar ao lado da classe trabalhadora pela superação do capitalismo de-
vem defender uma perspectiva teórico-pedagógica que seja consoante a sua
posição de classe, que possibilite compreender radicalmente a função dos
estudantes no processo educacional e de transformação social.
A DENEM precisa escolher entre dois caminhos possíveis para a educação
médica no Brasil: o primeiro, persistir na luta genérica e desorientada por
sua transformação, alinhando-se à atual posição da ABEM e abrindo cami-
nho para determinadas iniciativas de desenvolvimento estudantil em educa-
ção5; o segundo, adotar explicitamente uma perspectiva educacional em sin-

4 Cabe pontuar que nem todo movimento estudantil se situa à esquerda ou é orientado
por uma perspectiva revolucionária. O principal exemplo nas escolas médicas brasi-
leiras são as Associações Atléticas Acadêmicas (AAAs), movimento estudantil de di-
reita - no mínimo conservador e frequentemente reacionário. Ao organizar a massa de
estudantes em prol do objetivo declarado e delirante de elevar o nome da faculdade
por meio da vitória em competições esportivas universitárias, as Atléticas realizam o
objetivo velado de desmobilizar a organização consciente dos estudantes de medicina
pela transformação das relações sociais. O mesmo pode ocorrer quando, em determi-
nados períodos históricos, estudantes conservadores e reacionários ganham força na
gestão institucional de organizações estudantis, como os CA/DAs e a DENEM.
5 Munidas de conceitos aparentemente progressistas, como “engajamento estu-
dantil” e “responsabilidade social da escola médica”, essas iniciativas se difun-
dem para formar os educadores construtivistas do amanhã. Destaca-se a pre-
166 tensiosa fundamentação dessas iniciativas na “educação médica baseada em
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
tonia aos seus objetivos políticos na luta com a classe trabalhadora, deixando
a perspectiva neoconstrutivista para as organizações estudantis de direita,
que precisam assumir “uma atitude negativa em relação à transmissão do
conhecimento pela educação escolar” (DUARTE, 2008, p. 215) para, por meio
da prática social fetichizada, dar sentido à filantropia e ao esporte universitá-
rio de alto rendimento. Esperamos que as disputas estudantis inerentes aos
espaços deliberativos da DENEM apontem para o segundo caminho, assu-
mindo uma posição de combate ao neoconstrutivismo na educação médica
brasileira ao mesmo tempo em que constrói, de forma intencional e coletiva,
sua transformação histórica. Defendemos a pedagogia histórico-crítica para
trilhar esse caminho, rumo à revolução socialista brasileira.

evidências”, que nada mais é do que a importação da literatura internacional


(especialmente estadunidense e europeia) com os melhores tips e guides para
aperfeiçoar a educação médica neoconstrutivista. 167
o futuro, nº1
REFERÊNCIAS

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169
170
Agradecimentos
Os nomes abaixo mencionados contribuíram para a campanha de arrecadação
financeira da revista O Futuro - O Comunismo é a Juventude do Mundo. Sem a
ajuda dessas pessoas, a propaganda revolucionária que esta revista represen-
ta não seria possível. Cada nome abaixo representa, para os comunistas, um
pequeno passo para a Revolução, para o Socialismo, para o Comunismo. Não
somos nós que agradecemos: é a humanidade.

Ágatha Blanco Daniel Buarque


Ágatha Coutinho Daniel Rosa de Faria
Alexandre Tavares Daniel Santos de Barros
Alice Kaspary Daniel Valsechi
Aline Santos Oliveira Daniele Alves do Nascimento
Ana Beatriz Valle Danielle Gilaberte
Ana Catarina S. de Oliveira Darlan Reis Jr.
Angela Carvalho Davi Renan
Angelo Gabriel Uehara Ardonde Diego Bretanha Fraga
Ariely Fonseca Diego Góes
Arthur Valladão Douglas Melo
Bárbara Lins Eduardo Matos
Beatriz Barbiere Oliveira Eduardo Verrone
Beatriz da Costa Lage Elisa Moraes da Silva
Brenno Marinho Elzo Savella
Breno Moraes Emmanuel Umbelino Ribeiro
Bruna Azevedo Enzo Chaves
Bruno Braga de Biaso Fábio Ornelas
Bruno Henrique de Paulo Felipe Gomes Mano
Bruno Zucatelo Fernando Pereira
Caio Carone Fernando Savella
Caio Wanderson Nunes Alves Fran Rebelatto
Carlos Alexandre Hattori Gabriel Gama Souza
Carlos Eduardo Biasoli Rodrigues Gabriel Landi Fazzio
Carlos Eduardo Viegas Gabriel Senra
Carmen Delgado Gabriel Tavares
Carol Pereira Santos Gabriel Varandas Lazzari
Chai Betsy Gabriela Lemes Gonçalves
Christy Muniz Gabrielle Gonçalves da Costa Meireles
Cristiano Campos Araújo Guilherme Benetti Guzzo Coutinho 171
Guilherme Lickel Maria Fernanda Carvalho Vilas Bôas
Guilherme Pessatti Maria Paula
Gustavo Bechara Mariana Amaral
Gustavo Di Lorenzo Mariana Bezerra
Gustavo Pedro Mariana de Castro Amancio
HenA Mariana Gomes Vicente
Isabela Tosta Marília Rodrigues Domingos
Isis Guimarães Marina Macedo Nunes Justino
Jão Vitu Marina Sousa Teixeira
Jean Carlos Oliveira Santos Mateus Braga Rezende
Jefferson Vasques Mateus Vinicius Carvalho de Oliveira
João Eduardo Alves Kreusch Matheus Saez
João Gabriel de Oliveira Maurício Lacerda Maccarini
João Hélio Lopes da Silva Filho Michel Silva
João Pedro J Morgana Amaral
João Pedro Nascimento Pereira Murilo Henrique Silva Guerra
João Pedro Radler Nalbert Pietro
João Ruiz Nikolas Maciel Carneiro
João Thiago Gusmão Rodrigues Patrícia Lopes Mendes Cavalheiro
João Vitor Cavalcante Patrick Silva de Carvalho
João Vitor Sichieri Paula Gonçalves Alves
Julia Bahia Adams Paulo Araujo
Júlia Pereira da Silva Paulo Thadeu Franco das Neves
Juliana Pellegrino Siegman Pedro Gabriel da Silva
Klaus Timoteo da Silva Pedro Gabriel Drumond Pereira
L. Polvo Pedro Henrique Lima de Lima
Leonardo Grigoleto Rosa Pedro Maia
Leonardo Leandro de Sousa Pedro Teo
Lígia Fernandes Poliana Cavalheiro
Logan Silva Fitipaldi Rafael Ayres
Luan Costa da Costa Rafael Mafra
Lucas B Rafael Rocha
Lucas Damm Cuzzuol Rafael Teixeira
Lucas Diógenes Santana Rebeca Viana
Lucilene Varandas Rodrigo Cabral Dias
Luisa Vilela Rodrigo Teixeira de Araújo dos Santos
Luiza Paiva Duarte de Andrade Carneiro Romulo Cassi Soares de Melo
Luiza Vilela Ryan Bueno
Manu Sanchez Suellen Almeida Albuquerque
Marcelo Kriiger Loterio Tariq Lemos de Rezende
172 Marcos Vinicius Tostes Thiago Figueira
Thomás A. Carrieri
Victor Bruno
Victor Campos
Victor G. Q. da Fonseca
Victoria Schiano
Victoria Ventura
Vinícius Okada Micheletto de Moraes
D’Amico
Vinícius Villar de Lira
Vinícius W. P.
Vitor Cavalheiro
Vitor Renato Vitorino Costa
Walter Mendes da cunha
Wellington Augusto da Silva

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é a juventude
do mundo

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