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Revisão:
Gabriel Varandas Lazzari e Geomarque
Sousa Carneiro
Conselho Editorial:
Gabriel Varandas Lazzari
Antonio Ugá Neto
Poliana Mendes Cavalheiro
Lígia Fernandes de Oliveira
Tulio Cesar Dias Lopes
Caio Cesar Andrade Bezerra da Silva
Luca Magli
Pamela Christy Mesquita Muniz
Kim Taiuara Chavarria Brochardt
Geovane Rocha da Silva
Felipe Amaro Freitas Ferreira
Ficha Catalográfica
CDD 335.43
3
sumário
7 Editorial
Q
uando estoura a Primeira Guerra Mundial, em 1914, Lênin se en-
contrava autoexilado na Galícia, atualmente parte da Polônia.
Para garantir sua própria segurança, muda-se logo para a Suíça,
país neutro da guerra. É em Berna que Lênin vai voltar sua atenção à Ciên-
cia da Lógica, de Hegel, e muitos atribuem a esse estudo o desenvolvimento
mais apurado do conteúdo dialético do materialismo marxista do revolu-
cionário russo. Com esse estudo, Lênin nos deu uma lição: independente-
mente do calor do combate em que estivermos, uma parte fundamental da
intervenção na luta se deve ao estudo teórico.
No começo de 2020, a Coordenação Nacional da União da Juventude Comu-
nista decide por organizar e lançar uma revista teórico-política. Não sabíamos
ainda que pouco tempo depois começaria a crise do coronavírus, a maior pan-
demia global desde a gripe espanhola (que começou justamente no fim da Pri-
meira Guerra Mundial). As dificuldades impostas por essa fase da luta de clas-
ses não representaram, para nós, uma diminuição no ímpeto de contribuir à
luta teórica. Ao contrário: foi durante a pandemia que empreendemos grandes
esforços para converter nossas dificuldades em formulação política. Cientes
da importância da tarefa, seguimos de cabeça erguida para a organização des-
se trabalho, não apenas fundamental, mas inexistente na atual cena política
brasileira: uma revista teórico-política marxista-leninista voltada à juventude.
Assim, é com muita alegria e disposição para a luta revolucionária que, de-
pois de meses de trabalho intenso, apresentamos a primeira edição da revista
O Futuro – O Comunismo é a Juventude do Mundo, uma iniciativa da União da
Juventude Comunista (UJC), a juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O PCB, ao longo dos seus 98 anos de luta, atribuiu como prioridade política e
organizativa a formação de seus quadros e militantes e nossa juventude comu-
nista busca cada vez mais crescer com a qualidade revolucionária necessária
para enfrentar os desafios e problemas candentes da conjuntura atual. Através
de nossos instrumentos de agitação e propaganda (jornais, portais, redes sociais
e revistas) buscamos contribuir para a elevação da consciência e para a organiza-
ção da classe trabalhadora e da juventude brasileira. A publicação desta revista
teórico-política da UJC expressa a necessidade de fortalecer este elemento quali-
tativo característico de nossa organização de juventude.
Na concepção de organização política apresentada por Lênin, líder da Re-
volução Russa e do Movimento Comunista Internacional, um militante comu- 7
o futuro, nº1
nista deve buscar desenvolver três elementos: a organização, a agitação e a
propaganda. A organização através da disciplina consciente, do compromisso
revolucionário, do trabalho coletivo, da direção coletiva, do respeito às decisões
democráticas, do exercício da crítica e da autocrítica, entre outros; a agitação,
da intervenção junto às massas, do uso das palavras de ordem adequadas ao mo-
mento, da luta teórica imediata, da apresentação do programa das propostas e
das ideias comunistas, da apresentação de “poucas ideias para muitas pessoas”;
e a propaganda, da intervenção junto à vanguarda, da luta teórica aprofundada,
da explicação do programa, das propostas e das ideias socialistas e comunistas,
da disputa de consciência, da apresentação de “muitas ideias para poucas pes-
soas” – fundidas, as três, em uma atuação consistente, que se reflita sempre em
um chamado à ação revolucionária, contribuindo para que a vontade individual
torne-se cada vez mais uma vontade coletiva e transforme-se em vontade univer-
sal na busca pela Revolução Social e Emancipação Humana.
Os estudos teóricos políticos e as atividades cotidianas, como trabalho e
estudo, não podem ser negligenciadas ou colocadas em segundo plano pe-
los jovens militantes comunistas. Um bom militante deve ser um estudan-
te dedicado a desenvolver cada vez mais suas capacidades e habilidades.
Não faz sentido abrir mão de disciplinas acadêmicas e matérias escolares,
faltar constantemente no trabalho em função da atividade militante, nos
afastando da práxis revolucionária cotidiana. Sublinhamos a importância
do trabalho coletivo para não sobrecarregar nas costas de um militante vá-
rias atividades do movimento e/ou da entidade em que ele participa e que
ele representa. Nos momentos decisivos como congressos, encontros, mo-
bilizações, ocupações, o militante comunista compromissado com a luta
da juventude, do movimento popular e da classe trabalhadora não pode se
ausentar, daí a necessidade de se organizar pessoalmente e trabalhar coleti-
vamente para evitar possíveis desencontro com suas tarefas pessoais e com
as tarefas políticas e organizativas da luta revolucionária.
Os comunistas do PCB e da UJC concentram parte significativa de seus es-
forços na formação política, tanto teórica quanto prática, de seus militantes.
A assimilação do marxismo-leninismo é uma tarefa necessária, constante e
regular para os militantes da União da Juventude Comunista (UJC) e para o for-
talecimento do PCB, o Partido histórico do proletariado brasileiro. Neste senti-
do redobramos nossos esforços no trabalho de educação. A educação na pers-
pectiva dos comunistas brasileiros pode ser compreendida, prioritariamente,
como tarefa de formação política dos seus quadros e militantes; como trabalho
de conscientização e educação política da juventude e da classe a que pertence-
mos; e da luta em defesa de direitos sociais como a universalização do acesso
à educação pública e por uma educação popular, laica e crítica, na perspectiva
8 da politecnia e da omnilateralidade, ou seja, do amplo desenvolvimento das
editorial
mais diferentes possibilidades humanas, como um todo, nos planos da ética,
das artes, da técnica, da moral, da política, da ciência, do espírito prático, das
relações intersubjetivas, da afetividade, da individualidade etc.
O processo formativo deve ser contínuo e não se esgota em uma semana,
um mês ou um ano – deve se desenvolver por toda a vida, pois a luta revolucio-
nária não se esgota em um tempo histórico determinado. A revista O Futuro
– O Comunismo é a Juventude do Mundo é de fundamental importância neste
momento de crise do capitalismo e acirramento da luta de classes. Na atuali-
dade, compreendemos a necessidade de que a humanidade pode trilhar novos
rumos superando dialeticamente a exploração e as opressões.
Nesta edição de lançamento da revista, temos uma seleção primorosa. Dois
dos nossos artigos apresentam uma visão sobre a crise econômica, seus desdo-
bramentos e o impacto nas relações de trabalho da juventude. Guardando a re-
lação histórica dos comunistas com as luta dos “trabalhadores do mundo todo”,
apresentamos dois textos de debate internacionalista: um que analisa o vínculo do
autor martinicano Frantz Fanon com outros revolucionários comunistas; e outro
sobre o significado prático do internacionalismo proletário nos dias de hoje. Além
desses, dois dos artigos apresentam visões sobre a educação, um retomando a teo-
ria desenvolvida pelos pedagogos soviéticos e outro problematizando a educação
médica no Brasil nos dias de hoje. Dois artigos selecionados vão discutir o papel da
violência na política, tanto pelo viés da criminalização da juventude, quanto pelo
inerente papel dos elementos de coerção no capitalismo dependente e periféri-
co. O debate sobre a consciência e as formas ideológicas também ganhou espaço
em dois artigos: um refletindo sobre a subjetividade no período neoliberal; outro,
sobre o impacto da pandemia do coronavírus na disputa pela hegemonia social.
Mantendo a tradição dos comunistas de apresentar a crítica das formas ideológi-
cas, um ensaio apresenta um debate sobre os conflitos de classe em dois filmes
lançados recentemente: o brasileiro Bacurau e o sul-coreano Parasita. Por fim,
três textos apresentam o sempre atual debate sobre a organização comunista, co-
locando ênfases na cultura política comunista; no dever do militante comunista; e
nas tarefas históricas dos jovens comunistas no século XXI.
Seguimos estudando, trabalhando e lutando pelo Poder Popular e pelo So-
cialismo na perspectiva do Comunismo. Teremos muitas lutas no presente e
temos a firme convicção que o Comunismo triunfará no futuro. Os artigos e
ensaios publicados nesta edição contribuem para isso.
Conselho Editorial
Revista O Futuro – O Comunismo é a Juventude do Mundo
Junho de 2020
9
10
O capitalismo
brasileiro e a
criminalização da
juventude
Daniel Buarque de Almeida1
N
o século XIX, ao se debruçar de forma crítica sobre as penas capitais
em um artigo, Karl Marx levantou uma importante questão sobre a
relação entre o modo de produção capitalista e o seu aparato de jus-
tiça criminal. Diante da constatação de que a mais moderna criminologia de
seu tempo podia prever com boa dose de precisão a quantidade e a natureza
dos crimes que seriam cometidos a cada ano, indagava
9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan,
2014. p. 26.
10 ENTENDA como foi a morte da menina Ágatha no Complexo do Alemão, segundo a
família e a PM. G1, Rio de Janeiro, 23 set. 2019. Disponível: https://g1.globo.com/rj/
rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-
complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.
11 COELHO, Henrique et al. Menino de 14 anos morre durante operação das polícias
Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, RJ. G1, Rio de Janeiro, 19 maio. 2020. Dis-
ponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/19/menino-de-
14-anos-e-baleado-durante-operacao-no-complexo-do-salgueiro-rj.ghtml. Acesso
em: 22 jun. 2020. 13
o futuro, nº1
um determinado crime fosse consumado12. Argumento que ignora a realidade
de que, em um país com mais de 1600 condutas criminalizadas, seria impossível
aglomerar cerca de 5 mil jovens em qualquer lugar por mais de uma hora sem
que alguém acabe por esbarrar em alguma conduta prevista como crime. O Có-
digo Penal brasileiro prevê situações graves de violência, como homicídios, mas
também inclui situações mais cotidianas da realidade da juventude como o porte
de filmes piratas (receptação) ou xingamentos (injúria). Essa fábula (e depois de
tanto discutir o tema da seletividade penal talvez não se possa pensar num termo
melhor do que fábula ou fantasia) de homens e mulheres de farda numa luta
abstrata contra o crime diz muito pouco sobre qualquer preocupação do Estado
com a segurança da população. Ao contrário, ela serve como uma permanente
justificativa para a violência policial, que vez ou outra condena seus próprios
integrantes por supostos “excessos” mas, que se apresenta como legítima em seu
aspecto sistêmico na medida em que estaria agindo para defender “a sociedade”.
De todo modo, apesar de especialmente brutal, o massacre de Paraisópolis
tem sido rapidamente esquecido e enterrado pela mídia, ao passo em que o pró-
prio governador, poucos meses depois da tragédia, voltou a falar com tranqui-
lidade na repressão a bailes funk, inclusive como se fosse uma medida de saú-
de no combate ao COVID-19 e não simplesmente mais uma medida higienista
e de repressão à juventude trabalhadora brasileira13. Muito antes de viabilizar
medidas eficazes para a permanência do isolamento social, como a garantia de
rendas emergenciais ou a distribuição de alimentos em casa, os representantes
da burguesia respondem à pandemia com a constatação de mais oportunidades
para a distribuição de violência contra a juventude de origem trabalhadora.
As declarações do governador se fazem especialmente marcadas por hi-
pocrisia, na medida em que apelam para uma problemática real do combate
à aglomerações num contexto de pandemia, mas que na verdade não fazem
mais do que escancarar a seletividade que é marca da justiça criminal bur-
guesa. Enquanto o governador faz ameaças falando em polícia e prisão para
bailes funk, os apoiadores do governo Bolsonaro que bloquearam a avenida
paulista no dia 11 de abril, inclusive impedindo completamente a passagem
de ambulâncias, tiveram ampla liberdade para criticar o próprio conceito de
É
consagrada a ideia no interior da esquerda socialista de que o co-
munismo é a juventude do mundo. Não se pode dizer que se trata de
uma compreensão arbitrária: enquanto as concepções liberais, de
esquerda ou de direita, só propõem que algo mude para que “tudo conti-
nue como está”; e o neofascismo ergue bandeiras a favor do regresso a um
passado fetichizado que nunca existiu; apenas os comunistas reivindicam
efetivamente o porvir. Só a luta comunista se mostra comprometida em
constituir as bases para que se rompa com a eternização das condições do
presente e se busque o futuro.
Se isso é verdade, e o comunismo é de fato a juventude do mundo, só
podemos extrair como consequência de tal ponto de vista que a juventude co-
munista é a juventude da juventude do mundo. O próprio Lênin já tinha cons-
ciência disso, quando afirmou que “é precisamente à juventude que incumbe
a verdadeira tarefa de criar a sociedade comunista”2. É grande a responsa-
bilidade das novas gerações. Há muitas questões custosas que os erros do
passado nos legaram, e novas questões que ainda não apareceram ou ainda
não ficaram claras ainda trarão novos e mais duros desafios. É papel daqueles
que ainda estão começando a lutar encontrar as saídas necessárias para dar
novos rumos para o movimentos dos trabalhadores do século XXI, frente ao
atual cenário de ofensiva implacável do capital sobre nós.
crítico de figuras como Smith, Ricardo, Feuerbach e Hegel. Não é materialista cer-
tas posturas que produzem certa negação abstrata a tudo o que não tenha ligação
escancarada com o marxismo. É óbvio que, quando se trata de teorias como as de
Nietzsche e Arendt, nossa crítica precisa ser publicizada, para o embate de ideias.
O que não cabe são as críticas não mediadas, em formatos pouco generosos com
independentes que ainda estão ligados a tais perspectivas. Por fim, se é fato que é
importante apontarmos os limites do idealismo e da metafísica, acredito que a de-
monstração prática da superioridade do materialismo histórico e dialético é muito
mais atraente que a crítica recorrente e rabugenta a tais teorias, que muitas vezes
26 afastam mais do que educam.
Juventude e cultura política , brandão
O atual cenário, com séquitos protofascistas perdendo a vergonha e se
mostrando cada vez mais, uma esquerda partidária reduzida, graves cortes
de direitos e ataques brutais à população trabalhadora, podem escancarar
as nossas dificuldades, mas essas tarefas, por mais duras que sejam, são as
barreiras que precisamos enfrentar para construir o nosso futuro. As mani-
festações que ocorreram neste final de maio aqui no Brasil, contra as ins-
pirações golpistas do bolsonarismo, e nos EUA, contra a morte de George
Floyd e tantas outras vítimas que tombam diante das políticas de genocídio
sistemático, mostram que as massas, quando perdem a sua paciência, não
hesitam em derrubar qualquer limite imposto pelos capitalistas. Portanto,
que possamos promover avanços em nossa cultura política sempre se ali-
mentando do impulso de vontade que damos a nós mesmos quando temos
a consciência de que, no dia em que as massas concentrarem sua sede por
liberdade em torno do alvo correto, só a vitória nos resta.
27
o futuro, nº1
REFERÊNCIAS
RESUMO
O
objetivo do presente artigo é, por meio da análise da obra fa-
noniana, fazer escutar os ecos das influências de Ho Chi Minh
e Mao Zedong no discurso revolucionário de Fanon, sobrema-
neira naquilo que tange às querelas da chamada questão nacional, o ten-
sionando às práticas do colonialismo e imperialismo que permeavam os
contextos em que os textos foram escritos. Nesse sentido, nosso objetivo
é compreender a questão nacional em Fanon, apreendendo assim seus
tensionamentos a partir do desenrolar histórico da tradição marxista-le-
ninista bem como dos aportes dessa última nas práticas revolucionárias
que levaram à independência da Indochina e da China e que foram fontes
de pensamento e questionamentos para os escritos de Fanon.
Introdução
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo.”2 Fanon foi um desses transformadores. Em sua obra bem
como em sua vida, Fanon sempre soube aliar a teoria à prática não apenas para
compreender e tornar cognoscível o mundo que o cercava e o mundo dentro de si,
mas, sobremaneira, para transformá-lo. Dentre as ferramentas de seu vasto arse-
nal teórico, além de Freud e Hegel, se encontravam Marx, Lênin e Mao.
É compreendendo Fanon enquanto intelectual e militante cuja prática bem
como a teoria bebiam nas fontes do Marxismo-Leninismo que se torna tão im-
1 João Rafael Chió Serra Carvalho é Mestre em História Social pela USP, doutorando
em História Social da Cultura pela UFMG e educador popular.
2 MARX, Karl. Teses sobre Feurbach. In: MARX, Karl. Obras Escolhidas. Edições Pro-
gresso Lisboa; Moscou, 1982. 29
o futuro, nº1
portante compreender suas categorizações teóricas dentro desse instrumental.
“O devir enquanto necessidade é o terreno aberto no qual o processo cumula-
tivo das lutas no campo político se perpetua”, já afirma Douglas Rodrigues Barros3.
A obra fanoniana é perpassada pelo problema político e por questões de reco-
nhecimento. O reconhecimento do negro pelo branco e do branco perante o negro4,
o autorreconhecimento do negro vis-à-vis a estrutura do colonialismo5, o reconhe-
cimento da Nação e da questão nacional6, enfim, em última instância o reconhe-
cimento da urgência da tomada de consciência e da criação de um novo homem.
Fanon viveu, na pele, a época revolucionária das lutas pelo fim do colo-
nialismo. Assim, ele é perpassado por um etos mental análogo ao de outros
grandes revolucionários e teóricos que tiveram vivências similares. A questão
nacional perpassa a vida e a obra de Fanon, desde suas considerações acerca
dos antilhanos e sua visão de mundo até sua percepção da realidade argelina
que ele ajuda ativamente a transformar. Nos debruçarmos sobre estes escritos
é abrir uma janela privilegiada para a compreensão da obra fanoniana e a ge-
nialidade de sua interpretação marxista do mundo que o circundava.
3 FAZZIO, Gabriel Landi; MANOEL, Jones (orgs.) A Revolução Africana: uma antolo-
gia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 258
4 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
5 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968; FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1980.
6 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968; FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969.
7 KHALFA, Jean. La Bibliothéque de Frantz Fanon: Liste établie, présentée et comen-
tée par Jean Khalfa. In: FANON, Frantz. Écrits sur l’aliénation et la liberté: Œuvres
II. Paris: Éditions La Découverte, 2015, p.715-798
8 11 obras no total, op.cit.
30 9 49 obras de Mao mais 10 estudos sobre a Revolução Chinesa, op.cit.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
estudos sobre as experiências do marxismo periférico, como a da Indochina10.
É por essa janela entreaberta de suas raízes marxistas que tentaremos fazer
escutar os silêncios da obra fanoniana.
13 HO, Chi Minh. O Leninismo e a libertação dos povos oprimidos. In: PINSKY, Jaime
(org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 261.
14 FANON, Frantz. Os intelectuais e os democratas franceses perante a Revolução Ar-
gelina. In: FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da
32 Costa Editora, 1980, p. 91-100.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
Lembremo-nos aqui da citação de Marx sobre a questão irlandesa no início
de nossa caminhada. Assim como na Inglaterra e na França, seja a primeira
diante da Irlanda, seja a última perante indochineses e argelinos, o estratage-
ma das forças coloniais é unívoco, a saber: tentar cooptar as massas trabalha-
doras da metrópole para apoiar o irrespaldável, alienar o proletariado metro-
politana para cessar a solidariedade internacionalista.
Fanon é taxativo em sua resposta. A situação colonial é igualmente mons-
truosa para a metrópole e seus trabalhadores. Ela é inextricável da exploração
do homem pelo homem onde quer que aconteça. É necessário que democratas
e comunistas metropolitanos ouçam as admoestações que partem da colônia e
percebam o peso nefasto da exploração colonial sobre a sua própria sociedade.
É somente rompendo-se as bases materiais da exploração no mundo colonial
que se romperão verdadeiramente tais bases no mundo metropolitano. A solidarie-
dade metropolitana não é um ato de fé ou de caráter, é a percepção desalienada das
condições que mantém o próprio trabalhador metropolitano explorado e alienado.
A questão levantada por esses excertos expõe a dialética dúplice entre colô-
nia e metrópole e nacionalismo e internacionalismo, seja no seio dos coloniza-
dores, seja no dos colonizados.
O despertar nacional, conforme já indicava Lênin, é a um só tempo nacio-
nal e internacional. Assim como a nação só pode ser livre se cada um de seus
17 HO, Chi Minh. Nacionalismo Revolucionário: Teoria e Prática. In: PINSKY, Jaime
(org). Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. p. 255-
256.
18 FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era,
1968.
19 Para o conceito hegeliano da dinâmica senhor-escravo ver KOJÈVE, Alexandre. In-
trodução à leitura de Hegel: aulas sobre a Fenomenologia do Espírito ministradas
de 1933 a 1939 na École des Hautes Études reunidas e publicadas por Raymong Que-
34 neau. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014 e HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Feno-
Por um Fanon revolucionário , carvalho
to o senhor (dominador, metropolitano) quanto o escravo (dominado, colonial)
não podem ter encontros “reais” enquanto não se livrarem desse nó infraestru-
tural que perpassa cada etapa de suas dinâmicas sociais.
É somente com o advento da libertação do homem em condição colonial da
opressão da colonialidade que pode se fundar um novo indivíduo completo e
se restaurar tanto para ele quanto para seu antigo dominador a possibilidade
de um encontro real, um encontro entre iguais.
Se, em Peles Negras, Máscaras Brancas Fanon nos fala das impossibilidades e das
psicopatologias geradas pela condição da colonialidade, em L’an V de la révolution Al-
gérienne temos precisamente o momento desta ruptura. Será com o processo revolu-
cionário e a tomada de consciência da questão nacional que o povo argelino poderá
romper o processo psicopatológico da alienação e finalmente tomar consciência de
si enquanto povo livre e, dialeticamente, enquanto homens e mulheres livres.
Da mesma maneira, é sob a égide dessa libertação que a cultura sairá de seu
imobilismo, das amarras que a mumificavam e veremos um renascer criativo e
uma adaptação revolucionária de antigas formas de se vestir20 ou novos usos de
tecnologias que anteriormente somente serviam aos propósitos do colonizador21.
Para Fanon, existem três momentos da cultura nacional sob a égide da si-
tuação colonial. Em um primeiro momento ocorre a assimilação, o colonizado
se preocupa em apreender a cultura do colonizador e seu público é o público
da metrópole. No segundo momento, temos a rememoração e o mergulho no
passado, seja o passado pessoal seja o passado imemorial dos povos coloniza-
dos, é um momento de angústia, uma experiência de náusea e morte que já
prevê a “ressurreição” e o despertar. O último momento se dá precisamente na
fase de luta, nele o colonizado se imiscui no povo e o desperta, finalmente tem-
se a ruptura das faixas que mumificavam o povo e a sua cultura, a produção
passa a ser pujante e cheia de novidades, a cultura se volta e ao mesmo tempo
cria um público interno. Passa-se da letargia à explosão.
Quando Fanon nos fala que a luta de libertação nacional, essa luta que de-
saliena a um só tempo o homem em seu caráter ontológico e os homens en-
quanto classe, enseja mudanças nas superestruturas culturais ele nos informa
também que essa luta enseja, ao mesmo tempo, uma ruptura essencial nas
estruturas materiais e econômicas dessa sociedade.
Fanon vê o despertar da cultura como uma manifestação suprassensível do
despertar do homem e da nação, esse movimento tríplice se interpenetra e é a
um só tempo causa e consequência da revolução nacional, é a suprassunção de
tudo aquilo que jazia subsumido.
Destarte, Fanon propugna uma cultura nacional verdadeiramente po-
pular e combativa, imiscuída no e para o povo, assim, se torna fácil com-
38 Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, p. 216.
Por um Fanon revolucionário , carvalho
preender suas querelas contra os conceitos de negritude27, os quais muitas
vezes se baseiam em uma metafísica e um idealismo que se afastam da
prática revolucionária, a única capaz de criar definitivamente e trans-
mutar a cultura destruindo o colonialismo, o colonizador e o colonizado.
Podemos finalmente entender como o desaparecimento do colonialismo
também traz por sua vez o desaparecimento do colonizado, este ascendeu
à consciência por meio da luta de libertação nacional.
Conclusão
Ao tensionarmos as leituras marxistas e marxianas de Fanon com sua prática
revolucionária podemos concluir que, para Fanon, Nação mais que uma rea-
lidade é um horizonte, sua concepção é programática e voltada para o futuro.
Nação é a própria construção revolucionária onde a consciência ontológica in-
dividual se desaliena e torna-se devir epistemológico coletivo.
Estudar Fanon é sempre buscar compreender a um só tempo o revolucio-
nário e o psiquiatra que jamais coloca limites clínicos à sua prática revolucio-
nária nem limites revolucionários à sua prática clínica. O que importa a Fanon
não é somente a cura do homem, mas sobremaneira a cura do corpo social que
poderá de fato (re)humanizar às vítimas da violência colonial.
Nesses tempos de identitarismo rasteiro e armadilhas liberais mais que
bradar “Fanon, presente” é preciso viver as lições do grande revolucionário
para que ele esteja presente na relação entre nossa teoria e nossa prática, é
preciso que marchemos em direção à História com o ímpeto que somente cabe
aos condenados da Terra, será então que a violência revolucionária ensejará o
nascimento de um homem novo.
42
A precarização
e as relações de
trabalho para a
juventude brasileira
Poliana Mendes Cavalheiro
RESUMO
A
s relações de trabalho mudaram com a necessidade de acumulação
do capital, devido à crise dos modelos taylorista e fordista, foi-se
necessário o capitalismo se reinventar para recuperar o seu ciclo
produtivo. Essa reinvenção veio com a flexibilização das relações de trabalho,
aumentando a terceirização, afetando diretamente os trabalhadores. Com a
ascensão da tecnologia, a internet passou a ter um papel importante para as
empresas. As empresas-plataforma originaram o termo Economia do Compar-
tilhamento, ligando consumidores e ofertantes de serviços através da internet.
Com a Economia do Compartilhamento, surgiu o fenômeno chamado uberiza-
ção, denominado como a precarização das relações de trabalho no mundo dos
aplicativos digitais, que se vendem apenas como a ponte entre consumidor e
ofertante de serviço. Com o mercado de trabalho cada vez mais precarizado,
os jovens acabam sofrendo mais que outras categorias da classe trabalhadora,-
com empregos informais e sem carteira assinada, muitos vão para os aplicati-
vos como única forma de sustento próprio e familiar. Por fim, se conclui que a
uberização aprimorou a terceirização do trabalho por meio dos aplicativos da
economia do compartilhamento e os jovens são afetados drasticamente por
essas novas relações de trabalho precarizadas.
43
o futuro, nº1
Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar as recentes relações de trabalho
caracterizando o fenômeno da uberização como uma das principais opções de
trabalho que surgem dado o desemprego estrutural que se encontra hoje na so-
ciedade brasileira. Além disso irá tratar de como os jovens estão inseridos nesse
contexto e como os mesmos não tendo empregos formais acabam indo buscar
fonte de renda com opções de trabalho precarizado e sem regulação legislativa.
As relações de trabalho durante o capitalismo mudaram conforme o avanço da
sociedade moderna. Até o século XIX na Inglaterra poder-se-ia encontrar jornadas
de 8, 10, 12, 14, 16, 19 horas sem leis especificas de trabalho que as regularizassem,
tendo em vista que a variação de jornada de trabalho atua de acordo com os limites
físicos e sociais dos trabalhadores. Apenas a partir de 1802 que leis foram promul-
gadas para a regularização das jornadas de trabalho (MARX, 2011).
Devido à crise do padrão de acumulação taylorista/fordista no fim da
década de 1960 e início dos anos 1970, o capital precisou se reestruturar
buscando recuperar o seu ciclo reprodutivo. A eliminação de postos de tra-
balho, o aumento da produtividade e o crescimento da terceirização passa-
ram a fazer parte da empresa flexível. Atualmente observa-se leis especí-
ficas sobre as condições de trabalho, porém ao mesmo tempo nota-se em
escala mundial a destruição das forças produtivas contra a força humana
de trabalho, na qual se encontram grandes grupos precarizados, elevando o
aumento do desemprego estrutural (ANTUNES, 2009, 2014).
Para a OIT (2018) as diferentes formas de trabalho passam a ter importância
nas novas relações de trabalho: os trabalhos on-demand1, ou relacionados à
gig economy2 como a Uber, são exemplos das novas relações.
Com a mudança do possuir para o compartilhar e as possibilidades que a
internet oferece para proporcionar essa mudança de hábito, a Economia do
Compartilhamento3 aparece à primeira vista como uma grande inovação den-
tro da Economia, prometendo mudanças significativas no seu funcionamento.
Porém se analisado mais a fundo, percebe-se o quão problemática e danosa
ela pode ser principalmente para os trabalhadores que “compram” a ideia à
primeira vista sem ter uma análise mais crítica e cautelosa.
A Economia do Compartilhamento consiste em negócios que utilizam a
internet como forma de conectar consumidores com plataformas de serviços
para trocas no mundo físico. Os serviços que dominam a Economia do Com-
partilhamento são: hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%). Se
à primeira vista, ela é diversa e se utiliza com frequência a linguagem do al-
truísmo e generosidade para descrevê-la, analisando mais a fundo, a economia
do compartilhamento é majoritariamente composta por grandes conglomera-
44 dos e organizações com fins lucrativos (SLEE, 2017).
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
A Uber faz parte da efervescente Economia do Compartilhamento pelo
seu modelo de “microempreendedores”, os quais escolhem quanto traba-
lhar e de maneira independentes. Parecendo à primeira vista, um modelo
simples e flexível de trabalho. Porém os modelos de negócios de empresas
do ramo são desenhadas para evitarem o vínculo de emprego entre empre-
sa e trabalhador que se utiliza dos aplicativos para oferecerem seus servi-
ços (SLEE, 2017; ZANATTA; DE PAULA; KIRA, 2017).
O celular entra como intermediário sob a forma de um empregador abs-
trato, sem jornada de trabalho pré-definida, sem cobertura social e sem
sindicalização. Os jovens latino-americanos sofrem efeitos corrosivos desse
tipo de trabalho, reforçando o que se chama a “fetichização do instante”4
(GARCIA; OROÑO; CASTILLO, 2018).
A qualificação da força de trabalho engloba diferentes elementos, como o
grau de escolaridade, a experiência adquiria no local de trabalho, hábitos e
atitudes. Os jovens saem em desvantagem por muitos ainda estarem em busca
do primeiro emprego (RIBEIRO; NEDER, 2009).
Economia do Compartilhamento
A Economia do Compartilhamento se baseia no uso da tecnologia da informa-
ção, buscando otimizar o uso de recursos através da sua reordenação, compar-
tilhamento e aproveitamento das suas principais capacidades. A tecnologia da
informação possibilita que bens e serviços antes não negociados passem a ser
negociados através da confiança depositada no sistema on-line de comparti-
lhamento (MARTINS; RIBEIRO, 2017; SOUZA; LEMOS, 2016).
A ascensão da Economia do Compartilhamento forneceu diversos exemplos
de design de mercado inovador. Empresas como Ebay5 e Airbnb6 permitem
que inúmeros vendedores testem preços, mecanismos de venda e estratégias
de publicidade. As plataformas financeiras como o Prosper7 e o Kickstarter8
usam diferentes mecanismos para permitir que pessoas consigam emprésti-
mos e/ou investimentos de maneira descomplicadas. A Instacart9 e a Uber10
utilizam técnicas centralizadas para designar trabalhadores a empregos, sem-
pre submetidos às forças de mercado. Quando um passageiro envia a rota de
destino para a Uber, a empresa anuncia o trabalho para os motoristas. Nota-se
que a alocação do trabalho é invisível para os pilotos, porém a empresa busca
equilibrar demanda e oferta, limitando o tempo de espera e ajustando os pre-
ços às condições do mercado (EINAV; FARRONATO; LEVIN, 2016).
Com diversas empresas da Economia do Compartilhamento surgindo nos
últimos anos e se consolidando, é importante analisar a movimentação econô-
mica que esse segmento apresenta para a economia. Segundo MARTIN (2016) 45
o futuro, nº1
a previsão de crescimento do setor é saltar de US$ 15 bilhões em 2015 para US$
335 bilhões em 2025. Na análise da OIT (2018) a tendência do setor é se expan-
dir ainda mais por conta do desenvolvimento das novas tecnologias.
Como pode-se notar, é um setor que está em constante crescimento e movimen-
ta cifras bilionárias. Algumas empresas já destacadas no artigo possuem valor de
mercado superior a US$ 1 bilhão11, como é o caso da Uber, Airbnb, Rappi e Ifood.
A Economia do Compartilhamento surge como uma opção de dinamização
da economia e principalmente uma descentralização do poder não mão de pou-
cas empresas comumente visto na economia atual dado o padrão de acumulação
do capital, porém a promessa de dinamização não se realiza tendo em vista as
“brechas” no mercado regulatório e consequentemente a precarização da classe
trabalhadora que precisa se submeter a esse tipo de trabalho para sobreviver.
O autor Tom Slee (2017) aborda essa contradição no seu livro “Uberização: A
nova onda do trabalho precarizado”, o estadunidense aponta que o que inicial-
mente parecia uma cooperação entre indivíduos baseado nas trocas mútuas, fa-
zendo parecer que estava havendo uma transição do reino da necessidade para o
reino da liberdade, possibilitou a criação de gigantes corporações, estando entre
as mais valiosas e poderosas do mundo, sem que necessariamente precisassem
possuir patrimônio, propriedades, estoques, máquinas ou custos de instalações.
Isso acontece porque essas empresas se eximem de toda a responsabili-
dade trabalhista e regulatória. A Uber não se apresenta como uma empresa
de transporte, ela apenas aproxima o passageiro do motorista através de uma
tecnologia – no caso um aplicativo de celular – cobrando uma taxa por corrida
realizada. O Airbnb não se coloca como uma empresa do ramo da hotelaria, ela
apenas oferece ao hóspede um local para se hospedar através de uma tecno-
logia – no caso um site e posteriormente um aplicativo de celular – cobrando
uma taxa de serviço por cada hospedagem realizada. A Rappi e o Ifood não são
empresas do ramo de logística, elas apenas oferecem a entrega de comidas e
bens de serviços através de uma tecnologia – no caso aplicativos de celulares –
cobrando uma taxa por cada entrega realizada.
A Economia do Compartilhamento surgiu no contexto da revolução digital,
da crise mundial e do desemprego, tornando-se assim uma opção de renda e so-
brevivência imediata dos trabalhadores (SAMUELSON apud SALDANHA, 2017).
A uberização aposta na promessa de que todos ganham com a tecnologia
utilizada. Para os consumidores, menores preços, melhoria dos serviços e uma
maior comodidade, enquanto para os trabalhadores uma maior autonomia e
maiores oportunidades profissionais. Porém é válido ressaltar que ao mesmo
tempo que essas plataformas promovem a liberdade de profissão, elas podem le-
var ao contrário, à precarização do trabalho (ZANATTA; DE PAULA; KIRA, 2017).
O fenômeno da uberização ratifica um estágio superior da exploração do traba-
46 lho, que propõe mudanças ao estatuto do trabalhador, à organização das empresas,
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
e, da mesma forma, aos modelos de controle, gerenciamento e expropriação do
trabalho. O fenômeno valida a passagem do trabalhador para um empreendedor
acessível ao trabalho; retira as garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém
sua submissão. A uberização pode ser entendida como um futuro possível para
empresas que se tornam responsáveis por disponibilizar a infraestrutura para que
os seus “parceiro” realizem o seu trabalho; é possível imaginar hospitais, universi-
dades e diferentes empresas que adotem esse modelo (ABÍLIO, 2017).
48
A precarização e as relações de trabalho para a juventude brasileira, cavalheiro
Gráfico 2 - Porcentagem da juventude trabalhadora brasileira que não pos-
suem carteira assinada nos trimestres correspondentes
Observa-se que mais de 40% dos jovens brasileiros que estão trabalhando
não possuem carteira assinada, temos assim quase metade da juventude traba-
lhadora brasileira que não possui direitos trabalhistas. A taxa de informalidade
mostra como a precarização do trabalho dos jovens no Brasil, além disso é
importante destacar um leve aumento na informalidade a partir do segundo
semestre de 2017, nesse período foi promulgada a lei de terceirização pelo en-
tão presidente golpista Michel Temer.
Em uma pesquisa sociodemográfica de entregadores de aplicativo da cida-
de de São Paulo que utilizam a bicicleta como ferramenta de trabalho, chegou-
se ao perfil médio do entregador brasileiro: é homem, negro, tem entre 18 e 22
anos, possui ensino médio completo, estava desempregado e agora trabalha
todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia e possuem um ganho médio
mensal de R$ 992,00 (ALIANÇA BIKE, 2019).
Conclusões
Os jovens é um dos setores mais precarizados dentro do mercado de trabalho,
juntamente com outros setores como mulheres, negros e LGBT’s. Além dos da-
dos expostos, um dos objetivos era analisar a precarização da juventude em meio
ao fenômeno da uberização, porém por ainda ser algo novo dentro do mercado
de trabalho, o IBGE não possui dados mais aprofundados da população que tra-
balham com os aplicativos da Economia do Compartilhamento. Mas foi possível 49
o futuro, nº1
buscar informações mais detalhadas sobre a categoria de entregadores de apli-
cativo a partir de estudos realizados recentemente. E observou-se que grande
parcela dos trabalhadores de aplicativos são jovens, chegando a 75% ter até 29
anos, segundo informações do estudo realizado pela Aliança Bike.
Para além disso, algumas políticas públicas incentivadas por grandes organi-
zações, como a OIT é o estímulo do empreendedorismo juvenil, porém deve-se
problematizar essa solução, dado que os jovens já estão inseridos na informali-
dade e possuem um salário ruim. Pergunta-se então, como os jovens teriam capi-
tal inicial para investir em algum empreendimento próprio quando os mesmos
fazem parte da parcela da população que tem rendimentos salariais pequenos?
A solução do problema da precarização da juventude brasileira não virá por
soluções que estimulam a individualidade, como o empreendedorismo e a Eco-
nomia do Compartilhamento defendem. Se faz necessário buscar soluções co-
letivas junto aos órgãos responsáveis com estímulo ao primeiro emprego. Até
mesmo compensações fiscais para empresas que estimularem a contratação
de jovens que trabalham e estudam, tendo em vista que o acesso ao conheci-
mento técnico dá mais ferramentas para o jovem, podendo dessa forma aplicar
esses conhecimentos nos seus respectivos empregos.
Para os entregadores de aplicativo, é importante a organização coletiva para
que se busque reconhecimento empregatício, dessa forma o trabalhador de apli-
cativo terá direito formal a férias, 13º salário, estrutura física fornecida pela em-
presa para descansos, vale-alimentação, seguro-desemprego e seguro acidente.
50
REFERÊNCIAS
O
sistema capitalista enfrenta o epicentro da mais grave, profunda e
devastadora crise sistêmica de sua história, muito mais grave que
as duas crises sistêmicas anteriores, cujos eventos provocaram mu-
danças quantitativas e qualitativas nesse modo de produção.2 Trata-se de um
período difícil, no qual os gestores do capital estão desarticulados, sem ho-
rizonte, sem bússola ou instrumentos, e viajando rumo ao desconhecido por
mares nunca dantes navegados. Todas as receitas, fórmulas e agendas e já fo-
ram experimentadas pelos governos, no período 2008-2020, e nenhuma delas
conseguiu restaurar a estabilidade do sistema nem a retomada sustentada da
economia mundial. A enorme quantidade de dinheiro colocada na economia
apenas serviu para adiar o desenlace do processo. Isso ocorre porque as crises
sistêmicas têm uma diferença quantitativa e qualitativa em relação às crises
cíclicas clássicas do capitalismo e, especialmente, porque nenhum dos pro-
blemas que emergiram em 2007/2008 foi resolvido. Pelo contrário, o sistema
realizou uma fuga para frente, aumentando de maneira extraordinária o
volume do capital fictício em circulação: os bancos centrais colocaram
Fonte: BASSATO
63
o futuro, nº1
O significado político da crise
Mas essa crise veio também colocar na ordem do dia algumas velhas questões
da economia política a muito esquecidas pelas classes dominantes e por certa
esquerda reformista, que se acomodou no marxismo bastardo, na gestão pre-
tensamente humana do capitalismo e nos encantos do poder político burguês.
Nada como uma grande crise para colocar a realidade da luta de classes no posto
de comando. O primeiro grande significado político desta crise é muito especial:
só os trabalhadores criam o valor. A riqueza criada no sistema capitalista não é
resultado da habilidade gerencial dos gestores do capital, nem das máquinas e
equipamentos e muito menos do espírito empreendedor dos capitalistas: a úni-
ca forma de criação de riqueza no capitalismo é o trabalho humano. Como já
definia Engels em seu trabalho “A humanização do macaco pelo trabalho” onde
define com clareza a importância do trabalho para o ser humano: “O trabalho é
a fonte de toda a riqueza, afirmam os economistas, e o é de fato, ao lado da natureza,
que lhe fornece a matéria prima por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente
mais que isso. É a condição fundamental de toda a vida humana. E o é num grau tão
elevado que, num certo sentido, pode-se dizer que o trabalho, por si mesmo, criou o ho-
mem”.15 Poderíamos dizer que o trabalho é tão importante que, se a humanidade
deixasse de trabalhar, a espécie humana se extinguiria, pois deixariam de existir
bens e serviços para a satisfação das necessidades humanas.
E o velho Marx já dizia que as mercadorias têm valores porque são a crista-
lização do trabalho social.16 E ainda no primeiro capítulo de O Capital, citando
um panfleto anônimo escrito possivelmente entre 1739 ou 1740, muito antes de
Adam Smith, já enfatizava claramente que o valor de todas as mercadorias é re-
sultado do trabalho socialmente necessário do ser humano. “É apenas a quan-
tidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente
necessário para a produção de um valor de uso que determina a grandeza de
seu valor ... Uma quantidade maior de trabalho constitui, por si mesma, uma
maior riqueza material”.17 Nessa crise a vida se encarregou mais uma de provar
essa verdade da economia política: quando os trabalhadores ficaram em casa,
em função da pandemia, ou quando as empresas demitiram por causa da crise,
a economia entrou em colapso. Os capitalistas, em desespero, se articularam
c1) As grandes manifestações nos Estados Unidos são resultado das contra-
dições profundas que vinham se acumulando nessa sociedade desde o final
dos anos 70. A morte de George Floyd foi apenas o estopim que acendeu a
revolta que estava madura na sociedade. Estas manifestações podem ser
a senha para levantes em várias regiões do planeta, inclusive na Europa e
na América latina, pois os problemas revelados pela crise são semelhan-
tes em todas as partes do mundo capitalista. Além disso, as manifestações
nos Estados Unidos possuem um valor simbólico: estão sendo realizadas no
coração do sistema capitalista. O choque psicológico que a sociedade nor-
te-americana está sentindo com os problemas revelados dramaticamente
pela crise terá um impacto profundo na consciência das massas (tanto no
curto quanto no médio prazo), especialmente na população mais pobre e
na juventude, para a qual ficou claro que o discurso vendido pelas classes
dominantes era uma mentira longamente cultivada pelos meios de comuni-
cação. O rei se encontra completamente despido: o País das liberdades, das
oportunidades, que se comportava como palmatória do mundo para impor
70 os seus valores, agora não consegue proteger a saúde da população diante
Dançando à beira do abismo: a crise sistêmica global emerge novamente, costa
de uma pandemia, enquanto países muito mais pobres controlaram a doen-
ça. Em outras palavras, quando a ira popular emergir das ruínas dessa crise
o coração da maior cidadela imperialista vai bater num compasso descon-
trolado. Mesmo antes da pandemia já se podia sentir um grande desconten-
tamento entre os trabalhadores dos Estados Unidos, tanto que ano passado
ocorreram várias greves na categoria dos professores, nos trabalhadores
de cadeias de fast food e anteriormente as manifestações dos jovens do Oc-
cupy Wall Street. Portanto, as manifestações que estamos assistindo agora
podem ser apenas a ponta de um iceberg em direção ao Titanic. Mas não
basta a revolta pura e simples contra o racismo, a brutalidade policial e as
desigualdades. O sistema é muito forte e pode absorver, cooptar, dividir e
derrotar o movimento. Vale lembrar que o Occupy chegou a se organizar em
cerca de 60 cidades e se dissolveu por falta de objetivos políticos estratégi-
cos. Portanto, se as manifestações não evoluírem para propostas políticas
para mudar o sistema, mediante a construção de uma organização politica,
baseada em forte movimento de massas organizado, pode-se novamente
perder uma grande oportunidade histórica.
O acirramento das lutas de classe em caráter mundial
72
O Poema Pedagógico
Soviético para
a Juventude
Revolucionária
Vinícius Okada M. M. D’Amico1
A
discussão acerca da escola socialista e do papel da juventude
revolucionária nessa questão, partindo da crítica contra a insu-
ficiência da escola tradicional capitalista e das palavras de or-
dem pela educação pública e gratuita, é de longa data. Marx na Crítica do
Programa de Gotha, não só salienta a necessidade de um programa edu-
cacional independente da classe trabalhadora, deixando explícita a cen-
tralidade da autodireção do proletariado nesse processo, mas também,
diante da reivindicação por uma “educação popular universal e igual sob
incumbência do Estado”, diz
[…]
80
A organização do processo educativo
Assim como lembra Lênin no memorável texto “Sobre escalar uma grande
montanha e o perigo do desânimo” (LÊNIN, 2020), o processo revolucionário
é um caminho longo e tortuoso, de altos e baixos, períodos calmos e períodos 83
o futuro, nº1
turbulentos. Ser revolucionário não é somente ter a tarefa de construir a revo-
lução durante toda a sua vida, mas é a de construir a sua vida através do dever
revolucionário. Assim como expressa a máxima: “antes deixar de ser, do que
deixar de ser revolucionário”.
O que a luta revolucionária de Krupskaya, Makarenko e Pistrak nos ensi-
na vai de acordo com as lições de Lênin no texto citado. O caminho rumo ao
cume da montanha é árduo; às vezes há de se descer um bocado para poder
subir mais habilmente por outro caminho. Há vitórias e derrotas e o processo
é longo. Mas o desânimo e a melancolia não podem tomar parte nessa luta. A
melancolia é um sentimento paralisante, e a paralisia é inútil e contrarrevolu-
cionária.
Os percalços inúmeros de se construir a Escola Única do Trabalho na União
Soviética após a guerra civil revolucionária só pode ser contada através dos
retratos literários emocionantes dos heróis soviéticos, como o caso de Poema
Pedagógico de Makarenko. Mas seu legado histórico permanece e mostra o ca-
minho para a juventude revolucionária, sem jamais esmorecer, assim como
diz Krupskaya
84
REFERÊNCIAS
85
86
Juventude e
revolução: um
ensaio sobre as
lutas da juventude
pelo socialismo no
século XXI
Gabriel Lazzari1
É
parte da maioria dos movimentos políticos, pelo menos desde o começo do
século XX, setores ou organizações voltados ao trabalho entre a juventude.
Muitas vezes vista ao lado da classe trabalhadora, no caso dos partidos ope-
rários, comunistas, socialistas e social-democratas, a juventude tem sido tratada
como um setor da sociedade específico e, ao mesmo tempo, integrado à dinâmica
social – ora compartilhando interesses com outros setores, ora tendo seus próprios.
O que pretendo com esse ensaio é esboçar alguns pontos fundamentais do
debate sobre a juventude, buscando compreender, brevemente, (a) o que é a ju-
ventude; (b) seu lugar no modo capitalista de produção; (c) o tratamento dado
à juventude especificamente pelo movimento comunista; e (d) as potenciali-
dades desse grupo nos processos de lutas de classes, ao lado do proletariado,
na construção da Revolução Socialista (no Brasil e no mundo) no século XXI.
89
o futuro, nº1
É muito difícil, às vezes quase impossível, realizar
propaganda entre soldados em serviço ativo. A vida no
quartel, a supervisão rigorosa e as raras licenças tornam
o contato com o mundo exterior extremamente difícil; a
disciplina militar e o cuspe absurdo e o polimento acobardam
o soldado. Os comandantes do exército fazem tudo o que
podem para tirar o “absurdo” dos “brutos”, purificá-los de
todo pensamento não convencional e toda emoção humana
e instilar neles um senso de obediência cega e um ódio
selvagem e impensado por “internos” e Inimigos “externos”
... É muito mais difícil abordar o soldado solitário, ignorante
e intimidado que está isolado de seus semelhantes e cuja
cabeça foi recheada com as visões mais loucas de todos os
assuntos possíveis do que esboçar jovens de idade que vivem
com suas famílias e amigos e estreitamente ligados a eles
por interesse comum. Em todos os lugares, a propaganda
antimilitarista entre jovens trabalhadores produziu
excelentes resultados. Isso é de tremenda importância. O
trabalhador que ingressa no exército como social-democrata
consciente de classe é um apoio fraco aos poderes que o são.
Assim, o vínculo muito próximo entre esses jovens trabalhadores que eram
(e ainda são) recrutados para as guerras imperialistas mais cruentas, nas quais
combatem outros trabalhadores, recrutados em outros países em condições
3 Tradução livre de PRIVALOV, V. V. The Young Communist International and its Ori-
gins. Moscow: Progress Publishers, 1971. Disponível em: https://archive.org/details/
TheYoungCommunistInternationalAndItsOrigins/. 91
o futuro, nº1
lismo”, ou seja, uma crítica similar à sua, uma crítica mordaz à Internacional
Socialista. No próprio processo revolucionário russo, de fevereiro a outubro,
inúmeras organizações de juventude, ainda dispersas, foram fundadas no país
– algumas inclusive com o nome de “Terceira Internacional”, já antevendo o
esforço de reagrupamento dos partidos operários sob a bandeira do interna-
cionalismo proletário e do socialismo revolucionário.
A fundação da Terceira Internacional, a Internacional Comunista, mudou a
face do movimento operário em todo o mundo. Lênin afirmou em seu artigo A
Terceira Internacional e seu lugar na história4
Com essa aproximação teórica e essa retomada histórica, o que me cabe agora
é tentar esboçar, em linhas gerais, as potencialidades e limites da atuação po-
lítica da juventude na luta pela Revolução Socialista no século XXI. Se coloco
o problema apenas no nosso século é porque, em que pese a possibilidade (e
talvez necessidade) de uma análise mais abstrata sobre o papel da juventude no
movimento revolucionário desde sempre, enfocar nos nossos problemas mais
candentes é uma necessidade imperiosa, porque só ela pode nos fazer avançar
na luta concreta nas realidades diversas em que estamos.
A primeira questão que se apresenta é sobre o estado do movimento comu-
nista no século XXI. É fundamental levarmos em conta que vivemos, ainda, sob
a marca da contrarrevolução operada no final da década de 1980 e começo da
década de 1990, quando um grande conjunto de países socialistas e democra-
cias populares retornaram a uma etapa anterior do desenvolvimento humano,
voltando ao capitalismo. Um balanço preciso das causas desse processo não é o
meu objetivo aqui, mas muitas análises podem dar respostas sobre isso5. O im-
pacto posterior do processo, que ainda vivemos, foi imenso: diversos partidos
comunistas se desfizeram, outros mudaram de nome (aderindo acriticamen-
te a perspectivas reformistas e social-democratas) e a grande experiência de
construção do socialismo em nível global sofreu um baque. Países como Cuba
e a Coreia Popular tiveram imensas dificuldades para manter suas condições
de vida e desenvolvimento durante a década de 1990, sobrevivendo, no entan-
to, com a firmeza em um projeto societário de superação do capitalismo.
Apesar dessas experiências pontuais, a hegemonia que se afirmou a partir
da contrarrevolução na União Soviética, culminando em 1991 com a dissolução
dela, teve um impacto ideológico imenso no movimento dos trabalhadores. Um
profundo revisionismo histórico passou a ser operado por diversas organizações,
partidos políticos e intelectuais. Como já mencionado por mim em outro artigo:
Isso significou uma grande mudança de paradigma da luta social para os tra-
balhadores e para a juventude no mundo todo. Se, durante boa parte do século
XX, o paradigma contestatório ao capitalismo era a organização de uma revo-
lução que passasse o poder político para as mãos do proletariado e do campe-
sinato pobre (mesmo em momentos em que esse paradigma não foi articulado
corretamente na compreensão das necessidades objetivas das lutas de classes),
na virada para o século XXI, o paradigma havia se alterado para perspectivas de
acúmulo de forças por dentro do Estado, medidas redistributivas mínimas, dog-
mas macroeconômicos gerais para as políticas nacionais, entre outras diversas
ilusões burguesas e pequeno-burguesas sobre as perspectivas de luta do prole-
tariado pelo fim da exploração do seu trabalho. Não é objeto da minha exposi-
ção, aqui, as múltiplas determinações que confirmam, na realidade, que esse
paradigma “novo” não apenas representa uma posição de classe diversa da do
proletariado e que o paradigma do marxismo revolucionário continua vigente.
O que importa é observar, aqui, que essa mudança de paradigma corres-
ponde à confusão teórico-prática que imperou sobre a humanidade por causa
da contrarrevolução dos anos 1990. Se, antes, havia uma referência globalmen-
te reconhecida para a construção do socialismo – e, portanto, para as tarefas
que são necessárias para os trabalhadores tomarem o poder político –, agora
6 LAZZARI, Gabriel. As lutas da juventude no século XXI: devemos ainda ser leninis-
tas?. União da Juventude Comunista, 22 abr. 2020. Disponível em: https://ujc.org.br/
as-lutas-da-juventude-no-seculo-xxi-devemos-ainda-ser-leninistas/. 95
o futuro, nº1
(desde os anos 1990), essa referência foi desbancada de seu estado de amplo re-
conhecimento para um estado de marginalidade. Contribuiu para esse estado
de marginalidade, também, um sem número de formulações teórico-políticas
de matriz idealista ainda durante o século XX: um “certo” marxismo galgou
espaço dentro das instituições acadêmicas, mal disputando com correntes fi-
losóficas que nada mais eram do que a expressão ideológica das modificações
expressas no campo da produção da vida social humana em uma fase não mais
fordista da produção, mas mais fragmentada – falo aqui das diversas perspecti-
vas de corte irracionalista que, apesar de aparentemente críticas, dão suporte
para um afastamento da teoria materialista histórico-dialética da realidade. Da
mesma forma que o século XIX viu a expressão schopenhaueriana – a resposta
irracionalista à derrota dos ideais da Revolução Francesa – e nietzscheana – a
resposta irracionalista à derrota da Comuna de Paris –, o pós-modernismo (em
tuda sua diversidade) surge como expressão da retração e posterior derrota da
maioria das experiências socialistas do século XX.
No entanto, sabendo correto o paradigma marxista revolucionário (sobre-
tudo a partir dos aportes de Lênin a ele – demonstrando o vínculo indissociável
entre a forma de organização leninista e o conteúdo proletário-revolucionário
da estratégia), é importante retomar a pergunta: qual é o lugar da luta da juven-
tude no rumo da Revolução Socialista no século XXI?
98
Subjetividade
neoliberal em
tempos de crise:
uma aposta para
o futuro a partir da
juventude marxista
Felipe Gomes Mano1 e João Vitor Sichieri2
Introdução
O
presente tem exigido muito de nós. Uma crise sanitária de ape-
lo humanitário bateu à porta, enclausurando as pessoas em suas
casas e fazendo com que repensem suas relações com o meio em
que vivem. O surto de um vírus que ignora fronteiras e não distingue clas-
ses, o desmoronamento do mercado global e a incapacidade de lidar racio-
nalmente com tais questões fez inflar os grandes problemas desta geração,
em especial aqueles relacionados ao sistema produtivo que pauta a mate-
rialidade da vida de todos e todas.
O caos vivenciado no início do ano de 2020, a distopia que se desenhava antes
da pandemia e que se materializou diante do fracasso dos governos em lidar com
a questão sanitária e social do novo coronavírus, é cenário propício para que se
coloque em pauta a maneira como administramos nossos recursos, nosso modo
de vida, as relações com o próximo e tudo o que nos permeia, sendo inevitável
repensar o valor que o ser humano tem diante da lógica mercantil que transfor-
ma todas essas questões em secundárias. Mais que filosófica, fazer tal exercício
torna-se hoje uma questão de sobrevivência. “Os filósofos apenas interpretaram
1 Felipe Gomes Mano tem 24 anos, é bacharel em direito pela Faculdade de Direito de
Franca – FDF, advogado criminalista e presidente da Comissão de Direito Constitu-
cional da 80ª Subseção da OAB/SP.
2 João Vitor Sichieri, 24 anos, mestrando em direito na Universidade Estadual Paulista
“Julio de Mesquita Filho” – UNESP, bacharel em direito pela Faculdade de Direito de
Ribeirão Preto – FDRP/USP. 99
o futuro, nº1
o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”3.
Questionar a viabilidade do modo de produção fundado no livre mercado,
cada vez mais selvagem e mais intenso no estabelecimento de subjetividades
alienadoras, tornou-se assunto urgente. É fundamental aproveitar o momento
de crise, em que as contradições do atual modelo político-econômico hege-
mônico se mostram mais evidentes e debater sobre as possibilidades de sua
reforma e superação. Trazer a juventude para esse campo de discussão é es-
sencial, uma vez que é o grupo mais afetado pelos desmandos do capital e,
portanto, o mais interessado na criação de um futuro possível.
Para isso, a difusão do pensamento crítico e revolucionário em meio a ju-
ventude é necessária. A construção de uma forte juventude de esquerda, cons-
ciente da realidade miserável em que vive, conhecedora da história e combati-
va na atuação prática é elemento fundamental para a construção de caminhos
alternativos que rompam com os horizontes da sociabilidade capitalista.
3 MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filoso-
fia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo em
seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 539.
4 POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora Uni-
100 camp, 2019. p. 159-160.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
sob a lógica liberal-burguesa. Teorias políticas como a separação dos poderes e
do contrato social trouxeram a estabilidade política necessária, garantindo direi-
tos subjetivos que fundamentam o modelo capitalista - a propriedade privada, a
liberdade contratual e a igualdade meramente formal entre indivíduos - e dando
solidez à base da economia. Sob o lema laissez faire, laissez aller, laissez passer5, qua-
se tudo passou a ser possível para o indivíduo liberal, inclusive vender e comprar
a força de trabalho, que assumiu a forma-mercadoria e naturalizou-se nesse tipo
de sociabilidade. Surgia assim o sujeito liberal, dotado de uma razão e moral pró-
prias e que enxerga tudo sob o aspecto mercantil, sendo produto dos elementos
contidos na superestrutura dessa sociedade instrumentalizada e individualista6.
O discurso pautado no liberalismo clássico regeu a sociedade firmada após a Se-
gunda Revolução Industrial. A eclosão de polos fabris trouxe consigo a promessa
de que o avanço tecnológico geraria riqueza a todos e todas, motivando um grande
êxodo rural que inflou a população das cidades. Os centros urbanos não tinham ca-
pacidade para comportar toda a população, que apenas aumentava, assim como as
vagas de emprego eram limitadas. O desemprego assolava a classe trabalhadora, e a
criação de um exército proletário de reserva mantinha os salários baixos e a explo-
ração cada veza mais intensa. Formou-se um cenário contrastante, onde de um lado
a burguesia captava os lucros e operava o Estado, enquanto do outro comunidades
inteiras eram marginalizadas e sofriam com o desabrigo, a fome e a violência7.
A efervescência política no início do século XX pode ser considerada um
sintoma dessa forma de organização pautada pelo grande capital. As duas
Guerras Mundiais e a grande crise econômica que lhes intercalou no ano de
1929 tiveram papel importante na releitura da perspectiva de atuação liberal.
Na nova concepção de liberalismo, o Estado assumiu a posição de ente prote-
tor e emancipador dos indivíduos, supostamente garantindo direitos básicos
como educação, saúde, habitação, leis trabalhistas etc., buscando estabelecer
um estado de bem-estar social que nunca se concretizou plenamente.
Novas políticas de reestabelecimento econômico e social baseadas no
keynesianismo, como o Plano Marshall na reconstrução da Europa pós-
guerra e o New Deal na formação de uma sociedade de consumo e welfare
norte-americana, ganharam o mundo. A linha de bem-estar social trazia
altos gastos ao Estado, o que, atrelado à inevitável estagnação econômica
ocidental em meados da década de 1970, produziu déficits fiscais que co-
locavam em cheque o modelo keynesiano. A partir desse ponto, a figura
do Estado intervencionista passou a ser questionada e teorias liberais que
5 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC S/A,
1986. p. 137-138.
6 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, SP: Boitempo,
2013. p. 20-22.
7 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Ja-
neiro: Revan; ICC, 2006. p. 39-40. (Pensamento criminológico, v. 12). 101
o futuro, nº1
pregavam o seu afastamento da economia foram recuperadas e colocadas
em prática. Nascia assim o modelo neoliberal, estabelecido primeiramen-
te como orientação governamental no Chile, após o golpe militar de 1973,
e, posteriormente, com as suas duas figuras de maior expressão, Ronald
Reagan e Margaret Thatcher.
Diversos países aderiram ao neoliberalismo, que serviu de base para o
processo de globalização da economia financeirizada, orientando inclusive a
atuação de organizações e agências reguladoras internacionais. Nesse novo
panorama global houve a reformulação das relações sociais, sempre atreladas
ao modelo produtivo vigente, afetando desde a maneira de se produzir merca-
dorias até as formas de interação intra e intersubjetivas. É criada uma subjeti-
vidade neoliberal que, atuando inclusive a nível psicológico, leva a total sobre-
posição da consciência individual sobre qualquer aspecto de coletividade. A
ideologia mercadológica ganha força e a própria vida humana passa a ser vista
como um investimento que deve ser gerido tal qual uma empresa, sendo medi-
da pela lucratividade e não pelo bem-estar ou pelos vínculos sociais-afetivos8.
A diminuição do pensamento coletivo em detrimento de um ultraindivi-
dualismo cria relacionamentos orientados por uma lógica de cálculo de perdas
e ganhos. Na esfera econômica, são introduzidos conceitos como o de capital
humano¸ incutindo nas pessoas a ideia de que elas mesmas são meios de pro-
dução, e por isso devem receber aplicações em busca de rendimentos9. A força
de trabalho não é mais enxergada homogeneamente para fins de medição em
tempo, tornando-se diferenciada dentro de cada categoria pelas qualidades
individuais de cada trabalhador, o que modifica o referencial para a determi-
nação do valor de troca de seu tempo de trabalho. A ideologia neoliberal tenta
transformar o trabalhador em capitalista, cujo capital seria ele próprio10.
Durante a pandemia do novo coronavírus surgem casos emblemáticos que
escancaram o funcionamento da sociedade que tem como fim último a acumu-
lação irrestrita e o individualismo como valor supremo: a defesa da flexibiliza-
ção do isolamento social em prol de uma suposta retomada econômica feita
pelos liberais, além de ressaltar que a classe trabalhadora é quem tudo produz,
também demonstra que não há limite ético ao capitalismo, colocando a saúde
e a vida dos trabalhadores e trabalhadoras em segundo plano para garantir
que a economia – que muito pouco lhes aproveita – continue a render frutos
aos capitalistas – esses, sim, isolados com suas famílias em casa. Declarações e
decisões de políticos como Donald Trump e Bolsonaro, “contra quarentenas e a
8 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France
(1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 203; 331-332.
9 FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 308-316.
10 LÓPEZ-RUIZ, Osvaldo. Os executivos das transnacionais e o espírito do capita-
lismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro:
102 Azougue Editorial, 2007. p. 61; 193; 220-221.
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
favor da circulação de pessoas e do envio dos pobres aos postos de trabalho são
provas de que sequer questões de vida e morte detêm o interesse do capital”11.
A lógica neoliberal, tendo como pano de fundo o triunfo individual, não
se encerra em análises de novas formatações econômicas, mas orienta as de-
mais relações sociais, em uma espécie de psicologia que rege a vida humana
e permite a reprodução do sistema com maior fluidez. Nesse sentido, da mes-
ma forma que a suposta procura da felicidade é individualizada, a gerência
dos prejuízos também deve ser suportada pelo sujeito isoladamente, razão
pela qual a queda do consumo é suportada pelos despossuídos na redução de
salários e postos de emprego disponíveis.
Diferentemente do modelo liberal keynesiano, que objetivava eliminar
o sofrimento ofertando direitos básicos para que os cidadãos pudessem
ter suas qualidades desenvolvidas sem qualquer obstáculo e assim serem
produtivos, o neoliberalismo, movido pelo método de emancipação total,
encontra no sofrimento individual o caminho para a sua reprodução. Em
vista disso, dentro da racionalidade neoliberal que faz adoecer os corpos
e mentes dos despossuídos inebriados pela necessidade do triunfo econô-
mico, o sofrimento passa a ser inoculado para que, por meio da incessante
produtividade em busca de um lucro pessoal, os sujeitos possam amenizar
o mal-estar sentido através do consumo12.
É consolidada então a subjetividade neoliberal, na qual o constante in-
vestimento no próprio capital humano e aumento de sua utilidade repre-
sentam ao mesmo tempo a reprodução do modelo econômico e a tentativa
de fuga do sofrimento individual. Se fecha um ciclo onde a superação das
angústias é seguida pelo surgimento de outras, que terão de ser igualmente
enfrentadas para que novas apareçam, isolando-se cada vez mais o indiví-
duo em sua saga pelo ideal impossível.
Em tempos de pandemia, em que o trabalho é afetado pela necessidade
de isolamento social, o resultado é uma ausência de sentido existencial,
que tem a ver com a própria compreensão de mundo de quem vive sob o
julgo constante do capital, refém da propaganda consumista e da ideia equi-
vocada de que somente a riqueza liberta o homem de seus problemas. Ao
contrário da promessa de emancipação humana pelo trabalho, a concen-
tração de renda e a alienação dos corpos e mentes da maioria da população
mostram que a meritocracia liberal é uma falácia perigosa, sendo ainda
mais evidente em tempos de crise, quando os privilégios se acentuam e a
divisão da sociedade em classes sociais torna-se evidente.
11 MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020. p.158.
12 PAVÓN-CUÉLLAR, David. O capital que jorra sangue e lodo por todos os poros. In:
PAVÓN-CUÉLLAR, David; LARA JUNIOR, Nadir (Orgs.). Psicanálise e marxismo: as
violências em tempos de capitalismo. Curitiba: Appris, 2018. p. 21. 103
o futuro, nº1
As feridas abertas do capital
Com o passar dos anos, a solidificação do modelo neoliberal trouxe consigo a
naturalização da forma de sociabilidade e um processo de criação de indivi-
dualidades que lhe são intrínsecos, fazendo com que todas as mazelas conse-
quentes de sua operabilidade passassem a ser compreendidas como normais
e elementos inerentes à sociedade13. Doses de sofrimento e ideologia são cons-
tante e estrategicamente inoculadas e tidas como parte banal da vida, manten-
do uma conjuntura sem perspectiva de modificação ou superação.
Em situações de crise, as feridas que atormentam os indivíduos tornam-se
explícitas e, portanto, produzem sintomas mais intensos que chamam a aten-
ção para o problema de forma urgente. Contudo, se não combatidas direta-
mente em suas causas, são facilmente instrumentalizadas pela ideologia do ca-
pital e transformadas em obstáculos cuja superação é necessária para garantir
a continuidade da acumulação, o que agrava ainda mais a situação das classes
trabalhadoras e despossuídas. O cenário de terra arrasada e o choque causado
na população são instrumentos dos quais o capital se vale para expandir a sua
dominação14, e como resultado surgem propostas como privatizações15 ou a
redução dos poucos direitos que detém a parcela explorada da população.
O dinheiro, mero representante de valor para a troca de mercadorias, é fe-
tichizado a tal grau que passa a ser cultuado como fim último da existência, e o
trabalho, no sentido de utilidade à reprodução do sistema, passa a ser o vínculo
que dá ao sujeito o sentimento de pertencimento à sociedade. Nessa lógica, o
desemprego marginaliza e o expulsa do corpo social, refletindo em uma insa-
tisfação existencial que impõe a necessidade de reinserir-se, reconquistar o lu-
gar ao sol, o que perpetua a situação de exploração do trabalhador16, impedin-
do-o de superá-la. Além de todas as formas adotadas pela ideologia neoliberal,
políticas de precarização da educação e movimentos anticientíficos colocam
em cheque todas as posições que critiquem o status quo e que possam contestar
esse modelo autoritário e injusto. Isso permite que o capital marche rumo ao
A missão da juventude
O materialismo histórico ensina que a transformação é possível e para que
isso ocorra é necessário que se lute. A história nos mostra que a realidade é
transformada através de embates travados no campo da política e, hoje mais
que nunca, nas áreas de produção de conhecimento e de disseminação de
informações. O triunfo desses embates somente se alcança mediante a orga-
17 MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 102.
18 TEIXEIRA, Matheus; COLETTA, Ricardo Della; WIZIACK, Julio. Bolsonaro, Guedes
e empresários vão ao STF para pressionar pelo fim do isolamento contra coronaví-
rus. Folha de São Paulo, Economia, São Paulo, 7 maio. 2020. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-guedes-e-empresarios-vao-ao
-stf-para-pressionar-pelo-fim-do-isolamento-contra-coronavirus.shtml. Acesso em:
30 maio. 2020.
19 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 127-128. 105
o futuro, nº1
nização de frentes combativas, que sejam sólidas em suas bases teóricas – o
pensamento marxista fornece instrumental para tanto quando se desvincula
das propostas reformistas da social-democracia – e de atuação contínua, para
que pequenas vitórias sejam conquistadas a curto prazo e, no mais longo ca-
minhar, novos horizontes possam ser construídos.
A projeção de um novo futuro é sempre o guia dessas lutas. E como ar-
quitetar um amanhã diferente sem a participação de quem representa o
próprio nascer do sol? A presença da juventude no esboço de uma nova
sociedade é de suma importância para que as perspectivas progressistas
reflitam seus interesses de emancipação e justiça. O novo mundo deve ser
concebido para e pela juventude, sempre com o respaldo e sob o caminho
já trilhado por quem constrói o novo há muito tempo.
A cada dia a falência dos valores adotados pelo mundo ocidental se tor-
na mais gritante, ao passo que as contradições capitalistas – em especial do
modelo neoliberal – se apresentam de forma explícita, desnudando os reais
interesses por trás das atitudes daqueles que comandam essa racionalidade
mercadológica que rege nossas vidas.
Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci já afirmara que “quando determinada
pessoa já se encontra em crise intelectual, oscila entre o velho e o novo, per-
deu a confiança no velho e ainda não se decidiu pelo novo”20. A crise é o marco
em que os valores caem em descrença, mas também onde novos caminhos se
mostram possíveis. É nesse momento que a juventude deve erguer a sua voz
para que seja ouvida, impondo-se e expondo seus anseios e expectativas para
que se desenhe um porvir mais justo, igual, sem exploração ou qualquer tipo
de opressão irracional do homem pelo homem. O futuro deve ter a alma da
juventude, mesmo que o corpo envelheça.
Autores e autoras de orientação marxista conservam, em grande medida, o
frescor das ideias próprias da juventude. Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxembur-
go, Gramsci, Florestan Fernandes, Mauro Iasi, Angela Davis e inúmeros outros
pensadores e pensadoras, independentemente do momento histórico em que
viveram ou vivem, permanecerão jovens enquanto teimar em existir o modelo
capitalista de exploração. O comunismo é a juventude do mundo e em momen-
tos como o atual não há espaço ao reacionarismo de quem busca, inútil e con-
traditoriamente, a retomada de um modelo de bem-estar que nunca existiu.
A superação dessa ideologia neoliberal e a luta contra ideais fascistas
que surgem não pode, de forma alguma, ficar restrita ao ambiente institu-
cional da social-democracia21. É hora de expor as evidentes contradições da
24 Referência à música Como nossos pais, mais especificamente à nona estrofe: “[...]
Mas é você que ama o passado/E que não vê/É você que ama o passado/E que não vê/
108 Que o novo sempre vem [...]”, do cantor e compositor brasileiro Belchior.
REFERÊNCIAS
Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista, mano; sichieri
TEIXEIRA, Matheus; COLETTA, Ricardo Della; WIZIACK, Julio. Bolsonaro, Guedes e em-
presários vão ao STF para pressionar pelo fim do isolamento contra coronavírus. Folha
de São Paulo, Economia, São Paulo, 7 maio. 2020. Disponível em: https://www1.folha.
uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-guedes-e-empresarios-vao-ao-stf-para-pressio-
nar-pelo-fim-do-isolamento-contra-coronavirus.shtml. Acesso em: 30 maio. 2020.
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alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo em seus
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MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical
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sepulcros. In: PAVÓN-CUÉLLAR, David; LARA JÚNIOR, Nadir (orgs.). Psicanálise e mar-
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__________. O capital que jorra sangue e lodo por todos os poros. In: PAVÓN-CUÉLLAR,
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POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2019.
109
110
O orgulho,
dever e desafios
da juventude
comunista
Raul Santos do Nascimento1
RESUMO
E
ste texto busca a reflexão e deliberação de ideias básicas em relação
à juventude comunista e aos aspectos que a rodeiam. Realizando um
aprofundamento da ponderação do que é fazer parte da juventude co-
munista, tanto quanto seus dilemas, honra e malícia necessária para atuar en-
quanto militante, buscando levantar reflexões sobre as ações dessa juventude,
utilizando por vezes as palavras e conceitos de marxistas que estão dialogando
direta ou indiretamente com as ideias aqui apresentadas.
Introdução
Os ensinamentos deixados pelos velhos teóricos e revolucionários marxistas, uma
vida de luta dedicada para a causa proletária desempenhada pelos variados povos
ao redor do globo e todo um legado histórico agora repousam sobre os ombros
da juventude comunista, esses que no momento de maior avanço do capitalismo
e suas severas condições impostas diante da classe trabalhadora, em seguida das
derrotas, falhas e traições obtidas pelo bloco socialista no século anterior, se si-
tuam face a face de uma massiva estrutura anticomunista. O propósito dessa ju-
ventude é seguir adiante com o desenvolvimento da revolução proletária; entre-
tanto, como realizá-la frente aos obstáculos impostos pela classe dominante?
1 Raul Santos do Nascimento é graduando em Artes Visuais pela UNESP Bauru, dese-
nhista, aspirante a escritor e membro da União da Juventude Comunista.
111
o futuro, nº1
Os contratempos da juventude comunista
O jovem comunista deve estar preparado para lidar com muitas adversidades
encontradas em seu caminho, provindas de sua escolha de seguir tal ideolo-
gia revolucionária. Essas adversidades constituem desde conflitos gerados por
laços familiares até mesmo a estrutura comandada pelo capital que lança di-
versas problemáticas em direção àqueles que negam a hegemonia capitalista.
Dominar pouco a pouco o método de análise gerado pelo materialismo históri-
co-dialético ajuda-nos a perceber os problemas de nossa sociedade e como eles
são criados. Por vezes isso pode causar séria melancolia no jovem comunista e
um afastamento das bases revolucionárias, caindo em um sentimento de exis-
tencialismo e conformidade frente ao capitalismo moderno.
A fim de acalmar os camaradas que também se encontram perante esses
problemas, gosto de destacar que desde muito cedo o próprio Karl Marx per-
cebeu os problemas de levar a ideologia comunista adiante, enfrentando seus
próprios conflitos com figuras políticas diversas, porém, sempre analisou os
dilemas de maneira material e buscou apoio sobre suas amizades próximas,
as quais sempre dividiram e ajudaram nos encargos teóricos de Marx, em des-
taque seu amigo de toda vida, Friedrich Engels, e sua esposa, Jenny von Wes-
tphalen. Marx apontava ao longo de seus estudos que as ideias dominantes na
sociedade capitalista sempre seriam aquelas atreladas e vantajosas para a bur-
guesia. Em vista disso, não deveria ser um desconforto inalterável que muitas
das ideias repercutidas ao nosso redor acabem por sustentar princípios con-
trários àqueles almejados por nós. De maneira oposta, esses desafios podem
servir como um empurrão para o jovem comunista buscar a teoria e prática
marxista, divulgando ela ao maior número de pessoas possíveis.
humano, ser tão humano que se aproxime ao melhor do humano, purificar o me-
lhor do homem por meio do trabalho, do estudo, do exercício de solidariedade con-
tinuada com o povo e com todos os povos do mundo, desenvolver ao máximo a sen-
sibilidade até se sentir angustiado quando um homem é assassinado em qualquer
canto do mundo e para se sentir entusiasmado quando em algum canto do mundo
se alça uma nova bandeira de liberdade” (GUEVARA, 1962).
4 “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” (LÊNIN,
114 1902).
O orgulho, dever e desafios da juventude comunista, nascimento
mesmo de ouvi-los, pense em construir respostas inteligentes, não que essas
sejam direcionadas para esse indivíduo em específico, mas sim para aqueles
que terão acesso a elas e podem pender rumo a nossa base marxista.
Conclusão
Diante da exposição apresentada no decorrer deste texto, podemos constatar
que a juventude comunista está munida de um fardo pesado, criado através
do sangue e suor daqueles que lutam ou já lutaram pelo movimento prole-
tário internacional. Nossas ações nos dias que correm representam a todos
os irmãos e irmãs dessa luta e não devem ser desperdiçadas ou produzidas
de um modo tão descortês que afaste a classe proletária de nossa causa. Ao
contrário, a juventude comunista deve se esforçar pela evolução, ter sede de
avançar a revolução brasileira e internacional, apoiando a causa comunista
como um objetivo tão importante que estará disposta a abraçá-la desde muito
cedo, afinal, se não formos nos arriscar por uma sociedade mais igualitária,
autossuficiente e benéfica a nós, para que o faremos?
A União da Juventude Comunista é um espaço que está aberto para abri-
gar jovens dispostos a debater e estudar política almejando uma sociedade
mais justa para a classe trabalhadora caso seja o interesse do leitor deste
texto. Organizar-se como um militante ativo é uma responsabilidade difícil,
mas os variados meios para desempenhá-lo são o único modo de alcançar
nossos objetivos, encontrar-se com jovens comunistas ao mesmo tempo
que aprendemos também a compartilhar nossa ideologia com as pessoas
fora do campo político se torna nosso dever, compreendendo o balanceio
entre se declarar enquanto jovem comunista, carregando orgulho por este
título e fazendo-o por merecer, ao mesmo passo que saibamos os momen-
tos nos quais propagar as ideias comunistas antes que se mostrem como tal
podem surtir maior efeito, pois, de modo infeliz, aquilo que nos acusam de
ser e aquilo que somos muitas vezes são concepções destoantes.
Por fim, faço o encerramento do discurso de Che Guevara (1962) o mesmo
de meu texto e, de suas palavras, as minhas: “Num momento dado, num dia
qualquer dos anos que venham após passarmos muitos sacrifícios, sim, de-
pois de termo-nos porventura visto muitas vezes à beira da destruição- após
termos porventura visto como as nossas fábricas foram destruídas e de tê-las
reconstruído de novo, depois de assistirmos ao assassinato, à matança de mui-
tos de nós e de reconstruirmos o que for destruído, ao fim de isso tudo, um dia
qualquer, quase sem repararmos, teremos criado, junto dos outros povos do
mundo, a sociedade comunista, o nosso ideal.”
115
o futuro, nº1
REFERÊNCIAS
116
Pandemia na Razão –
rascunho para
uma crítica
Fábio Ornelas1
P
ode parecer contraditório, mas o isolamento em certa medida serve de
termômetro de sociabilidade, um medidor em razão inversa: quanto
mais adesão ao isolamento, mais transparece uma relativa sociabili-
dade de um país. Pode até parecer óbvio para alguns, mas somos seres sociais.
Os mais aristotélicos podem achar graça, “animais políticos”, complementa-
riam. Mas como nos lembra sempre um velo barbudo, se a aparência coinci-
disse com a essência, não teria porque existir ciência. Obviamente não se trata
da primeira pandemia que a humanidade sofre, portanto, a novidade não é a
condição pandêmica da crise. Encontrar onde reside a novidade da questão
pode ser crucial para formular paradigmas de ação e resposta a toda estrutu-
ra ideológica que se forma como reação a este fenômeno biológico. Em certa
medida, o choque que faz parecer novidade que sejamos frágeis a um contágio
global está em nossa fragmentação da memória,; pouco nos é permitido ter
esse olhar histórico como realismo crítico. Walter Benjamin nos alertava que
a barbárie não mantém impune nem os mortos, pois a luta de classes também
se dá pela memória. De modo que, também não é nenhuma novidade que a
história enquanto disciplina escolar seja alvo preferencial de políticas de su-
focamento, seja pelo reducionismo ideológico ou pelo corte direto ao acesso.
Esses conflitos nos criam um certo corte no elo racional que orienta uma socie-
dade, uma certa forma de assalto a razão, para lembrar a obra de mesmo nome
de um certo filosofo húngaro, György Lukács, que não tem sido imune a essa
mesma forma de apagamento pela memória.
Não quero ser ingênuo de ignorar, que tanto hoje quanto no passado, essa
adesão à sociabilidade através das respostas emergenciais a contágios, epidê-
micos ou pandêmicos, tem se dado por ferramentas de barbárie. Essa pande-
1 Fábio Ornelas está em busca da longa saga pelo diploma, atualmente trancou um
curso de filosofia pela Unesp, por problemas pessoais, mas segue estudando por
conta própria. Militante da UJC há um curto tempo, segue se inspirando na memó-
ria dos mais célebres nomes do Partido Comunista Brasileiro. 117
o futuro, nº1
mia deveria lembrar também aos mais idealistas que esse ser social não é um
solo separado dos seres biológicos, mas essas duas particularidades fazem par-
te de uma mesma existência. Assim, no passado, sociedades se privavam do
convívio com aqueles marcados com a peste, que por sua vez se viam libertos
a uma condição de negligência que os condenava a morte mais cruel. Fatos re-
centes nos demonstram que, em países como Filipinas e Índia, a violência tem
servido de signo orientador da barbárie que com ferro quente marca no tecido
social o lugar de cada um na divisão social do trabalho. Já em outros casos, go-
vernos e lideranças de países mais ricos, e que curiosamente foram elogiados
em sua gestão de saúde pública, sem recorrer a agressão direta, empurram vio-
lentamente os cidadãos à sua devida posição perante a divisão internacional do
trabalho. Podemos lembrar os casos de Cingapura, onde os mais abandonados
eram justamente os imigrantes que cumpriam os trabalhos de necessidade bá-
sica para que as camadas médias e altas pudessem isolar-se em segurança, fato
que ao ser negligenciado gerou uma segunda onda de contágio. Ou mesmo o
caso alemão, em que o governo amplamente elogiado por sua postura pública
é o mesmo responsável pela imposição da agenda de austeridade e destruição
das políticas de bem-estar social que tanta falta fez nos casos espanhóis e italia-
nos, onde tivemos o maior número de mortos durante a fase em que a Europa
era o epicentro da pandemia. As respostas que temos a nossa disposição quan-
do nos vemos diante de uma crise sempre está limitada aquelas possibilidades
a nosso alcance. No passado, a deficiência cientifica levava a inconsequências
mais graves do que hoje, mas hoje ainda cometemos erros e negligências que
resultam do que vinha sendo tomado como projeto político no momento do
surgimento do novo vírus. É até certo ponto natural que certas crenças que
erguemos, sobre o que define nossas prioridades, entre em contradição com
as novidades que surgem na contingência dos fatos recentes. Buscar respostas
que nos orientem nesse momento não pode tirar de foco essa ambiguidade de
lidar com tudo aquilo que nos é novo e tudo aquilo que reproduzimos de velho.
A dinâmica de classes que orienta a política internacional gera um certo
recrudescimento das exigências que se impõem ao entendimento dos fatos so-
ciais, mas ao mesmo tempo é nessa contradição, entre o novo e inesperado e
o projeto pautado no passado, que temos novas superfícies de interação social
capazes de questionar a jurisdição vigente e os impactos humanitários que es-
sas relações de propriedade impõem a todos os despossuídos das ferramentas
de dominação de classe e gerência de estado. “Tudo que é sólido desmancha no
ar”, ou seja, a realidade concreta passa a predominar nos afetos cotidianos em
relação às sólidas estruturas ideológicas há tanto tempo construídas de acordo
com os interesses e bens particulares daqueles que detêm controle real dos
meios de produção. Em dado momento, aqueles que se viam privados do aces-
118 so a certos debates, começam a enxergar na sua realidade algumas incógnitas
Pandemia na Razão – rascunho para uma crítica, ornelas
que não podem ser automaticamente completadas na consciência com as ve-
lhas fórmulas que lhes foram impostas.
O elemento novo que vemos nessa crise não são, por enquanto, as reações
de cada ator político do cenário internacional. Vimos até agora uma intensifi-
cação quantitativa do que já tinha sido construído pelo interesse de classe de
cada elemento interno as relações geopolíticas, mas na prática pouca mudança
qualitativa. As condições em que vivemos seguem o roteiro clássico que vinha
sendo diagnosticado. Seja o de um interregno entre socialismo e barbárie, en-
tre um velho que está morrendo e um novo que não pode nascer; ou de uma
situação em que não há possibilidades de avanço, mas as correlações de força
seguem engajadas em não retroceder. Ao contrário do que um certo determi-
nismo sempre preconizou, o endurecimento da conjuntura não elevou o grau
de percepção das dominações de classe, apenas intensificou e reiterou a prática
alienada em que já estávamos inseridos. “Em momentos de sublevação, de gre-
ves, de agitação, é tarde para iniciar a distribuição de literatura”2, é nessa hora
que carecemos de estrutura de agitação e propaganda, suficiente para competir
com o aparelhamento midiático de hegemonia de novo tipo, que vemos cada vez
mais se comportando como ferramenta de desmobilização e desinformação em
massa. Traçar novos rumos é o que cabe a nós, que não temos dúvidas de que
o retorno à normalidade não é uma resposta razoável, uma vez que a barbárie
em que vivemos não só já não era novidade antes da pandemia, como também
se mostra pouco disposta a retroceder com o pós-pandemia. Boa parte de nos-
sas ações nessa crise vão orientar nossa receptividade ao debate público, em
especial com a classe trabalhadora. E por isso que é crucial o trabalho de soli-
dariedade de classe. Mas nada disso trará frutos sólidos de reorganização se não
utilizarmos da crítica racional dos fatos que temos ao nosso alcance para cons-
truir uma melhor comunicação e orientação para uma prática futura. Para isso,
proponho-me, a seguir, a esboçar alguns dos problemas que considero centrais
para reinserir uma crítica da ideologia dominante conforme ela tem se expres-
sado, e aproveito a ocasião para reorientar um breve trajeto metodológico que
debata as ferramentas com que construímos nossas armas da crítica.
Fato e Valoração
Com a virada materialista da dialética, não mais se exige apenas que as toma-
das de posição na ciência provem sua necessidade, mas também que os objetos
de sua argumentação sejam necessariamente entendidos segundo seu processo
real, concreto. Essa concretude depende, por sua vez, de uma abordagem que
indispensavelmente leve em conta as interações reciprocas nas quais se envol-
vem o simples fato ontológico de existir. Dessa forma, para que se tenha uma
análise concreta da realidade concreta, necessitamos antes de tudo considerar
a interdependência entre: necessidades fisiológicas, do ser orgânico, como co-
mer, beber, dormir etc.; e as necessidades psicológicas e cognitivas do ser social.
Lembrando sempre que quando separamos categoricamente um ser em orgâni-
co e social, não estamos falando de objetos diversos, mas instâncias diferentes
de uma mesma existência, sendo esse objeto a humanidade em sua plenitude.
Apenas por caráter ilustrativo, alguns conceitos comuns sobre o significado
de economia podem nos ajudar a repensar as prioridades econômicas no pla-
nejamento societário. De acordo com Rousseau, na sua contribuição a enciclo-
pédia francesa: “A palavra economia vem de casa e de lei, e significa de ordiná-
rio apenas o governo sábio e legítimo da casa, em vista do bem comum de toda
família”8. Quando o assunto é a origem do conceito de economia, há uma pre-
7 Idem, p. 38.
8 DIDEROT D.; D’ALEMBERT, J. L. R. (orgs.). Enciclopédia: Política. v. 4. São Paulo: 121
o futuro, nº1
valência original na atenção das necessidades humanas em jogo na sociedade;
inicialmente instituído para abordar o reduto familiar “o sentido do termo foi
em seguida estendido para o governo da grande família que é o Estado”9, e sur-
gem distinções também quanto a economia geral ou política, e entre economia
doméstica ou particular. Em um dicionário moderno, a definição se apresenta
como: “1. Contenção nos gastos. 2. Ciência que trata dos fenômenos tocantes à
produção, distribuição, acumulação e consumo dos bens materiais”10. Embora
a segunda definição pouco divirja da apresentada pela enciclopédia, a primeira
definição já nos propõe uma forma completamente moderna de pensar a eco-
nomia, pela chave da contenção de gastos. Enquanto, para uma definição, há
uma predominância da atenção básica, da questão da necessidade, sendo de
caráter contingente que essas necessidades passem por lógicas de escassez ou
abundância, para outra definição já se parte pela inversão completa dos senti-
dos, e não mais se torna prioridade da economia o atendimento a necessidades
humanas, mas ao acumulo pela lógica da escassez e austeridade.
A história da economia, assume assim a forma de uma história de como uma
“Ciência que analisa e estuda os mecanismos referentes à obtenção, à produção,
ao consumo e à utilização dos bens materiais necessários à sobrevivência e ao
bem-estar”11, se transformou em apologia do sistema jurídico que mantém as
relações de propriedade que impedem a plena posse dos sujeitos produtores dos
resultados positivos da produção social. Podemos ter uma descrição literal dessa
dinâmica quando vemos hoje profissionais da saúde sofrendo diretamente com
a falta de equipamentos básicos de segurança própria, deixando-os incapazes
de desfrutar da mercadoria saúde que fornecem com seu trabalho, o que resulta
diretamente no entendimento de que sua vida é descartável perante o acúmulo
e distribuição de recursos de acordo com a ciência da contingência de gastos.
Mas é exatamente sobre essa alienação da finalidade técnica da economia que se
ergue todo o negacionismo que propõe a falsa dicotomia entre economia e saú-
de, porque na essência primária das ciências não existe uma independência do
conhecimento em relação a humanidade. No entrelaçar entre os conhecimentos
da física, química e biológica adquiridos pela humanidade, é natural que se siga
uma certa impessoalidade no registro, e que os resultados conclusivos dessas
áreas de conhecimento se distribuam com uma certa desigualdade combinada,
simultânea, a depender de prioridades estranhas a esses mesmos pesquisadores
pois cumprem uma lógica pertinente a divisão social do conhecimento. Que por
sua vez não existe isolada em uma realidade pura, interagindo diretamente com
Nos vemos diante do ponto que separa, de modo antagônico, aqueles que
participam da produção social, uma vez que toda produção depende de sólidas
experiências construídas enquanto consumadas socialmente, e aqueles que
juridicamente detêm apenas a posse simbólica sobre todo esse aparato. Ou en-
tão, sendo mais sucinto, tendo como base real a sociedade, como é possível que
tenhamos erguido sobre ela uma estrutura cujo interesse principal se revela na
dissolução total de qualquer forma de sociabilidade?
F
anon é um desses marxistas que trazem a teoria diretamente para o
que há de mais visceral no conflito entre as classes e os povos, preci-
samente a forma mais avançada da teoria marxista - aquela que vai de
encontro com a urgência das lutas de classe, com a inquietação e os impulsos
dos dominados. Em sua análise sobre as condições de luta social e de liberta-
ção nacional na África, o argelino une num mesmo movimento a política bur-
guesa e a violência colonial que acomete o povo africano, despindo sua análise
de qualquer caráter ascético da política em sua dimensão ideológica. Ou seja,
a política não é, para Fanon, a superação da violência em direção à razão e ao
diálogo como preconiza a ideologia burguesa, nem a superação do primitivo
pelo moderno. É uma forma de organização do poder que se assenta sobre a ex-
clusão radical das massas antagônicas aos interesses da classe dominante. Não
apenas o Estado em determinada configuração ou sob um determinado gover-
no vinculado a uma classe, mas todo o seu aparato, incluindo sua disputa insti-
tucional e os valores que o cercam. Não à toa na luta pela libertação do país “[a]
arte política transforma-se simplesmente em arte militar. O militante político é
o combatente. Fazer a guerra e fazer política é uma e a mesma coisa.”3
Fuzis apontados
Há nas obras de Fanon e de Mariátegui uma grande similaridade: a crítica radi-
cal à ideologia da modernização capitalista pela sua existência política. Ou seja,
ambos realizam uma refutação materialista da ideologia que afirma o progresso
como uma faculdade branca e europeia, vinculada ao modo de produção que
trazem consigo como modo de produção dominante e suas formas materiais
(a cidade, as instituições, as leis e suas lógicas internas); em contraposição ao
atraso dos povos não-brancos, vinculados aos modos de produção nativos ou an-
teriores, à vida no campo e, especialmente, à pobreza e não adesão às lógicas
das instituições capitalistas que, não por coincidência, não são possivelmente
reprodutíveis senão entre as classes superiores e mais abastadas.
Objetivamente, estabelecem-se as fronteiras entre aquele mundo da razão
de Arendt, da população cuja condição material pode ser enquadrada na civili-
zação (aqui com um significado poderoso: quem pode ser civil, quem pode ser
cidadão), e aquele mundo, na mira das armas, da população cuja condição ma-
terial não pode ser enquadrada na civilização. Essa condição material é aquela
que sofre cotidianamente da violência estrutural da despossessão, da pauperi-
zação, da deterioração da própria saúde e desagregação social, aquela que não
tem a possibilidade de integrar-se ao modo de produção dominante e não tem
escolha senão viver à sua margem. Em Os Condenados da Terra, Fanon descreve
essas condições como fonte de uma sociabilidade essencialmente violenta, mas
a violência não é apenas uma expressão. É um meio de vida que salta das classes
populares como única opção de sobrevivência de muitos de seus integrantes e
como única resposta política possível contra uma política que lhes é imposta
com a força física. Em Ideologia e Política, Mariátegui descreve essas condições
como fonte de uma sociabilidade alienada, “ignorante” no próprio sentido da
desagregação social e da distância social dos espaços de circulação de ideias, de
política, de organização de classe. Dois aspectos que excluem essas camadas de
todos os marcadores sociais e mediações ideológicas que permitem a entrada
nos circuitos do poder, excluem todo o processo de sociabilidade marginal.
Com efeito, a política é o espaço por excelência dos intelectuais e dos tra-
135
o futuro, nº1
balhadores não-manuais. Uma instância social propriamente europeia, sua
constituição intelectual e não-manual já é diagnosticada pela sociologia e pela
ciência política europeias – e na América Latina essa constituição não se dá
de forma diferente, sendo a construção dos Estados nacionais impulsionados
fortemente pelas camadas médias urbanas. As forças sociais que constroem
positivamente o Estado o constroem como um espaço que valoriza e funcio-
na com base em competências socialmente designadas (em especial, àqueles
que logram obter títulos escolares, marcadores sociais de apreensão de com-
petências específicas), tornando-o permanentemente um espaço monopoliza-
do por determinadas classes sociais. Mesmo os órgãos não eletivos realizam
seu recrutamento com base nos processos de comprovação de competências
intelectuais adquiridas pelas trajetórias escolares, exigindo níveis de escolari-
zação não alcançáveis pelos mais pobres. Com uma lógica própria, a “relativa
autonomia”, a política não permite, enquanto for política institucionalizada, a
entrada direta daqueles que não possuem os marcadores próprios das camadas
médias e superiores, isto é, daqueles que não foram socializados por meio da
violência e da pobreza. Essa trajetória de classe é excluída do Estado e dos cir-
cuitos do Estado por sua própria lógica interna.
Assim como o exercício da medicina requer o título universitário de compe-
tência técnica atestada, o exercício da política requer marcadores, características
e relações objetivas que comprovem o pertencimento da classe a esse exercício em
específico. Às classes populares, essas permissões são negadas sistematicamente.
Ao ocupar o espaço público, as ruas, as classes populares são duramente repri-
midas pelas forças policiais, estabelecendo aí já uma forte oposição entre o Estado
com seus aparelhos e as massas expressando-se politicamente. Os partidos radicais,
cujos quadros são aqueles oriundos das massas, ora são ilegais, ora são rechaçados
nos meios públicos de circulação de ideias (os monopólios de mídia) e pelos partidos
da ordem por conta de seus programas radicais, que preconizam as armas e as re-
formas de base, inadmissíveis nos círculos mais abastados. Nascer em um território
urbano reprimido pelas forças policiais se converte num desses marcadores sim-
plesmente pelo pertencimento a uma classe por princípio oposta à razão de Estado,
expressa na ação dos seus aparelhos mantenedores da ordem social.
Não é permitido, assim, ao corpo marginal adentrar nos circuitos monopo-
lizados pelos dominantes. Seu efeito na política é completamente reduzido à
delegação de sua representação aos quadros dos partidos da classe média e da
burguesia. Frequentemente os partidos da ordem se apropriam das reivindica-
ções dos mais pobres, aparecem em seus bairros em campanha, para se verem
ou limitados pelas próprias instituições em seus mandatos, ou apenas se apro-
veitando oportunamente do apoio de uma grossa fatia da população para sua
vitória numérica nas urnas. Da mesma forma, o apoio popular a determinado
136 quadro das classe superiores, por mais que desejoso de levar adiante as reivin-
A política é violência, savella
dicações populares, não tem a capacidade de articulá-las num campo em que
essas mesmas massas não têm qualquer poder. O poder delegado a um repre-
sentante converte as massas em apenas um indivíduo calcando precariamente
alguma posição no interior das instituições do Estado.
A imposição de um poder político das classes superiores, da comunidade polí-
tica excludente e restrita, se baseia também na desarticulação da organização po-
pular. No campo, as lideranças populares são assassinadas pelo braço armado dos
latifundiários, quando não diretamente pelo Estado, cortando sempre qualquer
expressão efetiva da política radical das massas – diga-se, a única política possí-
vel das massas – uma vez que a radicalidade é surpreendida por todos os lados
pelas restrições legais de defesa da grande propriedade, da apropriação privada
do espaço. Nas cidades, os bairros periféricos e territórios de habitação precária
são estrutural e diretamente desagregados socialmente para impedir já na raiz
qualquer estabelecimento duradouro de solidariedade de classe, uma vez que a
vida é permeada em sua totalidade pela perseguição policial, pela fome, desem-
prego, desamparo e pela violência urbana. Ao atingir certo desenvolvimento, suas
lideranças são, também, assassinadas. No momento da revolta, as manifestações
de massa são duramente reprimidas e as prisões se multiplicam dia após dia. É
assertiva a descrição de Judith Butler desses processos: desamparados por todos
os lados, os corpos marginalizados se aliam para criar as condições materiais de
sua expressão e, unidos espacialmente ocupando o espaço público, desafiam a ca-
pacidade do Estado em calá-los.12 A classe média, por sua vez, ao ocupar o espaço
público se alia diretamente às forças repressivas, convertidas em doces amigos
dos manifestantes somente com a pitada mágica de sua posição social.
O instrumento último de controle político das massas na América Latina é o
golpe. A democracia do sufrágio universal, ainda que cem por cento permeada
pelos mecanismos de restrição das disputas do poder, possui suas contradições
ainda mais marcadas na periferia capitalista do que em seu centro. Não há
espaço para conquistas trabalhistas e nem para políticas populares em eco-
nomias dependentes, se baseando centralmente na superexploração do traba-
lho13, e o sufrágio gera um efeito perigoso para essas necessidades: os grupos
políticos, para perseguirem posições de dominância no Estado, podem se ba-
sear nas camadas populares e, para se reproduzirem no poder, dependem de
sua relação com essas camadas, gerando limitações na sua utilidade enquanto
dirigente político para a classe dominante. Esse movimento depende, é claro,
do fortalecimento das organizações e da consciência da classe trabalhadora,
alterando objetivamente a força desta classe na defesa de seus interesses. Nada
12 Conferir BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.
13 Sobre isso, conferir Dialética da Dependência, artigo de Ruy Mauro Marini. Publi-
cação original: 1973. 137
o futuro, nº1
disso pode ser tolerado – e é por isso que a história da América Latina é marca-
da por sucessivos golpes, tornando o Estado de exceção não uma exceção mas
a regra, já diria Agustín Cueva. Os golpes têm a função de aprofundar a política
econômica da dependência, aumentando os espólios da classe dominante na-
cional e das burguesias das economias centrais.14
P
restes a iniciar uma nova década, as juventudes do mundo se deparam
com um futuro duro à sua frente. O mundo capitalista entra coordena-
damente em uma nova crise, cujos efeitos devastadores devem ser ainda
piores que o da última crise mundial de 2008. As economias capitalistas, que já
sinalizavam uma desaceleração ainda antes da pandemia, foram completamente
arrasadas pelo Covid-19 e pelas necessárias medidas de isolamento social que a
comunidade científica apontou como caminho para garantir a sobrevivência da
humanidade. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) analisa que a gran-
de crise de 2020 poderá ceifar cerca de 305 milhões de empregos – um número
assombroso que vem sido reatualizado continuamente, sempre para cima. Segun-
do a agência da ONU, a classe trabalhadora mundial pode perder 3,4 trilhões de
dólares em sua renda, devido a reduções de jornadas de trabalho e salários, o que
também sinaliza um aumento no subemprego e na consequente superexploração
das e dos trabalhadores empobrecidos. Os trabalhadores informais, mais explora-
dos e destituídos de direitos, podem perder 60% de sua renda globalmente, com as
maiores quedas sendo nas regiões da América Latina e África. Enquanto esse texto
é escrito, 346.459 vidas já foram perdidas na luta contra o coronavírus – e isso sem
contar as mortes causadas pela sobrecarga causada nos precários sistemas de saú-
de dos países que seguem a infame “lei do mercado”. A crise econômica e social
destrói as vidas dos povos, tanto os que vivem no topo da cadeia imperialista quan-
to os que vivem em países dependentes e semicoloniais. Enquanto isso, capitalis-
tas do mundo todo tentam jogar o peso do caos nas costas das e dos trabalhadores.
Bilionários estadunidenses ficaram 434 bilhões de dólares mais ricos durante a
pandemia, ao mesmo tempo em que mais de 40 milhões de pessoas já solicitaram
seguro-desemprego no Estado autoproclamado “líder do mundo livre”.
149
150
“São gentis
porque são ricos”:
Subjetividade de
classe e realismo
em Parasita e
Bacurau
Fêh Sung1
A
vilanização das classes dominantes em filmes e na grande mídia de
entretenimento deixou de ser algo chocante faz bastante tempo. Das
patricinhas manipuladoras ao capitalista do mal que vai destruir o
meio ambiente cego por dinheiro, não faltam exemplos de produtos culturais
de massa que associam riqueza e maldade. Um dos aspectos perigosos dessa
associação é dinheiro = maldade e dinheiro = poder, logo, poder = maldade.
Mas gostaria de chamar atenção para outro aspecto.
A subjetividade burguesa tem um fascínio em representar a vida como
sociedade das aparências, “o teatro da vida”, as coisas nunca são o que apa-
rentam, se apresentam sempre como seu oposto.
Parte fundamental da personagem da patricinha do mal é que, à primeira
vista, ela parece ser uma boa menina, que por detrás da sua aparência perfei-
ta e angelical existe uma pessoa capaz de fazer e pensar maldades de forma
fria e calculada. Qualquer filme ou série adolescente aqui serve de exemplo.
Assim como o grande empresário que à primeira vista parece estar agindo
pela melhor das intenções, mas ao longo da história sua máscara cai, seus
verdadeiros interesses malignos são expostos.
Para pegar um exemplo concreto é só imaginar o Lex Luthor, arqui-inimi-
go do Super Homem, cujo personagem é baseado na aparência de ele ser um
bilionário filantropo, cientista inovador pelo avanço da humanidade, figura
pública carismática, mas secretamente é um corrupto, megalomaníaco com
planos malignos de dominação mundial.
1 Estudante de História da Arte, militante da Célula Sindical e Popular do Partido Co-
munista Brasileiro em Porto Alegre, RS. Diretora de Universidades Públicas da UNE. 151
o futuro, nº1
Na subjetividade capitalista reina a mais completa desconfiança de to-
dos contra todos e nenhuma boa intenção sincera que envolva a obtenção
de poder pode ser verdadeira. “Qual o interesse por trás?”, “o que ele está
ganhando com isso?” , são as perguntas que faz quem, para sobreviver ,
deve sempre buscar primeiramente o benefício próprio.
O importante de notar aqui é que, apesar da crítica aos ricos e capita-
listas, estamos dentro da subjetividade da própria burguesia. A visão do
mundo como um espetáculo de aparências falsas é autorreflexo da própria
sociedade capitalista e o apontar de dedos dessa situação não deixa de ser
apenas: “as coisas são realmente dessa forma, que pena”.
“O teatro da vida”, onde cada um só está interpretando um papel para impres-
sionar, não se trata de uma lei universal para todas as sociedades. A crítica fundada
nessa perspectiva, portanto, não é uma crítica de fora, mas uma autocrítica, um
recalque, uma vergonha pessoal burguesa, como que admitisse seu lado feio.
Seria fácil imaginar uma versão burguesa de Parasita: o porão da casa
esconderia o segredo sujo da rica família aparentemente perfeita que mora
ali. Onde o filme se diferencia é justamente de se basear no oposto: a famí-
lia não só não tem nenhum segredo maligno, como é totalmente ignorante
acerca do que ocorre sob seus próprios pés.
O casal burguês de Parasita é interessantíssimo nesse aspecto: não foi neces-
sário apresentar que a empresa do patriarca da família é uma megacorporação do
mal para perdermos a simpatia por ele. Em nenhum momento eles agem de forma
maliciosa ou demonstram qualquer tipo de prazer em sua posição de dominação.
“São gentis porque são ricos”, essa fala genial explicita a subjetividade de
classe do filme. Os capitalistas de Parasita não causam sofrimento porque es-
tão envolvidos em algum plano de dominação global, mas simplesmente porque
existem. Seu modo de vida sincero, movido pelas melhores das intenções, com-
pletamente adequado a sua condição, é mostrado como um completo absurdo.
A esposa não é a rica madame fofoqueira e arrogante dos bairros nobres
que aparece nos filmes de Hollywood. Toda cadeia de ações do filme só existe
porque ela age sempre na melhor das intenções buscando o bem-estar de sua
família e seus filhos. Ainda assim, no decorrer do filme, só de observar sua
vida achamos justamente sua gentileza mais sincera algo um tanto de podre.
A existência daquela família naquela casa em si aparece como um ultraje, não
importa sua inocência. O filme perderia toda sua força crítica se por exemplo a en-
chente no bairro pobre tivesse uma relação de causa e efeito com as ações da em-
presa do pai da família, pois poderia o espectador respirar aliviado: “ali o culpado!”.
Esse gostinho nunca nos é dado, pois o problema não é o caráter deste ou aquele
indivíduo, mas a estrutura social em sua normalidade que é posta como perversa.
A graça consiste justamente em a história não nos dar nenhum nexo entre a miséria
152 de uns e a fortuna de outros e quanto mais se esforça nisso mais essa conexão é feita.
“São gentis porque são ricos”: Subjetividade de classe e realismo em Parasita e Bacurau, sung
Os comentários sobre o cheiro dos empregados são mais próximos de ob-
servações de quem olha animais no zoológico – “que curioso e bizarro são es-
ses seres estranhos” – do que feitos por pura maldade e malícia. Bastante dife-
rente, por exemplo, do racismo consciente em Bacurau.
Para efeitos de comparação falemos mais de Bacurau, outro ótimo filme fei-
to a partir de uma perspectiva das classes oprimidas. Em Bacurau claramente
estamos numa situação de classe contra classe: os oprimidos estão unidos em
causa comum de resistência contra a classe dominante associada.
Apesar das motivações diversas, as intenções e objetivos dos vilões do filme
são bem explícitas: matar por prazer. Os assassinatos são passados na televisão
como uma forma de entretenimento.
O filme nunca pretende enganar o espectador de que o prefeito Tony Jr. ou
os motociclistas são boas pessoas que mais adiante se revelariam do lado dos vi-
lões. No andamento do filme ambos os lados ficam perfeitamente cientes do que
está acontecendo, afinal se trata de uma guerra, não há espaço para inocências.
A rica família de Parasita nesse universo seriam os telespectadores do pro-
grama de matança, jamais fariam eles mesmos aquilo, enxergam apenas como
um programa divertido sendo totalmente ignorantes das reais consequências
do que estão assistindo. No melhor dos casos achariam de mau gosto, muda-
riam de canal e seguiriam suas vidas.
Os conflitos em Parasita não são diretamente de classe contra classe, o con-
flito maior de classes aparece sempre mediado pelos conflitos entre os interes-
ses imediatos dos trabalhadores. Inclusive nos encontramos com personagens
que, apesar do alto nível de humilhação e condições desumanas em que vivem,
ainda assim admiram e respeitam a classe dominante.
Oportuno lembrar do personagem do Samuel L. Jackson em Django do Quen-
tin Tarantino, o negro da casa grande racista e aristocrata que fica do lado escra-
vocrata. Parasita nos apresenta um personagem parecido, mas é mais complexo.
Em Django a contradição é berrante, o escravizado defendendo seu escravizador
direto, já o marido do porão não tem vínculo real com o patriarca da casa.
Novamente a ignorância deixa a situação mais sinistra; não se trata do vi-
lão da Disney que tem em torno de si uma figura patética que se afirma na sua
adoração submissa ao chefe, mas é correspondido por algum xingamento. O
capitalista de Parasita sequer sonha com a existência do seu admirador, cuja
total existência depende dele.
Nada mais apropriado como paralelo das atuais relações de trabalho, onde as
subcontratações, terceirizações, pejoutizações e afins fazem o capitalista nem en-
xergar sua contraposição à massa dos trabalhadores, não é diretamente responsável
de nada. Esse mesmo cenário torna possível que os donos da empresa Uber podem
chamar um Uber sem o motorista sonhar que ele está dirigindo para seu patrão, é a
igualdade formal burguesa realizada. Somem as classes, todos viram colaboradores. 153
o futuro, nº1
Em Bacurau, por outro lado, não existe nenhuma possibilidade para trai-
dores entre o povo oprimido, a construção do filme impossibilita que qual-
quer personagem da cidade tenha ilusões sobre o local que ocupa naquele
universo. Estamos diante de uma situação extrema, crua, um conflito fan-
tástico de vida e morte no qual a noção de cotidiano é totalmente destruída,
tudo é excepcional. As crises morais e conflitos se dão entre os antagonistas,
reforçando a solidez da justeza da causa do povo.
Os conflitos iniciais entre os habitantes da cidade no clímax do filme se
tornam irrelevantes, em Parasita o oposto acontece: os dramas do cotidiano, a
dependência de viver como parasitas tomam uma forma monstruosa. Bacurau
é um filme sobre uma situação épica que invade a vida cotidiana, já Parasita é
um filme sobre a vida cotidiana que toma proporções épicas e por conta disso
ele mais facilmente convence o telespectador na sua crítica, pois parte de ele-
mentos comuns do seu dia a dia.
Até mesmo na sua ambientação, Bacurau é muito mais localista, particular,
o que facilita aparecer de forma fantástica e fetichizada para um cidadão mé-
dio de uma grande cidade. Observação: isso não é uma crítica negativa, é ape-
nas uma constatação. Parasita é altamente universal, como disse seu diretor:
“vivemos todos num mesmo país chamado capitalismo”, no qual se somam os
elementos regionais. Também em completo oposto a Bacurau, aqui é a coope-
ração das famílias entre si contra a classe dominante que aparece como impos-
sível. Apesar da situação altamente dramática, todas as leis da normalidade
continuam em vigor, não há estado de exceção, mas o conflito de classes tem
que ser resolvido mesmo assim.
Ambos os filmes, para mim, estão dentro do ponto de vista da subjetividade
do oprimido – em vez das histórias sessão da tarde fundamentadas na culpa
burguesa, mas é notável que nas inevitáveis comparações, Parasita conta com
vantagem cosmopolita. Parasita é muito mais próximo da nossa realidade vivi-
da, enquanto Bacurau é das nossas fantasias (com o adendo que são fantasias
inconfundivelmente brasileiras e isso tem seu valor).
Em contraponto podemos dizer também que Bacurau é a realidade burgue-
sa nua e crua, sem ilusões, a guerra aberta entre classes, enquanto Parasita é
ela vestida com suas melhores roupas e ainda assim continua feia.
154
Movimento
estudantil de
medicina e luta pela
transformação da
educação médica
no Brasil
Lucas Uback1 e Daniel Felix Valsechi2
A
f unção da educação, do ensino e da escola são debates recorrentes nos
movimentos sociais contemporâneos. Enquanto forma particular de
movimento social, todo movimento estudantil surge a partir da exis-
tência de estudantes e de sua organização coletiva por reivindicações específicas.
Considerando que grande parte das relações sociais estabelecidas pelos estudan-
tes ocorrem no contexto educacional, uma das especificidades do movimento es-
tudantil consiste em pensar a educação e suas múltiplas determinações, incluindo
o acesso às instituições de ensino e permanência nelas, organização dos conteú-
dos curriculares, metodologias de ensino-aprendizagem, entre outras.
Em cada movimento estudantil institucionalizado, as disputas entre os es-
tudantes que o compõe culmina na redefinição dessas reivindicações em seus
espaços deliberativos, expressando determinadas tendências e prioridades da
luta coletiva em cada período histórico. No que tange a organização coletiva
dos estudantes de medicina em nosso país, a Direção Executiva Nacional dos
Estudantes de Medicina (DENEM) é reconhecida juridicamente como a organi-
zação representativa dos estudantes de medicina no Brasil, capaz de articular
em âmbito nacional o movimento estudantil de medicina. Para tanto, realiza
diversos espaços deliberativos regionais e nacionais, dentre eles o Encontro
Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM), evento deliberativo anual em
Concepção pedagógica
Conclusão
Apesar de historicamente pautar que a atual formação médica brasileira
não caminha no sentido dos interesses populares e da transformação da
prática social, as disputas estudantis na DENEM vêm resultando em po-
sicionamentos genéricos ou, pior, que endossam perspectivas que vão na
contramão dessa transformação. Frente ao exposto, concluímos que a Exe-
cutiva se posiciona claramente sobre a necessidade de transformar a edu-
cação médica vigente, mas ainda não se posiciona de forma coerente sobre
como viabilizar essa transformação. Na medida em que toda organização
coletiva de estudantes se fundamenta em determinada concepção de ho-
mem, de sociedade e da natureza, os movimentos estudantis que escolhem
caminhar ao lado da classe trabalhadora pela superação do capitalismo de-
vem defender uma perspectiva teórico-pedagógica que seja consoante a sua
posição de classe, que possibilite compreender radicalmente a função dos
estudantes no processo educacional e de transformação social.
A DENEM precisa escolher entre dois caminhos possíveis para a educação
médica no Brasil: o primeiro, persistir na luta genérica e desorientada por
sua transformação, alinhando-se à atual posição da ABEM e abrindo cami-
nho para determinadas iniciativas de desenvolvimento estudantil em educa-
ção5; o segundo, adotar explicitamente uma perspectiva educacional em sin-
4 Cabe pontuar que nem todo movimento estudantil se situa à esquerda ou é orientado
por uma perspectiva revolucionária. O principal exemplo nas escolas médicas brasi-
leiras são as Associações Atléticas Acadêmicas (AAAs), movimento estudantil de di-
reita - no mínimo conservador e frequentemente reacionário. Ao organizar a massa de
estudantes em prol do objetivo declarado e delirante de elevar o nome da faculdade
por meio da vitória em competições esportivas universitárias, as Atléticas realizam o
objetivo velado de desmobilizar a organização consciente dos estudantes de medicina
pela transformação das relações sociais. O mesmo pode ocorrer quando, em determi-
nados períodos históricos, estudantes conservadores e reacionários ganham força na
gestão institucional de organizações estudantis, como os CA/DAs e a DENEM.
5 Munidas de conceitos aparentemente progressistas, como “engajamento estu-
dantil” e “responsabilidade social da escola médica”, essas iniciativas se difun-
dem para formar os educadores construtivistas do amanhã. Destaca-se a pre-
166 tensiosa fundamentação dessas iniciativas na “educação médica baseada em
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
tonia aos seus objetivos políticos na luta com a classe trabalhadora, deixando
a perspectiva neoconstrutivista para as organizações estudantis de direita,
que precisam assumir “uma atitude negativa em relação à transmissão do
conhecimento pela educação escolar” (DUARTE, 2008, p. 215) para, por meio
da prática social fetichizada, dar sentido à filantropia e ao esporte universitá-
rio de alto rendimento. Esperamos que as disputas estudantis inerentes aos
espaços deliberativos da DENEM apontem para o segundo caminho, assu-
mindo uma posição de combate ao neoconstrutivismo na educação médica
brasileira ao mesmo tempo em que constrói, de forma intencional e coletiva,
sua transformação histórica. Defendemos a pedagogia histórico-crítica para
trilhar esse caminho, rumo à revolução socialista brasileira.
Movimento estudantil de Medicina e a luta pela transformação da educação médica no Brasil, uback; valsechi
LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval (orgs.). Marxismo e educação: debates
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em: https://bit.ly/2XgjO74. Acesso em: 30 mai. 2020.
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Agradecimentos
Os nomes abaixo mencionados contribuíram para a campanha de arrecadação
financeira da revista O Futuro - O Comunismo é a Juventude do Mundo. Sem a
ajuda dessas pessoas, a propaganda revolucionária que esta revista represen-
ta não seria possível. Cada nome abaixo representa, para os comunistas, um
pequeno passo para a Revolução, para o Socialismo, para o Comunismo. Não
somos nós que agradecemos: é a humanidade.
173
UJC.ORG.BR
@UJCBR @UJCBRASIL
Venha se
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UJC - Brasil
nome do texto, autor
O comunismo
é a juventude
do mundo
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